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A ÁGUA EM ATMOSFERA DE ATAQUE

POÉTICAS DO CORPO-ENCRUZILHADA EM PERFORMATIVIDADE


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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE ARTES

CURSO DE LICENCIATURA EM TEATRO

WISLAYNE PONTES DE SOUZA FERREIRA

"A ÁGUA EM ATMOSFERA DE ATAQUE”


POÉTICAS DO CORPO-ENCRUZILHADA EM PERFORMATIVIDADE

Orientação:
Prof. Me. Makarios Maia Barbosa

Natal/RN - 2021
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
DEPARTAMENTO DE ARTES

CURSO DE LICENCIATURA EM TEATRO

WISLAYNE PONTES DE SOUZA FERREIRA

"A ÁGUA EM ATMOSFERA DE ATAQUE”


POÉTICAS DO CORPO-ENCRUZILHADA EM PERFORMATIVIDADE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Colegiado do Curso de Licenciatura em Teatro,
do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes,
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
como requisito parcial à obtenção do grau de
Licenciado em Teatro.

Orientação: Prof. Me. Makarios Maia Barbosa

Natal/RN - 2021
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WISLAYNE PONTES DE SOUZA FERREIRA

"A ÁGUA EM ATMOSFERA DE ATAQUE”


POÉTICAS DO CORPO-ENCRUZILHADA EM PERFORMATIVIDADE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Colegiado do Curso de Licenciatura em


Teatro, do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, como requisito parcial à obtenção do grau de Licenciado em Teatro.

Banca Examinadora:

__________________________________________________
Prof. Me. Makarios Maia Barbosa
(Orientador – DEART/UFRN)

__________________________________________________
Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek
(Examinador Interno – DEART/UFRN)

__________________________________________________
Prof.ª Ma. Naara de Oliveira Martins
(Examinadora Externa)

Natal/RN - 2021
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AGRADECIMENTOS

Agradeço aos orixás e aos encantados pelos sinais deixados no caminho, os quais me
serviram de orientação durante o desenvolvimento de minha macumba epistemológica.
À Josefa Maria da Conceição (EM MEMÓRIA), por transmitir pela lâmina afiada de
seu facão, sua valentia encarnada em Pirigo. À todas as suas descendentes por abrigar essas
memórias que anunciam vestígios dessa mina de água.
À minha Vó materna Dona Maria, neta de Pirigo, por se manter viva por meio da
tradição oral e ser sempre um portal de escuta e sabedoria. À minha Mãe Lena que me ensina
o poder do feitio e da artesania. À minha irmã Ketlyn por me mostrar com sua dedicação que
há sempre novas formas de se aprender algo novo. Ao meu pai Edgar por compartilhar
canções de protestos e caminhos percorridos para minha sustentação.
Ao meu companheiro Raian Araújo por sua ginga e seu dengo, chamego que caminha
junto a mim nesse processo que é viver, por estar e ser presente na vida de nosso filho Raul.
A Raul pedaço de mim e do mundo, por me fazer lembrar de como é criar em um universo
emLUARado de criança. À cria que está nesse momento sendo gestada em meu ventre.
Ao meu ori-enta-dor Makarios Maia Barbosa, por me fazer acreditar na força da
minha pesquisa me guiando com toda a sua sabedoria, apreço, poesia e dedicação. Sou
imensamente grata por ter cruzado em seu caminho. Atotô!
Meus agradecimentos aos amigos e colegas que atravessaram meu caminho, na vida e
ao longo desse período de graduação, seja os de dentro da academia ou os de fora. Ao terreiro
criativo do Grupo de Teatro Nó onde dei meus primeiros passos rumo aos palcos. Ao breve
Coletivo filhas de Eva pelos rituais alquímicos, simbologias de tarot e toda força da bruxaria
sinestésica do criar entre mulheres.
À Alessandra Augusta e Roberta Barbosa, “meu bandivéias”, à Luana Cavalcante, por
me instigar a individualidade genuína de SER; à Eva “Cabocla de Jurema”, à Tiquinha
Rodrigues, à todas as integrantes do Coco de Rosa pela força das rodas, dos giros e das
mulheres artistas que são, toda minha admiração.
A Éric Medeiros, Guga Medeiras e Pamela Dutra que estão comigo desde o primeiro
dia de aula, partilhando fontes de estudo, conversas e arengas enriquecedoras. À Camila
Morais e Raiza Flores que compartilham comigo o processo de criar gente e alimentam meu
corpo clareando a mente e a alma. Às minhas amigas & “psicólogas” Isabella Reges, Mab
Abreu, Patrícia Amorim e Raquel Martins que sempre quando possível contribuem com suas
percepções diante das minhas buscas.
À tríade: TVU RN, COMUNICA e AGECOM 1 pela bolsa de apoio técnico que me
permitiu partilhar desse espaço e me deu a oportunidade de viver a experiência de ser
maquiadora e auxiliar de produção, aprendendo um pouco mais sobre os processos de
comunicação de compromisso ético e responsável pela formação cultural dos cidadãos.
Minha gratidão terna por ter conhecido Rosália Figueirêdo, Erica Lima, Joana Darc Arruda
entre tantos outros guias e mestres que conheci nesse espaço de resistência.
Ao PIBIC, CNPq e a professora Naira Ciotti, pela bolsa tecnológica de iniciação
científica do projeto Performances e Mulheridades, território virtual de muitas trocas e afetos.

1
TV Universitária da UFRN e Agência de Comunicação dessa instituição.
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Aos professores e professoras do Curso de Licenciatura em Teatro e de todos os


outros departamentos aos quais cruzei, aos servidores técnico-administrativos do DEART –
UFRN por todo o suporte;
À Banca Examinadora desse TCC, ao professor Dr. Robson Carlos Haderchpek e a
Ma. Naara de Oliveira Martins, que se disponibilizaram participar desse rito tão significativo,
para mim;
Ao Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, especialmente, ao Departamento de
Artes, pela iniciativa desta realização;
À Universidade Federal do Rio Grande do Norte e às suas Pro-Reitorias de Extensão
(PROEX) e de Assuntos Estudantis (PROAE) pelo apoio e condições oferecidas para minha
permanência durante a graduação;
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Nascemos sem saber quem somos


de onde viemos pra onde vamos,
determinam até o que gostamos,
quem amamos, admiramos.
Mas retorno aos meus ancestrais
para conhecer o que me fez eu.
Uma história quase que perdida,
apagada, esquecida.
Sem entender por que fui preterida...
Vou cantar...
ganhar a vida...
Traz de volta pra si, traz...
Todo poder que sempre foi teu.
Sangue vermelho,
pulsa na veia,
África!
Tanta beleza... tanta riqueza...
Trágica!
Sou nordestina
Afroameríndia
Filha de Preta
Neta de Índia
Mulher Valentia
Mulher Fortaleza
Mulher Ousadia
Mulher Realeza
Herança e Memória
Vai resgatar!
Pois mulheres que caminham juntas
ninguém é capaz de domar.

AFROAMERINDIA – COISALUZ
Composição de Bianca Cardial,
Dayanne Nunes, Flávia Fagundes,
Roberta Lúcia e Viviane Vaz. USE O CELULAR E O
APLICATIVO DO QRCODE
PARA OUVIR
AFROAMERINDIA
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FERREIRA, Wislayne Pontes de Souza. “OID’ÁGUA – A ÁGUA EM ATMOSFERA DE


ATAQUE”: Poéticas do corpo-encruzilhada em performatividade. Trabalho de Conclusão de
Curso de Licenciatura em Teatro. Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Orientação: Prof. Me. Makarios Maia Barbosa (DEART/UFRN), 2021.

RESUMO
A presente pesquisa tem como objetivo relatar os múltiplos processos formativos que se
encruzam e se organizam diante da criação que nasce do fluxo de memórias e registros
autobiográficos, ao tempo em que produz reflexões, na perspectiva teórico-filosófica da
contemporaneidade em aproximação ao pensamento decolonial e emancipatório,
fundamentando-se na encruzilhada de Exu (orixá dos caminhos e do fogo), enquanto lugar de
afirmação conceitual e político-epistemológica. O presente trabalho investiga os processos de
pesquisa e experimentação que produziram a obra poética e identitária Oid’água, construída ao
longo dos últimos dois anos (2019/2020). Oid’água é uma escrita visual e etnográfica
atravessada pela persona Pirigo, que nesta proposta configura-se como corpomídia (GREINER,
2005) e corpo-encruzilhada (RUFINO, 2019), para discutir como a encruza de memórias,
imagens sonoras e visuais, durante um processo criativo de ritualização, pode trazer à tona
reminiscências ancestrais, mitos e cruzamentos cosmológicos. Partindo dessa condição de
registro de memória, é possível compreender uma jornada muito mais ampla, desenvolvida e
vivida no Curso de Licenciatura em Teatro da UFRN. A partir de entroncamentos
metodológicos de um corpo “em estado de ataque”, esse trabalho descreve e reflete acerca do
processo criativo, tomando como matéria expressiva a poética dos corpos criativos de mulheres
afroameríndias.

Palavras-chave: Teatro. Poéticas da cena. Corpo-Encruzilhada. Corpomídia. Oid’água.


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FERREIRA, Wislayne Pontes de Souza. “OID'ÁGUA - WATER IN ATTACK


ATMOSPHERE”: Poetics of the body-crossroads in performativity. Graduation Course
Work in Theater. Federal University of Rio Grande do Norte (UFRN). Orientation: Prof. Me.
Makarios Maia Barbosa (DEART / UFRN), 2021.

ABSTRACT

The following research objective is describing the formative processes which intersect and
organize themselves in front of the creation that arises from the autobiographic memories
flow. This study also raises considerations under a philosophic-theoretical perspective over
the contemporaneity approaching decolonial and emancipative thoughts, substantiating itself
in the Exu (orisha of paths and fire) crossroads as a place of conceptual and political-
epistemological affirmation. Besides that, the work investigates the research and
experimentation processes which produced an identity and poetic work Oid’água, constructed
over the past years (2019 and 2020). Oid’água is a visual and ethnographic writing crossed by
the persona Pirigo, which in this proposal configurates itself as a corpomídia (GREINER,
2005) and body-crossroads (RUFINO, 2019), because it aims to discuss here how the
crossway of memories, sound and visual images, during a creative process of ritualization, it
brings to light ancestors’ reminiscences, myths and cosmological crossings. Leaving from
this condition it is possible to comprehend an extended journey through the conclusion of the
Theater Degree at UFRN (Federal University of Rio Grande do Norte). Based on
methodological junctions of a body "in a state of attack", this work describes and reflects on
the creative process, taking as an expressive matter the poetics of the creative bodies of Afro-
Indian women.

Keywords: Theatre. Poetry of scene. Body-Crossroads. Corpomídia. Oid’água.


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LISTA DE IMAGENS

• Xilogravuras de Darliany Quirino e Luana Monxoró - @Flecharty - Arte Cabocla


• Vetorização por Geovana Grunauer
• Diagramação e Colagens por Wisla Ferreira

• Colagem Performance “Meu Eu Camaleoa” ................................................................27


Registros fotográficos de Byanca Soares
• Colagem Performance “MadreDeusa” .........................................................................33
Registros fotográficos de Natan França e Massimo Chiozzi
• Colagem Etnográfica “Paisagens de dentro do corpo da gente” ..................................39
Registros fotográficos de Wisla Ferreira e Acervo pessoal de Vó Maria
• Colagem “Encarnada” - matrizes geradoras do processo de pré-expressivo................54
Registro fotográfico de Luana Cavalcante e Acervo do Canva.
• Colagem “Urucumzada” - construção da maquiagem .................................................58
Registros fotográficos de Raian Araújo
• Colagem “Um Oid’água brotou de dentro da cabaça” – do processo de encenação....66
Registros fotográficos de Walter Sá
• Colagem “As memórias da fumaça do cachimbo de Pirigo” .......................................70
Registros fotográficos de Pamela Dutra e Acervo pessoal de Vó Maria
• Colagem “A arte ancestral que me alimenta” ..............................................................74
Registros fotográficos de Luana Cavalcante
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LISTA DE LINKS DE VÍDEOS (Disponíveis em QR CODE)

• QR CODE de vídeo áudio da música Afroameríndia da banda CoisaLuz ...................08


link de acesso: https://youtu.be/DO4P3p6PJTA
• QR CODE do curta-metragem Oid’água de Wisla Ferreira.........................................18
link de acesso: https://youtu.be/TrKzZZo2ifM
• QR CODE da Performance “Meu eu Camaleoa” por Wisla Ferreira...........................26
link de acesso: https://youtu.be/CUu4mNS9K0Q
• QR CODE da Performance “MadreDeusa” por Wisla Ferreira...................................32
link de acesso: https://youtu.be/LGxNcEx8RHw
• QR CODE do vídeo áudio da música São Jorge de Juçara Marçal e Kiko Dinucci....50
link de acesso: https://youtu.be/gJMytkuC3Os
• QR CODE do vídeo áudio do manifesto música Suçuarana pela banda Pietá..............52
link de acesso: https://youtu.be/Y10YZ_bHH0w
• QR CODE do vídeo áudio da música Corpo de Dea Trancoso.....................................56
link de acesso: https://youtu.be/ddj2i5L-3R8
• QR CODE do Curta-metragem Oid’água de Wisla Ferreira........................................65
link de acesso: https://youtu.be/TrKzZZo2ifM

LISTA DE ANEXO

• FICHA TÉCNICA do Filme Oid’água.........................................................................73


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SUMÁRIO

Introdução ......................................................................................................................................15
Parte I – Atmosfera de Ataque de Um Corpo – Encruzilhada .................................................19
1.1 – Um Corpo-Encruzilhada.......................................................................................................19
1.2 – “ABRE A TABACA! Dentro da tabaca está sua mãe e minha história” ............................ 23
1.3 – Eu sou um OID’ÁGUA que brota da CABAÇA .................................................................34
Parte II – PIRIGO e as Ancestralidades de um Corpomídia ....................................................40
2.1 – O Corpomídia de uma MULHER NEGRA .........................................................................41
2.2 – Um Corpo que abriga a vida, um Corpo que briga e é brabo ..............................................45
Parte III – OID’ÁGUA .................................................................................................................48
3.1 – As MANDIGAS fluentes na terra da MACUMBA .............................................................49
3.2 – A CABAÇA | CABEÇA | CABAÇO como ORIGEM ........................................................55
3.3 – A descrição de Oid’água ......................................................................................................59
Conclusão .......................................................................................................................................67
Referências .....................................................................................................................................71
Anexos ............................................................................................................................................73
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Introdução
A pàdé olóònòn e mo juba Òjísè
Àwa sé awo, àwa sé awo àwa sé awo
Mojúbà Òjisè2

Antes do início, peço licença ao dono do corpo, senhor das encruzilhadas, dos
caminhos, das portas, orientador da comunicação, Exu, pois esse trabalho se apresenta
enquanto prática decolonial e emancipatória, ferramenta de orientação que visa contribuir para
que os domínios e princípios que são ontológicos nos entendimentos que se podem fazer do
orixá Exu, pautam a encruzilhada como lugar de afirmação conceitual e político-
epistemológica.

O presente projeto anseia dar continuidade reflexiva e analítico-crítica aos processos de


pesquisa e experimentação que produziram a obra poética e identitária Oid’água, construída
ao longo dos últimos dois anos (2019/2020).

Oid’água é uma escrita visual e etnográfica atravessada pela persona Pirigo, que nesta
proposta configura-se como Corpomídia e Corpo-Encruzilhada, pois, visa aqui discutir como a
encruza de imagens sonoras, visuais durante um processo criativo de ritualização pode trazer à
tona, reminiscências ancestrais, mitos e cruzamentos cosmológicos.

O professor Luiz Rufino (2015) discorre que Exu, enquanto orixá, compreende-se
como um princípio cosmológico. Dessa forma, é sobre a sua figuração e seus efeitos que no
complexo cultural nagô se compreendem os princípios explicativos de mundo acerca da
mobilidade, dos caminhos, da imprevisibilidade, das possibilidades, das comunicações, das
linguagens, das trocas, dos corpos, das individualidades, das sexualidades, do crescimento, da
procriação, das ambivalências, das dúvidas, das inventividades e astúcias.

