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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

INSTITUTO DE CULTURA E ARTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES

SALVIA BRAGA PINHEIRO

INTERVENÇÕES COM A CASA: DO BARÃO, DA VILA, DAS ARTES, DA CIDADE

FORTALEZA

2019
SALVIA BRAGA PINHEIRO

INTERVENÇÕES COM A CASA: DO BARÃO, DA VILA, DAS ARTES, DA CIDADE

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Artes da Universidade
Federal do Ceará, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Artes.
Área de concentração: Poéticas da criação
e do pensamento em artes.

Orientadora: Profª Dra. Deisimer


Gorczevski.

FORTALEZA

2019
SALVIA BRAGA PINHEIRO

INTERVENÇÕES COM A CASA: DO BARÃO, DA VILA, DAS ARTES, DA CIDADE

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Artes da Universidade
Federal do Ceará, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Artes.
Área de concentração: Poéticas da criação
e do pensamento em artes.

Aprovada em: 25/02/2019.

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________

Prof.ª Dra. Deisimer Gorczevski (orientadora)


Universidade Federal do Ceará (UFC)

_________________________________________

Prof.ª Dra. Lilian do Amaral Nunes


Universidade Federal de Goiás (UFG)

_________________________________________

Prof.ª Dra. Jo A-Mi (Joelma Rodrigues da Silva)


Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB)
Às minhas filhas, Valentine e Tuila,
lampejos de luz que iluminam e dão mais
alegria ao meu caminhar.
AGRADECIMENTOS

Agradeço em especial às minhas filhas, a quem dedico esse trabalho,


Valentine e Tuila, dois seres de luz que sempre me acompanham e estiveram comigo
também nessa pesquisa, e estarão presentes em algumas das páginas que se
seguem. Também à minha mãe, Nazaré, sempre com uma rede de apoio estendida,
meu pai, Inácio, que instigou em mim a paixão pelo cinema e a aproximação com a
Vila das Artes. Ao Tomé, meu irmão, sempre disposto a colaborar nos momentos de
produção e criação.

À Vila das Artes e ao Programa de Pós-Graduação em Artes da UFC, por


todos os encontros, aprendizados, vivências, que abriram possibilidades como esta,
além de muitas outras, onde pude criar, inventar modos e mundos e me (re)inventar,
assim como todos que dessas instituições fazem parte. À Rubia Mércia, Alexandre
Veras, aos colegas da Vila, os quais menciono alguns: Vinícius Alves, Geovanna
Correia, Virgínia Pinho, Alex Fedox, Djacir José, Renata Cavalcante, Bruna Araújo,
Mariana Nunes, Gandhi Guimarães, Luciana Rodrigues.

Aos que fazem parte do Programa de Pós-Graduação em Artes, Antônio


Wellington, João Vilnei, Ada Kroef, Kaciano Gadelha, Pablo Assumpção, Hector
Briones, os colegas Junior Pimenta, Gleydson Moreira, Janaína Bento, Raquel Bastos
e à Amanda. Ao Yuri Firmeza, do curso de Cinema e Audiovisual, cuja nossa trajetória
se cruza desde a infância, e com quem tive a oportunidade de dividir uma disciplina
durante o estágio de docência.

À Deisimer Gorczevski, que é bem mais que orientadora, desde o começo


de nossa parceria, há cerca de 9 anos atrás, e que vem sendo cada vez mais essa
pessoa que inspira, acolhe, instiga, possibilita, sugere, alegra, perturba. Sou muito
grata por gerar tantas marcas nesse meu caminhar.

Ao João Miguel, que me presenteou com a revisão das páginas que se


seguem. Agradeço pelo encontro e continuidade deste, que também já soma muitos
anos, que vão aproximando os afetos e fazeres.

À Leane, pela amizade e companheirismo que também coleciona bastante


tempo de estrada, à Carla Galvão, pelas conversas, apoio, e contribuições de leitura
que colaboraram para a entrada no programa e nessa pesquisa. À Aliria, pelas
conexões desde que nos conhecemos nas primeiras aulas de mestrado, por estar
sempre presente em conversas, trocas, apoio. Ao Ermando e Harley, pela amizade
recente e potente.

Às membras da banca de qualificação e de dissertação, Jo A-mi, que como


lembra nome, é Jo amiga, e me fez ver essa pesquisa de outro modo, com toda sua
atenção, cuidado e poesia. Espero ter conseguido mudar os olhos com que vejo a
Casa e esse trabalho como ela sugeriu. À Lílian Amaral, pelas contribuições, olhar e
provocações durante as bancas.

Aos Membros e ex-mebros do Laboratório Arte e Micropolíticas Urbanas


(LAMUR), além dos que já mencionei, Aline, Raul, Marllon, Bruna, Ana Paula, Virna,
Nataska, Lucas, Rafael e Ceci, por serem esse lamures cheios de amor, alegria,
inspiração e acoplamento.

Leo Silva, que foi um encontro que se deu no fim dessa pesquisa, e que
reverberou fortemente em tudo que ela é, nesse encontro entre as artes, as águas, a
cidade e seus dissensos.

Ao Juninho de Jah, por ter embarcado comigo na construção de Replantio


com dedicação, atenção e confiança, e às pessoas da família que também
contribuíram com a obra, além dos que já mencionei, Lucas, Dalva, Manoel, Maria e
amigos deles, que infelizmente não lembro o nome.

A todo apoio que sempre tive da espiritualidade, a Deus, à Deusa, a meus


anjos, protetores e seres de luz que me acompanham, me protegem e me inspiram, e
a todos que de alguma forma colaboraram para as conexões que tenho estabelecido
com a espiritualidade e todo o aprendizado acerca de mim e do universo.

Ao Euzébio Zloccowick, em memória, pela alegria que resplandecia, por


ser um artista tão profundo, amigo e fortaleza sutil.
RESUMO

A Casa, conhecida como do Barão de Camocim, um dos patrimônios históricos


e culturais da cidade de Fortaleza, ao longo de sua trajetória, que soma cerca de
130 anos, vem passando por intervenções nos âmbitos de sua estrutura física,
funcional, política. Atualmente é um Centro Cultural vinculado à Vila das Artes,
equipamento da Secretaria Municipal de Cultura, com formações e núcleos de
produção artísticos de múltiplas linguagens, lugar de invenções que
transpassam a pequena Vila da rua de paralelepípedos e esgarçam as barreiras
geográficas e existenciais. De uma memória ligada à burguesia aristocrática, a
momentos de fechamento, opacidade e “vazios plenos” de encontros e
possibilidades (JACQUES, 2013). Território de ruínas, manchas, marcas,
frestas, grandeza, imponência e fantasmas de um passado colonial, obscuro
como o porão semienterrado onde dormiam os que limpavam a Casa e serviam
à família de barões. Lugar de passagens, do liso, do estriado (DELEUZE;
GUATTARI, 2012), da desativação à ativação, do público ao privado (SENNET,
1999), de intervenções, de construções materiais e/ou poéticas, de partilhar o
sensível (RANCIÈRE, 2009), de criação de dissensos e disputas, como no
momento em que foi cedida a uma instituição privada, sendo "reformada" e
mantida sob holofotes, ou quando é ocupada por artistas, estudantes e
participantes de movimentos sociais e culturais da cidade. Com a cartografia
(DELEUZE; GUATTARI, 2012; ROLNIK, 1988; KASTRUP, 2012) e o Site
Specific (BARRETO, 2007; ALBUQUERQUE, 2016), realizo a pesquisa com
imersões e intervenções em processos de criação como Lavação (2014) e
Replantio (2018) junto a outros artistas em exposições coletivas, ativando novos
modos de habitar e inventar a Casa, considerando os fazeres e saberes que dela
emergem.

Palavras-chaves: artes; intervenção; casa; criação; patrimônio cultural.


ABSTRACT

The House, known as the Barão de Camocim Manor House, is a cultural and
historic heritage site of the city of Fortaleza, Brazil. Throughout its 130 years
trajectory, the building has been the object of interventions on its physical,
functional, and political structure. Currently a cultural center affiliated to Vila das
Artes, a complex run by the Municipal Secretariat of Culture with courses and
facilities for artistic production in several languages, a place for inventions that
surpass the small village of cobblestone road and tear up geographical and
existential barriers. From a memory intertwined with aristocratic bourgeoisie, to
periods of shutdown, opacity and "full-emptiness" of encounters and possibilities
(JACQUES, 2013). Territories of ruins, stains, marks, gaps, greatness,
pomposity, and ghosts from a colonial past, obscure as a partly-buried basement
where the staff, responsible for cleaning the Manor and serving the barons' family,
used to sleep. A place of passages, of smooth and striated (DELEUZE;
GUATTARI, 2012), of deactivation and activation, of public and private (SENNET,
1999), of interventions, of material and/or poetic constructions, of distributing the
sensible (RANCIÈRE, 2009), of creating dissent and disputes, as it occurred
when the building was temporarily ceded to a private institution, 'reformed' and
kept under the spotlight, or when it was occupied by artists, students and
members of the city's social and cultural movements. With the cartography
(DELEUZE; GUATTARI, 2012; ROLNIK 1988; KASTRUP, 20012), and the Site
Specific (BARRETO, 2007; ALBUQUERQUE, 2016), my research is made up of
immersions and interventions in creation processes, such as Lavação (2014) and
Replantio (2018), together with other artists in collective exhibitions, activating
new ways of inhabiting and inventing the House, taking into account the practices
and knowledges that emerge from it.

Keywords: arts; intervention; house; creation; cultural heritage.


SUMÁRIO

1 OS PORTÕES............................................................................................... 10
2 DA ESCADA LATERAL ............................................................................... 16
2.1 Questões ................................................................................................... 27
2.2 Experiência ............................................................................................... 28
2.3 Modos de pesquisar ................................................................................. 29
3 JARDIM......................................................................................................... 32
3.1 Lounge ...................................................................................................... 39
3.2 Do Patrimônio Cultural ............................................................................ 48
4 SALÃO .......................................................................................................... 56
4.1 Casa ........................................................................................................... 63
4.2 Replantio ................................................................................................... 66
4.3 Banheiro .................................................................................................... 76
4.4 Aguadô ...................................................................................................... 90
5 PISO SUPERIOR .......................................................................................... 93
6 PLANTA ...................................................................................................... 106
6.1 A Casa, a Praça, as Ruas ....................................................................... 109
6.2 Centro Cultural Casa do Barão de Camocim ....................................... 117
6.3 Concreto.................................................................................................. 119
6.4 Casa (Im)própria ..................................................................................... 121
7 PORÃO ....................................................................................................... 128
7.1 Vila Viva................................................................................................... 135
7.2 Ele Não .................................................................................................... 142
7.3 In(ter)venções com o Porão .................................................................. 143
7.4 Porta dos Fundos ................................................................................... 146
REFERÊNCIAS.............................................................................................. 152
ANEXO A ....................................................................................................... 158
ANEXO B ....................................................................................................... 160
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1 OS PORTÕES

Figura 1 – Os Portões

Foto: Salvia, 2018.


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Quem passa naquela esquina do Centro de Fortaleza, na Rua


General Sampaio com Meton de Alencar, provavelmente vai reparar em uma
imponente Casa de paredes amarelas, arquitetura requintada claramente de um
outro momento, uma morada construída no passado. Pode ser que seus grandes
portões de ferro esculpido se encontrem abertos, e que possa entrar para
conhecer suas acomodações, ver uma exposição, participar de um evento ou
quem sabe, assistir a um filme de um dos cineclubes que ali acontecem, se tiver
tempo, o que costuma ser um tanto raro ultimamente, não é verdade? Muitos por
ali passam, caminhando pela calçada ou pela Praça que lhe faz companhia
desde os primórdios de sua construção, e em maior quantidade, atravessam
rapidamente o asfalto sob os tantos ônibus e automóveis que impedem o bairro
de descansar em dias de semana, da manhã até o anoitecer.

Durante muito tempo essas portas gradeadas se encontraram


fechadas, enferrujadas, entregues ao tempo, com algumas frestas entre os
momentos onde o espaço foi tomado por acontecimentos, intervenções das mais
diversas, um lugar que passa por constantes metamorfoses, que dizem das
transformações da própria cidade nos últimos cento e quarenta anos, mais ou
menos o tempo de existência dessa Casa, que ganha corpo e vive
acontecimentos, passagens, ocupações, intervenções, participando ativamente
dos fazeres lá advindos, mobilizando desejos, espera, curiosidade dos tantos
transeuntes que a encontram em seu caminho. Uma Casa vivente, como é a de
Natércia Campos (2004), Casa com C maiúsculo, que vive, fala, sente, vê,
princípio ativo nos acontecimentos, ou também a Casa de Bachellard (1998),
cosmos, abrigo, proteção dos sonhos e devaneios.

Casa essa que é um símbolo do poder colonialista, em um espaço


constituído para ser a morada de um casal de barões, cujo patriarca lhe empresta
a nomenclatura, do espaço que apesar de ser do gênero feminino, Casa, é
intitulada oficialmente do Barão de Camocim, título dado a um rico comerciante
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de artigos importados da Europa, que o recebe do rei de Portugal. Muitos


acontecimentos têm essa Casa como lugar, que vive as transformações que o tempo
lhe confere, da cidade crescente, da família, dos que morreram, dos que nasceram,
do momento de expansão que converge em uma vila da família de Camocim, que
agrega o nome Leite Barbosa, proveniente do genro dos barões. Dos tempos em que
resolvem lhe deixar, quando os costumes mudam e Casas como aquela não se
adequam mais ao estilo de vida de luxo, muito menos o bairro tomado pelo comércio
e um fluxo contínuo de carros, gente, poluição.

Ela permanece ali, embora nômade (CARERI, 2013), solitária, à espera de


acontecimentos, vai perdendo as cores, o “esplendor” que já resplandeceu, vai sendo
tomada pelo tempo, pelas rachaduras do concreto, pelas ocupadeiras (LIMA, 2016) e
outras tantas intervenções que lhe acontecem algumas vezes. É novamente
percebida, desapropriada, tombada, ganhando um projeto: fazer parte de um
Complexo de nome Vila das Artes, que lhe confere novos desejos e vivacidade,
necessidade de fazer parte dos movimentos que começam na outra esquina, no
observar do vaivém das pessoas, equipamentos, sons, ações, performances.

Muito tempo se passa entre o momento em que a Casa fica fechada, vazia,
solitária, até o momento em que seus portões abrem novamente, o que envolve uma
série de processos, trâmites, movimentos por parte de instituições governamentais,
estudantes, artistas, comunidade, pais de estudantes, trabalhadores, instituições
privadas. Todos esses elementos, intervém de alguma forma nesse espaço. São
esses movimentos que acompanharei ao longo desse percurso, que é proposto
através de um movimento pela Casa, como uma caminhada, um convite a percorrê-
la, ativá-la, (re)inventá-la.

Intervir traz a noção de interferir em algo, como proposto por Gorczevski


(2007), perturbar um desenvolvimento, reinventar. Essa “perturbação 1” pode ocorrer
em diferentes sentidos e modos, como nas intervenções militares, cirúrgicas, urbanas,
ou, nos aproximando desse espaço no qual imergiremos, nas reformas, nos diferentes
modos como ela se constitui ao longo de sua trajetória, de quem lhe habita, como o
faz, nas intervenções artísticas que acolhe. A autora interliga os verbos intervir e

1Esse conceito de perturbação trazido por Gorczevski (2007) tem como referências os estudos de
Maturana e Varela
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inventar, através de um parêntese na palavra in(ter)venção, que traz junto mais um


verbo: o ter, com um sentido de inclusão da invenção nos atos de intervir. Em seus
estudos, intervir, como um devir, inventa um estilo singular, um modo próprio de
expressão, uma “língua”.

O ato de inventar não surge do nada, como uma iluminação, um insight.


Em Kastrup (2012) inventar implica duração, experimentação, tateio, se dá no tempo
e é imprevisível, é quase como o trabalho de um arqueólogo, como cita a autora, que
remete à etimologia da palavra de origem latina, de escavar e encontrar resquícios,
relíquias. “Inventar um objeto é, ao mesmo tempo, um processo de autoinvenção. A
invenção de si é, ao mesmo tempo, invenção do mundo” (KASTRUP, 2012, p.142).

Componho essa dissertação originalmente em cadernos, cada um com


pelo menos duas partes, que em sua maioria correspondem a cômodos da Casa, e
podem ser lidos em uma sequência ou aleatoriamente, não tendo necessariamente
uma ordem hierárquica entre as partes, com algumas inspirações no livro-rizoma Mil
Platôs (DELEUZE; GUATTARI, 2007), e no modo como Vilnei (2016) propõe jogar
com sua Casa Impossível. Se faz necessário seguirem-se alguns formatos, que
facilitam a leitura e a orientação, como esse começo de conversa e apresentação da
proposta, nas pistas e considerações finais, ou nos elementos como capa, sumário,
referências bibliográficas, que ganham um caderno à parte na composição original
desta, que é apresentada através de uma Caixa-Casa composta pelos cadernos,
fotografias, plantas... Espero que se sintam em casa e à vontade para escolher por
que cômodo circular a cada momento, de que modo compor a leitura-visita, e que
possam se instalar e revisitar quando assim desejarem.

Este caderno é apresentado em duas partes, além desse início: Escada


Lateral e Jardim, as áreas externas da Casa. Da Escada Lateral falo de como se dá a
aproximação com a Casa e com a Vila das Artes, dos modos como a Instituição vai
se constituindo, olhando um pouco para o percurso das políticas culturais no Brasil e
no Ceará, com ênfase no audiovisual e suas instituições de ensino, formação e
difusão. Em seguida trago as redes de questões e aspectos metodológicos da
pesquisa, que tem como base a cartografia (DELEUZE; GUATTARI, 2012; ROLNIK,
1988; PASSOS, KASTRUP,ESCOSSIA, 2009) e o Site Specific (BARRETO, 2007;
ALBUQUERQUE, 2016).
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Do Jardim, falo das primeiras entradas na Casa, de quando se estava


construindo a exposição da terceira turma da Escola Pública de Audiovisual da Vila
das Artes (EAV), Materialidades/ Ativações/ Deslocamentos, em 2014, seus
processos e algumas obras, dos conceitos de liso e estriado (DELEUZE; GUATTARI,
2012) a partir desse espaço e seus acontecimentos. É do jardim que vemos a
instauração da Casa Cor no espaço, sua intervenção e os acordos estabelecidos entre
a instituição e a Prefeitura Municipal para a realização da reforma, que leva ao último
tópico, Patrimônio Cultural, passando pelos estudos de Fonseca (2009), Moassab
(2016), Amaral (2015), e por algumas das legislações vigentes acerca do assunto.

Em seguida temos o Salão e Piso Superior, em um movimento de entrar na


Casa, que abre novamente ao público no momento do 69º Salão de Abril, depois de
cerca de dois anos fechada após a Casa Cor 2016. No Salão, trago o processo de
acontecimentos do 69º Salão de Abril na Casa, e da intervenção artística que realizo
na ocasião, Replantio, lembrando do Salão anterior, o Sequestrado, organizado pelos
artistas da cidade, do qual também participei, pensando a partir daí as políticas
públicas para as artes no estado e na cidade. No Salão, a Casa começa a falar junto
comigo, pensando nas intervenções lá ocorridas, nas relações com a rua, com o
tempo e as instituições. Trazemos na sequência, eu e a Casa, o processo de criação
de Lavação, intervenção realizada em 2014 na exposição Materialidades/ Ativações/
Deslocamentos, além de outras lavações que se relacionam com os fatos.

Chegando ao Piso Superior, a Casa narra um pouco de sua trajetória e da


família do Barão de Camocim, problematizando sua própria constituição colonialista e
das memórias deixadas nos escritos e fotografias, finalizando com a exposição que
acolhe no Piso Superior, de 31 de janeiro, a fevereiro de 2019, intitulada Aguadô,
Trabalho de Conclusão de Curso proposto por Leo Silva, da quarta turma da Vila das
Artes.

Por fim, Planta e o Porão. A planta, diferente das outras partes do texto que
apresentam cômodos, vem afirmar o todo em relação às partes pensando na relação
da Casa com seu entorno, com a cidade e com o traçado dos percursos através da
cartografia, dos mapas territoriais e existenciais. Trago um pouco do percurso da
Praça, que já viveu tantos nomes e momentos, da intervenção realizada com o
Laboratório de Artes e Micropolíticas Urbanas (LAMUR) na Casa, quando ela já se
institui como Centro Cultural, com exposições como a de Narcélio Grud, parte da
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programação de Festival Concreto, que tem sua abertura na Casa, levando a pensar
em como esse espaço se constitui como Centro Cultural e como se relaciona com a
Vila das Artes e seus fazeres, finalizando com Casa (Im)própria, uma proposição
artísticas que realizo a partir de questões dessa pesquisa.

Porão, o cômodo subterrâneo da Casa, põe à (meia) luz questões delicadas


e submersas, como a possibilidade de o espaço ter sido construído por corpos
escravizados, e seu porão ter abrigado esses que foram explorados injustamente, os
negros escravizados e também os retirantes da seca vindos do interior do Ceará.
Abordo obras que dialogam com os fatos e/ou espaço, produzidas pela EAV, trazendo
em seguida a ocupação Vila Viva ocorrida na Casa em 2017, traçando um pequeno
panorama das políticas culturais no Brasil e do contexto político atual. No último tópico
de nome Porta dos Fundos, coloco algumas pistas e considerações finais, entre elas,
de como a instituição, através do Município, continua a legitimar essas esferas de
poder de uns e negação de outros nas constituições de ocupação desse agora Centro
Cultural.
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2 DA ESCADA LATERAL

Figura 2 - Da Escada Lateral.

Foto: Vinicius Alves, 2013.


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Caminhava à noite pelo Centro com alguns amigos e vimos um movimento


em uma bela casa, uma festa, várias pessoas, artistas da cidade, resolvemos entrar.
Conhecíamos boa parte dos que estavam ali, pelo menos de vista. Havia um bar, djs,
lembro de todos dançando alegremente Losing my Religion2. Uma projeção na parede
exibia O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel (1962), era a primeira vez que via o filme,
me fascinava com aquelas pessoas presas por uma força inexplicável em uma grande
casa burguesa depois de um rico jantar, na fotografia em preto e branco. Me afetou
profundamente mesmo sem áudio, ou com o som da festa.
Me parece que esse movimento de se prender a um espaço, de não
conseguir facilmente sair dele por uma força que não se explica com facilidade, é algo
recorrente nessa relação intrínseca entre as pessoas e as casas. Bachelard (1998)
diz que a casa é um dos maiores poderes de integração para os pensamentos,
lembranças, sonhos, cujo princípio de ligação é o devaneio, numa mistura entre
passado, presente, futuro que lhe empresta diferentes dinamismos. “A casa, na vida
do homem, afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela,
o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem através das tempestades do
céu e da vida. Ela é corpo e alma.” (BACHELARD, 1998, p. 113)
Percorríamos a grande casa de requintada arquitetura da década de 50,
cheia de passagens secretas, escadarias, sótãos, espaços abandonados
perceptivelmente pelo tempo que deixava o lugar entregue à poeira e teias de aranha,
rompida pela intervenção e ocupação dos estudantes da Escola Pública de
Audiovisual, a primeira turma da Vila das Artes, instituição de suma importância dentro
desse trabalho, da qual falarei mais em breve.
No dia 2 de fevereiro de 2007, os estudantes ocuparam uma das casas que
compunham a Vila um dia denominada Rose Villa ou Geminiano Maia3, a última do
conjunto composto por seis de casas, construída em 1954 para a família de uma das
netas do Barão de Camocim, daí o nome Vila das Artes, já que o espaço se origina
daquela vila familiar construída por uma família detentora de poder nobiliárquico em
meio à ruazinha com piso formado por paralelepípedos, caminho que sobrevive diante
das tantas estruturas alteradas com a passagem dos anos. Atualmente apenas a
primeira casa a ser construída, conhecida como Casa do Barão de Camocim, e a

2 Música da banda REM (1991), videoclipe disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=xwtdhWltSIg. Acesso em: 20 dez. 2018.
3 Posteriormente trarei mais detalhes acerca desses nomes.
18

última, principal sede da Vila das Artes, resistem sem grandes modificações
estruturais.
A ocupação dos estudantes e artistas na casa tem início com uma lavagem
do espaço de forma a reativá-lo, o que gera um vídeo feito coletivamente entre os
estudantes | realizadores (2007).4 A Ocupação tem o nome Sine por Cine (SPC),
devido ao fato de o casarão ter abrigado, antes de se tornar Vila das Artes, uma sede
do Sistema Nacional de Emprego do Instituto de Desenvolvimento do Trabalho (SINE
IDT).

Figura 3 - Programação SPC

Fonte: Arquivo Rúbia Mércia.

Nesses dias, além de morar, os alunos realizaram uma série de encontros


em torno da arte com a participação ativa de muitos artistas de Fortaleza.
Foram dias e noites intensas em que a casa vibrou com a presença e
participação da cidade e também com forte repercussão entre cineastas e
artistas de todo Brasil. Aconteceram shows, exposições, intervenções,
mostras de vídeo, performances, debates, oficinas, festas, funcionou um bar
e os alunos cuidavam do jardim, faziam almoços coletivos e usavam cada
canto como a sua própria casa. Em vários momentos as paredes da casa
foram utilizadas como espaço de invenção desse novo lugar que eles
estavam construindo.
[...] Após uma intensa negociação com a prefeitura a casa foi desocupada e
somente mais de um ano depois foi oficialmente inaugurada, quando as suas
paredes foram impecavelmente pintadas de branco. Retornar à Vila agora foi
pra mim uma surpresa ao perceber que tanto as paredes quanto outros
espaços estão sendo re-ocupados pelos artistas da cidade [...]. (SOARES,
2013, p.1, grafia original)

4 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fJQmV4ixLCY. Acesso em: 13 jan. 2018.


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A ocupação teve importantes participações de pessoas e movimentos


artísticos-culturais da cidade, em uma programação diversa e potente aberta ao
público. Entre elas, abertura com Gláucia Soares, primeira coordenadora da Escola,
junto à professora Beatriz Furtado, performance e oficina de Davi da Paz, Luiz e
Ricardo Pretti, Grá Dias, exposições do Grupo Balbucio, Themis Memória, Cláudia
Holanda e Thiago Lopes, instalação com Alexandre Veras, discotecagem com Lenildo
Gomes, Uirá dos reis, Alexandre Ruoso.

Toda essa movimentação em torno da arte foi crucial para a (re)ativação


da Casa e sua reforma para a implantação da Vila das Artes, destes que passaram
um bom tempo sem um espaço fixo para o curso que estava acontecendo com aulas
em diferentes espaços da cidade e com um futuro incerto em relação à sua
continuidade. Muitos dos que participaram, continuaram ao longo dos anos a manter
estreita relação com a instituição e com os fazeres dela emergentes.

A casa, que constitui o primeiro bloco da Vila das Artes foi inaugurada em
setembro de 2008, dois anos depois da solenidade realizada na Casa do Barão de
Camocim com a presença da então prefeita Luizianne Lins e do Ministro da Cultura
Gilberto Gil, quando foi firmado um acordo entre o Ministério da Cultura (MinC) e a
Prefeitura5 para a criação do complexo Vila das Artes, cujo projeto agregaria o casarão
em funcionamento desde 2008 (Figura 3), e os outros 2 prédios que o ladeiam, a
denominada Casa do Meio, onde funcionou a Fundação de Cultura Esporte e Turismo
(FUNCET), e a Casa do Barão de Camocim, tombada junto ao seu entorno pela
prefeitura de Fortaleza em dezembro de 2007 através do decreto municipal 12.304.

5Notícia disponível em: http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/metro/visita-ao-casarao-


da-vila-das-artes-1.582281. Acesso em: 4 fev. 2019.
20

Figura 4 - Vila da Artes.

Foto: Gustavo Pellizzon. Arquivo: SECULTFOR 6.

A Vila das Artes, vinculada à Prefeitura de Fortaleza, é um lugar de


encontro entre diversas linguagens artísticas, com cursos de curta e longa duração
como a EAV e a Escola Pública de Dança, direcionado para crianças a partir de 8
anos, com um percurso formativo que se estende por 6 anos, além de espaços como
ilha de edição, biblioteca, videoteca e espaços para exibição de filmes, espaços que
acolhem grupos e coletivos artísticos na cidade para ensaio, reuniões e diversas
atividades. São cursos públicos, gratuitos, que oferecem um conhecimento teórico e
prático através de ateliês, onde se aprende realizando, criando, e que dão
oportunidade a muitas pessoas em diferentes condições socioeconômicas a ter
acesso a esses fazeres e saberes.

Em 2006, foi lançado o edital de seleção para a primeira turma do curso de


extensão da Escola de Audiovisual da Vila das Artes, com a proposta de duração de
cinco semestres, algo novo na cidade. Haviam algumas formações na área, como os

6 Disponível em: http://fortaleza.ce.gov.br. Acesso em: 4 dez. 2018.


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cursos da Casa Amarela Eusélio Oliveira7, com fotografia, audiovisual e animação ao


longo de um semestre cada, o Instituto Dragão do Mar, que funcionou de 1996 a 2003,
e o Alpendre - Casa de Arte, Pesquisa e Produção fundada em 1999 na Praia de
Iracema como organização não-governamental que trabalha diversas linguagens
pensando a cidade, e questões relacionadas à contemporaneidade (VIEIRA, 2012),
que resistiu até 20128, fechando por dificuldades financeiras e falta de apoio de
políticas públicas. Equipamentos como o Alpendre e o Instituto Dragão do Mar, se
mostram com vital importância para a produção audiovisual do Ceará e do Brasil,
formando diversos profissionais, que hoje em escala nacional, atuam na produção e
gestão cultural, rompendo com um cenário anterior de hegemonia do eixo Rio-São
Paulo e de um padrão cinematográfico dominador vindo do cinema americano,
inserindo outras linguagens e modos de fazer (GARCIA, 2012).
Os cursos de graduação na área ainda demorariam cerca de dois anos para
surgir em Fortaleza, sendo o primeiro o de Audiovisual e Novas Mídias da
Universidade de Fortaleza (UNIFOR), instituição privada. A Universidade Federal do
Ceará (UFC) cria uma parceria com a Prefeitura de Fortaleza através do Curso de
Comunicação Social, que elabora o projeto pedagógico do Curso de Realização em
Audiovisual da Vila das Artes, “dando os primeiros passos no sentido de criar a
graduação” (CINEMA E AUDIOVISUAL UFC9) de Bacharelado em Cinema e
Audiovisual do Instituto de Cultura e Arte (ICA), que se inicia em 2010.
Lembro do meu interesse pela primeira chamada da EAV, tinha dezoito
anos e era o momento de pensar no que iria fazer em termos de formação
acadêmica/profissional. Poderia ter entrado ali no universo formativo do Curso, mas
desacreditei que seria o momento, ainda não tinha experiências na área, e foi enfático
o item no edital que pontuava produções artísticas prévias de qualquer caráter (áudio,
vídeo, texto, fotografia...). Nesses tempos, começo a frequentar cineclubes, onde vejo
os primeiros filmes de arte e de um circuito alternativo no histórico casarão do Museu

7 Equipamento cultural da Universidade Federal do Ceará inaugurada em 1971, com sala de cinema,
sala de aula, ilha de edição, núcleo de animação, dentre outros espaços
8 Ver reportagem do Jornal O Povo, disponível em:
https://www20.opovo.com.br/app/opovo/vidaearte/2012/12/12/noticiasjornalvidaearte,2969944/era-
uma-vezum-alpendre.shtml. Acesso em: 23 dez. 2018
9 Disponível em: http://www.cinemaeaudiovisual.ufc.br/. Acesso em: 29 nov. 2018.
22

da Imagem e Som (MIS)10 e as mostras da Casa Amarela, o que me dava vontade de


fazer e um início de paixão e aproximação pela sétima arte.
Quanto ao cenário político-cultural brasileiro e local dos momentos aqui
mencionados, Rubim (2007) expõe a mudança trazida pelo ministro Gilberto Gil no
cenário das políticas púbicas no Brasil, que vem reivindicar um conceito de cultura
mais alargado, “antropológico”, onde o público privilegiado não são apenas os
criadores, mas a sociedade brasileira em geral, pensando nas culturas populares e
lutando pela diversidade cultural. É um momento em que é retomado ao Estado o
papel ativo nas políticas culturais, em um cenário onde a retração do Estado era
sistemática. Mesmo com o orçamento triplicado para o setor, este não chega a 1%
dos gastos públicos.

No Ceará, em 1995, Tasso Jereissati11 cria a Lei Estadual de Incentivo à


Cultura, “encabeçada pela Secretaria de Cultura na gestão de Paulo Linhares 12,
afirmando uma política cultural baseada nos eixos formação, produção e difusão”
(GARCIA, 2012), o crescimento vai aos poucos se refazendo após a crise que o Brasil
sofre na área cultural no governo de Collor em 1990, com a extinção do Ministério da
Cultura e de órgãos como a Embrafilme (BARBALHO; RUBIM, 2007). O Instituto
Dragão do Mar surge como espaço essencial para a formação e qualificação
profissional dessa produção artística, contando com o Centro de Estudos de
Dramaturgia, Centro de Estudos Básicos e Centro de Design, com formações nas
áreas de cinema, vídeo, rádio, televisão, artes plásticas, gestão cultural, artesanato e
artes cênicas.

