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histórias de doenças

percepções, conhecimentos e práticas

Sônia Maria de Magalhães • Leicy Francisca da Silva


Roseli Martins Tristão Maciel
(Organizadoras)
Sônia Maria de Magalhães é
professora na Faculdade de História
e no Programa de Pós-Graduação em
História da Universidade Federal de
Goiás (UFG). É doutora em História
pela Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho (UNESP).
Realizou Estágio pós-doutoral no
Programa de História das Ciências
e da Saúde da Casa Oswaldo Cruz
(COC-Fiocruz). É autora dos livros
Males do sertão: alimentação, saúde
e doenças em Goiás no século XIX
e a Mesa de Mariana: produção e
consumo de alimentos em Minas
Gerais (1750-1850).
Leicy Francisca da Silva é
doutora e pós-graduada em história
pela Universidade Federal de Goiás
e professora no Departamento de
História da Universidade Estadual
de Goiás. Desenvolve pesquisa sobre
a história da saúde e das doenças,
com ênfase na história da lepra e das
instituições de assistência médica e
social em Goiás.
Roseli Martins Tristão
Maciel  é professora do curso de
História e do Programa de Pós-
graduação  latu sensu  Políticas
Públicas e Dinâmicas Territoriais
da Universidade Estadual de Goiás
(UEG). É doutora em Políticas
Públicas pela Universidade Federal
ISBN 978-85-7939-557-4
do Rio de Janeiro (UFRJ).  Faz
parte do GT História da Saúde e das
,!7II5H9-djffhe!
Doenças - Seção Regional Goiás.
histórias de doenças
conselho editorial
Ana Paula Torres Megiani
Eunice Ostrensky
Haroldo Ceravolo Sereza
Joana Monteleone
Maria Luiza Ferreira de Oliveira
Ruy Braga
histórias de doenças

percepções, conhecimentos e práticas

Sônia Maria de Magalhães


Leicy Francisca da Silva
Roseli Martins Tristão Maciel
(Organizadoras)
Copyright © 2018 Sônia Maria de Magalhães, Leicy Francisca da Silva e
Roseli Martins Tristão Maciel.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de


1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Edição: Haroldo Ceravolo Sereza


Editora-assistente: Danielly Teles
Edição de projetos digitais: Marilia Chaves
Projeto gráfico e diagramação: Jean Ricardo Freitas
Capa: Mari Ra Chacon Massler
Assistente acadêmica: Bruna Marques
Revisão: Alexandra Colontini
Imagem da capa: The Doctor, pintura de Luke Fildes, 1891

Esta obra foi publicada com apoio da Fapeg.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

H578

Histórias de doenças [recurso eletrônico] : percepções, conhecimentos e práticas / organização Sônia Maria de Magalhães
, Leicy Francisca da Silva , Roseli Martins Tristão Maciel. - 1. ed. - São Paulo : Alameda, 2018.
recurso digital : il. ; 4 MB

Formato: ebook
Modo de acesso: world wide web
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7939-557-4 (recurso eletrônico)

1. Doenças - Brasil - História. 2. Saúde pública - Brasil. 3. Livros eletrônicos. I. Magalhães, Sônia Maria de. II. Silva,
Leicy Francisca da. III. Maciel, Roseli Martins. Tristão.

18-50299 CDD: 614.4281


CDU: 614(81)(09)

ALAMEDA CASA EDITORIAL


Rua 13 de Maio, 353 – Bela Vista
CEP 01327-000 – São Paulo, SP
Tel. (11) 3012-2403
www.alamedaeditorial.com.br
Sumário

11 Prefácio

15 Caça aos mosquitos: as ações e medidas contra a febre


amarela no começo do século XX em Fortaleza
Ana Karine Martins Garcia

35 “Comer, Curar e Rezar”: a alimentação, a doença e a cura na


capitania de Goiás
Cristina de Cássia Pereira Moraes

49 Crime e loucura: o louco infrator nos processos judiciais


Éder Mendes de Paula

69 A descoberta do parasita endoglobular da doença de Carrión


(1903 – 1913)
Eduardo Sugizaki
Leonardo Contart Silva
Dowglas Marques de Santana

95 Tradições científicas e a construção do saber médico:


proposta de leitura das teses médicas do século XIX
Jean Luiz Neves Abreu

113 As instituições de amparo à infância em Goiás: higiene,


saúde e educação (1930-1964)
Leicy Francisca da Silva
137 No sertão do Piauí: doença, tratamento, óbito e sepultamento
de um coronel
Lena Castello Branco

151 Saúde e doenças na Colônia Blasiana, Santa Luzia, GO,


1881-1896
Mário Roberto Ferraro

167 Doença repugnante entre os militares do reino e ultramar


(Portugal e Brasil – séculos XVIII e XIX)
Mônica de Paula Age

185 O bom governo dos espaços e a assistência aos enfermos na


fronteira oeste da América Portuguesa (1727-1808)
Nauk Maria de Jesus

207 Sertão, saúde e identidade em Goiás


Noé Freire Sandes

221 A lembrança dos esquecidos: o acervo fotográfico dos


internos do Asilo São Vicente de Paulo na cidade de Goiás
Rildo Bento de Souza

247 A Comissão Rondon no noroeste do Brasil e sua atuação


médico-militar: trabalhadores, malária e propaganda (1907-
1915)
Robson Mendonça Pereira

267 A lepra entre a religião e a medicina


Roseli Martins Tristão Maciel

289 A medicina pioneira: protestantismo e prática médica na


expansão da fronteira em Goiás na primeira metade do
século XX
Sandro Dutra e Silva
Heliel Gomes de Carvalho
Carlos Hassel Mendes da Silva
315 Os depoimentos e o cotidiano da Colônia de Itanhenga no
Espírito Santo: apontamentos iniciais
Sebastião Pimentel Franco
Simone Santos de Almeida Silva

341 A organização dos Dispensários de combate à sífilis no


Paraná: de Souza Araújo a Barros Barreto (anos 1920)
Silvia de Ross
Liane Maria Bertucci

363 A união faz a força: a Associação Médica de Goiás e os


desafios da medicina no sertão (1950-1960)
Tamara Rangel Vieira

385 Estigma, filantropia e infância: o preventório de Santa


Teresinha
Yara Nogueira Monteiro

409 Uma estratégia Sui generis de combate à lepra no Ceará:


escrita e publicação do livro Memórias de um leproso, de
Anselmo Fraga, na década de 1920
Zilda Maria Menezes Lima
Prefácio
Este livro apresenta um conjunto de temas e abordagens, diferentes recortes
espaciais e temporais em torno do problema da história da saúde e das doenças.
Essa área de pesquisa tem crescido sobremaneira no Brasil, graças ao intercambio da
História com as diversas áreas do conhecimento. O campo, em plena consolidação
no país, agrega diversos domínios, como bem demonstra essa obra que concede um
pouco do tom e das cores com as quais se podem pintar esse espaço fronteiriço e
ambíguo, no qual a matéria se posiciona.
A saúde e as doenças dos indivíduos e das populações, ao longo da histó-
ria, proporcionaram debates calorosos sobre as suas origens e motivações, desde as
indagações e argumentações de Hipócrates examinando as suas origens míticas e
morais, posteriormente sobrevindo as genealogias miasmáticas, da microbiologia
e nanotecnologia que historicamente se constituem novos problemas para reflexão.
Na elaboração da arquitetura do saber aliada à temática estão alicerçadas as constru-
ções que pensam a descoberta dos agentes etiológicos, as políticas de saúde pública,
as disposições médicas, as legislações e as normas do viver cotidiano, o estabeleci-
mento da assistência médica e social, a hospitalização, a elaboração do saber médico
científico e popular, as instituições, as práticas filantrópicas, dentre outros.
Graças as investigações pioneiras empreendidos pelos Annales é que a partir
dos anos 1950 começaram a emergir resultados de pesquisas que abordavam a medi-
cina e a doença. Estes temas granjearam o estatuto de legítimo objeto de pesquisa do
historiador, no compasso do surgimento de personagens e matérias situados à mar-
gem dos estudos históricos, tais como os costumes, alimentação, saúde, enfermidades
e o enfermo. A nova apreensão do entendimento de fontes fez com que a história não
se esgotasse mais nos documentos oficiais e tradicionais. O boletim intitulado “La
vie matérielle et comportements biologiques” criado por Fernand Braudel e o livro
“Historie du climat depuis de L´an Mil de Emmanuel Leroy Ladurie são considerados
pioneiros na divulgação da história social da medicina e da doença. Braudel ainda
noticiou e convidou diferentes especialistas a enveredarem em pesquisas interdisci-
plinares, desse profícuo diálogo resultou em um número especial da revista Annales.
Économies, sociétes, civilisations (setembro-outubro de 1977) nomeado Médecins, mé-
decine e société em france aux XVIII est XIX siécles totalmente dedicado ao tema. Na
década de 1970 os historiadores Revel e Peter, legatários de Braudel, nos concederam
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
12 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

o estudo basilar sobre o tema instigando os pesquisadores a vislumbrar as diversas fa-


cetas ocultas no problema. Para além do seu aspecto biológico, os pesquisadores en-
treviram a doença como componente social, um evento de reelaboração das conexões
estabelecidas pelo homem, possibilitando evidências reveladoras sobre as mudanças
sociais em curso. O homem enfermo, outrora excluído da sua subjetividade, também
ganha visibilidade nesse processo (MAGALHÃES; NASCIMENTO, 2015). Nesse ca-
beamento analítico, as medicinas ‑ científica e empírica ‑ são vistas como essenciais e
indissociáveis nesse método.
O acontecimento mórbido é capaz de criar desajustes tanto na vida privada
quanto na pública, tanto no espaço da história individual quanto nas relações cole-
tivas. As moléstias mentais, a sífilis, a AIDS, a lepra/hanseníase, o câncer, as vermi-
noses, o pênfigo e uma infinidade de outras denominações para aqueles fenômenos
cujas essências se exprimem no corpo e no espírito humanos, mas cujas existência e
significação se produzem na sociedade, na cultura e no conteúdo do fazer histórico.
Nesse processo, as enfermidades e os descompassos que elas causam trazem consigo
os riscos de desarmonia nas relações entre grupos, classes, indivíduos, sociedade.
Nesse amalgama entre o bem-estar e o mal-estar, no meio do caminho entre estar
saudável e estar doente, temos a vida que transcorre. Na cadência da saúde e da
doença, e mostrando os enlaces entre as duas questões, os comportamentos, os dis-
cursos construtores de conceitos e preconceitos em relação aos enfermos e à enfer-
midade, os estigmas, o imaginário sanitário no processo de constituição da nação, as
instituições sanitárias, os jogos de força e poder nas associações e sociedades médi-
cas, a ação pioneira na oferta da assistência, etc. estão aqui contemplados.
Esta obra situa as doenças numa perspectiva histórica, biológica e humana,
e mostra por intermédio de diferentes tempos e espaços as grandes e intermináveis
lutas dos sujeitos que buscam alcançar o status quo mais desejável, o da saúde. Esta
saúde, tão ambicionada coletivamente, pode ser compreendida pela definição de G.
Canguilhem (2009, p. 96): “A saúde, considerada de modo absoluto, é um conceito
normativo que define um tipo ideal de estrutura e de comportamento orgânicos”.
Os autores apresentam, aqui, observações e interpretações de trajetórias de
pessoas e de doenças que, no geral, revelam lutas e sofrimentos mas, também, digni-
dade e superação. Ao percorrerem as sendas das doenças, em meio à obscuridade do
tempo e das fontes, trouxeram a baila o desespero, as dores, as crenças, as esperanças
e as instituições que lhes foram e são inerentes ou derivadas, revelando-nos as raízes
biológicas e sociais de várias moléstias, bem como, suas formas de expansão e as
Histórias de Doenças 13

ações empreendidas para combatê-las. A tônica de outros estudos está nos caprichos
das doenças antigas que voltam travestidas em novas roupagens. Outros, ainda, abor-
dam as doenças mentais cuja compreensão, o tratamento e a cura vêm desafiando, ao
longo dos séculos, a evolução do conhecimento e permanecendo, parcialmente, um
mistério. A vida, enquanto objeto social e historicamente constituído, mostra as per-
manências e as transformações que explicam, de certa maneira, como as inovações
e os retrocessos nas concepções, ações e políticas sanitárias tornaram-se elementos
essenciais para se pensar saúde e a doença.
Histórias de Doenças: percepções, conhecimentos e práticas convida o leitor
a embrenhar pela historiografia da saúde e das doenças oferecendo uma pequena
amostra, porém cabalmente profunda, em termos de pesquisa teórica e empírica
sobre os objetos e problemas. Os textos reunidos com as suas diferentes ênfases, ob-
jetos e estilos narrativos, individualmente e em seu conjunto, contemplam as escritas
dessa rica história, um quadro representativo da qualidade e da variedade temática
produzida no Brasil.

Leicy Francisca da Silva


Roseli Martins Tristão Maciel
Sônia Maria de Magalhães
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
14 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Referências

CANGUILHEM, Georges. O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 2009.
NASCIMENTO, Dilene Raimundo; MAGALHÃES, Sônia Maria de.
Apresentação. Dossiê Medicina, saúde e doenças na história. História Revista UFG.
Vol.20, n. 2, 2015.
REVEL, J; PETER, J-P. O corpo: o homem doente e sua história. In: LE
GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1976.
Caça aos mosquitos: as ações e medidas
contra a febre amarela no começo do século
XX em Fortaleza
Ana Karine Martins Garcia1

N o final do século XIX e início do XX, Fortaleza passou por significativas trans-
formações na organização da saúde pública. Observou-se que, apesar da inten-
sa divulgação dos novos conceitos médicos de tratamento desenvolvidos na Europa,
houve a permanência de alguns preceitos da ciência que vinham sendo usados ao
longo do século XVIII e XIX, assim também os da medicina popular e da Igreja
Católica que também influenciavam no modo de ver e tratar as doenças.
Os estudos da microbiologia desenvolvidos por Louis Pasteur na França a
partir da segunda metade do século XIX, também contribuíram para os novos es-
tudos e métodos de tratamentos para as doenças vigentes no Brasil. E também para
um aprofundamento dos estudos científicos relacionados aos contágios e as trans-
missões das moléstias através de mosquitos, uma vez que o desconhecimento dos
modos de contaminação levava a explicações relacionadas ao castigo divino, crença
das alterações climáticas e a contaminação através dos miasmas.2
No começo do século XX as mudanças dos discursos médicos no Brasil,
quanto as novas formas e métodos de tratamento sobre doenças, causadas por vírus,

1 Graduada em História (UFC, 2004), Mestre em História Social (PUC-SP, 2006), Doutora em
História Social (PUC-SP, 2011) e Pós-Doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação
em História pela UFC (em 2017). E-mail de contato: anakarine.mg@gmail.com
2 O conceito dos miasmas vigorou em Fortaleza em meados do século XIX e esses eram apon-
tados como responsáveis pelas principais doenças, já que “…. os miasmas seriam todas as
emanações nocivas, as quais corrompiam o ar e atacavam o corpo humano…” GARCIA, Ana
Karine Martins”. “A sombra da pobreza na cidade do sol: O ordenamento dos retirantes em
Fortaleza na segunda metade do século XIX”. São Paulo, Dissertação de Mestrado defendida
na PUC-SP, 2006, p. 144.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
16 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

bactérias, protozoários influenciaram nas principais ações da saúde pública. Assim,


doenças transmitidas por mosquitos como febre amarela, malária, leishmaniose, do-
ença de Chagas, conhecidas como “doenças tropicais”,3 foram combatidas e debati-
das por diferentes grupos sociais nas cidades brasileiras.

…Os mosquitos são vehiculos comprovados de grande numero de moléstias


mais ou menos graves…Exterminando o mosquito, portanto, exterminadas
seriam aquellas molestias e muito diminuidas as probabilidades de transmis-
são das ultimas… (Relatório da Inspetoria de Higiene Pública do Estado do
Ceará, 1º de maio de 1916, p.19-20.)

Ao analisar alguns relatórios da Inspetoria Pública de Higiene de Fortaleza


observou-se que já houve por parte do governo em 1916 a constatação do aumento
do número de casos das doenças que estavam sendo transmitidas pelos mosquitos.
Esse indicativo já permite pensar que a menção desse fato foi um alerta e aviso para
que fossem tomadas medidas preventivas a fim de evitar possíveis epidemias e com
isso ocasionar o prejuízo à cidade:

Entre nós os principaes fócos de mosquitos, verdadeiros viveiros nos quintaes,


são algumas cacimbas. Quando todas as cacimbas da Fortaleza forem substi-
tuidas por um abastecimento de água encanada ou por poços instantaneos, as
condições de hygiene da cidade serão sensivelmente melhores. (Relatório da
Inspetoria de Higiene Pública do Estado do Ceará, 1º de maio de 1916, p.19-20.)

Nos documentos referentes à organização da saúde pública da cidade como


relatórios e ofícios dos presidentes entre os anos de 1910 a 1920, notou-se que
alguns fatores foram atribuídos para a grande proliferação dos mosquitos. Dentre

3 Doenças tropicais são aquelas que atingem exclusivamente as regiões tropicais (a África (exce-
to os extremos norte e sul), a Ásia das monções (sul e sudeste asiáticos), o norte da Austrália,
o México, a América Central e a maior parte da América do Sul (centro e norte), além de
centenas de ilhas dos oceanos Pacífico, Atlântico e Indico). e mais raramente nas regiões sub-
tropicais (Califórnia, os baixos desertos do sudoeste dos Estados Unidos da América, a costa
do Golfo e a maior parte da Flórida, o sul do Mediterrâneo e o norte do Saara, norte da Índia,
sudeste da China, a parte central da América do Sul, grande parte da Austrália e o litoral da
África do Sul). São doenças infecciosas e aparecem mais nessas áreas devido a grande biodi-
versidade dos microbios patogênicos. Ver: http://www.clickescolar.com.br/regioes-tropicais-
-ou-zona-tropical.htm
Histórias de Doenças 17

esses estão à falta de esgotos, de abastecimento de água e à falta de higiene da po-


pulação em Fortaleza:

…oito mezes de tentativas energicas e tenazes vieram por fim demonstrar que
por maior que fosse a bôa vontade era baldado todo esforço porquanto si os
mosquitos desappareciam em uns continuavam em outro ponto vizinho, vie-
ram demonstrar, que sem água encanada e esgoto é impossível um tal serviço
porque ou é completo extinguido de todo o mosquito ou não se faça porque
por menor que seja o numero dos restantes, não se pode viver coberto da
febre amarella. (Relatório da Inspetoria de Higiene Pública do Estado do Ceará,
30 de abril de 1913, p.100.)

Nas palavras do Dr. Abdenago da Rocha Lima, consegue-se perceber que


resolver a questão do combate aos mosquitos não era algo tão simples. E que en-
contrar a solução para deter a proliferação desses mosquitos não estava somente na
construção de um sistema de esgoto e abastecimento de água para Fortaleza como
ele acreditava, mas era necessário resolver outras problemáticas que envolviam a
estruturação e organização política, econômica e social da cidade como saneamento,
habitação, trabalho, pobreza…, ou seja, atingiam outros interesses que não estavam
relacionados somente com o melhoramento da saúde e quando esse problema não
era resolvido abalava tanto a vida da população quanto os setores econômicos res-
ponsáveis pelo desenvolvimento da cidade como foi o comércio.
No entanto, essa tarefa, como já visto, não era algo tão fácil, pois neste mo-
mento eram poucas as ações voltadas a deter a proliferação dessas doenças, princi-
palmente, por ser esse um campo novo para os médicos que atuavam em Fortaleza.
Assim, acredita-se que as medidas voltadas aos tratamentos eram de responsabilida-
de e geradas mais pelas iniciativas dos médicos ligados aos cargos da saúde pública
do que para os que trabalhavam nas clínicas e hospitais em geral.
A classe médica em Fortaleza, no início do século XX, estava aos poucos se
organizando e suas ações no campo da saúde pública, a princípio, foram lentas. Ao
analisar as fontes observou-se primeiramente que os atos de combate aos mosqui-
tos foram mais frequentes a partir dos anos de 1913, uma vez que os casos de febre
amarela e malária (conhecida também como impaludismo) passam a estar mais re-
correntes. Deve-se mencionar que nesse momento os médicos ligados à Higiene
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18 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Pública do Estado do Ceará e ao Centro Médico Cearense4 passaram a abordar mais


frequentemente esse tema e participaram mais ativamente das ações voltadas ao tra-
tamento e prevenção das doenças transmitidas pelos mosquitos.
Vários fatores contribuíram possivelmente para que a partir da década de 10
do século XX houvesse uma maior preocupação com a prevenção e luta contra esses
mosquitos. É possível que o aumento das pesquisas e as descobertas de novas teo-
rias, os interesses econômicos, o aumento das doenças na cidade e também o início
das campanhas do Governo Federal e da Fundação Rockefeller tenham sido fatores
importantes para que esse assunto tivesse uma maior repercussão entre os médicos
e a administração pública de Fortaleza.
Além da apreensão com as doenças causadas pelos mosquitos, apareceu tam-
bém nos relatos dos inspetores de higiene pública de Fortaleza a preocupação com o
excessivo aparecimento das moscas, uma vez que elas eram responsáveis por grande
parte das infecções intestinais que ocasionavam óbitos em muitos casos:

…Dar caça ás moscas por todos os meios, protegendo contra ellas os alimen-
tos, destruindo as existentes e evitando a sua reprodução. As larvas das mos-
cas, conhecidas pelo povo com os nomes de “bicho” ou “tapuru” se desen-
volvem em qualquer sitio onde haja materia organica em decomposição, nas
sentinas, no lixo, nas immundiceis, nas estrumeiras, nos chiqueiros, nas vac-
carias, nas estribarias, etc. Com a remoção destes focos e asseio e desinfecção
dos irremovíveis evita-se a reprodução das moscas. (Relatório da Inspetoria de
Higiene Pública do Estado do Ceará, 1º maio de 1916, p.11.)

Nessa descrição observam-se pontos bastante relevantes tanto das questões


higiênicas para a prevenção de doenças como também da estrutura da cidade. Nas

4 Em 20 de fevereiro de 1913 foi fundado a Associação Médica e Farmacêutica que entre suas
metas pretendia unir, inicialmente, os médicos e os farmacêuticos com o objetivo central de
que essa associação defendesse e amparasse seus membros, sobretudo, em caso de necessi-
dades materiais. Porém, na segunda sessão houveram redefinições no estatuto de funciona-
mento e isso ocasionou mudanças que os levaram a rumos diferentes de seus projetos iniciais.
Dentre essas modificações destacou-se: a inclusão da classe de cirurgiões dentistas, a publi-
cação de suas pesquisas científicas sobre as doenças que assolavam o Ceará, a realização de
atividades e ações que aproximasse esses membros da população local e a alteração do nome
para Centro Médico Cearense. Ver: GARCIA, Ana Karine Martins. A ciência na saúde e na do-
ença: Atuação e prática dos médicos em Fortaleza (1900-1935). São Paulo, Tese de Doutorado
defendida na PUC-SP, 2011.
Histórias de Doenças 19

palavras do inspetor e médico Carlos da Costa Ribeiro é mostrado o quanto era pre-
ocupante para a saúde pública a presença desses insetos e que as medidas necessárias
para “caçar” as moscas dependiam também das ações dos moradores, uma vez que
os meios apontados por ele para a reprodução dessas moscas faziam parte do conví-
vio desses habitantes e que as práticas higiênicas eram a solução para esse problema.
Outro ponto que se observou nos relatos do inspetor foi a questão da contri-
buição da estrutura para o agravamento do aumento dessas moscas. É interessante
analisar que nesse momento predominava o discurso modernizador na cidade de
Fortaleza e que muitas vezes se encobria suas problemáticas, no entanto através des-
sas fontes e dos relatos médicos pode-se desconstruir essa ideia e ver que Fortaleza
ainda enfrentava problemas em sua organização e estrutura e que isso contribuiu
para o aumento das doenças provocadas, sobretudo, pelos mosquitos. Desse modo,
é importante notar que a cidade ainda estava cercada pelas práticas do campo e que
na visão médica isso era um dos grandes empecilhos para a saúde pública.
Nas páginas do relatório da Inspetoria de Higiene Pública do Estado do Ceará
de maio de 1916, o médico Carlos Ribeiro também fez destaque aos procedimentos
que a população deveria seguir. Infelizmente, não se teve contato com as matérias
publicadas nos jornais locais e que tinham o intuito de alertar e orientar a popu-
lação para os cuidados a serem tomados contra os mosquitos, pois já não há mais
exemplares disponíveis nos locais de pesquisas em Fortaleza referentes aos periódi-
cos dos primeiros anos do século XX. No entanto, se pode comprovar a existência
desses artigos publicados em alguns jornais através dos indicativos e menções feitas
em algumas das publicações dos relatórios da Inspetoria de Saúde Pública contidos
também nas páginas da revista Ceará Médico.5

5 A revista Ceará Médico foi publicada no dia 15 de abril de 1913 e ficou conhecida inicialmen-
te como “Norte Médico”. A princípio teve publicações bimensais e posteriormente passou a
ser mensal. Seus primeiros redatores foram os médicos Aurélio Lavor, César Cals e Virgílio
de Aguiar e as pesquisas nessa fonte mostraram que os outros profissionais participantes do
Centro Médico Cearense participaram mais ativamente da revista através das publicações
de propagandas e artigos relacionados aos seus interesses, porém, é oportuno afirmar que
não foram tão ativos quanto a classe médica. Também foi órgão de divulgação das atividades
do Centro Médico Cearense e foi publicada até o ano de 1963. Ver: GARCIA, Ana Karine
Martins. A ciência na saúde e na doença: atuação e prática dos médicos em Fortaleza (1900-
1935). São Paulo, Tese de Doutorado defendida na PUC-SP, 2011.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
20 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

…Essa inspectoria sempre solicita e attenta ao bem estar da collectividade,


optando, pela supposição mais corrente, divulgava, desde cedo, das columnas
dos jornaes, conselhos e medidas de que a população se havia de valer para
resguardar do mal… (Revista Norte Médico, maio e junho de 1916, p. 8.)

Nesse trecho da revista Ceará Médico percebe-se que a inspetoria frequente-


mente utilizou-se dos jornais locais como meio de divulgação das suas orientações e
procedimentos entre a população de Fortaleza.
Também entre os principais métodos sugeridos à população para o combate
às moscas destacam-se no relatório da Inspetoria em 1916 os seguintes tópicos:

…Não tomar leite cru, salvo quando se tem certeza de ser ordenhado com o
maximo asseio previa e rigorosa lavagem das mãos e tetas; Não ingerir grande
porção dagua mesmo pura e potavel, porque dilue os succos gástricos e lhes
diminue o poder defensivo contra os micróbios; Evitar o excesso, como a defi-
ciencia, a ma qualidade ou mau preparo dos alimentos que perturbando a re-
gularidade da digestão facilitam a acção pathogena e os germes. (Relatório da
Inspetoria de Higiene Pública do Estado do Ceará, 1º de maio de 1916, p.11-12.)

Constantemente, aparecem nos discursos médicos as dificuldades enfrentadas


e o desejo de que as questões de higiene pública estivessem presentes no cotidiano dos
moradores de Fortaleza, contudo a documentação mostrou em vários momentos que
essa tarefa era complexa, pois ia além das questões da saúde pública e entrava no cam-
po das questões políticas e econômicas ligadas à administração da cidade:

Os mosquitos (muriçocas, carapanans) são vehiculos comprovados de gran-


de numero de molestias mais ou menos graves. De algumas, como a febre
amarella e o impaludismo, são elles os unicos transmissores; de outras o são
juntamente com muitos insectos (as moscas, etc), os objectos de uso, o pro-
prio ar, a agua, os alimentos crus. Exterminando o mosquito, portanto, exter-
minadas seriam aquellas molestias e muito diminuídas as probabilidades de
transmissão das ultimas. (Relatório da Inspetoria de Higiene Pública do Estado
do Ceará, 1º de maio de 1916, p. 19.)

Percebe-se pelas colocações do Dr. Carlos Ribeiro no relatório de maio de


1916 que os mosquitos eram os grandes “inimigos” desse processo e que tentar “eli-
miná-los”, como numa guerra, deveria ser o objetivo central dos médicos e gover-
Histórias de Doenças 21

nantes da cidade, uma vez que o desejo era a vitória da saúde e o extermínio das
doenças. Desse modo, observar as práticas usadas para a prevenção e eliminação
desses insetos e mosquitos permitirá compreender as formas de atuação e influência
médica na aplicação desses métodos junto à população de Fortaleza.
Analisando esse relatório observou-se que além das preocupações e ações para
deter a proliferação das moscas, devido às doenças digestivas, também foram aplica-
das medidas contra os focos de mosquitos causadores da febre amarela6 e da malária.
Dentre os procedimentos indicados estava a eliminação dos pontos de reprodução
desses mosquitos e que de acordo com o inspetor de higiene pública estavam locali-
zados nas cacimbas e águas paradas das moradias de Fortaleza. Assim, para evitar a
reprodução desses mosquitos nesses locais foram sugeridas as seguintes ações:

… Tenham peixes, como os chamados barrigados ou peixinhos vermelhos que


devoram as larvas. Devem ser assim os lagos artificiaes de jardins, os tanques
extensos de água não potável, etc; b) Estejam cobertos por uma tella milime-
trica ou qualquer outra matéria que impeça em absoluto a entrada de mos-
quitos adultos para a postura, permittindo comtudo o arejamento.Devem ser
assim todos os depósitos de agua potavel (cysternas, etc) caixas d´agua para
banho e usos domesticos, cacimbas, etc.c) Tenham a superfície coberta por
uma camada de petróleo que sobre nadando impede a postura do mosquito
adulto e a respiração das larvas porventura existentes antes. Pode-se fazer as-
sim com todas as porções de agua inutil e irremediavel e cacimbas servidas
por bombas. D) Sejam exgotadas completamente de sete em sete dias, não
dando tempo assim a evolução da larva até o nascimento do mosquito. É o
que se deve fazer com as jarras de agua potavel, tanques diversos, bebedouros,
etc. (Relatório da Inspetoria de Higiene Pública do Estado do Ceará, 1º de maio
de 1916, p. 19-20.)

6 A febre amarela já se encontrava entre as doenças mais recorrentes no Brasil desde o século
XIX, no entanto, somente no começo do século XX com as novas pesquisas sobre as causas
dessa doença é que as medidas profiláticas e ações médicas se intensificaram. Não é objetivo
dessa tese estudar a febre amarela, mas atualmente já se encontra diversos estudos sobre o
assunto que permitem analisar além da doença as ações dos profissionais de saúde na busca
pelo seu tratamento. Ver, por exemplo, BECHIMOL, Jaime Larry (coord.). Febre amarela: a
doença e a vacina, uma história inacabada. Rio de Janeiro-RJ: Editora Fiocruz, 2001e LOWY,
Ilana. Virus, mosquitos e modernidade: febre amarela no Brasil entre ciência e política. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
22 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

É relevante mencionar que essas ações não eram inéditas dentro do campo de
combate aos mosquitos, pois tanto nos demais estados brasileiros como nas campa-
nhas de divulgação e atuação da Fundação Rockefeller7 em outros países no começo
do século XX vinham empregando esses e outros métodos para que tais enfermida-
des fossem eliminadas.
Observando-se as diversas descrições do relatório da Inspetoria de Higiene
Pública notou-se que todas as medidas sugeridas precisavam da colaboração da po-
pulação para que houvesse resultados favoráveis, uma vez que a maioria das cacim-
bas e poços estavam localizados em suas moradias. Esse processo não foi tão simples
e as notícias dos jornais locais mais adiante vão mostrar que apesar das orientações
realizadas aos citadinos, que nos jornais aparecem na sessão chamada “conselhos ao
povo”, e que é mencionada também nos relatórios de 1916, não tiveram o resultado
esperado, e tal fato fez com que as medidas se tornassem mais fiscalizadas e obriga-
tórias a partir de 1923 com a contratação dos “mata-mosquitos”8, o que ocasionou
diversos conflitos junto aos moradores de Fortaleza.
Desse modo, analisando a situação a partir das diversas opiniões formadas
sobre os processos de tratamentos dessas doenças transmitidas pelos mosquitos per-
cebeu-se que os médicos atestavam a proliferação e existência dessas doenças à falta
de cuidados da população quanto às questões de higiene. E quanto aos preventivos
contra esses vetores o governo seguia sempre as orientações médicas, já que desejava
evitar que as epidemias e o caos que sempre se associava a esses problemas em de-
corrências das crises climáticas ou econômicas da cidade. E deve-se mencionar que a
população, de uma maneira geral, ignorava e suspeitava dos procedimentos médicos
e não tinham tanta confiança nessas ações de combate aos mosquitos e, portanto,
guiava-se através das experiências trazidas tanto pela medicina popular como pela
religião, que fornecia explicações amenizadoras para essas enfermidades.

7 É uma fundação criada em 1913 nos Estados Unidos da América e que aparesentava como
missão promover, no exterior, o estímulo à saúde pública, o ensino, a pesquisa e a filantropia.
É caracterizada como associação beneficente e não-governamental, que utiliza recursos pró-
prios para realizar suas ações em vários países do mundo, principalmente os subdesenvolvidos.
8 Eram contratados entre os populares para visitarem e fiscalizarem as casas dos moradores
de Fortaleza no intuito de tentarem eliminar as larvas dos mosquitos causadores da febre
amarela. Esse nome já era empregado desde 1902 com Oswaldo Cruz em suas campanhas
preventivas no Rio de Janeiro.
Histórias de Doenças 23

Houve também ações diretas da inspetoria para deter o avanço dessas do-
enças e não deixar que esses mosquitos se proliferassem ocasionando as epidemias.
Ao analisar um dos trechos do relatório de 1916, questões como a falta de pessoas
e recursos são apontadas pelo inspetor como motivos das dificuldades enfrentadas
pela Inspetoria de Higiene Pública do Ceará na eliminação dos mosquitos transmis-
sores da febre amarela, diferentemente do que ocorreu em outras capitais brasileiras.
Talvez, devido a essa deficiência houve tanta ênfase e orientações do inspetor para
que a população se utilizasse de alguns métodos, aprovados pela ciência médica,
para eliminação das larvas em suas residências:

Não temos pessoal nem recursos para proceder a caça systematica do ste-
gomya, na qual basta resumir-se a prophilaxia de febre amarella. O exemplo
dado pela Capital Federal, por S. Paulo (Santos), pelo Pará, por Manáos, etc.
ainda não pode ser seguido pelo Ceará. Conseguimos finalmente, em janeiro
deste anno que a Santa Casa preparasse um quarto à prova de mosquito, com
portas em tambor para isolar os amarílicos que até então eram recebidos em
plena enfermaria, se siquer ter mosquiteiro, tendo chegado a coisa a ponto de
um rapaz que entrava em outubro com uma ulcera na perna lá dentro con-
trahiu a febre amarella e morreu. (Relatório da Inspetoria de Higiene Pública
do Estado do Ceará, 1º de maio de 1916, p.22.)

Essa fonte permite que se observem algumas questões que predominavam no


tratamento médico da febre amarela em Fortaleza. Existiu uma grande preocupação
em isolar os doentes, uma vez que se pretendia evitar que os mosquitos picassem os
“amarílicos” e depois transmitissem a doença aos outros pacientes do hospital. Desse
modo, uma das soluções mais usadas no Brasil para deter a proliferação da febre
amarela foram os isolamentos e, como mostrou o inspetor, houve uma precariedade
na estrutura de atendimento aos doentes e somente os chamados “mosquiteiros” ser-
viam como maior proteção naquele momento.
Em seus estudos sobre a febre amarela no Brasil, a pesquisadora Llana Löwy
analisou as diversas formas de ações aplicadas ao combate dessas doenças na cidade
do Rio de Janeiro no começo do século XX. Dentre os métodos usados percebeu-se
o grande investimento do estado para o isolamento dos doentes e para a erradicação
dos mosquitos a partir da “fumigação de gás sulfuroso nas casas, atividade realiza-
da por trabalhadores recrutados para esta finalidade, os “mata-mosquitos” (LOWY,
2006, p. 87). Assim, observando o relatório da Inspetoria de Higiene Pública notou-
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
24 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

-se que as medidas empregadas pelo inspetor da saúde pública em Fortaleza não
eram incomuns, mas eram resultados de práticas já aplicadas desde as campanhas
de Oswaldo Cruz em 1903 e que influenciaram não somente a capital federal, mas
outros estados brasileiros como o Ceará no início do século XX. Basta observar que
em Fortaleza as medidas de isolamento e também a utilização de uma polícia sanitá-
ria para a fiscalização e eliminação dos focos de mosquitos foram também utilizadas
no processo de tratamentos e profilaxias da febre amarela.
Deve-se mencionar que a grande maioria dos inspetores de saúde pública
fizeram parte do Centro Médico Cearense, inclusive o Dr. Carlos Ribeiro que foi ins-
petor de higiene pública. Porém, essa associação médica, farmacêutica e odontoló-
gica não teve em sua primeira fase uma atuação tão ativa nas questões da saúde pú-
blica e os médicos que participaram tanto na Inspetoria de Higiene Pública como no
Centro Médico se utilizaram dos seus cargos públicos para envolver e obter a apro-
vação dos outros profissionais em suas campanhas junto à população de Fortaleza.
“… O Dr. Carlos Ribeiro, Inspector de Hygiene, iniciou a leitura do novo re-
gulamento de sua repartição, que vae ser apresentado ao Sr. Presidente do Estado…”
(Revista Norte Médico de julho, agosto e setembro de 1916, p.15.) Notou-se na leitu-
ra da revista Ceará Médico que em vários momentos os inspetores da saúde pública
e sócios do Centro Médico buscavam não somente envolver os outros médicos em
suas ideias, mas também em conjunto aprovar alguns regulamentos e atuação da
Inspetoria de Higiene Pública para depois serem apresentados ao presidente de esta-
do. Assim, percebe-se que o Centro Médico teve uma forte influência e contribuição,
mesmo não participando de forma direta dessas campanhas e ações na cidade nessa
primeira parte de seu funcionamento.
A participação do Centro Médico Cearense durante esse processo de preven-
ções e combate aos mosquitos foi notada mais no campo das denúncias escritas do
que propriamente nos procedimentos, evidentemente, que sem contar aqui com as
atuações sozinhas de alguns de seus membros. E mesmo nesse meio dedicado à es-
crita, muitas das vezes, somente se apontava as causas do problema e a solução ficava
sob a responsabilidade do governo:

A febre amarella, quando investe contra nós, encontra à protecção dos este-
gomyas que vivem livremente em nossas habitações. Póde-se dizer que não há
casa que os não possúa mais ou menos, salvo rara excepção. A peste encontra
na edificação de nossas casas, muito proprias para ratos que são sempre em
Histórias de Doenças 25

maior numero que as pessôas, o auxílio efficaz para suas devastações epidemi-
cas. (Revista Norte Médico de julho, agosto e setembro de 1916, p.15.)

Estudar e analisar esse processo de campanhas e atuações dos médicos contra


os mosquitos é necessário para a compreensão das relações entre esses profissionais
cearenses e aqueles que apareceram a partir dos anos de 1918, seja os funcionários
do Governo Federal ou da Comissão Rockefeller e que tinham como proposta im-
plantar métodos de prevenção e ações contra febre amarela, malária e outras doen-
ças presentes no interior e na capital cearense, a fim de impedir a propagação dessas
enfermidades em outras regiões do Brasil. Desse modo, não se pode pensar que es-
ses novos procedimentos trazidos ao Ceará eram desconhecidos pela classe médica
de Fortaleza, uma vez que alguns já eram aplicados em outros estados e acabavam
chegando por meio dos médicos cearenses formados nesses estados ou através dos
congressos e encontros profissionais.
Apesar da insuficiência de fontes que demonstrassem diretamente o des-
contentamento médico com relação a essa interferência do Governo Federal e da
Comissão Rockefeller no Ceará a partir de 1923, pode-se pensar que não deve ter
sido tão calmo esse processo, afinal, esses grupos acabavam por demonstrar que suas
presenças eram necessárias, já que não se tinha uma organização e nem profissionais
capazes para resolver as questões mais urgentes da saúde pública no Ceará. Como
então pensar que somente houve aceitação dos médicos nessas intervenções e rejei-
ção da população à aplicação desses métodos de prevenção e combate às doenças
mais predominantes. Será que isso não causou incômodos aos médicos que atuavam
em Fortaleza?
Quando na história atual aponta-se a atuação da Comissão Rockfeller no
Ceará lembra-se com destaque das campanhas contra a Malária no interior do
Estado em 1938 e costuma-se achar que esse foi o momento mais central e atuante da
Rockefeller no Ceará. No entanto, a análise de fontes como a revista Ceará Médico,
os Relatórios da Inspetoria de Saúde Pública, Relatórios da Comissão Rockefeller e al-
guns jornais da época permitiu que se observassem outros instantes dessa presença e
intervenção. E isso possibilitou ver alguns dos conflitos existentes entre esse grupo e
a população. Esse fato motivou a pesquisar mais esse assunto e entender os motivos
que levaram as agressões aos funcionários da Rockefeller e à rejeição a aplicação de
seus métodos. Contudo, é relevante lembrar que a Comissão Rockefeller somente co-
meçou a atuar no Ceará, oficialmente, no ano de 1923, a partir do contrato firmado
com o Governo Federal, e que entre os anos de 1918 a 1923 a interferência e ações
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
26 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

eram mais do Governo Federal, através da criação da Liga Pró-Saneamento e das


campanhas contra a febre amarela.
Não se pode deixar de relembrar que com a República os estados ficaram res-
ponsáveis por financiar e organizar a saúde pública, no entanto, na prática a maioria
não teve condições de assumir tal responsabilidade nos períodos de crises:

A impossibilidade de a maioria deles enfrentar problemas de saúde, sem o


apoio material e financeiro do Governo Federal, contribuiu para que este in-
terferisse de forma direta nos períodos de recrudescimento das crises epidê-
micas e abriu caminho para uma parceria internacional, representada pela
Fundação Rockefeller… (FARIA, 2007, p. 55)

A análise de Lina Faria permite que se veja que a falta de recursos de alguns
estados impedia que mudanças na área da saúde fossem realizadas. Tal situação fa-
voreceu a Fundação Rockefeller a encontrar um campo aberto para realizar suas
intervenções e objetivos, uma vez que o Governo Federal tinha limitações nas ques-
tões de auxílio aos estados brasileiros, sobretudo nos períodos de epidemias. Desse
modo, analisando o caso do Ceará, percebe-se que no decorrer de sua História sem-
pre houve nos auges das crises a necessidade das ajudas externas seja por questões
da falta de recursos financeiros do estado como da falta de meios tecnológicos e de
profissionais da área da saúde para atender essas necessidades:

Membros da importante commissão que, conta da “Rockefeller Foundation”


visita todos os pontos do globo onde há ou houve febre amarella, estiveram
entre nós muitos ilustres hygienistas Henry R. Carter do “U. S. Public Health
Service” e Juan Guiteras, chefe do “Departamento de Sanidad de Cuba.
(Revista Norte Médico, outubro, novembro e dezembro de 1916, p.16.)

Em 1916 veio pela primeira vez ao Ceará representantes da Rockefeller


Foundation. Eles seguiam um plano de visitas que estavam sendo realizadas tanto
em alguns dos estados brasileiros como também em alguns dos países da América
Latina e tinham como objetivo fazer pesquisas e observar as formas de prevenção
e tratamento usadas por esses locais para as doenças mais frequentes transmitidas
pelos mosquitos e também por vermes nematódeos, como foi o caso da ancilosto-
mose. E por fim oferecer ajuda a esses países para que fosse realizado o controle e a
eliminação dessas enfermidades.
Histórias de Doenças 27

A visita desses membros da Rockefeller ao Ceará, em novembro de 1916,


foi registrada nas páginas da revista Norte Médico e nas atas de reunião do Centro
Médico Cearense. De acordo com as descrições encontradas nessa fonte esses repre-
sentantes compareceram à reunião do Centro Médico acompanhado pelo Inspetor
de Higiene Pública o Dr. Carlos Ribeiro membro dessa associação:

Os nossos dois notaveis visitantes acompanhados pelo nosso companheiro da


redacção, que superintende a hygiene no Estado, o dr. Carlos Ribeiro, fizeram
grande número de investigações, estudos e visitas durante os poucos dias que
aqui se hospedaram, e assistiram a sessão do Centro Médico em que aquelle
nosso collega fez a leitura do capitulo do novo regulamento de Hygiene, re-
ferente à prophylaxia da febre amarella, trabalho para o qual tiveram expres-
sões de louvor. (Revista Norte Médico, outubro, novembro e dezembro de 1916,
p.16.)

Percebe-se o quanto o Centro Médico tinha um respaldo social e mesmo in-


diretamente uma participação nos principais fatos ligados à saúde pública, através
da atuação de alguns de seus membros nos cargos públicos. É relevante notar que os
visitantes da Rockefeller conheceram a situação da saúde pública sob olhar desses
profissionais que demonstraram, através da apresentação do regulamento de higie-
ne, que o Ceará já seguia os novos métodos de combate aos mosquitos causadores
da febre amarela e que aplicavam de forma satisfatória esses procedimentos. Sabe-se
que isso fazia parte de um discurso para demonstrar que os médicos e profissionais
da saúde no Ceará já se adaptavam às inovações da medicina e não eram atrasados.
É provável que esse discurso tivesse como objetivo demonstrar aos representantes
da Rockefeller que os métodos empregados pelos médicos cearenses na prevenção e
eliminação da febre amarela também eram eficientes. Esse tipo de discurso fez parte
em outros momentos da História do Ceará, em que se tentava demonstrar que aqui-
lo trazido de fora não era sempre visto como inovador.
As visitas da Comissão Rockefeller em diversos países do mundo tinham como
meta realizar pesquisas e estudos sobre as enfermidades mais recorrentes nesses lo-
cais e assim determinar as causas e tratamentos preventivos para as doenças provo-
cadas, principalmente, por vírus e parasitas. 9 Sabe-se que a Fundação Rockefeller,

9 Não se pretende abordar nesse artigo a construção e formação da Fundação Rockefeller e


nem aprofundar os debates quanto a suas ações filantrópicas em diversos países, mas se deseja
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
28 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

a princípio, tinha como objetivo reunir e centralizar as ações filantrópicas da fa-


mília Rockefeller nos Estados Unidos, contudo, como demonstrou Maria Gabriela
Marinho em seu trabalho, essas ações filantrópicas tomaram proporções mais am-
plas e em larga escala e passaram a dissociar e excluir a imagem de uma Fundação
voltada exclusivamente para a caridade (MARINHO, 2003):

As singularidades dos países atendidos (tradições médicas, diversidade cul-


tural, movimentos populares etc.) afetaram enormemente o modo como as
relações e interesses da Fundação norte-americana se expressaram na institu-
cionalização da ciência naqueles países. Os integrantes das primeiras missões
cientificas da Rockefeller foram sensíveis às marcantes diferenças entre os pa-
íses latino-americanos e à capacidade de expansão institucional dos sistemas
de produção intelectual, cientifica e acadêmica dos países atendidos. (FARIA,
2007, p.16.)

