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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


DEPARTAMENTO DE ARTES
PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS – PPGArC

NAARA DE OLIVEIRA MARTINS

A GENTE COMBINAMOS DE ESCREVIVER:


POÉTICAS PRETAS E MODOS DE AUTOPOTÊNCIA NA CRIAÇÃO
EM ARTES CÊNICAS

NATAL / RN
2020
NAARA DE OLIVEIRA MARTINS

A GENTE COMBINAMOS DE ESCREVIVER:


POÉTICAS PRETAS E MODOS DE AUTOPOTÊNCIA NA CRIAÇÃO
EM ARTES CÊNICAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Artes Cênicas, da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como requisito
parcial à obtenção do título de mestre em Artes
Cênicas.

Linha de Pesquisa: Práticas investigativas da cena:


poéticas, estéticas e pedagogias
Orientadora: Profa. Dra. Karyne Dias Coutinho

NATAL / RN
2020
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART

Martins, Naara de Oliveira.


A gente combinamos de escreviver: Poéticas Pretas e modos de
autopotência na criação em Artes Cênicas / Naara de Oliveira
Martins. - 2020.
179 f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do


Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de
Pós-Graduação em Artes Cênicas, Natal, 2020.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Karyne Dias Coutinho.

1. Poéticas Pretas. 2. Escrevivência. 3. Necroperformance.


4. Epistemicídio. 5. Artes Cênicas. I. Coutinho, Karyne Dias. II.
Título.

RN/UF/BS-DEART CDU 792

Elaborado por Naara de Oliveira Martins - CRB-X


Naara de Oliveira Martins

A GENTE COMBINAMOS DE ESCREVIVER:


POÉTICAS PRETAS E MODOS DE AUTOPOTÊNCIA NA CRIAÇÃO
EM ARTES CÊNICAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Artes Cênicas, da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como requisito
parcial à obtenção do título de mestre em Artes
Cênicas.

Apresentada em: ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________
Prof. Dra. Karyne Dias Coutinho
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Orientadora

_______________________________________________
Prof. Dra. Luciana de Fátima Rocha Pereira de Lyra
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Membra Interna

_______________________________________________
Profa. Dra. Denise Carvalho dos Santos Rodrigues
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Membra Interna

_______________________________________________
Prof. Dr. Elton Panamby
Membro Externo
Aos ancestrais que eu conheço,
aos ancestrais que eu não conheço e aos ancestrais
que me conhecem mais do que eu mesma.
Seguimos a tradição.
Seguimos uma forte tradição.
Seguimos uma orgulhosa tradição.
Seguimos a tradição Preta.
Siga-a.
Siga ela agora.
Siga-a
PARA A LIBERDADE!

Assata Shakur
ASANTE SANA

Quando fui fazer a prova para entrar no mestrado em Artes Cênicas estava morando com a
minha mãe e com a minha avó, que teve um AVC há uns anos e como sequela foi
diagnosticada pelos médicos com “demência”. Sempre discordei desse diagnóstico e dessa
“sentença” em forma de palavra. A minha avó diz sabedorias que nenhuma pessoa demente
diria, com o rosto de uma anciã e o jeitinho de uma êre.

Naquele período eu tinha largado tudo: moradia, roupas, objetos, só não consegui me
desapegar dos livros (foi um processo), estava vendendo tudo (que era pouco) e indo embora
da cidade, fazendo a prova porque três amigos queridos me convenceram que era o melhor
momento pra se fazer uma pós – isso foi no período “Fora Temer”, mal sabíamos do
desmonte que estava por vir.

E saindo de casa para fazer a prova, vovó que estava sentada em sua cadeira de balanço me
perguntou se eu estava indo pra São Paulo. Respondi que não, que estava indo fazer a prova
do mestrado. Ela parou e observou o tempo que corria entre nós duas naquela sala, olhou para
mim e disse:

- Pra comer não precisa estudar.

Parei naquele tempo que nos cercava. Fui fazer a prova com aquilo na cabeça. Passei no
mestrado e passei também a pós inteira com essa frase me acompanhando: “Pra comer não
precisa estudar”. Vovó está certa.

E estar aqui, independente desse trabalho, estar aqui... viva! – é sobre agradecer. Necessito
agradecer e é uma das coisas que mais preciso nesse momento, além de escrever. Aqui tenho
as duas coisas ao mesmo tempo e posso fazer delas sinônimos.

Então aqui escrevo-agradeço aos meus pais, Vera e Moisés; a minha irmã Natália e ao meu
pequeno sobrinho Francisco, vocês são minhas raízes, meu sumo mais concentrado. A vovó
Nevinha pelas suas palavras de fome e sabedoria, a vovó Martins (In Memoriam) pelo abraço
de circunferência de mundo e o chão rosado de flor de jambo.
Escrevo-agradeço a minha orientadora Karyne Dias Coutinho pelo apoio, amizade, respeito e
amor. À banca – Luciana Lyra, Denise Carvalho e Elton Panamby – pela generosidade em
aceitar meu convite em participar, pelos apontamentos desde a qualificação, por
permanecerem mesmo quando as coisas estão tão mais impermanentes.

Agradeço ao trajeto e trocas no Grupo de Pesquisa Poéticas do Aprender. Agradeço também a


minha turma do mestrado e a professoras como Luciana Lyra, Karenine Porpino e Itza
Amanda Varela-Huerta por todas as trocas, contribuições e partilhas em sala de aula e grupo
de estudos/orientações no México, respectivamente.

Agradeço as minhas amigas e amigos tão querides: Franco Fonseca – pelas mangas e caroços
chupados ao longo desse trajeto de amizade e trabalho que construímos, te sinto parte minha e
me sinto parte sua, mesmo a gente não se pertecendo; Pablo Vieira – pelo suporte afetivo (e
material também, como bom taurino que é); Gabriela Marinho – pela tradução do abstract e
por tanto afeto, colocando-me pra cima especialmente quando não me sinto bem; Cléo Morais
– pelos coices cheios de amor e Renata Santos – pelas conversas engraçadas e sérias ao
mesmo tempo. Poderia escrever outra dissertação só com as nossas histórias, mas por agora
fico feliz em celebrar como é incrível ser eu mesma dentro do nosso pequeno grupo e isso é
tão grandioso que nem sei se vocês fazem ideia... É muito amor em meio a tantos
xingamentos, conselhos e... É isso, amo vocês!

Ao meu grande amigo-paterno Edivaldo – que me acolheu em sua casa nesses últimos e
cruciais meses de escrita, mas que já me acolhe e acompanha de longe, dessa vida e de outras.
Te amo forte, grande amigo.

Aqui escrevo-agradeço ao Jahi – grupo de danças negras e estudos afrodiaspóricos que me fez
abraçar ainda mais os nossos conhecimentos e a dar importância à nossa ancestralidade;
escrevo/agradeço a Kakilambe, afroempresa de roupas que faço parte com Kédma, Evelyn e
Nimba – cada estampa pintada entre músicas e danças foi aprendizado e afeto misturados, me
sinto uma encantada naquele atelier.

Escrevo-agradeço as minhas irmãs de alma, luta e gargalhadas: Shay Santana, Aline de Moura
Rodrigues e Marielle Salles – conhecê-las foi um dos melhores presentes que o México me
trouxe, tenho dificuldades em palavrar tudo o que compartilhamos e vivemos durante esse
tempo... O que sei palavrar é que sinto orgulho de vocês e as amo imensamente. A Marbella
Figueroa por me receber com tanto afeto em sua casa, por me ajudar a caminhar com aquela
tela pelas ruas, por ser uma artista tão inspiradora, tão amável; agradeço-escrevo também as
meninas do Coletivo Flores de Jamaica. Agradeço a Aline Zúñiga por me acolher em
Tepoztlán, pelas nossas conversas-andanças e as-simetrias. Agradeço a todos que me
alimentaram e me acolheram verdadeiramente nessa estadia de três meses: a Bety Robles
Reyes – por chorar e rir comigo, por ser tão sensível quanto eu e me tratar com tanto afeto; a
Emiliano Guerrero – pelas massagens, malteadas, pelas conversas engraçadas em portunhol,
pela amizade; a família Acevedo Ávila, por me acolher, me alimentar e me ensinar coisas tão
preciosas na Costa Chica de Oaxaca... Agradeço imensamente a Juliana Acevedo Ávila, que
além de me ajudar como “porto-teórico” me ajudou também com a sua grande e amável
família. As pessoas incríveis que conheci e que me abraçaram e dançaram comigo na Cidade
do México, em Oaxaca de Juárez, Tepoztlán, Collantes e José María Morelos. “Que pasa con
el dj que no pone perreo?” – melhores companhias!

Agradeço-escrevo às pessoas que estiveram envolvidas em partes desse curto e longo


processo do mestrado, que contribuíram com retalhos significativos para essa caminhada: a
Amanda Raquel pelas considerações e afeto logo no início dessa pesquisa; a Alma Narvaez
por me apresentar lugares incríveis e pessoas essenciais em terras mexicanas – você também
foi e é essencial; a chiquitita Alma Elena por ser minha amiga mais nova em idade e por isso
tão cheia de sabedoria, como são as crianças; a Emma Reyes Reyes pelos bordados e risadas
contagiantes; a Viviana Lorenzo pelo registro da performance (que no final das contas nunca
foi compartilhado comigo, mas agradeço mesmo assim o empenho naquele dia e nos dias de
oficina no CEDART).

Agradeço-escrevo atravessada ao quilombo que construímos –


A Kédma, uma irmã que a vida me presenteou – tenho orgulho e felicidade de dizer que
construímos a nossa amizade, “destruímos”, mas depois construímos um lar e uma grande
parceria, que é mais justo chamar de irmandade. A Alysson pela amizade/alimento – é bom
estar com você, amigo. Me sinto confortável com a sua fala e com o seu sorriso. Não pare de
falar, insisto! O que você fala é importante, é combustível para nós/laços e espero ter
colocado aqui um pouco dessa gasolina, querosene, dessa coisa inflamável e latente que são
as nossas falas. A Evelyn – “fada cheirosa”, maga dos aromas, das mãos curativas, da firmeza
de anciã, mas que garota, que êre você também é, minha irmã. A Nimba, calorosa e materna,
seu movimento de fogo me queima demais, Preta, me contagia, me abraça e me faz querer
chorar de felicidade. Eu assim tão emocional sempre, mas sei que você entende de água, por
isso nos captamos. A Nina, a nossa pequena ancestral. A Elaine e seu deboche que me ensina
mais do que qualquer universidade, que feliz compartilhar essa vida contigo, amiga. A Sâmela
e a sua escuta, generosidade, amorosidade – que deusa e voz, te agradeço e te escrevo aqui.
Esse trabalho é sobre nós. O ṣeun.

Ao meu companheiro Matheus, que me enche de dengo – palavra africana que você me trouxe
e que é afeto, amor preto. Matheus, tu que me mostra diariamente que se curar não é segurar,
ao contrário, é liberar e compartilhar... Amor entre nós.

Ao nosso pequeno Imani.

Escrevo-agradeço aos ancestrais do passado: Dandara, Anastácia, Luísa Mahín, Tereza de


Benguela, Aqualtune, Zeferina, Maria Felipa de Oliveira, Acotirene, Adelina Charuteira,
Rainha Tereza do Quariterê, Mariana Crioula, Esperança Garcia, Maria Firmina dos Reis, Eva
Maria de Bonsucesso, Maria Aranha, Na Agontimé, Tia Simoa, Zacimba Gaba, Carolina
Maria de Jesus, Marcus Garvey, Malcolm X, Beatriz Nascimento, Lélia González, Abdias do
Nascimento, Sobonfu Somé, Maria Martins.

Agradeço-escrevo também aos ancestrais do futuro: Conceição Evaristo, Assata Shakur,


Paulina Chiziane e Marimba Ani, mulheres Pretas que me inspiram e que me dão sopro pra
continuar.

Aqui eu escrevo-agradeço a todes as pessoas Pretas, que assim como eu,


escrevivem para não morrer!
Àsé!
RESUMO

A partir de perspectivas afrocêntricas, este estudo pesquisa a noção de Poéticas Pretas como
possibilidade de autopotência na criação em Artes Cênicas e como desestabilização das
estereotipias raciais nesse âmbito, entendendo tais estereotipias como práticas epistemicidas
que necessitam ser problematizadas e combatidas. Inspirando-se no conto A gente
combinamos de não morrer, de Conceição Evaristo, a Dissertação ora apresentada, que se
intitula A gente combinamos de escreviver, tece relações entre Poéticas Pretas e a produção
de subjetividades Pretas, trabalhando com a importância do afeto entre nós mesmas/os (bell
hooks) e com os “usos da raiva” (Audre Lorde), ambos necessários para a manutenção e
sustento das nossas escrevivências. Para tanto, parte-se dos conceitos de “encruzilhada”, de
Leda Maria Martins, como reversão metodológica; e de “necropolítica”, de Mbembe,
enquanto política da morte, supressora e mantenedora das narrativas hegemônicas sobre os
nossos corpos — este seundo conceito também inspirou a necroperformance ¿Y si muero
aquí?, realizada nas cidades de Oaxaca de Juárez e Cidade do México / México, como parte
desta pesquisa. Na esteira disso, este trabalho encruzilha epistemes de autoras e autores como
Audre Lorde (1978; 2018), Abdias do Nascimento (1980), Sueli Carneiro (2003), Frantz
Fanon (2008), Lélia Gonzalez (2018), Achille Mbembe (2018; 2016), bell hooks (1994), Leda
Maria Martins (2003), Alice Walker (2018), Molefi Asante (2009), Alex Ratts (2007), entres
outras/os. Este trabalho é carregado de “projéteis” que laboram sobre a responsabilidade com
nós mesmas/os, a de compartilharmos e difundirmos linguagens e ações. Nós temos um
compromisso com a quebra do silêncio, com a sua transformação numa linguagem criativa e
artística. Assim, o que interessa nesta pesquisa-encruzilhada é sobretudo a reverberação dos
abalos provocados pelas Poéticas Pretas. Essas que pretendem ir além dos padrões
tradicionalmente entendidos como “raça”, fazendo cintilar a ideia de que há muitas formas de
enunciar essas subjetividades Pretas a partir da arte e, portanto, também na vida.

Palavras-chave: Poéticas Pretas. Escrevivência. Necroperformance. Epistemicídio. Artes


Cênicas.
RESUMEN

Desde perspectivas afrocéntricas, este estudio investiga la noción de Poéticas Negras


(Poéticas Pretas) como una posibilidad de auto potencia en la creación en las Artes Escénicas
y como una desestabilización de los estereotipos raciales en este contexto, entendiendo tales
estereotipos como prácticas epistémicas que deben ser problematizadas y combatidas.
Inspirado en el cuento A gente combinamos de não morrer, de Conceição Evaristo, la
Disertación ahora presentada titulada A gente combinamos de escreviver, entrelaza las
relaciones entre las Poéticas Negras (Poéticas Pretas) y la producción de subjetividades
negras, trabajando con la importancia del afecto entre nosotras/os (bell hooks) y con los “usos
de la ira” (Audre Lorde), ambos necesarios para el mantenimiento y el apoyo de nuestros
registros. Para eso, parte de los conceptos de “encrucijada”, de Leda Maria Martins, como una
inversión metodológica; y la “necropolítica”, de Mbembe, como una política de muerte, que
suprime y mantiene narrativas hegemónicas sobre nuestros cuerpos. Este segundo concepto
también inspiró el desempeño de la necroperformance ¿Y si muero aquí?, hecha en las
ciudades de Oaxaca de Juárez y Ciudad de México, en México, como parte de esta
investigación. En el curso de eso, este trabajo cruza epistemes de autoras y autores como
Audre Lorde (1978; 2018), Abdias do Nascimento (1980), Sueli Carneiro (2003), Frantz
Fanon (2008), Lélia Gonzalez (2018), Achille Mbembe (2018 ; 2016), bell hooks (1994),
Leda Maria Martins (2003), Alice Walker (2018), Molefi Asante (2009), Alex Ratts (2007),
entre otras/os. Este trabajo está cargado de “proyectiles” que trabajan con responsabilidad con
nosotras/os mismas/os, el de compartir y difundir lenguajes y acciones. Estamos
comprometidos a romper el silencio, transformándolo en un lenguaje creativo y artístico. Por
lo tanto, lo que importa en esta investigación de encrucijada es sobre todo la reverberación de
las conmociones causadas por Poéticas Negras (Poéticas Pretas). Essas que pretendem ir
além dos padrões tradicionalmente entendidos como “raça”, fazendo cintilar a ideia de que há
muitas formas de enunciar essas subjetividades Pretas a partir da arte e, portanto, também na
vida.

Palabras clave: Poéticas Negras (Poéticas Pretas). Escrevivência. Necroperformance.


Epistemicídio. Artes Escénicas.
LISTA IMAGÉTICA

Imagem 1 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019


na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. .................... 101
Imagem 2 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019
na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. .................... 103
Imagem 3 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019
na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. .................... 103
Imagem 4 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019
na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. .................... 104
Imagem 5 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019
na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. .................... 104
Imagem 6 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019
na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana. .................................................. 106
Imagem 7 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019
na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana. .................................................. 107
Imagem 8 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019
na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana. .................................................. 108
Imagem 9 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019
na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. .................... 115
Imagem 10 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019
na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. .................... 116
Imagem 11 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019
na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. .................... 116
Imagem 12 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019
na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. .................... 117
Imagem 13 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019
na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. .................... 117
Imagem 14 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019
na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. .................... 118
Imagem 15 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019
na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. .................... 118
Imagem 16 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019
na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. .................... 119
Imagem 17 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019
na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. .................... 120
Imagem 18 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019
na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. .................... 121
Imagem 19 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019
na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. .................... 121
Imagem 20 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019
na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana. .................................................. 123
Imagem 21 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019
na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana. .................................................. 123
Imagem 22 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019
na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana. .................................................. 124
Imagem 23 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019
na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana. .................................................. 124
Imagem 24 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019
na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana. .................................................. 125
Imagem 25 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019
na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana. .................................................. 125
Imagem 26 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019
na Oaxaca de Juárez, Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. ..................................... 137
Imagem 27 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019
na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana. .................................................. 137
Imagem 28 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019
na Oaxaca de Juárez, Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana. ..................................... 138
SUMÁRIO

EM CASO DE EMERGÊNCIA: QUEBRE ESSE VIDRO TRINCADO EM CASO DE


DESISTÊNCIA: RASGUE ESSA FOLHA ME LEIA SE POSSÍVEL, ANTES DE MAIS
NADA: É UMA ESCOLHA .................................................................................................. 13

AINDA NÃO ENCONTREI UM TÍTULO QUE COUBESSE AQUI .............................. 19

PROJÉTIL 0 - CARTUCHO VAZIO OU BALA DE BORRACHA ................................ 26

PROJÉTIL I - ARMA DE ILHA .......................................................................................... 34

A ENCRUZILHADA COMO REVERSÃO METODOLÓGICA ....................................................... 35


CARTOGRAFIA DO SUOR ....................................................................................................... 38
CARTOGRAFIA DO CORPO-ENCRUZILHADA ......................................................................... 42
POR UM EROTISMO PRETO ................................................................................................... 43
CARTOGRAFIA DA DISTRAÇÃO ............................................................................................. 58

PROJÉTIL II - REIVA .......................................................................................................... 62

CARTOGRAFIA DA NEBULOSA .............................................................................................. 71


CARTOGRAFIA DO PRÉDIO-COLINA ..................................................................................... 75
CARTOGRAFIA DA TRINCA AGUADA ..................................................................................... 77

PROJÉTIL III – ¿Y SI MUERO AQUÍ? ............................................................................. 84

CARTOGRAFIA DA MESTIÇAGEM ......................................................................................... 88


CARTOGRAFIA DA CHEGADA................................................................................................ 98
CARTOGRAFIA DE UMA NECROPERFORMANCE ................................................................. 106
CARTOGRAFIA DA FOME .................................................................................................... 128
CARTOGRAFIA DA CULPA ................................................................................................... 131

PROJÉTIL IV - A GENTE COMBINAMOS DE ESCREVIVER ..................................... 139

CARTOGRAFIA DA PROCRASTINAÇÃO................................................................................ 152


CARTOGRAFIA DA FUGA ..................................................................................................... 159

PARA QUEM ESSAS MÃOS APONTAM? ...................................................................... 165

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 168

ANEXO .................................................................................................................................. 171


13

EM CASO DE EMERGÊNCIA: QUEBRE ESSE VIDRO TRINCADO


EM CASO DE DESISTÊNCIA: RASGUE ESSA FOLHA
ME LEIA SE POSSÍVEL, ANTES DE MAIS NADA: É UMA ESCOLHA

Abrindo caminhos te digo logo de cara que essa pesquisa não tem introdução,
porque acredito que ela começa do meio e não se introduz um meio, o meio já se pega
andando. Então peço paciência ao invés de receios. Percebi também nesse processo de
pesquisa que possuo uma forma “curta” de soltar as frases, tenho mania de falar
pausadamente.
A minha escrita acaba se tornando então um pouco truncada, como quem quer
desistir no meio do caminho da fala, desacelerar o passo, desacelerar. Mentira, isso é
uma mania antiga que tenho de me justificar. Mania que veio da insegurança em
escrever. Mas se a boca é ferida não cicatrizada, exposta e viva, o que a alimenta?
Comida? Bebida, que desce e escorre ao avesso? A boca se alimenta de falas,
descomeços. E se falo? Falo não. Você então pode me dizer:
- Fala!
A minha síntese está na antítese de sentir demais. Se falo é porque não cabe aqui
nesse espaço de gente que sou. Se fala é porque transbordou. Sim,
as vezes até já secou, que nem aquela saliva espessa presa no canto da boca, que fica
por horas e ninguém te diz que está ali. Esse trabalho é saliva espessa no canto da boca.
E a lesma língua encorpa, encosta, lambe e a/o engole. Cospe. Funga com as
suas narinas gustativas. Abocanha todo o desmantelo de não cicatrizar, porque a fala
rompe a ferida, incendiária, molhada de saliva e em constante movimento. A minha fala
não cala, minha fala é feita tiro de vento. Reverbera às vezes. Outras afaga. Machuca às
vezes. Outras apaga. Sepulcra às vezes. Outras abestalha. Fala miúda às vezes. Fala
gigante. Outras mortalha.
- Fala…
Te direi em algum momento. Fala não cicatriza, não seca, fala não é cimento.
Fala é chuva de saliva, saliva escorrendo, que encorpa com o tempo. E molha essa
escrita aqui. Porque esse trabalho é sobretudo sobre se curar ferida escrevendo, porque
cansei de segurar ferida escorrendo...
“A GENTE COMBINAMOS DE ESCREVIVER” –
O título desta Dissertação foi inspirado no conto A gente combinamos de não
morrer, do livro Olhos d’água (2014) de Conceição Evaristo, considerada como uma
14

“ancestral viva” e escritora de “ficção”. Porém acredito que Conceição escreve sobre
muitas verdades; Evaristo escreve sobre múltiplas pessoas, realidades, o seu trabalho diz
muito sobre a diáspora forçada brasileira, necropolítica, violência, sobre a realidade da
população Preta, sobre resiliência.
E pausadamente te digo que eu escrevo porque preciso, assim como Evaristo.
Essa foi a forma que encontrei de não morrer, de me fazer ouvir, falar-conversar
comigo, sangrar, me cuidar, mas não, não falo aqui apenas do meu umbigo (mesmo ele
aparecendo muitas vezes neste trabalho). Não me coloco como ser só umbilicado e si no
mundo, porque a cada texto sou uma pessoa diferente, daí que sou muitas, então escrevo
de e para uma multidão. Sou um coletivo de pessoas, um mói de gente.
Escrever para sarar o quê? Ferida colonial, ancestral, é o que sei te responder por
agora. Dei pra falar esses dias, inclusive.
- Fala!
Mas assumo que obviamente enquanto pessoa negra eu já me calei muitas. Já
suspirei em muitas vezes sem juros também, tem dias que até pouco, juro, porque
também canso de suspirar, juro, de jogar meu corpo pra lá, ali, pra’li e pra cá... Ele
balança como em um navio. E de ressaca encrespo minhas palavras “negreiras”,
encrespo minha jornada e encruzilhadas num mestrado em Artes Cênicas, escrevo aqui
sobre Poéticas Pretas.
Quando criança eu não sabia o que era “poética” –

Definição do Dicionário das Semânticas Ordinárias Cotidianas1:


Pó de ética, modo não vulgaris: poiética.
Trata-se da sedimentação da ética (de si), substantivo feminino. Esse pó
sedimenta querer de si, perceber-se. É a nossa essência sedimentada diante de nós
mesmas/os. Poética pode ser desvio, rota alternativa. Desvios podem ser atalhos,
caminhos mais longos, arrepios, desvios podem ser ruas sem saída (por que não?),
podem ser daquelas jornadas longas em círculos, perdidas. Podem ser também rotas
alternativas, onde lá muitas vezes encontramos aquilo que não estávamos procurando.

1
Esse Dicionário – ou Diciordinário, como gosto de chamar – foi motivado pela vontade em ressignificar
algumas palavras que atravessam a minha vida de forma mais latente. Nesta Dissertação ele aparece de
forma tímida, mas trata-se de um Dicionário pessoal, onde me libero a desencaixar algumas palavras que
me pulsam. A partir dessas reestruturas tento me ressignificar também perante o mundo, cercando-me
assim de palavras e significados menos concretos e mais maleáveis.
15

Se o padrão fosse desviado, não seria mais padrão, em probabilidade matemática


existe desvio padrão, mas padrão foge do desvio e vai pela rota comum.
Nos desvios moram as imprevisibilidades, as erupções na pele, os buracos no
chão cheios de água, os buracos com lama, os buracos de ar, os tremores, os calores
insuportáveis, as camisas suadas, os sapatos desgastados. Buracos nas paredes também
podem ser desvios (janelas são desvios programados). E desvio pode muito bem ser
ausência daquelas expandidas que nos fazem criar.
Nos desvios não moram a lisura, a perfeição, o Estado, as leis, os regimentos, os
dispositivos, a cor “homem-branca-hétero-cristã”. Desvios não podem ser conceituados,
se são conceituados já não são mais desvios. Porque a conceituação das coisas e das
palavras já são uma tentativa de estabilização de conhecimento, de razão. Sempre ela
(as janelas)! A razão está presente no desvio, mas vem sempre acompanhada de
sensibilidade. É razão sensível, é sensível-racional. Então para tentar explicar sobre
desvio, permita-me primeiro desviar um pouco mais (d)as palavras, já que poética é
deslocamento e também desviamento. Mas nos atentemos, pois nem toda poética é
desviante, mas todo desvio é poético-cambiante.

Quando criança eu não sabia o que era “poética”, mas aprendi o que era racismo.
Fui racializada como “parda”, mesmo sendo “parda” uma cor que carrega em sua raiz
um tom pejorativo – “suja/o” e “manchado”, fruto da miscigenação. O primeiro contato
que tive com o racismo, portanto, foi dentro do meu próprio núcleo familiar. Ele me
tornou tão pungente e frágil que me fechei, me omiti, me calei, fiquei quieta, não queria
estar ali naquele “lugar”, por isso passei a me embranquecer na aparência, leituras, na
música que escutava, nos relacionamentos que pulava, nas amizades – essas que nunca
levava em casa, por vergonha do chão vermelho encerado, do teto de teias de aranha e
das paredes de tijolos vermelhos-cor-de-vergonha – esburacadas – da casa minha que eu
também era.
Passei a não entender quando me chamavam de “filha da empregada”, mesmo
minha mãe sendo professora, porque neguei esse “lugar” pra mim; e por não ter a pele
retinta – “Você não é negra, menina, você é morena, nem tem a pele tão escura assim” –
tive acesso a muitos espaços brancos. Era um acesso que me feria, porque uma vez lá eu
sempre senti que era tolerada e não abraçada, um brinquedinho que entretém, e por
muitos anos me acostumei e usei desse papel pardo de “palhacinha” que me deram, usei
16

do sorriso para não me sentir tão deslocada assim. E hoje as palavras de Carneiro (2014,
p. 108) fazem muito sentido nessas minhas experiências:
A desmoralização cultural do Outro realiza a um só tempo a
superlativização do Mesmo e a negação do Outro. Daí o estereótipo do
negro “verdadeiro”: alegre, brincalhão, infantil, imprevidente, festeiro
etc., o negro de verdade! Destinado ao entretenimento do branco.
Modelo que, na busca de aceitabilidade, muitos reproduzem.

A teoria do branqueamento é defendida com unhas e dentes em países de


colonização europeia, está incrustada em nossos imaginários. Dentro da história
brasileira essa teoria defende o intenso processo de miscigenação, onde os descendentes
de pessoas Pretas passaram a ficar cada vez mais brancos a cada geração, o que
acarretou em um país com diversas tonalidades de pele – do Preto retinto ao marrom
menos escuro, e nessas cores nós podemos observar e sentir os vários espectros do
racismo, a depender da tonalidade.
A Redenção de Cam2 é uma realidade brasileira, onde ser branco/a é ser ideal,
ser “pardo/a” ou “moreno/a” é garantir algumas vantagens e acessos à Casa Grande, ser
“negro/a retinto/a” é não ter acesso à Casa Grande. No fim das contas, levando em
consideração principalmente os diversos espectros desse racismo, ainda continua sendo
ele: o racismo de brancos para “não-brancos”, mas recuso a estar nessa classificação de
silenciamento e embranquecimento.3
As pessoas Pretas/os passam por um processo de exclusão racial sistêmico no
Brasil, como modo de deslegitimar e desarticular lutas, existências, ancestralidade e
fenótipos, construindo a falsa ideia de “democracia racial”; além de colocar a
“pigmentocracia”4 da pele Preta como uma questão menor e não como algo que merece

2
Pintura realizada por Modesto Brocos (1895), que aborda teorias eugênicas do fim do século XIX,
tratando dessa busca por meio do gradual embranquecimento das gerações de uma mesma família através
da miscigenação.
3
Faz-se importante a lembrança de que a miscigenação não é um “fenômeno natural” e sim um
“dispositivo de poder” (TADEI, 2002, p. 3). “Sua gênese e desenvolvimento apresentou três etapas: do
século XVII a meados do século XIX tivemos a emergência de um saber sobre a mestiçagem no meio
religioso, que depois se disseminou entre a população colonial, sendo acolhido pelos intelectuais e
políticos brasileiros do período em questão (esse saber era favorável à miscigenação); em seguida, na
segunda metade do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, esse saber sofreu uma
epistemologização, isto é, ganhou um estatuto científico, passando a ser uma preocupação constante dos
cientistas brasileiros (os vários cientistas brasileiros que abordaram esse assunto, nesse momento,
apresentaram uma resistência à miscigenação), e, a partir da década de 1930, ele sofre uma
reinterpretação, momento em que os principais estudiosos brasileiros do assunto passaram a destacar os
aspectos positivos da mestiçagem, momento em que se consolida a ideia de democracia racial”. (id.).
17

atenção pela sua complexidade. A miscigenação brasileira não é digna de orgulho, ela
na realidade visa disfarçar o processo histórico iniciado aqui e que se deu através do
estupro de mulheres africanas e dos povos originários desta terra, Pindorama, que em
Tupy-Guarani para a linguagem colonizadora quer dizer “terra das palmeiras”.
Os anos se passaram então e eu não era mais a “filha da empregada”, eu era a
própria. Eu me tornei a “mulata”, sexualizada desde a infância, entre toques e abusos.
Com 19 anos fui estuprada – por um homem branco. Com 23 anos fui estuprada
novamente – por outro homem branco. Tudo isso me feriu e me encheu de raiva.
Acabei direcionando por muito tempo essa raiva a mim mesma e a minha
imagem. Isso significava, portanto, sentir raiva dos fenótipos que “carregava”, pois lia-
os como uma carga... E repetia para mim mesma cansada, como se eu fosse uma
navalha falha:
-Você não é uma imagem...

- Você não é uma imagem...

-Você não é uma imagem...

- Você não é uma imagem...

- Você não é uma imagem...

- Você não é uma imagem...

- Você não é uma imagem...

- Você não é uma imagem...

- Você não é uma imagem...

- Você não é uma imagem...

4
Preferi fazer uso do termo pigmentocracia ao invés do termo “colorismo” (cunhado por Alice Walker
em 1982), por este trazer em sua etimologia a questão chave do contexto das construções raciais
brasileiras, que se deram de formas diferentes das estadunidenses, ou seja, os das relações de poder que
definem quem é mais ou menos favorecido de acordo se a pessoa tem mais ou menos pigmentação. Existe
tratamento diferenciado a depender do seu tom de pele, visto que pessoas de pele menos retinta (me
recuso a dizer “mais clara”, porque essa é uma maneira de afirmar que até mesmo o nosso padrão para a
“negritude” parte da branquitude) são mais aceitas e possuem mais acesso em nossa sociedade; e a
depender também de seu fenótipo, pois algumas características como cabelo crespo, boca grossa, nariz
largo determinam como as pessoas são tratadas socialmente, sendo os/as Pretos/as de características mais
“brancas”, isto é, com “traços mais afilados” possuem mais passabilidade, sendo “toleradas” em mais
ambientes. O racismo que pessoas de pele mais retinta passam no Brasil é indiscutivelmente maior,
e esse racismo é reforçado pelo mito da “democracia racial”.
18

Eu não sou uma imagem. Me recuso a ser apenas uma. Imagine se eu cristalizo
tal qual me mostro? Tal qual você me vê? Essa é a questão do momento: eu não sei
como você me vê para além do ótico dessas palavras. Como você me vê se eu não sou
uma miragem? Sólida? Nem concreta eu sou. Quebradiça? Nem de vidro eu sou. Às
vezes 3D eu sou. Duvido que sou. Duvida?
Eu sou presença, cheiro, pele, topografia, estratigrafia, cartografia, “fía” e filha
de pelos ouriçados e profundezas – até dizer chega. Não chegava, até que aprendi a
partir com destino às vezes, outras vezes deixo para o aconchego do desmantelo me
colocar em algum canto novo. Eu sou azeda até dizer doce. Azul turquesa até mirar no
verde. Costumo ser correnteza até evaporar na imagem que construí e construíram de
mim.
Sou uma mulher estranha, de hábitos de estanho, escritas, descritos e enrolados
que nem meus cabelos ralos e castanhos. Também rimo como posso e ando na
velocidade que me permito. Não sou uma imagem, percebe? Sou dentro-fora, às vezes
dentro e fora do meu umbigo. Sou uma viagem, percebe? Aqui e agora, às vezes vivo
nas viagens que imagino. E rimo, rimo como quem passa… E às vezes não rimo, porque
rimar demais perde a graça. O clima, imagino.
A verdade é que agora eu poderia estar dormindo, não literalmente, sim numa
espécie de torpor, de dormência, como as das minhas mãos e pés (às vezes acordo sem
sentir as minhas extremidades, sintoma da anemia). E acho que só não prego os olhos
porque preciso colocar as pregas vocais para te dizer agora que eu não sou projetável,
apesar de lançar alguns projéteis aqui neste trabalho, então só me injete se quiser me
conhecer para além de uma imagem...
Sim, acredito que toda imagem tem fim quando a vista da imaginação acaba.
Acredito que eu possa ser uma imagem também, mas dessas com textura, falhas,
borrada, tem dias que nublada, dias de altíssima qualidade, imagem, inclusive, pixelada.
Mas nunca uma imagem “menor” por causa de um fenótipo. E para além da imagem: o
que é que sobra? Costumo acreditar que as dobras; essas muitas que fiz de mim.
Este trabalho tem algumas dessas dobras, diáspora minha.

Laroyê!
19

AINDA NÃO ENCONTREI UM TÍTULO QUE COUBESSE AQUI

No ano de 2018 eu ofereci este trabalho em uma encruzilhada, esta que uso
como reversão metodológica para essa pesquisa. Encruzilho nela autoras/es nas minhas
escrevivências e assim as performo (seja vivendo, escrevendo e na confluência disso),
nessa busca em romper o campo do “ex-ótico” das subjetividades das Artes Cênicas.
Esse campo caminha dentro de uma regra de humanidade branca, onde nele as
dicotomias “razão” e “emoção” ainda imperam – associando a razão à “branquitude” e a
emoção ao que é Preto.5 Não temos que “ocupar” lugares nem dicotomias. Podemos
circular e estarmos abertas/os ao que as encruzilhadas nos trazem e propõem.
Esse trabalho não possui capítulos, são projéteis – e ainda não sei se é azar ou
sorte ser atingida/o por eles. Projétil é o que é disparado – projetado – de uma arma de
fogo e assim escolhi fazer essa substituição de palavra como parte da reversão
metodológica dessa escrita. A estrutura ainda se assemelha a de capítulos, pois ainda
são divisões de um trabalho que separam noções e conceitos, organizando esse todo.
Quero vazar disso, mas por enquanto ainda sigo esse modelo de encapsular as palavras.
Segundo o dicionário convencional, pois para falar em bala é melhor falar pela
voz do algoz que a dispara, projétil é qualquer sólido pesado que se move no espaço.
Um projétil se abandona quando é disparado, logo após receber um impulso (dedo
apertando o gatilho). O projétil é o que envolve a munição que atravessa a carne, é
ogiva de chumbo em combustão com a pele.
Projétil talvez faça mais sentido do que a palavra capítulo, pois disparo aqui
questões que trato tal qual bala, questões que lamentavelmente atravessam não apenas
metaforicamente corpos Pretos. É sobre reverter a bala que nos atinge com projétil-
palavra. É sobre embalar palavras.
No Projétil 0 – Cartucho vazio ou bala de borracha introduzo a noção de
Poéticas Pretas enquanto objeto desta pesquisa. Disserto sobre esse enquanto veneno-
antídoto desta, pois trata-se de falar sobre epistemicídio através das próprias
escrevivências performáticas de uma atrizta pesquisadora. Também falo nesse projétil
sobre alguns “procedimentos” dessas escrevivências. Essa “parte zerada” é pulsão do
tiro-dissertativo, é vontade, “o antes”, por isso que está em estado zero, mas isso não
significa que ele seja nulo, ele é apenas “antes”.

5
Geralmente a emoção é atribuída às pessoas Pretas e mulheres. A razão fica a cargo da masculinidade
branca.
20

No Projétil I – Ainda não encontrei um título que coubesse aqui, discorro sobre
a metodologia escolhida para essa pesquisa, a encruzilhada (MARTINS, 2002), que
pode ser vista também como um modo de organização menos metódico para se pensar
as Poéticas Pretas em cena/texto/performance. Essa pesquisa é movida pela noção de
“encruzilhada” e tem como um de seus procedimentos a criação de um “experimento
performático”, que se trata dessa voz que você está lendo agora na sua cabeça. A cabeça
é sua e a voz é a minha, mas que pode ser a sua também – vai depender do elo que
construirmos aqui.
Este trabalho carrega uma escrita ou oralidade ou um cerne ou corpo
performativo em sua genética. Essa reversão metodológica apresentada conversa com
discussões a respeito da produção de subjetividades Pretas, no que chamo aqui nesse
trabalho de Poéticas Pretas, que laboram com uma estética Preta e com um erotismo
Preto.
Trata-se de uma escrita da experiência encruzilhada, de uma escrevivência
repleta de singularidades atravessadas por nossa cor, que acaba potencializando de certa
forma os desvios necessários para um desencontro com estereotipias raciais dentro e
fora de “cena”. Para isso, nesse Projétil encruzilho autoras/es como Leda Maria Martins
(2002), Malcolm X (2018), Abdias do Nascimento (1980), Sueli Carneiro (2003),
Conceição Evaristo (2007), bell hooks (1994), Audre Lorde (1978), Toni Morrison
(2011) e Alice Walker (2018).
Nesse primeiro Projétil discuto sobre a necessidade de “ferramentas” como o
afeto e o cuidado para a manutenção das nossas escrevivências e também como modo
de autopreservação ao ódio, pois torna-se importante lembrar que nenhuma luta política,
e, portanto, artística se faz pelo ódio. Ela pode ser feita e impulsionada pela raiva, que
inclusive pode nos ajudar a desestabilizar a hegemonia branca.
É sobre ela – a raiva – que dissertamos no Projétil II, intitulado de Reiva. É
relevante destacar a diferença entre essas duas “ferramentas”, pois o ódio é a
“ferramenta” usada pela própria hegemonia para manter o controle sobre os nossos
corpos, ele nos leva a não nos percebermos enquanto sujeitos desse processo, diferente
da raiva que pode ser usada como potencializadora para os nossos escritos. Assim
sendo, no segundo Projétil encruzilho a raiva nas e com as minhas escrevivências;
encruzilho a minha voz rouca com as vozes de autores como Audre Lorde (2018) e
Frantz Fanon (2008).
21

No Projétil III, intitulado ¿Y si muero aquí? encruzilho a primavera da autora


quilombola Lélia Gonzalez (2018) com a afromexicanidade de Juliana Acevedo Ávila
(2018), problematizando a questão da miscigenação em nossas subjetivações, exaltada
pelo mito da “democracia racial” – no caso brasileiro – e da mestiçagem – no caso
mexicano, dissertando assim sobre o contexto dessas duas diásporas, tão distintas e
próximas em suas respectivas colonizações luso-espanhola. Para falar da necessidade
dessas fraturas-resistências diaspóricas que são os quilombos, inclusive, como
“resposta” às fabulações que são a raça e o racismo (MBEMBE, 2016), encruzilho, no
terceiro Projétil, a noção de Poéticas Pretas com a necroperformance ¿Y si muero
aquí?, que realizei México6; e conceitos como quilombismo de Abdias do Nascimento
(1980) e o corpo-quilombo de Beatriz Nascimento (Apud RATTS, 2007).
Nós precisamos mudar o nosso mundo e não apenas a visão que temos sobre ele.
A nossa escrita é potente porque ela parte do que vivemos, são “ficções reais” que
tocam dentro e fora de “cena”, dentro e fora desse campo extraordinário, as nossas
vivências ordinárias, extraordinárias num campo não mais tão ordinário. É sobre a
necessidade e a fome de escrita que o Projétil IV, intitulado de A gente combinamos de
escreviver disserta. Fala-nos sobre a morte dessa escrita através do epistemicídio, que é
a forma de negação (anulação) a uma educação de qualidade, e, portanto, gerador de
uma inferiorização intelectual, deslegitimando saberes, subjugando nossos
conhecimentos, à medida que cerceia e tolhe a nossa racionalidade, forma de degradar e
rebaixar a nossa capacidade cognitiva. Para falar sobre tal assunto peço emprestada a
voz e presença de Sueli Carneiro (2005), ela está de pé numa encruzilhada, conversando
com Achille Mbembe (2018) e com o seu conceito de Necropolítica. Ambos falam
sobre uma política de morte, assim como Conceição Evaristo (2014) em seu conto A
gente combinamos de não morrer. Os três em pé numa encruzilhada. Nós quatro. Cinco
agora.
Seguindo o curso nos deparamos com o despacho deste trabalho – intitulado de
Para quem essas mãos apontam? Nele são feitas algumas considerações sobre essa
pesquisa e o seu/meu futuro, sobre o salto, sobre a necessidade do pulo, sobre os vários
tiros disparados no escuro. São desmontes de saúde, educação, mas mais do que isso é
desmonte de gente. É “desmonte” antigo e tem sua (a)fundação no processo de

6
Tratou-se de um Intercâmbio de Estudos que contou com um programa de atividades que foram
desenvolvidas entre os meses de agosto a novembro de 2019, sob orientação a distância da Profa. Karyne
Dias Coutinho (UFRN) e orientação in loco da Profa. Itza Amanda Varela Huerta (Centro de
Investigación y Estudios Superiores en Antropología / CIESAS – Pacífico Sur).
22

colonização, escravização de pessoas africanas e dos povos originários; ele tem


continuidade no “pós-abolição”, nas favelas e comunidades que nesse desmonte secular
foram montadas, amontoadas e disparadas, porque são alvos do que não presta: polícia,
violência, fome e esgoto a céu aberto.
Inicialmente, nos anos de 2017 (onde submeti o projeto para a pós-graduação em
Artes Cênicas) e 2018 (primeiro ano da pós-graduação) resolvi trabalhar com “poéticas
de gênero” como objeto desta pesquisa, por também ser uma temática que eu já vinha
dialogando durante a graduação em Teatro (2013-2016).
Nesse percurso fui pesquisando outros significados para “gênero” –

Definição do Dicionário das Semânticas Ordinárias Cotidianas


Genealogia das “pulsões de vida”; modo não vulgaris: gerar a si.

“Como gerador de identidade?”, me perguntaram. Fiquei na dúvida, mas respondi


que sim, porque era a forma que me desenformava sempre: fofa, caída e quente – tão
quente que dói ânus, estômago, dói até meus dentes. Só dói. Mas no fundo algo me
incomodava. “Identidade de gênero”, ela reportava – não tinha saída. Era isso. Daí que
resolvi pensar sobre essa dor: “por que dói?”; “por que transformaram a minha vida em
dor?”; “como gênero faz parte da minha identidade?”, perguntei, ela perguntou.
Ela (que disseram que era eu). “Só faz”, responderam. Mas não criei essa identidade.
Ela estava aqui quando afirmaram o seu/meu gênero num consultório asséptico, sempre
contra a sua-minha vontade, isso depois veio a se tornar um hábito, me ensinaram como
uma verdade: a única. O costume de forçar. O gênero nasceu antes de mim, foi gestado
(genus) com cinco meses de vida em casulo. E antes, quem diria, eu era só um
microcosmo que passava meus dias no saco escrotal do meu pai. Uma ejaculação
transforma vidas, isso é bem verdade. Eu era Pangeia antes e logo depois, em questão de
instantes me tornei uma placa tectônica. Correr daquele saco foi o meu primeiro conflito
existencial. E depois de anos te digo, ser placa tectônica me trouxe experiência em
conflito, ser placa de gênero feminino – que “naturalmente” é inferiorizado em
detrimento do gênero branco masculino. “Gênero como identidade?”, insistiram.
“Menina ou menino?”. Voltei atrás… “Gênero como poética é que me satisfaz”, pois já
que ele está aqui dentro desse mecanismo emaranhado e sem sentido, com cheirinho
podre de patriarcado e racismo, o uso como criação e recrio gênero por masturbação de
palavras, movimentos, siririco o que vejo e sinto. Quando perguntam meu gênero,
23

respondo então:

- Estou “mulher-moça-rapariga-menina-entendida-por-muitos-como-dona-de-uma-
energia-unicamente-feminina” – e isso não me dói mais, mas na maior parte do tempo
estou com energia “tectônica”, a energia do meu nascimento – depois que fui
fecundada, depois de nadar quilômetros, suada de placenta, aguada, coberta e barrenta.
Complexa do plexo pequeno. Mas cansei de enrolar gênero, então voltei atrás:
gênero como poética é que me satisfaz!