As políticas públicas eram inseridas dentro de um pensamento de produção


industrial e geração de emprego e renda, mas para além desse circuito gerado pelo
governo, iniciativas como o Alpendre vão se aglutinando, e a Vila das Artes é um
desses espaços, onde surgem efetivas produções, realizadores, e coletivos, que vão
em oposição à produção de massa, ativando fazeres micropolíticos (GUATTARI;

10 Museu da Imagem e Som onde havia um cineclube na construção da década de 50, atualmente
tombado e fechado para reforma
11 Governador do Ceará por três gestões (1987-1990, 1995-1998, 1999-2002), Senador da República

(2015-2018), ex-Presidente Nacional do PSDB, sua família tem grande influência política e empresarial
local e nacional, sendo ele proprietário de uma grande rede de shopping center pelo Brasil.
12 Jornalista e sociólogo, Ex-secretário de cultura, na gestão em que fundou o Centro Cultural Dragão

do Mar do Mar de Arte e Cultura, Presidente do Instituto de Arte e Cultura do Ceara (IACC), instituição
responsável pela gestão de Equipamentos como o Dragão do Mar e o Centro Cultural Grande Bom
Jardim.
23

ROLNIK, 2005), o “faça você mesmo”, a mobilidade de funções entre os realizadores


a cada filme e a ajuda mútua, fundamental para as produções, que contam com
poucos recursos, mas muita vontade, e a força mobilizadora da amizade (SILVA,
2014).

Em 2013, entro para a Escola de Audiovisual da Vila das Artes, fazendo


parte da terceira turma de formação. Antes disso, aquela casa me recebe como
estudante em cursos de figurino e cenografia enquanto cursava a graduação em
Estilismo e Moda, que depois passaria a ser Design de Moda, quando já flertava e
produzia com o audiovisual.

O próprio processo de seleção da escola constituía um campo formativo,


com as leituras e filmes sugeridos, como O Bandido da Luz Vermelha 13 ou os
contemporâneos O Céu Sobre os Ombros14 e os Residentes15, linguagens nas quais
emergiríamos, pesquisaríamos, até construirmos nossos modos e linguagens em
produções colaborativas, mudando a forma de olhar e inventar o mundo e o cotidiano,
a forma de caminhar, desde o ciclo Imagem e Cidade, o primeiro deles, que vem para
nos instigar a criar junto com Fortaleza, que para mim já era um espaço de
pensamento e criação, como na experiência que tive com o teatro.

Em 2012, atuo como figurinista no espetáculo teatral Nossa Cidade – uma


peça para acampamentos, uma adaptação da obra de Thornton Wilder, que resolve
acampar em Fortaleza, um modo de mergulhar e criar essa cidade em que nasço e
resido. O espetáculo do Coletivo Soul16, dirigido por Thiago Arrais, trabalha com
diversas linguagens, como projeção de vídeos, intervenções sonoras, sendo uma

13 Filme de Rogério Sganzerla (1968). Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=pSbBA4OiqBc&t=92s. Acesso em: 16 out. 2018.
14 Filme de Sérgio Borges (2011), disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jMKun9Cagqg.

Acesso em: 16 out. 2018


15 De Tiago Mata Machado (2010). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ibA5hHWtS50.

Acesso em: 16 out. 2018.


16 Surge em 2009 em função do espetáculo Rãmlet Soul, que gera forte impacto sob a mídia e o público

cearense, com uma forma de teatro festivo e aberto. Em 2012, estreia Nossa Cidade, sua segunda
peça, realizando também shows, festas performáticas e um filme, voltando em 2013 para o mito
hamletiano com Hamlet: Solo, no Estoril, na Praia de Iracema, e fechando a trilogia Hamlet com Ros &
Guil Estão Mortos, dentro do Laboratório de Criação do Porto Iracema das Artes. Em seguida são
premiados pelo Rumos Itaú Cultural, onde desenvolvem o projeto UN-DEAD, inspirado em Drácula, de
Bram Stoker, projeto que leva o coletivo a uma imersão de quase seis meses pela Romênia.
Informações disponíveis em: http://mapa.cultura.ce.gov.br/files/agent/13256/hist%C3%B3rico_-
_coletivo_soul.pdf. Acesso em: 27 dez. 2018.
24

intervenção urbana, que tem início no Passeio Público17, levando o público e


integrantes a passear por edifícios do Centro, como a Praça da Estação, Motel 90,
encerrando na terceira parte denominada Morte, no cemitério São João Batista em
uma longa caminhada de um espetáculo que trabalha diferentes tempos e
personagens que fazem parte da memória de Fortaleza e do mundo, entre Bárbara
de Alencar, a padroeira Nossa Senhora da Assunção, Zé Tatá, Orson Welles, Ednardo
e Pessoal do Ceará18, Tasso Jereissati, o punk Dedé Podre, Rosa da Fonseca entre
vários outros. Ali fui pesquisadora, produtora, figurinista, atriz.

Faço outras produções em audiovisual como roteirista, produtora, diretora


de arte e figurinista, e em 2013 entro na EAV, quando passo a sentar ali, na escada
lateral da Casa entre reuniões, conversas informais, intervalo das aulas, merendas,
confraternizações, festas, in(ter)venções (GORCZEVSKI, 2007), fotografias. É a
escadinha que dá início à aproximação com essa Casa, conhecida como do Barão de
Camocim, mas que é muito mais que isso, hoje um espaço público da cidade, campo
de invenções e fazeres artísticos, Centro Cultural em constante movimento de se
(re)inventar. É dessa e com essa Casa histórica da cidade, localizada na rua General
Sampaio número 1632, no Centro da cidade, que falarei, criarei, inventarei essa
pesquisa e esse espaço que me permito cocriar, assim como modos de ocupar,
pensar e escrever sobre/com ela. Para fins de abreviação e de indeterminação, a
chamarei de Casa ao longo do trabalho, já que não a considero do Barão de Camocim,
e buscarei ainda sem respostas, saber de quem é, se é que ela necessita ser de
alguém, senão de todos, da cidade, das artes, da Vila, ou simplesmente da vila.

Por vezes entramos na Casa para experimentações em aulas de som,


ações com cineclubes, debates e festas do coletivo que criamos entre os alunos da
terceira turma, Piratas du Camocim. Em 2014, deparamos com a falta de pagamento
de professores por parte da Secretaria de Cultura de Fortaleza (SECULTFOR) e a

17 Praça histórica de Fortaleza, de nome oficial Praça dos Mártires, uma das mais antigas da cidade,
construída em 1890, e palco da execução de revolucionários da Confederação do Equador. Tombada
pelo IPHAN em 1965, sofreu com o abandono na década de 1990, sendo restaurada e reinaugurada
em 2007 pela FUNCET com o apoio da Casa Cor, que realizou um evento no Museu da Indústria, que
se localiza em frente.
18 Movimento cultural surgido na década de 1960, sendo um dos mais importantes da música

contemporânea cearense. O marco do movimento, criado por diversos artistas e intelectuais que
pensavam e crivam sobre as questões que inquietavam o país na época, foi o lançamento do disco
Pessoal do Ceará: meu corpo minha embalagem todo gasto na viagem, em 1972.
25

turma vai à Secretaria de Finanças (SEFIN) vender dindin19 e uma coletânea de filmes
com produção de alunos, exibidos no jardim da Casa, como forma de manifesto 20 ao
descaso com a cultura e com aquele equipamento tão importante em nossa cidade,
que estava ameaçado de ter as aulas suspensas devido ao atraso de seis meses no
pagamento dos professores e funcionários. Atrasos esses bastante comuns21 em meio
ao cenário cultural da cidade, tanto em relação aos equipamentos e pagamento de
seus funcionários, quanto a editais e cachês.

A Vila foi um lugar de grande efervescência na prática e no aprendizado, vi


muitos filmes, produções as quais provavelmente não teria acesso de outro modo,
encontro com artistas, realizadores, pesquisadores, educadores de diversas partes do
Brasil e do mundo, participantes ou não do circuito acadêmico, como Adirley Queiroz,
Solon Ribeiro, Marcelo Pedroso, Beth Formaggini , Michelle Matiuzzi, que deu aula na
quarta turma, por escolha dos estudantes, que depois de muitas lutas, conseguiram
conquistar o direito de escolha do quadro de educadores e/ou mais que isso,
realizadores, artistas, pesquisadores que têm muito a compartilhar e a instigar numa
relação de práticas e mútuo aprendizado.

Outro setor da instituição que tem sido relevante para a realização


audiovisual local é o Núcleo de Produção Digital (NPD), que empresta equipamentos
para as produções, desde câmeras, equipamentos de áudio, a projetores e telas para
cineclubes, faz a divulgação de projetos parceiros, ações que esgarçam as barreiras
geográficas do espaço e percorrem a cidade, reverberando para longe através do que
é produzido, formado e difundido, como cita Joel Pizzini22 (Vídeo Institucional da VILA
DAS ARTES23, 2017), “um espaço de caráter internacionalista”.

Lá pude participar de diversas produções, expandir fazeres, pensar e criar


muitos projetos, alguns realizados, outros (ainda) não. Escolhíamos geralmente

19 Picolé em saquinho conhecido também como sacolé, geladinho entre outros nomes que variam de
acordo com a região. O nome faz alusão também à palavra dinheiro.
20 Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2v-IGmkaY90. Acesso em: 27 dez. 2018.
21 Algumas reportagens exemplificam: https://www.opovo.com.br/vidaearte/2018/04/ccbj-paralisa-

atividades-por-pagamento-desregulado.html
https://www.opovo.com.br/noticias/fortaleza/2017/08/tres-meses-apos-acordo-secultfor-nao-pagou-
edital-das-artes-2016.html
http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/verso/atraso-provoca-suspensao-de-cursos-da-
vila-1.808200. Acessadas em: 27 dez. 2018.
22 Cineasta e professor do Curso de Realização em Audiovisual.
23 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sYCM4yS30hg. Acesso em: 13 maio 2018.
26

quatro filmes a serem produzidos a cada ateliê, que têm duração média de um
semestre, com diferentes módulos e professores a cada semana. São os ciclos:
Imagem e Cidade, Imagem e Narrativa, Imagem e Espaço, Imagem e Alteridade e
Trabalho de Conclusão de Curso.

No Ciclo Imagem e Espaço nos libertamos do talvez fazer e pudemos criar,


caso fosse nossa vontade, sem escolha de alguns projetos como acontecia nos outros
ciclos, onde se fazia uma votação entre a turma para a escolha dos filmes a serem
realizados. Foram mais de vinte obras a habitar A Casa, que passara tempos entregue
às fuligens das ruas, esquecida em meio ao Centro apressado de dia e vazio à noite,
de cores desbotadas, paredes rachadas, folhas secas e algumas árvores e
ocupadeiras24 a resistir.

Figura 5 - Ocupadeira do jardim

Foto: Salvia Braga, 2014.

A Casa, da qual trarei maiores detalhes quanto ao seu percurso


historiográfico em breve, foi desapropriada em 2006 e tombada pela prefeitura em
2007, ficando anos à espera de uma reocupação, sem que recebesse manutenção.
Tínhamos ali a oportunidade de adentrar o espaço, dito por alguns como mal-

24 Denominação dada por João Miguel Lima (2016) para as ervas e plantas que crescem sem
planejamento ou intenção em meio ao espaço urbano, vista como forma de resistência política| artística
27

assombrado, e por isso deixada nas mãos de um Barão que já morreu há muito tempo.
Era a oportunidade de criar fantasmas outros, de fazer renascer um espaço morto de
herança colonial reinventando-o com arte.

2.1 Questões

Nos primeiros projetos dessa pesquisa, pensava em como se daria a


intervenção da Casa Cor25 no espaço, já que era algo que estava acontecendo
naquele momento de elaboração. Buscava responder “para quem é feita a Casa Cor,
como ela se integra à comunidade, ao comum, sendo ela um evento privado realizado
nesse lugar específico, destinado a ser um espaço de ensino, produção e difusão do
fazer artístico na cidade e para a cidade” (BRAGA, 2016, p. 6), como a casa vive essa
intervenção, o que se modifica, qual a relação da Casa Cor com as obras ali
realizadas,

[...] fazendo um retorno às intervenções já ocorridas na Casa, tomando a


Exposição realizada em 2014 como recorte, busco questionar como o evento
afetou o lugar e as pessoas que dele fizeram parte, entre estudantes,
funcionários, e a comunidade que por ali circula. Como esses dois
acontecimentos que podem ser denominados intervenções na Casa do Barão
dialogam ou não, com o espaço e com as pessoas que estão inseridas nesse
contexto? (p.9).

Ao longo dos dois anos de mestrado, os questionamentos mudam um


pouco, a caminhada nos leva a outros lugares. Atualmente, busco através desse
trabalho questionar como A Casa, conhecida como do Barão de Camocim, se
(re)inventa através das intervenções nela ocorridas, nas diferentes esferas: física,
política, social, artística, como esse espaço afeta, em sua dimensão micropolítica, os
que com ela se relacionam através de práticas, aprendizados e convivência?

25Evento do grupo Abril que ocorre anualmente em escala nacional, tendo uma filial no Ceará, que
costuma ocupar diferentes espaços da cidade, em grande parte casarões históricos, como foi o caso
da Casa do Barão de Camocim na edição 2016, da qual falarei mais em seguida
28

Qual potência insurge entre um espaço e tempo histórico que se constitui


como patrimônio público, desativado e (re)ativado? Qual a relação casa-público-
artistas-cidade em meio aos diferentes modos de constituição desse espaço?

O que podem e o que fazem as políticas culturais na cidade de fortaleza,


tomando a Casa do Barão de Camocim e tudo que ela abrange como foco do olhar e
das ações? São algumas das perguntas que me guiam e/ou me guiaram nessa
caminhada que se inicia lá atrás, desde o primeiro chamado, nas primeiras
caminhadas pelo entorno, nos anos de formação e imersão e agora, onde busco me
encontrar como artista, pesquisadora etc. (BASBAUM, 2006), que produz e intervém
junto à Casa e à vida, em meio a recortes de experiências, imagens, criações,
vibrações e afetos.

2.2 Experiência

Em Larrosa (2002), a experiência é aquilo que nos passa, nos acontece,


nos toca, e não aquilo que passa, acontece, toca. É diferente e quase que oposta à
informação. De acordo com o autor, a busca incessável pela informação barra os
acontecimentos, a experiência, que se torna rara na contemporaneidade, esse
momento em que estamos constantemente em busca de mais informações, novidades
em uma velocidade irrefreável, que dificulta a conexão efetiva entre os
acontecimentos. O sujeito da experiência é uma superfície sensível aos
acontecimentos, marcas, vestígios e afetos, traz uma receptividade, disponibilidade,
abertura, com paixão, paciência, atenção, ele mais que se põe, se ex-põe, com toda
a vulnerabilidade que isso implica (LARROSA, 2002).

Jacques (2012) aborda a expropriação da experiência do sujeito


contemporâneo por sua incapacidade de fazer e transmitir experiências, em especial,
a esterilização da experiência desses espaços, que captura, domestica e anestesia a
experiência urbana, diante da pacificação do urbano e a fabricação de falsos
consensos, que esconde as tensões inerentes à esfera pública, esterilizando as
experiências de alteridade nas/com as cidades.
29

Benjamim (1994, p. 115) questiona, “qual o valor de todo o nosso


patrimônio cultural, se a experiência não o mais vincula a nós?”, para falar da pobreza
da experiência na contemporaneidade, quando abandonamos as peças de nosso
patrimônio na troca pelo eterno “atual”.

2.3 Modos de pesquisar

A primeira experiência que tive com a pesquisa científica foi na graduação,


em 2010, quando encontro na disciplina Moda e Pesquisa II, Deisimer Gorczevski,
que me acompanha novamente cerca sete anos depois no mestrado em Artes. Ali há
um acoplamento mútuo, que me instiga a mergulhar no desconhecido.

O desconhecido de então era a marca de moda Cyclone. Fazia o curso que


passava por uma transição, uma mudança no nome e na grade curricular, de Estilismo
e Moda para Design de Moda, escolhi pesquisar uma marca que possui uma certa
singularidade periférica e produção de subjetividades do que a usam, no trabalho
intitulado Cyclone: uma marca, um vestir, invenções de ser e viver (BRAGA, 2011).
As iniciais, CY, lembram CV, de comando vermelho, a partir dessa constatação e
adoção da marca por um certo segmento, ela ganha os bailes funk e um público de
massa espalhado principalmente pelas periferias de diversas cidades do Brasil,
gerando um status contraditório para quem usa, por ora visibilizados, “considerados”,
por ora discriminados, estigmatizados.

Como no trabalho científico é preciso determinar um método, um modo de


construir e inventar a pesquisa, e como tudo era novo para mim, apostei na etnografia
como referência metodológica, talvez por não conhecer muitas outras opções, e por
perceber a necessidade de mergulhar naquele universo, participando dele, me
aproximando das pessoas que usam as roupas da marca que pesquiso, e por vezes
sendo uma daquelas pessoas, em lojas onde vendem as roupas, em shows e nas
periferias da cidade, é ali que começo a agir com meu corpo vibrátil, que me deixo
seguir pelos afetos, que dou os primeiros passos em algo que não conhecia: a
cartografia. É ali também que estabeleço uma aproximação maior com o audiovisual,
quando por estímulo de Deisimer, crio junto com a escrita um vídeo-pesquisa intitulado
Moda, Modus, Modos.
30

Em Rolnik (1989), a prática do cartógrafo diz respeito às estratégias de


formação do desejo no campo social. O que interessa são as intensidades e os afetos,
traçados com diferentes linguagens, que é “criação de mundos” (p. 67). Não existem
manuais, procedimentos pré-determinados, eles são inventados dentro de cada
contexto, “o que define, portanto, o perfil do cartógrafo é exclusivamente um tipo de
sensibilidade” (p.69) e seu grau de abertura para a vida. Em Deleuze e Guattari (2007,
p. 22), a cartografia é conexão de campos, com múltiplas possibilidades de entradas:

O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável,


suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado,
revestido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por
um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa
parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou
como uma meditação.

Gorczevski e Farias (2014, p. 122), lembram que o termo cartografia tem


relação com a geografia, fazendo referência à ideia de mapa, criando relações de
diferença entre territórios existenciais e problematizando o conceito de espaço, “o
cartógrafo compõe mapas como exercício que capta intensidades. Ao habitar o que
acontece, o que emerge do encontro, da convivência”.

É a cartografia um método? Escóssia, Kastrup e Passos (2010, p. 10),


questionam: “em um sistema acêntrico, como conceber a direção metodológica? A
metodologia, quando se impõe como palavra de ordem, define-se por regras
previamente estabelecidas”. A partir da origem da palavra método, que vem de metá-
hodos, ou seja, um caminho (hódos) predeterminado pelas metas de partida, propõe-
se uma inversão, uma transformação em hodos-metá, um método para ser
experimentado, inventado junto ao caminhar da pesquisa, sem regras, prescrições ou
objetivos pré-estabelecidos, traça-se as metas no percurso.

Na cartografia a há uma inseparabilidade entre pesquisa e intervenção.


Toda pesquisa é uma intervenção (ESCOSSIA; KASTRUP; PASSOS 2010). Intervir
trás o sentido de um agente que modifica uma situação com sua presença (DIEHL;
LOPES, 2012, p. 138), e pode ser pensado como recursiva ativação de uma rede de
conversações, uma “quebra ou rachadura no fluxo cognitivo”, dentro dos pensamentos
habituais e pré-concepções. Em Gorczevski e Santos (2017, p. 59), o método de
31

pesquisa-intervenção “orienta a aproximação ao campo, considerando que


pesquisador e pesquisado constituem-se, ao mesmo tempo, no encontro de
questionamentos no sentido de ação“.

Esse estudo se mistura e se entrelaça com minha prática artística, dessa


forma, agrego também o conceito abordado por Jorge Menna Barreto (2007) de Site
Specific, no que se refere ao fazer artístico quando crio na |com| para a Casa, mas
também como método de pesquisa que se une aos outros modos e compõe o fluxo
de aprendizado e ação. O site specific é um termo que vem do inglês utilizado sem
tradução para o português, que fala de uma obra que está conectada a um contexto
específico para sua existência e acontecimento. Barreto (2007, p. 27) sugere o termo
enquanto método, composto por cinco etapas: “escolha do site, escuta e
mapeamento, identificação de um problema, construção da obra” e fissuras, que é o
momento de pós, onde acontece a documentação e uma possível abordagem crítica
do projeto, podendo alimentar novos projetos. Essa pesquisa e dissertação são
exemplos de fissuras, que geram novos processos e possibilidades de fissuras
posteriores.

O pesquisar tem início antes de uma intenção consciente, desde as


primeiras aproximações com a Casa, com a Vila, com as Artes, com o audiovisual e a
cidade. É um caminhar misturado e guiado de múltiplos desejos, diferentes
temporalidades, devires, fluxos de vida. De quando fui passante, estudante, artista,
observadora, pesquisadora etc.
32

3 JARDIM

Figura 6 - O Jardim e eu.

Foto: Bruna Araújo, 2014.


33

O Ciclo Imagem e Espaço da EAV, que entre os demais, mostra uma maior
aproximação com as artes visuais e pensa o audiovisual dentro da perspectiva de
espaço, apresentou a possibilidade de aproximação com aquela Casa que já nos
movia desejos.

Começando com uma pesquisa em torno do estado em que se encontrava


a Casa, sondagem com arquitetos, investigação das plantas desenho de mapas, um
universo que foi abrindo e no qual mergulhamos, entre reuniões e aulas que migravam
para aquele espaço antes quase inativo, habitado por guardas da Vila das Artes que
se revezavam por turnos e um cachorro
adotado pelos funcionários e alunos, o Figura 7 - Bruna e Tarantino
Tarantino, ou Barão. Os guardas ocupavam
apenas a salinha lateral, e o Tarantino o pátio
interno onde se localiza uma fonte e a antiga
cozinha. Todo o resto da Casa estava entregue ao
vazio do tempo, da poeira, dos fantasmas.
Vivenciamos aquele espaço entre as tantas
reuniões com professores, coordenação,
percebemos suas partes, porão, andar de cima,
banheiros, quartos, escada, corredores, o primeiro
elevador residencial de Fortaleza. A Casa foi se
tornando nossa, e como é de costume entre os
alunos da Vila das Artes, nos apropriamos e fomos
a reinventando. Jacques (2013), fala dessas
zonas intersticiais, espaços nômades, “vazios da
cidade” em Careri (2013), que quando se entra
neles, tornam-se, como diziam Lygia Clark e
Hélio Oiticica, “vazios plenos”, de descobertas,
Foto: Salvia Braga, 2014.
encontros e possibilidades.
34

Para pensar a casa como intercessor espaçotemporal desses trabalhos


nossa primeira proposição foi estar mais ali, “abrir” a casa, abrir as janelas,
percorrer os corredores, sentar nas escadarias, descer ao porão, ajustar o
corpo a essa topografia. Passearse por ali, sentir a sutil vibração dos regimes
de luz, deixar o tempo escorrer, ver esse tempo imprimirse em variações
luminosas que escorrem pelas paredes. Perceber as fissuras, as
instabilidades. Ficar de pé, deitar, sentar...sentir a escala, sentir a acústica,
sentir mesmo a poeira, que suspensa, parece reter na névoa, o tempo que
sucede ao agito de uma superfície. (MERCIA; VERAS, 2014, grafia original,
grifos meus, s/n).

Chamávamos Jardim da Baronesa o jardim externo da Casa, com


referência à esposa do Barão, a francesa Rose Nini Liabaster. Lá ocorreram as
primeiras ocupações dos alunos da nossa turma da Vila das Artes em cineclubes, com
exibições do coletivo Piratas du Camocim, rodas de conversa, festas, foi lugar de um
dos encontros ConversAções do projeto do LAMUR que se iniciava, Arte| Espaço
Comum| IntenCidades, organizado junto ao Programa de Pós-graduação em Artes
(PPGArtes) da UFC, que promove o encontro entre artistas-pesquisadores
(GORCZEVSKI; LIMA, 2017).

Ali, no jardim, a Casa conversa com a rua, e apresenta as tensões entre


público/privado levantadas por Sennet (1999), quando fala das habitações que trazem
simulações de espaço público dentro do privado, como quando se constroem
pequenas praças, espaços de convivência dentro de condomínio fechado, que quebra
com a natureza da praça pública, de mesclar pessoas e diversificar atividades. O autor
fala da estética da visibilidade arquitetural que vem junto com o isolamento social, em
construções que se mostram para a rua, para quem passa, dentro de todo o seu
requinte, mas que há componentes que isolam.

Temos a rua na Casa, onde quem está dentro fica protegido pelas grades
e muretas, pode-se admirar a rua das varandas dos quartos, protegendo o observador
do contato com os passantes externos, e temos a Casa na rua, sua intensa relação
com a cidade, sendo, porém, quase sempre inacessível ao público ao longo de sua
historicidade, quando pertencia à burguesia aristocrática, ou quando é desapropriada
pela prefeitura de Fortaleza e passa mais de 10 anos fechada.

Deleuze e Guattari (2012) trazem o conceito de espaço liso e estriado, que


são distintos e indissociáveis, numa constante passagem entre um e outro. O espaço
estriado é sedentário, instituído pelo Estado, delimitado, fechado, já o espaço liso,
nômade, que entendo aqui como espaço da criação, é aberto, ilimitado, prolongável
35

em todo os sentidos. É ocupado por acontecimentos e afetos mais que propriedades,


intensivo mais que extensivo. O que o ocupa “são as intensidades, os ventos e os
ruídos as forças e as qualidades tácteis e sonoras” (DELEUZE; GUATTARI, 2012,
p.214.) O liso e o estriado coexistem em suas passagens e transformações também
nessa Casa e nos momentos por Ela vividos.

Por ter um vínculo com a Vila das Artes, o espaço é tomado algumas vezes
por intervenções, sendo o lugar de filmes, cursos, intervenções artísticas,
experimentos, a Casa vai flertando com as artes ao longo do percurso de sua vida, e
cada vez mais. Nos tempos remotos quando Cecília de Camocim, a filha dos
baroneses, na salinha lateral fazia suas costuras, pinturas e bordados (BARBOSA,
2016), ou quando era emprestada para oficinas de vídeo, performances e a Exposição
da qual falarei a seguir.

A Exposição Materialidades/ Ativações/ Deslocamentos, é um dos


momentos de abertura desse espaço, diga-se, público, ao público. Foram três dias,
em outubro de 2014, que demandou meses de preparação dos trabalhos e da própria
Casa para receber as obras, pessoas e demais elementos que compunham essa rede.
Os trabalhos foram apresentados em três linhas

[...] uma primeira segue a série das materialidades da casa, busca mapear
fissuras, instabilidades, marcas, memórias inventadas, paredes que
murmuram. Uma segunda linha, busca ampliar usos possíveis, ativar zonas
de permanência, de “estar”, ambientes, relações arquitetônicas,
reconfigurações do espaçotempo. A terceira linha segue os deslocamentos,
passagens entre a casa e a cidade, trazer perspectivas da cidade para a casa
e ao mesmo tempo inventar uma casacidade, um uso público de uma
arquitetura privada. (MÉRCIA; VERAS, 2014, grafia original).

Sentindo a Casa em suas intensidades, fomos ocupando e criando, cada


um se apropriando de sua forma, dentro de suas subjetividades, de cada cômodo,
trazendo o háptico (DELEUZE; GUATTARI, 2012) tanto no momento de criar a partir
de uma relação corpo-casa, quanto depois, em cada proposição criada e na relação
obra-espectador. O háptico remete à mistura entre os sentidos, óptico, tátil sem opor
os dois, e está ligado à arte nômade e ao conceito de Liso:
36

O Liso nos parece ao mesmo tempo o objeto por excelência de uma visão
aproximada e o elemento de um espaço háptico (que pode ser visual,
auditivo, tanto quanto tátil). Ao contrário, o Estriado remeteria a uma visão
mais distante, a um espaço mais óptico – mesmo que o olho, por sua vez,
não seja o único órgão a possuir essa capacidade. Ademais, é sempre
preciso corrigir por um coeficiente de transformação, onde as passagens
entre estriado e liso são a um só tempo necessárias e incertas e, por isso,
tanto mais perturbadoras. (DELEUZE; GUATTARI, 2012, p. 217).

Partimos de uma escola de audiovisual para um pensamento de espaço


que nos faz adentrar as artes visuais, por vezes reinventando o audiovisual,
experimentando

[...] o espaço, não só como elemento constituinte de qualquer trabalho


audiovisual, mas como espaço a ser apropriado e reinventado em suas
dimensões materiais de “acolhimento” das obras, um flerte com as artes
visuais e, mais de perto, com as instalações.
[...] ao transeunte que percorre a General Sampaio e, por detrás da gasta
mureta amarela, avista a Casa do Barão de Camocim, talvez solitária, talvez
imponente e esquecida, talvez misteriosa, saiba que esta exposição é um
convite. A casa está aberta (VILA DAS ARTES, 2014).

A Casa é ocupada por trabalhos como a instalação de Vivi Rocha,


Caminhos Sonoros, que monta uma sala de cinema sem tela, onde sentamos em
confortáveis poltronas no escuro e assistimos a um filme sem imagens, composto por
áudios. O salão principal recebe camas em grandes dimensões, na instalação
Extensores (Figura 8), de Hector Rocha, uma pendurada na parede como se fosse
um quadro, outras na sala convidando quem entra a se aconchegar, sentar, deitar,
conversar, descansar. Ali aconteceram rodas de conversas, reuniões, e era também
um lugar de estar mais, um convite a permanecer e observar com atenção os detalhes
do espaço, teto, espelhos, paredes então manchadas, uma mistura entre a altivez de
outrora e as marcas do presente.
37

Figura 8 – Extensores.

Foto: Gandhi Guimarães, 2014, Arquivo Pessoal.

Da Varanda frontal, a instalação Miradouro, de Rafaela Kalaffa, é


composta por bancos e binóculos para observar a rua, enquanto caixas de som e
microfones enfatizam o som do trânsito da General Sampaio, que separa a Casa da
Praça. No Jardim, cactos foram plantados nos canteiros da escada que há tempos
estavam vazios, no trabalho de Euzébio Zloccowick, estudante da primeira turma e
professor/orientador na nossa. Ele costumava intervir com essas plantas resistentes
e cheias de espinho pela cidade, a encontrar espaços vazios e preenchê-los desse
verde que não necessita de muitos cuidados, “plante-o e deixe-o viver em paz, se
chove, ele agradece em flor de uma beleza rara, e nos estios ele resiste, alimentando-
se de sereno” (ZLOCCOWICK, 2012).

No mesmo jardim, localizava-se a espiral de ervas (Figura 9), parte da


instalação Lavação que propus para a Exposição. Foram os dois trabalhos que
resistiram ao tempo depois que a exposição acabou, ficaram ali por quase dois anos.
38

Figura 9 - Espiral de Ervas.

Foto: Anderson Damasceno, 2014.

Em junho de 2016, por conta de uma bactéria no pé que se alastrou para o


pulmão, Euzébio parte desse plano terreno, ficando aqui em forma de resistência com
tudo o que produziu, deixando um filme sendo finalizado e a dor da ausência nos seus
amigos e colegas da vida, da Vila e/ou das artes.

Em 9 de junho, dia da primeira edição do Gastronocine26, cineclube que


produzo, que exibiria naquele dia curtas cearenses com alguma relação com a
gastronomia, seleciono entre os filmes Coma (2007), de Rubia Mércia, produzido no
extinto Ateliê Imagem e Corpo da Vila das Artes, ministrado pelo professor Pablo
Assumpção (PPGArtes), curta em que Euzébio atua27. Soube da notícia de sua partida
na noite anterior à exibição, e tive uma grande tristeza que dissolveu a alegria e
expectativa de estreia. Rúbia e Irene Bandeira, que seriam as djs da noite e eram
muito suas amigas, não iriam mais tocar. Eu, que já havia divulgado e não tinha como
cancelar o evento, o fiz em sua homenagem.

Um dia, caminhava pelas calçadas da Casa, e como era de costume, parei


para ver as plantas da espiral, mas dessa vez, percebia algo diferente dos enormes

26 Cineclube contemplado pelo edital de cinema e vídeo da SECULT-CE, que tem a proposta de exibir
filmes que façam menção à gastronomia em conjunção com uma feira gastronômica dentro da temática
do filme exibido. A primeira edição, por exemplo, exibiu quatro curtas-metragens cearenses e tinha uma
feira com comidas cearenses.
27 Além de artista visual, diretor de arte, era ator e atuou em diversos filmes, incluindo muitas produções

da Vila das Artes.