Os representantes da Fundação Rockefeller não esperavam encontrar no Brasil


ou nos outros países visitados qualquer tipo de pesquisa ou formas de tratamentos
viáveis. De certa forma, predominava a ideia de que eles levavam a salvação e a ino-
vação nos tratamentos das principais enfermidades aos países pobres que não tinham
nenhuma forma de tratamento. No entanto, como apontou a historiadora Lina Faria,
depararam-se com outra realidade e esses primeiros integrantes buscaram adaptar-
-se e perceber que não poderiam descartar o conhecimento e as ações preventivas já
existentes nesses países. E que teriam que usá-las a seu favor para obter uma relação
favorável e que possibilitassem cumprir com os seus objetivos. Assim, observando o
contato inicial com os médicos cearenses percebeu-se que se desejava conhecer o local
e adquirir a confiança para a realização futura de seus propósitos.
Na ata da reunião do Centro Médico Cearense do dia 13 de novembro de
1916 consta a referência de que os dois membros visitantes da Rockefeller também
realizaram uma palestra sobre os métodos empregados nos Estados Unidos para
deter o avanço desses mosquitos e transmissores por eles combatidos, mas antes ou-
viram do Dr. Carlos Ribeiro as profilaxias empregadas no Ceará, demonstrando que

perceber as intervenções e teorias trazidas para o combate às doenças como a febre amarela,
a malária e a ancilostomose no Ceará e a aceitação e rejeição desses métodos pelos médicos
e pela população.
Histórias de Doenças 29

esses procedimentos tinham também eficácia e conseguiam controlar a proliferação


dos mosquitos e a propagação dessa enfermidade:

…entretiveram com os presentes uma sabia palestra de ensinamentos sobre


a verdadeira guerra aos transmissores do veneno amaril que é o extermínio
das larvas do Stegomia fasciata, e quanto ao combate aos insectos e ratos para
o que aconselharam o emprego do acido cyanhidrico que tem na America do
Norte dado os melhores resultados. (Revista Norte Médico, outubro, novem-
bro e dezembro de 1916, p.19.)

Nesses poucos trechos que se encontrou referindo-se à presença da Comissão


Rockefeller no Ceará em 1916, conseguiu-se observar que o processo de contato da-
va-se provavelmente com as seguintes intenções: primeiramente, conhecer o funcio-
namento da saúde pública local e regional a partir do contato com os responsáveis
por essa organização; segundo, observar os métodos e as formas empregadas para
deter as doenças provocadas por mosquitos, insetos e parasitas; terceiro, demonstrar
os trabalhos e objetivos da Fundação Rockefeller e seus procedimentos aplicados
com sucesso e que têm eliminado essas doenças do território norte-americano. E
por fim manter um contato e realizar estudos e estratégias de como poderão agir
nesses locais para a aplicação de seus métodos.
Os médicos no Ceará, nos primeiros anos do século XX, depararam-se com
novas formas de tratamento e entendimento sobre as doenças cujos transmissores
eram os mosquitos, insetos e ratos. Nesse processo de adaptações e descobertas, hou-
ve ajustamentos nas relações entre eles e os pacientes, em grande parte conflitantes.
As prevenções eram as possíveis saídas para evitar os descontroles ocasionados pelas
doenças, pois de acordo com o pensamento da classe médica cearense essa ação con-
tribuía de alguma forma para a manutenção da ordem e o crescimento econômico
da cidade. Contudo, para isso necessitava-se da colaboração da população, que em
geral não compreendia e nem confiava nessas práticas médicas. Desse modo, como
obter resultados favoráveis e como fazer com que os métodos aplicados pelos médi-
cos fossem utilizados pelos citadinos? Essa não foi uma tarefa tão fácil e se percebeu
que quando o Governo Federal e a Comissão Rockefeller trouxeram suas práticas e
tecnologias não foi algo tão inédito para a maioria, mas o que houve foi novamente
a dúvida quanto à eficiência desses procedimentos e também a provável rejeição dos
médicos que já realizavam seus trabalhos preventivos em Fortaleza.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
30 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

A chegada ao Brasil da Comissão da Fundação Rockefeller teve a princípio,


um intuito de investigação e de divulgação de suas técnicas. Ela vinha realizando
diversas visitas e implantando, aos poucos, em alguns países seus métodos de trata-
mentos, sobretudo, contra a febre amarela. No entanto, nem todos confiavam nesses
objetivos e como apontou a historiadora Llana Löwy em seus estudos sobre a febre
amarela no Brasil, a população brasileira variava entre a benevolência e a descon-
fiança com relação às intenções dessa Comissão, já que existia a suspeita de que a fi-
lantropia norte-americana poderia abrir as portas para outros modos de intervenção
dos Estados Unidos nos assuntos internos do Brasil:

Mas que vergonha! Eles estão nos passando atestado de incompetência. Os


recursos que estão nos propondo não são dinheiro, mas atividade e efici-
ência. São os nossos ricos vizinhos, orgulhosos, bem educados e cheios de
compaixão, que batem à nossa porta para pedir licença para limpar nossas
casas das pestilências que não conseguimos eliminar. Só temos que lhes de-
sejar boas-vindas e aplaudi-los, mas vendo que nosso país é obrigado a admi-
tir sua incapacidade de resolver seus problemas administrativos, todavia tão
poucos complicados, só nos resta enrubescer de vergonha. Sentimo-nos mal
em pensar que um dia possam surgir outros guardiões de nossos negócios,
mais interessados e menos delicados, e não motivados pela generosidade e
pelo amor à ciência. Suas ações também poderão ser justificadas por nossa
negligência, nossa ignorância, nossa fraqueza, nossa falta de retidão moral.
(LOWY, 2006, p. 134)

Nesse trecho do artigo intitulado “A vergonha”, do Dr. Plácido Barbosa, no-


tou-se os incômodos e suspeitas ocasionados pela presença da Fundação Rockefeller
no Brasil. Além da preocupação com os possíveis interesses com as questões in-
ternas do país, nota-se nas palavras irônicas do Dr. Plácido que a presença de tal
Comissão era a mostra para ele da incompetência administrativa em solucionar as
questões da saúde pública. Os discursos contra e a favor estiveram presentes no de-
correr da atuação da Rockefeller no Brasil e inclusive no Ceará, entre os anos de
1923 a 1935, percebeu-se grandes dificuldades na aceitação dos métodos trazidos
pelos norte-americanos.
A Comissão da Fundação Rockefeller teve a preocupação no período de 1916
a 1920 de conhecer mais algumas das regiões do Brasil e observar as formas que vi-
nham sendo tratadas as doenças como a febre amarela e a ancilostomose. Para esses
Histórias de Doenças 31

especialistas foi surpresa a aplicação de alguns métodos, sobretudo, no combate à


febre amarela, mas não deixaram de ver questões problemáticas e de fazer críticas
quanto da organização da saúde pública no país.
Outro fato bastante interessante é que apesar de a proposta inicial estar volta-
da ao tratamento e à eliminação da febre amarela, isso não ocorreu na prática, pois
no Brasil a febre amarela durante os anos de 1916 a 1920 não apresentou grandes
incidências. Desse modo essa comissão deteve-se ao combate dos vermes da ancilos-
tomose que afetavam mais a vida da população brasileira, sobretudo, do meio rural.
No início os estados brasileiros escolhidos para a realização de seus projetos
e planos foram São Paulo e o Rio Grande do Sul, apesar da constatação da Comissão
da Rockefeller de que nos Estados do Norte havia uma maior recorrência dessas
doenças. De acordo com a historiadora Lina Faria, esses lugares tinham a capacida-
de de melhor aproveitar os recursos investidos pela Fundação Rockefeller. (FARIA,
2007, p.56.) No entanto, posteriormente foram desenvolvidas ações que abrangiam
outros estados, principalmente, os da região Norte.
Efetivamente, somente vamos encontrar ações mais diretas da Rockefeller
no Ceará a partir de 1923 mediante acordo firmado com o Governo Federal, uma
vez que anteriormente as obras de tratamento e combate a essas doenças estavam
sob a responsabilidade direta do governo do estadual e somente a partir da criação
do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP) em 1920 ampliou suas áreas
de atuação:10

…assinado em 11 de setembro de 1923 e homologado pelo decreto nº 16.300


do governo brasileiro em 31 de dezembro de 1923, estipula que a Fundação
Rockefeller, em colaboração com o DNSP, se encarregaria da eliminação da
febre amarela no norte do Brasil por meio de destruição dos mosquitos (…).
O pessoal técnico e administrativo será recrutado pelo DNSP, em acordo com
a Fundação Rockefeller. (LOWY, 2006, p. 149)

10 A atuação mais direta nos outros estados brasileiros do Governo Federal foi motivada sobre-
tudo pela epidemia da gripe espanhola em 1918, que atingiu tanto a Capital Federal como
outras cidades brasileiras e que demonstrou a fragilidade e incompetência do Departamento
Geral de Saúde pública. Até aquele momento as questões de saúde pública ficavam sempre ao
encargo de seus estados que esses nos períodos de crise contavam com a determinada cola-
boração financeira do Governo Federal, contudo, as propagações de epidemias fizeram com
que se repensassem tais ações e assim fossem tomadas medidas que atingissem aos estados
geradores dessas epidemias mais recorrentes.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
32 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Essa foi a primeira campanha da Fundação Rockefeller no Brasil e tinha


como pretensão erradicar os mosquitos da febre amarela do Nordeste11 brasileiro,
uma vez que essa doença era ameaça para a imigração e o comércio. No Ceará, os ca-
sos de febre amarela eram muito insignificantes comparados a outras doenças como
a varíola, gripe e malária, no entanto, o acordo permitiu que a Comissão Rockefeller
passasse a atuar mais diretamente no Ceará e em outros estados nordestinos com a
finalidade de eliminar os mosquitos responsáveis pela transmissão da febre amarela.
Observando os passos dado por essa comissão no Ceará, notou-se que
as visitas anteriores ao acordo com o Governo Federal em 1923 possibilitaram
à Rockefeller conhecer mais as ações e dificuldades do Estado para deter a fe-
bre amarela. E sua presença foi percebida sob diversos aspectos, pois enquanto
agradava a alguns também era rejeitada por outros que não acreditavam e criti-
cavam sua atuação, principalmente, em Fortaleza. Apesar das fontes pesquisadas
não mostrarem diretamente a visão discordante de alguns dos médicos cearenses
sobre a presença da Comissão Rockefeller, encontrou-se, primeiramente, entre a
documentação discordâncias do Diretor do Serviço de Saúde do Estado do Ceará
o Dr. Clovis Barbosa de Moura com relação à eficácia das técnicas usadas por essa
comissão e em segundo observou-se alguns artigos publicados nos jornais locais
entre os anos de 1928 a 1935 que criticavam a atuação da Comissão Rockefeller e
cujas assinaturas eram pseudônimos, possivelmente, de médicos que não aprova-
vam o modo de atuação desse grupo.
A presença da Comissão Rockefeller em Fortaleza esteve cercada de certa du-
alidade, pois ora foi vista como salvação ora como empecilho. Apesar da ausência
de informações mais detalhadas sobre tal atuação, percebeu-se que esse grupo trou-
xe mudanças no comportamento e estrutura da cidade. Saber se foi favorável ou
desfavorável não é o interesse dessa análise, mas perceber que a população local e,
sobretudo os médicos reagiram de diversas formas aos métodos que estavam sendo
aplicados por esse grupo. É um assunto que merece ainda muitas análises e que

11 Oficialmente a região Norte passa ser chamada Nordeste, a partir dos anos 1922, e de acordo
com o historiador Durval Muniz “O termo Nordeste é usado inicialmente para designar a área
de atuação da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), criada em 1919. ” Ou seja,
a denominação Nordeste foi dada para designar as áreas atingidas pela seca e somente a partir
dos anos de 1922 passou a definir uma determinada região que abrangia tanto as áreas secas
como outras. A esse respeito ver ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. A invenção do
Nordeste e outras artes. São Paulo: Editora Cortez, 2001.
Histórias de Doenças 33

ainda é pouco abordado, talvez pela ausência de fontes, mas também pelo desconhe-
cimento, já que quando se fala de Comissão Rockefeller no Ceará somente se conhece
sua atuação no interior em 1939 no combate à Malária.
Os médicos no Ceará nos primeiros anos do século XX depararam-se com
novas formas de tratamento e entendimento sobre as doenças cujos transmissores
eram os mosquitos, insetos e ratos. Nesse processo de adaptações e descobertas, hou-
ve ajustamentos nas relações entre eles e os pacientes, em grande parte conflitantes.
As prevenções eram as possíveis saídas para evitar os descontroles ocasionados pelas
doenças, pois de acordo com o pensamento da classe médica cearense essa ação con-
tribuía de alguma forma para a manutenção da ordem e o crescimento econômico
da cidade. Contudo, para isso necessitava-se da colaboração da população, que em
geral não compreendia e nem confiava nessas práticas médicas. Desse modo, como
obter resultados favoráveis e como fazer com que os métodos aplicados pelos médi-
cos fossem utilizados pelos citadinos? Essa não foi uma tarefa tão fácil e se percebeu
que quando o Governo Federal e a Comissão Rockefeller trouxeram suas práticas e
tecnologias não foi algo tão inédito para a maioria, mas o que houve foi novamente
a dúvida quanto à eficiência desses procedimentos e também a provável rejeição dos
médicos que já realizavam seus trabalhos preventivos em Fortaleza.
Entender a presença e a atuação da Comissão Rockefeller no Ceará permite
analisar como os médicos de Fortaleza vão agir e pensar com relação a esses méto-
dos, de combate à febre amarela no começo do século XX, que em grande parte já vi-
nham sendo adotados antes mesmo da chegada dessa comissão, mas que nesse caso
essa problemática estava centrada na falta de recursos financeiros e na adoção dos
procedimentos pela população e que de certa forma isso vai ser resolvido aparen-
temente pela Rockefeller a partir dos recursos aplicados na área da saúde no Ceará
e também da obrigatoriedade no cumprimento das prevenções e ações higiênicas,
através de práticas rígidas e fiscalizadoras sobre a população local.

Fontes

– Relatório da Inspetoria de Higiene Pública do Estado do Ceará (1913, 1916 e 1918)


– Relatório da Diretoria de Higiene do Estado do Ceará, 1924.
– Relatório de Lucian Smith a Joseph White, 1924.
– Revista Norte Médico/Ceará Médico (1913 a 1935).
– Jornal Diário do Ceará, 1928.
– Jornal O Povo, 1928.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
34 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Referências

ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. A invenção do Nordeste e outras artes.


São Paulo: Editora Cortez, 2001.
BECHIMOL, Jaime Larry (coord.). Febre amarela: a doença e a vacina, uma história
inacabada. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2001.
FARIA, Lina. R. Saúde e política: a Fundação Rockefeller e seus parceiros em São
Paulo. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007.
GARCIA, Ana Karine Martins. “A SOMBRA DA POBREZA NA CIDADE DO SOL: o
ordenamento dos retirantes em Fortaleza na segunda metade do século XIX”, São
Paulo-SP; Dissertação de Mestrado defendida na PUC-SP, 2006.
______ A CIÊNCIA NA SAÚDE E NA DOENÇA: Atuação e prática dos médicos em
Fortaleza (1900-1935). São Paulo: Tese de Doutorado defendida na PUC-SP,
2011.
LOWY, Ilana. Virus, mosquitos e modernidade: febre amarela no Brasil entre ciência e
política. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.
MARINHO, Maria Gabriela S.M da Cunha. Elites em negociação: breve história dos
acordos entre a Fundação Rockefeller e a Faculdade de Medicina de São Paulo.
(1916-1931), Bragança Paulista: EDUSF, 2003.
NOBRE, Geraldo da Silva. Introdução à história do jornalismo cearense. Fortaleza-
CE; NUDOC/Arquivo Público do Estado do Ceará, 2006.
SITES: http://www.clickescolar.com.br/regioes-tropicais-ou-zona-tropical.htm
“Comer, Curar e Rezar”: a alimentação, a
doença e a cura na Capitania de Goiás
Cristina de Cássia Pereira Moraes1

O s portugueses em sua expansão pelo mundo reconheceram, trocaram e se


apropriaram de sistemas alimentares e medicinais complexos compostos de
minerais, animais e plantas asiáticas, africanas, europeias e americanas. Isto pode
ser percebido no sertão dos Guayazes quanto ao conhecimento, uso e difusão de
drogas com as mudanças ocasionadas no sistema medicinal pela perda de força da
medicina humoral hipocrático-galênica e o fortalecimento da corrente racionalista
iluminista que se difundiu em meados do XVIII na Capitania difundida pela família
Cunha Meneses entre 1773 a 1802. Acreditava-se até pouco tempo, que poucos re-
médios vinham da Europa devido a longa distância, a perda de qualidade e os preços
exorbitantes, e que plantas medicinais mesmo que exógenas deveriam ser cultivadas
nos quintais, enquanto havia uma farmacopeia prática difundida na população ad-
vinda da flora local. No entanto, na documentação que pesquisamos; inúmeros me-
dicamentos fitoterápicos que eram oriundos da flora de diversos continentes eram
comprados em Portugal e enviados a Vila Boa de Goiás desde 1785. Nosso objetivo
nesse ensaio é proporcionar um panorama sobre a alimentação, a doença e a cura
em Goiás levando em consideração a circularidade cultural ocorrida entre os indí-
genas, os portugueses e os nascidos no Brasil, os africanos boçais e ladinos; como
conhecedores e propositores da fronteira interétnica ocasionada pela frente expan-
sionista portuguesa no século XVIII.
Na antiga capital, Vila Boa e atual Cidade de Goias, o Quartel do XX, como
ainda é conhecido, é um edifício sóbrio, bem proporcionado que apresenta, em toda
sua composição e estrutura, as características próprias da arquitetura implantada
pelos portugueses em praticamente todo o território colonial. Desenvolve-se em um

1 Professora Associada da Universidade Federal de Goias


Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
36 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

pavimento, avarandado, em torno de um pátio central de grandes proporções, pos-


suindo apenas duas salas no segundo pavimento, uma sobre o saguão de entrada e
outra sobre a cela de prisão. Utilizando como técnica construtiva a taipa-de-pilão
nas paredes externas, o edifício tem, no entanto, suas divisões internas feitas em
adobe, elemento que possibilita a elaboração de paredes menos espessas, o que lhe
proporciona compartimentos mais amplos. O piso das salas é de mezanela, enquan-
to o dos corredores (varandas) é de pedra, notando-se ainda seixo rolado no saguão
de entrada.O beiral encachorrado contorna todo o pátio, além de se fazer presente
também nos dois sobrados e ao longo de toda a fachada. O telhado, que em geral é de
duas águas, apresenta-se em quatro no sobrado da fachada principal, o que concorre
para a impressão de robustez proporcionada pelo edifício.
A construção de um Hospital Militar ou enfermaria militar anexa ao Quartel
de Vila Boa se fazia mais que necessário, visto que desde o início da ocupação dos
Guayazes, os portugueses se encontravam, ora ou outra, em situação de hostilidades
para com os nativos destas terras. A regularização do poder militar na Capitania
de Goiás, principiada em 1736 com a chegada da primeira companhia de Dragões,
inaugurou a presença efetiva de companhias militares, devidamente treinadas para
o enfrentamento ao gentio hostil – ou seja, àqueles de conduta belicosa, que não se
adaptaram e repeliram as políticas adotadas para a conversão e civilização dos mes-
mos. Tal mecanismo era denominado “guerra justa” e representava a concessão pela
coroa portuguesa do direito de caçar e exterminar os indígenas que prejudicavam as
populações das vilas e aldeias criadas.
O clima dos conflitos iminentes, juntamente com as reformas empreendi-
das por Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras e futuro Marquês de
Pombal, determinaram uma preocupação mais acentuada no que tange a instituição
militar e o cuidado com os militares. A necessidade de um hospital militar e na falta
dele uma enfermaria bem estruturada que atendesse as necessidades dos feridos em
serviço da Real Coroa, se convertera em elemento básico e essencial, posto que os
governantes e superiores não deveriam deixar seus homens morrerem a míngua sem
tratamento adequado de seus ferimentos e enfermidades.
O regulamento dos Hospitais Militares ou enfermarias era o mesmo tanto para
o reino quanto para os domínios ultramarinos. Destarte, em 1º de setembro de 1765
entrou em vigência o Regulamento das Instruções para o Hospital da Corte, que dita-
va de maneira pormenorizada o funcionamento da instituição através das atribuições
de cada funcionário: Almoxarife, escrivão, fiel, cozinheiro, moço de compras, físicos,
Histórias de Doenças 37

cirurgiões, padres-enfermeiros, boticário etc. Havia uma preocupação extrema para


com a limpeza do local e os bons cuidados com os enfermos, sendo dever de todos o
cumprimento destas regras, pois, caso contrário, haveria punição certa.
A entrada dos militares enfermos deveria ser acompanhada por seu superior
competente, que se responsabilizava pelo comportamento daquele, e tinha o dever
de se informar acerca de sua situação. Este procedimento era seguido de perto pelo
escrivão, que devia lavrar em seu livro todas as altas e baixas dos pacientes, além das
informações pessoais e profissionais dos mesmos.
Havia também um zelo especial quando se tratava da dieta e da alimentação
dos pacientes. Os físicos e cirurgiões deviam comparecer ao hospital duas vezes por
dia, visitando todos os pacientes de todas as enfermarias, de maneira que não lhes
faltasse nada. Nesses momentos, eram prescritas as dietas e os medicamentos de
cada um, que deviam ser seguidas rigorosamente, tanto que não era permitida a en-
trada de pessoa alguma no Hospital sem uma vistoria prévia, para que não levassem
nada aos enfermos, pois se concluíra que estas situações de nada serviam a não ser
aumentarem a queixa dos doentes. As receitas dos medicamentos a serem ministra-
dos eram então entregues ao boticário para sua produção.
É importante ressaltarmos que tanto o Hospital Militar quanto os aldeamen-
tos na Capitania de Goias foram utilizados como laboratórios para praticas de sa-
beres entre as culturas indígenas, europeias e africanas. Os aldeamentos de forma
geral serviam como formação e reserva de mão de obra, como unidade produtiva,
espaço de difusão do cristianismo e tropa aquartelada, sendo os mesmos espaços
próprios para constituir bandeiras, posto que os homens eram alistados em tropas
de descimento, captura de fugitivos, combate a quilombos, ou para “desinfestar” de-
terminada área de interesse da Coroa e de moradores na chamada “guerra justa”.
Para alem disso, eram distribuídos espacialmente de modo a constituírem barreira
contra indígenas inimigos, para evitar descaminhos do ouro, como guarnição de
postos de cobrança de impostos, para garantir posse de território diante das outras
Coroas europeias, além de fornecer mão de obra para arraias, fazendas e vila.
Enfim, se constituíram como espaços pensados e organizados para operar
a subordinação do indígena, mas também dos escravos, forros e livres pobres que
ali habitavam. Instituições que operavam na prática o que contemporaneamente
se chama colonialidade do poder/saber, pois eram espaços de forte assimetria do
poder, locais onde se operava a “exclusão, negação e subalternização ontológica e
epistêmico-cognitiva dos grupos e sujeitos” subordinados (Catarine Wash, 2009,
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
38 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

p.23). Em todos os aspectos eram espaços organizados para reduzir os indígenas,


seja em relação a população, mobilidade, quanto a prática da cultura indígena, proi-
bição das relações próprias com o sagrado, produzindo mudanças de habitus quanto
alimentação, medicina, relações de poder, operação dos saberes e técnicas e divisões
do trabalho.
O uso das plantas pelos indígenas na relação com as doenças é comentada
pelo governador que indica que os indígenas em questão não conhecem ou experi-
mentaram “os efeitos de umas tantas moléstias que nós sofremos”, por outro lado, “as
de que pela sua natureza são atacados lhe têm feito adquirir, por experiências (..) um
amplíssimo Conhecimento de muitas virtuosíssimas ervas”. Os indígenas possuíam
todo um conhecimento prático sobre o uso de ervas para fins medicinais, em tintu-
ras, para a produção de artefatos, diversão e alimentação que eram percebidos como
novos recursos a explorar. Havia uma pesquisa e apropriação do sistema medicinal
e alimentar indígena pelos portugueses que tinha como fito ampliar as drogas utili-
zadas e comercializadas.
Em sua carta o governador aponta a utilidade em conhecer as ervas e raízes
utilizadas pelos indígenas, em especial fala de uma utilizada pelos Iny ou seja, indí-
genas Karajá e Javaés de uma batatinha chamada no “Paraguaia (sic) e aqui na Nova
Beira (Ilha do Bananal), que usando-se dela, como do chá tem provado melhor do
que a quina para as sezões, mas este de que são muito perseguidos e de que se reme-
deiam facilmente com a referida batatinha”. (DIAS;LEMKE;MORAES, 2016)
A apropriação do uso e conhecimento de plantas indígenas chegou a ser re-
alizado a partir de métodos científicos modernos, como descrito no ofício datada
de 1783, escrito por Inácio Joaquim T. A. Pais Leme, ao secretário de estado da
Marinha e Ultramar, Martinho de Melo e Castro. No texto ele descreve as experi-
ências a partir da erva “andorinha” e do uso do fio de tucum. Cita que o capitão de
pedestres destacado a região de Pilões observou o uso da erva “andorinha” pelos
Kayapó para tratar olhos vazados e comunicou ao Ajudante das Ordens Jose Pinto
da Fonseca que para desenganar-se furou o olho de um pato, ao fim de cinco dias
o trouxe completamente curado ao Governador Luis da Cunha Menezes, sem mais
lesão que um pequeno risco, no olho de cesura. Paes Lemes passou a segunda ope-
ração, furando ambos olhos ao Pato e repetindo-lhe a cura todos os dias, no fim
de cinco dias encontrou o Pato completamente são, só com sinal de duas cesuras,
por serem dois golpes, que lhe deram nos olhos (LEME, Inácio Joaquim Taques de
Almeida Pais, 1783) A aferição da melhora dos olhos do pato se deu quando ele
Histórias de Doenças 39

encontrou o caminho para o milho. Foi enviada remessa dessa erva para analise pela
Coroa e se ficou combinado de enviar mudas da planta.
Além da erva foi enviado um novelo de fio de tucum e folhas dessa palmeira,
junto a uma analise comparativa do fio, no qual se aponta o uso:

Este é o mais rijo que há com tanta sustância, que se para suster avultado peso
foi necessário um cabo de linho de cem polegadas de grosso, sendo de tucum
bastará a grossura de dez polegadas. Conservam-se muito na água, circuns-
tancias porque me lembra que examinado, e a prova de seu vigor, será muito
util para amarrar. Em toda a America ha abundancia destas Palmas, mas com
tanta fertilidade no Pará, e Maranhão, que julgo bastarão estes dois Estados
para prover de amarras as Naus de Sua Magestade (LEME, Inácio Joaquim
Taques de Almeida Pais, 1783)

Remédios como a batatinha descrita acima eram estratégicas a expansão portu-


guesa em terras de doenças tropicais, lugar onde o corpo europeu possuía pouca resis-
tência aos patogênicos tropicais, como dengue, febre amarela, malária dentre outras.
Para alem disse, ele descreve o uso do urucum referente a pintura “para se preservarem
das mordidelas dos mosquitos, das moscas e mais insetos que abundam às margens da
maior parte dos rios onde habitam”. O uso do urucum para o governador tem relação
também com a capacidade de se locomover dos indígenas entre peçonhas e predado-
res tão perigosos aos portugueses. (DIAS; LEMKE; MORAES, 2016)
Do “gentio” herdou-se o costume da lavoura do milho e da mandioca, conse-
quentemente, a canjica feitas de milho e o mingal preparados com farinha de man-
dioca ou com a tapioca, gema extraída da raiz desse arbusto, a possoca ou passoca,
um composto de farinha e carne assada pisada em pilão, o mate, o caruru ou cariru. O
indígena fabricava mais de uma espécie de farinha, tanto que ao peixe seco esfarela-
do, numa espécie de ralo, dava o nome de farinha de peixe. A farinha de milho era
o milho seco, retirada, a película, e bem pisado, misturado com pouca água e cozido
em banho-maria como se pratica no sertão.
É importante destacar que concomitante aos negócios de minerar, as fazen-
das de gado e agricultaveis se complementavam; a afirmação de Casal Aires sobre
a abundância de gado, é interessante sobre o gado vacun e cavalar quando faz um
panorama no que chamou de “zoologia”:
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
40 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

abunda de gado vacum: as cabras são poucas, e quase inúteis; as ovelhas pou-
co mais numerosas e úteis, porque ainda não se lhes aproveita bem a lã, com
a qual podia já haver alguns ramos de indústrias: dos porcos pouco mais se
criam do que os necessários para o consumo do país: criam-se também cava-
los, entre os quais os do Paraná são os melhores.

A criação desses animais fazem parte do movimento de ocupação que pouco


a pouco se expandia com as fazendas, arraiais e vila, ampliando os domínios portu-
gueses em detrimento dos indígenas e espanhóis. Os animais domésticos garantiam
o suprimento proteico e a sua manutenção fornecia o armazenamento de alimento
constante. O algodão e o tabaco eram muito cultivados e utilizados para exportação.
Da cana de açúcar que sustentavam inúmeras fabricas de engenhos; a maior parte
era reduzida a aguardente e rapaduras. Ademais, farinha de mandioca , milho e le-
gumes contribuíam decisivamente para a arrecadação do dizimo na agricultura em
conjunto com o gado vacum e cavalar.

Por toda a parte os frutos do cerrado como o araçazeiro, o annanazeiro; a


mangabeira, a goyabeira, a bannaneira: as jabuticabas graúdas, os ambús de
varias qualidades ; as laranjas, as melancias são de excelente qualidades: as
marmeladeiras multiplicadas em alguns sitios meridionaes, seu fruto do ta-
manho e forma de laranja, e athé com casca grossa, mas anegreada quando
maduro, tem uma polpa agridoce, e desenfastienta, que faz lembrar a marme-
lada. As maçans não lizonjeam a vista , nem o paladar: os marmelos sam pe-
quenos, e mui insípidos; porém faz-se delles boa quantidade de doce. (AIRES
CASAL, p. 322)

Conforme Aires Casal, as parreiras tomam um crescimento e grossura notá-


vel em muitas regiões e frutificam abundantemente duas vezes no ano: com as uvas
da estação seca se faz vinho de excelente qualidade, as do inverno servem para o
vinagre, que substitui muito bem o importado europeu.
As muitas carregações de produtos como carne (seca e verde), peixes, sal,
vinho, bacalhau, azeite, farinha etc., assim como de escravos, tecidos, ferramentas,
utensílios, moveis, barras de ferro, pólvora, chumbo, vidros e louças etc., que en-
traram na Capitania de Goiás pelas mãos de mineradores, sesmeiros, viandantes,
condutores, mercadores, comboieiros, homens de negócios e tratantes contam um
pouco da formação desta região e do comércio desenvolvido ao longo do século
XVIII e início do XIX.
Histórias de Doenças 41

De Portugal, afirmam que chegava a “chita, baetões, fitas de seda e veludo,


gangas de algodão e seda, lenços, musselinas, tecidos de algodão cru, cetim,
chapéus, panos de linho e rendas”, e em menor monta “os paios, a pólvora, os
presuntos, o vinho, o bacalhau e o vinagre”.2

São encontrados nos inúmeros testamentos já pesquisados em Goias, ma-


nuais para o uso na arte da cozinha, onde não se recomendava o emprego a negros,
mulatos e pessoas mais novas ou de “inclinação vil, proceder torpe e depravados
costumes e com risco na sua saude , que assim mo tem moftrado à experiência de
muitos anos”.3 Com certeza tal hábito não se era usado no além-mar, pois se sabe
que o fogão era dominado pelas pretas velhas na maioria das residências e fazendas,
as quais misturavam os conhecimentos trazidos das áfricas com os adquiridos pelas
sinhás ou as mulheres do fado.
Ademais, como a arte de cozinhar estava interligada com a arte de curar al-
guns cuidados são observados quando uma pessoa se encontrava doente. Ao se co-
zer sopas ou guisados ou massas receitados por um médico; que o cozinheiro ou o
cuidador do dito cujo adoecido não utilize adubos, toucinho , manteigas , e sendo
gallinhas , não sejam velhas, ou chocas, nem lhe dê de comer requentado pelo muito
que he nocivo. 4
Para além disso, muitos cozinheiros ou cozinheiras utilizavam toda sorte de
temperos como os espécies pretas que eram uma mistura de pimenta, cravo da índia
e noz moscada e os adubos, uma mistura de pimenta, cravo, noz moscada, canela,
açafrão, e coentros para disfarçar a podridão ou má qualidade das carnes, peixes,
aves ou qualquer gênero de alimentos cada vez mais indigestos.
Como temperos aromáticos que são encontrados aqui nos Guayazes temos
a salsa utilizada nos guisados sob a fôrma de um ramo ou bouquet gami que se tira
na ocasião em que será servido. Também se emprega picando-a, mas neste caso o
seu uso devia ser mais limitado, porque o excesso era considerado pela medicina
da época prejudicial. O alho e as cebolas, cujo uso era tão frequente e multiplicado,

2 Cf: PAULA, Jason H. Capitania de Goiás: caminhos, negociantes, família e mobilidade so-
cial. Freguesia de Santa Luzia – c.1746 – c.1808. Tese de Doutorado. Goiania: PPGH, 2017.
Libelo Civel. Processo n° 4. Autor: Antônio de Araujo Braga. Réu: Francisco Borges da Costa.
Arquivo Frei Simão Dorvi. Livro F (1757-1797). Doravante AFSD, Libelo Civil n° 4….
3 RODRIGUES, Domingues. Arte da cozinha. 3º edição, Lisboa, 1748, pag. 258.
4 Ibdem, pag. 257.
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42 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

oferecem um tempero muito odorífero e salubre. O alho porro ou alho doce, que
possui, em menor grau, o sabor e as qualidades do alho ordinário, dá igualmente um
gosto agradável á comida. As cebolas empregam-se geralmente para dar às sopas,
aos molhos e aos guisados um sabor e perfume bastante agradáveis. As cebolas assa-
das dão boa côr ás iguarias. O manjericão, a manjerona, a hortelã, salvia e o alecrim,
possuindo as mesmas qualidades aromáticas, embora sejam diversos os seus perfu-
mes, empregavam-se com menos frequência do que as folhas de louro e o tomilho.5
Percebemos nesses manuais que a base da alimentação é sempre o alimento
bem cozido e; quando assado, voltava novamente à forma de guisado inclusive as
verduras e frutas: tudo colocado em um grande tacho:

(…) alimentos mais indigeftos, fatigando, e debilitando a natural açção do


eftomago, e todas as vezes que elle vicia, lle deitem perão os humores, naõ fe
gerando naquella proporção, e temperamento que íaõ devidos áo natural, o
quecon. tinuamente he cauza de tantas,e taõ gra. ves enfermidades, como a
experiência tem moftrado, com que venho a deduzir, que o mais proveitozo, e
verdadeiro comer he o bem cozido, easiado, com alguma roafla, porém muito
pouca, e bem feita , pelo que tem de afma, por-r que foi o uzo destas cousas
suitentaô a confervaçaó devida á natureza, mediante as suás qualidades, por
lhe serem asíim mais semelhiantes.6

Utilizavam-se de tudo com um mínimo de sabor e aproveitavam-se até os ta-


los – como até hoje se faz em Portugal com a famosa e deliciosa “sopa de Grelos” ou
sopa de talos de diversas hortaliças – para uma deliciosa compota de talos de alface
Escolham talos de alface bem compridos e duros, e limpem-nos cuidadosa-
mente, tirando-lhes todas as fibras. Depois de todos bem limpos, tomem os mais
grossos e deitem-nos numa vasilha com água fria. Ponham no fogo um tacho com
água, e quando esta ferver, lancem dentro os talos, deixando-os cozer, até que sejam
atravessados facilmente com um alfinete. Em seguida escorram os talos da água em
que foram cozidos, coloquem-nos num tacho e deitem sobre eles uma calda ferven-
te. Durante quinze dias fervam essa calda separadamente, e derramem-na, ainda
fervendo, sobre os talos. No fim desse tempo a compota estará pronta.

5 P. PLANTIER. O cozinheiro dos cozinheiros. Lisboa s/ed., 1905, pag. 63-64


6 RODRIGUES, Domingues. Arte da cozinha. 3º edição, Lisboa, 1748, pag. 260.
Histórias de Doenças 43

Com efeito os químicos e médicos no setecentos relatavam constantemente a


respeito da falsificação de alimentos, haja vista, que o leite bovino e derivados como
a manteiga eram os mais adulterados, sem esquecermos a farinha de trigo. O leite de
ovelha era considerado o mais rico de todos em matérias nutritivas e gordas (man-
teiga); em seguida o leite de cabra e o leite de vaca ocupa unicamente o terceiro lugar
por causa da adição de agua, cobre, cianureto amarelo e outras coisas estranhas. A
manteiga poderia ganhar todos os prêmios por aditamentos esdrúxulos tais como:
giz, batata, farinha de trigo, sebo de vitela, carbonato de chumbo, açafrão, bagas de
aspargos, flores de malmequer, suco de cenouras, dentre outros. 7 Quanto a farinha
qualquer produto branco que se assemelhasse como a cal, o giz, pedra branca era
adicionado. Nos manuais se ensina como diferenciar o produto certo do falsificado.
A considerar como base da alimentação mais usual podemos citar o gado; as
cabras; as ovelhas pouco mais numerosas e úteis, porque ainda não se lhes aprovei-
tavam bem a lã, com a qual podiam haver alguns ramos de indústrias; dos porcos
pouco mais se criavam do que os necessários para o consumo; criavam-se também
cavalos, entre os quais os do Paraná que eram considerados os melhores. Os veados,
por toda a parte numerosos forneciam com suas peles um ramo de comércio. As
onças, antas, porcos do mato, lobos, ou guarás, macacos, tamanduás, raposas, cotias,
quatis, pacas, com outras muitas espécies de quadrúpedes comuns e geralmente per-
seguidas: de umas aproveitas-lhes a carne, de outras a pele, e de algumas uma e outra.
As perdizes e emas eram encontradas frequentemente nos descampados: os mutuns
habitavam os bosques, e com seu lúgubre canto chamavam o caçador, que não lhes
perdoava; conhecia-se bem os tucanos, os pombos trocazes, as aracuãs, as arapongas,
os jacus. Grande parte destes viventes morriam frechados pelos selvagens, que os comem
sem sal, nem algum outro tempero. (AIRES CASAL, 1809, p.154)
No Hospital Militar de Vila Boa, em 1 de setembro de 1765 entrou em vigên-
cia o Regulamento das Instruções que vigorava tanto para o Hospital da Corte quan-
to para os domínios ultramarinos, que ditava de maneira pormenorizada o fun-
cionamento da instituição através das atribuições de cada funcionário: Almoxarife,
escrivão, fiel, cozinheiro, moço de compras, físicos, cirurgiões, padres-enfermeiros,
boticário etc. Havia uma preocupação extrema para com a limpeza do local e os
bons cuidados com os enfermos, sendo dever de todos, o cumprimento destas re-
gras, pois, caso contrário, haveria punição certa.

7 P. PLANTIER. O cozinheiro dos cozinheiros. Lisboa, s/ed. 1905, pag. 652-653.


Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
44 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

A entrada dos militares enfermos deveria ser acompanhada por seu superior
competente, que se responsabilizava pelo comportamento daquele, e tinha o dever
de se informar acerca de sua situação. Este procedimento era seguido de perto pelo
escrivão, que devia lavrar em seu livro todas as altas e baixas dos pacientes, além das
informações pessoais e profissionais dos mesmos. O zelo para com o ambiente era
fiscalizado pelo almoxarife, que tinha um papel de imensa responsabilidade em suas
mãos. Na sessão Ordens do que se deve observar no Hospital Militar, o primeiro
parágrafo da parte que diz respeito aos serviços a serem desempenhados por este
funcionário, consta que deve fazer uma assistência tal, que faça exemplo a todos os
oficiais, enfermeiros, serventes e mais pessoas, que nele se ocupam. Para tanto, não
era tolerada a mínima falta ou desordem, sendo que os cuidados com a higiene do
local estavam entre uma das atribuições mais importantes nos Hospitais Militares.
Havia já naquela época, determinada consciência acerca das dificuldades
advindas do contato indevido com enfermos portadores das doenças ditas agudas,
malignas ou tísicas, consideradas prejudiciais. Não era consentido que nas camas em
que morresse algum enfermo diagnosticado com os referidos males, ou nas camas
em que morresse qualquer paciente, se deitasse outro enfermo. No caso das mor-
tes, ainda era permitido a reutilização desta e das roupas de cama após lavar-se de
maneira exímia e com todo o cuidado. No entanto, as camas de doença tísica não
deveriam tornar a servir qualquer outro enfermo, devendo ser lavadas à parte para
servir de mortalha aos defuntos.
Para além disso, não era tolerado que roupa alguma da enfermaria fique suja
de um para o outro dia; porque em todos se deve mandar para a lavandaria, ou em
muita ou em pouca quantidade. Aos enfermos eram oferecidas as melhores con-
dições no que tange ao asseio e os cuidados para sua melhora. Aos serventes que
terminassem os serviços maiores do Hospital e que não tivessem nenhum serviço
nas horas próximas, eram distribuídos pelas enfermarias de maneira a auxiliarem
os padres-enfermeiros na assistência aos doentes, ajudando-os a ministrarem-lhes
água benta ou os santos óleos.
Em lanço de arrematação para a administração do Hospital Real Militar em
30 de janeiro de 1807, no tribunal da Junta da Real Fazenda, Joaquim da Silva Freitas
ganhou o dito “pregão” debaixo das seguintes condições: assistirá com remédios para
curativos, com comida bem feita e quente, mandar realizar as sangrias, contratar os
enfermeiros, comprar todos os víveres e lenhas necessárias para as refeições e os ba-
nhos, se incumbir de mandar lavar toda a roupa do hospital, bem como, da limpeza
Histórias de Doenças 45

do mesmo; tudo sob a direção, controle e cuidado do cirurgião-mor Bartholomeu


Loureiro da Silva. O arrematante administrador do Hospital receberia de salário
anual duzentas oitavas de ouro.
Havia também um zelo especial quando se tratava da dieta e da alimentação
dos pacientes. Os físicos e cirurgiões deviam comparecer ao hospital duas vezes por
dia, visitando todos os pacientes de todas as enfermarias, de maneira que não lhes
faltasse nada. Nesses momentos, eram prescritos as dietas e os medicamentos de
cada um, que deviam ser seguidas rigorosamente, tanto que não era permitida a
entrada de pessoa alguma no Hospital sem uma vistoria prévia, para que não le-
vassem nada aos enfermos, pois se concluíra que estas situações de nada serviam a
não ser aumentarem a queixa dos doentes. As receitas dos medicamentos a serem
ministrados eram então entregues ao boticário para sua produção. Não podemos
esquecer do estreito vínculo entre medicação e alimentação, pois, um complemen-
tava o outro.
Dentre os medicamentos mais correntes, encontramos óleo de louro: extraído
por destilação a vapor das folhas frescas do louro e utilizado como antissépticos, anti-
bióticos, antiespasmódicos, antinevrálgicos, analgésicos, adstringentes, inseticidas, se-
dativo, sudorífico e tónicos; emplasto de cicuta/cicuta com mercúrio: aplicado esten-
dido em pano, era utilizado para abrandar a dureza dos cancros; nos humores cirrosos,
nas escrófulas e ulceras sifilicas; magnésia e sal amoníaco: utilizado geralmente para
problemas digestivos e mercúrio muriato corrosivo para a cura da gonorreia e cancro
venéreo, o que era a doença mais comum na capitania e entre os militares.
Como nem sempre a comida e o medicamento funcionavam apelava-
-se para o espiritual, ou seja: o que era feito pela via da medicina popular e da
religiosidade, como uma terapêutica, na qual corpo, espírito e santos, e medica-
mentos eram inseparáveis. Os remédios dessa medicina, mesmo aqueles que
agem por via natural, são ministrados com um cerimonial de mistério e de
magia, que aos olhos do povo só pode aumentar seu valor e sua eficácia […]
onde o gosto por essa mistura do humano com o divino está patenteado nas
invocações, nas preces simples ou seguidas de imposições manuais e de ges-
tos de esconjuro; no rudimento de atos sacrificiais praticados sobre animais
vivos; no esboço de penitência e castigo buscados no remédio estercorário e imun-
do – que acompanham a administração corriqueira de suadouros; de purgas de
velame e de jalapa; de infusos, cozimentos e tinturas de jatobá, pinhão aroeira e
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
46 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

pimenta; de fórmulas contendo o tártaro para o paludismo e o mercúrio para a


sífilis. (NAVA, 2003, p. 179).8

Fonte: Arquivo Historico Ultramarino: AHU, D. 2479.Cx 52.

