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Orientação:
Prof. Me. Makarios Maia Barbosa
Natal/RN - 2021
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Natal/RN - 2021
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Banca Examinadora:
__________________________________________________
Prof. Me. Makarios Maia Barbosa
(Orientador – DEART/UFRN)
__________________________________________________
Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek
(Examinador Interno – DEART/UFRN)
__________________________________________________
Prof.ª Ma. Naara de Oliveira Martins
(Examinadora Externa)
Natal/RN - 2021
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AGRADECIMENTOS
Agradeço aos orixás e aos encantados pelos sinais deixados no caminho, os quais me
serviram de orientação durante o desenvolvimento de minha macumba epistemológica.
À Josefa Maria da Conceição (EM MEMÓRIA), por transmitir pela lâmina afiada de
seu facão, sua valentia encarnada em Pirigo. À todas as suas descendentes por abrigar essas
memórias que anunciam vestígios dessa mina de água.
À minha Vó materna Dona Maria, neta de Pirigo, por se manter viva por meio da
tradição oral e ser sempre um portal de escuta e sabedoria. À minha Mãe Lena que me ensina
o poder do feitio e da artesania. À minha irmã Ketlyn por me mostrar com sua dedicação que
há sempre novas formas de se aprender algo novo. Ao meu pai Edgar por compartilhar
canções de protestos e caminhos percorridos para minha sustentação.
Ao meu companheiro Raian Araújo por sua ginga e seu dengo, chamego que caminha
junto a mim nesse processo que é viver, por estar e ser presente na vida de nosso filho Raul.
A Raul pedaço de mim e do mundo, por me fazer lembrar de como é criar em um universo
emLUARado de criança. À cria que está nesse momento sendo gestada em meu ventre.
Ao meu ori-enta-dor Makarios Maia Barbosa, por me fazer acreditar na força da
minha pesquisa me guiando com toda a sua sabedoria, apreço, poesia e dedicação. Sou
imensamente grata por ter cruzado em seu caminho. Atotô!
Meus agradecimentos aos amigos e colegas que atravessaram meu caminho, na vida e
ao longo desse período de graduação, seja os de dentro da academia ou os de fora. Ao terreiro
criativo do Grupo de Teatro Nó onde dei meus primeiros passos rumo aos palcos. Ao breve
Coletivo filhas de Eva pelos rituais alquímicos, simbologias de tarot e toda força da bruxaria
sinestésica do criar entre mulheres.
À Alessandra Augusta e Roberta Barbosa, “meu bandivéias”, à Luana Cavalcante, por
me instigar a individualidade genuína de SER; à Eva “Cabocla de Jurema”, à Tiquinha
Rodrigues, à todas as integrantes do Coco de Rosa pela força das rodas, dos giros e das
mulheres artistas que são, toda minha admiração.
A Éric Medeiros, Guga Medeiras e Pamela Dutra que estão comigo desde o primeiro
dia de aula, partilhando fontes de estudo, conversas e arengas enriquecedoras. À Camila
Morais e Raiza Flores que compartilham comigo o processo de criar gente e alimentam meu
corpo clareando a mente e a alma. Às minhas amigas & “psicólogas” Isabella Reges, Mab
Abreu, Patrícia Amorim e Raquel Martins que sempre quando possível contribuem com suas
percepções diante das minhas buscas.
À tríade: TVU RN, COMUNICA e AGECOM 1 pela bolsa de apoio técnico que me
permitiu partilhar desse espaço e me deu a oportunidade de viver a experiência de ser
maquiadora e auxiliar de produção, aprendendo um pouco mais sobre os processos de
comunicação de compromisso ético e responsável pela formação cultural dos cidadãos.
Minha gratidão terna por ter conhecido Rosália Figueirêdo, Erica Lima, Joana Darc Arruda
entre tantos outros guias e mestres que conheci nesse espaço de resistência.
Ao PIBIC, CNPq e a professora Naira Ciotti, pela bolsa tecnológica de iniciação
científica do projeto Performances e Mulheridades, território virtual de muitas trocas e afetos.
1
TV Universitária da UFRN e Agência de Comunicação dessa instituição.
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AFROAMERINDIA – COISALUZ
Composição de Bianca Cardial,
Dayanne Nunes, Flávia Fagundes,
Roberta Lúcia e Viviane Vaz. USE O CELULAR E O
APLICATIVO DO QRCODE
PARA OUVIR
AFROAMERINDIA
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RESUMO
A presente pesquisa tem como objetivo relatar os múltiplos processos formativos que se
encruzam e se organizam diante da criação que nasce do fluxo de memórias e registros
autobiográficos, ao tempo em que produz reflexões, na perspectiva teórico-filosófica da
contemporaneidade em aproximação ao pensamento decolonial e emancipatório,
fundamentando-se na encruzilhada de Exu (orixá dos caminhos e do fogo), enquanto lugar de
afirmação conceitual e político-epistemológica. O presente trabalho investiga os processos de
pesquisa e experimentação que produziram a obra poética e identitária Oid’água, construída ao
longo dos últimos dois anos (2019/2020). Oid’água é uma escrita visual e etnográfica
atravessada pela persona Pirigo, que nesta proposta configura-se como corpomídia (GREINER,
2005) e corpo-encruzilhada (RUFINO, 2019), para discutir como a encruza de memórias,
imagens sonoras e visuais, durante um processo criativo de ritualização, pode trazer à tona
reminiscências ancestrais, mitos e cruzamentos cosmológicos. Partindo dessa condição de
registro de memória, é possível compreender uma jornada muito mais ampla, desenvolvida e
vivida no Curso de Licenciatura em Teatro da UFRN. A partir de entroncamentos
metodológicos de um corpo “em estado de ataque”, esse trabalho descreve e reflete acerca do
processo criativo, tomando como matéria expressiva a poética dos corpos criativos de mulheres
afroameríndias.
ABSTRACT
The following research objective is describing the formative processes which intersect and
organize themselves in front of the creation that arises from the autobiographic memories
flow. This study also raises considerations under a philosophic-theoretical perspective over
the contemporaneity approaching decolonial and emancipative thoughts, substantiating itself
in the Exu (orisha of paths and fire) crossroads as a place of conceptual and political-
epistemological affirmation. Besides that, the work investigates the research and
experimentation processes which produced an identity and poetic work Oid’água, constructed
over the past years (2019 and 2020). Oid’água is a visual and ethnographic writing crossed by
the persona Pirigo, which in this proposal configurates itself as a corpomídia (GREINER,
2005) and body-crossroads (RUFINO, 2019), because it aims to discuss here how the
crossway of memories, sound and visual images, during a creative process of ritualization, it
brings to light ancestors’ reminiscences, myths and cosmological crossings. Leaving from
this condition it is possible to comprehend an extended journey through the conclusion of the
Theater Degree at UFRN (Federal University of Rio Grande do Norte). Based on
methodological junctions of a body "in a state of attack", this work describes and reflects on
the creative process, taking as an expressive matter the poetics of the creative bodies of Afro-
Indian women.