39

manjericões, babosas, boldo. Havia homens trabalhando em uma espécie de reforma


aparentemente informal, todos à paisana, alguns de bermuda. Parecia contraditório,
já que a Casa, por ser tombada, necessitava de cuidados especiais para essa
intervenção física, com especialistas. Além disso, surgia a ameaça da remoção do
que ainda resistia ali: a espiral de ervas, e os Mandacarus de Euzébio. Busco
informações, mas não consigo nada efetivo. Depois fico sabendo que estão
preparando o espaço para a realização da Casa Cor Ceará.

3.1 Lounge

Em edição comemorativa de 290 anos de Fortaleza e 30 anos de Casa Cor,


escolhem, como nomeiam o local, o Palacete do Barão de Camocim para a realização
do evento anual. A organização estabelece um acordo com a Prefeitura de Fortaleza
através da Secretaria de Cultura, com a assinatura de um termo de permissão para o
uso do bem imóvel. Em troca da utilização da Casa para o evento, que ocorreu entre
os dias 3 de novembro e 13 de dezembro de 2016, a Casa Cor Ceará se compromete
a restaurar a Casa para sua posterior implantação como parte do Complexo da Vila
das Artes.

De acordo com o site28, a Casa Cor é uma empresa do Grupo Abril,


reconhecida como a “maior e mais completa mostra de arquitetura, design de
interiores e paisagismo das Américas”. Ocorre em mais de vinte cidades do Brasil,
tendo outras seis no exterior. Em Fortaleza, foi criada por Neuma Figueiredo em 1999,
com dezenove edições na capital que circula por diferentes espaços da cidade como
foi o caso da Casa do Barão e do Gabinete da vice-governadoria, espaços públicos
cedidos temporariamente para sua realização.

O evento contou com trinta e cinco projetos de cinquenta e seis


profissionais da arquitetura, design, decoração, paisagismo. De acordo com Neuma
Figueiredo29 (2016), a reforma no casarão tombado teve a assessoria do conselho
patrimonial da Prefeitura de Fortaleza e do professor da UFC, o arquiteto Romeu

28Disponível em: https://casacor.abril.com.br/sobre/. Acesso em: 27 fev. 2018.


29Entrevista no vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-nnitVLwya0. Acesso em: 27
fev. 2018.
40

Duarte. A mesma afirma que não há nenhuma interferência estrutural, trabalhando


apenas a decoração interna dentro do casarão. Em poucos meses se realizou a
reforma do espaço que há 10 anos estava sem manutenção em sua estrutura física.

Além da Casa, houve intervenções nas suas imediações, a Praça Clóvis


Beviláqua, localizada em frente à Casa, passou por uma reforma e recebeu alguns
eventos. Construções próximas foram removidas para a implantação de um
estacionamento. O espaço, tanto da rua quanto da Casa torna-se privado, com um
evento direcionado a uma minoria privilegiada da cidade. Além do preço dos
ingressos, R$40,00 inteira, o próprio evento tem uma atmosfera segregatória, com
ambientações e objetos suntuosos, uma realidade diferente da vivida pela maioria da
população, uma estética do luxo, do intocável, do adesivo e da faixa que mantém o
espectador distante e contemplador, contando com um mediador para explicar cada
ambientação, um estriamento (DELEUZE; GUATTARI, 2012) do espaço, fechado,
formal, organizado, de qualidades mensuráveis.

Rancière (2010) fala dessa separação provocada ao espectador que pode


ser vista em alguns casos no teatro, no museu tradicional e também na Casa Cor,
onde se contempla obras de artes valiosas, imagens, espetáculos, ou nesse caso,
ambientações, entre quadros, móveis, paisagismo, intocáveis. Ele diz que

[...] olhar é o contrário de conhecer. O espectador permanece face uma


aparência, ignorando o processo de produção dessa aparência ou realidade
que a aparência encobre. Em segundo lugar, olhar é o contrário de agir. A
espectadora fica imóvel no seu lugar, passiva. Ser espectador é estar
separado da capacidade de conhecer e do poder de agir. (RANCIÈRE, 2010,
p. 8-9).

Citando Debord, Ranciére (2010) menciona o problema da exterioridade,


que priva o sujeito de si. A criança nem sempre se deixa sujeitar a isso. Foi o que
aconteceu à minha filha, que foi comigo a esse dito espetáculo. Na Cozinha da Mama,
ambientação premiada no evento, Valentine tentou tocar em um objeto qualquer e foi
reprimida por uma monitora: “Não pode”, disse ela à minha filha, impedindo-a de ser,
conhecer e de agir, já que “Quanto mais se contempla, menos é” (RANCIÈRE, 2010,
p. 14). Como pode uma cozinha intocável? É apenas uma cenografia, um objeto de
ficção premiado.
41

O jardim projetado pelo paisagista Thiago Campos trazia exemplares de


palmeiras e carnaúbas, bromélias e um lago artificial (Figura 10) no lugar onde se
localizava a espiral de ervas. Nada ali me parecia legítimo, era outra realidade,
inserido em um espaço que já deixou de pertencer à elite da cidade há anos, e que
intervia de forma violenta no espaço. Lembra ao que Euzébio Zloccowick denominava
“Jardim de Rico” e Benevides (2017) explanou em seus escritos no momento de
ocupação da Casa devido à nova gestão:

Jardim de Rico” não precisa estar necessariamente dentro de uma


propriedade privada de alguém com muitas posses, um sujeito ou sujeita
ricos. Antes, refere-se a um jardim que, do dia para a noite, é montado num
espaço onde se ignora a história anterior, as espécies que viveram ali até
então, e, aproveitando-se de exemplares já crescidos de outras espécies já
cultivadas anteriormente, por outras mãos (que também ficam invisíveis), se
estabelece do dia para a noite. Exemplos não faltam e plantas tropicais são
muito requisitadas para esses jardins. Podem ser encontrados em stands de
vendas de lançamentos de empreendimentos imobiliários, por exemplo. E
quando o empreendimento é vendido, partem para uma próxima empreitada.
As noções de manejo e cultivo, tão essenciais para quem lida com as plantas,
ficam completamente em segundo plano, pelo simples fato de que esses
fazeres e saberes necessitam de tempo.
O trabalho de arte tem muitas semelhanças com o cultivo das plantas. E
também com o trabalho científico. Para que possamos sentir um
desdobramento desse trabalho em uma comunidade, precisamos de tempo
e espaço [...].

Figura 10 - Lago Casa Cor

Foto: Salvia Braga, 2016.


42

A Casa estava agora iluminada sob a luz dos holofotes e maquiada, o que
Jacques (2012) traz como zona luminosa da cidade, um espaço domesticado,
capturado, anestesiado, pacificado através da fabricação de falsos consensos,
esterilizando a esfera pública, nesse caso tanto no que se refere à casa, quanto à
Praça, que também é maquiada, espetacularizada, inclusive recebendo um grande
Festival, o Conecta, organizado pelo Instituto Solares, com feira gastronômica,
seminário, mostra de moda, design, artesanato e shows musicais contando com o
cantor e compositor Tom Zé, a banda O Terno, Duo Finlândia, da Argentina, e
atrações locais com Projeto Riviera e Nayra Costa. Para Jacques (2012), a pacificação
desses espaços públicos, que acontece por exemplo, com a retirada de moradores de
rua que ocupavam o local, e com o “embelezamento” de sua estrutura para a recepção
de eventos como os citados, busca esconder tensões que são inerentes aos espaços
públicos e esteriliza a experiência de alteridade nas cidades.

Era final de 2016, e eu sabia há pouco da minha entrada no Programa de


Pós-Graduação em Artes (PPGArtes), com a pesquisa que se denominava
Intervenções na Casa do Barão de Camocim, justo no momento do acontecimento da
Casa Cor ali, onde vou por duas vezes, e em cada uma realizo diferentes ações e
percepções. É na segunda visita que percebo melhor a “Sala da Família” que conta
com a participação dos trinetos do casal de Barões, Almir Campos, Paula Campos,
Beatriz Miranda e Ellen Benevides, todos arquitetos. Eles mesclam objetos
contemporâneos com mobiliários originais da família, como o relógio de coluna, o
piano de cauda, quadros do Barão e da Baronesa e diversas fotografias.

Ali passei bastante tempo, a fotografar aquelas imagens, via nas fotografias
o jardim que também habitamos, um lugar especial para aquela família, a escada onde
nos reuníamos e fizemos fotos da turma foi também a escada de fotografar tanta gente
outrora, de registrar a passagem de tempo, tantos tempos, refletida principalmente na
figura de Cecília, que naquele lugar cresceu, casou, teve diversos filhos, viu familiares
nascerem, morrerem, chorou, sorriu, celebrou, ficou de luto, teve seus cabelos
embranquecendo, a pele enrugando, a família se multiplicando, as casas dos filhos se
propagando ao redor de sua morada, formando uma Vila, viu seus filhos crescerem
a correr pelo solar, tornarem-se adultos, casarem, sempre fotografando os momentos
de união no espelho da sala que ali ainda estava.
43

Figuras 11, 12 e 13 - Família Leite Barbosa.

Figura 11

Figura 12
44

Figura 13

Fonte: Fotos das fotos expostas na Sala da Família, Casa Cor, 2016.

Os demais ambientes pouco dialogavam com a Casa ou com os fazeres


artísticos que por vezes lhe visitavam, nem mesmo com suas memórias, ou
assumindo vulnerabilidades em formas de manchas, rachaduras, refletindo a
realidade do que foi, do que é. Era tudo polido, luxuoso, higienizado, climatizado,
medido, vendido, tudo tendência, termo que na moda, designa aquilo que está em
evidência, mesmo que, e geralmente de forma breve. Em um dos dias que fui, um dos
últimos da mostra, os objetos estavam etiquetados, à venda, em liquidação, o espaço
se tornava um grande shopping de ar vintage. De companhia para a visitação, levei
minha filha então com 8 anos, que ficava triste e até chorou sobre as escadas de
madeira, ao lembrar da Casa e da Exposição que havia visitado há dois anos, dizendo
querer encontrar a casa que vira da outra vez.

Havia um quarto reservado para o cachorro da família, com lustre,


espelhos, cama, brinquedos. Foi instalada uma nova escada e um elevador para quem
tem dificuldade de locomoção, no espaço oposto à escada e elevador original em “uma
estética bem Casa Cor”, como disse Alíria, colega de mestrado em um outro dia que
fomos visitar, dois anos depois. Um dos grandes choques foi deparar novamente com
os banheiros totalmente descaracterizados. Na Exposição Materialidades/ Ativações/
Deslocamentos, abrigavam instalações artísticas, que se utilizavam da destruição e
45

sujeira que apresentavam, nas instalações Lavação e Convite ao Suicídio. Entendo


que fizessem reparos na estrutura, mas tamanha descaracterização, que removeu
pisos, ladrilhos, banheira, trocando tudo por ambientações de um luxo em demasia,
com banheiras de mármore e TVs de led foi desconcertante.

Figura 14 - Banheiros Casa Cor.

Foto: Salvia Braga, 2016

Uma característica marcante da Casa Cor, é o fato de se apropriarem de


espaços, intervirem efetivamente nestes, abrigando o evento temporariamente em
locais diferentes a cada ano, e depois do período de cerca de dois meses, toda a
estrutura é removida. Lembro da primeira Casa Cor que fui, talvez a primeira da
cidade. Inicialmente, veio o encantamento de encontrar diversas ambientações
diferentes em uma casa ampla, bonita, não sei se é da imaginação ou realmente
aconteceu, mas lembro de ter encontrado no banheiro uma cobra daquelas de duas
cabeças. E o que fica para mim é o encantamento de uma criança de uns 10 anos, a
cobra, uma cor verde bebê nos objetos e paredes, e as ruínas da casa, derrubada
após o evento, onde sempre passava de carro com minha família e perguntava o
porquê de terem destruído tão bela construção.
46

Encontro com afetos de repulsão, entre os banheiros, a cozinha onde


minha filha foi repreendida, os lounges de propagandas de tantas marcas, o aspecto
capitalístico (GUATTARI; ROLNIK, 2005) de tudo, do todo, as pessoas se
fotografando e divulgando estar na Casa Cor em redes sociais, o “Quarto da filha
arquiteta e da filha estilista”, com tons neutros na parte da arquiteta e tudo rosa e
florido na parte da estilista.

Um lugar me afetou em sua dimensão poética e estética: A Varanda das


Filhas, de Ney Filho, arquiteto e paisagista. Um dos poucos que dialoga com a rua e
com a Casa. Localizado na lateral do andar superior, a ambientação traz uma
intervenção com pinturas de Raquel Morano, artista e arquiteta. A pintura foi um dos
primeiros trabalhos que percebi ser feito para a instalação da Casa Cor fora a reforma,
enquanto passava na rua, e me deu uma sensação ruim, de primeiramente achar de
uma simplicidade e infantilidade, uma percepção de quem estava predisposta a não
gostar de nada que viesse daquele evento que passava por cima da Casa e dos feitos
ali acontecidos.

Depois, ao conhecer, percebi que aquela proposta estabelecia uma


conversa interessante entre a Casa e a Rua. Um grande olho pintado perto de um
banco da Praça, com uma seta, apontava para a Casa, e da Casa, o olho pintado em
dimensão menor convidava a olhar a rua e a Praça, dizendo “Estou no banco verde
da praça, estou na cidade. Sou a cidade” (Figura 15).

Figura 15 – Olhos.

Foto: Salvia Braga, 2016.

A proposta também é a única daquela edição do evento a assumir a Casa


quanto ao seu estado de deterioração, passagem de tempo e esvaziamento,
mostrando suas cicatrizes, sem a maquiagem utilizada em todos os outros ambientes.
47

Ali as paredes mantêm o amarelado, as manchas, o piso de cerâmica hexagonal


continua o mesmo que acompanhou a casa ao longo de alguns anos, com um formato
que se expande para outros objetos do recinto. Raquel Morano pinta sob as paredes
desgastadas, trazendo imagens femininas e os nomes das filhas do casal Cecília de
Camocim e Maximiano Leite Barbosa, entre outros nomes de mulheres e cidades do
Ceará, além das plantas que tornam o ambiente mais verde e acolhedor. Ney Filho
utiliza diversos elementos da cultura cearense, como uma grande cadeira artesanal
feita de fios de plástico trançados (que conterrâneo nunca sentou em um alpendre a
balançar em uma?), e móveis cobertos de couro trabalhados pelo artista-artesão
Expedito Celeiro, o que lhe rendeu uma premiação como ambientação que valoriza o
artesanato cearense. O arquiteto fala mais desse trabalho em um vídeo 30 com
entrevista para a TV Casa Cor.

Figura 16 – Varanda das Filhas

Foto: Divulgação Casa Cor31.

30Disponível em: https://youtu.be/JV8dRQeh43I. Acesso em: 17 jan. 2019.


31 Disponível em: https://casacor.abril.com.br/ambientes/casacor-ceara-2016-festeja-na-casa-barao-
de-camocim-com-35-ambientes/. Acesso em: 4 dez. 2018.
48

O evento finaliza e a Casa ainda fica nas mãos da Casa Cor, fechada para
as demandas da Vila das Artes que vão surgindo. Com excessão das casinhas dos
fundos, que abrigam atividades como apresentações da Escola de Dança, cineclube,
performances, exibições, casas essas que foram umas das partes mais modificadas.
A reforma dura cerca de dois anos, e a Casa é entregue à população no final de abril
de 2018, com a 69ª edição do Salão de Abril.

3.2 Do Patrimônio Cultural

Figura 17 - Casinha dos fundos.

Foto: Geovanna Correia, 2014.

A Casa da qual venho falando, que não é a que se encontra na foto acima,
se constitui como patrimônio material e cultural da cidade de Fortaleza. Construída no
século XIX, feita para ser morada de uma família detentora de poder econômico e
aristocrático, foi tombada em 2007 através da Secretaria Municipal de Cultura, assim
como outras construções que retratam outros tempos históricos a partir de imponentes
modelos trazidos da arquitetura europeia o foram, por essa ou outras instituições, no
intuito de preservar suas estruturas e memórias, que se constituem como um conjunto
de traços que falam da memória do Brasil. Será? Não serão essas construções
49

símbolos abstratos de uma identidade nacional forjada, contada a partir de uma


camada dotada de poder, que pretende manter sua hegemonia?

Os termos “tombamento” e “livro do tombo” são de origem portuguesa, que


significam “inventariar”, “arrolar”, “inscrever” (MEIRELLES apud FONSECA, 2009). A
ação de tombar tem sido a principal política de preservação do patrimônio cultural no
Brasil, como menciona Fonseca (2009, p. 180), um “rito, por excelência, da
consagração do valor cultural de um bem. A autora fala desse poder simbólico inerente
aos bens que constituem o patrimônio nacional, fruto de uma “política conduzida por
intelectuais que requer um certo grau de especialização em determinadas áreas do
saber” (id. p. 22), que se constitui, ou deve se constituir enquanto política pública. No
entanto, tem se mostrado distante do imaginário da maioria da população, em um
contexto político cultural de muitas desigualdades socioeconômicas.

Surgido em 1937, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional


(IPHAN), então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), inicia sua
trajetória em termos de preservação do patrimônio cultural brasileiro, com marco no
decreto-lei n° 25/193732, que diz que

[...] constitui como patrimônio nacional o conjunto de bens móveis e imóveis


existentes no país e cuja conservação seja de interêsse público, quer por sua
vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional
valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico [...] Os bens a que
se refere o presente artigo só serão considerados parte integrante do
patrimônio histórico ou artístico nacional, depois de inscritos separada ou
agrupadamente num dos quatro Livros do Tombo (s/n)

O Artigo 17 da mesma lei diz que as coisas tombadas “não poderão, em


caso nenhum ser destruidas, demolidas ou mutiladas, nem, sem prévia autorização
especial do Serviço do Patrimônio Histórico e Artistico Nacional, ser reparadas,
pintadas ou restauradas.” (grafia original).

Essas políticas de preservação são vistas como fardo às mentes mais


pragmáticas, enquanto os patrimônios são incompreendidos e distantes enquanto

32 Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/Decreto_no_25_de_30_de_novembro_de_1937.pdf.
Acessado em: 28 nov. 2018.
50

símbolos nacionais/locais para a maioria da população. O que não quer dizer que não
seja importante sua preservação. É necessário aproximar esses bens e fazeres das
pessoas, ampliar a educação patrimonial, a noção de patrimônio público, portanto de
todos, onde seja possível à população não só a entrada nesses espaços, mas o
interesse e “apropriação” coletiva por esses bens culturais. É preciso, mais que isso,
que se amplie a noção de bens a serem preservados, alargando esse escopo.

Moassab (2016) remete ao fato de que esses patrimônios protegidos pelo


Estado e suas instituições são embasados nos valores da elite, o que tem elevado a
monumento, arquiteturas coloniais das estruturas de poder, como igrejas, fortes,
palácios e ricos casarões pertencentes à aristocracia. Fato que significou registrar a
história do Estado como se fosse de todos, e deixar de lado a história do povo, dos
negros, dos índios e outras comunidades tradicionais, que tiveram suas vidas, fazeres
e saberes em grande parte dizimados, mas que resistem, dentre outras formas,
através de culturas ricas e diversificadas, que geram patrimônios materiais e imateriais
de grande valor para o real entendimento de nossa história. O que tem acontecido,
segundo a autora, é o embranquecimento e higienização da história de sofrimento que
acompanha o período colonial. Ela traz o exemplo dos anti-monumentos, que são
intervenções artísticas que questionam essa história oficial, ironizando a “lógica
comemorativa naturalizada do monumento urbano” (MOASSAB, 2016, p. 27).

O ato de tombamento é direcionado aos patrimônios materiais. Os


patrimônios imateriais são salvaguardados pelo Estado através do registro, inventário,
vigilância dentre outros meios, sendo oficializado como bem a ser preservado a partir
da Constituição Federal de 1988. O artigo 21633 da Constituição remete à memória
dos diferentes grupos que constituem a formação da sociedade brasileira, englobando
entre o patrimônio as formas de expressão, modos de fazer, criar e viver; criações
científicas, artísticas e tecnológicas; obras, objetos, documentos e demais espaços
destinados a manifestações artístico-culturais; conjuntos urbanos e sitio de valor
histórico, paisagístico, artístico, paleontológico, ecológico, científico.

Amaral (2015), enfatiza a arte como dispositivo que faz o espectador sair
da posição de observador neutro da cidade, o colocando em ação, percebendo a

33 Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/constituicao_federal_art_216.pdf.


Acesso em: 29 fev. 2019.
51

cidade e se percebendo, podendo contribuir na noção do que venha a ser patrimônio


cultural para cada um de nós, ao provocar nossos sentidos e gerar outros que nos
amarrem à memória da cidade, “criando atravessamentos e encontros poéticos”
(AMARAL, 2015, p. 78). Em seus estudos, o patrimônio cultural funciona como suporte
para evocar e convocar a memória, articulando passado e presente, (re)criando e
(re)definindo imagens da cidade, podendo ser expressado e tomado das mais
variadas formas.

A partir das leituras, podemos considerar a Casa, mais que um patrimônio


edificado, um espaço que se constituiu ao longo de sua trajetória como patrimônio
cultural, que acolhe diferentes modos de expressão, ação, criação. Remete, mesmo
que de maneira encoberta e nebulosa, a diferentes grupos, sendo espaço de
manifestações artístico-culturais, científicas, tecnológicas, não deixando de ser um
território de disputas e conflitos, muitos deles dados a partir da relação do Estado, ou
mais especificamente, da Secretaria de Cultura com o espaço, com as artes,
estudantes, artistas, do qual falarei com mais detalhe ao longo dos demais cadernos
apresentados nessa pesquisa.

A casa da figura 17 foi demolida durante a reforma da Casa Cor.


Provavelmente foi construída posteriormente à Casa dessa pesquisa, que ganha título
de patrimônio, estando registrada no Decreto 12.304/2007, expedido pela então
prefeita Luizianne Lins:

CONSIDERANDO a necessidade de preservação da memória coletiva do


povo fortalezense, em face o seu valor simbólico e histórico-cultural.
DECRETA: Art. 1° - Fica determinado o tombamento do imóvel situado na
Rua General Sampaio, 1632, Centro, em conformidade com o que dispõe a
Legislação Municipal em vigor, gerando todos os efeitos inerentes ao
tombamento definitivo, bem como de seu entorno (DECRETO DE LEI
MUNICIPAL 12.304/2007).34

A lei em questão evidencia, além do tombamento da Casa, a circunscrição


de seu entorno, que abrange a rua 24 de Maio até a avenida Duque de Caxias, desta
até a rua Senador Pompeu, em seguida com a rua Clarindo de Queiroz, seguindo a

34Disponível em: http://legislacao.fortaleza.ce.gov.br/images/0/04/D-12304-2007.pdf. Acesso em: 27


nov. 2018.
52

leste até a avenida Barão do Rio Branco e desta até a rua Meton de Alencar. Dentro
desse entorno se encontram as casas “anexas” ao do terreno da Casa, algumas delas
provavelmente construídas como alojamento para as pessoas que trabalhavam na
“Casa Grande”, mas estas puderam ser demolidas e/ou totalmente modificadas, por
não constituírem símbolos de poder ou não apresentarem algum tipo de exemplar
arquitetônico que retrate o modelo de uma época, um estilo, ou simplesmente por falar
de um povo, os que lá dormiam, que se apresentam invisibilizados historicamente,
que não aparecem nas fotografias daqueles tempos, nem mesmo as que retratam
aquele entorno, e que continuam a ser encobertos e não dignos de entrar nessa
memória protegida.

A organização da Casa Cor junto à equipe que realizou a reforma na Casa


dita do Barão, afirma que não interviu na estrutura física do espaço, trocando apenas
materiais como madeiramento comprometido e reparando a rede elétrica e hidráulica.
Não é o que percebemos quando nos lembramos de partes da Casa que foram
totalmente descaracterizadas, como as casinhas que ficavam ao fundo e a Casa do
Meio. Se o espaço foi tombado junto ao seu entorno, essas estruturas, anexas, não
se constituem como entorno? Ou só o Casarão de arquitetura europeia merece ser
preservado e se constitui como importante para a memória coletiva do povo
fortalezense?

Entregar a reforma da Casa para uma instituição como a Casa Cor Ceará
gera a demolição das estruturas simples das casinhas que ficavam aos fundos, talvez
porque para estes que empreenderam as modificações, não constituem de
importância do ponto de vista econômico/arquitetônico/social, por não apresentarem
estruturas dotadas de poder nobre ou burguês, que podem inclusive fazer menção às
pessoas que constituíam a força de trabalho propulsora da morada, dos que serviam
à família nobre-burguesa.

A portaria 420/201035, do IPHAN, determina que as intervenções


caracterizadas como Reforma ou Construção nova, quando tiverem de ser realizadas
em bens tombados individualmente, serão enquadradas na categoria Restauração,
que se constitui em

35Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/legislacao/Portaria_n_420_de_22_de_dezembro


_de_2010.pdf. Acesso em: 28 nov. 2018.
53

[...] serviços que tenham por objetivo restabelecer a unidade do bem cultural,
respeitando sua concepção original, os valores de tombamento e seu
processo histórico de intervenções, [...] nos quais, para a realização de
intervenção, requeira-se conhecimento especializado (Portaria 420/2010 do
IPHAN).

Figuras 18 e 19 - Casinha antes e durante a Casa Cor.

Fonte: Foto 18 - Geovanna Correia, 2014. Foto 19: Site Casa Cor 36.

As imagens acima correspondem ao mesmo espaço em momentos e


ângulos diferentes, uma das edificações anexas à Casa. A primeira em 2014, ainda
sem nenhuma de reforma e/ou pintura, em estado de ruínas, com partes da parede
caída e sem telhado, que de acordo com o parecer técnico da Pefeitura de Fortaleza
(2014), corria risco de desabemento. Nela ocorriam intervenções, como festas e
algumas exibições. Foram feitos filmes em produções de nossa turma da EAV, como
Miragem (2014)37 e Recicle de Barão (2014)38, onde se utilizou as partes dos fundos
da Casa para algumas das filmagens. Depois, encontramos intervenções com grafite
e pinturas nas paredes, no momento de reforma pós Casa Cor, prestes a serem
trocadas por paredes brancas. Durante o evento, como pode ser visto na figura ao
lado, o espaço tornou-se um lounge patrocinado pelo Serviço Brasileiro de Apoio às
Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), com paredes espelhadas, projeções e um
balanço na parte interna.

O espaço passou a acolher exibições de filmes nos cineclubes e mostras


de filmes vinculadas à Vila das Artes. Para isso, ganha portas de vidro, ar-

36 Disponível em: http://casacor.abril.com.br. Acesso em: 29 nov. 2018.


37 Direção: Virgínia Pinho. Disponível em https://vimeo.com/132637045.
38 Direção: Geovanna Correia.
54

condicionado, cadeiras e paredes brancas. Em muitas mostras acontecidas, a


estrutura não comporta o grande número de público, explicitando a demanda por um
lugar maior para exibição de filmes, como consta no projeto incial do complexo, da
construção de um cinema de rua na Casa do Meio. O local abrigou atividades de
formação da Escola de Artes e Ofícios Thomás Pompeu Sobrinho, com sede no bairro
Jacarecanga. Entre as atividades formativas, a Escola oferece um curso de
restauração, que foi parceiro nos restauros para a exposição do Memorial Sinhá
D’Amora.

Encontro no Youtube um vídeo intitulado Restauro da Casa do Barão de


Camocim39 por Casa Cor. Percebo uma linguagem audiovisual com uma certa
especificidade que me parecia familiar, me lembrava os vídeos produzidos pela Escola
de Audiovisual da Vila. Assisto, e ao final, nos créditos, encontro o nome de alunos da
quarta turma da EAV, em uma mistura entre documentário e vídeo institucional que
acompanha as reformas na Casa para o início da Casa Cor.

Uma das participantes do vídeo, Viviane Bizarria, disse que cinco alunos
da turma receberam uma bolsa para essa produção audiovisual, mas que não
puderam colocar seus pontos de vista sobre a “reforma” (aspas colocadas por ela), e
sim o que a organização do evento queria, o que gerou muita discussão, reuniões e
tentativas de manobra em busca de produzir algo que trouxesse mais seus modos de
pensar. A equipe de estudantes queria falar da história da Casa, de seu valor cultural,
do patrimônio, dos eventos que já aconteceram nela, e “até sobre a casa grande e
senzala que ela era, mas eles não queriam que a gente colocasse sobre isso”
(BIZARRIA, 2019, s/n). Segundo ela, a Vila deixou claro que eles podiam fazer o que
quisessem, mas em meio às discussões, não davam um posiconamento firme.

Apesar da insatisfação dos estudante que produziram o vídeo, ele possui


uma qualidade em som, fotografia e uma certa estética urbana, poética e de alteridade
presente nos videos produzidos pelos estudantes da Escola. Ele mostra também um
pouco do processo de decepação dessa reforma por vezes violenta, que passa por
cima da memória e dos processos da Casa. Sinto dor ao ver algumas cenas, e imagino
como a Casa deve ter sentido, enquanto um pedreiro arranca as cerâmicas de seu
banheiro. Sem deixar explícito a intenção, eles mostram um pouco da violencia que

39 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BAoBpJcedaI. Acesso em: 17 jan. 2019


55

foi essa intervenção do setor privado com a legitimação do Estado no espaço, eles se
aproximam dos trabalhadores, das pessoas mais simples, das conversas cotidianas
da obra, e fazem isso através dos fazeres artísticos que conectam as duas Casas,
que mesmo como todas as dificuldades ao longo dos anos, mantém diálogo e ligação,
mesmo diante de todos os impasses institucionais que continuam a acontecer, dos
quais poderemos conversar mais nos outros tantos cômodos que lhe convido
novamente a entrar.
56

4 SALÃO

Figura 20 – Salão.

Fonte: divulgação SECULTFOR, 2018.


57

Eis que a Casa do Barão, cheia de lembranças do passado, do mais


recente ao remoto, se atualiza em um presente - uma ocupação, e se torna Centro
Cultural Casa do Barão de Camocim. Proponho na pesquisa acompanhar seus
movimentos futuros, mas não é só por isso que me inscrevo quando abre o edital do
69º Salão de Abril, o marco para a reabertura da Casa depois de dois anos em reforma
pós-Casa Cor.

Submeto um trabalho ao Salão, porque ando em um movimento de


(re)invenção enquanto artista etc. (BASBAUM, 2006) desdobrando os laços com o
audiovisual e expandindo esses fazeres. O audiovisual foi por um tempo um modo de
criar. Participei também do 68º Salão de Abril Sequestrado, edição organizada pelos
artistas locais, diante da ausência de iniciativa e verbas da Prefeitura, que em 2017
não se manifestou para sua realização. Artistas e coletivos da cidade se uniram e
resolveram “sequestrar” o Salão, realizando a mostra sem apoio financeiro
governamental, arrecadando recursos com a venda de imagens doadas por alguns
proponentes, contando com o trabalho voluntário de diversas pessoas na
organização, curadoria e uma diversidade de artistas expondo e lançando suas luzes
vaga-luminosas pela cidade.

Didi-Huberman (2011) fala desses pequenos lampejos de luz que refletem


em meio a escuridão como fazem os vaga-lumes, sendo a arte uma dessas
manifestações que brilham em meio aos tempos sombrios como os que vivemos
politicamente no Brasil atualmente, dos quais falarei mais em outro momento.

Fortaleza, cidade que por vezes demonstra escassez de espaços ditos


oficiais para mostras artísticas, em especial as remuneradas, por isso mesmo, quando
é aberta uma possibilidade como o Salão de Abril, centenas de pessoas se inscrevem,
tanto na mostra considerada oficial, que aconteceu em 2018 na Casa, como no Salão
Sequestrado, um manifesto dos artistas que reverberou para outras localidades,
dando luz a esse Salão de artes, que pode ser visto como ultrapassado e conservador
em outros contextos, mas que tem uma importância histórica para a Cidade e seus
artistas, movendo uma série de debates em torno da arte e trazendo a cada ano um
certo panorama da produção artística em seu recorte espaço-temporal, com trabalhos
que geram repercussão desde o surgimento do Salão até a atualidade. É considerado
a mais importante mostra de artes visuais de Fortaleza, e realizou em 2018 sua 69ª
58

edição. A primeira é datada de 1943, somando 75 anos de história, com a participação


de muitos artistas em âmbito local e nacional.

O Salão de Abril nasceu, também, na esteira de uma movimentação artística


que teve início com a irreverência da Padaria Espiritual. Eram reuniões que
congregavam poetas e escritores, em acalorados encontros em que
introduziram a poesia moderna na capital cearense. Foi com as mostras do
Salão, por exemplo, que se introduziu a Arte Moderna, que já vicejava em
reuniões e mostras da região Sudeste do País. (SALÃO DE ABRIL 40, 2018,
s/n).

