Você está na página 1de 81

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


DEPARTAMENTO DE ARTES
LICENCIATURA EM DANÇA

BÁRBARA ALEXANDRE QUEIROZ BORGES

MEMÓRIAS TECIDAS: A MEMÓRIA COMO DISPOSITIVO DE CRIAÇÃO DE


TRAJE DE CENA PARA DANÇA CONTEMPORÂNEA CIRCENSE

NATAL/RN
2022
BÁRBARA ALEXANDRE QUEIROZ BORGES

MEMÓRIAS TECIDAS: A MEMÓRIA COMO DISPOSITIVO DE CRIAÇÃO DE


TRAJE DE CENA PARA DANÇA CONTEMPORÂNEA CIRCENSE

Monografia apresentada ao curso de graduação em


Dança, da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, como requisito parcial para obtenção do título
de Licenciada em Dança.

Orientadora: Profª. Drª. Maria de Lurdes Barros da


Paixão.

NATAL/RN
2022
BÁRBARA ALEXANDRE QUEIROZ BORGES

MEMÓRIAS TECIDAS: A MEMÓRIA COMO DISPOSITIVO DE CRIAÇÃO DE


TRAJE DE CENA PARA DANÇA CONTEMPORÂNEA CIRCENSE

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade


Federal do Rio Grande do Norte, como parte das exigências
para a obtenção do título de Licenciada em Dança e
considerado aprovado com a nota final 10,0 atribuída pela
banca examinadora constituída pela professora orientadora e
membros mencionados abaixo.

Natal, 12 de julho de 2022

BANCA EXAMINADORA:

_________________________________________________________
Profª. Drª. Maria de Lurdes Barros da Paixão (Orientadora)
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

_________________________________________________________
Prof. Dr. Ildisnei Medeiros da Silva
Membro Examinador externo

_________________________________________________________
Prof. Ms. Samuel Leandro de Almeida
Membro Examinador externo
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART

Borges, Bárbara Alexandre Queiroz.


Memórias tecidas: a memória como dispositivo de criação de
traje de cena para dança contemporânea circense / Bárbara
Alexandre Queiroz Borges. - Natal, 2022.
80 f.: il.

Trabalho de Conclusão de Curso ( Graduação) - Universidade


Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências Humanas,
Letras e Artes, Licenciatura em Dança.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Maria de Lurdes Barros da Paixão.

1. Dança Contemporânea. 2. Traje de Cena. 3. Figurino. 4.


Memória. 5. Tecido Aéreo I. Paixão, Maria de Lurdes Barros da.
II. Título.

RN/UF/Biblioteca Setorial do Departamento de Artes CDU 793.3

Elaborado por Josiane Mello - CRB-15/570


Dedico este trabalho a Carla, Jefferson, Bernardo e Diogo:
Os elos que me compõem como pessoa, Arte e Dança, em passado,
presente e futuro.
AGRADECIMENTOS

A Deus, pela vida, por estar sempre me guiando, ensinando-me, protegendo-me,


acalmando-me e por sempre garantir que absolutamente nada me faltasse.

Aos meus pais e irmãos: Jefferson, Carla, Bernardo e Diogo, por sempre me
apoiarem e acreditarem em mim, mesmo muitas vezes não entendendo tão bem o
meu trabalho e, sempre que possível, fazendo-se presentes em minhas
apresentações desde muito antes de eu sequer pensar em cursar Dança.

À minha orientadora, Maria de Lurdes, por todas as orientações, pelos


direcionamentos, por acreditar sempre em meu potencial, impulsionando-me e me
tirando da “zona de conforto”, como também pelas conversas e partilhas,
principalmente, em meio aos tempos pandêmicos.

A Samuel, por ser uma das melhores pessoas que eu já conheci na vida, que se
tornou muito mais que um amigo, mas um irmão, e por ser meu apoio em tantos
momentos de ansiedade e tristeza; sem ele, este trabalho não aconteceria.

A Well, por ser um parceiro, "padrinho de tecido" e amigo tão incrível que sempre
aceita minhas ideias, por mais loucas que sejam e que mesmo com toda a rotina,
sempre se faz presente em minha vida e na minha arte.

À Dayse, a irmã, sócia, parceira que a Dança me deu, obrigada por acreditar tanto
em mim e por ser essa pessoa de luz. "Um sonho que se sonha só é só um sonho,
um sonho que se sonha junto torna-se realidade" e o Toda Bailarina é reflexo disso!

À minha equipe, Well Ferreira (gravação e fotografia), Anaceli Vieira (montagem de


tecido e direção de movimentos no mesmo), André Luiz Martins (maquiagem) e
Carla Borges (assistência, figuração e musa inspiradora). Sem vocês, nada disso
teria concretizado-se!

Aos meus amigos da licenciatura em Dança, que compartilharam esses anos de


graduação comigo e fizeram essa jornada mais leve: Brenda, Elza, Fabíola,
Francilanny, Gustavo, Jane, Lucas, Madson, Rayssa, Sara, Thaise e Wannessa.

A Brenner, por mesmo do outro lado do mundo, se fazer presente e impactar tanto
minha vida, apresentando-me ao meu lugar, o Poli Teatro Musical.

À professora Amélia Dias, por me possibilitar ser bolsista em dos melhores projetos
que já participei na vida, o Poli Teatro Musical, que me guiou tanto na minha
descoberta artística como docente.
Aos meu amigos do Poli Teatro Musical, que compartilhei não só os palcos, mas
também a sala de aula: Jaque, Denis, Niely, Chandra, Anna, Vinicius, Malu, Afra,
Cleiton, Heli, João, Jonatas, Julian, Kelissa, Márcio, Matheus, Nathaly, Paulo
Dantas, Paulo Ricardo, Roberto e tantos outros que passaram por mim nesses
quatro últimos anos de permanência no projeto.

À Ricardo, amigo de infância, que mesmo com as reviravoltas da vida, fez-se


presente e por se dispor a ensaiar e me auxiliar na apresentação do TCC.
Reencontrá-lo na pandemia foi uma das melhores coisas que já aconteceu!

À Ana Paula, pelas correções e por ser, desde o Ensino Médio, uma grande
incentivadora tanto da minha escrita, como do meu trabalho artístico. Obrigada!

Às minhas incentivadoras para o ingresso no curso de Licenciatura em Dança na


UFRN, desde a época do Ensino Fundamental e Médio no Instituto Reis Magos,
professora Flávia e hoje grande amiga, Ana Beatriz.

A Ildisnei Medeiros e a Samuel Leandro, por aceitar o convite para participar da


Banca Examinadora e, assim, realizarem considerações tão ricas acerca do meu
trabalho.

Ao Colegiado de Dança e Professores da UFRN, destaque para as professoras


Renata, Karenine, Larissa e Patrícia do curso de Dança e professor Sávio, do curso
de Teatro.

À Glaudete, por ser a melhor supervisora de estágio que pude ter, que não só
incentivou minhas práticas docentes, mas também meus trabalhos fora escola,
prestigiando tanto espetáculos como congressos acadêmicos, que sorte a minha!

Ao Departamento de Artes, pelos ensinamentos valorosos para entendimento do


ambiente acadêmico.

À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pelas trocas importantes nos seus
mais diversos ambientes.

À Gaya Dança Contemporânea, pelas experiências corporais vivenciadas como


bolsista voluntária de extensão.

Ao PIBID UFRN, pelas trocas e contribuições significativas na minha prática docente


e por ser o primeiro contato com a escola em meio a graduação.

Ao Ballet Imperial, pelas práticas artísticas, pelas amizades que levarei para toda a
vida e pelas inúmeras experiências e oportunidades que tive nos quatro anos que
permaneci na escola.
Aos companheiros do Tecido Aéreo: Anaceli, Júlia Albuquerque, André, Jheck,
Luciana, Gyselle, Carla, Julia Braga, em especial a Sara, que mesmo não me
conhecendo tanto, se dispôs a emprestar seu lindo tecido laranja, o qual tornou o
vídeo desse trabalho possível.

À todos os contribuintes da campanha em prol deste trabalho, aos quais, sem eles,
isso não seria possível: aos amigos Jaque Moraes, Jônatas Meireles, Madson Luís,
Maria Isabel, Mauro Montello, Vivian Bezerra e Yasmin Dantas; aos tios Albalúcia,
Ana, Aristóteles, Camazano, Carlos Octávio, Colomba, Flank, Jayme, Maria Luiza,
Paulo, Rita e Vera; as avós Alba e Valdira; aos primos Breno, Luciana, Rayssa,
Valésio e Viviane; e a incrível supervisora de estágio que tive, Glaudete.
“Nada somos além daquilo que recordamos"
(Ivan Izquierdo)
RESUMO

O presente trabalho estuda o diálogo entre a memória, o traje de cena, a dança e o


tecido aéreo, com o objetivo de investigar como a memória e as memórias afetivas
podem ser utilizadas como dispositivo para a criação de um traje de cena para
Dança Contemporânea Circense. Adota-se como referencial teórico-metodológico
os estudos acerca da memória e suas funções na criação do traje para a cena, com
base nos estudos neurocientíficos visando à construção do traje para cena
orientados pela Dramaturgia da Memória, a partir do método
pergunta-estímulo–tema para a seleção das memórias e afetações. Estabelece-se
como base para criação do figurino os elementos de cor, forma, textura,
funcionalidade e movimento. Este estudo dialoga com autores que discutem a
relação entre memória e dança, entre arte e figurino, como também figurino e
dança. O resultado do trabalho é composto do processo criativo do traje para cena,
o diário de bordo/memórias e, por fim, a videodança enquanto produto artístico
originário dos estudos realizados.

Palavras-chave: Dança Contemporânea, Traje de Cena, Figurino, Memória, Tecido


Aéreo.
ABSTRACT

The present work studies the dialogue between memory, stage costume, dance and
aerial silk, with the objective of investigating how memory and affectives memories
can be used as device for the creation of a stage costume for a Contemporary
Circus Dance. As a theoretical and methodological reference, we adopt studies
about memory and its functions in the creation of the costume for the scene based
on neuroscientific studies aiming at the construction of a costume for a scene
oriented by Dramaturgy of Memory, from the method question-stimulus-theme for the
selection of memories and affectations. The elements of color, shape, texture,
functionality and movement are established as a basis for costume creation. This
study dialogue with authors that discuss the relations between memory and dance,
between art and costume as well as costume and dance. The result of the work is
composed of the creative process of the costume for a scene, the logbook/memories
and finally the screendance as an artistic product originated from the studies carried
out.

KEYWORDS: Contemporary Dance, Stage Costume, Costume, Memory, Aerial Silk.


LISTA DE IMAGENS

IMAGEM 01: Código QR Code Master para acesso a todos os conteúdos do


projeto……………………………………………………………………………………….14

IMAGEM 02: Tipo de figurino usado por Isadora Duncan, como o uso de um
cachecol……………………………………………………………………………………. 31
IMAGEM 03: Figurino de Serpentine Dances de Loie Fuller………………….……... 32
IMAGEM 04: Figurino de Lamentation de Marta Graham, bailarina Peggy Lyman
Hayes……………………………………………………………………………………….. 32
IMAGEM 05: Figurino próximo ao cotidiano utilizado pela Batsheva Dance Company
em “Three”................................................................................................................. 36
IMAGEM 06: Figurino em diálogo com a tecnologia em “Biped” de Merce
Cunningham.............................................................................................................. 36
IMAGEM 07: Figurino de "Viktor" da Tanztheater Wuppertal de Pina Bausch..........37
IMAGEM 08: Figurino de tricô de “Cura” da Cia Deborah Colker……….................. 38
IMAGEM 09: Figurino de bandagem de "Cura" da Cia Deborah Colker................... 39
IMAGEM 10: Bárbara Borges na figura da “Grega” no tecido aéreo………………..43
IMAGEM 11: André Martins na figura da "Criatura” no tecido aéreo………………...43
IMAGEM 12: Bárbara Borges no espacate frontal na trave de pé no tecido
aéreo………………………………………………………………………………………... 44
IMAGEM 13: Anaceli Vieira na figura do "Cristo" no tecido aéreo…………………... 44
IMAGEM 14: Anaceli Vieira na figura da estrela na gota no tecido aéreo………….. 45
IMAGEM 15: Anaceli Vieira no "Apoio de lombar" no tecido aéreo………..………...45
IMAGEM 16: Júlia Albuquerque na figura do "Escorpião" no tecido aéreo………....46
IMAGEM 17: Anaceli Vieira e Bárbara Borges na figura do "Portô" no tecido
aéreo………………………………………………………………………………………... 46
IMAGEM 18: Brainstorming do processo (Novembro de 2021)................................ 49
IMAGEM 19: Pôr do sol laranja (Junho de 2021)......................................................50
IMAGEM 20: Código QR Code para acesso aos conteúdos da página 50………… 51
IMAGEM 21: Círculo cromático…………………………………………………………..51
IMAGEM 22: Organograma da psicologia das cores utilizadas………………………52
IMAGEM 23: Esboço inicial do traje……………………………………………………..53
IMAGEM 24: Inspiração para o traje, peça do desfile de Primavera 2021 da Simone
Rocha na Londres Fashion Week……………………………………………………….. 53
IMAGEM 25: Inspiração para o traje aéreo……………………………………………..54
IMAGEM 26: Inspiração para o traje, peça do desfile de Primavera 2016 de Noir Kei
Ninomiya…………………………………………………………………………………….54
IMAGEM 27: Figurino de Ginástica Rítmica…………………………………………… 55
IMAGEM 28: Código QR Code para acesso aos conteúdos da página 54………… 55
IMAGEM 29: Croqui final do figurino…………………………………………………….57
IMAGEM 30: Código QR Code para acesso aos conteúdos da página 57………....57
IMAGEM 31: Resultado final do traje de cena………………………………………….63
IMAGEM 32: Resultado final do figurino no tecido aéreo……………………………..63
IMAGEM 33: Detalhe das costas do figurino…………………………………………...64
IMAGEM 34: Detalhe da ombreira/cauda do traje…………………………………….. 64
IMAGEM 35: O traje de cena e o diário de bordo……………………………………...65
IMAGEM 36: Código QR Code para acesso aos conteúdos da página 65……...….65
IMAGEM 37: Maquiagem em tons degradê por Alexandra French…………………. 67
IMAGEM 38: Maquiagem em tons degradê por Alexandra French…………………. 68
IMAGEM 39: Maquiagem em tons laranja e vermelho por Alexandra French……...68
IMAGEM 40: Maquiagem em reticências de Euphoria por Donny Davy…………….69
IMAGEM 41: Resultado final da maquiagem por André Martins……………..………69
IMAGEM 42: Resultado final da maquiagem vista de meio perfil…………………… 70
IMAGEM 43: Resultado final da maquiagem focando na pálpebra…………………. 70
IMAGEM 44: Código QR Code para acesso a videodança Memórias Tecidas……. 75
NOTAS DA AUTORA

Caro leitor, o presente trabalho dá-se como um fechamento de um ciclo


importante em minha vida, o qual fico imensamente feliz em tê-lo aqui
compartilhando um pouco dessas memórias.
Ao pensar em como poderia fazer da sua leitura uma experiência imersiva,
afinal de contas estamos lidando com a contemporaneidade, resolvi criar alguns QR
Codes que estão dispostos ao longo do texto e que lhe darão acesso a outros
textos, mídias e partes importantes do meu diário de bordo, do meu diário de
memórias, que compõem a construção deste trabalho.
Não é sempre na vida que temos a chance de adentrar no diário de alguém.
Um diário, em minha humilde opinião, contém as partes mais íntimas e complexas
de uma pessoa, talvez muito do que esteja disposto nele não faça tanto sentido para
você, mas a maior vantagem de não sermos seres iguais é poder perceber que
cada um enxerga o mundo de uma forma única. Permitir-se entender um pouco do
outro, para mim, é uma das maiores qualidades do ser humano. Por isso, peço que
seja gentil com estas memórias, que você se permita "afetar-se" e abraçar um
pouco mais sua própria vulnerabilidade, assim como estou fazendo neste momento.
Caso você também queira compartilhar suas percepções, questionamentos e
suas próprias memórias, o e-mail memoriastecidas@gmail.com estará sempre
aberto para essa troca, fique à vontade!

