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FORTALEZA
2019
SALVIA BRAGA PINHEIRO
FORTALEZA
2019
SALVIA BRAGA PINHEIRO
BANCA EXAMINADORA
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Leo Silva, que foi um encontro que se deu no fim dessa pesquisa, e que
reverberou fortemente em tudo que ela é, nesse encontro entre as artes, as águas, a
cidade e seus dissensos.
The House, known as the Barão de Camocim Manor House, is a cultural and
historic heritage site of the city of Fortaleza, Brazil. Throughout its 130 years
trajectory, the building has been the object of interventions on its physical,
functional, and political structure. Currently a cultural center affiliated to Vila das
Artes, a complex run by the Municipal Secretariat of Culture with courses and
facilities for artistic production in several languages, a place for inventions that
surpass the small village of cobblestone road and tear up geographical and
existential barriers. From a memory intertwined with aristocratic bourgeoisie, to
periods of shutdown, opacity and "full-emptiness" of encounters and possibilities
(JACQUES, 2013). Territories of ruins, stains, marks, gaps, greatness,
pomposity, and ghosts from a colonial past, obscure as a partly-buried basement
where the staff, responsible for cleaning the Manor and serving the barons' family,
used to sleep. A place of passages, of smooth and striated (DELEUZE;
GUATTARI, 2012), of deactivation and activation, of public and private (SENNET,
1999), of interventions, of material and/or poetic constructions, of distributing the
sensible (RANCIÈRE, 2009), of creating dissent and disputes, as it occurred
when the building was temporarily ceded to a private institution, 'reformed' and
kept under the spotlight, or when it was occupied by artists, students and
members of the city's social and cultural movements. With the cartography
(DELEUZE; GUATTARI, 2012; ROLNIK 1988; KASTRUP, 20012), and the Site
Specific (BARRETO, 2007; ALBUQUERQUE, 2016), my research is made up of
immersions and interventions in creation processes, such as Lavação (2014) and
Replantio (2018), together with other artists in collective exhibitions, activating
new ways of inhabiting and inventing the House, taking into account the practices
and knowledges that emerge from it.
1 OS PORTÕES............................................................................................... 10
2 DA ESCADA LATERAL ............................................................................... 16
2.1 Questões ................................................................................................... 27
2.2 Experiência ............................................................................................... 28
2.3 Modos de pesquisar ................................................................................. 29
3 JARDIM......................................................................................................... 32
3.1 Lounge ...................................................................................................... 39
3.2 Do Patrimônio Cultural ............................................................................ 48
4 SALÃO .......................................................................................................... 56
4.1 Casa ........................................................................................................... 63
4.2 Replantio ................................................................................................... 66
4.3 Banheiro .................................................................................................... 76
4.4 Aguadô ...................................................................................................... 90
5 PISO SUPERIOR .......................................................................................... 93
6 PLANTA ...................................................................................................... 106
6.1 A Casa, a Praça, as Ruas ....................................................................... 109
6.2 Centro Cultural Casa do Barão de Camocim ....................................... 117
6.3 Concreto.................................................................................................. 119
6.4 Casa (Im)própria ..................................................................................... 121
7 PORÃO ....................................................................................................... 128
7.1 Vila Viva................................................................................................... 135
7.2 Ele Não .................................................................................................... 142
7.3 In(ter)venções com o Porão .................................................................. 143
7.4 Porta dos Fundos ................................................................................... 146
REFERÊNCIAS.............................................................................................. 152
ANEXO A ....................................................................................................... 158
ANEXO B ....................................................................................................... 160
10
1 OS PORTÕES
Figura 1 – Os Portões
Muito tempo se passa entre o momento em que a Casa fica fechada, vazia,
solitária, até o momento em que seus portões abrem novamente, o que envolve uma
série de processos, trâmites, movimentos por parte de instituições governamentais,
estudantes, artistas, comunidade, pais de estudantes, trabalhadores, instituições
privadas. Todos esses elementos, intervém de alguma forma nesse espaço. São
esses movimentos que acompanharei ao longo desse percurso, que é proposto
através de um movimento pela Casa, como uma caminhada, um convite a percorrê-
la, ativá-la, (re)inventá-la.
1Esse conceito de perturbação trazido por Gorczevski (2007) tem como referências os estudos de
Maturana e Varela
13
Por fim, Planta e o Porão. A planta, diferente das outras partes do texto que
apresentam cômodos, vem afirmar o todo em relação às partes pensando na relação
da Casa com seu entorno, com a cidade e com o traçado dos percursos através da
cartografia, dos mapas territoriais e existenciais. Trago um pouco do percurso da
Praça, que já viveu tantos nomes e momentos, da intervenção realizada com o
Laboratório de Artes e Micropolíticas Urbanas (LAMUR) na Casa, quando ela já se
institui como Centro Cultural, com exposições como a de Narcélio Grud, parte da
15
programação de Festival Concreto, que tem sua abertura na Casa, levando a pensar
em como esse espaço se constitui como Centro Cultural e como se relaciona com a
Vila das Artes e seus fazeres, finalizando com Casa (Im)própria, uma proposição
artísticas que realizo a partir de questões dessa pesquisa.
2 DA ESCADA LATERAL
última, principal sede da Vila das Artes, resistem sem grandes modificações
estruturais.
A ocupação dos estudantes e artistas na casa tem início com uma lavagem
do espaço de forma a reativá-lo, o que gera um vídeo feito coletivamente entre os
estudantes | realizadores (2007).4 A Ocupação tem o nome Sine por Cine (SPC),
devido ao fato de o casarão ter abrigado, antes de se tornar Vila das Artes, uma sede
do Sistema Nacional de Emprego do Instituto de Desenvolvimento do Trabalho (SINE
IDT).
A casa, que constitui o primeiro bloco da Vila das Artes foi inaugurada em
setembro de 2008, dois anos depois da solenidade realizada na Casa do Barão de
Camocim com a presença da então prefeita Luizianne Lins e do Ministro da Cultura
Gilberto Gil, quando foi firmado um acordo entre o Ministério da Cultura (MinC) e a
Prefeitura5 para a criação do complexo Vila das Artes, cujo projeto agregaria o casarão
em funcionamento desde 2008 (Figura 3), e os outros 2 prédios que o ladeiam, a
denominada Casa do Meio, onde funcionou a Fundação de Cultura Esporte e Turismo
(FUNCET), e a Casa do Barão de Camocim, tombada junto ao seu entorno pela
prefeitura de Fortaleza em dezembro de 2007 através do decreto municipal 12.304.
7 Equipamento cultural da Universidade Federal do Ceará inaugurada em 1971, com sala de cinema,
sala de aula, ilha de edição, núcleo de animação, dentre outros espaços
8 Ver reportagem do Jornal O Povo, disponível em:
https://www20.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2012/12/12/noticiasjornalvidaearte,2969944/era-
uma-vezum-alpendre.shtml. Acesso em: 23 dez. 2018
9 Disponível em: http://www.cinemaeaudiovisual.ufc.br/. Acesso em: 29 nov. 2018.
22
10 Museu da Imagem e Som onde havia um cineclube na construção da década de 50, atualmente
tombado e fechado para reforma
11 Governador do Ceará por três gestões (1987-1990, 1995-1998, 1999-2002), Senador da República
(2015-2018), ex-Presidente Nacional do PSDB, sua família tem grande influência política e empresarial
local e nacional, sendo ele proprietário de uma grande rede de shopping center pelo Brasil.
12 Jornalista e sociólogo, Ex-secretário de cultura, na gestão em que fundou o Centro Cultural Dragão
do Mar do Mar de Arte e Cultura, Presidente do Instituto de Arte e Cultura do Ceara (IACC), instituição
responsável pela gestão de Equipamentos como o Dragão do Mar e o Centro Cultural Grande Bom
Jardim.
23
cearense, com uma forma de teatro festivo e aberto. Em 2012, estreia Nossa Cidade, sua segunda
peça, realizando também shows, festas performáticas e um filme, voltando em 2013 para o mito
hamletiano com Hamlet: Solo, no Estoril, na Praia de Iracema, e fechando a trilogia Hamlet com Ros &
Guil Estão Mortos, dentro do Laboratório de Criação do Porto Iracema das Artes. Em seguida são
premiados pelo Rumos Itaú Cultural, onde desenvolvem o projeto UN-DEAD, inspirado em Drácula, de
Bram Stoker, projeto que leva o coletivo a uma imersão de quase seis meses pela Romênia.