A mostra artística faz parte do calendário permanente de eventos culturais


da cidade, organizado pela Prefeitura de Fortaleza através da Secretaria de Cultura
desde 1964, “quando a administração municipal ratificou publicamente a importância
do Salão e tomou para si a responsabilidade da realização anual do evento, o mesmo
assumiu um papel de eixo da vida cultural da capital cearense” (PREFEITURA DE
FORTALEZA, 2018). Além de contar com verbas para sua realização, com produção,
curadoria, estrutura física, faz parte de sua política cultural o pagamento de uma
quantia em dinheiro, que geralmente se intitula como ajuda de custo e/ou premiação
para os artistas participantes, que são selecionados através de edital por curadores
locais e nacionais, havendo também um prêmio em valor maior para os primeiros
colocados. A mostra já experimentou diversos formatos, por vezes acontecendo com
a participação de artistas de diversos lugares do Brasil, às vezes em maior quantidade
que os participantes locais, em outras contando apenas com artistas cearenses ou
residentes do Ceará.

Em 2017, participo do 68° Salão, o Sequestrado41, junto a outros diversos


artistas que se espalham pela cidade através de lugares cedidos por voluntários, entre
galerias, ateliês, espaços culturais, além de espaços públicos como ruas e praças.
Proponho uma pequena mostra do Gastronocine, um cineclube que organizo junto a
uma Feira Gastronômica, com a exibição de filmes que fazem referência à
alimentação, gastronomia e à cultura alimentar como um todo. Para o evento

40 Disponível em: http://www.salaodeabril.com.br/o-salao-de-abril/breve-historico. Acesso em: 8 jan.


2019.
41 Ver mais nas reportagens http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/verso/resgate-de-

um-salao-esquecido-1.1826986 e http://tribunadoceara.uol.com.br/noticias/cotidiano-2/artistas-
sequestram-salao-de-abril-realizam-mostra-e-criticam-ausencia-de-recursos-da-prefeitura/, acessadas
em 8 jan. 2019
59

proponho a Mostra Fome, onde exibo o filme Garapa42 (JOSÉ PADILHA, 2009) e peço
que as pessoas levem alimentos para que sejam preparados43 por mim em um outro
dia, quando exibiria outro filme em local aberto, e serviria algo com as doações
arrecadadas. Como previa como uma das possibilidades, devido ao grande número
de artistas em relação aos curadores e produtores, e a dificuldade de se organizar em
meio a 160 participantes e poucos recursos, nenhum alimento foi arrecadado 44, e o
segundo dia da mostra foi cancelado.

Todos os inscritos que se adequavam à proposta do Salão, de ser residente


ou trazer a cidade de Fortaleza de alguma forma na proposta artística, foram
selecionados, em uma “curadoria inclusiva”, como cita um dos curadores, Bitu
Cassundé45 (2017). Um modo de afirmar esse Salão em diferença aos demais, um ato
político e estético e de resistência de fazer acontecer, mesmo sem o apoio
governamental.

O fato de minha proposta ter sido selecionada no Salão seguinte, o 69º,


agrega nesse hodos metá (ESCÓSSIA; KASTRUP; PASSOS, 2010) o modo de
construir em meio ao caminhar, aos acontecimentos. Havia uma provocação a mais,
de criar com/na Casa, que partia de um desejo inicial na proposta dessa pesquisa,
voltar a produzir com e nesse espaço, que se torna mais que um objeto/lugar e ganha
corpo, voz, gestos e ações.

No momento da inscrição, havia a possibilidade de submeter mais de um


trabalho, do qual apenas um poderia ser selecionado, caso fosse. Minha primeira (e
depois única) proposta saiu com uma facilidade tão grande que parecia tão simples,
com todo o valor que atribuo à simplicidade: replantar o que havia sido removido para
a instalação da Casa Cor 2016 na Casa, a espiral de ervas que construí junto a outros

42 O documentário mostra a vida de três famílias cearenses, duas do interior e uma da capital que vivem
em um regime de escassez alimentar, e por vezes utilizam da garapa de açúcar, daí vem o nome do
filme, para disfarçar a fome vivenciada cotidianamente.
43 Tenho uma estreita relação com a gastronomia desde a infância, minhas primeiras casas eram

também restaurantes de minha família, comecei a cozinhar profissionalmente aos 19 anos, quando abri
um bar e espaço cultural no restaurante que era da minha mãe, desde então continuo a cozinhar,
expondo quinzenalmente com comidas vegetarianas em uma Feira Agroecológica da cidade desde
2013. Uma das referências para esse trabalho foram as obras Café Educativo (2007) e Restauro (2016),
de Jorge Menna Barreto.
44 A arrecadação de alimentos demandava uma boa divulgação, o que não ocorreu por parte do evento,

acontecendo apenas através de minhas redes sociais, que são fechadas apenas para amigos e
conhecidos.
45 Disponível em: http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/verso/resgate-de-um-salao-

esquecido-1.1826986. Acesso em: 9 jan. 2019.


60

colegas, parte da obra Lavação, e os Mandacarus de Euzébio Zloccowick, no projeto


que intitulo Replantio.

Foram 304 artistas inscritos, com 482 propostas (SALÃO DE ABRIL46,


2018), o Replantio estava entre os selecionados. Era uma grande realização e um
modo de estar mais ali, acompanhar esses processos e de poder intervir no espaço
com resistência e vontade de permanecer através do que planto, tornando o espaço
mais fértil, de certa forma, em resistência ou em forma de vida, de verde.

Em Deleuze (1988), criar é resistir, e a arte consiste em liberar a vida


aprisionada pelo homem, “o artista é quem libera uma vida potente, uma vida mais do
que pessoal. Não é a vida dele” (DELEUZE, 1988). Nessa conexão entre vida, arte e
pesquisa, Furtado e Zanella (2012, p. 208) refletem sobre um modo de resistir que se
aproxima mais de uma reinvenção de práticas, de (im)precisão, invenção de modos
de saberes e questionamentos:

Outros caminhos se fazem necessários para que se possa encontrar, se


encontrar e se perder. Mapas que, sem as legendas explicativas que indicam
onde encontrar os serviços comerciais e pontos turísticos, delineiam rotas de
fuga, caminhos marginais, trilhas subterrâneas, pegadas, rastros do
cotidiano. Um cotidiano que é a vida acontecendo, rápida, fluída, emaranhada
na multidão de gentes e de vontades. Nestes meandros, o pesquisador que
se faz olho dos acontecimentos precisa desterritorializar-se e desapegar-se
das formas conformadas e por certo convenientes de pesquisar para
constantemente olhar-se nos acontecimentos e reinventar modos de estar
com outros [...].
Resistencia, nesse sentido, é assumida como postura ética, estética e política
que pergunta mais que afirma, e faz das práticas de pesquisa espaços
múltiplos e multiformes de produzir coletiva e conjuntamente saberes. Resistir
que se objetiva em ruptura sutis, pequenas fissuras e provoca deslizes de
sentidos e produção de novos [...].

Mas às vezes é preciso resistir no embate, no enfrentamento, na ação


direta, para que possamos também resistir politicamente com as artes. Nos unimos
entre os artistas, criando um canal de conversas através de um grupo em uma rede
social, onde nos mobilizamos para irmos até a Secretaria de Cultura de Fortaleza
(SECULTFOR). Como é recorrente, a ação promovida pela Secretaria trouxe
descontentamento por parte dos proponentes, mudando o que consta no edital, que

46 Disponível em: http://www.salaodeabril.com.br/.


61

se propunha a selecionar 30 artistas com uma premiação, ou pagamento, de 5 mil


reais para cada participante, e 15 mil reais para os 4 primeiros colocados. Quando
divulgam os selecionados, trazem 45 artistas, o que nos faz supor que 15 não
receberiam o abono previsto, que para muitos corresponde em boa parte com os
custos para a produção da obra, de responsabilidade de cada artista, além de ser um
pagamento por um trabalho como qualquer outro, que precisa ser remunerado.

Segundo o Jornal O Povo47 (2018), o evento conta, em 2018, com 534 mil
reais para sua realização, valor que acabou sendo acumulado por conta da não
realização do Salão oficial no ano anterior. Ou seja, apenas uma pequena parte desse
valor é destinada aos artistas que compõem o Salão.

Marcamos entre nós uma reunião na SECULTFOR em busca de


esclarecimentos. No mesmo dia, recebemos um e-mail solicitando o envio dos
trabalhos em um prazo de três dias, tudo às pressas para que a mostra ocorresse em
abril, mês em que se comemora o aniversário de Fortaleza, e com a presença de um
dos curadores que selecionou os projetos, Paulo Klein48, que já havia agendado a
vinda tempos atrás. Essa realização às pressas foi, segundo informações de
funcionários da Secretaria de Cultura, condição imposta pela Prefeitura, na intenção
de que a mostra faça parte do cronograma de comemorações do aniversário da
cidade, mesmo diante do atraso ocorrido na divulgação dos selecionados.

Cerca de 15 artistas foram à sede do órgão49, e a conversa esclareceu um


pouco o que estava confuso. Norma Paula, coordenadora da Ação Cultural da
Secretaria, disse que além da seleção de 30 artistas, os curadores resolveram por
convidar mais 15 proponentes que ficariam a critério quanto à participação ou não na
mostra, já que não contariam com o apoio financeiro previsto no edital para os 30
primeiros colocados. O argumento é de que a seleção de mais artistas foi uma ação

47 Disponível em: https://www.opovo.com.br/jornal/vidaearte/2018/04/definida-data-para-o-69-salao-


de-abril.html. Acesso em: 10 jan. 2019.
48 Produtor, jornalista, crítico e curador de artes. Paulista, é idealizador do projeto Arte Ceará que prevê

pesquisa e reflexão sobre a arte cearense. A primeira etapa do projeto foi desenvolvida com apoio da
SECULT Ceará, via Imaginário Instituto de Pesquisas em Arte, onde foram entrevistados artistas locais
como Sérvulo Esmeraldo, José Tarcísio Ramos, Estrigas, Acidum Coletivo, Emília Porto, Coletivo
Monstra e Hélio Rôla, entre outros. Informações disponíveis em
https://www.facebook.com/pg/Paulo.Klein.Arts/about/?ref=page_internal. Acesso em: 10 jan. 2019
49 Reportagem disponível em:
http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/verso/online/secultfor-corre-para-realizar-salao
-de-abril-no-prazo-1.1926501. Acesso em: 10 jan. 2019.
62

pensada em benefício de mais pessoas, que teriam seu trabalho exibido e divulgado,
indo também para o catálogo da exposição. No edital estava claro que os custos
referentes à produção dos trabalhos eram responsabilidade de cada proponente. Na
conversa isso foi amenizado por sabermos que a instituição se responsabilizaria por
equipamentos básicos como projetores, monitores e caixas de som desses 45 artistas.

Durante a cerimônia de premiação do Salão, do qual um dos premiados foi


Darwin Marinho, estudante da quarta turma da Vila das Artes, ele aproveita a ocasião
da entrega de um troféu para questionar a ação da SECULTFOR e as políticas
culturais na cidade. Darwin participa da mostra artística com a instalação Desculpe a
Paz que lhe Roubei, que segundo o catálogo, pensa “estratégias de sobrevivência
para pessoas negras e LGBTT+” (MARINHO, 2018, p. 33). Uma parte do vídeo que
compõe o trabalho foi feito durante a ocupação Vila Viva na Casa, assunto trazido no
Caderno Porão. Ele questiona a seleção dos 45 artistas, com um aviso póstumo de
que só 30 deles foram oficialmente selecionados, em um contexto de cidade que todas
as políticas para as artes visuais giram em torno de editais ou do Salão de Abril, não
havendo formação através de uma escola pública de artes visuais da Prefeitura. Há
apenas uma instituição de ensino superior com um curso de Licenciatura em Artes
Visuais, o Instituto Federal do Ceará (IFCE), que segundo o site50, atende a uma
demanda de formação de professores para a educação básica. Nem mesmo uma
instituição como a UFC, com o Instituto de Cultura e Artes e tantos cursos na área,
entre teatro, dança, audiovisual e gastronomia, possui um curso de graduação em
artes visuais, tendo apenas pós-graduações na área.

Não sabia quanto à possibilidade ou não de participação, já que a proposta


que fiz envolvia custos dos quais não poderia arcar sem a dita premiação. Mas meu
nome estava entre os 30 primeiros colocados, o que gerava alegria, era a Casa
chamando para entrar novamente. Aceito o convite, e como o lugar de visitas é
geralmente o salão, começo por ele a conversar com esse espaço, estabelecendo
diálogos, ficcionalizando conversas que se tornam possíveis, por permitir estar, ouvir,
falar, sentir, por construir essa relação há um bom tempo, deixando com que Ela fale
junto de mim.

50Disponível em: https://ifce.edu.br/fortaleza/cursos/superiores/licenciatura/artes-visuais. Acesso em:


31 jan. 2019
63

4.1 Casa

- Foram dez anos à espera de uma reabertura desde o tempo em que deixei
de ser daquela família, no sentido de posse, e passei a ser da cidade. Antes disso já
me encontrava diante do vazio interno há anos. Gosto de ser habitada, mas tinha
minhas dúvidas quanto ao serviço daquelas pessoas. De certa forma eu me acostumei
com o amarelado das paredes, com a poeira. As aranhas a construírem teias me
faziam boa companhia. Sei do meu valor como patrimônio histórico e cultural desta
cidade, sei que eles não podem intervir bruscamente em minha estrutura, já que sou
tombada. Mesmo assim eles vieram, interviram, degolaram, arranharam, quebraram,
tiraram minha pele sem anestesia, fizeram implantes em meu corpo. Não perguntaram
se eu queria, se eu gostava. Me ignoraram. Ignoraram minha história, valor, vontades,
o tempo que guardei na memória. Por dentro fiquei tão branca que às vezes pareço
sem graça. Fechada, com portas de vidro e até um sistema de ar-condicionado,
acredita? Nem imaginei que viveria para ver algo assim.

Salvia:

- Eu sinto muito se lhe machucaram e te invadiram assim, acrescentando


partes que não fazem sentido com o modo como você se vê. Imagino que doa muito
e que seu corpo ainda guarde essas lembranças, como meu corpo também guarda
lembranças que doem. Sinto falta da simplicidade do seu quintal, das casinhas dos
fundos, daqueles dois banheiros com banheira, um de cada lado.

Quanto ao seu novo interior, é o que O’Doherty (2002) fala sobre o museu,
o cubo branco, um espaço transcendental, onde a realidade exterior não habita. Fica
tudo isolado, asséptico, distante do que possa “prejudicar a apreciação das obras” que
vão colocar aqui. Você agora é um Centro Cultural, com uma galeria de arte. Viu os
quadros, objetos e esculturas que estão chegando? Elas vão ocupar suas paredes,
de algum modo, vão lhe reinventar, dar um novo modo de existir, e imagino que muitas
pessoas passarão por aqui também, mais que as aranhas ou aqueles fantasmas que
te fizeram companhia por um bom tempo. Mas olha, sabe a espiral de ervas que
removeram, assim como os mandacarus da escada? Vamos construir e plantar
novamente outros com a gente?

Casa:
64

- Sério? Por tantas vezes falei, mas ninguém me escutou. Já fui tantas, não
me incomoda mudar, me incomoda o modo como tudo isso aconteceu, como sempre
passavam por cima de mim, às vezes por cima do que sou, de minha existência, de
minha história. Soube que não é só comigo, que é um problema da cidade, uma cidade
sem memória, onde se valoriza mais o novo, onde se derruba casas, árvores, para
construir viadutos, novos prédios, cada vez mais altos, para instalar ar-condicionado
para que se esqueçam o calor que faz uma cidade sem árvores. Sinto muita falta das
tantas árvores que me habitavam há tempos atrás, quando um pomar rodeava meu
entorno. Adorava o cheiro e o gosto das frutas que às vezes caíam no chão e eu sentia
aquele gostinho entre o doce e o azedo dos sabores locais. Agora sofro com o calor
dessa cidade quase careca de vegetações.

Será muito bem-vinda novamente a espiral de ervas e os mandacarus, que


davam um pouco de alegria para este jardim tão ralo que hoje tenho. Aquele pessoal
da Casa Cor me entupiu de plantas, de gosto duvidoso, diga-se de passagem, e
depois tiveram a cara de pau de tirar tudo. Pense em um povo mesquinho! Por um
lado, melhor assim, prefiro as plantas que crescem naturalmente, em seu processo,
tempo, começam pequenas e com o cuidado, a adaptação, o passar das estações,
elas acabam por crescer ou mesmo morrer se não forem favoráveis as condições.
Aquelas do Evento foram todas compradas por grandes cifras em dinheiro,
transportadas de algum estabelecimento comercial, e depois utilizadas em outro
empreendimento, em outro jardim de alto valor. Meu valor é o tempo que escorre
devagar, atrasado. Como Manoel de Barros (2013, p. 257):

Tenho em mim um atraso de nascença


Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos
Tenho abundância de ser feliz por isso
Meu quintal é maior que o mundo
Sou um apanhador de desperdícios
Amo os restos
Como as boas moscas
Queria que minha voz tivesse um formato de canto
Porque eu não sou da informática
Sou da invencionática
65

Só uso palavras para compor meus silêncios

Você me convidou a participar? É uma honra poder inventar com vocês


esse trabalho. Na verdade, sempre participo junto das intervenções produzidas por
aqui, mas nunca me convidaram, ou mesmo não costumam ter consciência de que
também vivo, crio, sou um corpo ativo e parte do que se inventa aqui, comigo. Você
mesma, veio descobrir tudo isso em meio a esse processo de estar mais e se fazer
presente.

Salvia:

- É verdade. Tive que passar por muita coisa até chegar a te ouvir, te
perceber, se é que realmente o faço, tenho ainda dúvidas quanto a isso. Como fico
feliz de poder de alguma forma te dar voz, compor seus silêncios para que outras
pessoas ouçam e percebam com toda essa complexidade, com toda essa potência
que vibra, emerge e cria nos processos vividos. Vem com a gente replantar, Casa!

Para concluir por ora esse diálogo/conversa, deixo o pensamento de Artur


Dória Mota (2016, p. 19), do trabalho que produziu com a cidade de Fortaleza também
pelo PPGArtes UFC, que diz que Fortaleza tem sim memória, mas tem uma história
marcada por processos de esquecimento

Um interesse externo, provinciano e pouco afeito a preservação, que conta


ainda com a conivência de uma administração pública desinteressada de
ater-se a nossa realidade local. Isso acaba por descambar em um
ocultamento dos rastros e dos caminhos trilhados até então, algo como uma
queima de arquivo (cidade sem testemunhas?), uma Fortaleza em que
ninguém é dado a poder ver os seus próprios fatos históricos como fatos
relevantes e cruciais para uma relação mais afável para com a cidade. O
processo natural de esquecimento ativo presente em toda cidade passa a ser
corrompido. Este não se rotula como um processo de formatação,
apagamento completo de seus dados, pois tem em seu cerne uma
característica de agenciamento, uma vibração que reitera e renova a sua
condição enquanto desejo de um ser cidade. A cidade experimenta
constantemente um estado de fluidez - sem a pertinência tediosa da rigidez
dos pontos específicos -, uma abertura interpretativa de si, que está
intimamente relacionada à forma sobre o qual esta aparece para aqueles que
a atravessam. Esse movimento é um momento contínuo em que a cidade
desprende-se de si para poder ser apreendida: pré-conceitos são postos em
dúvida. É quando a cidade retira sua casca podre de saberes sobre si, em
que seu corpo se desburocratiza. Porém, isto é completamente anulado no
instante em que sua memória narrativa definha de presença no espaço-tempo
do cotidiano. A cidade perde suas bases fundamentais, ignora a práxis, a
tradição, o pensamento e passa a traduzir uma meta a ser alcançada. Sob
66

estas agruras, há uma que Fortaleza padece de sua força combativa: nas
ruas, poucos cajueiros resistem; e dos que se foram, poucos foram
lamentados. Movimenta-se em um disfarce imóvel, paradoxo que preza,
sobretudo, pela fácil memorização de seu suposto ethos. Um passo muito
perigoso que pode, inevitavelmente, apontar para um futuro em que não
apenas a cidade se esqueça de si mesma, mas que seja completamente
despida de sua singularidade, um lugar para onde as viagens serão inúteis.

4.2 Replantio

Replantar na[/com] a Casa é um convite a habitá-la, à permanência, ao


cuidado, a estar presente no desejo de um futuro de encontro com a arte e
seus fazeres, de libertação de um passado de opressão, ruínas e fantasmas,
de forma a ocupa-la com fazeres outros, de legitimar o lugar como nosso, da
cidade, da Vila das Artes e de todos que vivem de inventar poeticamente
(n)essa cidade. Os cactos falam de resistência, força, beleza e proteção
através dos espinhos. A obra consiste no replantio de instalações realizadas
em 2014 dentro da exposição Materialidades/ Ativações/ Deslocamentos, a
espiral de Ervas de Lavação, de Salvia Braga, e Mandacarus, de Euzébio
Zloccowick. As duas resistiram por dois anos na Casa do Barão de Camocim
até a remoção, em 2016 (BRAGA, 2018, p. 85).

Replantar com a Casa o que foi removido para a construção da Casa Cor
é uma forma de resistir e reexistir, trazendo na memória o fazer de um artista que
realizou esse movimento de existência e (re)existência pelas ruas de Fortaleza,
plantando em canteiros vazios e terrenos baldios, e que em materialidade, não o faria
mais, por ter deixado sua existência material no ano de 2016, com alguns trabalhos
em finalização e um grande arquivo de obras, como os objetos construídos e/ou
cobertos por espinhos, entre santos e tapetes, e diversos cactos por ele plantados em
jarros ou ao ar livre.

Alexandre Veras51, no momento em que busco por um desses cactos na


ocasião da produção de Replantio, falou que o Euzébio tinha o costume de plantar
nos lugares de seus afetos, entre casas de amigos, espaços públicos por onde
passava, e que ele deixara uma lembrança na fazenda de Veras, no município de
Aquiraz. Não em quantidade suficiente para que eu utilizasse na instalação, como era
a ideia inicial. A conversa deu a dica de fazer como ele fazia: coletar o vegetal em

51Artista visual, realizador em audiovisual de filmes como Linz – quando todos os acidentes acontecem
(2013) e As Vilas Volantes – o verbo contra o vento (2005), professor de todas as turmas da EAV,
membro do Conselho da EAV, fundador da ONG Alpendre – casa de arte, pesquisa e produção.
67

espaços abertos de nossa vegetação, alguns próximos de Fortaleza, como no Porto


das Dunas.

Consegui fazer a coleta em um lugar de nome bem apropriado, que me


dava pistas de estar no caminho certo: no Eusébio, cidade quase xará desse artista,
que faz parte da região metropolitana de Fortaleza. Depois, Lílian Amaral nos
explanaria, durante a defesa dessa dissertação, quanto ao nome de Euzébio, que
dialoga com seus fazeres e sua essência: Eu, que remete a si mesmo, a se olhar, Zé,
que remete ao outro, a qualquer outro, e Bio, à vida, à vegetação, que está tão
presente no trabalho desse artista, que dava vida às terras esquecidas, que nos fazia
olhar para espécies menos celebradas, como os cactos de nossa caatinga.

O que imaginava que seria um trabalho árduo em meio ao sol escaldante


em um lugar isolado cheio de espinhos, eu suada, machucada, cansada, dolorida, foi
na realidade um trabalho agradável, coletivo, com muitas pessoas que há tempos não
via, de uma parte de minha família distante, que me receberam muito bem em sua
casa, em uma região periférica daquele município, com um terreno localizado aos
fundos onde estava sendo construído um grande condomínio de luxo.

Em pouco tempo esse espaço não será mais acessível àquela comunidade
que tanto o vive. Um lugar agradável e arborizado onde pude colher os mandacarus
que buscava, e também deitar em redes armadas entre árvores, com a sombra dos
pés de cajás que também colhemos para o suco da tarde, saboreados junto com
tapioca enquanto as crianças dali brincavam junto à minha filha, em meio às árvores,
com os cachorros, entre as conversas dos adultos com as pessoas que trabalhavam
na construção do condomínio, que mantinham relações com aquela parte de minha
família e com as demais pessoas que moram ali.

Mais uma vez vem a construção do novo, que passa por cima das árvores,
da fauna, da flora, dos fluxos de água que circulam no praticamente único espaço que
aquelas pessoas têm para um respiro no cotidiano, que aquelas crianças têm para
brincar, para conviver. Em breve virão mais muros que separam os novos moradores
dos que cresceram brincando no terreno, que era a extensão de suas casas, divididos
mais que pelo muro, pelas condições socioeconômicas.
68

Figura 21 - Brincar no muro sob o céu.

Foto: Salvia Braga, 2018.

Ali percebi com mais intensidade a profundidade da obra do Euzébio, a


sutileza que era lidar com aquelas folhas cheias de espinho, que podemos manipulá-
las com carinho e cuidado para não sairmos machucados. O quanto a obra estava na
colheita, na relação com o espaço, com a nossa vegetação, no contato com a
natureza, o adorno, a resistência, o cuidado, a força, o Nordeste, a precariedade, a
seca. Benevides (2017) escreveu sobre o trabalho desse artista, que olha para as
plantas marginalizadas assim como é marginalizado o sertanejo, um forte:
“delicadamente ia refletindo em sua obra sobre algumas noções de sacralidade,
crença, masculinidade, poder. O trabalho de Euzébio Zloccowick ainda está pra ser
melhor compreendido” (BENEVIDES, 2017, grafia original).

Antes da colheita já havia feito uma primeira intervenção experimental,


quando comprei as luvas apropriadas para manusear os cactos e encontro um grande
pé de mandacarus no estacionamento da loja de materiais para construção no Centro
69

de Fortaleza. Percebo um pedaço da planta quase morto no chão e resolvo testar a


luva, carregando-o até a Casa, o que move os olhares das pessoas nas ruas, no curto
caminho até o ponto final, o jardim da Casa, onde consigo uma colher de pedreiro
emprestada e uso-a para plantar o primeiro da série de mandacarus, um pouco torto,
raso, mas prestes a (re)viver e (re)existir na instalação artística.

No dia seguinte à colheita, uma segunda-feira, começo o plantio dos


mandacarus espalhando-os pelo jardim e iniciamos a espiral de ervas, feita junto a
meu irmão, Tomé Braga e Luiz Sérgio Junior, mais conhecido como Juninho, ambos
geógrafos e permacultores, participantes do Núcleo de Estudos e Práticas
Permaculturais do Semiárido (NEPPSA), da Universidade Estadual do Ceará (UECE).

A permacultura utiliza o design para a criação de ambientes humanos mais


sustentáveis e equilibrados, é uma síntese entre a sabedoria tradicional e a tecnologia
moderna, com base na observação direta da natureza (CARLSSON, 2014). Um dos
exemplos de criação desse sistema é a espiral de ervas, que possui um formato
frequentemente encontrado nos ambientes naturais, e aplicado no cultivo de vegetais,
apresenta diferentes ambientes em um espaço reduzido, criando vários microclimas
e proporcionando o cultivo de espécies diversas em pequenos espaços. Utiliza-se,
dentro dos princípios desse sistema, materiais de fácil alcance no próprio ambiente,
naturais ou reaproveitados sempre que possível, podendo ser construída com pedras,
tijolo, barro, madeira, telhas, utilizando em seu interior terra, folhas secas e adubo.
Fico entre fazer algo parecido com o que fiz na primeira exposição na Casa
em 2014, quando utilizei pedras portuguesas encontradas na Praça Clóvis Beviláqua,
em frente à Casa, que na ocasião encontravam-se soltas pelo chão, formando montes,
o que gerou uma espiral de estrutura vulnerável, um tanto impermanente, mas que
resistiu pelos dois anos de sua existência, ou trazer uma nova estrutura, sugerida por
Juninho, mais resistente e permanente, com a base de tijolos. Como a intenção era
permanecer naquele espaço, optamos por usar tijolos, aproveitando materiais que já
tinha e por plantar espécies mais resistentes, fazendo uma continuação do jardim de
cactos e do trabalho que tem o Euzébio como referência, algo que eu pudesse plantar
e “deixar em paz” (ZLOCCOWICK, 2012). Planto na espiral cactos, babosa, boldo,
courama, suculentas, espada de São Jorge e outras espécies comuns em nossa
vegetação, adaptadas ao clima quente e com poucas chuvas, para que ali pudessem
viver, resistir florescer, permanecer.
70

O trabalho exigiu nosso tempo, nossa permanência na e com a Casa,


vivenciando o espaço, sua relação intensa com a rua, as tensões público-privadas às
quais se refere Sennet (1999), essa visibilidade que vem junto com o isolamento
social. Uma permeabilidade entre cidade e espaço interno. Estávamos dentro,
estávamos fora; quem passava via o que fazíamos, muitos paravam, observavam,
conversavam, elogiavam, perguntavam- isso já era gratificante. Alguns cobravam o
que seria feito da Casa, que é pública, mas que ficara desativada por muito tempo,
outros questionavam o acesso: quanto seria o ingresso? Respondíamos que era livre,
e que estavam convidadas e convidados a vir quando a exposição estivesse pronta.

O conceito de Partilha do Sensível trabalhado por Jacques Rancière (2009)


fala desse compartilhamento do comum junto com a divisão entre as partes. Quem
está dentro, montando, enquanto artista, curador, montador, eletricista? Quem passa
por fora, observa, se interessa, quer entrar? Quem nunca entra ali, mesmo que
sempre passe? Quem é invisível dentro desse sistema? Os moradores de rua que por
tanto tempo ocuparam a Praça, entrariam ali e fariam parte nessa partilha? É o que
Rancière traz como uma base da política na arte. O que se pode ver, sentir, dizer
sobre o que é visto? E como nós, artistas, nos aproximamos mais das pessoas, das
ruas, tornamos esse fazer mais partilhável? Como tornamos visíveis esses fazeres e
o que se mantém despercebido nas cidades, ruas, bairros? De certa forma, reconstruir
a espiral, como intervenção com a Casa, deixá-la no jardim, aproxima mais essa
prática estética das pessoas, das ruas, ao mesmo tempo, fica o questionamento:
quem veria aquela estrutura enquanto trabalho artístico? Quem pararia em meio ao
seu caminho para perceber aquela estrutura em processo contínuo, de nascimento,
morte e partilha?

Muitos lembravam da espiral que já esteve ali. Ficava a cada momento mais
satisfeita com cada ação, esforço, suor, com cada toque de perfeccionismo do
Juninho, que se esforçou e se dedicou muito para desenvolver esse trabalho.
Tínhamos pessoas da rua fruindo do nosso fazer, não estaríamos resguardados por
paredes no cubo branco, estávamos entregues a esse trabalho, construindo
resistência, efetivando a teimosia em estar ali, em uma jornada de construção que ia
das 8h às 18h. Ali comemos, sentimos sede, cansaço, observamos, fomos
observados pelos passantes, trabalhadores, artistas, curadores. Recebemos
71

sugestões, sorrisos, abraços, plantas, gerando trocas, diálogos, conversas que


vinham da rua, da Casa, da gente.

Trabalhamos até quarta-feira, a abertura da exposição seria na quinta. No


último dia já estava exausta, o Tomé não foi, eu e o Junior finalizamos os últimos
detalhes entre cimentos, mosaicos utilizando pedaços das cerâmicas dos antigos
banheiros e limpeza, na companhia da Casa, que construía junto conosco, além dos
produtores, montadores, eletricistas, curadores e outros artistas que também
montavam suas obras, e dos pedreiros que terminavam os últimos reparos do espaço.

Nos assustamos às vezes nessa relação com a rua, como quando havia
um cachorro preso na Praça, seu tutor estava comendo uma tapioca de uma
barraquinha, o cachorro se soltou e correu para cima de um senhor idoso, que caiu
da calçada para o asfalto batendo a cabeça, causando um ferimento que deixou o
chão marcado pelo seu sangue. Ele quase ia sendo atropelado por um ônibus que
passava, gritamos, eu e Junior, o motorista parou impedindo que algo ainda pior
acontecesse. Fiquei com uma sensação horrível, minha pressão baixou, e a Casa
disse:

- É um mundo difícil para nós, idosos, às vezes perdemos um pouco os


reflexos de outros tempos e nem sempre as pessoas e os acontecimentos nos
esperam ou nos respeitam dentro de nossas limitações. Já pensou, se não tivéssemos
gritado, o que poderia ter acontecido com aquele homem? Às vezes penso que as
pessoas não estão preparadas para lidar com suas próprias invenções e tecnologias,
que destroem o meio ambiente, que viram armas, como os carros. Quase passaram
por cima daquele homem, como tentaram passar por cima de mim. E mesmo com
pequenas ações, atuando no micro, sou grata pelo cuidado, é sempre muito
importante, desejo mais pessoas assim, que param, sentem, enxergam, fazem como
vocês, gritam, inventam, criam.