Os QR Codes situados ao longo do texto lhe darão acesso aos arquivos que
compõem o processo criativo e diário de bordo/memórias deste trabalho, estes
estão hospedados no Google Drive.

Para acessar:

● Baixe um aplicativo leitor de QR no seu celular ou caso seu aparelho já


possua esta função, abra apenas a câmera;
● Aponte a câmera do seu celular para a cada QR Code disposto na tela;
● Pronto! O dispositivo o levará imediatamente para os arquivos hospedados
no Drive.
Há ainda um QR Code master que dá acesso de uma vez só a todos os
arquivos hospedados no Drive, este aqui:

IMAGEM 01: Código QR Code Master para acesso a todos os conteúdos do projeto. Fonte Drive
<https://drive.google.com/drive/folders/1KV_KMm8xWG5hiFNUyDqRFO9SRBEyt_aX?usp=sharing>.

Caso prefira, em vez de acessar por meio dos QR Codes, você pode utilizar
os links abaixo de cada um, esses dão acesso aos arquivos da mesma forma.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO…………………………………………………………………………….. 16
CAPÍTULO I - A Memória como elemento de criação ………………………………… 18
CAPÍTULO II - Diálogos da contemporaneidade: arte, dança, traje de cena e tecido
aéreo………………………………………………………………………………………... 28
2.1- Uma breve contextualização sobre o Tecido Aéreo…………………………..40
CAPÍTULO III - Diário de criação………………………………………………………... 48
3.1-Das memórias que "afetam" o traje…………………………………………….. 48
Cor…………………………………………………………………………………...50
Forma………………………………………………………………………………..52
Volume……………………………………………………………………………… 58
Texturas e materiais………………………………………………………………. 58
Funcionalidade…………………………………………………………………….. 59
Movimento…………………………………………………………………………..60
3.2-Construindo o diário de memórias……………………………………………… 61
Maquiagem………………………………………………………………………… 66
3.3- Memórias tecidas na tela: processo criativo da videodança…………………71
Filmagem…………………………………………………………………………… 71
Edição………………………………………………………………………………. 73
CONSIDERAÇÕES FINAIS……………………………………………………………… 75
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS…………………………………………………….. 78
INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objeto de estudo a memória como princípio


disparador para a criação de um traje de cena para Dança Contemporânea
Circense. O desejo de pesquisar sobre traje de cena/figurino na dança surgiu logo
no início do curso de Licenciatura em Dança da UFRN, em 2016. Acredito que, na
verdade, ele já existia antes mesmo de ingressar na universidade, e, ao longo das
disciplinas, fui percebendo como muitas vezes o figurino não recebia a devida
atenção nos próprios trabalhos coreográficos ou até mesmo na relação dos
pesquisadores de Dança com figurino, percebo essa relação ainda muito frágil.
Em 2017, a partir do Componente Curricular Cenotec II: Figurino,
ministrado pelo professor Dr. José Sávio Oliveira de Araújo com colaboração do
professor Dr. Ildisnei Medeiros Silva, pude adentrar no âmbito de diversas
descobertas, saciar algumas dúvidas quanto aos processos de pesquisa da área,
mas, principalmente, estar diante de ainda mais questionamentos. Dessa forma,
pude criar uma afinidade ainda maior com este campo de pesquisa e reafirmar meu
desejo de trabalhar nela.
Apesar de ser uma qualidade fundamental da Cenografia, o traje de cena
ainda é um campo de pesquisa em desenvolvimento. A quantidade de produções
bibliográficas relacionadas à área ainda é incipiente, tanto a nível nacional como
internacional, sobretudo do figurino relacionado à dança. Desse modo, a pesquisa
faz-se necessária por contribuir com o acervo bibliográfico sobre Traje de Cena,
bem como por agregar ao repositório de estudos do Curso de Licenciatura em
Dança da UFRN, tendo em vista que até o presente momento encontram-se poucos
trabalhos publicados relacionados ao figurino para dança.

Não há ainda um levantamento brasileiro preciso de quantos trabalhos


acadêmicos ou publicações tratam exclusivamente do tema traje de cena, ou
figurino, como se costuma utilizar de forma mais generalizada. [...] Dentre as
publicações comerciais brasileiras, os livros sobre trajes de telenovelas
parecem ultrapassar os de indumentária teatral, que ultrapassam os de
dança, de circo, de circo-teatro, entre outros. E o que dizer dos livros sobre
conservação de trajes de cena? Ainda são bem raros. Mas estamos
crescendo, e com fôlego! [...] (VIANA, 2012, p.10).

A pesquisa surgiu em meio à pandemia mundial de SARS-CoV-2 (Covid-19)


(2020-2021) por meio de contribuições significativas dos Componentes Curriculares
Laboratório de Criação Coreográfica II e Dança, Afrodescendência e Questões

16
Contemporâneas Espetaculares. Neste a profa. Dra. Maria de Lurdes Barros da
Paixão propôs trabalharmos com nossas memórias e ancestralidades, as quais me
possibilitaram perceber o quanto a memória e a afetividade estão ligadas aos meus
processos de criação, seja na dança, seja no figurino, seja no fazer artístico de
modo geral, além de ser uma característica da minha personalidade.
O enclausuramento dos meses iniciais da pandemia permitiu-me mergulhar
ainda mais em mim mesma. Passei a desenvolver como ritual quase diário a
apreciação e registro do pôr do sol da minha janela, uma paisagem que é capaz de
me fazer sentir diversos sentimentos e emoções e de me levar para muitos lugares
da memória. Esse processo de mergulho do ser intensificou-se com a vivência do
Tecido Aéreo, uma prática circense que busquei em outubro de 2020 e que me
possibilitou uma nova reorganização corporal, uma forma que busquei para
trabalhar também o excesso de perfeccionismo para comigo mesma que estava
prejudicando a minha relação com a Dança, assim como os processos criativos.
Nessa perspectiva, esses fatores apresentam-se como os fios condutores
para a pesquisa, que objetiva a investigação da memória e das memórias afetivas
no processo criativo da criação de um traje de cena para Dança Contemporânea
Circense.
Estruturalmente esse trabalho é organizado em três capítulos que nortearão
os caminhos percorridos ao longo do seu desenvolvimento. O primeiro capítulo
intitula-se “A memória como elemento de criação”; nele, apresento conceitos acerca
do entendimento da memória de acordo com a neurociência e os panoramas da
memória em processos criativos na dança, em performances e na área de moda e
traje de cena.
O segundo capítulo intitula-se “Diálogos da contemporaneidade: arte, dança,
traje de cena e tecido aéreo”; aqui, apresento um breve histórico sobre arte pós-
moderna e os impactos desse movimento na Dança Pós-moderna e seu traje de
cena, bem como uma breve contextualização sobre a prática do Tecido Aéreo a fim
de traçar diálogos e reflexões entre tais temáticas e entendimentos da criação de
um traje de cena para a dança contemporânea circense.
No terceiro capítulo, “Diário de criação”, dá-se o ponto chave do trabalho. Ele
descreve o processo criativo do presente projeto, Memórias Tecidas, o qual foi
desenvolvido em três partes: a primeira diz respeito à concepção criativa e as
memórias que afetam a criação desse traje de cena; a segunda corresponde ao

17
diário de bordo/memórias de todo o processo, destacando a fase de confecção do
traje e da elaboração do diário em si; e a terceira diz respeito à videodança, formato
escolhido para apresentação final do processo, que se divide em filmagem e edição,
que serão abordados brevemente.

CAPÍTULO I - A Memória como elemento de criação

A memória é estudada em quase todos os âmbitos do saber como nas áreas


científica, psicológica, filosófica, histórica, antropológica, literária, astrológica, como
também, na arte. Nesta pesquisa, a memória apresenta-se como elemento de
investigação para a criação artística de um traje de cena para Dança
Contemporânea Circense, seja revisitando, seja rememorando a temporalidade,
seja ressignificando as experiências em novas possibilidades.
Ao pensarmos no termo memória, geralmente, de imediato, associamos a
vivências e a lembranças referentes ao passado. Mas o que de fato podemos
entender como memória? E como ela se apresenta no processo criativo? Para isso,
vamos, primeiramente, nos ater ao que o dicionário aponta como seu significado:

1- Faculdade de conservar e lembrar estados de consciência


passados e tudo quanto se ache associado aos mesmos;
2- Aquilo que ocorre ao espírito como resultado de experiências já
vividas; lembrança, reminiscência;
3- Exposição escrita ou oral de um acontecimento ou de uma série
de acontecimentos mais ou menos sequenciados; relato, narração.
(MEMÓRIA) In: DICIO, Dicionário online Oxford Languages. 2022.
Disponível em: <encurtador.com.br/ghlK9>. Acesso em: 07/03/2022.

Outra forma que podemos refletir sobre os conceitos de memória é através de


estudos da neurociência. Segundo Izquierdo (2010), um dos maiores especialistas
em fisiologia da memória do mundo, a memória dá-se como a aquisição,
conservação e evocação de informações, a aquisição pode ser também
denominada aprendizado, já a evocação pode receber os nomes de recordação ou
lembrança. Dessa forma, ele afirma que só podemos avaliar a memória por meio da
evocação, a falta dela chamamos de esquecimento ou olvido; já a falha geral da
evocação de muitas memórias denomina-se amnésia.
Há diferentes tipos de memórias e podemos dividi-las de acordo com sua
duração e função. Quanto à sua duração, temos: a memória imediata (que dura

18
segundos), a memória de curta duração (que dura de 1 a 6 horas) e a memória de
longa duração (que dura muitas horas, dias ou anos). A memória imediata ou de
trabalho é aquela que utilizamos, por exemplo, para lembrar a terceira palavra da
frase anterior tempo suficiente para entender o resto da frase e início da seguinte,
mas logo se perde para sempre. Assim, Izquierdo explana:

A memória de trabalho é extraordinariamente fiel, mas muito breve.


Permite-nos funcionar como seres vivos fazendo algumas coisas e evitando
outras. É nosso agente de reconhecimento ou de susto, quando necessário.
Mas é fugaz. Se persistisse mais do que dura, nossa vida seria ou
alucinatória ou impossível. O esquecimento rápido é sua propriedade
fundamental. Permitir esse esquecimento para não ficar aturdido e inundado
pelo excesso de informação com que a vida moderna nos azucrina é uma
arte. (IZQUIERDO, 2010, p. 33).

No que diz respeito ao conteúdo ou à função, temos: as memórias de trabalho


(que não deixa arquivos permanentes), memórias declarativas (eventos, fatos,
conhecimentos) e as de procedimentos ou hábitos (que adquirimos e evocamos de
maneira mais ou menos automática, como andar de bicicleta, tocar um instrumento
e dançar). As dos tipo declarativas são facilmente evocadas, ou seja, podemos falar
sobre elas oralmente, como, por exemplo, contar acontecimentos de uma viagem
passada. Esses tipos de memórias são facilmente formadas, mas também fáceis de
serem esquecidas.
Segundo Izquierdo (2010), os fatos e eventos são guardados no que
chamamos de memória de curto prazo e uma parcela pequena irá se consolidar,
tornando-se memórias de longo prazo. Já as do tipo de procedimentos ou hábitos
são usadas para habilidades, hábitos e comportamentos, portanto, não
conseguimos verbalizá-las e são tarefas motoras, como reflexos e associações
emocionais que não necessitam de percepção consciente, como, por exemplo,
andar de bicicleta. Por serem uma memória que resulta da experiência, são também
chamadas de memória implícita. São difíceis de se formar, necessitando de
repetição, mas também são difíceis de se esquecer, como, por exemplo, voltar a
dançar após muito tempo sem praticar.
Em seu livro "A arte de esquecer" (2010), ele nos propõe uma série de
reflexões sobre o funcionamento de nossas memórias, a curiosidade da obra já é
despertada no próprio título, como assim num livro sobre memória, ele aponta que
esquecer é uma arte? Intrigante não é mesmo?! Mas logo nas primeiras páginas do

19
livro, deparamos-nos com a seguinte citação de James McGaugh (1971) - o maior
especialista em memória da atualidade - "O aspecto mais notável da memória é o
esquecimento".
Tente fazer o exercício de lembrar o que fez na última meia hora, no dia
ontem ou até mesmo nos últimos 2 anos, nos quais vivemos intensamente uma
pandemia global, você vai perceber que boa parte disso virou esquecimento.
Passamos por diversos estágios da vida, da infância, da adolescência, da juventude
e da fase adulta, aprendemos a caminhar, a falar, a escrever, a nadar, a andar de
bicicleta, a dançar, a distinguir sons e cheiros, a sensação tátil dos objetos, a
compreender o que e quem gostamos e amamos, dentre diversas outras
habilidades, mas de fato não nos recordamos o momento exato que aprendemos
cada uma dessas coisas. Dessa forma, confundimos facilmente os diversos
acontecimentos de nossa vida, as pessoas envolvidas neles, as circunstâncias
exatas de cada um. "Cada um de nós é quem é porque tem suas próprias memórias
- ou fragmentos de memórias. Somos rigorosamente aquilo que lembramos, como
disse o pensador italiano Norberto Bobbio (1909-2004).
Mas porque de fato esquecemos? Segundo Izquierdo (2010), esquecemos,
de certo modo, porque os mecanismos que formam e evocam memórias são
saturáveis. Não podemos fazê-los funcionar constantemente de maneira simultânea
para todas as memórias possíveis, tanto as existentes quanto as que adquirimos a
cada minuto, assim, nos obrigando naturalmente a perder algumas memórias
preexistentes, por falta de uso, para dar lugar a outras novas. Se pensarmos nas
roupas que adquirimos ao longo da vida, por exemplo, faz-se necessário nos
desfazermos daquelas que não servem mais, sejam pelas mudanças naturais do
crescimento, seja pelo desgaste da peça ou até mesmo pelo desuso e acúmulo
desnecessário.
Desse modo, de forma breve, podemos dizer que necessitamos esquecer
para podermos pensar, para não ficarmos loucos, para podermos conviver e
sobreviver, pois carregar todas as memórias de tudo desde criança até o fim de
nossa vida, nos mínimos detalhes, seria impossível e insuportável; percebemos
isso, a título de exemplo, com o personagem de José Luis Borges, "Funes, o
memorioso", o homem que não conseguia esquecer, ele tinha uma memória
absoluta e, consequentemente, era incapaz de lembrar.

20
A arte de esquecer é parte fundamental de nossa sobrevivência, e talvez de
nossa própria vida. Só ela nos permite seguir adiante no meio de tantas
adversidades e perigos. Só ela nos permite voltar a sorrir depois da perda de
um ser querido, sacudir a poeira, dar a volta por cima e sair caminhando de
frente pro mundo. Só ela nos permite esquecer rapidamente o efeito
inebriante de uma vitória ou de uma conquista e voltar a ser o mesmo de
todos os dias depois que passar a euforia correspondente, acreditar que
somos Deus é um erro que se paga dolorosamente com o primeiro fracasso.
Por último, há coisas que não podemos esquecer por mais que tentemos:
aprendemos a conviver com elas, ou a extingui-las se forem penosas.
(IZQUIERDO, 2010, p.132).

Beatriz Cerbino (2012) em sua pesquisa afirma que a memória é um processo


de ressignificação elaborado a partir de percepções e questionamentos feitos no
presente. Não se trata, portanto, de resgatar algo deixado para trás, termo
usualmente relacionado ao ato de rememorar, mas de perceber que esta, mesmo
necessitando do passado para sua realização, está ancorada no tempo presente.

Um passado (re)construído a partir de demandas, recursos e processos


seletivos efetuados no presente. Não em um instante antes, muito menos em
um depois, mas sempre no durante, em um tempo que é sempre
rememorado: os trabalhos da memória que, com suas reminiscências,
traços, rastros e vestígios, (re)elaboram constantemente significados e
sentidos. Escolhas realizadas em um determinado momento que guardam
especificidades de sua época, da relação sociocultural que as produziu e,
por isso mesmo, sempre mutáveis, nunca permanentes. (CERBINO, 2012,
p. 188).