Neste percurso (2013-2018) comecei a perceber mais as questões de gênero que


me atingiam, bem como passei a escrever sobre elas – vociferar meu silêncio,
experimentá-las cenicamente também no meu corpo-cotidiano-extra-cotidiano. Senti a
necessidade de entende-las de forma mais fluida e poliforma, ou seja, trabalhar o
próprio gênero de modo a me desviar de alguns estereótipos que sancionam e fixam-no
em um padrão binário, este que é portador de energias “femininas” (em que são
remetidas a características como sensibilidade, cuidado, afeto e passividade) e/ou
“masculinas” (ligadas à produção do conhecimento, força, virilidade e agressividade).
Fui percebendo então nesse processo as dissonâncias que conflitavam com a minha
própria existência.
Para tornar as coisas mais “claras”, nós podemos ler os estereótipos
mencionados no parágrafo acima com a seguinte legenda: “estereótipos brancos de
gênero”, pois são bem diferentes quando os olhamos pelo contexto racial, pois às
mulheres Pretas geralmente lhes é tirado o afeto e lhes são remetidos estereótipos
ligados à força, agressividade e sexualidade/subserviência, sendo-lhes exigida também a
passividade, algo que também é remetido aos homens Pretos (levando em consideração
as próprias nuances do machismo), porém a esses é majoritariamente negada a produção
de conhecimento tão presente no meio masculino, que continua sendo
hegemonicamente branco.
Obviamente não tinha como partir apenas do gênero nessa pesquisa, pois para a
população Preta esses marcadores funcionam de formas bem diferentes das
disseminadas, inclusive pelo Feminismo, por exemplo, visto que esses marcadores
ocidentais não dão conta de abraçar as vivências e opressões que vivemos em
decorrência do racismo. Mesmo o Feminismo Negro e/ou Interseccional, por terem em
24

sua base uma ideologia que não foi feita por e para pessoas africanas 7 também não
atendem a população Preta de forma mais integral e holística. Torna-se importante
destacar que para as mulheres brancas o Feminismo é extremamente necessário.
Mas tampouco disserto neste trabalho sobre “Feminismo Negro” ou
“Interseccional”, na realidade converso nessa escrita com autoras reconhecidas como
feministas que discorreram ou discorrem sobre vivências Pretas de gênero. Essas que
antes de mais nada são atravessadas por opressões raciais e constroem em suas
epistemologias a importância da construção de subjetividades Pretas como modo de
afeto, autonomia e potência.
As teorias pertencentes à natureza particularizada das experiências das
mulheres africanas têm sido largamente insuficientes. Aqueles
relacionados com a tradição feminista, tanto branca quanto negra,
criticavam as condições sociais das mulheres no seio das sociedades
europeizadas e buscavam soluções dentro de paradigmas europeus.
Fugindo desse padrão, a teoria do mulherismo africana (1993) de
Hudson-Weems analisa criticamente as limitações da teoria feminista
e ajuda a explicar, de forma abrangente, as ideias e ativismo de
algumas mulheres africanas que contribuíram para a teoria womanist
(mulherista) de diferentes perspectivas ideológicas. Desta forma, ela
começa a construção de um paradigma afrocêntrico que tenha as reais
condições de abranger o ativismo de todas as mulheres africanas,
reconhecidas ou ignoradas, que lutaram para libertar africanos em uma
escala global.

Me identifico como mulherista africana e essa escrita dissertativa também


acompanha um processo de amadurecimento ao longo desses dois anos. Trata-se de um
processo de resgate e emancipação, implícito de muitas formas aqui neste trabalho,
porém optei por não discorrer aqui sobre esse processo nem tampouco explanar sobre
esse paradigma, mesmo ele estando latente aqui de outras formas. Porém achei
importante mencioná-lo e assumi-lo enquanto uma parte inteira desse trabalho e das
escrevivências presentes, optei por afirmá-lo principalmente porque ainda se possui o
hábito de ligar discussões sobre raça e gênero a teorias feministas ou teorias “feministas
negras”. Então te reafirmo que não, não é sobre isso.

7
“O conceito africano é usado para descrever mulheres, homens e crianças, que são pessoas africanas
continentais ou membros da diáspora africana, isto é, pessoas que vivem em sociedades europeias ou
europeizados fora do continente. Este conceito reconhece a especificidade cultural e experiência dos
diversos povos africanos. Por causa da necessidade da ‘intelligentsia’ europeia em distinguir tipos
humanos como raças, os povos africanos foram categorizados como sendo da raça negra, que pode variar
do preto ao marrom. Dimensões psicológicas, distinções culturais e atributos físicos e mentais têm sido
atribuídos às assim chamadas raças para diferenciá-las em uma escala hierárquica. No caso deste trabalho,
africano tem um valor genético que liga aqueles que carregam as características físicas, mas, mais
importante, oferece o potencial de conectar essas características para um sistema de valor cultural que
venera a humanidade africana”. (DOVE, Nah, 2018, p. 136).
25

Então a escrita aqui compartilhada não se trata de uma arte que fala apenas sobre
gênero, “políticas de gênero” e/ou “identidades de gênero” associadas a modos de
existência, pois isso pode se confundir pelo fato de eu ser uma mulher e tudo o que eu
escreva necessariamente entra nesse marcador ocidental de gênero que me perpassa, até
porque de modo geral esse tipo de arte/escrita imprime também todo esse imaginário
que a envolve. Quando me refiro a gênero ele não será o destaque, mesmo que faça
parte substancial deste trabalho, pois afinal são como as minhas vivências se inscrevem,
são como construíram e como construí as minhas subjetividades diante de uma
sociedade patriarcal; quando destaco esse conceito na minha produção artística, não o
trato apenas como “identidade social”, filha também de um contexto histórico e
cultural; a minha intenção é utilizar o termo “gênero” também enquanto remanescente
de um contexto de exploração e imposição coloniais, por circunscreverem em si as
mesmas bases do racismo.
Na minha escrita dou preferência a um gênero perpassado também por essa
poética, foi a maneira que encontrei de transvê-lo, colocando no jogo dessa criação e
recriação, assumindo-o na minha performance/escrita não como um fator de
apagamento do gênero e das vivências masculinas Pretas, nem tampouco ignorar os
resultados do patriarcado ocidental e as inferências desses sobre as vivências masculinas
que afetam diretamente as vivências femininas de pessoas Pretas / negras.
Este trabalho não é sobre gênero, mas também é sobre isso, pois o “gênero” da
forma como se construiu é hegemônico, branco e ocidental. Para além disso, quero
destacar nesta pesquisa sobretudo questões sobre a produção artística que remetem a
uma Poética ou a Poéticas dos nossos corpos.
Esse trabalho é assim meio forçado – diáspora minha, porque força e também
me recobra: força!
26

PROJÉTIL 0 - CARTUCHO VAZIO OU BALA DE BORRACHA

Somos feitos/as de: A lacraia


- carne; (pra quem Choro mais e escavo
- terra; ainda não sabe) a terra-corpo,
- e osso. é pessoa escavo
Mas a gente putr_enfarta: e vou como sopro,
se conforma pode ser homem vento fininho,
em ser migalha, pode ser mulher fraco...
rala, pode ser bicho, no oco!
presa no bolso. é peso sem fluência... Vou tomando força,
A gente se espanta Um misto, e na pira da respira
com o tamanho de coisa que engasga, o sopro fino vira
da explosão, delito, sopro grosso,
com o pipoco! desconforto. rajada de vento...
A explosão de Ela me engole, Sopro-pipoco!
sair da casa-bolso, me cospe... Sopro-furacão,
a explosão de e diz: sopro-tornado!
não esperar AR SOPRO...
nem mais um pouco. - Volta pro teu lugar, A lacraia-caroço!
Renasço então infeliz... Volta pra Que se desfaz,
coberta de placenta casa-bolso! esvai virando
e ando nos Migalha amassada! pó de osso.
encantos do ressurgir... Migalha da migalha “É só
A lacraia do olho, da migalha, sóbrio você!”,
inconformada com seu filhote de esgoto! disse a consciência
a saída de bolso, retomada,
se achega, Choro e respondo: indomada
vem em passos - Uma porra que volto... agora...
rápidos, nem mais um pouco!
pequenos - É só bril...
(ti-ti-ti-ti-ti-ti) Sou então forçada, Brilho de olho,
e se aconchega arrastada, o seu brilho,
na carne podre carregada por aquele ela disse.
do conforto. caroço-escroto...
Espalhando veneno, E a ilha do olho
obsidiana - Voltei, voltei se enxágua
lacraia... pro casa-bolso. e deságua
Ela é escroto! no oco do caroço...
Caroço-olho, E na pira da respira, Sim,
caroço que penso, nós somos
engole caroço. a saída agora feitos de:
não é por fora - carne;
é por dentro. - terra;
Por dentro da - osso;
carne, - de placenta;
é por dentro - somos feitas
do osso! de sopro!
27

Eu acredito que um navio perdido,


conduzido por navegantes cansados e mareados
ainda pode ser guiado para atracar em casa.
(Assata Shakur)

A “atriz-ta” entra em cena e, mesmo sem abrir a boca, a sua presença já diz algo,
ainda que silenciosamente. Ela carrega estereótipos em si, eles estão fixados ao longo de
todo o seu corpo: da sua altura ao seu peso, dos seus curtos cabelos ao seu gênero, e
essas características dentro dos estereótipos disseminados na sociedade em que vivemos
demarcam também, grosso modo, sua orientação sexual. “Nela” antes da presença, do
gênero, sexualidade, da sua massa adiposa, postura, caminhar – antes ela fosse só uma
voz, sem cor, porque o que importa aqui nesse caso é a cor e não a sua voz… A cor…
Ela é negra! “Espera, nem tão negra assim”.
Mas nessas folhas (brancas) não quero usar essa palavra padrão para destacar a
“negritude”, porque essa palavra nos lembra apenas de quem somos (ou no caso quem
nos ensinaram a ser) no hemisfério ocidental pela tutela do homem branco, antes e
depois de sermos sequestradas/os.
Nós fomos cientificamente produzidos pelos homens brancos. Sempre
que você vê alguém que se chama de Negro, eis um produto da
civilização ocidental – não apenas da civilização ocidental, mas
também do crime ocidental. O Negro, como é chamado ou se chama
no ocidente, é a melhor evidência que pode ser usada contra a
civilização ocidental hoje. Uma das principais razões pelas quais
somos chamados de Negros é que não saberemos quem realmente
somos. E quando você se chama assim você não sabe o que é seu.
Contanto que você se chame de negro, nada é seu. Sem idiomas –
você não pode reivindicar idiomas [...], você estraga tudo. Você não
pode reivindicar qualquer cultura uma vez que usa a palavra “Negro”
para se identificar. Ela não atribui você a nada. Nem sequer identifica
a sua cor. (X, Malcolm, 2018, p. 26).

Porque Preto tem raiz, mas Negro é “árvore sem raiz”, árvore seca de tanto ser
comida por cupins, comida e sem história antes de virar comida, árvore morta
culturalmente, pois “não existe uma cultura Negra, ela não existe. A terra não existe, a
cultura não existe. A terra não existe, a cultura não existe e o homem não existe. Eles
tiram você da existência chamando-o de Negro” (id, p. 27).
Li um dia desses que “no Brasil ser ‘negro’ é uma escolha”. Temos que
problematizar essa escolha, porque simplesmente é problemático “escolher ser negro”,
se existe uma parcela da população que escolhe existe outra que não escolhe, então “ser
negro” entra também como algo impositivo. A “negritude” foi construída e esboçada
28

para ser um fardo. O “pardo” é esse fardo do Brasil, o filho bastardo depois do estupro.
O Preto é o fardo que o Brasil não quis assumir. A/o “negra/o” foi construída/o para
cercear.
Torna-se importante ressaltar que o contexto racial de Malcolm X é bem
diferente da experiência brasileira, visto que a primeira, estadunidense, tem uma leitura
binária e fixa a respeito de raça, já no Brasil essa leitura só começou a ocorrer a partir
da década de 1970, com o aumento da desarticulação de celebração da mestiçagem,
assumindo assim um modelo político mais bipolar (branco-negro).8 É interessante
destacar que Pretas/os estadunidenses, por causa desse apartheid assumido, sempre
souberam e se reconheceram como Pretas/os, já que essa questão lá é lida pelo viés da
própria cor e da ancestralidade (genética). No Brasil, devido ao processo de
miscigenação essa “identidade” Preta foi “espalhada”. Arrancaram as folhas, os galhos,
o caule, e antes tivessem deixado apenas um toco com raízes apodrecendo, mas não,
também arrancaram as raízes9.
Dentro do contexto estadunidense existem muito discursos políticos e uma
produção de conhecimento intensa de Pretas/os reivindicando um retorno à África, o
discurso brasileiro geralmente se centra numa questão mais identitária, ou seja, lutamos
para nos reconhecerem e nos reconhecermos enquanto “negros e negras”, lutamos por
uma participação na sociedade, pois o que nos chegam são migalhas disfarçadas de
“democracia racial”10.
Nós, os negros, temos sido forçados a esquecer nossa história e nossa
condição por um tempo demasiadamente longo. Por que ficarmos
quietos, silenciosos, e perdoarmos ou esquecermos o holocausto de
milhões sem conta - cem, duzentos, trezentos milhões? – de africanos
(homens, mulheres, crianças) friamente assassinados, torturados,
estuprados e raptados por criminosos europeus durante a escravidão e
depois dela? [...] Podemos ler as páginas da história da humanidade
abertas diante de nós, e a lição fundamental que nos transmitem é de

8
“O combate à discriminação racial e a denúncia do mito da democracia racial, ao mesmo tempo em que
busca a afirmação de uma identidade racial negra positivada, como no poema de Solano Trindade, são
características fundamentais do movimento negro contemporâneo que constituiu no Brasil na década de
1970. Naquele momento, a opção pela utilização da ideia de raça como um instrumento para construção
de uma identidade negra positiva, e com o objetivo de combater as desigualdades estruturais que atingiam
a população negra no Brasil, foi uma saída encontrada pelo movimento social negro que se constituía em
meio às propagandas oficiais da “democracia racial” brasileira [...] Nesse sentido, o racionalismo presente
nos discursos do movimento negro contemporâneo é evidente. Abordando um outro aspecto à questão
racial, e falando sobre a validade da utilização da ideia de raça no Brasil”. (CABRAL, 2010, p. 61).
9
Mas não contavam com as sementes caídas naquele solo seco. Germinamos.
10
Gilberto Freyre “[...] teria sido o criador do conceito de ‘democracia racial’, o qual agiu como principal
impedimento da possibilidade de construção de uma consciência racial por parte dos negros” (SOUZA;
Jessé, 2000, p. 136).
29

uma enorme fraude teórica e ideológica articulada para permitir que a


supremacia ario-euro-norte-americana pudesse consumar sua
imposição sobre nós; e seu dictate econômico, sócio-cultural,
ideológico e político nos modelasse qual uma camisa-de-força
inevitável. Sob a lógica desse processo, as massas negras do Brasil só
têm uma opção: desaparecer. Seja aniquiladas pela força compulsória
da miscigenação/assimilação, ou através da ação direta da morte pura
e simples. [...] De nossa perspectiva, no que se refere a certos
objetivos, a luta do negro brasileiro difere da luta de seus irmãos afro-
norteamericanos. Aqui nos Estados Unidos ele é uma minoria rodeada
pela sociedade majoritária branca racista. No Brasil, debaixo das
variadas gradações de cor epidérmica, as massas de descendência
africana – os negros – somam a maioria absoluta do povo brasileiro.
Se abandonarmos os estilos de raciocínio inerentes a cada um dos
grupos dominantes, verificaremos que o Brasil pratica na América do
Sul, uma política racial de conteúdo e consequência racistas –
discriminatória e segregacionista – baseada no exclusivismo branco-
minoritário exatamente nos moldes daquela praticada pelos aparteistas
da União Sul Africana. (NASCIMENTO, 1980, p. 22).

É importante ressaltar o contexto brasileiro, pois é o que vivo/vivemos, para


além das palavras são as vivências nas ruas, para além dessas folhas são as vivências em
nossas casas, com os nossos familiares, amigos, patrões (senhores e sinhás) que ferem a
nossa existência e nos impulsionam ainda mais a uma busca e afirmação por uma
“identidade”, dentro e fora do contexto da miscigenação.
Portanto, mesmo diante do processo de busca identitária do contexto brasileiro,
da importância dentro dos meandros de como se construiu a colonização e
principalmente como se deram as políticas raciais pós-falsa-abolição, mesmo diante
dessa necessidade de nos reconhecermos e nos entendermos enquanto “negras/negros”,
opto por usar neste trabalho a palavra Preta/Preto. Porque Preta/o é linda/o!
Perceba que a necessidade não mudou com a troca de palavra, ela (ainda)
permanece aqui tão intacta como a necessidade que tenho de escrever – e eis o que
quero nesta escrita dissertativa, trocar as palavras, invertê-las, desencaixá-las, se
possível. Descabê-las. E descabelada te digo que as rupturas nessa identidade precisam
continuar emergindo, até porque “o/a negro/a” não é um sujeito estático, fixo. É
necessário reelaborarmos nossos discursos e práticas, porém tendo sempre em mente o
contexto da diáspora brasileira de desumanização do povo Preto e da construção de uma
escala pigmentocrática ao longo desses mais de cinco séculos.
Trata-se do velho mito da democracia racial disfarçado com anos de eugenia
brasileira. Eugenia: ingenuidade ou ignorância opressiva? A segunda opção sem
dúvidas, já que todas as pessoas brancas nesse constructo social ocidental, e, portanto,
30

patriarcal, beneficiaram-se com ela e com o colonialismo, se beneficiam até hoje com o
racismo. Está na sua estrutura e a questão é tão profunda quanto essa ferida.

[...] em nosso país, o escritor afro-brasileiro (assim como qualquer


artista Preto ou qualquer pessoa Preta) é um ser quase inexistente,
já que umas raras exceções confirmam a regra. Os motivos? A
resposta é simples: devido ao racismo. Um racismo de tipo muito
especial, exclusiva criação luso-brasileira: sutil, difuso, evasivo,
camuflado, assimétrico, mascarado, porém tão implacável e
persistente que está liquidando definitivamente os homens e mulheres
da raça negra que conseguiram sobreviver ao massacre praticado no
Brasil. Com efeito essa destruição coletiva tem conseguido se ocultar
da observação mundial pelo disfarce de uma ideologia de utopia racial
denominada “Democracia racial”, cuja técnica e estratégia têm
conseguido, em parte, confundir o povo afro-brasileiro dopando-o,
entorpecendo-o interiormente, tal ideologia resulta para o negro num
estado de frustração, pois que lhe barra qualquer possibilidade de
auto-afirmação com integridade, identidade e orgulho.
(NASCIMENTO, 1980, p. 14, grifo nosso).

A Pretidão precisa ser entendida como potência e até mesmo como


“autopotência” — em cena e fora dela, já que estamos nos referindo a caminhos
imbricados. É nesse sentido que propomos discutir a ideia de Poéticas Pretas como
modo de consciência, transformação e desvio dos estereótipos de raça nas práticas
criativas nas Artes Cênicas. Trata-se, portanto, de uma noção trabalhada a partir da
reconstrução de nossas subjetividades através do exercício de nossas escrevivências,
atravessadas por zonas de conhecimentos-práticas afrocentradas11.
O objetivo desta Dissertação são as próprias Poéticas Pretas, ou seja, os rastros
encontrados ao longo do caminho – e não estou falando apenas dos corpos mortos
deixados, estou falando dos sobreviventes, pois algumas pessoas fugiram antes de mim
e deixaram esse caminho marcado; tem momentos que é confuso achar esses rastros
turvos e escondidos, porque não são bem aceitos e inseridos na ordem hegemônica
branca. Mas eis o desafio das Poéticas Pretas, o de construir rastros de “viventes” e não
mais de “sobreviventes”. É sobre criar novas rotas, nossas rotas – não rota de navio, dar

11
“A Afrocentricidade é um tipo de pensamento, prática e perspectiva que percebe os africanos como sujeitos e
agentes de fenômeno atuando sobre a sua própria imagem cultural e de acordo com seus próprios interesses
humanos” (ASANTE, Molefi, 2009, p. 93, grifo nosso). O conceito de “africano” que Molefi Kete Asante
menciona foi referido na nota de rodapé número 7.
31

nota das nossas cartografias12, prestar atenção nas estratigrafias e ao mesmo tempo se
distrair (desviar) disso aqui, desse formato de escrita, é mapear subjetivações,
pensamentos, fruições, contrapô-los ao fazer artístico que nos doutrinaram e que são
racistas em sua gênese, porque são excludentes e reafirmam com essa exclusão o nosso
epistemicídio, a nossa morte.
As Poéticas Pretas são sobre morte, mas sobretudo são sobre vida, as nossas. É
importante destacar que elas não se tratam de catalogação e descrição do que pessoas
Pretas criaram “até agora” nas Artes Cênicas – elas são crias, elas criam, criaram e estão
criando. É sobre acesso a essas criações artísticas e epistemológicas, pois será a partir
desse que poderemos usá-las nas nossas próprias criações, sendo estímulos de nós
mesmas/os. Trata-se de sermos pulsão de nós mesmos/as, início da onda, a própria onda
intermitente, afrocentrando assim as nossas práticas. Referências Pretas para trabalhos
Pretos, caminhando para a construção de subjetividades mais Pretas!
Para tanto, os “procedimentos” para a realização dessa pesquisa são o do
“desanuviamento”, ou seja, assoprar as nuvens que cobrem nosso conhecimento,
aliviando assim tensões, ameaças e opressões que derivam do racismo. Nesse sentido
procedemos através de tentativas de desformatar e desfundamentar as práticas de
conhecimento e arte branca que consumimos, através das nossas próprias
escrevivências, através também de um retorno à África13 e às epistemologias de pessoas
africanas – seja do continente ou da sua diáspora.

12
Neste trabalho entendo a cartografia numa linha diferente da trabalhada “massivamente” nas Artes
Cênicas, isto é, como um método de pesquisa em Artes. Entendo e uso a cartografia aqui como uma
escrita coronária da experiência, ou seja, ela facilmente poderia ser uma cardiografia, pois acredito que
pensar e, portanto, escrever é antes de mais nada uma ação coronária. Essas cartografias são trajetos (não
no sentido de rotas pré-estabelecidas, determinadas e/ou fixadas); elas são (às vezes de forma nada sã)
escritas da própria experiência, regurgitar de palavras, palavrando o avesso das coisas – que só é
entendido como avesso porque não é compreendido como algo “padrão” ou “normal” muitas vezes, pois
fere essa hegemonia ocidental que nos cerceia. Por isso é importante ressaltar que não se mapeia e
estabelece uma “pré-experiência”, ela simplesmente acontece; e depois podemos então nos debruçar
sobre, escrevê-la a partir de uma perspectiva coronária. Tratam-se de caminhos escolhidos dentro de
experiências muitas vezes não escolhidas, mas que apenas aconteceram e acontecem. Cartografar aqui é
um ato coronário!
13
É importante ressaltar aqui a pluralidade que é o continente africano com atualmente seus 54 países –
que foram divididos de forma injusta e conquistadora no século XIX e que só “finalizou” na Conferência
de Berlim (1884-1885); bem como é a pluralidade das suas diásporas. Não é a minha intenção neste
trabalho resumir a África exclusivamente ao passado, ao que chamam de África mítica (forma ocidental
de diminuir a própria história deste continente), bem como colocar todo um continente num só “bolo”; e
tampouco analiso África na contemporaneidade. Quando falo no continente africano me refiro a ele como
berço da humanidade, como lugar-berço de nossas epistemologias, como referencial e que sim, possui
mesmo diante da sua pluralidade uma unidade cultural. Sobre o assunto ler o historiador Cheikh Anta
Diop, A unidade cultural da África Negra. Esferas do patriarcado e do matriarcado na antiguidade
clássica (Tradução de Sílvia Cunha Neto, revisão de Susana Ramos. Luanda, Edições Mulemba; Ramada,
32

Utilizo esse termo e essa noção neste trabalho inspirado pela leitura de autores
como Malcolm X, pois estamos constantemente a propagar elos contínuos, transmissões
de conhecimento que não devem ser interrompidos. Estou falando do agora, mas é
também sobre o futuro, propagação de nosso conhecimento, História, danças e pulsar
criativo, podados. As Poéticas Pretas são esses elos, é sobre raiz, mas sobretudo, é
sobre semente. Elas me questionam sempre:
Naara, o que você tem plantado?
Mas me diga, o que você tem colhido?
Do que tem se alimentado?

O que temos plantado, o que temos propagado para nós e para as gerações
futuras? E talvez esse termo, com essas significações só existam aqui nesta Dissertação,
eu não tenho certeza, acredito em “pensamentos múltiplos” e não em “ineditismo”, mas
é importante mencionar que essa noção tem elo propagativo, pois outros trabalhos que
carregam “essa linha” (“esse novelo” de ideia) têm se difundido cada vez mais, termos
como “poéticas negras”14 e “poéticas de cenas pretas”15 vem sendo bastante utilizados.
Esse Projétil 0 é a pulsão para o disparo, é cartucho vazio ainda, porque é ideia
antes da matéria, é necessidade se manifestando. Mas é também bala de borracha, que
acham que não mata, que só machuca, só contém. Bala de borracha pode matar sim.
Ideias também matam...
E assassinadas, outras ideias morrem.
No entanto, antes de falar mais sobre as Poéticas Pretas – ainda em “estado de
semente”, vi a necessidade de arar o terreno, aguá-lo, por isso essa noção volta de forma

Edições Pedago, 2014. Em relação ao conceito de Diop sobre a unidade cultural africana, “caracteriza-se
na sua generalidade, pela análise da família e filiação matrilineares, pela criação do Estado Território (em
oposição à Cidade-Estado ariano), pela emancipação da mulher na vida doméstica, por uma espécie de
colectivismo social, chegando até à despreocupação em relação ao futuro. Caracteriza-se também por uma
solidariedade material de direito para cada indivíduo (o que faz com que a miséria material ou moral seja
desconhecida até aos nossos dias; é certo que existem pessoas pobres, porém ninguém se sente só,
ninguém está angustiado)” (KWONONOKA, Américo, 2015, s.p.).
14
Trata-se de um termo mais utilizado na área da literatura, sobre o assunto podemos citar trabalhos como
o de Conceição Evaristo (1996; 2009) e Luiz Henrique Oliveira (2010). Evaristo trabalha sobre essa
temática em sua Dissertação de Mestrado – Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade, que
defendeu em 1996 na PUC/RJ; e reapresenta algumas ideias que tem proposto para discussão sobre a
construção da personagem negra na Literatura Brasileira no ensaio com mesmo título. Disponível em:
<http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/4365/4510>. Acesso em: 15 de maio de
2019. Já Luiz Henrique Oliveira escreveu o livro Poéticas negras: representações do negro em Castro
Alves e Cuti, em que confronta ambos os poetas.
15
FERREIRA, Tássio. Afrocênica: Poéticas de Cenas Pretas. Revista da Associação Brasileira de
Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), [S.l.], v. 11, n. 27, p. 86-112, fev, 2019. Disponível em:
<http://abpnrevista.org.br/revista/index.php/revistaabpn1/article/view/666>. Acesso em: 15 de maio de
2019.
33

mais latente no Projétil III desta Dissertação ao falar sobre a prática da


necroperformance. É importante ressaltar que o seu desenvolvimento ao longo deste
trabalho é contínuo.
34

PROJÉTIL I - ARMA DE ILHA

Vejo a alquimia Entrou pelas frestas Ai de mim…


acontecendo no céu. e hoje faz festa Aborrecida
A lua fina, no meu corpo às vezes grata.
céu laranja, azul, arredio.
verde-planta, Cercada por
Vejo mais tons coqueiros guardiões.
em tons de pastel.
de azul no céu. Ossain balançou
Vejo a minha Vejo tons de castanho afirmativa,
insônia refletida no céu. também na minha pele. falou pra eu não
Céu claro, calmo Vejo pelos, arestas,
me preocupar.
e o sono batendo buracos, defeitos,
na porta da testa, vejo escamas, Alquimia bateu
os olhos quase “sou peixe?” – na porta e miando
serrando na pede uma resposta.
madeireira Sou brecha? Não abro,
Sou feixe? estou introspectiva,
da cabeça.
Alvo na testa? não quero visitas.
Estou tonta, “Alquimia não
ritornelo, Quero não.
Vejo e não me gosta de negativas”.
sou animal,
bicho estranho sinto bem. Alquimia bateu
com meus mais uma vez na porta.
olhos pequenos Alto, Abri então e ela me olhou
com tons de lá no automático bem no fundo dos feixes -
a estima anda Saíam luzes,
castanho.
acinzentada. lágrimas e faíscas.
Ultimamente só sei
escrever sobre Ausente, Eu via a Alquimia.
saudade; esqueço de mim. Era uma bola laranja
e isso me aborrece. Ando fazendo crueza, queimando n’água.
Ultimamente só tenho ai de mim, Alquimia me beija,
andado latente, cruel comigo o tempo para
trincando os dentes mesma! e sinto a fumaça
de dor e de frio. Ando fazendo no quarto.
Ultimamente sinto aborrecimentos.
Não se demora!
falta de calor-esquentes. Daí que aquelas Sorri,
cores todas me
A solidão tem me queimei…
me visitado, então… colocaram em
Lânguida, outro estado, Algo que mia
nem bateu na porta. o de agradecimento. foi embora!
35

Não há nada mais correto para os povos africanos ou pessoas


africanas no mundo, do que a nossa própria experiência histórica. Se
nós estamos engajados no processo de maturidade, então precisamos
estudar a nossa própria cultura, a nossa filosofia, precisamos honrar
nossos ancestrais, precisamos respeitar as tradições filosóficas que
durante milhares de anos produzimos. Não podemos simplesmente
jogar isso fora, mas a experiência da escravidão, escravatura do
colonialismo, o idealismo nos colocaram longe de nós mesmos,
ficamos desorientados e, consequentemente,
nos tornamos imitações da Europa.
(Molefi Kete Asante)

Neste projétil acredito que seja interessante trazer a perspectiva de Leda Maria
Martins (2002, p. 89), que se refere ao corpo como “um portal que, simultaneamente,
inscreve e interpreta, significa e é significado, sendo projetado como continente e
conteúdo, local, ambiente e veículo da memória”. O corpo como criador e
potencializador de poéticas em cena.
Leda Maria Martins possui estudos mais focados no universo de enunciação
relacionados às identidades e culturas Pretas e a sua relação com as artes performáticas,
bem como constrói a noção de “encruzilhada” como operador conceitual. Ela tem como
objeto de pesquisa a performance e as cenas rituais, onde pensa “o corpo e a voz como
portais de inscrição de saberes de várias ordens” (2003, p. 66). Para a autora (id.),

[...] o corpo em performance é, não apenas, expressão ou


representação de uma ação, que nos remete simbolicamente a um
sentido, mas principalmente local de inscrição de conhecimento,
conhecimento este que se grafa no gesto, no movimento, na
coreografia; nos solfejos da vocalidade, assim como nos adereços que
performativamente o recobrem. Nesse sentido, o que no corpo se
repete não se repete apenas como hábito, mas como técnica e
procedimento de inscrição, recriação, transmissão e revisão da
memória do conhecimento, seja este estético, filosófico, metafísico,
científico, tecnológico, etc.

A encruzilhada como reversão metodológica

É partindo da ideia de “encruzilhada” proposta pela autora que podemos


entender essas Poéticas Pretas como centradas e descentradas ao mesmo tempo, cheias
de desvios e interseções, múltiplas e convergentes, singulares e plurais, gêneses
disseminadoras, cheias de fusões e lugar também de rupturas. A encruzilhada produz
sentidos plurais e as Poéticas Pretas com as quais trabalhamos são carregadas de
encruzilhadas.
36

Esse trabalho é feito de encruzilhadas de textos, sons que saem do meu corpo, de
ebós16 e de dedos que saem da minha escrita. Me leia em encruzilhada então:
A “encruzilhada” pode ser vista também como um modo de organização menos
metódico para se pensar as Poéticas Pretas em cena/texto/performance. Assim, movida
pela noção de encruzilhada, a pesquisa que ora apresento tem como um de seus
procedimentos a criação de um “experimento performático”, que ora é “escrito”, ora é
“falado”, “balbuciado”, “gritado”, “sussurrado”, pois esse trabalho carrega em sua
genética uma escrita ou oralidade ou, caso se prefira, um cerne ou corpo performativo.
A partir de estudos teórico-práticos e de atravessamentos e encontros com
outras/os artistas e pesquisadoras/es é que vamos compondo, construída também através
da emergência de uma rede de afetos. Uma coisa reverbera na outra: escrita e
experimento performático coexistem em vontade de potência, sem uma ordem pré-
estabelecida ou hierarquia, é tudo tecido no caminho, no aqui e agora, visando também
o entendimento da cognição inventiva e da articulação entre arte e produção de
subjetividades.
Nesse sentido, as Poéticas Pretas não precisam ser escritas e inscritas em certos
redutos ou formas para se validarem, essas poéticas são para além do campo ótico e
estão em lugares para além dos acadêmicos e elitizados. Mais especificamente sobre o
domínio da escrita, Leda Maria Martins (2003, p.64) afirma que ele:

[...] torna-se metáfora de uma ideia quase da natureza do


conhecimento, centrada no alçamento da visão, impressa no campo
ótico pela percepção da letra. A memória, inscrita como grafia pela
letra escrita, articula-se assim ao campo e processo da visão mapeada
pelo olhar, apreendido como janela do conhecimento. Tudo que
escapa, pois, à apreensão do olhar, princípio privilegiado de cognição,
ou que nele não se circunscreve, nos é ex-ótico, ou seja, fora de nosso
campo de percepção, distante de nossa ótica de compreensão, exilado
e alijado de nossa contemplação, de nossos saberes.

Fazendo uma relação com esse campo “ex-ótico”, que acaba limitando a
existência, permanência ou dilatação de algumas poéticas, Conceição Evaristo (2007, p.
21) lança a seguinte questão:

O que levaria determinadas mulheres, nascidas e criadas em ambientes


não letrados, e quando muito, semi-alfabetizados, a romperem com a
passividade da leitura e buscarem o movimento da escrita? Tento

16
Falarei sobre os ebós – ou até mesmo sobre o “ato de doar-se” (ou “sacrificar-se”) – no Projétil III - ¿Y
si muero aqui?.
37

responder. Talvez, estas mulheres (como eu) tenham percebido que se


o ato de ler oferece a apreensão do mundo, o de escrever ultrapassa os
limites de uma percepção da vida. Escrever pressupõe um dinamismo
próprio do sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua auto-inscrição
no interior do mundo. E, em se tratando de um ato empreendido por
mulheres negras, que historicamente transitam por espaços culturais
diferenciados dos lugares ocupados pela cultura das elites, escrever
adquire um sentido de insubordinação. Insubordinação que pode se
evidenciar, muitas vezes, desde uma escrita que fere “as normas
cultas” da língua, caso exemplar o de Carolina Maria de Jesus, como
também pela escolha da matéria narrada. A nossa escrevivência não
pode ser lida como histórias para “ninar os da casa grande” e sim para
incomodá-los em seus sonos injustos.

Essa produção de subjetividades se dá para além do campo da escrita, ou seja,


essa produção não é restrita, ela vaza, está presente em nossos corpos, em nossas falas,
nas palavras insubordinadas, presente também nas palavras que são silenciadas. Diante
disso deparamo-nos com algumas “questões de fome”: Como podemos identificar,
trabalhar e/ou nos desviar (de forma poética) dos estereótipos de raça17 / racismo em
cena? Como podemos usar a raiva em nossa escrita? Como podemos mediante isso
ampliar e construir redes de afetos entre nós nessa escrita? Como podemos nos desviar
de uma escrita/corpo que não nos contempla? Como nos reconstruir nessa escrita
corporal? Como escrever-desviar? Escrever-é-desviar?
E finalmente, parafraseando e ampliando a questão de Conceição Evaristo: o que
levaria determinadas mulheres Pretas e homens Pretos, nascidas/os e criadas/os em
ambientes não letrados e também com escassez de referenciais artísticos que os
contemplem em suas existências, e quando muito, semi-alfabetizadas/os, a romperem
com a passividade da leitura e da cena e buscarem o movimento das Artes Cênicas?
Assim, a escrita reflexiva dessas questões também será o experimento
performático e o experimento performático também é a escrita, ambas permeadas pelas
Poéticas Pretas. A encruzilhada será, portanto, a “metodologia em artes” dessa
Dissertação, todavia a prefiro entender através do suor –

17
Entendendo raça não “[...] enquanto expressão biológica, e sim enquanto expressão social e histórica,
que modela o funcionamento e os modos de pensar das sociedades humanas. De maneira que está
presente no mundo da cotidianidade relacional, no universo do imaginário humano e no âmbito
determinante das estruturas que regem o acesso aos recursos da sociedade. A raça existe de forma
concreta e prática como marcador social/estrutural. É uma realidade social definidora que regula as
relações políticas, sociais, econômicas e culturais entre os grupos humanos, que ostentam entre si
características fenotípicas diferentes. Não se fundamenta nos marcadores biológicos, mas nos fenotípicos.
Ou seja, nos marcadores visíveis e tangíveis por meio dos quais os seres humanos hierarquizam-se,
valorizam-se ou estigmatizam-se racialmente. De forma que argumentar que o racismo não existe porque
a “raça” não existe biologicamente é contribuir para a continuidade de toda uma série de mistificações
criadas pelos próprios racistas” (MOORE, Carlos, 2018, p. 166).
38

Cartografia do suor

Suor de peito
Gosto do cheiro de gente e cada uma com o seu tão único cheiro!
- “Cheiro de pele”.
Gosto de falar isso em voz alta, porque assim a pele ouve e ressalta. Os pelos
saltam e ouriçados tremem vagarosamente, arrepiados que nem guizos ronronados nos
pés das mulheres-gato.
Gosto do cheiro do suor fresco, maturado, suor ácido, doce – do azedo ao
salgado. Falo de suor – água de corpo, não me venha com nojinho estranho e cara de
desgosto. Pele é pra se sentir.
Pele: rebanho de pelo.
Pele: rebanho de crateras e plantações de cabelos. Lugar de morada de algas,
pois algo na pele me lembra uma colônia de algas, submersas e dançando com o balanço
do suor.

Genealogia do suor
A minha mãe saía cedo pra trabalhar e voltava depois de demorar. Saía, chegava
tarde. Voltava em câmera lenta no entardecer daqueles de cor magenta. Eu era carente,
criança, sentia saudade e roía as unhas porque sentia raiva de sentir falta.
Quando a minha mãe chegava tirava o sutiã. O seu suor enevoava por toda a
casa. Peito de mãe, mais animal impossível: aconchego de filhote, aconchego de
umbigo. Eu, bichinho da falta, roendo as unhas de tanto sentir. Roía até tudo sangrar.
Roía até o sangue estancar em mim, os meus dedos chegavam a pingar.
Um tempo depois esse sangue começou a escoar por outro lugar, porque me
disseram que eu tinha virado uma moça-não-mais-criança. Mas dessa vez me aterei
apenas à infância...
E voltando, porque gosto de ir devagar...
Aquele cheiro de suor de peito me dizia que estava tudo bem. Suor mareado de
saudade. “Suor do demorar”.
- Filha, me perdoe, eu não fiz por maldade.
Era como se ouvisse sua voz a falar: audição e olfato de mãos dadas, só faltou o
tato do abraço e o paladar. Ronronava então:
39

- Eu sei, mãe. Se choro não é porque sinto falta, sinto muita – muita, muita –
felicidade! Felicidade de paladar, doce e repunando na boca.
- Filha, olha essa rima fraca.
...
- Filha...
...
- Filha?
Então ruminei:
- E se eu falar em suor de palavra?
Palavra sua ou palavra soa? Sempre me confundi com essa conjugação de suar.
Eu suo, você soa? Ela sua? Não, ela ressoa.
Suor tem: genealogia, conjugação, cartografia, sujeito, oração, preces, pressas
em pingar. Então quem é o sujeito na frase: “O suor de umbigo é materno e o suor do
rosto, aquele que sai de dentro do olho é paterno”?

O suor afetivo-fraternal
Pula de parente em parente até se tornar o seu próprio suor. Tão só que no início
é só uma gotinha, daquela de ombro, pouco acanhada. Mas quando se esconde pra não
esporar é suor de sovaco, quando desabrocha é suor de xoxota. E quando faz córrego,
bem...
Escorrega, pinga, que nem as palavras pingam quando entram em estado de
ebulição. Suor é vapor – às vezes. Suor evapora – às vezes. Calefa na ação. Suor de
noções, sim. Um mar cheio de suor, ele chega faz ondas quando sai e suam de mim.
Uma gota de suor quando encontra outra se encruzilha, seus trajetos fazem um
“xis” ou uma “cruz”, uma trilha; nisso essas duas gotas formam uma gota encorpada
que pode escorrer pro lado que quiser acontecer, tão espontânea. Porque o suor é um
acontecimento que criamos com nossos corpos, tão espontâneos. O suor e suas
encruzilhadas de suor fazem uma cartografia na pele.
Na minha ou na sua, às vezes as cartografias se misturam e fazem uma lama
mapeada. Essa gota pode correr por alguns segundos até evaporar. Suor caminha
aconchegado de pele, não em calçadas. O suor se despede do pelo e pula no precipício.
Às vezes cai gota. Às vezes some no ar. Às vezes antes de pular encharca camisas,
calcinhas, pernas. Às vezes pula da cabeça, porque apenas sentiu de pular. Mas sempre
tem aqueles que fazem caminho, encruzilhadas. Não se deixam absorver tão facilmente.
40

Suor gota de fazer morada na:


- pele;
- nos pelos;
- no ar.
Suor quando pula do pelo faz a gente transpirar. Suor quando sai do novelo dos
cabelos faz a gente escoar. Suor – de pingo em pingo, depura e pinga, depura algo, de
parada, atravessado numa encruzilhada, depois disso, somou-se, jogou-se, sumiu-se no
precipício, deixou o corpo-morada. Porque suor, assim como “metodologia” quer pular
de pelo e não de pele-calçada.

***
Portanto, nesta reversão metodológica, onde traço no percurso as minhas metas,
não possuo certezas, não sei o que encontrarei, não sei o que me atravessará nesse
cruzamento, por isso a utilização dessa metodologia aberta, que permite a inventividade
fora de uma meta certa e seca e que me possibilita ao encontro inusitado. Traço um
plano de caminho no meu próprio caminhar, na minha própria pele pingada de suor.
Essas encruzilhadas também são permeadas por uma cosmovisão africana, que
dentro da concepção ancestral africana, podemos incluir no mesmo circuito
fenomenológico “as divindades, a natureza cósmica, a fauna, a flora, os elementos
físicos, os mortos, os vivos e os que ainda vão nascer, concebidos como anelos de uma
complementaridade necessária, em contínuo processo de transformação e de devir”
(MARTINS, 2003, p. 75). Segundo Ngugi wa Thiong’o, numa cosmovisão africana

[...] nós que estamos no presente somos todos, em potencial, mães e pais
daqueles que virão depois. Reverenciar os ancestrais significa, realmente,
reverenciar a vida, sua continuidade e mudança. Somos os filhos daqueles
que aqui estiveram antes de nós, mas não somos seus gêmeos idênticos,
assim como não engendraremos seres idênticos a nós mesmos. [...] Desse
modo, o passado torna-se nossa fonte de inspiração; o presente, uma
arena de respiração; e o futuro, nossa aspiração coletiva (apud
MARTINS, 2003, p. 75).

Tempo, ancestralidade e morte, é o que essa percepção cósmica e filosófica


suscita, segundo Martins (id.), além de desvestir-se de uma cronologia linear:

[...] a primazia do movimento ancestral, fonte de inspiração, matiza as


curvas de uma temporalidade espiralada, na qual os eventos, desvestidos
de uma cronologia linear, estão em processo de uma perene
transformação. Nascimento, maturação e morte, tornam-se, pois,
41

contingências naturais necessárias na dinâmica mutacional e regenerativa


de todos os ciclos vitais e existenciais. Nas espirais do tempo, tudo vai e
tudo volta.