8 SILVA, Lenina Lopes Soares Silva. In: ANAIS DO II ENCONTRO INTERNACIONAL DE


HISTÓRIA COLONIAL. Mneme – Revista de Humanidades. UFRN. Caicó (RN), v. 9. n. 24,
Set/out. 2008. ISSN 1518-3394. Disponível em www.cerescaico.ufrn.br/mneme/anais
Histórias de Doenças 47

Ademais, benzeção, uso de pedras d’ara, patuás apesar de proibidos pela igre-
ja faziam parte do dia a dia dos habitantes do sertão dos guayazes; em conjunto com
Nossa Senhora do Carmo, imagem usada no bentinho para afastar inimigos invisí-
veis; Nossa Senhora do Bom Despacho protetora das noivas; Santa Ágata protetora
dos males pulmonares; Santa Apolônia a cuidar das dores de dente; São Bartolomeu
a cuidar das afecções nervosas e possessões demoníacas e São Benedito protetor das
mordeduras de cobras, dentre tantos santos. Outrossim, se o medicamento e o ali-
mento não resolviam, nem tampouco o santo, chamar-se ia o curandeiro ou o pajé.
Como exemplo, a carta do governador Luís da Cunha Menezes (1778 – 1783)
provavelmente para seu irmão Tristão da Cunha Meneses (governou entre 1783-
1800) traz indícios sobre a religiosidade ameríndia realizada provavelmente no al-
deamento de Mossâmedes por Karajá, Javaés e Caiapó. Apesar da distinção espacial
e de status inferior conferido aos pajés nos aldeamentos, fica evidente que continu-
avam a exercer sua religiosidade e suas práticas de cura. O governador identifica
mais, relaciona a figura do pajé como o especialista indígena em cura e interlocutor
com o sagrado, quando chama o curador de feiticeiro. Sobre o pajé afirma ele que:

O que de entre eles, em virtude desses conhecimentos, faz aplicação dos


seus remédios, lhe dão o título de feiticeiro, aludindo de adivinhar ou des-
cobrir, se é que adivinha ou descobre, a origem das suas moléstias, no que a
maior parte das vezes, ou quase sempre, experimentam as mesmas infelicida-
des que os mais famigerados daquela desgraçada profissão (DIAS, LEMKE;
MORAES,2016)

Enfim, para o cuidado com a saúde sempre precária tentou-se fazer o melhor
para os homens e mulheres do sertão dos guayazes, utilizou-se o alimento, o me-
dicamento e a reza e se não desse certo, a encomendação da alma estaria garantida
com as 36 irmandades existentes somente no setecentos.

Referências

AIRES DE CASAL, Corografia Brasilica. Ministério da Educação e Saúde/Instituto


Nacional do Livro; Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945. (COLEÇÃO DE
OBRAS RARAS II: Fac-símile da edição de 1817).
GONDRA, José Gonçalves. Artes de Civilizar: medicina, higiene e educação escolar
na corte imperial. Rio de Janeiro: Ed.UERJ, 2004.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
48 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

MIRANDA, Carlos Alberto Cunha. A arte de curar nos tempos da Colônia: limites e
espaços de cura. Recife: Fundação de Cultura da cidade de Recife, 2004.
MORAES, Cristina de Cássia P.; LEMKE, Maria; DIAS, Thiago Cancelier. “Fomos
aqui acometidos por três flagelos: a varíola, o morbo e o cólera.” Um ensaio
sobre as epidemias nos Guayazes. In: MOTA, André; PIMENTA, Tânia Salgado,
FRANCO, Sebastião Pimentel. No rastro das províncias. As epidemias no Brasil
oitocentista. Vitoria: EDUFES, (no prelo)
NAVA, Pedro da Silva. Capítulos da História da Medicina no Brasil. Cotia: São Paulo/
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PAULA, Jason Hugo de. Entre picadas, estradas e trieiros: os caminhos que levam
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2009, p. 12-43.
Crime e loucura: o louco infrator nos
processos judiciais
Éder Mendes de Paula1

Introdução

O crime e a loucura quando relacionados estabelecem uma lógica de interpreta-


ção do delito e do delituoso que muitas vezes não respeita os processos legislati-
vos, ou seja, mesmo que a determinação seja um olhar diferente sobre o inimputável,
na maioria das vezes o louco infrator termina diluído na categoria dos presidiários.
Neste sentido, na sociedade em que um crime de loucura ocorre emergem
narrativas sociais delimitadoras das representações em torno do fato, estabelecendo
os lugares das vítimas e dos algozes o que leva à construção desta relação entre o
crime e a loucura. Assim, é possível perceber que nem todos os atos delituosos pos-
suem essa analogia, pois, é preciso que haja determinados fatores que a sociedade
julgue como um crime relacionado diretamente à loucura.
Não obstante, existe outro espaço de construção da relação entre o crime e a
loucura, cercado pelo saber técnico judiciário é onde os testemunhos produzem as
narrativas que ligam o sujeito acusado ao fato delituoso e à sua possível loucura. O
Processo Crime é a peça primordial para análise de como as narrativas (re)constro-
em o crime, de como criam também as representações em torno daquele acusado
como perpetrador.
As narrativas das testemunhas servem para que o aparelho judiciário consi-
ga, através de um quebra cabeças, remontar a cena do crime e buscar assim algum
sentido para o ato. Mas é onde demonstram como um assassinato é assimilado pelo

1 Doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação em História nível de Doutorado da


Universidade Federal de Goiás.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
50 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

corpo social, levando em consideração os lugares sociais da vítima e do assassino,


fazendo assim, emergir o louco infrator.
Na presente pesquisa, a análise se concentra em um caso, o Processo Crime
de [Marcos] arquivado no fórum da cidade de Montes Claros de Goiás na divisa com
o estado do Mato Grosso. O mesmo matou em Julho de 1993 o padre Peter, mais
conhecido como padre Pedro com uma facada na porta da igreja em frente à praça
Cristo Rei pouco antes da missa ser iniciada.
Assim que comete o crime, [Marcos] se coloca em fuga e é visto por várias
pessoas, que não presenciaram o momento da facada em si, mas se colocam como
testemunhas de seu desespero logo a seguir. São narrativas de diversos ângulos que
constroem, naquele momento, sua identidade como louco infrator, narrativas que o
categorizam e relacionam seu crime à loucura.
São nessas narrativas que esta análise se concentra, possibilitando a partir da
contextualização do crime perceber como se dá a assimilação do crime pela comu-
nidade e a construção do louco infrator.
As fontes utilizadas, os testemunhos presentes na fase inquisitorial do
Processo de [Marcos], foram encontradas no fórum da cidade de Montes Claros
de Goiás. A indicação do caso foi feita pelo Programa de Atenção Integral ao
Louco Infrator, existente em Goiás desde os anos 2000 a partir de uma iniciativa do
Ministério Público do estado.

O processo crime como fonte histórica

O processo-crime passa a ser utilizado como fonte após uma ampliação acer-
ca do conceito de documento, uma inovação trazida a partir da Escola dos Annales
que ampliou o leque de possibilidades de investigação do historiador.
As novas abordagens também se estenderam a questões metodológicas, pois,
diferentes fontes passaram a requerer formas diferenciadas de análises, ou pelo me-
nos, uma variação no seu trato e questionamentos para finalidade de pesquisa.
A questão primeira que se coloca em relação ao processo criminal é que os
personagens que o compõem não estão ali voluntariamente:

fossem vítimas, querelantes, suspeitos ou delinquentes, nenhum deles se ima-


ginava nessa situação de ter de explicar, de reclamar, justificar-se diante de
uma polícia pouco afável. Suas palavras são consignadas uma vez ocorrido
o fato, e ainda que, no momento, elas tenham uma estratégia, não obedecem
Histórias de Doenças 51

à mesma operação intelectual do impresso. Revelam o que jamais teria sido


exposto não fosse a ocorrência de um fato social perturbador. De certo modo,
revelam um não dito (FARGE, 2009, p. 13).

O processo criminal se mostra uma fonte rica de narrativas, principalmente


no que diz respeito aos depoimentos das testemunhas que vão construindo a cena
do crime. No entanto, é preciso considerar que o aparato técnico que realiza as ques-
tões desta inquirição é revestido de uma pressão e, as pessoas estando ali involun-
tariamente interferem na maneira como vão expor aquilo que viram ou souberam.
Assim sendo, o fato que jamais será alcançado novamente, ou revivido é re-
constituído a partir de representações, a partir da memória de indivíduos pressio-
nados pelo aparato policial e imbuídos de sentimentos em relação ao crime, depen-
dendo do seu envolvimento com alguma das partes.
A narrativa dos depoimentos é de certa maneira direcionada pelo aparato
policial, as perguntas estabelecem o teor e ao mesmo tempo as temáticas a serem
abordadas nas respostas. Neste caso, soma-se à involuntariedade de estar ali, o cami-
nho definido por aqueles responsáveis de fazer emergir deste diálogo, uma narrativa
testemunhal capaz de auxiliar na reconstrução do crime.
É interessante observar que estes depoimentos não estarão ocupados apenas
com o momento do crime, mas também vão buscar a vida pregressa de vítimas e al-
gozes construindo, assim, personagens sólidos de uma determinada trama e enredo
que se impõe a partir do fato delituoso.
E se torna ainda necessário ressaltar que o processo criminal é uma peça
formada por diversas vozes que se cruzam, constituído por várias partes que lhe dão
uma visão de todo.
Dentre as diversas peças que constituem o Processo, para a análise em questão
me deterei nos depoimentos das testemunhas e nos relatórios da polícia que fecham o
inquérito. A escolha deste material específico é perceber, a partir do plano discursivo
como o crime vai sendo narrado na multiplicidade de olhares das testemunhas.
Tal abordagem das fontes judiciais permite “o pesquisador lançar mão de pro-
cedimentos hermenêuticos que o levam a transcender os limites da fonte original –
eminentemente judiciários – e apreender sentidos em planos discursivos mais amplos”
(SOUZA, 2009, p. 161).
Neste âmbito, as narrativas oriundas das inquirições policiais podem abrir
um leque de interpretações sobre dada realidade, sobre as relações sociais ali exis-
tentes. O estabelecimento de fronteiras entre o normal e o anormal, entre o crime e
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52 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

a justiça, entre o louco e o louco criminoso podem ser apreendidos nas minúcias de
suas falas testemunhais.
De tal maneira o processo judicial escapa da pura aplicabilidade técnica
como fonte, não é apenas um compêndio fornecedor de dados para a História da
Justiça. Sua utilização ultrapassa tais sentidos e se coloca além, pois, torna possível a
compreensão das possíveis relações e sentidos morais de uma comunidade.
A relação com o crime, com a vítima, com o delituoso, suas visibilidades so-
ciais dão muito a entender sobre o cotidiano da cidade e, consequentemente, sobre
como constrói a própria história.
É preciso levar em conta também que a peça processual é uma disputa pela
verdade, um espaço de produção discursiva que se atendem a interesses opostos:

Na sua materialidade, o processo penal como documento diz respeito a dois


‘acontecimentos’ diversos: aquele que produziu a quebra da norma legal e um
outro que se instaura a partir da atuação do aparelho repressivo. Este últi-
mo tem como móvel o objetivo de estabelecer a ‘verdade’ da qual resultará
a punição ou a absolvição de alguém. Entretanto, a relação entre processo
penal, entendido como atividade do aparelho policial-judiciário e dos dife-
rentes atores, e o fato considerado delituoso não é linear, nem pode ser com-
preendida através de critérios de verdade. Por sua vez, os autos, exprimindo
a materialização do processo penal, constituem uma transcrição/elaboração
do processo, como acontecimento vivido no cenário policial ou judiciário. Os
autos traduzem a seu modo dois fatos: o crime e a batalha que se instaura para
punir, graduar a pena ou absolver (FAUSTO, 1984, p.32).

O processo criminal, portanto, é espaço de uma batalha discursiva onde


não apenas as partes envolvidas se enunciam, afinal, outros enunciados são cons-
truídos intrinsecamente.
Diante do exposto pelo pesquisador, entendendo a peça processual como este
lugar é preciso compreender que nem sempre estes discursos virão abertamente.
No caso específico de [Marcos]2, é preciso lembrar que o crime ocorre em uma
cidade pequena, em que a vítima é um religioso de relativa expressão social. Portanto,

2 Marcos, no ano de 1993 assassina o Padre Peter Gerardus Berkens – conhecido como Padre
Pedro – na cidade de Montes Claros de Goiás, na divisa com o estado do Mato Grosso. Seu
crime chocou a cidade de tal maneira que o mesmo teve que ser recolhido em cadeia vizinha
por correr riscos de linchamento. Acompanhando o seu Processo Crime, desde o primeiro
Histórias de Doenças 53

o próprio aparato policial em suas perguntas nos interrogatórios, e a escolha das pala-
vras para fechar um inquérito, também corresponde a um texto, dentro do texto:

[…] não há enunciado em geral, enunciado livre, neutro, independente: mas


sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desem-
penhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distin-
guindo: ele se integra sempre em um jogo enunciativo, onde tem sua partici-
pação, por ligeira e ínfima que seja (FOUCAULT, 2009, p. 112).

Em relação aos processos judiciais, essa relação entre os enunciados é bem


visível. De um lado testemunhas constroem o crime de visões diferentes, o que varia
de sua proximidade com vítima ou assassino, a polícia e os relatórios dos inquéritos,
defesa e acusação, são enunciados que partem também de julgamentos morais do
crime em si.
Essa teia discursiva não está isenta das relações de poder que as permeiam,
que criam intermediações entre um e outro em uma disputa pelo status de verdade.
Por mais técnica que seja, portanto, a formação da peça processual ela não escapa de
influências dos locais de fala ocupados pelos agentes de sua produção:

O processo se corporifica por meio de uma série de procedimentos, dentre


os quais se destaca um conjunto de falas de personagens diversos. A emissão
dessas falas e forma de captá-las não é diferente da construção do proces-
so. Tomemos o caso das testemunhas e do acusado. Se é certo que qualquer
discurso desfigura mecanismos e conteúdos internalizados, ainda quando se
procura torna-lo o mais livre possível, isso é tanto mais verdadeiro no caso
específico, onde a intenção é oposta. As condições em que se produz a fala
das testemunhas dificultam a emissão; o objetivo dos que aparentemente a
liberam conduzem, pelo contrário à sua captura” (FAUSTO, 1984, p. 33).

O processo é representado por uma técnica que inviabiliza o acesso de qual-


quer pessoa, ou seja, é preciso determinados conhecimentos para compreendê-lo.
Ao mesmo tempo, é composto por uma verdadeira batalha discursiva, enunciados
buscando a superposição em relação ao outro.

momento é pedido, por seu advogado, exame de Insanidade Mental para alegar sua inim-
putabilidade, no entanto, mesmo havendo o laudo atestando a incidência de doença mental,
[Marcos] permaneceu preso durante quinze anos.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
54 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Um fato, duas versões. É neste caminho que a peça processual começa a ser
construída, necessidade de produzir verdades de ambos os lados e, da mesma forma,
de desconstruir tais verdades para que o juiz possa apreciar o caso e dar o veredicto.
Nesta acepção, o juiz não julga o fato em si, mas a versão que mais conseguiu
estruturar-se como verdade. Ou seja, aquela que não apenas apresenta elementos,
mas consegue desconstruir o discurso adversário como “real” e enfraquece-lo.
Existe ainda outro fator que corrobora para essa criação subjetiva do proces-
so criminal, ainda que obedecendo a uma técnica específica:

é a atribuição de valores não equivalentes a cada participante da trama pro-


cessual, qualificando-se o valor dos testemunhos e o peso das evidências de
acordo com critérios extra-legais. Fica evidente, ao se analisar uma série de
atos criminais (processo, inquéritos, portarias e termos), que a representação
do papel social do ator (acusado, ofendido, queixoso, testemunha) por parte
dos “manipuladores técnicos”, aproveitando a expressão cunhada por Mariza
Corrêa, interfere no rumo dos atos subsequentes e na própria força de suas
palavras. A chancela da “acuidade” testemunhal depende de uma série de va-
lores majorados ou mitigados em função de elementos que orbitam fora da
esfera jurídica e que se jungem à cor, ao sexo, à origem, à posição social, ao
passado, em suma, às virtualidades do falante (SOUZA, 2009, 167).

Na elaboração do processo, portanto, é dada importância significativa às vir-


tuosidades de quem fala para ter seu testemunho validado. Neste caso, é possível
que se aponte que tais escolhas estarão relacionadas não apenas com a relação entre
a testemunha e o crime, mas suas atitudes em relação ao cumprimento de normas
morais estabelecidas pela sociedade.
Assim, uma mulher que comete adultério pode ter seu testemunho desqua-
lificado, um homossexual, uma criança, um morador de rua, por não possuírem
aspectos que estariam de acordo com determinados padrões de idoneidade.
Essa é a conjuntura e os aspectos que implicam não apenas na produção da
peça processual, como deve chamar a atenção do historiador para tais detalhes. É
preciso ter em mente as formações discursivas ali presentes, bem como tentar apre-
ender das mesmas, numa espécie de escavação do texto, relações sociais, valores e
comportamentos a que o crime faz ver.
Histórias de Doenças 55

O assassinato do padre Pedro:


o louco infrator emerge em narrativas.

Os testemunhos na peça processual de [Marcos], estão colocados em uma


determinada ordem cronológica, logo após o auto de prisão em flagrante, registro de
antecedentes, exame cadavérico, nota de culpa e auto de exibição e apreensão.
São textos formulados a partir das respostas dadas ao delegado e, que o mes-
mo, conduz o escrivão na elaboração da narrativa. Assim, palavras em destaque ou
determinadas expressões podem significar muito mais do que a descrição narrativa,
mas sim juízos de valor e como a comunidade se articula com o crime.
A primeira testemunha foi assentada no dia 05 de julho de 1993, na cida-
de vizinha de Iporá, afinal, [Marcos] foi transferido em virtude de ameaças à sua
integridade física. Salvaguardando os nomes envolvidos – utilizando-me aqui de
pseudônimos – [Neide] Barbosa era sobrinha de [Marcos] residente na cidade de
Montes Claros de Goiás.
Naquele dia, seu tio havia chegado em sua residência às 12:30 hrs. ficando em
sua companhia e de uma “menininha” até às 14:30 hrs. vendo televisão:

Que a depoente se encontrava deitada no chão da casa, reparou que “TATA”


(apelido familiar de [Marcos]), levantou-se do sofá, onde estava deitado, e se
dirigiu até a cozinha da casa, saindo logo em seguida em direção da porta da
sala […] chegou novamente na casa da irmã da depoente, com a afeição de
cansado, parecendo que estava correndo, que [Marcos] disse à depoente “SE
ALGUÉM CHEGAR AQUI PERGUNTANDO POR MIM, DIGA QUE EU
NÃO ESTOU E NÃO É PARA VOCÊ CONTAR A NINGÚEM QUE ESTOU
AQUI (FÓRUM, Processo Crime Rg. 038/93, p. 25 grifo meu).

As primeiras informações acerca do crime dadas por [Neide], em um primei-


ro momento colocam [Marcos] como alguém que planejava o crime. Estava na casa
da sobrinha, quando a mesma o viu sair em direção à cozinha, o que se faz interpre-
tar que havia retirado dali a arma do crime.
A ênfase dada pelo escrivão à fala de [Marcos] para a sobrinha, traz deter-
minada contestação sobre sua possível insanidade mental, pois, teria ele consciência
do ato feito ao declarar que precisava se esconder? De alguma maneira a escolha
pelas letras em caixa alta, chama a atenção para o ato de [Marcos] minutos após ter
cometido o crime.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
56 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Ele é descrito chegando correndo, parecia estar escondendo algo nas mãos,
ela diz em linhas abaixo, teria sido com ela o primeiro contato após atacar o vigário.
Mas a intencionalidade do escrivão ao redigir em caixa alta as palavras de [Marcos],
conduzem a questionar posteriormente algumas alegações como aparece ainda no
depoimento de [Neide].
A depoente afirma ter ficado com medo do tio e sair de casa e ir ao encontro
da sua mãe que, naquele momento, encontrava-se no hospital da cidade. [Neide]
conta às pessoas que estavam presentes o que havia ocorrido em casa, logo em se-
guida é informada de que a polícia havia prendido um homem cujas características
coincidiam com as de [Marcos].
A notícia se espalhou de maneira rápida, ações concomitantes geraram as di-
versas trilhas realizadas pelos discursos oriundos do assassinato cometido na praça
Cristo Rei. Daquele lugar, vários murmúrios sobre o fato se reverberaram, até chegar
ao hospital onde [Neide] constatava que o assassino era seu tio.
A impressão é de que havia uma necessidade básica da comunidade de in-
formar a todos, espalhar a notícia para que, de alguma forma, todos buscassem o
assassino do padre e também guardassem por sua segurança. Uma comunidade em
que todos se conhecem, cria uma espécie de cumplicidade, de autoproteção que le-
vou da hora do crime em si, à prisão de [Marcos] e a notícia se espalhar pela cidade,
cerca de sessenta minutos.
Após estas informações, ao ser questionada sobre o contato que tinha com o
tio [Neide] dá algumas características:

Que a depoente tinha pouco contato com o tio, mas sempre achou no mesmo
atitudes estranhas, olhares distantes, parecendo que não se encontrava em si,
dando risadas sem motivos; que inclusive no momento em que chegou com a
faca nas mãos [Marcos] chegou dando risadas, apesar de meio apavorado; que
a depoente não tem conhecimento se seu tio já foi submetido a internamento a
manicômios ou casas de repouso (FÓRUM, Processo Crime Rg. 038/93, p. 25).

O que discuti em páginas anteriores sobre as testemunhas estarem ali invo-


luntariamente, de estarem imersas em uma pressão que o interrogatório provoca,
leva [Neide] a tentar de alguma maneira isentar-se, afastar-se do caso, mesmo não
sendo acusada de nada.
Sua primeira intenção ali é deixar claro para o delegado que a inquiria que
não havia nenhum traço de proximidade entre ela o tio, apesar do mesmo estar
Histórias de Doenças 57

deitado no sofá de sua casa em um domingo à tarde. O que vejo, é um medo de que
suas palavras ou ações anteriores ligadas a [Marcos] de alguma forma poderiam
comprometê-la, na verdade o que se traduz em medo da justiça.
Este sentimento de medo é construído por temerem se envolver de alguma
forma, de falar algo que poderia pesar contra si mesmo. [Neide], portanto, nega sua
pessoalidade com o tio, porém, tem condições de caracterizá-lo fisicamente.
O delegado caminhou com as perguntas em torno das informações recebidas,
da estranheza do comportamento de [Marcos] que a mesma poderia ter observado,
mas nunca comentado por ser algo naturalizado no seio familiar.
O grupo, mesmo percebendo alguns traços de possível incidência de doença
mental em [Marcos], provavelmente não o tratou como tal, de maneira particular,
atribuindo-lhe um papel social. No entanto, a imprevisibilidade do seu ato retira es-
tas representações do espaço naturalizado e evidencia algo que poderia estar errado
já há algum tempo.
É no ato praticado que reside o fato de [Neide] falar sobre aquilo que anterior-
mente lhe causava estranheza, mas que não via necessidade de argumentar. Apenas
nesta fuga extrema do contrato social, no fato de retirar a vida do outro que seu com-
portamento é visto como definitivamente anormal, pois, a teia de relações estabeleci-
das entre o mesmo e a família não criava a zona de exclusão da normalidade.
[Marcos] como louco infrator começa a ser construído na narrativa de
[Neide], ainda que temerosa de qualquer envolvimento, mesmo dizendo-se distante
ela avisa a justiça de que há comportamentos que fogem ao padrão envolvendo o tio.
Vejo uma espécie de proteção ao familiar, uma consciência da gravidade do
delito praticado, um medo de ser vista próxima do assassino, mas uma proteção ao
buscar na memória comportamentos que pudessem justificar o ato praticado.
A segunda testemunha ouvida no dia 06 de Julho, seguiu a trilha criada pelo de-
poimento de [Neide]. O delegado optou por verificar os argumentos acerca do compor-
tamento de [Marcos], por isso foi ouvido nesta data o senhor [João] Barbosa, pai do réu.
[João], natural de Caruaru de Bezerra, Pernambuco nascido no dia 17 de de-
zembro de 1926, lavrador, viúvo e não alfabetizado. Já em sua primeira declaração,
é deixado claro que a autoridade policial buscou dar continuidade ao que [Neide]
havia começado a declarar a respeito de uma possível doença mental:

Que seu filho [Marcos] acerca de um ano e meio começou a ter mudanças
em seu comportamento, clamando ao depoente dores de cabeças e dizendo
sempre que ouvia vozes vindo de canto nenhum, ou dizia ao depoente que
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58 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

ouvia barulho de cavalos andando ao seu redor; Que o depoente chegou a


levar seu filho por várias vezes em um centro “Espírita” e a “Benzedores”, mais
sem resultados. Que para evitar gastos maiores levou o seu filho a uma far-
mácia, onde o farmacêutico receitou vários comprimidos para tomar; que o
comportamento de “TATA” era muito estranho, pois o mesmo as vezes ficava
com a cabeça abaixado e ao levantar dava gargalhadas (FÓRUM, Processo
Crime Rg. 038/93, p. 27).

As perguntas supostas através das respostas dadas, leva a perceber que o


inquiridor desde a declaração de [Neide] possibilitou relação da família com a
religião espírita.
Naquele contexto parecia fazer sentido que a relação com o espiritismo pu-
desse justificar o ato violento, como se as narrativas sobre magia negra pudessem
trazer embasamento tanto para a doença mental como também para o crime.
Tais elementos tomam uma grande proporção no contexto em que a vítima é
um representante da igreja católica, em uma comunidade extremamente cristã e que
tais dados demonstrariam aí um crime entre o bem e o mal. Revelam muito mais so-
bre o imaginário local, ao evidenciar que o delegado constrói essa suposição através
das perguntas que levam às respostas da testemunha.
Neste sentido, a construção desta narrativa do pai não escapa ao contexto
da comunidade local, seus valores e preconceitos aparecem na indução das per-
guntas que buscam as razões do crime cometido por [Marcos]. Ou seja, a peça
processual está imersa em uma teia de representações e, não escapam de tais influ-
ências em sua constituição.
Da mesma forma a narrativa permite traçar um perfil ainda mais detalhado
de [Marcos] e sua família, pois, fica evidente que a questão financeira atrelada a uma
simplicidade em relação a estudos e instrução é algo intrínseco ao seio familiar.
É o que leva a pensar o fato de que como muitas famílias migrantes da região
nordeste, sua saída da terra natal se justifica na busca por melhoria de vida para a
família. Assim, a educação é algo que é relegada a segundo plano, pois, seria necessá-
rio um novo começo, um esforço conjunto no trabalho para se reconstruir as bases,
as raízes em outro lugar.
Tal simplicidade aqui por mim destacada, é perceptível na atitude do pai que
não leva [Marcos] ao médico, por acreditar que um farmacêutico conseguiria resol-
ver o problema e também que não ficaria oneroso. Ao que é dado apreender deste
Histórias de Doenças 59

trecho, é que não sabiam ao certo que remédio [Marcos] estava tomando, os compri-
midos não tinham uma função especificada.
Neste sentido, [Marcos] seguiu sem tratamento adequado, sem visitas e ob-
servação de psicólogo ou psiquiatra, o que também demonstra precariedade de dis-
tribuição da saúde nos sertões goianos. É este o quadro de desenvolvimento de seu
transtorno, das vozes que tanto passam a atormentá-lo, a acusa-lo, ofendê-lo até
chegar ao ponto de matar o vigário da cidade.
Estas questões já construíam o quadro da insanidade mental, pois, é reve-
lado também pelo pai que um ano antes [Marcos] havia atentado contra a vida de
um companheiro de trabalho na cidade de Jussara. Neste cenário, o mesmo já está
tomando os remédios indicados pelo farmacêutico, estava sendo “tratado” com me-
dicamentos que a família não sabia dizer sua verdadeira função.
No entanto, o mais importante deste depoimento é que ele nos traz a linha de
raciocínio do delegado, como ele aproveita o fio deixado pela testemunha anterior
e tentava de alguma forma seguir estes rastros. Porém, a questão da religiosidade,
sendo o cerne de sua versão, só evidencia os traços culturais ainda envoltos em pre-
conceitos e narrativas de exclusão.
Diante das duas falas [Neide] e [João] é clara a assertiva em relação à uma
possível doença mental, mas o que se vê na inquirição do delegado é provar que na
verdade teria sido crime ligado a questões religiosas, aproveitando-se da demoniza-
ção de tais crenças.
Na sequência ao depoimento do progenitor de [Marcos], constam no proces-
so, quatro depoimentos. São falas curtas direcionadas para a descrição de [Marcos],
com o objetivo de coloca-lo na cena do crime.
São narrativas sobre tê-lo visto passar correndo com a faca na mão, outra des-
creve a roupa que o mesmo usava se colocando na porta da casa do padre durante
toda à tarde. É válido lembrar que ele sai da casa da sobrinha por volta das 14 horas,
e o crime ocorre já perto das sete horas da noite.
Uma primeira testemunha, afirma que estava sentada na porta de sua casa
quando o homem passou segurando uma faca – consta nos autos p. 29. Outra se
encontrava na esquina de sua casa junto com uma amiga quando viu um homem
passar correndo, trajando camiseta listrada e calça jeans, fato que bate com a descri-
ção da polícia ao prender [Marcos] – consta nos autos p. 31.
Outra testemunha estava sentada no meio fio em frente à sua casa, quando
um desconhecido teria ido correndo na avenida com uma faca na mão, por volta das
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
60 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

19:20 horas. Ela descreve também o seu traje, camiseta listrada e calça jeans, e que
mais tarde soube que seria o assassino do padre – consta nos autos p. 33.
É interessante que essas testemunhas “oculares” – não do crime, mas servi-
ram para colocar [Marcos] na cena do fato delituoso – são tradução de uma pequena
comunidade, pessoas em um domingo que se colocam a conversar na porta de suas
casas até a hora de ir para missa, criando um costume. Todas narram como se hou-
vesse quase uma regra, estar na porta de casa a conversar com vizinhos depois do
almoço de domingo.
Ali não apenas atualizavam os assuntos da semana como observavam o que
poderia acontecer, viram que [Marcos] estava a tarde toda na porta da casa do vigá-
rio. Estas mesmas pessoas o viram em pontos diferentes descrevendo suas roupas e
a arma do crime, como também auxiliaram o espalhar da notícia por toda a cidade.
Outra testemunha não menos interessada em espargir a notícia, é [Gerson],
natural de Santo Amaro na Bahia, nascido em 31 de agosto de 1948, residente em
Montes Claros de Goiás, alfabetizado disse ao ser inquirido:

Que se encontrava no bar do Queiroz por volta das 19:30 horas, local onde fi-
cou inteirado do fato de que a poucos minutos atrás um indivíduo havia assas-
sinado o vigário (padre Pedro), fato ocorrido em frente à igreja católica local;
Que o depoente dirigiu-se até o Hospital Montes Claros de onde foi telefonar
para seu patrão para informa-lo do fato ocorrido; Que ao chegar ao hospital o
depoente fez um comentário com a enfermeira de plantão (FÓRUM, Processo
Crime Rg. 038/93, p. 37).

O fato narrado pelas testemunhas ganham traços de intimidade, como se o


delegado também conhecesse os lugares, as pessoas, o que de fato seria bem possível
dado o contexto de uma cidade pacata. O estabelecimento não é intitulado, não é
apresentado com o nome, mas sim com referência direta a seu dono, o homem ao
saber do crime pensou diretamente em informar seu patrão.
Por isso, também em um sinal não apenas de subserviência, mas de fidelidade
ao patrão [Gerson] corre ao hospital para utilizar o orelhão e telefonar a seu em-
pregador e informa-lo que o padre da cidade havia sido assassinado. É também ele
quem avisa no hospital sobre o crime, e se sente alardeado com a situação.
A história foi se espalhando pela cidade, na fala das mulheres, dos homens
a seus patrões, das dúvidas dos familiares de [Marcos] diante das evidências que o
incriminavam.
Histórias de Doenças 61

A narrativa do processo, a oralidade traduzida no registro do escrivão parece


ocupar não o espaço de uma informação técnica para a justiça, mas a composição de
mais uma testemunha a comentar o caso, nas esquinas das ruas, nas praças e bares
da cidade.
À medida em que se entra em contato com a narrativa ali construída, a escrita
parece nos remeter a certo desespero, pressa ao contar. Não percebo um desenrolar
dos fatos de maneira mais lenta, mas sim um emaranhado de informações jogadas
de forma abrupta sobre o papel.
O escrivão aqui é uma peça importante por ser o responsável por traduzir
as palavras ditadas pelo delegado, transformadas em narrativas escritas, em outras
formas de enunciado para construir o crime. Como discuti nas páginas iniciais deste
tópico, é o que possibilitar compreender teoricamente que o Processo Crime, por
mais técnico corresponde ao local de fala de seus produtores.
Esta ansiedade das falas das testemunhas nos registros, podem se traduzir em
uma apreensão deste sujeito responsável técnico que acompanha os depoimentos
junto à autoridade policial. Lembrando a vítima ser um clérigo, uma pacata cidade
católica, e um devoto que se inquieta por elementos que possam solucionar o crime,
e ele está ali presenciando os relatos das testemunhas.
É impossível negar que determinadas impressões e sentimentos do escrivão não
podem transparecer nas falas por ele redigidas, as ênfases, vírgulas, letras maiúsculas
correspondem ao seu envolvimento como caso, à sua indignação ou conformação.
Deste modo o processo não aparece como espaço de produção de verdade,
mas de uma determinada versão sobre o crime, determinada ali pelo viés policial
que vai possibilitar a construção de mais duas versões: a defesa e a acusação.
No processo crime de [Marcos] a única testemunha de fato ocular do cri-
me, era [Douglas] nascido em Diorama-GO, em 1º de maio de 1958, residente em
Montes Claros de Goiás. A testemunha não poderia assinar seu depoimento sendo
surdo-mudo, portanto, sua mãe foi nomeada como intérprete para assinar as decla-
rações. Em curtas palavras, sua narrativa se concentra na cena do crime:

Que no domingo estava ele, o depoente, batendo o sino da Igreja, quando ter-
minou de bater o “sino” e já ia fazer o retorno para subir a rampa de entrada
da Igreja, um indivíduo que estava sentado no meio-fio da praça, que de vês
em outra abaixava com as mãos no rosto e levantava-se, olhando na direção
da casa do Padre, levantou-se e dirigiu-se na di […] braços sobre o pescoço
de Padre Pedro, e com a outra mão puxou da cintura uma faca, a qual des-
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62 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

feriu no peito do Padre; Que após ferí-lo o indivíduo saiu correndo avenida
abaixo, deixando para trás o corpo do Padre pedindo socorro deitado no chão
(FÓRUM, Processo Crime Rg. 038/93, p. 43).

A única testemunha ocular do crime tem seu discurso duplamente interpre-


tado, passando pelo crivo da mãe e posteriormente do delegado até chagar ao escri-
vão. A narração que se concentra em dois personagens, descreve o momento mais
tenso de todo o enredo construído.
Todas as outras testemunhas falaram sobre a fuga de [Marcos], foram uti-
lizadas para coloca-lo na cena do crime, ou pelo menos nas imediações dela cons-
truindo uma relação entre o acusado e o fato levando à constatação do crime. No
entanto, [Douglas] dedica-se a construir a última relação entre a vítima e o acusado,
a estrutura narrativa chega ao clímax descrevendo a morte do padre quase como
uma emboscada através de um abraço ofertado por [Marcos].
O foco não é a criação de uma relação entre o crime e a loucura, neste de-
poimento a busca é por construir como se deu de fato o assassinato. Assim, vemos
surgir a figura de um homem frio, que ao longo dos depoimentos estava postado em
frente à casa do padre desde o meio da tarde daquele domingo.
As indagações que podem ser previstas pelo texto que compõe os depoimen-
tos, tentam reforçar a premeditação de [Marcos] ao sair da casa da sobrinha e ficar
em frente à residência de sua vítima. O arco dramático se dá na descrição do abraço
dado por [Marcos], que envolve o vigário e com a outra mão o atinge com a faca.
Seria como se [Marcos] estivesse usando a condição do pároco, que o confiou
um abraço e, em sua inocência, acabou atingido fatalmente por arma perfuro-cor-
tante. Estes elementos ressaltam determinada frieza e crueldade no comportamento
de [Marcos], algo que iria à contra mão da ideia de loucura que estava sendo traba-
lhada nos depoimentos anteriores.
Ressaltando esses aspectos não se elimina a tese da loucura que teria leva-
do [Marcos] a cometer o crime, mas garantiria que o mesmo pudesse ficar preso.
Seu enclausuramento seria justificado no perigo que demonstrava, pois, haveria um
pouco de lucidez nos seus atos, já que ficara esperando o momento exato para atacar
padre Pedro.
Não obstante, a tese que relaciona o crime de [Marcos] com incidência de
possível doença mental não desaparece dos autos. No depoimento seguinte, há um
retorno do assunto ao caso.
Histórias de Doenças 63

[Maria], funcionária pública, nascida em 09 de março de 1954 em Belo


Horizonte – Minas Gerais é irmã de [Marcos], sendo chamada a depor deu as se-
guintes declarações:

Que seu irmão acerca de um ano e meio começou a apresentar “problemas


de cabeça”, adotando um comportamento muito estranho, sempre clamando
dores de cabeça e dizendo que sempre estava cercado por vozes e barulhos
estranhos (FÓRUM, Processo Crime Rg. 038/93, p. 44).

Interessante perceber que a linha de raciocínio da autoridade policial vai


neste intento, de compreender e justificar o crime através de uma possível loucura.
[Marcos] aparentava estar sendo perturbado anteriormente, as respostas da teste-
munha demonstram o interesse do delegado em suas inquirições.
O destaque para a expressão “problemas de cabeça”, as citadas dores de cabe-
ça, comportamento estranho constituem as representações possíveis de um sujeito
anormal. A própria autoridade policial, na busca por uma racionalização do fato,
tentando ali compreender os motivos que levaram ao ato alinhava uma trama de um
homem perturbado e que, por isso, teria matado o padre.
Essas características, por muitas vezes estereotipadas da loucura voltam a
aparecer na continuação do depoimento de [Maria]:

Que é do conhecimento da depoente que seu irmão foi levado por seu pai a
alguns “centros Espíritas” para tentar “curá-lo”, mais sem êxito nas tentativas;
(FÓRUM, Processo Crime Rg. 038/93, p. 45).

O enredo se torna uma luta entre o bem e o mal, aqui alicerçada nas figuras
de duas personagens: a igreja católica e o centro espírita. As aspas apresentadas na
citação acima colocam em dúvida a fé espírita, e também na perspectiva de cura que
ali poderia ser possível.
Cria-se na verdade uma desconfiança que todo o problema de [Marcos], teria
sido obra de crimes destinados à magia negra, termo pejorativo que evidencia o
preconceito no interior do cristianismo em relação às religiões de matrizes diferen-
ciadas ou não.
É interessante que, na medida em que os depoimentos são registrados e o
delegado estabelece este caminho como tese para o crime, suas testemunhas apare-
cem como personagens simplórios e inocentes. Seria como se a família de [Marcos],
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
64 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

tivesse sido enganada por charlatões que, ao invés de curá-lo fizeram seu problema
piorar e o tivessem utilizado para fazer o mal.
Este texto não é evidente no depoimento, no entanto, é na contextualização
das respostas que se consegue chegar a tais possibilidades narrativas. O crime de
magia negra, a loucura, a simplicidade da família, elementos necessários para que a
promotoria pudesse elaborar a sua verdade sobre o crime.
Percebo que, o aparato policial ao elaborar esta possível versão através dos
questionamentos durante os depoimentos, não pensou na possibilidade de que
[Marcos] poderia ser considerado inimputável.
Em momento algum as respostas dão o indicativo de se preocupar de tratar
[Marcos] de forma diferenciada, o que denuncia um aspecto cotidiano de que ao
louco infrator em Goiás, em pleno final de século XX, tinha como destino apenas
a cadeia.
No depoimento, [Maria] continua:

Que quando soube do fato veio em sua mente o fato de dias atrás [Marcos]
ter lhe dito que o Padre juntamente com o Dr. Afrânio foi até a fazenda onde
estava trabalhando, para mata-lo, e que comentou ainda com a depoente que
havia ido até a Igreja em Montes Claros, para rezar, mas não entrou porque
estava a Igreja muito escura e todos que estavam presente tinham os pés de
pato; (FÓRUM, Processo Crime Rg. 038/93, p. 45).

Neste trecho mais elementos são adicionados às características tidas como


estranhas de [Marcos], e são assim interpretadas porque diante do exposto a família
nada fez a respeito do que ele lhes falava. Citando estar ameaçado de morte por
padre Pedro, ninguém acudiu, dando a compreender que realmente sua fala fora
ignorada pelos familiares, que alicerça ainda mais a ideia de loucura.
O tradicional ato de ignorar o discurso do louco, traduzido apenas como de-
lírios, como fruto de sua imaginação, ao contrário de buscar compreendê-lo ou con-
textualizá-lo, toma-se o caminho mais curto, o de deixar passar sem maior atenção.
Outro elemento que chama atenção na narrativa da irmã, que aparece pela
primeira vez é o delírio visual que [Marcos] teria tido ao ir à igreja, ou seja, enxer-
gando não pessoas, mas verdadeiros monstros.
É interessante que o que a irmã narra que [Marcos] teria visto, são pesso-
as com pés de pato e é curioso lembrar que Guimarães Rosa, em Grande Sertão
Veredas (2012) aponta como um dos nomes do demônio: Pé-de-Pato.
Histórias de Doenças 65

Tal elemento reforça ainda mais fato de que a linha seguida pelo delegado na
investigação do crime, ligava o crime à loucura entrelaçando ao ato de magia negra
na compreensão do assassinato. Uma comunidade católica, que vê no assassinato do
vigário, algo muito maior, enxerga uma luta do bem contra o mal.
Este é o último depoimento, logo depois encerra-se o inquérito policial e toda
a documentação é encaminhada ao poder judiciário. Através dos depoimentos é
possível depreender que sua relação com padre Pedro se apresentava anteriormente,
que foi construindo em seu íntimo elementos que o levaram a matar o vigário na-
quele dia.
No entanto, os traços de sua loucura não são utilizados para que [Marcos]
possa receber um tratamento diferenciado. Ao contrário, passa a existir um peso
dessas narrativas para criar uma justificação para o crime, mas nada é dito sobre o
direito que o mesmo teria de ser encaminhado a uma instituição própria para rece-
ber tratamento.
A loucura é relacionada com o crime na medida em que na busca por uma
racionalização do fato, a própria comunidade não encontrando a explicação traz o
elemento da doença mental para construir uma explicação.
Este artifício, no entanto, não é utilizado como embasamento para um aten-
dimento especial em Goiás, os loucos infratores foram diluídos na categoria dos
presos comuns até o final da década de 1990. Apenas com o advento da luta anti-
manicomial e com as investigações que a lei impôs, foi possível encontrar outros
homens e mulheres que, como [Marcos], cometeram crime a partir de incidência de
doença mental.
Somente a partir destes subsídios é que se construiu o Programa de Atenção
Integral ao Louco Infrator em Goiás, no ano de 2001, que passou a acompanhar
esses casos mais de perto e possibilitar um tratamento humanitário a estas pessoas
vítimas do que chamamos de “seus próprios delírios”.

Nota de fim de texto

Um processo criminal, basicamente é formado pelo seguinte estrutura:


1. Denúncia Embora seja a primeira folha de um processo crime, ela é uma peça elaborada
após o término da fase policial, ou seja, a fase do Inquérito policial. A partir dos distintos
procedimentos e indícios, e a partir do relatório do delegado, o Promotor pede a Pronúncia
do indiciado. Ou, se ele não estiver satisfeito e os indícios não forem seguros, ele pode mandar
baixar o Inquérito novamente para a polícia ou pedir o arquivamento, nesse caso, se ele estiver
convicto da inocência do indiciado. 2. Auto de Corpo de Delito; Peça fundamental de todo o
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66 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

processado. É só por meio do corpo de delito, ou exame cadavérico, que se contata que houve
o crime. Embora se trate de peça fundamental, vê-se que somente no século XX é formado um
corpo pericial especializado para a feitura de tais exames. 3. Auto de perguntas ao ofendido;
Só válido, é claro, quando o crime não for de homicídio consumado. Aqui, a vítima dá a sua
primeira versão do acontecido. A linguagem usualmente utilizada é de denúncia. 4. Auto de
Qualificação e perguntas ao acusado Aqui, qualifica-se o acusado. As perguntas são padroni-
zadas, dependendo do marco legal, isto é, o Código de Processo Penal ou Civil. Nesse momen-
to, ainda no âmbito policial, normalmente os acusados prestam declarações mais extensas e
pormenorizadas. Nesse momento ele ainda não se faz acompanhar por seus patronos, logo, a
sua versão ainda pode ser vista como algo natural, embora mesmo aqui o grau de naturalidade
pode ser inferido, mas nunca sabido verdadeiramente. Até porque, mesmo se há naturalidade
na fala do acusado, o filtro do escrivão e o encaminhamento das questões por parte da au-
toridade policial. No Inquérito Policial não oferece ao suspeito a oportunidade do contradi-
tório, a mesma que terá no âmbito judicial. Como diz Hélio Tornaghi (Apud: MARZAGÃO
JÚNIOR. p. 50), “o caráter inquisitório significa que a autoridade policial enfeixa nas mãos
todo o poder de direção”. 5. Inquirição de testemunhas As primeiras testemunhas são ouvidas
para fundamentar o relatório do delegado. 6. Relatório do delegado; Peça que encerra a fase
inquisitorial. É nele que o delegado expõe, de forma detalhada, todos os indícios e provas que
levam ao acusado, fazendo-o autor do crime. Essa peça deve ser lida com bastante critério.
Primeiro porque o delegado tem um prazo para o encerramento do Inquérito, logo, ele não
pode ficar muito tempo para proceder outros atos. E mais, o delegado, como os inquisidores,
deseja, geralmente, a incriminação do acusado, pois isso o faz competente. Ora, se ele prendeu
o acusado e depois 7. Denúncia (Tudo que já falei, mais o fato de que é nesse momento que o
acusado, a partir da denúncia se torna um denunciado. 8. Inquirição de testemunhas (Atentar
para as diferenças entre testemunhas de acusação e testemunhas informantes. O que é uma
testemunha informante? E mais: o Código de Processo exige, sempre, o número de testemu-
nhas para cada caso. Atentar para esse fato. 9. Interrogatório Nesse momento, o denunciado,
já devidamente orientado, presta declarações sucintas. Como diz Boris Fausto, o denunciado
responde ao que é perguntado não para esclarecimento da verdade, mas para sua própria de-
fesa. Assim, as versões, nessa fase, são quase padronizadas, a individualidade quase some de
vez. Não há mais individuo, mas há O DENÚNCIADO, o sujeito que deve, necessariamente,
construir sua imagem, de acordo com os preceitos legais. Imagem essa que ajudará na sua
absolvição, a sua Impronúncia como autor do ato criminoso. Mais uma vez recorrendo a Boris
Fausto, percebe-se nitidamente que o acusado, sua fala, vai se apagando, a medida que os fei-
tos se aproxima do final. Agora ele só fala por meio do advogado, em momentos oportunos.
10. Pronúncia De posso de todo o processado, o juiz então irá decidir se o denunciado é ou
não passível de julgamento. Se a culpa estiver provada, o magistrado pronunciará o denun-
ciado, operando mais uma transformação: de denunciado, agora nosso cidadão será réu num
processo e terá seu nome lançado no rol dos culpados. Enfim, nesse momento, para o judiciá-
rio já ficou provada a culpabilidade do acusado. Ele já é um criminoso. Mas, no nosso sistema
judicial, os juízes não são os agentes da pena. Isso é feito pela sociedade, por meio do Tribunal
Histórias de Doenças 67

de Júri. 11. Libelo; Como o réu foi pronunciado, agora cabe ao Promotor dizer por qual cri-
me ele será julgado pela sociedade. No libelo, que também e uma peça quase padronizada, a
autoridade da Promotoria diz que irá provar que “em determinada data houve um crime” e
que o réu é o autor de tal crime. E pedirá, de acordo com o diploma legal (Processo Penal),
que os jurados o julguem culpado. 12. Interrogatório Nessa fase, pouca coisa se descobre, uma
vez que é quase ritualístico. As perguntas são padronizadas e as respostas devem ser breves,
uma narrativa para fundamentar a tese da defesa. 13. Julgamento Pela experiência retirada
da leitura de mais de mil processos, pude perceber que o julgamento na sessão do júri é o
que de fato determina a sorte do réu. Nada, ou quase nada mais vale todos os procedimentos
anteriores. Nos processos lidos, percebe-se que o que é levado em conta nessas sessões são as
argumentações da defesa e da acusação. Infelizmente, não há as transcrições dessas falas, mas
infere-se que, dependendo do status do réu, da vítima ou das famílias, ele é julgado culpado
ou inocentado. É nessa fase que o juiz elabora os quesitos pelos quais os jurados responde-
rão e, Consequentemente, decretará a sorte do infeliz. Os quesitos são elaborados tendo o
libelo como fonte, pois o réu não será julgado pelo que não consta na tal peça (o Libelo). 14.
Apelação 15. Novo Julgamento 16. Sentença (SANTOS, 2011).