Relacionando a memória e a dança, vemos que esses conceitos dispõem-se


inicialmente ao pensar em trabalhos coreográficos que utilizam a memória corpórea
para retomar, recuperar, rememorar ou lembrar uma determinada coreografia, que
possa ter sido produzida algum tempo antes. No entanto, refletimos que o elemento
da memória na dança não se dá somente ao resgatar algo, mas em desenvolver
nossas expressividades contemporaneizadas. Pensando em específico na Dança
Contemporânea, percebemos diversos estudos que trazem estímulos criativos por
meio dos sentidos, pelos cheiros, sons, imagens/registros, degustações no/do
paladar. Destaque, por exemplo, para a tese de doutorado de Leal (2012), que
utiliza a memória olfativa na dança. Em sua abordagem de dança, a sensibilidade
do cheiro está relacionado às lembranças que se reverberam no corpo, dessa
forma, com o auxílio de aromas e essências, conseguimos resgatar uma memória
experienciada no corpo.

21
Penso na relação com o sentido olfativo de forma intensa, um cheiro me
proporciona não somente resgatar uma sensação corporal, um movimento, mas
também a memória por completo de um determinado dia ou momento desde as
pessoas que vi e conversei, os lugares que fui ou estava e às vezes até mesmo o
que vesti, nem sempre são sensações boas, um cheiro é capaz de me levar a
lugares do subconsciente que muitas vezes não queria mais lembrar. No terceiro
episódio da minissérie Halston, da Netflix, intitulado "O doce sabor do sucesso",
podemos perceber de uma forma mais poética como ocorre o processo de criação
de um perfume e de como os cheiros estão diretamente relacionados às nossas
memórias. Na série, a personagem perfumista Adele, interpretada pela atriz Vera
Farmiga, explica para o protagonista Halston, interpretado pelo ator Ewan Mcgregor,
que geralmente para se criar um perfume usa-se 3 notas: a de base, a de coração e
a de cabeça, também denominadas, notas de fundo, notas do corpo e notas de
saída, respectivamente, segundo a "pirâmide olfativa", presentes no diálogo abaixo:

Gosto de pensar nas notas de cabeça como o presente, são


efêmeras, logo deixam de existir. A do coração é a essência da
fragrância, a alma do perfume, é o que vincula tudo. Mas prefiro
começar pelo fundo, a nota de base. A nota de base é a mais
importante, trata-se do passado. (...) Vou pedir que no processo
você se recorde de coisas da sua vida. Não apenas cheiros, mas de
sentimentos e memórias. (O doce sabor do sucesso. In: HALSTON.
Criação de Sharr White. Direção de Daniel Minahan. Estados
Unidos: Ryan Murphy Productions, 2021. 44 min, son., color.
Temporada 1, ep. 3. Minissérie exibida pela Netflix. Acesso em: 30
de maio de 2021).

Na produção, percebe-se que lidar com essas memórias olfativas não é um


processo fácil e que determinado cheiro pode reverberar de formas muito singulares
em cada indivíduo. Apesar de não fazer uso direto da memória olfativa nesta
pesquisa, esse episódio chamou-me muita a atenção ao pensar neste projeto.
Desse modo, a minissérie Halston foi uma das inspirações pela maneira como são
retratadas essas memórias e a forma como o protagonista doa-se nas suas
criações, estabelecendo, posteriormente, uma grande relação entre a moda e a
dança por meio da sua amizade com a mestre Martha Graham.
Para ampliar ainda mais as possibilidades da memória como dispositivo de
criação, trarei algumas reflexões deste elemento, tanto para a criação em Dança

22
Contemporânea, como também para o Traje de Cena e performances
contemporâneas circenses relacionadas a prática do tecido aéreo.
O viés da memória surgiu nos meus trabalhos, de maneira ainda não tão
consciente, devido ao cenário da Pandemia mundial de SARS-CoV-2 (Covid-19), no
componente curricular Laboratório de criação coreográfica II, ministrado pelas
professoras Dra. Maria de Lurdes Barros da Paixão e Dra. Patricia Garcia Leal, no
semestre emergencial on-line 2020.5, como um resgate às vivências e relações das
quais estávamos privados naquele momento, desde aquilo que havia registrado em
nossos corpos, como também os reflexos de ver tempo e a vida passar pelas
nossas janelas. Durante a trajetória do componente curricular, trabalhamos com a
perspectiva de coreocena (cenas em movimento), segundo os conceitos de
coreocinema de Maya Deren, por meio da videografia juntamente com o recurso
didático-metodológico do diário de bordo – uma espécie de caderno de anotações
onde fazemos registros, um recurso bastante utilizado em criações artísticas,
principalmente de dança. Sobre o diário de bordo, Lima explana:

Este método é utilizado para abarcar várias questões, reflexões,


pensamentos, ideias, experiências-movimento na geração
investigativa para uma possível dança. Ou seja, a cada experiência,
novas informações. (LIMA, 2014, p. 17).

Com base em referências como Cinesfera Errante de Leal (2012), iniciamos


os laboratórios de pesquisa de forma individual com foco no fator espaço
experimentando diferentes cinesferas a partir do espaço interno do corpo para fora,
explorando as relações com nosso espaço externo, da nossa casa: amplitudes,
direções, planos, níveis, tendo como uma indicação da professora Patrícia
concentrarmos-nos em alguns movimentos mais relevantes na experimentação para
trabalharmos a repetição. Dessa forma, tendo como base os textos referenciais,
deveríamos compor um diário de bordo que necessitava conter além das reflexões e
descrição dos movimentos investigados, alguns registros fotográficos deles. Em
seguida, passamos a trabalhar também com o fator fluxo, registrando o processo
por meio de vídeos de 1 minuto juntamente com as atualizações do diário de bordo.
Como conclusão do componente foi solicitado que esse processo que havia
sido iniciado de forma individual fosse trabalhado em grupo, mesclando as
memórias-experiências de cada integrante a fim de compor uma coreocena, a qual

23
foi intitulada "Através da janela". No roteiro, estabelecemos em grupo que os únicos
pontos similares de cada um deveriam ser cenas em diálogo com a janela de casa,
como também focos dialogando com a câmera e cenas da porta da casa de cada
um; assim, os registros que já haviam sido trabalhados ao longo da unidade foram
coreoeditados para dialogar entre si. O resultado foi surpreendente, mesmo sem ver
antecipadamente o vídeo de cada um, o sentimento de enclausuramento era
recíproco e, consequentemente, os movimentos tiveram uma ligação estética e
afetiva intensa. Destarte, Leal (2012) conceitua que a memória apresenta-se como
potencialidade no processo criativo em dança de modo que:

A memória pode propor relações múltiplas com o espaço, com a


transformação do tempo, provocando experimentações de
aproximação e distanciamento da dança, entendendo os
fenômenos da mente, discutir, configurar, transformar. A utilização
da memória, aproximando polaridades entre o novo e velho,
estrutura e tema, repetição e transformação, neste contexto,
apresenta-se como possibilidade de oposição à superficialidade
consumista e, por vezes, clichê, de padrões de movimento e
resoluções estéticas, e permite a transformação da pesquisa de
linguagem que permanece. (LEAL, 2012, p.60).

Esse mergulho em nossas memórias, sentimentos e experiências do período


de enclausuramento tornou-se ainda mais intenso com os processos vividos no
componente curricular de Dança, Afrodescendência e Questões Contemporâneas
Espetaculares em 2020.2 no qual a profa Dra. Maria de Lurdes Barros da Paixão
nos propôs trabalharmos com nossas memórias e ancestralidades. Tendo como
base os princípios estéticos das danças de matrizes africanas, a saber: polirritmia,
policentrismo e corpo espiralado.
Escrever sobre a rotina sempre foi um hábito constante para mim, mas foi
decorrente desses trabalhos, por exemplo, que senti a necessidade de recuperar
mais fortemente o hábito de escrever diariamente, um processo que me permitiu
enxergar mais ainda como a memória e a afetividade é uma característica muito
intensa da minha personalidade e como estas estão ligados aos meus processos de
criação, seja na dança, no figurino, no fazer artístico de modo geral. Lima (2014)
aponta acerca da relação da memória no processo criativo em dança que:

24
Compreendemos que as interfaces da memória podem causar e/ou
inovar para o contexto da dança, enquanto propõe ao corpo em sua
totalidade diferentes formas de criação em Dança Contemporânea.
Então, podemos investigar ações que possibilitem a análise no
processo de criação a partir de memórias da infância, por exemplo.
(LIMA, 2014 p.20).

Uma das maiores referências da Dança Contemporânea na atualidade que


utiliza a memória como estímulo em seu processo criativo coreográfico é a ilustre
Pina Bausch (1940-2009), em seu método Dança-Teatro. Segundo Lícia Sanchez,
bailarina, professora e pesquisadora e primeira brasileira especializada em
dança-teatro no Tanztheater Wuppertal, na Alemanha sob direção de Pina e
estudiosa da memória e do trabalho dela, afirma que o processo bauschiano parte
de uma matriz-estímulo-pergunta (ação motriz), da qual pode nascer a
ação-movimento do canto, da fala, da música, do cenário, compondo uma
dramaturgia e sugerindo uma “arte total”. Para ela, não interessava como as
pessoas moviam-se, mas o que as movia, comovia, o plano das emoções. Seu
trabalho não era realizado por atores que dançam, mas por participantes capazes
de utilizar o corpo em sua totalidade expressiva.

Quando Bausch nos faz uma pergunta-estímulo-tema, seguramente


ela sabe o que quer, nada é feito fortuitamente. Mesmo quando
ainda não se pode delinear a direção em que a peça irá
desenvolver-se, as perguntas buscam, giram em torno de uma
coisa determinada. Tomando como referência a prática da UFBA,
diríamos que as respostas no processo bauschiano não constituem
uma improvisação, mas reconhecemos que o conceito de
improvisação é bem amplo (...). Após ser dado o estímulo-tema,
devemos buscar a ideia em associações com esse estímulo, de
maneira que seja construído um quadro costurado, com começo,
meio e fim, e anotado todo o percurso nos mínimos detalhes. Caso
esse quadro seja escolhido para integrar a peça, ele deverá ser
repetido fielmente, ainda que sujeito às transformações de Bausch.
(SÁNCHEZ, 2010, p.53).

No procedimento bauschiano da Pergunta-Resposta, a pergunta é o estímulo


propriamente dito, já a resposta é a interpretação do intérprete a partir dele. Desse
modo, temos a questão “como posso realizar isto?” A resposta dá-se como o que se
consegue realizar a partir do tema proposto.

25
De acordo com Sánchez (2010, p. 92-98), o que põe a memória em
movimento é a intenção de criar, expressão do pensamento artístico vinculado a um
estímulo. Dessa maneira, uma motivação externa pode ser apenas uma palavra ou
uma pergunta, mas é necessariamente o primeiro passo para desencadear a
dramaturgia da memória. A memória é concebida não só como uma aptidão para
lembrar, mas também como um conjunto de lembranças; um arquivo, mas um
arquivo vivo, porque essa Dramaturgia da Memória é entendida como um processo
criativo. Nesse caso, o processo criativo ocorre por meio da memória via
pensamento, que não é somente involuntária, mas espontânea. Por conseguinte, a
dramaturgia seria o processo consciente de manipular essas lembranças vividas
“compondo sequências de ações com significado da interpretação sobre um tema”.
Em sua experiência, no Tanztheater, pode-se perceber que não existe uma fórmula,
nem regras estabelecidas para o processo coreográfico de Bausch encontrando,
assim, alguns princípios básicos para ele:

Fui juntando, então, uma a uma, as peças que foram recolhidas de


reações, palavras, gestos, frases, recomendações e comentários
feitos por Bausch no decorrer do processo. E para poder chegar a
conclusão acerca do que tinha observado, os dados levantados
foram traduzidos e classificados de acordo com o que considero
princípios básicos desse processo: Ser você mesmo; Ser
espontâneo evitando atuação; Ser justo ao tema sem ser óbvio;
Evitar intelectualizar suas emoções; Ser simples; Evitar banalizar;
Não querer mostrar o que quer dizer; Não ser abstrato; Não
caricaturar.
[...] O que importa para Bausch em seu processo está por trás de
cada recomendação sutilmente colocada no momento em que
trabalha com criadores-atores-dançarinos; em cada olhar, em cada
gesto, em cada respiração envolvendo-os em uma experiência
sensível, portadora de sentidos, de significações que se expandem
dialogando com a inteireza da corporeidade de cada um. Uma
perspectiva sensível, “existo, sinto, logo penso”. (SÁNCHEZ, 2010,
p. 61-68).

Em relação à (re)criação de trajes acerca da memória, temos como exemplo


o trabalho de Kuhl e Prudente (2016) no projeto “Memórias Vestidas -
Re-construção de Indumentária”. Por meio de uma pergunta norteadora: “Que
histórias vocês vestem?”, tendo como objeto norteador uma roupa usada em um
momento marcante na vida delas, as alunas aprofundaram sua pesquisa por meio
de imagens redesenhando esse traje. "Pelo fato dos objetos serem algo tão

26
importante na materialização da memória, trabalhamos com uma pesquisa
envolvendo retalhos de tecido, desenhos, recortes de revistas, objetos afetivos,
músicas e, principalmente, imagens e fotografias familiares de cada participante”.
(PRUDENTE e KUHL, 2016, p. 81). Lidar com isso, muitas vezes, pode nos levar a
memórias de pessoas próximas que já se foram, como acabou acontecendo com
muitas alunas.
Nessa perspectiva, a memória nas diversas áreas explanadas anteriormente
apresenta-se como um dispositivo com grande potência criativa e de investigação,
do nosso corpo, de nós mesmos, da nossa história, do mundo à nossa volta, um
campo, a meu ver, com potencial ainda não totalmente explorado.
Percebo como semelhança em ambos os métodos e processos apresentados ao
longo do capítulo, a utilização de uma pergunta/estímulo em relação à memória,
como um fator norteador e provocador, vamos criar algo a partir de determinada
memória, mas de qual modo? É notório que a resposta para tal indagação é
extremamente individual. Tendo em vista que a memória apresentada por Izquierdo
tem como princípio o esquecimento, o uso desse é fundamental para o processo de
resgate daquela memória, movimento, de nossa história e ancestralidade.
No processo criativo, que será melhor explanado no capítulo 3, o método da
pergunta-estímulo-tema proposto por Sánchez (2010) foi fundamental como
direcionamento para adentrar nas minhas memórias e mergulhar ainda mais na
minha história. Partindo dos processos emocionais vividos no isolamento, estes me
levaram a uma maior conexão comigo mesma, bem como a criação de pequenos
rituais como assistir ao pôr do sol da minha janela, quase diariamente e registrá-lo
sempre que possível.
Tais registros viraram uma coletânea de pôres-do-sol, salvo nos destaques do
meu Instagram, a qual revisito quando sinto a necessidade. É uma paisagem que
de fato, me afeta intensamente, me leva a diversos lugares da memória e este foi o
fio condutor, que me levou à um emaranhado de memórias e sentimentos como o
medo de perder minha mãe pelo câncer, que se iniciou um pouco antes da
pandemia e nela se intensificou e a prática do Tecido Aéreo, que me possibilitou
novos olhares pro movimento, criação e reconexão com a minha dança.
Vale salientar que o processo de lidar com as memórias é muito delicado, em
específico este foi um processo intenso, tocando em áreas muito íntimas, no

27
entanto, foi libertador, transformar e ressignificar essas memórias e afetações numa
criação artística.
Não sabemos previamente como a pergunta/estímulo/tema pode reverberar em
cada pessoa, podendo acionar gatilhos emocionais intensos, uns podem ter
facilidade, outros dificuldade extrema. Estar diante de quem somos e o que vivemos
gera muito incômodo, por mais simples que possa ser a questão, é importante que
ao iniciar tal processo o coreógrafo/diretor/professor tenha empatia, paciência e
atenção para que este ocorra da melhor forma possível.
Em relação ao ensino, a memória é capaz de nos levar a um processo
didático-metodológico, bem como do fazer artístico sensível a ser desenvolvido em
trabalhos artísticos na escola, pois possibilita uma aproximação do
aluno/interprete-criador de suas próprias memórias e ancestralidades,
consequentemente, de sua própria história de vida, afetos e contexto social
fortemente presentes nos diferentes saberes e fazeres artísticos. Tal fato,
demonstra-se carente atualmente; de certo modo, decorrente da globalização e da
vida cotidiana em constante aceleração. Cada vez mais, faz-se necessário voltar-se
o olhar para dentro. Dessa maneira, os conceitos e processos apresentados aqui
servem como um pontapé para os diálogos que virão a seguir.