Estar em encruzilhada é estar em conflito não linear – não me refiro apenas à


“briga” ou “arenga”, como chamamos aqui no Nordeste, pois no conflito nos
defrontamos com o choque, cruzamos ideias e desses cruzamentos algo muda, sou
atravessada/o e volto diferente, não sou mais a/o mesma/o depois de um conflito,
costumo inflar durante e depois dele. Encruzilhada pode gerar, portanto, encontro
espiralado.
A partir dessa noção de encruzilhada como operador conceitual, Leda Maria
Martins (id., p. 69), constrói “a possibilidade de interpretação do trânsito sistêmico e
epistêmico que emergem dos processos inter e transculturais, nos quais se confrontam e
se entrecruzam, nem sempre amistosamente, práticas performáticas, concepções e
cosmovisões, princípios filosóficos e metafísicos, saberes diversos [...]”. Ela fala sobre
essa noção em relação à genealogia performática dos Congados, onde:

[...] a palavra vocaliza ressoa como efeito de uma linguagem pulsional


do corpo, inscrevendo o sujeito emissor num determinado circuito de
expressão, potência e poder. Como sopro, hálito, dicção e
acontecimento, a palavra proferida grafa-se na performance do corpo,
lugar da sabedoria. Por isso, a palavra, índice do saber, não se petrifica
num depósito ou arquivo imóvel, mas é concebida cineticamente.
Como tal, a palavra ecoa na reminiscência performática do corpo,
ressoando como voz cantante e dançante, numa sintaxe expressiva
contígua que fertiliza o parentesco entre os vivos, os ancestres e os
que ainda vão nascer. Força e princípio dinâmicos, a palavra faz-se
linguagem “porque expressa e exterioriza um processo de síntese no
qual intervêm todos os elementos que constituem o sujeito”
(SANTOS, 1988, p. 49). Por isso necessita da música, da dança, do
ritmo, das cores, do gestus performático e da adequação para a sua
realização. (id.).

Martins (ela) fala sobre um “corpo-encruzilhada”, Martins (eu) conversa aqui


através desse “texto-encruzilhada”, que emerge do meu “corpo-encruzilhada”, pois não
é minha intenção distanciar essas duas encruzilhadas por palavras, porque para mim é
coisa misturada, corpo-texto, texto-corpo: encruzilhados.
E caso colocássemos uma lupa nessa escrita, poderíamos chamá-la de
“múltipla”, por tentar transcender o campo ótico, pois não se trata necessariamente de
uma escrita dramatúrgica e/ou acadêmica, mas também de uma “escrita corporal”, ou
seja, uma escrita ao mesmo tempo do pensamento, háptica, olfativa, degustativa,
sensorial: “múltipla”. Trata-se de um organismo vivo em que “encelulam-se” criações.
42

Zona em que as Poéticas Pretas são a própria criação, portanto, trata-se de um trabalho
simultaneamente artístico e de pesquisa, e que emerge, sobretudo, dos encontros.

Cartografia do corpo-encruzilhada

A sua casa estava abarrotada, mas não era de móveis, objetos, roupas ou
condimentos. Não era de panelas, xícaras ou eletrodomésticos. Estava abarrotada de
insetos. Sim, de vários tipos: eram cupins, formigas, traças e baratas. Ela colecionava
colônias, tinha um certo querer de minorias. “Não piso, não quero ser pisada”, dizia.
Não pisava em uma formiga ou matava uma aranha sequer. Mantinha todas
vivas em seu banheiro, cozinha e quartos. Ela queria ver a praga que tinha dentro de si.
Praguejava o nome, o seu endereço, praguejava naquele quartinho cinza. Praguejava o
que era ser ela mesma. Praguejava o infinito que tinha dentro de si. Praguejava o
pequeno suspiro e grande pisada que dava. A imensidão em seus pulmões – leves
suspiros e fortes baforadas de búfala, ventania. Ela era borboleta e sentia o gosto das
coisas com os pés.
Era colônia sua, ela. Abarrotada, imensa. Gigantescamente cheia de pulsão de
sentir. Sem ti ia como ninguém. Tinha certa mania de profundidade. E com as suas
várias patas, com os seus vários olhos e com as suas várias línguas, ela zumbia e gritava
pra se ouvir, pra ser ouvida. Sim, ela sempre foi uma praga...

Preta.
Mulher.

***
43

Por um erotismo Preto

Esta escrita na pesquisa em Artes Cênicas pode ser voltada para “si”,
trabalhando o “si” não numa perspectiva de objeto, mas sim como uma zona potente de
criação de encruzilhadas. Não se trata de uma dicotomização do “si”, até mesmo porque
o “si” é múltiplo. Mas torna-se relevante para esta pesquisa problematizar nessas
leituras esse “si”, enquanto objeto e enquanto encruzilhada: o “si encruzilhada” é um
“si” com topografias cruzadas, onde a sua subjetividade não é construída por uma única
linha de modo excessivamente sistemático, como se pretende que aconteça com o “si
objeto”, que planeja a partir de métodos bem definidos as suas criações, com intuito de
atingir um determinado fim. Elaboro e entendo esse “si encruzilhada”, em linhas gerais,
como um “si” que vai se construindo no processo, não é fixo e está em constante
criação.
Torna-se importante destacar que essa construção na presente pesquisa está
ligada diretamente às experiências e vivências desse corpo enquanto pessoa Preta/negra,
ou seja, corpo permeado por contextos históricos, culturais e sociais bem específicos,
corpo permeado por águas, passagens, navios, corpo potente em espiritualidade-arte,
corpo permeado por racismo, diferente de um corpo branco, que é lido pela ótica
ocidental como o corpo padrão.
São linhas que se cruzam: raça, gênero, sexualidade, subjetividades de um corpo
marcado pela própria raça, gênero, sexualidade. Essas marcas marcam a própria
subjetividade, marcam a sua escrita, voz, o seu silêncio. Portanto, no caso da presente
pesquisa, trata-se do diálogo que estabelecemos entre o “si encruzilhada” Preto/Preta na
sua escrita de/em cena.
A nossa escrevivência, tão bem vociferada e escrita por Conceição Evaristo
(2014), é uma experiência de fronteira, de margem, de estremadura, extremidade, que
então se coloca e começa a se experimentar e se entender agora como centro. Associo
essa escrevivência na pesquisa em Artes Cênicas a nossa necessidade de cura,
entendendo-a também pela perspectiva de outras autoras.

Algumas mulheres pretas e escritoras, tais como Alice Walker,


Masani Alexis DeVeaux, bell hooks, Toni Morrison e outras, realçam
a cumplicidade de homens e mulheres africanas em nosso genocídio.
Meu estudo das mães africanas mostra que o sofrimento das mulheres
neste contexto deve ser incluído nas análises graves das formas de
opressão que as pessoas africanas suportam de modo que se entende
44

que a luta contra a degradação das mulheres africanas é tanto interna


quanto externa. Desta forma, a realidade social da opressão delas e sua
resistência a ela se tornará uma parte central da teoria em
desenvolvimento preocupada com a libertação dos povos africanos18 a
partir de formas eurocêntricas de opressão. (DOVE, 2018, p. 156).

Todas elas, assim como Conceição Evaristo, Audre Lorde e Lélia Gonzalez19,
referenciadas também neste trabalho, de forma direta ou indireta falam mais sobre a
necessidade da cura em decorrência do adoecimento causado pelo racismo e das
opressões a partir das vivências e necessidades que possuem enquanto mulheres Pretas.
Para tanto é importante destacar também que a chave para essa cura está
associada à nossa necessidade de afeto, amor. Esse assunto é explanado em sua maioria
por mulheres, afinal fomos nós, dentro dessa estrutura escravista que sempre cuidamos,
fomos e somos a base da estrutura social e familiar brasileira, cuidando de nossas
famílias nas horas vagas e nas horas mal pagas ou não pagas cuidando da família dos
senhores e sinhás, sem espaço para o afeto. Para os homens Pretos esse diálogo está
ainda mais distante, em decorrência do racismo e machismo, que competem ao homem
Preto apenas a força braçal – homem sem coração e sem cérebro.
Thereza Santos (2018, p. 115), em uma entrevista concedida ao Enugbarijo
Comunicações, na cidade de São Paulo, no ano de 1985, disse que:

[...] a mulher negra hoje e sempre foi a base da estrutura familiar,


também, na família branca; porque era ela que dava condições na
época da escravidão para que a sinhá se enfeitasse para o senhor, foi
ela que deu condições quando começa já toda uma revolução
industrial no Brasil... dar condições para que a mulher branca procure
fora de casa, porque ela consegue segurar o núcleo familiar também
da mulher branca. Ela, de repente, passou toda a vida assumindo duas
famílias: a família negra e a família branca.

A mulher Preta sempre assumiu duas famílias: a sua e da/o outra/o. Esse “dom e
capacidade” de cuidar foram moldados em seu estereótipo de gênero. E o que acabou
sobrando foi quase nada para si. E eis uma grande carência: a do amor por si em
contraposição com o “cuidado” incutido a assumir desde sua mais tenra idade para e aos
outros, “cuidado” ligado a questões mais concretas, materiais, da ordem da
“sobrevivência”. Cuidado, nesse caso, é diferente de amor. Tudo isso somado aos altos

18
Nah Dove se refere ao mulherismo africana.
19
A autora aparece na encruzilhada do Projétil III.
45

índices de violência, ou seja, feminicídio, por causa do machismo, além das condições
insalubres de trabalho, tendo o salário mais baixo20.

Importante em todas as frentes, as mulheres como mães têm


desempenhado o papel mais crítico dos movimentos de resistência. O
amor da mãe por seu filho, por necessidade, desafia a construção
europeia da humanidade rebaixada dos seus filhos. Este amor é em si
a semente da revolução, porque é antiético à crença dominante da
superioridade branca. Como pode a mãe africana acreditar que seu
filho é inferior ao filho de seu opressor? Na realidade, ela não pensa
assim. As mães devem ser colocadas no centro da história da
resistência para que as meninas e os meninos possam compreender os
seus papéis potenciais como guerreiros na luta africana e da
centralidade da família e dos pais para a mudança social. Embora a
reafricanização esteja na agenda dos pensadores e ativistas africano-
centrados e/ou afrocêntricos os efeitos da cultura centrada nos homens
sobre mentes e comportamentos de homens e mulheres africanas não
podem ser encarados sem preocupação. (id., p. 155).

Diante disso, a necessidade de cura através da manutenção do amor por parte da


população Preta, que independente de gênero nesse caso é nítido, visto que é a
população que mais é afetada pelo analfabetismo e semianalfabetismo, a menos
assistida na sociedade brasileira.21 Genocídio, eis a palavra pesada e simples, pois é do
que se trata. E é importante destacar ainda mais que o corpo desse genocídio é
sustentado até hoje com a “muleta dorsal” do racismo e dos estereótipos raciais. É
significativo, portanto, entender o racismo, bem como tomar cuidado com as suas
banalizações e diluições, principalmente quando este é

[...] relegado a um estatuto de “consequência social” em virtude de


premissas reducionistas, que o rebaixam ao nível de reles excrescência
ideológica (“resquício do capitalismo”, “divisionismo antinacional”,
“luta de classes”...), o que confina fundamentalmente à esfera das
relações interpessoais (“discriminação”, “preconceito”). Os
argumentos negacionistas podem diferir, porém sempre coincidem no
fundamental; trata-se de uma operação de encobrimento
“higienizadora”, que purga o racismo do discurso cotidiano e o
restringe a um lugar de “não existência” ou de existência discreta.
(MOORE, 2018, p. 167).

20
De acordo com o Retrato das desigualdades de gênero e raça – 20 anos, mulheres Pretas, segundo
dados retirados da pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), ganham o salário médio
(de 1995 a 2015) de R$ 1.027,50, enquanto o de homens brancos era R$ 2.509,70 – isso quer dizer que o
rendimento do primeiro grupo equivale a 40,9% do segundo. Em 2015, homens Pretos recebiam, em
média, R$ 1.434,10, em contraposição com mulheres brancas, que ganhavam R$ 1.765. Disponível em:
<http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/170306_apresentacao_retrato.pdf>. Acesso em: 15
de maio de 2019.
21
Falo mais sobre as questões dos dados envolvendo a violência com a população Preta no Projétil II –
Reiva.
46

Em seu texto Vivendo de amor22, bell hooks23 (1994) fala sobre o impacto no ato
de amar em decorrência da escravidão de pessoas Pretas, bem como escreve sobre o
quanto a repressão de nossas emoções foram chave em algum momento para a nossa
própria sobrevivência. Porém essa “estratégia” deixou muitas feridas, pois interfere
diretamente no modo em que nós, pessoas Pretas, relacionamo-nos e expressamos
nossas afetividades. Essa repressão também permaneceu fortemente presente ao longo
de todos esses anos no estereótipo de “força” que construíram desde esse mesmo
período escravagista:

Nossas dificuldades coletivas com a arte e o ato de amar começaram a


partir do contexto escravocrata. Isso não deveria nos surpreender, já
que nossos ancestrais testemunharam seus filhos sendo vendidos; seus
amantes, companheiros, amigos apanhando sem razão. Pessoas que
viveram em extrema pobreza e foram obrigadas a se separar de suas
famílias e comunidades, não poderiam ter saído desse contexto
entendendo essa coisa que a gente chama de amor. Elas sabiam, por
experiência própria, que na condição de escravas seria difícil
experimentar ou manter uma relação de amor. Imagino que, após o
término da escravidão, muitos negros estivessem ansiosos para
experimentar relações de intimidade, compromisso e paixão, fora dos
limites antes estabelecidos. Mas é também possível que muitos
estivessem despreparados para praticar a arte de amar. Essa talvez seja
a razão pela qual muitos negros estabeleceram relações familiares
espelhadas na brutalidade que conheceram na época da escravidão.
Seguindo o mesmo modelo hierárquico, criaram espaços domésticos
onde conflitos de poder levavam os homens a espancarem as mulheres
e os adultos a baterem nas crianças como que para provar seu controle
e dominação.

Esse amor nos vem com dificuldade, pois ele sente dificuldade em dialogar com
nossos comportamentos de rigidez, com modos que construímos (por sobrevivência) de
não demonstrarmos fraqueza, porque simplesmente necessitamos sobreviver,
precisamos não sermos punidos. Passamos a entender o amor como fraqueza,
sentimento não cabível, descabido em nós.

22
Disponível em: <https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/>. Acesso em 18 de junho de 2019.
23
bell hooks, escrito assim mesmo com iniciais minúsculas, é o pseudônimo de Gloria Jean Watkins,
professora, escritora, artista e ativista social estadunidense, que possui trabalho enfocado em questões de
raça (por se tratar de uma mulher negra), gênero, capitalismo e interseccionalidade. A escolha de seu
pseudônimo se deu em homenagem a sua bisavó e o uso das iniciais minúsculas se trata, segundo a
autora, sobre dar foco ao seu conteúdo e não à sua pessoa.
47

O texto de bell hooks é voltado para mulheres Pretas, onde essa fala sobre a
necessidade em amar aquilo que vemos no espelho, ou seja, nós mesmas. Mas podemos
ampliar “facilmente” essa questão para a população Preta, visto que esse processo de
escravização e de mutilação do sentir perpassou a todos e todas: homens, mulheres e
crianças Pretas.
A prática de se reprimir os sentimentos como estratégia de
sobrevivência continuou a ser um aspecto da vida dos negros, mesmo
depois da escravidão. Como o racismo e a supremacia dos brancos não
foram eliminados com a abolição da escravatura, os negros tiveram
que manter certas barreiras emocionais. E, de uma maneira geral,
muitos negros passaram a acreditar que a capacidade de se conter
emoções era uma característica positiva. No decorrer dos anos, a
habilidade de esconder e mascarar os sentimentos passou a ser
considerada como sinal de uma personalidade forte. Mostrar os
sentimentos era uma bobagem.

Como amar o que escrevemos se nem ao menos nos vemos no que escrevemos?
Não amamos o que escrevemos, porque simplesmente não nos percebemos? A relação
de “cuidado” sempre foi diferente para a população Preta – “cuidado” acabou se
tornando coisa de gente branca ou voltado para eles/as. Essa relação se dá de forma
diferente para uma população com esse passado/presente cativo e de genocídio: nós não
necessitamos de individuações de “cuidado”, isso seria nos afastar ainda mais de um
coletivo Preto, achar que nos encaixamos num conceito de “cuidado universal”, que é
branco. Nós precisamos, portanto, nos construir enquanto comunidade. Precisamos
amar aquilo que é Preto.
Refiro-me nesta pesquisa, portanto, à necessidade que temos em nos amar como
forma de nos potencializarmos. Essa falta de amor por sobrevivência é permeada não
por “consequências”, mas por questões históricas, sociais, culturais e econômicas, ou
seja, questões sistêmicas.
Nessa perspectiva, as pessoas Pretas estão permeadas por ideias, linguagens e
subjetivações que carregam interesses exógenos e racistas, entendendo que esses
surgiram “historicamente como uma forma de consciência socialmente estruturante,
derivada de uma ‘lógica pré-racial’” (MOORE, 2018, p. 167). Por ‘lógica pré-racial’,
Carlos Moore designa que são “formas de comportamentos de identificação entre seres
humanos oriundos de nossa própria história evolutiva como espécie” (id.). Segundo o
autor os fenômenos causais da proto-consciência racializada vinculam-se a uma
sequência de “reflexos primários impensados”, estes “que vêm acompanhando o ser
48

humano ao longo de sua evolução biológica e que, em dado momento, teriam se


transferido para o domínio sociocultural” (id.).
Portanto, está para além do Estado e das instituições vigentes, tratam-se de
“reflexos” disfarçados com perfume (uma colônia, como o Brasil), que são
fundamentados ao longo de séculos no ocidente e que estão presentes para além das
estruturas de poder, mesmo sendo essas que fundamentam e mantêm todo esse
mecanismo. O que quero dizer, é que não se trata nesse caso apenas de nos liberar do
Estado e de seus perfumes colonizadores, das suas instituições, trata de liberarmo-nos
do tipo de individuação que está associada ao Estado e também à supremacia branca24,
detentora desse poder e do próprio Estado, promovendo assim formas de subjetividade,
rejeitando o tipo de individuação que nos foi imposta ao longo dos séculos. Porque as
nossas epistemologias, e, consequentemente, as nossas subjetivações ainda são brancas.
Somos “donas” e “donos” de nossos próprios corpos, de nossas Poéticas?
Corpos esses que ao longo de séculos foram sendo construídos enquanto “des-sujeitos”,
desumanizados sobretudo pelo Estado, mas também por toda uma estrutura de poder,
que se modificou ao longo desses séculos, máquina que se sustentou e se sustenta com o
genocídio de pessoas Pretas.
Esse sistema de ódio atravessa as nossas escrevivências, entendê-lo é
fundamental para pensarmos e construirmos desvios. Amor e afeto por nós mesmos/as,
nesse caso, é desvio. Criar e/ou dar continuidade às nossas epistemologias dentro das
Artes Cênicas é trabalhar as nossas subjetividades propulsoras de criações. Trata-se de
afrocentrar as nossas poéticas – Poéticas Pretas, entendendo essas como formas diretas
de nos posicionar enquanto pensadoras/es, batendo de frente com uma outra forma de
morte que nos foi imposta: o epistemicídio25. Lutar contra isso é também se amar mais.
Para bell hooks (id.): “Para que esse mundo possa existir é preciso acabar com o
racismo e todas as formas de dominação. Se escolho dedicar minha vida à luta contra a
opressão, estou ajudando a transformar o mundo no lugar onde gostaria de viver”. Para

24
“Para iluminar o impacto da opressão cultural europeia como uma realidade mental, espiritual, física e
material, não é mais plausível definir nós mesmos com base no conceito eurocêntrico de raça – negra,
marrom, amarela, vermelha e branca. A raça branca, reconhecida como a mais poderosa militar e
economicamente, essencialmente controla, dirige e administra, por meio da estrutura do capitalismo, os
recursos do mundo, incluindo as energias dos povos. No entanto, como uma instituição europeia
estruturada para manter os interesses do desenvolvimento ocidental, pode também ser definida como
supremacia branca. (DOVE, Nah, 2018, p. 137).
25
Tratarei melhor sobre esse conceito no Projétil IV – A gente combinamos de escreviver.
49

isso, segundo a autora, nós necessitamos do amor como forma potente de cura –
“Aprender a amar é uma forma de encontrar a cura”.
Trata-se de uma ação de transmutação desse “cuidado” voltado ao outro, em
forma de serviço e subserviência, para o “amor interior”.

Uso a expressão “amor interior” e não “amor próprio” porque a


palavra “próprio” é geralmente usada para definir nossa posição em
relação aos outros. Numa sociedade racista e machista, a mulher negra
não aprende a reconhecer que sua vida interior é importante. A mulher
negra descolonizada precisa definir suas experiências de forma que
outros entendam a importância de sua vida interior. (id.).

Essa ideia de “amor interior” pode ser abrangida pela população Preta. Porém
antes de nos amar precisamos nos perceber também como pessoas disponíveis e dignas
desse amor. O que percebemos são subjetivações machucadas, feridas, rígidas,
petrificadas.
O enunciado que coloco agora é que é possível nos desconstruirmos de muitas
subjetivações brancas, nos construirmos, nos desbancarmos de um “cuidado” que nunca
nos pertenceu, nos destruirmos então, para assim nos reconstruirmos através de nossas
próprias escrevivências, elas entram aqui de forma prática como um ato de “amor
interior” que nos abraça, inclusive, epistemologicamente. É a partir dessa escrevivência
que entendo as Poéticas Pretas neste trabalho, como um dos possíveis caminhos na
contemporaneidade para uma escrita Preta também na direção de uma estética Preta. A
estética Preta imbricada em nosso fenótipo nos parece uma forma de desvio, um desvio
que envolve, inclusive, um intenso processo de relação com nossa própria sexualidade,
gênero.
Considerando que a raça e em algumas medidas o gênero marcam várias
relações com o corpo, fala, comportamento, hábitos, produção de conhecimento, libido
existencial etc., e enviesando nisso o conceito de erótico referido pela artivista Audre
Lorde (1978), também perguntamos: é possível que o erótico seja uma das práticas
possíveis de trabalhar esse “amor interno”? Esse mesmo erótico que nos foi afastado
enquanto parte de nossa cultura e força de nossa arte por bater de frente com as
construções morais do cristianismo.
Em um discurso intitulado Usos de lo erótico: lo erótico como poder, lido na
Quarta Conferência Berkshire sobre História da Mulher, Audre Lorde (1978) fala sobre
a supressão do erótico na vida de mulheres Pretas como fonte de poder e informação.
50

Referindo-se à antítese entre o erótico e o pornográfico, a autora afirma que este último
põe em ênfase a sensação sem sentimento, uma negação direta do poder do erotismo,
representando a supressão dos sentimentos verdadeiros, enquanto o primeiro é um
espaço entre a incipiente consciência do próprio ser e o caos dos sentimentos mais
fortes. Ao desfrutarmos do erótico em todos os nossos atos, nosso trabalho se converte
em uma decisão consciente de “amor interno” e consequentemente coletivo. Lorde
(1978, p. 27) diz que “lo erótico es una afirmación de la fuerza vital de las mujeres; de
esa energía creativa y fortalecida, cuyo conocimiento y uso estamos reclamando ahora
en nuestro lenguaje, nuestra historia, nuestra danza, nuestro amor, nuestro trabajo y
nuestras vidas”.
Quando damos conta do erotismo enquanto dimensão estética Preta, abrimos a
possibilidade de nos relacionarmos com o mundo que nos rodeia, passamos a ser
responsáveis por nós mesmas/os em seu sentido mais profundo. Segundo Lorde (1978,
p. 32), ao conhecer nossos sentimentos mais profundos, não aceitamos mais o
sofrimento e a autonegação: “Al estar, en contacto con lo erótico, me rebelo contra la
aceptáción de la impotencia y de todos los estados de mi ser que no son naturales en mi,
que se ha impuesto, tales como la resignación, la desesperación, la humillación, la
depresión, la autonegación”.
51

Cartografia da siririca

A aranha observa o banheiro no canto da porta. A aranha se vê encolhida, esguia


e torta, de escanteio... Ela é dona daquele espaço. Sempre no canto, nunca no meio. Ela
não pode ser pisada... Esquizoaranha, bebe água amarela da privada. Esquizo dança
feliz de barriga alimentada, pelos ouriçados.
Ela se lambuza, enfia as patas na boca, tira a blusa: corpo esguio de aranha
engolidora de moscas... desfila na pia, no chuveiro, ela é a miss_latrina.
A aranha outra: intrusa, que chega sem bater na porta... Arruma o território, deita
no chão, parece morta... Bicha silenciosa. Estende suas pernas, afia a navalha de seus
dedos e abre... Abre caminho entre os pelos... E de repente, num rompante, ela se
meche, dança, compõe gemidos na batida esquizo dub funk e siririca o seu desconserto.
Ela gozza, gozza sem cerimônias. Boneca de voodoo, pandemônia, que no
gozzo, se vê de canto, observada. Percebe a perspectiva, de baixo para cima.
Decanto: o momento, o silêncio e em seguida o espanto...
Da outra aranha, que nunca ouviu ninguém gemer tanto!

***
Por envolver questões tão potentes, o erótico é frequentemente silenciado e,
quando somado ao silenciamento gerado pela raça – e também pelo gênero e pela
sexualidade, da forma como se constituiu em nossa sociedade, ganha outras dimensões:
nossos corpos — e os discursos, as falas e as linguagens que os permeiam — são
frequentemente captados e controlados, das formas mais disfarçadas às mais rasgadas.
O silêncio a que me refiro nesse caso é impositivo, diferente do silêncio por
escolha. Refiro-me mais especificamente ao silêncio como opressão. Audre Lorde tinha
experiência com o silêncio, pois era Preta, lésbica, mãe, com descendência caribenha
num país como os Estados Unidos. Porém ela metamorfoseava diariamente esse
silêncio, era poetisa e fala justamente sobre a transformação do silêncio em linguagem e
ação, referindo-se a essa transformação como uma ferramenta de autorevelação ou
autoconstrução. Segundo a autora, fomos socializadas para respeitarmos mais o medo
do que as nossas próprias necessidades de linguagem e definição. O silêncio não nos
protege, nunca protegeu, Lorde nos diz então para percebê-lo não como uma opção, mas
como algo a ser modificado e transformado. E por mexer na ordem das relações de
52

poder, nas estruturas de autoridade e disciplina, que é racista, androcêntrica e


heteropatriarcal, estar mergulhada nesse clima de silenciamento e ir contra o fluxo é um
ato carregado de perigo.
Temos, portanto, uma responsabilidade com nós mesmas/os, a de
compartilharmos e difundirmos essa linguagens e ações. Nós temos um compromisso
com a quebra desse silêncio, com a sua transformação numa linguagem criativa,
artística e erótica. Assim, o que interessa nesta pesquisa-encruzilhada é sobretudo a
reverberação dos abalos provocados pelas Poéticas Pretas. Essas que pretendem ir além
dos padrões tradicionalmente entendidos como “raça”, fazendo cintilar a ideia de que há
muitas formas de enunciar essas subjetividades Pretas a partir da arte e, portanto,
também na vida.
Somos instruídas/os, formatadas/os a ler de uma determinada forma, a
reproduzirmos muitas subjetividades (perpassadas pela supremacia branca) sem uma
leitura dinâmica e sem a consciência que somos atravessadas/os por elas, porque somos
constantemente atravessadas/os e constituídas/os por elas, porém é algo tão naturalizado
que não nos damos conta, não problematizamos criações que oprimem a nossa própria
existência. Isso se constitui numa urgência, pois é no atravessamento que criamos, que
relemos com outros sentidos, que falamos, escrevemos, movimentamos. Não é apenas
sobre sermos travessadas/os, é sobre sermos mais conscientes desses atravessamentos.
Mas se podemos aproveitar o que nos acontece para criar realidades, uma das
mudanças possíveis é transformar o silêncio em linguagem e ação, transformando a
própria linguagem, porque até mesmo o nosso silêncio é permeado por ela. Diante desse
reconhecimento, podemos fazer uma escolha por nós mesmas/os, abraçar nossa
singularidade perante o mundo, nossa razão de potência, criação de existência, que é a
criação da própria vida. Somos seres de “devir” e não de “servir”.
Somos cúmplices quando queremos quebrar o silêncio de uma voz que opera na
manutenção desse sistema e que não fala outra língua se não a sua mesma. A quebra
pode surgir das diferentes vozes, das dissonâncias que tentam desconstruí-lo. Antes de
entendermos essa linguagem, portanto, nós temos que entender um pouco desse
silêncio, sob o risco de ele ser apenas trincado e não quebrado. Mas precisamos correr
esse risco, até porque a quebra começa pela trincada!
Nessa ressignificação estética das nossas existências, a dor, o silêncio e a
opressão podem ser usadas para a criação de outra linguagem, não como reificação e
mais propagação de violência, mas de forma que sejam problematizadas, repensadas e
53

entendidas como reféns do que construímos e mantemos enquanto relações de poder.


Uma das formas de construir essa contracorrente é através de uma língua que esses
sistemas não falam como, por exemplo, a do afeto ativo por nós mesmas/os.
De modo geral, querer-se controlar a vida, as diferenças, os conflitos,
principalmente os da natureza — conflitos que estão inseridos na / que são a natureza,
mas que esquecemos, porque nos esquecemos como sendo parte dela. Negamos outras
realidades em detrimento de uma realidade branca e ocidental, ou melhor, acreditamos
mais nesse protótipo de realidade, negando também a imanência do próprio mundo.
Nossas criações artísticas estão bem comprometidas com essa lógica; diante disso, uma
possibilidade de que vivamos e não apenas sobrevivamos é nos produzirmos outras/os:
produzir a nós mesmas em direções mais interessantes — nossa estética Preta da
existência.
Somos máquinas produtoras de desejo, porém esse desejo está circunscrito em
várias normas, leis, gabaritos e protocolos, que supostamente nos dão segurança e
proteção, mas são essas mesmas normas, leis, gabaritos e protocolos que estruturam e
mantêm a ordem das relações de poder e produzem a violência. Tais relações se mantêm
também através dos nossos corpos, ilegitimando-os, violentando-os e fazendo com que
pensemos que somos incapazes de vivermos longe dessa rede, assim a mantemos.
Mantemos esse tipo de relação de poder mesmo quando a negamos: é possível
suspendê-la se construímos novas experiências com nossos corpos?
Diante dessa questão, o silêncio retorna, e assim podemos transformá-lo, posto
que é abertamente uma ferramenta e que é desse tipo de relação de poder que devemos
mais nos afastar, caso queiramos transformá-la em algo novo: uma nova linguagem, que
tenha outra percepção e ação, produzindo assim novos modos de afeto. A aposta nesta
pesquisa é trabalhar a construção dessa nova linguagem através das Artes Cênicas e da
construção de novas poéticas.
Acredito que um trabalho nas Artes Cênicas nessa direção pode abrir, ao menos
para as/os envolvidas/os com ele, novas possibilidades de afecções, afetos e afetações
por meio da ação, possibilidades que trabalhem com corpos diferentes do que já temos e
do que já conhecemos. Longe de estereótipos que já chamam a nossa atenção
programada, é possível desprogramar essa atenção para produzirmos novos corpos e,
portanto, novas estéticas. Será com a ação que modificaremos então a linguagem,
transformando-a, ilegitimando assim também relações de poder já postas e o próprio
silêncio que elas produzem.
54

É nesse sentido que estou entendendo o que chamo de Poéticas Pretas, trata-se
de uma escrita da experiência “encruzilhada”, de escrevivências repletas de
singularidades atravessadas pelas racializações que nos foram impostas, que também
podem potencializar de certa forma os desvios necessários para um (des)encontro
constante com subjetivações carregadas de estereotipias racistas.
A “cena” pode nos colocar num estado metafórico através da sua dramaturgia
escrito-corporal, ela pode nos tirar do ordinário ou o potencializar, transformando o
silêncio em ação e jogo na própria “cena”, contrapondo-se ao silêncio, colocando-o
como objeto desafiador para criação.
A poética pode ser um modo para a expansão independente do lugar, bem como
um modo de desvio do que já temos e conhecemos como seguro, desconstruindo a
técnica e o próprio tipo de atenção que aprendemos a ter. Considerando que essa
Poética Preta não está inscrita no paradigma europeu e branco das Artes Cênicas,
retornamos com outra “questão de fome”: Como transformar o silêncio em linguagem e
ação na perspectiva das Poéticas Pretas?
Não existem respostas prontas, mas façamos como sugere Conceição Evaristo,
sejamos insubordinadas. As Poéticas Pretas são possíveis caminhos para autoafirmação
e esse afirmar-se no mundo coloca em jogo outras formas de viver, outras experiências
nada fixas como os estereótipos. Acreditamos que o desvio e o afeto ativo entre nós
podem ser caminhos potentes para a quebra desses padrões em cena e fora dela. Baby
Suggs, uma das personagens de Amada, obra da escritora Toni Morrison (2011, p. 134),
nos diz:
Aqui [...], aqui neste lugar, nós somos carne; carne que chora, ri; carne
que dança descalça na relva. Amem isso. Amem forte. Lá fora não
amam a sua carne. Desprezam a sua carne. Não amam seus olhos; são
capazes de arrancar fora os seus olhos. Como também não amam a
pele de suas costas. Lá eles descem o chicote nela. E, ah, meu povo,
eles não amam as suas mãos. Essas que eles só usam, amarram,
prendem, cortam fora e deixam vazias. Amem suas mãos! Amem.
Levantem e beijem suas mãos. Toquem outros com elas, toquem uma
na outra, esfreguem no rosto, porque eles não amam isso também.
Vocês têm de amar, vocês! E não, eles não amam a sua boca. Lá, lá
fora, eles vão cuidar de quebrar sua boca e quebrar de novo. O que sai
de sua boca eles não vão ouvir. O que vocês gritam com ela eles não
ouvem. O que vocês põem nela para nutrir seu corpo eles vão arrancar
de vocês e dar no lugar os restos deles. Não, eles não amam sua boca.
Vocês têm de amar. É da carne que estou falando aqui. Carne que
precisa ser amada. Pés que precisam descansar e dançar; costas que
precisam de apoio; ombros que precisam de braços, braços fortes,
estou dizendo. E, ah, meu povo, lá fora, escutem bem, não amam o
seu pescoço sem laço, e ereto. Então amem seu pescoço; ponham a
55

mão nele, agradem, alisem e endireitem bem. E todas as suas partes de


dentro que eles são capazes de jogar para os porcos, vocês têm de
amar. O fígado escuro, escuro - amem, amem e o bater do batente
coração, amem também. Mais que olhos e pés. Mais que os pulmões
que ainda vão ter de respirar ar livre. Mais que seu útero guardador da
vida e suas partes doadoras de vida, me escutem bem, amem seu
coração. Porque esse é o prêmio.

A escrita no momento tem sido um de meus prêmios e pode ser uma de nossas
armas de autoafirmação, mas outras questões e objetos costumam ser confundidos com
armas, como um guarda-chuva, por exemplo. As palavras aqui não portam guarda-
chuvas, elas escoam muitas águas. Às vezes nem precisa se ter uma arma na mão, basta
apenas dirigir um carro com a sua família dentro, ser parado por militares e tomar
oitenta tiros26. Escrever tem sido uma de nossas armas contra o epistemicídio, outra
morte que nos impuseram. Ser artista tem sido uma de minhas armas.
Arma de ilha: ser artista. Alice Walker (2018) em seu artigo Em Busca dos
Jardins de Nossas Mães (1972) fala sobre as mulheres “Santas”, prostitutas, algumas
delas foram as nossas mães, avós:

Pois estas [...] não eram Santas, mas Artistas; conduzidas ao


entorpecimento e à loucura sangrenta pelas fontes de criatividade
dentro delas, das quais não havia libertação. Elas eram Criadoras, que
viviam vidas de desperdício espiritual, porque eram tão ricas em
espiritualidade — que é a base da Arte — que a tensão de suportar seu
talento inutilizados e indesejados as enlouquecia. Jogar fora sua
espiritualidade era sua tentativa patética de reduzir o fardo de suas
almas para que seus corpos desgastados pelo trabalho, sexualmente
abusados, pudessem suportar. (id., p. 77).

Walker continua esse pensamento com uma questão que atravessa muitas
mulheres Pretas: “O que significava uma mulher preta ser uma artista no tempo de
nossas avós?”. Essa questão vibrou até nos (meus) cistos herdados pela herança
colonial. Sou artista e o que significa então ser uma mulher Preta/negra nos tempos de
hoje? A questão de Walker (id., p. 78)

[...] é uma questão com uma resposta cruel o suficiente para estancar o
sangue. Você teve uma tataravó genial que morreu sob o chicote de
um capataz ignorante e depravado? Ou ela era obrigada a assar
biscoitos para um vagabundo preguiçoso, enquanto sua alma urgia por
pintar aquarelas do pôr-do-sol, ou da chuva caindo nos pastos verdes e

26
Caso em que doze militares dispararam 257 tiros contra o carro de uma família que se locomovia para
um chá de bebê, na cidade do Rio de Janeiro, no dia 7 de abril de 2019. Eles assassinaram o músico
Evaldo dos Santos Rosa (que dirigia o carro que foi atingido por mais de 80 tiros) e o catador de material
reciclado Luciano Macedo, ferido enquanto tentava ajudar a família.
56

serenos? Ou seu corpo foi quebrado, forçado a parir crianças (que


eram frequentemente vendidos e levados para longe dela) – oito, dez,
quinze, vinte crianças – quando sua única alegria era o pensamento de
esculpir modelos heroicos da rebelião em pedra ou argila? Como foi
mantida viva a criatividade da mulher preta, ano após ano e século
após século, quando na maior parte do tempo em que os pretos
estiveram na América, era um crime passível de punição um preto ler
ou escrever? E a liberdade para pintar, esculpir, para expandir suas
mentes com ações não existia. Considere, se é que você consegue
imaginar, o que podia ter sido o resultado se cantar também fosse
proibido por lei. Escute as vozes de Bessie Smith, Billie Holliday,
Nina Simone, Roberta Flack e Aretha Franklin, entre outras, e imagine
essas vozes amordaçadas por todas suas vidas. Talvez então você
comece a compreender as vidas de nossas “loucas”, “Santas” mães e
avós. A agonia da vida de mulheres que poderiam ter sido Poetas,
Novelistas, Ensaístas, Escritoras de Contos (por um período de
séculos), que morreram com seus dons verdadeiros abafados dentro de
si.

A elas foi abafado, a nós existe a possibilidade – controlada e censurada ainda –


de desabafo. É uma migalha a mais e está muito longe de chegar perto de uma
suficiência. Afeto minado, existência minada, perfil criminal – vários, traçados,
trançados cabelos, traçados. Em encruzilhadas escrevo. Aqui traçada nessa pesquisa:
sobre mim, minha mãe, minhas avós, meus avós, seus pais, os pais dos seus pais e os
pais dos seus pais e os pais dos seus pais. Paz, não mais amém. Cansada de pedir paz e
que me amem, nos amem, não, não mais amém.
A fé mudou e minha faca está amolada e hoje a minha faca se faz palavra.
Pasmem: Pretas e Pretos estão em universidades, lá/aqui o conhecimento ainda é branco
e a presença ainda é pouca. É importante frisar que os/as Pretos/as que estão nesse lugar
são em sua maioria não retintos/as, pois para esses/as é um espaço ainda mais reduzido
e distante, dominado pela pigmentocracia, espaço que continua amortizado a
pensamentos brancos e colonizantes, hegemônico, mesmo quando vem do lado
esquerdo da porta, porque a porta ainda é pintada de branca, assim como as paredes, o
chão e toda a estrutura desse prédio. Pasmem também: as universidades não são
detentoras de nossos conhecimentos e subjetividades, esses que conseguiram sobreviver
ao longo desses séculos através (principalmente) da insubordinação.
A gente é insubordinada, a gente é artista...

Mulheres pretas são chamadas, no folclore que tão aptamente


identifica o status de alguém na sociedade, de “a mula do mundo”,
porque carregamos os fardos que todas as outras pessoas – todas as
outras pessoas – se recusaram a carregar. Nós também fomos
chamadas de “Matriarcas” e “Supermulheres” e “Cadelas cruéis e
57

malvadas”. Isso sem mencionar “Castradoras” e “Mãe da Sapphire”.


Quando imploramos por compreensão, nosso caráter foi distorcido; já
pedimos que simplesmente se importassem e recebemos clamores
inspiracionais vazios, e depois empurradas pra o canto mais distante
possível. Quando pedimos por amor, recebemos crianças. Em suma,
até nossos dons mais simples, nossos trabalhos de fidelidade e amor,
foram enfiados em nossas goelas. Ser uma artista e uma mulher preta,
até hoje, rebaixa nosso status em muitos âmbitos, ao invés de elevá-lo:
ainda assim, artistas seremos. (id., p. 81).

… somos sinônimos: artistas e insubordinadas, somos!