LISTA DE IMAGENS
LISTA DE ANEXO
SUMÁRIO
Introdução ......................................................................................................................................15
Parte I – Atmosfera de Ataque de Um Corpo – Encruzilhada .................................................19
1.1 – Um Corpo-Encruzilhada.......................................................................................................19
1.2 – “ABRE A TABACA! Dentro da tabaca está sua mãe e minha história” ............................ 23
1.3 – Eu sou um OID’ÁGUA que brota da CABAÇA .................................................................34
Parte II – PIRIGO e as Ancestralidades de um Corpomídia ....................................................40
2.1 – O Corpomídia de uma MULHER NEGRA .........................................................................41
2.2 – Um Corpo que abriga a vida, um Corpo que briga e é brabo ..............................................45
Parte III – OID’ÁGUA .................................................................................................................48
3.1 – As MANDIGAS fluentes na terra da MACUMBA .............................................................49
3.2 – A CABAÇA | CABEÇA | CABAÇO como ORIGEM ........................................................55
3.3 – A descrição de Oid’água ......................................................................................................59
Conclusão .......................................................................................................................................67
Referências .....................................................................................................................................71
Anexos ............................................................................................................................................73
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Introdução
A pàdé olóònòn e mo juba Òjísè
Àwa sé awo, àwa sé awo àwa sé awo
Mojúbà Òjisè2
Antes do início, peço licença ao dono do corpo, senhor das encruzilhadas, dos
caminhos, das portas, orientador da comunicação, Exu, pois esse trabalho se apresenta
enquanto prática decolonial e emancipatória, ferramenta de orientação que visa contribuir para
que os domínios e princípios que são ontológicos nos entendimentos que se podem fazer do
orixá Exu, pautam a encruzilhada como lugar de afirmação conceitual e político-
epistemológica.
Oid’água é uma escrita visual e etnográfica atravessada pela persona Pirigo, que nesta
proposta configura-se como Corpomídia e Corpo-Encruzilhada, pois, visa aqui discutir como a
encruza de imagens sonoras, visuais durante um processo criativo de ritualização pode trazer à
tona, reminiscências ancestrais, mitos e cruzamentos cosmológicos.
O professor Luiz Rufino (2015) discorre que Exu, enquanto orixá, compreende-se
como um princípio cosmológico. Dessa forma, é sobre a sua figuração e seus efeitos que no
complexo cultural nagô se compreendem os princípios explicativos de mundo acerca da
mobilidade, dos caminhos, da imprevisibilidade, das possibilidades, das comunicações, das
linguagens, das trocas, dos corpos, das individualidades, das sexualidades, do crescimento, da
procriação, das ambivalências, das dúvidas, das inventividades e astúcias.
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Vamos encontrar o senhor dos caminhos e meus respeitos àquele que é o mensageiro. Vamos cultuar,
vamos cultuar, vamos cultuar. Meus respeitos àquele que é o mensageiro.
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performático, em que o teatro, que busco compreender e apreender, se implique. Tal processo
gira em torno da figura simbólica e sintomática de minha tetravó, Pirigo, como ficou famosa
na cidade de Cuité, na Paraíba, que aqui considero um dos veios mais potentes da minha
criação que compõe a base ontológica do Corpus desse trabalho.
Nessa pesquisa, inicialmente, busquei ter uma compreensão do que venha a ser o
fenômeno criativo que gera eventos espetaculares, o próprio espetáculo, a espetacularidade,
enfim, e seguiu a evocação da percepção de fatos e sentimentos autobiográficos, da minha
história pessoal, como memória autobiográfica propriamente dita, relacionadas às angústias
que me perpassaram nessa jornada.
Esse trabalho, portanto, busca descrever e refletir acerca do meu processo criativo,
tomando como matéria expressiva três aspectos da minha criação, denunciados em três questões
fundamentais: 1) “O que pode o corpo criativo de uma mulher Afroameríndia?” 2) “Quais são
as matrizes dessa criação poética?” e 3) “O que é criado quando a mulher se destina a refletir
3
Doravante, tratarei por “Licenciatura” o Curso de Licenciatura em Teatro da UFRN.
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Tão necessário evidenciar que todo o esforço de um trabalho como esse é ainda o
esforço de combater o epistemicídio que se praticam contra a gentes que não se enquadram na
perspectiva produtivista de uma economia acadêmica do etnocentrismo eurocêntrico.
Assim, as fases elementares do processo criativo, que também norteiam meu caminho
investigativo, são: 1) aproximação referencial efetiva; 2) leitura; 3) descrição material; e 4)
síntese afetiva. Considerando que:
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Parte I
Atmosfera de Ataque de Um Corpo - Encruzilhada
Atmosfera de ataque é uma metáfora que me excita e me estimula a ser quem sou e buscar
combater nessa guerra que travo, todos os dias, para conseguir escreviver o que sou. Para isso, me
fundamento em uma perspectiva teórico-filosófica da contemporaneidade em aproximação ao
pensamento decolonialista.
[...] Atmosfera: é ar que se respira. Ela envolve os corpos. O planeta Terra tem uma
atmosfera, assim como cada cidade, cada bairro, cada indivíduo. Para cada situação em
que o indivíduo se encontra certamente instala-se uma atmosfera. A expressão o ar que se
respira se reproduz por toda a qualidade energética que circunda os corpos. Na percepção
da atmosfera vemos cores, texturas, ritmos, imagens, ondas em frequências. Logo esse ar
que se respira revela aspectos do meio e interage conosco. A atmosfera pessoal interage
com a atmosfera do meio. No teatro, é o elemento fundamental da criação. Instalamos
atmosferas o tempo inteiro, cena após cena, e fazemos atmosferas interagirem. A cor do
espetáculo está na capacidade de transitar por atmosferas diferentes. Assim como se pinta.
1.1 Um CORPO-ENCRUZILHADA
[...] situa a decolonialidade como projeto que teve origem simultânea ao início do sistema-
mundo moderno/colonial, sendo que este organiza diferenças e desigualdades entre povos
a partir da idéia de raça. [...] destaca como característica distintiva do projeto decolonial a
produção do conhecimento e as narrativas a partir de loci geopolíticos e corpos-políticos
de enunciação.
narrativas enunciativas de sujeitos que até então sempre estiveram postos de fora da discussão
teórico-filosófica do sistema (mundo) exatamente a partir desses loci de enunciação de corpos
colonialmente marginalizados, excluídos, invisibilizados; quer seja, por sua tradição geopolítica,
por sua etnia, por sua cultura, gênero, sexualidade etc. Os pesquisadores chamam a atenção para
todo um outro sistema de produção de conhecimento e de novos produtos que podem emergir
desse existir, a partir de uma perspectiva afroameríndia, tanto dos povos daquele que foi chamado
no projeto “pós-colonial” de diáspora negra, quando dos povos originários das Américas e Caribe.