CAPÍTULO II - Diálogos da contemporaneidade: arte, dança, traje de cena e


tecido aéreo

O que é Dança pós-moderna ou contemporânea ou o que vem a ser esta?


Essa tem sido uma das questões mais recorrentes entre os pesquisadores da área
na atualidade, temática por exemplo que Thereza Rocha questiona ao longo de toda
sua obra “O que é dança contemporânea?'', mas de maneira ainda inconclusiva
para tal definição, “por tratar-se ainda de um movimento contemporâneo, sua
análise está sempre sujeita a modificações importantes”. Nesse sentido, o presente
capítulo apresenta uma breve contextualização sobre a arte pós-moderna e os
impactos que este movimento propiciou nessa dança pós-moderna contemporânea,
que servirá de base para os diálogos entre essas, o traje de cena/ figurino e o tecido
aéreo.

28
Os séculos XIX e XX foram marcados pelo crescimento de vários movimentos
artísticos com destaque para o modernismo na arte e na filosofia. A partir dos anos
cinquenta, novas transformações passam a ocorrer e vemos a instituição de outro
movimento, o pós-modernismo. Seu prefixo “pós” já traz consigo diversas questões
e contradições, “não nega seu antecessor e também não significa uma continuação
literal, ao mesmo tempo uma dependência e independência ao seu antecessor"
(SILVA, 2005, p.15). Silva diz:

A arte contemporânea não é uma arte cujas características possam


ser apontadas com facilidade porque há uma imensa variedade de
estilos, permeada por uma interdisciplinaridade evidente, inclusive
emprestando de áreas não artísticas. Podem interagir hoje na feitura
de uma obra artística técnicas diversas e díspares, ou elementos de
artes plásticas, teatro, cinema, matemática, literatura, engenharia,
física, dança, enfim, conhecimentos das mais variadas esferas.
[...] Não há mais fronteiras entre as artes e elas podem interagir
pacificamente num mesmo acontecimento. O circo pode incluir
elementos eruditos, a música para um balé pode ser um rock, a
música de vanguarda pode referir-se ao gospel, a cultura de elite
mistura-se com a cultura popular com facilidade. (SILVA, 2005, p.17
e 69).

Linda Hutcheon, em sua obra Poética do Pós-Modernismo (1991), analisa, de


forma abrangente, este fenômeno cultural em curso utilizando exemplificações na
música, no cinema, na literatura, na pintura, na fotografia, na dança e,
principalmente, na arquitetura, julgando este como o melhor exemplo. "A arquitetura
é a arte que escreve com mais clareza o espírito de seu tempo, é acessível e visível
a todos e a cidade talvez constitua o elemento mais característico de uma cultura"
(HUTCHEON 1991 apud SILVA, 2005, p.72). Segundo Hutcheon (1991), o
pós-modernismo "é um fenômeno contraditório, que usa e abusa, instala e depois
subverte, os próprios conceitos que desafia".
Para ela, a paródia surge como uma marca definitiva desse movimento, no
entanto, em vez da definição de paródia característica do século XVIII, em que há
grande presença de humor e escárnio, o qual apenas ridiculariza e irrita o objeto, no
pós-modernismo, a paródia se dá, então, como redefinição, repetição, mudança e
continuidade, dispondo de ironia mas nunca de vulgaridade.
Silva (2005), afirma que, ao contrário do que muitos tratam sobre o
pós-moderno, sendo "um intervalo do que está por vir, uma negação ao modernismo
ou uma mera continuação do mesmo", o pós-modernismo é um movimento novo e

29
único, de características próprias e traços evidentes, "embora não negue qualquer
corrente anterior é oriundo de um tempo cujas estruturas de pensamento,
sentimento e comportamento divergem radicalmente daquelas do modernismo"
(SILVA, 2005, p. 76).

Ressaltamos como características mais significativas do pós-modernismo a


pluralidade de significados, de discursos, de processos e de produtos; a
invenção como reestruturação; a referência ao passado; a presença da
paródia e da ironia; a não negação de correntes artísticas anteriores; as
mudanças nas configurações de tempo e espaço; a velocidade da criação
artística e tecnológica de informação; a fragmentação, multiplicação e
descontinuidade da imagem; a interdisciplinaridade entre as artes e além das
artes; o processo artístico visível no produto; a rejeição da narrativa linear; a
abolição entre as fronteiras da vida e da arte; a abolição entre as fronteiras
da cultura erudita e cultura popular; a nova estrutura de pensamento,
sentimento e comportamento artístico e uma ampla liberdade de criação.
(SILVA, 2005, p. 77).

Ao tratar de tais transformações na Dança, Silva (2005, p. 95) complementa


que a Dança Moderna inicia sua trajetória no início do século XX indo contra a
insipidez e academicismo da dança clássica, tendo como pioneiras mulheres
extraordinárias como Isadora Duncan, Loie Füller e Ruth St. Denis, dando espaço
para as gerações futuras no eixo americano como Martha Graham, Doris Humphrey,
José Limón, Paul Taylor, Alvin Nikolais entre muitos outros, destaque também para
os pioneiros no eixo europeu alemão como Rudolf Von Laban, Mary Wigman e Kurt
Joss.
Em meio à Primeira Guerra Mundial, o mundo passava por inúmeras
transformações, métodos, vocabulários de movimentos e muitas teorias foram
escritas acerca da dança, já não era mais possível continuar dançando sobre um
mundo irreal, mágico de fantasias; desse modo, fez-se necessário trazer para o foco
a condição humana, o indivíduo e suas emoções.
A criação coreográfica moderna desenvolveu-se a partir do individual de cada
artista, tendo características similares entre si e que acabaram definindo traços
dessa linguagem moderna da dança, são elas: o uso do centro do corpo, os pés
descalços em vez das sapatilhas de ponta, o uso do chão de forma mais ativa no
lugar de um mero suporte, a utilização da dramaticidade oriunda do movimento, da
temática e dos personagens em oposição ao superficial e a pantomima do balé
clássico, além do uso da música de maneira não literal.

30
No âmbito dos figurinos, a Dança Moderna foi responsável por intensas
transformações. Autores como Barbieri (2017), Vieira (2015) e Silva (2005) apontam
como as mais notáveis o abandono do uso dos espartilhos, sapatilhas de pontas e
tutus românticos do balé clássico, dando espaço para peças mais leves que
buscavam dialogar com o corpo do intérprete e o movimento, a título de exemplo,
vale citar: as túnicas transparentes em estilo grego, uso de tecidos e peças leves
como cachecol eram característicos de algumas obras de Isadora Duncan como a
imagem 2 nos apresenta; os longos tecidos esvoaçantes manipulados por bastões
em dinâmica com a luz propostos por Loie Fuller, como a imagem 3 nos mostra e
provoca formas sinuosas no ar remetendo a ideia do bater de asas; o longo tubo de
tecido stretch deixando amostra apenas pés, mãos e cabeça utilizado por Martha
Graham em Lamentation como trazido na imagem 4 que auxilia na retratação da dor
e do sofrimento causando a lamentação, dentre outros. A seguir, trago algumas
imagens dos exemplos de figurinos citados para um melhor apreciação e
entendimento:

IMAGEM 2: Tipo de figurino usado por Isadora Duncan, como o uso de um cachecol, c.1918.
Artista anônimo.
Fotografia por: Fine Art Images/ Heritage Images/Getty Images.

31
IMAGEM 3: Figurino de Serpentine Dances de Loie Fuller.
Foto por: Victoria e Albert Museum, London.

IMAGEM 4: Figurino de Lamentation de Marta Graham, bailarina Peggy Lyman Hayes.


Fotografia por Martha Swope.

O pós-modernismo na dança chega com os objetivos de negar toda a


dramaticidade da dança moderna e artificialidade, além do virtuosismo do balé
clássico e investigar o movimento sem o compromisso com o enredo e
caracterização de personagens. Experimentação e improvisação tornam-se

32
processos característicos deste movimento. Merce Cunningham, discípulo de
Graham, é considerado um dos pioneiros da dança pós-moderna contemporânea,
responsável por diversas inovações tecnológicas, sendo também considerado o
precursor da videodança e reformas conceituais ideológicas na dança afirmando por
exemplo que:

Qualquer movimento pode ser material para a dança; qualquer


procedimento pode ser um método válido de composição; qualquer
parte ou partes do corpo podem ser usadas (sujeitas apenas às
limitações naturais); música, figurino, cenário, iluminação e dança
tem sua lógica e identidade, separadamente; qualquer dançarino da
companhia pode ser solista; qualquer área do espaço cênico pode
ser utilizado; a dança pode ser sobre qualquer coisa, mas é
fundamentalmente e primeiramente sobre o corpo humano e seus
movimentos, começando pelo andar. (BANES, 1980, p.6).

A coreografia de Cunningham era gerada por métodos de montagem


inovadores e processos criativos pelo acaso e indeterminismo. De acordo com Silva
(2005, p.107), "sua coreografia era autônoma, livre da teatralidade e independente
da música", ela destaca que um de seus métodos de criação consistia na escolha
da ordem da sequência coreográfica a ser apresentada por meio do cara-e-coroa,
sorteios aleatórios ou um diagrama do I Ching. Seus conceitos chave tratavam da
liberdade criativa e de uma intensa experimentação. Acredita-se que esses métodos
contribuíram para a inauguração dos happenings e performances que surgiram em
simultâneo no final da década de cinquenta em Nova York.

O que estava acontecendo em New York naquela época era tão


excitante que as pessoas interessadas em dança e performance
estavam de alguma maneira misturadas com as pessoas de todo o
mundo artístico como pintores, escultores, escritores e até gente de
circo! (risos). No final da década de cinqüenta, estava acontecendo
uma série de performances na cidade chamadas de happenings,
que não eram propriamente espetáculos de dança, mas eram
shows onde estavam juntas várias manifestações artísticas [...]
Pensando bem, foi uma grande confusão (risos). Penso, hoje, que
o que colocava aquelas pessoas juntas era simplesmente uma
vontade de reagir a qualquer coisa que fosse bonitinha,
convencional ou tudo aquilo que estivesse em voga no momento.
Esses artistas estavam tão imbuídos com esse propósito e tão
dentro do seu próprio mundo, que a platéia para esses happenings
era formada apenas por eles mesmos, seus amigos e alguns
curiosos. No entanto, eles estavam fazendo algo tão novo e
diferente que isso começou a chamar a atenção da mídia. (DUNN
1999 apud SILVA, 2005, p.107).

33
Essas inúmeras transformações levaram artistas a intensas reflexões acerca
da naturalização dos movimentos, trazendo para o palco algo mais orgânico e
menos virtuoso, o que gerava questionamentos como "será que de fato isso é
dança?", porém a resposta vinha de imediato em "se é movimento, qualquer coisa é
válida". Consequentemente, o contemporâneo na dança apresenta-se por uma
variedade de estilos e, principalmente, métodos de criação, o que torna tão
complexa a sua definição. No entanto, vale ressaltar que, neste trabalho, não estou
me comprometendo a estabelecer tal definição, esta é uma discussão que se
mantém fértil até hoje, mas pretendo apontar e criar diálogos e reflexões sobre este
movimento artístico. Silva contribui:

A dança podia ser montada ao acaso, surgindo de improvisações em


cena aberta; danças geradas a partir de tarefas cotidianas e
movimentação funcional; danças criadas a partir de scores
previamente concebidos; de brincadeiras infantis; de atletismo;
danças construídas a partir de outras danças; de livre associações;
de rituais; de jogos; de literatura; de artes visuais; de situações
comportamentais; da manipulação de objetos; enfim, de um universo
absolutamente amplo e permissivo. Não havia homogeneidade
estilística ou temática. (SILVA, 2005, p.109)

Importante também destacar as criações pós-modernas americanas a partir


dos anos sessenta de diversos artistas e coreógrafos como Yvonne Rainer, Trisha
Brown, Steve Paxton, William Forsythe, Lucinda Childs, Douglas Dunn, David
Gordon, Twyla Tarpe, Laura Dean, dentre muitos outros. Já no eixo europeu, temos
os notáveis trabalhos de Anne Teresa de Keersmaeker, Marina Abramovic, Alain
Platel, Pina Bausch, entre outros artistas.
Como dito anteriormente, a dança pós-moderna contemporânea está em
curso, é reflexo imediato do atual mundo e tempo, a plateia vê no palco uma
representação de sua própria vida, do seu cotidiano, um entrelace entre a arte e
vida, não mais a fantasia dos balés, tampouco a expressão exagerada da
dramaticidade humana do modernismo na dança, de modo que as obras
coreográficas possibilitem uma maior identificação com o público. Baxmann
conceitua:

[...] A dança de hoje - nunca completamente dança pura-é uma


estética que atravessa constantemente as fronteiras, que necessita

34
e demanda uma nova cultura no sentido de olhar além dos códigos
da percepção já estabelecidos. Nessa conexão, o atual entusiasmo
pela dança oscila entre dois pólos que são, na realidade,
complementares e até certo ponto interligados. De um lado está a
procura por regras que permaneçam no retorno ao mito, e a utopia
que vê a base para uma "uma vida natural" no corpo e nos seus
ritmos. De outro lado, está a desconstrução da expressão física, que
questiona a regra do sujeito sobre o seu corpo, apresentando-o
como uma construção cultural [...] O prazer especial da platéia é que
ela pode rearrumar o quebra-cabeças de imagens e fazer suas
próprias conexões, de acordo com sua referência ou cegueira. Nada
é arbitrário, no entanto. É uma festa para os sentidos, uma delícia
estética - como, por exemplo, a visão de um palco coberto de terra,
folhas secas ou cravos vermelhos, que provoca na platéia até a
vontade de dançar ali. (BAXMANN, 1990, p. 56)

À medida que a dança contemporânea possui essa pluralidade criativa, o traje


de cena desse movimento caracteriza-se da mesma maneira. Das transformações
iniciadas a partir do modernismo, o figurino da dança pós-moderna "possui
referências diversificadas que não encerram um único conceito ético ou estético",
afirma Guerreiro (2016). O traje de cena, assim como as outras visualidades da
cena (cenário, maquiagem e iluminação), é uma linguagem produtora de sentido,
"por sua potência de traduzir e transmitir signos e sentidos torna-se um elemento
dramatúrgico, a partir da ação que é construída na cena (GUERREIRO, 2016, p.
13).
Para elucidar minha reflexão, trago a seguir exemplos de algumas companhias
e grupos em torno do mundo que servirão como objetos de análise. Percebo, de
maneira geral, a existência de companhias e propostas coreográficas que preferem
utilizar roupas mais próximas do cotidiano, que facilitem o movimento, como, por
exemplo, a Batsheva Dance Company, companhia de dança israelense dirigida por
Ohad Naharin. Há outras que fazem uso do nu como crítica social e efeito
dramatúrgico, outras fazem releituras de figurinos de movimentos anteriores, outras
buscam investigar o uso de diferentes materiais têxteis e cênicos bem como de
tecnologias, de fato as possibilidades são infinitas. Segundo Donatella Barbieri,
ainda há uma certa dificuldade em realizar um estudo do figurino contemporâneo,
seja ele da dança, seja do teatro.
[...] A natureza transitória dos espetáculos ao vivo (live
performances) e os orçamentos reduzidos fazem com que o traje
material geralmente desapareça devido ao desgaste ou que seja
reciclado para outras performances, o que constitui um obstáculo à

35
ampliação da literatura sobre o assunto. Não obstante estejam
sempre presentes nos espetáculos, relativamente poucos
sobrevivem nos arquivos, embora fontes amplas de figurinos,
incluindo desenhos, registros de performances artísticas, impressas
e fotográficas, tenham sido usadas em minha pesquisa. (BARBIERI
apud SACCARDI, 2020, p. 116)

IMAGEM 5: Figurino próximo ao cotidiano utilizado pela Batsheva Dance Company em “Three”
(2005).
Foto por: Laurent Philippe.