Peço uma pausa agora no texto, caso possa, caso esteja em casa ou em algum
lugar confortável, peço que por um ato de disponibilidade tire a sua roupa. Sim, a sua
roupa literal. Talvez ela te pese um pouco e você não perceba. Você pode se
encaminhar para um banho agora, porque talvez as micropartículas de sujeira ou pele
morta também pesem um pouco e você não perceba. É preciso se despir, se lavar com
água, deixar ir. Escorrer o que temos como certo, fixo.
De cabeça lavada me sinto mais confortável para te dizer que esse Projétil é
mais ácido do que eu gostaria, porque ele traz poéticas à custa de muita omissão,
opressão, tem resistência mesclada a dor. A dor-tabu: aquela que quando relacionada a
“assuntos de negritude” é pedido para que se “fale menos”, porque já se cansaram de
ouvir sobre algo “tão superado”.
Hoje percebo com “clareza” que durante a minha formação acadêmica pouco,
quase ou nunca se coloca sob a luz do sol as produções teóricas e/ou artísticas e o
trabalho de pessoas Pretas/negras (um destaque para as pessoas trans, mulheres de
sexualidades dissidentes e/ou periféricas, mas trata-se de algo que afeta toda a
população Preta). O que predomina no Brasil é a tradição estética e retórica europeia,
abissalmente feita por homens brancos.
Até chegar aqui não percebia e me embebia sem consciência racial desses
referenciais, a minha mente foi colonizada e às vezes mal sei me expressar de forma
diferente. Às vezes escapa e é isso. Às vezes é a forma como o conhecimento se
estrutura e se organiza para e em mim, tão presentes nas minhas subjetividades, tão
obviamente presentes nesta Dissertação, na própria maneira de organizar o pensamento,
as palavras, as falas. Elas, as palavras, ainda estão encapsuladas em projéteis.
Vivo numa diáspora de conhecimentos. E é importante assumir que foi desse
atravessamento de conhecimentos ocidentalizados que nasceu em mim a necessidade de
me deparar com “encruzilhadas”, a necessidade de afrocentrar minhas práticas
epistemológicas.
58

Trata-se de um processo que carrega em sua genética um jogo constante de


atenção e distração. Estou no início de algo, que nem sei explicar direito o que é, essa
Dissertação foi e é uma “tentativa” de desvio de algumas coisas que me sufocam – e que
talvez te sufoquem também, pelo menos deveriam; é tentativa de desvio daquilo que me
dá frio na barriga – de nervoso, não de amor.
Como partir de algo sem me partir junto?
E nesse momento de dedos soltos nas teclas do computador, me veio na cabeça
uma frase do James Baldwin: “Vocês nunca tiveram que olhar para mim. Eu tinha que
olhar para vocês. Eu sei mais sobre vocês do que vocês sabem sobre mim”. O que antes
chamava e achava que era ignorância, que era desigualdade, colonialidade – o que ainda
não deixa de ser, hoje percebo como estratégia, mandinga. E percebi nas Poéticas
Pretas algumas formas de fluir e desenformar um pouco mais essa linguagem, uma das
formas de ser estratégica, mandingueira.
Iroko é o tempo. Àyàn, o tambor. Enquanto Iroko caminha, Àyàn é tocado – por
nós, que vivemos, por mim, que vivo, por nós, coletividade, não falo apenas de
umbigos. O tocar ressoa também nos movimentos que faço, é dança e está aqui nessa
escrita, inclusive, nesse espaço. Me permito, preciso me permitir nesse caminho e
nessas encruzilhadas. Esquecer? Depende, acho que apenas do que me ensinaram, a
atenção até aqui não me ajudou.
São nessas estratigrafias (palavras-camadas / palavras-estratos), nessas
cartografias (mapas de sensações) que faço para não me perder, que experimento neste
trabalho, que faço para esquecer – e não para “me” esquecer. Todos esses mapas são
permeados por crias de ação, pelo abandono, pela explosão, pela recriação e mais
abandono (de si), pelas cartografias que escrevo com meu corpo, em constante estado de
distração –

Cartografia da distração

Passei por várias distrações (até chegar aqui). Muita ansiedade corporal e só
depois descobri que eram coisas não ditas, coisas não escritas. Dei para engolir as coisas
nesses últimos dias. E adianto o tempo e te digo que as distrações (até chegar aqui)
foram dez no total.
A primeira foi acordar tarde num domingo – alguns diriam que isso é até
essencial para um domingo. A segunda foi o celular não carregar. A terceira foi o
59

aniversário de uma amiga. Não fui. E disso vieram outras sete distrações – o número da
perfeição distraída. A quarta foi comida. A quinta foi comida. A sexta foi comida, assim
como a sétima. Daí que descobri que tenho compulsão alimentar. Resolvi sair então:
ver, sentir, mergulhar no mar. Moro na praia e ir até lá não desencadearia mais
distrações, como pegar um transporte público. O transporte é meu corpo se dirigindo à
praia, apenas.
A oitava distração foi o próprio mar, entidade imensa de alcunha feminina (a
mar). Não quis mergulhar nela, do jeito que estava era capaz de ser carregada pelas
ondas, apenas me contentei em molhar os pés, sentar na areia e esperar que as ondas
pequenas me alcançassem, como numa roleta russa, só que ao invés de balas o mar
engatilhava ondas em minha direção.
Comecei a escrever na areia frases conectadas e palavras desconexas. Pensei na
minha pesquisa e escrevi sobre “poesia”, “poética”, “pó de arezia”, pensei sobre a
minha apatia, sobre pathos, patologias, sujeitos, sujeitas, sobre histeria, escuridão,
pensei sobre experiência, sobre cartografias, mapas, topografias, pele, omissão, escrevia
na areia sobre aquilo que me doía, sobre o que me afetava, sobre afetos e sobreavisos,
sobre o que não mais cabia em mim e por isso tinha que botar pra fora, ali, sem juízos.
Pensei sobre borboletas, lembrei que elas sentem o gosto das coisas com as
patas. Os meus pés estavam enfiados na areia, mas não sentia o seu gosto, “talvez não
leve jeito pra borboleta”, falei em voz alta. Pensei nas distrações dos meus pensamentos
– não tenho foco – é tudo bem assim desordenado, pausado e truncado. Mas percebi
também que não preciso de atas, pautas ou organizados cronogramas pra poder ir ao
mar anotar minhas incertezas sedimentadas. Não preciso pesar o tempo com uma
balança, não preciso medir palavras, cronometrar, “enrreguar”, as palavras são suadas e
escorrem, penetram a areia úmida, molhada, são palavras-mar. Palavras em contato com
as minhas patas, enfiadas na areia.
Daí que vi que a minha bagunça era organizada, fazia sentido pra mim.
Organização de umbigo: pequena aparentemente, mas o buraco é profundo, não se sabe
para onde vai, sabe de nada, duvida do tudo. Umbilica incertezas.
“Não me conheço”, pensei. “Que ótimo!”, retruquei, pois me coloco aqui a ser
onda, reverberada, propagando a minha existência de dúvidas. O que faço é onda? É
saliência? Porque se não tem relevo, geografia expandida, que vaza para todos os lados,
eu não quero. Sou cartógrafa do nada, sou cartógrafa da distração, essa sim é minha
60

pulsão, me distraio pra poder criar, saio do foco que me doutrinaram a ter. Distraio-me
pra poder me expandir. Disseram-me o contrário: “não pense pra existir”.
Pensei e daí que uma onda alcançou algumas palavras, meu coração acelerou.
Tinha me distraído em mim e o mar quase me tocou. O mar estava finalmente chegando
perto de me molhar. Aquela onda apagou a frase “pó de arezia”. Fiquei chocada com a
sua audácia, com a sua ousadia.
Audaciosa sou eu na verdade, que me coloco à frente do mar e não quero me
molhar. Acontece que ela levou minha “arezia”. Ou apenas chamou minha tensão,
atenção pra minha azia de pensamentos indigestos, minha escuridão, desorganização
que não me cabe, só amplia. Daí que olhei pra frente: várias ondas marchando em
minha direção, altas, quilométricas.
- “Será que me alcançam?”, pensei.
- “Não pense pra existir”, lembrei.
“Penso existo”, foram o que “los padres blancos” disseram apenas pra eles
mesmos, mas: “[...] La madre Negra que todas llevamos dentro, la poeta, nos susurra en
nuestros sueños: ‘Siento, luego puedo ser libre’. La poesia acuña el lenguaje con el que
expresar e impulsionar esta exigencia revolucionaria, la puesta en práctica de la
libertad”. (LORDE, s.d, p. 9).
Fechei os olhos e mergulhei na minha própria escuridão, na hora passaram flashs
na minha cabeça, meus pensamentos faiscavam, pensei sobre a ida, fincava as
distrações, as despedidas. Ela que me levou a estar aqui nesse exato lugar, nesse exato
momento. A despedida de mim, o abandono de mim.
Daí que a onda chegou pequena nos meus pés. Abri os olhos. Acontece que
nosso olhar de lupa às vezes aumenta o problema – ou os cria. Imagina: várias crias de
problemas, filhotes que alimentamos. Acontece que quis voltar pra casa pra escrever
numa outra plataforma que não pudesse ser apagada (assim tão organicamente), no
fundo às vezes a gente ainda quer uma segurança, nem que seja a segurança de amarrar
tudo em palavras e ideias, não me contentaria nesse dia “apenas” com o sentir. É um
hábito esse de falar sobre o existir.
Pensei também sobre o desvio que me trouxe até aqui, pensei nele como
“método” na arte.
- O desvio!
E numa retrospectiva de minutos que mais pareceram anos, lembrei que quando
estava indo para o mar vi um método no meio do caminho. Ignorei, pois me distraí.
61

Tinha outro método no meio do caminho, o percebi, mas escolhi desviar. Desviei de
vários métodos até chegar ao mar, até lidar com os meus próprios pensamentos. Não
perdi nada no meio do caminho, está tudo a ser construído. A matéria-prima dessa
construção é areia, bate um vento e a estrutura desmorona.
Amar-se é construir estruturas que desmoronam. Castelos, casas, edifícios,
cidades inteiras de areia. Sentimentamos e sedimentamos nessa instabilidade as nossas
criações. O fazer arte entra com a umidade, molhamos a areia e ela fica um pouco mais
firme, naquele exato momento, naquele segundo rápido ou no tempo de uma piscada, só
pra dá forma ao corpo, ao pensamento. Mas logo em seguida a umidade não passa mais
a ser sentida, tudo seca, cai com o vento. É efêmero, fêmera.
E logo temos que reconstruir...
- “O fazer da arte está na pesquisa da umidade de si mesmo/a”.
A pesquisa é areia (pó!), é nada fixa. Mas tem quem não se conforme e que
transforme a areia em cimento, em algo uniforme, moldável e encaixável ao mesmo
tempo, à prova de abalos sísmicos, de ventos, ondas, tsunamis. À prova de embalos.
Prefiro a instabilidade da “arezia”, aquela que a onda apagou e distraída que sou
desenvolvo, me distraio, esqueço e me atrapalho. Me distraio em autoras/es que não eu,
preciso comer, porque “saco vazio não para em pé”, mainha que dizia. Lembrei também
das quatro distrações que comi até chegar aqui, lembrei da minha compulsão alimentar e
distraída que sou me deixei ser engolida, comida viva: das palavras, das incertezas,
corroída de mar.
Me levantei pra voltar, olho pra ela e ainda não consigo entrar. Tenho medo de
mergulhar naquela água porque não sei nadar, porque não sei…
Não sei…
Eu tenho é medo da sua imensidão, do que guarda ali – tão finito, mas
desconhecido. Medo de me afogar. Medo de não saber.
Subi então pra voltar, mas as distrações não me abandonaram. Cruzei com um
gato preto na encruzilhada da rua que habito. Não é acaso, tem uma casa cheia deles na
esquina – foi uma distração de bom presságio. O gato de olhos amarelos foi a nona
distração.
A décima foi esse projétil dissertativo.

***
62

PROJÉTIL II - REIVA

No livro
a foto perdida.
No quarto Não sei,
o livro esquecido. talvez seja
No som o porco, Quem é que enche
pneu em combustão.
o grunhido. o bucho com partículas
O orgasmo suíno: Fumaça preta, subatômicas de sentir?
o minuto, os minutos, língua amarela. Eu mesma que não!
as horas. Quero comer,
Quem está aqui, repetir, sentir fome,
- Você tem sentido? quem aqui pacifica,
-… comer e repetir.
escolheu compartilhar Esfomeada,
- Ei,
todo o sulco da minha, quero lamber
- Ei, eu disse ei…
- Você tem sentido? das nossas essências, o prato de
- Não me venha com escolheu viver tanto sentir!
conversas… no olho do furacão, Engolir os talheres,
- Ei, apenas pare! mergulhado, a mesa de jantar,
queimando, as paredes,
Ou melhor continue… molhado de suor
vivendo, continue o barraco ajeitado
mergulhando e lava de vulcão. e o buraco de fim
nos buracos Queimando de mundo
umbilicais seus. de reiva em que vivo.
Isso não é problema, que nem pneu…
é escolha de - Entende?
impermanência. Fumaça preta,
E eu entendo, língua amarela… É tanta coisa que
tem gente que gosta nem cabe em mim.
de molhar só os pés, Que e tu me vem
pular as sete ondas, pin
ga com migalhas?
observar à distância
a surra-abraço - Ei,
que a onda dá E não são gotas –
quem é que mata Ei, eu disse ei…
na pedra.
Eu entendo, sede com gota? Comigo ou é tudo
não é conversa. ou é nada!
Afiada conversa.
Mas dessa partilha
de umbigo
eu não partilho,
pra mim o buraco
é mais pro fundo,
é ainda cordão
em gestação.
63

Tudo pode ser usado


exceto o que pode ser jogado fora
(você vai precisar
se lembrar disto quando for acusada de destruição).
(Audre Lorde)

Esse trabalho é sobre emancipação e resgate, mas não consigo falar sobre isso
sem falar sobre o que o mais trava esses dois objetivos: o racismo – “A crença na
superioridade inerente de uma raça sobre todas as outras e, portanto, o direito de
dominação, manifesto e implícito” (LORDE, 2018, p. 88).27
E como falar sobre racismo sem falar sobre raiva? “É possível superá-lo?”, te
perguntei um dia. “O quê?”. “O racismo”, te respondi e você ficou calado. Por que é
possível “superar” o racismo nessa sociedade em que estamos inseridas e inseridos? Se
supero logo mais ele aparece de outra forma, às vezes mais pesado do que da última
vez, não se supera o que está entranhado, acumulo descasos então, terei sorte se isso não
se transformar num câncer na garganta, estômago ou em miomas uterinos – esses eu já
coleciono. Mas é possível falar sobre racismo sem raiva?

Eu reclamava, exigia explicações. Suavemente, como se fala a uma


criança, explicavam que era a opinião de algumas pessoas apenas,
acrescentando que “era preciso esperar seu rápido desaparecimento”.
De que estávamos tratando? Do preconceito de cor. (FANON, 2008,
p. 109, grifo nosso).

Conhecido por todas e todos nós como racismo. Para Audre Lorde (id., p. 89)
uma das respostas a ele é a raiva:

Eu vivi boa parte da minha vida com essa raiva, ignorando-a, me


alimentando dela, aprendendo a usar antes que jogasse minhas visões
no lixo. Uma vez fiz isso em silêncio, com medo do peso. Meu medo
da raiva não me ensinou nada. O seu medo dessa raiva também não
vai te ensinar nada. Mulheres respondendo ao racismo significa
mulheres respondendo a raiva; raiva da exclusão, dos privilégios não
questionados, das distorções raciais, do silêncio, do maltrato, da
esteriotipização, da defensividade, da má nomeação, da traição, da
cooptação. Minha raiva é uma resposta às atitudes racistas e às ações e

27
Sobre a origem e o ethos do comportamento racista, Nah Dove (2018, p. 144) usa como referência
Cheikh Diop que, ao falar sobre as antigas raízes do patriarcalismo indo-ariano, menciona que uma das
significantes características da sua cultura é a xenofobia (medo de estrangeiros), “qual ele atribuiu à dura
existência no ambiente do norte. Durante o desenvolvimento das cidades-estados da Grécia e de Roma,
não era considerado um crime matar um visitante estranho (p. 146). No entanto, na sociedade matriarcal
em que xenofilia (prática de acolher bem os estrangeiros) era a norma aceita, como foi documentado em
Kemet durante a 12ª dinastia (4.000 anos atrás), ‘mulheres e homens pretos, brancos e amarelos, já
haviam sido admitidos a viverem como cidadãos iguais’ (p. 147)”.
64

presunção que surgem dessas atitudes, então minha raiva e seus medos
são focos que podem ser usados para o meu crescimento. Mas para a
redução dos danos, não para a culpa. Culpa e defensividade são
tijolos numa parede contra a qual todas nós fracassamos; eles não
servem para o nosso futuro.

Formas menos hostis de fala são cobradas de nós. Como falar sobre situações de
opressão e não se sentir amagamente afetada/o? Como falar disso de forma suave,
“saudável”, como tantas vezes nos cobram? Pois lhes digo que não existe forma não-
hostil ou suave de falar sobre o racismo – “[...] é a minha forma de falar que a impede
de ouvir ou a ameaça de uma mensagem que possa fazer com que sua vida mude?” (id.).
Cobra-se menos raiva por causa da culpa, mas

Não posso esconder minha raiva para poupar-lhe a culpa, nem ferir
seus sentimentos, nem responder à raiva; pois fazê-lo insulta e
banaliza todos os nossos esforços. A culpa não é uma resposta à raiva;
é uma resposta às próprias ações ou falta de ação. Se isso leva a
mudanças, então pode ser útil, já que não é mais culpa, mas o começo
do conhecimento. No entanto, com demasiada frequência, a culpa é
apenas outro nome para a impotência, para a defensiva destrutiva da
comunicação; torna-se um dispositivo para proteger a ignorância e a
continuação das coisas do jeito que são, a proteção definitiva para a
imutabilidade. (id., p. 94).

E como transmutar a culpa da supremacia branca? Essa resposta não tem que ser
pensada por mim ou por nós. Tenho que dar conta da culpa que me/nos foi colocada – e
ela não está comigo apenas em alguns momentos de confronto, ela está sempre aqui,
ontem, por exemplo, acordei e a olhei no espelho, de novo; cada dia menos; tem dias
que mais. Preciso trabalhá-la, pois se não eu não consigo viver dignamente, minha
escrita trava, minha língua enrola, adoeço (cancros, cancros, cancros). Hoje entendo
essa culpa como uma alienação e mecanismo do próprio racismo, alienação essa que me
coloca em processo de inanição... e me recuso a senti-la.

A ponta queimou
a minha’boca,
boca cheia
de farelo e fumaça.
Bem massa
que embaça
e amansa a dor.
Te fere em dormência,
mas alguns preferem
seguir na demência,
corpo cheio de
inteirezas desabitadas.
65

Mas e se eu fizesse
uma endoscopia,
o que em mim encontraria?
Vestígios teus?
Não, não sou vazia!
Acho que veria
cancros, cancros!
Cancros vários!
Fodendo meus órgãos,
estuprando meu peito,
invadindo meus ovários!
Cancros na aorta, no cerebelo,
cancros até nos fios
curtos de meus cabelos!
Eu só sei escrever sobre cancros, vê?
Porque não sei ser
pessoa-abafador, vê?
Mas no geral me sinto bem,
vomito todo dia:
pus, sangue
e até poesia!
A minha médica
já marcou a endoscopia...
E sigo vomitando rimas,
vomitando apatia.
Vomito vontade, lágrima doce
e também falsa-empatia.
Contra e versa, sigo –
me alimento de poesia!

Segundo Lorde (id., p. 95) essa culpa é:

[...] uma outra maneira de evitar a ação informada, de ganhar tempo


com a necessidade premente de fazer escolhas claras, fora da
tempestade que se aproxima e que pode alimentar a terra e dobrar as
árvores. Se eu falar com você com raiva, pelo menos eu falei com
você: eu não coloquei uma arma na sua cabeça e atirei em você na rua;
eu não olhei para o corpo de sua irmã sangrando e perguntei: “O que
ela fez pra merecer isso?”. Esta foi a reação de duas mulheres brancas
para contar o linchamento de uma mulher preta grávida de Mary
Church Terrell cujo bebê foi, então, arrancado do seu corpo.

Contra a culpa encontrei a raiva, esculpi a culpa na minha poesia, nas minhas
palavras, na minha anatomia e nas próprias palavras de culpa identifiquei o antídoto: a
própria, a palavra – não mais fajuta e disfarçada de branca, descobri uma fala diferente
das que me ensinaram na escola, na universidade, descobri esse canto, no canto de fora,
nos muros de fora, no meu passado (tão ali mostrado, mas que eu não enxergava); não
era mais saber de canto, era saber que acomodava a sala toda, a casa toda; era
66

movimento abarrotado, descobri a minha “negridão”28, como chamou Frantz Fanon


(2008) e a descobri com a raiva, porque a descobri através do racismo.

A ontologia, quando se admitir de uma vez por todas que ela deixa de
lado a existência, não nos permite compreender o ser do negro. Pois o
negro não tem mais de ser negro, mas sê-lo diante do branco. Alguns
meterão na cabeça que devem nos lembrar que a situação tem um
duplo sentido. Respondemos que não é verdade. Aos olhos do branco,
o negro não tem resistência ontológica. De um dia para o outro, os
pretos tiveram de se situar diante de dois sistemas de referência. Sua
metafísica ou, menos pretensiosamente, seus costumes e instâncias de
referência foram abolidos porque estavam em contradição com uma
civilização que não conheciam e que lhes foi imposta. (id., p. 104).

Em seu livro Pele preta, máscaras brancas, Frantz Fanon (2008) nos fala sobre
as relações raciais e coloniais, objetiva e subjetivamente nos fala sobre a descolonização
e emancipação cultural do Preto, discorre sobre a ideia de “identidade negra”. Ele fala
sobre a construção dos estereótipos raciais impostos pela própria colonização e reforça
em sua escrita sobre a restituição da humanidade do Preto, o Preto enquanto “sujeito”.
Visto que o colonialismo destituiu os povos africanos da sua própria história e cultura –
pois até mesmo o que temos acesso hoje passa pelo crivo da supremacia branca.
Fanon enfrenta esses estereótipos e no próprio desenvolvimento de seu livro vai
“libertando” e desnormatizando a sua escrita a cada capítulo, colocando mais a sua voz.
Nasceu e cresceu em uma colônia (Martinica), assim como nós. Teve uma educação
“branca”, assim como eu e nos fala sobre a importância de reescrevermos a nossa
história e cultura para não mais ficarmos à sombra de uma história e cultura europeia.

Chego lentamente ao mundo, habituado a não aparecer de repente.


Caminho rastejando. Desde já os olhares brancos, os únicos
verdadeiros, me dissecam. Estou fixado. Tendo ajustado o
microscópio, eles realizam, objetivamente, cortes na minha realidade.
Sou traído. Sinto, vejo nesses olhares brancos que não é um homem
novo que está entrando, mas um novo tipo de homem, um novo
gênero. Um preto! (id., p. 108).

Fanon nos fala de alguma forma, não tão explícita quanto a Audre Lorde sobre a
raiva. Aqui na encruzilhada desse projétil, podemos atravessar a mencionada obra de
Fanon com o artigo Os Usos da Raiva: Mulheres Respondendo ao Racismo, proferida

28
“Eu era ao mesmo tempo responsável pelo meu corpo, responsável pela minha raça, pelos meus
ancestrais. Lancei sobre mim um olhar objetivo, descobri minha negridão, minhas características étnicas,
– e então detonaram meu tímpano com a antropofagia, com o atraso mental, o fetichismo, as taras raciais,
os negreiros, e sobretudo com y’a bon banania” (FANON, 2008, p. 105).
67

numa conferência realizada em 1981, e que é um dos capítulos de uma das principais
obras29 de Lorde.
Como o título do artigo já nos elucida, Lorde direciona a sua fala apenas às
mulheres, mas isso não é uma questão aqui. Assim como em muitos momentos Fanon é
androcêntrico30 em sua fala ao se referir ao “Preto”, uma das sequelas do machismo que
opera em nossa linguagem. Fanon abraça o povo Preto em sua fala, trazendo a sua
perspectiva, as suas vivências (a única possível) enquanto homem Preto. Assim como
Audre Lorde traz em suas falas uma destacada relação de gênero. Ambos, para além
dessas questões estão falando de suas experiências mediante o racismo e é nisso que
essa encruzilhada foca.
Os questionamentos de fome que surgem das encruzilhadas desses dois autores
são: como trabalhar a questão da raiva para a população Preta? (Entendendo-se que essa
raiva também passeia por nós atravessada por outras opressões, como o machismo, por
exemplo). Como processo sobre a raiva da mulher Preta? Lorde nos fala sobre isso.
Como processo sobre a raiva do homem Preto? Fanon nos fala sobre isso e abre a
discussão desses estereótipos raciais para a população Preta.
E as mulheres Pretas? Audre Lorde direciona seu discurso bastante ao gênero,
ela fala sobre a autoaceitação da raiva de mulheres Pretas, diferencia esta do ódio, que
“é a fúria daqueles que não compartilham nossos objetivos”, e que o objetivo dessas
pessoas (referindo-se à supremacia branca) é por sua vez “a morte e a destruição”; fala
sobre a necessidade de mulheres Pretas e mulheres brancas “encararem as fúrias umas
das outras sem negação ou imobilidade, silêncio ou culpa”, pois isso “é em si uma ideia
herética e generativa”. Fala sobre a implicância dessas em encontrarem uma base
comum para examinar essa diferença, já que são essas distorções que nos separam.
Lorde está se referindo à masculinidade branca (LORDE, 2018, p. 93).
Considero de extrema importância destacar algo que os estudos de gênero
geralmente tendem a dispersar ou não focar: o homem Preto como algoz desse mesmo
sistema e dos estereótipos racistas criados por ele, dentro dessa masculinidade.
Portanto...
E os homens Pretos? Ainda estamos falando sobre racismo e raiva, mas a
questão se torna pertinente, pois ela se contrapõe a outro estereótipo de gênero que

29
LORDE, Audre. Sister Outsider: Essays & Speeches. Berkeley: Crossing Press, 2007, p. 124-133.
30
Porém é importante destacar a diferença entre androcentrismo e misoginia.
68

envolve também o racismo, visto que a raiva já é algo esperado desses homens, é algo
inclusive, construído como sendo parte deles, ligada a uma violência naturalizada e
incutida a eles.

Nessa época, desorientado, incapaz de estar no espaço aberto com o


outro, com o branco que impiedosamente me aprisionava, eu me
distanciei para longe, para muito longe do meu estar-aqui,
constituindo-me como objeto. O que é que isso significava para mim,
senão um desalojamento, uma extirpação, uma hemorragia que
coagulava sangue negro sobre todo o meu corpo? No entanto, eu não
queria esta reconsideração, esta esquematização. Queria simplesmente
ser um homem entre outros homens. Gostaria de ter chegado puro e
jovem em um mundo nosso, ajudando a edificá-lo conjuntamente.
(FANON, 2008, p. 106).

Esse estereótipo de “objeto” é usado como justificativa para o afastamento e


descaso, para o encarceramento e genocídio de homens Pretos no Brasil, não à toa nós
temos a terceira maior população carcerária do mundo, onde 64% é Preta (dentro das
493.145 pessoas), ou seja, quase dois terços de toda população carcerária brasileira.31
São “personagens principais” dos homicídios – são 16 brancos assassinados a cada 100
mil habitantes contra 40,2 Pretos32. Se você não sente raiva ao ler isso nós temos um
problema aqui.33
Números, dados, estatísticas, palavras, imagens veiculadas nas mídias menos
sensacionalistas e internet, vivências, escancaramentos – não mudam a realidade da
população Preta na diáspora forçada brasileira. Os dados expostos nessa página não são
tão recentes e agora tendem a piorar, visto que o Brasil enfrenta atualmente o pior
cenário eleitoral das últimas décadas, onde está sendo presidido pela extrema-direita

31
Dados retirados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), em Brasília, pelo
Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça, Junho/2016.
32
Fonte: Atlas da Violência, 2018, organizado em parceria entre o Fórum Brasileiro de Segurança Pública
e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
33
“A informação sobre a raça, cor ou etnia da população prisional feminina estava disponível para 29.584
mulheres (ou 72% da população prisional feminina). A partir da análise da amostra de mulheres sobre as
quais foi possível obter dados acerca da raça, cor ou etnia, podemos afirmar que 62% da população
prisional feminina é composta por mulheres negras. [...] Se projetarmos a proporção de mulheres negras e
brancas observada na parcela da população prisional que dispunha de informação sobre raça, cor ou etnia
para o total da população prisional, teríamos uma estimativa de 25.581 mulheres negras em todo o
sistema prisional e 15.051 mulheres brancas. A partir dessa estimativa, é possível calcular a taxa de
aprisionamento para cada 100 mil mulheres maiores de 18 anos entre as populações de diferentes raças,
cores ou etnias [...]. Podemos afirmar que, entre a população maior de 18 anos, existem aproximadamente
40 mulheres brancas privadas de liberdade para cada grupo de 100 mil mulheres brancas, e existem 62
mulheres negras na mesma situação para cada grupo de 100 mil mulheres negras, o que expressa a
disparidade entre os padrões de encarceramento de mulheres negras e brancas no Brasil”. Dados retirados
do Levantamento de Informações Penitenciárias - INFOPEN, Junho/2016. PNAD, 2015, p. 40.
69

conservadora (leia-se aqui: racista, machista, transfóbica, homofóbica, intolerante ao


que e a quem se contrapõe à normatividade cristã).
[Peço que tome fôlego...] Naturalizada ou não esperada ou não fazendo parte ou
não de um estereótipo usado por essa extrema-direita pela direita esquerda e todas as
direções (políticas ou não) possíveis imbuídas no cerne dessa sociedade que nasceu de
um processo de colonização e escravidão que durou mais de três séculos e que dura até
hoje enchendo hospitais hospícios prisões esvaziando escolas...
[Agora com pausa, vírgulas e fôlego te digo que...] É estarmos cientes dessas
estereotipizações e violências, estarmos conscientes, atentos e atentas, preparadas e
preparados – na medida do possível, óbvio... Cheios e cheias de raiva, pois “operamos
nos dentes de um sistema para o qual o racismo e o sexismo são propósitos primários,
estabelecidos e necessários ao lucro” (LORDE, 2008, p. 92).

Tendo o campo de batalha sido delimitado, entrei na luta. Como


assim? No momento em que eu esquecia, perdoava e desejava apenas
amar, devolviam-me, como uma bofetada em pleno rosto, minha
mensagem! O mundo branco, o único honesto, rejeitava minha
participação. De um homem exige-se uma conduta de homem; de
mim, uma conduta de homem negro – ou pelo menos uma conduta de
preto. Eu acenava para o mundo e o mundo amputava meu
entusiasmo. Exigiam que eu me confinasse, que encolhesse. Mas eles
iam ver! Eu já os tinha prevenido... A escravidão? Não se falava mais
disso, era uma lembrança ruim. A pretensa inferioridade? Uma
pilhéria da qual era melhor rir. Eu aceitava esquecer tudo, com a
condição de que o mundo não me escondesse mais suas entranhas.
Tinha de testar meus incisivos. Eu os sentia robustos. E depois...
Como assim? Quando então eu tinha todos os motivos para odiar,
detestar, rejeitavam-me? Quando então devia ser adulado, solicitado,
recusavam qualquer reconhecimento? Desde que era impossível
livrar-me de um complexo inato, decidi me afirmar como Negro. Uma
vez que o outro hesitava em me reconhecer, só havia uma solução:
fazer-me conhecer. (FANON, 2008, p. 107).

Eis ela, a raiva que permeia também as subjetividades dos homens e mulheres
Pretos/as. As Poéticas Pretas necessitam de uma leitura de gênero, portanto, que
envolva a fluidez entre essas linhas do “masculino” e “feminino”, impregnadas também
de estereótipos racistas, porque antes desses estereótipos que marcam as próprias
relações de gênero ocidentais, ambos são atravessados pelo racismo. Sendo essas
poéticas múltiplas, elas podem falar por um povo, mesmo que eu esteja falando sobre
mim?
70

A resposta é simples de início: sim, pois a opressão que passo gerada pelo
racismo e que impregna os meus modos de subjetivação também é múltipla nessa
sociedade. Esse racismo e suas implicações de inferioridade estão presentes nas
subjetivações de todo um povo. E como Fanon nos “provoca” ela é confrontada quando
me faço conhecer, e como consequência também faço conhecer a minha raiva – “reiva”
quando falada e sentida com muita raiva, que a externo e a torno múltipla, multiplico a
minha voz em várias na minha/nossa escrita.
Desse modo, torna-se relevante transmutar os discursos de gênero, abrangê-los e
aplicá-los aqui nessa “escrita encruzilhada” à população Preta, para assim falarmos
sobre a importância da articulação dessa raiva, pois não podemos “limitá-la” no gênero,
mesmo sabendo da importância das mulheres se encararem sobre as suas diferenças, ou
seja, a raiva de ambas entre si e do ódio em comum que as geram, como Lorde nos
elucida. Porém é como se esse denominador comum fosse apenas a masculinidade de
uma sociedade gestada pelo patriarcado. E é também, porém trata-se de uma
masculinidade branca, coluna dorsal dessa sociedade patriarcal. Transformamos isso em
um discurso delicado, pois as masculinidades são facilmente confundidas, vistas sobre
um manto único: o machismo. Mas não podemos colocar numa mesma balança a
masculinidade Preta e a masculinidade branca (frisando que existem outras, mas neste
trabalho vou me ater apenas a essas duas, por serem as de maior destaque e dissonância
na sociedade que vivemos).
Não tem como separar o racismo que o homem Preto passa do racismo da
mulher Preta: ambos passam, ambos são violentados pelo racismo antes de serem
“atingidos” pelas questões de gênero. Ou seja, não tem como colocar mulheres brancas
acima dessas questões (refiro-me à masculinidade Preta), assim como não temos como
colocar mulheres num mesmo bolo. Não temos como falar apenas sobre gênero. O
racismo vem antes e infelizmente nos perpassa. Mulheres brancas também são
oprimidas por esse sistema patriarcal branco (por isso a importância do feminismo –
para as mulheres brancas), mas é necessário destacar que elas são beneficiadas no
quesito racial e é imprescindível reconhecer e trabalhar essas questões.
A raiva precisa ser reação ao racismo, pois sem ela há naturalização. Raiva como
fonte de energia e não como auto desgaste como nos ensinam, ao invés disso nos
doutrinam à “apatia”. As Poéticas Pretas entendem a raiva como motriz poética e
criativa, raiva como motriz para a mudança.
71

E quando eu falo de mudança, eu não quero dizer a simples mudança


de posições ou uma diminuição temporária das tensões, ou a
habilidade de sorrir e de se sentir bem. Eu estou falando da alteração
básica e radical dessas suposições que sublimam as nossas vidas.
(LORDE, 2018, p. 91).

Esse processo de mudança muitas vezes é turvo, mas gosto de transmutá-lo,


colocá-lo e entendê-lo por vezes como uma nebulosa –

Cartografia da nebulosa

Acordei me sentindo assim, remanescente de supernova. Pós-explosão: o quarto


estava uma bagunça, roupas, embalagens e até gozo marcando o chão. Acordei meio
aérea da cabeça, sufocada e com enxaqueca.
Me levantei molhada, tomei um banho frio e molhada continuei com os olhos e
os pelos em estado de arrepio, caminhei pingando até chegar aqui nessa janela aberta e
escancarada que dá pra lugar nenhum e ao mesmo tempo para todos os portos que eu
queira. Mas cansei de observar algo comprimindo a minha atenção, não quero mais
aportar passivamente à espera da próxima explosão.
Me refiz em supernova à prova de tudo, isto é, provando o que aparece,
descobrindo ao acaso o que acontece, explorando a realidade no seu estado mais latente,
apenas estando aqui em estado presente.
Querida supernova manchou o colchão, pois sofria de incontinência planetária.
Explodiu assim meio arbitrária. Supernova sabia o que estava por vir, se tornaria um
corpo celeste, um corpo que se expande, brilha, queima e aquece. Mas como aquecer
esse corpo até a sua evolução expansiva?
A resposta se estende na minha boca e pula do precipício da minha língua:
- EXPLOSÃO!
Não me contentei com essa resposta, outra sai da minha boca então, palavra
meio silenciosa, falei baixo dessa vez, disse sussurrando: “atenção, talvez”. Não, não
tem a ver com o contrário de discrição, me refiro àquela atenção que deixa a gente em
estado latente.
- Onde coloco a minha atenção? – eis a questão que latejou.
E da explosão, o que ficou?
- Onde você coloca a sua atenção? – perguntou.
72

- A seguro com os dentes, respondi então. Mas às vezes tropeço e ela cai, então
não a sinto assim tão eficaz.

O estado antes da atenção explosiva –


Nebulosa tão difusa, tão poeirenta, tão brilhosa. Nebulosa de emissão, reflexão,
escura e planetária – todas ao mesmo tempo, uma confusão densa e nébula de
pensamento. Porque o pensar não estava apenas na sua cabeça, aquele corpo era todo,
inteiro, movimento, suor – da cabeça aos pequenos dedos dos pés, das unhas aos
pequenos fios de cabelo que carregava em seu ori, tão nebuloso.
A nébula ao contrário do que pensam não é um estado de confusão, é estado de
adensamento: de poeira, hidrogênio, hélio, plasma e pasmem, é também estado de
junção. De aglomeração de ideias, pulsões e afetos em ebulição.
Estar em nebulosa é existir em estado de berçar corpos celestes. Vago, vago,
vago, que não mais vaga, queima, não arrefece. É existir em estado de criação, porque
quando algo está em nebulosa nós pisamos em solo movediço, a criação se expande na
instabilidade de não enxergar o que está por vir.
E ao se expandir, essa nebulosa pode até parir. A nebulosa está prenha, ela
gestou fumaça, gestou cenas, gambiarras, poemas, gestou a si, mas à medida que se
gesta, ela também se “mata” aos pouquinhos, só para nascer de novo e de novo se matar
devagarinho, ou melhor, se abandonar ou se reconstruir, como queira chamar, como
você preferir.
Nebulosa hoje deu à luz, ela pariu um corpo sem leste, oeste, norte e sul, ele não
tem direção pré-definida, corpo cansado, que no cansaço flui para outras significações.
Não, não… Nebulosa não gosta de ser definida, ela é muito densa e espessa para isso,
nebulosa descabida, cabe apenas na sua imensidão. Não, não cabe em canto nenhum
não, nebulosa não aceita estados de fixidez.
Ela paira no movimento e assim pariu: uma supernova nasceu, uma supernova
maturou, se expandiu, cresceu. E no outro dia? Supernova remanesceu…
A supernova-plasma – e pasmem! – pode ter surgido de uma explosão, mas me
pergunto todos os dias:
- Quando ela explodiu estava prestando atenção?

***
73

Responder ao racismo não é lucrativo, responder ao racismo não é confortável


para quem se beneficia dele, ou seja, toda a branquitude; responder ao racismo nos
desgasta também, mas não respondê-lo nos desgasta ainda mais. O racismo é vendido
como algo imutável, é naturalizado nos estereótipos, assim corroborando para sua
existência, sendo um dos pilares-base para o funcionamento da alienação colonial. Nós
precisamos ter a coragem de dizer, assim como disse Fanon (2008, p. 90): “é o racista
que cria o inferiorizado”.
Desse modo, a raiva (essa explosão) precisa ser reconhecida e discutida em
nossas poéticas como reação ao racismo e a essa inferiorização desdobrada por ele, que
precisa ser eliminada. Já a raiva carece de ser trabalhada – não falo de mais uma
eliminação, mas de um trabalho de um ourives ou lapidário. A reiva precisa ser
trabalhada de forma criativa. Sobre isso Lorde (id., p. 93) nos diz que esta discussão:

[...] deve ser direcionada e criativa porque é crucial. Não podemos


permitir que nosso medo da raiva nos desvie, nem nos seduza a nos
contentar como nada menos que o árduo trabalho de buscar a
honestidade; devemos ser bastante sérias sobre a escolha deste tema e
as fissuras entrelaçadas dentro dele, porque, com certeza, nossos
oponentes são bastante sérios sobre o ódio deles e sobre o que estamos
tentando fazer aqui.

Antes de trabalhá-la nós devemos, portanto, aceitá-la como parte, ou seja, como
reação à essa inferiorização que foi e é submetida a nós. Depois da aceitação dessa raiva
como motriz criativa, o próximo passo é canalizá-la, colocá-la em nossos processos
artísticos, em nossas escrevivências, não como algo que exala culpa, sim como força
reativa necessária. Colocar-se em estado de reiva é antes de mais nada se abrir, se
expor, é ver com o quê e quem estamos lidando.
Encruzilhando essa ideia, Fanon (2008, p. 95) nos diz que:

Em outras palavras, o negro não deve mais ser colocado diante deste
dilema: branquear ou desaparecer, ele deve poder tomar consciência
de uma nova possibilidade de existir; ou ainda, se a sociedade lhe cria
dificuldades por causa de sua cor, se encontro em seus sonhos a
expressão de um desejo inconsciente de mudar de cor, meu objetivo
não será dissuadi-lo, aconselhando-o a “manter as distâncias”; ao
contrário, meu objetivo será, uma vez esclarecidas as causas, torná-lo
capaz de escolher a ação (ou a passividade) a respeito da verdadeira
origem do conflito, isto é, as estruturas sociais. (FANON, 2008, p.
95).
74

Reagir, dependendo dessa estrutura social, pode acabar em bala ou prisão.


Sabemos que nem sempre a reação é uma escolha. Mas é importante entendermos que
estar passivo/passiva (seja consciente ou não) a essa percepção da submissão à
branquitude e a seu racismo: nunca nos protegeu e nem nos protegerá!
O nosso “inimigo” em comum não é apenas o patriarcado, o nosso “inimigo” é
antes de mais nada a supremacia branca, pois o patriarcado é apenas mais um meandro
dessa.34 É a alienação colonial da branquitude que nos impossibilita de sermos
“sujeitos” de nossa própria história. Essa mesma branquitude tem antes de mais nada
uma séria dificuldade em se perceber enquanto branquitude, como mantenedores do
racismo – esse que ainda é objeto de negação de sua parte, com direito ao saque
compulsório do negro card – que geralmente é um amigo/amiga, namorada/namorado,
pai, mãe, avó ou avô Pretos/as, que são lembrados como justificativa do porquê não
serem racistas. Ou seja, por se ver como parâmetro e centro, nós podemos entender a
branquitude “como o lugar mais elevado da hierarquia racial, um poder de classificar os
outros como não brancos, que, dessa forma, significa ser menos do que ele. O ser-
branco se expressa na corporeidade, a brancura. E vai além do fenótipo. Ser branco
consiste em ser proprietário de privilégios raciais simbólicos e materiais”35.

34
Ao estudar o conceito de unidade cultural africana é possível entender como os europeus contribuíram,
mesmo com as diferenças étnicas ou nacionais, com a imposição da sua supremacia sobre o mundo
(DOVE, 2018, p. 140). Para entender esse conceito e seus conflitos, Nah Dove utiliza a Teoria dos
Berços, de Cheik Anta Diop (1959; 1990), na qual esse argumenta sobre dois berços distintos de
civilizações e como essa distinção pode ser usada para entender as origens do patriarcado. Diop fala sobre
o berço sul, a África e o berço do norte, a Europa, e o quanto esses criaram modos de estruturas sociais
dissonantes e quase antiéticas entre si. “A África, onde a humanidade se iniciou, produziu sociedades
matriarcais. Porém com o tempo, a migração dos povos para o clima do norte produziu sociedades
patriarcais centradas no sexo masculino. Diop desafia teorias europeias evolucionistas que afirmam que o
matriarcado é um estágio inferior no desenvolvimento humano e na organização social. Muito
tranquilamente, ele atribui o matriarcado para um sistema de vida agrária em um clima de abundância e o
patriarcado às tradições nômades decorrentes de ambientes agressivos. O conceito de matriarcado destaca
o aspecto da complementariedade na relação feminino-masculino ou a natureza do feminino e do
masculino em todas as formas de vida, que é entendida como não hierárquica. [...] O papel da
maternidade ou dos cuidados maternais não se limita às mães ou mulheres, mesmo nas condições
contemporâneas”, pois em África este conceito transcende às relações de gênero ou sanguíneas (id., p.
141).
35
M. P. Müller, Tânia; Cardoso, Lourenço (Orgs.). Branquitude - Estudos Sobre A Identidade Branca No
Brasil. Curitiba: Appris, 2017.
75

Cartografia do prédio-colina

“Do alto não se vê”, disse ela, cercada embaixo por olhos, vários pares. Do alto
se escolhe não ver… Veja! E pra chegar embaixo você tem que perder, perder as suas
asas cintilantes de formiga voadora. De baixo só vemos o quente, não temos escolha, e
só venta lá em cima. Do alto, da coluna, do prédio, da colina. Toma aspira! Injeta a
morfina, cheira a coca, toma rivotril, a meta afeta… Do alto, menina…
- Quer subir? Vem aqui que é bonito, não tem preto. Nem ouvimos os gritos.
Não ouvimos a sua ladainha de opressão. Do alto, meu bem, não tem chacina, estupro,
só tem canhão, pra comandar a massificada olhada.
A massa enficada na parede, nas paradas, nos ônibus. Nas estradas de caminhos
nada apartados. Escadaria inalcançável. Mas a escadaria que vejo não dá pra torre… Dá
pro morro! E do alto eles não veem os morros:
- Morro é cheio de gente-zumbi. Gente pobre, que morre, gente que gosta de
sucumbir. Do alto se escolhe a vista mais linda da cidade. E é o mar! Olho pro mar,
paguei pra está aqui. Do alto se escolhe e nunca escolhi dividir. Do alto a gente nem
ouve as balas. Isso, meu bem, Argentina mês que vem!
Nos embalos da rotina de escritório, no ar condicionado, entre atas, alto e branco
que nem o bicarbonato de seus dentes:
- Escolha, meu bem… Isso ou o sulfato de metileno de existência. A
meritocracia está segurando o canhão. Responda logo! E como eu costumo dizer: você
que escolhe!
Do Alto? Não se vê.
No alto não se acolhe!

***
A branquitude precisa fazer parte do processo de descolonização e
transformação social, mas para isso precisam se reconhecer enquanto tal, mas esse não é
76

o foco desta escrita, porém torna-se necessário verbalizar, pois ela é o foco de nossa
reiva.36 E reforço aqui com as palavras de Lorde (2018, p. 96):

Minha resposta ao racismo é a raiva. Essa raiva comeu fissuras em


minha vida apenas quando não foi expressada, o que é inútil para
qualquer um. Também me serviu em salas de aula sem luz ou
aprendizado, onde o trabalho e a história das mulheres pretas eram
menos do que um vapor. Isso me serviu como fogo na zona de gelo de
olhos incompreensíveis de mulheres brancas que veem em minha
experiência e na experiência de meu povo apenas novas razões para
medo ou culpa. E minha raiva não é desculpa para não lidar com a sua
cegueira, não há razão para se afastar dos resultados de suas próprias
ações.

Vendem-nos a todo momento uma imagem de cuidado e equilíbrio como


qualidade de vida. Mas não se ressaltam as disparidades sociais e econômicas, portanto,
raciais, que nos distanciam desse cuidado. O “amor interno” e o afeto com nós
mesmas/os e com a nossa comunidade continuam sendo a nossa meta, não apenas por
uma questão vital, mas, sobretudo, por uma questão de sobrevivência, pois ainda somos
os que mais morrem: seja por meio da violência policial e urbana, seja por doenças
cardíacas, nutricídio37, anemia falciforme, tuberculose, doenças do trabalho, ISTs,
HIV/aids, abortos sépticos, mortalidade infantil elevada, somos mais atingidas pelo
feminicídio38, lgbtfobia, com destaque para a transfobia39.

36
Sobre o conceito de branquitude e seus prolongamentos é interessante a leitura da tese de Lia Vainer
Schuman, Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: Raça, hierarquia e poder na construção
da branquitude paulistada. Tese de doutorado. Universidade de São Paulo, 2012. Também há o livro de
Marimba Ani, que diferentemente da primeira obra citada, trata-se de uma crítica afrocentrada sobre o
tema que envolve o comportamento e pensamento cultural europeu. A obra é intitulada de Yurugu: an
african-centered critique of European cultural thought and behavior (em tradução livre: Yurugu: uma
crítica africano-centrada do pensamento e comportamento cultural europeu). IUPUI UNIVERSITY
LIBRARIES: Indianapolis, 1992. Marimba Ani fala (entre outras coisas, pois a autora lança diversos
conceitos em sua obra, como os de Asili, Utamawazo e Utamaroho) sobre a objetificação do sujeito
negro/preto, fala sobretudo do fundamentalismo eurocêntrico como aliceçador dessa objetificação, bem
como destaca a “construção” (no sentido de invenção) do ocidente como agente e centro do sistema
mundo.
37
Genocídio da população Preta através da alimentação, que desde o período de colonização e
escravização do povo Preto foi responsável por muitas mortes e mudança do nosso DNA. Sobre o assunto
é interessante a leitura do livro de Llaila O. Afrika, A Revolução Negligenciada –– Saúde Holística
Africana – [African holistic Health].
38
Dados do último Mapa da Violência denotam aumento de 54% nos homicídios de mulheres Pretas,
enquanto os assassinatos de brancas caiu 9,8%. O mapa não traz dados sobre pessoas Trans. (Mapa da
Violência, 2016).
39
No ano de 2018, 163 pessoas Trans foram assassinadas, sendo 158 Travestis e Mulheres Transexuais, 4
homens Trans e 1 pessoa Não-Binária (sabemos que o número é muito maior que esse). São dados de um
relatório feito pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), conjuntamente com o
Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE). Segundo esse relatório, 82% das pessoas Trans
77

Para alcançarmos essa qualidade passamos por mais obstáculos, para muitos até
inatingíveis, dadas as circunstâncias de vidas Pretas jogadas a mercê. Algumas/alguns
não conseguem, passam a vida sem conseguir. Alguns/algumas a perdem rapidamente.

Eu falo aqui como uma mulher preta que não se dedica à destruição,
mas à sobrevivência. Nenhuma mulher é responsável por alterar a
psique do opressor, mesmo quando essa psique é incorporada em
outra mulher. Eu amamentei o lábio de raiva dos lobos e usei-o para
iluminação, riso, proteção e fogo em lugares onde não havia luz, sem
comida, sem irmãs, sem graça. Nós não somos deusas, matriarcas ou
edifícios do perdão divino; não somos dedos ardentes de julgamento
ou instrumentos de flagelação; somos mulheres forçadas a recuar
sempre sobre o poder de nossa mulher. Aprendemos a usar a raiva
quando aprendemos a usar a carne morta de animais, e feridos,
machucados e mutilados, sobrevivemos e crescemos e, nas palavras de
Angela Wilson, estamos seguindo em frente. Com ou sem mulheres
sem cor. Usamos todas as forças pelas quais lutamos. (id., p. 97).

O tratamento nessa sociedade não é “universal”? E o “universal” ainda é branco,


é necessário verbalizarmos isso cada vez mais. Por isso é importante descompreender a
raiva. Eu tento recompreendê-la escrevendo, preciso escrever com meu corpo, inclusive.
Mas senti de trazer essa escrita antes para a palavra, como reverberação do que o meu
corpo passa no mundo; coisa vivida gera palavra falada/escrita, palavra essa que me foi
negada, palavra reverbera corpo e corpo reverbera palavra: mania essa que nos
ensinaram de separar uma coisa da outra – o que leio, escrevo, subjetivo não difere do
meu corpo. Meu corpo negado.