Referências

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FAUSTO, Boris Crime e codiano. São Paulo: Ed. EDUSP 2ª ed, 2001.
______. O crime do restaurante chinês. Ed. Cia. das Letras 3ª ed. SÃO PAULO, 2009.
FOUCAULT, Michel A ordem do discurso. São Paulo: Ed. Cia das Letras 4ª ed, 1973.
______. O poder psiquiátrico. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1ª ed. 2006.
______. A arqueologia do Saber. Rio de janeiro: Ed. Forense, 7ªed, 2009.
______. Os anormais. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1ª ed. 2001.
FERRARI, Pedro Felipe Marques Gomes. Mosaicos do filho da luz: Febrônio Índio do
Brasil entre o Crime a Redenção e o Delírio. 2013 Tese de doutorado defendida
no Programa de Pó-Graduação em História da Universidade de Brasília.
GINZBURG, Carlo Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Ed. Cia
das Letras 2ª ed, 1986.
GOFFMAN, Erving Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Ed. Perspectiva 2ª
ed, 1987.
SOUZA, Luís Antônio Francisco Notas sobre o uso de documentos judiciais e policiais
como fonte de pesquisa histórica In: Revista Patrimônio de Memória – UNESP v.
5 nº 02 p. 159-173 dez. 2009
REVEL, Jacques Jogos de Escalas: A Experiência da Microanálise. Rio de janeiro:
Editora Fundação Getúlio Vargas, 1ª ed, 1998.
A descoberta do parasita endoglobular da
doença de Carrión (1903 – 1913)
Eduardo Sugizaki1
Leonardo Contart Silva2
Dowglas Marques de Santana3

Introdução

E ste estudo tem por objetivo historiar, segundo o modo e o estilo da epistemolo-
gia francesa contemporânea, a primeira fase da descoberta do agente da doença
de Carrión, ou seja, os estudos etiológicos sobre a presença endoglobular do agente,
realizados no período de 1903 a 1913. Procurou-se mostrar como a emulação dos
médicos do Instituto de Higiene de Lima e o trabalho hospitalar de Alberto Barton
criou o contexto histórico para que este acertasse o alvo na incriminação etiológi-
ca, em 1909. Faz-se a história da participação internacional dos centros médicos
de estudos microbiológicos e patológicos que confirmaram a descoberta do agente.
Procurou-se, com isso, evidenciar na dialética concreta de um pensamento médico
em curso, um tipo de desenvolvimento progressivo da racionalidade.

1 Adjunto/PUC-Goiás. Pós-doutor em filosofia pela UNIFESP. Doutor em Filosofia pela


Universidade da Picardia Júlio Verne, Doutor em História, Mestre em Filosofia e Licenciado
em Filosofia pela UFG.
2 Bacharel em Medicina pela PUC-Goiás, Clínico Geral.
3 Bacharel em Medicina pela PUC-Goiás, Clínico Geral.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
70 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Objetivo e recorte

O objetivo deste trabalho é discutir a primeira fase da descoberta do agente


da doença de Carrión, o parasitismo da hemácia na circulação periférica, no perío-
do de 1903 a 1913.
Fez-se tal recorte porque este primeiro achado foi decisivo para garantir um
ponto de partida seguro para as fases subsequentes do progresso do saber da doença,
o reconhecimento do mesmo agente como idêntica causa dos diferentes sintomas da
doença. Assim, deixamos fora do recorte uma linhagem de pesquisa de frutificação
tardia e barrada por obstáculo intransponível neste período, a pesquisa pela locali-
zação do parasita nos tecidos da erupção típica, a verruga peruana.4
Esta última linhagem de pesquisas foi deixada de fora porque o sucesso da
identificação do agente como igualmente produtor da verruga só seria garantido
quando do desenvolvimento de técnicas altamente específicas de cultivo, o que pre-
cisou esperar as décadas de 1920 e 1930, como uma decorrência da descoberta do
parasita endoglobular, desde 1909.
Deixou-se fora do presente recorte também toda a discussão sobre a natureza
da inclusão globular, se seria uma bactéria (BARTON, apud SOCIEDAD UNIÓN
FERNANDINA,1905), ou um protozoário (BARTON, 1909; GASTIABURÚ E
REBAGLIATI, 1909; MAYER, 1910, 1912; STRONG et al., 1913 e 1915), se seria
um tipo exclusivo de micro-organismo ainda desconhecido na parasitologia e na
hematologia (DARLING, 1911), se seria algo semelhante a Anaplasma marginale
de Theiler, 1910 (GALLI-VALERIO, 1911), ou se deveria ser alocada entre os cla-
midozoários (MAYER, ROCHA LIMA e WERNER, 1913). Deixou-se de lado esta
discussão porque o problema da natureza do agente e, consequentemente, das suas
relações com os gêneros Grahamella e Rickettsia, avançam para além da década de
1930, num quadro cuja solução dependeu do mapeamento genético destes seres
vivos.
Uma vez traçado o recorte temático e temporal, descoberta do agente no in-
terior das hemácias da corrente sanguínea periférica dos pacientes de doença de
Carrión, o objetivo do presente trabalho se afunila para a centralidade da obra de
Alberto Barton e transforma o seu texto de 1909 no principal objeto do esforço de

4 A pesquisa microbiológica centrada nos tecidos da erupção típica da doença foi iniciada por
IZQUIERDO (1885a, 1885b) e esteve impossibilitada de progressos até sua retomada por
LETULLE (1898A, 1898B), NICOLLE (1898), ESCOMEL (1902), VECCHI (1908).
Histórias de Doenças 71

sua contextualização histórica: o epicentro da comunicação e do pensamento médi-


cos sobre a doença daquele período.

Problema e hipótese

Em 1909, Alberto Barton publica o artigo em que detalha suas observações


do agente da doença de Carrión. Neste momento, ele insiste em uma posição profe-
rida quatro anos antes, em um anúncio apenas oral de que incriminava como causa
da doença de Carrión uma inclusão globular, encontrada na circulação periférica
dos pacientes febris (SOCIEDAD UNIÓN FERNANDINA, 1905).
Barton não havia sido o primeiro observador desta inclusão globular. Em
1903, o bacteriologista italiano, Ugo Biffi, convidado pelo Conselho Municipal de
Lima para construir, organizar e gerir o funcionamento científico do primeiro cen-
tro biomédico do Peru, o Instituto Municipal de Higiene de Lima, havia denunciado
a presença das ditas inclusões globulares nos pacientes da doença. Biffi (1903, p.
150), entretanto, preferiu não as considerar parasitárias, mas “granulações basófilas
dos eritrócitos”.
O problema da relação entre Biffi (1903) e Barton (SOCIEDAD UNIÓN
FERNANDINA, 1905), entretanto, não é o da prioridade da descoberta. Aliás, isso
nem mesmo chegou a se tornar uma celeuma, como a que envolve a da história do
descobrimento dos agentes da febre amarela.5
Sobre uma luta silenciosa pela prioridade, houve apenas, à época, uma ten-
tativa de Gastiaburú e Rebagliati, em dezembro de 1909, de fazer letra morta da pu-
blicação de Barton (de janeiro de 1909), ao descrever o mesmo fenômeno. Mas, com
a nomeação do agente como Bartonia bacilliformis (STRONG et al. 1913) e, poste-
riormente, como Bartonella bacilliformis (STRONG et al., 1915), pela comissão da
Escola de Medicina Tropical de Harvard, esvaziaram-se as pretensões de Gastiaburú
e Rebagliatti (1909) e não mais se contestou ser Barton aquele que havia apontado
certeiramente o parasita.
Resta a construir uma narrativa historiográfica capaz de explicitar as razões pe-
las quais Barton (SOCIEDAD UNIÓN FERNANDINA, 1905), vendo ao microscópio

5 Sobre isso, ver DELAPORTE (1989). Este autor, além de ser uma referência para a história da
febre amarela, é também a referência filosófica e historiográfica central do presente trabalho,
enquanto herdeiro de Canguilhem (2002) e da história e epistemologia das ciências, tal como
se pratica na filosofia francesa contemporânea.
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72 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

o mesmo que Biffi (1903) e vários outros observadores (serão apresentados, a seguir)
muito melhor equipados, dotou o fenômeno do conceito apropriado, aquele que a
história posterior homologou, colocando-o do lado da verdade e desclassificando os
oponentes.
Nesse sentido, a hipótese básica deste artigo é que Barton (1909), mais que
descobridor de algo, é o inventor do primeiro núcleo conceitual atualmente verdadeiro
da etiologia da patologia conhecida como bartonellosis humana ou doença de Carrión.
Mas, se uma história da descoberta do agente toma, aqui, a obra e a pers-
pectiva de Alberto Barton por fio condutor, não é para construir mais uma história
monumental, uma narrativa laudatória de heróis nacionais (da medicina peruana)
ou regionais (da medicina latino-americana)6, mas para revisar as razões pelas quais
as observações deste estudante de medicina e, depois, médico clínico generalista,
impuseram-se de forma incontornável, sobre um campo de adversidade biomédico,
capitaneado pelo Instituto Municipal de Higiene de Lima.
Barton fora empurrado pelo destino a trabalhar só, sem laboratório espe-
cializado, sem suporte institucional, mas não empreendeu a descoberta do agente
baseando-se unicamente em seus próprios esforços. O recorte “autor e obra” é artifi-
cial e só vale aqui para fincar perspectivas. Nesse sentido, procura-se fazer reapare-
cer o modo como a descoberta emerge do contexto agônico de construção do pen-
samento médico peruano, dividido em dois polos: de um lado, Barton e a tradição
clínica dos médicos hospitalares; de outro lado, a microbiologia representada pelo
Instituto de Higiene de Lima. Estes dois polos centralizam um debate internacional,
na medida em que Lima fez-se epicentro de um rizoma: nascedouro e vertedouro de
uma comunicação entre vários dos postos mais avançados da medicina das doenças
tropicais do início do século XX.

6 Da historiografia laudatória ou do tipo monumentalista que alcança o período da pesquisa


microbiológica, destacamos REBAGLIATI (1940) e LASTRES (1957). É necessário, porém,
reconhecer que, com GARCÍA-CÁCERES (1972 e 1991), surge uma historiografia crítica da
narrativa médica histórica tradicional. Esta, entretanto, faz esforços de contextualização so-
cial. Ultimamente, na vertente de uma história sociológica da ciência, há as revisões críticas de
CUETO (1989 E 1996) e MURILLO et al. (2002). Nenhuma destas revisões, entretanto, está
centrada na perspectiva epistemológica da história do pensamento médico, tal como pretende
o presente artigo.
Histórias de Doenças 73

O debate sobre a inclusão globular na febre grave de Carrión

O achado do Instituto de Higiene de Lima

Barton apresenta, em 1909, a descrição dos parasitas endoglobulares, reto-


mando algo que ele próprio já havia anunciado em 1905, mas a primeira observação
do fenômeno havia sido dada por Biffi, em 1903. Neste, tratava-se de um artigo
sobre experimentos com as hemoaglutininas do tecido sanguíneo humano dos pa-
cientes com diagnóstico clínico de doença de Carrión. Biffi relata o achado casual
de alterações inesperadas dos glóbulos vermelhos encontradas “nos vários períodos
da doença, […] dentro das hemácias, [como] corpúsculos especiais” (Biffi, 1903,
p. 150). Informa ainda que outro pesquisador do Instituto, Gastiaburú, trabalhan-
do independentemente, viu o fenômeno. Porém, Gastiaburú teria sido capaz de ver
movimentos próprios no corpúsculo, enquanto ele, Biffi (1903) declara que o cor-
púsculo é imóvel.
Esta diferença com Gastiaburú é central na argumentação de Biffi. Para este,
se os corpos observados têm movimento próprio, “quer dizer que se tratam de ele-
mentos vivos, de parasitas do glóbulo vermelho” (BIFFI, 1903, p. 151). Para Biffi, é
por não serem dotadas de capacidade locomotora autônoma que as inclusões devem
ser interpretadas como “granulações basófilas dos eritrócitos”.
Pouco tempo depois, o próprio Gastiaburú, em publicação individual, “Sobre
a hematologia da doença de Carrión”, confirma ter visto as tais granulações internas
às hemácias, corroborando que “é um fenômeno bastante frequente e que pode ser
observado em todos os períodos da enfermidade” (GASTIABURÚ, 1903, p. 315).
Não denega ter visto movimento próprio das granulações. Ao contrário, declara que
“quando observei estas granulações pela primeira vez, algumas delas tinham movi-
mentos bastante ativos” (Gastiaburú, 1903, p. 315).
Gastiaburú, entretanto, evita uma confrontação franca com Biffi no terreno
que este traçara: as inclusões globulares seriam parasitas, se dotadas de capacidade
automotora. No lugar de afirmar que os corpúsculos são parasitas já que automo-
tores, Gastiaburú opta por desconstruir a base teórica da sua diferença com Biffi:
a capacidade automotora dos corpúsculos não seria suficiente para distingui-los
das granulações basófilas. Ademais, se as inclusões achadas são móveis, elas não
seriam exclusivas do sangue dos pacientes da doença peruana. Leiamos o próprio
Gastiaburú (1903, p. 315):
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
74 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Vou ocupar-me agora das granulações que se observam no interior das hemá-
cias dos verrucosos; este é um fenômeno bastante frequente e pode ser obser-
vado em todos os períodos da enfermidade; até faz pouco tempo, acreditava
que só se apresentavam na verruga, mas este fato, que se fosse certo teria tido
grande importância, não é positivo; tive a ocasião de vê-las [as inclusões] em
um caso de malária de forma grave.

Mais que isso, Gastiaburú (1903, p. 315) pretende que as mesmas inclusões
“foram encontradas por outros observadores em distintas anemias”. As granulações
podem ser móveis, podem estar em diferentes anemias, incluindo a malária e, ape-
lando para a autoridade do próprio descobridor do hematozoário do paludismo,
Gastiaburú parece querer por um ponto final na discussão: “Laveran, em sua obra
sobre os hematozoários do sangue humano, ao ocupar-se delas [das inclusões que
Gastiaburú acredita serem idênticas], disse que, em algumas ocasiões, apresentam
movimentos” (GASTIABURÚ, 1903, p. 315).
Dessa forma, Gastiaburú procura conduzir as coisas para um desfecho que
pretenderia encerrar completamente a possibilidade de que o achado pudesse ser
interpretado de maneira diversa daquela decisão de Biffi (1903). Inadvertidamente,
entretanto, Gastiaburú desconsidera algo que Biffi publicara sem verve teórica sufi-
ciente para levar as coisas às últimas consequências: “Nunca encontrei, nos glóbulos
vermelhos, inclusões tão claras, bem definidas, com o caráter de elementos inde-
pendentes, como aquelas que se vê no sangue dos verrucosos” (BIFFI, 1903, p. 151).

A hipótese de Barton em 1905: Ecce parasita

É nesse contexto que Barton vem a público, nas comemorações do aniversá-


rio de morte de Carrión, em 1905, e lê um texto que não chegará a publicar. Tudo
o que chegou até nossos dias é a matéria do redator da Sociedade Médica União
Fernandina, pela revista “La Crónica Médica”, um resumo do que se pôde ouvir e
entender da comunicação:

O doutor Alberto Barton leu um interessante estudo sobre dois casos de ane-
mia febril, de natureza desconhecida, que teve oportunidade de estudar no
Hospital de Guadalupe. Fez a história clínica dos dois casos. Anotou a seme-
lhança entre os sintomas dessa anemia e os da doença de Carrión. Deu conta,
em seguida, de seus estudos bacteriológicos que lhe permitiram encontrar,
nos glóbulos vermelhos do sangue dos atacados, um novo parasita, uma bac-
Histórias de Doenças 75

téria. Anotou os caracteres da bactéria em questão e concluiu, oferecendo-a


ao estudo e observação de seus companheiros. A descrição do parasita a que
alude o orador é bastante detalhada e não dá lugar a dúvidas sobre sua perfeita
diferenciação (SOCIEDAD UNIÓN FERNANDINA, 1905, p. 315).

Após esta comunicação, Barton recua, deixa de publicar o texto e faz um


longo silêncio de quatro anos. Não se encontra publicação alguma dele, na imprensa
médica, até o aparecimento do artigo de 1909.
O conflito quanto à interpretação da inclusão globular, entre o Instituto e
Barton, manteve-se reduzido ao silêncio e ao espaço médico de Lima até 1908.
Biffi chegou a pronunciar, naquele ano, uma comunicação no XIV Congresso
Internacional de Higiene e Demografia, em Berlim, sob o título “Verruga peruana
e ‘febre grave de Carrión”, onde não faz referência alguma ao seu achado de 1903, o
que sugere que não se sente mais seguro de nada, a esse propósito. Mas, se Biffi e o
Instituto refluíram, não foi por perda de interesse, mas porque a tarefa da distinção
entre os corpúsculos próprios da hemácia e seus parasitas era terreno escorregadio e
não só para eles. Em função disso, Biffi dá início a uma nova estratégia do Instituto:
procurar o apoio das instituições congêneres.

O Instituto de Patologia da Universidade de Bolonha

Ainda em 1908, Bindo de Vecchio, do Instituto de Patologia de Bolonha, pu-


blica um longo e detalhado estudo de farto material biológico da doença peruana,
que lhe foi passado por Biffi.
Em seu texto, o professor italiano apresenta seus exaustivos exames de cortes,
pelos quais diz ter encontrado corpúsculos acidófilos ora livres, ora no interior dos
eritrócitos e dos leucócitos, seja no baço, seja em outros órgãos. Bindo de Vecchio
(1908) suspeita de que se tratem de corpos parasitários, mas termina por concluir
que são degenerações dos eritrócitos. Em última análise, a posição de Bolonha re-
força a do Instituto de Lima já que as diferenças encontradas entre os tecidos dos
pacientes de doença de Carrión e os tecidos normais são interpretadas como deriva-
ções orgânicas do estado patológico e não como presença de parasita concorrente à
explicação etiológica da doença.
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76 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

A insistência de Barton (1909): Ecce parasita

Parece que a pergunta fundamental seja: por que razões Barton, em 1909, re-
tomaria uma comunicação oral, feita em 1905, incriminando um corpúsculo endo-
globular logo depois que uma autoridade do peso internacional de Bindo de Vecchio
fortalecera a posição do Instituto de Lima?
Certamente a posição de Barton não se monta sobre a ignorância da perspecti-
va de seus opositores. Ele sabe que não possui uma nova caracterização do corpúsculo,
já que o corante viável e as formas vistas não rivalizam essencialmente com o que
foi descrito por Biffi (1903) e por Gastiaburú (1903). Trata-se, isso sim, de denegar a
interpretação dada para a inclusão globular pelos dois médicos do Instituto. Trata-se
de reafirmar a existência de um parasita, contra a posição final de Bindo de Vecchio
(1908). Segundo Barton (1909, p. 9), “quanto à natureza dos tantas vezes citados ele-
mentos, podemos afirmar que não se trata de simples restos nucleares nem de grânu-
los degenerativos e que […] nos inclinamos a crer que sejam organismos vivos […]”.
Após a reafirmação de posição da parte de Barton, o Instituto dá mostras de
que continua mobilizado no sentido apontado por Biffi: buscar apoio nos principais
centros europeus da nova medicina.

O Hospital Real de Haslar, em Gosport, Hampshire

Gastiaburú envia preparações de sangue em lâminas para exame, usando-se


das possibilidades oferecidas pelos navios atracados no porto de Callao (encostado à
cidade de Lima). O primeiro envio bem-sucedido de Gastiaburú suscitará o parecer
do cirurgião de frota Bassett-Smith, àquela altura chefe do Hospital Real Haslar, cuja
publicação virá à lume, ainda em setembro de 1909.
Bassett-Smith (1909, p. 784) declara poder discernir, nas lâminas de sangue
tingidas por Giemsa, “no citoplasma de muitas células, diminutos corpos bacilares,
além de metacromatismo e grânulos basofílicos […]”. Trata-se ainda, portanto, de cla-
rear um campo de dferenças, no interior da hemácia. Mas a interpretação de Basset-
Smith é avessa à de Biffi (1903) e francamente contrária à de Gastiaburú (1903). O
médico inglês chega a ser enfático, numa posição semelhante à de Barton (1909):

Embora os corpúsculos [os glóbulos sanguíneos] contendo estes corpos [es-


tranhos] tenham mostrado, com frequência, mudanças cromatínicas e irre-
gularidades da forma, não é certo que eles sejam efeitos de degeneração do
Histórias de Doenças 77

protoplasma, assim como eles também parecem inteiramente diferentes dos


grânulos basófilos ordinários do sangue anêmico; eles sugerem, antes, estra-
nhos corpos patológicos causadores da degeneração […]” (Bassett-Smith,
1909, p. 784).

Embora Bassett-Smith não tenha incluído nenhuma referência bibliográfica,


o próprio texto é indicativo de que ele foi informado da posição do Instituto, que não
apoia, mas não foi informado da posição de Barton.
Ora, o artigo de Bassett-Smith, na contramão ao de Bindo Vecchio, indubita-
velmente impactou o Instituto, a se notar pela sensível mudança na linha de raciocí-
nio que vinha sendo seguida desde Biffi (1903) e de Gastiaburú (1903). O último vai
ensaiar mudar de posição, ao publicar novo artigo, desta feita com Rebagliati, antes
do apagar das luzes daquele mesmo ano de 1909.

O Instituto de Lima sem direção

Gastiaburú e Rebagliati (1909) esforçam-se para detalhar um novo método


de coloração para pavimentar uma relativização daquela posição anterior e enfati-
camente assumida (GASTIABURÚ, 1903) a favor de Biffi (1903) e contra Barton
(1909). A técnica de coloração vital aplicada ao problema da sondagem dos compo-
nentes das hemácias dos doentes de Carrión teria permitido, somente agora, distin-
guir e evidenciar completamente as granulações basófilas.
Seria por causa desta melhor visibilidade das degenerações basófilas que, so-
mente agora, seria possível diferenciar e evidenciar que há, no sangue dos pacientes
da doença de Carrión e “no interior dos glóbulos vermelhos, uns elementos de forma
especial (variável), que não se pode considerar como degeneração das hemácias, que
por suas reações colorantes indicam ser de substância viva […]” (GASTIABURÚ e
REBAGLIATI, 1909, p. 382).
Fazendo letra morta da incriminação do parasita feita por Barton, na comu-
nicação oral de 1905 e na escrita de 1909, Gastiaburú e Rebagliati (1909, p. 382)
declaram que este elemento especial “guarda íntima relação com a verruga e da que,
talvez, poderia ser o agente produtor”.
Deixando na invisibilidade o esforço clínico e bacteriológico de lida prolon-
gada com a doença, feito por Barton, Gastiaburú e Rebagliati vão citar, como apoio à
sua nova posição, a autoridade de quem nunca pôde ter um paciente da doença: “Em
apoio a esta [nossa] opinião, devemos fazer conhecer uma comunicação enviada [a
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Gastiaburú] por Bassett-Smith”. O texto citado é de uma correspondência pessoal.


Gastiaburú não devia ter tido acesso, ainda, à publicação do artigo de setembro do
médico britânico, já que não o cita, mas a seguinte ideia atribuída a Bassett-Smith:
“Observação, em muitos glóbulos vermelhos, de filamentos especais, diplococos ou
formas globulares, que parecem ser algo mais que simples degenerações dos glóbu-
los vermelhos e sobre os quais não é possível emitir opinião definitiva” (BASSETT-
SMITH apud GASTIABURÚ e REBAGLIATI, 1909, p. 382).
Para diferenciar o parasita das granulações basófilas, Gastiaburú e Rebagliati
(1909) dizem que o único procedimento é o de Giemsa, que colore o parasita em
violeta. Assim, para ver as granulações basófilas, usam a coloração vital; para ver os
parasitas, usam Giemsa.
Apesar de tanto Bassett-Smith quanto Gastiaburú e Rebagliati terem dito
que a inclusão especial é evidenciável por Giemsa, o primeiro se declara “incapaz
de detectar quaisquer manchas vermelhas de cromatina” (Bassett-Smith, 1909,
p. 784), enquanto os limenhos interpretam o que veem de maneira bem diversa:
“com este colorante [Giemsa] tingem-se [os elementos endoglobulaes especiais]
em violeta o que certamente demonstra que estão constituídos por cromatina nu-
clear” (GASTIABURÚ e REBAGLIATI , 1909, p. 383). Para serem consequentes
com estas conjecturas, que pareciam ir além de somente corroborar a interpre-
tação de Bassett-Smith, a mesma de Barton, Gastiaburú e Rebagliati concluem
o artigo evitando romper com o que fora dito, em 1903, por Biffi e pelo mesmo
Gastiaburú: “não temos a evidência de que se trata de seres vivos” (GASTIABURÚ
e REBAGLIATI, 1909, p. 383).
A despeito de se negarem a endossar a hipótese de Barton, Gastiaburú e
Rebagliati agregam a ela elementos corroborantes relevantes. Eles se declaram ca-
pazes de terem visto o mesmo elemento endoglobular em todos os casos agudos
observados, como também, além do que pôde ver Barton, em formas clínicas menos
graves da doença: “nas formas apiréticas estão em muito menor proporção, mas um
exame atento permite descobri-los” (GASTIABURÚ e REBAGLIATI, 1909, p. 383).

O Instituto de Doenças Tropicais e da Marinha de Hamburgo

O esforço de Gastiaburú para obter opiniões estrangeiras, avança e, no ano


seguinte, Martin Mayer publica um artigo em que declara ter recebido lâminas de
amostra de sangue provenientes do Instituto Higiene de Lima. Também Mayer
Histórias de Doenças 79

(1910, p. 310) entende que há corpos “incluídos nos glóbulos vermelhos e que se
coloram, por Giemsa, em vermelho escuro”.
Embora Mayer não tenha tido acesso ao texto de Barton (1909), corrobora
uma observação do médico peruano, oferecendo uma importantíssima ratificação.
Para Mayer (1910, p. 310), dentre as inclusões dos glóbulos vermelhos dos pacientes
da doença de Carrión, “outros bastonetes invadem a margem globular ou sobressa-
em dele, como se houvessem escorrido”. No ano anterior, dizia Barton (1909, p. 8):
“Em algumas preparações parece que os bastõezinhos [ou bacilozinhos] tenham a
tendência a ocupar a periferia dos glóbulos e, nestes casos, podem ver-se um ou ou-
tro deles parcial ou ainda totalmente fora das células”. Uma característica que, por si
só, falaria em favor da tese de a inclusão ser de natureza parasitária, em detrimento
da tese de que pudesse pertencer aos fenômenos fisiológicos da hemácia. Esta ob-
servação será continuamente colocada do lado da verdade pelos observadores que
se sucederão, ao longo das décadas seguintes, tornando-se um dos problemas a se
resolver. Com o advento da microscopia eletrônica, veio a saber-se que a Bartonella
bacilliformis, sendo dotada de múltiplos flagelos, é capaz de locomover-se, aderir à
parede do glóbulo vermelho e penetrá-lo. O que Barton e Mayer viram foi, numa
interpretação retrospectiva, a Bartonella bacilliformis no ato de sua penetração no
eritrócito ou parasitando sua parede.
Permanecendo ainda na leitura do artigo de Mayer, vemos que ele acompanha
a posição de Bassett-Smith, ao afirmar que “não se pode diferenciar, nos elementos in-
cluídos nos eritrócitos, o protoplasma da substância nuclear, devendo-se, então, con-
siderar como protoplasma as partes tingidas em vermelho” (MAYER, 1910, p. 310).
Mayer reconhece que seu achado é o mesmo de Biffi (1903), de Gastiaburú
(1903) e de Bassett-Smith (1909), artigos a que ele tem acesso, embora não cite Barton
(1909), um texto que não deve ter acompanhado as amostras enviadas de Lima.
Mas, se Mayer considera as referidas inclusões inconfundíveis com os sinais
de Schuffner-Tupfelung, presentes nas hemácias dos pacientes de malária, têm di-
ficuldades em diferenciar, em todas as amostras, as novas inclusões dos anéis de
Dohler e conclui que isso pesa contra a hipótese parasitária. Por outro lado, consi-
dera que há amostras em que a nova inclusão é claramente distinguível dos anéis de
Dehler. Por fim, conclui:

Mas, se todas as formas vistas, foram de pura origem degenerativa, estar-se-ia


diante de formas degeneradas comumente observadas; mas são tão caracte-
rísticas as observadas na Verruga Perunana, que pedem um novo e mais pro-
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80 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

fundo estudo; tanto para seu estudo hematológico, quanto que se encontrará
pontos de vista novos no que se refere à constituição dos eritrócitos (MAYER,
1910, p. 311).

O Instituto de Higiene e Parasitologia da Universidade de Lausanne

No ano seguinte, 1911, aparece, na Alemanha, o artigo enviado da França


por Galli-Valerio, Observações microscópicas sobre a ‘Verruga peruana’ ou ‘Doença
de Carrión’. Desta vez, o material para os exames não foi enviado pelo Instituto
de Higiene de Lima, mas por iniciativa pessoal dos médicos E. L. Congrains e R.
Arias, a partir de pacientes do Hospital Militar de São Bartolomeu e do Hospital de
Guadalupe (Callao). O método do envio é o de cortes da verruga em solução con-
servante e esfregaços de sangue em lâminas.
Galli-Valerio confirma o achado intra-globular, nos seguintes termos: “nas pre-
parações coloradas com Giemsa […] pude constatar: em vários glóbulos vermelhos,
fracamente colorados em rosa, havia granulações bem finas, irregulares, coloradas em
vermelho-violáceo e diferentemente dispostas” (GALLI-VALERIO, 1911, p. 230).
Galli-Valerio não teve acesso ao texto de Barton (1909), mas considera que
o achado é uma confirmação do de Mayer (1910). Quanto à forma de interpretar o
achado, Galli-Vallerio oscila entre as duas posições já anunciadas no debate: consi-
derá-lo um parasita ou um produto de degenerescência do protoplasma dos eritró-
citos, conforme o caso e a lâmina que examina.

O Hospital de Ancon, na zona do Canal do Panamá

No ano seguinte, em dezembro de 1911, aparece o texto de S. T. Darling,


Verruca peruana7. A participação do médico americano tem valor único, pelas se-
guintes razões. Em primeiro lugar, Darling conhece a participação da medicina
americana e inglesa nas obras da construção da ferrovia de Lima a Oroya, na década
de 1870. É único deste período, que herda uma linhagem de pensamento clínico
sobre a doença, aquela que se desenvolveu no serviço médico avançado, nos acam-
pamentos dos trabalhadores de empresas de origem inglesa ou americana que atua-
ram nas obras da ferrovia. Ele conhece o trabalho realizado por Browne (1872-3) na

7 Lido na Seção de Patologia e Fisiologia da Associação Médica Americana, 62ª. Sessão Anual,
Los Angeles, junho de 1911.
Histórias de Doenças 81

época da epidemia da ‘febre de Oroya’, entre 1870 e 1872, que recolheu a experiência
de Crow e Ward (WARD, 1877), que conviveram com o primeiro médico de língua
inglesa a clinicar na região endêmica da doença, na década de 1870 e a se pronunciar
publicamente sobre ela (SOCIEDAD MÉDICA DE LIMA, 1875).
Ademais, o Hospital de Ancon tem uma posição estratégica em relação aos
trabalhadores de origem norte-americana que atuam nas obras da ferrovia peruana.
Isso dá a Darling: uma comunicação rápida com a medicina limenha; o acesso a
casos de doentes provenientes do Peru; materiais biológicos de primeira mão e a
possibilidade de autópsias, como a que ele relata ter feito, no artigo. Em função desta
posição estratégica, de todos os que se pronunciaram até o momento, só Darling
dispõe do texto de Barton (1909), enquanto os participantes acima apresentados só
tiveram acesso à produção do Instituto de Higiene de Lima.
Sobre a inclusão globular, Darling também as vê e as representa em uma ilus-
tração em seu artigo, chamando-as de corpúsculos x (x-bodies). Ao resumir suas
leituras sobre os outros observadores do fenômeno, como é costume neste tipo de
literatura, ele está em posição de colocar as coisas no lugar histórico correto. Para
Darling (1911, p. 2072), “Gastiaburú e Rebagliati, em outubro de 19098, confirma-
ram os achados de Barton”.
Darling (1911, p. 2073) compreende que o problema sobre a natureza das
inclusões globulares ou corpúsculos x seja o seguinte: “Seriam eles alguma forma de
basofilia ou mudança degenerativa dos eritrócitos ou são remanescentes nucleares?”.
Frente a tal problemática, Darling vai realizar as seguintes observações: (a) estuda os
“eritrócitos mostrando corpúsculos x de um caso fatal de verruga peruana, dois dias
antes da morte” de paciente atendido no Hospital de Ancon; (b) realiza a autópsia do
referido caso fatal; e (c) estuda as lâminas de sangue enviadas por Barton.
A conclusão de Darling é a seguinte: “vou limitar-me a afirmar que os corpús-
culos x em forma de bastonetes delgados parecem-me representar algum tipo único
de micro-organismo” (DARLING, 1911, p. 2073).
Dessa forma, Darling (1911) foi o primeiro a referendar, com amplo conhe-
cimento de causa, a posição de Barton (1909).

8 Outubro de 1909 é a data da leitura do texto Sobre la hematologia y etiologia de la Enfermedad


de Carrión, publicado em 15 de novembro de 1909, conforme as corretas informações de que
dispõe Darling.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
82 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

O Instituto de Hamburgo muda de posição e alinha-se a Ancon

Depois da publicação de Darling, também Hamburgo tem a oportunidade de


estudar diretamente a doença, graças à chegada de um trabalhador que esteve em obras
na região onde é endêmica da doença de Carrión, nas quebradas andinas peruanas.
Mayer, que escrevera sozinho sobre o assunto em 1910, agora publica em
parceria com H. Werner e com o destacado médico sanitarista e microbiologista
brasileiro, Henrique da Rocha Lima (1879 – 1956), o descobridor do agente do tifo,
por ele batizado de Rickettsia prowazeki.
O paciente contraiu a doença na quebrada de Oroya, sendo internado em
Lima e tendo chegado ao Hospital dos Marinheiros em Hamburgo já com a erupção
visível da verruga peruana.
Nas preparações de sangue periférico, é com o mesmo corante até agora uti-
lizado, Giemsa, que os espertos conseguem ver as inclusões globulares. Os autores
nos dão a saber que, diferentemente do que ocorria com Mayer, em 1910, já não há
possibilidade alguma de confusão entre os anéis de Dohler e a inclusão globular
típica da doença de Carrión. Homologam o achado, cuja interpretação aprofunda a
perspectiva de Darling, nos seguintes termos:

A forma, tamanho e situação da maior parte destas inclusões exclui a possibili-


dade de que possa tratar-se de degenerações nucleares, tanto mais quanto por
se encontrarem em um tecido em que não se nota manifestação degenerativa
alguma. Já não é possível identificar estas inclusões com nenhuma alteração
celular conhecida […]. (MAYER, ROCHA LIMA e WERNER, 1913, p. 741).

Trata-se, consequentemente, para os três autores, de um parasita.


Antes, portanto, da chegada ao Peru da comissão da Escola de Medicina
Tropical de Harvard, em 1913, já estava homologada a observação da inclusão glo-
bular feita por Biffi (1903) e a sua incriminação, feita por Barton (1909), como para-
sitária e responsável daquela patologia tropical exótica, típica de certas localidades,
em faixa determinada de altitude da elevação andina. Cumpre, agora, retomarmos
as razões que conduziram Barton, neste seu debate com o Instituto de Higiene de
Lima. Um debate que a história decidiu em favor de Barton, com participação da
comunidade médica internacional.
Histórias de Doenças 83

As razões de Barton (1905-1909)

Uma vez feito o traçado histórico do contexto, é preciso retomar a pergunta:


o que explica, epistemologicamente, o acerto de Barton?
Ao procurar dar ao seu trabalho clínico de diagnóstico da patologia o acom-
panhamento sistemático do exame microbiológico, em vista da descoberta da etio-
logia da doença, Barton assumiu a perspectiva que seu lugar de trabalho exigia e
sua opção teórica determinava: dar o peso epistemologicamente decisivo para o
diagnóstico clínico, tornando-o norteador da busca microbiológica. Não foi isso
que guiou Biffi (1903), cujo achado foi acidental. Gastiaburú (1903) e Gastiaburú
e Rebagliati (1909) não articulam a busca microbiológica a uma concepção clínica
unitária da doença, tal como se estabeleceu na tradição hospitalar de cuidado mé-
dico da doença.
Não que isso fosse, da parte de Barton, uma decisão epistemológica prévia
ou que ele requisitasse universalização. Era, isso sim, uma orientação vinda da ação
médica. Orientação localizada e conjuntural, pois decorrente do embate com um
complexo obstativo epistemológico concreto. Este complexo era composto de obstá-
culos conjunturais ou situacionais e de obstáculos impostos pelo próprio objeto de
estudo. Mostraremos a seguir que os dois tipos obstáculo, o situacional e o objetal,
articulam-se intimamente, descrevendo-os na sua imbricação, ou seja, na qualidade
de complexo obstativo.
Comecemos pelo obstáculo epistemológico em sentido forte, aquele impos-
to pelo objeto. A doença possui dois tipos de sintomatologia difíceis de se agregar
numa só entidade nosológica. Como a febre amarela, a doença de Carrión possui
uma fase infecciosa geral e uma fase de sintomas dermatológicos. Mas, diferente-
mente da febre amarela, a doença de Carrión não pertence ao grupo daquelas que o
século XIX soubera agrupar clinicamente tão bem e que, após o período aqui histo-
riografado, comparecerão ao saber como doenças virais. Enquanto a febre amarela
e outras patologias do seu grupo possuíam ciclo temporal fixo de suas fases e quase
inteiramente independentes do sujeito adoecido concreto que as desenvolvia, a do-
ença de Carrión não tinha definição de intervalos temporais rígidos e seus ciclos não
produziam imunidade, podendo repetir-se no mesmo sujeito ao longo da vida, de
maneira completamente contrária às doenças do grupo da febre amarela.
A despeito disso, a clínica médica havia confluído para uma prática hospita-
lar, seja na prática de posto avançado junto aos acampamentos, nas obras da ferrovia
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
84 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

que subiam a serra andina (esta medicina era praticada por médicos estrangeiros
que publicavam em língua inglesa), seja na medicina hospitalar tradicional, que pu-
blicava em espanhol, na costa peruana. Segundo estas duas linhagens de pensamen-
to e prática médico-hospitalares (a peruana e a anglo-americana), tratava-se de uma
só doença, integrando um conjunto de sintomas que deviam ser vinculados ao dado
fundamental oferecido pela geografia médica do Peru, a estada do paciente na região
endêmica da doença. Assim, a doença perfaz o seguinte ciclo sintomático: febre, do-
res musculares e ósseas acompanhadas de anemia aguda e crescente, na fase de ins-
talação, não separável da fase aguda; um período de remitência dos sintomas agudos
e, finalmente, a fase do surgimento da erupção patognomônica, a verruga peruana.
Em qualquer das fases da doença, podia surgir uma síndrome aguda e de prognós-
tico quase sempre fatal, de sintomas tifoides, mas sem perda de consciência, nem
quadro delirante. Ademais, a área endêmica da doença, normalmente, é recoberta
pelo paludismo endêmico, apresentando-se a doença de Carrión, frequentemente,
complicada pela malária. Na clínica hospitalar, o tratamento quinínico era de praxe
em qualquer fase da doença, de forma que a prevalência dos sintomas e a proveni-
ência do paciente, supressa a possibilidade palúdica pelo uso do medicamento, indi-
cavam a possibilidade da doença de Carrión, mesmo na ausência da erupção típica.
Num quadro clínico tão complexo, Barton assumiu a posição epistemológi-
ca que guia claramente todo o seu percurso (SUGIZAKI, 2014). A sua busca fun-
damental sempre foi pela etiologia da doença. Para tal fim, ele precisava, tanto no
plano clínico, quanto no microbiológico, isolar a doença de suas complicações. Ele
devia constituir uma grade sistemática de isolamento das possibilidades causais, ou
seja, excluir causas que o pudessem conduzir às doenças complicadoras e não ao
isolamento da causa específica da doença de Carrión.
A sua primeira exclusão foi contornar ou evitar obstáculos conjunturais ou
situacionais. Ele renunciou às buscas no tecido da erupção, a verruga peruana, em
favor de uma pesquisa no sangue dos doentes. Barton sabia, pelas experiências de
seu trabalho de conclusão de curso de medicina, publicado em 1901, que a busca da
etiologia que tomasse a erupção típica para exame histológico deparava-se com uma
pletora de agentes microbianos de difícil isolamento, difícil cultivo e difícil produ-
ção experimental do sintoma patognomônico, via inoculações em animais. Por isso,
Barton (1901) escolheu buscar a etiologia da doença, não na erupção, mas na cor-
rente sanguínea periférica, para vincular o agente à doença, em sua fase aguda. No
Histórias de Doenças 85

sangue e nesta fase, era mais fácil eliminar as infecções intercorrentes, que a anemia
da doença favorecia fortemente, em todo o seu desenvolvimento.
Para eliminar as variantes de complicação presentes no sangue, Barton podia
contar, na clínica, com a quinina. No plano microbiológico, desenvolveu competên-
cia, ainda antes de ter o diploma médico, para isolar as diversas formas visíveis do
hematozoário de Laveran e o bacilo de Eberth. Sabe-se disso graças ao excelente do-
mínio microbiológico que demonstra sobre os dois temas, em seu artigo debutante,
de 1898, em Cadiz, na Espanha (Barton, 1898). Um texto que passou inteiramen-
te despercebido aos historiadores que se ocuparam do assunto (Rebagliati, 1940;
Lastres, 1957; García Cáceres, 1972 e 1991).
Recém-formado em medicina, Barton aproveita uma bolsa de estudos conce-
dida pelo Congresso Nacional do Peru e, na Inglaterra, adquire domínio para o isola-
mento do bacilo Coli comum. Outra complicação possível eliminada (Barton, 1902).
Depois de anos de investimento no estudo do sangue dos pacientes vitimados
pela doença de Carrión, pelo menos desde 1897, Barton viu na descoberta de Biffi
(1903) uma chance enorme de fazer avançar sua busca pela etiologia. O interior do
glóbulo vermelho só tinha, do que ele sabia, um problema. Era preciso separar os
doentes com complicação palúdica, com o máximo cuidado. É o caminho que suas
pesquisas tomam, já que, em 1905, ele vai à Sociedade Médica ‘União Fernandina’ e
incrimina a inclusão globular que Biffi (1903) havia dado como granulação basófila.
Nesta mesma ocasião, no mesmo evento comemorativo à morte de Carrión,
na Sociedade ‘União Fernandina’, em outubro de 1905, Tamayo (1905), a essa altura
não mais como colega de estudos de Barton, mas como funcionário do Instituto de
Higiene de Lima, apresenta aquele estudo que será o primeiro marco de conheci-
mento irrefutável sobre os processos complicadores da doença de Carrión, a presen-
ça universal dos bacilos paratíficos na síndrome tifoide que podia atacar os pacientes
de doença de Carrión em qualquer das fases da enfermidade.9 Esclarecia-se, assim,