A ideia é nos embrenharmos nas entranhas do vivido, do experienciado, do que criamos


e invocamos como parte de nós, numa reflexão que ultrapassa fronteiras do coletivizado no
espírito colonialista. Esse trabalho é um relato criativo e crítico de minha experiência, uma
passagem pela “encruzilhada” de inúmeras vazantes e veios d’água. Por isso, todo falado em
primeira pessoa.

A princípio, busco registrar a memória de processo de criação, ora espetacular, ora

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Vamos encontrar o senhor dos caminhos e meus respeitos àquele que é o mensageiro. Vamos cultuar,
vamos cultuar, vamos cultuar. Meus respeitos àquele que é o mensageiro.
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performático, em que o teatro, que busco compreender e apreender, se implique. Tal processo
gira em torno da figura simbólica e sintomática de minha tetravó, Pirigo, como ficou famosa
na cidade de Cuité, na Paraíba, que aqui considero um dos veios mais potentes da minha
criação que compõe a base ontológica do Corpus desse trabalho.

Parto dessa condição de registro de memória para me compreender em uma jornada


muito mais ampla, que foi o desenvolvido/vivido no Curso de Licenciatura em Teatro da
UFRN 3. Queria mesmo poder realizar uma “memoriografia” de processos criativos realizados
no transcurso da licenciatura, relatando o que experienciei nas disciplinas, nas atividades, nos
projetos (curriculares ou não), que substanciam minha formação.

Assim, confirmo que as bases de conteúdo teórico e de linguagem, construídas nos


componentes curriculares e nas dinâmicas a eles paralelas, na Licenciatura, tornaram-se boa
parte das bases referenciais específicas da presente reflexão. São, ainda, reflexões crítico-
criativas que realizei como ação de construção de um espetáculo teatral, que dentro do
contexto atual de pandemia do Covid-19, se adequa a novos contornos. Desse modo, o
presente trabalho se configura como o resultado de discussão de matrizes da vivência pessoal
que, em seu objetivo maior, busca a construção de cena.

Nessa pesquisa, inicialmente, busquei ter uma compreensão do que venha a ser o
fenômeno criativo que gera eventos espetaculares, o próprio espetáculo, a espetacularidade,
enfim, e seguiu a evocação da percepção de fatos e sentimentos autobiográficos, da minha
história pessoal, como memória autobiográfica propriamente dita, relacionadas às angústias
que me perpassaram nessa jornada.

Tal evocação, no entanto, despertou, durante o percurso da pesquisa, uma sensação de


impossibilidade e de travamento, que se estabeleceram nas práticas de rememoração dos fatos
vividos. Despertei para a compreensão de que a rememoração enfatiza a emoção e a memória
autobiográfica, o que implica um estado emocional complexo. Assim, já nos finais do processo
de pesquisa e escrita, voltei ao mergulho no objeto original: Oid’água, para destacar os
múltiplos processos formativos que se organizam em um processo criativo.

Esse trabalho, portanto, busca descrever e refletir acerca do meu processo criativo,
tomando como matéria expressiva três aspectos da minha criação, denunciados em três questões
fundamentais: 1) “O que pode o corpo criativo de uma mulher Afroameríndia?” 2) “Quais são
as matrizes dessa criação poética?” e 3) “O que é criado quando a mulher se destina a refletir

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Doravante, tratarei por “Licenciatura” o Curso de Licenciatura em Teatro da UFRN.
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sobre si e suas ancestralidades?”

A problemática que se desenvolveu em torno dessas questões reafirma as rupturas


inerentes ao processo de criação. Na perspectiva dessas rupturas tento reconhecer o que seria a
“mulher que cria”, diferenciando-a, do que seria o “objeto criado”, para que pudesse abordar
o modo e os valores simbólicos do que criei, sem que as contaminações existenciais me
impedissem de entendê-los, sistematizá-los e reconhecê-los. Ora, foi na instituição dessa
estratégia de distanciamento que se desenrolou a parcela maior de angústias, conflitos e
sofrimentos, que quase impediram que esse trabalho fosse realizado.

Foi no encontro com uma base conceitual não-etnocêntrica, não-objetivista, não-dualista


que pude retraçar os rumos da pesquisa e reconhecer que não haveria dano algum em se
considerar:

1) que as angústias e dores podem fazer parte de um processo criativo;


2) que a objetividade memorialista (com profundo viés historiográfico) é
extremamente relevante para a produção acadêmica nessa área;
3) metodologias de investigação que não fazem nenhum descolamento etnográfico, ou
seja, que não separem o sujeito do objeto, podem, na pesquisa qualitativa, favorecer
a produção crítica sobre processos e poéticas criativas.

Tão necessário evidenciar que todo o esforço de um trabalho como esse é ainda o
esforço de combater o epistemicídio que se praticam contra a gentes que não se enquadram na
perspectiva produtivista de uma economia acadêmica do etnocentrismo eurocêntrico.

O epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do conhecimento dos


povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela
negação ao acesso a educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização
intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e
produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência
material e/ou pelo comprometimento da auto-estima(sic) pelos processos de
discriminação correntes no processo educativo (CARNEIRO; FISCHMANN, 2005, p.
97).

Nesse caminho, acolho a necessidade de luta, de enfrentamento, de resistência, mas opto


por uma metodologia menos conflitante, organizada no sentido de respeitar as fases do processo
criativo. Portanto, a metodologia de trabalho dessa monografia obedece, de modo legítimo, ao
que reconheço como fases do meu processo criativo.

Assim, as fases elementares do processo criativo, que também norteiam meu caminho
investigativo, são: 1) aproximação referencial efetiva; 2) leitura; 3) descrição material; e 4)
síntese afetiva. Considerando que:
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1) TERRA – Adubar a Terra; – aproximação referencial efetiva – é um conjunto de


estratégias de mapeamentos, de conexões desse “futuro objeto” com outras texturas,
outros eventos, outros fundamentos que possam suscitar a criação;

2) ÁGUA – Espelho d’água Ancestral; – leitura – é o exercício simbiótico de


percepção do universo contextual, no qual o objeto possa ser criado; bem como, um
“lugar” onde ele possa ser encontrado. Além do mais, a leitura é também um
instante de mergulho no campo sensível do que é ou virá a ser objeto de criação;

3) AR – M(AR)IAS; – a descrição – é um exercício crítico-reflexivo, de profundo


valor identitário, em que descrevo o objeto criado, buscando destacá-lo do contexto
em que está inserido, dos laços afetuosos que o fizeram existir, sem perder as linhas
de conexão. Nessa fase, a materialidade do objeto pode ser reconhecida;

4) FOGO – A fagulha dos facões; a síntese afetiva (fogo) – é o instante em que,


mesmo considerando a materialidade objetivada do que foi o processo e do que é o
produto da criação, pode-se refletir sobre as mudanças que se operacionalizaram em
quem cria. É um momento de reflexão e de retroalimentação dos afetos.

USE O CELULAR E O APLICATIVO DO QRCODE


PARA ACESSAR O CURTA METRAGEM OID’ÁGUA.
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Parte I
Atmosfera de Ataque de Um Corpo - Encruzilhada

Atmosfera de ataque é uma metáfora que me excita e me estimula a ser quem sou e buscar
combater nessa guerra que travo, todos os dias, para conseguir escreviver o que sou. Para isso, me
fundamento em uma perspectiva teórico-filosófica da contemporaneidade em aproximação ao
pensamento decolonialista.

Atmosfera aqui é compreendida como ocorre no trabalho da professora Meran Vargens


(2013, p. 38),

[...] Atmosfera: é ar que se respira. Ela envolve os corpos. O planeta Terra tem uma
atmosfera, assim como cada cidade, cada bairro, cada indivíduo. Para cada situação em
que o indivíduo se encontra certamente instala-se uma atmosfera. A expressão o ar que se
respira se reproduz por toda a qualidade energética que circunda os corpos. Na percepção
da atmosfera vemos cores, texturas, ritmos, imagens, ondas em frequências. Logo esse ar
que se respira revela aspectos do meio e interage conosco. A atmosfera pessoal interage
com a atmosfera do meio. No teatro, é o elemento fundamental da criação. Instalamos
atmosferas o tempo inteiro, cena após cena, e fazemos atmosferas interagirem. A cor do
espetáculo está na capacidade de transitar por atmosferas diferentes. Assim como se pinta.

E, aqui, a atmosfera é de ataque, de resistência contra o apagamento da ancestralidade


fêmea. Há um ar que nos circunda, um certo vento, que é recoberto de terra, de fogo e água. Por
isso recorremos à professora Leda Martins (1997) em seu “afrografar” e à escritora brasileira
Conceição Evaristo (1995) em seu “escreviver”, em um grito de vida molhada e quente,
escorrendo pelas grafias e letras decolonialistas, como queremos que seja, um processo de luta
contra a matriz colonial rompendo assim as barreiras do que se entende por saber e poder.

1.1 Um CORPO-ENCRUZILHADA

Considero o que nos apresentam os professores Joaze Bernardino-Costa e Ramón


Grosfoguel (2016, p. 15) que, em seu trabalho

[...] situa a decolonialidade como projeto que teve origem simultânea ao início do sistema-
mundo moderno/colonial, sendo que este organiza diferenças e desigualdades entre povos
a partir da idéia de raça. [...] destaca como característica distintiva do projeto decolonial a
produção do conhecimento e as narrativas a partir de loci geopolíticos e corpos-políticos
de enunciação.

A pesquisa de BERNARDINO-COSTA; GROSFOGUEL (2016) enfatiza a construção de


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narrativas enunciativas de sujeitos que até então sempre estiveram postos de fora da discussão
teórico-filosófica do sistema (mundo) exatamente a partir desses loci de enunciação de corpos
colonialmente marginalizados, excluídos, invisibilizados; quer seja, por sua tradição geopolítica,
por sua etnia, por sua cultura, gênero, sexualidade etc. Os pesquisadores chamam a atenção para
todo um outro sistema de produção de conhecimento e de novos produtos que podem emergir
desse existir, a partir de uma perspectiva afroameríndia, tanto dos povos daquele que foi chamado
no projeto “pós-colonial” de diáspora negra, quando dos povos originários das Américas e Caribe.

Em sintonia com essa geopolítica filosófica de enfrentamento do colonialismo, me


sintonizo com o pensamento decolonialista pela etnicidade e gênero, não apenas com a arte e a
criação, como exercícios enunciativos de poder, mas ainda como manifestação de narrativas de
florescimento de simbologias sensíveis de um outro corpo negado, simbologias afetivas do corpo
da mulher negra e indígena, que enfrentam o apagamento com que elas são encarceradas na
servidão, em toda as etapas e lugares da vida social.

O corpo, então, passa a ser o lugar primordial de nossa criação. O corpo aqui
compreendido em suas dimensões sensíveis e perceptivas totais. Não me asseguro no pensamento
ou na ideia ou na lógica teórico-filosófica para garantir o reconhecimento da voz que emana desse
corpo. É óbvio que faço usos dessas estratégias racionalistas de produção acadêmica, para esse
trabalho, mas não limito minha escrita a elas. A criação e seu processo só nos é possível pelo
reconhecimento do corpo total (sensível, perceptivo, cultural, filosófico, político, técnico, criativo,
crítico, afetuoso etc.).

A condição de corpo me leva a diversas pesquisas de fundamentos que, naturalmente, se


montam como uma encruzilhada conceitual. O que é uma encruzilhada? Nada mais do que um
atravessamento de caminhos. Essa condição, antes filtrada pelo pensamento colonialista, ora pode
ser acatada através do valor da diversidade epistemológica, como possibilidade (ou possibilidades)
de aceitação da polifonia conceitual e simbólica (como são a vida e a criação artística de nossos
povos ancestrais afroameríndios), que se afirmam em inúmeras formas de enunciação reflexiva,
formulações metodológicas discursivas que emergem como possibilidades transgressoras e
emancipatórias.

A transgressão, aqui, tem valor de método. A esse respeito, nos fala o professor Rufino
(2015):

[...] me debruço sobre parte das sabedorias africanas transladadas para o atlântico
compreendendo-as como princípios táticos (Certeau, 1997) para defender a perspectiva de
uma narrativa transgressora que desestabilize a linearidade dos discursos coloniais
entoados pelo monologismo ocidental. (RUFINO, 2015, p. 01).
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A criação artística em nossos corpos de mulheres afroameríndias é acatada aqui não apenas
como transgressão emancipatória, mas como enunciação de novas práticas, tanto de criar, quanto
de existir. Nesse sentido, essa pesquisa também se destinou a enfrentar os “demônios” da
sabotagem hereditária e do apagamento de nossa sensibilidade. O ataque a que nos submetemos,
por anos, centrado nas forças materiais e discursiva da tradição branca e patriarcal deve encerrar-
se aqui. Não acatamos mais tal herança contaminada de inibição/erotização, de coisificação, de
invisibilização, de negação, de apagamento e de recalque.

Para isso, precisamos enfrentar a atual pedagogia, colonialista e higiênica, para elegermos
uma outra pedagogia para a (e de) criação. E essa, centrada na ideia de um corpo-encruzilhada.
Conforme nos aponta Ramos (2017).

Conceitualmente, o corpo-encruzilhada é um corpo-espaço atravessado, entrecruzado


pelos elementos e saberes-fazeres que compõem o universo em que ele se encontra.
Carrega uma noção de tempo-espaço espiralado, curvilíneo, que aponta uma gnosis em
um movimento de eterno retorno, não ao ponto inicial, mas às reminiscências de um
passado sagrado, para o fortalecimento do presente e o deslumbramento do futuro. É,
desse modo, uma característica que se apresenta na dimensão performativa do corpo nos
rituais e que pode ser experienciado como elemento técnico e estético pelos artistas da
cena. (RAMOS, 2017, p. 297).

O primeiro aspecto que destacamos, na proposição de sermos um corpo-encruzilhada, é o


acatamento da dimensão mitológica da “figura” da encruzilhada como “lugar” de constituição de
vida, de relações significativas nas trocas, nas permutas, nos atravessamentos. E, inicialmente, o
que mais me atravessa, nesse entrecruzado de saberes-fazeres, é reconhecer qual o universo em
que me encontro.

A encruzilhada é um dos simbolismos mais antigos dos domínios e potências das forças
que agem no cruzamento de caminhos, de vias, de rumos. Para o professor Rufino (2015, p. 02), “a
encruzilhada tanto nos apresenta a dúvida, como nos apresenta caminhos possíveis”.

Porém, entre o que está presente na cosmologia iorubana e o que foi ressignificado nas
bandas de cá do Atlântico há algumas questões. Esses nós, atados no ir e vir dos cursos da diáspora
africana e nas complexidades dos cotidianos coloniais dão o tom das problemáticas que envolvem
a formação da sociedade brasileira e a presença das sabedorias africanas aqui reinventadas. (p. 02)

Transfiro a voz da narrativa, vez ou outra, da terceira para a primeira pessoa, considerando
a necessária apropriação desse direito e a legitimidade que tenho nessa narrativa. E faço isso para
poder reconhecer meu corpo e seu entrecruzado de múltiplas experiências que o forma e do
universo em que ele está mergulhado como o ninho onde teço minha criação.
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O espaço-tempo dessa narrativa é a conquista do presente, do instante em que me atiro na


direção da criação artística, como uma tomada de consciência daquilo que me forma, me estimula,
me pressiona para que eu sinta o que sinto, eu viva o que vivo, eu faça o que faço, eu crie o que
crio. E a dor da angústia desse nascimento, do reconhecimento da potência dessa vida, é uma
medida de que estou criando. E esse tempo gira no espaço que não é mais uma linha reta, mas uma
espiral, que se amplia e gera ciclos de criação/recriação, de leitura e revisão crítica, de modo a que
eu sinta e compreenda cada momento e cada objeto criado como pistas de um tempo presente,
infinitamente presente, que não promete existir um futuro, nem muito menos se assegura das
verdades que já foram plantadas no passado. O presente é o instante. E nada anda, se não girar na
gira da encruzilhada.