Cartografia da trinca aguada

Quando eu vou dormir a minha cabeça pesa. Quando eu me deito à noite peso
quilogramas a mais. Incho, inflo, inflamo e cresço o que não cresci em anos, aumento
uns centímetros. Quando eu repouso o meu corpo, antes de fechar os olhos, a serra dos
meus cílios grunhem. Me sinto um bicho exposto tentando me esconder.
Já de dia acordo, levanto, caio, levanto, renasço da cama e sigo o meu dia.
Sorrio, sorrio com força – como se não houvesse amanhã! Sorrio até serrar os dentes – à
noite só tento serrar os olhos. Sorrio até trincar todos os entes queridos de boca. Sorrio

assassinadas são Pretas e possuem entre 17 e 29 anos. Isso é bem maior que essa nota de rodapé, não são
apenas números: são corpos Pretos assassinados, torturados, violentados – e isso é imprescindível que
seja dito, porque não é suave... O racismo não é suave, é enraivecedor! O mencionado relatório se
encontra disponível em: <https://antrabrasil.files.wordpress.com/2019/01/dossie-dos-assassinatos-e-
violencia-contra-pessoas-trans-em-2018.pdf>. Acesso em: 11 de maio de 2019.
78

com firmeza e acredito no riso, ele também vem me sustentado. Acho que não sorria
assim há anos. Sinto que isso pode me salvar e é o que vem me segurando aqui nesse
lugar...
Mas não quero a segurança daquilo que me foi ensinado, daquilo que já é
“conhecido” e doutrinado. Eu preciso de um sorriso novo. Por isso tenho sonhado com
o passado, ele me visita meio que assim desavisado. Um passado recente que ainda me
incomoda, um passado distante que me pergunto se é fantasia ou se aconteceu em algum
tempo40. Só sei que tudo se mistura e me aparece em segundos nos sonhos.
Mas focarei agora nos meus dentes malhados por falta de cálcio, porque tenho
esse costume de desfocar. Então focarei no aqui e só por agora eu focarei no sorriso: ele
faz parte de estar viva, faz parte de mim, esse novo sorriso que vem quando acordo.
Inédito, ele aparece toda vez que invento de abrir a cicatriz que tenho como boca.
Bocejo ou sorriso? Na verdade tudo começou quando cortaram meu umbigo (a
primeira cicatriz que guardei em meu corpo). E pensando agora talvez essa cicatriz seja
a fechadura da minha casa, agora sem brecha. Antes eu achava que era a minha boca,
mas percebi que na realidade ela é a janela e que os meus olhos antes eram duas frestas
pequenas. Agora eles são portas e os meus cílios são daqueles tapetes que acariciam os
pés. Olhei então para você e te deixei entrar.
Aproveito e digo logo aqui que essa casa saiu do lugar. Itinerante, essa mesma
casa foi vista ontem se banhando no mar. Essa mesma casa esteve também por muito
tempo abandonada, foi mal habitada, alocada, loucada e deslocada. Casa minha, amada
casa.
Hoje quando eu acordei ela estava mais leve, o mar tratou de levar uns
quilogramas e alguns centímetros de mágoas, algumas certezas... E a raiva?
- Mas pra onde o mar leva a mágoa?, perguntei. Porque eu fui arrastada esses
dias e não foi pelo mar. Pra onde o mar leva a minha raiva? Pra onde o mar leva o que
me arrastou?, insisti em te perguntar. Você me disse: “não sei, não sei”, meio
impaciente. Pra onde o mar leva quem me machucou? Olha meu sorriso, o mar até
trincou… o meu sorriso… os meus dentes. “Não sei, não sei”, sua impaciência reecoou.
Talvez o mar leve para um redemoinho d’água. “O seu sorriso?”, você me questionou.
Não, a minha mágoa, porque ela é líquida... E daí talvez esse redemoinho de mágua
venha para mim em sonhos.

40
Não se engane, aconteceu.
79

“E o que aconteceu com a sua raiva?”, outra questão em eco. Acordei hoje
sorrindo ela... Não vê aqui a trincada? Pois cada espaço desse é uma raiva ou mágoa
rachada. Não é estranho? Então, é por isso que não sorria assim há anos! Você então me
disse que “isso não é resposta que se sirva”. Te olhei com as minhas portas, abri a
minha janela e te disse:
- Tá bom então de você cuidar da sua mágoa, da sua raiva e da sua vida!

***
A palavra veio antes ou depois do racismo? Bem antes, a palavra é antiga, é
ancestral, originária, que nem meu povo. Hoje em dia ela nos é (a)tirada, fixação essa de
prender palavra e Preto.
A calada veio antes ou depois do racismo? Honestamente, ela veio depois. Antes
cantávamos, dançávamos e falávamos bem mais. Pura reverberação, encruzilhamentos
de corpos-palavras. Hoje, a palavra é negada. A raiva: negada.
“Negada”
Para se falar sobre o “amor interno” e afeto entre nós mesmas/os ou sobre o
cuidado que nos foi negado é necessário falar sobre racismo e sobre a raiva também
como resposta, porque essa é injuriada, posta como coisa degradante que temos que nos
livrar, colocada como coisa torta, desviante, mas eis o que exatamente precisamos fazer:
nos desviar – também em nossa escrita, pois a raiva é torta e necessária. Optei, deste
modo, em falar da raiva depois de falar do amor/afeto (Projétil I) por entender esses
sentimentos como respostas distintas ao racismo, respostas que também podem ser
interdependentes, a depender da forma como são trabalhados, visando afastar essa ideia
de contraposição e antagonismo ou mesmo apartar essa ideia de afeto como resposta à
própria raiva.
É do meu interesse destacar nesta escrita que a nossa memória emocional-
racional, ancestral, e, portanto, corporal, é massivamente bloqueada por narrativas de
escravidão e racismo. Este trabalho também nasceu dessa massa de ódio a nós
incorporada. Mas permaneceu pela necessidade de transformação desse ódio através de
um trabalho coletivo entre o afeto (entre nós mesmas/os e pela nossa própria cultura) e a
raiva.
Assim como afeto, a raiva é sentimento potente que desaprendemos a lidar,
associado a nós como uma estereotipia racial, raiva vazia como sinônimo de “histeria”,
80

palavra doentia também associada ao “feminino”. Mas não se engane, pois, a raiva
também “toca” o masculino, pois se é Preto, ela é violenta e compulsiva sexual.
O nosso afeto/raiva foi desconfigurado/a e transformado/a então em arma de
controle: afeto como armadilha (arma de ilha), arma solitária, afastada e cercada por
oceanos de emoções infladas; já a raiva é arma arregaçada, exposta, marcada com ferro
e expandida como cicatriz na pele, saiu da ilha e ganhou continentes, tornou-se
justificativa para prender e matar o que é Preto. Existe equilíbrio, mas esses sentimentos
e emoções foram transformados/as em meandros e ao mesmo tempo consequências do
próprio racismo, sustentado pela supremacia branca (e ao mesmo tempo sustentando-a)
como arma genocida.
Reiva-Erva-Daninha: danosa, pequena? Grande, penosa, que assim como as
ervas que usei para me curar preenchem meu terreno de verde, me sufoca às vezes com
culpa, mas não preciso dela – aparente nem oculta. A coloco pra fora então, mas umas
tiro, outras deixo, preciso do verde-Preto me preenchendo, preenchendo essa casa,
crescendo como se fosse cabelo, um bololô de ervas, quase um novelo. Preciso delas
refletindo nas janelas pequenas dos meus olhos, no suor que produzo nesse corpo em
processo de afirmação, nos banhos que tomo, no fumo, na comida que fermento.
Sim, a raiva por aqui é fermentada, mas antes eu só a dosava, hoje a jogo na
panela com ¼ de um mói de coentro, raiva moída que me alimenta, se a engulo e não a
coloco pra fora, esquenta. Raiva-alimento: se não coloco pra fora eu fermento é por
dentro.
E hoje eu escrevi (fermentei) ainda mais a minha raiva:
81

PAU A PIQUE

Não consigo me concentrar, não consigo revisar as palavras da cabeça, não


consigo escrever, a luz está acesa. A torneira ligada, água por todo o quarto. Me sinto
travada, por quê? Me toquei que não me toco. Me toquei então que costumo escrever
sobre mim, aqui, eis aí a dificuldade em me permitir. Porque é sobre mim… Mim, mim,
mim, mim.
É sobre as sobras do que restou depois que nasci, cresci medianamente, me
formei em órgãos: pele, intestinos, cartilagem, ossos, músculos e dentes. Me emancipei,
caminhei sozinha, sem/cem homens, sem/cem meninas, sem as pessoas que me
habitaram e eu habitei, só eu – só, dessa vez.
E às vezes os intestinos tentavam fugir, diziam que eram longos demais pra
caberem aqui. Mas eu retrucava: “fica, é sua casa. Faz morada em mim… se eu me
permito porque você não pode se permitir?”.
Eles estavam cansados, assim como os outros órgãos. A casa estava ruindo.
Como pode? Tão jovem casa. Como podre? Tão negra casa! Os yurugus disseram que
era sujeira e atraso. Já eu dizia que eram as marcas do tempo, que era a sua cor de terra
batida, que era o seu chão descalço e esburacado de cimento, minhas mandingas, meus
pensamentos. Me recusava a passar cal em minhas paredes, isso só disfarçaria a ruína
que me transformaram.
- Não quero seu cal!, gritava pelas minhas janelas.
Do lado de fora podiam se ver casas com paredes rebocadas, brancas, uniformes
e pintadas, um conjunto habitacional (com cimento cobrindo a terra de todo o quintal).
Algumas estavam até com as paredes descascadas, se via o barro por entre as manchas
de cal e elas repetiam em uníssono, como em um coral:
- Como pode? Tão jovem casa...
Como?
Sim, eu comi todas as minhas paredes de barro! A casa que antes tinha vários
cômodos se transformou em um cômodo só. Eu cagava na pia, dormia na cozinha,
andava no teto, cozinhava meu desmantelo no berço de um bebê que não nasceu.
Suspeito que essa fome de barro tenha sido a falta de ferro para sustentar minhas
colunas. O bebê morreu de inanição em minha barriga antes mesmo de nascer, tamanha
era fome e o desmantelo, o descaso. Dividindo espaço com os intestinos que não
conseguiram ir embora.
82

- Como pode, tão jovem casa?


Mal nasceu já desfalece. O que te tornou tão fraca, o que acontece? A casa ficou
assim porque apenas, eu disse “apenas” obedece. Sim, passou anos repetindo essa
palavra: “sim”. Passou anos sendo mal ouvida, mal sentida, “mal comida”, mal amada –
por si, principalmente; e pelo “sim”, principalmente. A casa ruía porque nunca foi
cuidada. Acreditou na besteira que lhe disseram, que pau a pique não podia ser mansão,
que “em terra batida não se pode fazer morada”.
Eu discordo, a minha casa: de rimas, troços, destroços, coisas que esqueci,
coisas… coisa nenhuma, a minha casa é aqui nesse corpo de barro, sem cal e sem chão
asfaltado. A minha casa que desfalecia se reergueu um pouco com essas palavras que
escrevi aqui, com as palavras que venho escrevendo todas as noites antes de dormir;
ervas cresceram ao redor de toda minha a casa. Porque elas, as palavras e as ervas,
colocam pra fora o que não mais me cabem, o que não mais quero inibir, ou seja, a
raiva. O que tanto me habitava e precisava sair pro mundo, fora dessa casa de pau a
pique, fora dessa casa de um cômodo só.
A torneira da minha casa continua aberta, vazando água até pelas suas frestas.
Ela se transformou numa lama, inundada.
- Como pode?
83

- Alagada casa.
84

PROJÉTIL III – ¿Y SI MUERO AQUÍ?41

Fulana tinha um desejo


profundo: o de querer ser
atropelada.

Mas não era atropelo de No semáforo, o sinal.


palavra, corte, atropelo de
gente querendo ser ouvida, Fulana até tinha alguns
atropelo de faca. espalhados pelo corpo,
Porque isso Fulana e nem sabia a essa altura
E depois de um dia de
já via, isso já a tinha e mas o nome disso e o nome
cansaço...
parecia ser destino... que carregava era causado
pelo desgosto –
- E se?
da pobreza, de ser mais
- E se eu morrer aqui?
Ela queria era atropelo de uma, da sua cor – era o que
carro. Fulana pensava e em
momento algum alguém lhe E um minuto antes de
disse que estava errada. mudar de ideia sobre a
Bem assim: literal, corpo
efemeridade da sua
deitado esperando a
Isso tudo já era sinal existência, sobre o câncer,
ambulância no asfalto.
suficiente para o que estava sobre a pele, sobre o quanto
por vir. ama – de fato – a
Mas ela não queria que
permanência, uma moto a
fosse de caso pensado.
atropelou.
Porque Fulana sempre
procurava o acaso nas Feito câncer de pele, feito
essa preguiça em existir Fulana morreu então…
suas travessias.
quando não se tem motivos Sozinha, sem nome
pra se celebrar. Fulana e cem dor.
Amava a vida, mas sentia
um desapego angustiado. tinha quatro filhos e estava
Ela esperava o acaso de um indo pra casa pra fazer o
carro passar o sinal jantar.
vermelho. Fulana sentia
falta de um nome de
verdade e também
queria o fim sem
dor da sua existência,
sem apego,
num simples
atropelo.

41
“E se eu morrer aqui?”.
85

Nossa cultura é nosso sistema imunológico.


(Marimba Ani)

Esse projétil é implicação e fruto de um Intercâmbio de Estudos realizado no


México, mais “incisivamente” na cidade de Oaxaca de Juárez, no Estado de Oaxaca.
Transitei ao longo de três meses por algumas cidades e pueblos de Oaxaca (Cuilapan,
Matatlan, Etla, Mitla, San José del Pacífico, Collantes, José María Morelos, Santa María
Huazolotitlan, Juquila), pelo Estado de Morelos (Cidade do México e Tepoztlán) e
Chiapas (San Cristobál de las Casas).
Tive contato com diversas/os artistas, pesquisadoras/es e com pessoas que não
tinham aproximação com esses campos-bolhas; algumas dessas pessoas se tornaram
grandes amigas/os; contatei danças, músicas, paisagens, me relacionei com o espaço
timidamente, outras vezes compartilhando diásporas, outras vezes sendo negada e/ou
me afirmando. Transitei por escolas, institutos de artes; teatros, universidades de
sociologia e antropologia, ruas. A intensidade de choques culturais manifestada nesses
três meses.
Foram muitos encontros em oficinas, laboratórios, orientações, eventos, reuniões
em grupos de estudos, em grupos mais informais com outras discentes e pesquisadoras
negras brasileiras, que estavam assim como eu passando por um processo de banzo e
Intercâmbio.
Não tive nesses três meses como separar a minha vida do meu trabalho – até
porque isso não é prática muito comum pra artista (pode se tratar de uma generalização,
mas é que para mim essa separação – vida e arte – sempre falou a língua da junção, mas
tenho receio de ser umbigo falando aqui, porém sei que sou umbigo multiplicado em
vários; e aqui também busco trazer alguns ecos de outras/os/es artistas), no “fim” a
gente mistura e tudo acaba permeando pesquisa.
Mas filtros se fazem necessários aqui, pois são imensidões de experiências e por
isso ao invés de relatar passo a passo como numa receita de bolo, resolvi focar no
quando e como a experiência e vivência artística é transformada pela vivência e
experiência do racismo e da violência. No banzo.
São atravessamentos que tecem as Poéticas Pretas.
Meu banzo teceu poética de morte.
E talvez tudo saia aqui meio atravessado (assim como o conjunto dessa
dissertação), pois eu não tive tempo de organizar minimamente essas experiências – e
86

não falo aqui de organização de palavras em frases e de frases em tópicos; talvez essa
desorganização organizada dure alguns anos, está mais na desordem do impalpável,
imaterial, no campo do subjetivo, porque enfim, fui profundamente modificada. É outra
pessoa que escreve aqui e talvez você note a diferença. Talvez não, talvez a minha
essência fale mais alto e as mudanças não sejam tão perceptíveis, ainda são um feto
dentro de mim. Veremos e você me diz...
Pois sim, estou confusa. E me sinto mais confortável em escrever assim na
confusão ou nas diversas possibilidades que as encruzilhadas me dão. E meu banzo
acabou por tecer uma necroperformance –

Definição do Dicionário das Semânticas Ordinárias Cotidianas:


Performar coisas que matam a (nossa) gente,
modo não vulgaris: ou eu faço ou eu morro ou eu morro enquanto faço.

A necroperformance é a performação de morte ou das mortes. Ela é escurecidamente


uma encruzilhada com o conceito de necropolítica42 pensado por Achille Mbembe.
Ela é um pulo do navio, um além-corpo mergulhado no Atlântico.

A morte de corpos pretos fala incisivamente sobre poder, bem como sobre a sua
representação nefasta em nossos imaginários. Essa performação, portanto, trata-se da
construção de estado de emancipação do Estado e de várias outras políticas de morte
que nos permeiam. Essa(s) morte(s) pode(m) ser “performada/s” através de resgates
diretos ou indiretos de experiências, que assim podem ser escrevividas (em uma
linguagem de encruzilhada) em lugares (seja esse lugar uma plataforma como essa –
escrita / ruas / sala fechada / ambientes vários / lugares que não nos são “permitidos”/
lugares que dizem que podemos “ocupar” / etc.), de modo a nos reafirmarmos enquanto
pertencentes desses lugares, seja ele um desses múltiplos espaços ou nosso próprio
corpo, porque muitas vezes tendemos a não nos cabermos,

porque dividimos espaço e aluguel com dores.

Sim, a necroperformance entre outras questões, busca fazer uma reescrita da dor de
morte. E é dor diferente da vivida obviamente – falo de memória de dor, visita de dor
nossa (vivida por nós ou pelos/as nossos/as ancestrais). Trata-se de construir também

42
Abordo mais esse conceito no próximo projétil – A gente combinamos de escreviver.
87

através dela o entendimento ou consciência da importância dessa dor, já que ela existe.
Escreviver sobre dor é liberar dor, por mais que doa.

A necroperformance diz sobre a necessidade – de formas bem plurais, visto que assim
somos – de trabalharmos com o momento do nascimento dessa dor geradora de morte,
para assim construirmos um novo caminho de nascimento-morte.

A morte aqui não é entendida como fim, mas como processo para outra coisa:
É caminhada, cortejo, andança, pulo, ebó.
A performação da morte diz então sobre processos de curação, processos de
macumbaria, diz sobre processo de emancipação de dor e medo, do que vem desse
processo de colonização que mata nossos corpos, línguas, culturas, epistemologias,
poéticas, enfim, as nossas existências.

Morro porque isso é curso natural de vida.


Causo minha própria morte para confrontar a morte que me causam.
Mas essa morte é uma escolha.

Escolher morrer. Escolher caminhar. Escolher pular.

A necroperformance reverberou da sensação forte da diáspora em meu corpo.


Reverberou desta investigação do que poderiam ser as Poéticas Pretas. Percebi que não
conseguiria falar sobre elas de forma “ampla” ou “geral” como gostaria; no momento,
por enquanto, eu consigo falar sobre elas através da minha própria experiência, através
do meu corpo diaspórico – em curso – em movimento pela Latinoamérica. Esse projétil,
portanto, diz sobre esse (meu) corpo diaspórico em outra diáspora. E será através dessa
“experiência de morte” que buscarei entender as Poéticas Pretas.
Quando cheguei ao México me deparei com outra realidade de negração. Pude
perceber nesse território estrangeiro (para mim) outras perspectivas sobre a encruzilhada
e sobre o que o meu corpo estrangeiro (para os/as outros/as) suscitava. E por muitas
vezes foi nela, a encruzilhada, que eu me fortaleci, por entendê-la como lugar metafísico
de múltiplas travessias e também como reversão do que é atravessado ou nos atravessa.
Por muitas vezes também me vi como encruzilhada ambulante atravessando outros
caminhos, de pessoas que se dizem não estarem acostumadas com a minha existência
88

(esse é sempre o argumento), mas que na realidade só endossam um racismo estrutural e


estruturante, permeado por toda uma ideologia de branqueamento.
No dicionário informal encruzilhada é sinônimo de “cruzamento”,
“entrelaçamento”, “mistura” e de “mestiçagem”. E é nesta última palavra que quero
frisar e afirmar algo bastante importante para este trabalho:
Não entendo a minha cor como uma encruzilhada de raças. E é dentro desse
entendimento que esse “cruzamento” formaria o que chamam no Brasil de
“miscigenação”; no México, de “mestiçagem”. Essas que compreendo como armas
sócio-políticas e ideológicas de branqueamento.

Cartografia da mestiçagem

Não sou uma preta retinta. É isso. E se fosse uma paleta de cores ou um pote de
tintas “oficiais” de uma marca, eu não teria no estoque. Sou uma mistura então de tons e
de vários deboches? Misturada e assim entendida como “neutralizada” – na palavra e no
que passo.
Não posso falar sobre racismo? Pois não passo por racismo. Pois não sou retinta.
Ou passo por bem menos racismo. Pois sou “mestiça”. Daí que parei no meio do
caminho por não entender porque transformaram isso numa competição entre pretos.
Você entende deboche? Espero que sim. Senão, é só voltar para o começo. O
meu deboche é didático, mas às vezes dou nó, porque não tenho paciência para dar laço.
Esse é o momento de agora e na objetividade que me carece, mas que às vezes acontece,
te digo que mestiçagem é arma, competição, é paleta ainda longe, mas bem mais
próxima do padrão. Mestiçagem é estratégia de escravização, inicialmente de corpos
proibidos a liberdade de ir e vir, existir, mão de obra forçada e violentada. Mas agora é
mão de obra que se acha branca, ainda escravizada!
Mas sou mais que um corpo, sou uma existência! Atualmente essa escravização
ou analogia a ela é diferente e suspeita, por se camuflar, por se disfarçar – está presente
em várias crenças.
Mestiçagem dissimulada na minha cor de mulata. Sou a mula do mundo?
Seguradora de desgraças? Bem nas minhas ancas, no meu sexo. Sirvo pra foder porque
pra outras coisas eu não presto! E 131 anos após a “abolição” ainda acreditamos que
89

não existe assimilação. A mestiçagem está nessa teia, foi arma e vocês são presas. Nós
somos presas, cativas.
Por que você me coloca contra a minha irmã ou meu irmão?
Por que negro um contra outro agrada mais a produção e assim se torna perfeito.
Pra quem? Pro patrão: pra sinhazinha, sinhozinho e pra toda essa organização
estruturada em cima do racismo. “Mais claros” contra “mais escuros” – é só ler a carta
de Willie Lynch. É necessário afrobetizar hoje em dia sobre esses absurdos.
Mas me perdi no meio desse plano de embranquecer, miscigenar. Um dia até
achei que fosse branca, mas sempre me fizeram questão de lembrar:
- Nêguinha suja, fedida!
Mas lembrei que eu não sofro racismo, eu não sou uma “vítima”.

***

A “experiência racial” no México me fez reiterar ainda mais este


posicionamento. Porém é importante escurecer de que se trata de um processo distinto
do que entendemos aqui como miscigenação. A mestiçagem se deu de maneira social,
assim também como possui uma ideologia que a abraça, esta que se fortaleceu na
segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX.
Trata-se de um tema complexo e bastante extenso – e três meses em terras
mexicanas e poucas leituras sobre o tema não me deixam tão “confortável” para falar
aqui. O que me sinto “confortável” em compartilhar é que se trata da criação de uma
definição étnica, uma ideologia que se tornou oficial do governo depois da revolução
mexicana e que foi “instituída” como identidade da população, ou seja, o que antes era
uma identidade grupal se transformou em uma ideologia nacional.
Trata-se de uma ideologia de cerne racista, pois mesmo que aparentemente
amplie o número de pessoas que por autodeclaração ou “adoção” / “abandono” de uma
cultura se chamem de “mestiças” e que tenham privilégios sociais por isso, parte de uma
adaptação da ideia de superioridade branca, já que partia do pressuposto que a mescla
com o branco (dominante, ativo) é que elevaria a “raça indígena” (dominado, passivo).
A “clara” imagem do estupro do homem branco à mulher indígena.
A mestiçagem nasceu na ideia de “superiorização” dos indígenas a partir da
mistura com o branco – com o conquistador espanhol e criollos (brancos nascidos no
90

continente americano e descendentes de espanhóis), e, portanto, com a ideia de


superioridade da cultura ocidental. Tratou-se de um violento processo de conversão e
destruição de civilizações, sociedades e povos indígenas – isso sem mencionar os povos
de origem africana que estavam nesse território, a maioria por causa de um violento
processo de escravização e genocídio (Maafa).
A população “negra”43 no país é pouco mencionada em livros e nos sistemas de
ensino – e quando o é, tratam-se de estudos a partir das perspectivas de pessoas brancas
e não-negras. População que não escreve sobre si, que está à margem44 e que só
recentemente teve o seu reconhecimento jurídico45.
Sim, raça e racismo no México tratam-se de temas complexos pela ótica da
população em geral, mesmo sendo temas vivenciados na pele (“4 de cada 10 personas
consideran que en México se trata a las personas de forma distinta según el color de su
piel, de acuerdo con la Encuesta Nacional sobre Discriminación - Enadis, 2010”)46.
Talvez entender isso como uma complexidade só nos sirva para nos afastar
desses temas, para não discutirmos e problematizarmos essas violências e fabulações
(MBEMBE, 2016). Sin embargo, creo que es mejor cambiar incluso la lengua (del
colonizador – y colonizadora) que se utiliza aqui en esta plataforma académica, o más
bien decir, acaendémica.
Por ahora me gustaría de traer a esta discusión el concepto de Amerifricanidad
(Amerifricanidade), de Lélia Gonzalez (2018; 1988), para así trabajar con algunas
intersecciones, esto es, algunas encrucijadas entre los pueblos negros afromexicanos y

43
A população negra do México se identifica e se autodeclara com/como os seguintes termos: negros,
afromexicanos ou afrodescendientes (termo utilizado pela ONU). Porém muitos utilizam a palavra
“moreno” para definir o tom da sua pele. No censo comum, para população em geral chamar alguém de
“negro” é algo ofensivo, por isso o “moreno” é bastante utilizado.
44
Trata-se além de uma margem social e política, de uma margem real, visto que a maior parte da
população negra ou afromexicana está em maior número nas partes “costeras” ou “costeñas” do país.
Inclusive são inventadas muitas histórias para justificar a sua presença nessa parte do território mexicano:
“Conta-se que um barco naufragou na costa, alguns dizem que de Oaxaca e, outros que, de Guerrero, e
este naufrágio é o motivo de que existam negros na Costa Chica” (ACEVEDO ÁVILA, 2018, p. 52,
tradução nossa).
45
Arquivo com o acréscimo do artigo 2º da Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos, no
que remete ao reconhecimento dos povos e comunidades afromexicanas disponível em:
<http://sil.gobernacion.gob.mx/Archivos/Documentos/2019/04/asun_3873276_20190429_1556662189.p
df>. Acesso em 25 de setembro de 2019.
46
Fonte: DOCUMENTO INFORMATIVO SOBRE EL DÍA INTERNACIONAL DE LA
ELIMINACIÓN DE LA DISCRIMINACIÓN RACIAL. SEGOB - Secretaria de Gobernación / Consejo
Nacional para prevenir la Discriminación. Disponível em:
<https://www.conapred.org.mx/documentos_cedoc/21_Marzo_DiaIntElimDiscRacial_INACCSS.pdf>.
Acesso em 10 de outubro de 2019.
91

pueblos negros brasileños. Será a través del “pensamiento geográfico” (RATTS, 2011)
de la autora que tengo la intención de discutir el “lugar del negro”, así como la relación
de las personas negras47 con diferentes espacialidades, ya sean geográficas y/o
epistemológicas y/o artísticas, espacios estos atravesados por el violento proceso de
emblanquecimiento.
Para esto, en este proyectil también me enfocaré en la unidad latinoamericana a
través de estos dos diásporas africanas: México y Brasil. Y será por medio de la
encrucijada de estas, que tengo la intención de discutir la intersección que estas
colonizaciones tienen en su núcleo y que se perpetúa hasta el día de hoy a través del
racismo por denegación, una práctica común luso-española (GONZALEZ, 1988, p. 73).
Estas intersecciones se expresan en las artes o hasta mismo en las llamadas culturas
“populares”/“folclóricas”.
En esto caso, la fuerza cultural se presenta como la mejor forma de existencia
para nosostros dentro de estas sociedades, mismo que estas expresiones minimizen la
importancia de la contribución negra, según Gonzalez. Pero Lélia no solo creó un
término, sino también pensó “en una cara negra para las Américas” (RATTS, 2011, p. 8,
traducción nuestra). Así como la pensó en una dimensión cultural y también política:
Su valor metodológico, en mi opinión, es que permite la posibilidad
de rescatar una unidad específica, históricamente forjada dentro de
diferentes sociedades que se han formado en una parte particular del
mundo. Por lo tanto, la Améfrica, como sistema de referencia
etnogeográfico, es una creación de nosotros y nuestros antepasados en
el continente en el que vivimos, inspirado en modelos africanos. En
consecuencia, el término amefricanas/amefricanos designa una
descendencia completa: no solo la de los africanos traídos por el
comercio de esclavos, sino también de los que llegaron a América
mucho antes que Colón. Ayer, como hoy, amefricanos de diferentes
países han jugado un papel crucial en la configuración de esta
Amefricanidad, que identifica, en la Diáspora, una experiencia
histórica común que debe ser debidamente conocida e investigada
cuidadosamente. Aunque pertenecemos a diferentes sociedades del
continente, sabemos que el sistema de dominación es el mismo en
todas ellas, a saber: racismo, esta elaboración fría y extrema del
modelo de explicación aria, cuya presencia es una constante en todos
los niveles de pensamiento, así como parte integrante de las
instituciones más diferentes de estas sociedades. (GONZALEZ, 1988,
p. 77. Énfasis de la autora).

Gonzalez problematiza el término americano utilizado por los estadonidenses y


sugiere el nombre amefricana/amefricano para todas las personas africanas en diáspora

47
Desde aquí usaré esta palabra colonizadora al hablar el idioma también colonizador del español.
92

o afroíndigenas en la Améfrica Ladina. La autora usa estos términos como una forma de
alcanzar una conciencia afectiva en nosotros mismos (1988, p. 76). Lélia Gonzalez
frente a esta realidade colonizadora racista que compartimos nos hace una pregunta
importante:
[...] ¿por qué no abandonar las reproducciones de un imperialismo que
masacra no solo a los pueblos del continente, sino a muchas otras
partes del mundo, y reafirmamos la particularidad de América en su
conjunto sin perder nunca la conciencia de nuestra deuda y los
profundos lazos que qué tenemos con África? (id., p.79, traducción
nuestra).

La Amerifricanidad se trata, por lo tanto, de las grandes similitudes y


disparidades que nos une. El racismo está cocido por toda la Améfrica, y en esta hay
lugaridades compuestas por categorias diferentes, por supuesto, pero sobre todo son
lugares constituidos por la segregación racial y espacial, ya sea en Brasil, donde la
población negra constituye 55,8%48 o en México, donde la población negra o
afromexicana constituye 1,2%49 de la poblácion nacional.
La espacialidad en la Améfrica ha acompañado y aún acompaña a la población
negra, las negras y los negros todavía están restringidos, ya sea en espacios públicos y/o
privados, porque esta declaración de que nosostros somos todos iguales ante las leyes
tiene un carácter distintivamente formalista en nuestras sociedades, segun la autora, ya
que: “El racismo latinoamericano es suficientemente sofisticado como para mantener a
los negros e indios como segmentos subordinados dentro de las clases más explotadas,
gracias a su forma ideológica más efectiva: la ideología del emblanquecimiento”
(GONZALEZ, 1988, p. 73, traducción nuestra). Todavía sobre racismo y
espacialidades:
[...] creemos que el [...] influye en la constitución de los lugares, ya
que aquí es donde se encuentra el cuerpo negro, es percibido/percebe,
es significado/significa y se coloca en el encuentro/confrontación. En
general, es donde convergen las experiencias y vivencias
determinadas por el racismo, que actúan como un factor influyente en
las experiencias topofóbicas y topofílicas desarrolladas por los
individuos. Aunque los negros experimentan el lugar de manera
diferente, existe una unidad en su experiencia grupal en el espacio;

48
Fonte del IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), Diretoria de Pesquisas, Coordenação
de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2012-2018.
49
“En México, una de las primeras acciones que se hicieran para identificar a estos grupos que el
levantamiento de la Encuesta Intercensal 2015 elaborada por el [...] INEGI, cuyos resultados señalan que
existen aproximadamente 1’381,853 habitantes (705 mil mujeres, 677 mil hombres), que se identifican
como negros, afromexicanos o afrodescendentes por autoadscripción [...]”. (ACEVEDO ÁVILA, Juliana,
2018, p. 16).
93

aunque tienen espacialidades, diríamos, “lugaridades” – diferentes,


nos damos cuenta de que sus experiencias socio-raciales tienen
algunas similitudes. (CIRQUEIRA, 2008, p. 45, traducción nuestra).

La autora también nos cuenta sobre este “lugar del negro”, que se nos instituyó,
que se limita a nosotros, lugares que se han construido aquí en Améfrica desde la
colonización y que permanecen no solo como herencia, un legado supremacista, sino
sobre todo como base de esta supremacía blanca. Por lo tanto, podemos pensar en una
ruptura deste lugar que es instituído para nosostras y nosostros a través del racismo
estructural.
Uno de los pocos autores afromexicanos que investigan la situación económica,
política, social y cultural de las comunidades negras en México, es la autora Juliana
Acevedo Ávila, que en su livro Los Pueblos negros de México: su lucha por la
sobrevivencia cultural y el reconocimiento jurídico, hablanos de la discriminación y el
racismo al que se enfrentan los afromexicanos, centrándose en la población
afromexicana de la Costa Chica de los estados de Oaxaca y Guerrero, que
demográficamente en México, son los estados con la mayor concentración de personas
negras o afromexicanas, junto con el estado de Vera Cruz. Mismo sendo “[...] evidente
que la población negra del país la podemos encontrar en mayor o menor medida em
todos los estados de la república mexicana”. (ACEVEDO ÁVILA, 2018, p. 20).
La igualdad em derechos fundamentales de la que nos habla el artículo
primero de la Constituición Política de los Estados Unidos Mexicanos,
así como la equiparabilidad que se estabelece em el último párrafo del
artículo segundo del mismo ordenamento jurídico, no han garantizado
que los pueblos negros gocen de una vida digna, justa e igualitaria, em
virtude de que sus raíces ancestrales, que el resto de población niegue
cimento de sus raíces ancestrales, que el resto de la población niegue
su existência y que las instituiciones gubernamentales encargadas de
las políticas públicas no los contemplen, obstaculizando el ejercicio de
sus derechos, ejerciendo sobre ellos discriminación racial e
institucional que se refleja em el empobrecimento y marginación de
las comunidades. (2018, p. 49).

Solamente en el mes de agosto de 2019 se reformuló el artículo 2º de la


Constitución Política de los Estados Unidos Mexicanos, reconociendo la existencia
juridica de los pueblos y comunidades afromexicanas. Pero el simples reconocimiento
no cambia la situación en que la población negra afromexicana se encuentra en la
actualidad, personas que son considerasas extranjeras dentro del país.

[...] podemos observar em um primer momento la falta de servicios


básicos y si nos adentramos um poco más, podemos ver las carências
94

que se tienen al interior de los hogares, siendo afectados en mayor


medidas las mujeres, las cuales debido a los roles de género
assignados, les toca llevar la carga del hogar y la familia, aunado a
que debido a la precariedade laboral por los hombres, son ellas las
que realizan actividades para proveer lo necessário al hogar,
dedicándose lavar ajeno o n la elaboración y venta de alimentos,
eticétera, esto no se encuentra reflejado em ninguna estadística, pero
es algo que se aprecia al entrar em cotacto con las comunidades. (id.).

El lugar de negro en México y Brasil, así como en toda Améfrica Ladina está
puesto desde la colonización. Sobre la situación negra brasileña, Lélia Gonzalez nos
habla sobre el mito de la democracia racial como un modo de representación y/o
discurso, que oculta la trágica realidade:
Na medida em que somos todos “perante a lei” e que o negro é “um
cidadão igual aos outros”, graças a “lei áurea”, nosso país é o grande
complexo da harmonia inter-racial a seguido por aqueles em que a
discriminação racial é declarada. Com isso, o grupo racial dominante
justifica sua indiferença e sua ignorância em relação ao grupo negro.
Se o negro não ascendeu socialmente e se não participa com maior
efetividade nos processos políticos, sociais, econômicos e culturais, o
único culpado é ele próprio. (2018, p. 68).

Una de las formas de anulación en las Américas fue la idea del mestizaje, que
son basadas en diferentes dinámicas cuando encrucijamos estas dos diásporas, pero que
tienen un núcleo común: una política de emblanquecimento de la poblácion. La
ideología del mestizaje es utilizada por las nuevas élites para negar y descalificar el
problema racial, inclusivo. (MBEMBE, 2016, p. 47).
Según la autora Juliana Acevedo Ávila (2018, p. 96):
La sociedade mexicana está basada en el mestizaje surgido de la
mezcla de los indígenas que sobreviveran la colonización, las negras
no figuran em este processo, están homogeneizados, considerados
como mestizos por las instituciones, sin embargo a la hora de ejercer
derechos, no se tienen los privilégios de los que gozan los mestizos en
la región, quienen están poe encima de los indígenas y de los negros o
al menos así se considera, pues son estos quienes detentan el poder
político y económico y em algunos casos el control de los territórios
por médio de los cacicazgos. [...] Podemos decir que aún cuando
existe mayor trato de los negros con los mestizos que con los
indígenas, esta relación tiene algo de subordinación por el poder
económico y político atribuido y detentado por los mestizos.

Cuando Juliana usa este término en su trabajo, se refiere a “las personas que por
su grado de privilegio ostentan el poder político, económico y social em la costa chica y
no se asumen como negros ni como indígenas” (id.). Y es importante destacar de nuevo
que este documento no pretende discutir sobre el pepel del mestizaje, pero es obvio que
se ha afirmado desde finales del siglo XIX como un arma poderosa de borrado histórico,
95

político, social, cultural, es decir, existencial de la población negra en las diásporas de la


Améfrica, en este caso, en las diásporas de colonización portuguesa-española.
En Brasil es posible observar el uso “flexible” del color desde el período
“escravagista”. El mestizaje, que hasta la década de 1930 tenía una imagen negativa,
pasó al comienzo de esta misma década por una fuerte propaganda oficial del mito de la
democracia racial. Es una interpretación social que iba en contra de las afirmaciones
biológicas eugenésicas, que consideraban el mestizaje como algo racial y socialmente
degenerativo.
El mito de la democracia racial fue creado y siempre ha sido cargado de racismo
por omisión, disimulan y “suavizan” esta negritude, principalmente a través del
mestizaje. En el caso de Brasil, la población llamada “parda” es la mayoría y constituye
el 46.5%, junto con la población “preta” que constituye el 9.3%, sumando la identidade
de la población negra del país. Este mito para Gonzalez (2018, p. 181): “[...] no es más
que un aspecto de la ideología blanqueadora que, colonizadamente, quiere que creamos
que somos un país racialmente blanco y culturalmente eurocentrado”.
Lélia Gonzalez, junto com otros pensadores como Abdias do Nascimento y
Beatriz Nascimento, busca deconstruir sobre este mito de la democracia racial brasileña,
como el tráfico de personas negras africanas esclavizadas en Brasil no se construyó
sobre bases armoniosas, sucedió a expensas de mucha violencia racial y sexual
(principalmente en lo que se refiere a la violación de de la mujer negra por el hombre
blanco), instituyendo así esta falsa dinámica de democracia y cordialidad. Este mito aún
blanquea a negras y negros que son miscigenados – o “mestizos”, entendiendo que esta
palabra, así como su significado y peso en Brasil es diferente, tiene otras nomenclaturas
y contextos. Sin embargo, mismo con estas diferencias contextuales, estas dos diásporas
tienen similitudes con respecto a la omisión del racismo y la negativa del negra/negro a
un lugar. Negrativa.
Dentro de la Améfrica Ladina no tenemos “lugar” – sea él geográfico – corpo en
diáspora, sea él como ser “racional”, ou sea, productor o productora de su propia
historia, conocimiento, filosofías, epistemologías, culturas, pues para lo que es nuestro
aún se nombra de “popular” o “folclórico”. No solo en el acto de crear, sino
especialmente en el acto de ser el autor o autora de su propia creación. Hablar por su
propia gente. Esto porque el negro “nunca es de aqui”.
Juliana Acevedo Ávila (2018, p. 53), por ejemplo, explica algunos de los
muchos problemas que enfrenta los pueblos negros afromexicanos y dice que:
96

El deconocimiento por parte de la población nacional de la existência


de este grupo étnico como parte fundante del estado-nácion, provoca
que los vean como extranjeros dentro del país y su existência em
território mexicano se atribuye a los recientes migraciones de los
países vecinos de Centro, Sudamérica y el Caribe, principalmente de
haitianos, lo que repercute em actitudes racistas y discriminadoras, las
que a su vez se traducen en violência, insultos, obstaculización del
libre trânsito dentro del território nacional, así como hostigamientos
por las autoridades aeroportuárias y de migración, entre muchas otras.

Entonces, como nos “oscurece” Lélia González y Juliana Acevedo Ávila, el


negro no existe en su propio território de diáspora y esto se opera en su imaginario, en
su campo sensible. Para tanto, el negro “[...] no existe en sí mismo. Esta producido
constantemente”, como dice Achille Mbembe (2016, p. 51). Pues: “Producir al negro es
producir un lazo social de sumisión y un cuerpo de extración, es decir, un cuerpo
completamente expuesto a la voluntad de un amo que se empenã en obtener de él la
máxima rentabilidade” (id.). Si tenemos un solo cuerpo y si estamos resumidos en un
cuerpo de extracción (de mano de obra anacrónica), ¿cómo pensar en una subjetividad
que habita en este cuerpo, si se cancela o elimina todo lo que proviene de él?
Mbembe, hablando sobre la Razón de la crítica negra, arroja luz sobre cómo la
raza es una forma de establecer y afirmar el poder y, sobre todo, una realidad especular
y una fuerza pulsional; y agrega que:
Para que pueda operar como afecto, pulsión y speculum, la raza debe
hacerse imagen, forma, superficie, figura y, fundamentalmente,
estrutura imaginaria. Y es precisamente entendida como estructura
imaginaria como escapa a las limitaciones de lo concreto, de lo
sensible, inclusive de lo finito, al mismo tiempo que participa de y se
manifiesta imediatamente en lo sensible. (id., p. 75).

En lo que refiere a este campo de lo sensible, Juliana Acevedo Ávila (2018, p.


97) nos habla que las expreciones culturales más relevantes de los pueblos negros
afromexicanos “tienen que ver con las danzas, los rituales y la espiritualidad [...]”. Son
danzas, en este caso, que solo “se bailan en pueblos que se consideran negros” (id., p.
98). Es el caso de la Danza de los Diablos50, que tuve la oportunidad de ver y jugar en
Collantes, ubicado en el Distrito de Jamiltepec en la Costa Chica de Oaxaca, durante las
festividades de Día de Muertos.
La cantidad de bibliografias que hablan sobre el afro en México es escassa en
comparación con las bibliografias sobre la población indígena. La primera publicación

50
A propósito de la Danza de los Diablos, véase la tesis de la Dra. Itza Amanda Varela Huerta, Tiempo
de Diablos: usos del passado y de la cultura em el proceso de construcción étnica de los pueblos negros –
afromexicanos, Ciudad de México, 2017.
97

“La Población Negra de México” fue realizada por Gonzalo Aguirre Beltrán en 1946. Y
cuando hablamos sobre estas producciones en la contemporaneidad en México,
podemos perceber que aún es compuesta principalmente por eruditos no-negros y en su
mayoría blancos, que incluso tienen a Beltrán como referencia, que en este mencionada
“obra” (comisionada por el gobierno de México) usa “mala raza” para referirse a la
población negra – y su uso va acompañado con cero pensamiento crítico o
problematización al respecto.
La pregunta que hago aqui es: ¿cómo hablar sobre el “lugar” de una población
que paso y pasan por una serie de borrados, silencios y genocidios causados por el
racismo, si el lugar que aparece en esta sociedad es el de una red teórica y/o académica
hegemónicamente blanca?
Las voces-objeto de estudio, los objetos de Estado, los objetos – no vistos como
“sujetos” sino solo como “sometidos”, necesitan escribir sobre su propia historia, hablar
sobre sus culturas, filosofías, artes, sus propias subjetividades y epistemologias
africanas. Producciones que desencadenan subjetividades negras. Esto es lo que han
estado haciendo Juliana Acevedo y tantas/os otras/otros investigadores negras/os:
buscando “su lugar” en esta red académica de producción de conocimiento.
Estamos hablando aquí de un campo de lo sensible racional. Pues:

Para nosotros, es importante notar que la emoción, la subjetividad y


otras atribuciones dadas a nuestro discurso no implican una renuncia a
la razón, sino más bien una forma de hacerlo más concreto, más
humano y menos abstracto y/o metafísico. En nuestro caso, esta es
otra razón. (GONZALEZ, 2018, p. 75, traducción nuestra).