Informações disponíveis em: http://mapa.cultura.ce.gov.br/files/agent/13256/hist%C3%B3rico_-
_coletivo_soul.pdf. Acesso em: 27 dez. 2018.
24
17 Praça histórica de Fortaleza, de nome oficial Praça dos Mártires, uma das mais antigas da cidade,
construída em 1890, e palco da execução de revolucionários da Confederação do Equador. Tombada
pelo IPHAN em 1965, sofreu com o abandono na década de 1990, sendo restaurada e reinaugurada
em 2007 pela FUNCET com o apoio da Casa Cor, que realizou um evento no Museu da Indústria, que
se localiza em frente.
18 Movimento cultural surgido na década de 1960, sendo um dos mais importantes da música
contemporânea cearense. O marco do movimento, criado por diversos artistas e intelectuais que
pensavam e crivam sobre as questões que inquietavam o país na época, foi o lançamento do disco
Pessoal do Ceará: meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem, em 1972.
25
turma vai à Secretaria de Finanças (SEFIN) vender dindin19 e uma coletânea de filmes
com produção de alunos, exibidos no jardim da Casa, como forma de manifesto 20 ao
descaso com a cultura e com aquele equipamento tão importante em nossa cidade,
que estava ameaçado de ter as aulas suspensas devido ao atraso de seis meses no
pagamento dos professores e funcionários. Atrasos esses bastante comuns21 em meio
ao cenário cultural da cidade, tanto em relação aos equipamentos e pagamento de
seus funcionários, quanto a editais e cachês.
19 Picolé em saquinho conhecido também como sacolé, geladinho entre outros nomes que variam de
acordo com a região. O nome faz alusão também à palavra dinheiro.
20 Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2v-IGmkaY90. Acesso em: 27 dez. 2018.
21 Algumas reportagens exemplificam: https://www.opovo.com.br/vidaearte/2018/04/ccbj-paralisa-
atividades-por-pagamento-desregulado.html
https://www.opovo.com.br/noticias/fortaleza/2017/08/tres-meses-apos-acordo-secultfor-nao-pagou-
edital-das-artes-2016.html
http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/verso/atraso-provoca-suspensao-de-cursos-da-
vila-1.808200. Acessadas em: 27 dez. 2018.
22 Cineasta e professor do Curso de Realização em Audiovisual.
23 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sYCM4yS30hg. Acesso em: 13 maio 2018.
26
quatro filmes a serem produzidos a cada ateliê, que têm duração média de um
semestre, com diferentes módulos e professores a cada semana. São os ciclos:
Imagem e Cidade, Imagem e Narrativa, Imagem e Espaço, Imagem e Alteridade e
Trabalho de Conclusão de Curso.
24 Denominação dada por João Miguel Lima (2016) para as ervas e plantas que crescem sem
planejamento ou intenção em meio ao espaço urbano, vista como forma de resistência política| artística
27
assombrado, e por isso deixada nas mãos de um Barão que já morreu há muito tempo.
Era a oportunidade de criar fantasmas outros, de fazer renascer um espaço morto de
herança colonial reinventando-o com arte.
2.1 Questões
25Evento do grupo Abril que ocorre anualmente em escala nacional, tendo uma filial no Ceará, que
costuma ocupar diferentes espaços da cidade, em grande parte casarões históricos, como foi o caso
da Casa do Barão de Camocim na edição 2016, da qual falarei mais em seguida
28
2.2 Experiência
3 JARDIM
O Ciclo Imagem e Espaço da EAV, que entre os demais, mostra uma maior
aproximação com as artes visuais e pensa o audiovisual dentro da perspectiva de
espaço, apresentou a possibilidade de aproximação com aquela Casa que já nos
movia desejos.
Temos a rua na Casa, onde quem está dentro fica protegido pelas grades
e muretas, pode-se admirar a rua das varandas dos quartos, protegendo o observador
do contato com os passantes externos, e temos a Casa na rua, sua intensa relação
com a cidade, sendo, porém, quase sempre inacessível ao público ao longo de sua
historicidade, quando pertencia à burguesia aristocrática, ou quando é desapropriada
pela prefeitura de Fortaleza e passa mais de 10 anos fechada.
Por ter um vínculo com a Vila das Artes, o espaço é tomado algumas vezes
por intervenções, sendo o lugar de filmes, cursos, intervenções artísticas,
experimentos, a Casa vai flertando com as artes ao longo do percurso de sua vida, e
cada vez mais. Nos tempos remotos quando Cecília de Camocim, a filha dos
baroneses, na salinha lateral fazia suas costuras, pinturas e bordados (BARBOSA,
2016), ou quando era emprestada para oficinas de vídeo, performances e a Exposição
da qual falarei a seguir.
[...] uma primeira segue a série das materialidades da casa, busca mapear
fissuras, instabilidades, marcas, memórias inventadas, paredes que
murmuram. Uma segunda linha, busca ampliar usos possíveis, ativar zonas
de permanência, de “estar”, ambientes, relações arquitetônicas,
reconfigurações do espaçotempo. A terceira linha segue os deslocamentos,
passagens entre a casa e a cidade, trazer perspectivas da cidade para a casa
e ao mesmo tempo inventar uma casacidade, um uso público de uma
arquitetura privada. (MÉRCIA; VERAS, 2014, grafia original).
O Liso nos parece ao mesmo tempo o objeto por excelência de uma visão
aproximada e o elemento de um espaço háptico (que pode ser visual,
auditivo, tanto quanto tátil). Ao contrário, o Estriado remeteria a uma visão
mais distante, a um espaço mais óptico – mesmo que o olho, por sua vez,
não seja o único órgão a possuir essa capacidade. Ademais, é sempre
preciso corrigir por um coeficiente de transformação, onde as passagens
entre estriado e liso são a um só tempo necessárias e incertas e, por isso,
tanto mais perturbadoras. (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 217).
Figura 8 – Extensores.
26 Cineclube contemplado pelo edital de cinema e vídeo da SECULT-CE, que tem a proposta de exibir
filmes que façam menção à gastronomia em conjunção com uma feira gastronômica dentro da temática
do filme exibido. A primeira edição, por exemplo, exibiu quatro curtas-metragens cearenses e tinha uma
feira com comidas cearenses.
27 Além de artista visual, diretor de arte, era ator e atuou em diversos filmes, incluindo muitas produções
3.1 Lounge
A Casa estava agora iluminada sob a luz dos holofotes e maquiada, o que
Jacques (2012) traz como zona luminosa da cidade, um espaço domesticado,
capturado, anestesiado, pacificado através da fabricação de falsos consensos,
esterilizando a esfera pública, nesse caso tanto no que se refere à casa, quanto à
Praça, que também é maquiada, espetacularizada, inclusive recebendo um grande
Festival, o Conecta, organizado pelo Instituto Solares, com feira gastronômica,
seminário, mostra de moda, design, artesanato e shows musicais contando com o
cantor e compositor Tom Zé, a banda O Terno, Duo Finlândia, da Argentina, e
atrações locais com Projeto Riviera e Nayra Costa. Para Jacques (2012), a pacificação
desses espaços públicos, que acontece por exemplo, com a retirada de moradores de
rua que ocupavam o local, e com o “embelezamento” de sua estrutura para a recepção
de eventos como os citados, busca esconder tensões que são inerentes aos espaços
públicos e esteriliza a experiência de alteridade nas cidades.
Ali passei bastante tempo, a fotografar aquelas imagens, via nas fotografias
o jardim que também habitamos, um lugar especial para aquela família, a escada onde
nos reuníamos e fizemos fotos da turma foi também a escada de fotografar tanta gente
outrora, de registrar a passagem de tempo, tantos tempos, refletida principalmente na
figura de Cecília, que naquele lugar cresceu, casou, teve diversos filhos, viu familiares
nascerem, morrerem, chorou, sorriu, celebrou, ficou de luto, teve seus cabelos
embranquecendo, a pele enrugando, a família se multiplicando, as casas dos filhos se
propagando ao redor de sua morada, formando uma Vila, viu seus filhos crescerem
a correr pelo solar, tornarem-se adultos, casarem, sempre fotografando os momentos
de união no espelho da sala que ali ainda estava.