36
IMAGEM 6: Figurino em diálogo com a tecnologia em “Biped” de Merce Cunningham (2004).
Foto por: Stephanie Berger.

Há inúmeros exemplos incríveis de trajes de cena do movimento


contemporâneo, destaco, por exemplo, os longos vestidos de baile feitos de tule
utilizados por Pina Bausch em diversas obras suas como Viktor (1968), na qual suas
bailarinas eram erguidas por anéis circenses alcançando voo, “completam o voo
fracassado da frustrada e sofredora bailarina terrestre cuja sapatilha de ponta
promete, mas nunca entrega, o voo real” (BARBIERI, 2017, p. 129).

IMAGEM 7: Figurino de "Viktor" da Tanztheater Wuppertal de Pina Bausch (1986).


Foto por: Foteini Christofilpoilou.

No Brasil, por exemplo, temos o trabalho da Cia de Dança Deborah Colker no


espetáculo Cura (2021), que consiste em uma criação mais íntima e pessoal da
trajetória da coreógrafa, tendo em vista que a temática parte da afetação quanto à

37
doença genética de seu neto Theo – uma condição rara chamada epidermólise
bolhosa1. Dessa maneira, o figurino desenvolvido por Cláudia Kopke busca
representar por meio do uso de materiais como o tricô, uma espécie de couro e
ataduras, a fragilidade da pele causada pela doença. Essa apresenta lesões
profundas que podem produzir cicatrizes semelhantes a queimaduras, fazendo-se
necessário o uso cotidiano de ataduras para evitar uma maior inflamação. Tais
questões são evidenciadas no processo de criação do figurino e podem ser
apreciadas, respectivamente, nas imagens 8 e 9.

IMAGEM 8: Figurino de tricô de “Cura” da Cia Deborah Colker (2021).


Foto por: Leo Aversa

1
Uma doença genética e hereditária rara não contagiosa, que provoca a formação de bolhas na pele
por conta de mínimos atritos ou traumas, se manifesta já no nascimento e não apresenta uma cura.

38
IMAGEM 9: Figurino de bandagem de "Cura" da Cia Deborah Colker (2021).
Foto por: Leo Aversa.

As obras analisadas acima reforçam que o traje de cena da Dança


Pós-moderna Contemporânea apresenta como características significativas: a
liberdade criativa, de modo que o figurino possa fazer referências ao passado, tendo
como inspiração, por exemplo, os ballets ou as obras coreográficas do período
moderno, dentre outras; criar propostas que causem incômodos, críticas, reflexões;
o diálogo com outras áreas e expressões artísticas, como, por exemplo, a moda, o
circo e as artes plásticas, de forma que os limites entre estas não sejam tão visíveis,
a não ser que seja a proposta; o uso de materiais diversos para criação sejam eles
tecidos, malhas, materiais têxteis, ou até mesmo materiais recicláveis, bem como as
tecnologias e principalmente, que qualquer coisa pode servir de inspiração para a
criação do figurino, dessa forma a memória surge como um dispositivo de grande
potência para tal.
Não há uma estética definida para ele, pois segue os princípios do movimento
pós-modernista, discorrido ao longo do capítulo, bebe do passado e do presente,
conecta-se com as diversas estéticas, como, por exemplo, o minimalismo2. Há quem

2
Minimalismo refere-se a uma série de movimentos artísticos, culturais e científicos que percorreram
diversos momentos do século XX e preocuparam-se em fazer uso de poucos elementos
fundamentais como base de expressão. Na moda trata-se um conceito baseado no mínimo, com
roupas atemporais e duráveis, que funcionam durante todas as estações do ano. A ideia é estar bem
vestida, independentemente das tendências mais atuais.

39
diga que vestes mais cotidianas caracterizam o figurino contemporâneo, mas é
importante evidenciar que esta é apenas uma possibilidade dentre inúmeras outras.
Percebo também um maior cuidado com o conforto e adaptabilidade desses
trajes, relacionadas às experiências vividas ao longo da história, nas quais era
notório que a última coisa que o bailarino-intérprete deveria sentir era conforto, já
que as modelagens e os materiais apertavam demais o corpo, havia excesso de
tecidos em alguns casos, que atrapalhava a realização dos movimentos, por isso
acredito que na atualidade muitas companhias e grupos optem por vestes mais
próximas ao cotidiano. Foi, de fato, uma grande revolução para chegar a essa
etapa, por isso, como figurinista-criativa, o conforto é um elemento primordial em
minhas criações, pois também sou bailarina e sinto na pele tais questões. Como o
traje a ser desenvolvido neste trabalho diz respeito à contemporaneidade,
relacionando-se também com a prática aéreo circense do Tecido Aéreo, trago na
seção a seguir uma breve contextualização acerca dessa prática, para que, assim,
possa-se ampliar o diálogo quanto ao figurino contemporâneo na dança, em
específico, na dança contemporânea circense.

2.1- Uma breve contextualização sobre o Tecido Aéreo

Nesta seção, trago uma breve contextualização acerca do Tecido Aéreo, que
servirá como guia para os processos estabelecidos no capítulo seguinte em relação
à concepção e criação do traje de cena e à videodança.
O Tecido Aéreo ou Acrobático é uma modalidade aérea circense, na qual são
experimentadas posições corporais em outras orientações de movimento,
chamadas de figuras, truques ou imagens. É uma modalidade que tem demonstrado
grande crescimento pelo mundo e ocupado diversos espaços como centros
culturais, academias, teatros, escolas, universidades, boates, clubes, etc. não só a
lona do circo. Neste trabalho, trataremos apenas das características e técnicas do
tecido liso.

Tecido Liso consiste num pano de 20 a 26 metros


aproximadamente, fixado pelo meio em estruturas de 5 a 10 metros
de altura aproximadamente. Desta forma, o tecido fica dividido em
duas partes iguais, que serão utilizadas para executar diferentes
travas (ou chaves), figuras e quedas. (BORTOLETO e CALÇA,
2007, p.75)

40
Não se sabe ao certo quem inventou e onde aconteceu seu surgimento, há
desenhos de performances em grandes panos encontrados em festividades do
imperador da China de 600 d. C . Segundo Desiderio (2003), no ocidente, um dos
relatos mais antigos é uma experiência nas décadas de 1920 e 1930, em Berlim
(Alemanha), por alguns artistas que realizaram movimentos com as cortinas de um
cabaré. Outros apontam que foi na França que o tecido circense foi aprimorado
após pesquisas com diferentes materiais (cordas, tecidos, correntes, etc.),
realizadas pelo francês Gèrard Fasoli nos anos de 1980; acredita-se que talvez o
tecido seja uma extensão do trabalho de corda lisa, uma modalidade que
antigamente era de sisal e, atualmente, é de algodão. Bortoleto e Calça dizem:

Neste período, chegou-se à utilização de um material bastante


resistente no comprimento e, ao mesmo tempo, com elasticidade na
largura, o que lhe confere grande plasticidade e leveza. Este
moderno material denomina-se liganete. Possivelmente existam
outras ligas sintéticas que podem ser utilizadas para esta prática. No
entanto, o mais importante é que este material suporte o peso do
praticante multiplicado até quatro vezes (aproximadamente).
(BORTOLETO e CALÇA, 2007, p.73)

Em comparação aos outros aparelhos aéreos circenses como trapézio, lira,


argola olímpica, bambu, corda indiana, o tecido é tido como um dos mais fáceis no
que diz respeito ao processo de aprendizagem, sobretudo porque o material
molda-se ao corpo e se adapta de acordo com as características do praticante, não
necessitando, desse modo, que este possua algum tipo experiência prévia antes de
ingressar na modalidade. Além disso, ele deixa exposto o quão heterogêneo e
singular cada corpo é, nos seus próprios modos de funcionamento, nas suas formas
específicas de lidar com o aprendizado de novas figuras, uns possuindo mais
facilidade, outros não, uns mais leves e outros mais pesados, cada um segue seu
próprio ritmo e jeito de fazer, não existindo limites e exigências quanto à idade ou a
tipo físico; por isso, caracteriza-se como uma prática extremamente plural, mesmo
ocorrendo de modo individual, ela se potencializa pelo apoio e incentivo dos colegas
aerialistas, podendo de início até pode causar um certo receio e insegurança, mas
que logo são superadas.

Nos casos em que se está aprendendo sobre uma nova postura corporal no
tecido, que incluem algum acionamento de estar sem as mãos, segurando-o,
ou mesmo sem os pés, pendurada, é comum perceber em um iniciante da

41
prática uma certa insegurança, que gera medo, pânico ou alguma outra
instabilidade. As emoções, os sentimentos e a cognição são também índices
que compõem o processo e logo interagem na relação, pois são corpo. A
mente é todo o sistema corpo, confluindo em percepções e acionamentos, o
tempo todo, de tal modo que não se tem como ignorá-la ou desmerecê-la na
prática corporal, pois, quando se aborda o movimento, também se está
falando sobre a mente. (AMADO, 2017, p.20)

Dessa forma, o processo de repetição é de extrema importância na eficácia da


aprendizagem, no entanto é importante destacar que não se deve esperar que tais
praticantes reproduzam os movimentos e figuras como uma cópia fiel. É possível
perceber que a forma de aprendizado do tecido aéreo, bem como a visão do corpo
nessa prática, entrelaçam-se com os princípios da dança pós-moderna
contemporânea à medida que “o corpo é um sistema que transita em
complexidades, singularidades e em contínuo estado de mudanças, pois as
informações não param de chegar. É um modo de ver que a dança contemporânea
contempla e que interessa aqui, no pensamento de dança que já é corpo”. (AMADO,
2017, p.39)
O aparelho aéreo solicita “que o corpo esteja o tempo todo variando as
direções de movimento, estando de modo lateral, invertido ou qualquer outra
orientação em relação ao chão, diferentemente da posição bípede” (AMADO, 2017
p.16). Sendo assim, é necessário reconstruir uma noção espacial, tanto de si em
relação ao entorno, como do próprio entorno.

A cada movimento, o corpo é convidado a aproximar partes incomuns,


compreendendo as suas relações, a colocar os pés em um espaço nunca
antes experimentado, a estar com a cabeça em uma orientação diversa
daquela que se tem enquanto corpo que atravessa a rua e se entende no
cotidiano. Na prática do tecido acrobático, o corpo experimenta sensações
do fluxo sanguíneo diferentes, o que por vezes é desconfortável.
Outra especificidade do tecido é a de ser um aparelho aéreo flexível, não
rígido, sem um ponto fixo que o prenda no chão. Isso lhe confere um
contínuo balançar, bambear – uma inconstância contínua. Ou seja, o corpo
investiga trajetórias de movimento, sendo obrigado a se engajar na ação,
acessando um conhecimento diante das comunicações estabelecidas para
lidar com aquela variação que ele não acessa cotidianamente.
(AMADO, 2017, p.20)

Para uma melhor percepção visual e entendimento dos tipos de movimentos/


figuras executadas no Tecido Aéreo, encontram-se abaixo algumas imagens de

42
exemplos dos mesmos realizadas por aerialistas de diferentes níveis da cidade de
Natal/RN.

IMAGEM 10: Bárbara Borges na figura da “Grega” no tecido aéreo.


Foto por: Wellington Ferreira.

43
IMAGEM 11: André Martins na figura da "Criatura” no tecido aéreo.
Foto por: Wellington Ferreira.

IMAGEM 12: Bárbara Borges no espacate frontal na trave de pé no tecido aéreo.


Foto por: André Luís

44
IMAGEM 13: Anaceli Vieira na figura do "Cristo" no tecido aéreo.
Foto por: Wellington Ferreira

IMAGEM 14: Anaceli Vieira na figura da estrela na estafa ou gota no tecido aéreo.
Foto por: Acervo pessoal.

45
IMAGEM 15: Anaceli Vieira no "Apoio de lombar" no tecido aéreo.
Foto por: Wellington Ferreira

IMAGEM 16: Júlia Albuquerque na figura do "Escorpião" no tecido aéreo.


Foto por: Wellington Ferreira

46
IMAGEM 17: Anaceli Vieira e Bárbara Borges na figura do "Portô" no tecido aéreo.
Foto por: Wellington Ferreira

O uso de vestes que seguiam as questões de segurança da prática aérea


caracterizado por peças mais aderentes ao corpo não é de hoje; segundo Barbieri
(2017), tais transformações no vestuário circense aerialista em modalidades como o
trapézio e em acrobacias aéreas de ferro realizadas pela Miss La La, por exemplo,
deram-se em meados do século XIX. Jules Léotard, nesse período, inventou o
collant, a camada base dos trajes aerialistas da Trupe Freire.

Inicialmente uma peça de malha cobrindo o torso, era chamada maillot,


referindo-se a sua origem de malha que lhe emprestou alongamento e ajuste
apertado. Disseminado a partir da década de 1860 através do influente meio
do circo, seu impacto foi profundo. Ao simplificar o corpo, mais tarde
encorajou o engajamento dos homens em uma variedade de esportes
diferente, sendo finalmente apropriado pelas mulheres como maiô de malha
básica da década de 1920, ele acabou sendo utilizado por Coco Chanel em
seus figurinos para Le Train Bleu. Uma roupa de moda atraente, tornou-se
fundamental na transformação das mulheres de serem moldadas por
espartilhos em corpos construídos através do exercício. Crucialmente, o
collant tornou-se a roupa usada por homens e mulheres na dança moderna e
contemporânea, não colocando obstáculos ao movimento e unificando o
corpo em um todo ininterrupto e dinâmico. (BARBIERI, 2017, p.111, tradução
nossa)3.

Retomando os conceitos apresentados anteriormente propostos por Silva e


Hutcheon em suas obras acerca da pós-modernidade, percebe-se que ambas
estabelecem paralelos entre a dança pós-moderna e a arquitetura moderna, a partir
de afirmações como "a forma segue a função", tendo em vista que a arquitetura
daquele movimento impunha-se contra qualquer ornamento, de modo que a forma
deveria priorizar a funcionalidade e a dança contemporânea possui foco nas
qualidades e na forma do movimento, "o objetivo era chamar atenção para o corpo,
mais especificamente para como o corpo se movimentava" (SILVA, 2005, p. 110).

3
Initially a knitted one-piece garment covering the torso, it was called maillot, referring to its knitwear origin
which lent it stretch and tight fit. Disseminated from the 1860s through the influential medium of the circus,
its impact was profound. By streamlining the body, it later encouraged the engagement of men in a range of
different sports, ultimately being appropriated by women as the basic one-piece knitted swimsuit of the
1920s, it was eventually utilized by Coco Chanel in her costume designs for Le Train Bleu. A compelling
fashionable garment, it became instrumental in the transformation of women away from being shaped by
corsets into bodies built through exercise. Crucially the leotard became the garment worn by both men and
women in modern and contemporary dance, posing no obstacles to movement and unifying the body into
an uninterrupted and dynamic whole (BARBIERI, 2017, p.111).

47
Dessarte, a partir dessas reflexões, o traje nesse processo segue este princípio, ou
seja, facilitar os movimentos na prática aérea abarcando suas complexidades.
Portanto, nesse breve histórico acerca da arte pós-moderna, por
conseguinte, na dança pós-moderna e seus trajes de cena e do tecido aéreo nos
permitem estabelecer diálogos para o processo criativo que apresenta-se no
capítulo a seguir, tendo em vista que essas estabelecem intensas conexões
dramatúrgicas e criativas e que podem potencializar-se a partir da memória.