- Eu que sou grata pela recepção, diálogo, cuidado, pelo abrigo dos meus
sonhos e devaneios. Como mexe comigo te ver ferida ou ver aquele homem
sangrando no asfalto! Não sei como pode não ser uma afecção que mexe com todos.
Espero sempre estar para gritar, mesmo que em silêncio quando for necessário, antes
que morram mais casas, histórias, cidades, abrigos, sonhos, plantas, pessoas, por
mais que nem todos possam ouvir.
72

Desejava começar a plantar na espiral, o que aconteceu apenas nas


últimas horas de sua montagem. A plantação dos cactos tive vários dias para ir
construindo, e em alguns momentos a parceria da Tuila, minha filha, então com dois
anos, que aprendeu junto comigo a lidar com aqueles espinhos sem medo, pegando
na terra, cavando, colaborando e inventando comigo aquele plantio de sutileza
espinhosa. Junto dos cactos ficou a exposição Célula Cidade, do Jared Domício
(2018, p. 45), mestre pelo PPGArtes52 UFC, que consiste em estacas de madeiras
colocadas na terra, um

[...] exercício gráfico que busca uma justaposição entre corpo e cidade. Uma
biologia urbana em uma única célula. As estacas e os adesivos fazem
referência a verticalização das cidades, ao modo como as árvores são
plantadas no meio urbano e até aos riscos que marcam, nas paredes, a altura
das crianças.

De acordo com Paulo Klein, um dos curadores da mostra, os dois trabalhos


da parte externa permaneceriam na Casa após o Salão. Tempos depois visito a Casa
e percebo que os mandacarus plantados no jardim foram novamente removidos,
assim como o trabalho de Jared. Vivemos em uma cidade onde se prefere derrubar
árvores às sombras e frutos que elas proporcionam, prefere-se a grama limpa, quase
seca, a cactos e outras plantas que compõem a paisagem do que no princípio era um
jardim, assim como não se valoriza a arte em espaços públicos, tendo esta quase
sempre a vida efêmera que dura o tempo de uma exposição, enquanto os holofotes
estão sobre elas. Há um padrão de espécies a serem plantadas na cidade
determinado pela prefeitura, e todas as outras espécies que tentarem plantar em meio
a Praças, canteiros centrais e outros espaços públicos estão, como os Mandacarus,
sujeitos a serem removidos.

No dia da abertura do Salão, encontro outras espécies diferentes das que


plantamos, também fortes e resistentes na espiral, fez todo sentido. Ali já não era mais
nossa obra, de quem construiu, é como quando criamos os filhos para o mundo, e

52 Acho incrível ao longo dessa pesquisa o quanto vou me encontrando também com esses fazeres
próximos dos que passaram pelo PPGArtes, o quanto as pesquisas produzidas por um dialogam com
as pesquisas dos outros, incluindo a minha, e o quanto a própria cidade, ou mesmo a Casa proporciona
esses encontros, diálogos, partilhas, com discentes ou mestres do Programa, ou com artistas da
cidade, do país, do mundo, que compartilham modos, pensamentos fazeres que entram nesse circuito
de sintonias e afetos.
73

eles se tornam melhores, a partir da base que você construiu. Espero que continuem
a intervir, doar e colher para que esse amor-resistência-verde se espalhe por outros
lugares.

Figura 22 - Construção da Espiral.

Foto: Tomé Braga, 2018.

Figura 23 - Mandacarus e Célula Cidade.

Foto: Salvia Braga, 2018.


74

Figura 24 - Espiral Salão de Abril.

Fonte: Salvia Braga, 2018.


75

Enquanto estava mais por lá, tinha a oportunidade de ver, antes de muitas
outras pessoas, o que estava se passando por ali. Percebo uma curiosidade e um
cuidado em relação a Casa e de como se dará sua ocupação não só de minha parte.
Quando me coloco em contato com a rua percebo o quanto as outras pessoas também
desejam desse espaço enquanto público, por muito tempo posto às margens.

A palavra público é dotada de muitos significados e definições. De acordo


com Deutsche (2007), ela tem origem ligada ao povo. A autora vincula o público à
política democrática e ao sujeito político da democracia, relacionando a palavra
também à aparição, mencionando o fato de que há grupos sociais mais visíveis e
audíveis que outros.

En las nociones de esfera publica como espacio de aparición que manejan


Arendt y Lefort está latente la questión no sólo de cómo aparecemos, sino
también de cómo respondemos a la aparición de otros; es decir, la cuestión
de la ética y la política del vivir juntos en un espacio heterogéneo. Ser público
es estar expuesto a la alteridad. Em consecuencia, los artistas y las artistas
que quieren profundizar y extender la esfera pública tienen una doble tarea:
crear obras que, primero, ayuden a quienes han sido invisibilizados a hacer
su aparición; y segundo desarollar la capacidad de vida pública que el
espectador o la espectadora tiene [...] (DEUTSCHE, 2007, p. 6).

Essa capacidade de se mostrar visível e de visibilizar o outro é inexorável


à arte urbana, tanto quando planto uma espiral de ervas naquele jardim então
despercebido, invisibilizado no cotidiano apressado, ou quando as obras do Salão de
Abril vão para a rua, como na performance Resistência53, de Natalia Cohel, que
aconteceu na Praça Clóvis Beviláqua de frente à Casa. Primeiro a performer deita no
chão, quando é coberta por pedra das imediações, e ali passa bastante tempo,
enquanto as artistas Nataly Rocha e Elisa Porto fazem a paisagem sonora, utilizando
diversos objetos cotidianos em caixas amplificadas. Ali se forma um grupo de
espectadores habituados à fruição artística, e aos poucos vão se aproximando outras
pessoas que saem do trabalho, que fazem cursos nas proximidades, frequentadores
da praça, moradores de rua. Cada um que passa vai compondo junto a performance,
que fala de resistência, do céu, da natureza e das ervas daninhas, ou ocupadeiras,

53 Disponível em:
https://www.facebook.com/secretariadeculturadefortaleza/videos/3514467445237453/?t=12.
Acesso em: 1 jun. 2018.
76

que resistem aos asfaltos, paredes, muros e crescem em meio à cidade, como
observa Lima (2016), ao aproximá-las dos fazeres artísticos e políticos. Ao mesmo
tempo em que aquelas pessoas praticam o urbano (CERTEAU, 2014) e se realiza a
Partilha do Sensível trazida por Ranciére (2009).

Casa:

- Por um bom tempo meus portões estiveram fechados, já tomados pela


ferrugem, e agora, mais cuidados e pintados, eles ficam abertos desde a manhã até
o anoitecer. Sobre mim colocaram holofotes coloridos, que por vezes estranho, ainda
não me acostumei com essa luminosidade pacificadora. O fato é que mesmo com os
portões abertos, fico muito tempo praticamente vazia, as pessoas parecem ter medo
de atravessar esses portões, subir as escadas, ainda não se legitimou efetivamente,
o fato de que sou pública, portanto de todos, e parece que só ficam à vontade para
entrar aqui aqueles que têm mais intimidade com esses fazeres artísticos e esse tipo
de ambiente. Muita gente passa na Praça, mas eles logo correm para pegar o ônibus
ou ir à igreja evangélica que fica ao lado. E quando se leva esses fazeres poéticos
para partilhar com a rua, sei que de alguma forma aquilo vai deslocar aquelas pessoas
de um lugar comum, como tem me deslocado ao longo desses anos.

- Fico feliz que as artes e as intervenções artísticas tenham lhe reinventado,


te levado a outros lugares, mesmo que fixada nesse mesmo espaço há tantos anos,
que tenha essa relação de afeto com a rua, que é parte de ti também, e que não tema
os dissensos, a alteridade, mesmo diante de todos os conflitos que a rua traz. Agora
vamos ao banheiro?

-Vamos.

4.3 Banheiro

Em uma das primeiras idas à Casa, subo para explorar seus espaços e ver
como ficou e como está sendo montada a exposição junto com Maíra Ortins, artista
também selecionada no Salão de Abril. Ela ficou bastante satisfeita, se
surpreendendo, pelo fato de na cidade não haver algo parecido, com tamanha
estrutura para um espaço artístico-cultural. E de fato, para quem não conhece aquele
77

lugar e mesmo para mim, é de causar fascínio a grandiosidade da estrutura, a


arquitetura e toda a memória e requinte ali dispostos. Ouvi-la me neutraliza de
algumas críticas que depois vou processualizando. A Casa, que já conhecia bem, é
um lugar incrível, e vale, só por ela mesma, uma visita. Ela precisava de um cuidado,
uma devida restauração, o que aconteceu, apesar de não ter sido da maneira mais
participativa e transparente, agora há esse espaço disponível na cidade a ser ocupado
por intervenções artísticas das mais diversas. Há também o momento de deparar com
partes degoladas, como os banheiros, que viraram um pequeno cubo com chão de
cimento queimado, assim como existem aqueles que podem ocupar o espaço e os
que não podem, diante das questões institucionais.

Em outra ocasião, havia marcado de encontrar com uma amiga na


exposição. Haveria uma performance do Salão de Abril e a abertura dos trabalhos dos
alunos do Ciclo Imagem e Espaço da quarta turma da EAV na Casa do Meio. Minutos
antes de ir, começa uma chuva muito forte. Foi difícil conseguir sair de casa, as águas
rapidamente faziam um volume no chão e submergiam os pés, alcançando os
tornozelos. Mas, como já havia marcado, fui de Uber. No curto trajeto, o motorista fala
que havia levado um passageiro para aquele mesmo lugar alguns dias atrás, e que
esse passageiro era trineto do Barão de Camocim, ele estava indo a convite para a
abertura do Salão de Abril, como representante da família, que, segundo seu relato,
está aguardando receber uma boa quantia em dinheiro da venda da Casa. Relatos
que vem como a chuva, inesperadamente e sem mesmo que eu pergunte, compondo
uma parte dos acasos que acontecem na vida assim como nas pesquisas. Em
Deleuze (2007, p. 34), a partir de Nietzsche, é preciso afirmar o acaso, “o verdadeiro
jogador faz do acaso seu objeto de afirmação”, afirmando os fragmentos e elementos
presentes nos acasos, em um constante “retorno do mesmo”.

Chegando na Casa, há uma incerteza quanto à abertura da exposição e a


performance de Marina de Botas, marcada para aquele dia como parte da
programação do Salão de Abril. A chuva vai diminuindo, a programação acontece. A
performance é justamente no cubinho branco que já foi um banheiro, onde a performer
Nataly Rocha quebra uma grande quantidade de louças que está sobre uma mesa em
Sinfonia para um País Triste (Figura 25).

A cada canto da casa há água caindo. Dois anos de reforma e todo o


dinheiro empregado visivelmente não tinham sido o suficiente para preservá-la de algo
78

tão básico: as goteiras, que respingavam e molhavam seu chão iluminado. No


corredor do piso superior, já havia notado em outra visita a presença de machas de
água na parede, agora não tão impecável. A chuva interviu em alguns dos trabalhos
expostos, como nas fotografias Futuro em Ruínas, de Mariana Smith, onde escorria
água vinda de uma goteira, deixando marcas amareladas no trabalho, que no dia da
chuva foi coberto com um plástico para disfarçar, ou proteger, esconder, o que na
verdade o tornava ainda mais visível e em sintonia com o título “Futuro em Ruínas”.

A instalação de Ruy César, Carvão para seus Olhos Tocarem54, composta


por monitores e projetores, também foi interditada porque estava provocando choque
elétrico. A cada dia a chuva ia por um lugar diferente. Nem os cactos que plantei se
mostravam muito satisfeitos com tanta chuva. Fica clara a fragilidade do espaço, que
não se mostra preparado para receber um evento artístico, por falhas na reforma
empreendida pela Casa Cor, mostra essa que dispõe de grandes arquitetos,
engenheiros e recursos. Era perceptível também o despreparo daqueles que estavam
gerindo o espaço deste e de outros equipamentos da Prefeitura de Fortaleza para lidar
com incidentes como esse, preferindo esconder o acontecido dos artistas que tiveram
seus trabalhos prejudicados.

De acordo com Chevalier e Gheerbrant (1995, 15), a significações


simbólicas das águas reduzem-se a três temas dominantes: fonte de vida, meio de
purificação e o centro de regenerescência.

As águas, massa indiferenciada, representando a infinidade de possíveis,


contêm todo o virtual, todo o informal, o germe dos germes, todas as
promessas de desenvolvimento, mas também todas as ameaças de
reabsorção.

54A instalação é parte do trabalho de pesquisa do artista, mestre pelo PPGArtes UFC, e atualmente
doutorando pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
79

Figura 25 - Sinfonia para um País Triste.

Foto: Marília Oliveira, 2018.


80

Dou o nome de Lavação ao trabalho que fiz para a Exposição


Materialidades/ Ativações/ Deslocamentos em 2014, do Ciclo Imagem e Espaço da
EAV. Começou com uma vivência mais aprofundada da Casa, e com a decisão,
enquanto parte da turma da EAV junto aos orientadores, de tomarmos a Casa como
elemento de ligação entre os trabalhos. Percebia o quadro de abandono e o imaginário
em torno de um lugar mal-assombrado. Foi emergente pensar na limpeza do espaço,
na limpeza física, necessária para a entrada de pessoas, para a exposição, para um
novo fluxo, mas também uma limpeza energética que removesse o que havia de
negativo, de estagnação e abandono, que pudesse transmutar as energias de
pensamento em torno do lugar como estéril, inativo, habitado apenas pelo guarda da
Vila, o cachorro Tarantino, e pelos fantasmas que se apegavam aos momentos de
outrora e não permitiam que ali se reativasse uma nova zona aberta e criativa na
cidade.

É por isso que desenvolvo Lavação, que tem como uma das referências a
lavagem feita pelos estudantes da primeira turma da EAV na outra casa, que hoje é
ocupada e se constitui como espaço de suma importância na/para/com a cidade, um
lugar de fazer e intercambiar arte e política que necessitou da força de estudantes e
artistas para que se constituísse efetivamente, processo trazido com mais detalhes no
Caderno Escada Lateral.

Começo a observar a faxina no meu dia a dia, nos lugares onde


frequentava, na vizinhança, na minha própria casa, percebendo essa ação em sua
dimensão ritualística, seus procedimentos, instrumentos, tempos, sons, repetições.
Diferente da lavagem feita no vídeo de abertura da ocupação da casa, a SPC 55,
percebia as faxinas desse cotidiano próximo como um movimento solo, em grande
parte realizado por mulheres, com a utilização de elementos como vassoura, balde,
rodo, sabão, desinfetante, que passava a ver como ferramentas de poder, de remoção
das impurezas dos espaços, das larvas e miasmas, coisa de bruxa.

Nas idas à casa defino lugares, ângulos e ações, delineando um roteiro.


Uma preocupação é quanto a quem faria as ações. Várias vezes questionam, me
incluindo nestes: porque não eu? Se todas aquelas questões afetam a mim, como
artista etc. Passados os tempos, continuo a questionar e pensar que eu poderia ter

55A ocupação da casa que atualmente compõe a Vila das Artes, que se denominou Sine por Cine
(SPC), mencionado com mais detalhes no caderno Escada Lateral
81

realizado, mas ainda me prendia dentro de um pensamento audiovisual, de diretora,


de preferir estar atrás das câmeras, desenhando o quadro, os ângulos, e por ter algo
que me travava quanto ao meu corpo, quanto a me ver de fora, em fotografias, vídeos,
até mesmo em áudio. Talvez se fosse eu ali me causaria um certo desconforto em
lidar com as imagens. Hoje já consigo superar um pouco isso, trazendo fotos minhas
por algumas dessas páginas.

Figura 26 - Ensaio para Lavação.

Fonte: Bruna Araújo, 2014.

É então que surge a Dani Chaves no projeto, e uma aproximação e


produção de desejos em comum. Ela trazia nos seus fazeres o teatro, a performance,
a fotografia, questões do feminino, do misticismo, da relação com a terra, com a
natureza. Fico encantada ao ver suas autofotografias performáticas. Além da Dani,
conto com uma equipe que vai formando novos agenciamentos. A Bruna Araújo56 atua
junto comigo na pesquisa e produção. Pensamos juntas sobre as plantas e ervas, já
que além da limpeza da casa, a plantação no jardim era parte da limpeza energética,
era como semear um novo momento para aquele lugar e aquele jardim quase
dormente. Utilizaríamos as ervas também na limpeza do corpo daquela que limpa.

Formada pela terceira turma da EAV, diretora do curta Ruralidades, Mestre em Ecologia pela UFC e
56

Doutoranda em Geografia, pesquisa sobre plantas e ervas medicinais


82

Figura 27- Equipe Lavação.

Foto: Thiago, 2014.

Como o vídeo57 não tem crédito, menciono aqui esses que compuseram
comigo a instalação: Geovanna Correia no som direto, Vinícius Alves na fotografia e
no som adicional, eu, como proponente, roteirista, produtora, pesquisadora etc.,
Renata Cavalcante na produção, Virginia Pinho e Renê Miranda na produção de set,
e as já citadas Bruna Araújo e Dani Chaves. Entre os que não aparecem na foto
(Figura 27), estão os que montaram a espiral parte da instalação, Tomé Braga, Danilo
Frota e Breno Costa, Hylnara Vidal na preparação de elenco, os técnicos da Vila
Eudes Freitas e Thiago Damasceno, além de Rúbia Mércia, Raísa Christina na
coordenação e assistência, respectivamente, e os orientadores do Ciclo, Alexandre
Veras e Waléria Américo.

Diante das muitas possibilidades, chego a um vídeo e um roteiro delineado,


com ações em determinados espaços do local. Uma mulher ruiva limpa a casa, seu
salão com chão em piso xadrez, sua área interna; tomada por folhas secas, sobe para
o banheiro, lugar mais íntimo da casa, espaço de expurgo, purificação, limpeza. É lá
que ela se detém com mais cuidado à limpeza, primeiro com uma vassoura e depois
lavando com água. Após o banho, percebe-se aquele corpo tomado pelo lugar

57 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=N2AeV-jMTs4&feature=youtu.be.


83

esquecido, deixado, repleto de fuligens, percepção que tivemos durante o ensaio e


trabalho de corpo no espaço.

Figura 28 – Mãos.

Foto: Anderson Damasceno, 2014.

Ela prepara um banho com ervas utilizadas em rituais de limpeza em


diversas religiões, como alfavaca, alecrim, espada de Iansã, além de sal grosso e
defumação. Queríamos expurgar aquilo que não fazia fluir, por um momento me senti
nesse poder, talvez a arte possa com isso. Depois do banho, há uma cena em que
está tudo escuro e ela abre as portas da Casa, agora usando um vestido branco longo,
observa a varanda e vai para o jardim, onde começa a fazer a espiral de ervas com
uma enxada, mexendo com alguns elementos: pedra, terra plantas.

Imaginar é diferente de estar, de realizar. Traçamos um roteiro, e nunca é


o final. Nesse percurso estamos sujeitos a intervenções que interferem na obra. Estar
dentro de uma escola é também estar sujeito a intervenções destas e de outras partes.
Muitas pessoas se agregam porque se identificam com os projetos, com os
proponentes ou mesmo porque precisam escolher algum dos projetos para realizar.
Durante as filmagens, tive um impasse com Dani por conta de um dos figurinos, o que
ela usa para limpar o banheiro, do qual ela não abriu mão de suas escolhas, e até o
presente momento me incomodo com o vestido usado para a limpeza do banheiro, do
84

qual ouvi críticas de algumas pessoas também, por ser escuro desconfortável, longo.
Mas são projetos que não realizamos sozinhos, precisamos lidar com os diferentes
desejos e pensamentos.

Na montagem, tive a alegria de trabalhar com Mariana Nunes58, onde


estabelecemos uma mútua parceria, sentia a identificação dela com a proposta e a
admirava como pessoa, montadora, artista. Juntas montamos o esquema original que
havia planejado. Não havia muitos cortes, pegamos algumas tomadas contínuas da
limpeza da casa, o vídeo ficou com cerca de 40 minutos de duração. Nós que
estávamos naquele universo há algum tempo aceitávamos aquilo e tínhamos como
verdade. Um dia Rubia Mércia, coordenadora do curso, abre a porta da sala de edição
e diz que teremos Fred Benevides59 para fazer a correção de cor. Ficamos animadas.

Ele vê o nosso material e diz que não temos um filme/vídeo. Isso acontece
muitas vezes na Escola, não sei dizer se isso é bom ou se é ruim, quando na verdade
ruim e bom não existem. O que existe são forças que modificam, por vezes
violentamente, aquilo que existe, exigindo a criação de um novo corpo
(ROLNIK,1993). Nos casos mencionados, surgem novos filmes, novas ideias, novos
conceitos, o trabalho já não é mais o mesmo.

Fred vê o material e fala que temos dois trabalhos: um com as cenas da


limpeza do banheiro e do banho, que diz ser “lindo”, e outro da feitura da espiral. É
um choque deparar com a situação, e fico a pensar, junto com Mariana, se cortamos
ou não, transformamos o trabalho em dois, em três, já que a própria espiral é uma
escultura viva, como menciona Waléria Américo60. Acabo cedendo, cortando o vídeo
em duas partes, removendo outras, o que me deixa insatisfeita com o resultado final.
Não sei dizer se o corte foi necessário, desnecessário, foi violento, modificou e tornou
Lavação uma nova coisa.

Cecília Almeida Salles (2006) aborda a obra em criação como um sistema


aberto, que troca informações com o meio, sujeito a interações de diferentes

58 Roteirista, montadora, diretora de arte. Graduada em audiovisual pela UFC e Formada na terceira
turma da EAV, atualmente trabalha e estuda audiovisual em Portugal.
59 Diretor, montador, Mestre em Estudos de Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal

Fluminense Estudante da primeira turma da EAV.


60 Artista visual, trabalha com vídeo, fotografia, instalação e performance. Mestre em Arte e Multimídia

pela Universidade de Lisboa, especialista em Audiovisual e Meios Eletrônicos pela UFC, Graduada em
Artes Visuais pela Faculdade Grande Fortaleza.
85

naturezas, onde as relações ocorridas durante o processo constituem a obra, que vai
ganhando complexidade a partir das novas relações.

As interações são norteadas por tendências, rumos ou desejos vagos. O


artista impulsionado a vencer o desafio, sai em busca da satisfação de sua
necessidade, seduzido pela concretização desse desejo que, por ser
operante, o leva à ação, ou seja, à construção de suas obras. A tendência é
indefinida, mas o artista é fiel a esta vagueza (SALLES, 2006, p. 27).

Nem sempre essas necessidades são satisfeitas, ou quase nunca, e talvez


por isso, sempre queiramos fazer mais, produzir mais, porque nunca nos damos por
satisfeitos. Não conseguimos ver os trabalhos como acabados, o que nos leva a
produzir o novo, com uma estrutura onde uma obra conversa e gera novos pontos em
uma grande rede, guiada pela vida daquele que produz, não há perfeição ou
satisfação em relação aos pontos, mas a tessitura de uma produção que corresponde
a uma (re)existência.

O vídeo61 Lavação compôs uma instalação em um dos banheiros da casa,


exibido em uma TV de tela plana. O ambiente do banheiro, então limpo, era composto
por aromas de ervas e palo santo62, velas e objetos que remetiam à limpeza do vídeo,
em um ambiente que convida o público a entrar e interagir, geralmente sentando na
banheira.

Do monitor, via-se a limpeza daquele mesmo banheiro, repleto de


fragmentos do tempo que o deixou esquecido, a preparação do banho numa grande
panela que fervia em uma fogueira feita no jardim, e depois aquele corpo nu se
banhando acocorado com um balde com que retirava a água da banheira. Para esse
banho, tomamos como referência pinturas como de Edgar Dégas63 e banhos de rituais
afro-religiosos, tendo como inspiração também algumas performances de Milena
Travassos64.

61 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=N2AeV-jMTs4&feature=youtu.be. Acesso em 24


fev. 2018.
62 Pedaço de madeira aromática usada como incenso, com propriedades curativas e terapêuticas
63 Pintor, esculturista, fotógrafo francês, um dos fundadores do impressionismo. Entre os quadros que

tomei como referência estão: Depois do Banho (1910), após o Banho (1886) e a Banheira (1886).
64 Artista visual, doutoranda em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

(UFRJ—ECO), “sua produção é composta por vídeo-instalações, vídeo-performances, objetos,


fotografias, desenhos e instalações que evidenciam o interesse do corpo em cena, da mise-en-scène
e dos pequenos gestos” Disponível em https://www.milenatravassos.com.br. Alguns de seus trabalhos
86

Figuras 29 a 33 – Lavação

Figura 29

Figura 30

que foram referência para Lavação: Preparando-se para Emergir (2005), Tomando Fôlego (2006),
Vertigem (2006), O Banho (2008) e Tempo de Paisagem (2008).
87

Figura 31

Figura 32
88

Figura 33

Foto 29: Bruna Araújo, 2014. Fotos 30 a 33: Vinicius Alves, 2014.

Na Exposição Materialidades/ Ativações/ Deslocamentos, duas das


instalações que propormos se localizam no Jardim. Do lado esquerdo, uma pequena
TV em uma estrutura formada por pedras portuguesas. Passei dias pensando no que
usaria para formar uma estrutura que acolhesse o vídeo Espiral65, pensava em algo
que remetesse à instalação que se localizava do lado oposto. Da varanda da Casa,
percebo um amontoado de pedras soltas na Praça Clóvis Beviláqua. Pego o carrinho
de mão, que foi emprestado por Euzébio Zloccowick para a construção da espiral,
atravesso a rua e vou enchendo o carrinho de pedras, atravesso a rua, despejo as
pedras no jardim onde pretendo construir a estrutura e volto para pegar mais enquanto
observo e sou observada pelas pessoas da Praça ou pelos colegas da EAV que
acompanhavam a ação das varandas e do Jardim da Casa. Percebo esse feito como
um início de a ação performativa que se compõe como parte desse todo aberto que é
o Lavação, um trabalho em site specific (BARRETO, 2007, ALBUQUERQUE, 2016)
que ocorre na/com a Casa, composto de várias etapas e fragmentos, que reverbera

65 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jce60PDAidY&feature=youtu.be. Acesso em: 20


jan. 2019.
89

até hoje, em especial na pesquisa que agora componho, junto a outros fazeres por
este e por outros acontecimentos reverberados.

Figura 34 - Pedras na Praça

Fonte: Salvia Braga, 2014.

Depois de montada, não gostei do resultado da instalação da construção


da espiral em uma TV pequena que ficava sobre as pedras portuguesas colhidas, que
por vezes caía com o vento e mostrava dificuldade de visualização, fruto de minhas
escolhas e também de uma orientação com falhas, onde se sugere, mas não se
acopla. Não dá continuidade a um acompanhamento, fragmentando um trabalho
artístico fruto de uma pesquisa e imersão que partiu de mim, se deu coletivamente,
mas que no momento de corte causa um estancamento que gera amputações e
modificações.

Passo muito tempo insatisfeita com a mudança e a orientação que acatei.


Aos poucos me reconcilio com esse trabalho, e um marco dessa reconciliação foi
exibir os dois vídeos juntos no Seminário de Pesquisa em Artes (2017) do PPGArtes,
em grandes projeções na parede, onde ele ganha novas modulações. Os dois vídeos
juntos dialogam, conversam, eu que não deveria ter separado, e tive e estou tendo a
chance de desdobrar essa lavação que é contínua, como necessitam ser as lavações
de nossas casas e vidas: um trabalho diário, cotidiano. Ela sempre insiste em voltar
90

de outros modos, seja com uma goteira na Casa, mesmo que luminosa, branca e
reformada, seja com um dilúvio na minha casa(im)própria e na vida, como aconteceu
no momento da qualificação, molhando livros que estava lendo sobre cidade, artes e
patrimônio, emprestados por Deisimer, alguns irrecuperáveis, alguns resgatados com
marcas dessa experiência e devolvidos para minha orientadora, que lembra da
necessidade de trazer esse acontecimento para a pesquisa e para a escrita.

Um dia recebo uma mensagem de alguém que considero um orientador de


questões espirituais. Uma imagem que continha a frase: “Nem todas as tempestades
vêm para atrapalhar sua vida. Algumas vêm para limpar seu caminho. ” Reflexão que
dialoga com o conjunto do que venho compondo por aqui em forma de escrita e com
meu ano pessoal, que teve momentos de enxurradas, destruições, recomposições
que vêm de formas mais fluidas dissipar o que estava sujo e estagnado, é o que
acontece também com a Casa, que tinha uma energia parada, um corpo de certa
forma doente, mas que trazia em sua estrutura diversas possibilidades, e gerava
desejos por parte dos que podiam e pretendiam ocupa-la, mas que necessitava de
uma acupuntura, como cita Lilian Amaral durante a banca de qualificação, uma
limpeza desse corpo que não se cura completamente dessas frestas e manchas,
marcas do tempo, e por vezes ainda é tomado pelas águas da chuva que, intrusas,
insistem em lavar.

4.4 Aguadô

Essa relação água-Casa é muito potente e presente na pesquisa. A


exposição que a Casa recebe de 31 de janeiro ao final de fevereiro de 2019 é intitulada
Aguadô, de Leo Silva66, um dos trabalhos de Conclusão de Curso da quarta turma da
EAV, que ocupa o andar superior da Casa, dividindo o espaço com outra exposição
que ocupa o térreo, da qual falo mais no caderno Porão.

Aguadô emerge de um desejo de pensar a água a partir de narrativas e das


histórias de vida e trabalho de alguns corpos racializados que, historicamente,

66 Artista visual e realizador, aluno da quarta turma da EAV, Mestrando em Comunicação pela UFC.
Participou do 69º Salão de Abril e escreveu o artigo Micropolítica da Amizade no Coletivo Alumbramento
Filmes, uma das referências dessa pesquisa (SILVA, 2014)
91

carregaram, e ainda carregam, latas, galões e garrafões para o sustento da


casa e/ou cidade. Mais do que tomar a água como elemento plástico, o meu
desejo é de sentir seu imaginário dentro de uma política racista de
encanação, física e subjetiva, onde a água aparece como privilégio de vida
somente para algumas pessoas. É com a imagem em movimento, o arquivo,
não-arquivo, o som, o objeto e o corpo que eu busco evocar as memórias de
entregadores e entregadoras de água, assim como a comercialização desse
elemento vital que rapidamente foi sendo envasado e adicionado de uma
química neoliberal [...] também é um convite para que possamos sentir os
trajetos da água e dos corpos fora dos canos de uma atual colonização.
(SILVA, 201967).

O artista vem pesquisando essas relações das cidades68 com a água e


seus circuitos em seus fazeres poéticos, o que ele chama de “política da
(des)encanação”, que se estende para a pesquisa que desenvolve no Programa de
Pós-Graduação em Comunicação da UFC. Aguadô é composta de vídeo,
performance, instalação com garrafões, áudios e fotografias do Arquivo Nirez69 com
algumas intervenções gráficas. Segundo Leo, uma das imagens que lhe inspira
nesses processos de criação é de uma fotografia (Figura 35) que retrata a Praça que
fica em frente à Casa do Barão, que naqueles tempos se chamava Visconde de
Pelotas. A imagem mostra um pedaço de cano solto em meio ao areal que constituía
aquele espaço, uma parte do processo de encanamento da cidade, do lugar que era
conhecido também como Praça do Encanamento, já que próximo dali, foram
construídas as caixas d’água que abasteciam a cidade. Ao fundo da imagem, é
possível ver uma parte da Casa em meio a um vasto jardim.

67 Release da exposição Aguadô, de Leo Silva, Trabalho de Conclusão do Curso de Realização em


Audiovisual da Vila das Artes.
68 Ele reside e trabalha em Maracanaú, cidade da região metropolitana de Fortaleza, as duas cidades

constituem território para suas pesquisas e práticas artísticas


69 Nirez é jornalista, colecionador, pesquisador, possui um dos maiores e mais importantes acervos

fonográficos do país, bem como um grande acervo de imagens históricas de Fortaleza e outros
municípios.
92

Figura 35 – Tubos de Encanamento

Fonte: Arquivo Nirez.

A imagem reverbera primeiramente no projeto Drenagem, uma das


intervenções apresentados no ateliê Imagem e Espaço da quarta turma, que consiste
em canos instalados na parede da Casa de onde ouvem-se áudios que têm uma
relação direta com a Casa, como uma espécie de “drenagem sonora de escoação de
ocupações da Casa” (SILVA, 2019), com o som saído pelos materiais de PVC, entre
pronunciamentos do prefeito Roberto Cláudio, Neuma Figueiredo, organizadora da
Casa Cor, ou da ocupação que realizaram em 2017, da qual falo mais no caderno
Porão. O trabalho, entre os apresentados no Ateliê Imagem e Espaço, foi o que mais
se aproximou fisicamente da Casa, localizado na parede externa no pátio da Casa,
sua divisória com os fundos e passagem para a Casa do Meio, onde se localizaram
os demais projetos. Para Leo, era necessária essa aproximação, por ser uma obra
site specific que toma a Casa como site. Ele tentou dispô-la internamente, mas não
foi possível, devido ao Salão de Abril que acontecia no mesmo período no espaço.
Leo participou também do 69º Salão de Abril, com Banho em Ruínas, que nasce de
uma pesquisa em torno do Centro Histórico do município de Maracanaú, um chafariz,
as pessoas que lá circulam e as ruínas que o espaço se tornou.
93

5 PISO SUPERIOR

Figura 36 – Baroneses, Performance de Euzébio Zlloccowick e Grá Dias.