43
Figura 11
Figura 12
44
Figura 13
Fonte: Fotos das fotos expostas na Sala da Família, Casa Cor, 2016.
Figura 15 – Olhos.
O evento finaliza e a Casa ainda fica nas mãos da Casa Cor, fechada para
as demandas da Vila das Artes que vão surgindo. Com excessão das casinhas dos
fundos, que abrigam atividades como apresentações da Escola de Dança, cineclube,
performances, exibições, casas essas que foram umas das partes mais modificadas.
A reforma dura cerca de dois anos, e a Casa é entregue à população no final de abril
de 2018, com a 69ª edição do Salão de Abril.
A Casa da qual venho falando, que não é a que se encontra na foto acima,
se constitui como patrimônio material e cultural da cidade de Fortaleza. Construída no
século XIX, feita para ser morada de uma família detentora de poder econômico e
aristocrático, foi tombada em 2007 através da Secretaria Municipal de Cultura, assim
como outras construções que retratam outros tempos históricos a partir de imponentes
modelos trazidos da arquitetura europeia o foram, por essa ou outras instituições, no
intuito de preservar suas estruturas e memórias, que se constituem como um conjunto
de traços que falam da memória do Brasil. Será? Não serão essas construções
49
32 Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/Decreto_no_25_de_30_de_novembro_de_1937.pdf.
Acessado em: 28 nov. 2018.
50
símbolos nacionais/locais para a maioria da população. O que não quer dizer que não
seja importante sua preservação. É necessário aproximar esses bens e fazeres das
pessoas, ampliar a educação patrimonial, a noção de patrimônio público, portanto de
todos, onde seja possível à população não só a entrada nesses espaços, mas o
interesse e “apropriação” coletiva por esses bens culturais. É preciso, mais que isso,
que se amplie a noção de bens a serem preservados, alargando esse escopo.
Amaral (2015), enfatiza a arte como dispositivo que faz o espectador sair
da posição de observador neutro da cidade, o colocando em ação, percebendo a
leste até a avenida Barão do Rio Branco e desta até a rua Meton de Alencar. Dentro
desse entorno se encontram as casas “anexas” ao do terreno da Casa, algumas delas
provavelmente construídas como alojamento para as pessoas que trabalhavam na
“Casa Grande”, mas estas puderam ser demolidas e/ou totalmente modificadas, por
não constituírem símbolos de poder ou não apresentarem algum tipo de exemplar
arquitetônico que retrate o modelo de uma época, um estilo, ou simplesmente por falar
de um povo, os que lá dormiam, que se apresentam invisibilizados historicamente,
que não aparecem nas fotografias daqueles tempos, nem mesmo as que retratam
aquele entorno, e que continuam a ser encobertos e não dignos de entrar nessa
memória protegida.
Entregar a reforma da Casa para uma instituição como a Casa Cor Ceará
gera a demolição das estruturas simples das casinhas que ficavam aos fundos, talvez
porque para estes que empreenderam as modificações, não constituem de
importância do ponto de vista econômico/arquitetônico/social, por não apresentarem
estruturas dotadas de poder nobre ou burguês, que podem inclusive fazer menção às
pessoas que constituíam a força de trabalho propulsora da morada, dos que serviam
à família nobre-burguesa.
[...] serviços que tenham por objetivo restabelecer a unidade do bem cultural,
respeitando sua concepção original, os valores de tombamento e seu
processo histórico de intervenções, [...] nos quais, para a realização de
intervenção, requeira-se conhecimento especializado (Portaria 420/2010 do
IPHAN).
Fonte: Foto 18 - Geovanna Correia, 2014. Foto 19: Site Casa Cor 36.
Uma das participantes do vídeo, Viviane Bizarria, disse que cinco alunos
da turma receberam uma bolsa para essa produção audiovisual, mas que não
puderam colocar seus pontos de vista sobre a “reforma” (aspas colocadas por ela), e
sim o que a organização do evento queria, o que gerou muita discussão, reuniões e
tentativas de manobra em busca de produzir algo que trouxesse mais seus modos de
pensar. A equipe de estudantes queria falar da história da Casa, de seu valor cultural,
do patrimônio, dos eventos que já aconteceram nela, e “até sobre a casa grande e
senzala que ela era, mas eles não queriam que a gente colocasse sobre isso”
(BIZARRIA, 2019, s/n). Segundo ela, a Vila deixou claro que eles podiam fazer o que
quisessem, mas em meio às discussões, não davam um posiconamento firme.
foi essa intervenção do setor privado com a legitimação do Estado no espaço, eles se
aproximam dos trabalhadores, das pessoas mais simples, das conversas cotidianas
da obra, e fazem isso através dos fazeres artísticos que conectam as duas Casas,
que mesmo como todas as dificuldades ao longo dos anos, mantém diálogo e ligação,
mesmo diante de todos os impasses institucionais que continuam a acontecer, dos
quais poderemos conversar mais nos outros tantos cômodos que lhe convido
novamente a entrar.
56
4 SALÃO
Figura 20 – Salão.
um-salao-esquecido-1.1826986 e http://tribunadoceara.uol.com.br/noticias/cotidiano-2/artistas-
sequestram-salao-de-abril-realizam-mostra-e-criticam-ausencia-de-recursos-da-prefeitura/, acessadas
em 8 jan. 2019
59
proponho a Mostra Fome, onde exibo o filme Garapa42 (JOSÉ PADILHA, 2009) e peço
que as pessoas levem alimentos para que sejam preparados43 por mim em um outro
dia, quando exibiria outro filme em local aberto, e serviria algo com as doações
arrecadadas. Como previa como uma das possibilidades, devido ao grande número
de artistas em relação aos curadores e produtores, e a dificuldade de se organizar em
meio a 160 participantes e poucos recursos, nenhum alimento foi arrecadado 44, e o
segundo dia da mostra foi cancelado.
42 O documentário mostra a vida de três famílias cearenses, duas do interior e uma da capital que vivem
em um regime de escassez alimentar, e por vezes utilizam da garapa de açúcar, daí vem o nome do
filme, para disfarçar a fome vivenciada cotidianamente.
43 Tenho uma estreita relação com a gastronomia desde a infância, minhas primeiras casas eram
também restaurantes de minha família, comecei a cozinhar profissionalmente aos 19 anos, quando abri
um bar e espaço cultural no restaurante que era da minha mãe, desde então continuo a cozinhar,
expondo quinzenalmente com comidas vegetarianas em uma Feira Agroecológica da cidade desde
2013. Uma das referências para esse trabalho foram as obras Café Educativo (2007) e Restauro (2016),
de Jorge Menna Barreto.
44 A arrecadação de alimentos demandava uma boa divulgação, o que não ocorreu por parte do evento,
acontecendo apenas através de minhas redes sociais, que são fechadas apenas para amigos e
conhecidos.
45 Disponível em: http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/verso/resgate-de-um-salao-
Segundo o Jornal O Povo47 (2018), o evento conta, em 2018, com 534 mil
reais para sua realização, valor que acabou sendo acumulado por conta da não
realização do Salão oficial no ano anterior. Ou seja, apenas uma pequena parte desse
valor é destinada aos artistas que compõem o Salão.
pesquisa e reflexão sobre a arte cearense. A primeira etapa do projeto foi desenvolvida com apoio da
SECULT Ceará, via Imaginário Instituto de Pesquisas em Arte, onde foram entrevistados artistas locais
como Sérvulo Esmeraldo, José Tarcísio Ramos, Estrigas, Acidum Coletivo, Emília Porto, Coletivo
Monstra e Hélio Rôla, entre outros. Informações disponíveis em
https://www.facebook.com/pg/Paulo.Klein.Arts/about/?ref=page_internal. Acesso em: 10 jan. 2019
49 Reportagem disponível em:
http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/verso/online/secultfor-corre-para-realizar-salao
-de-abril-no-prazo-1.1926501. Acesso em: 10 jan. 2019.