O corpo, então, passa a ser o lugar primordial de nossa criação. O corpo aqui
compreendido em suas dimensões sensíveis e perceptivas totais. Não me asseguro no pensamento
ou na ideia ou na lógica teórico-filosófica para garantir o reconhecimento da voz que emana desse
corpo. É óbvio que faço usos dessas estratégias racionalistas de produção acadêmica, para esse
trabalho, mas não limito minha escrita a elas. A criação e seu processo só nos é possível pelo
reconhecimento do corpo total (sensível, perceptivo, cultural, filosófico, político, técnico, criativo,
crítico, afetuoso etc.).
A transgressão, aqui, tem valor de método. A esse respeito, nos fala o professor Rufino
(2015):
[...] me debruço sobre parte das sabedorias africanas transladadas para o atlântico
compreendendo-as como princípios táticos (Certeau, 1997) para defender a perspectiva de
uma narrativa transgressora que desestabilize a linearidade dos discursos coloniais
entoados pelo monologismo ocidental. (RUFINO, 2015, p. 01).
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A criação artística em nossos corpos de mulheres afroameríndias é acatada aqui não apenas
como transgressão emancipatória, mas como enunciação de novas práticas, tanto de criar, quanto
de existir. Nesse sentido, essa pesquisa também se destinou a enfrentar os “demônios” da
sabotagem hereditária e do apagamento de nossa sensibilidade. O ataque a que nos submetemos,
por anos, centrado nas forças materiais e discursiva da tradição branca e patriarcal deve encerrar-
se aqui. Não acatamos mais tal herança contaminada de inibição/erotização, de coisificação, de
invisibilização, de negação, de apagamento e de recalque.
Para isso, precisamos enfrentar a atual pedagogia, colonialista e higiênica, para elegermos
uma outra pedagogia para a (e de) criação. E essa, centrada na ideia de um corpo-encruzilhada.
Conforme nos aponta Ramos (2017).
A encruzilhada é um dos simbolismos mais antigos dos domínios e potências das forças
que agem no cruzamento de caminhos, de vias, de rumos. Para o professor Rufino (2015, p. 02), “a
encruzilhada tanto nos apresenta a dúvida, como nos apresenta caminhos possíveis”.
Porém, entre o que está presente na cosmologia iorubana e o que foi ressignificado nas
bandas de cá do Atlântico há algumas questões. Esses nós, atados no ir e vir dos cursos da diáspora
africana e nas complexidades dos cotidianos coloniais dão o tom das problemáticas que envolvem
a formação da sociedade brasileira e a presença das sabedorias africanas aqui reinventadas. (p. 02)
Transfiro a voz da narrativa, vez ou outra, da terceira para a primeira pessoa, considerando
a necessária apropriação desse direito e a legitimidade que tenho nessa narrativa. E faço isso para
poder reconhecer meu corpo e seu entrecruzado de múltiplas experiências que o forma e do
universo em que ele está mergulhado como o ninho onde teço minha criação.
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[...] Essa pedagogia busca trazer questões e pluriversalizar (RAMOSE, 2011), a educação
no contexto da colonialidade, desde a formação dos profissionais até a produção de
questionamentos sobre as práticas pedagógicas exercidas na escola.
A principal força desse projeto é trazer Exu como disponibilidade, matriz/motriz
política/ética/estética/epistemológica/teórica/metodológica.
Nesse sentido, ressalto que Exu foi ao longo do tempo invisibilizado/descredibilizado por
parte da colonialidade/modernidade-ocidental, pois é um princípio que confronta suas
lógicas de dominação e violência. (RUFINO, 2019, p. 265).
E entre as histórias, emerge e figura empoderada de minha tetravó Pirigo (grifado assim,
mesmo, com “i”, no lugar do “e”), isto é, de dona Josefa Maria da Conceição, uma mulher que
nasceu e viveu nas terras paraibanas e potiguares, mas fundou-se persona em Cuité (PB), onde
gerou família e identidade, guiada a golpes de facão.
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1.2 “ABRE A TABACA! Dentro da Tabaca está sua mãe e minha história!”
Nessa fala, frase, grito, enunciação, evocação de Pirigo exponho minha condição de
corpo. Para isso, preciso escrever minha jornada.
Nasci no segundo domingo de maio, Dia das Mães, hora do almoço, no dia 09 de 1993.
Ao escrever e falar sobre a minha criação, preciso evidenciar que esse dia das mães veio
acompanhado do desejo de forjar uma nova realidade, para além de uma data com fins
comerciais, ela carrega em si a ontologia da criação, do nascimento e da morte em vida, que nos
eleva a um novo estado de existir. Minha mãe me pariu em terras distantes das de seus
ancestrais, situação que oportunizou a fuga de Vó Maria de um casamento abusivo. Assim ela
pode colaborar com a criação da primeira neta. Quando penso em matrizes que motivam a
minha angústia e a minha criação é desse lugar no mundo que me projeto.
Aos 9 anos, dançar já não parecia bastar e o desejo era de subir aos palcos para também
cantar. Habitualmente quando meu pai chegava de uma viagem trazia consigo um CD cheio de
músicas, com histórias de festivais, para ouvirmos juntos, durante sua passagem por casa.
Iniciou-se aí, o meu gosto por cantar e consequentemente minha jornada de festivais de
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músicas, sobrevivendo por muito tempo sem saber o que era uma afinação ou o que viria a ser
um tom. A técnica não foi a primeira a vir e a experiência de estar em suspensão em um palco
era o que sustentava a vivência do corpo.
Aos 13 anos, fui convidada para assistir um ensaio aberto do único grupo da cidade
conhecido por Teatro Nó. No mesmo dia, fiz um teste de elenco, sendo convidada pelo atual
diretor Genival Soares a somar com o coletivo, tanto na área de atuação, quanto na área de
cenografia e figurino. Foram 7 anos de trabalho no grupo e nos últimos anos atuei como
instrutora, realizando oficinas e apresentações em programas como o PROJOVEM e o P.E.T.I
na Secretaria Municipal de Assistência Social, da cidade de Nova Olimpia, até o ano de 2012.
Deixei meus pais, minha avó e minha irmã sem notícias. Para muitos, uma atitude
irresponsável, porém, é importante ressaltar que o sonho tomava conta do corpo e medo nenhum
fazia morada, eu estava disposta. Passei no T.H.E. e ingressei no curso, no primeiro semestre de
2014. Logo depois de dois meses, consegui uma vaga na Residência Estudantil, através das
políticas da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis – PROAE.
teatro em terras nordestinas ao invés de sonhar com o eixo Rio/São Paulo. Quiça eu estava
destinada a resgatar essa ancestralidade que me era até o momento inconsciente. A verdade é
que nunca soube responder, mas é justamente nesse estado de cruzamentos e influências
culturais e do desejo de pertencimento, sobrevivência e criação que meu corpo fluente segue o
curso das águas e dos ventos que me trouxeram até esse exato momento da sua leitura.
Se nasci no pé de uma cachoeira e estava habituada a ser firme para não escorregar nas
pedras e ser carregada pela correnteza, minha jornada acadêmica foi, assim, como um oceano.