Essa compreensão de uma pedagogia do presente é recorrência de uma presença incessante


e sempre atualizada da ancestralidade africana e ameríndia que emerge a partir da cor da minha
pele. Uma ancestralidade que não está no passado, mas que posso sentir a cada vez que minha pele
me chama a reconhecer a cor da africanidade que persiste em afirmar-se em mim, como um eterno
retorno, como a mitologia de um corpo de mulher negra.

[...] Essa pedagogia busca trazer questões e pluriversalizar (RAMOSE, 2011), a educação
no contexto da colonialidade, desde a formação dos profissionais até a produção de
questionamentos sobre as práticas pedagógicas exercidas na escola.
A principal força desse projeto é trazer Exu como disponibilidade, matriz/motriz
política/ética/estética/epistemológica/teórica/metodológica.
Nesse sentido, ressalto que Exu foi ao longo do tempo invisibilizado/descredibilizado por
parte da colonialidade/modernidade-ocidental, pois é um princípio que confronta suas
lógicas de dominação e violência. (RUFINO, 2019, p. 265).

A metodologia de criação implica a descrição do que vou criando do objeto. Descrição e


redescrição. Continuamente. Como se a cada vez que o descrevo mais me deparo com as suas
lacunas e as minhas insuficiências. Essa dimensão cíclica do processo me remete às imagens
(lembranças, memórias, imaginações etc.) das narrativas e outras poéticas dos povos antigos de
minha família, que me chegaram na voz da minha vó, nas artes da minha mãe. A exemplo dos
cantos de infância, das tramas do crochê, das histórias antes de dormir.

E entre as histórias, emerge e figura empoderada de minha tetravó Pirigo (grifado assim,
mesmo, com “i”, no lugar do “e”), isto é, de dona Josefa Maria da Conceição, uma mulher que
nasceu e viveu nas terras paraibanas e potiguares, mas fundou-se persona em Cuité (PB), onde
gerou família e identidade, guiada a golpes de facão.
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1.2 “ABRE A TABACA! Dentro da Tabaca está sua mãe e minha história!”

Nessa fala, frase, grito, enunciação, evocação de Pirigo exponho minha condição de
corpo. Para isso, preciso escrever minha jornada.

Me chamo Wislayne Pontes de Souza Ferreira e – sim! – eu sinto que é preciso me


apresentar, quantas vezes for necessário, para fazer ecoar meu existir. Nasci na região do ponto
equidistante entre o Atlântico e o Pacífico, no coração da América do Sul, porventura, eu seja
“Um Índio”, que proclamou Caetano Veloso. O território é uma região serrana de correntezas,
cachoeiras e grandes latifúndios, a cidade é conhecida por uma Nova Olimpia. Minha mãe se
chama Josilene Pereira de Pontes, ela é uma mulher negra artesã e costureira, e meu pai se
chama Edgar de Souza Ferreira, caminhoneiro colecionador de canções, ambos originários da
serra de Cuité, na Paraíba, retirantes, desde os anos 90, quando foram em busca de trabalho na
indústria açucareira do Mato Grosso.

Nasci no segundo domingo de maio, Dia das Mães, hora do almoço, no dia 09 de 1993.
Ao escrever e falar sobre a minha criação, preciso evidenciar que esse dia das mães veio
acompanhado do desejo de forjar uma nova realidade, para além de uma data com fins
comerciais, ela carrega em si a ontologia da criação, do nascimento e da morte em vida, que nos
eleva a um novo estado de existir. Minha mãe me pariu em terras distantes das de seus
ancestrais, situação que oportunizou a fuga de Vó Maria de um casamento abusivo. Assim ela
pode colaborar com a criação da primeira neta. Quando penso em matrizes que motivam a
minha angústia e a minha criação é desse lugar no mundo que me projeto.

Meu primeiro contato com a inventividade das materialidades e com as linguagens


expressivas se deu por intermédio de minha mãe. A sala de casa nunca foi sala de estar sempre
foi sala de criar, era como um ateliê em movimento. Foi nesse território cheio de tesouras,
recortes, retalhos, tintas, linhas e agulhas que vi nascer muitas obras. Eu tinha 8 anos quando
minha mãe conseguiu uma vaga em um grupo de dança da cidade, para o qual ela costurava
figurinos, de nome Nova Art. Eu passava horas ensaiando as danças no terreiro de casa, para
participar das mostras que aconteciam na região.

Aos 9 anos, dançar já não parecia bastar e o desejo era de subir aos palcos para também
cantar. Habitualmente quando meu pai chegava de uma viagem trazia consigo um CD cheio de
músicas, com histórias de festivais, para ouvirmos juntos, durante sua passagem por casa.
Iniciou-se aí, o meu gosto por cantar e consequentemente minha jornada de festivais de
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músicas, sobrevivendo por muito tempo sem saber o que era uma afinação ou o que viria a ser
um tom. A técnica não foi a primeira a vir e a experiência de estar em suspensão em um palco
era o que sustentava a vivência do corpo.

Aos 13 anos, fui convidada para assistir um ensaio aberto do único grupo da cidade
conhecido por Teatro Nó. No mesmo dia, fiz um teste de elenco, sendo convidada pelo atual
diretor Genival Soares a somar com o coletivo, tanto na área de atuação, quanto na área de
cenografia e figurino. Foram 7 anos de trabalho no grupo e nos últimos anos atuei como
instrutora, realizando oficinas e apresentações em programas como o PROJOVEM e o P.E.T.I
na Secretaria Municipal de Assistência Social, da cidade de Nova Olimpia, até o ano de 2012.

Em 2013, quando cursava o segundo semestre de Letras na Universidade Estadual do


Mato Grosso, recebi o convite para ser delegada no 53º Congresso da UNE, tal experiência me
possibilitou a constatação de que existia um movimento estudantil muito maior do que eu
pudesse dimensionar vivendo no interior de uma cidade de 15.000 habitantes. Foi neste mesmo
evento que conheci estudantes de Teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Denílson David, Nathália Christine e Carlos Junior “Caju”, que me contaram sobre a realidade
estudantil deles, sobre o Teste de Habilidade Específica (T.H.E.), necessário ao ingresso na
Licenciatura e, ainda, sobre a assistência estudantil para alunos que vinham de fora do estado.
Em setembro do mesmo ano, Caju entrou em contato para me avisar sobre as inscrições e,
assim, mesmo como quem não tinha certeza da possibilidade da execução, embarquei nessa
nova jornada.

Todos os dias eu pesquisava passagens para Natal e sonhava com a possibilidade de


estudar teatro. Foi no dia 21 de novembro que eu embarquei, às escondidas, com uma única
passagem de ida, duzentos reais na conta e a garantia de hospedagem por um mês na casa de
mainhas do mar; MARcela e MARina, duas mineiras potiguares que me acolheram, sem nunca
terem me visto.

Deixei meus pais, minha avó e minha irmã sem notícias. Para muitos, uma atitude
irresponsável, porém, é importante ressaltar que o sonho tomava conta do corpo e medo nenhum
fazia morada, eu estava disposta. Passei no T.H.E. e ingressei no curso, no primeiro semestre de
2014. Logo depois de dois meses, consegui uma vaga na Residência Estudantil, através das
políticas da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis – PROAE.

Ingressei na Licenciatura assumindo que os dois anos iniciais da graduação me foram


bastante turbulentos, eram muitas coisas para assimilar. Muitas pessoas me questionavam do
porquê de uma menina nascida e criada no Mato Grosso vir de tão longe e se interessar estudar
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teatro em terras nordestinas ao invés de sonhar com o eixo Rio/São Paulo. Quiça eu estava
destinada a resgatar essa ancestralidade que me era até o momento inconsciente. A verdade é
que nunca soube responder, mas é justamente nesse estado de cruzamentos e influências
culturais e do desejo de pertencimento, sobrevivência e criação que meu corpo fluente segue o
curso das águas e dos ventos que me trouxeram até esse exato momento da sua leitura.

Se nasci no pé de uma cachoeira e estava habituada a ser firme para não escorregar nas
pedras e ser carregada pela correnteza, minha jornada acadêmica foi, assim, como um oceano.
Frente a imensidão do mar, na terra do sol (Como chama a cidade de Natal-RN), custei para
perceber o exercício de pairar sobre as ondas. Me vejo aqui debruçada sobre a escrevivência
(neologismo epistemológico de Conceição Evaristo na investida de fundir/confundir vida e
obra) de minhas memórias e de como meu corpo atravessa essas águas tentando estruturar uma
hidrológica dos percursos que se encruzilharam em meus processos de criação.

“‘Escrevivência’ é uma ferramenta desenvolvida pela escritora Conceição Evaristo,


como método de investigação e produção de conhecimento nas Ciências Humanas e
Sociais” (MARINGOLO, 2014, p. 113). Essa ferramenta perpassa meu trabalho. Agarra-se à
dimensão orgânica de viver, criar, resistir, discutir, expor, aprender, refletir...

Quando me iniciei na Licenciatura, em 2014, dois componentes curriculares do primeiro


semestre provocaram em mim espelhamentos, movimentos e reflexões. O primeiro deles foi o
componente Cenotec I: Cenários, sob a condução do professor Dr. José Savio Araújo, que tinha
como objetivo possibilitar e ampliar o conhecimento sobre diferentes conceitos de cenografia,
tal qual noções de espaço e tempo aplicados às artes cênicas. A proposta pedagógica do
professor Sávio foi para que criássemos cartografias inspiradas na nossa linha do tempo de vida,
simbolizando os marcos da nossa história pessoal, desde o dia do nosso nascimento até aquele
exato momento e para que, depois, transformássemos tudo em uma cena, com menos de dez
minutos de duração.

Realizei minha cartografia no papel duas vezes. Na primeira tentativa criei rabiscos para
entender quais eram os marcos que eu julgava ser importante destacar em uma construção de
uma história sobre mim, assim como faço agora nesse momento. O desafio era de fato o espaço
e o tempo, visto que eu já tinha percorrido tantos lugares e como forasteira tinha vontade de
contar tantas coisas que parecia improvável resumir tudo em 10 minutos. Na segunda tentativa
busquei ser imagética desenhando e pintando símbolos que afetivamente representavam esses
locais.
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A ideia de transpor a cartografia para a finalidade cênica me confrontou com a


propriedade de sintetizar. Então pensei como poderia ser a tridimensionalidade daquela folha
em branco no espaço da sala de aula e como a dimensão de temporalidade poderiam ser
solucionadas por meio das cores. Desse modo recorri a construção psicológica das cores
associando aos momentos as quais vivi e assim processando a narrativa dramatúrgica com
pequenas ações sem que eu precisasse recorrer a um texto dramático. Considerando esse
enquadramento, decidi que além de cores eu queria trazer sons e cheiro como dispositivo afetivo
das minhas ações.

O ponto originário da cartografia que configurou a performance “Meu eu Camaleoa” foi


exatamente o dia do meu nascimento que coincidentemente era um segundo domingo de maio,
data que se comemoram o dia das mães. E é no desdobramento desse símbolo enquanto
representação do útero que gera e do nascimento que desenho na lona (grande folha tamanho A4
/ Quadro gigante) um corpo que resgata a figura da grande mãe e o movimento evoca o parir da
criação. O esboço presente na cartografia sai da superfície plana do papel/quadro e ganha o
espaço com meu corpo imerso as sensações da tinta que me atravessa.

Na performance me relaciono com cinco cores. Inicialmente, o verde associado à


natureza, à fertilidade, à infância e ao crescimento, na sequência o vermelho pontuando o
sangue da menstruação como expressão da intensidade e força da transição desse corpo de
menina/mulher. Na sucessão, surge o preto acinzentado como a cor do princípio das linguagens
que, na minha compreensão, representaria minhas experiências artísticas; continuada pela cor
amarelo como a quentura do sol, que reforçava em mim a energia de permanecer acreditando no
caminho que me fez chegar a Natal. Por último, não menos importante, o azul do mar que
representava o oceano, que até o momento era pouco explorado por mim e que busco atravessar.

Toda a experiencia sinestésica com as cores iam se moldando ao som de canções que
assentavam minha mente na época como “La valse d’Amelie”, trilha sonora do filme O
fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001), composta por Yann Tiersen, seguido da canção
Terezinha, composta por Chico Buarque, na interpretação de Maria Bethânia e finalizado ao
som da canção Rimar e Voar, de Branco Barros, um amigo compositor mato-grossense.

O que arremata a iconografia dessa cartografia foi a tentativa de releitura de um painel


conhecido por Guernica Nordestina, esculpido em 1979 pelo artista plástico Ziltamir Soares,
artisticamente conhecido por Manxa, do qual se reconhece o “sol”, que decora a arquitetura da
Reitoria da UFRN, que utilizei para representar a minha entrada nessa universidade.
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USE O CELULAR E O APLICATIVO DO QRCODE

PARA ACESSAR A PERFORMANCE “MEU EU CAMALEOA”


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O segundo componente curricular que me atravessou, ainda no primeiro semestre, foi


Expressão Vocal I, sob condução da professora Ma. Mayra Montenegro, que facilitou a
experiência consciente da minha presença entrelaçada ao domínio de minha voz enquanto
prática expressiva.

A proposta pedagógica de Mayra buscava fornecer conhecimento técnico sobre o estudo


da voz humana e estruturar partituras vocais através da imagem corporificada. Lembro de uma
leitura sugerida por ela do livro “A voz articulada pelo coração”, de Meran Vargens (2013),
que a escritora defende que durante o exercício de expressão cênica a voz é ativada no interior
do indivíduo que a emite, antes de vir a se tornar expressão ela é um movimento interno e
possui endereço, ou seja, a voz é resultado de uma dimensão pessoal e cultural.

E diante desta constatação, comecei a conduzir minhas interpretações musicais pensando


na construção de cada palavra por mim cantada buscando a sonoridade consciente do que era
dito ao me apresentar, como em um jogo de significações e imagens sonoras. Me encontrava
abastecida do conhecimento e experiência dessas aulas e senti um grande desejo de voltar aos
palcos. Em julho de 2014, consigo voltar aos Festivais de Música que aconteciam na Região
Centro Oeste e Sul do Brasil, tendo sido premiada treze vezes consecutivas entre idas e vindas
para Natal.

Os três semestres seguintes foram águas turbulentas, quando precisei assimilar toda uma
enxurrada intensa de vivências e diferenças culturais as quais estive inserida, precisando, então,
suspender minha matrícula na Licenciatura, durante um ano e meio, na busca de estar mais perto
de minha família e reencontrar forças de retomar a maior encruzilhada de minha vida.

Regressei a Natal em 2016, com o objetivo de reassumir minha cadeira na graduação e


dar continuidade aos meus estudos. Nesse mesmo período, tive a oportunidade de conviver em
um outro núcleo da UFRN, conseguindo uma bolsa técnica para trabalhar na maquiagem e na
assistência de produção de programas como o Memória Viva, dirigido e produzido por Joana
Darc Arruda Câmara e o Interprograma Cena Potiguar, dirigido e produzido por Rosália
Figueiredo. Todos, originais da TV Universitária do Rio Grande do Norte.

Colaborei também na produção do Festival de Música Potiguar Brasileira, promovido


pela Superintendência de Comunicação da UFRN. Esse espaço me proporcionou a aproximação
de artistas e produtores da cultura potiguar, além de me tornar parte dos 45 anos dessa história
sendo a sucessora de Marinalva, a primeira maquiadora da TVU de quando a TV ainda era em
preto e branco.
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No final do primeiro semestre de 2016, tive a oportunidade de viver o processo de


montagem do teatro ritual “Psicose Matriarcal”, exigida como parte avaliativa do componente
curricular Encenação I, ministrado na época pela professora Ma. Heloísa Pacheco de Souza. A
montagem se deu por meio da parceria com Bianca Vasconcelos, ela na direção dos processos
corpóreos criativos e eu na preposição de imagens e dispositivos afim de construir uma espécie
de roteiro imagético insurgente dos laboratórios. Como dispositivo para a composição da
dramaturgia compartilhamos uma coletânea de poemas com diversas autoras e autores a qual
intitulávamos poemas de um solilóquio e carregavam em si a pauta da experiência manicomial
de corpos de mulheres negras. Os poemas e trechos na sua grande maioria são de mulheres que
viveram sob o estigma da loucura. Foram principalmente sob os versos da grande Stella do
Patrocínio e a poetisa mato-grossense Luciene Carvalho que configuramos a construção desse
processo.
Eu era gases puro, ar, espaço vazio, tempo. Eu era ar, espaço vazio, tempo. E gases
puro, assim, ó, espaço vazio, ó. Eu não tinha formação. Não tinha formatura. Não tinha
onde fazer cabeça, fazer braço, fazer corpo, fazer orelha, fazer nariz, fazer céu da boca,
fazer falatório, fazer músculo, fazer dente. Eu não tinha onde fazer nada dessas coisas
(PATROCÍNIO, 2001, p. 41).