62
pensada em benefício de mais pessoas, que teriam seu trabalho exibido e divulgado,
indo também para o catálogo da exposição. No edital estava claro que os custos
referentes à produção dos trabalhos eram responsabilidade de cada proponente. Na
conversa isso foi amenizado por sabermos que a instituição se responsabilizaria por
equipamentos básicos como projetores, monitores e caixas de som desses 45 artistas.
4.1 Casa
- Foram dez anos à espera de uma reabertura desde o tempo em que deixei
de ser daquela família, no sentido de posse, e passei a ser da cidade. Antes disso já
me encontrava diante do vazio interno há anos. Gosto de ser habitada, mas tinha
minhas dúvidas quanto ao serviço daquelas pessoas. De certa forma eu me acostumei
com o amarelado das paredes, com a poeira. As aranhas a construírem teias me
faziam boa companhia. Sei do meu valor como patrimônio histórico e cultural desta
cidade, sei que eles não podem intervir bruscamente em minha estrutura, já que sou
tombada. Mesmo assim eles vieram, interviram, degolaram, arranharam, quebraram,
tiraram minha pele sem anestesia, fizeram implantes em meu corpo. Não perguntaram
se eu queria, se eu gostava. Me ignoraram. Ignoraram minha história, valor, vontades,
o tempo que guardei na memória. Por dentro fiquei tão branca que às vezes pareço
sem graça. Fechada, com portas de vidro e até um sistema de ar-condicionado,
acredita? Nem imaginei que viveria para ver algo assim.
Salvia:
Quanto ao seu novo interior, é o que O’Doherty (2002) fala sobre o museu,
o cubo branco, um espaço transcendental, onde a realidade exterior não habita. Fica
tudo isolado, asséptico, distante do que possa “prejudicar a apreciação das obras” que
vão colocar aqui. Você agora é um Centro Cultural, com uma galeria de arte. Viu os
quadros, objetos e esculturas que estão chegando? Elas vão ocupar suas paredes,
de algum modo, vão lhe reinventar, dar um novo modo de existir, e imagino que muitas
pessoas passarão por aqui também, mais que as aranhas ou aqueles fantasmas que
te fizeram companhia por um bom tempo. Mas olha, sabe a espiral de ervas que
removeram, assim como os mandacarus da escada? Vamos construir e plantar
novamente outros com a gente?
Casa:
64
- Sério? Por tantas vezes falei, mas ninguém me escutou. Já fui tantas, não
me incomoda mudar, me incomoda o modo como tudo isso aconteceu, como sempre
passavam por cima de mim, às vezes por cima do que sou, de minha existência, de
minha história. Soube que não é só comigo, que é um problema da cidade, uma cidade
sem memória, onde se valoriza mais o novo, onde se derruba casas, árvores, para
construir viadutos, novos prédios, cada vez mais altos, para instalar ar-condicionado
para que se esqueçam o calor que faz uma cidade sem árvores. Sinto muita falta das
tantas árvores que me habitavam há tempos atrás, quando um pomar rodeava meu
entorno. Adorava o cheiro e o gosto das frutas que às vezes caíam no chão e eu sentia
aquele gostinho entre o doce e o azedo dos sabores locais. Agora sofro com o calor
dessa cidade quase careca de vegetações.
Salvia:
- É verdade. Tive que passar por muita coisa até chegar a te ouvir, te
perceber, se é que realmente o faço, tenho ainda dúvidas quanto a isso. Como fico
feliz de poder de alguma forma te dar voz, compor seus silêncios para que outras
pessoas ouçam e percebam com toda essa complexidade, com toda essa potência
que vibra, emerge e cria nos processos vividos. Vem com a gente replantar, Casa!
estas agruras, há uma que Fortaleza padece de sua força combativa: nas
ruas, poucos cajueiros resistem; e dos que se foram, poucos foram
lamentados. Movimenta-se em um disfarce imóvel, paradoxo que preza,
sobretudo, pela fácil memorização de seu suposto ethos. Um passo muito
perigoso que pode, inevitavelmente, apontar para um futuro em que não
apenas a cidade se esqueça de si mesma, mas que seja completamente
despida de sua singularidade, um lugar para onde as viagens serão inúteis.
4.2 Replantio
Replantar com a Casa o que foi removido para a construção da Casa Cor
é uma forma de resistir e reexistir, trazendo na memória o fazer de um artista que
realizou esse movimento de existência e (re)existência pelas ruas de Fortaleza,
plantando em canteiros vazios e terrenos baldios, e que em materialidade, não o faria
mais, por ter deixado sua existência material no ano de 2016, com alguns trabalhos
em finalização e um grande arquivo de obras, como os objetos construídos e/ou
cobertos por espinhos, entre santos e tapetes, e diversos cactos por ele plantados em
jarros ou ao ar livre.
51Artista visual, realizador em audiovisual de filmes como Linz – quando todos os acidentes acontecem
(2013) e As Vilas Volantes – o verbo contra o vento (2005), professor de todas as turmas da EAV,
membro do Conselho da EAV, fundador da ONG Alpendre – casa de arte, pesquisa e produção.
67
Em pouco tempo esse espaço não será mais acessível àquela comunidade
que tanto o vive. Um lugar agradável e arborizado onde pude colher os mandacarus
que buscava, e também deitar em redes armadas entre árvores, com a sombra dos
pés de cajás que também colhemos para o suco da tarde, saboreados junto com
tapioca enquanto as crianças dali brincavam junto à minha filha, em meio às árvores,
com os cachorros, entre as conversas dos adultos com as pessoas que trabalhavam
na construção do condomínio, que mantinham relações com aquela parte de minha
família e com as demais pessoas que moram ali.
Mais uma vez vem a construção do novo, que passa por cima das árvores,
da fauna, da flora, dos fluxos de água que circulam no praticamente único espaço que
aquelas pessoas têm para um respiro no cotidiano, que aquelas crianças têm para
brincar, para conviver. Em breve virão mais muros que separam os novos moradores
dos que cresceram brincando no terreno, que era a extensão de suas casas, divididos
mais que pelo muro, pelas condições socioeconômicas.
68
Muitos lembravam da espiral que já esteve ali. Ficava a cada momento mais
satisfeita com cada ação, esforço, suor, com cada toque de perfeccionismo do
Juninho, que se esforçou e se dedicou muito para desenvolver esse trabalho.
Tínhamos pessoas da rua fruindo do nosso fazer, não estaríamos resguardados por
paredes no cubo branco, estávamos entregues a esse trabalho, construindo
resistência, efetivando a teimosia em estar ali, em uma jornada de construção que ia
das 8h às 18h. Ali comemos, sentimos sede, cansaço, observamos, fomos
observados pelos passantes, trabalhadores, artistas, curadores. Recebemos
71
Nos assustamos às vezes nessa relação com a rua, como quando havia
um cachorro preso na Praça, seu tutor estava comendo uma tapioca de uma
barraquinha, o cachorro se soltou e correu para cima de um senhor idoso, que caiu
da calçada para o asfalto batendo a cabeça, causando um ferimento que deixou o
chão marcado pelo seu sangue. Ele quase ia sendo atropelado por um ônibus que
passava, gritamos, eu e Junior, o motorista parou impedindo que algo ainda pior
acontecesse. Fiquei com uma sensação horrível, minha pressão baixou, e a Casa
disse:
- Eu que sou grata pela recepção, diálogo, cuidado, pelo abrigo dos meus
sonhos e devaneios. Como mexe comigo te ver ferida ou ver aquele homem
sangrando no asfalto! Não sei como pode não ser uma afecção que mexe com todos.
Espero sempre estar para gritar, mesmo que em silêncio quando for necessário, antes
que morram mais casas, histórias, cidades, abrigos, sonhos, plantas, pessoas, por
mais que nem todos possam ouvir.
72
[...] exercício gráfico que busca uma justaposição entre corpo e cidade. Uma
biologia urbana em uma única célula. As estacas e os adesivos fazem
referência a verticalização das cidades, ao modo como as árvores são
plantadas no meio urbano e até aos riscos que marcam, nas paredes, a altura
das crianças.