Fonte: Facebook pessoal de Euzébio.


94

Evocando as lembranças da casa, adicionamos valores de sonho. Nunca


somos verdadeiros historiadores; somos um pouco poetas, e nossa emoção
talvez não expresse mais que poesia perdida. [...] a casa abriga o devaneio,
a casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz(...)os lugares onde
viveu o devaneio reconstituem-se por si mesmo num novo devaneio. É
exatamente porque as lembranças do passado são revividas como devaneio
que as moradas do passado são imperecíveis dentro de nós (BACHELARD,
1998, p. 26).

Geminiano Maia encontrou um lugar sossegado longe do já tumultuado


Centro, que se desenrolava pelas imediações da Praça do Ferreira, para que fosse
meu ponto de partida. Minhas sólidas paredes e pé direito alto foram construídos por
homens simples. Minha existência se deve, mais que a um casal de baroneses, ao
suor e sangue negro que construiu minha estrutura colonial de modelo europeu, com
tudo que havia de mais requintado no velho mundo.
Não é o que está nos livros, ou mesmo estampado nas paredes do hoje
Centro Cultural, ou nos quadros da Casa Cor que sempre retratam o Barão, ou, quem
sabe, a baronesa e seus filhos, netos. Por que essa eterna memória em álbuns, fotos,
créditos, nomeações à dita nobreza ou à burguesia? Como teríamos construído todos
esses prédios, parte do que hoje se constitui como patrimônio material do Brasil, sem
as mãos que possibilitaram que sua estrutura se erguesse?
Por que só sobraram, no nome das ruas, títulos dos que foram
considerados importantes, dos que se vestiam em finos trajes, tinham reconhecimento
político e/ou social, e assim se desfizeram as ruas Formosa, do Cajueiro, da Cruz, da
Alegria, para virarem a rua do Barão, da Princesa, do Senador, do General? Eu,
sinceramente, também não queria ser a Casa do Barão, mas que nome eu posso ter?
Cerqueira (2016) menciona o fato de que a mão de obra negra foi trazida
ao Brasil, mais que por questões raciais, de uma condição que era reconhecida como
inferior, também por questões econômicas, já que estes possuíam conhecimento
sobre tecnologia para construções e agricultura, bem como as mulheres se
mostravam “eficientes” nos serviços domésticos. Diferente do povo nativo, cujos
colonizadores não conseguiram explorar suas mãos de obra em grande proporção, e
que sofreram um grande genocídio, assim como os que se originaram da África, que
tiveram suas vidas, histórias, afetos, família, língua, religião exterminados.

Durante os anos escolares, ao tratar sobre os períodos coloniais, a


arquitetura, o desenvolvimento das cidades, sempre é levado em conta, nos
materiais pedagógicos, a participação dos colonizadores portugueses por
95

terem trazido referências e modelos europeus, ignorando inteiramente a


participação dos povos africanos e seus descendentes escravizados que
foram, a todo momento, a verdadeira mão de obra nestas construções, mas
como já citado, com a identidade atribuída por conotações inferiores, não
mereciam ter suas memórias valorizadas por estes feitos..(CERQUEIRA,
2016).

A Praça, que sempre olha para mim, que já teve tantos nomes e
homenageava naqueles tempos um visconde, o de Pelotas, era considerada uma
zona marginal da cidade, um grande areal ladeado pelo odor fétido de uma fábrica de
sabão e de um frigorífico, junto à iluminação de óleo de peixe que se espalhava pelo
resto da cidade. Ali via o movimento dos bêbados, das prostitutas, do bonde que vinha
do Benfica (ALMEIDA NETO, 2015).

Figura 37 – Fachada Original da Casa.

Foto e datas desconhecidos. Arquivo Nirez, disponível em Fortaleza Nobre 70.

Geminiano comprou um vasto terreno, ao meu redor havia um pomar de


árvores frondosas, com araras e mangueiras, cajueiros, goiabeiras, sapotizeiras, pé
de siriguela, pitomba, acerola, nem parecia que estávamos em uma cidade que
começava a crescer e fervilhar em meio ao Centro. Era tanta fruta, que o Barão
colocava um dos empregados para vender o que sobrava na calçada. Virou até piada
em um jornal local, que fez um cartun com a imagem do Barão vendendo frutas em
uma banquinha.

70 Fonte: Arquivo Nirez, disponível no site Fortaleza Nobre: http://www.fortalezanobre.com.br.


96

Por conta de um erro do ferreiro que fez as grades e portões, tenho


estampado na entrada o nome Roza Villa, o que era para ser Rose Villa, em
homenagem à baronesa, Rose Nini Liabaster. Minhas paredes, hoje amarelas, já
desfilaram um vermelho forte que não me deixava anônima. No meu interior ainda
resiste a estrutura de divisão original, com dois pavimentos distribuídos igualmente
em cima e embaixo e um porão semienterrado com espaço para ventilação. Por um
bom tempo era ali que dormiam os que cuidavam de minha limpeza, os que
preparavam os fartos banquetes e recolhiam os urinóis dos aposentos. Naqueles
tempos não tinha tecnologia o suficiente para haver sanitários dentro das casas, até
mesmo as mais refinadas, então mantinha-se o costume do urinol para uso noturno,
e sobrava para os que trabalhavam aqui, recolher todos os dejetos da família que dizia
ser minha proprietária. Essa Casa que estão vendo hoje não é a mesma daqueles
tempos. Passei por uma grande reforma por volta de 1945, onde fui remodelada de
acordo com a nova corrente estilística, denominada Missões, Estilo Californiano ou
hispano-americano, deixando a feição eclética de minha construção original.

Geminiano, que não nasceu Barão, também viveu muitas mudanças em


sua vida. Filho de Teresa de Jesus Maia e Cosme Afonso Maia Neto, nascido em
Aracati em 2 de fevereiro de 1847, exatamente 160 anos antes de ocuparem a minha
irmã que fica ali na outra esquina, e 170 anos antes de fazerem aquele belo
movimento para manter a Vila Viva. Nesse mesmo 2 de fevereiro, soube que ali pelas
areias da praia, se comemora o dia de Iemanjá, orixá da geração, das águas, águas
essas que me lavaram os chãos e paredes tomados pelo tempo que me fez esquecida,
mais um acaso a ser afirmado aqui (DELEUZE, 2007).

Trouxeram como base para minha construção, os modelos dos luxuosos


casarões da França, o que veio a inovar na paisagem da então província, onde não
havia casas assim, largas no sentido da rua, além de ser raro a construção de uma
casa tão grande apenas para fins residenciais. Depois o Barão mandou aqueles
homens construírem também o palacete Guarani, que dizem que foi o Barão, mas ele
só pagava e mandava.

Aos 17 anos, Geminiano Maia muda para Fortaleza deixando Aracati, que
“havia perdido o domínio de um Ceará Colonial, repartido com o município de Icó”
(VASCONCELOS, 2016, p.98). A atual capital cearense havia recentemente ganhado
autonomia da capitania, em 1799, se tornando capital oficial, sede das autoridades
97

portuguesas, se transformando em um porto exportador de algodão para a Inglaterra,


que era financiado por portugueses que residiam em Fortaleza, produzido em regiões
próximas.

Em Fortaleza, Geminiano começa a trabalhar como caixeiro viajante,


mantendo relações com expressivas firmas do Brasil e da Europa. Assim como a
cidade, ele vai crescendo e prosperando, até que junto de seus irmãos, José Nicolau
e Vicente, funda a Maison Louvre, especializada em moda, com artigos importados
da França (PREFEITURA DE FORTALEZA, 2014; BARBOSA, 2016). Ele, assim como
muitos dos novos ricos dessa cidade tinham uma mania de querer ser uma “França
tropical” (NEVES, 2005), enquanto andavam pelas ruas descalçadas em areal, se
vestiam à francesa nesse calor escaldante, ignorando a natureza que naqueles
tempos era vasta, deixando de olhar para si e tentando ser o outro, enquanto muitos
por aqui andavam vestidos de trapos e descalços pelas ruas da cidade.

Essa influência europeia ocorria no Brasil inteiro, movimento que se


intensifica com a vinda dos navios do continente para os principais portos brasileiros.
Além das mercadorias, muitas pessoas vinham atraídas pelas possibilidades de
melhorar de vida, além das famílias ricas, que tinham a tradição de mandar os filhos
para estudar na Europa (BARBOSA, 2016; NEVES, 2005; ALMEIDA NETO, 2015).

Na metade do século XIX, a Guerra da Secessão nos Estados Unidos


provocou a entrada do algodão do Ceará no mercado internacional, o que trouxe
muitos navios ao porto de Fortaleza em busca da matéria-prima, mesmo com as
dificuldades encontradas no embarque e desembarque das mercadorias, já que os
navios ficavam à distância e as cargas molhavam ou acabavam caindo no mar.
(BARBOSA, 2016; GIRÃO, 1984)

Geminiano resolve ir a Paris e se encanta com a cidade, costumes,


arquitetura. Faz também uma associação com um comerciante parisiense que manda
a Fortaleza produtos que diziam ser os melhores e mais modernos, o que traz à casa
Louvre grandes lucros, garantindo uma base sólida à sua fortuna, expandindo seus
negócios e abrindo outras lojas com a venda de variados artigos, como farinha, vinhos
e até trilhos e vagões de trem. (BARBOSA, 2016)

Quando completa 31 anos, sua fortuna atingia um volume em que ele podia
viver bem sem ter que trabalhar. Já Fortaleza passava por uma grande crise, gerada
98

pela seca no estado, que traz diversas camponeses em condições precárias para as
ruas da cidade (NEVES, 2005), para saber mais, vá ao Porão.

Geminiano resolve encerrar seus negócios e ir à Paris com a intenção de


se instalar por lá. É onde encontra a jovem francesa Rose Nini, então com 22 anos,
por quem se apaixonou e em menos de dois meses após seu desembarque, pediu-a
em casamento, casando-se em setembro de 1878. O que seria uma transferência
definitiva de residência, durou apenas um ano, talvez devido à morte de seu irmão e
ex-sócio, Vicente, em setembro de 1879. Geminiano regressa à Fortaleza e abre uma
loja de tecidos com outro irmão denominada Maia e Irmão (BARBOSA, 201671).

O casal queria muito um filho, e entre minhas paredes não conseguiram.


Buscaram tratamentos na cidade, também sem êxito, até que resolveram ir à Paris,
onde a baronesa fez um tratamento e conseguiu engravidar. De lá eles voltaram com
a pequena Cecília, nos braços com apenas dois meses de idade, vindos de uma longa
viagem de navio a vapor. Estavam exaustos e aqui descansaram com aquele frágil
bebê, que eu sabia que faria parte da minha vida intensamente.

Em meu percurso, vida e morte se entrecruzaram diversas vezes. Tiveram


os que nem conseguiram chegar aqui, que no sertão ou nas estradas pereceram, nas
tentativas de sobreviver, ou dos navios vindos da África, percursos dos que chegaram
para dar suas mãos de obra para edificar muito que hoje constitui patrimônios
materiais dessa cidade. Tiveram aqueles que aqui chegaram, mas de doença e/ou
fragilidade pereceram.

Mas como riqueza e poder não são soluções para tudo, a morte também
chega à família dos barões. Primeiro se foi Teresa, a mãe dele, depois o cunhado,
Manoel da Costa, e logo em seguida sua irmã recém-viúva, Rosa Maia, que tinha três
filhos. Um deles se chamava Geminiano, como o tio, apelidado de Jimmy, que foi
criado como filho pelo casal de baroneses.

Para superar os dias difíceis, eles podiam viajar à Paris. Eu não, ficava
sempre por aqui. Levaram as crianças Cecília e Jimmy, no momento em que se
aproximaram da família imperial brasileira, que estava exilada ali. Encontravam-se
semanalmente com a Princesa Isabel e o Conde D’Eu, os filhos das duas famílias

71As informações a seguir, sem indicação de autoria, são da mesma autora, junto das vozes da Casa
e minhas.
99

compartilhavam do mesmo professor de música. Geminiano recebe o título de Barão


do rei de Portugal, único título de Barão outorgado pela coroa portuguesa, conquistado
a partir de uma aproximação entre sua família e a coroa enquanto estiveram exilados
na França. Depois recebemos aqui entre meus cômodos parte da família imperial,
com a presença do imperador D. Pedro II. Foram dias de trabalho pesado de quem
trabalhava aqui, nas arrumações, preparações de banquetes, festas, limpeza da
Casa. Ficamos exaustas!

Mesmo indo para longe, essa figura sombria não hesitou em lhes visitar
novamente em Paris. Jimmy pegou meningite, e ali não resistiu, vindo a falecer. Foi
uma grande tristeza para eles e para mim também, que criava afeição pelos que me
habitam, em especial pelas crianças que me trazem sempre mais vida e invenções.

Três anos depois a família volta para Fortaleza, quando o já Barão retoma
seus negócios e assume a presidência da Associação Comercial do Ceará junto de
outros associados. Pretendiam abrir um banco denominado Banco Comercial,
Agrícola e Industrial. Conseguiram arrecadar uma boa soma de dinheiro, mas não
entraram em acordo quanto ao estatuto. Com o dinheiro arrecadado, resolveram abrir
uma sede para a associação, cujo projeto de construção veio de Paris, e durante anos
foi considerado um dos mais belos de Fortaleza. A edificação foi nomeada Palácio
Guarani, provavelmente em referência ao romance homônimo de José de Alencar
(1857), escrito na fase indianista do escritor, homenagem que ele estenderia à sua
filha.

A menina apelidada de Cecy72, como a personagem do romancista, foi


crescendo, virando uma mulher, educada nos moldes das famílias ricas daqueles
tempos, estudou pintura, piano, conhecia os clássicos da literatura mundial, sabia
costurar, bordar. Em 1911, casou-se com Maximiano Leite Barbosa, cuja família
também se originava de Aracati, e detinha grande força econômica na região atuando
no setor têxtil. A união, que vinha de uma paixão da juventude, deixou o casal de
baroneses contentes. Como havia espaço suficiente, e Cecy era filha única com
grande ligação com os pais, o casal passou a residir por aqui (BARBOSA, 2016).

72Nas fontes encontradas (BARBOSA, 2016, PREFEITURA DE FORTALZA, 2016), o apelido é escrito
com a letra y ao final.
100

Figura 38 - Baroneses e filha, performance com Euzebio, Grá Dias e Wanessa Malta

Foto Desconhecida. Arquivo: Facebook de Grá Dias.

Após a construção do Palacete Guarani, o Barão começou a sentir


cansaços e dores no peito, já não era o mesmo de tempos atrás. Ele seguiu as
recomendações médicas por um tempo, diminuindo o ritmo de trabalho, depois foi
retornando às atividades aos poucos, até voltar a ter os mesmos sintomas. Ouvi dizer
que eram problemas no coração.

Deixou a presidência da Associação Comercial em 1914, se afastando


completamente das atividades em 1916, quando foi repousar no bairro do Outeiro,
atual Aldeota, cujos ares lhe trariam benefício, mas não houve melhora. A doença foi
tirando suas forças e nos últimos meses ele não deixou mais o leito .

Um pouco antes do meio-dia, de uma manhã de sol e de céu azul, no dia 25


de outubro de 1916 (Unitário – 26/10/1916), uma forte ventania percorreu a
mansão batendo portas, janelas, e levantando cortinas. Geminiano fez
menção de soerguer-se e seu coração parou de bater por falta de oxigenação
(BARBOSA, 2016, p. 69-70).
101

A notícia logo se espalhou pela pequena província, minhas portas se


abriram para o adeus final. Foram chegando flores e mais flores, coroas, me deixavam
perfumada e fúnebre. As rezas varavam a noite, e só cessavam para ceder lugar ao
canto entoado das mulheres mais velhas. Às oito da manhã, o caixão cruzou meus
portões. Uma multidão caminhou em cortejo junto aos automóveis e bondes. Mais
gente se agregava a cada esquina, ao som da banda de música do 48º Batalhão de
Caçadores tocando marchas fúnebres até chegar ao cemitério São João Batista, onde
já se encontravam muitas pessoas à espera do morto ilustre que já tinha sua sepultura
com ricos e sóbrios adornos.

Figura 39 - Militares, civis e a Casa73.

Foto desconhecida. Arquivo Família Maia, disponível em Fortaleza Nobre.

Em menos de um ano depois, a baronesa, que tinha imensa ligação com


seu esposo, também nos deixou. Fiquei sob os cuidados de Cecy e Maximiano.

73Nesse caderno, utilizo as fotografias do arquivo da pesquisa de maneira ficcional, de forma a criar
uma certa narrativa que ilustra de modo um tanto irônico/cômico, os fatos que venho contando, como
nas imagens da performance realizada pelos estudantes da primeira turma da EAV, Euzébio
Zloccowick, Grá Dias e Wanessa Malta como os baroneses e sua filha Ceci, e agora com a imagem da
Figura 37, que mostra uma multidão composta por militares e alguns civis, aparentemente os detentores
de poder que se encontram em grande parte das fotografias da cidade e desse espaço, A Casa
naqueles tempos, deixando outros corpos invizibilizados. A imagem mostra, provavelmente, um dos
desfiles militares que aconteciam na região em datas cívicas (ALMEIDA NETO, 2015), e foi aqui
empregado como uma figura ilustrativa do dia do enterro do Barão, que, segundo Barbosa (2016),
reuniu uma grande multidão acompanhada por militares que percorreram a cidade da Casa até o
cemitério São João Batista
102

Rapidamente cuidaram de preencher o vazio deixado pela ausência dos genitores. O


silencio já não mais residia em meus cômodos, o casal conseguiu realizar o que os
pais de Cecy não conseguiram: ter uma família numerosa, fazendo de mim um lugar
repleto de encontros e comemorações. Como Maximiamo vinha de uma família muito
unida, que tinha o costume de morar juntos, não foi difícil cumprir junto à esposa a
promessa feita aos baroneses de cederem parte do vasto terreno da Casa para os
filhos que fossem casando.

Foram muitos a correr e brincar pelos meus corredores, quebrar algumas


louças, riscar paredes em súbitos atos de ser criança. Cecília e Maximiano tiveram 10
filhos, sendo que 2 deles morreram ainda pequenos. Os que vi nascer e crescer foram
Newton, Carmem, Lygia, Ilnah, Neide, Lucy, Maria Aila e Olga. É a força das mulheres
que eu pude presenciar por aqui desde cedo, também com as mulheres que criaram
junto à família todas essas crianças: Conceição, Luzia, Mazé, Maria, Rosangela,
Cristina, Zimar e Santana, mas sobre estas não se pode encontrar em livros nem nas
fotografias.

Figura 40 - Cecilia, Maximiano e filhos.

Fonte: Arquivo família Maia.


103

Iniciava-se uma nova etapa, precisava me adaptar aos novos tempos e


necessidades, tanto da família numerosa quanto dos padrões estéticos de novos
tempos e gostos. Em 1935, foram erguidas as primeiras edificações para os filhos que
casaram, na lateral norte do terreno, de frente à Avenida General Sampaio. Era o
começo da Vila Leite Barbosa. Passei por uma grande reforma por volta de 1945 que
me deixou mais próxima a essa aparência atual.

A estrutura dos espaços originais foi mantida, com a ampliação e criação


de um pátio nos fundos do pavimento térreo, com espaços de serviço como copa e
cozinha e alojamento para os empregados, que continuavam separados dos patrões
e não mais soterrados no porão. Foram feitas instalações sanitárias nos quartos e
mudanças na estrutura de encanamento, acompanhando também as mudanças da
cidade.

Maximiano, assim como o sogro, cultivava o gosto pela importação de


vinhos, além de seu negócio principal, que era na indústria de tecelagem. Sendo
assim, utilizava o espaço do porão para a implantação de uma adega climatizada por
gotejamento constante de água. Na saleta que ficava próxima à entrada lateral, Cecy
se dedicava aos trabalhos artísticos e manuais como bordados, pinturas, costura e
escritos enquanto via o movimento da rua e da entrada. Foi o começo de um encontro
com algo que eu nunca mais deixaria: as artes.

Dois anos depois da reforma, de novo a morte visitou minhas


acomodações, levando dessa vez Maximiano, em 20 de abril de 1947.Cecy assumiu
o comando da família e Newton, o primogênito e único filho homem do casal,
permaneceu como diretor do cotonifício Leite Barbosa.

A Vila, agora Leite Barbosa, foi aumentando enquanto o pomar e os jardins


diminuíam. Foram construídas um total de seis casas, sendo a última a que
corresponde atualmente à Vila das Artes, edificada na década de 50, de feições e
interior bastante requintados. Aqui continuou sendo espaço para festas e reuniões da
família, muitas fotos foram tiradas na escada ao longo das gerações, assim como
também era tradicional a foto dos casais de noivos no espelho da sala.

Carmem Barbosa Chaves, junto de sua filha Maria Luiza, foram as últimas
da família do Camocim a aqui habitar, saindo em 1990, ainda me mantendo de longe.
É o que eles fazem com os velhos, não é mesmo? Pagam para alguém manter e ficam
104

com a consciência tranquila. Desde aqueles tempos, diante da solidão, flertava com o
cinema, e curtia umas festas de vez em quando. Fui set de filmagem e palco para
antológicas festas à fantasia. Em 2006 fui desapropriada pela Prefeitura, tornando-me
patrimônio público.

Mas nem tudo é belo. Passei anos vazia, faziam falta os sorrisos das
crianças, o cheiro de comida boa vindo da cozinha até a mesa, onde todos sentavam
elegantes e famintos, o som da água a regar o pomar colorido, as poses para as
fotografias, as pessoas. Cada cômodo se esvaziava de gente e enchia-se de poeira e
resquícios do passado. Fantasmas às vezes me faziam companhia nos vazios
noturnos para que não ficasse tão só, os daqui de dentro, os de fora, tão mortos
quanto o Centro depois das 18h e a pequena cidade de outrora. Minhas paredes
rachavam, o teto ruía, as plantas ocupadeiras (LIMA, 2016) cresciam sob a sólida
estrutura de concreto, e por alguns momentos eu me encontrava com os fazeres
daquela casa da esquina, me reinventava, me alisava (DELEUZE; GUATTARI,2012).

Agora é justo aqui, no piso superior, que recebo a primeira exposição da


produção de alunos da EAV depois de ser oficialmente Centro Cultural Casa do Barão
de Camocim. O térreo recebe o Memorial Sinhá D’Amora, para saber mais, é só ir até
o Porão.

Estou feliz com essa ocupação na parte de cima, Aguadô, e de estarmos


novamente nesse encontro entre eu, a Vila, as artes e as águas que não cessam em
correr, lavar, mas que, como observa Leo, dependem também de pessoas, de braços
que carregam para que as mais privilegiadas possam desfrutar desse líquido natural
que acabou sendo poluído, envasado, carregado, vendido, adicionado. Água que
escorre por entre os canos da cidade, que vem das caixas d’água, que ficam aqui bem
perto de mim, passam por sob os encanamentos, entre eles os da Praça, hoje Clóvis
Beviláqua, e abastecem as casas que podem contar com essa tecnologia. Em muitos
casos, escoam e sujam o nosso mar.

Leo publicou no seu Instagram:

[...] é bizarro como em 2019 ainda tenha sinhá ocupando espaço público de
exposição. Mesmo entrando pela porta dos fundos, a exposição Aguadô vai
abrir dia 31 às 19h e fica até o dia 28/2 na Casa do Barão de Camocim
(SILVA, 2019).
105

Devido à montagem da exposição da pintora Sinhá D’Amora no Salão


principal, no térreo da Casa, a instalação produzida na EAV ficou com o andar superior
para a montagem, e a entrada para a exposição se dá pelos fundos da Casa até a
abertura da exposição que ocorrerá no térreo, o que, segundo Leo, gerou diversas
discussões entre os estudantes e as instituições responsáveis pelas exposições na
Casa. Tento durante a abertura de Leo, ir até a Casa para ver a montagem da
exposição, mas sou impedida, mesmo com o argumento de que estou realizando essa
pesquisa.
106

6 PLANTA

Figura 41 – Casa.

Fonte: Blog Casarões de Fortaleza74.

74 Disponível em: http://casaroesdefortalezafa7.blogspot.com/2011/06/casarao-do-barao-de-


camocim.html. Acesso em: 25 jan. 2019
107

Para um estudo fenomenológico dos valores da intimidade do espaço interior,


a casa é, evidentemente um ser privilegiado, sob a condição [...] de
tomarmos, ao mesmo tempo sua unidade e sua complexidade, tentando
integrar todos os valores particulares num valor fundamental. A casa nos
fornecerá ao mesmo tempo, imagens dispersas e um corpo de imagens. Num
e noutro caso, provaremos que a imaginação aumenta os valores da
realidade. Uma espécie de atração concentra as imagens em torno da casa.
(BACHELARD, 1998, p. 111).

A Planta que aqui trago se difere dos outros cadernos apresentados nesse
trabalho, cada um dos outros correspondem a partes da Casa, e consequentemente,
aos modos como se entra nesses espaços, de como se fala, do que se fala em cada
parte dessa Casa e dessa arquitetura do texto, e o que ela nos leva a pensar,
questionar em cada uma destas partes. Estamos dentro ou fora? Estamos em um
espaço íntimo, ou em um espaço formal como uma sala de visitas? O que se fez ali,
o que se produziu, quem ali viveu? Onde eu, leitor, posso entrar, e de que modo entro?
Quero ir apenas em um cômodo, ou fazer um percurso com a Casa inteira? Revisito
alguma parte dela? Me demoro em algum de seus espaços, ou prefiro nem adentrar
algum? Que sensações cada um provoca?

A planta vem afirmar o todo em relação às partes, como esse corpo


complexo de imagens citado acima por Bachelard (1998), pensando na relação da
Casa com seu entorno, com a cidade e com o traçado dos percursos que constituem
a cartografia, tornando visíveis os modos de afetar e ser afetado, inventando mapas
com territórios existenciais.

A planta do desenho arquitetônico, ou as plantas que brotam da terra, o


rizoma (DELEUZE; GUATTARI, 2012), as redes que se formam a partir do que se faz
com a Casa, reverberando e se espalhando pela cidade e para além de suas
fronteiras. O que se traz de fora para dentro, relações que emergem com e a partir
dessa Casa e de suas conexões desde seu surgimento ao presente, e como ela
continua se espalhando, inclusive com essa pesquisa.

Nos estudos de arquitetura, a planta baixa é um desenho técnico


esquemático feito a partir do corte horizontal da base do edifício, onde é possível
visualizar o ambiente como se estivesse olhando de cima, sem o telhado. Nesta
representação, é possível ter a dimensão da área construída, largura e comprimento
108

dos elementos internos e externos75, como no exemplo das plantas da Casa se


encontram no anexo A.

Existem também as plantas urbanas, como as de Adolpho Hebster,


arquiteto que traçou o plano de Fortaleza, organizando as ruas da cidade em forma
de tabuleiro de xadrez. Suas plantas são grandes referências históricas, com o
mapeamento de Fortaleza no final do século XIX, que ajudam inclusive na tentativa
de precisar uma data da construção da Casa. De acordo com o processo de
tombamento da Casa (PREFEITURA DE FORTALEZA, 2014), não há imagem de uma
casa delineada na planta de 1975, mas apenas do quarteirão que corresponde ao
espaço, de frente para a Praça que tinha o nome de Visconde de Pelotas. Esse
delineamento se evidencia na planta posterior, de 1888.

Quanto às espécies vegetais, em Chevalier e Gheerbrandt (1982, p. 723),


a planta “simboliza a energia solar condensada e manifesta”, elas “captam as forças
ígneas da terra e recebem energia solar. Elas acumulam essas forças; daí suas
propriedades curativas ou venenosas e seu emprego na magia”. Incluo esse sentido,
já que tem relação direta com a pesquisa e com os trabalhos que desenvolvo no
espaço, que entre eles, está o ato de plantar e replantar com a Casa, que em seus
primeiros anos de vida tinha um pomar cheio de frutos, assim como um jardim rodeado
de palmeiras, araucárias e tantas outras espécies de plantas, e atualmente demonstra
escassez em termos de recursos vegetais, assim como grande parte da cidade.

75Informações disponíveis em: http://arquiteturaurbanismotodos.org.br/planta-baixa/. Acesso em: 8


dez. 2018.
109

6.1 A Casa, a Praça, as Ruas

Figura 38 - Vista da Casa para a Praça.

Fonte: Arquivo Nirez, 1930.

Tive acesso ao Processo de Tombamento da Casa, por meio da Secretaria


Municipal de Cultura. O documento reúne quase 200 páginas, compostas por variados
documentos acerca da Casa e seus processos, passando por plantas, atas de
reuniões para o tombamento, orçamentos para reforma, vistorias, um pouco de seu
percurso historiográfico e um ofício de demolição de uma das casas anexas.

Não há um documento definitivo que precise a data da construção da Casa,


e as informações encontradas são um tanto contraditórias. No processo da Prefeitura
de Fortaleza (2014), há um documento assinado pela então presidenta da FUNCET,
Beatriz Furtado, que diz que a construção se inicia por volta de 1870. Na Décima
Urbana da cidade de 1890, consta o nome de Geminiano Maia como proprietário do
imóvel daquela esquina. De acordo com Vasconcelos (2016, p.100), o terreno onde
ela está edificada foi adquirido em partes por volta de 1885 e 1886. Na planta da área
110

da Praça de 1875, não costa o delineamento da Casa, que é visível na planta de


Hadolfo Hebster de 1888 (Anexo B).

Não se precisando, porém, a data de início da obra. Não se dispõe de dados


concretos concernentes à construção, mas supõe-se que o projeto talvez
tenha vindo da França, dado o estreito relacionamento profissional que
Geminiano mantinha com aquele país, além de sua mulher, Rose Nini
Liabaster ter laços afetivos com sua pátria. (PREFEITURA DE FORTALEZA,
2014).

Muito dos materiais utilizados na construção, produzidos industrialmente,


vieram da Inglaterra, assim como grande parte dos artefatos lá utilizados, chegaram
do continente europeu.

A Casa consta de planta retangular, com um bloco principal, dois


pavimentos e um porão, “com implantação elevada através de pavimento
semienterrado” (VASCONCELOS, 2016, p.100), com pequenos espaços para
ventilação que podem ser vistos do piso do jardim. A fachada que se apresenta no
estilo Missões, proveniente da Califórnia, é voltada para a Praça Visconde de Pelotas,
com afastamento em todos os limites.

O aspecto externo da edificação, revela elementos que comprovam essa


tendência, como o reboco grosso em relevo, as colunas torsas, os beirais
“fingidos”, compostos por telha de barro sobre as cornijas, o predomínio do
cheio sobre os vazios, e a presença já de decorações que revelam uma certa
“modernidade”, sobretudo nos detalhes das varandas e peitoris, formadas por
módulos vazados (PREFEITURA DE FORTALEZA, 2014).

O quarteirão correspondente ao terreno original compreende as ruas


General Sampaio, Senador Alencar e 24 de Maio, atualmente com alto fluxo de
trânsito, pessoas e grande movimento comercial. As demais casas que compunham
a vila estão alugadas para comércio e totalmente descaracterizadas, uma delas virou
estacionamento.

A Praça localizada em frente já passou por diversos momentos e


consequentes mudanças. Foi Praça do Encanamento, do Chafariz, Visconde de
Pelotas, da Bandeira, seu nome mais popular até a atualidade, já que grande parte da
população não incorporou seu nome oficial - Clóvis Beviláqua -, que homenageia um
111

jurista cearense, denominação dada após a construção da Faculdade de Direito da


UFC, que ocupa a rua adjacente.

Já foi um grande areal, zona de distribuição de alimentos e pagamentos


aos trabalhadores camponeses provenientes da seca que atingiu o Ceará no fim da
década de 1870, assunto tratado no caderno Porão. Uma zona considerada de
expansão urbana, quando da construção da Casa. Foi local de instalação do
encanamento da cidade, abrigando elegantes caixas d’água metálicas, instaladas ali,
entre outros motivos, devido à altitude do terreno, que era maior em relação ao
restante da cidade (ALMEIDA NETO, 2015). As caixas d’água continuam ali, com
alterações e deteriorações do tempo, sendo casa para moradores da rua e abrigando
intervenções artísticas realizadas em uma edição do Festival Concreto, do qual falarei
em breve.