Iniciamos os trabalhos práticos com os quatro elementos como temática propulsora dos
movimentos corporais. Os laboratórios desenvolveram-se sob a criação do Coletivo Filhas de
Eva, onde os procedimentos atuavam sob o campo do imaginário e do inconsciente coletivo. Da
união simbólica, emergiam figuras arquetípicas, associadas aos arcanos maiores do tarot, as
fases da lua e faces da Deusa, todo o processo buscava se associar ao movimento criativo de
natureza alquímica.
O processo, em todos os aspectos, reunia símbolos que contribuíam para a construção de
uma espécie de tempo matrilinear ancestral e cíclico envolto de um caos que se instaura em
busca da compreensão dessa psiquê feminina adoecida pelas estruturas patriarcais de um
sistema.
As matrizes que davam origem as personas tinham como base as fases da lua,
apresentando os seguintes arquétipos da Deusa; lua crescente aspecto da DONZELA, lua cheia
a MÃE, lua minguante a FEITICEIRA e na lua nova a ANCIÃ/BRUXA, tudo amalgamado com
base nos processos das atrizes Isadora Gondin, Thâmara Cunha, Aryele Paola, Alala Cabral e
mais tarde Pamela Dutra. As cenas dialogavam também com os seguintes arcanos; o Louco, a
Sacerdotisa, O mundo, A roda da fortuna, A lua e o Sol.
O espaço era composto por panelas de barro e de alumínio; colheres de pau; adereços
cênicos de sisal madeira e palha; tecidos vermelhos pelo chão; colcha de retalhos; um varal de
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roupas, bacias de alumínio, maçãs vermelhas e balas de coco. A sonoridade do laboratório


contava com um atabaque, tambores e rabeca em cena e dentre as canções e mantras tinham
pontos de jurema, candomblé e umbanda, um deles em especial era para os erês. Já nesse
processo é possível notar a presença de encruzilhadas culturais, onde potentes manifestações do
imaginário coletivo eram invocadas e encarnadas e seus cruzamentos dinamizavam
possibilidades inventivas.
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No final de 2016, depois dos processos criativos do “Psicose Matriarcal”, me descobri


grávida, o que não causou tanto espanto já que estava tão submersa às águas correntes dos
processos de criação de arquétipos da grande mãe. Nesse momento, novos questionamentos
sobre os corpos de mulheres negras, grávidas e estudantes em formação no espaço acadêmico
me surgem, como são percebidos dentro da cultura desses espaços e qual conhecimento
oriundos deles são legitimados?
É nesse estado de corpo que começo a me atentar que entre meus processos
repetidamente recorro a elementos que trazem em si a figura da MULHER CRIADORA, dos
seios ao leite, da mulher em estado de prontidão para a guerra, da vaca profana, da mulher em
estado de contr(ação), de gestar ações criativas. Concluo que nossa existência é manifestada na
terra por meio da forma do nosso corpo, mesmo que o corpo seja forjado para uma obra
especifica há ali imbricado uma manifestação de existência.
O ano de 2018 foi marcado pelo meu desejo de retorno a este território, decidindo assim
expandir a experiência acadêmica por outros componentes e departamentos. Busquei criar uma
zona de contaminação entre o conhecimento adquirido buscando pontos de encontro entre as
matérias da minha grade curricular. Uma delas foi o Laboratório de criação de coleções
conduzido pelo Dr. Neil de Oliveira Lima do departamento de Engenharia Têxtil. O laboratório
tinha como objetivo incentivar o ensino de tecnologia da moda integrando os processos de
produção, mas para além disso, principalmente para mim, era um novo espaço para criar e
usufruir de outras infraestruturas de laboratórios.
Meu interesse nessa matéria se deu pela vontade de desenvolver uma coleção de
figurinos transformáveis, juntamente a criação pude ter acesso ao laboratório de máquinas de
costura para a construção dos protótipos. A vestimenta entra em cena no meu processo de
criação como possível objeto que transita e transmuta a estrutura, trazendo à tona debates sobre
o meio ambiente, escultura social e estudos da cultura. Minha coleção foi inspirada no elemento
água e se apoiou nas matrizes das “Ayabás”, orixás femininos da diaspórica afro-brasileira.
Esse momento da descoberta da maternidade e a assimilação de seus implicativos
culturais, principalmente dentro do território acadêmico, foi propulsor de trocas profundas e
potentes sobre mitologia afro-brasileira. Destaco aqui a importância de meus diálogos com meu
amigo Éric Medeiros, na época ele era recém iniciado no candomblé, logo após, vieram muitas
outras pessoas que faziam parte da tradição de terreiros e que sempre me incentivaram na busca
por esses mitos, mesmo que em uma jornada solitária.
O meu desejo de conhecer as Iyagbás, orixás femininos, alimentava meu estado de vir a
ser, pois os mitos eram tão próximos a mim pela representatividade e desconhecidos pela minha
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falta de acesso. Os orixás femininos carregam em si o aspecto materno fazendo alusão a


potência de ser, possuem a água como elemento em diversas formas e estados como
correspondência ao movimento interno de suas emoções.
A conclusão da disciplina resultou na construção da vestimenta que correspondia à orixá
Oxum (Osun ou Oshun), sua proposta carregava em seu conceito de construção a fluidez da
transformação da forma e sistematizava a possibilidade de uma experiência criativa na ação do
vestir e transformar-se.
A peça foi utilizada por mim pela primeira vez no componente de Estudos da
Performance, ministrada pelas professoras Dr.ª Naira Ciotti e Me. Joana Vieira Viana, em um
exercício estético e performativo onde busquei refletir sobre meu corpo-mãe em trans-form-
ação, ao vestir o vestido eu resgatava a imagem do mito de Oxum, orixá que representa a
maternidade e as emoções. Assim a metáfora dessa energia de potência no meu CORPO MÃE –
CORPO MULHER, alimentava minha busca por se reconhecer dentro desta fusão. Surgindo
nesse momento a performance “MADREDEUSA – experimentos de um corpo mãe | corpo
mulher” estava eu à frente do espelho sob o brilho do sol um corpo reluzente e a-dourado.
Todo o processo de construção desse vestido marca também a minha relação de afeto
com as habilidades criativas de minha mãe. Nesse momento como a costureira, que se faz
presente na construção da peça/obra/roupa e vai descontinuamente se descobrindo na construção
de Oid’água na costura das imagens. É nessas águas maternas que me entrego e desemboco a
criar. É quando me torno mãe que começo a reconhecer o processo criativo da minha própria
mãe e assim conhecer o meu, mesmo que os caminhos pareçam distintos. Me pego a observar
as artesanias de minha mãe e como ela lida com atenção a criação de fios de nossas roupas
velhas, ressignificando a memória e transformando em tramas espiralar de nós.

São tantas marcas nesse corpo,


são tantos cortes que me movo.
As cores em transe brotam aos olhos
reluzentes igual as fontes de água
tr.amas de mina.d.ouros.
MADREDEUSA
Experimentos de um
USE O CELULAR E O
APLICATIVO DO QRCODE CORPO MÃE | CORPO MULHER
PARA ACESSAR A
PERFORMANCE
“MADREDEUSA”
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1.3 Eu sou um OID’ÁGUA que brota da CABAÇA

Oid’água nasceu, mesmo, na prática corpórea experienciada no componente


disciplinar Elementos de Treinamento Pré-Expressivo no primeiro semestre de
2019, conduzido pelo professor Dr. Robson Haderchpek, na Licenciatura. No
programa do componente buscava-se a elaboração de um treinamento energético com
base na dinamização de energias, memorização e codificação de ações físicas, a partir
de um diálogo com as técnicas e estudos da Antropologia Teatral, possibilitando
laboratórios criativos como suporte da pré-expressividade na construção de matrizes
corporais.

O ator, professor e pesquisador Renato Ferracini (1998), em sua obra “A arte


de não interpretar como poesia corpórea do ator”, recomenda que procuremos a
palavra “matriz”, no dicionário, para encontrarmos algumas das razões dessa palavra
ter sido utilizada para definir o termo ação física orgânica:

Matriz: órgão das fêmeas dos mamíferos onde se gera o feto; útero; madre
[...] que é fonte ou origem; principal; primordial. [...] A matriz, entendida
como órgão onde se gera o feto, o útero, é a célula criativa do ator. Ela, como
material inicial, pode ser moldada, remodelada, reconstruída, segmentada,
transformada em sua fisicidade no tempo/espaço, tendo, como única
condição, a necessidade de se manter seu “coração”, o ponto de organicidade
que não pode ser perdido, que é a essência da ação/matriz, ou seja, sua
corporeidade. (FERRACINE, 1998, p. 104).

O corpo do ator em processo laboratorial passeia por campos imaginários de


mitos e arquétipos, e a interpretação desse corpo pode achar diversas respostas diante do
imaginário coletivo. É nesta ocasião que destaco as imagens afetivas que pulsaram nas
construções das matrizes e como o arranjo e a combinação delas entre si, pode me
conduzir a configurar possíveis narrativas. As matrizes do processo Oid´água possuem
forte relação com os seguintes elementos descritos; maternidade, boi, raiva, terra, água,
sangue, vermelho, raiz, feminino, primitivo, útero, ancestralidade. O processo criativo
dentro desse tipo de laboratório ritual nos proporciona vias de acesso para o encontro de
um mito pessoal. O mito reflete o estado de seu corpo e sua organicidade interna e
externa, em outras palavras o mito seria fruto da individualidade subjetiva e suas
questões enquanto ser integrante afetado pela cultura da sociedade.
As matrizes criadas neste laboratório evocaram o universo mítico de Oyá
também conhecida por Yansã, descrita em iorubá por “obinrin okunrin bi”, ou seja,
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“uma mulher como um homem”. Trata-se de uma iyagbá (iyabá ou aiabá), termo usado
no Candomblé para definir os orixás femininos. Iansã, segundo a tradição oral, seria o
orixá feminino guerreira, senhora das tempestades, das nuvens de chumbo, da guerra no
céu, que, na terra, pode assumir a forma de búfalo para realizar seus feitos. É
considerada a senhora dona magnânima do seu destino, a mãe real de toda mudança,
dona da transformação.
Este laboratório abriu meus caminhos em direção ao encontro das minhas
ancestrais e tornou possível o processo de investigação de si, enquanto ser criadora e
corpo de significações que se movimenta, que é memória, produz memória e é sujeita
dela para existir.
A construção da memória nacional processa-se por meio da disputa. Michael
Pollak, em seu texto “Memória, Esquecimento, Silêncio”, reconhece que
[...] a referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das
instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo,
sua complementaridade, mas também as oposições irredutíveis. (POLLAK,
1989. p. 7).

É nessa jornada desembestada que chego às histórias de minha avó Maria


Francisca, que usa sempre esse bordão antes de iniciar suas narrativas “Eu sou é viva!”.
Minha avó não foi alfabetizada e é justamente por possuir um corpo vivo que me
foi possível ouvir a história por ela contada sobre minha tetravó Josefa Maria da
Conceição, popularmente conhecida por Pirigo. Ela me contou que Pirigo sofreu um
aborto, à beira do olho d’água da serra de Cuité, cidade da Paraíba. Em seguida,
transcrevo de forma imagética aquela história que foi contada por ela e que dei o nome
em um primeiro momento de Olho d’água:
Essa história vem do anoitecer das lembranças e na memória dá
à luz ao amanhecer do olho d’água. Também é a história de
Josefa Maria da Conceição, popularmente conhecida como
Pirigo. Negra, agricultora, lavadeira e caçadora. Moradora da
cidade com nome de frutos prenhes, Cuité. - “Descendo a
ladeira do oid’água, vinha Pirigo com uma trouxa de roupa de
ganho na cabeça”.
No ventre, um fruto do Cuitezeiro, prenha de uma de suas
estações. Maria saia no tardar da noite para caçar, chegava em
casa cantando com o galo e ia tratar com a terra, em seguida
descia a ladeira que dava no olho d’água para lavar as roupas.
Foi em uma dessas estações que o fruto do Cuité caiu, a cabaça
rachou e virou bacia cheia de água escorrendo, bolsa rompida e
nem era tempo. Nem sabem dizer se foi por vontade. E daí que
fosse? Eram tantas as bocas para comer e para falar.
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Ao nascer e morrer do fruto que ali se partia debaixo de uma


árvore, retornou à labuta. Quando a lavagem terminou, Pirigo
colocou o corpo no bolso, a trouxa na cabeça e enterrou a
gestação no terreiro de casa.
Um olho d’água brotou ao partir do fruto. A realidade é que
uma mulher com tamanha força e resistência sempre
representou Perigo.
(Texto escrito no dia 15 de setembro de 2019, recolhido no meu
Diário de Bordo).

Esse texto foi selecionado no laboratório de roteiros LabMEDEIAS – “Mulheres


que escolhem seu próprio destino”, em outubro de 2019, onde tive oportunidade de
trocar experiências e conversas com várias mulheres das áreas de produção audiovisual,
principalmente do Rio Grande do Norte. Foi nesse encontro que comecei a alimentar o
desejo de registrar essa memória viva dessa mulher dita perigosa, conhecida por Pirigo.
Em novembro do mesmo ano, retorno a experimentar as matrizes corpóreas que
me apresentou Iansã, porém no componente de Encenação II, ministrado pelo professor
Makarios Maia. Eu ainda não tinha certeza sobre o que faria quanto a obra teatral, mas
sabia que ali existia um corpo performático, muito semelhante ao corpo de Pirigo,
dotada de valentia, com temperamento forte e raízes telúricas, de terra e fogo, que
poderiam unir a figura de minha tetravó e do orixá. A cena buscava ser a fusão perfeita.
Recentemente, notei que o dia que descobri a matriz que me revelou o mito de Oyá era a
mesma data a qual se comemorava o nascimento de Pirigo.
Janeiro e fevereiro de 2020 foram marcados pelo início da jornada da captação
de imagens de parentes e pessoas que conheceram Pirigo. A investigação pautou como
era a ação desse corpo que se manifestava e prendia a atenção de todos que cruzavam o
caminho dela. Quem foi Pirigo? Que Perigo representava? Quais Perigos estava sujeita?
A pesquisa documental que compõe o curta-metragem que hoje carrega o nome
de Oid’água iniciou-se na cidade de Cuité, na Paraíba, com a filmagem de depoimentos
de familiares e amigos, sobre a pessoa de Pirigo. A escolha do nome Oid’água ao invés
de Olho d’água se dá em respeito a minha vó Maria, pois me recuso a “correção” da
sonoridade e grafia de sua memória, então escrevo como ecoa de sua boca, corpo vivo
de acesso a estas águas ancestrais. As outras cenas que compõem a obra nasceram dos
registros dos processos criativos que realizei tanto na academia durante o ano de 2019,
quanto dos processos realizados na sala de casa, inundada por essa cosmologia, durante
a quarentena do Covid-19 em 2020.
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É do cruzamento de conhecimentos técnicos que permeiam o cinema, teatro e a


performance que essa espécie de filme etnográfico experimental nasce, de uma tentativa
de reformulação frente ao contexto. Segue abaixo a sinopse do filme:

OID'ÁGUA é uma encruzilhada de memórias ancestrais que brotam do


chão. E é sobre a pessoa de Pirigo, que brota no meio do sertão do
Curimataú, na serra do Cuité na Paraíba, e se entorna no imaginário de
todas as mulheres. Além do mais, é um filme que nos fala sobre a força
de mulheres negras caboclas que constroem vida e arte a partir da
vivência de seus corpos no mundo, criando assim caminhos com suas
performances, na busca de se libertar das amarras da colonialidade e do
patriarcado. Ao costurar essa rede-s-coberta com uma mistura de terra
e água surgiu "Oid'água" de dentro da minha cabaça/cabeça. Assim sou
eu mesma Corpomídia e Corpo-Encruzilhada para esse imaginário de
águas em atmosfera de ataque.