Frente a imensidão do mar, na terra do sol (Como chama a cidade de Natal-RN), custei para
perceber o exercício de pairar sobre as ondas. Me vejo aqui debruçada sobre a escrevivência
(neologismo epistemológico de Conceição Evaristo na investida de fundir/confundir vida e
obra) de minhas memórias e de como meu corpo atravessa essas águas tentando estruturar uma
hidrológica dos percursos que se encruzilharam em meus processos de criação.
Realizei minha cartografia no papel duas vezes. Na primeira tentativa criei rabiscos para
entender quais eram os marcos que eu julgava ser importante destacar em uma construção de
uma história sobre mim, assim como faço agora nesse momento. O desafio era de fato o espaço
e o tempo, visto que eu já tinha percorrido tantos lugares e como forasteira tinha vontade de
contar tantas coisas que parecia improvável resumir tudo em 10 minutos. Na segunda tentativa
busquei ser imagética desenhando e pintando símbolos que afetivamente representavam esses
locais.
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Toda a experiencia sinestésica com as cores iam se moldando ao som de canções que
assentavam minha mente na época como “La valse d’Amelie”, trilha sonora do filme O
fabuloso Destino de Amélie Poulain (2001), composta por Yann Tiersen, seguido da canção
Terezinha, composta por Chico Buarque, na interpretação de Maria Bethânia e finalizado ao
som da canção Rimar e Voar, de Branco Barros, um amigo compositor mato-grossense.
Os três semestres seguintes foram águas turbulentas, quando precisei assimilar toda uma
enxurrada intensa de vivências e diferenças culturais as quais estive inserida, precisando, então,
suspender minha matrícula na Licenciatura, durante um ano e meio, na busca de estar mais perto
de minha família e reencontrar forças de retomar a maior encruzilhada de minha vida.
Iniciamos os trabalhos práticos com os quatro elementos como temática propulsora dos
movimentos corporais. Os laboratórios desenvolveram-se sob a criação do Coletivo Filhas de
Eva, onde os procedimentos atuavam sob o campo do imaginário e do inconsciente coletivo. Da
união simbólica, emergiam figuras arquetípicas, associadas aos arcanos maiores do tarot, as
fases da lua e faces da Deusa, todo o processo buscava se associar ao movimento criativo de
natureza alquímica.
O processo, em todos os aspectos, reunia símbolos que contribuíam para a construção de
uma espécie de tempo matrilinear ancestral e cíclico envolto de um caos que se instaura em
busca da compreensão dessa psiquê feminina adoecida pelas estruturas patriarcais de um
sistema.
As matrizes que davam origem as personas tinham como base as fases da lua,
apresentando os seguintes arquétipos da Deusa; lua crescente aspecto da DONZELA, lua cheia
a MÃE, lua minguante a FEITICEIRA e na lua nova a ANCIÃ/BRUXA, tudo amalgamado com
base nos processos das atrizes Isadora Gondin, Thâmara Cunha, Aryele Paola, Alala Cabral e
mais tarde Pamela Dutra. As cenas dialogavam também com os seguintes arcanos; o Louco, a
Sacerdotisa, O mundo, A roda da fortuna, A lua e o Sol.
O espaço era composto por panelas de barro e de alumínio; colheres de pau; adereços
cênicos de sisal madeira e palha; tecidos vermelhos pelo chão; colcha de retalhos; um varal de
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Matriz: órgão das fêmeas dos mamíferos onde se gera o feto; útero; madre
[...] que é fonte ou origem; principal; primordial. [...] A matriz, entendida
como órgão onde se gera o feto, o útero, é a célula criativa do ator. Ela, como
material inicial, pode ser moldada, remodelada, reconstruída, segmentada,
transformada em sua fisicidade no tempo/espaço, tendo, como única
condição, a necessidade de se manter seu “coração”, o ponto de organicidade
que não pode ser perdido, que é a essência da ação/matriz, ou seja, sua
corporeidade. (FERRACINE, 1998, p. 104).
“uma mulher como um homem”. Trata-se de uma iyagbá (iyabá ou aiabá), termo usado
no Candomblé para definir os orixás femininos. Iansã, segundo a tradição oral, seria o
orixá feminino guerreira, senhora das tempestades, das nuvens de chumbo, da guerra no
céu, que, na terra, pode assumir a forma de búfalo para realizar seus feitos. É
considerada a senhora dona magnânima do seu destino, a mãe real de toda mudança,
dona da transformação.
Este laboratório abriu meus caminhos em direção ao encontro das minhas
ancestrais e tornou possível o processo de investigação de si, enquanto ser criadora e
corpo de significações que se movimenta, que é memória, produz memória e é sujeita
dela para existir.
A construção da memória nacional processa-se por meio da disputa. Michael
Pollak, em seu texto “Memória, Esquecimento, Silêncio”, reconhece que
[...] a referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das
instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo,
sua complementaridade, mas também as oposições irredutíveis. (POLLAK,
1989. p. 7).
[...] capturada não exatamente pelo que é, mas nas relações que agencia,
como relações de diferenças, entre eu e não eu, eu e outro, pessoas e pessoas.
A persona surge com o próprio ato. Trabalha enquanto anda: no percurso.
(...). Ao mesmo tempo em que é polivalente (é várias pessoas ao mesmo
tempo, administra contradições, vive estados diferenciados e transitórios
durante a performance etc.), a persona traduz tudo isso em ambiguidade
profunda. E pode, através do processo performático, da travessia artística,
construir uma experiência consistente. (...) A persona é o estado performático
do devir, da transformação constante, que leva à construção e à dissolução,
ao outro. É também a compreensão da perenidade da pessoa.
(CARVALHAES, 2012, p. 109-111).
Essa cabocla encantada cruza meu caminho “[...] em pleno corpo físico, em todo
sólido, todo gás e todo líquido, em átomos, palavras, alma, cor, em gesto, em cheiro, em
sombra, em luz, em som magnifico”. É na significação da poesia de Caetano Veloso,
enquanto ponte que me atravessa e traduz nesse conglomerado de palavras, a
experiência criativa desse tramado de ações retalhadas, que componho a textura do
vídeo arte documentário experimental (sei que a definição é extensa demais e ainda
estou por assimilar a definição dessa obra híbrida) de nome Oid’água sobre o corpo de
Pirigo e os escoamentos de sua performance.
A esse propósito, a maioria dos escritos sobre tem sido unânime, desde os
trabalhos memoriais, a exemplo dos relatos mais etnográficos (embora poetizados
didaticamente) do mestre Stanislavski; ou as abordagens acerca da criatividade e dos
processos de criação em arte, realizados pela artista Fayga Ostrower, desenvolvidos a
partir de um enfrentamento da condição histórica, social e psicológica dessa criação; ou
até os trâmites da abordagem do imaginário de pessoas acometidas por transtornos
psíquicos, como na obra da Dr.ª Nise da Silveira – há sempre uma parcela de
humanidade vida, de dor, de ressignificação, de autodenúncia, se desdobrando na
criação artística.