CAPÍTULO III - Diário de criação

Nesse capítulo, descrevo o processo criativo da pesquisa intitulada Memórias


Tecidas, que foi desenvolvido em três partes: a primeira diz respeito à concepção
criativa e às memórias que "afetam" a criação do traje de cena; a segunda
corresponde ao diário de bordo/memórias de todo o processo, destacando a fase de
confecção do traje e da elaboração do diário e a terceira diz respeito à videodança,
formato escolhido para apresentação final do processo, o qual se divide em
filmagem e edição, que serão abordados brevemente.

3.1-Das memórias que "afetam" o traje

O processo criativo do traje teve como princípio disparador memórias afetivas.


Dessa forma, o resgate das memórias e ancestralidades iniciado na disciplina de
Dança e Afrodescendência continuou presente em minha mente mesmo semanas
após seu encerramento. Durante o ano de 2020, adquiri o hábito de registrar o pôr
do sol da janela onde passei a morar na pandemia e aquele momento do dia virou
um ritual, quase que diário, e ainda faço atualmente. Ao analisar os registros feitos
para as disciplinas anteriores, percebi que este era um "objeto" que de alguma
forma se repetia ou acabava aparecendo nos meus trabalhos: no mais recente
"Entre águas e memórias", eu havia trabalhado com o elemento água e as
memórias ligadas a ela; portanto, achei interessante voltar meu olhar para esta
paisagem que me cativa e me cativou diariamente nos últimos 2 anos.
A partir desses registros do pôr do sol, comecei a me questionar o que me
afetava naquela paisagem e por quais lugares da memória ela era capaz de me
levar. Emocionalmente aquilo me trazia um certo conforto de toda a angústia e
melancolia vivida no enclausuramento, um ponto de calmaria no meio do caos, ver

48
aquilo quase sempre me dava vontade de chorar. Logo, deparei-me de certo modo
com binômios: alegria e tristeza, calma e angústia, conforto/liberdade e
enclausuramento/privação e vida e morte consequentemente. Uma paisagem e
sentimentos mistos, como consequência do período caótico vivenciado naquele
momento.
Concomitantemente, iniciei minha relação com o Tecido Aéreo, um prática
que busquei em outubro de 2020 e que me possibilitou uma nova reorganização
corporal, como também trabalhar o excesso de perfeccionismo que estava
prejudicando a minha relação com a Dança, bem como com meus processos
criativos. O que eu precisava de fato era de ar, ar para enxergar o mundo por outra
ótica, ar para eu me sentir mais viva e livre, mesmo sentindo tanto medo da altura
ao iniciar a prática aérea, ar que eu encontrei tanto nas práticas de tecido, como
também no pôr do sol.
A primeira etapa do processo criativo do traje iniciou com um brainstorming4,
que resultou num mapa mental que pode ser observado na imagem abaixo.

4
Brainstorming significa “tempestade de ideias”, um método criado nos Estados Unidos, pelo publicitário
Alex Osborn, usado para testar e explorar a capacidade criativa de indivíduos ou grupos. É utilizado para
resolver problemas específicos, criar e organizar novas ideias, projetos e percepções.

49
IMAGEM 18: Brainstorming do processo (Novembro de 2021).
Fonte: Acervo pessoal

Em um olhar superficial, tais temáticas podem não fazer sentido algum, mas
criativamente elas estão intrinsecamente conectadas em mim. Do emaranhado de
palavras observadas no brainstorm, iniciei o processo de condensação para refinar
as ideias que seriam destacadas no traje, tendo como base os elementos
norteadores de construção de Traje de Cena dispostos no guia de Figurino e
Cenografia para iniciantes de Fausto Viana e Dalmir Rogério Pereira, como cor,
forma, volume, textura, movimento e origem.

Cor

A cor foi o primeiro elemento de qualidade pensado para o traje através das
cores que eram predominantes nos meus registros, a saber: um degradê de
amarelo, alaranjado e azul. No entanto, um dos registros mais especiais que eu
tenho é de um pôr do sol que aconteceu em Junho de 2021, em que o céu ficou
completamente laranja, era um dia ordinário e o céu estava nublado, até que tudo
mudou, como mostra a imagem 19 abaixo:

50
IMAGEM 19: Pôr do sol laranja (Junho de 2021).
Fonte: Acervo pessoal.

IMAGEM 20: Código QR Code para acesso aos conteúdos da página 51. Fonte: Drive.
<https://drive.google.com/drive/u/3/folders/15winvD3zdeYsyQ80hRHyBdY3aZGFMfI9>

Desse modo, a cor escolhida para predominar no traje foi o laranja e como
contraponto, o azul, já o amarelo aparece apenas em alguns detalhes. No círculo
cromático, o laranja e azul são caracterizadas como cores opostas, ou seja,
complementares (imagem 21). A cor é um elemento estético sensorial capaz de
transmitir sensações e percepções, despertar memórias e diferentes emoções.
Segundo Possebon (2009), “cada cor tem uma atuação característica sobre o
psiquismo humano: elas nos causam estados anímicos específicos e provocam em
diferentes indivíduos sensações, reações e comportamentos similares". Na
Psicologia das cores5, as cores laranja, azul e amarelo apresentam as seguintes
características, dispostas no organograma abaixo (imagem 22):

5
Psicologia das cores é o estudo que mostra como as cores afetam nosso cérebro, como cada uma
é identificada e transformada em sensações. Um recurso bastante utilizado na área de comunicação
e vendas.

51
IMAGEM 21: Círculo cromático.
Disponível em: <https://www.futilish.com/2021/04/combinacoes-do-circulo-cromatico-laranja-e-azul/>.

IMAGEM 22: Organograma da psicologia das cores utilizadas.


Disponível em: <https://mercadizar.com/noticias/psicologia-das-cores/>

Forma

Em minha concepção, esse traje deveria ser construído em camadas,


adaptável, podendo ser tirado, colocado, virado do avesso, criando inúmeras
possibilidades de uso. No início, imaginei uma peça de ombro único que
representava a ideia de desequilíbrio de energia, peso em único lado, simbolizando
o que a doença gerou em minha mãe6 , como se a vida estivesse por um fio. Dessa
maneira, a dor e a tristeza iriam se transformando de maneira crescente até a região
do ombro e do braço. Aquele mesmo braço e peito que carregavam uma dor e
escuridão ainda eram capazes de criar arte, tecer felicidade e amor.
Após uma profunda busca por referências em plataformas como Pinterest7 e
Instagram8, cheguei no primeiro esboço do traje, composto por quatro peças que se

6
Minha mãe Carla foi diagnosticada com Câncer de Mama, apenas na mama direita, em 2019.
7
Pinterest é uma rede social de compartilhamento de fotos. Assemelha-se a um quadro de
inspirações, onde os usuários podem compartilhar e gerenciar imagens temáticas, como de jogos, de
hobbies, de roupas, de perfumes, de animes, etc.
8
Instagram é uma rede social online de compartilhamento de fotos e vídeos entre seus usuários, que
permite aplicar filtros digitais e compartilhá-los em uma variedade de serviços de redes sociais, como
Facebook.

52
complementariam: um collant dupla face laranja e azul; uma legging do mesmo tom
de laranja do collant com alguns recortes em tule nas laterais; um tipo de cropped
de amarração parecido com uma costura manual, como macramê (referência
imagem 26), em tons degradê de amarelo, laranja e azul, acrescido de uma
ombreira (referência imagem 24); uma segunda pele de tule bege com detalhes em
recortes de lycra no antebraço (referência imagem 27). O esboço inicial, bem como
algumas imagens das primeiras referências, estão dispostas abaixo.

IMAGEM 23: Esboço inicial do traje.


Fonte: Acervo pessoal.

53
IMAGEM 24: Inspiração para o traje, peça do desfile de Primavera 2021 da Simone Rocha na
Londres Fashion Week.
Foto por: Andrew Nuding

IMAGEM 25: Inspiração para o traje aéreo.


Disponível em: <http://white-lace-and-pearls.blogspot.com/2011/04/aerial-arts.html>

IMAGEM 26: Inspiração para o traje, peça do desfile de Primavera 2016 de Noir Kei Ninomiya.
Disponível em: <https://www.vogue.com/fashion-shows/spring-2016-ready-to-wear/noir-kei-ninomiya>

54
IMAGEM 27: Figurino de Ginástica Rítmica.
Disponível em: <https://br.pinterest.com/pin/535506211952412887/>.

IMAGEM 28: Código QR Code para acesso aos conteúdos da página 55. Fonte: Drive
<https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1gdH-06YiuN9p2V9gSbO10wtvQt5iX8mJ>.

55
O formato da referência para a peça em costura manual me chamou muito a
atenção à primeira vista por trazer a ideia de emaranhado, similar ao macramê9,
arte manual que minha mãe, Carla, executa e por visualmente parecer com a vista
anatômica da glândula mamária.
No entanto, ao chegarmos na etapa da confecção, nos deparamos com
algumas problemáticas que nos levaram a uma adaptação de algumas ideias, que
serão mais detalhadas adiante. Consequentemente, o croqui final passou a manter
a base collant e legging, porém, em vez do cropped com acabamento semelhante
ao macrame, optamos por uma espécie de luva dividida em duas partes, que
terminaria na linha do pulso em vez do tradicional que costuma cobrir o dorso e a
palma das mãos e, às vezes, os dedos, tendo em vista que se cobrisse esta região
poderia prejudicar os movimentos no tecido, pondo em risco a segurança do
praticante, já que as mãos precisam estar em contato direto com o material para
evitar escorregamentos e quedas perigosas,que nesse caso não estão relacionadas
às quedas acrobáticas características da prática em si).
Além disso, pensando na qualidade do movimento do traje, que será
explanada no final desta seção, acrescentamos uma espécie de ombreira/cauda,
que poderia ser retirada nos movimentos mais aéreos para não atrapalhar.

9
É uma técnica de tecelagem manual com uso de nós, originalmente usada para criar franjas e
barrados em lençóis, cortinas e toalhas. Provavelmente surgiu com a evolução natural dos nós
básicos para um trabalho mais elaborado. Usado como fonte de renda para algumas pessoas.

56
IMAGEM 29: Croqui final do figurino.
Fonte: Acervo pessoal.

57
IMAGEM 30: Código QR Code para acesso aos conteúdos da página 57. Fonte: Drive
<https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1oZM68ZE_RwPUbeGxPlxT5fqfCO3TAI7F>.

Importante destacar, que a questão das inúmeras possibilidades de uso do


traje coadunam com o quesito de sustentabilidade da moda, tendo em vista que no
âmbito artístico, muitas vezes os figurinos são pensados para um único uso. Dessa
forma, há um grande investimento financeiro e de materiais e que logo ficam
obsoletos. Assim, convém pensar em trajes de cena que tenham uma maior
longevidade, propondo a sustentabilidade dos trajes de cena, uma reflexão que fiz
durante o processo de concepção do traje.

Volume

Segundo Viana (2021, p.14), o elemento volume refere-se ao espaço que o


traje e seus detalhes vão ocupar. "Nós sempre dizemos que, em palco,
especialmente os de grandes dimensões, nada de tamanho restrito, com pouco
volume, se destaca. Até para parecer discreto tem que ser exagerado".
Neste projeto, o palco não se caracteriza como um teatro sob as grandes
luzes, mas numa praça a céu aberto com grandes árvores e luz natural, locação
escolhida para gravação devido à prática do Tecido Aéreo. Dessa forma, ao dialogar
com o ambiente e também com tela, o traje mesmo com simplicidade, adquire
outras dimensões. Além disso, por meio do recurso midiático, é possível que os
mínimos detalhes também se destaquem. Num comparativo, por exemplo, o traje no
ambiente escolhido mesmo com simplicidade adquire exuberância e potência do
que visto num ambiente cotidiano como a casa ou pendurado num cabide.

Texturas e materiais

A ideia inicial eram camadas com materiais de diferentes qualidades têxteis


propondo uma interação entre cada uma, que poderiam ser vistas tanto a olho nu,
quanto na tela. Se pararmos para pensar em trajes circenses, logo vem à mente,
diversas cores, estampas e/ou muito brilho. São características repetidas ao longo
do tempo que estão relacionadas com o objetivo de encantamento e magia do circo,
características as quais sou muito afeiçoada. No entanto, nesse traje em específico,
não queria ir no óbvio dos trajes circenses, queria impactar pela simplicidade do

58
traje, sem a necessidade de tanta "firula", um olhar estético mais voltado para o
minimalismo característico de algumas obras cênicas da Dança Contemporânea. Há
um motivo para cada detalhe presente no traje e, para mim, como figurinista, essa é
uma das maiores características de um bom profissional "saber contar uma
história"10 em cada detalhe*, sem muitas vezes necessitar de várias peças e
ornamentos.
Sendo assim, o material dominante seria a lycra pela questão de adaptabilidade
do traje para os movimentos exigidos pela modalidade circense aérea. A cidade de
Natal possui pouquíssimas lojas de tecidos e malhas, principalmente tratando-se do
lycra e estas apresentam uma variedade de cor bastante limitada. A falta de lojas de
materiais, da área de costura e confecção, obriga o consumidor a ter que muitas
vezes adaptar determinada ideia, adquirindo um material que não era o almejado,
pagar caro pelo material ou, em último caso, recorrer à encomenda de outros
estados na tentativa de baratear os custos, que nem sempre é o mais viável.
Devido a tais problemáticas, a compra pelos materiais na paleta de cores
escolhida foi ainda mais difícil, tive que optar por uma lycra laranja com acabamento
metalizado, com um brilho sutil, tendo em vista que não havia a intenção de pôr
lantejoulas no traje, assim o próprio tecido faria essa interação com a luz, que no
caso seria a luz natural solar.
Além disso, não foi possível encontrar lycras semelhantes uma à outra, optei por
um azul mais voltado pro Royal, no entanto este não possuía acabamento
metalizado, causando mais uma problemática a ser levada em conta, a interação
desses diferentes materiais para uma peça dupla face. Para a luva, foi escolhido
como material, a lã em tons de laranja, em forma de macramê; e para
ombreira/cauda, o tule e a organza cristal em tons de amarelo, laranja e azul, pelo
fato de não conseguir encontrar um tule na cor laranja semelhante aos demais.

Funcionalidade

Antes de iniciar a fase de confecção, realizei uma breve entrevista com minha
professora de Tecido Aéreo, Anaceli Vieira, para que eu pudesse entender melhor

10
Aqui não remeto apenas ao sentido de uma narrativa com início, meio e fim, mas independente do
gênero, que o figurino tenha um bom conceito estético, atingindo o seu o objetivo comunicativo e de
criação de sentido, em que muitas vezes é capaz até de surpreender o público.

59
as demandas do vestuário relacionadas à prática, já que ela tem em torno de 6
anos como aerialista praticante e professora da área. A partir da entrevista,
chegamos às seguintes questões: as áreas do tornozelo e pé deveriam sempre se
manter amostra; as regiões das costas, abdômen, costelas deveriam
obrigatoriamente ser protegidas para evitar queimaduras e se possível as axilas
também; pulsos e mãos sempre livres; roupas com maior aderência ao corpo para
evitar que partes fiquem presas no meio das figuras e ocasione lesões; de
preferência tecidos e materiais que não escorreguem além do ideal, bem como
tecidos que não impeçam totalmente o deslizar do tecido para não dificultar os
movimentos e colocar ainda mais em risco o aerialista.