Os depoimentos utilizados na escrita visual de Oid'água foram coletados


desde o início de 2020, antes de nos enclausurarmos pela pandemia da
COVID-19 e as cenas que modelam essa escrita e esse processo criativo
foram realizadas no útero da minha vida doméstica em memória de
Pirigo.

Em Afrografias da Memória (1997), a professora Leda Martins nos aponta que


na civilização ocidental, a memória dos saberes é pensada, guardada, instituída e
veiculada em geral pela via da escrita, ou seja, os textos fundadores do ocidente
remetem a ideia de razão e civilização ao domínio da escrita.
Sendo assim, podemos pensar: o que é deixado de lado? Acredito que deixamos
escapar, apagamos, invisibilizamos toda uma gama de conhecimentos que se inscrevem
e se veiculam pela via da performance corporal, ou seja, o corpo vivo. Toda uma
memória do conhecimento se grafa, se inscreve, por via do rito, do corpo em estado de
performance.
Em seu ensaio “A fina lâmina da palavra”, Martins (2007) nos diz:
A textualidade afro-brasileira, nos variados âmbitos em que vivifica, oferece-
nos um amplo feixe de possibilidades de percepção, de pesquisa e de fruição,
caligrafando a história e a memória dos sujeitos e das diversas opções
textuais que a inscrevem na cartografia estética de nossa cultura. Como
afrografias, nos voltejos vocais, nas gargantas das pautas ou nas espirais do
corpo, essa literatura traduz-se em lumes e saberes.” (MARTINS, 2007, p.
82).

Eu sou um fruto dos frutos do Cuité. No espelho molhado e fissurado do


reconhecimento. A minha semente brota das cabaças cheias d'agua na seca do oi da
sede. Cheiro doce de composição. Me atento ao que chamo “Pirigo: um corpo-
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encruzilhada” como um ato vigoroso de projetar e criar; um ato de resistência na


tentativa de se manter viva a fome de grafar uma prática de reversão metodológica que
faça assentamento pela investigação do corpo e seus cruzamentos.

Pretendi, assim, pela experiência criativa da performance ritual, abrir caminhos


que oportunizam à construção de uma memória decolonial por meio da afrografia,
compreendendo a expressão na forma como nos apresenta a professora Leda Maria
Martins, um grafar afroameríndio; reaver nossa herança africana e indígena e colocá-la
em espaço de evidência e consciência.

Para a pesquisadora Ana Carvalhaes (2012) o conceito de persona deve ser

[...] capturada não exatamente pelo que é, mas nas relações que agencia,
como relações de diferenças, entre eu e não eu, eu e outro, pessoas e pessoas.
A persona surge com o próprio ato. Trabalha enquanto anda: no percurso.
(...). Ao mesmo tempo em que é polivalente (é várias pessoas ao mesmo
tempo, administra contradições, vive estados diferenciados e transitórios
durante a performance etc.), a persona traduz tudo isso em ambiguidade
profunda. E pode, através do processo performático, da travessia artística,
construir uma experiência consistente. (...) A persona é o estado performático
do devir, da transformação constante, que leva à construção e à dissolução,
ao outro. É também a compreensão da perenidade da pessoa.
(CARVALHAES, 2012, p. 109-111).

Portanto, o que fica do processo Oid’água é Pirigo, enquanto persona, enquanto


força de um entrelugar, um cruzamento: 1) entre a cultura afrobrasileira e a cultura
indígena; 2) nas brechas de minhas lembranças de criança e, ao mesmo tempo, nas falas
e narrativas de quem a conheceu; 3) na carne invisibilizada do corpo de uma mulher
afroameríndia e nas ranhuras da História; 4) na vida e na arte. Assim sendo, tudo isso
que apresento é fruto de um caminho e encontra-se em processo. É uma pesquisa
impulsionada pelos ventos na busca da travessia de terras e águas. Essa rede-s-coberta,
fez demarcar um "Oid'água" de dentro de uma cabaça/cabeça.
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Parte II - PIRIGO e as Ancestralidades de um Corpomídia

Essa cabocla encantada cruza meu caminho “[...] em pleno corpo físico, em todo
sólido, todo gás e todo líquido, em átomos, palavras, alma, cor, em gesto, em cheiro, em
sombra, em luz, em som magnifico”. É na significação da poesia de Caetano Veloso,
enquanto ponte que me atravessa e traduz nesse conglomerado de palavras, a
experiência criativa desse tramado de ações retalhadas, que componho a textura do
vídeo arte documentário experimental (sei que a definição é extensa demais e ainda
estou por assimilar a definição dessa obra híbrida) de nome Oid’água sobre o corpo de
Pirigo e os escoamentos de sua performance.

É de dentro de uma pedra, desse estado duro, da camada firme, do interior de


uma cabaça e da minha cabeça que brota a nascente que dá origem ao Oid’água. O
nascimento fluído desse estado de corpo que se deseja ter voz se constrói unindo
matrizes em desenvolvimento corpóreo e ancestral. Estas matrizes foram formuladas em
diferentes momentos desse período que compreendem os anos de 2019 e 2020,
estabelecendo assim um cruzamento de processos, experimentos, informações presentes
na ação espiralar do tempo.

Oid’água é a manifestação do meu “corpomídia”. Entre esses anos de processo


comecei a observar o quanto todo poema que eu criava ou me apegava pelo caminho,
toda música que eu ouvia e sentia vontade de cantar, todas essas ações, imagens e
dispositivos que surgiam e começavam a fazer parte das ações do meu ritual cotidiano
eram espelhos de uma subjetividade em formação. Muito além disso, começo a
compreender e a dar sentido aos processos que encarnam no meu corpo e que estão
extremamente ligados ao meu nascimento, a ação de parir, de criar e de refletir o
próprio espaço. Segundo Helena Katz e Christine Greiner:

O corpo não é um meio por onde a informação simplesmente passa, pois,


toda informação que chega entra em negociação com as que já estão. O corpo
é o resultado desses cruzamentos, e não um lugar onde as informações são
apenas abrigadas. É com esta noção de mídia de si mesmo que o corpomídia
lida, e não com a idéia de mídia pensada como veículo de transmissão. A
mídia à qual o corpomídia se refere diz respeito ao processo evolutivo de
selecionar informações que vão constituindo o corpo. A informação se
transfere em processo de contaminação. (KATZ e GREINER, 2008: p. 136)
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2.1 O Corpomídia de uma MULHER NEGRA

É como se acontecesse sempre um trâmite entre o existente e o imaginado.


Neste viés, é sempre o signo (algo que representa algo para alguém) que
invoca um nexo entre práticas, coisas e as inúmeras possibilidades de
relações entre elas. (GREINER, 2005, p. 97).

Pensar, discutir, refletir, protocolar... enfim, dar a conhecer o processo criativo é


sempre uma tarefa muito difícil e, no caso da abordagem pela pesquisa acadêmica,
desafiador. Pois não poderia ser de outro jeito. “É como se acontecesse sempre um
trâmite entre o existente e o imaginado”. A frase da professora Christine Greiner é
precisa. Há sempre uma porção de corpo, de vida, de angústia, que se intromete, que
invade o processo de criação e a sua escrita. E tudo fica mais difícil.

A esse propósito, a maioria dos escritos sobre tem sido unânime, desde os
trabalhos memoriais, a exemplo dos relatos mais etnográficos (embora poetizados
didaticamente) do mestre Stanislavski; ou as abordagens acerca da criatividade e dos
processos de criação em arte, realizados pela artista Fayga Ostrower, desenvolvidos a
partir de um enfrentamento da condição histórica, social e psicológica dessa criação; ou
até os trâmites da abordagem do imaginário de pessoas acometidas por transtornos
psíquicos, como na obra da Dr.ª Nise da Silveira – há sempre uma parcela de
humanidade vida, de dor, de ressignificação, de autodenúncia, se desdobrando na
criação artística.

A professora Nise, inclusive, nos aponta pistas de como reconheceu, nas


abordagens dos seus pacientes, a pulsão da arte impregnada na dor da vida.

Era surpreendente verificar a existência de uma pulsação configuradora de


imagens sobrevivendo mesmo quando a personalidade estava desagregada.
Apesar de nunca haverem pintado antes da doença, muitos dos
frequentadores do atelier, todos os esquizofrênicos, manifestavam intensa
exaltação da criatividade imaginaria, que resultava na produção de pinturas
em número incrivelmente abundante, num contraste com a atividade reduzida
de seus autores fora do atelier, quando não tinha mais nas mãos dos pinceis.
(SILVEIRA, 1981, p. 13).
A arte extrapola a dimensão de nossa humanidade lógico-racional, como
sabemos disso, desde o senso comum. Mas não é apenas dessa forma de intersecção das
forças criativas que pretendemos tratar, no presente trabalho. Buscamos identificar, de
modo memorial e reflexivo, pistas do nosso processo criativo a partir de bases não
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necessariamente historiográficas e ou psicanalistas.

Para tanto, precisamos aportar nossa investigação em bases coerentes, do ponto


de vista de uma epistemologia do processo criativo, em conceitos gerais que podem
compreender corpo, cena, cultura, diálogo, motivo, matéria, presença, perspectiva,
dispositivos... enfim, daquilo que, em boa medida, são paradigmas significantes das
artes cênicas e da performance, na contemporaneidade.

A constituição desse corpo de informações que dá forma a Oid’água, traz a


memória de Pirigo mas não diz respeito apenas a ela, diz respeito a corpos objetificados
e preteridos pela cultura colonialista. Seu processo criativo em sua construção busca
driblar e golpear a lógica dominante. Este corpo se constitui enquanto rito de
restauração e do entendimento da memória oral que nos leva a investigar o corpo de
Pirigo, não apenas enquanto corpo individual, familiar, histórico que marca um coletivo,
mas enquanto uma pista de uma tessitura simbólica de cosmologia ancestral e
afroameríndia marcado pela corporeidade de sua força e resistência. É deste corpo
cosmológico de Pirigo enquanto vestígio de fonte de água que continua a brotar no veio
de seus descendentes, que vos narro como me vejo submersa nesta relação entre corpo e
ambiente que se codeterminam.

Como já citei anteriormente, o poema sinopse-imagética que origina Oid’água


teve a oportunidade de fazer parte do laboratório de roteiros LABMÉDEIAS, foi na
ocasião que me apresentaram a obra de Conceição Evaristo coincidentemente de nome
Olhos d’água. Durante o laboratório comecei a me aprofundar sobre a obra da autora
que cunha o terno escrevivência, metodologia de investigação e produção de
conhecimento. Escreviver oportuniza a construção de narrativas particulares, mas que
apontam para a experiência coletiva de mulheres negras. E é pensando nesse coletivo a
qual mira a história de Pirigo, que me vejo debruçada sobre os relatos remanescentes
deste corpo que é suporte de saber e memória.

A Ancestralidade produz marcas em seus descendentes, é por esse território que


percorre o fio desta trama que me liga a Josefa Maria da Conceição, um Pirigo em
forma de gente. É na necessidade de pespontar este tecido, pontuar o passado, suturar
esta carne e curar este corte que nossas vozes se unificam em gaitadas gritantes, em
fumaças de memórias e em lâmina faiscante dos facões que editam esse rito que se
reinventa na vida e na forja das palavras que manifesto. Fruto potência que resiste ao
território da seca. É dessa vontade imensurável de existir, de compreender o corpo como
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tempo/espaço que me foram negados em uma seca de saberes institucionais de


reconhecimento, que escoa esta voz veio d’água que brota e rasga a terra em
performances cotidianas. O imaginado reconfigurado nessa costura de sentidos e tramas.

Quando penso em processos criativos é complicado para mim dissociar isso da


minha ação diante da vida. Como desde pequena na casa dos meus pais a sala sempre
foi uma oficina do criar de minha mãe, acabei por adquirir certos hábitos em relação a
diversas materialidades e em diversos contextos, tudo poderia vir a ser algo e tudo
dependia da intenção a qual eu empunharia. Tudo sempre esteve em constante
transformação e ativamente em processos de autocriação, desde a brincadeira onde os
potes de tintas e novelos de linhas eram meus alunos a construção do figurino a cada
apresentação. Com o tempo as habilidades de minha mãe enquanto mulher negra, artesã
e costureira foram me mostrando certos aspectos da realidade principalmente no que diz
respeito a forjar a própria vivência e sua performance cotidiana.
Minha mãe se chama Josilene mas é conhecida por Lena e nasceu em 1971 em
Cuité, uma cidade que no século XVII antes da invasão portuguesa era território
habitado por tribos indígenas da grande nação Tarairú. Ela origina-se de uma família de
mulheres caboclas que ganharam a vida sendo agricultoras e lavadeiras da beira do Olho
d’agua na serra de Cuité - PB. A profissão de lavadeira até onde consegui descobrir
começa por Josefa Maria da Conceição – Pirigo – sendo herdada por minha avó Maria
Francisca que fica órfã de sua mãe Rosa Maria aos 6 anos posteriormente sendo criada
por Pirigo, sua Avó. Quando penso em Pirigo e inicio minha pesquisa sobre ela me
deparo com sua performance de valentia e um corpo que era notado em espaços por sua
ação.
Minha mãe cresceu vendo minha avó e sua bisavó no trato diário de tecidos
nobres enquanto lavagem de ganho a passo que para ela a experiência com as roupas
nasceu do desejo de possuí-las a seu gosto tendo a oportunidade de aprender a técnica
da costura aos 14 anos. Foi na tentativa de criar e custear suas próprias roupas que
minha mãe aprendeu o ofício da alta costura, ainda adolescente, começou a criar seus
looks em tecidos acessíveis conhecido pelo nome de saco. Não era aceitável para época
que uma mulher negra, filha de família pobre desenvolvesse tal ofício e ainda vestir
figurinos finos feitos de saco em uma cidade pequena e colonialista como Cuité, sendo
assim vítima de diversos preconceitos com relação a sua imagem e a sua expressividade.
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Foi no início do segundo semestre de 2019, que recebi minha avó materna Maria
Francisca Pereira para passar uns dias em minha casa. Eu estava inundada nas pesquisas
sobre a mitologia de Iansã também conhecida por Oyá e nesta mesma semana antes dela
chegar havia rabiscado na parede da sala de minha casa a cabeça de um búfalo inspirada
na ilustração de Josias Marinho do livro “OMO-OBÁ – Histórias de princesas” de
Kiusam de Oliveira. Minha Avó é uma senhorinha bastante curiosa e conversadeira, não
estudou e nem sabe escrever, mas se comunica como ninguém com seu corpo ao contar
uma história, ela incorpora as ações e os personagens em sua fala com uma riqueza de
detalhes... “Sabe do porquê a véia aqui lembra dessas coisas? Porque eu sou é VIVA!”.
Foi nessa ocasião que ela decidiu me contar sobre a história do aborto que sofreu
sua avó Pirigo na beira do Oid’água da Serra na cidade de Cuité na Paraíba. Reparo que
a energia de meus processos que me levam ao encontro com Oyá em cruzamento com a
história de minha avó me permite um encontro com a memória de um movimento
ancestral. Como em uma espiral, uma narrativa do passado retorna ao presente com
forte similitude.
É a partir desse laboratório onde se encarna uma mulher que carrega dentro de si
um animal selvagem e que não consegue chorar a morte do filho, é da narrativa que
minha avó traz dessa ancestre tão próxima a qual eu conheci, mas até o momento nunca
havia dado atenção, que identifico um movimento ancestral de comunicação, de comum
ação desses corpos de sabedorias encarnadas em esquemas corporais. É dessa gestação
interrompida que uma acaba por parir à outra, fazendo nascer da cabeça e da cabaça
força vital originária. É do mito de Iansã que reconheço o fundamento que resgata
Pirigo, enquanto força da natureza que rege minha vida.
É do corpo tempestivo e do corpo de mulher cortante que reivindica território,
são as representações nativas do passado que me são atualizadas nesse processo, é a
respeito de sobreviver, mas também sobre viver e afirmar que essas presenças sofreram
e sofrem apagamento enquanto atores de uma história que precisa ser contada e
recontada quantas vezes for necessário. São fagulhas de golpes de um facão, que forja
essa história, que aqui no agora vos entrego.
Por que a imagem desse corpo de mulher negra, dona de seu movimento e da
força de sobreviver friccionava tanto a realidade ao ponto de se tornar “Pirigoso” para a
cultura instaurada? Compreendo a relação do meu corpo com esta memória, pelo viés
ancestral e cultural do corpo que pertence a um coletivo e suas reminiscências.
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2.2 Um corpo que abriga a vida, um corpo que briga e é brabo