Foi no início do segundo semestre de 2019, que recebi minha avó materna Maria
Francisca Pereira para passar uns dias em minha casa. Eu estava inundada nas pesquisas
sobre a mitologia de Iansã também conhecida por Oyá e nesta mesma semana antes dela
chegar havia rabiscado na parede da sala de minha casa a cabeça de um búfalo inspirada
na ilustração de Josias Marinho do livro “OMO-OBÁ – Histórias de princesas” de
Kiusam de Oliveira. Minha Avó é uma senhorinha bastante curiosa e conversadeira, não
estudou e nem sabe escrever, mas se comunica como ninguém com seu corpo ao contar
uma história, ela incorpora as ações e os personagens em sua fala com uma riqueza de
detalhes... “Sabe do porquê a véia aqui lembra dessas coisas? Porque eu sou é VIVA!”.
Foi nessa ocasião que ela decidiu me contar sobre a história do aborto que sofreu
sua avó Pirigo na beira do Oid’água da Serra na cidade de Cuité na Paraíba. Reparo que
a energia de meus processos que me levam ao encontro com Oyá em cruzamento com a
história de minha avó me permite um encontro com a memória de um movimento
ancestral. Como em uma espiral, uma narrativa do passado retorna ao presente com
forte similitude.
É a partir desse laboratório onde se encarna uma mulher que carrega dentro de si
um animal selvagem e que não consegue chorar a morte do filho, é da narrativa que
minha avó traz dessa ancestre tão próxima a qual eu conheci, mas até o momento nunca
havia dado atenção, que identifico um movimento ancestral de comunicação, de comum
ação desses corpos de sabedorias encarnadas em esquemas corporais. É dessa gestação
interrompida que uma acaba por parir à outra, fazendo nascer da cabeça e da cabaça
força vital originária. É do mito de Iansã que reconheço o fundamento que resgata
Pirigo, enquanto força da natureza que rege minha vida.
É do corpo tempestivo e do corpo de mulher cortante que reivindica território,
são as representações nativas do passado que me são atualizadas nesse processo, é a
respeito de sobreviver, mas também sobre viver e afirmar que essas presenças sofreram
e sofrem apagamento enquanto atores de uma história que precisa ser contada e
recontada quantas vezes for necessário. São fagulhas de golpes de um facão, que forja
essa história, que aqui no agora vos entrego.
Por que a imagem desse corpo de mulher negra, dona de seu movimento e da
força de sobreviver friccionava tanto a realidade ao ponto de se tornar “Pirigoso” para a
cultura instaurada? Compreendo a relação do meu corpo com esta memória, pelo viés
ancestral e cultural do corpo que pertence a um coletivo e suas reminiscências.
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Qual vida abriga esse corpo que estou aqui a dissertar? O que impulsiona esse
corpo a este movimento de raiva e confronto? Foram 10 horas de filmagem entre
depoimentos e paisagens do território a qual abriga sua memória. A percepção dos
entrevistados sobre a performance do corpo de Josefa Maria da Conceição – Pirigo são
relatos sobre; sua aparência já que não performava o feminino e sua vestimenta
sertânica com seus paramentos (facão, foice e cachimbo); sobre seu senso de partilha,
coletividade e cuidado em relação a seus familiares e vizinhos; sobre o alimento que
preparava e de como ela caçava, da sua relação com um enorme pilão construído com a
força de seu facão onde ela moía o milho pra fazer fubá; de como conhecia a terra e
adivinhava as horas pelo sol; como compartilhava em cuias de cuité ou de coco o
alimento entre os seus vizinhos e mais necessitados; sobre como reutilizava tecidos
doados para construir cobertas de retalhos; principalmente sobre seu temperamento que
para uns era típico de uma mulher braba e para outros loucura; por sua ação de
confrontar tudo que a fizesse sentir desaceita; dos gestos que eram respostas a opressão
e como resolvia tudo com base em giros faiscantes no chão com seu facão e as
“carreiras” provocadas, ato que se encerrava em sua gaitada de deboche.
Dentre os depoimentos presentes no filme, quero destacar a priori dois
fragmentos. Um é de minha irmã Ketlyn e ela diz: “Na verdade essa é uma percepção
das pessoas sobre ela, que era uma mulher comum se posicionando no mundo naquela
época, toda mulher hoje em dia que se posiciona é tida como louca, como arrogante,
sempre no papel da malvada, né? O outro, de Neide de Daniel, uma contadora de
história nata da cidade de Cuité, que considerava Pirigo sua avó; “Ela era braba para se
defender do preconceito, da rejeição, por isso que eu entendo assim que a brabeza dela
era assim...”.
Enquanto mediadora desse corpomídia percebo que o movimento que me leva a
pesquisar o corpo de Pirigo é também um espelhamento dessa raiva, de uma brabeza
que as vezes até desconheço a fonte, mas que me impulsiona a querer manifestar o que
for preciso para existir. E no que se refere a raiva incorporada pelos corpos de mulheres,
segue uma citação de Audre Lorde de seu ensaio Os usos da Raiva: As mulheres
reagem ao racismo:
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Toda mulher tem um arsenal de raiva bem abastecido que pode ser muito útil
contra as opressões, pessoais e institucionais, que são a origem dessa raiva.
Usada com precisão, ela pode se tornar uma poderosa fonte de energia a
serviço do progresso e da mudança. E quando falo de mudança não me refiro
a uma simples troca de papéis ou uma redução temporária das tensões, nem a
habilidade de sorrir ou se sentir bem. Estou falando de uma alteração radical
na base dos pressupostos sobre os quais nossas vidas são construídas. A raiva
é repleta de informação e energia. (LORDE, 2018, p. 159).
Segundo Audre, temos que aprender a usar essa raiva enquanto força, potência e
clareza em nosso dia a dia e enquanto não aprendermos a usá-la não sobreviveremos.
Então é partindo dessa citação que constato que entre os relatos sobre Pirigo, é possível
afirmar que ela possuía certa consciência do impacto de seu comportamento,
performance de valentia e dos caminhos abertos que eram forjados por seu estado de
presença no tempo e espaço.
Pirigo não sabia ler, logo: não precisaria de nenhuma Audre Lorde para poder
sustentar seu diálogo sobre sua raiva, como agora recorro. A raiz dessa raiva é uma
ferida colonial em um corpo que resistiu a invasão cristã tendo sua cultura invisibilizada
pelos valores instaurados, e quando digo corpo amplio o sentido deste termo. Os
“valores civilizatórios” provocaram um apagamento onde esses corpos foram
marginalizados e resvalados e Pirigo enquanto corpo ressoa como vestígio remanescente
dessa cultura, onde seus gestos são anteriores a ela, mas permaneceram incorporados e
restaurados em um movimento de resistência.
Este corpomídia que se compõe é uma resposta ao processo de apagamento e
reivindicação de existência e pertencimento. Josefa Maria da Conceição é fruto da força
cosmológica indígena e africana, e sua brabeza fruto da dor, se transmuta em potência
que garantiu sua sobrevivência nesse território onde nossos corpos são invisibilizados.