52 Acho incrível ao longo dessa pesquisa o quanto vou me encontrando também com esses fazeres
próximos dos que passaram pelo PPGArtes, o quanto as pesquisas produzidas por um dialogam com
as pesquisas dos outros, incluindo a minha, e o quanto a própria cidade, ou mesmo a Casa proporciona
esses encontros, diálogos, partilhas, com discentes ou mestres do Programa, ou com artistas da
cidade, do país, do mundo, que compartilham modos, pensamentos fazeres que entram nesse circuito
de sintonias e afetos.
73
eles se tornam melhores, a partir da base que você construiu. Espero que continuem
a intervir, doar e colher para que esse amor-resistência-verde se espalhe por outros
lugares.
Enquanto estava mais por lá, tinha a oportunidade de ver, antes de muitas
outras pessoas, o que estava se passando por ali. Percebo uma curiosidade e um
cuidado em relação a Casa e de como se dará sua ocupação não só de minha parte.
Quando me coloco em contato com a rua percebo o quanto as outras pessoas também
desejam desse espaço enquanto público, por muito tempo posto às margens.
53 Disponível em:
https://www.facebook.com/secretariadeculturadefortaleza/videos/3514467445237453/?t=12.
Acesso em: 1 jun. 2018.
76
que resistem aos asfaltos, paredes, muros e crescem em meio à cidade, como
observa Lima (2016), ao aproximá-las dos fazeres artísticos e políticos. Ao mesmo
tempo em que aquelas pessoas praticam o urbano (CERTEAU, 2014) e se realiza a
Partilha do Sensível trazida por Ranciére (2009).
Casa:
-Vamos.
4.3 Banheiro
Em uma das primeiras idas à Casa, subo para explorar seus espaços e ver
como ficou e como está sendo montada a exposição junto com Maíra Ortins, artista
também selecionada no Salão de Abril. Ela ficou bastante satisfeita, se
surpreendendo, pelo fato de na cidade não haver algo parecido, com tamanha
estrutura para um espaço artístico-cultural. E de fato, para quem não conhece aquele
77
54A instalação é parte do trabalho de pesquisa do artista, mestre pelo PPGArtes UFC, e atualmente
doutorando pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
79
É por isso que desenvolvo Lavação, que tem como uma das referências a
lavagem feita pelos estudantes da primeira turma da EAV na outra casa, que hoje é
ocupada e se constitui como espaço de suma importância na/para/com a cidade, um
lugar de fazer e intercambiar arte e política que necessitou da força de estudantes e
artistas para que se constituísse efetivamente, processo trazido com mais detalhes no
Caderno Escada Lateral.
55A ocupação da casa que atualmente compõe a Vila das Artes, que se denominou Sine por Cine
(SPC), mencionado com mais detalhes no caderno Escada Lateral
81
Formada pela terceira turma da EAV, diretora do curta Ruralidades, Mestre em Ecologia pela UFC e
56
Como o vídeo57 não tem crédito, menciono aqui esses que compuseram
comigo a instalação: Geovanna Correia no som direto, Vinícius Alves na fotografia e
no som adicional, eu, como proponente, roteirista, produtora, pesquisadora etc.,
Renata Cavalcante na produção, Virginia Pinho e Renê Miranda na produção de set,
e as já citadas Bruna Araújo e Dani Chaves. Entre os que não aparecem na foto
(Figura 27), estão os que montaram a espiral parte da instalação, Tomé Braga, Danilo
Frota e Breno Costa, Hylnara Vidal na preparação de elenco, os técnicos da Vila
Eudes Freitas e Thiago Damasceno, além de Rúbia Mércia, Raísa Christina na
coordenação e assistência, respectivamente, e os orientadores do Ciclo, Alexandre
Veras e Waléria Américo.
Figura 28 – Mãos.
qual ouvi críticas de algumas pessoas também, por ser escuro desconfortável, longo.
Mas são projetos que não realizamos sozinhos, precisamos lidar com os diferentes
desejos e pensamentos.
Ele vê o nosso material e diz que não temos um filme/vídeo. Isso acontece
muitas vezes na Escola, não sei dizer se isso é bom ou se é ruim, quando na verdade
ruim e bom não existem. O que existe são forças que modificam, por vezes
violentamente, aquilo que existe, exigindo a criação de um novo corpo
(ROLNIK,1993). Nos casos mencionados, surgem novos filmes, novas ideias, novos
conceitos, o trabalho já não é mais o mesmo.
58 Roteirista, montadora, diretora de arte. Graduada em audiovisual pela UFC e Formada na terceira
turma da EAV, atualmente trabalha e estuda audiovisual em Portugal.
59 Diretor, montador, Mestre em Estudos de Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal
pela Universidade de Lisboa, especialista em Audiovisual e Meios Eletrônicos pela UFC, Graduada em
Artes Visuais pela Faculdade Grande Fortaleza.
85
naturezas, onde as relações ocorridas durante o processo constituem a obra, que vai
ganhando complexidade a partir das novas relações.
tomei como referência estão: Depois do Banho (1910), após o Banho (1886) e a Banheira (1886).
64 Artista visual, doutoranda em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
Figuras 29 a 33 – Lavação
Figura 29
Figura 30
que foram referência para Lavação: Preparando-se para Emergir (2005), Tomando Fôlego (2006),
Vertigem (2006), O Banho (2008) e Tempo de Paisagem (2008).
87
Figura 31
Figura 32
88
Figura 33
Foto 29: Bruna Araújo, 2014. Fotos 30 a 33: Vinicius Alves, 2014.
até hoje, em especial na pesquisa que agora componho, junto a outros fazeres por
este e por outros acontecimentos reverberados.
de outros modos, seja com uma goteira na Casa, mesmo que luminosa, branca e
reformada, seja com um dilúvio na minha casa(im)própria e na vida, como aconteceu
no momento da qualificação, molhando livros que estava lendo sobre cidade, artes e
patrimônio, emprestados por Deisimer, alguns irrecuperáveis, alguns resgatados com
marcas dessa experiência e devolvidos para minha orientadora, que lembra da
necessidade de trazer esse acontecimento para a pesquisa e para a escrita.
4.4 Aguadô
66 Artista visual e realizador, aluno da quarta turma da EAV, Mestrando em Comunicação pela UFC.
Participou do 69º Salão de Abril e escreveu o artigo Micropolítica da Amizade no Coletivo Alumbramento
Filmes, uma das referências dessa pesquisa (SILVA, 2014)
91
fonográficos do país, bem como um grande acervo de imagens históricas de Fortaleza e outros
municípios.
92
5 PISO SUPERIOR
A Praça, que sempre olha para mim, que já teve tantos nomes e
homenageava naqueles tempos um visconde, o de Pelotas, era considerada uma
zona marginal da cidade, um grande areal ladeado pelo odor fétido de uma fábrica de
sabão e de um frigorífico, junto à iluminação de óleo de peixe que se espalhava pelo
resto da cidade. Ali via o movimento dos bêbados, das prostitutas, do bonde que vinha
do Benfica (ALMEIDA NETO, 2015).
Aos 17 anos, Geminiano Maia muda para Fortaleza deixando Aracati, que
“havia perdido o domínio de um Ceará Colonial, repartido com o município de Icó”
(VASCONCELOS, 2016, p.98). A atual capital cearense havia recentemente ganhado
autonomia da capitania, em 1799, se tornando capital oficial, sede das autoridades
97
Quando completa 31 anos, sua fortuna atingia um volume em que ele podia
viver bem sem ter que trabalhar. Já Fortaleza passava por uma grande crise, gerada
98
pela seca no estado, que traz diversas camponeses em condições precárias para as
ruas da cidade (NEVES, 2005), para saber mais, vá ao Porão.
Mas como riqueza e poder não são soluções para tudo, a morte também
chega à família dos barões. Primeiro se foi Teresa, a mãe dele, depois o cunhado,
Manoel da Costa, e logo em seguida sua irmã recém-viúva, Rosa Maia, que tinha três
filhos. Um deles se chamava Geminiano, como o tio, apelidado de Jimmy, que foi
criado como filho pelo casal de baroneses.
Para superar os dias difíceis, eles podiam viajar à Paris. Eu não, ficava
sempre por aqui. Levaram as crianças Cecília e Jimmy, no momento em que se
aproximaram da família imperial brasileira, que estava exilada ali. Encontravam-se
semanalmente com a Princesa Isabel e o Conde D’Eu, os filhos das duas famílias
71As informações a seguir, sem indicação de autoria, são da mesma autora, junto das vozes da Casa
e minhas.