Qual vida abriga esse corpo que estou aqui a dissertar? O que impulsiona esse
corpo a este movimento de raiva e confronto? Foram 10 horas de filmagem entre
depoimentos e paisagens do território a qual abriga sua memória. A percepção dos
entrevistados sobre a performance do corpo de Josefa Maria da Conceição – Pirigo são
relatos sobre; sua aparência já que não performava o feminino e sua vestimenta
sertânica com seus paramentos (facão, foice e cachimbo); sobre seu senso de partilha,
coletividade e cuidado em relação a seus familiares e vizinhos; sobre o alimento que
preparava e de como ela caçava, da sua relação com um enorme pilão construído com a
força de seu facão onde ela moía o milho pra fazer fubá; de como conhecia a terra e
adivinhava as horas pelo sol; como compartilhava em cuias de cuité ou de coco o
alimento entre os seus vizinhos e mais necessitados; sobre como reutilizava tecidos
doados para construir cobertas de retalhos; principalmente sobre seu temperamento que
para uns era típico de uma mulher braba e para outros loucura; por sua ação de
confrontar tudo que a fizesse sentir desaceita; dos gestos que eram respostas a opressão
e como resolvia tudo com base em giros faiscantes no chão com seu facão e as
“carreiras” provocadas, ato que se encerrava em sua gaitada de deboche.
Dentre os depoimentos presentes no filme, quero destacar a priori dois
fragmentos. Um é de minha irmã Ketlyn e ela diz: “Na verdade essa é uma percepção
das pessoas sobre ela, que era uma mulher comum se posicionando no mundo naquela
época, toda mulher hoje em dia que se posiciona é tida como louca, como arrogante,
sempre no papel da malvada, né? O outro, de Neide de Daniel, uma contadora de
história nata da cidade de Cuité, que considerava Pirigo sua avó; “Ela era braba para se
defender do preconceito, da rejeição, por isso que eu entendo assim que a brabeza dela
era assim...”.
Enquanto mediadora desse corpomídia percebo que o movimento que me leva a
pesquisar o corpo de Pirigo é também um espelhamento dessa raiva, de uma brabeza
que as vezes até desconheço a fonte, mas que me impulsiona a querer manifestar o que
for preciso para existir. E no que se refere a raiva incorporada pelos corpos de mulheres,
segue uma citação de Audre Lorde de seu ensaio Os usos da Raiva: As mulheres
reagem ao racismo:
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Toda mulher tem um arsenal de raiva bem abastecido que pode ser muito útil
contra as opressões, pessoais e institucionais, que são a origem dessa raiva.
Usada com precisão, ela pode se tornar uma poderosa fonte de energia a
serviço do progresso e da mudança. E quando falo de mudança não me refiro
a uma simples troca de papéis ou uma redução temporária das tensões, nem a
habilidade de sorrir ou se sentir bem. Estou falando de uma alteração radical
na base dos pressupostos sobre os quais nossas vidas são construídas. A raiva
é repleta de informação e energia. (LORDE, 2018, p. 159).

Segundo Audre, temos que aprender a usar essa raiva enquanto força, potência e
clareza em nosso dia a dia e enquanto não aprendermos a usá-la não sobreviveremos.
Então é partindo dessa citação que constato que entre os relatos sobre Pirigo, é possível
afirmar que ela possuía certa consciência do impacto de seu comportamento,
performance de valentia e dos caminhos abertos que eram forjados por seu estado de
presença no tempo e espaço.
Pirigo não sabia ler, logo: não precisaria de nenhuma Audre Lorde para poder
sustentar seu diálogo sobre sua raiva, como agora recorro. A raiz dessa raiva é uma
ferida colonial em um corpo que resistiu a invasão cristã tendo sua cultura invisibilizada
pelos valores instaurados, e quando digo corpo amplio o sentido deste termo. Os
“valores civilizatórios” provocaram um apagamento onde esses corpos foram
marginalizados e resvalados e Pirigo enquanto corpo ressoa como vestígio remanescente
dessa cultura, onde seus gestos são anteriores a ela, mas permaneceram incorporados e
restaurados em um movimento de resistência.
Este corpomídia que se compõe é uma resposta ao processo de apagamento e
reivindicação de existência e pertencimento. Josefa Maria da Conceição é fruto da força
cosmológica indígena e africana, e sua brabeza fruto da dor, se transmuta em potência
que garantiu sua sobrevivência nesse território onde nossos corpos são invisibilizados.
Sua vibração transborda em mim e a restauração desse comportamento se dá em meu
corpo como acidente geográfico: um Oid’água. Segue uma citação de Schechner sobre
comportamento restaurado:
Nos estudos de Schechner (2002) o comportamento restaurado aparece como
a própria possibilidade de “performação”. São ações físicas ou verbais
preparadas, ensaiadas ou que não estejam sendo exercidas pela primeira vez.
Pedaços de comportamentos são recortados de um lugar e restaurados em
outro, trazendo marcas não só de quem executa e restaura o movimento no
próprio corpo, mas também das técnicas corporais que são normatizadas pela
cultura. Schechner (2002, p. 29) afirma que “a maioria das performances,
cotidianas ou não, têm mais de um autor. Rituais, jogos e performances da
vida diária são escritos por um ente coletivo Anônimo ou pela Tradição”.
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É das vozes que se presentificam nesse momento em memória que entendo a


performance do corpo de Pirigo como escrita no tempo. Oid’água é a forma de garantir
o eco de nossas toadas, é através deste corpomídia que se faz linguagem que firmo meu
ritual de encantamento no mundo por meio desta obra, que é denúncia, mas também é
poder nesse campo de batalha. No livro Fogo no Mato – ciência encantada das
macumbas, de Luiz Antônio Simas e Luiz Rufino, seus autores nos dizem que campos
de batalhas também são campos de mandinga, é a partir daí que saímos para o jogo da
vida e lançar-se aos campos de batalha demanda encantar-se na mandinga:
Se sobrevivermos nos campos de batalha da vida comum, supravivemos nos
campos de mandingas. Aprendemos com os múltiplos saberes que nos pegam
a praticar, de forma encruzada, a batalha como política e a mandiga como
poética. (SIMAS; RUFINO, 2018, p.107).

Nesse caso, Oid’água é a mandinga que também é batalha que evoca múltiplas
temporalidades, espacialidades, dimensões em diferentes formas de interação. Este
processo encarna na luta o encanto da criação, a invocação e a encarnação do corpo de
Pirigo e suas inúmeras possibilidades de comunicação/linguagem como fruto de uma
presença estética de discurso afirmativo pela ancestralidade afroameríndia.

Parte III – Oid’Água


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As pulsações que me levaram a constituir a performatividade que origina o


corpo cênico de Pirigo emergiram, inicialmente, a partir do processo iniciado no
componente: Elementos de Treinamento Pré-Expressivo, ministrado pelo professor Dr.
Robson Haderchpek, como já citei anteriormente. As práticas de sala de aula tinham
como base a memorização de alguns dispositivos e a codificação de ações físicas
criadas pela dinamização de energias geravam matrizes.
Ao findar do laboratório com base nestes dispositivos e na virtualidade destas
matrizes, construí uma lógica dramatúrgica entre elas, onde, existia uma mulher que
continha dentro de si o poder de um animal, no caso a vaca ora boi ora búfalo. E como
forma de resistir as opressões se engerava4 neste bicho de temperamento selvagem.
Mulher de voz e corpo cortante e ecoante como o vento. Os motivos dessa fúria vinham
dos arados da terra onde a sobrevivência é maior que o pensamento. O pano vermelho
era como o sangue que escorria de suas pernas em um rito de morte e vida que
ensanguentava a terra, também era o sangue de um filho morto a qual esta mulher se
encontrava em luto e não conseguia chorar sua perda. Foi o professor Robson que
chamou minha atenção para a similitude do mito de Oyá presente na potencialidade de
minhas matrizes.
No período que deu início a 2020, antes da quarentena se instaurar, me desloquei
entre a cidade de Natal (RN) até a cidade de Cuité (PB), muitas idas e vindas com a cria
na anca e na mão uma câmera que eu mal sabia usar a princípio, no intuito de coletar
imagens das pessoas falando sobre quem era Pirigo e o porquê desse seu apelido, como
eram seus hábitos, como era seu comportamento, o que gostava e no que acreditava,
quais as imagens remanescentes que constituíam essa memória. Refiz seu caminho pela
ladeira que dava no Oid’água que atualmente tem um teatro a céu aberto, um banheiro
coletivo construído na década de 40 e uma lavanderia coletiva a suas margens, território
preservado e ocupado por uma das sedes da Universidade Federal de Campina Grande.

4
Embora de pouco uso na prática discursiva dos nossos tempos, o verbo “engerar” é da nossa língua e
significa a capacidade de o indivíduo se transformar em um animal ou em um outro ser, que pode ser
humano ou a uma figura mítica que faz parte do imaginário.
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3.1 As mandigas fluentes na terra da macumba

O ponto está riscado: há de se ler a poética para se entender a política, há que


se ler o encanto para se entender a ciência. (SIMAS; RUFINO, 2018, p.16).

A macumba aqui se dá enquanto ciência encantada ao mesmo tempo que é a


amarração de múltiplos saberes no território da encruzilhada e a mandiga enquanto
política e poética. Simas e Rufino (2018) define a expressão macumba enquanto terra
dos poetas do feitiço; os encantadores de corpos e palavras que fustigam e atazanam a
razão intransigente propondo maneiras plurais de reexistência pela radicalidade do
encanto. Portanto o macumbeiro que se origina dessas terras, encara o mundo no
alargamento das gramáticas e reconhece a plenitude da beleza, da sofisticação e da
alteridade entre as gentes.

O ano de 2019 encaminhou o retorno das minhas atividades práticas motivada


pelas aulas do professor Robson que promoveu o acesso ao percurso de técnicas e
estudos, com base nos exercícios de treinamento energético sugerido pelo LUME –
Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais da UNICAMP. O treinamento tencionou a
descoberta de novas energias por meio do esgotamento físico. A primeira parte da aula
era executada ritualmente partindo do aquecimento individual, passando pelo
aterramento em conexão com a respiração, seguido de forças corpóreas em oposição ao
chão no ato de espreguiçar-se ainda em plano baixo, movimentos contínuos em
transição gradativa do plano baixo/médio/alto, dinâmica de intensidades lento/rápido,
fusão de movimentos ao esgotamento das energias, pressão energética interna, troca de
energias por intermédio dos movimentos.

Durante o processo de treinamento foram apresentados alguns termos técnicos


de comando para ilustrar o desenvolvimento da energia como por exemplo: o corpo
como bola de borracha, ativação do Koshi, porcentagem dos movimentos, lançamentos,
flashes de luz entre outros. O treinamento energético possibilita a preparação de um
corpo ativo a criação. Antes de iniciarmos o trabalho das construções de matrizes
trabalhamos um conjunto de movimentos que desenhavam no corpo o arquétipo do
Samurai/Guerreira, abaixo o trecho do diário de bordo da disciplina após o treinamento:

Depois de alguns anos volto a encarar e a explorar meu corpo e suas


potencialidades na prática. Preciso acreditar nessa mulher que pariu e que no
agora sem medo de errar expurga neste esgotamento os fantasmas do boicote.
A força da guerra que habita em mim se esconde por trás de um véu.
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Necessito suportar a dor e o cansaço para seguir e me reinventar. Aceitar o


caminho árduo que me acordará da inércia. Eu honro este momento como o
dia dos ventos que sacudiram meu corpo e convoco as minhas forças e as das
minhas ancestrais para resistir. Epahey Oyá! (O Parto da Guerra –
08/03/2019).
Os dispositivos usados no componente curricular para a criação das matrizes
com as quais desenvolvi minha poética em torno de Pirigo foram os seguintes
elementos: uma música (de nome “São Jorge” de Kiko Dinucci e Juçara Marçal, que
fala sobre o corpo em estado de guerra), uma arvore (um flamboyant avermelhado), um
animal (uma vaca que ora era boi outrora búfalo); um texto (um manifesto sobre a
mulher selvagem), uma pintura (uma mulher negra com seu pilão) e um tecido (de cor
vermelho). A escolha de cada um destes dispositivos surge a partir da ação permanente
de subjetivação e significação que tenho para com os elementos presentes em meus
processos criativos.

• Uma música: Normalmente quando escolho uma música para cantar é


sempre movida pelo que ela evoca no meu corpo, assim cantar se revela
para mim como uma manifestação vibratória resultante de um sistema de
espelhamentos do meu sentir com o que pretendo dizer. A música São
Jorge cantada por Juçara Marçal de composição de Kiko Dinucci me
remete a um estado de presença que resiste e combate.

Guerreio é no lombo do meu cavalo


Bala vem mas eu não caio, armadura é a proteção
Avanço sob a noite iluminado, luto sem pestanejar
Derrubo sem me esforçar, a guarnição

A guimba e a fumaça do meu cigarro


Cega o olho do soldado que pensou em me ferir
Com um sorriso derrubo uma tropa inteira
Mesmo que na dianteira sombra venha me seguir

USE O CELULAR E O O gole da cachaça esguicho no ar


APLICATIVO DO QRCODE Chorando na labuta ouço a corrente se quebrar
PARA OUVIR E o golpe do destino esse eu sinto, mas não caio
SÃO JORGE Guerreio é no lombo do meu cavalo.

Abaixo, destaco o trecho do diário de bordo da disciplina, escrito após o


treinamento energético e a inserção da música na voz:

Quando canto é como se parisse algo, ao abrir minha boca crio


um mundo. Desejo meu corpo instrumento das transições e
possibilidades de expressão existentes. Vem das entranhas a voz
que incendeia, que me arde e me firma no presente instante.
Sinto meu ventre vibrar e uma fome de estar.
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• Uma árvore: A minha preferência por qual seria demorou a se consolidar


porque sempre tive um grande afeto por árvores. A escolha se deu um dia
antes da aula de Pré-expressivo em um cruzamento que fica entre a
Avenida Salgado Filho e o Departamento de Artes da UFRN ao me
deparar com florir de um flamejante flamboaiã. O vermelho que
desabrochava era extasiante.
Abaixo, um trecho do diário de bordo pós processo no dia 05 de abril de 2019:

No campo efervescente ela está ardendo sob solo incendiado.


Em torno as raízes a sustenta num aguçado ardor uterino.
No momento mais dor que ar, os galhos cansados estão
pendentes em uma doce miragem.
Um filho a sustenta com a promessa de multiplicar a semente
fecundada do grito de guerra. O vermelho das folhas é o sangue
que jorra e escorre nas pernas de mais de mil fêmeas
encarnadas.

• Um animal: A escolha do animal foi motivado por minha inclinação


astrológica e pela simbólica que envolve o signo de touro. O touro
enquanto animal de poder e de presença forte terrena. No processo fiquei
a me questionar que a matriz poderia também oscilar entre vaca ou búfalo
por portarem a mesma estrutura corpórea e serem da mesma família.
Abaixo, um trecho do diário de bordo pós processo no dia 12 de abril de 2019
sobre o estado do corpo na matriz criada:

O corpo forte de olhar profundo e enigmático determinado ao


plano médio. O bicho pulsa o corpo desvelado. A coluna
enverga e sustenta a quentura. A respiração pulsa dos olhos
onde reside fúria e fome. O touro em um eterno duelar.