Sua vibração transborda em mim e a restauração desse comportamento se dá em meu
corpo como acidente geográfico: um Oid’água. Segue uma citação de Schechner sobre
comportamento restaurado:
Nos estudos de Schechner (2002) o comportamento restaurado aparece como
a própria possibilidade de “performação”. São ações físicas ou verbais
preparadas, ensaiadas ou que não estejam sendo exercidas pela primeira vez.
Pedaços de comportamentos são recortados de um lugar e restaurados em
outro, trazendo marcas não só de quem executa e restaura o movimento no
próprio corpo, mas também das técnicas corporais que são normatizadas pela
cultura. Schechner (2002, p. 29) afirma que “a maioria das performances,
cotidianas ou não, têm mais de um autor. Rituais, jogos e performances da
vida diária são escritos por um ente coletivo Anônimo ou pela Tradição”.
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Nesse caso, Oid’água é a mandinga que também é batalha que evoca múltiplas
temporalidades, espacialidades, dimensões em diferentes formas de interação. Este
processo encarna na luta o encanto da criação, a invocação e a encarnação do corpo de
Pirigo e suas inúmeras possibilidades de comunicação/linguagem como fruto de uma
presença estética de discurso afirmativo pela ancestralidade afroameríndia.
4
Embora de pouco uso na prática discursiva dos nossos tempos, o verbo “engerar” é da nossa língua e
significa a capacidade de o indivíduo se transformar em um animal ou em um outro ser, que pode ser
humano ou a uma figura mítica que faz parte do imaginário.
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Suçuarana
Foi quem me fez aprender
A valentia
Quanto é matar ou viver
Andar na terra
Andar, lutar e seguir
Eu sei que é ela
Quem toma parte de mim
Eu viro fera
Só me provoque pra ver
Eu viro fera
Enfio a unha em você
Sou arredia
Eu não te dou permissão
A Lua cheia
Sangra de dentro do meu coração
Suçuarana
Derrubo as armas de vez
Nenhuma filha
Terá mais nada a temer
Por essa selva
Nós vamos ser mais de mil
Fêmeas felinas
Enfurecidas no cio
Eu viro fera
Eu não vou mais recuar
Eu viro fera
Eu deixo o bicho pegar
Essa alegria
É minha libertação
A alforria
Assino com minha mão
Suçuarana
Foi quem me fez aprender
A valentia
Quanto é matar ou viver
Andar na terra
Andar, lutar e seguir
Eu sei que é ela
Quem toma parte de mim
Eu viro fera USE O CELULAR E O
Só me provoque pra ver APLICATIVO DO QRCODE
Eu viro fera PARA OUVIR SUÇUARANA
Enfio a unha em você
Sou arredia
Eu não te dou permissão
A Lua cheia
Sangra de dentro do meu coração
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• Uma imagem - quadro: A imagem que escolhi é uma pintura da artista russa
RADA. A artista faz releituras das cartas do Tarot trazendo em uma delas a figura da
Bruxa com um pilão.
Abaixo, um trecho do diário de bordo pós processo do dia 3 de maio de 2019 sobre a
incorporação da imagem:
Não tenho registros visuais desse laboratório. Foi uma ação restrita, em que todos estavam
envolvidos. O relato dessas matrizes criadas pode reverberar nos experimentos seguintes ao
primeiro semestre de 2019. A apresentação final do componente tinha como objetivo a criação de
uma cena que articulassem as matrizes construídas e o mito organizador das minhas ações foi a
história de Oya.
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Antes de encabeçar a viagem para colher tais depoimentos (fragmentos que até o momento
não se entendiam com um fim específico) sobre minha tetravó, começo a busca pela coleta de
cabaças de cuité e a experimentar possibilidades em laboratório com a intenção de esmiuçar seus
sentidos e sua sensorialidade. A cabaça/cabaço é um fruto utilizado como matéria prima e simbólica
incorporada por muitas culturas originarias, destacando as de matrizes africanas e indígenas que são
fundantes na construção da cultura da sociedade brasileira.
Na cosmologia africana e indígena encontramos uma reunião de mitos de origem que partem
da cabaça promovendo um novo diálogo sobre o espaço, sobre o tempo, sobre o corpo e a origem do
universo. Um desses mitos em especial é “Ododuá e a briga pelos sete anéis”, reescrito e adaptado
por Kiusam de Oliveira também do livro “OMO-OBÁ – Histórias de princesas” onde ela reconta
mitos das orixás que enfatizam a força da mulher dentro da cosmologia banto e iorubá. O mito, em
específico, traz Ododuá como uma princesa guerreira de beleza terrosa e naturalmente forte, que
divide espaço dentro de uma cabaça com Obatalá. O enredo se desenvolve com base na divisão que
eles precisam fazer de sete anéis que possuem, porém sete é um número ímpar que não se divide em
partes iguais. E assim Obatalá decide que ele por ocupar a parte superior da cabaça, teria o direito
inquestionável pela guarda de quatro dos anéis.
Os dias se passaram até o dia em que Obatalá é questionado por Ododuá que se nega a
permanecer submissa a decisão de Obatalá, reivindicando: – “Príncipe Obatalá eu não aceito mais
essa imposição sobre mim. Não é porque você é homem que deve ter a sua vontade atendida. Sou
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mulher e tenho meus direitos do mesmo jeito que você os tem.” (OLIVEIRA, 2009, p.45). Após
essa fala Obatalá se recusa a aceitar as opiniões de Ododuá e ela parte irada para cima dele iniciando
assim um confronto intenso capaz de romper a cabaça em dois pedaços, onde a parte que estava com
Ododuá permanece na terra e a outra onde estava Obatalá é arremessada para o céu. E a história se
encerra com este atrito que rompe a cabaça/cabeça/cabaço e espalha os anéis pelo mundo dando
origem ao céu e a terra.
É possível analisar o mito sob a ótica em que Ododuá, princípio feminino em uma cisão ao
princípio masculino, enquanto protagonista dessa história reivindica seu espaço no cabaça, na
cabeça, no cabaço, no mundo, em sua casa, no corpo. A mulher que exige que sua voz seja escutada
em uma sociedade fundada sob uma estrutura patriarcal, capitalista e racista é tida muitas vezes
como a histérica, a brava, a louca sem controle emocional. Temos nesse balaio de mitos, referências
e poética; Oyá dona dos ventos, corpo de búfalo de temperamento como a ventania que arrasa tudo o
que estiver no caminho para conquistar o que lhe é fundamental e Ododuá dona da terra com sua
fúria diante de tanto silenciamento e negação de seus direitos, todas elas me aproximam cada vez
mais desse corpo que retoma Pirigo. Pirigo seria a reinvenção que reúne essas formas de vida que
reflete nessa tessitura um processo identitário de mulheres originárias.