9 Apesar da descoberta dos bacilos paratíficos ter ocorrido em 1896 (Achard e Bensaude, 1896a,
1896b, 1896c e Achard, 1915), a difusão do conhecimento deste agente pelos laboratórios pa-
rece ter sido lenta em função da grande dificuldade de se constituir uma coleção enorme de
parasitas diferenciáveis por procedimentos extremamente sutis e específicos, que vão, poste-
riormente, dar lugar ao grande grupo dos seres vivos classificados sob o gênero Salmonella. A
chegada ao Peru do acervo microbiológico bem como do domínio das técnicas laboratoriais
para a identificação da lista, a esta altura já extensa, dos bacilos paratíficos, é testemunhada
apenas em 1904, no artigo de Biffi e Carbajal, Sobre um caso de Enfermidade de Carrión com
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a complicação mais típica da doença e explicava-se, em grande parte, a situação


catastroficamente epidêmica dos acampamentos de trabalhadores fixados no inte-
rior das zonas endêmicas, para a construção da ferrovia à Oroya. A infestação dos
trabalhadores com a doença de Carrión e as más condições de higiene alimentar e
sanitária dos acampamentos favorecia a complicação por bacilos da família hoje co-
nhecida como salmonellosica, dando à disseminação da doença o caráter alarmante
de uma peste.
Ao tomar ciência da descoberta de Tamayo, em 1905, Barton deixa de publi-
car seu próprio texto que incriminava a inclusão globular e lido no mesmo evento
em que falara Tamayo. Barton retorna à pesquisa, em silêncio. Ele precisava reavaliar
sua própria trajetória. Na tentativa de isolar os agentes complicadores, ele se con-
fiara na solução de Widal para isolar bacilo tifoide, mas não estava a par do recente
problema dos paratíficos. Estes não eram eliminados pela quinina, como não o era o
bacilo tifoide, mas como os bacilos paratíficos não eram detectáveis pela solução de
Widal, esta complicação havia escapado à sistemática de isolamento das complica-
ções, construída na trajetória de Barton. O texto de Barton de 1902, referente a seu
estágio na Inglaterra, não toca no tema dos bacilos paratíficos, mostrando que ele
não tivera acesso a um acervo bacteriológico destes, no laboratório em que estagiou.
Mas também o texto de Gastiaburú (1902) evidencia a ignorância das bactérias pa-
ratíficas, em Lima.
Quando Barton volta à carga, em 1909, ele havia providenciado para que,
nos casos que arrolava, não houvesse nenhuma das complicações previsíveis e que
os sintomas apontassem o mais certeiramente possível para a tradição clínica de
diagnóstico da doença de Carrión, conforme se praticava nos hospitais limenhos.
Compreende-se, com isso, que ele tenha selecionado somente quatorze casos e, ne-
les, tenha obtido presença universal das inclusões globulares.
Ao tomar a decisão de confrontar pela segunda vez a posição de Biffi (1903),
afirmando que as inclusões não eram granulações basófilas, mas parasitas, Barton

verrucomas supurados. Apenas dois anos antes disso, quando outro funcionário do Instituto
de Higiene de Lima ocupa-se da tentativa de refletir sobre as características tifoides de pe-
ríodos de sintomas agudos na doença de Carrión e a relação dessa síndrome com possíveis
complicações, ele fala apenas do bacilo de Eberth e do parasita de Laveran. Referimo-nos ao
artigo de Gastiaburú (1902), Um caso de malária ‘Immaculata’. Por este artigo é possível saber,
com grau elevado de segurança, que não havia, no Peru, conhecimento dos agentes paratíficos
até o final do ano de 1902.
Histórias de Doenças 87

(1909) não estava em condições de resolver cabalmente o problema da distinção


entre a inclusão globular e componentes naturais da hemácia e de suas funções al-
teradas pelo quadro anêmico: granulações basófilas, mudanças degenerativas ou re-
manências nucleares dos eritrócitos. Mas, para isso nem Biffi (1903) estava apto e eis
a razão do seu posterior silêncio sobre as inclusões, especialmente no congresso de
Berlim, em 1908. Muito menos aptos estavam Gastiaburú e Rebagliati (1909). Quem
estava muito melhor posicionado para resolver isso, Mayer, em 1910, alertava que
a situação contemporânea exigia conhecimento mais aprofundado das transforma-
ções patológicas próprias da hemácia em sangue anêmico. Nesse sentido, o apelo li-
menho aos pesquisadores estrangeiros, tanto do Instituto de Lima quanto de Barton,
acabou por trazer dessa cooperação uma contribuição decisiva.
Mas se, voltando à pesquisa de Barton, no período de 1905 a 1909, no Peru,
não se detinha um conhecimento atualizado e experimentalmente capaz de testa-
gem para o isolamento do que pertencia e do que não pertencia ao interior da he-
mácia, que tarefa não podia ser executada por mais ninguém a não ser por quem
estivesse junto à região endêmica da doença? Bassett-Smith (1909, p. 784) responde
a essa questão, dizendo: “antes de chegar a qualquer conclusão sobre a natureza [do
achado], um detalhado estudo de um largo número de amostras frescas deveria ser
feito para ver se sua presença é constante em todos os casos agudos”.
Ora, embora Bassett-Smith não o soubesse, essa tarefa já havia sido encami-
nhada. O trabalho de Barton de 1909 é a culminância de uma longa busca, como se
mostrou acima, que teve em 1905 o marco que torna pública uma virada: as buscas
passaram a concentrar-se no interior da hemácia:

Na sessão que celebrou a Sociedade Médica ‘União Fernandina’ em 5 de ou-


tubro de 1905, assinalamos, pela primeira vez, a presença de elementos de
forma bacilar encontrados no sangue de dois enfermos vítimas da ‘febre grave
de verrugas’. Posteriormente e à medida em que fomos adquirindo mais práti-
ca nestas investigações, pudemos determinar a existência destes mesmos ele-
mentos em muitos outros enfermos atacados da dita infecção; assim, durante
os últimos doze meses, em que tivemos oportunidade de examinar o sangue
de quatorze indivíduos que sofriam de verrugas em sua forma grave e febril,
comprovamos em todos eles a existência dos elementos mencionados […]
(Barton, 1909, p. 7-8).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
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Portanto, a primeira razão para a teimosia de Barton, em 1909, contra o


Instituto, é de ordem clínico-biológica. A existência do elemento endoglobular é
universal para os pacientes com diagnóstico clínico da doença. Mas isso secunda um
processo de observação que liga o juízo de 1909 à comunicação de 1905, perfazendo
um largo período de atenção hospitalar cotidiana ao aparecimento da doença, em
que a clínica se fazia acompanhar o mais sistematicamente possível pela observação
microscópica.
O segundo fator decisivo é a exclusividade da existência do elemento en-
doglobular aos doentes clinicamente diagnosticados para a doença em questão:
“Cremos, ademais, que sejam os agentes específicos da infecção verrucosa, fundan-
do-nos […] em que não se encontram em nenhuma outra enfermidade” (BARTON,
1909, p. 7-8).
Por fim, o terceiro fator, ainda de ordem clínico-biológica:

Parece-nos que existe uma relação definida entre o número destes elementos
e o estado dos pacientes, notando-se que a cura coincide com sua desapari-
ção […] e que, pelo contrário, enquanto persistem no sangue, os sintomas
continuam e se seu número aumenta consideravelmente, o paciente piora e
sucumbe em pouco tempo, se não se verifica o processo de involução [do
gérmen dentro da hemácia] (BARTON, 1909, p. 9-10).

Conclusões

O presente trabalho buscou reunir elementos para mostrar que o texto de


Barton de 1909, a segunda incriminação escrita de inclusão globular como agente
patológico específico da doença de Carrión, é o epicentro epistemológico da his-
tória da descoberta. Seu autor, entretanto, não aparece como o construtor de uma
conquista científica solitária. Atuando dentro de um processo agônico de emulação
científica, Barton protagonizou, com o Instituto Municipal de Higiene de Lima, uma
das maiores conquistas médicas da América Latina, capitaneando a colaboração dos
principais centros de estudos das doenças tropicais.
Se Barton foi capaz de culminar o processo da descoberta, nesta primeira
e decisiva fase da pesquisa microbiológica do agente da doença, foi porque soube
manter-se na proa do pensamento médico sobre o conceito global da enfermidade
de Carrión. Soube aproveitar-se da contribuição de Tamayo em 1905 e permanecer
guiado pelo eixo do problema da descoberta do agente. Tamayo resolve desviar-se
Histórias de Doenças 89

dessa questão para ocupar-se com o problema da invenção de uma vacina contra os
bacilos paratíficos (Tamayo, 1906) e sobre a classificação desses bacilos (Tamayo e
Gastiaburú, 1907). Finalmente, é Barton (1909) que melhor se aproveita da desco-
berta de Biffi (1903), das inclusões globulares.
Reunindo as contribuições do Instituto às suas próprias pesquisas, Barton
procura totalizar os elementos teóricos dispersos. Procura coordenar o diagnóstico
clínico e o crivo crítico da pesquisa microbiológica. Como já foi dito anteriormente,
ele procura eliminar fatores causais de processos patológicos paralelos, para chegar
ao fator causal do mal principal. É essa perspectiva globalizante que lhe dá funda-
mentos para insistir na posição incriminatória, defendida em 1905 e em 1909.
De outro lado, a linha de pensamento do Instituto Médico de Lima e, de resto,
de todos os outros interventores internacionais no debate, exceto Darling, é de um
perfil epistemológico restrito ao crivo crítico microbiológico e, portanto, carente de
sustentação da orientação do diagnóstico clínico. Se Darling (1911), como também
Mayer, Rocha Lima e Werner (1913) homologam competentemente a descoberta de
Barton (1909) é por causa do acesso direto aos pacientes. Um acesso que o Instituto
de Higiene de Lima também tinha, mas optou por declinar da concepção clínico-
-global e unitária da doença de Carrión, que guiava Barton.
Enquanto Barton reúne os elementos que, num todo complexo, mas articu-
lado, apontam para uma etiologia determinada e segue um raciocínio afirmativo,
que implica o risco do que não é absolutamente certo, o padrão causal restritivo
seguido por Biffi e pelos laboratórios foi reativo e negativo. Segundo este padrão, é
preciso esgotar as possibilidades de explicação alternativa para um fenômeno antes
de guindá-lo ao estatuto de elo decisivo. Percebe-se bem que não é o desacerto de
uma das opções epistemológicas, a de Barton ou a do Instituto de Higiene de Lima,
que está em questão. O critério epistemológico dos laboratórios é etiologicamente
mais rigoroso que o de Barton. Mas, foram a cooperação dialética e a emulação
científica entre eles que conduziram ao sucesso histórico da razão sobre o desafio
imposto pela doença.

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Jean Luiz Neves Abreu2

O processo de institucionalização da medicina no Brasil Império foi marcado


por uma série de fatores. Além do papel das instituições e dos periódicos, é
importante atentar pra as dinâmicas sócio- profissionais que buscavam produzir,
validar e controlar o saber médico. Imersa em controvérsias, a legitimação das po-
sições teóricas dependiam também dos protocolos científicos adotados (EDLER,
2003, p.142-143).
Tais considerações são relevantes para a compreensão das teses médicas pro-
duzidas ao longo do século XIX. Partindo de um corpus delimitado – disponível no
Arquivo Público Mineiro – busca-se analisar algumas questões que permitem pensar
os significados das teses defendidas pelos alunos da Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro, como parte de um processo de legitimação do saber médico no oitocentos.
Tal abordagem se mostra profícua por dois motivos: em primeiro lugar, bus-
ca-se mobilizar argumentos para se repensar o significado das teses. Afinal, até o
momento esses textos tem sido, a nosso ver, pouco problematizados. Em segundo
lugar, objetiva-se ir além da abordagem temática, caminho trilhado por muitos tra-
balhos que elegem tais como fontes. Sem desmerecer o significado dessas pesquisas,
esse texto busca problematizar alguns elementos próprios da produção do saber mé-
dico do século XIX que podem ser percebidos a partir da leitura dessas fontes.

1 Este texto conta com o apoio da FAPEMIG e é resultado do projeto de Pesquisa: “As teses médi-
cas e a constituição da medicina acadêmica em Minas Gerais (18361897)” (FAPEMIG/MG)
2 Professor do Instituto de História, da Universidade Federal de Uberlândia.
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A tradição clínica e o experimentalismo

Ao se debruçar sobre esse corpus documental, um dos primeiros elementos


a chamar atenção é a obediência a certos padrões e formas de enunciação. Neste
sentido, José Gondra propõe que, no lugar de uma autoria individual, uma série
de dispositivos de controle atuava na seleção e abordagem das temáticas escolhidas
pelos alunos. Não há, portanto, como dissociar a escrita do local institucional ao
qual esses textos estavam vinculados, a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
Esse controle institucional se iniciava pela própria restrição da escolha do assunto,
o qual muitas vezes era restrito a um conjunto de pontos pré-estabelecidos pela.
A escrita passou a ser, cada vez mais, uma prática regulamentada no interior da
Faculdade. Nos estatutos de 1837, as teses poderiam versar sobre qualquer matéria
do curso. Posteriormente, em 1874, as regras passaram por mudanças e a dissertação
“consistiria em proposições concernentes a três questões, sendo cada uma relativa
a cada seção do curso médico”, desde que aprovadas pela Congregação. Na refor-
ma de 1884, foi mantido o controle da congregação sobre os pontos, devendo as
teses versar sobre as “doutrinas importantes das ciências professadas na faculdade”
(GONDRA, 2004, p.135-136).
Neste sentido, em muitos dos textos consultados o trabalho final era visto
como uma etapa da formação, para satisfazer as normas da Faculdade. A título
de exemplo, esse aspecto pode ser observado na tese sem identificação de autoria,
Hypoemia intertropical (1875), onde seu autor afirmava que o trabalho era um “es-
boço, mais para satisfazer a lei, do que o prazer de exibir à luz ideias nossas”.
A expressão “satisfazer a lei” é recorrente. Do ponto de vista do conteúdo, isso
implicava na abordagem do tema proposto por meio da exposição das principais
teorias existentes sobre determinada doença ou temática correlata, a exemplo das
questões ligadas à higiene.
De maneira geral, procurava-se arrolar as principais abordagens acerca do
diagnóstico, descrição e tratamentos indicados das patologias. Diante disso, em
muitas teses o que se observa é uma valorização das autoridades em detrimento de
experiências originais. Em tese sobre o tétano (1882), Cândido de Assis Andrade,
justificava seu empreendimento apelando para a benevolência dos avaliadores em
nome da própria ciência, “que em seu caminho precisa do apoio de legítimas autori-
dades” (ANDRADE, 1882, p.5).
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Para além de uma mera justificativa, é plausível compreender o apoio às au-


toridades como uma forma de exposição bastante recorrente nos tratados e obras
de medicina. Cabe lembrar que os compêndios médicos se constituíram durante
bastante tempo como o lugar de uma autoria compósita, pela referência e glosa de
autores consagrados, como Hipócrates e Galeno, incorporando os autores de recen-
tes descobertas (COSTA, 2011; KOZLUK, 2010). Essa tradição adotado na escrita de
compêndios de medicina se fez também presente nas dissertações, constituindo-se
como forma de legitimação do discurso médico.
As teses médicas evidenciam igualmente uma tendência em adotar como re-
ferência os critérios de cientificidade estabelecidos na época. Até as reformas aca-
dêmico-administrativas das Faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de Janeiro,
ocorridas entre 1879 e 1884, a medicina clínica se constituiu como uma tradição
científica que balizou a formação intelectual e a produção do conhecimento.
Essa tradição de orientação francesa tinha como pressupostos três princí-
pios: reconhecimento no indivíduo determinada doença mediante a observação e
descrição minuciosa dos sintomas e signos; distinção no cadáver uma patologia es-
pecífica mediante a observação da altera­ção dos tecidos e órgãos internos; e o trata-
mento doença “com terapêuticas racionais e comprovadamente eficazes”. De modo
geral, a medicina acadêmica no Brasil repercutiria as controvérsias que marcaram
a medicina francesa do período, com destaque para as disputas entre a doutrina de
Broussais, e o ecletismo médico. O primeiro organizou um sistema médico “fisioló-
gico” baseado em proposições simples válidas para toda e qualquer enfermidade, a
partir da identificação de “irritações” locais, cuja propaga­ção se daria pelas “simpa-
tias” existentes entre os órgãos. O ecletismo médico, constituído pelos opositores a
Broussais, pautava-se pela valorização da experiência, “entendida como o acúmulo
de casos observados e mesmo de autópsias feitas” e respaldavam a atividade médica
no estabelecimento de estatísticas (EDLER, FERREIRA, FONSECA, 2001, p.68-71)
A despeito dessas querelas, a partir da leitura das teses observa-se de maneira
geral a adesão dos alunos a esses padrões de cientificidade. Ricardo Augusto Baptista
considerava que havia uma medicina “não científica”, caracterizada pela simples ob-
servação clínica, em que os quadros nosológicos desse período traduziam o atraso
da ciência. Segundo defendia, foi somente a partir de Morgagni, com a perscrutação
dos cadáveres e com a anatomia patológica, que a medicina se constitui como uma
“verdadeira ciência”, avanços completados pela histologia e a fisiologia experimental
(BAPTISTA, 1876, p.10).
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Chama a atenção o fato de que, aos casos descritos por outros médicos e
extraídos da literatura, Ricardo Baptista procurava incluir as observações clínicas
que teve oportunidade de acompanhar no hospital, como o caso de hemiplegia –
associada à encefalite aguda – verificada pela necropsia de um doente. No decorrer
da dissertação, há o relato de outros casos, como a de paralisia geral, tendo como
um dos sintomas “derramamentos serosos ou sanguíneos” e “amolecimentos perifé-
ricos das camas corticais do encéfalo”, lesões que pôde observar a partir a partir das
autópsias que fez na casa de saúde do Dr. Eiras (Ibidem, p.25), também conhecida
como Casa da Convalescença, uma das primeiras instituições particulares a receber
alienados mentais em um espaço dedicado à terapêutica alienista (GONÇALVES,
2013, p.71-72).
Os estudantes de medicina enfatizavam a adesão aos métodos experimentais
da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Em trabalho sobre a epilepsia (1872),
Pedro Sanches de Lemos afirmava que a patogenia fornecia “o molde científico da
medicina moderna”, apoiada na experiência e na experimentação, “tendo à mão ins-
trumentos apropositados e precisas observações (LEMOS, 1872, p.1-2).
Argumentos semelhantes são apresentados para o estudo da anatomia pato-
lógica da febre amarela (1885), de autoria de Francisco Augusto Cézar. No prefácio,
ele observava que para a confecção do trabalho consultou vários escritos de auto-
res, tantos nacionais, quanto estrangeiros. Entretanto, procurava expor, sobretudo, o
que viu nas autópsias do hospital da “Jurujuba”, o hospital marítimo de Santa Izabel
(CÉZAR, 1885, s.p).
Uma das características dessa experiência vivenciada pelos alunos nos hos-
pitais era o trabalho colaborativo. Francisco Augusto Cézar destaca que as peças
histológicas que teve oportunidade de examinar eram de seu colega Chapot-Prévost,
enquanto os exames microscópicos de líquidos pelos demais estudantes eram re-
alizados sob a supervisão do Dr. Freire. Chapot-Prévost fora também aluno da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, tornando-se catedrático de histologia em
1890. Além disso, integrou a comissão que foi a Berlim para estudar a tuberculose e
o processo proposto por Robert Koch para curá-la.3 Já Domingos Freire de Andrade
consagrou-se pelos seus estudos sobre a febre amarela no Brasil e pelo envolvimento

3 PROJETO MEMÓRIA: Verbete Eduardo Chapot-Prévost (1864-1907), Disponível em: http://


www.projetomemoria.art.br/OswaldoCruz/verbetes/eduardo_chapot.html, acessado em
13/12/2016.
Histórias de Doenças 99

nos debates que envolveram a questão (BENCHIMOL, 1995), assunto que retoma-
remos mais adiante.
A nosso ver, a menção aos trabalhos dos “mestres” é importante para com-
preendermos as teses como elemento de validação do saber elaborado na Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro, reforçando as posições e teorias defendidas no âmbi-
to daquela instituição. A esse respeito, a abordagem de Ludwig Fleck para a compre-
ensão da constituição dos conceitos científicos fornece uma perspectiva pertinente
para o entendimento dessas fontes. Esse autor aponta, dentre outros elementos, o
papel que adquire a aprendizagem para a formação de um determinado “estilo de
pensamento” adotado por determinada comunidade científica. A pesquisa científica
é indissociável, portanto, da “densidade social”, viabilizada pelo número das intera-
ções entre os membros de um grupo (LÖWY, 2012, p.22-23).
Tais interações eram, no caso específico, reforçadas pelas relações estabele-
cidas entre os alunos e os lentes da Faculdade, bem como o reconhecimento do
trabalho desenvolvido por esses. Além disso, a referência a autoridades brasileiras
pode ser vista como um elemento de valorização da ciência local, das experiências
clínicas e trabalhos publicados pelos médicos brasileiros. Em dissertação sobre o
paludismo, Azarias Monteiro de Andrade citava como referência o médico brasilei-
ro Torres Homem, a quem considerava o primus inter pares da medicina brasileira
(ANDRADE, 1897, p.8).
João Vicente Torres Homem (1837-1887) foi um dos mais destacados clíni-
cos do século XIX no Brasil, sendo integrado aos quadros da Faculdade de Medicina
do Rio de Janeiro, em 1860, para o lugar de Opositor da Seção de Ciências Médicas.
Da sua trajetória no interior da Faculdade merece destaque os concursos que pres-
tou para a cadeira de Clínica Médica, para a qual foi nomeado em 1866. Além de sua
atuação na Faculdade, Torres Homem publicou trabalhos sobre temáticas diversas.
(FERREIRA, 1994, p.58-71).
A autoridade de Torres Homem era reconhecida não somente entre seus pa-
res, como também entre seus alunos. Um dos discípulos de Torres homem foi Paulino
José Gomes da Costa (1873), que escolheu como ponto da cadeira de Clínica Médica
o tema Das indicações e contra-indicações do bromureto de potássio no tratamento das
moléstias nervosas. Além de ser dedicada a seu mestre, a tese fazia referência ao fato
de que ele teria sido o primeiro médico brasileiro a aplicar o Brometo de Potássio
como medicamento (COSTA, 1873).
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João Capriano Carneiro também fazia homenagens a Torres Homem. Ao tra-


tar da insuficiência cardíaca, o futuro médico observava que conhecia duas obser-
vações clínicas a respeito da deficiência aórtica e a lesões do coração, ambas do re-
nomado médico. Conforme mencionava, tais observações eram oriundas das “inú-
meras observações” que o mestre colheu em sua clínica (CARNEIRO, 1882, p.5).
De fato, o professor Torres Homem havia publicado artigo sobre o assunto,
Duas lições de clínica médica, feitas no hospital da Santa Casa da Misericórdia nos
dias 7 e 11 de maio de 1868, sobre um doente de insuficiência das válvulas aórticas
acompanhada de hipertrofia e dilatação do coração. João Capriano Carneiro utili-
zava-se das experiências realizadas pelo médico para referendar a tese de que uma
das causas das deficiências da aorta era o abuso da bebida alcóolica: “O Dr. Torres
Homem acredita muito na influência do álcool, e diz mesmo que uma das causas dos
aneurismas da aorta nos habitantes desta capital é o abuso que fazem das bebidas
alcóolicas” (CARNEIRO, 1882, p.10).
É importante mencionar igualmente o papel desempenhado pela experiên-
cia vivenciada em clínicas por parte dos estudantes. As descrições dos casos das
doenças, a realização da anamnese nos pacientes, e muitas vezes, a autópsia e o exa-
me microscópico das lesões constituíam o percurso descrito em diversas teses. Tais
experiências, como se observa, não eram autonomia dos alunos. Geralmente, esses
eram orientados por um “mestre” na aplicação dos procedimentos.
Em tese sobre o cancro, Cornélio Vaz de Mello, reiterava os protocolos da
clínica na constituição do discurso médico:

Percorríamos nós as enfermarias em busca de algum indivíduo cancero-


so, que pudesse servir de quadro vivo à nossa dissertação, quando, no dia
08 do corrente ano, entrou para a 4a enfermaria médica, a cargo do distinto
Conselheiro, Dr. Torres Homem, um indivíduo de cor parda, de 41 anos de
idade (MELLO, 1884, p.5)

Em seguida, o Dr. Vaz de Mello procedia ao relato detalhado do estado clí-


nico do paciente através da anamnese, a partir da qual estabeleceu o diagnóstico de
cancro. Ao falecer pelo curso natural da doença, o exame do cadáver confirmou a
existência da doença nas lesões anatômicas.
Em outra observação que sustenta a tese, Vaz de Mello descreve o caso de um
indivíduo de 65 anos, de cor parda, que abusava do álcool. Sobrevindo a morte do
indivíduo pouco tempo depois, o cancro foi confirmado pela autópsia e pelo exame
Histórias de Doenças 101

microscópico realizado pelo Dr. Menezes, o qual revelou células cilíndricas de natu-
reza cancerosa (Ibidem, p.13).
A introdução do microscópio e do laboratório como formas de validação do
saber e confirmação dos diagnósticos sinaliza para a introdução de outros elementos
que demarcam a medicina no século XIX. Conforme observa, Flávio Edler:

a medicina de laboratório, apresentou-se no cenário científico, desafiando


francamente a forma de produção do saber médico e as instituições que até
então serviam para validá-lo e arbitrá-lo: a bancada, a cobaia, o cadinho e o
microscópio deveriam substituir respectivamente o leito, o paciente, o tato
clínico e o estetoscópio (EDLER, 2002, p.359).

Entretanto, esse autor atenta para o fato de que as diferentes tradições cien-
tíficas da medicina acadêmica “nunca tiveram existência pura aparecendo sempre
uma maior ou menor interpenetração entre elas nas situações históricas concretas”
(Ibidem, p.359).
Nas fontes que tivemos oportunidade de acessar, é possível observar a coexis-
tência da tradição anatomoclínica e a experimental. Foi somente a partir da década
de 1870 que temas relacionados ao advento da medicina experimental começaram a
repercutir no âmbito da Faculdade de Medicina. A reforma Saboia (1880-1889), ao
criar novas instalações, separando a anatomia patológica da fisiologia patológica, e
novas modalidades clínicas, foi acompanhada do estreitamento entre as atividades
de ensino e pesquisa (EDLER, FERREIRA, FONSECA, 2001, p.74-5).
A bacteriologia assumia entre alguns alunos formados em fins do século XIX
um lugar de destaque, ao conferir legitimidade científica à medicina. Em tese que
tratava d’o parasitismo em relação ao diagnóstico e tratamento da tísica pulmonar
(1885), Luiz de Mello Brandão e Menezes postulava que coube a Pasteur fornecer à
ciência o “arsenal de conhecimento técnicos especiais para que ela pudesse progre-
dir e caminhar iluminada no mundo dos micro-organismos” (MENEZES, 1885, p.7)
O Dr. José Plácido Barbosa da Silva transformou sua tese, Necessidade do
diagnóstico bacteriológico da Clínica (1896), em verdadeira peça apologética da in-
trodução da bacteriologia no Brasil. A esse respeito, considerava que os estudos de
Pasteur “franquearam à medicina um novo campo de estudos”. Mas foi com a escola
alemã, com os estudo de Robert Koch, sobre os “micro-organismos patogênicos”,
que se ampliaram os estudos bacteriológicos. Entretanto, argumentava que não
bastavam aos médicos o cultivo dos micróbios ou sua descrição. O empenho de-
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veria combinar os estudos teóricos, as pesquisas de laboratório e o exercício clínico


(SILVA, 1896, p.6-7).
Na sua concepção, foi somente com a “nova ciência” que se iniciava com mais
pujança a vida científica no Brasil. Todavia, o entusiasmo de Barbosa da Silva era
arrefecido pela constatação de que o estudante brasileiro estava impossibilitado de
realizar estudos bacteriológicos (Ibidem, p.3-4).
Conforme tem demonstrado a historiografia, a adesão à microbiologia no
Brasil não foi consensual, sendo um processo marcado por várias disputas no âm-
bito científico (BENCHIMOL, 2000; TEIXEIRA, 1995). Além disso, cabe notar que
sua introdução conviveu com outras teorias médicas em voga, mostrando a inter-
penetração entre as diversas tradições da medicina do século XIX. Neste sentido, de
acordo com Jorge Augusto Carreta, na medicina do período observa-se que, embora
“a teoria microbiana tivesse muitos adeptos e parecesse caminhar para uma situa-
ção de hegemonia, algumas explicações ainda resistiam, como a teoria dos miasmas
(CARRETA, 2011, p.680).
Sem querer adentrar na discussão sobre a introdução da microbiologia no
Brasil e seus desdobramentos, do ponto de vista das teses médicas importa regis-
trar como as questões relacionadas à medicina acadêmica, debatidas no âmbito dos
periódicos e outras frentes, acabavam por repercutir sobre o conteúdo das disser-
tações. O que pode também ser constatado a partir do privilégio às enfermidades
mais recorrentes no país, e pelas formas que as teorias para explicar a etiologia das
enfermidades eram apropriadas nas dissertações defendidas pelos alunos.

A “cor local”: doenças dos trópicos


os debates da medicina acadêmica

“Como se deduzirá da leitura de nosso trabalho, procuraremos tanto quanto


possível dar-lhe uma cor local, preferindo sempre os fatores observados na nossa
pátria” (BRAGA, 1876, p.7). A afirmação de João de Freitas Rodrigues Braga, extra-
ída de dissertação sobre lesões traumáticas do cérebro, aponta para um componente
importante presente em diversos textos da mesma natureza do século XIX: a ênfase
a questões específicas sobre a qual se debruçavam os médicos no Brasil.
A exemplo de outros autores, durante a exposição sobre as lesões no cérebro e
as formas de tratamento, Rodrigues Braga se fundamenta não somente nos textos de
medicina estrangeiros sobre o assunto, como recorre aos periódicos médicos produ-
zidos no Brasil, como um número do Archivo Medico Brasileiro, de 1845.
Histórias de Doenças 103

A publicação mencionada por Rodrigues Braga também ia ao encontro de re-


velar a “cor local” da medicina no Brasil. Conforme afirmava o Dr. Lapa o periódico:

ocupando-se tão somente dos interesses da arte de curar, à medida que pu-
sesse patentes os trabalhos – clínicos, e as lucubrações dos facultativos bra-
sileiros, servisse, outrossim, de acordá-los do torpor e descuido, em que
parece jazer, e mostrasse ao mundo que entre nós também se cultiva, e por
ventura com aproveitamento, a divina e nobilíssima ciência de Hipócrates; tal
foi o pensamento que me levou a empreender a fundação do Archivo Medico
Brasileiro (LAPA, 1845, p.1).

Além do reconhecimento das pesquisas e da atuação dos médicos brasilei-


ros, algumas temáticas indicam que os alunos da Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro buscavam abordar questões comuns à agenda da medicina acadêmica no
século XIX. Uma delas dizia respeito à influência do clima do país sobre os costumes
e as enfermidades.
O clima e a natureza brasileiros foram objetos de debates sobre a viabilidade
ou não da civilização no país durante o século XIX. Além de envolver os letrados,
tais questões mobilizariam também os médicos. Conforme aponta Lorelai Kury, as
posições dos médicos reunidos em torno da Academia Imperial de Medicina no
Rio de Janeiro acerca da natureza tropical foram marcadas pela ambivalência, pois a
exaltação do clima tropical era acompanhada de uma perspectiva detratora, relacio-
nada às suas influências sobre as enfermidades (KURY, 1994).
A associação entre os fatores climáticos e as enfermidades pode ser identifi-
cada em várias teses defendidas pelos médicos mineiros. A esse respeito, é sugestivo
o título da tese de Ernesto Bendito Ottoni, Algumas considerações sobre o clima da
provincia de Minas Geraes e sobre as molestias, que mais frequentemente acommettem
a seus habitantes (1841), voltado para as questões específicas da Província.4
Todavia, nas outras teses em que essas questões são tratadas, os apontamen-
tos eram de caráter mais geral ou se direcionavam à Capital do Império. Em tese so-
bre disenteria (1874), Ignacio de Carvalho Resende retomava o lugar comum da re-
lação entre os trópicos e a ocorrência de determinadas doenças. Segundo afirmava,
embora se manifestasse em outras regiões do globo, nos climas quentes a disenteria
se “manifesta com maior intensidade e frequência” (RESENDE, 1874, p.3).

4 No site do APM esta tese não se encontra disponível.


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Em acordo com a literatura estrangeira em voga, o autor observava que a


ocorrência da moléstia era endêmica nos países com clima quente, como os da
América do Sul e algumas possessões inglesas, holandesas e francesas. Para isso con-
corriam diversos agentes, como o solo, a vegetação, o ar e os preceitos de higiene da
população. O autor desenvolve ainda a tese da influência dos miasmas como um dos
fatores do desenvolvimento da patologia (Ibidem, p.20-23).
Ao abordar o mesmo ponto no trabalho que defendeu na Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, Sebastião Martins Villas Boas Cortes compartilhava
de perspectiva que procurava relativizar o peso dos fatores climáticos. A escolha do
tema era justificada pelo fato da patologia ser própria “ao nosso clima” e em razão da
maior suscetibilidade mórbida que os imigrantes possuíam. Embora reconhecesse
que a disenteria era uma doença mais recorrente nos países quentes, essa se mani-
festava também nas zonas temperadas. Divergindo da opinião sustentada por José
Ignacio de Resende, ao longo da dissertação Sebastião Villas Boas Cortes afirmava
que no Brasil, “apesar da posição geográfica”, raramente a disenteria assumia a forma
epidêmica, excetuando os casos benignos das epidemias ocorridas no Rio de Janeiro
em 1862 e 1863 (CORTES, 1890, p.6).
O autor concluía que o fator climatológico – a “elevação isolada de tempera-
tura” – por si só não era um elemento determinante e sim predisponente. A patolo-
gia era explicada mediante uma diversidade de fatores, incluindo as causas broma-
tológicas e infecciosas. Neste último caso, tratava-se da influência das “infecções de
atmosfera”, lição que o estudante havia aprendido na clínica médica do professor
Torres Homem. Ao mesmo tempo, em consonância com a teoria microbiológica, ex-
plica o caráter contagioso da disenteria pela ocorrência de germes, fazendo menção
aos estudos de Koch e outros bacteriologistas que observaram microrganismos nas
lesões intestinais (Ibidem, p.19-20).
Tais ideias iam ao encontro da posição adotada por diversos médicos brasi-
leiros, que buscavam revisar os tratados europeus de patologia e higiene. Conforme
observa Flávio Coelho Edler, um dos traços da originalidade da medicina brasileira
do século XIX residiu na atualização da pauta higienista e anatomoclínica europeia,
atenuando os fatores climáticos predisponentes e adotando uma perspectiva otimis-
ta em relação à aclimatação (EDLER, 2009).
Até a década de 1870, as teses médicas indicam o predomínio das teorias
que atribuíam aos miasmas e aos elementos climáticos a causa de diversas doenças
que seriam próprias das regiões tropicais. É o caso das dissertações sobre a febre
Histórias de Doenças 105

amarela. Em 1872, Noberto de Alvarenga Mafra defendeu dissertação sobre o tema,


na qual adotava a teoria de que a causa da febre era um miasma sui generis, reconhe-
cido pelos efeitos que causa no organismo e cuja natureza íntima era desconhecida.
Fatores com o clima, a umidade, a eletricidade. Rendendo-se à percepção negativa
sobre os trópicos, Mafra concluía que a febre amarela era endêmica entre os trópicos
(MAFRA, 1872, p.3-5).
Em dissertação acerca do mesmo assunto, publicada em 1878, Pedro José
Silva reiterava esses argumentos. Além das condições meteorológicas, comentava
ainda as telúricas, como a proximidade do litoral, as terras baixas, abundância de de-
tritos orgânicos, dentre outros, como fatores explicativos ocorrência da febre amare-
la na Capital do Império (SILVA, 1878, p.14).
As teses mencionadas acima são anteriores aos trabalhos de Domingos
Freire, médico que se notabilizou pela defesa da teoria microbiana da febre amarela,
na década de 1880. Em estudo sobre a trajetória do médico e suas pesquisas, Jaime
Benchimol demonstrou o quanto as ideias daquele médico sofreram controvérsias
no Brasil e na Europa. Somente em 1886, após a exposição e publicação de seus
trabalhos em Paris, na Sociedade de Biologia e na Academia de Ciências, ele obteve
reconhecimento pelas suas pesquisas. Após seu retorno ao Brasil, um dos esteios da
popularidade do Dr. Freire eram os estudantes de medicina da Faculdade do Rio de
Janeiro (BENCHIMOL, 1995).
Essa adesão à teoria microbiana pode ser percebida pela incorporação das
ideias de Domingos Freire na dissertação de Francisco Augusto Cézar, intitulada
Anatomia patológica da febre amarela (1885). A impressão da tese ocorria no mesmo
ano em que o Dr. Freire divulgava seu estudo Doctrine microbienne de la fièvre jaune
et ses inoculations préventives. Augusto Cézar dedicou um capítulo específico de sua
dissertação ao “cryptococcus xanthogenicus”, no qual descrevia os procedimentos
realizados pelo Dr. Freire e seus ajudantes para “verificar os pequenos germens por
ele encontrados”. Após essa exposição, ele concluiu que as lesões orgânicas eram
causadas pela presença de um micróbio no sangue, “descoberto pelo Dr. Domingos
José Freire” (CÉZAR, 1885, p.38-40).
A partir das teses sobre a febre amarela é possível, portanto, observar como os
debates no âmbito da medicina acadêmica adentravam a Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro e reverberavam nos trabalhos defendidos pelos alunos. Além da febre
amarela, tais questões são perceptíveis também em relação à hipoemia intertropical
e suas causas. A discussão em torno da patologia envolveu dois grupos distintos:
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um reunido em torno de Otto Wucherer, representante da Faculdade de Medicina


da Bahia, e outro ligado à Academia Imperial de Medicina. Grosso modo, a opo-
sição entre esses grupos pode ser resumida da seguinte forma: para os adeptos da
teoria de Wucherer, a etiologia da doença era estabelecida pela presença de vermes
da espécie Anchylostomum duodenale, enquanto os médicos da Academia Imperial
de Medicina a identificavam pela “lesão principal que dava um suporte orgânico
aos sintomas e sinais — hipoemia, aglobulia sanguínea —, e o elemento etiológico
preponderante — o clima intertropical”. (EDLER, 2004, p.55).
A validação de um conhecimento acerca da hipoemia intertropical teve pa-
pel preponderante da Academia Imperial de Medicina. Os médicos reunidos em
torno da instituição desenvolveram uma série de protocolos metodológicos que
constituíam normas e regras que atuavam na validação do saber médico. A credi-
bilidade científica era ainda constituída pela formação em instituição reconhecida
e participação em fóruns acadêmicos, aspectos que explicam o prestígio de Torres
Homem como professor de clínica médica da Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro (EDLER, 2004).
A discussão sobre a hipoemia foi objeto de alguns trabalhos defendidos na
Faculdade. No tocante ao corpus documental aqui analisado três dissertações se de-
bruçaram sobre o tema. Uma delas foi apresentada por Antonio Felicio dos Santos
Júnior (1863), ex-aluno pensionista da Santa Casa de Misericórdia e interno de
Clínica Médica da Faculdade.
Ao longo da exposição, Santos Júnior faz menção aos trabalhos de médi-
cos estrangeiros sobre a hipoemia, como Dazille. Entretanto, ressaltava que o me-
lhor estudo escrito sobre a moléstia pertencia ao Brasil, citando o artigo de Cruz
Jobim, Sobre as moléstias que mais afligem as classes pobres do Rio de Janeiro (1835).
Segundo afirmava, “as lesões anatômicas, as causas e os sintomas foram bem estuda-
dos pelo distinto acadêmico, a quem faltavam os conhecimentos atuais de anatomia
patológica para que seu trabalho fosse completo”. Desdenhava ainda dos estudos de
Imbert e Sigaud, os quais teriam se limitado apenas a copiar e traduzir para o fran-
cês o trabalho de Cruz Jobim. Sobre a obra do Dr. Rendu, autor de um artigo sobre
a opilação, publicado no Études médicales sur le Brésil, considerava se tratar “antes
uma sátira do que um tratado médico”. Após apontar outros erros em estudos de mé-
dicos estrangeiros, concluía que o Dr. Souza Costa, ao publicar Da opilação conside-
rada como moléstia distinta da cachexia paludosa, e completamente independente do
Histórias de Doenças 107

miasma paludoso, alcançou um “progresso real no estudo da hypoemia” (SANTOS


JÚNIOR, 1863, p.2-3).
A referência aos trabalhos de Cruz Jobim e Souza Costa devem ser conside-
rados como relevantes, na medida em que apontam a adesão protocolos científicos
partilhados pelos médicos do Rio de Janeiro. Cruz Jobim se notabilizou pela indi-
vidualização do quadro clínico da doença em questão, atribuindo-a a uma série de
fatores que articulavam a topografia médica, a estatística e as observações anato-
mopatológicas. Para Cruz Jobim, a hipoemia, também conhecida como opilação ou
cansaço, era endêmica entre os escravos rurais e a classe indigente, e a lesão anato-
mopatológica essencial na sua caracterização seria a anemia. Tal posição ganhou
reforço, em 1862, com a publicação, na Gazeta médica do Rio de Janeiro, do trabalho
de Souza Costa sobre a doença. Este associava a enfermidade aos fatores meteo-
rológicos próprios do clima tropical e a outras causas predisponentes, tais como a
alimentação insuficiente; construções em locais úmidos, trabalho pesado (EDLER,
2004, p.53).
Em outra tese apresentada à Faculdade em 1875, Antônio Teixeira de Souza
Magalhães menciona igualmente os trabalhos dos médicos brasileiros sobre a hi-
poemia. Segundo apontava, a opinião do Dr. Felicio dos Santos era “o trabalho
mais perfeito até então”, além de mencionar as observações do Dr. Souza Costa
(MAGALHÃES, 1875, p.5). No decorrer da exposição, o autor se fundamenta na
discussão da literatura, apontando o quadro anatomopatológico como chave da pa-
togenia descrita.
Apenas uma das dissertações divergiam dos argumentos que prevaleciam en-
tre os médicos da Academia Imperial de Medicina. Uma dissertação sobre o tema
(1875), sem identificação de autoria, o texto iniciava pela citação em Epígrafe do
trabalho do Dr. Júlio de Moura, extraída da Revista médica, de 1873. Júlio de Moura
ficou conhecido na Academia Imperial de Medicina pela memória que publicou em
1867, intitulada Nota sobre um caso de Hipoemia Intertropical terminado por morte,
autópsia e verificação da existência de entozoários da espécie — Anchylostomum duo-
denale, na qual se convertia à tese de Wucherer (EDLER, 2004, p.60).
Embora mencione e reconheça os estudos de outros médicos estrangeiros
e nacionais sobre a hipoemia, o autor da tese compartilhava das ideias de Júlio de
Moura, um dos responsáveis por mobilizar a discussão das ideias de Whucherer na
Academia Imperial de Medicina. Após fazer um histórico da doença, o nosso des-
conhecido autor observava que coube a Wucherer a “tarefa gloriosa de determinar
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
108 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

a verdadeira natureza da opilação” (HYPOEMIA, 1875, p.10). A partir da exposi-


ção dos diversos argumentos, constatava-se que a hypoemia intertropical era “mo-
léstica causada pela presença no tubo gastro-intestinal do entozoário denominado
Anchylostomum duodenale (Ibidem, p.16).
De forma geral, as posições defendidas nessas teses não somente demonstram
um conhecimento da literatura produzida sobre a doença em específico, como traziam
para o interior da Faculdade de Medicina as questões debatidas em outros fóruns, a
exemplo da Academia Imperial de Medicina e os periódicos médicos da época.
Se por um lado, do ponto de vista quantitativo as teses escritas pelos médi-
cos mineiros não indicam uma ênfase sobre determinados temas próprios de uma
agenda médica brasileira; por outro lado, nos casos aqui abordados é possível per-
ceber a influência dos médicos brasileiros, da experiência clínica e como os debates
da medicina do século XIX acabam por adentrar na Faculdade de medicina do Rio
de Janeiro. Tais aspectos são indicativos de que essa instituição não cumpriu um
caráter ornamental na produção do saber médico, pois estava implicada nos proces-
sos produção e validação do conhecimento médico brasileiro, ao lado da Academia
Imperial de Medicina (EDLER, 2004).
O Mesmo pode ser dito em relação às dissertações apresentadas à Faculdade
de Medicina. Elas igualmente participaram do processo de institucionalização da
medicina no século XIX, pois contribuíam para reforçar as posições defendidas no
interior das instituições e referendar as pesquisas de vários médicos brasileiros à
época. Desse ponto de vista, essas fontes oferecem a possibilidade de compreender
que os processos de validação e legitimação do conhecimento estavam ligados a um
determinado “estilo de pensamento”, do qual participavam não somente os médicos,
mas também os alunos, envolvidos em suas experiências nas clínicas, laboratórios
ou no compartilhamento de teorias adotadas, que definem determinado estilo de
pensamento (LÖWY, 1994, 237).