• Um texto: O texto escolhido se chama Suçuarana e é de autoria de Iara


Ferreira que venho a se tornar música nas mãos de Frederico Demarca e
manifesto na voz de Juliana Linhares. O texto fala sobre a luta e a força
cíclica selvática que habita o corpo-mulher que resiste as opressões de um
sistema de domínio patriarcal. Abaixo o texto matriz:
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Suçuarana
Foi quem me fez aprender
A valentia
Quanto é matar ou viver
Andar na terra
Andar, lutar e seguir
Eu sei que é ela
Quem toma parte de mim
Eu viro fera
Só me provoque pra ver
Eu viro fera
Enfio a unha em você
Sou arredia
Eu não te dou permissão
A Lua cheia
Sangra de dentro do meu coração

Suçuarana
Derrubo as armas de vez
Nenhuma filha
Terá mais nada a temer
Por essa selva
Nós vamos ser mais de mil
Fêmeas felinas
Enfurecidas no cio
Eu viro fera
Eu não vou mais recuar
Eu viro fera
Eu deixo o bicho pegar
Essa alegria
É minha libertação
A alforria
Assino com minha mão

Oh, pátria amada


Juro pelas nossas mães
Juro por quem mais vier
Que não desculpo nada
Nem canso de ser
Mulher

Suçuarana
Foi quem me fez aprender
A valentia
Quanto é matar ou viver
Andar na terra
Andar, lutar e seguir
Eu sei que é ela
Quem toma parte de mim
Eu viro fera USE O CELULAR E O
Só me provoque pra ver APLICATIVO DO QRCODE
Eu viro fera PARA OUVIR SUÇUARANA
Enfio a unha em você
Sou arredia
Eu não te dou permissão
A Lua cheia
Sangra de dentro do meu coração
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• Uma imagem - quadro: A imagem que escolhi é uma pintura da artista russa
RADA. A artista faz releituras das cartas do Tarot trazendo em uma delas a figura da
Bruxa com um pilão.
Abaixo, um trecho do diário de bordo pós processo do dia 3 de maio de 2019 sobre a
incorporação da imagem:

A imagem geradora é a pintura de uma mulher no pilão. O movimento


centra-se nas mãos. Estou sozinha frente a uma floresta. Existe uma energia
concentrada em meu corpo que é responsável pelo tempero das relações.
Sou infinita em possibilidades. De repente na dilatação dos movimentos das
mãos faço surgir uma cigana que gira com sua saia imaginaria
atravessando a sala no ritmo do tango, imagens rapidamente se formam e se
desfazem sem parar. Na encruzilhada vejo o brilho do céu estrelado e um
corpo no chão. As estrelas formaram uma procissão em alto e bom som na
vibração dos ventos que encaminhavam toda passagem.

• Um tecido: O tecido trouxe a noção da fluidez e do fluxo do movimento nas


variações de fisicidades; perto, longe, leve, pesado, rápido e lento.
Abaixo um trecho do diário de bordo pós processo no dia 10 de maio de 2019 sobre como a
o tecido deu a trama da narrativa:

O corpo do ator permeia os arquétipos e sua interpretação se dá por meio


do imaginário coletivo. É nesse momento que investigo os elementos que
pulsaram nas construções das matrizes e como o arranjo das imagens
individuais e a combinação delas entre si nos conduz a configurar possíveis
narrativas. As matrizes possuíam forte relação com os seguintes elementos;
terra, sangue, vermelho, raiz, feminino, primitivo. O tecido vermelho
arrematou o mito que me apresentou Oyá.

Não tenho registros visuais desse laboratório. Foi uma ação restrita, em que todos estavam
envolvidos. O relato dessas matrizes criadas pode reverberar nos experimentos seguintes ao
primeiro semestre de 2019. A apresentação final do componente tinha como objetivo a criação de
uma cena que articulassem as matrizes construídas e o mito organizador das minhas ações foi a
história de Oya.
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3.2 A CABAÇA | CABEÇA | CABAÇO como ORIGEM


O bailado do corpo no palco
No palco do corpo e da gente
Recebe chuva de palmas
Suspiros que brotam silentes
Na inteireza d'alma
Passado futuro e presente
Corpo – Dea Trancoso

Antes de encabeçar a viagem para colher tais depoimentos (fragmentos que até o momento
não se entendiam com um fim específico) sobre minha tetravó, começo a busca pela coleta de
cabaças de cuité e a experimentar possibilidades em laboratório com a intenção de esmiuçar seus
sentidos e sua sensorialidade. A cabaça/cabaço é um fruto utilizado como matéria prima e simbólica
incorporada por muitas culturas originarias, destacando as de matrizes africanas e indígenas que são
fundantes na construção da cultura da sociedade brasileira.

Foi no componente curricular de Encenação II ministrada pelo professor Makarios Maia, um


semestre após a criação das matrizes que me levaram a figura de Oyá seguido do encontro de Pirigo,
o terreiro prático da união e configuração desse estado de corpo aos elementos da sinopse; pela
primeira vez a exploração material das cabaças de Cuité, a bacia de alumínio e o cachimbo. Foi
nesse momento a primeira configuração cênica, do que estava por vir, que ainda se chamava Olho
d’água. Há no curta metragem fragmentos dos registros desse processo.

Na cosmologia africana e indígena encontramos uma reunião de mitos de origem que partem
da cabaça promovendo um novo diálogo sobre o espaço, sobre o tempo, sobre o corpo e a origem do
universo. Um desses mitos em especial é “Ododuá e a briga pelos sete anéis”, reescrito e adaptado
por Kiusam de Oliveira também do livro “OMO-OBÁ – Histórias de princesas” onde ela reconta
mitos das orixás que enfatizam a força da mulher dentro da cosmologia banto e iorubá. O mito, em
específico, traz Ododuá como uma princesa guerreira de beleza terrosa e naturalmente forte, que
divide espaço dentro de uma cabaça com Obatalá. O enredo se desenvolve com base na divisão que
eles precisam fazer de sete anéis que possuem, porém sete é um número ímpar que não se divide em
partes iguais. E assim Obatalá decide que ele por ocupar a parte superior da cabaça, teria o direito
inquestionável pela guarda de quatro dos anéis.

Os dias se passaram até o dia em que Obatalá é questionado por Ododuá que se nega a
permanecer submissa a decisão de Obatalá, reivindicando: – “Príncipe Obatalá eu não aceito mais
essa imposição sobre mim. Não é porque você é homem que deve ter a sua vontade atendida. Sou
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mulher e tenho meus direitos do mesmo jeito que você os tem.” (OLIVEIRA, 2009, p.45). Após
essa fala Obatalá se recusa a aceitar as opiniões de Ododuá e ela parte irada para cima dele iniciando
assim um confronto intenso capaz de romper a cabaça em dois pedaços, onde a parte que estava com
Ododuá permanece na terra e a outra onde estava Obatalá é arremessada para o céu. E a história se
encerra com este atrito que rompe a cabaça/cabeça/cabaço e espalha os anéis pelo mundo dando
origem ao céu e a terra.

É possível analisar o mito sob a ótica em que Ododuá, princípio feminino em uma cisão ao
princípio masculino, enquanto protagonista dessa história reivindica seu espaço no cabaça, na
cabeça, no cabaço, no mundo, em sua casa, no corpo. A mulher que exige que sua voz seja escutada
em uma sociedade fundada sob uma estrutura patriarcal, capitalista e racista é tida muitas vezes
como a histérica, a brava, a louca sem controle emocional. Temos nesse balaio de mitos, referências
e poética; Oyá dona dos ventos, corpo de búfalo de temperamento como a ventania que arrasa tudo o
que estiver no caminho para conquistar o que lhe é fundamental e Ododuá dona da terra com sua
fúria diante de tanto silenciamento e negação de seus direitos, todas elas me aproximam cada vez
mais desse corpo que retoma Pirigo. Pirigo seria a reinvenção que reúne essas formas de vida que
reflete nessa tessitura um processo identitário de mulheres originárias.

Quando reflito a origem do meu processo criativo vejo o quanto é importante para mim olhar
para minha mãe e suas ancestrais enquanto potência de vida, sobrevivência e criação. Quando as
vejo sinto que há voz a ecoar. E é assim que me sinto quando estou em um processo criativo, me
faço corpo histórico pertencente a um território de sentidos e percepções da realidade. É pela criação
de artefatos seja a roupa, a máscara, o videoarte enquanto construção material e social, pela imagem
e o imaginário criativo, é pelos retalhos de uma história herdada e os alinhavos desse processo que
dou forma a minha prática poética que ressoa na narrativa de Oid’agua. O roteiro ficou definido em
outubro de 2020 com a ajuda de Roberta Barbosa que me incentivou dentro de tantos depoimentos
colhidos buscar uma lógica de descendência matrilinear.

O processo de criação da minha poética audiovisual em Oid’água veio dar nesse trabalho de
conclusão de curso, sob a orientação do professor Makarios, todo de forma remota, durante o ano de
2020. Durante a quarentena embarquei na onda dos cursos e oficinas online tanto de edição de vídeo
quanto outras na minha área, uma delas foi a Oficina de Caracterização e Maquiagem com Alma
Negrot, realizada pelo Coletivo Acuenda e teve a duração de 3 meses, servindo como espaço de
laboratório na elaboração da maquiagem que componho Oid’água.

A maquiagem teve como base três elementos, um deles foi o lápis preto em substituto ao
jenipapo enquanto contraste, depois o vermelho extraído do urucum seguido da colagem de
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sementes e cascas secas do fruto do urucum, todos reunidos em uma tentativa de ritualizar uma
consagração a ancestralidade na busca de compor e se adornar com elementos naturais.

A seguir, apresento um texto produzido pelo escritor e pesquisador, além de Ọmọ Òrìṣà,
devoto de Ọbàtálá e de Olódùmarè, Caio Victorino5, sobre Oyá e seu universo mítico.

Oya/Iansã é uma Òrìsà guerreira. Mulher indígena valente que guerreava nas
batalhas. Dona de uma sedução única. Quando ia caçar transformava-se em um búfalo,
animal que representa a orixá. Senhora dos raios e ventos. Oya é um Òrìsà que, assim como
outros diversos, possui magias próprias, o que também singulariza o seu culto. Oya foi uma
das esposas de Sàngó, na qual, ela teve seu corpo transformado no rio de nove braços - Rio
Níger (Odo Oya). Dentre as celebrações de Oya, tem uma que é bastante conhecida e muitos
brasileiros acham bonito e interessante, que é o momento no qual Oya carrega uma panela
com fogo em suas mãos e ela anda de forma normal, não corre e nem nada do tipo. O nome
desse rito chama-se de: Ikoko Inan. Em Irá, há uma espécie de Ojubo (local de adoração a
determinado Òrìsà) Oya, onde há água e a mesma não seca, apenas brota. Oya também é
chamada de: "obinrin okunrin bi" (Uma mulher como um homem). Para finalizar: A
saudação correta de Oya em Òyó é: "Eyi Oya ooo" e a resposta para tal é: "Oya Nje ooo".

As imagens criadas durante a quarentena foram construídas enquanto registros diários de


criação e se transmutaram-se no caminho do processo enquanto ritual ancestral do gerar. Na edição
os registros acabaram por me possibilitar uma reflexão sobre essa trama cultural e as heranças
simbólicas da criação do corpo. Enquanto futura professora de licenciatura em Teatro enxergo na
minha ancestralidade e na imagem a possibilidade de afirmar uma narrativa que até então não tinha
sido contada. O que me une a essas “marias” é a encruzilhada de memórias e o valor que dou a
artesania dessas narrativas, é na costura entre uma memória e uma imagem criada, é no canto e na
força da voz entoada da lavadeira que me lava, me bordo e tramo visualidades, imaginários,
sonoridades e me faço corpo poético.

USE O CELULAR E
O APLICATIVO DO
QRCODE PARA
OUVIR CORPO

5
Texto de Caio Victorino, Cf. Instagram.com/caioolobatala/.
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3.3 A descrição do Oid’água

O produto é audiovisual, embora tenha sido parido nas entranhas de um teatro performativo.
Para uma melhor compreensão, da obra, apresento sua descrição.

ABERTURA – ao som da Rabeca Caboclinho Perré de Jeferson Leite

QUADRO 01 - Xilogravura do Pé de Cuité de Flecharty

QUADRO 02 – Dedicado a Pirigo e sua Aldeia

QUADRO 03 – Xilogravura de Maria Josefa da Conceição “Pirigo” de Flecharty

CENA 01 – Imagem da bacia de alumínio configurada enquanto instrumento de


percussão (idealizado por Erhi Araújo e inspirado no Ocean Drum/Tambor do
oceano).
• Surge o título Oid’água
• Flash de imagem cruzada da Serra de Cuité-RN
voz off - Diálogo de VÓ MARIA com WISLA no olho d’agua da serra de Cuité-PB

Vó Maria: Aqui Wislayne como é lindo ó. Aqui ó. Olha de onde vem a água. Ta
vendo, vem dali, ó que incrível Wislayne. Vem daqui de dentro, ela sai dali de dentro
dessa pedra. Ó

Wisla: É uma nascente né...

CENA 02 – Imagem da bacia de alumínio com Água e Cabaças de Cuité configurada


como instrumento de percussão inspirada na tina de Guiné-Bissau.

voz off – Continuação do diálogo de VÓ MARIA com WISLA no olho d’agua da


serra de Cuité-PB

Vó Maria: Apois a água cai ali e daqui passa aqui. De primeiro o povo pegava água
aqui mas hoje pega mais não.

CENA 03 - Uma boca que comunica

Essa história vem do anoitecer das lembranças e na memória dá à luz a expressão do


amanhecer de um olho d’agua.
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CENA 04 - Imagem Ampliada da bacia de alumínio configurada enquanto


instrumento de percussão (idealizado por Erhi Araújo e inspirado no Ocean
Drum/Tambor do oceano).

CENA 05 – Cena de Vó Maria no olho d’água mostrando como era o dia a dia das
lavadeiras emendando na história do aborto de Pirigo.

Vó Maria: (agachada simulando a lavagem de roupa) era tudo vuco vuco, lavando,
estendendo, escorria e no sol botava pra quarar e depois ia estender. E aí ela o que é
que fez? Depois que lavou a roupa que desceu pra casa, pegou o bebezinho botou no
balde enrolado (limpa o suor do rosto) e levou pra casa, chegou em casa enterrou.
Diz que deste “tamainho” (mostra com as mãos).

Wislayne: Bem pequenininho.

Vó maria: Incrível né.

CENA 06 - Surge a cabaça fruto do Cuitezeiro segurado pelas mãos de uma mulher
de rosto encarnado. Ao som do xucalho se ouve uma voz aboiada:

- Chamo agora no salão, vem pirigo ao som do baião...

CENA 07 – Imagens do diário de bordo onde estão as fotos de Pirigo.

CENA 08 - Surge uma mulher de semblante tempestivo dando continuidade ao canto

- trazendo a cria na anca e na mão o seu facão

CENA 09 – Vasilhas e panelas de alumínio ariadas e penduradas na parede. Seguido


do som do xucalho e do entoar do canto.

- trazendo a cria na anca e na mão o seu facão.

CENA 10 – Imagem ampliada do fruto e sementes de Urucum que compõem uma


anteface.

voz off - Narradora apresenta o corpo da persona ouve-se ao longe o canto ecoando.

- Essa é uma das histórias que se pode contar de Maria Josefa da Conceição,
popularmente conhecida como Pirigo.

- E na mão o seu facão, e na mão o seu facão.

FADE OUT
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CENA 11 – Depoimento de Neide que se criou considerando Pirigo sua Avó.

Neide: E quando ela vinha. Ela vinha regaçando tudo. Era um furacão.

CENA 12 – Depoimento de Irailda, neta de Pirigo, filha de Conena (Marlene).

Irailda: Vovó era braba mesmo, vovó não brincava não minha filha, de jeito nenhum.
Não mexesse com ela. Ninguém não mexia não. Porque diziam assim: lá vem Pirigo,
ai pronto.

CENA 13 – Depoimento de Josilene (Lena), bisneta de Pirigo, filha de Dona Maria.


Mãe de Ketlyn e Wislayne.