O tecido, assim como as cordas circenses, costuma queimar (ferir a pele por
conta do atrito) ou causar hematomas quando entram em contato com o
corpo nas travas e outros truques. É por este motivo que o uso de roupas
apropriadas, que cubram as axilas, a região abdominal, a cintura e as pernas
(a maior superfície possível do corpo) ajuda a evitar as escoriações e os
hematomas ocasionados pelo contato brusco com o aparelho. Outro aspecto
é o uso de substâncias como o “breu”, que podem proteger contra o suor das
mãos e outras partes do corpo e, portanto, garantem a aderência desejada
ao tecido. (BORTOLETO e CALÇA, 2007, p. 85)

Movimento

Em relação ao elemento movimento do traje, se eu fosse me ater apenas às


necessidades do Tecido Aéreo quanto às questões de vestuário e segurança, o
figurino deveria ter o máximo de aderência ao corpo, facilitando as amarrações das
figuras, evitando que partes do tecido da roupa possam ficar presas em meio a
montagem das figuras. No entanto, por tratarmos de uma videodança que nos
oportuniza, por meio da edição, ações e possibilidades que o palco em tempo real
não consegue, pensamos na relação tanto do corpo/movimento no aparato aéreo
(fora do chão) como do corpo/movimento no plano terrestre.
Viana (2021) afirma que "um traje que tem movimento capta muito mais o olho,
a atenção do espectador, do que um que não tem". Dessa forma, na concepção do
traje, a peça da ombreira/cauda foi pensada como um elemento que possa
potencializar tais relações, tendo em vista que é uma peça removível, assim, a
prática aérea não se prejudica. Além disso, é feita de um material leve e fluído como
o tule, possuindo um comprimento extenso, indo do ombro até a altura do tornozelo,

60
de modo que possa ampliar a ideia de fluidez e peso leve, possibilitando, assim,
novas conexões de movimento com o corpo e, por conseguinte, com a tela.

3.2-Construindo o diário de memórias

A segunda etapa do processo criativo trata-se da construção do diário de


bordo, memórias, portfólio, que aconteceu simultaneamente desde o início do
processo. Nesta seção, tratarei mais profundamente da fase de confecção do traje,
desde a compra de materiais, adaptações e a finalização, bem como da construção
visual do diário em si.
Este diário foi pensado não só como um caderno para notas e reflexões, mas
de modo que possa conter as referências visuais do projeto, tanto para o traje, como
da maquiagem, croquis, amostras de materiais como um Fashion Sketchbook11, um
caderno/portfólio de Moda.
Após a fase de concepção e os primeiros esboços, passamos para a
confecção do traje. Por se tratar de um figurino para dança e ao constatar que em
sua maioria esse era feito de lycra, importante que o figurino criado para o trabalho
proposto fosse confeccionado por alguém que tivesse experiência na área e com o
material a ser utilizado, mas a disponibilidade da limitada lista de pessoas de
confiança na área eram incompatíveis com o prazo que eu necessitava do traje
finalizado e tive que recorrer a alguém que não costumava fazer figurinos, um ponto
negativo para o resultado final.
Por conseguinte, o primeiro esboço disposto anteriormente não foi possível
justamente pela complexidade de execução da peça que envolvia a costura manual
semelhante ao macramê, por isso tive que adaptar para a luva. A impossibilidade da
peça levou-me a algumas reflexões que resultaram na inclusão da ombreira/cauda
tratando de um material mais fluido e dinâmico como o tule, remetendo visualmente
à ideia do degradê do por do sol em si. De certo modo, a adaptação para a luva foi
uma ideia que possibilitou que minha mãe — fonte de inspiração para parte deste
projeto, pudesse contribuir com suas artes manuais no traje. Há um pouco dela em
cada etapa: ela esteve presente desde a concepção até a escolha de materiais,
saber que tem algo confeccionado por ela no projeto o torna ainda mais especial.

11
Fashion Sketchbook, significa caderno de moda ou portfólio de moda, nele contém croquis, mood
board, amostras de tecidos, imagens de referências, anotações.

61
Como mencionado anteriormente, a cidade de Natal é limitada em relação a
lojas de tecidos, malhas e materiais têxteis, há poucas lojas e sem tanta variedade
de cores e acabamentos. No laranja, por exemplo, haviam pouquíssimas malhas. O
valor final acaba sendo elevado para um traje que mesmo simples em comparação
aos figurinos de Ginástica Rítmica, por exemplo, que possuem inúmeros detalhes,
quando somados os custos de materiais e a confecção, o custo torna-se alto. Foi
essencial a realização de uma campanha independente em minhas redes sociais e
em plataformas de colaboração como Catarse para levantar investimentos para todo
o projeto, pois, como estudante universitária, não seria capaz de custear tudo
sozinha. Infelizmente, só conseguimos arrecadar cerca de 49% do valor almejado,
mas que mesmo assim foi de extrema importância para a realização do traje.
No quesito da modelagem, o resultado final deixou a desejar, o decote de um
ombro único acabou ficando mais amplo do que o planejado e, em determinados
movimentos, gera um desconforto na região dos seios pelo medo da peça sair
demais do lugar, assim como a cava do collant que não ficou tão bem adaptada ao
corpo. O modo que foi realizado a confecção não foi ideal pelas complexidades do
material tão flexível e por se tratar de um collant dupla face, ainda tinha a questão
de como diferentes malhas iam interagir entre si, pois a lycra laranja era muito mais
maleável e transparente que a azul, o que gerou uma certa dificuldade no momento
de vestir a peça. Por se tratar de materiais com custo mais alto e ter um orçamento
bem limitado, não foi possível refazer todo o traje, outro ponto considerado negativo
na criação do traje.
Importante destacar que tais problemáticas não inviabilizaram o uso das
peças, mas que no quesito de conforto e acabamento, fatores que prezo bastante
em meus figurinos, o traje ficou a desejar.
Assim como o pôr do sol é uma construção de camadas de cores e
imprevisibilidade, as quais nunca se repetem da mesma forma, o traje é construído
em camadas de memórias e emoções representadas em peças, que podem ser
usadas todas juntas ou de forma independente. Você escolhe o melhor jeito de usar
e isso abre margem para inúmeras possibilidades criativas. Juntas, as memórias e
as peças potencializam-se em memórias do passado e se ancoram no breve
presente, separadas carregam consigo o que foi e o devir, novas conexões, novas
memórias. O resultado final do traje pode ser apreciado nas Imagens 31 a 35
dispostas a seguir:

62
IMAGEM 31: Resultado final do traje de cena.
Foto por: Wellington Ferreira.

63
IMAGEM 32: Resultado final do figurino no tecido aéreo.
Foto por: Wellington Ferreira.

IMAGEM 33: Detalhe das costas do figurino.


Foto por: Wellington Ferreira.

64
IMAGEM 34: Detalhe da ombreira/cauda do traje.
Foto por: Wellington Ferreira.

IMAGEM 35: O traje de cena e o diário de bordo.


Foto por: Wellington Ferreira.

IMAGEM 36: Código QR Code para acesso aos conteúdos da página 65. Fonte: Drive
<https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1inXcni62Xi9oweH_0YafLfv1GJBOflF6>.

65
Maquiagem

Como figurinista, gosto de pensar no resultado final como um todo, não


somente nas peças que serão vestidas, mas em toda a composição visual. "Além de
permitir uma ligação entre a figura dramática e o espetáculo, o figurino se revela
como parte fundamental da própria construção do personagem, que vai muito além
da vestimenta” (SILVA, 2018, p. 102). Assim como o figurino, a maquiagem cênica
também é um recurso produtor de sentido, eles juntamente com o cenário, a
iluminação e a sonoplastia compõem a Cenografia e as tecnologias da cena. Tendo
em vista que estamos lidando com um universo contemporâneo circense, para mim,
utilizar a maquiagem artística era fundamental. Após a concepção do traje, os
primeiros croquis, fiz uma pesquisa de referências para a maquiagem. A ideia, a
princípio, era algo próximo ao degradê de cores do pôr do sol por quase todo o
rosto, ou seja, extender as cores do pôr do sol, também presente na criação do
figurino, para a face.
Em diálogos com o artista e maquiador artístico André Luiz Martins, amigo e
parceiro aerialista, pontuei minhas colocações segundo as referências da cor em
degradê entre laranja, amarelo, azul e tons próximos ao roxo. Essas cores seriam
dispostas pelas pálpebras, têmporas e maçãs do rosto, enfatizando as cores que
predominam no traje, contudo, sem o uso de um delineado convencional preto na
linha dos cílios superiores e dos lábios com coloração mais próxima do natural.
Acrescentei um detalhe que cria sentido na construção dramatúrgica da videodança,
o símbolo de reticências (...) logo abaixo do olho esquerdo, inspirado em uma cena
da personagem Jules da série televisiva americana Euphoria.
Os olhos tem enfoque nessa obra artística devido à metáfora poética: “os
olhos são como a janela da alma”. Um elemento de destaque na maquiagem é o
símbolo de reticências, com base na lenda antiga, supostamente romana, da "vena
12
amoris" (veia do amor), foi escolhido o posicionamento do símbolo no rosto, já que
esta diz que há uma conexão da mão com o coração, associando, assim, a
metáfora é como se tudo isso estivesse conectado, o que toco, crio está ligado ao
meu coração, a minha alma. Dessa forma, como o brainstorming a partir do pôr do

12
Vena amoris (Veia do amor) é uma lenda supostamente romana que diz que a veia que está no
dedo anelar esquerdo faz uma ligação direta com o coração, por isso devemos usar a aliança de
casamento neste dedo. No entanto, vale salientar que não há nenhuma comprovação científica para
tal fato e que anatomicamente o coração localiza-se centralmente no peito e não mais próximo ao
lado esquerdo.

66
sol me levou também ao câncer da minha mãe, a reticências, remete a ideia de
prolongar algo, que não houve um fim definido, continua reverberando, como
também um legado, por este motivo ele aparece como foco da cena final do vídeo.

No teatro, a pintura corporal e/ou facial é capaz de transformar o corpo do


atuante em cenário. Sobre o rosto ou o corpo, a maquiagem é um recurso
produtor de sentido e, ainda, de acordo com Pavis (2003), é uma arte que
possui certa autonomia em relação às demais. De livre acesso, a
maquiagem permite dizer o que o enunciador desejar. Do simples truque de
esconder olheiras e dar mais vivacidade ao rosto, a maquiagem pode chegar
ao extremo de esconder o corpo suporte. Pode se manifestar
escandalosamente para alguns, pode demonstrar a elegância natural do seu
enunciador ou pode denunciar revoltas sociais, dependendo da cultura em
que se encontra. (MAGALHÃES, 2010, p. 19)

Importante destacar que a concretização da maquiagem deu-se em tempo


real e, devido aos inúmeros imprevistos quanto às datas de gravação, não tivemos
tempo suficiente para realizar uma prova de maquiagem, porém o resultado final foi
surpreendente e satisfatório: como profissional, ele conseguiu captar bem a
proposta dessa maquiagem.
As imagens de inspiração para a composição da maquiagem cênica, bem
como, os registros do resultado final encontram-se abaixo.

67
IMAGEM 37: Maquiagem em tons degradê por Alexandra French.
Foto por: Christine Hahn.

IMAGEM 38: Maquiagem em tons degradê por Alexandra French.


Foto por: Christine Hahn.

IMAGEM 39: Maquiagem em tons laranja e vermelho por Alexandra French.


Foto por: Christine Hahn.

68
IMAGEM 40: Maquiagem em reticências de Euphoria por Donny Davy.
Foto por: Donny Davy.

IMAGEM 41: Resultado final da maquiagem por André Martins.


Foto por: Wellington Ferreira.

69
IMAGEM 42: Resultado final da maquiagem vista de meio perfil.
Foto por: Wellington Ferreira.

IMAGEM 43: Resultado final da maquiagem focando na pálpebra.


Foto por: Wellington Ferreira.

70
3.3- Memórias tecidas na tela: processo criativo da videodança

A terceira etapa do processo criativo trata-se da criação da videodança,


formato escolhido para apresentação final do projeto. Tratamos aqui de compor a
videodança que se divide em filmagem e edição, processos abordados brevemente,
tendo em vista que discutir as questões sobre videodança não é o foco deste
trabalho, assim questões implícitas à videodança servem apenas de suporte para
refletir sua feitura no presente trabalho.
Uma das questões mais evidentes da finalização do processo foi: como o traje
seria apresentado ao público? Pela familiaridade com a linguagem da videodança,
devido a trabalhos anteriores, ela se apresentou como a melhor solução da questão.
Tendo em vista que o traje de cena estabelece uma relação direta com tecido aéreo,
este teria que estar incluído na apresentação final. A partir disso, comecei a pensar
na locação e na elaboração do roteiro de filmagem.
Vale salientar que o formato da videodança foi escolhido, principalmente, em
virtude da pandemia e das incertezas quanto à volta do ensino presencial. Em vista
disso, o recurso midiático dá a possibilidade que o produto artístico chegue em mais
pessoas e colabore com diálogos da contemporaneidade, explorados ao longo de
todo o trabalho.

A videodança constitui uma forma diferenciada de criação em dança e em


vídeo, por possibilitar novas narrativas na contemporaneidade. Com
propostas de olhar o corpo que dança e o seu diálogo com a câmera de
maneiras diversificadas e divergentes das narrativas audiovisuais clássicas.
A videodança é constituída através de uma prática poética singular visto que
a comunicação que se estabelece é de natureza não verbal através dos
movimentos do corpo e da câmera.
Portanto, a criação em videodança amplia os horizontes da dança através do
entendimento e compreensão das poéticas tecnológicas do mundo
contemporâneo apontando novas óticas para a prática artística na
contemporaneidade. Nesta lógica, o artista descobre novos cenários a serem
investigados, novas possibilidades criativas e novas formas de subverter e
ressignificar as tecnologias. (ALMEIDA, 2019, p. 42)

Filmagem

A captura das imagens foi orientada a partir de uma experiência imersiva em


360 graus, na qual os planos e ângulos pudessem capturar o traje tanto de modo
frontal, lateral, contra-plongée (de baixo para cima), em plano geral e em plano

71
detalhe, de modo que as imagens veiculadas na cena/ dança/performance aérea
não escapem ao espectador.

O que interessa primordialmente é que a câmera dance com o


bailarino e que o bailarino se coloque no espaço e no tempo da
câmera. No olhar da câmera.
Quando a dança é captada pelo olho da imagem, ela ganha uma
outra existência. Na realidade, este jogo adaptativo permite o
florescimento de novas práticas para a dança e a modificação do
corpo. (SPANGHERO, 2003, p. 38).

Além dos planos e ângulos apontados anteriormente, estabeleci alguns


direcionamentos para o diálogo corpo-traje-câmera, a saber: movimentos com
ênfase nos braços, sensação tátil do aparato aéreo, entrelaçamentos, peso leve,
giros e torções. Todos eles também remetem aos movimentos de preparação para
execução de determinadas figuras no tecido aéreo, uma breve sequência no tecido
envolvendo subidas e quedas, assim como cenas em diálogos com o diário e entre
minhas mãos e as de minha mãe. No entanto, apesar do roteiro, as movimentações
estavam suscetíveis à improvisação e ao acaso.
O roteiro nos possibilita alguns direcionamentos, mas nesse caso não se dá
como obrigatório ou algo que deve ser seguido à risca, desse modo houve durante
todo o processo o diálogo com Wellington Ferreira, o fotógrafo responsável pelas
fotografias e imagens. Ele, com seu olhar mais técnico e minucioso, proporcionou
adequações quanto aos ângulos e planos e até sugestões pertinentes de como
realizar melhor os movimentos e, consequentemente, a captura das imagens,
determinando quais imagens seriam possíveis realizar com qualidade, devido à
quantidade reduzida de equipamento técnico. Outras contribuições fundamentais e
que orientaram o processo de filmagem vieram da professora de tecido, Anaceli
Vieira, que esteve presente em todo o processo de filmagem. Assim, em alguns
momentos, ela atuou também na parte de captura das imagens de forma simultânea
com o fotógrafo. Em consequência, ambas as ações contribuíram para ampliar as
possibilidades de diálogo com a câmera, construindo assim, a dramaturgia da
videodança.
A locação escolhida foi uma praça com várias árvores altas, já que o uso da
luz natural era importante para o trabalho, assim como, uma estrutura com altura
suficiente para pendurar o tecido acrobático, peça fundamental para a gravação.
Vale salientar que o uso de outros espaços coreográficos como parques, museus,

72
estacionamentos é uma característica dos primórdios das transformações iniciais
dos coreógrafos pós-modernistas. Faz-se necessário destacar a preocupação
quanto aos quesitos de segurança para o uso do tecido aéreo, assim, a praça foi
recomendada pela professora Anaceli Vieira por já ter conhecimento do estado das
árvores e também da altura das delas, pois o espaço escolhido apresentava
condições ideais para pendurar o tecido e, consequentemente, executar a
dança/performance aérea pretendida.
Encontramos alguns contratempos durante as filmagens, em destaque para a
chuva e a variação da iluminação natural na cidade de Natal-RN. As gravações
ocorreram no período de abril e junho e foram utilizadas ao todo duas diárias. Esse
período do ano caracteriza-se por intensas chuvas na cidade de Natal, o que
acarretou inúmeras remarcações de datas para execução da videodança,
considerando que a luz solar constitui-se em um elemento fundamental para captura
das imagens de boa qualidade na produção da videodança. A iluminação “faz parte
da construção dramatúrgica da obra, ela adiciona e compõe a troca de informações
com os processos comunicativos desenvolvidos na videodança” (ALMEIDA, 2019,
p.38). Por se tratar de luz natural, esta insere neste trabalho em videodança a
imprevisibilidade, consequentemente, determinadas cenas planejadas para serem
transições, devido à variação da luz tiveram que ser adaptadas no quesito ângulo e
posição espacial, já que com o passar do tempo a luz solar apresentava variações
de intensidade e em determinados ângulos formando sombras muito intensas que
em tomadas anteriores não existiam.