99
Mesmo indo para longe, essa figura sombria não hesitou em lhes visitar
novamente em Paris. Jimmy pegou meningite, e ali não resistiu, vindo a falecer. Foi
uma grande tristeza para eles e para mim também, que criava afeição pelos que me
habitam, em especial pelas crianças que me trazem sempre mais vida e invenções.
Três anos depois a família volta para Fortaleza, quando o já Barão retoma
seus negócios e assume a presidência da Associação Comercial do Ceará junto de
outros associados. Pretendiam abrir um banco denominado Banco Comercial,
Agrícola e Industrial. Conseguiram arrecadar uma boa soma de dinheiro, mas não
entraram em acordo quanto ao estatuto. Com o dinheiro arrecadado, resolveram abrir
uma sede para a associação, cujo projeto de construção veio de Paris, e durante anos
foi considerado um dos mais belos de Fortaleza. A edificação foi nomeada Palácio
Guarani, provavelmente em referência ao romance homônimo de José de Alencar
(1857), escrito na fase indianista do escritor, homenagem que ele estenderia à sua
filha.
72Nas fontes encontradas (BARBOSA, 2016, PREFEITURA DE FORTALZA, 2016), o apelido é escrito
com a letra y ao final.
100
Figura 38 - Baroneses e filha, performance com Euzebio, Grá Dias e Wanessa Malta
73Nesse caderno, utilizo as fotografias do arquivo da pesquisa de maneira ficcional, de forma a criar
uma certa narrativa que ilustra de modo um tanto irônico/cômico, os fatos que venho contando, como
nas imagens da performance realizada pelos estudantes da primeira turma da EAV, Euzébio
Zloccowick, Grá Dias e Wanessa Malta como os baroneses e sua filha Ceci, e agora com a imagem da
Figura 37, que mostra uma multidão composta por militares e alguns civis, aparentemente os detentores
de poder que se encontram em grande parte das fotografias da cidade e desse espaço, A Casa
naqueles tempos, deixando outros corpos invizibilizados. A imagem mostra, provavelmente, um dos
desfiles militares que aconteciam na região em datas cívicas (ALMEIDA NETO, 2015), e foi aqui
empregado como uma figura ilustrativa do dia do enterro do Barão, que, segundo Barbosa (2016),
reuniu uma grande multidão acompanhada por militares que percorreram a cidade da Casa até o
cemitério São João Batista
102
Carmem Barbosa Chaves, junto de sua filha Maria Luiza, foram as últimas
da família do Camocim a aqui habitar, saindo em 1990, ainda me mantendo de longe.
É o que eles fazem com os velhos, não é mesmo? Pagam para alguém manter e ficam
104
com a consciência tranquila. Desde aqueles tempos, diante da solidão, flertava com o
cinema, e curtia umas festas de vez em quando. Fui set de filmagem e palco para
antológicas festas à fantasia. Em 2006 fui desapropriada pela Prefeitura, tornando-me
patrimônio público.
Mas nem tudo é belo. Passei anos vazia, faziam falta os sorrisos das
crianças, o cheiro de comida boa vindo da cozinha até a mesa, onde todos sentavam
elegantes e famintos, o som da água a regar o pomar colorido, as poses para as
fotografias, as pessoas. Cada cômodo se esvaziava de gente e enchia-se de poeira e
resquícios do passado. Fantasmas às vezes me faziam companhia nos vazios
noturnos para que não ficasse tão só, os daqui de dentro, os de fora, tão mortos
quanto o Centro depois das 18h e a pequena cidade de outrora. Minhas paredes
rachavam, o teto ruía, as plantas ocupadeiras (LIMA, 2016) cresciam sob a sólida
estrutura de concreto, e por alguns momentos eu me encontrava com os fazeres
daquela casa da esquina, me reinventava, me alisava (DELEUZE; GUATTARI,2012).
[...] é bizarro como em 2019 ainda tenha sinhá ocupando espaço público de
exposição. Mesmo entrando pela porta dos fundos, a exposição Aguadô vai
abrir dia 31 às 19h e fica até o dia 28/2 na Casa do Barão de Camocim
(SILVA, 2019).
105
6 PLANTA
Figura 41 – Casa.
A Planta que aqui trago se difere dos outros cadernos apresentados nesse
trabalho, cada um dos outros correspondem a partes da Casa, e consequentemente,
aos modos como se entra nesses espaços, de como se fala, do que se fala em cada
parte dessa Casa e dessa arquitetura do texto, e o que ela nos leva a pensar,
questionar em cada uma destas partes. Estamos dentro ou fora? Estamos em um
espaço íntimo, ou em um espaço formal como uma sala de visitas? O que se fez ali,
o que se produziu, quem ali viveu? Onde eu, leitor, posso entrar, e de que modo entro?
Quero ir apenas em um cômodo, ou fazer um percurso com a Casa inteira? Revisito
alguma parte dela? Me demoro em algum de seus espaços, ou prefiro nem adentrar
algum? Que sensações cada um provoca?
Nos tempos em que começo a frequentar a Vila das Artes, a Praça já perde
há muito tempo o glamour das apresentações artísticas, das paradas militares e
inaugurações monumentais. É tomada pela degradação, pelo piso em pedras
portuguesas que se descolam, o pequeno campo de futebol de areia desgastado,
pelos moradores de rua que a ocupam principalmente à noite e o medo que alguns
têm de frequentar, as barraquinhas de lanche e a banca de revistas nomeada “do
Barão”, as tantas oficinas de moto que a contornam as imediações.
Da Praça podemos ver a Casa, composta por mureta baixa, com pilares e
espaços, entremeados por grades de ferro. Um largo portão dava acesso à passarela
de mosaicos hidráulicos, que levava até a escada da entrada principal. Parte desses
elementos continuam presentes, outros foram modificados. É o caso da fachada, que
possuía listras horizontais, provavelmente na cor vermelha e o telhado de platibanda,
“ladeado por duas saliências aparentes arrematados por lambrequins”
(VASCONCELOS, 2016, p.101).
A cozinha por vezes fica assim, como lembrança e afeto das comidas feitas
na ocupação Vila Viva, ou como um lugar de cansaço dos que preparavam os
elegantes jantares, do cheiro, dos sabores exalados em outros tempos, do choro, do
riso, dos barulhos das panelas batendo de quando a cozinha já foi mais viva. O espaço
tem como projeto atual abrigar um café, o Café Imagem.
Descartes Gadelha. Cada envelope guarda, além das pistas do próximo passo, um
pouco do percurso da pesquisa e do que apresento nessa escrita em cada
caderno/cômodo, ou pelo menos as ideias iniciais que tinha naquele momento. Vamos
ao Andar Superior, Intervimos no Banheiro com uma pequena exposição improvisada
com fotos que havia imprimido para a apresentação, depois vamos à entrada do
Porão. O tesouro ao final da proposição era uma caixinha, colocada na porta do porão,
onde não pudemos entrar. Uma barreira era formada por diversos objetos, entre
plástico-bolha, pedaços de papelão e madeira.
Figura 39
116
Figura 40
Figura 41 Figura 42
76 Bairro da periferia de Fortaleza que comportou, durante 20 anos, um depósito de lixo da cidade, que
foi desativado há mais de duas décadas, mas ainda comporta uma grande montanha de lixo, fezes,
lama, encoberta de vegetação. O entorno é habitação de diversas famílias, muitas delas foram/são
sobreviventes do lixo como fonte de renda, para os que vivem e viveram em condições muito precárias.
Descartes residiu o lixão para a produção da série composta de mais de 70 quadros que retratavam
essas pessoas que ali (sobre)viviam, gerando impactos póstumos em sua saúde.
77 Em 2016, o prefeito Roberto Cláudio é reeleito, e em 2017, há o momento da troca de gestão, que
gera grande impacto na Vila das Artes. Muitos funcionários são demitidos, outras pessoas são
colocadas no lugar, mudam-se os membros do Conselho sem uma prévia consulta com quem estava
na gestão do espaço. Isso gera um movimento por parte dos artistas, estudantes, alunos e comunidade
que converge em uma ocupação na Casa, trazida em mais detalhes no Porão.