Na década de 1930, é construída a Faculdade de Direito, sobre o fato,


Nogueira (apud ALMEIDA NETO, 2015, p. 26) escreve o seguinte trecho da crônica:
“em uma cidade, como esta, que não tem mais para onde se expandir, é natural,
naturalíssimo, que se aproveitem esses vãos inúteis com alguma coisa útil. ”Afirmação
que nos dá uma dimensão do quanto esse espaço, assim como muitas outras praças
da cidade, foi marginalizado. Ali era considerado o fim do espaço urbano e início das
regiões menos povoadas da cidade, ou suburbanas. Lugar que muita gente utilizava
para abastecer água através do chafariz. No seu entorno existia uma fábrica de sabão
e um frigorífico, estabelecimentos geradores de doenças e propagadores de odores,
que com o passar dos tempos foram se instalando em outras zonas ainda mais
afastadas.

Nas décadas de 1920 e 1930, o espaço recebe animadas apresentações


circenses que atraíam grande número de espectadores (ALMEIDA NETO, 2015). Com
o aumento da malha urbana, as Praças da cidade passaram por intervenções e
ajardinamento, o que chegou a essa Praça por volta de 1933, levando mais pessoas
a esses espaços públicos e às práticas urbanas, em atividades como as
apresentações de circo, jogos de futebol, passeios ciclísticos, criando novos usos para
aquele lugar. Em 1943 é inaugurado o Obelisco da Vitória, uma apropriação da Praça
ligada à Faculdade de Direito, com o monumento que faz referência à participação do
Brasil na segunda Guerra Mundial.
112

Nos tempos em que começo a frequentar a Vila das Artes, a Praça já perde
há muito tempo o glamour das apresentações artísticas, das paradas militares e
inaugurações monumentais. É tomada pela degradação, pelo piso em pedras
portuguesas que se descolam, o pequeno campo de futebol de areia desgastado,
pelos moradores de rua que a ocupam principalmente à noite e o medo que alguns
têm de frequentar, as barraquinhas de lanche e a banca de revistas nomeada “do
Barão”, as tantas oficinas de moto que a contornam as imediações.

Em 2016, o espaço passa pelo que a Prefeitura e a Casa Cor chamam de


“revitalização”, uma gentrificação, na qual os moradores de rua são removidos, as
estruturas físicas são reformadas, o piso é consertado, assim como os bancos, as
grades do campo de futebol, são inseridos um parquinho e uma academia ao ar livre,
dando um aspecto “higienizado”, com a realização de eventos dos quais falo no
caderno Escada Lateral. Pela sua localização privilegiada, entre o Centro e o Benfica,
ainda não tendo o grande fluxo comercial do bairro central, é lugar de movimentações
políticas que envolvem diversas lutas, entre greves de trabalhadores, movimentos
pela democracia e outras campanhas e mobilizações.

Da Praça podemos ver a Casa, composta por mureta baixa, com pilares e
espaços, entremeados por grades de ferro. Um largo portão dava acesso à passarela
de mosaicos hidráulicos, que levava até a escada da entrada principal. Parte desses
elementos continuam presentes, outros foram modificados. É o caso da fachada, que
possuía listras horizontais, provavelmente na cor vermelha e o telhado de platibanda,
“ladeado por duas saliências aparentes arrematados por lambrequins”
(VASCONCELOS, 2016, p.101).

O vestíbulo dá acesso a um amplo, porém estreito salão retangular,


circundado por grossas arcadas, onde eram realizados os jantares formais
da família e as recepções a convidados. As salas contíguas ao vestíbulo, nas
laterais, constituíam a área social da residência, com biblioteca, gabinete e
sala de visitas.
A parte posterior, de apenas um pavimento, (e que foi acrescentada mais
tarde), abrigava as atividades de serviço nas laterais e contém um pátio
central circundado por varandas com arcadas [...]
No pavimento superior, sobre o bloco principal, ficavam os aposentos íntimos
da família, formado por dormitórios, sanitários e varandas, além do grande
salão na parte superior, com pé direito alto e com vista para o pátio interno.
A ligação entre os pavimentos é feita por uma escada de madeira trabalhada
com peitoris torneados, na ala esquerda da casa, assim como por um
elevador localizado próximo, o qual constitui-se um apêndice na fachada sul,
evidenciando um acréscimo posterior. No compartimento contígua, há outra
113

escada, que dá acesso ao porão, atualmente desativado, servindo apenas


como depósito (PREFEITURA DE FORTALEZA, 2014, p. 23).

Há acesso para a Casa na parte frontal, ou na parte lateral, da qual falo no


caderno Escada Lateral. Na parte posterior, aos fundos de interligação com a Casa
do Meio, também há uma entrada através de uma escada. Ali no pátio interno, há uma
instalação que parece corresponder ao que já foi uma cozinha, inclusive nos tempos
de ocupação Vila Viva, da qual falo no caderno Porão. Foi o lugar da performance de
Nivardo Vitoriano no 69º Salão de Abril, intitulada Para o Homem “que Sugava o
espaço Exterior com os Olhos II”, onde o espectador participa cortando e degustando
um bolo com a capa do disco Chega de Saudade, de João Gilberto (1959), com o
recheio da receita do bolo Bossa Nova, à base de ameixa e goiabada, que segundo o
artista, é uma homenagem à obra de Caetano Veloso e aos cinquenta anos da
Tropicália. A ação legitima o espaço, uma cozinha onde se pode comer, tocar,
compartilhar afetos e fazeres, mesmo que o bolo, nos demais dias do salão, tenha
ficado apenas como lembrança através de fotografias da performance que aconteceu
no dia da abertura.

A cozinha por vezes fica assim, como lembrança e afeto das comidas feitas
na ocupação Vila Viva, ou como um lugar de cansaço dos que preparavam os
elegantes jantares, do cheiro, dos sabores exalados em outros tempos, do choro, do
riso, dos barulhos das panelas batendo de quando a cozinha já foi mais viva. O espaço
tem como projeto atual abrigar um café, o Café Imagem.

Em Lavação, varremos o pátio anexo à cozinha, tomado por folhas secas


e dejetos do cachorro que vivia ali, Tarantino. Quatro anos depois, foi na cozinha que
Aline Albuquerque estendeu sua toalha de fundo vermelho com pequenos corações
brancos para que pintássemos plaquinhas na vivência do Laboratório Artes e
Micropolíticas Urbanas (LAMUR) com a Casa, quando realizo uma intervenção como
apresentação dessa pesquisa no Laboratório, do qual faço parte desde 2017. Invento
uma espécie de Caça ao Tesouro pela/com/na Casa, mapeando e trazendo um pouco
dos recortes espaciais que apresento na escrita da dissertação, como forma de
deslocamento e caminhada com o espaço.

A apresentação inicia com a leitura de uma carta na Escada Lateral,


soltando uma pista que nos leva à Espiral de Replantio, que guarda um envelope com
mais uma pista, que nos leva até o Salão, onde estava montada a exposição de
114

Descartes Gadelha. Cada envelope guarda, além das pistas do próximo passo, um
pouco do percurso da pesquisa e do que apresento nessa escrita em cada
caderno/cômodo, ou pelo menos as ideias iniciais que tinha naquele momento. Vamos
ao Andar Superior, Intervimos no Banheiro com uma pequena exposição improvisada
com fotos que havia imprimido para a apresentação, depois vamos à entrada do
Porão. O tesouro ao final da proposição era uma caixinha, colocada na porta do porão,
onde não pudemos entrar. Uma barreira era formada por diversos objetos, entre
plástico-bolha, pedaços de papelão e madeira.

A caixa de presente escondida entre as quinquilharias, guardava fotografias


com imagens de recortes de um espaço, uma plaquinha feita por Aline com o símbolo
feminista que Virna pendurou no pescoço, e um pequeno vidro transparente que
armazenava miçangas azuis, oferecido por Aline, um dispositivo, segundo ela. Pedi
às duas colegas que compartilhariam apresentações naquele dia, que me
oferecessem algo que se relacionasse com suas proposições para que eu colocasse
na caixa, e que fosse um modo de afirmar as conexões, mostrando que o tesouro é o
encontro, o percurso, “reconhecer o outro como um legítimo outro” (MATURANA,
2002, p. 22), como dizia uma das plaquinhas de Aline, ou as outras, elas, seus olhares,
percursos, fazeres, desejos, amores, Lamures, como falamos. Ambas trazem
pesquisas/fazeres que dialogam com essa que aqui trago, a partir da cidade, suas
construções, disputas, marcas do tempo, abandono, espaços que relacionam de
diferentes modos, artes, micropolítica e cidade.

Virna Benevides, mestranda em Estudos Urbanos e Regionais pela


Universidade Federal do Rio Grande do Norte, com a pesquisa que vem da graduação
em comunicação, acerca do Edifício São Pedro, localizado na Praia de Iracema,
construído na década de 1950 com uma arquitetura peculiar que lembra a de um
navio, se tornando um luxuoso hotel, o primeiro da orla de Fortaleza, e que também
passou pela degradação do tempo e das mudanças da cidade, sendo desativado
como hotel na década de 1970, passando a ser prédio residencial, atualmente alvo de
diversas disputas. Tombado pela Prefeitura em 2016, tomado pela ruína e
esquecimento, mesmo em um dos espaços mais movimentados da cidade. É lugar de
resistência em seus diversos modos,

[...] é preciso assimilar que a resistência é um processo em curso, com uma


iminente força revolucionária, capaz não somente de barrar, como também
115

de criar. A questão é que essa resistência se contrapõe à modernidade. Uma


modernidade que esteriliza e equaliza os antagonismos urbanos [...]
(BENEVIDES, 2018, p. 34)

Aline, mestra pelo PPGArtes, desenvolveu sua pesquisa em torno do


Predinho localizado no bairro em que reside, Vicente Pinzón, um edifício inacabado
que acabou sendo abandonado, lugar de muitas de suas proposições artísticas em
torno da relação com o bairro, o ornamento e errância. Depois ela começa outros
movimentos como artista, que a levam para as plaquinhas com dizeres como “ Fora
Temer”, “Lula Livre”, “Ele não”, que convergem em exposições com diversas placas
sobrepostas e múltiplos dizeres e vozes, feitas com materiais simples, reaproveitando
caixas de papelão. Surge um convite para a exposição “Arte Democracia Utopia: quem
não luta tá morto”, no Rio de Janeiro, e a proposta da Aline na vivência na/com a Casa
é nos chamar para desenvolver juntos algumas plaquinhas para ela levar a essa
exposição com o trabalho intitulado AGITPROP.MAR. Sentamo-nos ali no chão do
que já foi uma cozinha, alguns a pensar no que escrever, outros já melando de tinta
preta seu pincel e trançando dizeres e formas de cunho político | poético.

Figuras 39 e 40 - LAMUR na Casa, 2018.

Figura 39
116

Figura 40

Fonte: Salvia Braga, 2018

Figuras 41 e 42 - LAMUR na Casa, 2018.

Figura 41 Figura 42

Fonte: Salvia Braga, 2018


117

6.2 Centro Cultural Casa do Barão de Camocim

Após o Salão de Abril 2018, a Casa oficialmente se constitui como Centro


Cultural Casa do Barão de Camocim, um equipamento da Prefeitura de Fortaleza
dedicado às artes visuais que, de acordo com Folder da Secretaria de Cultura de
Fortaleza (2018) “mantém sinergia e consonância com as atividades das escolas de
formação da Vila das Artes”. Afirmativa questionável. No momento do Salão de Abril,
o espaço da Casa foi negado aos estudantes da EAV, que pretendiam expor os
trabalhos do ciclo Imagem e Espaço, ficando estes com a Casa do Meio, lugar que
teve sua estrutura totalmente modificada quando da realização da Casa Cor Ceará e
está atualmente desativada. O projeto inicial do Complexo Vila das Artes constava
que o espaço seria composto por um cinema de rua, ilhas de edição e estúdio de
áudio.

O Centro Cultural é inaugurado com uma exposição individual do artista


plástico Descartes Gadelha, intitulada Nossas Janelas, que reúne seis décadas de
seu trabalho. Descartes é um pintor de grande referência local, com obras que
retratam temas como a seca no Ceará e os catadores de lixo do Jangurussu76, com
forte temática social, o artista tem uma sala com seu nome e diversas de suas obras
no Museu de Arte da UFC. Como artista, fortalezense, o admiro e tenho aproximação
devido a sua relação com o Maracatu Solar, em que ele tem o título de Griô, onde
também participei como brincante. É um artista muito intenso e querido na cidade, e
uma grande referência musical para o maracatu local e seus diversos grupos.

Mas foi uma surpresa quando no momento de troca de gestão da


prefeitura77 em 2017, seu nome é anunciado como um dos novos membros do
Conselho da Vila das Artes, ignorando o nome dos que já atuavam ali e tinham uma

76 Bairro da periferia de Fortaleza que comportou, durante 20 anos, um depósito de lixo da cidade, que
foi desativado há mais de duas décadas, mas ainda comporta uma grande montanha de lixo, fezes,
lama, encoberta de vegetação. O entorno é habitação de diversas famílias, muitas delas foram/são
sobreviventes do lixo como fonte de renda, para os que vivem e viveram em condições muito precárias.
Descartes residiu o lixão para a produção da série composta de mais de 70 quadros que retratavam
essas pessoas que ali (sobre)viviam, gerando impactos póstumos em sua saúde.
77 Em 2016, o prefeito Roberto Cláudio é reeleito, e em 2017, há o momento da troca de gestão, que

gera grande impacto na Vila das Artes. Muitos funcionários são demitidos, outras pessoas são
colocadas no lugar, mudam-se os membros do Conselho sem uma prévia consulta com quem estava
na gestão do espaço. Isso gera um movimento por parte dos artistas, estudantes, alunos e comunidade
que converge em uma ocupação na Casa, trazida em mais detalhes no Porão.
118

relação com a instituição, sem ao menos consultá-los. Foi estranho devido ao fato de
Descartes, apesar de sua participação ativa na cidade, em se tratando da cultura e
das artes, em especial com a música e com as artes plásticas, não ter relação como
os trabalhos realizados na Vila das Artes, que têm como ênfase a formação em
audiovisual, dança, embora agregue as artes em seus diversos modos e linguagens.
Além dele, diversos outros “conselheiros” foram inseridos sem que tivessem relação
prévia com o espaço ou mesmo com a Cidade.

Questiono a abertura desse novo Centro Cultural com a exposição de


Descartes, por saber que as portas deste foram fechadas para os estudantes da Vila
no momento do Ciclo Imagem e Espaço, pelos anos de luta vindos por parte de
componentes desse equipamento cultural, imbricado à Casa, e pela proposta que
consta nos primeiros projetos do hoje Centro Cultural, de manter uma consonância
entre os dois espaços e seus fazeres, que eram as expectativas por parte dos gestores
da Escola de Audiovisual e estudantes, como mencionado no relato de Viviane
Bizarria (2019), estudante da quarta turma da EAV .

No momento em que se abre o espaço sem uma, ou várias, das tantas


produções que com esse equipamento se produz ou se produziu, começa-se a negar
essa relação e as tantas ações em busca dessa legitimação, em um contexto político
onde o que conta são as aproximações entre as instâncias institucionais.

A Casa possui grandes dimensões, com capacidade para acolher muito


bem exposições coletivas, com diversas obras espalhadas por seus muitos espaços,
onde se falem múltiplas vozes em seus diversos modos, como foi o caso da exposição
Materialidades/ Ativações/ Deslocamentos, do Salão de Abril, e na exposição do Ciclo
Imagem e Espaço da primeira turma, segundo relato de Rúbia Mércia, que ocupou o
pátio interno e os fundos da Casa, com performances, instalações e vídeos. O que
tem acontecido nas primeiras ocupações da Casa como esse Centro Cultural, são
exposições individuais, em especial no espaço oficial, ocupando o térreo da Casa,
com o apoio da SECULTFOR em diversos modos, entre divulgação, montagem e
produção de catálogos.

A demanda de que sejam levadas para esse espaço criações feitas com a
escola de audiovisual, de dança, e com as outras formações que dali brotam, que são
tantas, em quantidade e qualidade, e por vezes pouco conhecidas e divulgadas em
119

âmbito local, não está se efetivando da melhor maneira. Esse fato tem causado
insatisfação por parte dos estudantes, como aconteceu com Leo Silva e outros
colegas da quarta turma, que produziram uma instalação78 como um dos trabalhos de
conclusão de curso, conseguiram o espaço da Casa, mas não constam como a
“exposição oficial”, e por isso precisaram utilizar a porta dos fundos como entrada da
instalação até que a exposição do térreo seja montada. Mas, como diz Rolnik (1989,
p. 73), “todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas”.

6.3 Concreto

No dia em que apresento a pesquisa junto ao LAMUR, monto uma pequena


exposição, como menciono anteriormente, feita e deixada de improviso no banheiro,
com algumas das fotos que trago aqui, da Casa, do processo de construção de
Lavação, entre outras mais, mas não consigo voltar para ver se que ainda estavam.
Fui um dia conferir e a Casa se encontrava fechada. Na mesma semana, Alíria Duarte
- colega do mestrado que desenvolve a pesquisa intitulada Mapear é Preciso: arte
urbana, relações de poder e o festival Concreto na cidade de Fortaleza, cuja
orientadora compartilhamos, me manda um cartaz que anuncia a abertura do Festival
Concreto79 na Casa. Ficamos felizes, já que depois de tudo que vivenciamos durante
o primeiro ano do mestrado, onde estabelecemos uma amizade, nossas pesquisas,
que já caminhavam lado a lado e por vezes foram experimentadas e apresentadas
junto, efetivamente se encontravam naquela ocasião. Combinamos de ir juntas.

Caminhamos do Benfica até a Casa, lá chegando, encontramos várias


pessoas na calçada, esperando os portões abrirem. Chegamos pontualmente e
deparamos com o espaço fechado. Fiquei tão feliz quando em outro momento, vi
aqueles portões abertos pela primeira vez, e agora havia uma exposição, sua abertura
estava atrasada, mas nem no Jardim as pessoas poderiam esperar. Atravessamos a
rua e nos sentamos, observando o movimento da Casa pela Praça. Algum tempo

78 Processo trazido no caderno Piso Superior


79 Festival internacional de arte urbana, que em 2018 realizou sua quinta edição, organizado por
Narcélio Grud, com a participação de diversos artistas urbanos em múltiplas linguagens, com
participações locais, nacionais e de fora do Brasil, em obras que se espalham pela cidade, e nessa
última edição, se concentrou no Centro.
120

depois os portões abriram, podíamos caminhar pela parte externa, do jardim até os
fundos onde fica a Casa do Meio. A Casa perdurou fechada por alguns minutos,
enquanto era servido um coquetel. O que se anunciava como a abertura do Festival
Concreto, se revelou a abertura da exposição de Narcélio Grud, organizador e
fundador do Festival. A segunda exposição que o espaço enquanto Centro Cultural
abriga, novamente é uma exposição individual de uma pessoa que tem proximidades
com a Secretaria de Cultura de Fortaleza. A Exposição intitulada Dhamma, fica em
cartaz durante dois meses, de novembro de 2018 a janeiro de 2019.

O Concreto está em sua quarta edição, e se destaca enquanto festival de


Arte Urbana que espalha por algumas ruas de Fortaleza o trabalho de artistas locais,
nacionais e internacionais. É também conhecido por suas polêmicas, como no caso
do grafite no Farol do Mucuripe80, patrimônio tombado e em estado de abandono, ou
por oferecer cachês apenas para artistas de fora, a desvalorização de artistas locais,
faltas de diálogo e outras relações de poder. A última edição, em 2018, também
causou bastante repercussão, devido ao fato de que a organização inventou, por meio
de suas redes sociais, que traria o músico Roger Waters, anunciando dias depois, que
a presença do se daria com a exibição de um filme que tem sua participação. Vejo
essa “abertura do concreto” com a exposição individual do Grud, que não foi
anunciada, como mais um dos acontecimentos questionáveis por parte desse evento.

Se por um lado questiono a ocupação da Casa com uma exposição


individual, e as atitudes do Festival e seu organizador, preciso dizer também da
experiência que foi fruir de seus trabalhos, esculturas sonoras que muito provocam
esteticamente. São frutos de minucioso estudo, de anos de pesquisa que geram obras
de muita qualidade, do artista que é também designer, com esculturas sonoras e
ópticas em diferentes dimensões, gerando diversas sensações, com imagens e sons
que remetem ao psicodelismo, obras interativas, sem a separação entre espectador e
obra. É necessária a interação para o seu acontecimento, com provocações hápticas
(DELEUZE e GUARTTARI, 2007). Ver tudo isso do lado da Alíria foi uma grande
experiência.

80Reportagem disponível em: http://g1.globo.com/ceara/noticia/2013/11/artistas-fazem-intervencao-


em-bem-tombado-e-provocam-polemica-no-ce.html. Acesso em: 7 fev. 2018.
121

Figuras 43 e 44 – Dhamma.

Figura 43

Figura 44

Fotos: Alíria Duarte, 2018.

6.4 Casa (Im)própria

O PPGArtes organizou no final de 2018, uma exposição entre os discentes


e alguns docentes como desdobramento do Seminário Internacional das Artes e seus
Territórios Sensíveis daquele ano, a primeira exposição do Programa. Percebo que
tenho um incrível acervo de imagens, como algumas das que trago aqui, tendo ainda
122

bem mais, já que preciso dividir o lugar das imagens com as palavras e letras.
Proponho primeiramente uma mostra intitulada Fragmentos de Criação na Casa, com
algumas dessas fotografias do espaço antes da reforma, seus recortes, ruínas,
amontoados de objetos e alguns processos de criação. O tempo entre essa proposta
e a exposição foi longo o suficiente para que eu a mudasse de acordo com o fluxo da
vida.

Houve uma provocação por parte da Deisimer, para que eu pensasse na


relação entre essa Casa com as tantas casas em que vivi. Isso ficou como uma linha
do rizoma. Em uma conversa com Harley, em um bar, um amigo sociólogo que tem
interesse por questões relacionadas ao patrimônio material e imaterial da cidade, ele
me fala de uma casa no Centro, localizada na rua Franklin Távora, que foi demolida,
restando apenas o muro da rua, talvez para que vire um estacionamento, como
acontece com tantas outras casas nessa cidade. Fiz algumas perguntas e cheguei à
conclusão de que ele estava falando da primeira casa onde vivi, até cerca de três anos
de idade.

Depois, lembrei da casa seguinte, na Aldeota, onde morei até os vinte anos
de idade, também demolida, desta vez para a construção de parte da linha leste do
metrô de Fortaleza, obra que no momento encontra-se parada. Vou em busca das
fotografias dessas duas casas, no tempo em que morava nelas, encontro várias, que
retratam mais a uma infância feliz e simples nos restaurantes-casas da minha família,
que propriamente as casas, suas partes e arquiteturas, construções históricas que
dizem de uma certa temporalidade e estilo de arquitetura na cidade de outros tempos
e outros modos de fazer, construir. Proponho um trabalho com essas fotografias, de
infância e as atuais, com as casas demolidas tendo apenas os muros externos, no
que intitulo Casa (Im)própria.

A colaboração do professor Wellington Junior foi fundamental para a


montagem da obra. Era praticamente a minha primeira instalação fotográfica, e quase
a coloquei de qualquer jeito. Junto a ele fui percebendo a importância do trabalho das
cores, da ordem das fotos, de seu desenho na base expositiva, uma mesa com tampo
de vidro daquelas tradicionais de museu, onde colocamos, depois das sugestões dele,
um feltro vermelho como base, e cacos de tijolo por cima das fotografias, usando os
tijolos que tinha em casa, sobrados de uma reforma (aproveitados também na
construção de Replantio, citado no Salão).
123

É em meio ao caminhar que vou percebendo essa relação com a Casa


enquanto espaço de vida, com a cidade, assim como a relação da cidade com essas
casas históricas, seus patrimônios materiais e culturais, que tem sido o de apagar,
demolir para construir o novo, mesmo que o novo seja o vazio de um estacionamento
para abrigar mais carros, ou o da espera de uma obra do governo. Mesmo diante de
cenários por vezes desfavoráveis, é com essas Casas que vou inventando e me
reinventando como artista.

Figuras 45 e 46 - Casa da rua Franklin Távora, fotografias de Casa Imprópria.

Figura 45
124

Figura 46

Fotos: Harley Nogueira, 2017.

Figuras 47 a 52 - Casa (Im)própria.

Figura 47
125

Figura 48

Figura 49
126

Figura 50

Figura 51
127

Figura 52

Fotos: Levy Mota, 2018.


128

7 PORÃO

Figura 53 – Porão.

Foto: Hector Isaías, 2014.


129

Para o porão também encontramos, sem dúvida, utilidade. Nós os


racionalizaremos enumerando suas comodidades. Mas ele é em primeiro
lugar o ser obscuro da casa, o ser que participa das potências subterrâneas.
Sonhando com ele, concordamos com a irracionalidade das profundezas.
(BACHELARD, 1998, p. 209).

No Ceará, a estação chuvosa é chamada de inverno. É quente o ano inteiro,


e o inverno é quando a fluidez das águas desce do céu para dar um pouco de alegria
e cor ao sertão, cujo verde perece em meses de seca, por isso o nome caatinga, do
tupi, mata branca. Somos frutos da escassez, é preciso ser forte, resistir e por vezes
florir, como fazem os cactos de forma surpreendente, brotando flores em meio aos
espinhos, mesmo diante dos poucos recursos.
Mas nem tudo são flores, ou águas. A seca se faz presente em muitos
momentos do Ceará. Entre os períodos de secas mais severas, alguns se encontram
com datas importantes de nascimento e juventude da Casa. A que inicia o ciclo de
estiagens de maneira brutal é a de 1877, que fez a população de Fortaleza se
multiplicar consideravelmente em semanas. De acordo com Neves (2005), a cidade,
que possuía uma população de pouco mais de 25.000 habitantes, logo passou dos
100.000 com a chegada dos retirantes, que ocupavam as ruas em condições
degradantes, causando diversas mudanças nos comportamentos e costumes da
cidade que se pretendia moderna, civilizada, branca, e se choca com a chegada de
pessoas negras, mestiças, esfomeadas, em condições que levavam a praticar delitos,
mendicância, prostituição. Muitos morreram antes mesmo de conseguir chegar nas
cidades grandes, com seus corpos jogadas e apodrecendo pelas estradas.
Muitos na cidade padeceram de fome, com práticas que chegavam ao
canibalismo ou com a propagação de doenças, entre elas a varíola, que causou um
surto que se espalhou entre a população, matando também pessoas das elites,
fazendo Fortaleza virar um território de guerra, com corpos espalhados pelas ruas, se
decompondo a céu aberto, carregadores de cadáveres com suas carroças, além de
diversas rebeliões, saques e apedrejamentos de prédios públicos. Como medida, o
governo afasta essas pessoas da cidade, criando abarracamentos, que na seca de
décadas seguintes, se tornariam campos de concentração, localizados nas periferias
para não prejudicar o “embelezamento” que buscavam implementar no espaço
urbano, cuja população se sentia ameaçada, diante da “degradação familiar e moral”.
O governo fornecia uma peça de roupa, cuidados médicos e ração para essas
130

pessoas em condições escassas e precárias, gerando a necessidade de que eles se


organizassem em multidão, como sujeitos políticos, para lutar em busca de
melhores condições, para que pudessem pelo menos se alimentar diariamente, ou
receber pelos serviços que prestavam. O governo emprega parte desses retirantes
em obras feitas como medida emergencial, momento em que se constroem diversos
equipamentos públicos, se estrutura ruas e praças, utilizando do trabalho compulsório
e quase gratuito dessas pessoas, pagando em dinheiro e/ou com víveres para que se
alimentassem.

Buscando uma forma eficiente e segura de distribuir as rações ou os salários


aos trabalhadores, nas obras públicas da cidade, depois de várias ameaças
ao responsável pelo 1º distrito, Adolfo Herbster constrói um grande e moderno
prédio na Praça Visconde de Pelotas, objetivando racionalizar o sistema de
pagamentos (NEVES, 2005, p.123).

Essa Praça foi lugar de um dos maiores conflitos entre os camponeses e


forças do Estado. Em 1978, 6.000 retirantes se posicionam ali munidos de pedras que
eram os calçamentos das ruas, atirando contra soldados da polícia e da cavalaria, que
possuíam armas de fogo e perfurantes.
Como mencionado no Piso Superior, também no ano de 1978, Geminiano
resolve deixar seus negócios de Fortaleza e vai morar em Paris, onde conhece Rose,
com quem logo se casa. Um ano depois, com a notícia da morte de seu irmão, que
não se tem a causa entre os estudos encontrados, o Barão retorna à Fortaleza em
1979, ano que marca o fim dessa grande seca, fundando outra loja de artigos
importados com seu irmão e construindo a Casa naquele local, então zona periférica,
testemunha de tantos conflitos desses que viviam em desumanas condições.
O Barão fica muito conhecido por seus atos filantrópicos. De acordo com
Barbosa, ele sempre buscava prestar assistência aos “menos favorecidos”, buscando
inserir no mercado de trabalho ou colaborando com instituições sociais e religiosas.
“Foi um filantropo discreto. Que doava sem alarde” (NEVES, 2005, p. 51).
Mas enquanto o filantropo apreciava Paris, as ruas da cidade estavam
tomadas por essas pessoas, que gritavam socorro em meio à luta pela tentativa de
sobrevivência, mesmo que precária. Nas fotos, é possível ver a marca que carrega
seus corpos magros, debilitados, negros, maltrapilhos. Em um período que produz
teorias raciais de uma raça inferior (NEVES, 2005).
131

Figura 54 – Retirantes.

Fonte: Diário do Nordeste81.

Diante desses fatos, fica mais claro entender por que fomos o primeiro
estado a abolir a escravidão, em um território que tinha dificuldade de acolher tantas
pessoas em condições de miséria, e com mão de obra de sobra a baixo custo. Além
disso, grande parte dessas pessoas vindas do campo, eram descendentes dos negros
escravizados.
Houve uma grande ebulição do movimento abolicionista, com uma
campanha antiescravista, que junto aos jangadeiros, em 1881, fecharam o porto da
cidade ao tráfico negreiro, resistindo às imposições da polícia (GIRÃO, 1984). O
movimento foi liderado pelo jangadeiro Francisco José do Nascimento, ou Chico da
Matilde, o Dragão do Mar. Em 1882 surge o “Centro Abolicionista”, desempenhando
importante papel em prol da abolição dos negros. Após 3 anos de luta contra os
negreiros e escravistas, no dia 25 de março de 1884, é assinalado o fim da escravidão
no estado do Ceará, um ano depois da abolição em Fortaleza, que ocorreu em 1883.
Cinco anos depois, em 1888, a Princesa Izabel assinaria a Lei Áurea, abolindo a
prática, pelo menos no âmbito legal, no território brasileiro.
É fato corriqueiro ouvir que no Ceará existem poucos negros em
comparação a outros estados brasileiros. De acordo com Raimundo Girão, (id.), em

81 Disponível em: http://plus.diariodonordeste.com.br/campos-de-concentracao-no-ceara/.


132

1819, havia no Ceará uma população de 145.731 pessoas livres, e 55.439 submetidas
a escravidão, ou seja, 27,6% da população era composta por pessoas escravizadas,
o que, comparado a outros estados na mesma época, deixa o Ceará entre os estados
com um dos maiores números de pessoas exploradas cruelmente como mercadoria.
Três décadas depois, o número da população livre aumenta, e o de escravizados
diminui, um dos fatores atribuídos a isso foi a seca, ocorrida de 1845 a 1846, onde os
mais vulneráveis morrem ou são vendidos a outras províncias. Diante da escassez
material, a falta de gado e dos últimos objetos de valor, era costumeiro trocar essas
pessoas pelo valor ínfimo de uma carga de farinha. O número de cativos vai
diminuindo, somando-se ao fato da Lei do Ventre Livre, que alforriava os nascidos de
mães escravizadas, além das epidemias, óbitos, emigração e a grande seca que
perdurou de 1877 a 1879. Outras ondas de seca se seguiram no estado, entre elas a
de 1889 e 1915. Portanto não há dúvidas de que estas paredes fortemente edificadas,
que hoje acolhem quadros e outras obras de arte, têm o suor e sangue dos retirantes
e daqueles que durante um momento lamentável da história foram escravizados.
De acordo com Cerqueira (2018), a população negra escravizada atuou
firmemente por sua libertação, mas diante da impossibilidade de tal fato, demonstrava
resistência de outras formas, por exemplo, usando de suas memórias e marcas na
execução dos trabalhos em que eram forçados a exercer. Ela dá o exemplo dos
africanos ferreiros com o símbolo sankofa (Figura 55), uma variação do ideograma
adrinka. Sankofa é um pássaro africano de duas cabeças que, segundo a filosofia do
povo Akan, significa “nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou atrás”
(s/n), que segundo a autora, os colonizadores desconheciam, mas aqueles vindos do
continente africano identificavam como uma simbologia de luta, resistência e
preservação de suas histórias. Procuro pelo símbolo nos portões da Casa, mas não
encontro, até que revejo uma foto feita por uma amiga de dentro do porão enquanto
eu observava o espaço pelo lado de fora, e ali está o símbolo do pássaro, que um
junto do outro, lembra ao formato de coração (Figura 55).