Josilene (Lena): Eu não sei se ela era índia ou se ela era... eu não sei. Só sei que
minha Avó sabia se defender. Não era todo mundo que ela ia com a cara não. Tipo
Homem né.
FADE OUT
CENA 14 - Mulher de semblante tempestivo retorna...
“Pirigo é uma cabocla valente!”
...Fumando um cachimbo.
CENA 15 – Mulher do rosto encarnado de urucum ressurge ao som de vozes que
ecoam:
Ela é doida minha gente, é um bicho do mato (ecos)..
é também agricultora, lavadeira, caçadora. É um touro engerado.

CENA 16 – Depoimento de Vó Chiquinha. Vó Paterna de Wislayne. Me criei


ouvindo que quando meus pais casaram a família de meu pai tinha preconceito por
minha mãe ser “neta” de Pirigo.

Vó Chiquinha: O povo falava que ela era louca, ai quando ela chegou lá em casa eu
tive muito medo dela mas ai ela disse: tenha medo de mim não que eu não faço nada
com ninguém não.

CENA 17 – Imagem de duas bandas côncavas de uma cabaça, uma vazia com
pigmento vermelho e a outra com água ao som da toada.
Um corpo que abriga a vida, um corpo que briga e é brabo.
FADE OUT
CENA 18 – Fragmento do depoimento de Neide sobre Pirigo.
Neide: Dentro da tabaca, abre a tabaca, dentro da tabaca ta sua mãe e ta a minha
história. (ouve-se as risadas de Vó Maria e Wislayne)

CENA 19 – Imagem Ampliada da bacia de alumínio configurada enquanto


instrumento de percussão (idealizado por Erhi Araújo e inspirado no Ocean
Drum/Tambor do oceano).
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CENA 20 – Mulher da face encarnada de urucum ressurge cantando


vários corpos na Caatinga...
CENA 21 – Imagem de um touro dourado pintado na parede durante a quarentena
com interferências de tons e mãos vermelhas. Continuidade do Canto.
vários corpos no roçado
CENA 22– Imagem de uma cabaça que enche a outra. Prosseguido do Canto.
na cabeça a bacia no espinhaço o facão
CENA 23 – Imagem do fruto cabaça de cuité na altura do umbigo.
embolado no peito
CENA 24 - Imagem de duas cabaças convexas em um movimento de oposição.
vai de pronto a solidão

CENA 25 – Mulher de face encarnada segurando a cabaça-bacia como quem oferece


o alimento que tem.
embolado no peito um bornal de prontidão.

CENA 26 – Depoimento de Neide sobre Pirigo.

Neide: Ai uma calça comprida, uma saia, um casaco, uma blusa, um chapéu, um
facão (ri), uma faca de lado. Esse negócio de mulher delicada, de andar arrumada
(faz sinal de negação com o dedo),Vovó era mulher macho.

CENA 27 – Sequência de boca da mulher encarnada.

Se a caba bota quente por que não bota a mulher? Se o caba pode ser macho eu
posso ser o que eu quiser. 3x

CENA 28 – Depoimento de Iranete, neta de Pirigo, filha de Conena (Marlene).

Iranete: Pera aí caba sem vergonha que eu vou lhe pegar e corria as vezes atrás e o
povo uhu uhu e ficava...

CENA 29 – Depoimento de Conena (Marlene) filha de Pirigo e Dona Maria neta de


Pirigo. (Conena é tímida e só quis dar seu depoimento com Vó Maria junto).

Dona Maria: povo dizia... ai Pirigo, ai Pirigo Braba...


Conena: Não venha não se não eu vou dá-lhe a foice
Dona Maria: Não venha não seu filho da puta se não vou da-lhe a foice.

CENA 30 - Depoimento de Neide sobre a relação de Pirigo com sua Mãe.

Neide: Mercê! ela chamava mãe de mercê. Vá dormir assossegada que eu to por aqui
viu minha fia. Pia a foice (mostrando o tamanho com a mão). Ela disse: pode dormir
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que eu duvido que um macho aqui mecha com você.

CENA 31 – Mulher de olhar tempestivo balaçando um xucalho.

CENA 32 - Imagem Ampliada da bacia de alumínio configurada enquanto


instrumento de percussão (idealizado por Erhi Araújo e inspirado no Ocean
Drum/Tambor do oceano).

CENA 33 – Depoimento de Josilene (Lena) sobre sua bisavó Pirigo.

Josilene (Lena): A fama dela na cidade era que ela era brava, mas ela fazia mesmo
isso, ela não tava nem ai se fosse homem, ela não tinha medo de polícia, de
autoridade nenhuma, ninguém mandava nela, ninguém mandava no que ela falava ou
no que ela dizia não.

CENA 34 - Imagem de duas cabaças convexas em um movimento de oposição

CENA 35 – Retorno da mulher encarnada de urucum em uma sequência de relação


com o fruto cabaça. De cócoras sobre a trama do tapete de retalhos sob o canto da
toada.
no meu ventre eu trago a força de mulher, tantas vidas quero ter...
CENA 36 – Depoimento de Irailda, neta de Pirigo e filha de Conena (Marlene)

Mulher era retalhozinho pequenininho, aqueles retalhozinho pequenininho. Ai ela


pegava na mão mesmo, ai costurava uma por um e fazia aquelas cobertona grande
pra se enrolar e cada um que queria essas cobertas.

CENA 37 – Fragmento de minha mãe Josilene (Lena) tricotando uma colcha/tapete


feita de retalhos de roupas de malha. Dizem que minha mãe tem muito de Pirigo na
disposição do manuseio de tramas. Ao som da rabeca.

CENA 38 – Fragmento de minha irmã Ketlyn pintando uma tela. Ao som do toque da
rabeca.

CENA 39 – Fragmento de minha Avó Dona Maria imitando uma senhorinha com
um feixe de lenha na cabeça no quintal onde se encontra o pilão de madeira que era
usado por Pirigo. Ao som do toque da rabeca.

Dona Maria: To cansada minha fia, vou parar com essa vida que não dá pra eu não.
68 anos não é brinquedo minha fia, de luta e de roçado. E esse feixinho de lenha só
posso trazer esse hoje. Ave maria não posso mais nada mais não. Espero é que
ninguem toque. Vou danar esse danado no chão logo que é o certo.
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CENA 40 – Fragmento de Raul meu filho, com a foto que é guardada como
recordação do encontro de Pirigo e sua primeira Tataraneta, Eu – Wisla/Wislayne.
• Imagem da foto ampliada
Raul: é a fotinha sua mamãe.

CENA 41 - Imagem Ampliada da bacia de alumínio configurada enquanto


instrumento de percussão (idealizado por Erhi Araújo e inspirado no Ocean
Drum/Tambor do oceano).

CENA 42 - Imagem de duas cabaças côncavas boiando na água da bacia de alumínio.

CENA 43 – Depoimento de Ketlyn, tataraneta de Pirigo e minha irmã.


Ketlyn: Na verdade essa é uma percepção das pessoas sobre ela, que era uma mulher
comum se posicionando no mundo naquela época. Toda mulher hoje em dia que se
posiciona é tida como louca, como arrogante, sempre no papel da malvada né.
CENA 44 – Depoimento de Neide que se criou considerando Pirigo sua Avó.
Neide: Ela era braba pra se defender, do preconceito, da rejeição. Por isso eu
entendo assim, que a brabeza dela era assim.

CENA 45 - Imagem de uma cabaça que preenche a outra.

CENA 46 - Imagem da bacia de alumínio com Água e Cabaças de Cuité configurada


como instrumento de percussão inspirada na tina de Guiné-Bissau.

CENA 47 – Depoimento de Ketlyn, tataraneta de Pirigo e minha irmã.

Ketlyn: Então eu interpreto essa brabeza que todo mundo fala, como uma fonte, como
uma mulher, como todas nós, fortes! Só que Pirigo tinha a força de se posicionar e é
um posicionamento difícil pra época dela né.

CENA 48 - Imagem de uma cabaça que completa a outra.

CENA 49 - Imagem Ampliada da bacia de alumínio configurada enquanto


instrumento de percussão (idealizado por Erhi Araújo e inspirado no Ocean
Drum/Tambor do oceano).

CENA 50 – Depoimento de Conena (Marlene) filha de Pirigo e Dona Maria neta de


Pirigo. (Conena é tímida e só quis dar seu depoimento se Vó Maria estivesse junto).

Vó Maria: Eu sou mais, Eu sou mais braba


Conena: Só é do meu jeito. Ou é do meu jeito ou não é.
Vó Maria: Nós tudinho puxemo um pouquinho de vovó né?
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CENA 51 – Depoimento de Neide que se criou considerando Pirigo sua Avó.


Neide: O cachimbo na boca minha filha, olha (mostra com a mão e faz paf paf com a
boca)

CENA 52 - Vídeo do experimento Olho d’água de Pirigo, registrado por Walter Sá


na Mostra de encerramento da disciplina de Encenação II orientada por Makarios
Maia no segundo semestre de 2019 no curso de Licenciatura em Teatro.

CENA 53 - Imagem Ampliada da bacia de alumínio configurada enquanto


instrumento de percussão (idealizado por Erhi Araújo e inspirado no Ocean
Drum/Tambor do oceano).

CENA 54 – Aparição da Mulher Encarnada de urucum cantando o aboio.

Trazendo a cria na anca e na mão o seu facão.

CENA 55 - Uma boca que retorna a comunicar

Quer comida, quer poder, a sobrevivência é maior que o pensamento!

CENA 56 – Fragmento do depoimento de Vó Maria

Vó Maria: Sou Pirigo daquelas que mato na unha, assim ó (mostra movimento com
as mãos)

CENA 57– Mulher de olhar tempestivo

Ser ou não ser Pirigo?

CENA 58 – Retorno da Mulher Encarnada de urucum cantando o aboio.

Se o cabra pode ser macho eu posso ser o que eu quiser (gargalhada)

CENA 59 - Recorte do experimento Olho d’água de Pirigo, registrado por Walter Sá


na Mostra de encerramento da disciplina de Encenação II orientada por Makarios
Maia no segundo semestre de 2019 no curso de Licenciatura em Teatro realizado no
Teatro Jesiel Figueiredo .
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CENA 60 – Créditos finais.

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Conclusão

Chego ao fim desse processo considerando que nas jornadas poéticas a angústia e a dor são
similares às do nascimento e da morte. Pirigo é memória e é processo de criação espetacular.
Conseguimos, eu e ela, nós e todas as mulheres negras de nosso mundo. Assim, à guisa de
conclusão, destaco alguns pontos de profundo valor para a aprendizagem que aqui se deu. Dentre
eles, a própria composição de um corpus de pesquisa e de composição poética, emerge como um
saber em atmosfera cosmológica.

Por outro aspecto, ter exercitado uma reflexão densa acerca de processo de memoriografia,
de processos criativos realizados no transcurso de uma licenciatura em teatro, de ter que “relatar”,
quando queria mesmo era criar, foi um outro tipo de saber conquistado. Nisso, relatar o que vivi fora
da Licenciatura e nela, vivendo os componentes curriculares que substanciam a pesquisa
preparatória de “Pirigo”, foi outro grande ganho.

As bases de conteúdo teórico e de linguagem, construídas no percurso da escrita desse


trabalho pode mesmo ter sido o maior desafio, seus resultados mais significativos. Pois, precisava
disso para compreender as matrizes da cena, para poder fazer reflexões críticas sem perder o corpo
criativo que permeia minha existência.

A realização de um espetáculo teatral já é infernal, em sentido de ser um desafio sem


tamanho. A realização de outro produto, como é o caso do audiovisual, por vontade e por
necessidade, na dimensão de estarmos um período de pandemia, com todos os “demônios” do
colonialismo me atormentando (e atormentando a vida), tornou tudo mais difícil, precisei ser Pirigo,
de verdade.

Outro ponto que destaco é o diálogo teórico que precisei elaborar com autores
contemporâneos, do decolonialismo, a partir da problemática desse trabalho. Pesquisar esses
conceitos em nova chave, escorrendo dos engenhos do patriarcado, da submissão teórica, sem perder
as conexões com os teóricos relevantes da área, foi um bom desafio. Discutir o “espetacular”, o
espetáculo, a espetacularidade, em boa medida, parte do teatro contemporâneo, da performance, sem
cair nas armadilhas acadêmicas do patriarcalismo colônia e, ainda, fazer um reflexão crítico-criativa
foi muito bom.

Em relação à dimensão metodológica do trabalho, considero um ganho significativo a


realização desta pesquisa, por estabelecer uma lógica orgânica à criação poética, tomando como
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base sistemática elementares (revelados e criado) do meu processo criativo. Sinto que me fortaleci
ao nortear minha escrita com gestos ancestrais como: adubar a Terra; mirar-me no espelho d´águas
do tempo e das mulheres do meu imaginário; poetizar femininamente com as M(AR)IAS, ar no
meio do corpo criativo, gestando atmosferas; respeitar as fagulhas dos atritos dos facões,
considerando que viver é resistir e resistir é lutar.

Adubar a Terra foi uma fase poderosa do trabalho, por dizer respeito ao conhecimento,
quando tive que fazer levantamento de referências bibliográficas propícias ao estudo e à pesquisa,
respeitando posições de enfrentamento, quanto à imagem material e poética dos elementos usados,
em uma perspectiva decolonial.

O conjunto de estratégias de mapeamentos, de conexões, que esse objeto de estudo me


exigiu, está centrado na própria produção artística e etnográfica, buscando ser corpo de mulher e,
mais que isso, ser corpo de mulher negra, cabocla, na tentativa de adubar e fecundar outras texturas
e outros fundamentos que possam suscitar esta criação.

Mirar a mim e ao mundo no espelho d’água ancestral foi me constituir basicamente como
um ser individual, carregado de subjetividade, em uma teia coletiva. Os laboratórios de criação que
desenvolvi foram base essencial, no sentido mais regular da formação acadêmica, pois ampliaram a
percepção do universo contextual.

Olhar em torno é fundamental, ainda mais, em uma situação de isolamento pandêmico, como
esse, em que o objeto de trabalho foi criado. Assim, esse processo se garante como uma
encruzilhada de percepções e, ainda, como um “lugar” onde ele e o poder de mulheres negras
pudesse ser encontrado.

Além do mais, a leitura, como espelho, foi também um instante de mergulho no campo
sensível e virá a ser objeto da criação. Daí, a criação de uma atmosfera de ataque, exercício crítico-
reflexivo de profundo valor identitário em que o objeto criado é, em seguida, atravessado pela busca
do contexto ancestral que o fundamenta, especialmente, na memória/voz de uma oralitude de
mulheres velhas. Nessa perspectiva, os laços afetuosos que o fizeram existir são a conexão da
materialidade do objeto com minha formação.

A fagulha dos facões é o instante em que as memórias experenciadas no corpo são capazes
de emergir da encruzilhada materializando-se em grafia, ou melhor afrografia de cruzamentos
ancestrais. Considerando a materialidade objetivada do que foi o processo e do que é o produto da
criação. É um momento de reflexão e de retroalimentação dos afetos. É a apresentação das fagulhas
do território conquistado.
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Por derradeiro, como diria Vó Maria, acredito na força política dos caminhos que me
levaram a este projeto e no seu valor diante do espaço social de nossa sociedade. Ele se entende
enquanto ação política ao manifestar um processo de afirmação de identidade nas artes cênicas.
Também, acredito que seria uma loucura da minha parte não me inscrever nas páginas do
conhecimento acadêmico com o Oid’água e com Pirigo.

De alguma forma, não me expressar nesse ambiente, com esse valor, seria como se eu
cometesse um epistemícidio do meu corpo e da minha voz. Essa é a dimensão cíclica do meu
processo que reivindica lugares discursivos por meio das imagens. Eu recorro às imagens
(lembranças, memórias, imaginações, devaneios etc.) das narrativas e outras poéticas dos povos
originários e antigos de minha família, que me chegaram na voz de minha vó, nas artes da minha
mãe e ressoará na vida de meus filhos.

A exemplo dos cantos de infância, das tramas do crochê, das histórias antes de dormir, entre
tantas possíveis histórias, emerge e figura de valentia de minha tetravó Pirigo, a cabocla Josefa
Maria da Conceição, que me empresta seu apelido, enquanto metáfora deste corpo encruzilhado, me
faz matéria do vermelho dos ventos de Oyá e me ensina a viver.
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ANEXOS
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