118
relação com a instituição, sem ao menos consultá-los. Foi estranho devido ao fato de
Descartes, apesar de sua participação ativa na cidade, em se tratando da cultura e
das artes, em especial com a música e com as artes plásticas, não ter relação como
os trabalhos realizados na Vila das Artes, que têm como ênfase a formação em
audiovisual, dança, embora agregue as artes em seus diversos modos e linguagens.
Além dele, diversos outros “conselheiros” foram inseridos sem que tivessem relação
prévia com o espaço ou mesmo com a Cidade.
A demanda de que sejam levadas para esse espaço criações feitas com a
escola de audiovisual, de dança, e com as outras formações que dali brotam, que são
tantas, em quantidade e qualidade, e por vezes pouco conhecidas e divulgadas em
119
âmbito local, não está se efetivando da melhor maneira. Esse fato tem causado
insatisfação por parte dos estudantes, como aconteceu com Leo Silva e outros
colegas da quarta turma, que produziram uma instalação78 como um dos trabalhos de
conclusão de curso, conseguiram o espaço da Casa, mas não constam como a
“exposição oficial”, e por isso precisaram utilizar a porta dos fundos como entrada da
instalação até que a exposição do térreo seja montada. Mas, como diz Rolnik (1989,
p. 73), “todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas”.
6.3 Concreto
depois os portões abriram, podíamos caminhar pela parte externa, do jardim até os
fundos onde fica a Casa do Meio. A Casa perdurou fechada por alguns minutos,
enquanto era servido um coquetel. O que se anunciava como a abertura do Festival
Concreto, se revelou a abertura da exposição de Narcélio Grud, organizador e
fundador do Festival. A segunda exposição que o espaço enquanto Centro Cultural
abriga, novamente é uma exposição individual de uma pessoa que tem proximidades
com a Secretaria de Cultura de Fortaleza. A Exposição intitulada Dhamma, fica em
cartaz durante dois meses, de novembro de 2018 a janeiro de 2019.
Figuras 43 e 44 – Dhamma.
Figura 43
Figura 44
bem mais, já que preciso dividir o lugar das imagens com as palavras e letras.
Proponho primeiramente uma mostra intitulada Fragmentos de Criação na Casa, com
algumas dessas fotografias do espaço antes da reforma, seus recortes, ruínas,
amontoados de objetos e alguns processos de criação. O tempo entre essa proposta
e a exposição foi longo o suficiente para que eu a mudasse de acordo com o fluxo da
vida.
Depois, lembrei da casa seguinte, na Aldeota, onde morei até os vinte anos
de idade, também demolida, desta vez para a construção de parte da linha leste do
metrô de Fortaleza, obra que no momento encontra-se parada. Vou em busca das
fotografias dessas duas casas, no tempo em que morava nelas, encontro várias, que
retratam mais a uma infância feliz e simples nos restaurantes-casas da minha família,
que propriamente as casas, suas partes e arquiteturas, construções históricas que
dizem de uma certa temporalidade e estilo de arquitetura na cidade de outros tempos
e outros modos de fazer, construir. Proponho um trabalho com essas fotografias, de
infância e as atuais, com as casas demolidas tendo apenas os muros externos, no
que intitulo Casa (Im)própria.
Figura 45
124
Figura 46
Figura 47
125
Figura 48
Figura 49
126
Figura 50
Figura 51
127
Figura 52
7 PORÃO
Figura 53 – Porão.
Figura 54 – Retirantes.
Diante desses fatos, fica mais claro entender por que fomos o primeiro
estado a abolir a escravidão, em um território que tinha dificuldade de acolher tantas
pessoas em condições de miséria, e com mão de obra de sobra a baixo custo. Além
disso, grande parte dessas pessoas vindas do campo, eram descendentes dos negros
escravizados.
Houve uma grande ebulição do movimento abolicionista, com uma
campanha antiescravista, que junto aos jangadeiros, em 1881, fecharam o porto da
cidade ao tráfico negreiro, resistindo às imposições da polícia (GIRÃO, 1984). O
movimento foi liderado pelo jangadeiro Francisco José do Nascimento, ou Chico da
Matilde, o Dragão do Mar. Em 1882 surge o “Centro Abolicionista”, desempenhando
importante papel em prol da abolição dos negros. Após 3 anos de luta contra os
negreiros e escravistas, no dia 25 de março de 1884, é assinalado o fim da escravidão
no estado do Ceará, um ano depois da abolição em Fortaleza, que ocorreu em 1883.
Cinco anos depois, em 1888, a Princesa Izabel assinaria a Lei Áurea, abolindo a
prática, pelo menos no âmbito legal, no território brasileiro.
É fato corriqueiro ouvir que no Ceará existem poucos negros em
comparação a outros estados brasileiros. De acordo com Raimundo Girão, (id.), em
1819, havia no Ceará uma população de 145.731 pessoas livres, e 55.439 submetidas
a escravidão, ou seja, 27,6% da população era composta por pessoas escravizadas,
o que, comparado a outros estados na mesma época, deixa o Ceará entre os estados
com um dos maiores números de pessoas exploradas cruelmente como mercadoria.
Três décadas depois, o número da população livre aumenta, e o de escravizados
diminui, um dos fatores atribuídos a isso foi a seca, ocorrida de 1845 a 1846, onde os
mais vulneráveis morrem ou são vendidos a outras províncias. Diante da escassez
material, a falta de gado e dos últimos objetos de valor, era costumeiro trocar essas
pessoas pelo valor ínfimo de uma carga de farinha. O número de cativos vai
diminuindo, somando-se ao fato da Lei do Ventre Livre, que alforriava os nascidos de
mães escravizadas, além das epidemias, óbitos, emigração e a grande seca que
perdurou de 1877 a 1879. Outras ondas de seca se seguiram no estado, entre elas a
de 1889 e 1915. Portanto não há dúvidas de que estas paredes fortemente edificadas,
que hoje acolhem quadros e outras obras de arte, têm o suor e sangue dos retirantes
e daqueles que durante um momento lamentável da história foram escravizados.
De acordo com Cerqueira (2018), a população negra escravizada atuou
firmemente por sua libertação, mas diante da impossibilidade de tal fato, demonstrava
resistência de outras formas, por exemplo, usando de suas memórias e marcas na
execução dos trabalhos em que eram forçados a exercer. Ela dá o exemplo dos
africanos ferreiros com o símbolo sankofa (Figura 55), uma variação do ideograma
adrinka. Sankofa é um pássaro africano de duas cabeças que, segundo a filosofia do
povo Akan, significa “nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou atrás”
(s/n), que segundo a autora, os colonizadores desconheciam, mas aqueles vindos do
continente africano identificavam como uma simbologia de luta, resistência e
preservação de suas histórias. Procuro pelo símbolo nos portões da Casa, mas não
encontro, até que revejo uma foto feita por uma amiga de dentro do porão enquanto
eu observava o espaço pelo lado de fora, e ali está o símbolo do pássaro, que um
junto do outro, lembra ao formato de coração (Figura 55).
Em uma das últimas visitas à Vila das Artes, quando passava pela lateral
da Casa, vejo um homem negro com uma camisa que estampa esse símbolo e o nome
Sankofa, mais um fragmento dos acasos e dos retornos (DEULEUZE, 2007) que
sempre surgem em meio ao caminhar.
133
Figura 55 - Sankofa82
Fonte: desconhecida
escravatura, uma casa com um pavimento soterrado, de amplo espaço e planta com
divisão espacial semelhante aos demais pavimentos. A diferença é que é preciso se
abaixar para cruzar aquele, dito em Barbosa (2016) como alojamento dos criados
durante parte da história da Casa, dos corpos que suam para manter o requinte e a
perfeição dos espaços visíveis, dos que preparam as refeições e mantêm o grande
pomar que a baronesa admirava. É possível ver diversos armadores de rede ao longo
do cômodo. Em seu projeto inicial, pode ter sido construído para os corpos
escravizados, no espaço que remete a uma senzala, que faz as pessoas mais
sensíveis sentirem calafrios ao adentrar.
Figura 57
Figura 58
mantinham proximidade com a Vila das Artes e/ou com seu processo de construção,
alguns nem mesmo se relacionavam com a cidade de Fortaleza. Não se conversou
com alunos, professores, membros anteriores do conselho, ou com os fóruns de
linguagens da cidade.