Quando reflito a origem do meu processo criativo vejo o quanto é importante para mim olhar
para minha mãe e suas ancestrais enquanto potência de vida, sobrevivência e criação. Quando as
vejo sinto que há voz a ecoar. E é assim que me sinto quando estou em um processo criativo, me
faço corpo histórico pertencente a um território de sentidos e percepções da realidade. É pela criação
de artefatos seja a roupa, a máscara, o videoarte enquanto construção material e social, pela imagem
e o imaginário criativo, é pelos retalhos de uma história herdada e os alinhavos desse processo que
dou forma a minha prática poética que ressoa na narrativa de Oid’agua. O roteiro ficou definido em
outubro de 2020 com a ajuda de Roberta Barbosa que me incentivou dentro de tantos depoimentos
colhidos buscar uma lógica de descendência matrilinear.
O processo de criação da minha poética audiovisual em Oid’água veio dar nesse trabalho de
conclusão de curso, sob a orientação do professor Makarios, todo de forma remota, durante o ano de
2020. Durante a quarentena embarquei na onda dos cursos e oficinas online tanto de edição de vídeo
quanto outras na minha área, uma delas foi a Oficina de Caracterização e Maquiagem com Alma
Negrot, realizada pelo Coletivo Acuenda e teve a duração de 3 meses, servindo como espaço de
laboratório na elaboração da maquiagem que componho Oid’água.
A maquiagem teve como base três elementos, um deles foi o lápis preto em substituto ao
jenipapo enquanto contraste, depois o vermelho extraído do urucum seguido da colagem de
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sementes e cascas secas do fruto do urucum, todos reunidos em uma tentativa de ritualizar uma
consagração a ancestralidade na busca de compor e se adornar com elementos naturais.
A seguir, apresento um texto produzido pelo escritor e pesquisador, além de Ọmọ Òrìṣà,
devoto de Ọbàtálá e de Olódùmarè, Caio Victorino5, sobre Oyá e seu universo mítico.
Oya/Iansã é uma Òrìsà guerreira. Mulher indígena valente que guerreava nas
batalhas. Dona de uma sedução única. Quando ia caçar transformava-se em um búfalo,
animal que representa a orixá. Senhora dos raios e ventos. Oya é um Òrìsà que, assim como
outros diversos, possui magias próprias, o que também singulariza o seu culto. Oya foi uma
das esposas de Sàngó, na qual, ela teve seu corpo transformado no rio de nove braços - Rio
Níger (Odo Oya). Dentre as celebrações de Oya, tem uma que é bastante conhecida e muitos
brasileiros acham bonito e interessante, que é o momento no qual Oya carrega uma panela
com fogo em suas mãos e ela anda de forma normal, não corre e nem nada do tipo. O nome
desse rito chama-se de: Ikoko Inan. Em Irá, há uma espécie de Ojubo (local de adoração a
determinado Òrìsà) Oya, onde há água e a mesma não seca, apenas brota. Oya também é
chamada de: "obinrin okunrin bi" (Uma mulher como um homem). Para finalizar: A
saudação correta de Oya em Òyó é: "Eyi Oya ooo" e a resposta para tal é: "Oya Nje ooo".
USE O CELULAR E
O APLICATIVO DO
QRCODE PARA
OUVIR CORPO
5
Texto de Caio Victorino, Cf. Instagram.com/caioolobatala/.
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O produto é audiovisual, embora tenha sido parido nas entranhas de um teatro performativo.
Para uma melhor compreensão, da obra, apresento sua descrição.
Vó Maria: Aqui Wislayne como é lindo ó. Aqui ó. Olha de onde vem a água. Ta
vendo, vem dali, ó que incrível Wislayne. Vem daqui de dentro, ela sai dali de dentro
dessa pedra. Ó
Vó Maria: Apois a água cai ali e daqui passa aqui. De primeiro o povo pegava água
aqui mas hoje pega mais não.
CENA 05 – Cena de Vó Maria no olho d’água mostrando como era o dia a dia das
lavadeiras emendando na história do aborto de Pirigo.
Vó Maria: (agachada simulando a lavagem de roupa) era tudo vuco vuco, lavando,
estendendo, escorria e no sol botava pra quarar e depois ia estender. E aí ela o que é
que fez? Depois que lavou a roupa que desceu pra casa, pegou o bebezinho botou no
balde enrolado (limpa o suor do rosto) e levou pra casa, chegou em casa enterrou.
Diz que deste “tamainho” (mostra com as mãos).
CENA 06 - Surge a cabaça fruto do Cuitezeiro segurado pelas mãos de uma mulher
de rosto encarnado. Ao som do xucalho se ouve uma voz aboiada:
voz off - Narradora apresenta o corpo da persona ouve-se ao longe o canto ecoando.
- Essa é uma das histórias que se pode contar de Maria Josefa da Conceição,
popularmente conhecida como Pirigo.
FADE OUT
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Neide: E quando ela vinha. Ela vinha regaçando tudo. Era um furacão.
Irailda: Vovó era braba mesmo, vovó não brincava não minha filha, de jeito nenhum.
Não mexesse com ela. Ninguém não mexia não. Porque diziam assim: lá vem Pirigo,
ai pronto.
Josilene (Lena): Eu não sei se ela era índia ou se ela era... eu não sei. Só sei que
minha Avó sabia se defender. Não era todo mundo que ela ia com a cara não. Tipo
Homem né.
FADE OUT
CENA 14 - Mulher de semblante tempestivo retorna...
“Pirigo é uma cabocla valente!”
...Fumando um cachimbo.
CENA 15 – Mulher do rosto encarnado de urucum ressurge ao som de vozes que
ecoam:
Ela é doida minha gente, é um bicho do mato (ecos)..
é também agricultora, lavadeira, caçadora. É um touro engerado.
Vó Chiquinha: O povo falava que ela era louca, ai quando ela chegou lá em casa eu
tive muito medo dela mas ai ela disse: tenha medo de mim não que eu não faço nada
com ninguém não.
CENA 17 – Imagem de duas bandas côncavas de uma cabaça, uma vazia com
pigmento vermelho e a outra com água ao som da toada.
Um corpo que abriga a vida, um corpo que briga e é brabo.
FADE OUT
CENA 18 – Fragmento do depoimento de Neide sobre Pirigo.
Neide: Dentro da tabaca, abre a tabaca, dentro da tabaca ta sua mãe e ta a minha
história. (ouve-se as risadas de Vó Maria e Wislayne)
Neide: Ai uma calça comprida, uma saia, um casaco, uma blusa, um chapéu, um
facão (ri), uma faca de lado. Esse negócio de mulher delicada, de andar arrumada
(faz sinal de negação com o dedo),Vovó era mulher macho.
Se a caba bota quente por que não bota a mulher? Se o caba pode ser macho eu
posso ser o que eu quiser. 3x
Iranete: Pera aí caba sem vergonha que eu vou lhe pegar e corria as vezes atrás e o
povo uhu uhu e ficava...