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As instituições de amparo à infância em
Goiás: higiene, saúde e educação (1930-
1964)
Leicy Francisca da Silva1

Considerações iniciais

N esta análise proponho pensar a emergência de instituições e legislação para as-


sistência à população infanto-juvenil do Estado de Goiás no período de 1930
a 1962. Busco perceber, nesse conjunto, os elementos caracterizadores daquela po-
lítica: higiene, saúde e educação; bem como dos estabelecimentos criados que, pri-
vados e filantrópicos começam a cobrar do Estado sua subvenção. Especificamente
procuro observar a construção de leis, associações e estabelecimentos voltados para
um grupo especial. Tal análise se fundamenta na leitura dos discursos divulgados,
na interpretação do conteúdo da legislação e dos documentos produzidos pelas ins-
tituições observadas. Em síntese, é a partir da compreensão proposta por Michel
Foucault (2002) da normalidade e da anormalidade, e da busca por perceber o mo-
mento de constituição de instituições e discursos voltados para o controle daqueles
considerados anormais que trata esse estudo.
No final do século XIX, percebe-se emergir o processo de construção de uma
preocupação com a infância no Brasil; no entanto, essa inquietação restringia-se,
normalmente, às crianças órfãs e tinha como objetivo torná-las úteis (MARTINS,
2010, p. 101). Como explica Ana Paula Vosne Martins, aquelas existências repre-
sentavam o futuro, por meio da preparação de uma força de trabalho formadora
da Nação (2010, p. 101). Em Goiás, o presidente de província reclamava em seu

1 Desenvolve estágio pós-doutoral na Universidade Federal de Goiás. É professora do depar-


tamento de história; e no Programa de pós-graduação (mestrado) em Ensino de Ciências da
Universidade Estadual de Goiás.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
114 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

relatório, em 1841, que havia a necessidade de construção de asilo para abrigar a


infância desvalida, um espaço “d’onde sahissem acostumados ao trabalho, e sabendo
hum Officio”, servindo assim para a formação de futuros indivíduos “uteis a si, uteis
ao Público, bons Cidadãos em fim”; um estabelecimento cujo objetivo último era a
“humanidade, e o bem da nossa Província” (JARDIM, 1841, p. 7). Sua fala se mate-
rializa, no entanto, em fins daquele século, quando se constroem instituições de aco-
lhimento e de formação de jovens em situação de abandono, pobreza e indigência.
Elas tinham, em seu objetivo central, preparar dentro de um quadro de seve-
ra disciplina. Ofertavam, conjuntamente, o ensino das primeiras letras, uma concep-
ção moral e religiosa, e uma formação para o trabalho (VALDEZ, 2003 e BRETAS,
1991).2 Estes estabelecimentos, mesmo com públicos diferenciados, estavam volta-
dos para a formação profissional e civilização das crianças, pensavam prepará-los,
por meio do aprendizado da língua e do trabalho na agricultura e pecuária, e nas ati-
vidades domésticas para as meninas, para a vida adulta. Neles, mantinha-se o mes-
mo status do qual elas eram originárias, mas evitando o risco de se desvirtuarem do
caminho da utilidade social através da marginalidade. Essas instituições, baseadas
no exemplo das instituições da Europa (colônias orfanológicas da Escócia, França
e Inglaterra), pensavam o encaminhamento da infância para evitar a delinquência.
Ressalta-se, do regimento dessas instituições pedagógicas, que, além de disciplinar,
alimentar, vestir, organizar o tempo e a atividade dos educandos, por meio do tra-
balho no campo e do ensino, a função era a de socializar (MARIN, 2009 e 2006).
Adentrando o século XX, a construção da infância, no Brasil, esteve liga-
da ao projeto de elaboração legal para o seu controle e assistência. Nesse cenário,
os dispositivos judiciais, e as instituições voltadas para proteção social, educação
e controle, dão, de certa forma, a tônica e o padrão sobre os quais se estruturou a
definição da infância como problema. As políticas assistenciais e de controle social,
somadas àquelas especificamente relacionadas à educação e disciplina da população
infantil, levaram a construção da imagem das crianças como um problema e um
perigo. Como explica Lilia Lobo (2011, p. 421), médicos, pedagogos, higienistas,

2 As principais foram o abrigo para meninas órfãs da Capital ou Colégio Isabel (1876); o Asilo
de Pobres de Ipameri, o Colégio Isabel/Dumbazinho, localizado à beira do Rio Araguaia, mais
tarde, transferido para a Fazenda Dumbazinho (1871); o Colégio de Aprendizes Militares da
cidade de Goiás (1877) e a Colônia Blasiana em Santa Luzia (Luziânia). Tinham como públi-
co uma população localizada à margem como indígenas, indigentes, pobres, abandonados e
delinquentes.
Histórias de Doenças 115

insistiram nos “temas do perigo e do fardo social” das crianças e jovens em condição
de anormalidade (FOUCAULT, 2000). Tais discursos redundaram, num primeiro
momento, em “justificativa de exclusão”, seja na construção de redes escolares como
de espaços de segregação (LOBO, 2011, p. 421). Durante o período em análise, en-
quanto problema político, as crianças são percebidas como risco de delinquência e
degenerescência em espaços que se urbanizam.
Sandra Caponi nos ajuda a perceber a descontinuidade relativa aos mode-
los de assistência desde fins do século XIX até a primeira metade do século XX no
Brasil. Haviam duas estratégias de proteção e intervenção que eram diferentes, em
relação aos seus impulsionadores, saíamos de uma prática fundada na ética da com-
paixão e passávamos à ética utilitária própria da assistência filantrópica (CAPONI,
2000). Na investida da filantropia e intervenção político-utilitarista, convivem em
um mesmo processo, as estratégias de poder pastoral e as de controle do tempo; que
demonstram o poder de inserção e controle no cotidiano da população “em nome
da utilidade e da felicidade do maior número” (CAPONI, 2000, p. 11). Na prática
notava-se a relação entre poder disciplinar e piedade enquanto estratégias de inter-
venção e controle sobre o cotidiano de pobres e doentes (CAPONI, 2000). O Estado
participava com a criação de impostos e taxas direcionados ao projeto assistencial,
já o exercício cotidiano da assistência se subordinava, quase que exclusivamente, ao
trabalho das chamadas “abnegadas damas da sociedade”.
Outro ponto importante é perceber que a ação do estado se fazia quando da
necessidade de prover um espaço ou carência deixada pela ausência da família. No
caso da maioria das instituições assistenciais, esse era o elemento definidor. Nesse
modelo assistencialista, como bem explica Villanueva (1999), o Estado aparece
como o sujeito benfeitor e o objeto da proteção apresenta-se como sujeitado a um
poder, que naquele momento se caracterizava pelo clientelismo. Em outras palavras,
não se tratava ainda de uma política pública de assistência, mas era um dos pontos
para constituição das condições para sua emergência.

Higiene, institucionalização e formação pelo trabalho

A partir dos anos 1920, percebe-se, no Brasil, uma transformação no que


se relaciona à proteção prestada aos pobres, especialmente, à população infanto-
-juvenil. A caridade e filantropia, anteriormente privada, praticada por instituições
religiosas nas maiores cidades, passam a ser capitaneadas pelo estado, com a ex-
pansão de ações governamentais de controle e normatização das políticas sociais
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
116 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

(PASSETTI, 1999). Em Goiás, no período em análise, a criação do Conselho Estadual


de Assistencial Social, do Departamento Estadual da Criança, do Serviço Social de
Menores e do Instituto de Recuperação do Menor (IRAM) mostram o nascimento
de preocupação diferenciada com a assistencia social da população infanto-juvenil e
as características dessa novidade. Junto a esses órgãos públicos, aparecem as subven-
ções aos novos estabelecimentos que nasciam e que se expandiam. E, nos discursos,
legislações e encaminhamentos para conquista de verbas, mostram-se os conteúdos
caracterizadores da política e das instituições de assistência social à população de
crianças ou de menores.
Em fins da década de 1930, a criação do Conselho Estadual de Assistência
Social tinha como fito “coordenar os serviços de assistência social existentes em
Goyaz e harmonizar a ação dos serviços mantidos pelo governo e por instituições
particulares” (decreto-lei n. 2670 /1939). O teor das normas revela que o preparo
para o trabalho era o centro da preocupação dos espaços para o resguardo da in-
fância. Uma das funções do Conselho era inquirir “sobre as atividades e ocupações
dominante e desemprego” e “sobre o padrão de vida especialmente das famílias ope-
rárias e rurais” para estudo dos problemas de assistência (decreto-lei n. 2670 /1939)
e possivelmente do formato e opções de formação profissional que ela deveria apre-
sentar. As crianças, dentro das novas normas criadas, são indicadas enquanto corpo,
mente e moral que precisavam ser aperfeiçoados, isso se mostrava inclusive no novo
Regulamento de Ensino e do jardim de infância produzido nas décadas de 1920-
1930 (FONSECA, 2014).
Com o Conselho Estadual de Assistência Social ocorre a abertura de crédito,
as verbas eram advindas da arrecadação com a venda de selos de assistência social.
O selo foi criado em decorrência da preocupação com o “vulto da mendicidade em
Goyaz e os perigos dela decorrentes”, para:

Auxiliarem estabelecimentos de assistência social ou de caridade, tais com


hospitais, assistência a alienados, maternidades, creches, lactários, orfanatos,
leprosários, instituições de proteção à infância e à velhice desamparados, asi-
los de mendicidade, cegos e surdos-mudos, dispensários e congêneres. (de-
creto-lei n. 3285/1940)

As transformações na legislação social facilitaram a construção de novas ins-


tituições e ampliações dos espaços. Nos anos 1940, o estado doa ao Orfanato São
José, da cidade de Goiás, uma chácara (decreto-lei n. 3345/ 1940) e subvenciona
Histórias de Doenças 117

ações particulares para “internamento de menores abandonados” em Bonfim (de-


creto-lei n. 3931/ 1940). As normas e ações se expandem com a criação do Serviço
de Amparo à Maternidade, à infância e à Adolescência, em 1942, em relação direta
com o Departamento Nacional da Criança. Salienta-se que, durante o Estado Novo,
tanto localmente quanto nacionalmente as políticas para o público infanto-juvenil
tiveram prioridade. No entanto, explica Maurício Parada (2011), ao governo federal
cabia apenas fiscalizar, financiar, pesquisar e auxiliar tecnicamente estados e mu-
nicípios na implantação de organismo de cunho médico, pedagógico, cívico e de
controle social.
Localizado na Diretoria Geral de Saúde, o órgão seria “dirigido por um médi-
co” e dentre suas competências estavam: fazer inquéritos sobre o problema, divulgar
conhecimentos sobre o tema “para a formação de uma consciência social da neces-
sidade dessa proteção”, estimular e orientar a organização de estabelecimentos com
esse fim, elaborar programas de atividades e projetos de instruções e regulamentos,
e organizar propostas orçamentárias (decreto-lei n. 5613/1942). O mesmo decreto
acresce a colaboração com o Conselho de Assistência Social, com a Diretoria Geral
de Educação e com o Juizado de Menores. O primeiro “para a solução de todos
os problemas sanitários que visem a defesa e proteção à maternidade, à infância e
à adolescência, quer saneando o ambiente quer fazendo a profilaxia das doenças
transmissíveis”; o segundo devido à preocupação com a higiene escolar, com o ensi-
no de puericultura e com o “fichamento biométrico da população escolar” (decreto-
-lei n. 5613/1942). O exame não se restringia aos aspectos sociais, morais e compor-
tamentais, mas se expandia para a observação de quesitos físicos que explicavam as
infrações (PASSETTI, 1999, p. 326).
O Juizado de Menores se responsabilizava para auxiliar na “higiene das crian-
ças (escolas de regeneração), assistência médica aos menores abandonados e delin-
quentes e a seleção de menores anormais para o necessário tratamento médico peda-
gógico” (decreto-lei n. 5613/1942). Tem-se ainda a fiscalização dos estabelecimentos
particulares para observação de desvios quanto à “higiene, administração e trata-
mento social e moral” de seu espaço e população, o incentivo à realização de con-
cursos de robustez infantil3 e a promoção de acordos com as prefeituras e entidades

3 A propaganda da puericultura e do cuidado com a saúde das crianças efetivava-se por meio
dos concursos de robustez infantil (MARTINS, 2010, p. 117).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
118 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

particulares (decreto-lei n. 5613/1942 e decreto-lei n. 6228/1942).4 Especificamente,


a legislação inova, pois, a partir de então, não se tratava de “desvalido” ou “delin-
quente” apenas, mas também de “menor perigoso” (PASSETTI, 1999). A interna-
ção de menores de dezoito anos em decorrência de atos infracionais é proposta no
Brasil em 1940 e regulamentada em 1943 (decreto-lei n. 2848/1940 e decreto-lei n.
6026/1943).
Em 1944, a legislação expande-se ao definir as responsabilidades municipais
na formação de pessoal, já que 1% das verbas nos orçamentos municipais deveria ser
direcionado para o custeio de bolsas de estudo para formação e preparo na área de
enfermagem, puericultura e serviço social (decreto-lei n. 174/1944). No ano seguin-
te, a Associação de Proteção à Maternidade, à Infância e à Adolescência transforma-
-se em Departamento Estadual da Criança e reafirma o caráter privado das institui-
ções de assistência e proteção (decreto-lei n. 53/1945), mas subordinado à legislação
e fortemente dependente do financiamento público. Parte da ação dessa instituição
estava ligada à divulgação de noções de higiene e de conhecimentos de puericultura,
bem como à construção de postos e maternidades (MARTINS, 2010).
As dificuldades materiais e os decorrentes problemas sociais que atingiam
mais diretamente a infância exigiram a construção de “uma nova ordem de priori-
dades no atendimento do social que ultrapassou o nível da filantropia privada e seus
orfanatos, para elevá-la às dimensões de problema de Estado com políticas sociais e
legislação específicas” (PASSETTI, 1999). As obras privadas começam a se espalhar
pelas cidades goianas com a concessão de subvenção por parte do estado. E verbas
são encaminhadas para a Associação de Proteção à Infância e à Maternidade, em
Goiânia, para serem aplicadas nas obras de construção do Jardim de Infância des-
tinado às crianças pobres (decreto-lei n. 77/1944). O orçamento previa subvenções
para o Posto de Puericultura dona Blandina Ferreira e a Associação Pró-Caritas, em
Rio Verde (lei n. 200/1948) para a Sociedade Educadora da Infância e Juventude
de Porto Nacional; para o Educandário Nossa Senhora Aparecida (lei n. 710/1952)
e para a Associação de Amparo à Maternidade e à Infância (lei n. 616/1952) em
Ipameri. Os auxílios são direcionados ainda para a Associação de Amparo à
Maternidade e à Infância de Goiânia e de Goiandira (lei n. 649/1952 e n. 680/1952).

4 Ainda é preciso que se reforce que, a partir de 1942, a Associação recebe subvenção estadual
de vinte contos de reis para desenvolvimento de suas atividades, seguindo o que previa o
decreto-lei n. 6228.
Histórias de Doenças 119

Para a construção e manutenção de estabelecimentos de proteção à população


infanto-juvenil, aprova-se auxílio à Fundação Abrigo dos Menores Abandonados de
Goiânia (lei n. 818/1953, n. 1724/1957 e n. 3183/1960), ao Orfanato da Igreja Cristã
Evangélica da Capital (lei 1064/1954), ao Instituto de Assistência ao Menor de Rio
Verde (lei n. 2356/1958), à Casa da Criança de Anápolis, para construção de um de
seus pavilhões (lei n. 1661/1957), e ao Orfanato São José da Cidade de Goiás (lei n.
3834/1959).5
Crianças e jovens são concebidos como recurso político e, por meio das ins-
tituições educadoras e/ou punitivas, deveriam ser civilizadas para garantia da se-
gurança, inclusive do regime (PARADA, 2011). Em íntima relação com o poder
político e subordinada a normas e legislação federal, temos a construção das ligas
e associações de caridade ou filantropia, que se engajavam em relação a esse poder,
como podemos perceber da Federação e da Associação Goiana de Assistência aos
Lázaros e Defesa contra a lepra. Essas associações funcionaram como um braço do
Estado e eram formadas por sujeitos diretamente relacionados aos poderes políticos
regionais, normalmente mulheres de classes abastadas e que compunham o lado fe-
minino das ações de assistência (SILVA, 2013). O preventório/educandário Afrânio
de Azevedo não foi construído para servir como espaço de educação de crianças so-
cialmente desajustadas ou em risco de delinquência. Na verdade, sua função social
era de proteção da saúde das crianças e adolescentes que ali eram institucionalizados
e da população das cidades de onde eles advinham, isso porque as justificativas para
sua institucionalização estavam diretamente relacionadas à profilaxia de uma enfer-
midade contagiosa.
Na construção do complexo preventorial, em 1943, para filhos de doentes
de Hansen em Goiânia, a valorização da educação se expõe com a concessão “ao
Educandário ‘Afrânio de Azevedo’, que funciona anexo ao Preventório de Goiânia,
de um auxílio (para) fazer as despesas com a instrução e educação dos filhos de
hansenianos” (decreto-lei n. 7.821/1943). Em 1954, a secretaria de educação eleva

5 Algumas propostas, mesmo não aprovadas, expunham a preocupação na constituição de ins-


tituições de assistência e na valorização do cuidado com o público infanto-juvenil e pobre do
estado, como as que propunham conceder subvenções anuais a instituições assistenciais de
Goiânia e Silvânia: Associação de Proteção à Maternidade, à Infância e Adolescência, Jardim
de Infância “Menino Jesus”, ao Postos de Puericultura Santo Antônio e Mestre Herculano e
Orfanato São José de Goiás.
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a classe de ensino que funcionava no educandário anexo ao Preventório, de escola


isolada ou reunida para Grupo Escolar Eunice Weaver (lei n. 1046/1954).
A expansão do espaço ocupado e o fortalecimento do trabalho se exprime
na doação do terreno, com mais de 40 hectares, à Sociedade Goiana de Assistência
aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra (decreto-lei 8037/1943), no reforço do auxí-
lio financeiro (decreto n. 101/1944) e na concessão de um segundo terreno no se-
tor Oeste em Goiânia para a sede administrativa da associação (lei n. 686/1952). A
criação de novas taxas permitia aumentar a segregação de doentes contagiantes (lei
n. 306/1948) e o acréscimo da subvenção estadual anual para que o Educandário
“Afrânio de Azevedo” financiasse seus gastos (lei n. 1111/1955 e modificada pela lei
n. 2383/1958).
A Associação Goiana de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra
iniciou um projeto para expandir seu espaço de internação com verbas do Programa
de Combate à Lepra e advindas do acordo assinado entre Brasil e Estados Unidos
e iniciou as obras para construção de mais um pavilhão e de algumas salas de aula
no Preventório (Fundo FSESP. Dossiê 11/caixa 172). No Programa constava a cons-
trução de um dormitório, em decorrência da lotação do prédio, pois “a necessidade
de mais espaço em Goiânia já se tornou evidente” (Acordo… 1944) e verbas para
construção de novos dispensários (FSESP. Ofício… Dossiê 13/caixa 143).
A Sociedade Goiana de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra, em
1947, inicia a construção de um prédio para estabelecimento de oficinas e edificação
de um aviário e de “um barracão que servirá como depósito do material e escritó-
rio de campo” (lei n. 208/1947) para a instauração de atividades de agricultura e
pecuária, expandindo o espaço de internamento, e de educação da população ali
segregada, com caráter de formação profissional. Desta forma, tem-se também a
constituição de condições de automanutenção do estabelecimento. Como explica
Irma Rizzini (1999, p. 380), “tratava-se de uma política voltada para o ordenamento
do espaço urbano e de sua população, por meio do afastamento dos indivíduos inde-
sejáveis para transformá-los nos futuros trabalhadores da nação, mas que culminava
no uso imediato e oportunista do seu trabalho”. Como Ernani Agrícola elucidava,
os preventórios formava um novo indivíduo, apto a atuar socialmente, reparado da
situação da qual havia sido retirado em decorrência de sua progenitura, de risco da
exposição à doença (BATISTA E BECHELLI, 1942, p. 167).
Outros espaço de educação e recebimento de crianças, ligados ao problema
da profilaxia da lepra em Goiânia, eram a Escola, os Pavilhões infanto-juvenis e o
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Clube Agrícola da Colônia Santa Marta (BARBOSA e ALMEIDA, 2011). Não era
comum que a hanseníase fosse contraída na primeira infância, mas poderia ser em
idade infantil ou na adolescência. Por isso, na Colônia Santa Marta, foi preciso pre-
ver espaços particulares para acomodação dessa população. Nesse conjunto de me-
nores, alguns eram internados desacompanhados dos pais e foram resguardados de
forma especial, tanto relativamente ao espaço que ocupavam quanto à alimentação e
às atividades no interior do estabelecimento, que continha ambiente para formação
educacional, lazer, formação profissional e religiosa. No espaço colonial a primeira
sala de aula funcionou ao lado do Clube Recreativo e depois foi transferida para
a escola construída com recursos do estado, cuja inauguração ocorreu em 1952.
Decorrente do projeto de Reforma dos Serviços Públicos do Estado, que previa a
construção de seis pavilhões Carville, sendo um deles direcionado para cinquenta
crianças (TEIXEIRA, Pedro Ludovico. Mensagem…, 1953). O pavilhão das crianças,
a Escola Santa Marta e o Clube Agrícola foram espaços de guarda, criação, educação
e formação pelo trabalho das crianças e adolescentes doentes na Colônia.

A incorporação de novas preocupações:


ambiente e formação social

As décadas de 1940 e 1950 parecem ter sido um momento em que o proble-


ma da infância pobre passou a fazer parte da pauta das discussões sociais empreen-
didas, que redundaram na proposição de ações voltadas para o amparo desse grupo.
Em 1950, defendendo o Projeto de Lei para subvenção e ampliação da capacidade
de atendimento da Fundação de Amparo ao Menor Abandonado, o vereador José
Nonato justifica, que propunha a lei porque a infância desamparada de Goiânia ator-
mentava a população das ruas e bairros, que essa situação denotava para a cidade
uma condição de falta de civilização e cultura, e que a instituição resguardava essas
crianças de uma vida de crime, dos vícios e do mau desenvolvimento moral (lei
n.66/1950); aliando abandono, delinquência e criminalidade, e seus respectivos es-
paços de contenção como sendo instituições de amparo, disciplina e punição.
O vereador expôs a preocupação com acolhimento da infância, a preservação
das condições de salubridade do espaço público da cidade e o nível de envolvimento
social e de civilidade da população que, ao que parece, estava, para ele, diretamente
relacionada ao envolvimento com aquele problema. Em agosto de 1953, uma discus-
são entre os vereadores Boaventura Andrade e João de Paula, presidente da FAMA,
expõe a dificuldade de manutenção, de oferta de vagas para internamento de meno-
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res, a demanda social pelos serviços de assistência daquele tipo, bem como a condi-
ção clientelista da relação entre as instituições e os representantes do povo no poder:

Prosseguindo disse que o Abrigo ainda não foi inaugurado por falta de recur-
sos financeiros para compra de imóveis que só tem aceito crianças em caso de
emergência. O vereador Boaventura referiu-se (…) alegando que por várias
vezes se dirigiu a seu colega, solicitando o seu apoio no sentido de internar
na FAMA uma criança pobre desamparada, no entanto, tem recebido sempre
uma resposta negativa com o pretexto de que o Abrigo ainda não foi inau-
gurado. (…) Ao expor a situação da FAMA esclareceu que ainda não possui
verba para compra de móveis, pois o que recebe mal dá para a alimentação das
crianças (Ata da 143ª, 18 de agosto de 1953, p. 94).

No ano seguinte, a instituição recebia auxílios para compra de agasalhos


e tem aprovado o repasse de subvenção anual pela prefeitura (lei n. 846/1957, n.
239/1957). Crianças abandonadas, doentes, delinquentes e órfãs se confundiam na
prática e no cotidiano da institucionalização. A legislação respaldava esse embara-
ço, haja vista o preconizado pelo artigo 138 da Constituição de 1934 que favoreceu
a segregação infanto-juvenil a partir de uma política estatal fundada na educação
eugênica que redundou, em muitos casos, no “uso da exploração do trabalho e da
violência como práticas educativas de crianças e de adolescentes” especialmente nas
décadas de 1930 e 1940 (AGUILAR FILHO, 2011). Segundo a Constituição incum-
bia à União, aos Estados e aos Municípios:

a) assegurar amparo aos desvalidos, criando serviços especializados e ani-


mando os serviços sociais, cuja orientação procurarão coordenar;
b) estimular a educação eugênica;
c) amparar a maternidade e a infância;
d) socorrer as famílias de prole numerosa;
e) proteger a juventude contra toda exploração, bem como contra o abandono
físico, moral e intelectual;
f) adotar medidas legislativas e administrativas tendentes a restringir a mora-
lidade e a morbidade infantis; e de higiene social, que impeçam a propagação
das doenças transmissíveis;
g) cuidar da higiene mental e incentivar a luta contra os venenos sociais.
(Constituição de 1934, no artigo 138)
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Na Constituição de 1937 ocorre a ênfase na construção de um programa de


ensino pré-vocacional e profissionalizante, baseada em atividades manuais e volta-
das para a população infanto-juvenil das classes desfavorecidas (artigo 129).
Em Goiás, percebe-se na década de 1950, o reforço do caráter educativo do
trabalho no amparo e formação de crianças, na constituição de escolas agrícolas nos
municípios de Morrinhos, Catalão, Itumbiara, Jaraguá, Formosa, Porto Nacional,
Inhumas, Goiás, Pirenópolis, Jataí, São Domingos e Silvânia (lei n. 310/1948).
Segundo os educadores goianos da década de 1940 os Clubes Agrícolas, li-
gados às escolas, tinham objetivos de proteção social e formação para o trabalho
das crianças e sócios, bem como objetivos de proteção do meio ambiente. Ignez
Godinho elencava em sua explicação da importância dessa associação a valoriza-
ção do trabalho manual e da profissão de lavrador, o desenvolvimento do “espírito
de cooperação entre família, escola e coletividade”, ressaltava o valor econômico e
“patriótico” dessas atividades indicando a necessidade de organização de cooperati-
vas para a comercialização da produção. A importância desses clubes, se mostrava
ainda, na proteção do meio ambiente com o combate às queimadas e a derrubada de
árvores e na luta contra a migração de população para as cidades. Como chamava
atenção, era preciso “mostrar os perigos do urbanismo e do abandono do campo”
(GODINHO, 1944, p. 3). A urbanização era proposta na maioria das vezes, como
o processo desencadeador dos variados problemas sociais que atingiam a família e
mais fortemente as crianças.
Em 1954, a legislação estadual indica uma transformação no conceito de
infância e assistência, bem como certo amalgama entre assistência, correção e puni-
ção. A criação do Serviço Social de Menores, subordinado à Secretaria de Estado do
Interior, Justiça e Segurança Pública, dava claramente um teor punitivo e corretivo
em relação ao problema social. Seu objetivo era “organizar, orientar e fiscalizar as
instituições públicas e particulares de assistência aos menores delinquentes, abando-
nados, assim como de proporcionar todos os meios para o cumprimento do Código
de Menores” (lei n. 1014/1954). Os espaços onde tais ações educativas deviam ser
processadas, no entanto, permaneciam aqueles mesmos dos patronatos agrícolas,
onde devia se dar o incentivo e o reforço da educação intelectual, profissional e artís-
tica, e a recuperação dos menores para o “sadio convívio social” (lei n. 1014/1954).
Para Passetti, no entanto, o internamento se constituía dentro de um programa de
“educação para o medo” e imprimia uma padronização rígida da rotina de “ativida-
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des de lazer, alimentação, vestuário, ofício, lazer e repouso”, num elogio à disciplina
e controle (1999).
A criação do Departamento Municipal de Assistência à Infância e à
Maternidade (DMAIM, 1958) respondia ao proposto pelos 4º e 7º Congressos Pan-
Americanos da Criança. Seus objetivos específicos eram de ordem social e sanitá-
ria: o desenvolvimento orgânico da criança, o combate à mortalidade, o amparo à
mulher em relação específica com a maternidade (lei n. 1.401/1958). Naquele do-
cumento os preceitos, com conteúdo de ordem social, giravam em torno da preocu-
pação com o estímulo e auxílio às entidades privadas que se ocupavam da assistência
à infância e à maternidade. E a proteção, poucas vezes, considerava a família, se
restringia à promover a organização de patronatos, ou instituições para cuidado e
a indicação de “lar supletivo ou colocação familiar para as crianças em estado de
abandono material e moral” (lei n. 1183/1958). Nesses discursos e práticas, as crian-
ças eram subtraídas de seus lares e progenitores, fisicamente e teoricamente pensa-
das como um universo à parte, portanto, passíveis de internação. Paulatinamente, no
entanto, a preocupação em zelar pela família vai sendo integrada às normas e ações
interpostas (PASSETTI, 1999).
Nos projeto e leis para geração de recursos para financiamento público de
ações de amparo, a necessidade de produção de rendas para o fito de “internar o
maior número de crianças abandonadas” exibia a caracterização da institucionali-
zação como o caminho para a solução do problema (projeto de lei n. 167/1957) e a
elaboração de novas instituições dão a dimensão da problemática. Além das institui-
ções já citadas, temos a transformação do Lar de Meninas Santa Gertrudes em ins-
tituição de utilidade pública e a criação da Casa da Criança desvalida do município
de Goiânia, cujo objetivo era oferecer abrigo e educação aos menores abandonados
de ambos os sexos (leis n. 1579, n. 1618/59). Como definido nos objetivos dessa ins-
tituição, “procurará, dentro do possível, além de assistir e educar a criança, dotá-la
de condigna profissão”. A construção, se faria com recursos advindos do Ministério
da Justiça; naquele momento, no entanto, era apenas criada “por decreto”, como ex-
plicava o próprio prefeito da cidade na sua justificativa da lei “quando lançamos
o decreto tínhamos certeza de que nenhum vereador, por empedernido que seja,
ousaria impugnar uma providência de tão alto alcance para os humildes e para os
anônimos” (lei n. 1618/1959).
De outro lado, a percepção do cuidado da infância parecia sofrer uma ex-
pansão, ia além da sua manutenção física e formação moral. A década de 1950 é o
Histórias de Doenças 125

momento em que a assistência social começa a pensar a possibilidade de auxílio à


mães em situação de pobreza como uma forma de previsão e contenção do abando-
no das crianças (lei n. 1230/1956). A proteção da maternidade e da infância, dentro
do pensamento social a partir especialmente da década de 1940, ganhava adeptos e
defensores entre médicos, filantropos, pedagogos, políticos e religiosos (MARTINS,
2010, p. 111).
Outro exemplo é pensar a infância também como instância lúdica. Em 1954,
uma lei municipal propunha financiamento de “uma fábrica de pequenos móveis e
brinquedos dos internos da Colônia Santa Marta”. O espaço era idealizado, organi-
zado e administrado pelo padre Rodolfo Tellman, que se dedicava à população da
Colônia desde sua inauguração e era o responsável, naquele momento, por “sete-
centas almas” abrigadas naquele recinto, bem como pela escola Santa Marta junto à
Secretaria da Educação. Ele era:

(…)um homem que voluntariamente se isolou do mundo, dando de si o que


mais caro pode parecer a nós outros – a liberdade, para que os que sofrem
vivessem um pouco menos de isolamento, de desespero e de dor e tivessem
também um pouco mais de alegria, de paz e de esperança! (…). Auxiliemo-lo.
(lei n. 425/1954)

Dando o tom da importância das questões sociais que envolviam a infância


e a constituição de caminhos para sua superação naquele período, temos a criação
da Junta Municipal de Serviço Social.6 O objetivo era desenvolver um programa de
cuidado e proteção social. O público alvo, bem como os principais temas de preocu-
pação giravam em torno da criança em condição de pobreza e abandono, da cons-
tituição de espaços de assistência e proteção, da organização de estrutura sanitária
e de higiene voltada para o atendimento à infância e do resguardo da saúde moral
dos menores.
Em suma, a educação em reclusão, por meio da correção dos desvios de com-
portamento e moral, se objetivava e previa uma posterior reintegração social da

6 A ideia que permeava a criação da Junta era de efetivar o proposto na Lei Orgânica do
Município, item e do artigo 23, que propunha a assistência social do município. Integrava a
junta um consultor jurídico da prefeitura, um representante da Câmara dos Vereadores, um
membro da Associação Médica de Goiás, um conselheiro da Ordem dos Advogados de Goiás,
um sanitarista da Secretaria de Saúde Estadual, um técnico da Secretaria de Educação e dois
membros escolhidos pelo executivo municipal.
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criança/adolescente/jovem na sociedade. Acrescenta-se outra novidade, pensar as


condições sociais das famílias das crianças e o “meio ambiente onde estão a formar
o seu caráter”. Medidas e pensamentos médicos e jurídicos estavam na base desses
princípios, que previam:

I – Sugerir ao Poder Executivo medidas referentes à assistência e proteção


social a infância desvalida;
II – Efetuar estudos, em colaboração com o Juízo de Menores, sobre o desen-
volvimento de Campanhas relativas às crianças abandonadas e sobre a criação
nesta capital de estabelecimentos especializados para a infância desamparada;
III – Zela pela fiel observância do Código de Menores e todas as leis posterio-
res referentes ao assunto;
IV – Proceder a estudos relativos ao amparo às famílias numerosas, proteção
à juventude desamparada, ao combate aos venenos sociais e à propagação de
moléstias transmissíveis;
V – Fiscalizar o ensino nas escolas através de relatórios que lhes serão re-
metidos, mensalmente, pelas respectivas direções, contendo, principalmente,
informações minuciosas sobre as condições de vida das famílias dos alunos e
o meio ambiente onde estão a formar o seu caráter;
VI – Exercer severa fiscalização sobre as condições sanitárias do Município de
Goiânia e solicitar, quando julgar conveniente, a criação de Postos de Higiene
em locais previamente examinados, tanto no perímetro urbano quanto no
setor rural (lei n. 546/1955).

José Luís Bittencourt, ao justificar a importância daquele projeto de lei, expli-


ca que pretendia “promover os meios indispensáveis para uma efetiva e real assistên-
cia social aos desamparados da fortuna e aos menores abandonados de Goiânia” (lei
n. 546 de 8 de setembro de 1955). Acrescentava que o problema ganhava proporções
a cada dia e que o executivo não podia excursar-se de dar solução. Em conclusão,
considerava que o trabalho desenvolvido por aquele órgão tinha a nobre tarefa de
“preservar o patrimônio mais caro do país, o de sua infância, sobretudo o de sua
juventude desamparada”. Expunha que o tema havia sido tratado pela imprensa lo-
cal, que se apresentava como uma questão de patriotismo e nacionalidade, e que
defendia a construção de um reformatório para abrigar os menores delinquentes da
capital (lei n. 546 de 8 de setembro de 1955). O que se nota é que o Estado amplia seu
interesse e responsabilidade em relação à educação, saúde e punição para o conjunto
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de crianças e adolescentes (PASSETTI, 1999), e começa a pensar meios de prevenção


social mais largos.
Na década de 1960, temos a manutenção das ações de subvenção às entidades
do interior e da capital do estado como a Casa da Criança São Miguel, da cidade de
Catalão (lei 3084/1960), a Associação de Proteção à Maternidade e à Infância de Rio
Verde (lei n. 3136/1960), à de Natividade (lei n. 3331/1960), e à de Itumbiara (lei n.
3754/1961), e por fim, a criação de mais um Instituto de Aprendizado Agrícola, na
cidade de Mineiros (lei n. 3888/1961).
O amalgama entre educação, higiene, saúde, preparação para o trabalho e
controle do risco de delinquência reforça-se na lei sobre a ampliação e aperfeiçoa-
mento do sistema de ensino primário do estado, que dispunha sobre a obrigatorie-
dade da educação cívica, moral e física das crianças, e da oferta, sem ônus, dos ser-
viços de higiene escolar (decreto-lei n. 67/1945). Bem como a acentuação de ações
voltadas para os “menores desvalidos e delinquentes” como a criação do Instituto de
Recuperação do Menor (IRAM), que insistia no internamento (lei n. 4258/1962)7,
mesmo padrão das demais associações e políticas sociais que não buscaram soluções
efetivas para o problema (PASSETTI, 1999, p. 348) na sua prevenção, mas na segre-
gação dos sujeitos atingidos.
Pauperização das camadas populares, programas de profilaxia social, e ur-
banização e aumento da criminalidade nos espaços onde as condições sociais e as
modificações nos modos de relacionamentos se intensificavam, estavam na origem
desses novos regulamentos voltados para a profilaxia dos riscos dessas mudanças
sobre aquela população (SANTOS, 1999).
Na proposta orçamentária de 1960, esses elementos demarcadores da polí-
tica para a infância saltam aos olhos. Era enquanto assistência social que as verbas
apareciam. E mais, ali aumentava o número de instituições citadas: Creche Tenda
do Caminho, Lar das Meninas Santa Gertrudes, Preventório Afrânio de Azevedo,
Fundação de Assistência ao Menor Abandonado – FAMA, Assistência à Maternidade
e Infância e Escola Bandeirante (lei n. 1756/1960). As subvenções se endereçavam
a creches, escolas de formação de meninos (as) e centros educacionais. No mesmo
ano, a prefeitura firma convênio com a Fundação de Abrigo ao Menor Abandonado
–FAMA (lei n. 1731/1960), o Lar de Jesus, para o “internamento de menores porta-

7 O financiamento das instituições criadas e de sua manutenção se faria por meio de 60% do
lucro líquido da Loteria do Estado de Goiás; a dotação de recursos para instalação e funciona-
mento ocorre em 1963.
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dores de defeitos físicos” (Lei n. 2325/1963), e a Casa da Pequena Costureira, para


a formação profissional de meninas pobres (lei n. 2393/1963). Nessa legislação, se
previa a indicação pelo executivo e legislativo de nomes para ocupação de vagas
reservadas nesses estabelecimentos,8 mantendo-se as características de relação clien-
telística entre os agentes do estado e as instituições.
As preocupações com resguardo da infância e sua formação pelo e para o tra-
balho, exprime-se quando a prefeitura vota a lei que criava a Fazenda dos Meninos.9
A instituição deveria localizar-se na capital, nas proximidades do “centro urbano ou
das vias de transportes”. Tinha a justificativa de que era do êxodo rural que advinha
grande parte dos menores, que acabavam sendo abandonados à própria sorte em
decorrência da pobreza (lei n. 2788/1964). Esses menores deveriam ser encaminha-
dos para tal modelo institucional para se evitar o risco de delinquência. A criação de
uma fazenda justificava-se pela manutenção daquele grupo em um ambiente que lhe
seria familiar e onde seria reproduzida a sua formação, quase como um substituto
social natural da vida anterior.
As suas finalidades, segundo o indicado no documento, eram “abrigar, se-
parar, instruir, educar e assegurar trabalho a menores abandonados e desvalidos,
de modo a deles adequadamente fazer elementos úteis à sociedade”. A Fazenda dos
Meninos, assim como outros estabelecimentos voltados para a infância que previam
o trabalho enquanto atividade formadora principal, propunha-se como autossufi-
ciente ou dependente do esforço individual daqueles internos. A autossuficiência
era reforçada pelo artigo sétimo que previa que “nenhuma receita da Fazenda dos
Meninos poderá ser desviada da aplicação requerida para a subsistência e ampliação
das atividades da instituição” (lei n. 2788/1964).
Previa-se, na lei, que “aos próprios menores será atribuída a principal respon-
sabilidade pelo bom êxito da instituição, de forma a criar-se neles a consciência de
que os resultados alcançados preveem, acima de tudo, de esforço e dedicação deles”.
Para o interno, o que se antevia era que seu trabalho mantivesse o internato e criasse
uma poupança para sua vida após o período de formação. Nesse sentido:

8 As legislações citadas para os três estabelecimentos previam reserva de vagas para indicação
do executivo ou legislativo. No convênio, o número de vagas definido em cada instituição era
de seis, três por indicação do executivo e três do legislativo.
9 Em 1964 ocorre a aquisição de terreno e instalação da instituição, para tornar-se entidade
autárquica municipal.
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Pelo trabalho que executar, e segundo o grau de importância e responsabili-


dade desse trabalho, cada menor terá direito a uma remuneração, ainda que
simbólica, a ser depositada mensalmente na Caixa Econômica Federal de
Goiás, crédito de quem a ela tiver feito jus, para que o saldo possa vir afinal
a ser levantado quando o menor, já convenientemente preparado, deixar a
instituição para enfrentar noutros setores os problemas da existência. (Lei n.
2788/1964)

Em seu regulamento, a instituição previa a orientação educacional dos me-


nores e a diversificação das práticas rurais para as quais eram formados, bem como
o “regime de instrução e disciplina”, atendendo os “mais modernos preceitos peda-
gógicos”; um ambiente onde pudesse ser “plasmada a sua personalidade e formado
o seu caráter” (lei n. 2788/1964).
Em suma, crianças pobres, doentes ou em condição de ‘vexame social’
(DONZELOT, 1986) deveriam, como profilaxia do risco de delinquência ou dege-
neração, segundo o que se considerava os objetivos tanto da assistência social emer-
gente e da educação, quanto dos serviços de saúde e de higiene, ser internadas em
instituições. E nesse ponto, devemos ainda acrescentar que todo o trabalho era per-
meado por meios e fins higiênicos e sanitários, com uma pitada de eugenismo. O en-
foque no eugenismo fazia com que os discursos e prática médicos focalizassem sua
ação na criança, deixando as mães, e em senso largo a família, em condição secun-
dária. A maternidade interessava como experiência visando o bem-estar da criança
(MARTINS, 2010, p. 119). O internamento servia para preparar essas crianças para
uma vida de utilidade, tinha conteúdo pedagógico formal (ensino das primeiras le-
tras) e de disciplinamento e subordinação.

Considerações finais

A percepção da infância e adolescência como um momento sensível da vida,


e dependente do encaminhamento de profissionais para a construção do bom an-
damento de sua formação, fez da população infanto-juvenil o objetivo primeiro das
preocupações políticas com amparo social. A resposta para o problema da manuten-
ção desse grupo e da prevenção do risco de delinquência e degeneração moral, física
e social levou a construção de uma rede institucional devotada ao seu cuidado. Esse
conjunto de instituições é criado com o objetivo de internar para manter, educar, hi-
gienizar e encaminhar, especialmente aquelas crianças em condição de dependência
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e fragilidade em decorrência do abandono, da pobreza ou da doença. Em conclusão,


o que percebemos nessa análise foi a emergência da assistência social e da percepção
do bem estar para grupos fragilizados, como as crianças e jovens, como sendo res-
ponsabilidade do Estado. Uma responsabilidade que o Estado assume, parcialmente,
em consonância com as ações privadas de cunho filantrópico advindas de diversas
associações que são constituídas com esse fito. O Estado, por meio de seus represen-
tantes, e esses estabelecimentos estabelecem entre si uma relação de dependência
econômico financeira e de clientelismo.