Y necessitamos – como personas negras – afrocentrarnos los espacios


epistomológicos del propio negro, como espacio/lugar de conocimiento y legitimación.
Hacerlo es romper (en parte) con un modelo hegemónicamente racista. El clasismo,
pues, es solo una de las consecuencias del racismo que subyace a esta sociedad
construida sobre un sistema de colonización y esclavitud. Mismo que el capitalismo sea
una gran pantalla, es importante resaltar que “[...] el capital no sólo jamás abandonó su
fase de acumulación primitiva, sino que, para hacerlo, hizo un uso constante de los
subsidios raciales” (MBEMBE, 2016, p. 60). Sobre el tema, Lélia Gonzalez (2018, p.
69, tradución nuestra), dice que:

[...] a pesar de su denuncia en su fase de las injusticias


socioeconómicas que caracterizan a las sociedades capitalistas, no se
98

perciben como reproduciendo una injusticia racial paralela que apunta


precisamente a su reproducción/perpetuación. La pregunta que surge
es: ¿en qué medida, al reducir estas corrientes de la cuestión negra a la
socioeconómica, evitarían asumir su papel como agentes del racismo
encubierto que cimentó nuestras relaciones sociales? En este sentido,
su discurso difiere muy poco del de las corrientes conservadoras que,
por razones obvias, desean mantener intactos sus privilegios. En otras
palabras, el paternalismo-liberalismo racial que impregna el discurso
“revolucionário” en la lucha contra el monopolio del capital revela
una forma de perpetuación de los mecanismos de dominación
utilizados por el sistema de lucha. También reacciona negativamente
cuando una minoría negra, consciente del racismo disfrazado,
denuncia los diferentes procesos de marginación a los que está
sometida su pueblo.

Vivimos en un campo de batalla y no hay fórmulas “correctas” y listas para


construir, sobre todo, un legado epistémico para las próximas generaciones. Pero una
forma de romper con estes diferentes processos de marginación es ponernos
nosostras/os mismas/os y nuestros “pares” como centro (afrocentramento) “impar” de
nuestros conocimientos, recreando así nuestras propias subjetividades. Esto es,
construyendo y manteniendo las Poéticas Negras (Poéticas Pretas) como una
posibilidad de auto potencia en la creación de las Artes Escénicas y como una
desestabilización de los estereotipos raciales en esta área, entendiendo tales estereotipos
como prácticas epistemicidas que necesitan ser problematizadas y contrarrestadas. Son
estereotipos que forman parte de nuestras subjetividades y cruzan las artes.
Y cansada, pues, cambiaré la lengua para una de colonización más cercana...

Cartografia da chegada

Hoje, dia 26 de agosto de 2019, agora não mais hoje e não mais presente. Mas
em algum momento foi. Aconteceu na cidade de Oáxaca de Juárez, capital do Estado de
Oaxaca, sul do México. Assisti a uma peça chamada Quero vivir51. Logo nos primeiros
cinco minutos vejo um ator com a cara “suja” em cena. Me pergunto ingenuamente
porque ele tinha barro ou argila em seu rosto...
“El Negrito”...
“Negrito feio”...

51
Obra moralista que falava sobre aborto e o “direito de nascimento” e que se passava em um voo. Era
protagonizado por seis crianças e uma voz (pilota do voo e que dava algumas instruções) antes do
nascimento das mesmas.
99

“Negrito burro”.
“Negrito” só era forte e poderia ser lutador de boxe.
“Tomás” – de A cabana do pai Tomás – surgiu na dramaturgia
e foi usado como um “apelido” para “Negrito”.

Esse ator estava pintado de preto.


E sim, eu estava diante de um black face.
As paredes do espaço também eram negras (caixa cênica preta), “neutra”. E
faziam “graça” quando o ator encostava na parede e “sumia” no bréu. Faziam “piada”
com a sombra de um dos atores na contraluz, que ao encarar seu próprio espectro escuro
questionava:
- “Negrito, é você?”...
Sem problematizações, críticas ou qualquer coisa que fizesse sentido, como
assim é o racismo. Mas eu senti. Embrulhou meu estômago. As pessoas riam no teatro.
O primeiro dia na cidade que vim fazer o Intercâmbio de Estudos foi assim. Quis
desistir, ir embora - “voltar pra onde, como?”. Quis gritar e quebrar tudo, aquela coisa
estúpida me rasgava e me violentava. E perco até a rima com toda essa merda.
E diante dessa violência eu me vi num dilema, porque a pessoa que iria me
abrigar e que também era meu único contato no México estava atuando nesta violenta
encenação, ela era atriz e pesquisadora “decolonial”. Pensei então: “merda, eu tenho que
ficar aqui?”. Quis chorar, fiquei com medo. Depois sopraram no meu ouvido o
pensamento: “mandinga, mandinga, mandinga”. “Engole o choro, menina... Mandinga!
Não tenha medo”.
Odeio esse mecanismo de engolir goto, de engolir choro – acho que não preciso
explicar... ou preciso? Mas opto por não. Ele anula o que me fere e fere minha
existência. “Mas pra onde é que tu vai? Pra onde que você vai?”. Respirei com muito
ódio e ele estava estampado na minha cara.
Me deparei ferida diante de um rasgo maior: a ferida colonial, tão mexicana e
tão brasileira. Permaneci sentada então na cadeira, sem querer acreditar naquela
situação, mas já acreditando, tentando anular tudo que estava ouvindo e vendo ali
naquele espaço teatral que teoricamente tinha me proposto a trabalhar durante todo o
Intercâmbio; e essa foi a primeira coisa que engoli diante de uma imensidão de racismos
que estavam por vir. Porque até aqui eu não fazia ideia que isso era só o começo.
As “malas-vindas”.
100

A atriz (branca) que se neutraliza de “mestiça” e que eu conhecia antes de


chegar no México, questionou-me na frente de todos com a sua branquitude egoísta
sobre a minha cara fechada, sobre a minha falta de sinceridade e comunicação sobre o
que eu tinha achado da “obra”, já que os dois moradores da casa que morava tinham
exposto as suas e que eu tinha ficado calada. Questionou sobre o meu silêncio diante
daquele “espetáculo” (de horrores).
Porque afinal racismo é sobre isso, não é? Algo pessoal. Pessoalizar a fala, junto
com negação, são os primeiros pontos de fuga dentro de uma situação que envolve a
violência do racismo. Percebi aí que ou ela era “m/nula” para o tema – o que é bem
capaz – ou ela nem sequer me via como uma mulher negra – o que também era bem
capaz. Mas não iria cair nesse truque da “ingenuidade”, da preguiça e conveniência
disfarçada de ignorância, porque ela não só tinha “instrução”, como também já tinha
feito pós-graduação nessa mesma instituição que faço parte, no Brasil. Capoeirista ela.
E acho que, inclusive, caso lesse essa cartografia da chegada, que bem que
poderia se mesclar com a cartografia da reiva, nem saberia detectar a minha ironia e
deboche. Justificou sua participação ali pelo cachê (clichê), pela necessidade do
dinheiro. A branquinha que vem para o Brasil e que brinca de jogar capoeira.
- Enquanto você se diverte, os meus morreram por gingar.
“RACISTA!”, eu quis gritar.
Mas engoli o grito. Apito entupido de som abafado. Mas saiba e saibam que esse
é o grito que eu não consegui dizer ali na cara e na cena... Talvez essa cartografia seja
também sobre chegada e saída do meu desabafo. E não faço questão de esconder aqui o
meu esculacho. Na escrita eu posso criar oportunidades e aqui eu crio a minha de dizer a
essa mesma mulher que: não te agradeço a hospedagem e não te devo nada! Adoeci por
sua causa nesses meses – na sua casa. Engoli no seco por sua causa, porque precisava de
um teto, precisava da sua casa. E só pude desbloquear tudo isso quando finalmente me
distanciei de você.
“Adoro coisas de negros”, ouvi um dia você dizer.
Que bom que nem tudo é coisa ruim e coisa boa também vem do desmantelo.
Consegui caminhar para além de você e dos seus contatos e nos restantes dos dias
procurei algum sossego.

***
101

Imagem 1 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019


na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana.

No mês de outubro do ano anterior na cidade que habito (Natal/RN), o ator José
Neto Barbosa, que tinha segundo o diretor do espetáculo Cartola – Simplesmente
Divino, o melhor “potencial para incorporar o Cartola no palco”52, foi maquiado de
negro. Essa memória é só para dizer que black face53, apesar do nome gringo, está
presente onde existe racismo. Ou seja, por mais que a prática tenha surgido nos Estados
Unidos, espalhou-se por toda Améfrica Ladina e pode ser vista (ainda) nas mídias
televisivas, nos teatros, desfiles de moda e nas ruas durante o carnaval.
Trata-se de uma prática que possui a intenção de “fantasiar” e caricaturizar
pessoas negras (e também de outras minorias raciais), através de maquiagem e/ou
adereços e estereótipos racias. Em realidade é algo extremamente racista e violento e
que possui a intenção de humilhar e nos ridicularizar, pois além de nos negarem espaços
com a justificativa de que não há pessoas negras competentes para esses papéis, como é
o caso do musical citado acima; também acontece na maioria das vezes com o objetivo

52
Matéria completa (contendo algumas imagens) em: <http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/os-
tempos-idos-do-mestre-cartola/427515>. Acesso em 10 de dezembro de 2019.
53
Palavras em inglês que significam “rosto negro”. Começou a ser usada para se referir à prática de
atores brancos que pintam o rosto com maquiagem escura para representar pessoas negras.
102

da ridicularização ou da promoção de estereotipias raciais, e, sobretudo, o da não


representatividade.
O que sabemos sobre a origem do black face é que eram representações racistas,
grosseiras e exageradas feitas por pessoas brancas pintadas de negro, que geralmente
eram feitas em minstrel shows (espetáculo de menéstreis) estadunidentes. O que, no
entanto, não sabemos ou pouco discutimos sobre os próprios minstrel shows e a prática
de pintar o rosto de negro é que:
[...] eram negros das fazendas dos Estados Unidos que pintavam o
rosto para fazer determinados tipos de personagem; então preto se
pintava de preto para fazer o personagem preto, ele não usava a cor da
própria pele. Lá nos Estados Unidos essa é uma forma teatral que cria
um gênero teatral, o preto pintar a cara de preto para fazer papel do
preto e de branco para fazer papel do branco; é uma tradição belíssima
e cômica por excelência. Aí no final do século 19 atores brancos se
apropriaram dessa forma teatral e a levaram para os palcos da grande
cidade. E aí os grandes comerciantes brancos foram se apropriando da
tradição e pintavam a sua face de preto para fazer papel de preto. E aí
os pretos sem espaço viram apenas uma caricatura. Mas essa tradição
é negra, de dentro da comunidade negra, de satirizar, usar o outro
branco quanto o outro preto. Nesse caso do Black Face pode ter
muitas questões, a questão apenas do escárnio racial, mas e se nós
quisermos retomar essa tradição nossa? [...] O que fico pensando é o
seguinte: ou nós reduzimos a questão do racismo a esses momentos de
peleja ou nós aproveitamos para discutir várias coisas, inclusive
formas teatrais negras que nós sequer sabemos que existem.54

Leda Maria Martins além de nos informar sobre a apropriação por trás dessa
prática, também nos faz uma “provocação” – O que faremos então com essa
informação?
E seguindo com as violências cotidianas...
Ao longo desses três meses de Intercâmbio estive imersa em outra diáspora que
assim como o Brasil nega a existência e a racialização das violências que pessoas negras
são submetidas. Antes desse episódio de black face, na primeira semana que cheguei
(Cidade do México, capital do país) caminhei sozinha por várias ruas, fiz tudo a pé ou
quando não utilizava o metrô. Em um desses dias, em menos de duas horas eu fui
abusada duas vezes na rua.

54
Fala de Leda Maria Martins sobre corpo negro e representação em entrevista concedida ao Núcleo
Editorial na Cantina Piolin, em 10 de novembro de 2016. Disponível em:
<https://issuu.com/oscrespos/docs/ld_02>. Acesso em: 21 de abril de 2020.
103

Imagem 2 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019


na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana.

Imagem 3 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019


na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana.
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Imagem 4 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019


na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana.

Imagem 5 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019


na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana.

Um homem pegou na minha bunda e fez sinal de que me acompanharia até a


estação de metrô.
105

“No me sigas”, le dijo.


Chegando na estação de metrô, na rapidez que é estar num fluxo de uma grande
metrópole, apenas entrei no vagão mais próximo. E já dentro do vagão, outro homem
me puxou pelo braço em direção ao seu corpo, me agarrando.
“Déjame ayudarte a bajar”, me dijo.
Fiz essa viagem sem muitas condições: “Se vivo no Brasil, posso viver no
México, só tenho que conseguir com a universidade as passagens para ir”, pensei. Fui
por causa de um Intercâmbio de Estudos na cidade de Oaxaca de Juárez e desde que
pisei os pés no país comecei a pensar em voz alta e com mais frenquência – por me
sentir insegura com outro idioma, outra cultura, o “mesmo” racismo e sexismo:
- “E se eu morrer aqui?”...
Essa pergunta de morte não era nova pra mim, ela era e continua sendo –
independente do espaço que o meu corpo “ocupa” – uma pergunta bastante válida e
recorrente, na realidade a diferença é que ela antes era dita em voz baixa e não vinha
acompanhada do advérbio “aqui”, porque acredito que era como se o aqui já fosse
explícito pra mim. Ele veio quando eu mudei um pouco a geografia das coisas.
Mas afinal de que “aqui” estou falando? Era “aqui” México ou era “aqui” rua? O
que quero dizer é que pode ser um “aqui” no Brasil. Então o “aqui” sinceramente é onde
eu estou.
E sobre o medo da morte: eu já tive uma arma apontada para mim algumas
vezes, mas isso seria restringir a sensação que falo. É da sensação de morte de
existência, de miudeza, de pequeneza, de ser considerada como tão pouco, que é “tudo
bem você desaparecer”, seja por um assédio, por estupro, pode ser também quando
duvidam da sua capacidade, intelectualidade, pode ser quando uma pessoa se sente tão
desconfortável com a sua presença que ela sorri falsamente, pode ser por alvejamento
ou pode ser de palavras esquecidas mesmo, nunca lidas ou ditas. Existem tantas formas
de matar a existência de alguém – subitamente ou aos pouquinhos.
E foi aos pouquinhos que essa pergunta começou a fazer morada em mim desde
não lembro quando. Ela é igual a um arrepio que chega sem você nem saber como e
quando vê já está ali no seu corpo: entregue e te ouriçando.
Da forma cristã como a maioria de nós foi criada – literalmente, ter medo da
morte é algo considerado normal. Meu medo era de uma morte que eu considero
“injusta”, não era morte natural, “morte morrida”, era uma “morte matada”. E eu posso
106

morrer aqui de várias formas. Essa morte, assim como o meu corpo entregue na calçada
diz muito sobre mim – ou sobre o que construíram de mim.
Mas o que essa pergunta tem a ver com as Poéticas Pretas?

Imagem 6 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019


na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana.

Cartografia de uma necroperformance

07 de setembro de 2019
Oaxaca de Juárez, Oax. / MX

Ruínas, Fragmentos e Narrativas –

Penso em morte desde que cheguei aqui. Vejo a morte santificada em algumas ruas e em
alguns santuários, protegidas por vidro, rodeadas de velas. Esse tipo de morte me
conforta e sempre me inspirou... O que explica um pouco dessa curiosidade que tenho
pelo México. A morte e a sua celebração de alguma forma me trouxe até aqui.

E estando aqui me deparo com relatos e notícias sobre sequestros de mulheres (de que
tenho que tomar cuidado e não andar sozinha nas ruas, tomar cuidado com os taxistas,
principalmente à noite), relatos de mortes violentas por causa do narcotráfico (mais
fortemente na região norte do país). Vejo corpos ensanguentados nos jornais, fico
sabendo de pessoas que morreram no dia anterior.
107

A arte que tive contato aqui (teatro, performance, fotografia, música e dança) de alguma
forma permeia esse espaço da violência. E penso: a subjetividade gera ou é gerada por
ela?

São/somos corpos em estado de guerra. Enfermos.

Dias atuais,
Natal, RN / BR

Imagem 7 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019


na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana.
108

Imagem 8 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019


na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana.

Necroperformance

E me questiono: tinha que ir para tão longe para falar sobre o que me atinge? O
que me atinge não me atinge enquanto ser humano, porque a minha dor não é universal.
Tampouco minha morte. E se eu morrer aqui? Isso foi uma das primeiras coisas que
pensei quando cheaguei no México. Não tenho seguro, então como seria para levar meu
corpo de volta pra casa? Pensei sobre a segurança de morrer em casa, veja que absurdo.
A segurança em morrer “perto”. Pensei mais na minha mãe, porque enfim, eu já estaria
morta de toda forma, e morta não me importaria tanto com a geografia dessa morte.
Mas a geografia dita a morte! A morte lá é sagrada, celebrada, festejada.
São abundantes: as festas e a violência – porque o México, assim como o Brasil
é um país de muita desigualdade, e sabemos que onde ela está a violência reina. Narcos,
tráfico de pessoas, sequestros, feminicídios55. Por onde passava ouvia sobre morte e
violência.

55
Estando no México descobri que a foi no ano de 1998 que “a antropóloga da Universidade Nacional
Autónoma do México (UNAM), Marcela Lagarde y de Los Ríos, usou pela primeira vez na América
Latina o termo ‘feminicídio’ para descrever [...] assassinatos em Ciudad Juárez. [...] Para a pesquisadora,
a importância de chamar os casos de feminicídio era evidenciar que não se tratavam somente de
109

+ e + morte
+ e + violência
Me questionei incontáveis vezes sobre quais os papéis da arte diante dessa
violência e da morte. São papéis em branco que geralmente se pinta de vermelho? No
México essas mortes não são racializadas – a população negra afromexicana (e boa
parte do canône branco acadêmico que fala por ela) está debatendo sobre o censo
populacional que vai acontecer em 2020.
Como trabalhar com essa violência de forma não estereotipada, inflamada,
sensacionalista, high fashion, por mostrar o que vende e o que querem ver? Sangue na
tela, nos holofotes, sangue banal. Mas o sangue é banal quando nós sabemos de que
corpos eles escorrem, mesmo que esses corpos não sejam contabilizados.
“Eu não comovo”, penso em voz alta aqui neste papel.
Quem vai chorar? Quem vai reparar a minha morte?

¿Y si muero aquí?
Através do conceito de Necropolítica de Mbembe pensei em necroperformance,
por assim dizer – que são como performances de/da morte. Não num sentido literal de
morte, mas também nesse sentido. Me propus a pensar em uma necroperformance com
essa pergunta disparadora/diasporadora.
Porque a morte tem me afetado nesses últimos meses e a violência, sobretudo a
sexual, tem me afetado já faz uns anos. Estava bastante presente na masculinidade
branca do meu pai. A ideia dessa necroperformance seria a do medo – e essa pergunta
em questão era o meu medo naquele momento.
Sempre foram questões que me afetaram, mas de forma óbvia eu passei a me
sentir menos segura (por estar num território distante, com outra cultura e língua). E foi
a partir dessa pergunta que comecei a pensar – muito atravessada por Lélia Gonzalez –

homicídios simples, mas de crimes de ódio extremo e específico contra mulheres. A nomenclatura foi
cunhada em 1992 pela pesquisadora feminista sul-africana Diana Russell. Mas, na época, não se
popularizou nas demais regiões do mundo. Em 2003, Lagarde foi eleita deputada federal no México e
criou a Comissão Especial do Feminicídio para investigar os crimes contra mulheres em Ciudad Juárez,
tornando o termo ‘feminicidio’ conhecido em todo o país. [...] Ao concluir que o crime era uma
característica de como a violência de gênero ocorre no México, Lagarde propôs a criação da Lei do
Feminicídio no país em 2007. [...] Atualmente, 16 países latinos tipificam o feminicídio: Argentina,
Brasil, Bolívia, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala, Honduras, México,
Nicarágua, Panamá, Peru, República Dominicana e Venezuela. O Brasil foi o último a fazê-lo, em 9 de
março de 2015”. Fonte: <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-38183545>. Acesso em 16 de
outubro de 2019.
110

sobre o quanto elas (a violência, o medo da morte e a morte em si) podem ser pensadas
através de geografias distintas, diásporas distintas, “não-lugares”.
Lá o racismo e o sexismo que vem dele me afetaram muito fortemente. Sair na
rua era sempre um acontecimento. As pessoas não estão acostumadas com uma
“performance de fenótipo” como a minha. Me achava tão “normal” e de “passabilidade”
no Brasil, por ser uma negra-da-pele-não-retinta. Lá quando não sabiam que eu era
brasileira, achavam que era uma “mestiza” estrangeira, depois que descobriam minha
nacionalidade se calavam – mas eu sentia no ar que me viam como uma “afromestiza
brasileña”, ou apenas “brasileña” (essa era minha racialização, digamos assim), me
entendiam como diferente das outras “mestizas”. Era frequentemente sexualizada, em
espaços conhecidos e desconhecidos.
Principalmente na rua. Principalmente por homens: comerciantes, policiais,
passantes, donos de teatros. Era constantemente olhada com nojo por mulheres. Era
constantemente chamada de puta por homens em seus carros velozes – “how much,
puta?”. E eu sempre andava coberta na rua, mas não é disso que se trata...
O medo da violência sexual voltou a me visitar. E consequentemente esse medo
vem acompanhado de um medo de morte, de sequestro, de silêncio... O medo de me
verem apenas como um corpo, um corpo para além das potências que eu tenho, um
corpo que não abre a sua boca, mas que “sabe sambar”, como boa mulata.
Comecei a pensar sobre essas geografias tão impressas no meu corpo, tão
distintas das geografias dos corpos que aqui estão56. Ele já comunica então, meu corpo
sempre comunicou, mas eu não conseguia perceber isso. O distanciamento me afetou e
assim então me mostrou.
O meu fenótipo é performativo aqui, porque se destaca, causa reações diferentes.
Meu cabelo causa reações diferentes. A mais comum é o estranhamento. Mas não tenho
a pele muito “morena”, como chamam em seu omisso racismo – e negra/o aqui é que
tem a pele muito-muito-muito “morena”. Aquele tom de “moreno” que não dá pra fugir
de ser nêga/nêgo – ou prieta/prieto, no espanhol.
Vi a necessidade de parir essa necroperformance pra fora de mim, escoamento
de fome e de medo. Pensei então no seguinte programa performativo, onde foquei nas
seguintes ações e objetos:

56
Quando pensei nessa performance ainda não havia ido à Costa Chica de Oaxaca, lugar mais pobre,
precário e miserável de recursos que estive no México, e que não por acaso é o lugar que mais convivi e
vi pessoas negras – afromexicanas.
111

 Estar em espaço considerado público: a rua, lugar-alvo


com mais abordagens e situações de assédios;
 Pegar um pano57 com a seguinte pergunta-disparadora-diasporadora bordada:
¿Y si muero aquí? (E se eu morrer aqui?) – esse mesmo pano tem flores também
bordadas e que estão próximas à frase;
 Caminhar de braços rígidos segurando esse pano;
 Parar em cada encruzilhada que passe;
 Deixar um ebó-ação-movimento-fotografia pensado naquele momento com a
relação estabelecida com o espaço, com as pessoas e com a caminhada;
 Partir para a próxima encruzilhada quando achar necessário, em cortejo, com os
braços rígidos segurando o tecido.
 Fazer essas ações até acabarem as encruzilhadas ou
até eu estar morta de cansaço.

Essa foi parte58 de uma cura para as violências que passei nas ruas, violências
institucionais e artítiscas, violências de existência – envolvendo esse Intercâmbio, mas
que vem de muito antes dele. Pelo racismo, mesmo que não assumido e que articula
meu sumiço (de várias ordens) por causa da minha origem – e não falo de BR, falo da
origem que se faz visível no meu corpo, corpulência, nos meus rasgos.
Essa necroperformance foi um parto difícil, a pensei no primeiro mês, mas só a
fiz no terceiro e último, pois tive medo de realizá-la – por ser na rua, por ser num
ambiente que eu frequentava bastante e que me deixava desconfortável de várias
formas. E ela foi pensada mediante a influência que recebi naquele mesmo lugar
(Centro de Oaxaca de Juárez e alguns pueblos que visitei), com os vários panos
bordados sendo vendidos para turistas. Mulheres dos pueblos ou lojas que compravam
esses bordados por um preço baixíssimo e vendiam a preços absurdos.
A exploração turística do indígena é uma realidade no México. E não é o
indígena que é valorizado, mas sim o seu “artesanato” (palavra esta que, inclusive, é
utilizada para diminuir aquilo que é arte). Souvenir mexicano.

57
Em espanhol: tela.
58
Parte no sentido de pedaço, pois a ferida é grande e desejo continuar essa ação de cura
necroperformática para além da Pós-Gradução em Artes Cênicas. Necessito expadir as
necroperformances.
112

No terceiro mês veria que o bordado também é bastante feito pelas mulheres
negras da Costa Chica, porém não tem a mesma “notoriedade” que a arte índigena. Por
se tratar de algo mais comum e que não “se destaca” por ser “algo negro”, como é o
caso de algumas danças representativas dos pueblos negros (a danza de los diablos, a
danza del toro petate o de los vaqueiros, los sones de artesa, a danza de la tortuga, a
danza del macho mula), que são dançadas também como forma de reconhecimento de
sua existência naquele país (em especial a danza de los diablos).
Mas bem, eu queria algo que conversasse com aquele espaço e que ao mesmo
tempo abraçasse a minha estranheza naquele mesmo espaço. O bordado me atravessou –
não pela beleza, mas pela crueldade que aquilo tudo envolvia, pela recordação familiar
que também me trazia (a minha avó era bordadeira, costurava também a tarrafa que meu
avô usava pra pescar).
Pensei num pano branco com aquela pergunta bordada. Só tinha um problema, o
bordado havia morrido com a minha avó, nenhuma de suas filhas ou filhos aprenderam
o ofício, nem as suas netas e netos. Eu não sabia e ainda não sei bordar.
Uma das pessoas que me recebeu no México, a artista-dançante Beatriz Robles,
me disse que sabia bordar, que aprendeu com a sua mãe em seu pueblo e que poderia
fazer. Me senti estranha com aquele autoconvite afetuoso, porque pensei inicialmente
que teria que ser uma tarefa minha. Aceitei, mas se fosse um processo nosso. Ambas
toparam. Compramos o material no Centro. Esse material ficou parado por um tempo.
Nem Betty nem eu demos conta naquele momento, o tempo apertava, já já teria que ir
embora. Tinha desenhado a frase no tecido, viajei para um estado vizinho (Chiapas) e
lhe disse que quando retornasse poderíamos retornar o projeto, que tenho que deixar
meu medo parar de estancar a minha vida, retorno e Betty me diz que deixou o tecido no
pueblo dela, que falou com a sua mãe e ela fez questão de bordar o tecido. Emma Reyes
Reyes – a havia conhecido semanas antes, nos comunicávamos com sorrisos e
gargalhadas, ela me achava bonita e eu a achava bonita também. Eu aceitei.
Inicialmente me perguntei se era problemático está desfilando com um pano que uma
mulher indígena bordou. Depois eu lembrei da minha vovó bordadeira, uma mulher
afroíndigena.
Eu estava recebendo um presente no meio de tudo aquilo que me puxava pra
baixo: afeto e trabalho, juntos. Isso tudo fez parte da minha cura. Isso e a felicidade de
ter conhecido várias bordadeiras, mães e avós de amigas que fiz. Pessoas que me
113

alimentaram, me receberam em suas casas, me contaram histórias de abuso e de dor


também. Confiaram e compartilharam.
E tiveram outras pessoas que me ajudaram a realizar essa necroperformance:
Alma Navaerz, outra pessoa que me recebeu na cidade e que me apresentou para quem
viria a ser a orientadora na minha pesquisa enquanto eu estivesse no México, e que
também costurou a barra do tecido utilizado na necroperformance; Viviana Lorenzo,
que topou filmar a necroperformance realizada em Oaxaca; Marbella Figueroa, que me
recebeu em sua casa na Cidade do México e que topou filmar a necroperformance por
lá; Shayane Santana, que me recebeu durante um mês em sua casa (e que literalmente
me salvou) e aceitou registrar por fotografia as duas ações, em Oaxaca e na Cidade do
México.
Super clichê e tenho problemas com eles, mas...
Essa experiência foi sobre dor e muito afeto envolvidos. Não conseguiria me
curar sozinha, eis uma realidade.

Cartografia-Autópsia da morte Nº I
Oaxaca de Juárez, Oax. / MX
10 de novembro de 2019

Decidi realizar a necroperformance pela primeira vez no dia do meu aniversário


(10/11), não por coincidência ou insistência de um expurgo. A escolha da data foi
porque sempre achei curioso pessoas que morrem no mesmo dia do seu nascimento. E
quis ter essa experiência de ter nascido e morrer no mesmo dia.
Fui para o Zócalo Oaxaca, Vivianna e Shayane me acompanharam. Conversei
com elas sobre o trajeto que caminharia, sobre as paradas nas encruzilhadas, sobre as
possíveis ações em cada encruzilhada – os ebós, trabalhos que deixaria ali, falei também
sobre estar na rua e bastante nerviosa. Combinamos um sinal entre nós três, pois disse
que a partir do momento que começasse eu só seguiria.
Atravessei o Zócalo e passei em frente a Catedral de Nuestra Señora de La
Asunción, dobrei para a direita na Av. de la Independencia e em seguida passei boa
parte do percurso na Calle Macedonio Alcalá – por ser uma rua de maior fluxo de
pessoas e sem circulação de carros. Essa rua é um “andador” – onde o fluxo de carros só
acontecia nas ruas que a transpassavam, por isso que nas encruzilhadas eu tinha que
114

escolher algum dos quatro pontos na calçada ou em alguma parte da rua que era
andador, antes ou depois da zona de carros.
Em seguida, ao encontrar o Templo de Santo Domingo nessa mesma rua, eu
dobrei na Calle de la Reforma e parei na encruzilhada do Jardín del Pañuelito59,
finalizando a necroperformance. Foram seis encruzilhadas no total. Seis ebós.

59
A ideia era terminar a necroperformance dentro desse Jardim, porém estava acontecendo um evento
particular no local e o mesmo se encontrava “fechado”.
115

Imagem 9 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019


na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana.
116

Imagem 10 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019


na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana.

Imagem 11 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019


na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana.
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Imagem 12 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019


na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana.

Imagem 13 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019


na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana.
118

Das frases que escutei ou que me fizeram morrer um pouco mais nesse dia:

Uma mulher: “You are crazy! Estás loca!”.


Um homem – me assediando: “Hola!”;
Uma mulher: “Creo que está hablando de la situación de las mujeres”.
Muitas pessoas: “Es una intervención? Puedo sacar una foto?”;
“Puedo sacar una foto?”;
“Puedo sacar una foto?”;
“Puedo sacar una foto?”.

Imagem 14 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019


na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana.

Imagem 15 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019


na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana.
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Imagem 16 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019


na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana.
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Imagem 17 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019


na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana.
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Imagem 18 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019


na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana.

Imagem 19 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019


na cidade de Oaxaca de Juárez - Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana.
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Cartografia-Autópsia da morte Nº II
Ciudad de México, CDMX / MX
18 de novembro de 2019.

A minha segunda morte também aconteceu no Centro Histórico, mas dessa vez
na Cidade do México, capital do país. Partimos do metrô em direção a Estação Bellas
Artes. No metrô estava segurando o tecido, contei de algumas situações de violência
que tinha passado naquele espaço. Pensei que poderia levantar e abrir o tecido, assim o
fiz. Foi uma encruzilhada de outro plano que esteve ali. Eu, em pé e o pano sendo aberto
e mostrado.
Saímos do metrô e da estação e caminhamos em direção a Av. Juárez / Av.
Francisco I. Madero, outro andador que funciona na mesma dinâmica do andador da
primeira morte. Caminhei do início dele até o Zócalo da Cidade do México, onde
finalizei a ação. Ao todo foram cinco encruzilhadas, mas dessa vez os trabalhos foram
diferentes.
Não senti de realizar os ebós, não de forma direta com
movimentações/fotografias, “apenas” ficava parada por um tempo em algum ponto da
encruzilhada com os braços estendidos, segurando o tecido. Às vezes me cansava e o
colocava como uma faixa de miss_muerte. Era um andador bastante comercial e de
fluxo intenso, principalmente porque era feriado (Buen Fin – uma piada pronta).
Geralmente parava na frente de alguma loja que estava na esquina ou então no meio do
acesso à faixa de pedestre.
Os ebós aconteceram naturalmente e não necessariamente nas encruzilhadas.
Encontrei uma vitrine de bonecas e parei na frente dela com o tecido erguido (segundo
ebó); parei ao lado de um artista de rua pintado de verde e vestido de soldado (terceiro
ebó); parei em frente a uma livraria, e foi o momento em que uma policial que estava do
outro lado da esquina falasse com as minhas amigas e companheiras de
necroperformance, onde insistiu que elas dissessem quem era pessoa responsável e que
passassem os dados e explicassem o porquê daquela ação está sendo feita. Minhas
companheiras argumentaram que se tratava de uma expressão artística independente,
que não estávamos ali a mando de nenhuma organização política. A policial continuou
insistindo, disse que era para a nossa proteção, elas argumentaram que não andaríamos
muito e que a ação já estava perto do fim, que estávamos resguardadas pela constituição
mexicana com o direito de liberdade de expressão, por fim a policial cedeu e liberou as
123

minhas companheiras (essa tensão com a polícia foi o quarto ebó – dessa vez numa
encruzilhada).60

Imagem 20 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019


na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana.

Imagem 21 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019


na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana.

60
Uma compilação de algumas imagens e momentos dessa necroperformance foi registrada por
Marbella Figueroa e pode ser vista através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=ae9L-
Q6kB8o&feature=youtu.be>.
124

Imagem 22 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019


na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana.

Imagem 23 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019


na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana.
125

Imagem 24 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019


na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana.

Imagem 25 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019


na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana.

Das frases que escutei ou que me fizeram morrer um pouco mais nesse dia:

Dois homens conversando: “Pues la revives”. (Risos). “Mejor nos hacemos un café”;61
Duas mulheres indígenas vendendo panos: “Que payasada! Pues si todos nos vamos a
morir, ni modo que seamos eternos”;

Um senhor: “En México?”.

61
O reviver aí, caso não tenha ficado evidente, refere-se a um ato sexual, nesse caso, estupro mesmo. E o
“fazermos um café” é comigo, com o meu corpo.
126

***

Caminhando pelo Centro de Oaxaca de Juárez, próximo ao Templo de Santo


Domingo, local de forte movimentação turística. Um grupo de homens passa por mim.
Um me olha e diz: ¿Qué pasa, chica? O que estava atrás dele me pega forte pelo braço.
Estava num dia que não dava conta de reagir, fiquei nervosa, continuei caminhando,
mesmo ele segurando meu braço. Grito: não encoste em mim (em português mesmo).
Ele me solta. Continuo caminhando.
A rua me deixou com medo. Viajei pensando neste trabalho com as Poéticas
Pretas e ao chegar me deparo com um país que nega a própria escravidão a que foi
submetida às pessoas negras daquela diáspora, com histórias fantasiosas de navios
naufragados, com pessoas negras sempre sendo afirmadas como estrangeiras (“porque
no hay negros/as en México”). Como estar em espaços artísticos e/ou de ensino falando
sobre Poéticas Pretas se eu era a única negra do lugar? Vinda de um país com outro
contexto de miscigenação, colonizador e embebido por uma falsa democracia racial,
mas enfim, outro contexto.
Perguntavam se eu lavava o meu cabelo ou “posso pegar no seu cabelo?” – isso
quando faziam o favor de perguntar. Respondia que não e algumas pessoas me
questionavam. Uma vez tive que dizer: “porque suas mãos estão sujas, você acabou de
comer”.
Realizei oficinas e laboratórios de forma autônoma, gratuita e independente,
como o Taller “Cuerpo-Encrucijada | Corpo-Encruzilhada”, compartilhada com as/os
discentes do Centro de Educación Artística (CEDART) Miguel Cabrera, em Oaxaca de
Juárez (em anexo); os Laboratórios Escénicos (Cuerpos-Encrucijadas), com
treinamentos conduzidos por mim e por artistas do México e da Argentina: os
Laboratórios contaram com o apoio do Grupo de Teatro Colaborativo da Asociación
Civil Independiente La Locomotora Foro Escénico, na pessoa da Artista e Profa. Ms.
Rocío Del Carmen Tisnado Vargas, que participou dos Laboratórios juntamente com o
Bailarino e Lic. Rodrigo De la Cruz, do Malitzi Arte Escénico (México), da Artista e
Profa. Beatriz Robles (México) e da Artista e Profa. Ailén Mortarelli (Argentina).
Foram três dias de Laboratórios intensivos e compartilhamentos.
127

“Posso tirar uma foto sua?” – isso vindo de uma senhora que nunca vi na
minha vida.
Participei de encontros e reuniões com a Profa. Dra. Itza Amanda Varela-Huerta
(CIESAS – Pacífico Sur), com apresentação e discussão do meu projeto de pesquisa e a
proposta de orientação para a encruzilhada que pretendia realizar com o / no México. A
Profa. Itza me ajudou com aporte teórico, bem como me convidou para fazer parte de
um grupo de estudos sobre Autoras e Autores Negras/os da América Latina que
trabalham com raça e racismo, assuntos pertinentes aos interesses investigativos dessa
pesquisa. O Grupo de Estudos contava com a presença de outras professoras e
pesquisadoras dos temas e teve seu primeiro encontro no final do mês de setembro de
2019, sobre os estudos e escritos da antropóloga, intelectual, política e professora Lélia
Gonzalez.
“Posso tirar uma foto de vocês?” – quando estava em grupo composto por
quatro mulheres negras. Ao ser questionada sobre o motivo, a resposta: “é porque
vocês são muito bonitas... E eu tenho um álbum de fotos com várias pessoas de todo o
mundo”. Minha amiga argumentou que isso era “exotificador”. A mulher negou e disse
que era doutora... Chamou a sua amiga, que ela frisou que era antropóloga, falou o
que tinha acontecido para ela e a amiga respondeu: “se elas querem tirar a foto tudo
bem, se elas não querem é uma escolha delas”. A mulher deu um sorriso “amarelo”.
Viajei para pesquisa de campo realizada na cidade de Collantes, localizada na
Costa Chica, no estado de Oaxaca, que ocorreu no final do mês de outubro, dentro das
festividades de Día de Muertos, e que teve como foco a dança de los diablos, realizada
pela população negra afromexicana daquela região.
“Posso tirar uma foto de vocês duas?” – quando estava com uma amiga
também negra. Quando perguntamos o motivo, o homem respondeu que gostava de
guardar fotos de pessoas de vários lugares do mundo.
Participei do I Encuentro de mujeres afromexicanas, organizado por La
Secretaría de los Pueblos y Barrios Originarios y Comunidades Indígenas Residentes en
la Ciudad de México, que aconteceu dia 14 de novembro de 2019; e do XX Encuentro
de Pueblos Negros – Juntos hacia el censo 2020, que ocorreu nos dias 15 e 16 de
novembro. Ambos ocorreram na Cidade do México.
O diretor da companhia que inicialmente resolvi trabalhar me propôs em “tom
de brincadeira”um ménage com outra atriz da companhia.
128

Tentei realizar uma montagem com duas profissionais não-negras nesse tempo,
referenciada na potência da encruzilhada e alguns textos desta dissertação. Não deu
muito certo, acredito que eram projéteis que não as atigiam. Aceitei então que não
precisava entrar num modo “super produção” apenas porque estava fora do país,
estudando no mestrado e tendo que escrever sobre essa experiência toda. A escrita até
essa viagem era a minha experiência; isso não precisava mudar, continuaria sendo a
minha própria experiência, o que estava vivendo, performando com a minha existência
nesses espaços – com as coisas que ouvia, olhares e toques que me atravessavam.
Me disseram duas vezes: “eu gosto de negão”.
E me atravessavam de uma forma que eu me sentia na defensiva em boa parte
dos espaços que frequentava, inclusive na própria casa que eu estava morando. Dois
dias na cama, dois dias no sofá – esse foi o combinado com a pessoa que estava me
recebendo. E assim foi durante dois meses até conhecer uma amiga preta e periférica,
pesquisadora, brasileira, filha de Oxum e Oxossi. Moramos juntas por um mês. E a
partir dessa amizade eu conheci outras amizades, outras pessoas negras, algumas
brasileiras, outras mexicanas (na Cidade do México).
“Vocês não são daqui, né?” – quando estava na fila de um banco com mais
duas amigas negras, que estavam pedindo uma informação na recepção.

Cartografia da fome

Sinto fome. Desde criança eu tenho anemia e passei a adolescência e essa parte
da vida adulta sangrando o que não devia. Pessoas anêmicas não coagulam
normalmente o sangue, isso quer dizer que ele não estanca com tanta facilidade.
Estancar é uma tentativa do nosso corpo de reparar. O estancamento pode ser de outras
desordens, como por exemplo: esse texto, que me estancou.
Células e proteínas do sangue tentam juntas cicatrizarem os vasos sanguíneos
que foram danificados e assim, estancar o sangramento, o texto e a palavra. Estou
falando de hemorragia, do que sangra excessiva e/ou continuamente. Portanto, eu tenho
fome, sangro e algumas coisas não estancam, seguem vazando.
Eu sinto fome. E eu sinto vontade de comer o mundo, na realidade. Mas na
maior parte desse tempo de vida eu me alimentei de pessoas-ideias não muito nutritivas.
Mas que mané esse papo de fome, de sangue, de palavra e de estancamento? É que não
te falei do quê ainda. Agora eu sinto fome de escrever.
129

E talvez esse projétil seja a materialização dessa fome, da menina fome dos
meus olhos pequenos e inchados e do muito que eu tive de conter – também do sangue
não contido que jorra na menstruação e em feridas cotidianas, arranhões, cortes mais
profundos e rachaduras-cicatrizes na pele. Meus “problemas” de estancamento e de
fome ou de pouca nutrição, meus “prós” de estancamento.
Eu contive tudo num contêiner e joguei no Atlântico. Primeiro: porque ele é logo
ali. Segundo: porque ele me fez chegar de alguma forma até aqui. Foi travessia...
Oceano travesso. Mas sabemos que oceano não é responsável, foi rota “apenas”, foi
morada de jogada de corpos.
Quantas desconexões num só texto, mas te peço paciência, porque descomeços
exigem muita – mas muita paciência com o ato de escrever pelo avesso. E talvez você
esteja se perguntando o que morte tem a ver com a fome que eu estou falando desde o
começo...
Simples: se morre de fome.
E se não se morre imediatamente, ela te consome de outras maneiras. Morte
lenta na realidade, que se arrasta por vidas, gerações. E mais do que uma expressão, se
morre literalmente de fome. Se morre de “carecer”. Já se perguntou hoje? Porque eu
sempre me pergunto:
- Naara, você carece de quê?
- Naara, hoje, só hoje... Você falece de quê?
- Naara... – Porque falar meu próprio nome, mais do que um ato egoísta, é me
trazer para o aqui e agora... É relembrar a minha existência! – e se você morrer aqui?
Me senti como uma mãe pela primeira vez, acredito, gerei um aborto. Abortei
por meses essa criatura, até que no dia do meu nascimento finalmente, ela nasceu
comigo, de mim. Me pegou pelas duas mãos – ou fui eu que a peguei, não sei bem. E só
fui caminhando. Andar me deixou com mais fome. Mas era isso: ou eu comia o que me
consumia ou vivia com fome.

***

A provocação de fome óbvia que deixo aqui é: como escrever sobre Poéticas
Pretas e não falar sobre as nossas próprias vivências? Nossas escrevivências.
130

Escrevivências de morte. Nos ensinam que elas são irrelevantes, não-importantes, não-
acadêmicas, não-artísticas – e o “não” não é necessariamente nessa ordem.
Me disseram uma vez: “você sabia que é muito sensual? O jeito que você
caminha...”.
Durante essa viagem eu me sentia constantemente “destacada”, experiência
diferente, pois geralmente não sou muito notada. Sou uma “coisinha” pequena, que tem
cor “disfarçada” e cara de “nordestina”, “afroíndigena”, de “empregada”, de “parda”, de
“mestiça” que não é nada, nem uma coisa nem outra, “neutra” e machucada... e me senti
“destacada”, sim, mas por ser “diferente” ali. Às vezes era tratada como “turista” e
falavam comigo em inglês, às vezes era tratada como essas frases em itálico que vem
cortando essas folhas, na realidade são mais “das frases que escutei ou que me
fizeram morrer um pouco mais nesses dias”. Mas são frases fora da
necroperformance? Por quê? Elas estavam comigo ali (ainda estão), permeando meu
corpo (ainda permeiam), a minha experiência (estão espalhadas aqui, só não vê a
mancha quem não quer). Elas são também necroperformances – palavras proferidas
com intuito consciente ou não de matar, de me resumir a fábula, a história inventada
sobre o meu povo, são palavras ditas para me diminuir, me deixar mais “coisinha”, são
palavras (e eu acredito no poder delas) que precedem muitas vezes a morte física. Então
como não saber que são anunciações? Assumo aqui para você a tentativa de deixá-las
nos ebós, mas várias delas simplesmente continuaram a caminhar comigo, várias delas
se disfarçam ou se revestem em outras frases que escuto e que já escutei antes dessa
experiência de intercâmbio, são as macroviolências do cotidiano.
Um policial me perguntou quando pedi uma informação na rua: “você não é
daqui... de onde você é?”. Respondi que era brasileira (“erro” frequente que cometi
algumas vezes) e logo depois uma olhada para o meu corpo e a seguinte pergunta: “o
que veio fazer aqui?”. Essa pergunta me acompanhou bastante, o tom era sempre
“sexualizante”.
Cortava algo em mim quando as vivia e as ouvia.
Voltando de uma viagem no estado de Chiapas, o ônibus que eu estava foi
parado pela polícia migratória. Estava dormindo e meio sonolenta vi um policial
passando mais a frente, não parou na estrangeira branca. Fechei meus olhos e pensei
“vou fingir que estou dormindo, espero que ele passe direto”. Sinto ele me bater no
braço. “Documentos”... Puxo meu passaporte e entrego. “Cadê o papel?”... “Que
papel?”... Ele explica e eu digo que deixei esse papel em Oaxaca. Começa então a falar
131

com a minha amiga, que estava ao meu lado, negra e também brasileira, ela mostra o
documento que tem de estudante e estrangeira. Ele pergunta a ela porque eu não tenho
um. Ela diz que estudamos em Oaxaca. Ele passa a fazer todas as perguntas pra ela,
como se eu não falasse espanhol. E repentinamente me faz perguntas – “o que você
estuda?”, Onde você estuda?”. Diz que vou ter que descer do ônibus e ser detida e que
só sairei quando alguém vier deixar o documento. Tentamos argumentar, dizemos que
somos estudantes. Ele resmunga alguma coisa e jogo o passaporte em mim. Sai. O
ônibus vai embora. Meu coração acelera mais.