Que as águas um dia consigam lavar todo esse universo que circunda essa
Casa e essa instituição, tomada mais que por fragmentos, sujeiras, fantasmas,
impossibilidades, problemas que têm uma profunda raiz nos modos como tem se dado
as políticas culturais em um panorama não só local, mas que se estende para todo o
território nacional, onde a cultura nem sempre é entendida como uma base
fundamental para o desenvolvimento sustentável em suas variadas instâncias.
[...] a Vila Viva surge de um embate em que a máquina do Estado não entende
que a arte não é um meio no qual se enquadra, pois o entendimento do
Estado com a diversidade cultural é finito a figuras que não tateiam nem um
terço do que essa cidade é e vive. (VILA VIVA, 2017).
havia sede e o alunos da primeira turma ocuparam o casarão que hoje corresponde à sede principal
da Vila das Artes, localizada na rua 24 de Maio.
140
A gestão da Diretora vai até agosto de 2018, quando Mileide Flores assume
o cargo do equipamento. Mileide é conhecida por sua militância na Literatura do
Estado, tendo organizado edições da Bienal do Livro no Ceará e ocupado o cargo de
Coordenadora de Políticas de Livro e Leitura da SECULT. Apesar de seu desejo, a
biblioteca do equipamento ainda não demonstra uma ocupação efetiva dentro de toda
a potência que poderia oferecer, diante de diversos exemplares lá dispostos, poucos
alunos acessam o equipamento e seus materiais.
Hoje é meu último dia na Vila das Artes! Aproveito aqui para fazer uma
reverência a todos que aqui estiveram antes de mim, principalmente aos que
fizeram dela o que... é, ou foi (!?). Reverencio aos que ocuparam uma
estrutura que não tinha estrutura e que a fizeram existir e ser um equipamento
de formação indispensável para a cidade. Reverencio aos que lavaram as
suas escadarias, aos que se amarraram em árvores, aos que estiveram nos
gabinetes, nas salas, nas discussões, nos embates, nas cobranças, nas
exigências, na construção de sentidos, na luta para construir um espaço que
nasceu democrático, nasceu da necessidade de uma cidade, que nasceu,
literalmente da luta.
[...]
O que mais marcou? Acho que perceber, no modelo das escolas, formatos
inclusivos, vanguardistas, e, especialmente que é possível pensar em
formação artístico-cultural de forma ousada, humanística. Me marcou o fato
de entender que crianças podem dançar, sejam elas gordas, magras, ricas,
pobres, brancas... e que é saudável a convivência de todas elas em um
mesmo ambiente; que elas não precisam se engalfinhar para serem primeiras
bailarinas; que lhe são dadas condições para se tornarem grandes bailarinos
se quiserem, mas que isso não é o mais importante. Que as crianças e jovens
dessa escola de dança não precisam se tornar artistas tecnicamente
perfeitos, nem fazer regimes absurdos para estarem dentro de um padrão.
Que existia um pensamento de que professores devem ser bem pagos,
principalmente quando não dispõem de determinados direitos e garantias
trabalhistas. Isso se chama reconhecimento, generosidade, gratidão. Isso se
chama acreditar em pessoas e valorizá-las, isso significa ir na contramão da
maioria, do que está posto, do que é tido como normal.
[...]
[...] exalando o cheiro forte do líquido vermelho e podre que escorre pelo seu
tronco, suas vestes, suas pernas, entranha os seus cabelos, desce os
degraus brancos. Sangue que lava e atualiza a ferida jamais suturada. O
cheiro do sangue podre evoca a morte e a repulsa, o nojo ao fétido e à
pobreza de mais de 100 mil retirantes famintos que chegavam à capital entre
os anos de 1877-1880 (GADELHA, 2019, p. 200).
142
Figura 62 - Debande.
Trago este fato junto ao documento para que fique bem claro o quanto essa
Casa não pertence mais ao Barão, à Baronesa, nem mesmo à sua filha, nem a seus
netos e bisnetos. Não é porque essa Casa hospedou o imperador Dom Pedro II, como
alegam Carmem e Olga Barbosa (PREFEITURA DE FORTALEZA, 2014, p. 17),
pedindo “sua preservação em nome do julgo das interpretações das concepções
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aristocráticas”, mas justamente pelo modo como a Casa tem conseguido se libertar
dessa origem colonial e aristocrática, de como ela tem se reinventado a partir dos
fazeres artísticos que mobiliza e acolhe.
Leo Silva colhe diversos objetos encontrados na rua, lixos que encontramos
também nas lagoas e outras fontes de água em diversas partes da cidade. Ele coloca
esses objetos dentro de um garrafão de água de 20L, caminha até o piso superior, no
banheiro onde aconteceu o banho de Lavação, e despeja os objetos em seu corpo.
Faz em seguida a Purificação, nome que dá à performance, jogando sais em seu
corpo, os mesmos tipos de sais utilizados para “purificar” a água adicionada de sais,
envasada para o consumo humano, muito vendida atualmente no lugar da água
mineral, pois oferece custo e preços mais baixos.
Figura 65 – Purificação.
Barões estavam recebendo os visitantes para aquela exposição, que seria dos seus
agrados.
Leo diz que realizar esse trabalho que fez com a Casa, assim como a
experiência que teve com a EAV, lhe alertou para diversas questões como artista,
ativista, etc., em especial de se perceber racializado, “[...] inclusive quando se percebe
dentro de um espaço de exposição que determina a sua entrada pela porta dos fundos
de uma casa que vai receber a exposição de uma sinhá. Isso é um absurdo.” (SILVA,
2019).
Na última visita à Casa, quando fui ver a abertura de Aguadô, vou até a Vila
com minhas filhas tomar água, já que lá há um bebedouro disponível. Próximo a mim,
um grupo de jovens caminha. Parecem voltar de um jogo ou treino de futebol ou outro
esporte do tipo, cerca de cinco rapazes e uma moça, trajes informais, a pele mais
escura que a minha e de minhas filhas. Entro no recinto, quando vejo, eles sendo
barrados pelo guarda da Vila, que pergunta o que eles vão fazer. Eles, como eu, estão
indo beber água. Paro e digo a eles que podem entrar, que aquele é um espaço
público. O guarda então fala para entrarem de dois em dois. A situação faz emergir
diversas novas questões, como: um espaço cultural, público para quem? Quem somos
nós que podemos usufruir desses fazeres, saberes, que não somos barrados nas
portas de instituições como aquela? Que medo se construiu, historicamente, em
relação a ver pessoas, jovens, negras, talvez pobres, em grupo? É o mesmo medo e
repugnância que afetou a população de Fortaleza há décadas atrás, e que construiu
mecanismos para afastar certa parte da população para longe da zona central da
cidade, assim como para longe de certas instituições.
Escola de Audiovisual, além de não ter nenhum auxílio do tipo, as aulas acontecem à
tarde, o que dificulta o acesso para muitas pessoas, pela dificuldade de conciliar a
Escola, trabalho e outros estudos. Então, essa dimensão pública vai se restringindo.
Apesar disso, para quem consegue acompanhar as aulas, a Escola abre diversas
portas e possibilidades de fazeres e aprendizados, encontros, relações, reinvenções
de si e do mundo.
REFERÊNCIAS
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1998.
BARBOSA, Lourdinha. Barão de Camocim: uma história real tecida com os fios da
Imaginação. Fortaleza: Ed. Terra da Luz, 2016.
BARROS, Manoel. Manoel de Barros: poesia completa. São Paulo: Ed. Leya, 2013.
CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: Ed.
G. Gili, 2013.
CARLSSON, Chris. Nowtopia: iniciativas que estão construindo o futuro hoje. Porto
Alegre: Ed. Tomo, 2014.
CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano: artes de fazer. São Paulo: Ed. Vozes,
2014.
LIMA, João Miguel D. de A. Quando Plantas Irrompem pelo Concreto. Revista A!, n.
5, 2016. Disponível em:
https://www.academia.edu/31582814/Quando_plantas_irrompem_pelo_concreto.
Acesso em 05 dez. 2018.
ANEXO A
ANEXO B