Fontes

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providências.
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Orfanato São José, de uma chácara.
Decreto-lei n. 3931, de 30 de dezembro de 1940. Abre crédito de cinco contos de reis,
para o pagamento das mensalidades devidas ao Patronato Agrícola de Bonfim
pelo internamento de menores abandonados.
Decreto-lei n. 53, de 14 de julho de 1945. Cria o Departamento Estadual da Criança
e dá outras providências.
Histórias de Doenças 131

Decreto-lei n. 5613, de 27 de abril de 1942. Cria o Serviço de Proteção à Maternidade,


à infância e à Adolescência.
Decreto-lei n. 6228, de 17 de setembro de 1942. Concede subvenção anual de
20:000$000 à Associação de Proteção à Maternidade, à Infância e à Adolescência.
Decreto-lei n. 67 de 30 de julho de 1945. Dispõe sobre a ampliação e aperfeiçoamen-
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Decreto-lei n. 77, de 13 de julho de 1944. Concede uma subvenção de Cr$ 50.000,00
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Lei n. 1111 de 19 de outubro de 1955. Concede subvenção anual de CR$ 200.000,00
ao Educandário Afrânio de Azevedo desta capital.
Lei n. 139 de 16 de novembro de 1950. Propõe auxilio de 5.000,00 a Casa da Criança
das Irmãs Missionárias de Jesus Crucificado.
Lei n. 1618 de 30 de dezembro de 1959. Cria a Casa da Criança desvalida do muni-
cípio de Goiânia.
Lei n. 1661 de 04 de novembro de 1957. Concede auxílio no valor de 500.000, à Casa
da Criança de Anápolis, e dá outras providências.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
132 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Lei n. 1724 de 08 de novembro de 1957. Abre à Secretaria de Saúde e Assistência


um crédito especial de CR$ 200.000,00 para o fim que especifica: subvenção ao
abrigo de menores abandonados de Goiânia.
Lei n. 1731 de 19 de novembro de 1960. Firma convênio com a Fundação de Abrigo
ao Menor Abandonado.
Lei n. 200, de 26 de outubro de 1948. Dispõe sobre auxílios destinados às institui-
ções de Assistência Social de Rio Verde.
Lei n. 208 de 31 de dezembro de 1947 - MES. Distribui crédito consignado ao
Ministério da Educação e Saúde (Cr$ 86.975,70). Edital da Sociedade Goiana
de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra a Lepra indica especificações para as
propostas de construção de prédio e um aviário para o preventório “Afrânio de
Azevedo”. Arquivo Público Estadual (col. 243). Goiânia, 20 setembro de 1947.
Lei n. 2356 de 9 de dezembro de 1958. Concede subvenção anual ao Instituto de
Assistência a Menores de Rio Verde no valor de CR$ 360.000,00.
Lei n. 2383 de 17 de dezembro de 1958. Concede aumento da subvenção ao
Educandário Afrânio de Azevedo e dá outras providências (subvenção aumen-
tada para trezentos mil cruzeiros -300.000,00).
Lei n. 3084 de 7 de novembro de 1960. Concede subvenção anual à Fundação Casa
da Criança São Miguel da cidade de Catalão e dá outras providências.
Lei n. 310 de 30 de novembro de 1948. Autoriza a aquisição e doação de imóveis à
União para o fim declarado e dá outras providências.
Lei n. 3136 de 10 de novembro de 1960. Abre um crédito especial de CR$ 360.000,00
à Secretaria de Saúde e Assistência para o fim que especifica.
Lei n. 3183. de 11 de novembro de 1960. Abre, à Secretaria de Estado da Saúde e
Assistência, um crédito especial de CR$ 200.000,00, para o fim que especifica:
subvenção à FAMA.
Lei n. 3331 de 12 de novembro de 1960. Abre, à Secretaria de Estado da Saúde e
Assistência, dois créditos especiais na importância total de CR$ 160.000,00 para
os fins que especifica.
Lei n. 3754 de 9 de novembro de 1961. Concede uma subvenção ordinária à enti-
dade que especifica e dá outras providências: Associação Cristã de Amparo à
Maternidade e Proteção à Infância de Itumbiara.
Lei n. 38 de 09 de julho de 1948. Autoriza a prefeitura municipal a conceder auxílio
anual de CR$ 50.000,00 ao Preventório Afrânio de Azevedo.
Histórias de Doenças 133

Lei n. 3834 de 12 de novembro de 1959. Reajusta subvenções de entidades de


Assistência do Estado de Goiás (Cr$ 150.000,00).
Lei n. 3888 de 11 de novembro de 1961. Dispõe sobre a criação de Aprendizado
Agrícola de Mineiros e dá outras providências.
Lei n. 425 de 7 de junho de 1954. Propõe financiamento de fábrica de pequenos
móveis e brinquedos dos internos da Colônia Santa Marta.
Lei n. 4258 de 9 de novembro de 1962. Dota de recursos, para instalação e funcio-
namento ainda em 1963, o Instituto de Recuperação do Menor (IRAM) e dá
outras providências.
Lei n. 546 de 8 de setembro de 1955. Cria a Junta Municipal de Serviço Social.
Lei n. 616, de 7 de agosto de 1952. Subvenção para a Associação de Amparo à
Maternidade e à Infância de Ipameri.
Lei n. 631 de 11 de abril de 1956. Aumenta a subvenção à FAMA para CR$60.000,00
Lei n. 649 de 31 de outubro de 1952. Autoriza o poder executivo a subvencionar a
Associação de Proteção à Infância e à Maternidade de Goiânia.
Lei n. 66 de 05 e junho de 1950. Concede subvenção mensal de CR$ 2.000,00 à
Fundação de Amparo ao Menor Abandonado.
Lei n. 680 de 12 de novembro de 1952. Concede subvenção ordinária à Associação
de Proteção à Infância e Maternidade de Goiandira.
Lei n. 686, de 13 de novembro de 1952. Doa a Comissão Estadual da Legião Brasileira
de Assistência e à Sociedade Goiana de Assistência aos Lázaros e Defesa Contra
a Lepra de lotes de terras nesta capital.
Lei n. 710 de 14 de novembro de 1952. Concede subvenção à Sociedade Educadora
da Infância e Juventude de Porto Nacional e Educandário Nossa Senhora
Aparecida, de Ipameri, a subvenção anual de CR$ 140.000,00 e CR$ 60.000,00
respectivamente.
Lei n. 818 de 16 de outubro de 1953. Concede subvenção anual de CR$ 200.000,00 a
Fundação Abrigo de Menores Abandonados de Goiânia (FAMA).
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Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
134 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

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No sertão do Piauí: doença, tratamento, óbito
e sepultamento de um coronel
Lena Castello Branco1

Um coronel do sertão do Piauí

Pacífico da Silva Castello Branco adoeceu quando estava em serviço de va-


quejada em sua fazenda Irapuá, à margem direita do rio Parnaíba (Luzilândia, PI).
Nascido em 1829 na legendária fazenda Contente, em Livramento (atual José
de Freitas, PI) Pacífico era um dos 14 filhos de Estevão Lopes Castello Branco e Lina
Rosa de Jesus. Aos 20 anos de idade, casou-se com sua prima, Olívia Clara da Silva.
Enviuvando, convolou segundas núpcias com a sobrinha desta, Torquata Gonçalves
Castello Branco, que veio a falecer poucos anos depois. Aos 55 anos, voltou a casar-
-se, com Filomena da Costa Fernandes. Dos três casamentos houve dez filhos, dos
quais somente três o sobreviveram, sendo que o último nasceu meses depois do
falecimento do pai.2
Descendia em quinta geração de D. Francisco da Cunha Castello Branco,
fidalgo pertencente à velha nobreza lusitana;3 como oficial do exército português,

1 Historiadora, professora titular aposentada da Universidade Federal de Goiás. Membro da


Academia Goiana de Letras e sócia emérita do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás.
Sócia fundadora da Sociedade Brasileira de História da Medicina.
2 Seguimos o opúsculo Em defesa da memória do coronel Pacífico da Silva Castello Branco por
seu filho Domingos Pacífico Castello Branco. São Luis: Tipografia Simão, 1935. 46 p.
3 O brasão de armas dos Castello Branco inclui-se entre os que estão no teto da Sala dos
Brasões no castelo de Sintra (Portugal), pertencentes às 72 famílias que formavam a nobreza
de Portugal. RORIZ, Aydano. O desejado. A fascinante história de Dom Sebastião. São Paulo:
Ediouro, 2002, p. 176. V. também FERRAZ, Antônio Leôncio Pereira et alii. Apontamentos
Genealógicos de D. Francisco da Cunha Castello Branco, seus ascendentes e descendentes. Rio
de Janeiro: Oficina Gráfica, 1926, passim.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
138 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

no final do século XVIII veio para o Brasil, a fim de combater os holandeses e


franceses que ameaçavam apossar-se da Amazônia e do litoral Norte. Ao deixar
a carreira das armas, D. Francisco estabeleceu-se com a família no vale do rio
Parnaíba, na região de Campo Maior (PI), onde fundou a fazenda Boa Esperança
e deixou numerosa descendência.
Como seu pai, Pacífico dedicou-se à criação de gado vacum e cavalar; na
juventude, trabalhou como vaqueiro nas fazendas da família. Aos vinte anos, foi
distinguido com a patente de tenente da Guarda Nacional.
Mantinha estilo de vida espartano: levantava-se invariavelmente às 4 horas
da manhã e tomava banho frio; era frugal na alimentação. Sociável, quando estava
na cidade de Parnaíba, onde mantinha casa de residência e comércio, gostava de
palestrar com amigos, formando-se rodas de conversa em frente de sua morada ao
entardecer. No dia-a-dia das fazendas, tomava parte ativa nas vaquejadas. Como
traço distintivo do seu caráter, é lembrado o carinho com os filhos e o amor à liber-
dade; era abolicionista e libertou gradualmente seus escravos, alforriando-os como
prêmio por bom comportamento. Em suas fazendas, não permitia gaiolas e proibia
que se matasse ou aprisionasse aves, ou que destruíssem seus ninhos.4
Quando se casou pela primeira vez, mudou-se para União (PI) e fundou a
fazenda Desígnio, cuja sede construiu – “um excelente prédio assobradado, em cima
de um alto monte, plantado bem no rebanco do Rio Parnaíba”. Dedicou-se à criação,
lavoura e comércio, mas “sua paixão (...) estava voltada para a criação [de gado]”.5
Não se conhece o nível de educação formal de Pacífico; textos manuscritos
de sua autoria indicam que redigia bem, com clareza, correção e precisão de dados e
datas. Como proprietário rural, diz seu filho e biógrafo que não se deixou dominar
“pela rotina geral, de criar à lei da natureza”.6
Fez cercar toda a fazenda Desígnio, aproximadamente uma légua quadrada –
com o que evitou invasões e questões com vizinhos, além de manter o gado isolado
“de elementos estranhos”. Lentamente, com paciência e rigorosa seleção, “chegou a
formar uma raça baé”, de grande peso, leiteira e mansa, eliminando os ossos inúteis
e os chifres, em benefício da carne”. Relativamente ao gado cavalar, procedia à “es-
colha rigorosa” dos reprodutores. Muitos anos depois da morte do coronel Pacífico,

4 Castello Branco, D. P. Op. cit.


5 Idem.
6 Idem.
Histórias de Doenças 139

vaqueiros e empregados de suas fazendas ainda lembravam seus esforços e o êxito


obtido como criador.7

Voluntário da pátria

Em 1865, o presidente da Província do Piauí, Franklin Américo de Menezes


Dória – do Partido Conservador e adversário político de Pacífico - enviou carta
convidando-o para comandar um Corpo de Voluntários da Pátria, composto de 458
praças que iriam combater na guerra contra o Paraguai, recentemente declarada.
Registre-se que, sobrepujando a distância e as dificuldades de comunicação e de
transporte, a longínqua província integrou-se ao espírito nacionalista que aproxima-
va diferentes regiões em defesa do país.
Pacífico poderia ter declinado da missão: com 36 anos de idade, era viúvo,
com filhos pequenos; não o fez, entretanto, e colocou acima de tudo o dever de
patriota. Apresentou-se imediatamente na capital da Província, conforme relatado
em texto manuscrito de sua autoria.8 Uma semana depois, embarcou no comando
de quase meio milhar de Voluntários,9 rumo ao teatro de guerra, com escala nas
capitais nordestinas e parada na Corte, antes de seguir para o Sul.10
A bordo do vapor Tocantins, a viagem marítima foi demorada. Em Natal,
embarcaram mais 180 praças e 218 oficiais,11 somando-se os voluntários potiguares
aos piauienses. A chegada ao Rio de Janeiro deu-se na tarde de 24 de dezembro de
1865, depois de quase um mês da partida.
O que terá visto e observado o fazendeiro-voluntário na tumultuada capital
do Império, aonde se concentravam os militares que se aprestavam para combater

7 Castello Branco, D.P. Idem.


8 In: CASTELLO BRANCO, Pacífico da Silva. Derrota da minha viagem à Republica Paraguaya.
In: Caderno de Notas cit., p. 1-9. Manuscrito.
9 A navegação do Rio Parnaíba fora inaugurada em 1861; os vapores eram movidos a carvão de
lenha, extraída das matas próximas. Para a viagem marítima, fazia-se o traslado para navios
de maior porte em Tutóia, no braço maranhense do delta. Disponível em http:/navegação do
rio Parnaíba.
10 DUARTE, Paulo Queiroz (Gal.). Os Voluntários na Guerra do Paraguai. O Comando de
Osório. V.2 T.5. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1981, passim..
11 Idem. O número desproporcional de oficiais possivelmente diz respeito a oficiais da Guarda
Nacional, cujos integrantes se apresentaram como Voluntários na Guerra do Paraguai. N. da A.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
140 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

as forças invasoras de Solano Lopes? O registro feito por ele não o consigna. A tra-
dição familiar mantém, entretanto, o relato - do próprio Pacífico aos filhos – de que
o Imperador Pedro II o elogiou e abraçou cordialmente, quando soube que o co-
mandante piauiense não tentara escusar-se do serviço militar, como muitos faziam,
mandando escravos em seu lugar para combater o inimigo.
Concluídos os remanejamentos necessários, Pacífico partiu do Rio de Janeiro
uma semana depois, a bordo do vapor inglês, Wisper, no comando de 32 oficiais e
248 praças, que viriam a formar o 55º. Corpo de Voluntários da Pátria. O destino era
Buenos Aires, aonde chegaram em 9 de janeiro de 1886, prosseguindo para Cidade
do Rosário e Corrientes, no teatro de guerra.
Em seu relato,12 Pacífico refere as batalhas de Tuiutí e Lomas Valentinas, nas
quais esteve presente; e registra o frio cortante dos pampas e das coxilhas do Sul, o
que provocava doenças pulmonares e levava à morte de voluntários piauienses.
Chamado de volta ao Rio de Janeiro,foi condecorado pelo Imperador com a
Imperial Ordem da Rosa, no grau de Oficial,13 “pelos relevantes serviços prestados
em campanha”.14 Incumbido de organizar novo batalhão de Voluntários, retornou ao
Piauí – mas, dadas as circunstância em que de desenrolava a campanha, não chegou
a ultimar a nova missão.

Retorno à família e às atividades de rotina

Voltou o coronel Pacífico para sua família e para a fazenda Desígnio, em


1868. Conhecera mundos diferentes, estivera em contato com a elite política e mili-
tar do Império. O que certamente lhe reforçou a crença na importância da educação
formal, para os indivíduos e para a sociedade.15

12 Derrota...cit.
13 A Imperial Ordem da Rosa foi instituída pelo Imperador Pedro I para perpetuar a memória
de seu casamento com D. Amélia de Leuchtenberg. Destinava-se a premiar militares e civis,
nacionais e estrangeiros que se distinguissem por sua fidelidade à pessoa do Imperador e por
serviços prestados ao Estado. Os seus graus até oficial conferiam honras militares. Disponível
em http://miltonbasile.blogspot.com/2011/04/historia-da-ordem-da-rosa_16.html
14 Condecoração conferida através do Decreto de 07.07.1868. Castello Branco, D. P. Op. cit.
15 Os dados biográficos que se seguem foram extraídos de Texto autobiográfico da autoria de
Pacífico da Silva Castello Branco, inserido in Caderno de notas cit., p. 10-45.
Histórias de Doenças 141

Dois anos depois, fez seguir o mais velho de seus filhos homens – de nome
Pacífico - para estudar em Pernambuco, onde “entrou no Collegio das Artes na ci-
dade do Recife”. Meticuloso, o pai registrou o custo do investimento no futuro do
jovem: 150$000 (cento e cinquenta mil réis) por trimestre – ou seja, 600$000 (seis-
centos mil reis) por ano. A título de referência, lembre-se que o preço médio de um
escravo – bem de alto preço - era 200$000 (duzentos mil réis).
Em data aproximada, o segundo dos filhos, Estevão, com dez anos de idade,
embarcou no porto da fazenda Desígnio com destino a Parnaíba, de onde prosse-
guiu viagem na companhia do Dr. Antonio Borges Leal Castello Branco: “ate [a]
França, pa(ra) [Estevão] ir, em um collegio de Paris, ser educado. Recebeo o mesmo
Dr. Borges pa(ra) despesa de passagens, e no primeiro anno, com o menino, um
conto e quinhentos mil rs. – 1:500$000rs”.16
Antônio Borges Leal Castello Branco (segundo do nome)17 era bacharel pela
Faculdade de Direito de Recife; foi juiz de direito na capital, Oeiras, deputado pro-
vincial, deputado geral pelo Piauí e presidente da província de Pernambuco. Primo
de Pacífico veio a ser também seu concunhado, porquanto eram irmãs as respectivas
esposas – Feliciana e Torquata, esta a segunda mulher do coronel.
Miguel, primogênito de Borges Leal, estudava no Liceu Imperial São Luis
(antigo Colégio D´Harcourt), em Paris; supõe-se que Estevão tenha sido interno no
mesmo colégio. Em janeiro de 1876, aos 16 anos de idade, ele regressou da Europa,
“vindo doente do peito”; faleceu dez meses depois e foi enterrado “no quarto do
oratório”, no sobrado da fazenda Desígnio.18
A ida dos filhos (homens) para centros maiores, a fim de estudarem, resultava
em longos períodos de separação: assim é que somente em 1873 – três anos depois
de ter seguido para o Recife – Pacífico veio passar as férias escolares no Desígnio.
Nesse mesmo ano, seu pai, o coronel Pacífico, casou-se em segundas núpcias com

16 Idem, p. 22.
17 Antônio Borges Leal Castello Branco (1816-1871) era sobrinho de Miguel de Souza Borges
Leal Castello Branco, primeiro piauiense a formar-se em direito na Universidade de Coimbra,
sendo eleito deputado constituinte às Cortes de Lisboa (1821) e, posteriormente, deputado
constituinte à Assembleia Constituinte do Brasil (1823). FERREIRA, E.P., 2013, p.297-298.
18 Texto autobiográfico cit. Miguel Gonçalves Castello Branco também morreu jovem; voltara
da Europa e cursava a Faculdade de Direito do Recife, quando faleceu aos 21 anos, em 1876.
FERREIRA, E.P. Op. cit., p.299.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
142 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Torquata Gonçalves Castello Branco. Em junho de 1875, ela deu à luz uma menina,
que nasceu morta.
No ano seguinte, Pacífico e Torquata viajaram para o Recife, acompanhados
da sogra e da cunhada mais moça, Filomena, que iria casar-se na capital pernambu-
cana com o Dr. Hermógenes Sócrates Tavares de Vasconcelos. Alugaram uma casa
na Rua da Aurora n. 1; passearam e compareceram às festas da boda - em seguida,
voltaram para o Desígnio. Durante a estada no Recife, o casal foi retratado em gran-
de estilo: ele, de casaca; ela, vestida elegantemente, penteado alto, brincos e colar de
ouro com pendentif.19

Coronel Pacífico da Silva Castello Branco (1876). Acervo da Autora.

19 Pendentif: joia suspensa a uma pequena cadeia, usada como colar.


Histórias de Doenças 143

D.Torquata Gonçalves Castello Branco (1876). Acervo da Autora.

Domingos Pacífico, primeiro filho varão do casal, nasceu em 1877; no ano


seguinte, estando Torquata novamente grávida, a família embarcou em um bote com
destino a Parnaíba, aonde nasceu Estevão (segundo do nome). A partir de então, o
coronel Pacífico e sua família passaram a residir nessa cidade.20
Durante a gravidez, Torquata adoecera de disenteria; ainda muito fraca, en-
trou em trabalho de parto e “com muita facilidade nasceu (-lhe) a criança (o filho
Estevão)”. Nas semanas seguintes, passou “sem novidade”. Voltou-lhe, entretanto, a
disenteria, com o que “pôs-se em um estado tal de fraqueza e magreza” que foi re-
solvido levá-la para a casa de sua irmã, Vitória, na fazenda Santa Cruz, com vistas a
que recuperasse a saúde. Registra minuciosamente Pacífico:

(...) neste estado [de fraqueza] seguio no vapor Paranaguá no dia 27 de janeiro
de 1879, e desembarcou no porto da Repartição no dia de quinta feira, a 28,
e no dia 30 do m(es)mo mez seguiu em uma rede p(ar)a Santa Cruz, aonde
chegou as 5 oras (sic) da tarde (...)o medico Dr. Aurélio Lavor (...) chegou em
Sta. Cruz no dia 1º. de fev(erei)ro (...)aconselhando q. D. Torquata fosse para
o Brejo; effetivamente saio para a cidade do Brejo a 5 de Feve(rei)ro e no mes-

20 Texto autobiográfico...cit, p. 36.


Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
144 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

mo dia lá chegou e no dia 8 de Fev(erei)ro morreu as 7 horas e 15 minutos da


noite e sepultou-se na 4ª. catacumba do lado esquerdo no cemitério da cidade
do Brejo, no dia 9, as 7 horas da noite.21

Torquata tinha 32 anos – e Pacífico viu-se viúvo uma vez mais, com dois
filhos pequenos. Iria passar por outras perdas dolorosas: dos filhos do primeiro
casamento, restava-lhe Arcângela Pulquéria, que morreu em 1883; meses depois,
um colapso cardíaco vitimou subitamente o último deles – Pacífico, então juiz de
Direito em Limoeiro (PE).22

Político e administrador

Ao mudar-se para Parnaíba, além de negócios da charqueada que se imbri-


cavam com suas atividades de fazendeiro e criador de gado, o coronel Pacífico de-
dicou-se à construção civil, quando aterrou pântanos e edificou casas, aonde viria a
situar-se a rua que leva o seu nome. Assinala Domingos Pacífico que o gênio afável
e as maneiras delicadas do pai atraíam as simpatias gerais; esforçava-se por manter
a união entre parentes e amigos, sendo muito prestigiado pela colônia estrangeira,
composta por representantes de firmas exportadoras e importadoras.23
Como político, filiava-se ao Partido Liberal; foi vereador em Parnaíba (1883
– 1886), elegendo-se vice-presidente e presidente da Câmara Municipal, a quem
cabia exercer as funções de prefeito. Por proposta de sua autoria, foram construí-
dos o Mercado Público, o Matadouro e o Cemitério Igualdade24;segundo a tradição
oral, consta que também esteve envolvido na criação da Companhia de Aprendizes
Marinheiros da Província do Piauí.25
Em 1884, Pacífico casou-se em terceiras núpcias com Filomena Fernandes; o
primeiro filho do casal, Pacífico (terceiro do nome), nasceu em 25.2.1886, em Parnaíba.

21 Idem, p. 38.
22 Idem, p. 39
23 Castello Branco, D.P., Op.cit, p. 15.
24 Livros de atas da Câmara Municipal de Parnaíba– sessões de 13.2.1883; 18.4.1884; 20.01.1886.
Idem, p. 14.
25 Sessões de 18.11.1885 e 11.1.1886. Idem., p. 15.
Histórias de Doenças 145

Doença e morte

Em Anotações atribuídas ao cunhado do coronel Pacífico da Silva Castello


Branco,26 está descrita a moléstia que o acometeu em sua fazenda e a medicação que
lhe foi dispensada, bem como seu falecimento. São narradas as circunstâncias que
marcaram o transporte do corpo para Parnaíba, a 40 léguas (240 km.) de distância,
onde o falecido foi sepultado em condições incomuns.
O documento relata que o paciente sentia “um encommodo no ventre e
no estomago” e apresentava febres “que não cediam”. Chamado o médico, na ci-
dade maranhense do Brejo – a cerca de 8 léguas (48 km.) – foram-lhe prescritos
purgativos, vomitivos e quinino, além da aplicação de ventosas e de um clister.
Aconselhou o médico que o paciente fosse embarcado para Parnaíba, aonde pode-
ria contar com mais recursos.
São minuciosamente mencionados o agravamento do mal e as dificuldades
enfrentadas para conduzir o doente até o porto do rio, em uma rede levada por car-
regadores que se revezavam. Antes, seguira um “próprio”27 para Parnaíba, a cavalo,
com o pedido de envio de um rebocador movido a vapor, a fim de transportar o
doente mais rapidamente e com maior comodidade. É assinalada a dedicação e o
carinho de familiares durante o trajeto, assim como a lhaneza de trato do coronel;
registra-se também o respeito e a obediência de parentes e empregados.
O coronel Pacífico veio a falecer28 em meio caminho, na fazenda Alegre, onde
a comitiva parara para pernoitar. Ele contava 59 anos de idade.
Como o rebocador solicitado não chegasse, foi resolvido que o corpo do fa-
lecido coronel seria levado em uma canoa para ser sepultado em Parnaíba. Seus
familiares seguiriam em outra embarcação, que se atrasou.
Quando a canoa com os restos mortais chegou à rampa da Alfândega nessa
cidade, grande consternação manifestou-se entre as pessoas que, tendo recebido a
notícia da doença do coronel, aguardavam-no e foram surpreendidas pelo desenlace.

26 Anotações atribuídas a Raimundo da Costa Fernandes, cunhado do coronel Pacífico da Silva


Castello Branco; estão inseridas (fls. 45-51) no Caderno de notas que pertencera a D. Torquata
Gonçalves Castello Branco, segunda esposa do coronel já falecida à época dos fatos narrados.
27 Próprio ou positivo: mensageiro veloz, com destinação específica.
28 Faleceu em 26.03.1888. Anotações …cit., p. 45.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
146 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

O sepultamento

Inexistindo casa funerária na cidade e não sendo possível fazer-se rapida-


mente um ataúde, amigos e parentes do morto decidiram sepultá-lo no caixão dos
escravos que, para esse fim, seria reformado.
O humilde caixão fora doado à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos
Pretos por Ana, ex-escrava do coronel Pacífico, que a alforriara há alguns anos;29
nele, eram levados os escravos mortos ao cemitério. Embrulhados em uma morta-
lha, os corpos eram postos na cova – e o caixão, levado de volta à sacristia da Igreja
da Graça,30 onde aguardaria o próximo ocupante.
No caixão dos escravos, condignamente decorado – “ficou até luxuoso de-
mais para a natureza simples de meu saudoso pai”, registrou Domingos Pacífico –
foi sepultado o coronel Pacífico da Silva Castello Branco, quando o crepúsculo caía
sobre as águas do delta do Parnaíba.31

Breve análise médica

Solicitou a Autora a análise, do ponto de vista médico, das Anotações so-


bre a doença e a morte do coronel Pacífico, ao professor Dr. Joffre Marcondes de
Rezende,32 que assim se manifestou:

Infelizmente, a descrição dos sintomas é muito pobre, o que impede um


diagnóstico retrospectivo [...] A hipótese de apendicite aguda é plausível. A
evolução da doença sugere uma infecção grave que termina em um quadro

29 Ana fora mãe-de-leite de Domingos Pacífico, filho do coronel Pacífico e seu biógrafo. Castello
Branco, D.P. Op. cit.
30 Data de 1777 a realização de ofícios divinos na Igreja de Nossa Senhora Mãe da Divina Graça,
em Parnaíba.
31 A partir desse episódio, Humberto de Campos escreveu e publicou o conto O caixão da Tereza,
texto depreciativo para o coronel Pacífico – o que deu origem ao opúsculo de Domingos
Pacífico – “Em defesa da memória do Coronel Pacífico...” – referenciado no presente trabalho.
CAMPOS, Humberto de. Memórias Inacabadas. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1935.
32 Joffre Marcondes de Rezende (1921-2015): médico gastroenterologista, doutor e livre-do-
cente, professor titular da UFG e professor emérito da UnB; notabilizou-se como pesquisador
sobre a doença de Chagas.
Histórias de Doenças 147

de choque séptico (paciente lúcido, extremidades frias, sudorese, pulso fino,


colapso circulatório).33Prossegue a análise:

(...) há um complicador, que é o aparecimento de “escarros de sangue” no


5º. dia da doença, o que poderia sugerir pneumonia (...). No tratamento da
pneumonia, usava-se aplicar ventosas no tórax (com ou sem sarjas). O rela-
tório faz referência à aplicação de ventosas secas (...) mas não informa o local
da aplicação.

Lembra ainda o renomado gastroenterologista que, à época, o tratamento


médico:

baseava-se na teoria humoral das doenças, que prevaleceu desde Hipócrates


até o século XIX. Supunha-se que as doenças decorriam da desarmonia dos
quatro humores do organismo, e que era necessário retirar do corpo o humor
alterado, o que se fazia por meio de purgativos, clisteres, vomitório e sangria.

Assinala o Dr. Joffre que ao doente foram ministrados purgantes de óleo de


rícino e óleo de mamona, cujo ingrediente ativo é também o óleo de rícino; além de
purgantes de calomelano (cloreto de mercúrio) e de sal amargo (sulfato de magné-
sio). O paciente somente veio a evacuar depois desses procedimentos, “o que per-
mite afastar a hipótese de infecção bacteriana comum do intestino, que cursa com
diarreia”. No quinto dia da doença, foi-lhe dado mais um purgante de óleo de rícino
e outro de sal amargo (sulfato de magnésio), além de tártaro emético (tartarato de
antimônio), de efeito emético. A tais medicamentos, acrescente-se a aplicação de
um clister.
O fato de o paciente ter evacuado e “a ausência de vômitos espontâneos” ex-
cluem a possibilidade de estar acometido de obstrução intestinal. De outra parte,
para combater a febre, o coronel Pacífico tomou doses elevadas de quinino (sulfato
de quinina): ao todo, quase 100 grãos, quando “a dose normal seria de 20 a 30 grãos”
de cada vez (1 grão=50mg). Conclui o Dr. Joffre:

É certo que no caso do coronel Pacífico, o tratamento contribuiu para apres-


sar a morte do paciente (...) O que ocorreu (...) é um retrato da medicina da

33 Comentários enviados por e-mail à Autora, pelo Dr. Joffre Marcondes de Rezende, a quem a
Autora homenageia com a publicação deste artigo.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
148 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

época, praticada universalmente. A hipótese mais provável é que tenha sido


mesmo apendicite aguda, que não era reconhecida. Milhares de pacientes
morreram de apendicite, com outros diagnósticos, ou sem diagnóstico.34

Considerações finais

Os demais dados constantes das Anotações permitem intuir o quadro social


em que se desenrolou a doença que levou à morte do coronel Pacífico: o isolamento
das fazendas do sertão; a distância entre os poucos e dispersos núcleos urbanos; as
deficiências de comunicação e de transporte. Fica patente o zelo dos familiares e
dependentes para com o pater familiae, cuja autoridade e vontade são respeitadas
até seus últimos momentos. Assinale-se, igualmente, o perfil incomum, talvez um
tanto idealizado – de homem civilizado e sociável - que é atribuído a Pacífico pelo
filho e biógrafo, divergindo dos estereótipos de macheza, desumanidade e brabeza
dos coronéis sertanejos.
Evidencia-se a precariedade dos equipamentos urbanos, traduzida na inexis-
tência de uma casa funerária na cidade e na falta de um simples caixão de defunto;
de igual modo, ressalta o papel social e religioso desempenhado pelas irmandades
de escravos, sobretudo na hora da morte.
A ironia subjacente ao sepultamento do coronel Pacífico da Silva Castello
Branco no caixão dos escravos é acentuada quando se atenta para o nome do cemi-
tério em que foi inumado, construído quando ele presidia a Câmara Municipal de
Parnaíba: Cemitério da Igualdade.

34 Idem.
Histórias de Doenças 149

Referências

Manuscritos

• Anotações atribuídas a Raimundo da Costa Fernandes, cunhado do co-


ronel Pacífico da Silva Castello Branco; estão inseridas (fls. 45-51) em
um Caderno de notas que pertencera a D. Torquata Gonçalves Castello
Branco, segunda esposa do coronel já falecida à época dos fatos narrados.
Documento íntegro, em bom estado de conservação; letra cursiva e legí-
vel. Redação e ortografia corretas. Data provável: abril de 1888. Manuscr.
• Derrota da minha viagem à Republica Paraguaya, escrita pelo coronel
Pacífico da Silva Castello Branco sobre sua participação na Guerra do
Paraguai; está inserida no mesmo Caderno de notas (fls.1-9). Data pro-
vável: 1869. Manuscr.
• Texto autobiográfico escrito por Pacífico da Silva Castello Branco, tam-
bém constante do Caderno de notas (p. 10 a 44). Versa sobre o autor e
sua família, seus ascendentes, esposas e descendentes. Data provável: de
1869 a 1888.
• Os originais integram o acervo da Fazenda Santa Cruz, que pertence à fa-
mília Castello Branco desde 1812. Tombada pelo Patrimônio Histórico
e Artístico do Maranhão. Buriti, MA. Trabalhou-se com cópias Xerox
cedidas à Autora pela Sra. Rosa Lages Castello Branco, uma dos proprie-
tários atuais da fazenda.

Impressos

CASTELLO BRANCO, Domingos Pacífico. Em defesa da memória do Coronel


Pacífico da Silva Castello Branco, por seu filho Domingos Pacífico Castello Branco.
Typografia Simão, Maranhão, 1935, opúsculo, 46 pág.
DUARTE, Paulo Queiroz (Gal.). Os voluntários na Guerra do Paraguai. O
Comando de Osório. V.2 T.5. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1981.
FERREIRA, Edgardo Pires. A mística do parentesco.Uma genealogia ina-
cabada. V. 5 Os Castello Branco e seus entrelaçamentos familiares no Piauí e no
Maranhão.
2ª edição revista e ampliada. São Paulo: ABC Editorial, 2013.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
150 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

FERRAZ, Antônio Leôncio Pereira et alii. Apontamentos Genealógicos de D.


Francisco da Cunha Castello Branco, seus ascendentes e descendentes. Rio de Janeiro:
Oficina Gráfica, 1926. Edição limitada e numerada (n. 286, autografado por Raul
Fausto Castello Branco Filho).
RORIZ, Aydano. O desejado. A fascinante história de Dom Sebastião. São
Paulo: Ediouro, 2002
SANTOS FILHO, Lycurgo. História Geral da Medicina Brasileira. 2 v. São
Paulo: Ed. Hucitec/EDUSP, 1991.
Sites
SILVA, Rozenilda Maria de Castro e. Companhia de Aprendizes Marinheiros
da Província do Piauí. Disponível em: http://dos.player.com.
br/9208771-Companhia-de-aprendizes-marinheiros-da-provincia-do-piaui.
Imperial Ordem da Rosa – disponível em http://miltonbasile.blogspot.
com/2011/04/ historia-da-ordem-da-rosa_16.html
Navegação do Rio Parnaíba – disponível em http:/navegação do rio Parnaiba.
Saúde e doenças na Colônia Blasiana, Santa
Luzia, GO, 1881-1896
Mário Roberto Ferraro – UEG - CCHSE

O objetivo dessa análise é estudar a salubridade na Colônia Orfanológica


Blasiana, que foi uma instituição de encimo elementar e também profissionalizante
agrícola que funcionou em Santa Luzia, atual Luziânia, Goiás, entre 1881 e 1896, sob
a direção de Joseph de Mello Álvarez. O diretor se valia do Diccionario de medici-
na popular, do médico polonês radicado no Brasil Pedro Luís Napoleão Chernoviz.
Como fonte foram usados o relatório de Mello Álvares apresentado ao Macop em
1889, os relatos de viajantes que visitaram a Colônia e jornais da época disponíveis
na Hemeroteca Nacional. Verificou-se o bom estado de salubridade era bom e que
a única doença apresentada foi a anemia hereditária. As construções e as normas
de asseio seguiam quase que ao pé da letra as orientações de Chernoviz, mas que
esse não deveria ser o único manual, pois algumas prescrições não constam nele.
Pode ser que também seguisse algum manual de veterinária, pois também tratava
da saúde dos animais. Por fim contatou-se o envio de ‘linfa vacínica’ antivariólica à
Colônia, mas não se sabe se ela chegou à instituição e se realente existiu algum caso
de varíola à época na região.

Embora escrevendo sobre as cidades, Michel Foucault, fez uma clara distin-
ção entre salubridade e saúde:

Salubridade não é a mesma coisa que saúde, e sim o estado das coisas, do
meio e seus elementos constitutivos, que permitem a melhor saúde possível.
Salubridade é a base material e social capaz de assegurar a melhor saúde pos-
sível dos indivíduos. E é correlativamente a ela que aparece a noção de higie-
ne pública, técnica de controle e de modificação dos elementos materiais do
meio que são suscetíveis de favorecer ou, ao contrário, prejudicar a saúde.
Salubridade e insalubridade são o estado das coisas e do meio enquanto afe-
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
152 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

tam a saúde; a higiene pública – no séc. XIX, a noção essencial da medicina


social francesa - é o controle político-científico deste meio. (FOUCAULT,
2008, p.79-98).

O objetivo desse artigo é verificar a salubridade da colônia Blasiana, isto é,


quais são as condições que geram doenças e saúde nessa colônia e como certas nor-
mas da medicina higienista regulamentavam certos aspectos da vida na Colônia.
A Fazenda Conceição, onde estava instalada a Colônia Blasiana1, de acordo
com seu proprietário, Joseph de Mello Álvares (1837-1919)2, localizava-se numa an-
tiga área mineradora que se encontrava em ruínas, chamada de Lavras do Palmital,
no lugar onde este rio Palmital desemboca no rio Corumbá.. Não foi possível preci-
sar a localização exata das instalações da Colônia, pois o rio Corumbá encontra-se
represado e é provável que parte da fazenda esteja submersa. Essa represa abastece
a Capital Federal. No Rio Palmital, a montante de Luziânia, é captada a água que
abastece a cidade.
A Colônia Blasiana era uma instituição de ensino agrícola profissionalizante
particular voltada para a instrução de crianças negras órfãs e desvalidas3. Também
objetivava a modernização e diversificação da agricultura goiana, pois procurava
aplicar métodos científicos de cultivo com a intenção de transformar os métodos
rotineiros até então praticados. Diversas personalidades a visitaram: autoridades ci-
vis e religiosas, bem como viajantes brasileiros e europeus. Em comum a todos os
relatos - além de ressaltarem o caráter filantrópico da entidade e magnanimidade de

1 Um artigo deste pesquisador foi aceito e aguarda publicação no Boletim do Museu Paraense
Emilio Goeldi – Ciências Humanas. Hamilton
2 Bertran (2000, p. 105) apresenta o Diretor da Colônia Blasiana como “o nunca assaz citado
cronista de Santa Luzia”. Para ele, “Joseph de Mello Álvares – o conhecido Zé de Mello, que
a gente antiga de Luziânia achava ser auxiliado pelo Romãozinho, o Diabo, o Capeta, pela
sua versatilidade como político, farmacêutico, médico, advogado, fazendeiro e escritor – foi
o grande autodidata do Planalto em fins do século XIX, seu primeiro pesquisador científico
(...)”. Também o qualifica como “o Heródoto do Planalto” (p. 72).
3 Segundo Fernanda Franco Rocha (2007), que, apoiada em Marin (2006) e Bretas (1991), es-
tudou especificamente a questão da educação das crianças negras e pobres em Goiás do ponto
de vista social, a outra instituição educacional voltada para esse público era a Companhia de
Aprendizes Militares. Bretas estudou a instrução pública goiana e a Colônia Blasiana era uma
instituição particular, por isso mereceu dele apenas algumas linhas.
Histórias de Doenças 153

seu diretor - eram mencionadas as diferentes e inovadoras formas de se cultivar o


solo praticadas naquele local.
Segundo Joel Orlando Bevilaqua Marin, com a Lei do Ventre Livre, de 1871,
as crianças negras passaram a ser vistas como um perigo potencial para a sociedade,
pois se encontrando em estado de pobreza e abandono, corria-se o risco de sucum-
birem à marginalidade, sendo, portanto, era necessária a criação de escolas que as
educassem com o objetivo de serem cidadãos de bem, participando da criação da
nação. Um segundo problema apontado pelo autor foi que prevendo o fim próximo
da escravidão, a mão de obra se tornaria escassa. Como o aumento da produção
agropecuária, que implicava no incremento das exportações, fazia-se basicamente
pela incorporação de novas terras e de novos trabalhadores no processo produtivo,
ou seja, num futuro próximo poderia não haver mão de obra qualificada o suficiente
para suprir essa nova demanda, e isso poderia levar a uma estagnação da economia.
Ambos os problemas, com ênfase no segundo, levaram o governo imperial a incen-
tivar a criação de colônias agrícolas que estariam voltadas para ensinamentos de
agricultura prática, abrigando crianças negras e garantindo, destarte, mão de obra
qualificada para as fazendas.
Em 1889, Joseph de Mello Álvares enviou ao Ministério da Agricultura um
relatório sobre o estado da Colônia Blasiana, que foi o primeiro enviado ao novo re-
gime republicano. Chamou nossa atenção os cuidados higiênico-sanitários do dire-
tor. Preocupações com iluminação, ventilação, agua tratada, ainda não eram comuns
nem mesmo nos grandes centros. No ‘alto sertão’ essas preocupações não deveriam
ser generalizadas, mas não se pode afirmar que fossem inéditas.
Logo na introdução do seu relatório enviado ao Ministério do Comércio
e Obras Públicas, descrevendo as instalações da Colônia, Alvares (1889, p. 1)
informa que

todos os prédios têm as suas frentes expostas ao nascente, recebem de manhã


a luz radiante do sol que neles a ação benéfica do calor e da luminosidade, e
durante o dia a perfeita iluminação; são constantemente varridos e lavados, e
acham-se em esmerado asseio. Convencido de que sem água não há limpeza
e sem limpeza não há saúde, canalizei parte da água do Cedron e bordei o
canal com o primeiro junco indiano, reconhecido como primeiro purificador.

Construções expostas à nascente estão relacionadas como o próprio autor diz,


aos benefícios do calor e da luminosidade, mas a expressão ‘ação benéfica’ traz uma
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
154 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

ambiguidade: pode ser um conforto ou pode significar benefício à saúde. Quanto ao


primeiro item, não há dúvidas que casas frescas e bem iluminadas representam um
conforto, um bem estar.
Mello Álvares era um homem culto, possuía uma biblioteca, membro de di-
versas sociedades científicas, certamente era conhecedor dessas normas de higiene,
daí construir casas e outras instalações que evitavam a propagação de doenças. O
alojamento dos estudantes era certamente uma moradia coletiva; as casas das de-
mais famílias também, mas deveria haver muitos homens solteiros trabalhando, que
provavelmente também moravam em habitações coletivas. As moradias da colô-
nia eram, portanto, espaços favoráveis à propagação de doenças. E era a propaga-
ção de doenças que o diretor queria evitar ao construir casas seguindo as normas
higienistas.
Há um segundo elemento que nos permite deduzir que Mello Álvares tinha
preocupação com a salubridade: as casas eram varridas e lavadas e estavam sempre
em esmerado asseio.
Os miasmas brotavam da imundície, daí a preocupação com o asseio. Ao
final do século XIX, a teoria dos miasmas já estava muito difundida e é provável que
Mello Álvarez tivesse acesso a elas por diversas fontes. Todavia, não foi possível apu-
rar os conhecimentos que Mello Álvares tinha sobre medicina em 1889, mas sabe-se
que ele era boticário autorizado pelo imperador desde 1870 (Rio de Janeiro, 1870, p.
1) e dessa forma deveria ter acesso aos manuais de medicina da sua época e seguir
as prescrições neles contidas. É bastante provável que se valesse do Dicionário de
Medicina Popular, de Pedro Napoleão Chernoviz.
De acordo com Maria Regina Cotrim Guimarães,

A primeira das seis edições de outra obra do médico, o Dicionário de Medicina


Popular (lançado um ano depois do Formulário), com publicações entre 1842
e 1890, vendeu três mil exemplares. O ‘Chernoviz’ foi lido e utilizado por
pessoas de diferentes categorias sociais e profissionais, para as quais facilitou
o entendimento da hermética ciência médica. Figuram aí os donos de boticas,
os patriarcas e líderes políticos e religiosos que frequentemente cuidavam de
pessoas doentes e necessitadas (dos quais o famoso padre Cícero é um exem-
plo), e as matriarcas da elite latifundiária do Império, que cuidavam das pes-
soas da casa, dos seus agregados e da escravaria. (GUIMARÃES, 2005, p. 502)
Histórias de Doenças 155

Ou seja, o uso do Dicionário de Chernoviz deveria ser generalizado, inclusive


no Planalto Central brasileiro. A mesma autora faz uma menção sobre seu uso em
Goiás:

Cora Coralina [...] se remete ao manual como uma enciclopédia, na qual o


que está escrito possui valor de verdade. Num conto também recheado de hu-
mor, “O Lampião da Rua do Fogo”, a caminho do cemitério, o caixão cai com o
corpo de Seu Maia. O morto se levanta e seu Foggia diagnostica um ataque de
catalepsia. Assim, “os letrados”, com medo de serem enterrados vivos, “foram
até o Chernoviz e o Langard4. Conferiram-se diploma no assunto e discor-
riam de doutor e com muita prosódia, sobre catalepsia ou morte aparente”.
(GUIMARÃES, 2005, p. 502).

Os textos literários de Cora Coralina são carregados de reminiscências, mas a


poetiza nasceu em 1889 e não deveria ter lembranças do dr. Vicente Moretti Foggia,
italiano da Lombardia, que se refugiou no Brasil após o malogro das rebeliões no
Piemonte. Faleceu em 1892.
Segundo Sônia Maria de Magalhães, Foggia garantiu a sua

sobrevivência no exercício das artes de curar, apesar de não ter concluído o


curso de medicina. Em 1836 foi nomeado Boticário do Hospital de Caridade
São Pedro de Alcântara [...]. Três anos mais tarde, persistindo a falta abso-
luta de clínicos, o italiano foi também encarregado do curativo dos doentes
do hospital e dos presos da cadeia. Em 1839, foi designado pelo Ministro do
Exército, Cirurgião-Ajudante da Companhia de Montanha (MAGALHÃES,
2007, p.2).

Mas, as memórias também são transmitas pela tradição oral e é nessa fonte
que a poetiza goiana bebe para escrever seus poemas e suas memórias, que não são
só suas, mas da casa da velha da ponte. E os manuais de Chernoviz e Langgaarde

4 Theodoro Langgaard (1813-1883) nasceu na Dinamarca, estudou medicina em Kiel, na


Alemanha, e em Copenhagen. Escreveu o “Dicionário de medicina doméstica e popular – que
teve duas edições, nas cerca de 1.500 páginas divididas em três volumes – e do Formulário
médico – que, tal como o de Chernoviz, era presença obrigatória nas farmácias antes da cria-
ção de uma farmacopeia brasileira”. (GUIMARÃES, 2005, p. 504).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
156 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

devem ter permanecido por mais tempo em uso no Brasil Central por muito mais
tempo do que na Capital Federal ou outros grandes centros5.
O fato de Cora fazer alusão aos manuais associando a Seu Foggia, um boti-
cário e médico prático, permite concluir que Mello Álvares também se apoiava em
Chernoviz para tecer suas considerações sobre a salubridade na Colônia Blasiana.
Outro indício a respeito do uso generalizado do manual de Chernoviz é sua
menção no romance Inocência, de Alfredo d’Escragnolle Taunay, publicado em
1872. O autor foi comandante das tropas brasileiras que pretendiam combater o
Paraguai por terra e foi obrigado a retirar-se fugindo dos paraguaios, o que resultou
num dos mais comoventes romances da literatura brasileira, a Retirada de Laguna.
Foi percorrendo os sertões de São Paulo e do que hoje é o Mato Grosso do Sul que
Taunay coletou material que compõe também o seu Inocência.
O autor de Inocência é crítico com relação ao manual de Chernoviz:

Contém Chernoviz, dizem os entendidos, muitos erros, muita lacuna, muita


coisa inútil e até disparatada; entretanto, no interior do Brasil, é obra que in-
contestavelmente presta bons serviços, e cujas indicações têm força de evan-
gelho (TAUNAY, 2011, p. 47).

Mas reconhece sua importância no sertão onde não há médicos6, fato não
suficientemente enfatizado por Guimarães, que também abordou a presença de
Chernoviz no romance de Taunay. Sua personagem é o retrato típico do charlatão: o
caixeiro da botica, que com o manual sob o braço, sai pelos rincões povoados a dar
consultas. Mais tarde imigrou das Minas Gerais para Camapuã, no hoje estado do
Mato Grosso do Sul. Taunay deve ter se inspirado em todos os boticários que encon-
trou nessas suas andanças como general do exército brasileiro e

Blasiana, Chernoviz e os miasmas

Para Pedro Napoleão Chernoviz7, miasmas são

5 Sua última edição foi em 1924.


6 Ainda existem manuais para serem usados na ausência de médicos. Todavia são escritos com
base em princípios científicos do século XX. O mais famoso deles é o Onde não há médicos,
de David Werner, cuja primeira edição em espanhol é de 1973, usado no Brasil pelos agentes
da pastoral de promoção da saúde.
7 Trata-se do médico polonês Piotr Czerniewicz, que viveu no Brasil entre 1840-1855.
Histórias de Doenças 157

emanações nocivas, dissolvidas no ar, que atacam o corpo humano. Nada há


mais obscuro do que a natureza íntima dos miasmas; conhecemos muitas cau-
sas que lhes dão nascimento, podemos apreciar grande número de seus efeitos
perniciosos, e apenas sabemos o que eles são. Submetendo-os à investigação
de nossos sentidos, não temos senão o olfato para nos advertir da sua presença
(CHERNOVIZ, 1851, p. 43).