Cartografia da culpa

Culpa: a minha é bem cristã. Muitas culpas são. “Quem tem cu tem medo”,
dizem e odeio muito essa expressão (soa a estupro). Acho que mais apropriado seria
dizer: “Quem tem cu tem culpa”. Porque todas/os nós temos: um cu e algumas culpas.
E são muitas as culpas esculpidas nos nossos imaginários catequizados. E isso
me lembra o teatro, que aqui em terras-brasilis catequizou com a culpa os cus, os
imaginários, as existências dos povos originários. Mas desde sempre fomos laicos, não
sabia? Porque aqui “laico” quer dizer “em nome do pai, do filho e do espiríto santo,
amém”.
E a partir do momento que se nascia com um cu, a “desculpa” já estava posta!
Cu vedado e tapado. Cu batizado e catequizado. Cu enterrado com uma pá de desgraças
e doenças. Quem me passou gripe e morte, também me passou “bença”. Avemaria, mas
quanta descrença.
Minha família é evangélica então cultivei várias culpas nas línguas estranhas que
soavam na minha cabeça. E antes que esqueça é importante dizer que tem umbanda e
pajelança nessa conquista protestante também! Ai...
Ai...
Tenho medo e tenho culpa, sabia?
Me diz culpa então pra e por esse texto e pelas minhas dúvidas. Por essa
insegurança e desculpa eu pelas minhas angústias. É que apagaram minhas origens. Me
olho no espelho e algo bem estranho me urde, ladra, me vejo, mas não me vejo. Um dia
já até acreditei que fosse pálida. Nesse mesmo espelho que trocaram por ouro e prata.
Xenofilia, às vezes penso, é uma bela de uma desgraça!
132

***

A artista Castiel Vitorino Brasileiro ao falar sobre sua primeira exposição


individual (O trauma é brasileiro), refletiu sobre as complexidades de viver sua
existência (e isso abraça diretamente a sua travestilidade) na Diáspora negra. Castiel
tem esse sobrenome por causa do seu bisavô paterno Augusto Brasileiro, que foi o
primeiro de sua família a receber o nome Brasileiro de um escravocrata alemão. A
artista me atravessa quando diz que:

Somos contrárias e contraditórias quando vivemos aquilo que é


impossível ao colonizador. E o que tem sido esse impossível e
incompreendido: nossa liberdade. Afirmar liberdade, sendo meu corpo
racializado, já é uma atitude de contrariedade, pois a liberdade para
corpos negros tem sido negada ao mesmo tempo em que tem se
produzido uma experiência de encruzilhada. Aqui – em nosso corpo-
encruzilhada – assumimos caminhos possíveis e impossíveis, numa
dinâmica de negociação com as vidas que nos curam e com aquelas
que nos querem aniquilar.62

Posso afirmar liberdade então quando não corroboro com as várias ficções que
me foram impostas: a ficção racial, “sexual”, binarista de gênero (que reproduzo aqui,
inclusive, com amarga facilidade enquanto pessoa cisgênera que sou) e da
mestiçagem/miscigenação, essa última criada para desqualificar a primeira – “Las
viejas cuestiones sobre la heterogeneidad, la diferencia y la libertad logran un nuevo
impulso, mientras las nuevas élites se valen de la ideología del mestizage para negar y
descalificar la cuestión racial” (MBEMBE, 2016, p. 47).
Essas ficções são geradoras de imagens, estereótipos. Como desficcionar então
se não através dela mesma? Não que as ações artísticas devam se centralizar apenas
num campo óptico, mas estamos falando aqui de uma lógica bastante ocidental: a da
visão e a da “aparência”. Essa lógica move fortemente nossos imaginários sobre nós
mesmas/os. Move o imaginário que nos foi forçado, inventado.
A/o negra/o foi/é um invento! É ficção – mas também é realidade.

62
Em entrevista à curadora Diane Lima, disponível em:
<http://amlatina.contemporaryand.com/pt/editorial/trauma-brasileiro-castiel-vitorino/>. É possível ter
acesso ao portifólio e alguns trabalhos da artista através do site: https://castielvitorinobrasileiro.com/; bem
como ao Documentário Quarto de Cura em: <https://www.youtube.com/watch?v=p-ocCWGNucs>.
Acesso em: 25 de novembro de 2019.
133

Mbembe nos diz então que considerar a raça apenas como “aparência” não é
suficiente, pois a sua força deriva de que, “na consciência racista, a aparência é a
verdadeira realidade das coisas” (2016, p. 170, tradução nossa). Mas sabemos como
outras realidades fora do campo do visível também nos é imposta.

Por una parte, raza y racismo forman parte de procesos fundamentales


del inconsciente. En esto se relacionan con las dificultades del deseo
humano: apetitos, afectos, pasiones y temores. (…) no depende
únicamente de un efecto óptico ni se abre solamente a través de un
mundo de sensaciones. Es un modo de asentar y de afirmar el poder y,
sobre todo, una realidad especular y una fuerza pulsional. Para que
pueda operar como afecto, pulsión y speculum, la raza debe hacerse
imagen, forma, superficie, figura y, fundamentalmente estructura
imaginaria (2016, p. 59).

A nossa expressão de liberdade vem através dos desficcionamento das nossas


imagens, dos nossos próprios imaginários colonizados, do que nos alimentamos e do
que parimos para o mundo. Posso parir escritos, poemas, uma dança descompromissada
no meio da sala, posso parir esculturas, músicas, posso parir uma guia, tecer um tapete,
uma cena, posso parir y transformar em coisas e ações. A esses parimentos estou
chamando aqui de Poéticas Pretas.
Trata-se, portanto, de uma noção que abarca as nossas experiências enquanto
pessoas pretas, negras e afroameríndias, através das nossas próprias escrevivências.
Elas abraçam as Artes Cênicas, mas são para muito além delas. É ficção nossa!
Encruzilhando geografias e existências, podemos retomar com isso a
Amefricanidade de Lélia González, onde as implicações políticas se misturam com as
implicações culturais (artísticas), e a categoria desenvolvida por González explica esta
união em um nível superior, para além dos “limites” geográficos:

As implicações políticas e culturais da categoria Amefricanidade


(“Amefricanity”) são, de fato democráticas; exatamente porque o
próprio remo nos permite ultrapassar as limitações de caráter
territorial, linguístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para
um entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde se
manifesta; a AMÉRICA e como um todo (Sul, Central, Norte e
Insular). Para além de seu caráter puramente geográfico, a categoria
de Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa
dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de
novas formas) que é afrocentrada, isto é, referenciada em modelos
como: a Jamaica e o akan, seu modelo dominante; o Brasil e seus
modelos yorubá, banto e ewefon. Em consequência, ela nos
encaminha no sentido da construção de toda uma identidade étnica.
Desnecessário dizer que a categoria de Amefricanidade está
134

intimamente relacionada àquelas de Panafricanismo, “Négritude”,


“Afrocentricity” etc. (1988, p. 76. Grifos da autora)

Portanto, nós podemos pensar nestas subjetividades e Poéticas Pretas a nível


macro, ou seja, a partir de uma perspectiva também Améfricoladina. Dentro de estas
interdisciplinaridades negras presentes en Améfrica, también podemos trabajarlas a
través del concepto de “quilombismo” discutido por Abdias do Nascimento (1980).
El autor habla de la adopción de la estructura progresiva del comunalismo
tradicional de África, esto es, los quilombos, como una forma de resistencia, más allá de
una forma de organización geográfica, pero también filosófica, cultural, social,
epistemológica de toda una población negra. Lo que Nascimento habla sobre quilombos
también es válido para otras regiones del continente, ya que estas organizaciones solo
cambiaron “el nombre de quilombos a cimarrones, granates o palenques, que existían en
la llamada América española y en aquellos países donde había esclavitud, dominada por
los ingleses, holandeses y franceses” (1980, s.p., traducción nuestra).
El “quilombismo” nos brinda la gran posibilidad de tener una referencia básica
para la población amerifricana basada en sus propias experiencias históricas y
culturales, más allá de la historia y las imágenes estereotipadas implantadas con el
racismo, y consecuentemente con el epistemicidio y otras formas de muerte causadas
por el.
Para Abdias do Nascimento (1980, s.p.):
Aceptar el comunalismo africano, situarlo en el contexto de las
demandas conceptuales, funcionales, y prácticas de hoy en día no
significaría nada más que hacer historia por nosotros mismos. Valdría
la pena elegir una calidad de socialismo cuya operación en África esté
sancionada durante varios siglos, mucho antes de que los teóricos
europeos formularan su definición “científica” del socialismo. Vale la
pena recordar las palabras de un verdadero líder africano, Amilcar
Cabral, al referirse a los valores culturales positivos de África: “... la
lucha de liberación es, sobre todo, una lucha por la preservación y
supervivencia de los valores culturales de los pueblos, en cuanto a la
armonización y el desarrollo de estos valores dentro de la estructura
nacional.” (1973 p. 48, traducción nuestra).

Los quilombos, cimarrons, maroons o palenques, están más allá de las


organizaciones físicas que tuvieron sus orígenes en el territorio americano como una
forma de resistencia y la existencia de personas negras que fueron secuestradas del
continente africano, son todas organizaciones precoloniales, porque ya estaban en
África (MUNANGA, 1996).
135

Los quilombos nos enseñan otros caminos, necessitamos consumir nuestras


propias subjetividades para producir más poéticas y subjetividades negras. Necesitamos
afrocentrar más nuestros conocimientos, aquilombar nuestras poéticas. Quilombo não é
ficção, necessita ser a nossa realidade.
E não tem como falar em quilombo (no contexto da diáspora brasileira) e não
falar em Beatriz Nascimento, que “é uma das pesquisadoras negras que mais se dedicou
ao tema e por mais tempo, abrindo vários aspectos (toponímia, memória, relação África
– Brasil, territorialidade e espaço) e exercitando a confecção de diversos ‘produtos’ de
seu trabalho”, como diversos artigos, entrevistas, poemas, filme. “Por quase vinte anos,
entre 1976 e 1994, ela esteve às voltas com essa temática”. (RATTS, 2007, p. 53).

Quilombo é uma história. Essa palavra tem uma história. Também tem
uma tipologia de acordo com a região e de acordo com a época, o
tempo. Sua relação com o seu território.

É importante ver que, hoje, o quilombo traz pra gente não mais o
território geográfico, mas o território a nível (sic) duma simbologia.
Nós somos homens. Nós temos direito ao território, à terra. Várias e
várias e várias partes da minha história contam que eu tenho o direito
ao espaço que ocupo na nação. E é isso que Palmares vem revelando
nesse momento. Eu tenho a direito ao espaço que ocupo dentro desse
sistema, dentro dessa nação, dentro desse nicho geográfico, dessa
serra de Pernambuco.

A Terra é meu quilombo. Meu espaço é meu quilombo. Onde eu


estou, eu estou. Quando eu estou, eu sou. (NASCIMENTO, Beatriz,
1989 Apud RATTS, Alex, 2007, p. 59).

Beatriz Nascimento também nos fala sobre as corporeidades negras, diz que o
nosso corpo se constitui e se redefine na experiência diaspórica e na da transmigração,
no caso, são corpos que migraram “da senzala para o quilombo, do campo para a cidade,
do Nordeste para o Sudeste”. Beatriz, pesquisadora à frente de seu tempo, assim como
várias/os pesquisadoras/es negras e negros que foram e ainda são ignorados e
desconsiderados no âmbito acadêmico, discorria em muitos de seus escritos e registros
sobre a sua própria imagem enquanto mulher negra, “da ‘perda da imagem’ que atingia
os(as) escravizados(as) e da busca dessa (ou de outra) imagem perdida na diáspora”.
(RATTS, 2007, p. 65).
Beatriz, se assim me permite a intimidade, já falava sobre a construção e
reconstrução da nossa própria imagem enquanto povo, através da nossa própria
historiografia, cultura, música, arte, das nossas subjetividades. Em outras palavras ela
136

nos falava sobre essa ficção que nos foi imposta: dessa “imagem negra” e do mito da
(falsa) democracia racial.

Entre luzes e som, só encontro, meu corpo, a ti. Velho companheiro


das ilusões de caçar a fera. Corpo de repente aprisionado pelo destino
de homens de fora. Corpo/mapa de um país longínquo que busca
outras fronteiras, que limitam a conquista de mim. Quilombo mítico
que me faça conteúdo da sombra das palavras. Contornos
irrecuperáveis que minhas mãos tentam alcançar. (NASCIMENTO,
Beatriz, 1997 Apud RATTS, Alex, 2007, p. 68).

Beatriz nos traz quilombo como espaço de resistência contemporâneo, pois


quilombo, assim como o próprio povo preto, tem continuidade histórica. Ela trata os
quilombos com variadas compreensões, como corpo e como coletivo e também como
corpo-coletivo. Não temos como compreender as Poéticas Pretas se não
compreendermos a perspectiva e vivência dos quilombos, para além (muito além) de um
tema.
Agradeço aos ancestrais: Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Abdias do
Nascimento, Edison Carneiro e Clóvis Moura, que galgaram vários tijolos antes de nós
em relação a essa linha tênue de temática/perspectiva quilombo, quando esses estudos
não eram aceitos nem como linha de pesquisa nas universidades 63. Graças também a
elas/es e a alguns outros e outras, os quilombos não morreram enquanto espaço físico,
metafísico e epistemólogico de resistência e liberdade.
Sou eco dos meus ancestrais. Sem eles eu não estaria aqui, porque começar do
zero seria falar ainda sobre “existirmos”. E isso nós já ultrapassamos, porque
simplesmente nós existimos – é fato. Mas o que perturba e o que precisa ser combatido,
escrito e registrado é que as nossas existências ainda são dizimadas e genocidadas de
várias formas. Essa aqui... é uma delas.
E se eu morrer aqui?
Não nos lembre da nossa presença apenas depois que morrermos.64
Nos deixem descansar.
E se eu morrer bem aqui nessas folhas?

63
Com exceção do quilombo de Palmares.
64
E quando isso vem de movimentos políticos de esquerda isso soa ainda mais conveniente.
137

Imagem 26 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019


na Oaxaca de Juárez, Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana.

Imagem 27 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 18 de novembro de 2019


na Cidade do México, México. Registro: Shayane Santana.
138

Morrerei sabendo que um dia aqueles de quem


serei ancestral poderão se fortalecer com as minhas palavras.
Incluindo a vida que carrego agora em meu ventre.

Imagem 28 - Necroperformance ¿Y si muero aquí?, realizada no dia 10 de novembro de 2019


na Oaxaca de Juárez, Oaxaca, México. Registro: Shayane Santana.
139

PROJÉTIL IV - A GENTE COMBINAMOS DE ESCREVIVER65

Passamos a vida
pra juntar coisas. Anelina, por dias,
Trabalhamos a heroína dessa semanas,
pra juntar tralhas. história que aqui meses.
Esborrotamos conto, E foi implodindo
nossas casas de essa dança.
não se
quinquilharias, Começou
bens, mals, bens, conformava a escrever no chão,
mais corpos cheios com isso: nos móveis
de doenças, azias. com a importância e nas paredes.
Compramos das coisas. As palavras
automóveis “Como é que coisa estavam se
(estufas de estresse) pode ser mais enraizando na
e estufamos o peito casa em que
importante
porque possuímos morava.
coisas – que gente?”, Até que um dia
e também pessoas. dizia, a fagulha
Guardamos roupas “estamos finalmente
e eletrodomésticos falando de coisas pipocou!
até eles serem que já nasceram E que dança ela fazia…
substituídos mortas. rodopiava, quicava, subia.
por outra E que dança – nunca vista,
obsolência Nasceram?
Nem isso, balançava tanto,
programada.
Programamos mas já brilhava tanto,
a TV para desligar. não importa!”. que até doía a vista.
Deixamos E que movimentos
as máquinas Ela se lindos fazia!
ligadas. inconforma
Elas velam fortemente Anelina?
nosso sono… sobre o poder Anelina…
E dormimos,
que as coisas
descansamos Esperou todos
em bytes, coisam e saírem de casa
formatamos coisificam… e queimou tudo.
nosso HD Queimou móveis,
e a luz vermelha Anelina as palavras, queimou!
só pisca, deixou então Queimou os
farol de TV. essa fagulha eletrodomésticos,
reverberar em seu corpo: queimou!

65
O título do texto, nome dado também à presente Dissertação, é inspirado na obra A gente combinamos de
não morrer de Conceição Evaristo, considerada como uma escritora de “ficção”, porém acredito que
Conceição escreve sobre muitas verdades; Evaristo escreve sobre realidades, o seu trabalho diz muito sobre
a diáspora forçada que vivemos, sobre necropolítica, violência, sobre a realidade da população Preta, sobre
resiliência.
140

Queimou
a casa inteira!
Até o dinheiro Mas quem condena Ane?
que o seu pai Lina não via sentido
guardava dentro nessa demora
do caixão que de juntar, guardar Queria ser
dormia. apenas pra ter. grande de vida!
Passou uma vida Anelina gostava de
compartilhar! Anelina?
trabalhando pra
E era tão imensa ela, Anelina…
juntá-lo e dizia
sempre: que mal podia
“não encoste se conter.
nas minhas E saiu feito chuva,
economias!”. onde barragem
Anelina viu que nenhuma consegue
se morria todo dia, sorver.
pra trabalhar. E ela, Anelina,
Se trabalha pro lazer. às vezes assopra
Se jaze aqui. fagulhas por
Se jaze… onde passa.
pra juntar! Ela também
molha, apaga fogo,
Mas Anelina enraíza sensações,
sempre foi vomita bonita fumaça.
inconformada. Mas nunca esqueceu
Sempre foi! o dia que queimou
E dessa vez a sua casa.
sem mais demora,
queimou tudo Ela:
e só foi embora. Anelina
A mãe de Anelina Pirofágica!
até hoje chora.
Sabia da sua pequeneza
E o pai?
perante o mundo,
Chora também,
e por isso cuspia
só não se sabe
poemas.
se é de saudade
da filha ou
do dinheiro.
141

“Na lixeira, corpos são incinerados.


A vida é capim, mato, lixo, é pele e cabelo.
É e não é”.
(Conceição Evaristo)

A gente combinamos de morrer de tanto escrever, escreviver, de escrever de


tanto morrer, de não morrer a gente combinamos. Como Anelina e como a personagem
da vida real, Bica, que nos diz no final da história de Conceição Evaristo (2014, p. 109):
“Eu aqui escrevo e relembro um verso que li um dia. ‘Escrever é uma maneira de
sangrar’. Acrescento: e de muito sangrar, muito e muito...”.
O genocídio da população Preta marcou obviamente também o seu
epistemicídio66, conceito trabalhado e estudado pela filósofa Sueli Carneiro, “que coloca
em questão o lugar da educação na reprodução de poderes, saberes, subjetividades e
“cídios” que o dispositivo de racialidade/biopoder produz”67.

Para nós, porém, o epistemicídio é, para além da anulação e


desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo
persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso
à educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização
intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro
como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da
capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo
comprometimento da auto-estima pelos processos de discriminação
correntes no processo educativo. Isto porque não é possível
desqualificar as formas de conhecimento dos povos dominados sem
desqualificá-los também, individual e coletivamente, como sujeitos
cognoscentes. E, ao fazê-lo, destitui-lhe a razão, a condição para
alcançar o conhecimento “legítimo” ou legitimado. Por isso o
epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou a
seqüestra, mutila a capacidade de aprender etc. É uma forma de
seqüestro da razão em duplo sentido: pela negação da racionalidade do
Outro ou pela assimilação cultural que em outros casos lhe é imposta.
(CARNEIRO, 2005, p. 97).

66
O conceito de epistemicídio também pode ser estudado através da obra Sobre a legitimidade do estudo
da filosofia africana, escrita pelo filósofo sul-africano Mogobe Ramose, conhecido ainda mais por ter
popularizado a filosofia africana, com destaque para a filosofia do Ubuntu. Na mencionada obra, ele fala
sobre o apagamento da contribuição e das produções dos povos africanos. Para Ramose (2011, p. 6) o
conceito de epistemicídio pode ser definido como “[...] o assassinato das maneiras de conhecer e agir
[...]”. Essa eliminação do protagonismo epistêmico por parte do pensamento ocidental também é estudada
dentro do conceito de epistemicídio trabalhado por filósofos como Renato Noguera (2014) e Katiúscia
Ribeiro Pontes (2017), onde estes abordam mais o contexto brasileiro.
67
Trecho retirado do resumo da tese da própria autora, A construção do outro como não-ser como
fundamento do ser (2005). Disponível em: <https://negrasoulblog.files.wordpress.com/2016/04/a-
construc3a7c3a3o-do-outro-como-nc3a3o-ser-como-fundamento-do-ser-sueli-carneiro-tese1.pdf>. Acesso
em 14 de maio de 2019.
142

O processo de epistemicídio persistentemente produz uma inferioridade


intelectual, negando também a possibilidade de realização das capacidades intelectuais
do povo Preto. A regra é “disciplinar/ normalizar e matar ou anular. É um elo que não
mais se destina ao corpo individual e coletivo, mas ao controle de mentes e corações”
(id.).
Esse processo está presente em todo o nosso sistema educacional, que é
sumariamente branco e ocidentalizado e que não leva em consideração alguma os
saberes do continente africano e das heranças africanas em suas diásporas. Mata-se um
povo matando os seus conhecimentos, colocando-os como subalternos, inferiorizando-
os (lembrando que o racismo além do “respaldo” religioso, passou a ter “respaldo”
científico a partir do início do século XIX), desestruturando todo os seus saberes,
banindo-os. Esvazia-se, marginaliza-se, dá-se assim o processo de assimilação cultural e
embranquecimento de todo um povo.
Mas não me vejo ali, não me enxergo ali, não vejo pessoas parecidas comigo ali,
não leio... “Ali onde?”. Na universidade. “Onde?”. Nas mídias. “Onde?”... Não vejo,
não ouço, então eles não existem. Demorei para entender que existiam e sempre
existiram. Que foram silenciados também por um bom tempo e que esse processo de
silenciamento ainda está em voga, que é meandro do próprio racismo, esse que é coluna
dorsal do próprio modelo de manutenção dessa sociedade. Sem racismo não há
inferiorizado, sem inferiorizado não há produção, não há lucro. Sem conhecimento há
uma mão-de-obra que não contesta, que não tem passado, presente nem futuro.
O meu autor favorito na infância e pré-adolescência foi Machado de Assis, um
homem Preto. Mas só descobri isso na idade adulta, porque a imagem que me venderam
dele era a de um homem branco. Nossas crianças têm poucas referências, é uma
literatura imbecilizada, são desenhos imbecilizados, são referências majoritariamente
com estética caucasiana. Nós também temos poucas referências, mesmo quando temos
acesso. E quando não temos... Bem...
Como posso ser eu referência, produtora de conhecimento? Como posso ser eu
produtora de conhecimento que só reproduz conhecimentos brancos assimilados que
não contemplam o meu povo? E se contemplam vem cheios de aspas
descontextualizadas. Houve um banimento social no Brasil, onde a história de pessoas
Pretas só nos é contada a partir do período do Brasil Colônia. Esse perfume? Ele fede.
Na escola aprendi que meus antepassados eram “escravos”. Na universidade, quando
cursei História não me disseram que no Egito, nome colonizado de Kemet, a sua
143

população era constituída de pessoas Pretas, assim como em toda África, afinal. Que os
conhecimentos dos povos Kushitas-Kemetyus foram “pegos como referências” para os
gregos e romanos, foram incorporados às culturas ocidentais, porém tiveram suas
contribuições matemáticas, filosóficas, medicinais etc. falsificadas, já que o racismo não
tolera que uma sociedade tão avançada tecnologicamente naquele momento da história
pudesse ser “negra”, afinal encontramos até hoje aos montes representações brancas do
Antigo Egito, com sua história e legado apagados, com seus narizes arrancados 68. Na
minha graduação em Teatro e na pós-graduação em Artes Cênicas não foi diferente, não
tive acesso a autores ou autoras Pretas/os, quanto mais ao aprofundamento em relação a
questões raciais nas Artes da Cena ou até mesmo conceitos dentro desta ou de outras
“ciências humanas e sociais” abordados por nós.69
Refiro-me a estudos e não apenas a menções (“Ah, também tem Fulana da Silva,
que trabalha com performance negra”), falo de discussões aprofundadas sobre o
trabalho de teóricos/as e artistas Pretos/as. Esses/as que geralmente discutem em suas
obras sobre a nossa necessidade de linguagem, ação e quebra do silêncio e da opressão
do racismo.
Em minha “formação” tive no máximo acesso a exemplos de performers
trabalhando sobre “negritude”, ou seja, menções, citações vagas, que costumo chamar
de “migalhas”. Visto que uma parcela significativa desses discentes são pessoas
“negras”, visto que carecemos de um aprofundamento histórico-sócio-econômico e
cultural, e, portanto, racial da arte que falamos e que consequentemente fazemos, trata-
se de um absurdo.

68
“Três argumentos que não seriam apresentados há cinquenta anos mudaram a maneira como
enxergamos o mundo antigo. O primeiro deles é que a Grécia antiga tinha uma grande dívida para com os
africanos. Com efeito, Platão, Homero, Deodoro, Demócrito, Anaximandro, Sócrates, Tales, Pitágoras,
Anaxágoras e muitos outros gregos estudaram e viveram na África. A outra parte desse argumento é que
os egípcios eram africanos de pele negra, como provam os depoimentos de Heródoto, Aristóteles,
Deodoro e Strabo. O segundo argumento é que todos os seres humanos derivam de uma fonte africana”.
(ASANTE, 2009, p. 101). Além de Asante, sobre o tema indico a leitura do livro A Unidade Cultural da
África Negra - Esferas do patriarcado e do matriarcado na antiguidade (2014), do historiador,
antropólogo, físico e político senegalês Cheikh Anta Diop.
69
O único acesso que tive foi em uma disciplina da pós-graduação (Poética e Teatro), onde as docentes
Karyne Dias Coutinho e Melissa dos Santos Lopes trabalharam com o texto Usos do erótico: o erótico
como poder, da Audre Lorde. Tinha tido contanto com esse texto apenas em espanhol, logo após me
formar na graduação, pois estava estudando “autoras Pretas” nas minhas “pesquisas pessoais”. Mas torna-
se importante ressaltar que esse acesso foi único em vários sentidos, pois Lorde foi a única pessoa Preta
da ementa da disciplina – assim como de toda a pós-graduação.
144

O que me espanta é não aprendermos sobre Abdias do Nascimento, bem como o


seu Teatro Experimental do Negro (TEN)70, leitura que deveria ser básica em nossa
ementa71, mas que não é e que só afirma a hegemonia dos currículos, bem como a
reprodução sem medida de encenações, performances, trabalhos visuais, enfim,
trabalhos artísticos eurocentrados.
E não me refiro a “disciplinas optativas” ou até mesmo “disciplinas
obrigatórias”, falo em “estrutura curricular”, falo da importância que se dá ao
conhecimento Preto dentro da nossa educação (de origem jesuítica, sempre importante
lembrar). Pois já que reproduzimos fórmulas e moldes baseados em conhecimentos
eurocêntricos, então para quem falamos? Para quem é a universidade? Para quem são as
escolas? Para quem é o conhecimento?

70
“Nos anos de 1970, podemos citar um exemplo dessa luta pela afirmação do negro na figura de Abdias
do Nascimento, intelectual, autor, ator, dramaturgo e político que incorporou em seu trabalho a causa
negra, seja por meio de sua colaboração no próprio Movimento Negro, seja pela criação do Teatro
Experimental Negro (TEN). Os movimentos sociais negros da década de 70, entre eles o Movimento
Negro Unificado (MNU), buscaram a revalorização da história e cultura africana e afro-brasileira,
procurando assim a construção e afirmação de sua identidade, forçando o reconhecimento do negro pela
sociedade e, consequentemente, sua inclusão social, de forma mais justa e igualitária”. (SILVA, 2013, p.
123). O TEN surgiu em 1944, no Rio de Janeiro, como um projeto idealizado por Abdias Nascimento
(1914-2011), com a proposta de valorização social do negro e da cultura afro-brasileira por meio da
educação e arte, bem como com a ambição de delinear um novo estilo dramatúrgico, com uma estética
própria, não uma mera recriação do que se produzia em outros países. Já o MNU, fundado em 1978, foi
um marco para a esperança de negros e negras brasileiros na luta contra o racismo e o preconceito. O
Movimento Negro Unificado sempre deu uma grande contribuição na busca pela igualdade de
oportunidades entre negros e não negros. Disponível em: <http://www.palmares.gov.br>. Acesso em: 15
de maio de 2019.
71
Refiro-me mais especificamente ao curso de Teatro Licenciatura e da Pós-graduação em Artes Cênicas,
ambos da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que foram os que tive acesso. Mas essa
“carência de conhecimento Preto” se encaixa em muitos programas e ementas de cursos de Artes pelo
Brasil. Até mesmo na UFBA, onde 75,6% são “negros”, ante 76,7% de “negros” do próprio Estado da
Bahia, segundo a PNAD/IBGE - 2018, também passa por sérios problemas de racismo institucional. Esse
percentual da UFBA supera até mesmo o do conjunto das universidades federais, “o de 51,2%, o maior da
série histórica da pesquisa e ao da população brasileira, que é de 60,6%, também segundo a PNAD. Na
comparação com as outras 64 universidades e institutos federais (Ifes) que participaram da pesquisa, a
UFBA é, disparada, a que tem maior número de alunos autodeclarados pretos: 32,2%, ante 15,5% no
Nordeste, e 12% no país”. Disponível em: <https://ufba.br/ufba_em_pauta/mais-negra-e-inclusiva-ufba-
precisa-de-mais-verba-para-assistencia-estudantil>. Acesso em: 26 de junho de 2019. Não se tratam
apenas de números, pois mesmo quando estão a nosso favor eles não vogam e carecem da tal famosa
“representatividade”. Por isso é importante falarmos também sobre o trabalho de coletivos como o da
Organização Dandara Gusmão, formadas por discentes da UFBA, desde o ano de 2016. A Organização
surgiu da necessidade em “enfrentar e gerar compromissos coletivos contra o racismo institucionalizado
na instituição, além de se colocar contrário a representações teatrais de cunho racista. [...] Entre as
demandas exigidas e conquistadas pela organização está a literatura negra para prova do vestibular. Antes
apenas obras literárias brancas eram exigidas. Hoje, nomes como o de Abdias Nascimento fazem parte
das opções de leitura. [...] Algumas montagens também foram encenadas com atrizes e atores negros, em
sua maioria, nas posições de protagonismo e poder, como ‘Mário Gusmão - O anjo negro e sua legião’
(2017), direção de Tom Conceição, e ‘Pele Negras e Máscaras Brancas’ (2019), dirigido por Onisajé.
Ambos escritos por Aldri Anunciação. Todos ex-estudantes da instituição”. Disponível em:
<https://www.almapreta.com/editorias/realidade/na-universidade-da-bahia-alunos-apontam-racismo-em-
companhia-de-teatro>. Acesso em: 22 de junho de 2019.
145

Falar sobre “carência” e sobre algumas suturas que criamos para melhorarmos
um pouco dessa ferida é de longe cicatriza-la, pois ela continua aberta, exposta e viva.
Às moscas. Por isso precisamos entender antes de mais nada que essa “carência” tem
tamanho maior que o do band-aid que acham que a podem cobrir, é curativo paliativo,
como as cotas72, por exemplo, que são um direito básico e que tem a ver com políticas
de reparação histórica, reparação genocidas, porque ainda é sobre não morrermos ainda
mais de inanição. É ferida abissal que não se sutura com migalha. É ferida que sutura
quando aprendemos que nosso passado não começou na escravidão, essa que na
realidade interrompeu a nossa História, bem como podemos ter acesso a nossos próprios
conhecimentos, igualmente como podemos produzi-los.
Eu não soube quem era Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Carolina Maria de
Jesus... Não ouvi falar nas aulas de história no ensino básico em Dandara, Anastácia,
Luísa Mahín, Tereza de Benguela, Aqualtune, Zeferina, Maria Felipa de Oliveira,
Acotirene, Adelina Charuteira, Rainha Tereza do Quariterê, Mariana Crioula, Esperança
Garcia, Maria Firmina dos Reis, Eva Maria de Bonsucesso, Maria Aranha, Na
Agontimé, Tia Simoa, Zacimba Gaba. Mulheres que podiam ter me fortalecido. Ouvi
falar em Zumbi dos Palmares, longe...
Kwame Nkrumah, Marcus Garvey, Nah Dove, Audre Lorde, Molefi Asante,
Cheikh Anta Diop, Frantz Fanon, Renato Noguera, Carlos Moore, Marimba Ani,
Malcolm X, Marcus Garvey, Carter G. Woodson, Assata Shakur, Alice Walker,
Katiúscia Ribeiro, Aza Njeri, Sueli Carneiro, Neusa Santos Souza, Conceição Evaristo?
Tantas outras? Tantos outros? Só me chegaram porque eu fui atrás fora dos muros da
universidade, mesmo que algumas/alguns dessas/es autoras/es trabalhem ou tenham
trabalhado produzindo conhecimento dentro desses muros.

72
“A chance de ter um diploma de graduação aumentou quase quatro vezes para a população negra nas
últimas décadas no Brasil. Depois de mais de 15 anos desde as primeiras experiências de ações
afirmativas no ensino superior, o percentual de pretos e pardos que concluíram a graduação cresceu de
2,2%, em 2000, para 9,3% em 2017. Apesar do crescimento, os negros ainda não alcançaram o índice de
brancos diplomados. Entre a população branca, a proporção atual é de 22% de graduados, o que
representa pouco mais do que o dobro dos brancos diplomados no ano 2000, quando o índice era de 9,3%.
Os dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O Censo do Ensino Superior
elaborado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) também
evidencia o aumento do número de matrículas de estudantes negros em cursos de graduação. Em 2011, do
total de 8 milhões de matrículas, 11% foram feitas por alunos pretos ou pardos. Em 2016, ano do último
Censo, o percentual de negros matriculados subiu para 30%.” Disponível em:
http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2018-05/cotas-foram-revolucao-silenciosa-no-brasil-
afirma-especialista. Acesso em: 26 de junho de 2019.
146

Na sua versão mais contemporânea nas universidades brasileiras, o


epistemicídio [...] se manifesta também no dualismo do discurso
militante versus discurso acadêmico, através do qual o pensamento do
ativismo negro é desqualificado como fonte de autoridade do saber
sobre o negro, enquanto é legitimado o discurso do branco sobre o
negro. Via de regra a produção branca e hegemônica sobre as relações
raciais dialoga entre si, deslegitimando a produção dos pesquisadores
e ativistas negros sobre o tema. Isso é claramente manifesto nas listas
bibliográficas utilizadas onde, via de regra, figuram autores negros
não-brasileiros, ou no fato de quão poucos intelectuais negros
brasileiros alcançaram prestígio nacional e internacional. Os ativistas
negros, por sua vez, com honrosas exceções, são tratados, pelos
especialistas da questão racial, como fontes de saber mas não de
autoridade sobre o tema. Os pesquisadores negros em geral são
reduzidos também à condição de fonte e não de interlocutores reais no
diálogo acadêmico, quando não são aprisionados exclusivamente ao
tema do negro. (CARNEIRO, 2005, p. 60).

Demorei para parar de me espantar com isso, pois é mecanismo. Naturalizar não
é o caminho, trata-se de se conscientizar e compreender na medida do possível esse
mecanismo, dessa maneira podemos criar modos de resistência a ele, é também ler e
ouvir (d)os nossos, afrocentrar o nosso conhecimento, ou seja, nos colocarmos nos
centro, nos alicerçarmos em nossa própria história, sermos agentes dela e sairmos de
uma posição de “desagência”. Nos entendermos dentro de um descentramento coletivo e
de um centramento europóide, considerando o nosso contexto social, econômico,
cultural, psicológico, individual e sobretudo histórico. (ASANTE, 2009).
NEGRO – NECRO
Encruzilho o conceito de epistemicídio, trabalhado pela perspectiva de Sueli
Carneiro, com o de necropolítica do filósofo Achille Mbembe73 (2018), que explana
sobre o trabalho da política como o trabalho da morte.
Mbembe fala da razão como “a verdade do sujeito” e a política sendo, portanto,
o exercício dessa razão dentro da esfera pública. Exercitar essa verdade é exercitar a sua
liberdade, e que essa se trata de “um elemento chave para autonomia individual”, deste
modo “o romance da soberania baseia-se na crença de que o sujeito é o principal autor
controlador do seu próprio significado”. A soberania é definida dessa forma como um

73
Outra leitura recomendada do autor é a obra Crítica da razão negra (2016), onde Mbembe
problematiza o conceito de “negro”, a partir do risco conduzido pelo neoliberalismo e pela crise europeia.
Mbembe diz que: “Da fusão potencial entre o capitalismo e o animismo resultam algumas consequências
determinantes para a nossa futura compreensão da raça e do racismo. Desde logo, os riscos sistemáticos
aos quais os escravos negros foram expostos durante o primeiro capitalismo constituem agora, se não a
norma, pelo menos o quinhão de todas as humanidades subalternas”. Trecho retirado da introdução da
mencionada obra, disponível em: <https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/achile-mbembe-o-
devir-negro-do-mundo/>. Acesso em: 18 de maio de 2019.
147

duplo processo de “autoinstituição” e “autolimitação”, onde fixa em si “os próprios


limites para si mesmo” (MBEMBE, 2018, p. 10). Ele também nos fala sobre essa
soberania como o direito de matar (id., p. 16).
Carneiro (2014, p. 98), ao se referir sobre a construção dessa mesma razão
ocidental, diz que as suas esferas de atividades

[...] constituirão parâmetros de aferição para o julgamento e validação


do quantum de racionalidade é identificável em cada grupo humano:
auto-controle (domínio de si), como condição de constituição do
sujeito moral; domínio da natureza, como condição de
desenvolvimento das técnicas, do progresso, da ciência e do
desenvolvimento humano. Serão esses, pois, os eixos essenciais de
valoração dos diversos grupos humanos. Os pressupostos instituídos
pela racionalidade ocidental, no que tange às possibilidades de
conhecer e produzir conhecimento, instituíram ao mesmo tempo as
aporias sobre a educabilidade de cada grupo humano.

Quem possui essa soberania? Quem possui a soberania sobre os próprios corpos?
Ou melhor, quem possui a soberania pelos nossos corpos? Pela nossa “razão”?

Operando com base em uma divisão entre os vivos e os mortos, tal


poder se define em relação a um campo biológico – do qual toma o
controle e no qual se inscreve. Esse controle pressupõe a distribuição
da espécie humana em grupos, a subdivisão da população em
subgrupos e o estabelecimento de uma cesura biológica entre uns e
outros. Isso é o que Foucault rotula com o termo (aparentemente
familiar) “racismo”. (id., p. 17).

A política da raça se constitui nesse caso como a “política de morte”. E tanto


Mbembe quanto Carneiro propõem seus conceitos a partir do entendimento de
“biopoder”, de Michel Foucault. Nos termos foucaultianos, “racismo é acima de tudo
uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder [...]. Na economia do
biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as
funções assassinas do Estado”. (MBEMBE, 2018, p. 18).
A morte: pode ser a literal / a morte de nossa carne, pode ser a morte epistêmica
também. Esse controle das nossas vidas está presente em um só mecanismo: o racismo,
força motriz para a soberania. As mortes são legitimadas na contemporaneidade,
portanto, pelo próprio Estado, pelo próprio poder. Mbembe nos fala, inclusive, que a
racionalidade da vida passa necessariamente pela morte de outra pessoa, bem como “a
soberania consiste na vontade e capacidade de matar a fim de viver” (id., p. 20), e que
148

“[...] a narrativa de dominação e emancipação está aqui claramente associada a uma


narrativa sobre a verdade e a morte” (id., p. 26).
O processo de escravidão entra como a perda de um lar, perda de seu próprio
corpo e perda de estatuto político (id., p. 27). “A vida do escravo, em muitos aspectos, é
uma forma de morte-em-vida” (id., p. 29).

A negação da plena humanidade do Outro, a sua apropriação em


categorias que lhe são estranhas, a demonstração de sua incapacidade
inata para o desenvolvimento e aperfeiçoamento humano, a sua
destituição da capacidade de produzir cultura e civilização prestam-se
a afirmar uma razão racializada, que hegemoniza e naturaliza a
superioridade européia. O Não-ser assim construído afirma o Ser. Ou
seja, o Ser constrói o Não-ser, subtraindo-lhe aquele conjunto de
características definidoras do Ser pleno: auto-controle, cultura,
desenvolvimento, progresso e civilização No contexto da relação de
dominação e reificação do outro, instalada pelo processo colonial, o
estatuto do Outro é o de “coisa que fala”. (CARNEIRO, 2014, p. 99).

Essa negação da humanidade do Outro é vendida como uma “rendenção”, seja


pelo viés religioso como pelo científico. Tratados como inexistentes, sem valor, a não
ser “o preço” que colocavam aos corpos dos nossos ancestrais, houve resistência às
diversas formas de instrumentalização, pois mesmo que esses pertencessem a outrem,
“as negras e negros que foram escravizadas/os foram capazes [...] de demonstrar as
capacidades polimorfas das relações humanas por meio da música e do próprio corpo”
(MBEMBE, 2018, p. 30). As nossas percepções de tempo trabalho e a nossa própria
relação consigo mesma/o se constitui, portanto, de maneira diferente.
Carneiro e Mbembe frisam a raça como crucial para o encadeamento do
biopoder, do Estado de Exceção e do Estado de Sítio. O direito de fazer guerra,
portanto, o direito de tomar a vida é do Estado, matar ou negociar a paz são umas das
funções do Estado, esse que possui o comprometimento em “civilizar” os modos de
matar – dentro de suas fronteiras (ou fora delas também, vide os Estados Unidos da
Amérikkka); além de construir todo um escopo lógico e racional para realizar esse ato
(id., p. 33).

Portanto, na verdade, nas questões relativas à raça, o Contrato Racial


prescreve para seus signatários uma epistemologia invertida, uma
epistemologia da ignorância, uma tendência particular de disfunções
cognitivas localizadas e globais (que são psicológica e socialmente
funcionais), produzindo o resultado irônico de que, em geral, os
brancos serão incapazes de compreender o mundo que eles próprios
criaram [...] Poderíamos dizer, portanto, como regra geral, que a
149

interpretação errada, a representação errada, a evasão e o auto-engano


nas questões relativas à raça estão entre os mais generalizados
fenômenos mentais dos últimos séculos, uma economia cognitiva e
moral psiquicamente necessária para a conquista, civilização e
escravização. E esses fenômenos não têm nada de acidental: são
prescritos pelos termos do Contrato Racial, que requer uma certa
medida de cegueira e obtusidade estruturadas a fim de estabelecer e
manter a sociedade organizada branca. (MILLS apud CARNEIRO,
2014, p. 101).

Portanto, para justificar a hegemonia cultural da modernidade ocidental, segundo


Sueli Carneiro (id.), haverá uma “destruição e/ou desqualificação da cultura do
dominado”, e o epistemicídio entra aí como um mecanismo necessário, visto que ele
deslegitima a epistemologia da cultura do dominador.
O Estado se coloca como centro na contemporaneidade dessa sociedade com
forte herança colonial, que ainda é presente e atual. Não podemos a ler como algo do
passado, o seu perfume ainda fede entre nós. Visto isso, o necropoder se faz presente e a
ocupação colonial também. Sobre essas questões, Mbembe (2018, p. 48) diz que “[...] a
ocupação colonial contemporânea é um encadeamento de vários poderes: disciplinar,
biopolítico e necropolítico. A combinação dos três possibilita ao poder colonial a
dominação absoluta sobre os habitantes do território ocupado”.
Um subdispositivo do dispositivo da racialidade é o epistemicídio, que possui
“desigualdades raciais naturalizadas no âmbito da educação” e “que se apresentam
como efeitos de poder” (CARNEIRO, 2014, p. 12), elemento estratégico para a
manutenção de uma necropolítica.

Então, se o que está em jogo é assegurar privilégios e uma estrutura


social hierarquizada segundo parâmetros raciais e de classe, será o
controle do acesso à educação um mecanismo insubstituível, posto
que “a educação emerge como uma dimensão central dessa
investigação, na medida em que a educação participa do conjunto
mínimo de oportunidades sociais básicas que contribuem para
assegurar eqüidade e justiça social.” É porque se pretendeu
hierarquizar, que não há como afirmar que a educação esteja baseada
na equidade e na justiça social. (id.).