Edição

O roteiro de filmagem apontado anteriormente foi pensado já abarcando


possíveis transições e cortes, de modo a facilitar o processo de edição que, neste
caso, foi realizado pela própria autora. A música escolhida foi a To build a home13 da
banda britânica The Cinematic Orchestra, porém apenas de modo instrumental, sem
incluir a letra e voz da faixa, para que não causasse ruído na recepção do
espectador, bem como na dramaturgia da videodança, tendo em vista que poderia

13
To build a home, Para construir uma casa (tradução da autora) música da banda britânica The
Cinematic Orchestra.

73
ser levado para um contexto "mais romântico", que não dialoga com o universo
deste trabalho.
A faixa foi escolhida pela afetividade, obras com ênfase em piano são as
minhas favoritas, mas esta em questão possui um crescente melódico que me
emociona profundamente e me instiga automaticamente a dançar e querer subir no
tecido. Além disso, ela foi utilizada inúmeras vezes em obras televisivas e
cinematográficas que gosto bastante, como por exemplo na série This is Us14, a qual
possui uma construção narrativa por meio de flashbacks, no contexto da série essa
está sempre relacionada à casa e às memórias da família central, entrelaçando o
passado, o presente e o futuro. Destaco abaixo algumas passagens da letra que
reforçam a escolha da música, mesmo que estas não apareçam sonoramente no
vídeo:

Há uma casa construída de pedra


Os pisos de madeira, paredes e peitoris das janelas
Mesas e cadeiras usadas por toda a poeira
Este é um lugar onde eu não me sinto sozinho
Este é um lugar onde me sinto em casa
(...) Eu construí uma casa, para você, para mim.
(​​TO build a home. The Cinematic Orchestra. In: Ma Fleur. UK: Ninja
Tune, 2007. 1 disco vinil, faixa 1, tradução nossa). Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=oUFJJNQGwhk>. Acesso em:
07/11/2021).15

O recurso de edição mais enfatizado foi o recurso de efeito reverso,


simbolizando a ideia do passado e presente, do que foi e o devir, ambos
possibilitaram novos movimentos e composições coreográficas.

Destaca-se que a criação em videodança adquire técnicas e


configurações diferenciadas da criação em dança para o palco. O
suporte da tela, com suas configurações próprias, contribui com a
dança ampliando as possibilidades criativas desta linguagem e
permite o diálogo com os avanços tecnológicos que atravessam o
corpo de diversas formas, logo, colabora com o desenvolvimento da
dança em contato com cultura digital e a exploração desta arte
através de novos suportes. (ALMEIDA, 2019, p.41).

14
This is us, Estes somos nós/ somos nós (tradução da autora).
15
There is a house built out of stone/ Wooden floors, walls and window sills/ Tables and chairs worn
by all of the dust/ This is a place where I don't feel alone/ This is a place where I feel at home (To
build a home música da banda britânica The Cinematic Orchestra).

74
IMAGEM 44: Código QR Code para acesso a videodança Memórias Tecidas. Fonte Drive
<https://drive.google.com/drive/u/3/folders/1atNJ9-w2ANnHzNmZS8Re0jC79SiujxcD>

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O projeto Memórias Tecidas continuará ecoando em mim assim como em


meus futuros trabalhos. Ele foi muito mais do que apenas um trabalho para
recebimento de um título, mas um longo processo de descobertas artísticas,
ressignificações, fechamento de ciclos e, possivelmente, um processo de
cicatrização e esquecimento, como aquele proposto por Izquierdo, das memórias,
dores e angústias que deram start para esta pesquisa. Parte delas continuam
presentes aqui, no entanto, não com a mesma força, nem do mesmo modo, essas
memórias adquiriram movimento, cor, textura e, num entrelace, transformaram-se,
não de maneira conclusiva, mas num gerúndio, no devir.
Nessa perspectiva, o desenvolvimento deste trabalho colabora com as
reflexões acerca do diálogo entre traje de cena e a dança, especificamente o traje
de cena da Dança Contemporânea Circense, a partir do dispositivo da memória, das
memórias afetivas no processo criativo. O trabalho proporcionou observar as
relações entre a arte da dança, trajes para a cena e o tecido aéreo numa
perspectiva conceitual e estética da arte e da dança contemporânea. A partir dessa
investigação, aplica-se os conceitos elencados no decorrer da pesquisa no processo
criativo do traje de cena, por meio do recurso do diário de bordo e da videodança.

75
A presente pesquisa aponta não somente para a ampliação de acervo
bibliográfico na área de traje de cena e traje de cena para dança, mas também para
ampliação e formação de plateia para a dança, em especial para formar público
para a videodança.
Vale salientar que o uso da memória no processo criativo apresenta-se como
uma proposta enriquecedora no processo de criação de dança, bem como do traje
de cena nas artes corporais contemporâneas e de investigação, do nosso corpo, de
nós mesmos, da nossa história, do mundo à nossa volta, um campo, a meu ver, com
potencial ainda não totalmente explorado.
Reforço em relação ao âmbito do ensino, que esta constitui-se em um recurso
didático-metodológico a ser desenvolvido em trabalhos artísticos na escola, ao
possibilitar uma aproximação do aluno/interprete-criador de suas próprias memórias
e ancestralidades, consequentemente, de sua própria história de vida, afetos e
contexto social fortemente presentes nos diferentes saberes e fazeres artísticos.
A utilização de uma pergunta/estímulo em relação à memória, como um fator
norteador e provocador, torna-se fundamental no processo, vamos criar algo a partir
de determinada memória, mas de qual modo? É notório que a resposta para tal
indagação é extremamente individual. Estar diante de quem somos e o que vivemos
gera muito incômodo, por mais simples que possa ser a questão, é importante que
ao iniciar o processo, o coreógrafo/diretor/professor tenha empatia, paciência e
atenção para que ocorra da melhor forma possível.
Ademais, em relação ao traje de cena da Dança Contemporânea, percebo
que este não apresenta uma estética definida tendo características significativas
como, por exemplo, liberdade criativa, uso de diferentes materiais, trajes que
buscam o conforto e adaptabilidade, diálogos com outras áreas e expressões
artísticas, como o circo, a moda, a tecnologia, dentre outros. Tendo em vista que
qualquer movimento pode ser material para dança, qualquer coisa pode servir como
princípio disparador da criação de um figurino, nesse viés, a memória surge como
dispositivo de grande potência para o processo criativo do mesmo.
As conexões estabelecidas com o Tecido Aéreo foram ainda mais
enriquecedoras no processo criativo, possibilitou-me novos olhares para esta
prática, que tem se tornado cada vez mais latente em mim, assim como para minha
dança. No entanto, não há como negar que também apresentou-se como uma
grande desafio, criar uma figurino para a prática aérea circense, visto que é uma

76
experiência recente para mim, há muitas especificidades e tenho aprendido mais a
cada dia, a fim de num futuro criar figurinos que atendam melhor às suas
complexidades, prezando sempre pelo conforto e propondo olhares estéticos
inovadores.
Proponho também a partir dessa investigação, que as discussões apontadas
acerca do conforto e adaptabilidade dos trajes se expandam bem como em relação
às diversas possibilidades de uso destes, a fim de evitar desgastes excessivos e
uma maior durabilidade, dialogando com questões de sustentabilidade da moda e
preservação para área de pesquisa em trajes de cena.
A pesquisa propõe mais perguntas e reflexões do que respostas, estar imersa
na contemporaneidade exige uma análise crítica constante e uma grande
capacidade de adaptação às mudanças contínuas e aceleradas. Ao estar diante
deste processo o leitor foi convidado para uma experiência imersiva e ativa nessas
memórias e afetações, por meio de uma intermidialidade entre arte, dança, tecido
aéreo, traje de cena/figurino, maquiagem, iluminação, vídeo, fotografia, áudio,
escrita, desenho, plataformas como Email, Instagram e Google Drive, de modo que
essas possam ampliar seus sentidos e percepções acerca do projeto, abarcando as
diversas formas de interação com a arte, propondo uma semente, mesmo que ainda
superficial, para discussões sobre acessibilidade da arte e das novas gerações, que
cada vez mais mostram-se conectadas com as tecnologias e as multimídias.
Meu desejo é que esse trabalho continue fluindo por "outros ares" e possa
contribuir com mais projetos, sejam meus ou de outros artistas e pesquisadores que
investigam a memória como princípio disparador para sua criação, além do traje de
cena e do figurino para dança. (In)concluo esta pesquisa com o desejo pulsante de
seguir experimentando, ressignificando, transformando minha arte, minhas
memórias e de investigar novos caminhos, novos ares para as artes corporais, em
especial, a dança contemporânea aérea circense.

77
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Samuel Leandro de. Videodança: o diálogo do corpo que comunica.


2019. 45 f. Monografia (Licenciatura em Dança) - Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Natal, 2019.
Disponível em: <https://repositorio.ufrn.br/handle/123456789/34566>. Acesso em: 1
de junho de 2022

AMADO, Aline Teixeira. A dança na relação corpo e tecido acrobático:


reorganizações do corpo aéreo. 85 f. il. 2017. Dissertação (Mestrado). Programa de
Pós-Graduação em Dança. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2017.
Disponível em: < https://repositorio.ufba.br/handle/ri/25678>. Acesso em: 10 de
janeiro de 2022.

BARBIERI, Donatella. Costume in Performance: Materiality culture and the body.


Collaboration: TRIMINGHAM, Melissa. Bloomsbury Publishing, 2017.

BANES, Sally. Terpsichore in sneakers. Boston: Hougthon Mifflin Co. 1980, 292 p.

Bortoleto, M. A. C., & Calça, D. H. (2007). O tecido circense: fundamentos para


uma pedagogia das atividades circenses aéreas. Conexões, 5(2), 72–88.
Disponível em: <https://doi.org/10.20396/conex.v5i2.8637880>. Acesso em 19 de
abril de 2022.

CERBINO, Beatriz. Memória e dança: considerações e apontamentos. In: VII


Congresso da ABRACE - Tempos de Memória: vestígios, ressonâncias e
mutações, 2012, Porto Alegre. Anais do VII Congresso da ABRACE, 2012.
Disponível em:
<https://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/abrace/article/view/2288>. Acesso
em: 20 de janeiro de 2022.

DESIDERIO, A. Corpos suspensos: o tecido circense como possibilidade para a


Educação Física Escolar. 2003. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) -
Faculdade de Educação Física, Universidade Estadual de Campinas, Campinas,
2003.

GUERREIRO, Camila Cristina Rodrigues. Uma dança para o figurino: análise e


criação do figurino para a dança contemporânea. 2016. 35f. Trabalho de conclusão
de curso (Licenciatura em Dança) - Departamento de Artes, Centro de Ciências
Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal,
2016. Disponível em: <​​https://repositorio.ufrn.br/handle/123456789/34538>. Acesso
em: 2 de fevereiro de 2022.

78
HUTCHEON, Linda, 1947- Poética do pós-modernismo: história, teoria, ficção/
Linda Hutcheon; tradução Ricardo Cruz. - Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991. 330p.

IZQUIERDO, Ivan. A arte de esquecer: cérebro e memória. 2. ed. Rio de Janeiro:


Vieira e Lent, 2010. 135 p.

IZQUIERDO, Ivan. Questões sobre memória. 2. ed. São Leopoldo, RS: Ed.
UNISINOS, 2017. 128 p.

LEAL, Patrícia. Amargo perfume: a dança pelos sentidos. 1a ed. São Paulo:
Annablume, 2012. v 300. 174 p.

LIMA, Wilian John da Silva. A memória corpórea na criação em dança


contemporânea. 2014. 41 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em
Dança) - Departamento de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Natal, 2014. Disponível em: <https://repositorio.ufrn.br/handle/123456789/34555>.

MAGALHÃES, Mona. Maquiagem e pintura corporal: uma análise semiótica. Tese


de Doutorado em Estudos Linguísticos pela Universidade Federal Fluminense - UFF.
Niterói, 2010. Disponível em:
<https://docplayer.com.br/5379831-Monica-ferreira-magalhaes-maquiagem-e-pintura
-corporal-uma-analise-semiotica.html>. Acesso em: 31 de maio de 2022.

PRUDENTE, A. B. da Cruz, & KÜHL, A. T. (2016). Memórias Vestidas: (Re)criação


de Moda a Partir da Memória. Revista Do Colóquio, 6(11), 79–87. Disponível em:
<https://periodicos.ufes.br/colartes/article/view/14638>. Acesso em 12 de abril de
2022.

ROCHA, Thereza. O que é dança contemporânea?: uma aprendizagem e um livro


de prazeres. Salvador: Conexões criativas, 2016. 133 p.

SÁNCHEZ, Lícia Maria Morais. A dramaturgia da memória no teatro-dança. São


Paulo: Perspectiva, 2010. 178 p. (Estudos, 259)

SACCARDI, BOTTER, MUNIZ // Em Conversa com Donatella Barbieri. Revista


Cena, Porto Alegre, no 30, p. 114-120 jan./abr. 2020 Disponível em:
<http://seer.ufrgs.br/cena>. Acesso em 2 de maio de 2022.

SILVA, Eliana Rodrigues. Dança e pós-modernidade. Salvador: EDUFBA, 2005.


286 p.

SILVA, Ildisnei Medeiros da. Encen...ação!? reescrevendo o roteiro: por um


ensino de teatro que (de)codifica e intervém na(s) cena(s) cotidiana(s). 2018 154 f.:
il. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de

79
Educação, Programa de pós-graduação em Educação. Natal, RN, 2018. Disponível
em: <https://repositorio.ufrn.br/handle/123456789/26402>. Acesso em: 9 de junho
de 2022.

SILVA, Salésia Marykelly Paulino da. A maquiagem criativa na construção de


personas cênico-performáticas: um caminho para a criação de narrativas
imagéticas. 2022. 74 f. TCC (Licenciatura em Teatro) - Departamento de Artes,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2022. Disponível em:
<https://repositorio.ufrn.br/handle/123456789/46201>. Acesso em: 30 de maio de
2022.

SPANGHERO, Maíra. A dança dos encéfalos acesos. São Paulo: Itaú Cultural,
2003.

VIANA, F. R. P.; MUNIZ, Rosane (Org.). Diário de pesquisadores: traje de cena. 1.


ed. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2012. v. 1. 310p .

VIANA, Fausto. Figurino e cenografia para iniciantes [recurso eletrônico] / Fausto


Viana, Dalmir Rogério Pereira – 2. ed. – São Paulo: ECA/USP, 2021. 47 p.: il.
Disponível em:
<https://repositorio.usp.br/directbitstream/f5893b45-2b16-4832-894b-76bdc21b49be/
003042303.pdf>. Acesso em: 9 de janeiro de 2022.

VIEIRA, Marcilio. S. O que pode o figurino na dança?. Arte da Cena (Art on Stage),
Goiânia, v. 2, n. 1, p. 97–108, 2015. DOI: 10.5216/ac.v2i1.36276. Disponível em:
<https://www.revistas.ufg.br/artce/article/view/36276>. Acesso em: 19 de junho de
2022.

80

Você também pode gostar