Neide: Mercê! ela chamava mãe de mercê. Vá dormir assossegada que eu to por aqui
viu minha fia. Pia a foice (mostrando o tamanho com a mão). Ela disse: pode dormir
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Josilene (Lena): A fama dela na cidade era que ela era brava, mas ela fazia mesmo
isso, ela não tava nem ai se fosse homem, ela não tinha medo de polícia, de
autoridade nenhuma, ninguém mandava nela, ninguém mandava no que ela falava ou
no que ela dizia não.
CENA 38 – Fragmento de minha irmã Ketlyn pintando uma tela. Ao som do toque da
rabeca.
CENA 39 – Fragmento de minha Avó Dona Maria imitando uma senhorinha com
um feixe de lenha na cabeça no quintal onde se encontra o pilão de madeira que era
usado por Pirigo. Ao som do toque da rabeca.
Dona Maria: To cansada minha fia, vou parar com essa vida que não dá pra eu não.
68 anos não é brinquedo minha fia, de luta e de roçado. E esse feixinho de lenha só
posso trazer esse hoje. Ave maria não posso mais nada mais não. Espero é que
ninguem toque. Vou danar esse danado no chão logo que é o certo.
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CENA 40 – Fragmento de Raul meu filho, com a foto que é guardada como
recordação do encontro de Pirigo e sua primeira Tataraneta, Eu – Wisla/Wislayne.
• Imagem da foto ampliada
Raul: é a fotinha sua mamãe.
Ketlyn: Então eu interpreto essa brabeza que todo mundo fala, como uma fonte, como
uma mulher, como todas nós, fortes! Só que Pirigo tinha a força de se posicionar e é
um posicionamento difícil pra época dela né.
Vó Maria: Sou Pirigo daquelas que mato na unha, assim ó (mostra movimento com
as mãos)
USE O
CELULAR E O
APLICATIVO
DO QRCODE
PARA ACESSAR
O
CURTA-
METRAGEM
OID’ÁGUA
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Conclusão
Chego ao fim desse processo considerando que nas jornadas poéticas a angústia e a dor são
similares às do nascimento e da morte. Pirigo é memória e é processo de criação espetacular.
Conseguimos, eu e ela, nós e todas as mulheres negras de nosso mundo. Assim, à guisa de
conclusão, destaco alguns pontos de profundo valor para a aprendizagem que aqui se deu. Dentre
eles, a própria composição de um corpus de pesquisa e de composição poética, emerge como um
saber em atmosfera cosmológica.
Por outro aspecto, ter exercitado uma reflexão densa acerca de processo de memoriografia,
de processos criativos realizados no transcurso de uma licenciatura em teatro, de ter que “relatar”,
quando queria mesmo era criar, foi um outro tipo de saber conquistado. Nisso, relatar o que vivi fora
da Licenciatura e nela, vivendo os componentes curriculares que substanciam a pesquisa
preparatória de “Pirigo”, foi outro grande ganho.
Outro ponto que destaco é o diálogo teórico que precisei elaborar com autores
contemporâneos, do decolonialismo, a partir da problemática desse trabalho. Pesquisar esses
conceitos em nova chave, escorrendo dos engenhos do patriarcado, da submissão teórica, sem perder
as conexões com os teóricos relevantes da área, foi um bom desafio. Discutir o “espetacular”, o
espetáculo, a espetacularidade, em boa medida, parte do teatro contemporâneo, da performance, sem
cair nas armadilhas acadêmicas do patriarcalismo colônia e, ainda, fazer um reflexão crítico-criativa
foi muito bom.
base sistemática elementares (revelados e criado) do meu processo criativo. Sinto que me fortaleci
ao nortear minha escrita com gestos ancestrais como: adubar a Terra; mirar-me no espelho d´águas
do tempo e das mulheres do meu imaginário; poetizar femininamente com as M(AR)IAS, ar no
meio do corpo criativo, gestando atmosferas; respeitar as fagulhas dos atritos dos facões,
considerando que viver é resistir e resistir é lutar.
Adubar a Terra foi uma fase poderosa do trabalho, por dizer respeito ao conhecimento,
quando tive que fazer levantamento de referências bibliográficas propícias ao estudo e à pesquisa,
respeitando posições de enfrentamento, quanto à imagem material e poética dos elementos usados,
em uma perspectiva decolonial.
Mirar a mim e ao mundo no espelho d’água ancestral foi me constituir basicamente como
um ser individual, carregado de subjetividade, em uma teia coletiva. Os laboratórios de criação que
desenvolvi foram base essencial, no sentido mais regular da formação acadêmica, pois ampliaram a
percepção do universo contextual.
Olhar em torno é fundamental, ainda mais, em uma situação de isolamento pandêmico, como
esse, em que o objeto de trabalho foi criado. Assim, esse processo se garante como uma
encruzilhada de percepções e, ainda, como um “lugar” onde ele e o poder de mulheres negras
pudesse ser encontrado.
Além do mais, a leitura, como espelho, foi também um instante de mergulho no campo
sensível e virá a ser objeto da criação. Daí, a criação de uma atmosfera de ataque, exercício crítico-
reflexivo de profundo valor identitário em que o objeto criado é, em seguida, atravessado pela busca
do contexto ancestral que o fundamenta, especialmente, na memória/voz de uma oralitude de
mulheres velhas. Nessa perspectiva, os laços afetuosos que o fizeram existir são a conexão da
materialidade do objeto com minha formação.
A fagulha dos facões é o instante em que as memórias experenciadas no corpo são capazes
de emergir da encruzilhada materializando-se em grafia, ou melhor afrografia de cruzamentos
ancestrais. Considerando a materialidade objetivada do que foi o processo e do que é o produto da
criação. É um momento de reflexão e de retroalimentação dos afetos. É a apresentação das fagulhas
do território conquistado.
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Por derradeiro, como diria Vó Maria, acredito na força política dos caminhos que me
levaram a este projeto e no seu valor diante do espaço social de nossa sociedade. Ele se entende
enquanto ação política ao manifestar um processo de afirmação de identidade nas artes cênicas.
Também, acredito que seria uma loucura da minha parte não me inscrever nas páginas do
conhecimento acadêmico com o Oid’água e com Pirigo.
De alguma forma, não me expressar nesse ambiente, com esse valor, seria como se eu
cometesse um epistemícidio do meu corpo e da minha voz. Essa é a dimensão cíclica do meu
processo que reivindica lugares discursivos por meio das imagens. Eu recorro às imagens
(lembranças, memórias, imaginações, devaneios etc.) das narrativas e outras poéticas dos povos
originários e antigos de minha família, que me chegaram na voz de minha vó, nas artes da minha
mãe e ressoará na vida de meus filhos.
A exemplo dos cantos de infância, das tramas do crochê, das histórias antes de dormir, entre
tantas possíveis histórias, emerge e figura de valentia de minha tetravó Pirigo, a cabocla Josefa
Maria da Conceição, que me empresta seu apelido, enquanto metáfora deste corpo encruzilhado, me
faz matéria do vermelho dos ventos de Oyá e me ensina a viver.
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ANEXOS
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