O modelo educacional colonizador brasileiro, desde sua base jesuítica, coloca a


população Preta/negra como inferior – “sem alma”, portanto não humanos. E mesmo no
período pós-(falsa)abolição, o povo Preto/negro não recebe assistência trabalhista, de
saúde etc., imagina quando se trata de “educação”, afinal essa população é a corja,
inferior e precisa ser eliminada, se não é da forma já existente, ou seja, a morte literal, é
150

através de outro tipo de morte e apagamento: a miscigenação e o embranquecimento –


genético e epistemológico.
Várias questões atravessam o contexto brasileiro além do processo de
miscigenação e, portanto, clareamento da população Preta/negra, uma delas é que 26
anos depois dessa falsa abolição o movimento eugenista ganha força no Brasil. Com ele
mais tarde vem o financiamento/incentivo da vinda de imigrantes estrangeiros para o
Brasil com a Lei 9.081, de 191174. A necessidade não era de mão-de-obra, mas sim de
embranquecimento.

Na sua adaptação às particularidades da sociedade brasileira, o


epistemicídio terá sua primeira expressão, enquanto tentativa de
supressão do conhecimento nos processos de controle, censura e
condenação da disseminação de idéias empreendido pela Igreja
Católica durante o vasto período da história do Brasil com
desdobramentos específicos sobre a população negra. Com a abolição
da escravidão e emergência da República, influxos do racismo
científico serão percebidos em pensadores nacionais, aportando novas
características aos processos epistemicidas sobre as populações
negras. Entram em cena os procedimentos de contenção, exclusão,
assimilação na relação dos negros com os processos educacionais
frente à sua nova condição de liberto indesejável como cidadão. (id.,
p. 102).

Sobre o papel estratégico que a escola formal vem desempenhando no Brasil,


Carneiro (id., p. 106) nos fala que esta reproduz “uma concepção de sociedade ditada
pelas elites econômicas, intelectuais e políticas do país”.

Nesta concepção, raça e cultura são categorias estruturais que


determinam hierarquias que só podem ser plenamente legitimadas, se
puderem – por meio da repetição sistemática e internalização de certos
paradigmas (dos quais as teorias racistas são decorrentes) -, instituir e
naturalizar em uns, uma consciência de superioridade, e em outros,
uma consciência de inferioridade.

O Estado é o centro e como centro ele é o modelo da unidade política, “um


princípio de organização racional, a personificação da ideia universal e um símbolo de
moralidade” (MBEMBE, 2018, p. 34). O Estado mata. O Estado é racista, como 2 e 2
são 80 tiros!
Nesse projétil te digo, portanto, que Mbembe e Carneiro encaram a morte de
maneiras parecidas, e essas duas mortes nós podemos ver encruzilhadas nos filhos de

74
Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1910-1919/decreto-9081-3-novembro-
1911-523578-republicacao-102836-pe.html>. Acesso em 15 de maior de 2019.
151

Dona Esterlinda: em Idago e a sua fumacinha-menina dançando ao pé de seu corpo


morto e em Bica, quando esta fala sobre o sangramento que é escrever, frase que está no
primeiro parágrafo do presente projétil. Bica ao falar da morte que é escrever – “muito e
muito” – nos faz pensar que a gente morre escrevendo que é pra não morrer de
esquecimento.

O que liga o terror, a morte e a liberdade é uma noção “extática” da


temporalidade e da política. O futuro, aqui, pode ser autenticamente
antecipado, mas não no presente. O presente em si é apenas um
momento de visão – visão da liberdade que ainda não chegou. A
morte no presente é mediadora da redenção. Longe de ser um encontro
com um limite ou barreira, ela é experimentada como “uma libertação
do terror e da servidão” (id., p. 69).

Mbembe (id., p. 70) nos fala sobre os/as Pretos/as que foram sequestrados para
serem escravizados e que pulavam dos chamados “navios negreiros” –

Corto o texto para uma memória que me invade –


Em 2018 estive “dentro” de uma carcaça de um desses navios, no Museu Afro Brasil,
localizado no Parque do Ibirapuera, na cidade de São Paulo/SP, ao sair da sala dei de
cara com um grupo de estudantes de alguma escola, todos brancos, apenas um aluno
Preto; quis chorar (e chorei perto de um grande amigo que soluçava), tive muita raiva,
porque era ainda sobre isso.

Algumas/alguns dessas/es Pretas/os pulavam desses navios, mas não era para a
morte, mas sim para a sua liberdade, pois diante da servidão contínua a preferência era
pela morte, que libertava. Elas/es pulavam para não morrerem no esquecimento.

Mas isso aquelas crianças nunca vão entender, exceto uma, a que estava no
final da fila.

Mbembe nos fala de outra perspectiva de morte, diferente da ocidental, que


ainda é considerada tabu – quando se trata da sua própria morte, “claro”, não da morte
dos que entendem por “inferiorizados”. Mbembe nos fala sobre o espaço em que a
liberdade e a negação operam, ou seja, a liberdade sobre sua própria vida, porém
implicando numa negação à ela, preferindo-a do que a falta de liberdade. A
necroperformance surgiu para mim com intuito de respirar esse suspiro de morte.
152

E no fundo os três, agora, quatro (como 2 e 2) estão falando sobre a mesma


coisa: é preferível morrer a não ter liberdade... E para isso é preciso sangrar de tanto
escreviver.

Cartografia da procrastinação

Cortaram-lhe os dedos, por isso ela não sabia mais escrever. Tinha aprendido
daquela forma apenas, não a ensinaram de outro jeito, ocupados demais assistindo
coisas pequenas no noticiário da TV. Sensacionalismo engolindo a sensação imensa que
escapava por seus dedos. Mas os cortaram, todos, até os mindinhos (pequenos filhotes
de dedos).
Aos poucos ela parou de funcionar, só sabia passar os dias ensimesmando-se. Só
sabia procrastinar. Parava e se deparava com todos, menos consigo, menos pra si - se
decide todos os dias que o si é um problema de ordem tão maior, que nunca conseguiria
– isso, dar conta, não tinha autonomia.
O único miado que ouvia eram dos gatos lá fora. Eles queriam entrar em seu
quarto e ela nunca deixava. “Não consigo dar conta”, dizia. E chorava e chovia, às vezes
dançava, às vezes até fodia. Mas “dar conta”? Não, ela é péssima em cálculos, exceto os
renais, que contraiu de tanto se ensimesmar. Algoritmos? Sim, ela ainda conseguia
sentir o ritmo que as palavras faziam quando saiam de sua boca descontraída e relaxada.
Faltavam-lhe dedos (caralho!) e isso a agoniava, pois era tanto amor por esses
dedos... Um doentio amor, pois ela se acostumou tanto com o conforto fálico, não
percebeu que tinha e só o fez quando se perdeu – no caminho de volta pra casa.
Isso, eis uma cartografia clichê, a da procrastinação. Porque me arrasto pra
escrever um possível caminho, por isso que nem sei mais o que é, que é pura bagunça,
que é devaneio, que é ócio. E insistem em chamar o meu devaneio de puro negócio,
negam... Me negam...
Procrastinar é ter tino de ser, é ter tino apenas, tino de desobedecer. Quando
cultivo a desobediência, eu costumo até permanecer. Por pouco tempo, mesmo sem
dedos, mesmo que vire só um toco. Não paro mais pra pensar e desisti até de entender.
Porque lógica não acompanha, a lógica nessa história nossa só tenta me morder,
arrancar pedaços inteiros de mim, mas eu não deixo, não tenho mais deixado pelo
menos. Sim, a lógica andou me mordendo e estou só um toco agora!
Se me visse não sei o que pensaria. Talvez, não sei, se tu me beijaria…
153

Beijaria meu toco de braço? Meu toco de pescoço? Meu toco de boca, meu cu
em cacos e tocos de pernas? Talvez… Mas isso não importa. Estou aqui sentada em
meus tocos, partindo pra outra viagem… Dessa vez sem algumas bagagens. Porque
gosto de mentir pra mim. Uma verdade? Mesmo procrastinada diante de coisas que
parecem que vão me engolir, te digo que não nasci pra ser toco.

***
Eu me senti seriamente tentada a procrastinar essa escrita e em certa medida o
fiz, hesitei muito aqui – hesitei muito no terceiro projétil, hesitei muito com esse
trabalho – e essa pesquisa também é sobre isso. Mas agora, por estar cansada, sinto-me
des-hesitante e pulsante de vida, tão inteira, mas com uns pedaços faltando. E nessa
contradição que foi chegar até aqui com você, sinto-me bem tentada a parafrasear (ipsis
litteris) Conceição Evaristo e mudar o título desta Dissertação e desse projétil que me
atravessa, dessa última bala que coloco aqui. O cartucho quente toca na minha pele,
então urro:

A GENTE COMBINAMOS DE NÃO MORRER!

Mas falar sobre essa combinação de não-morte, mesmo que seja um “trato”
essencial, visto que é realidade que nos atravessa, torna-se primordial para nós, pessoas
Pretas/negras, enxergarmos como possibilidade outra maneira de realidade: através da
escrita. Meus dedos que encostam com força as teclas desse computador, digitam então:

A GENTE COMBINAMOS DE ESCREVIVER!

Que é para não morrermos mais de epistemicídio, produzirmos nosso


conhecimento, afrocentrar nossas leituras, nossas escrevivências, escrevermos que é pra
gritarmos (e pode ser com reiva, porque aqui ela é bem-vinda): nós nos recusamos a
morrer! E nessa ré de escrita reconstruímos os nossos modos de subjetivar,
transmutamo-nos em nossas próprias potências criativas. Estou falando das Artes
Cênicas, mas também falo das nossas vidas. Esse trabalho não se distingue de mim ou
154

de nós, é parte do nosso corpo, da nossa casa, das nossas encruzilhadas mapeadas. Mas
espera...
Quando falamos em Artes Cênicas, as pesquisas e as principais referências
estudadas apontam para um território branco e majoritariamente masculino. Mesmo
sabendo que aqui no Brasil a produção tem sido outra, porém reproduzimos ainda as
mesmas epistemes, ou seja, as mesmas fórmulas excludentes. O “cenário” das
epistemologias Pretas/negras já se tornou outro, mas os conhecimentos que vemos
sendo “reproduzidos” dentro dos muros acadêmicos ainda é o mesmo.
Não estudamos o conceito de “quilombismo” de Abdias do Nascimento; a
história do teatro negro brasileiro de José Rufino dos Santos75; os conceitos de “tempo
espiralar”, bem como a ressignificação de encruzilhada dentro de uma relevância
filosófica-cultural de Leda Maria Martins76; não acessamos o conceito de “corpo negro
pulsante”, de Marcos Alexandre; a “dramaturgia do tropeço”, de Anderson Feliciano; a
“poética negra”, de Adélia Carvalho; com a “performance negra”, o “teatro de presença
negra” e o “teatro engajado negro”, de Evani Tavares Lima; com os estudos sobre a
crítica como “fabulação, re(criação) e cura”, de Soraya Martins; nada ou pouco sabemos
sobre a “vaga carne” e a necessidade de uma “afrobetização”, de Grace Passô; não nos
debruçamos na leitura de Bárbara Santos77, primeira mulher Preta a publicar um livro
teórico sobre o Teatro do Oprimido e que lança atualmente a obra Percursos Estéticos,
primeira obra sobre o tema voltado às “mulheres negras e latinas”; com os estudos e
recriações em dança de Inaicyra Falcão dos Santos.
Os estudos da performance, a cada dia menos movediços no território brasileiro,
não abraçam epistemologicamente artistas-performers como Musa Michelle Mattiuzzi78
e a sua “ação performática”; o corpo-protesto de SaraElton Panamby, que juntamente

75
A História do Negro no Teatro Brasileiro (2015).
76
Dentro da produção da autora faço destaque para a obra A cena em sombras (1995), onde esta mapeia a
história do Teatro Negro, bem como a sua estética, falando sobre a história de opressão, tanto no teatro
negro brasileiro quanto estadunidense.
77
Disponível em: < http://todosnegrosdomundo.com.br/barbara-santos-lanca-percursos-esteticos/>
Acesso em: 03 de junho de 2019.
78
Performer-pesquisa-dor-a-escritora – os seus trabalhos se apropriam do/e subvertem o lugar exótico
atribuído ao corpo da mulher negra pelo imaginário cisnormativo branco, que o transforma numa espécie
de aberração, entidade dividida entre o maravilhoso e o abjeto. Disponível em:
<https://performatus.net/catalogo-artistas/musa-michelle-mattiuzzi/> Acesso em: 03 de junho de 2019.
Sobre o tema, Mattiuzzi escreve no artigo intitulado de BREVIÁRIO SOBRE UMA AÇÃO
PERFORMÁTICA: SÓ ENTRO EM JOGO.
Disponível: <https://musamattiuzzi.wixsite.com/musamattiuzzi/textos>. Acesso em: 03 de junho de 2019.
155

com Dinho Araújo estão desenvolvendo um trabalho permeado de reflexões decoloniais


– “a representação do corpo negro na história da arte e, em contraponto, o campo da
performance negra e suas implicações políticas”79; o tema da coisificação do corpo
Preto feminino nas performances de Renata Felinto e também de Priscila Rezende; as
experiências de migração problematizadas por Paulo Nazareth, que articula
deambulação e noção de lugar, origem e pertencimento, atravessadas pelas relações
raciais.80
Quero destacar aqui neste projétil o trabalho teórico-performático da monstra
Jota Mombaça, que recentemente realizou uma série de performances intitulada de A
gente combinamos de não morrer, também inspirada pelo conto homônimo de Evaristo.
Sobre a autora, Mombaça diz que a lê

[...] como espécie de documento histórico, ainda que ficcional, que


trata dos efeitos somáticos, psíquicos, emocionais, subjetivos
encarnados da escravidão e da vida após a morte da escravidão. Ou
seja, do que sobra depois que a escravidão é abolida no Brasil. O
trabalho da Conceição é fundamental porque elabora o trauma, a
ferida da escravidão. Os livros dela estão abarrotados desse processo
de elaboração que é, ao mesmo tempo, sensível, poético, contundente
e brutal. O espetáculo tem muito a ver com a influência dela no meu
trabalho, mas também com essa articulação tão sensível do viver em
corpos e contextos marcados pela necropolítica. 81

As performances de não-morte de Mombaça foram dedicadas “à constituição de


situações, rituais e processos coletivos de elaboração das feridas necropolíticas”. As
re-feridas performances buscam, através da manufatura de facas (feitas com materiais
precários como galhos, cacos de vidro, barbantes vermelhos) e da leitura de fragmentos
de textos diversos, instaurar um espaço de cura que é, simultaneamente, um espaço
especulativo em torno da possibilidade de justiça.82
O trabalho da artista se costura e descostura na performance, nas artes visuais,
nas práticas pedagógicas não hegemônicas. Jota trabalha com uma escrita criativa, com

79
Disponível em:
<http://www.sesc.com.br/portal/site/palcogiratorio/2018/espetaculos/espetaculosinternos/performance+pr
eta+no+brasil>. Acesso em: 03 de junho de 2019.
80
Fonte disponível em: <http://fabianalopes.com/pdf/HarpersBazaarArt_Presencas.pdf>. Acesso em 03
de junho de 2019.
81
Fonte disponível em: <https://www.otempo.com.br/divers%C3%A3o/magazine/crise-
democr%C3%A1tica-no-brasil-%C3%A9-tema-de-document%C3%A1rio-da-netflix-1.2192302>.
Acesso em: 03 de junho de 2019.
82
Fonte disponível em: <http://fitbh.com.br/a-gente-combinamos-de-nao-morrer/> e
<https://casadopovo.org.br/a-gente-combinamos-de-nao-morrer>. Acesso em: 03 de junho de 2019.
156

elaboração teórica, poética, empírica – no sentido de “pirar” mesmo. Essas linhas se


entrecruzam em seu trabalho. Mombaça

[...] expressa esse combinado fundamental que nós, negros e pessoas


trans, temos que fazer. As condições sociais estabelecidas são para o
genocídio da população negra, das trans, das travestis. É como se o
plano do poder fosse nos matar. Em face disso, o que nos resta é fazer
um combinado ao avesso, que é o de não morrer, e isso passa por se
cuidar, estudar os modos como a violência se organiza e ser resiliente,
sobreviver a ela. [...] Todas essas vidas que a avalanche necropolítica
leva. Todos os jovens assassinados pela polícia, travestis assassinadas
por homens cis, as mulheres que são assassinadas por seus
companheiros. Como podemos sobreviver a essa avalanche? [...] Meu
trabalho é uma tentativa de criar ferramentas, discursos, metodologias,
imagens, rituais, práticas coletivas que, de alguma maneira, vêm
dessas posições e visam fortalecer nossas lutas, articular nossas
questões, intensificar nossa sensibilidade. Todas essas formas do meu
trabalho estão implicadas com esse compromisso com a vida negra,
com a vida trans, com a vida não normativa em geral.83

Trata-se também de ações coletivas, onde contam, a cada apresentação, com


colaboradoras/es diferentes. A artista se multiplica então em corpos e esses corpos
gritam sobre essa política de morte que destacamos aqui neste projétil. A artista fala do
seu trauma: o mundo; e se questiona ou nos questiona ou questiona a “eles”, enfim,
questiona:

MAS QUANDO UM CORPO NEGRO PARA DE FUNCIONAR,


QUEM OU O QUE PODE AMPARÁ-LO? E QUANDO A GENTE
QUEBRA, QUE INFRAESTRUTURAS SE PRECIPITAM, AS DO
CUIDADO OU DO DESCARTE? QUANTO TEMPO LEVA PARA
SERMOS APAGADAS, DEPOIS QUE AS PALAVRAS,
LINGUAGENS E OS GESTOS DEIXAM DE FAZER QUALQUER
SENTIDO? O QUE SOBRA DE UM CORPO NEGRO, QUANDO
ELE PRÓPRIO CONSENTE PERDER A BATALHA CONTRA O
MUNDO?84

Às vezes o que ampara é o chão...


Ou os braços de uma mãe. Se eu consito em perder a batalha contra o mundo,
porque ele é grande e sim, eu posso desistir, o que me ampara pode ser o mar. A

83
Fonte disponível em: <https://www.otempo.com.br/divers%C3%A3o/magazine/crise-
democr%C3%A1tica-no-brasil-%C3%A9-tema-de-document%C3%A1rio-da-netflix-1.2192302>.
Acesso em: 03 de junho de 2019.

84
MOMBAÇA, Jota. O mundo é meu trauma. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, número 11, página 20 -
25, 2017.
157

produção de artistas Pretos/Pretas que trabalham com uma “produção Preta/negra”, com
noções e conceituações de “epistemologias Pretas/negras” é enorme - oceânica, e não é
meu intuito “resumir” essa produção feita aqui no Brasil em três ou mais parágrafos.
Acima só mencionei alguns exemplos, essa produção é além-mar, além-diáspora,
envolve também o continente africano, é abissal, cheia de pluralidades e estéticas.
Porém nos “prendemos” a estereotipias quando se trata das Artes Cênicas e suas
relações com as Poéticas Pretas, pois as epistemologias das Cênicas ainda são
hegemonicamente europeias, longe da realidade de nossos corpos e poéticas
diaspóricos/as, colocados então como margem – mesmo que nos entendamos cada vez
mais como centro. Por que o/a Preto/a não é universal? Me disseram não, “que temos
que abraçar a todos/as”. Mas então porque o branco/a é? Me sinto débil tendo que
perguntar algo tão óbvio. Isso vem antes da colonização, por óbvio também. Aqui no
Brasil chegou com ela, mas já carregando uma herança de séculos. Epistemicídio na
seta!
Fazemos parte dessa história, Benjamin de Oliveira85 que o diga. Então não faz
sentido não estarmos também no lugar convencionado nessa sociedade para a produção
de conhecimento, ou seja, dentro das academias86, dos ambientes universitários, do
sistema básico de ensino. Cadê minha pretagogia? Porque a autonomia é negada.
Entendo que nós estamos nas ruas, comunidades, favelas, nos quilombos, no
candomblé, a pretagogia está onde nós estivermos. É por isso que ela pode estar na
academia também – se assim tu quiser! Nossos corpos: associados na maioria das vezes
à emoção, espiritualidade, ao “folclórico” e ao ritualístico proclamam também pelo
misto com o “pensar”, até porque não dicotomizamos todos esses saberes eles
simplesmente se abraçam. Todo esse apagamento e silenciamento está ligado ao
epistemicídio, na certa!
E sobre essa universalização do branco gostaria de destacar uma fala de
Mombaça, que nos questiona:
O que que a supremacia branca fez? Ela tentou hiperlocalizar o outro,
hipermarcar o outro pra livrar ela própria de qualquer marcação que
fosse. Então o branco nunca foi o branco. O branco se constituiu como
sujeito, se constituiu como a pessoa, como o humano e os outros
foram hipermercados pelo olhar do branco. [...] Quando eu racializo o

85
Ator, cantor, compositor e palhaço de circo. Nasceu em 11 de junho de 1870, em Pára de Minas, Minas
Gerais, Império do Brasil. Foi idealizador e criador do primeiro circo-teatro.

86
No Dicionário das Semânticas Ordinárias Cotidianas: acaendemia, visto que é um espaço cheio de
racismo institucional e que nos adoece, como todo espaço permeado pelos “racismos”.
158

branco eu não coloco ele num plano de igualdade com os corpos


racializados, eu escrevo ele na geometria da racialização que é
desigual. E a gente tá em posições diferentes... E eu só faço com que o
branco perceba que ele está numa posição, que ele não está flutuando
no universal.87

Mas dentro dessa lógica que determina esse universal, ideia construída pelo
ocidente, ou seja, pelos conhecimentos do “norte”, opto por não reinvindicá-la, opto por
não trazê-la para a minha pretagogia, pois fazer isso seria querer encaixá-la num sistema
que não nos contempla, nunca nos abraçou, ao contrário, só utiliza nossos corpos como
escada. E bem, reconhecer essa problemática que se inscreve nesse “universal” não é
um trabalho nosso, é trabalho da branquitude, que antes de mais nada necessita
reconhecer e pensar sobre a própria branquitude, mas que insistem em se “fantasiar” de
índio, estudar sobre “decolonialidade” e “coisas de preto”. A branquitude teima em se
negar, mas continuando o nosso assunto...
Necessitamos “sulear” as nossas subjetividades e não mais dentro dessa
perspectiva universal. Nós somos seres pluriversais88 e necessitamos urgentemente nos
abrir para um processo de reontologização do sujeito africano. A questão aqui é então:
como faremos isso? Inicialmente revisitando e reconstruindo as nossas subjetividades.
Sei que não é simples – veja todo o processo em incompletude deste trabalho, mas as
nossas escrevivências friccionam isso e elas friccionam em potência se estiverem
alinhadas com essa comunidade. Essa subjetividade colonizada em nós precisa ruir,
precisamos (re)construir a nossa subjetividade ancestral, portanto, africana.
Somos seres constituídos e permeados num espaço feito por outros seres
viventes, seres não viventes e seres que estão por vir, ou seja, circulamos em meio a

87
Jota Mombaça em entrevista para a Rádio AfroLis – uma experiência africanizada de Lisboa.
Disponível em: <https://soundcloud.com/r-dio-afrolis/audio-167-lugar-de-fala-e-relacoes-de-poder-com-
jota-mombaca-parte-ii>. Acesso em: 10 de março de 2020.

88
Sobre o conceito de pluriversalidade aconselho ler o artigo do filósofo Renato Noguera, intitulado de
“Denegrindo a educação: um ensaio filosófico para uma pedagogia da pluriversalidade”. Noguera usa
como referência o filósofo sul-afriano Mogobe Ramose, que fala em muitas de suas obras sobre filosofia
africana, considerando o pensamento desta como pluriversal. Ramose tensiona essa relação na cultura
ocidental em insistir a filosofia grega como berço da própria filosofia, esta que instituiu esse conceito de
universalidade e que se colocou e ainda se coloca como único centro, soberano, centro-norma e padrão de
pensamento, não discutindo (estrategicamente) essa mesma universalidade como uma particularidade de
seu pensar, inserida, portanto, num determinado contexto sócio-histórico-cultural e geográfico. Já a
pluriversalidade é a ideia de que existem muitos centros de saberes, de racionalidades e também de
filosofias no mundo, a africana é uma delas, por exemplo – ou melhor, as africanas (no plural), porque no
próprio continente existem diversas filosofias. Artigo disponível em:
<https://periodicos.unb.br/index.php/resafe/article/view/4523/4124>.Acesso em 10 de março de 2020.
159

essa ancestralidade, ao retorno constante d/nela. Nós caminhamos com Exú. Nós
respiramos seu tempo espiralado.
O “sobrevivente do inferno” e um dos vocalistas do Racionais MC’s, Mano
Brown coloca algumas questões de fome ao dizer:

Tem que acreditar. Desde cedo a mãe da gente fala assim: “filho, por
você ser Preto, você tem que ser duas vezes melhor”. Aí passado
alguns anos eu pensei: Como fazer duas vezes melhor, se você tá pelo
menos cem vezes atrasado pela escravidão, pela história, pelo
preconceito, pelos traumas, pelas psicoses, por tudo que aconteceu?
Duas vezes melhor como? Ou melhor ou ser o melhor ou pior de uma
vez. Sempre foi assim. Se você vai escolher o que tiver mais perto de
você, o que tiver dentro da sua realidade... Você vai ser duas vezes
melhor como? Quem inventou isso aí? Quem foi o pilantra que
inventou isso aí? Acorda pra vida, rapaz!89

Como duas vezes melhor? Morrendo de várias formas duas vezes ou mais.
Quais são as nossas chances nesse meio? É resistência ou desistência? Colonizam
nossos corpos, conhecimentos, nossas produções. Reproduzimos o que nunca nos coube
e nos chamam de “cabidos” por isso. Mas então me diz você, porque estou “com-fuzil”
(na mão): “[...] o caminho da cura pode ser a doença”? Se escreve a cura? Assumir
meus ancestrais e esse ciclo pode me curar? Como escrevo com meus e minhas
ancestrais?

Cartografia da fuga

Ando fugindo.
- De quem?
De mim.
- De quem?
Juro, de mim.
Ando subindo.
- Pra onde?
Ando apenas. Vago, vaga. Ando contente, ando calada. Encruada, cruzando os
filamentos, cansada, um pouco. Ando. Percebo que dessa vez a fuga é diferente, é lenta,
sem pressa pra se resolver. Fugir é bom.
- De quê?

89
Na introdução da música A vida é desafio, do DVD/álbum 1000 Trutas, 1000 Tretas.
160

Do silêncio omisso, da inadequação, do analfabetismo, da histeria que me


vestem. Da cor que querem me despir, mas só de ruim me fundo mais com ela, porque
fundir é bom.
- Com o quê?
Com os líquidos do meu corpo, as minhas águas: saliva, sangue, mijo, coriza,
suor, gozo. Os líquidos me colocam em estado de escorrimento, de fluidez,
transmutação. Me transformo num líquido diferente a depender da situação. Ontem, por
exemplo, fundi com a minha coriza. Ela conversou comigo, é bem de brisa. A brisa bate
e ela escorre. Pingou do meu nariz e cascateou no meu rosto. Ela me lembrou que nem
todo líquido sai sem esforço. Densa, mesmo caída, me fez lembrar que a descida
também é partida.
Parte de mim se desapegando de mim. Apego saindo. Cura fluindo do que me
passa, do que me atravessa, do que me fode, do que tropeça na minha frente e dessa vez
eu escolho apenas não rir, eu ajudo a me levantar...
Meu corpo se curando. De mim.
Meu corpo segurando. Em mim.

“Segura então corpo, mas sem apego”, disse ela, se olhando no espelho.

***

Nós podemos projetar a dor – do epistemicídio e das várias mortes, porque é


uma das medidas legítimas de nos projetarmos para o mundo, para nós mesmas/os, ela
faz parte desse inteiro que é estar aqui – e isso eu não me canso de repetir, porque fui
inteira aqui, mesmo sendo parte. Olhe para o chão e talvez veja alguns cacos, pedaços e
gotas minhas.
Expor essa inflamação que dói é necessária, mas precisa ser estratégica. Porque
não se vive de dor. Pelo menos não podemos viver dela. Não podemos porque é
simplesmente desumano. E aqui até reflexiono:
Vim ao longo desse trabalho revisitando a minha própria forma de me enxergar e
de enxergar “os meus e as minhas” (espero que entenda que falar isso não é posse, pois
me entendo como parte de um coletivo aqui, em cada linha), e aí não falo apenas de
pessoas negras, falo de pessoas negras abraçando seus diversos contextos – de
161

sexualidades (as dissindentes principalmente) e gêneros (binários e não-binários) – (pois


sabemos que a produção ou veiculação de conhecimento ainda é protagonizada por
pessoas cisgêneras, dentro desse modelo de funcionamento patriarcal ocidental), somos
múltiplos e necessitamos cada vez mais de narrativas múltiplas sobre nós mesmas/os...
Narrativas múltiplas de nossas dores e além-dores, ALÉM! Pois precisamos narrar
também sobre o que nos potencializa, o que nos leva pra frente.
Ao longo deste trabalho pude revisitar então a maneira que tenho de enxergar as
nossas dores. Lanço ao longo desta pesquisa várias estatistícas, às vezes as jogo de
forma desavisada, pelo simples fato delas serem reais. Mas esse trabalho não precisa ser
apenas sobre elas. Acredito que as utilizo como hábito... Isso mesmo, hábito que a gente
tem em trazer o óbvio para mostrar/provar o óbvio. Mas para quem? A branquitude não
se interessa por isso e não é para ela que falo aqui. Nós já sabemos que estamos
morrendo. Mas...
(Mas?)
O que quero realmente dizer é que merecemos narrativas para além dessas
estatísticas, para além desses números que doem. Falo em especial agora das pessoas
trans negras, que possuem uma marginalidade multiplicada e que mesmo assim
continuam resistindo, produzindo conhecimento, lutando contra o epistemicídio.
Repito que o que realmente quero dizer – e ainda não sei se me faço entender... é
que mais do que nunca outras narrativas precisam ser potencializadas – não sou voz
dessas e de todas as pessoas Pretas/Negras, mas também sou, se reverbero voz de mim e
em mim. Como pode? Com-unidade!
Bem, parte de mim tem dúvidas de como partir nesse texto, ir embora.
“Terminar não é romper”, talvez seja aquele respiro, tomada de fôlego antes de correr.
Eu projetei aqui o que me dói e o que dói em muitos/as de nós, mas também tenho a
necessidade de projetar o que me potencializa, a minha cura. A nossa. Se não, não faz
sentido só doer, mesmo quando essa dor é imposta.
Escrevi boa parte dessas palavras sentindo muita dor física, partindo de hospital
em hospital. Era um caroço e doeu parí-lo. Mas não me doeu parir isso aqui. A dor que
senti nesse parto foi diferente, foi dor de partir, dor de ser inteira.
É sobre isso? É sobre escrever?
É sobre escrever de qualquer maneira!
162

E é também sobre nutrição, entenda –


Precisamos nos nutrir de nós mesmas/os.
Como disse Nêgo Bispo90:

- “Nós somos início, meio e início”.

Preciso pichar isso nesses muros acadêmicos ou no meu corpo ou nas ruas que
trazem a realidade do que é ser Preta/o. Poderia ser mais simples dizer que é sobre isso,
mas o “sobre” é sempre um trajeto. E no trajeto desse projétil escrevi sobre o que me
trouxe até aqui:

90
Antônio Bispo dos Santos, mais conhecido como Nêgo Bispo, é lavrador, formado por mestras e
mestres de ofícios, morador do Quilombo Saco-Curtume, localizado no município de São João do Piauí.
Ativista político e militante de grande expressão no movimento social quilombola e nos movimentos de
luta pela terra.
163

VERA CIDADE
Vera se chama, mulher que reverbera na cidade. Caminha pelas ruas e sente em
cada esquina sinais da densidade que é esse cinza, essa fumaça que impregna em seus
pulmões. Vera anda em procissão, passa por camas de papelão, por camelôs, passa
pelas putas ocultas, homens sentados no chão. Vera tem medo de andar só, mesmo
cercada pela multidão.
E na via sacra da cidade Vera ora com tamanha vontade:
– Ave sangria cheia de mácula, “O Senhor” não está conosco e é tamanha a
desgraça. Tem lixo nas ruas, as pessoas morrem de fome e frio. Senhor? Não vi hoje! O
senhor não me viu!
Um profeta enfalso que ali caminhava entregando os seus santos gritou pra ela-
Vera, amolando os seus dedos de apontador e a encostando em seu canto:
– Avia, sangria! Não sei qual a tua graça… Te chamo pelo nome ou faço um
sinal de fumaça? Mas antes te digo que não fale o nome do meu Deus em vão!
Vera responde então:
– Meu nome é de ave, mas me chame de Sangria, não sou santa de barro, não
sou oca por dentro. A oração é minha e nela rogo todos os meus elementos! Falo pra
terra, pra água, pro fogo, lanço minhas palavras ao ar, etéreos condimentos.
Ela mostra as suas mãos, o profeta nela enxerga dois buracos negros, cercados
por todo o preto-breu que é Vera. Esbravejou, de vadia a chamou: “PUTA!
VAGABUNDA!”, ele gritou.
Vera então olha pra si e enxerga seus buracos: os dois, tão densos, brilhosos e
abissais. Enxerga o negro que tem dentro-fora de si e desincretizada responde:
– Ave Sangria cheia de mágoa, Sangria cansou, Sangria descalça. Andando sem
rumo, com fome e com frio, Sangria tá exausta e só sente o vazio, o oco do bucho, o eco
dos meus, quase desisto e o bucho cresceu. Dei luz a mim, uma Sangria ferida, Sangria
pequena, Sangria sentida. E por sentir te digo que a sua fé não me pesa mais, ó, mas já
matou vários e várias de mim. Então apenas vai, segue o teu rumo, tuas preces, tuas
pressas em fugir pra um céu distante, bem longe daqui. No meu céu eu vejo apenas
estrelas. Acredito numa força de alcunha feminina.
Senhor? Não vi hoje!
“O Senhor” é menina!
Isso, Vera falou o que estava preso por anos em sua garganta e ecoando em seu
bucho vazio:
164

Deus é uma mulher Preta!


165

PARA QUEM ESSAS MÃOS APONTAM?

[ Preferi não colocar a imagem, deixo aqui a sua descrição, que já é indigesta por si só:
São dez homens e uma mulher, todos brancos, três desses homens fazem o sinal de armas com as mãos,
no centro da imagem temos uma anta – aquela que chamam de “presidente”, alguns dos homens da
imagem sorriem e aplaudem ]

Figura 1- Jair Bolsonaro, no dia 7 de maio de 2019, ao assinar o decreto que mudou regras sobre uso de
armas e de munições — Foto: Marcos Corrêa/PR

- Socorro, eu gritei.
- Socorro, me ajudem!
E me pedem:
- Socorro!
Como? Se nem socorrer me consigo? Se não me toco, nem sinto, não ladro e
nem mordo. Cuidado com o socorro, ele é cão assustado que fica de vigia no portão, à
espera. De que eu não sei. Só sinto o puxão.
Antes, bem antes, eu só corria. Hoje eu só paro e antes eu só paria… Hoje eu
nem disparo, ontem eu me excedia. Cão domesticado: ontem nem me movia. Cão
necessitado: ontem não me cabia. Cão desajeitado: ontem não me cuspia. Hoje o cuspe
cai na testa e escorre. Escorria...
E eram eras de gestações estranhas, massentas, cuspidas cheias de catarros,
cupidas lamacentas. Ontem eu só me fodia. E gerava massas sem significados, sem
vida. E eram “fodas” sem graça, descabidas, movimentos expelidos sem organicidade,
massa parida, disforme e cinza, que nem essa cidade. Ansiedade e falta – falta de
saciedade.
Mas isso que falo aqui não tem a ver com falta. Não é falta, é pulsão! É afeto,
afetação! E não é que as gestações tenham formas agora, acho que elas nunca terão uma
uniformidade higiênica. Mas é que antes não tinham vida, entende? E agora, mesmo que
não sentida: tem!
Pero non me gusta...
Tem, pero non corro...
Tem, pelos no coro...
Mas não estão ouriçados.
- Me dê tempo, tudo bem? O ori será renovado!
166

E com o ori meio nebuloso não sei te dizer se esse texto é de “conclusão” ou de
“consolação”, porque de “rendição” sei que não se trata. Pois colocar o nome do que
deveriam ser os capítulos dessa Dissertação de projéteis me doeu um pouco, mas
acreditei ser necessário, não só pelo atual momento político que o país enfrenta: mãos
fazendo “arminhas”, mas também pelo momento que não foi breve e que já vem
acontecendo há séculos: de armas de verdade em mãos sendo apontadas para pessoas
Pretas/negras.
Quem se importa com a ampliação do porte? Em porte qualquer Preto é
alvejado. Em porte as universidades e escolas passam por um verdadeiro processo de
sucateamento. O sangue que escorre é o gerado pela ignorância, porque muitos ignoram,
porque querem e fingem não saber, é sangue real. E quem se importa?
Mas a gente combinamos de não morrer, já eles combinaram de nos matar.
Mas espera, a gente combinamos de escreviver, já eles combinaram de nos “ignorar”,
ao contingenciar 30% das verbas das universidades e Institutos Federais, ao cortar (ou o
que eles chamaram de “descentralizar”) investimentos aos centros de Filosofia e
Sociologia das Universidades Federais.
Prestem atenção: haverá uma piora sim, e sim, ruim sempre esteve, pobre e
“negra/o” sempre morreu nesse país, ou pior, Preto/a sempre morreu, de açoite ou bala,
de esquecimento, jogado em vala, seja de esgoto ou de desconhecimento. Valha! Não,
não vale... desde a pisada de pés portugueses aqui nessas terras que Preto/a e Indígena
não valem nada!
É preciso rompimento. Esse trabalho foi um rompimento meu, foi despedida da
academia, desses dez anos aqui dentro. As Poéticas Pretas necessitam romper para
além daqui. Talvez sim, isso seja uma conclusão de pesquisa artística dentro desses
muros. Porque para romper nós precisamos nos desviar de alguns caminhos já
conhecidos ou desnutridos. Preciso me perder no caminho, me distrair disso aqui. É
caminho árduo e contra a corrente (e aqui não estou falando de corrente d’água).
Caminho possível.
Um dos meandros possíveis para esse caminho possível? A escrita das nossas
escrevivências, dentro e fora das Cênicas. Porque esse trabalho não se limita ao espaço
delas, porque nem as Artes se limitam ao espaço delas mesmas. E a imagem, ou melhor,
a descrição da imagem que abre esse cartucho “arremata” de forma prática o que falei
ao longo dessas páginas. São senhores de engenho e sinházinhas controlando o Estado,
soberanos no ato de matar. Estou em dúvida se pulo...
167

Acho que sim,


vou pular!
168

REFERÊNCIAS

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sobrevivencia cultural y el reconocimiento jurídico: costa chica de Oaxaca y Guerrero.
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(Coleção Sankofa — Livro 4) organizado por Elisa Larkin. Editora Selo Negro, 2009.

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DOVE, Nah. Mulherismo Africana: uma Teoria Afrocêntrica. Coleção Pensamento


Preto: Epistemologias do Renascimento Africano [Volume II]. 1ª ed., União dos
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170

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la costa chica en México: usos de la cultura en la constitución de su etnogénesis. In:
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X, Malcolm. Algumas Reflexões Sobre a Semana da História Negra. In: Coleção
Pensamento Preto: Epistemologias do Renascimento Africano [Volume II]. 1ª ed.,
.União dos Coletivos Pan-Africanistas. Diáspora Africana: Editora Filhos da África,
2018, p. 23-36.
171

ANEXO
172

Taller - Cuerpo-Encrucijada | Corpo-Encruzilhada


Con Naara Martins (Brasil)

RESUMEN

En estos dos talleres continuados, la actriz-ta, performer y Maestra Naara Martins


(Brasil) tiene la intención de construir nociones de “Encrucijadas” y territorios
corporales, así como trabajar en la construcción de cartografías como un modo de
mapeo escénico/performativo basado en una danza llamada Coco de Roda, para
construir a través de esta práctica cartografías escénicas/performativas a través de los
propios “escrevivencias” de los participantes.

Fechas: 11 y 13 de septiembre

Horario: 4:00pm a 5:30pm

***

Currículo resumido

Naara Martins es licenciada en teatro por la Universidade Federal do Rio Grande do


Norte (Brasil), estudiante de maestría en el programa de posgrado en Artes Escénicas de
la UFRN (Línea de investigación: Prácticas de Investigación de la Escena: Poéticas,
Estéticas y Pedagogías). Desde 2010 desarrolla obras con performance y teatro. Trabajó
como actriz y dramaturga en Coletivo CORES TEATRO (2013-2017), donde tenía una
formación estética que dialogaba con el teatro, las artes visuales, la danza, el
espectáculo y las artes escénicas. Desde 2015 ha participado en el Coletivo Intransiti, un
proyecto donde tuvo la oportunidad de desarrollar trabajos en el área de dramaturgia,
actuación y performance. Actualmente también es miembro del JAHI, un grupo de
danza africana y estudios Pan-Africanistas, donde desarrolla experimentos prácticos
sobre las posibilidades de creaciones híbridas en las artes escénicas donde el teatro, la
danza, la actuación, el video, la instalación, la intervención urbana, la música y la poesía
se presentan juntas en espectáculos y acciones performativas.
173

Taller I – Proyectil Zero - Inicio o “¿De dónde vine?”

Objetivo general
Crea nociones de “encrucijada” y territorios corporales.

Objetivos específicos
Trabajar la danza Coco de Roda - danza brasileña.

Justificación
En este primer taller, tengo la intención de discutir sobre la noción de
Encrucijada y Cuerpo-Encrucijada, com un enfoque teórico-práctico impulsado por el
concepto desarrollado por la investigadora brasileña Leda Maria Martins. Así como
abrir este ciclo de talleres con una molécula de mi participación en el territorio que “me
formó” geográficamente y, por lo tanto, social, política y culturalmente, es decir, tomaré
un poco de Natal, ubicada en el estado de Rio Grande do Norte, en el noreste de Brasil.
A partir de los disparadores musicales, pretendo trabajar con algunos sentidos estéticos
de la danza negra, muy presentes en la diáspora brasileña africana, en particular en la
danza que compartiré en este taller, llamada Coco de Roda, que tiene su origen en la
unión de la cultura negra y los pueblos de Pindorama, nombre no colonizado dado por
los pueblos Tupis-guaranis a la tierra que ahora se conoce como Brasil.

Es una danza abundante en la costa de la región Nordeste del Brasil, pero su


surgimiento fue en los quilombos, es decir, en el interior del país, donde se origina en el
ritmo a través de la ruptura de los cocos para la extracción de almendras. Con su
tradición de danza y canto, se ha convertido en un rico modo de transmisión y
mantenimiento del conocimiento y la tradición comúnmente conocida en Brasil como
“popular”/ folklórica, nombres que a menudo se usa para demarcar las danzas y
tradiciones de los pueblos africanos e indígenas.

Según el historiador de Zimbabwe, Pathisa Nyathi, hay ocho sentidos estéticos


en la danza negra: Polirritmia; Repetición; Calidad conversacional; Policentrismo;
Sentido curvilíneo; Dimensionalidad; Memoria épica; Sentido holístico.
174

Trabajé algunos de estos sentidos estéticos en la danza como posibilidades de los


cruces que esta misma muestra en mi/nuestra creación artística. Comienzo desde una
experiencia personal compartida, o si lo prefieres: comienzo desde una desnudamiento.
Cuerpo de un territorio que es atravesado por otros: territorios y cuerpos.

En este taller presento algunas preguntas sobre el hambre: ¿Cómo se atraviesa


un cruce aparentemente personal con cuerpos de otros territorios? ¿Cómo se comunica
esta danza/movimientos con los territorios de los estudiantes? ¿Cómo podemos
nombrar o reconocer estos límites de territorio/cuerpo? El taller tiene como objetivo
plantear estas preguntas, pensar en las territorialidades y encrucijadas que nuestros
cuerpos “llevan”, nuestras formas de existir que se cruzan en las artes.

Materiales
Equipo de sonido y cable auxiliar.

Resultados esperados
La experiencia de la noción de “Encrucijada” a través de los elementos y movimientos
de la danza Coco de Roda.

Tiempo de duración
1h30min

Público objetivo
Estudiantes de teatro y danza.
175

Taller II – Proyectil Uno - Construcción de cartografías de un Cuerpo-Encrucijada

Objetivo general
Trabajar en la construcción de cartografía como modo de mapeo escénico /
performativo.

Objetivos específicos
Construir cartografías escénicas / de rendimiento a través de las “escrivivencias” de los
estudiantes.

Justificación
Se pretende trabajar en este taller con el concepto de “escrevivências”91, escrito
por la escritora brasileña Conceição Evaristo, que está presente en esta actividad como
un modo de investigación y producción artística en las Artes Escénicas. Es un concepto
que surgió como una forma de romper con la escritura hegemónica, principalmente
blanca y androcéntrica. Este taller tiene como objetivo reconstruir nuevas posibilidades
de escritura y epistemes, entendiendo la escritura no solo como algo externo al cuerpo,
sino también como una de sus reverberaciones, construyendo una encrucijada entre
ellas.

Materiales
Equipo de sonido y cable auxiliar.

Resultados esperados
La experiencia de la noción de “escritura” como una forma teórica-práctica o práctica-
teórica de trabajar en las Artes Escénicas.

91
“En el papel blanco y negro, la voz de Conceição Evaristo lleva y propaga los sentimientos, los dolores,
las alegrías, los gritos y los susurros de una multitud de personas, hombres y, sobre todo, mujeres cuyas
voces son silenciadas insistentemente. Con base en lo que ella llama ‘escrevivência’, o la escritura que
proviene de la vida cotidiana, los recuerdos, la experiencia de vida de la autora y su gente, compone
novelas, cuentos y poemas que revelan la condición de la ascendencia africana en Brasil”. Disponible en:
<https://www.itaucultural.org.br/ocupacao/conceicao-evaristo/escrevivencia/>. Accedido el 14 de marzo
de 2019.
176

Tiempo de duración
1h30min

Público objetivo
Estudiantes de teatro y danza.

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