Em uma das últimas visitas à Vila das Artes, quando passava pela lateral
da Casa, vejo um homem negro com uma camisa que estampa esse símbolo e o nome
Sankofa, mais um fragmento dos acasos e dos retornos (DEULEUZE, 2007) que
sempre surgem em meio ao caminhar.
133

Figura 55 - Sankofa82

Fonte: desconhecida

Figura 56 - Sankofa do Porão.

Foto: Geovanna Correia, 2014.

A Casa, feita aos moldes da arquitetura europeia, trouxe para a capital


conhecida como Terra da Luz, por ter sido uma das primeiras cidades a abolir a

82 Imagem disponível em: http://www.exaculturaljourneys.com/ghana-journeys/sankofa/.


134

escravatura, uma casa com um pavimento soterrado, de amplo espaço e planta com
divisão espacial semelhante aos demais pavimentos. A diferença é que é preciso se
abaixar para cruzar aquele, dito em Barbosa (2016) como alojamento dos criados
durante parte da história da Casa, dos corpos que suam para manter o requinte e a
perfeição dos espaços visíveis, dos que preparam as refeições e mantêm o grande
pomar que a baronesa admirava. É possível ver diversos armadores de rede ao longo
do cômodo. Em seu projeto inicial, pode ter sido construído para os corpos
escravizados, no espaço que remete a uma senzala, que faz as pessoas mais
sensíveis sentirem calafrios ao adentrar.

Na obra Estandarte (2018), Clebson Oscar83 aborda o assunto, do qual começo


a escrever antes de ver a exposição, parte do Ciclo Imagem e Espaço da quarta turma
do Curso de Realização em Audiovisual, que ocupa a Casa do Meio. Uma parte da
instalação é composta de post-it pregados na parede com inscrições e estatísticas
acerca da negritude e da escravidão no Ceará, como “Terra da Luz”, “Democracia
Racial”, “jovens, negros e pobres é o perfil do homicídio no Ceará, “Não existem
negros no Ceará. Eles dizem”, “35.000 pessoas escravizadas no Ceará em 1884”
(Figuras 57 e 58).

Figuras 57 e 58 - Estandarte, de Clébson Oscar.

Figura 57

83 Atualmente o artista utiliza o nome Clebson Francisco.


135

Figura 58

Foto: Salvia Braga, 2018.

7.1 Vila Viva

Figura 59 - Vila Viva.

Foto: Pedro Pepss, 2017. Arquivo: página do Facebook Vila Viva.

A quarta turma da EAV presencia momentos de grandes dissensos e


disputas na Vila das Artes. Em 2017, o prefeito Roberto Cláudio é reeleito, iniciando
uma nova gestão com diferentes parcerias e aliados. Nesse momento, vários
funcionários da instituição são arbitrariamente demitidos, a direção e as coordenações
das Escolas são trocadas em formato de cargos comissionados de confiança, sem o
estabelecimento de um diálogo prévio com as partes que constituem o equipamento.
O conselho gestor é substituído, em uma configuração onde os nomes indicados não
136

mantinham proximidade com a Vila das Artes e/ou com seu processo de construção,
alguns nem mesmo se relacionavam com a cidade de Fortaleza. Não se conversou
com alunos, professores, membros anteriores do conselho, ou com os fóruns de
linguagens da cidade.

São anunciados os nomes de Eliza Gunther na direção, Gilano Andrade na


coordenação da Escola de Dança e Nirton Venâncio na coordenação da Escola de
Audiovisual. No conselho, entre os nomes, pessoas que não frequentavam a Vila,
além de indicações para contribuição no projeto pedagógico de nomes como Romeu
Duarte, arquiteto responsável pela reforma da Casa, e Neuma Figueiredo, da Casa
Cor. Abaixo, os nomes anunciados no site da SECULTFOR84:

Manoel Rangel (presidente da Ancine), Rosenberg Cariry (cineasta); Flávio


Sampaio (professor, coreográfo e pesquisador de dança); Gilmar de Carvalho
(jornalista, escritor e pesquisador na área da cultura); Paulo Ess (professor, ator
e diretor). Também estão relacionados para contribuir para a construção do
projeto pedagógico da Vila das Artes a coreografa Dora Andrade (diretora da
Edisca); Dodora Guimarães (pesquisadora, curadora das artes visuais e
produtora); Romeu Duarte (arquiteto), Neuma Figueiredo (arquiteta), Paulo
Linhares (presidente do Instituto de Arte e Cultura do Ceará), Gylmar Chaves
(escritor), Fausto Nilo (arquiteto e compositor), Humberto Cunha (professor e
pesquisador de direitos culturais), Preto Zezé (presidente nacional da Central
Única de Favelas – Cufa Global), Hélio Leitão (advogado) e Descartes Gadelha
(artista plástico, pintor, desenhista, escultor e músico), além de representantes
da Secretaria Municipal de Educação (SME), Secretaria da Ciência, Tecnologia
e Educação Superior do Estado (Secitece), Secretaria da Educação do Estado
do Ceará (Seduc) e da Fundação de Ciência, Tecnologia e Inovação de Fortaleza
(Citinova).

Rubim (2007) aponta algumas palavras que condensam as políticas


culturais no Brasil, como o autoritarismo, a descontinuidade, desatenção, caráter
tardio, paradoxo, impasses, desafios. Em decorrência de um perfil autoritário e elitista,
tornou-se mais difícil o desenvolvimento da cultura em território nacional, que em suas
primeiras ações, se direcionava às questões patrimoniais através do Sphan, que
depois se tornaria IPHAN, tendo as políticas culturais de um modo mais expandido
um caráter tardio, em um país que viveu mais de vinte anos uma ditadura militar e
suas muitas consequências.

84 Disponível em: https://www.fortaleza.ce.gov.br/noticias/secultfor-anuncia-nova-direcao-da-vila-das-


artes?fbclid=IwAR1qqVFRUzRnUBOqr0T4Qoa_1XAZVL9toeQ9WemLF6l3hCSSotxnyWODU3g.
Acesso em: 7 fev. 2019.
137

Com o fim da ditadura, cria-se o Ministério da Cultura, em um cenário de


transição e redemocratização marcado por muitas ambiguidades, que vão das leis de
incentivo fiscal no governo Sarney (1985-1989) que repassa para o setor
mercadológico o financiamentos para a cultura, conferindo poderes de decisão ao
setor, interferindo no que é produzido, passando em seguida para um desmonte que
converge na extinção do MinC e de diversos órgão do setor cultural no governo de
Fernando Collor (1990-1992), e a continuidade das leis de incentivo fiscal nos
governos posteriores, com o desenvolvimento da Lei Rouanet, que de acordo com
Rubim (2007), tem se tornado componente vital para o financiamento da cultura no
Brasil, embora contenha traços neoliberais que privilegiam o mercado e seus
interesses, foi um mecanismo propulsor da retomada do cinema brasileiro, estagnado
durante o governo Collor.

Com a gestão de Lula na presidência a partir de 2002 junto ao Ministro da


Cultura Gilberto Gil, o que se encontra é um cenário de muitos desafios, apontados
pelo autor (RUBIM, 2007, p. 29):

[...] relações históricas entre autoritarismo e intervenções do estado na


cultura; fragilidade institucional; políticas de financiamento da cultura
distorcidas pelos parcos recursos orçamentários e pela lógica das leis de
incentivo; centralização do Ministério em determinadas áreas culturais e
regiões do país; concentração dos recursos utilizados; incapacidade de
elaboração de políticas culturais em momentos democráticos etc.

Gilberto Gil reivindica um conceito de cultura mais alargado, e retoma o


papel ativo do Estado nas políticas culturais, olhando para as culturas populares, para
a economia criativa, ampliando ações e conceitos, como o de cinema, que se expande
para o audiovisual, cultura digital e outras mídias. O Ministro coloca o Brasil em um
cenário de importante posição política na luta pela diversidade cultural, na interligação
entre as esferas federais, estaduais e municipais através do Plano Nacional de Cultura
e do Sistema Nacional de Cultura, amplia o debate com a sociedade, que participa de
escolhas, como exemplo na criação de câmaras setoriais que estabelece o debate
com criadores e outras instâncias nas políticas de cultura. As leis de incentivo são
reformuladas, cria-se uma política de concorrência de projetos, de editais. É dada uma
capilaridade, em busca pela correção dos desequilíbrios regionais, como no caso da
138

inserção dos Pontos de Cultura, polos de criação e produção cultural continuada,


espalhada por diversas localidades do país. Diante dos cenários favoráveis, é
contínua a presença também de desafios, como a ausência de uma política
consistente de formação de pessoal qualificado para atuar na organização da cultura,
e no orçamento, que mesmo triplicado, continua escasso diante de outros setores
governamentais (RUBIM, 2007).

Em carta escrita pelo Fórum de Audiovisual (201785) durante a ocupação,


remete-se ao fato de que, durante a construção da Vila das Artes, um novo modo de
fazer política, mais participativo, se iniciava na cidade86, com a contribuição popular e
a inserção de conselhos, fóruns de linguagens artísticas, que lutaram por uma maior
efetivação das políticas culturais na cidade, momento em que elas começam a melhor
se configurar, e a Vila das Artes, com suas Escolas e demais espaços de formação,
vai se construindo de maneira democrática, horizontal e transparente. Dez anos
depois, a Secretaria de Cultura ignora as vozes dos que fazem e são a Vila,
intercedendo de forma violenta e antidemocrática através de práticas autoritárias e
excludentes, sem um debate, prejudicando as estruturas já desenvolvidas, os cursos
e formações que estavam acontecendo naquele momento, desestabilizando e
causando transtornos entre os que lá trabalham ou trabalhavam, bem como
estudantes, familiares e todo o entorno que um equipamento como a Vila abrange.

No dia 2 de fevereiro de 2017, 10 anos depois da ocupação da primeira


turma junto a diversos movimentos, os estudantes, artistas, familiares de alunas e
alunos da dança, professores, organizações sociais e culturais da cidade, ocupam a,
como eles denominam, Ex-Casa do Barão de Camocim de resistência e arte,
iniciando como na primeira ocupação, com uma lavagem da Casa. Eles realizam uma
vasta programação gratuita diariamente, com aulas abertas, oficinas, saraus, exibição
de filmes, em um movimento denominado Vila Viva, que “(...) surge com a pretensão
de ampliar o debate público acerca da situação em que o espaço se encontra na sua

85Disponível em: https://www.facebook.com/vilavivafortaleza/. Acesso em: 2 fev. 2019.


86A Vila das Artes foi criada no momento da gestão de Lula como presidente e de Gilberto Gil como
Ministro da Cultura. No contexto municipal, a prefeitura também passava pela gestão do Partido dos
Trabalhadores, com o mandato de Luizianne Lins.
139

relação como o poder público, além de promover espaços de encontros com/para a


cidade” (VILA VIVA, 2017)87.

As duas ocupações, de 200788 e de 2017, dão início em 2 de fevereiro, dia


em que Geminiano Maia nasce, dia de Iemanjá nas tradições do candomblé e
umbanda, e lembrando as águas do orixá, iniciam com a lavagem dos espaços antes
estagnados. Hoje, momento em que termino de revisar essas linhas fazendo os
últimos ajustes para a defesa dessa dissertação, é também 2 de fevereiro, dia em que
muitos estão na beira do mar, saudando essa mãe Iemanjá, dia de lavações,
ocupações, do orixá da geração, do cuidado, do amor fraterno, materno, de
nascimentos e encontros de acasos.

Que as águas um dia consigam lavar todo esse universo que circunda essa
Casa e essa instituição, tomada mais que por fragmentos, sujeiras, fantasmas,
impossibilidades, problemas que têm uma profunda raiz nos modos como tem se dado
as políticas culturais em um panorama não só local, mas que se estende para todo o
território nacional, onde a cultura nem sempre é entendida como uma base
fundamental para o desenvolvimento sustentável em suas variadas instâncias.

[...] a Vila Viva surge de um embate em que a máquina do Estado não entende
que a arte não é um meio no qual se enquadra, pois o entendimento do
Estado com a diversidade cultural é finito a figuras que não tateiam nem um
terço do que essa cidade é e vive. (VILA VIVA, 2017).

Foram muitas lutas e embates traçados, algumas conquistas, como a


reversão de parte das demissões e a troca da indicação do coordenador do curso de
audiovisual, ficando no cargo Kennya Mendes, que era assistente de coordenação da
EAV na gestão anterior. A nova gestão da Vila provoca muitas mudanças em sua
estrutura. A diretora, Eliza Gunther, tem uma relação de proximidade com as
instâncias governamentais, já tendo trabalhado na SECULT na gestão das Secretárias

87 Disponível em: https://medium.com/@vilaviva/a-vila-viva-38c12ac2db1a?fbclid=IwAR0-


XTtWeBE7aMaqygPiRhLBprKmlVq7ehtZbLLuJRDHeDgSE70YI89Q4aY. Acesso em: 2 fev. 2019.
88 Ocupação ocorrida no momento inicial do Curso de Realização em Audiovisual, quando ainda não

havia sede e o alunos da primeira turma ocuparam o casarão que hoje corresponde à sede principal
da Vila das Artes, localizada na rua 24 de Maio.
140

de Cultura Violeta Arrais e Cláudia Leitão, foi coordenadora do Instituto Dragão do


Mar, Diretora do Museu da Imagem e Som e Diretora do Theatro José de Alencar.

A gestão da Diretora vai até agosto de 2018, quando Mileide Flores assume
o cargo do equipamento. Mileide é conhecida por sua militância na Literatura do
Estado, tendo organizado edições da Bienal do Livro no Ceará e ocupado o cargo de
Coordenadora de Políticas de Livro e Leitura da SECULT. Apesar de seu desejo, a
biblioteca do equipamento ainda não demonstra uma ocupação efetiva dentro de toda
a potência que poderia oferecer, diante de diversos exemplares lá dispostos, poucos
alunos acessam o equipamento e seus materiais.

Christiane de Lavor89, Assessora de Comunicação da Vila, deixa seu cargo


em junho de 2017, e escreve em seu perfil pessoal em uma rede social, um relato do
qual trago alguns trechos:

Hoje é meu último dia na Vila das Artes! Aproveito aqui para fazer uma
reverência a todos que aqui estiveram antes de mim, principalmente aos que
fizeram dela o que... é, ou foi (!?). Reverencio aos que ocuparam uma
estrutura que não tinha estrutura e que a fizeram existir e ser um equipamento
de formação indispensável para a cidade. Reverencio aos que lavaram as
suas escadarias, aos que se amarraram em árvores, aos que estiveram nos
gabinetes, nas salas, nas discussões, nos embates, nas cobranças, nas
exigências, na construção de sentidos, na luta para construir um espaço que
nasceu democrático, nasceu da necessidade de uma cidade, que nasceu,
literalmente da luta.
[...]

O que mais marcou? Acho que perceber, no modelo das escolas, formatos
inclusivos, vanguardistas, e, especialmente que é possível pensar em
formação artístico-cultural de forma ousada, humanística. Me marcou o fato
de entender que crianças podem dançar, sejam elas gordas, magras, ricas,
pobres, brancas... e que é saudável a convivência de todas elas em um
mesmo ambiente; que elas não precisam se engalfinhar para serem primeiras
bailarinas; que lhe são dadas condições para se tornarem grandes bailarinos
se quiserem, mas que isso não é o mais importante. Que as crianças e jovens
dessa escola de dança não precisam se tornar artistas tecnicamente
perfeitos, nem fazer regimes absurdos para estarem dentro de um padrão.
Que existia um pensamento de que professores devem ser bem pagos,
principalmente quando não dispõem de determinados direitos e garantias
trabalhistas. Isso se chama reconhecimento, generosidade, gratidão. Isso se
chama acreditar em pessoas e valorizá-las, isso significa ir na contramão da
maioria, do que está posto, do que é tido como normal.
[...]

89Disponível em: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1806975749329143&set=pb.100000502


066726.-2207520000.1549040479.&type=3&theater. Acesso em: 2 fev. 2019.
141

Vejo uma nova Vila nascer, e surgem novos pensamentos, novos


paradigmas. Vejo pessoas se indignarem com o valor pago aos professores,
e trabalharem para reverter isso, vejo professores terem seus salários
diminuídos, pessoas obrigadas a dar "bom dia" para os que lhe são
hierarquicamente superiores, pessoas sendo silenciadas à custa de seus
empregos, vejo brotar um modelo ultrapassado que pensa a formação em
dança com a busca por bailarinos esquálidos e de técnica apurada, muito
mais do que em formar seres humanos sensíveis, capazes de provocar
transmutações positivas no mundo. Vejo uma grande preocupação com a
forma, com a manutenção das aparências. Vejo ruir um modelo que
procurava abarcar a cidade, seus artistas e suas necessidades, mesmo
diante de condições nem sempre, ou quase nunca favoráveis. Vejo pessoas
aceitarem fazer o jogo da política tradicional, do velho toma lá dá cá, da
aparelhagem, da troca de votos por cargos [...].
A Vila que vi quando aqui cheguei não existe mais. Certamente a alternância
de poder é salutar, mas quando ela se faz necessária [...] (LAVOR, 2017).

A turma, que acompanhou e participou do movimento Vila Viva se uniu


também em busca de mudanças para a Escola, conseguindo conquistar alguns
direitos, como o de participar de escolhas em relação ao quadro de educadores do
Curso, o que os levou a indicar artistas como Michelle Matiuzzi e Pêdra Costa. A última
realizou junto à turma o evento Ocuprobarão, parte do módulo que propôs, com sua
performance Solange, tô Aberta e de Edilson Militão, Abate. Nesta última, o artista
caminha de saia, peito desnudo e um balde metálico na cabeça, dos fundos da Casa
até a escadaria do jardim, onde se posiciona e derrama sob seu corpo o conteúdo do
balde, sangue de boi,

[...] exalando o cheiro forte do líquido vermelho e podre que escorre pelo seu
tronco, suas vestes, suas pernas, entranha os seus cabelos, desce os
degraus brancos. Sangue que lava e atualiza a ferida jamais suturada. O
cheiro do sangue podre evoca a morte e a repulsa, o nojo ao fétido e à
pobreza de mais de 100 mil retirantes famintos que chegavam à capital entre
os anos de 1877-1880 (GADELHA, 2019, p. 200).
142

7.2 Ele Não

Edilson Militão teve um maior alcance de seu trabalho depois, com o do


design gráfico que fez com os dizeres “Ele não” em fundo preto e letras coloridas
(figura 60), que circulou pelas redes sociais e se espalhou em camisas, bandeiras e
adesivos na eleição presidencial de 2018, em manifesto à candidatura de Jair
Bolsonaro, ex-militar de extrema direita que traz em seu discurso a intolerância, o
racismo, a misoginia, admiração pela ditadura militar e suas práticas como a tortura.

O Nordeste, diferente do restante do país, votou em sua maioria no


candidato de oposição no segundo turno, o que não foi o suficiente para impedir que
ele vencesse as eleições, assumindo a presidência do Brasil em 2019, depois de uma
série de acontecimentos que ferem à democracia, como o impeachment de Dilma
Roussef, e culminam com uma onda antipetista que vê Bolsonaro como “mito” e
“salvador” da pátria.

O novo presidente demonstra em suas ações e declarações, o desprezo


pela cultura e artes, pela natureza, pelos povos originários, pelos trabalhadores,
principalmente os mais pobres,
que diante de suas leis e
Figura 60 – Ele não.
reformas, perdem seus direitos
mais básicos, enquanto os
territórios brasileiros são tomados
por lama tóxica, no caso do
rompimento da barragem de
Brumadinho, e fogo na Amazônia e
no Pantanal. Os alimentos são
tomados pelos tantos venenos a
mais liberados, e a desigualdade
social, a pobreza, a fome, Fonte: Edilson Militão.

assolam cada vez mais o país,


junto à precariedade dos serviços públicos, onde são cortados orçamentos para os
gastos mais básicos e necessários aos que mais necessitam, como educação e
saúde.
143

Vejo o porão como um lugar de possibilidade de falar de todas essas


questões, enterradas, por baixo das belas e ricas estruturas, mas que são a base para
o modo como elas se edificam, se erguem, por isso mesmo, necessárias de serem
colocadas para fora, à luz dos fatos, pensando nas diferentes dimensões desse porão,
que é da Casa, da cidade, do Brasil.

7.3 In(ter)venções com o Porão

O porão abriga 3 proposições instalativas na exposição Materialidades/


Ativações/ Deslocamentos, são elas: Se Essa Rede Falasse, de Hylnara Vidal, Onde
Está Bakunin, de Alex Fedox, e Debande, de Duopla. Na primeira, foram instaladas
redes, onde estavam costuradas almofadas que emitiam áudios do arquivo da artista,
de entrevistas feitas com idosos de Novo Oriente, sertão do Ceará onde ela nasceu e
residiu (Figura 61).

As redes, já bem usadas, foram emprestadas por aqueles que falavam.


Descíamos as escadas, chegávamos no porão, abaixamos um pouco para não bater
a cabeça naquele teto rebaixado, e deparamos com o cheiro de café, a iluminação
das lamparinas, e as redes nos convidando a deitar, e quando deitamos, ouvimos
aquelas vozes com conversas boas a acalentar, a lembrar das narrativas trazidas por
nossos avôs e avós. Os áudios nos levavam a outro lugar, ao encontro com o outro
que às vezes fazia encontrar conosco, nos encontros de nossas vidas com narrativas
e vivencias semelhantes.

Ao mesmo tempo, o ambiente do porão não se mostra tão acalentador


fisicamente. É quente e asfixiante, e a sensação vai piorando à medida em que
avançamos até o ultimo cômodo do recinto subterrâneo. Não consegui passar muito
tempo na última parte, ouvindo os áudios de Onde Está Bakunin (Figura 63) justo por
essa sensação de asfixia, clausura, medo. Nas paredes, manchas de tinta vermelha
e marcas de mão da mesma cor, feitas por estudantes da primeira turma, que segundo
Rubia Mércia (2019), gravaram um vídeo naquele porão, lembram marcas de mão
ensanguentadas a pedir socorro.
144

Atualmente o porão se encontra fechado como já foi mencionado, objetos


impedem sua passagem. Antes da abertura do Salão de Abril, algumas pessoas
trabalhavam por lá, cuidando das instalações elétricas e de alguns reparos. Entro ali
e consigo alguns materiais para a construção da espiral que estava fazendo para o
Replantio. Utilizo algumas cerâmicas dos banheiros e pisos que já não existem mais.
Um dos grupos de artistas que participa do Salão com a Instalação Ossuário,
composto por Diogo Braga, Thales Luz e Wellington Gadelha, solicitou sua disposição
no Porão, mas acabaram utilizando um dos salões principais, devido ao fato, segundo
um dos artistas, de que mais nenhuma obra estaria ali, então optaram por dispô-la
junto aos outros trabalhos, de forma que a instalação não ficasse perdida, deslocada
em meio ao grande pavimento semienterrado.

Figura 61 - Se Essa Rede Falasse.

Foto: Gandhi Guimarães, 2014.


145

Figura 62 - Debande.

Foto: Gandhi Guimarães, 2014.

Figura 63 - Onde Está Bakunin.

Foto: Gandhi Guimarães, 2014.


146

7.4 Porta dos Fundos

Em meio ao processo de tombamento da Casa, encontro uma ordem de


despejo (Figura 64) direcionada à família que se origina do casal de barões. Diante
da falta de pagamento do IPTU durante anos, o documento alega que a ação de
utilidade pública tem o intuito de que a Casa exerça sua função social, integrando-a
ao patrimônio do Município de Fortaleza.

Figura 64 – Ordem de Despejo

Fonte: Processo de Tombamento, SECULTFOR.

Trago este fato junto ao documento para que fique bem claro o quanto essa
Casa não pertence mais ao Barão, à Baronesa, nem mesmo à sua filha, nem a seus
netos e bisnetos. Não é porque essa Casa hospedou o imperador Dom Pedro II, como
alegam Carmem e Olga Barbosa (PREFEITURA DE FORTALEZA, 2014, p. 17),
pedindo “sua preservação em nome do julgo das interpretações das concepções
147

aristocráticas”, mas justamente pelo modo como a Casa tem conseguido se libertar
dessa origem colonial e aristocrática, de como ela tem se reinventado a partir dos
fazeres artísticos que mobiliza e acolhe.

Pesquisar é um movimento sem fim. Quanto mais nos encontramos, nos


afetamos e cavamos, mais elementos temos para encontrar, e ainda há tanto para
falar. O “habitante apaixonado, aprofunda o porão cada vez mais, tornando-lhe ativa
a profundidade” (BACHELARD, 1998, p. 121).

No dia 31 de janeiro de 2019, vou à casa ver a abertura da exposição


Lavadô, de Leo Silva, que trago no Piso Superior com mais detalhes. Lá, encontro
Rúbia90 e pergunto de experiências da primeira turma, da qual ela participou, com
aquela Casa. Ela me fala que não conseguiram entrar efetivamente ali, mas, como
aconteceu conosco, puderam ocupar, pelo menos em parte, a Casa durante as
apresentações do Ciclo Imagem e Espaço. Nos fundos da Casa havia uma lavanderia,
onde aconteceu uma performance de lavagem de dinheiro do Barão, em que Euzébio
Zloccowick lavara moedas antigas, interpretando o Barão.

Leo Silva colhe diversos objetos encontrados na rua, lixos que encontramos
também nas lagoas e outras fontes de água em diversas partes da cidade. Ele coloca
esses objetos dentro de um garrafão de água de 20L, caminha até o piso superior, no
banheiro onde aconteceu o banho de Lavação, e despeja os objetos em seu corpo.
Faz em seguida a Purificação, nome que dá à performance, jogando sais em seu
corpo, os mesmos tipos de sais utilizados para “purificar” a água adicionada de sais,
envasada para o consumo humano, muito vendida atualmente no lugar da água
mineral, pois oferece custo e preços mais baixos.

90 Rubia Mércia, já citada anteriormente, ex-aluna e ex-coordenadora da EAV.


148

Figura 65 – Purificação.

Foto: Jaqueline Peres, 2019.

Um dia, resolvo ir à SECULTFOR com a proposta de finalizar essa pesquisa


com uma mostra, uma exposição coletiva que reverbere a relação das diversas
pessoas que criaram e lutaram pela existência e resistência, ou (re)existência desse
espaço.

Norma Paula, Coordenadora de Ação Cultural do equipamento, diz que


após a exposição de Grud, a Casa comportará uma mostra do memorial Sinhá
D’Amora, uma pintora cearense de Lavras da Mangabeira, que casou como o escritor
carioca Amora Maciel, de quem adotou o nome artístico, e residiu no Rio de Janeiro.
Estudou desenho e pintura na Escola Nacional de Belas Artes, no Brasil, e depois na
Itália (OPOVO91, 2018).

Ao chegar à abertura da exposição Aguadô, vejo umas pessoas saindo da


Casa e entrando em um carro com um quadro na mão. Dias depois, já tendo visitado
a exposição, percebo que era uma cópia dos retratos de Rose e Geminiano, os
Barões, que em uma ambientação com mobílias clássicas e tapetes, davam boas-
vindas a quem entrava no salão com um ar de requintada cafonisse. Parecia que os

91 Disponível em: https://www.opovo.com.br/jornal/dom/2018/02/sinha-d-amora-a-historia-de-uma-


artista.html. Acesso em: 9 dez. 2018.
149

Barões estavam recebendo os visitantes para aquela exposição, que seria dos seus
agrados.

O que esse tipo de pintura, de modelo representativo e burguês, tem de


relação com esse equipamento que se origina de tanta luta, em combate a essas
hierarquias nobiliárquicas nesta cidade? Os modos de se fazer arte no Brasil estão
sendo retomados por aqueles de quem foram tomados, os negros, os índios, as
mulheres, os pobres, que estão resgatando seus poderes e se reinventando com eles.

Leo diz que realizar esse trabalho que fez com a Casa, assim como a
experiência que teve com a EAV, lhe alertou para diversas questões como artista,
ativista, etc., em especial de se perceber racializado, “[...] inclusive quando se percebe
dentro de um espaço de exposição que determina a sua entrada pela porta dos fundos
de uma casa que vai receber a exposição de uma sinhá. Isso é um absurdo.” (SILVA,
2019).

Quando a Casa chama uma artista sem nenhuma relação com o


equipamento, nem mesmo com seus fazeres e modos pela terceira vez consecutiva
quando da abertura do equipamento como Centro Cultural, provoca-me um
desconforto, que não é um desconforto só. É junto com o de Leo e com os outros
tantos ocupantes virtuais da Casa, que poderiam ocupá-la, mas que encontram
impossibilidades diante dos trâmites e poderes governamentais, em um momento
politicamente delicado, que tem atingido esse equipamento e gerado mudanças
profundas que aqui nesse porão podem ser vistas, mesmo diante da pouca luz, em
meio às sombras e nas entradas e saídas pelas portas dos fundos.

Que as água de Aguadô ou das lavações, ou mesmo das goteiras da chuva,


que vêm de cima, das partes altas, que motivaram a instalação das caixas d’água ali
próximo, possam descer e lavar as estruturas de poder e a hierarquia que continuam
tentando colonizar a Casa, as Artes, a Vila, a Cidade. Que possamos sempre lavar
através de nossos fazeres e nossas luzes, que, mesmo pequenas, se sobressaem em
meio à escuridão. E que esses lampejos se multipliquem mais e mais, afinal, Escolas
e instituições como a Vila das Artes e a Casa fazem isso, que mais luzes, que se
inventem, se espalhem e brilhem na escuridão dos porões, das sombras e zonas
opacas, mas plenas de possibilidades (JACQUES, 2012).
150

Buscando levantar algumas pistas dos questionamentos trazidos nessa


caminhada, penso que a Casa tem se (re)inventado nos últimos 12 anos, quando
passa a ser patrimônio público. Mesmo que por vezes vazia, desativada, à espera,
mas já estabelecendo uma relação com as artes, com a Vila, com as resistências,
reafirmando a relação com a cidade, que tem desde os primórdios. Embora por muito
tempo tenha sido símbolo de status, poder e posse de uma determinada família
pertencente a uma camada aristocrática e burguesa, agora suas portas abrem, e
todos podem entrar.

Nem sempre é o que acontece, já que, para as pessoas, instituições,


Estado, nem todos são todos, e o conceito de público se torna relativo. Continua
segregando as diferentes esferas da sociedade, quando uns podem frequentar um
determinado espaço e quando uns frequentam e utilizam determinadas instâncias por
não terem outra opção, como é o caso da educação básica e saúde pública, que
deixam a desejar na maior parte dos casos no Brasil.

Na última visita à Casa, quando fui ver a abertura de Aguadô, vou até a Vila
com minhas filhas tomar água, já que lá há um bebedouro disponível. Próximo a mim,
um grupo de jovens caminha. Parecem voltar de um jogo ou treino de futebol ou outro
esporte do tipo, cerca de cinco rapazes e uma moça, trajes informais, a pele mais
escura que a minha e de minhas filhas. Entro no recinto, quando vejo, eles sendo
barrados pelo guarda da Vila, que pergunta o que eles vão fazer. Eles, como eu, estão
indo beber água. Paro e digo a eles que podem entrar, que aquele é um espaço
público. O guarda então fala para entrarem de dois em dois. A situação faz emergir
diversas novas questões, como: um espaço cultural, público para quem? Quem somos
nós que podemos usufruir desses fazeres, saberes, que não somos barrados nas
portas de instituições como aquela? Que medo se construiu, historicamente, em
relação a ver pessoas, jovens, negras, talvez pobres, em grupo? É o mesmo medo e
repugnância que afetou a população de Fortaleza há décadas atrás, e que construiu
mecanismos para afastar certa parte da população para longe da zona central da
cidade, assim como para longe de certas instituições.

Apesar desses fatos, a Escola tem agregado diferentes pessoas, de


diversos bairros da cidade e até de outros municípios, possibilitando esse acesso,
mesmo diante de diversas dificuldades. Para as e os estudantes e familiares da Escola
de Dança, há uma política de custeio de transporte para que possam ir às aulas. Na
151

Escola de Audiovisual, além de não ter nenhum auxílio do tipo, as aulas acontecem à
tarde, o que dificulta o acesso para muitas pessoas, pela dificuldade de conciliar a
Escola, trabalho e outros estudos. Então, essa dimensão pública vai se restringindo.
Apesar disso, para quem consegue acompanhar as aulas, a Escola abre diversas
portas e possibilidades de fazeres e aprendizados, encontros, relações, reinvenções
de si e do mundo.

A Casa, no momento em que escrevo, não consegue se efetivar como


espaço convergente da Vila das Artes, pelo menos nas últimas atividades que acolhe,
mas se mostra como um traço da luta política contínua, na busca para que esses
desejos de expansão e efetivação possam se legitimar.
152

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158

ANEXO A

Planta da Casa Térreo

Planta da Casa Piso Superior


159

Planta da Casa Subsolo (porão)


160

ANEXO B

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