Limpeza é algo trabalhoso e lavar as casas exige grande quantidade de água


e para se ter acesso ao precioso líquido tanto para limpeza, quanto para irrigar seu
jardim, que era certamente de inspiração portuguesa8, Mello Álvares canalizou par-
te do ribeirão Cedron e plantou junco indiano nas margens do canal9. Ressalta ele
que essa planta tem um efeito purificador sobre a água. O junco plantado na beira
dá água faz com que águas cinzas ou turvas se tornem mais limpas e dá um aspec-
to mais agradável ao local, pois o pântano, onde há muitas matérias putrefatas em
decorrência do calor e da humidade, é uma fonte de miasmas. Talvez Mello Álvares
estivesse seguindo uma recomendação de Chernoviz: “se as margens [dos rios] não
são bem limpas, podem se tornar focos de infecções”. Portanto estava preocupado
em evitar a formação de miasmas próximos às instalações de sua fazenda. O padre
Raimundo Henriques de Genettes quando visitou a Colônia Blasiana frisou que a
água era corrente: “de cada lado do pátio, correm fontes de água viva que banham
o jardim”. (GENETTES, 1882, p. 2). A expressão ‘água viva’ está em oposição à água
pútrida dos pântanos.
Em principio, pareceu estranha essa afirmação, mas diante do exposto faz
sentido, água corrente não forma pântano e pântanos eram considerados como sen-
do os causadores focos de infecções.
Chernoviz também recomendava que as ruas e as praças fossem:

8 Sobre os jardins portugueses, ver Ana Aurélio Rodrigues (2015).


9 Poderia ser Juncus spp e Junco ingens ou o Scirpus lacustris L , chamado de o falso junco, esse
comum em Portugal. Embora tenha se pesquisado a origem das sementes de muitas plantas
existentes na Blasiana, não foi possível precisar como o junco chegou até ela. O junco foi
pouco usado os jardins do século XX, mas vem sendo resgatado. Segundo Maíra Roessing e
Cláudia Petry (2009, p. 68) o junco “começa a ser utilizado, atualmente, em jardins de cunho
ecológico, por agregar valor de plasticidade ornamental peculiar, de sustentabilidade em fitor-
remediação e em paisagismo mais adequado ambientalmente”. Também é usado em estações
de tratamento de efluentes domésticos (p. 68).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
158 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

todos os dias limpas de todas as matérias susceptíveis de se putrificarem.


Varrer as ruas, os largos, e sobretudo os mercados; proibir que neles se lan-
cem imundícies, e mormente matérias fecais, são outras tantas condições
essenciais de asseio, cuja influência sobre a saúde não pode ser contestada
(CHERNOVIZ, 1851, p. 349).

Possivelmente ao promover varrições e lavagens frequentes das instalações


da fazenda, Mello Álvares estaria mais uma vez a seguir às recomendações do mé-
dico polonês.
O bom estado de salubridade da colônia Blasiana, Mello Álvares atribuia às
boas condições naturais, que pode ser entendida como a ausência de fatores que
impedem a criação de miasmas, sobretudo os pântanos, e a “observância dos precei-
tos higiênicos” (ÁLVARES, 1889, p. 9), isto é, provinha da observância das medidas
higiênicas que o saber médico definia como adequadas á promoção da saúde:

Dando aos prédios do estabelecimento a conveniente orientação e mantendo


neles e em todas as suas vielas e praças o mais apurado asseio, aparto-me
dos hábitos inveterados de muitos lavradores do país, que, ignorando as no-
ções mais elementares da ciência de conservar a saúde, tem muitas vezes
a singularidade de sacrificar seus cômodos aos dos seus animais, zelando
mais a conservação deles que a própria, sem se lembrarem nunca que o fim
natural que o homem estabeleceu trabalhando é o da própria conservação
(ALVARES, 1889, p. 9).

No item saúde de seu relatório de 1889, ele retoma os pontos já apresenta-


dos na introdução, que é a descrição da excelente salubridade da Blasiana em fun-
ção da observância dos preceitos médicos que, pode-se presumir eram oriundos do
Dicionário de Chernoviz.
Além da orientação adequada das construções para se usar a luz solar e os
ventos como elementos produtores da saúde, Mello Álvares propõe a separação
entre homens e animais, não permitindo que ambos ocupassem o mesmo espa-
ço. Sobre esse assunto médico polonês é categórico: “Em toda a parte em que se
acham o homem, animais, vegetais, existem necessariamente miasmas. A respiração,
as excreções de uns, a decomposição de outros, corrompem continuamente o ar”
(CHERNOVIZ, 1851, p. 45) e essa assertiva pode ter influenciado Mello Álvares.
As secreções dos animais e humanas são miasmáticas e produzem emanações que
Histórias de Doenças 159

causam infecções, cumpre, portanto manter a distância de suas criações em nome da


conservação da saúde e, portanto, da espécie.
Mello Álvares considera a habitação rural como

um laboratório, em que se aperfeiçoam os costumes, se preparam as inteli-


gências, se formam homens possuindo forças morais e físicas, para consagrar
a família e a pátria os cuidados e dedicações que elas reclamam, possuem ao
mesmo tempo o vigor necessário para obrigar a terra a produzir a subsistência
(ÁLVARES, 1889, p. 9).

Como era um educador tinha preocupação em transmitir esses conhecimen-


tos para mudar a realidade do entorno.
Percebe-se uma mudança radical de concepção do que seja uma casa. Se
antes a casa era um abrigo das intempéries, lugar de proteção contra animais peri-
gosos, um espaço de repouso e reconstituição das forças, agora é um laboratório,
metáfora adequada para uma época em que o cientificismo imperava. É nesse la-
boratório o homem se educava e educava aos seus filhos, não de qualquer forma,
mas seguindo os princípios da ciência. Para sua saúde e bem estar deveria seguir
os preceitos de higiene e saúde das ciências médicas, tanto na prevenção quanto na
cura das doenças. É ali que ganhava forças para se tornar um ser produtivo, capaz
de cuidar de sua subsistência.

Como educador de crianças que se destinam a vida agrícola, ligo sempre a pa-
lavra ao exemplo [...] vivendo todas as condições higiênicas, faço-lhes ver que
o asseio não está de maneira alguma incompatibilizado com a pobreza e que
[se] o lavrador não pode fazer do seu tugúrio à maneira da [...] da Arcádia,
o asilo da inocência, o abrigo privilegiado da felicidade, o templo dos gostos
simples e dos costumes suaves e hospitaleiros, deve-se ao menos promover a
troca do espetáculo que [em] muitas partes do alto sertão se depara de ver-se
o ente humano abrigado em imunda choça, vivendo em promiscuidade com
seus animais, constantemente embriagado pelo mefitismo doméstico, ou por
outra [habitação] qualquer onde haja luz, ar e asseio(ÁLVARES, 1889, p. 9).

Bela postura essa do educador Mello Álvares: educar pelo exemplo, certa-
mente inovadora para a época. E esse excerto permite também perceber o estado
geral das habitações populares goianas: mal cheirosas, mal ventiladas, pouco ilu-
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
160 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

minadas, espaço compartilhado com animais domésticos, em fim, de acordo com a


teoria dos miasmas. ambiente altamente insalubre.

A saúde dos animais

A preocupação com a saúde na Blasiana não se restringia somente aos hu-


manos, pois era ensinado aos alunos curar animais. Havia na Colônia estábulos
onde presume-se que o gado bovino10 era recolhido à noite11. Muito provavelmen-
te essas instalações eram construídas de acordo com as orientações do manual de
Chernoviz, que, assaz preocupado com a saúde humana, também aborda a saúde
dos animais, pois sua presença junto aos humanos se constitui em fontes de miasmas
que afetarão também os humanos. Na segunda edição, a de 1851, a que dispomos,
não há verbetes específicos para animais ou estábulos, mas pode-se presumir que
as regras válidas para os humanos, valham também para os animais. Não se pode
afirmar, por falta das 3ª, 4ª e da 5ªedições quando os verbetes ‘animais’ e ‘estábulo’
foram incorporados ao dicionário
Como não se sabe qual edição do dicionário de Chernoviz, Mello Álvares
teve acesso, porém, com certeza, não foi na de 1890, pois o seu relatório é de 1889,
então pisa-se num terreno - sem trocadilho pantanoso - e com medo de afundar.
Mas na sexta edição, de 1890, Chenoviz mostra que na construção de um estábulo
deve-se evitar a formação dos miasmas, que trariam malefícios não só aos animais,
como também aos humanos. As principais recomendações de Chernoviz12. sobre os
estábulos são:

É necessário que haja muita limpeza nos estábulos, que estes sejam bem ven-
tilados, que as camas sejam renovadas com frequência, e que as estrumeiras se
façam um pouco mais distantes do estabulo. [...] Devem recolher-se em cada
curral poucas cabeças de gado, repartindo os grandes rebanhos por diferentes

10 Havia também “gado ovino, caprino, cavalino e suíno, e aves domésticas” (ALVARES, 1889,
p. 11). Todos eram para autoconsumo.
11 Naquela época em Goiás, o gado era criado solto nos campos e exigia pouco manejo. Eram
marcados a ferro para identificar o proprietário e apenas era-lhes fornecido eventualmente o
sal. Na época da venda era recolhido e encaminhado aos mercados. Estabulação é indicativo
de modernidade.
12 Chernoviz fazia suas recomendações para tratamento dos animais “segundo o Compêndio de
Veterinária do Sr. Macedo Pinto”
Histórias de Doenças 161

currais; e melhor será, se forem um pouco distantes uns dos outros. No que
respeita aos doentes, é ainda mais necessário ter só poucos animais em cada
estábulo. (CHERNOVIZ, 1890, p. 996)

Dos vários intelectuais e políticos que visitaram a Blasiana nos seus 15 anos
de existência, somente o frei Raymundo M. Madré registrou que o gado da Colônia
Blasiana era criado pelo “sistema de estabulação” (MONOGRAFIA, 1895, p 3) e não
há descrição deles nos relatório de 1889, nos relatos dos viajantes, nem na imprensa.
A criação em estábulos tornaria viável acompanhar partos, curar feridas e tratar
outras moléstias que acometiam esses animais.
Não foi possível apurar se o estábulo da Blasiana era construído de forma
científica, mas assim como Mello Álvares conhecia o manual de Chernoviz, que traz
recomendações sobre convivência com os animais, provavelmente Mello Álvares de-
veria possuir também algum manual de medicina veterinária, pois, segundo Sávio
Tolentino (1911, p. 4 -5) era dono da melhor biblioteca particular de Goiás e tam-
bém tinha acesso aos principais periódicos científicos da época, pois era sócio de
diversas instituições científicas. Pode ser que ensinasse aos seus alunos e aplicasse
em seus animais métodos científicos de cura.

O estado geral de salubridade da Blasiana

Dos cuidados com as construções, com a disposição das instalações destina-


das aos humanos e aos animais, com água, enfim, com a observância dos princípios
científicos, Mello Álvares informa que o estado de saúde dos colonos era bom. Que
entre 1881 e 1889 a única enfermidade grave por ele combatida foi “uma anemia he-
reditária, a qual tem sido tornado rebelde ao mais desvelado e metódico tratamento”
(ÁLVARES, 1889, p. 9). Chernoviz (1890, p. 162) diz que “muitas crianças nascem
anêmicas, ou por moléstias dos pais, ou por falta do seu próprio desenvolvimento”.13
Mello Álvares não desistia: havia de fazê-la sucumbir. A obstinação era uma das
características de Mello Álvares.
Em 1896, no ocaso da Blasiana uma pequena nota publicada na Gazeta de
Notícias, (p. 2) a de que teria sido enviado à Colônia Blasiana uma remessa de 100
doses ‘linfa vacínica’ contra a varíola. Essa informação suscita várias questões que as

13 Reparar que o termo hereditário em Chernoviz não corresponde à acepção que a palavra é
usada hoje, que está relacionada à genética.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
162 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

fontes não deram conta de resolver satisfatoriamente: houve uma epidemia de varí-
ola na Blasiana ou em Santa Luzia? Essa vacina veio por determinação do Governo
Federal ou foi uma solicitação diretor da escola, que tinha por hábito frequente soli-
citar verbas, equipamentos, livros e sementes do governo, seja na época imperial ou
republicana. A nota do jornal carioca sugere gravidade e abandono, comentava que
“Graças a Deus já fez alguma coisa” (ESTADO DO RIO, 1896, p. 2)..
Quanto à existência de casos de varíola em Goiás entre 1890 e 1895, a lite-
ratura consultada não permite constatar sua presença. Eliezer Cardoso (2006), que
estudou o medo em Goiás, não menciona a varíola em Santa Luzia nessa época.
Em 14 de marco de 1890, o Sr. C. G. S. Guimarães em artigo no jornal anun-
ciava que havia dois doentes de varíola em Porto dos Barreiros, atual povoado do
município de Araguari, próximo a Corumbaíba. Alertava sobre as formas de con-
tágio e se oferecia para vacinar graciosamente a população. Essa informação indi-
ca a proximidade da doença, pois Bomfim fazia divisa com Santa Luzia. Cumpria,
portanto, proteger-se. Mas, entre 1890 quando circulou a notícia e 1896, quando
chegaram as vacinas, havia um intervalo de seis anos. Sem dúvida, não há relação
direta entre a notícia e o fato, mas criou-se uma expectativa da chegada da epidemia
e de medo: o mal rondava, ou seja, a varíola apresenta-se como uma possibilidade.
Em 1896, no jornal Estado de Goiaz, uma nota comenta uma notícia publica-
da no jornal carioca O Paiz: ou- autor em tom de blague começa dizendo estar com
medo, pois o governador fez um pedido de 200 tubos de linfa vacínica para com-
bater a varíola que grassava em Goiás. O articulista questiona se realmente havia a
doença em Goiás. Foi feita uma checagem n’O Paiz e não encontramos tal notícia.
Imaginamos que estaria a se referir à matéria da Gazeta carioca, pode ser possível
que o articulista tenha se enganado, mas há um espaço de onze meses entre a notícia
da Gazeta e notícia do Estado de Goyaz. O fato de haver notícias sobre dois envios
de vacinas em curto período permite inferir que, embora pouco documentada, a
situação não devesse ser tranquila, inclusive porque havia tom um tanto dramático
na primeira notícia. Somente pesquisa nos arquivos do Hospital de Caridade de São
Sebastião, da Cidade de Santa Luzia, poderá dizer se houve uma epidemia de varíola
por lá no período mencionado. É muito provável que se houve essa epidemia e os
doentes deveria ser internados em locais específicos e isolados, todavia os médicos e
boticários deveriam ser os mesmos do hospital.
Histórias de Doenças 163

E quais eram os conhecimentos que Mello Álvares tinha de microbiologia?


Teria conhecimento da Escola Tropicalista Bahiana14? Das pesquisas de Finlay, em
Cuba, sobre o vetor de transmissão da febre amarela?
Nada nas fontes e na bibliografia consultada indica algum conhecimento nes-
sa área. Podemos supor que realmente Mello Álvarez solicitou vacinas ao Rio de
Janeiro, mas premido por algum caso da doença pelo medo de sua chegada, mas
devido aos possíveis conhecimentos de microbiologia, pois teria tomado também
cuidados higiênicos com relação às outras doenças infecciosas, tais como a tuber-
culose e a febre amarela. Também não há notícias sobre parasitoses em sua escola,
ou seja, não associava a presença de vermes no intestino às doenças, como a anemia
por exemplo.

Considerações finais

Realmente, as fontes indicam ser a colônia Blasiana se construída segundo


os princípios higienistas expressos no manual do Dr. Chernoviz. A disposição das
instalações, os cuidados higiênicos, apresentados no relatório de 1889 e nos relatos
dos viajantes coincidem com as recomendações do referido manual. Acreditamos
porém que esta não era a única fonte de conhecimentos de Joseph de Mello Álvares,
pois o uso de junco, por exemplo não consta do manual, bem como o cuidado com
as doenças dos animais devesse provir de algum manual de medicina veterinária.

14 A “Escola Tropicalista Baiana foi (...) um grupo de médicos que se organizou em torno
de um periódico fundado em 1866, a Gazeta Médica da Bahia (1866-1915), à margem da
Faculdade de Medicina existente na antiga capital do Brasil colônia” (BENCHIMOL, 2000,
p. 266). Os trabalhos desse grupo relacionavam certas doenças a vermes e micróbios. Os
tropicalistas permaneceram na fronteira entre o paradigma miasmático/ambientalista e a
teoria dos germes.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
164 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

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aspx?bib=720020&PagFis=244>. Acesso em: 28 jun.2014.
Doença repugnante entre os militares do
reino e ultramar (Portugal e Brasil – séculos
XVIII e XIX)
Mônica de Paula Age1

N os séculos XVIII e XIX os militares com frequência eram acomentidos pelas


doenças venéreas, principalmente sífilis. A promiscuidade e a prostituição fo-
ram os maiores responsáveis pela alta incidência dessa doença entre os militares do
reino e ultramar. Neste artigo apresento as concepções médicas acerca desse mal, al-
gumas medidas profiláticas e terapêuticas privilegiadas no trato dessa enfermidade.
Ainda é de interesse, expor as estratégias usadas pela medicina e pelas leis portugue-
sas referente ao controle do mal venéreo principalmente dentro dos Hospitais Reais
Militares do reino e da colônia brasileira.
A sífilis2 ou morbo gálico, mal venéreo, propagou-se em todas as camadas
sociais. Na Europa, a sífilis apareceu subitamente no século XV, na forma epidêmica,
ocupando um lugar de destaque na patologia europeia. À medida que a doença se
difundia pelas diversas nações, ia recebendo nomes diferentes. Os napolitanos a cha-
mavam de mal francês, morbo gallico, designação que teve maior popularidade. Em
Portugal, era corrente o nome de lues serpentina ou boubas (SOUSA, 1996. p. 60).
Eram diversas as teorias sobre a forma de transmissão da doença. Poderia ser
de um “indivíduo para outro pelo contato boca a boca, uso de recipiente comum,
relações sexuais, pelo ar corrupto”(BIDDISS; CARTWRIGHT, 2003. p. 60-62) ou

1 Doutora pelo programa de pós-graduação em História da Universidade Federal de Goiás.


2 A designação de sífilis foi dada pelo médico de Verona, Girolamo Fracastoro, no poema
de Syphilis, sive morbus gallicus, publicado pela primeira vez no original latino, em 1530.
Nesse poema, é descrita a moléstia dada como castigo por Apolo, deus do Sol, ao pastor Sífilo
(Syphilus), que blasfemara contra ele acusando-o de secar as fontes e matar a sede dos seus
rebanhos. Ver: SOUSA, A. Tavares. Curso de história da medicina: das origens aos fins do século
XVI. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. p. 267.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
168 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

por origem astrológica3. Durante o século XVIII, predominava a ideia de que o vírus
do contágio, um mal invisível, era o responsável pela propagação da doença. O vírus
acometia os nervos e as artérias, ocasionando lesões cutâneas, pústulas, dores na
uretra, etc (PITA; PEREIRA, 2006, p. 364).
O físico-mor, português, Duarte Madeira Arraes em seu Método de conhecer
e curar o morbo gálico, reeditado em 1715, lista alguns dos sinais da sífilis:

(…) pela qualidade gálica, e que nos servem de sinaes, que em várias partes do
corpo se mostrão, a saber, chagas virulentas, corrosivas, ampolas vermelhas,
comichão universal, tumores de verilhas (…) E posto que há outros muitos
que não se podem numerar, estes são os principaes, e mais ordinários affectos,
que se seguem a qualidade morbo gálica (1715, p. 172).

Devido às limitações da medicina da época, havia, por parte dos médicos,


uma grande indefinição em relação ao domínio da nosologia. Muitas vezes, o morbo
gálico foi confundido por muitos médicos com outros quadros patológicos, princi-
palmente com aqueles que apresentavam dermatose pruriginosa.
A importância de distinguir as diferentes patologias estava expressa no Plano
de Organização dos Hospitais Militares do Reino e Ultramar, de 1760, que estabelecia
a necessidade de (…) constatar de um modo certo a Naturesa e efeitos de cada espécie
da doença (BA, No4). A necessidade de classificar as enfermidades, conhecer seus
sintomas também era uma forma de controlar a propagação de diferentes afecções.
Identificar a natureza das doenças pelos seus sinais e sintomas, e aquelas mais
regulares entre os soldados eram temas frequentes na literatura médica do sécu-
lo XVIII. Baram Gehrard de Van-Switen, em sua Descripçaõ das Infermidades dos
Exercitos, traduzida pelo cirurgião português Antônio Martins Vidigal e editada em
Lisboa no ano de 1786, ressaltou que a:

vida Militar esta sujeita a grandes, e frequentes incomodos, que são insepara-
veis deste estado; e algumas vezes costumão ser taes, que comumente fazem
grandes estragos, sem perdoar aos corpos mais robustos; e assim não é de

3 O historiador francês Claude Quétel afirma que, pelos cânones do pensamento astrológico, a
sífilis era consequência direta da conjunção de Saturno e Júpiter, na casa de Marte, sob o signo
de Escorpião, ao qual estariam submetidos os órgãos sexuais. A explicação astrológica da
origem da sífilis era incontestavelmente a que tinha maior número de adeptos. Ver: QUÉTEL,
Claude. Le mal de Naples: histoire de la syphilis. Paris: Seghers, 1986. p. 42.
Histórias de Doenças 169

admirar, que se veja em um Exercito um grande número de enfermos (…)


Entre as enfermidades que reinão entre as Tropas estão (…) sarna, mal vené-
reo, desinteria, cólera morbo (…) É considerável ser distinguidas umas das
outras, pelos sinais certos, acrescentando ao mesmo tempo os sintomas, que
caracterizam as doenças (…) (1786, p. 13-171).

Van-Switen chamava atenção da falta de conhecimento, por parte de vários


médicos e cirurgiões, em diferençar as afecções. As enfermidades, se mal percebidas,
poderia agravar o estado doentio do acamado. Era fundamental distinguir as patolo-
gias a partir de seus sinais e sintomas para que o tratamento pudesse ser aproveitado
com maior eficácia na cura dos enfermos. O mal venéreo foi apontado pelo médico
como uma das doenças frequentes entre os militares.
O alto índice de militares sifílicos em Portugal gerou preocupações por parte
de médicos e das autoridades lusas. Era necessário curar o soldado enfermo para
que ele estivesse apto a desenvolver a sua atividade, visto que um militar doente
caracterizava prejuízo à coroa. Alguns físicos, cirurgiões e enfermeiros mores soli-
citaram alterações na assistência hospitalar a esses doentes. Já em 1711, Frei Manuel
da Soledade (pertencente da Irmandade de São João de Deus), enfermeiro mor dos
Reais Hospitais Militares de Portugal4, solicitou a sua Majestade D. João V (rei de
Portugal de 1706-1750) que fosse erguido um hospital militar com o objetivo de
atender somente os militares portadores de doenças venéreas. Afirmava que,

Alguns militares, acamados nos Reais Hospitais Militares, têm pústulas na


cara e em todo o corpo, as quais começam geralmente fora e dentro do prepú-
cio ou na glande, acompanhadas de prurido.(…) As manifestação gálicas são
tão repugnantes, tão abomináveis que os infelizes são abandonados por todos
os seus companheiros de armas(…) deixam o ar dos hospitais alterados (…)
propagando as doenças aos enfermos que apresentam outras moléstias(…) é

4 A assistência hospitalar dos militares em Portugal, durante o século XVIII e início do século
XIX, assentou-se na parceria entre o Rei D. João IV (1640-1656) e os Irmãos Hospitaleiros de
São João de Deus. Mesmo após à existência dos Reais Hospitais Militares, Portugal também
tratava seus doentes militares nos espaços religiosos, nas casas de particulares, no Hospital
Real de Todos os Santos, e, preferencialmente, nos hospitais das Santas Casas de Misericórdias.
Ver: AGE, Mônica. Hospital Real Militar: saúde e enfermidade em Villa Boa de Goyaz (1746-
1827). Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História; Universidade
Federal de Goiás (UFG), Goiânia, Goiás, 2014.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
170 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

favorável que se erga um hospital na (.inlegível) para tratar unicamente dos


soldados infectados com as repugnantes boubas(…) e com todos os cuidados
e asseios para que os cirurgiões não sejam vitimas desse mal (BA, Maço 34)

Observa-se, no discurso de Frei Manuel da Soledade, a preocupação de


preservar os demais militares acamados que apresentavam outras enfermidades.
Construir um hospital militar para tratar os doentes gálicos significava dificultar a
disseminação do mal venéreo, pois, era necessário isolar esses doentes já que uma
das formas de contágio ocorria através do ar contaminado. Nota-se, ainda, que o
Frei descreve as características do estágio avançado da doença, o que ocasionava
a exclusão dos sifílicos. Fazia parte da concepção da época descrever a sífilis como
uma doença maligna, contagiosa, vergonhosa, repugnante, doença da luxúria (REIS,
2005. p. 174).
Vale ressaltar que era comum em alguns hospitais portugueses, a existência
de enfermaria que acomodasse somente doentes com males venéreos para que os
demais acamados não contraíssem a doença. No Hospital de Todos os Santos, em
Lisboa, havia uma dependência para o tratamento desses doentes: a casa das bou-
bas (SOUSA, 1996, p.265). Esta instituição também recebia os militares acometidos
desta afecção.
Os Regulamentos para os Hospitais Militares portugueses de 1765, 1805 e
1813 estabeleciam a separação dos internos por classificação das doenças. O regula-
mento de 1805 propõe que:

As Enfermarias seraõ separadas, a fim de se evitar, que os Doentes de moles-


tias Cirurgicas, Venéreas, Cutaneas &c. se contagiem (…)
Nas Enfermarias de febres e de venéreas haverá, entre huma, e outra cama, a
distancia de quatro pés; nas outras podera ser menor, conforme o numero dos
Doentes, e a capacidade do Hospital.(AHM, Caixa 5).

O Regulamento de 1813, além da separação dos internos por classificação


das doenças, recomendava a marcação das roupas, pertencentes ao hospital, por
letras que identificassem as diferentes doenças com a finalidade de evitar a propa-
gação das afecções:

A roupa que servir em certas Enfermarias não servirá em outras de diferentes


moléstias; e para que possa haver todo o cuidado a este respeito será toda
marcada com as seguintes iniciais = FCSV= F para as febris; C para as ci-
Histórias de Doenças 171

rúrgicas; S para as Sarnas e V para as venéreas e com a mesma distinção se


mandará lavar separadamente. (AHM, Caixa 5).

Esses regulamentos estavam atrelados aos conhecimentos médicos da época.


Em alguns tratados de medicina publicados em Portugal durante o século XVIII,
observa-se tal recomendação de separar os acamados pela classificação das doenças,
principalmente em casos de enfermidades venéreas. O médico, português, Ribeiro
Sanches (1765. p. 152-153), em sua obra Dissertation sur laorigine de la maladie vé-
nérienne, escrita a partir de observações sobre os internos portadores de doenças ve-
néreas em hospitais militares ou de doentes particulares, defendia que uma das for-
mas de contágio resultava do contato próximo no leito dos hospitais. Explicava que
os suores, tal como a propagação do vírus venéreo5, eram veículos de propagação
das doenças, devendo, por isso, não haver proximidade, no leito, entre os indivíduos.
Teoricamente, para a legislação portuguesa, o bem-estar físico dos militares
era primordial uma vez que o seu estado doentio representava dano à coroa. Por
esse motivo, tornava-se necessário, entre outras medidas, impor regras de controle
aos militares.
O Marechal-General do Exército Português Conde de Lippe (1724-1777), ao
elaborar o Regulamento para o Exercício e Disciplina dos Regimentos de Infantaria
dos Exercitos, 1763, em seu capítulo XVII, Da Escolha dos Cirurgiões, e do Cuidado
que Deve Haver dos Soldados Enfermos, exige que:

(…)nenhum Regimento mandara soldado doente ao hospital militar, sem


primeiro se apresentar a hum físico ou a hum cirurgião do Exercito, para que
(…)esteja seguro de que nas tropas não há nem hum só doente gallico (…)
a primeira vez o soldado com esta mazela sera assistido nos Hospitais e na
segunda depois de curado no hospital será expulso do regimento (…) deve
exercer nestes soldados huma tal vigilancia que constate(…)as vezes da do-
ença. Não podendo prejudicar outros enfermos ou que a (ilegível) Real seja
delapidada pela doença da luxuria (AHM, Caixa 21).

5 Em 1905, Schaudinn & Hoffmann descobriram o agente etiológico da sífilis Treponema


Pallidum. A partir daí, verificou-se que essa doença é provocada por bactéria e não por
vírus. Ver: PASSOS, Mauro Romero. Dessetologia – DST5. Rio de Janeiro. Editora: Cultura
Médica, 2006.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
172 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Para Conde de Lippe, a saúde militar era um fator preponderante na organi-


zação do Exército português. Entretanto, era necessário reduzir as despesas do erá-
rio como também punir e controlar seus soldados acerca de suas condutas morais,
pois era de conhecimento, desde o século XV, que a transmissão da doença ocorre
também pelo contato sexual. Essa normatização expressa ainda uma das estratégias
encontrada pelas autoridades portuguesas no controle das afecções venéreas. Para
tanto, era preciso observar os enfermos em quantidade e frequência.
O Cirurgião mor Manuel José Leitão, em sua obra Cirurgia Militar ou Tratado
Cirúrgico das Enfermidades do Exercitto (1794), ressalta que:

De todas as molestias que acomentem os soldados, as mais frequentes saõ as


venéreas gallicas. Os soldados engolfados pela libertinagem, que lhes propor-
cionam as mulheres prostitutas que habitam geralmente nas praças militares,
ficam com a saude estragada e fazem nos hospitais uma consideravel despesa
a Fazenda Real (1794, p. 201).

Se, por um lado, as observações de Manuel Jose Leitão mostram que a enfer-
midade dos soldados não só afetava a estrutura militar como também representava
prejuízos à coroa, por outro, é necessário observar que, no discurso de Leitão, su-
bentende-se que o tema assumia outros desdobramentos. Segundo o cirurgião mor,
as mulheres prostitutas eram o principal veículo transmissor da sífilis e a discussão
do problema da doença deveria, portanto, ser pensada em relação ao controle da
prostituição. A partir daí, tornou-se relevante a intervenção do saber médico e das
leis portuguesas nesse controle, uma vez que, em Portugal, segundo Germano de
Sousa (2013. p. 239) “ainda não haviam sido tomadas medidas tão rígidas como em
outros países da Europa em relação a essas mulheres”.
Em conformidade com essas ideias, Francisco de Melo Franco, em sua
Medicina Teológica (1794), recomendava aos confessores que instruíssem os peni-
tentes, aconselhando-os que:

de nenhum modo passem por certas ruas infames, nem vão as casas das me-
retrizes, e do jogo, ás tabernas e outros lugares onde fysicamente se respira
hum ar pestilente ou inficcionado com exalações, que se levantaõ dos córpos
minados de doenças, taes como o gallico, sempre existente nas mulheres las-
civas (1794, p.131-132).
Histórias de Doenças 173

No discurso da época, acreditava-se, ainda, que o corpo se tornava mais sen-


sível ao ar alterado proveniente das meretrizes que tivessem a doença. Segundo Melo
Franco, a compreensão sobre as doenças venéreas revela a influência que a religião
tinha sobre o comportamento das pessoas e da patologia, principalmente no senti-
do de atenuar a sua propagação. Durante o século XVIII, além do olhar médico, o
discurso religioso intervia nas doenças e em suas terapêuticas, pois não havia fron-
teiras rígidas entre os dois setores (RIBEIRO, 2003. p.43). Assim, o discurso médico
associava-se ao religioso no controle social.
No Brasil colonial, as doenças venéreas tiveram igualmente um avanço rápi-
do. Com frequência, africanos e europeus contaminados com essas enfermidades
desembarcavam em portos das capitanias, disseminando-as entre os habitantes, sen-
do a sífilis a mais recorrente (MIRANDA, 2011. p. 403).
O militar português, governador de Pernambuco, Félix José Machado de
Mendonça Eça Castro e Vasconcelos, em carta datada de 28 de março de 1711 co-
munica ao rei D. João V (1706-1750) que:

(…) homens chegam do reino doentes para compor os regimentos das tropas
em Pernambuco, sendo que um número considerável apresentam doenças gá-
licas e os ditos regimentos cada vez mais exibem número inferior ao permiti-
do de soldados, por muitos soldados das tropas se apresentarem quase sempre
com mal venéreo e outras mazelas (APEB, Maço 35).

Essa enfermidade, comum no cotidiano dos militares, constituiu um proble-


ma que sempre afligiu as autoridades coloniais. O mal venéreo era um dos maiores
inimigos dos regimentos durante o período colonial e imperial brasileiro (ARAÚJO,
1997, p. 281).
Em 1806, foi redigido um ofício ao conde de Resende pelo inspetor do
Hospital Militar da Capitania do Rio de Janeiro, físico Antonio da Rocha Barbosa,
contendo a relação de enfermos militares portadores de gálico e, ainda pede provi-
dência para que a Santa Casa de Misericórdia não devolva os soldados luéticos para
a enfermaria do hospital militar:

(…) consta que no mez de agosto, setembro e outubro do ano de 1806 neste
Hospital Militar foram 25 os numeros de soldados internados com doença
gálica.(…) sendo sete mortos pelo mal venéreo (…) Como não (inlegível)
enfermarias sufficientes neste dito hospital, pesso providencia para que a Casa
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
174 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Pia Misericórdia não devolva os militares de mal gallico para os nossos hospi-
tais militares.(…). 3 de setembro de 1806 (AHEx, Maço 43).

Pode-se inferir que além da falta de enfermarias, o temor a propagação des-


se evento estava em pauta entre os profissionais da saúde, o que explica a rejeição
de acolher doentes sifílicos. Também, é provavel a inexistência de enfermaria que
acomodasse somente doentes com males venéreos no dito Hospital da Santa Casa.
Observa-se, o número elevado de óbitos bem como de doentes militares acometidos
pela sífilis, diminuindo o contigente militar e aumentando as despesas ao erário.
O ofício supracitado revela que havia um descontrole sobre o trato de prevenir a
doença.
Num artigo publicado no periódico Archivo Médico Brasileiro, em 1848, seu
autor atestava que na Bahia eram tantos os sifílicos militares que não havia homens
saudáveis para a manutenção da ordem e nem médicos para curá-los. Parecia mais
tratar-se de um exército sifílico. (BN, Maço 56.)
Essa doença foi também comum entre os habitantes da capitania/província
de Goiás. Para Mary KARASCH (1999. p. 21), a desinformação sobre a forma de
contágio, a promiscuidade, o concubinato e a prostituição na região foram fatores
facilitadores para a alta incidência da doença no período. E os soldados não ficavam
isentos desse evento.
Por meio das fontes relacionadas ao HRMGo, entre os anos de 1750 e 1824,
pode-se constatar que houve um elevado índice percentual de doenças venéreas em
relação às demais.
Histórias de Doenças 175

(MB, Caixas 34,12,34,56,67).

Entre as doenças venéreas, cita-se: gálico, sarna gálica, cancro venéreo, ble-
norragia, bouba, cavalo e boubão. Verifica-se 285 casos de doenças venéreas, per-
fazendo 50% das enfermidades entre os anos de 1750 e 1824. A bouba ou sífilis
era denominada de pustulas gálicas (SILVA, 1789. p.305), sendo caracterizada por
Raphael Bluteau (1712, p. 170) como um “Mal torpe & açoute da luxuria. Chamase
assim por começar de ordinario por tumor de virilha, bubo”6. Luis Gomes Ferreira
descreve a bouba como uma causa gálica (FURTADO, 2002. p. 741). A doença cava-
lo trata-se de chagas gálicas: “Referem-se as chagas do membro viril ou genital, a que
vulgarmente chamam cavalo”. A blenorragia ou gonorreia foi caracterizada como
um “mal venéreo em que nos homens há uma evacuação de matéria de cor declinando
para amarela, e algumas vezes obscura” (Van-Switen 1786, p. 171-173).
Eram várias as medidas profiláticas e terapêuticas no tratamento e no com-
bate às doenças venéreas. Nos séculos XVIII e XIX, em terras lusas os médicos con-
servaram práticas antigas e vivenciaram novos experimentos, os quais marcaram o
início de lentas alterações na forma de pensar e combater as doenças.

6 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: áulico, anatômico, architectonico.


Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728. p. 170. Verbete: bouba.
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176 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Em Portugal e em seus domínios, uma prática muito usada no tratamento


das doenças venéreas era a sangria ou flebotomia. Ao mesmo tempo terapêutica e
profilática, baseava-se nos ensinamentos hipocráticos, permaneceu por todo o sé-
culo XVIII e XIX. Essa prática atravessou os séculos (STARLING, 2010, p. 105).
Consistia em incisão cirúrgica correta de certas veias pulsantes e consequente efusão
do sangue, que continha em si a mescla dos quatro humores. A sangria era adotada
com duas finalidades principais: a manutenção da saúde (enquanto profilaxia) e a
curativa. Atuava pela eliminação ou evacuação dos resíduos da matéria patologica-
mente alterada a fim de corrigir os excessos do sangue, o humor principal (phletora)
ou a sua corrupção (cacoquimia), enfim, as alterações humorais que provocavam as
enfermidades (SANTOS, 2012, p. 10).
Recomendada por médicos e praticada principalmente por cirurgiões bar-
beiros, a flebotomia empregava uma técnica minuciosa. Simão Pinheiro Morão, em
seu livro Tratado Único das Bexigas e Sarampos, distinguiu, no corpo, quarenta e
duas veias próprias para a sangria: dezoito na cabeça, doze nos membros superiores
e doze nos membros inferiores. Para alguns médicos, a sangria era mais eficiente
quando realizada nos braços, pois, por serem maiores que as veias dos pés, as veias
dos braços descarregavam mais rapidamente os humores malignos, responsáveis
pelo aparecimento das doenças (ANDRADE, 1953. p. 95).
Outro adepto da flebotomia foi o cirurgião Luís Gomes Ferreira, residente na
capitania de Minas Gerais em 1710. Defendia a sangria como uma terapêutica eficaz
e recomendava o uso moderado dessa prática para os doentes venéreos. Além de ser
considerada um tratamento para todas as enfermidades, a sangria possuía caráter
preventivo (FURTADO, 2002. p. 26).
Os remédios de segredo também compuseram a terapêutica dedicada ao tra-
tamento dos doentes sifílicos. Em Portugal, entre esses remédios, o exemplo mais no-
tável é a Água de Inglaterra, que tinha como princípio ativo o quinino e era principal-
mente utilizada para o tratamento de paludismo, de diferentes febres e da sífilis (DIAS,
2012. p. 11). Na colônia brasileira, dentre os remédios de segredo, o mais afamado e
popular foi a Triaga (Teriaga) Brasílica. Inventada pelos religiosos da Companhia de
Jesus e fabricada na Bahia, era recomendada para sanar um amplo leque de enfermi-
dades, entre as quais todos os tipos de males venéreos. Diferia das triagas europeias
por ser composta de raízes, ervas e frutos naturais da flora brasileira. Além das plantas,
as substâncias químicas poderiam integrar a composição da triaga, o que a tornava
mais eficaz para os seus idealizadores (MARQUES, 1999. p. 244).
Histórias de Doenças 177

Produzidos, vendidos e receitados, os remédios de segredo ultrapassaram o


século XVIII, recomendados com o mesmo propósito, qual seja, curar todas as en-
fermidades. Durante esse século, muitos desses remédios eram descritos na colônia
em tratados médicos e cirúrgicos. O cirurgião Luis Gomes Ferreira, indicou as vir-
tudes medicinais de seu remédio de segredo, recomendando-o para a cura de várias
enfermidades, como gálico, supressões de urina, defluxos asmáticos, escorbuto etc.
(FURTADO, 2002. p. 325-327).
A presença da quina nos remédios de segredo favorecia sua ampla aceitação.
De origem vegetal, a quina, conhecida também por casca peruviana e chinchina, foi
uma das plantas medicinais que despertou amplo interesse entre os médicos sete-
centistas. A quina se popularizou em Portugal e em suas colônias no século XVIII.
Além de sua ação febrífuga, era usada por suas virtudes tônicas, purgativas, antis-
sépticas e cicatrizantes. Em 1811, a Secretaria do Estado dos Negocios da Guerra e
da Marinha solicitou aos cirurgiões do exercito português e do ultramar “que se fi-
zesse uso dela, principalmente nos Hospitaes Militares” (AHM. Caixa. 64). Vale res-
saltar que desde 1780, o Hospital Real Militar da Bahia tratava seus doentes gálicos
com a quina branca, um tipo da árvore encontrada na localidade (APEB, Caixa45).
No Hospital Real Militar de Goiás cirurgiões e físicos também fizeram uso da quina
para tratar os males venéreos (AGE, 2014, p.195).
Os remédios de segredo propagavam-se junto com os saberes sobre os mes-
mos por todo o domínio português. Circulavam de um lugar para outro em um mo-
vimento de “importação de conhecimentos” (BURKE, 2003, p. 60), o qual facilitava
a ampliação de seus usos.
Em 1803, o cirurgião mor Bartholomeu Lourenço da Silva solicitou a compra
de sete garrafas de Água de Inglaterra para a botica do HRMGo:

Remedio pedido pelo cirurgiao Bartolomeu Lço Svapa comprar sete garrafas de
agua de Inglaterra por que falta na botica do dito hospital pa tratar os doentes.
Comprar o dito remedio na casa do fasedor de aguas medi (?) joao Anto Cta.
Villa boas 25 de setbro do ano 1803. Se comprou a dita agua.
Remeter p escrivão da Junta da Real fazenda Anto Tavares.
Soldado Pede Domingos Almeida (FECG, Pacote 23).

Os médicos também adquiriam os remédios de segredo fabricados por aque-


les em quem podiam confiar. Era provável que Joao AntoCta produzisse, além da
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
178 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Água de Inglaterra, outras águas medicinais que eram certificadas pelos agentes de
saúde e reconhecidas por órgãos oficiais, no caso a Junta da Real Fazenda.
A Água da Rainha da Hungria também se encontrava na terapêutica dos do-
entes sifílicos do Hospital Real Militar de Goiás. No receituário médico de 1812, as-
sinado pelo enfermeiro Antonio Francisco Pimentel, consta a compra desse remédio
de segredo:

Remédios que mandou comprar o Cirurgião-mor por naõ haver na botica pa


a cura deste doente e os comprou os restantes
2 vidrinhos de agua de rainha da Hungria.
1 vidro de licor estomacal (?)
1 garrafa de vinho e 1 caxeta de (?)
Dragm Joaquim (?). (?) de 1812 (MB, Caixa 29).

A Água de Rainha da Hungria, a exemplo dos medicamentos de segredo, já


possuía a mesma aceitação que os demais antes do século XVIII. Era recomendada
para várias afecções, entre as quais os males venéreos.
Durante o século XVIII, os seguidores de Paracelso defendiam o uso do mer-
cúrio para o tratamento de diferentes enfermidades. Parte da literatura médica uti-
lizada em Portugal e seus dominios ressaltava a importância do uso do mercúrio na
cura das doenças venéreas. Van-Switen (1786, p. 151), recomendava que deveria ser
dado ao “enfermo pela manha, e a noite huma colher do remédio-Mercurio subli-
mado corrosivo com espirito de trigo”. Muitos médicos e cirurgiões não concorda-
vam com o uso desse remédio químico no tratamento das enfermidades venéreas.
Jacob de Castro Sarmmento era um dos médicos portugueses que rejeitou o mer-
cúrio na composição da terapêutica para essa enfermidade devido à incerteza de tal
substância no tratamento dessa doença (1758, p. 24-25). Nos Hospitais militares da
colônia o mercúrio fazia parte da terapêutica voltada para o tratamento da sífilis, a
exemplo o hospital de Goiás.
Outra forma de conservação e restabelecimento da saúde era a dietética. Ao
longo da história, os tratados médicos preconizaram a dietética para evitar e curar
as enfermidades.
Os tratados médicos em voga no século XVIII e XIX enfatizavam que o pão,
a galinha, o leite, a carne, o arroz e a cevada eram considerados alimentos que for-
neciam aos doentes os nutrientes necessários. Por exemplo, o pão era considerado o
melhor alimento. No problema de indigestão, o médico português Manoel Joaquim
Histórias de Doenças 179

Henriques de Paiva (1786. p. 269) recomendava “pão, couve, nabos”. Para Paiva, não
havia restrição do uso desses alimentos para os doentes gálicos. Entretanto, na con-
cepção desse médico, deveria ser evitado o uso das carnes por ocasionar inflamação.
Em contrapartida, recomendava o leite.
O médico Van-Switen (1786, p. 33) sugeria que a dieta alimentar para os do-
entes venéreos deveria ser composta de alimentos tênues, como caldos, maçãs, pão,
cevada, carne magra, aveia, arroz, ervas, laticínios e frutas.
Em terras luso-brasileiras, entre as aves, a galinha era a mais recomendada
para o restabelecimento das doenças. De acordo com o médico lusitano Francisco
da Fonseca Henriques (1731. p. 150) a galinha “he bom alimento para os doen-
tes, digere-se, e distribue-se, nutre bastante e tem muytas virtudes medicinaes”. Nas
Minas Gerais setecentistas, a galinha também era recomendada aos doentes subme-
tidos às sangrias ou após serem purgados, com a finalidade de lhes restaurar a saúde
(STARLING, 2010. p. 92).
Na segunda metade do século XVIII, ficou proibido, nos Hospitais Reais
Militares do reino português, por ordem médica, o uso da galinha na dieta dos en-
fermos febricitantes e venéros quando acometidos de febre, uma vez que, na subs-
tância das galinhas, encontrava-se o fomento da mesma febre, além de ser consi-
derado um alimento indigesto. Em 1775, atendendo a sugestão de alguns físicos e
cirurgiões, Marquês de Pombal ordenou que o uso da galinha fosse restabelecido na
dieta dos enfermos febricitantes nos Hospitais Reais Militares de Portugal e de seus
domínios, pois considerava uma preocupação quimérica e inconsistente daqueles
que proibiam o uso desse alimento. O ofício foi enviado para a Junta da Real Fazenda
da capitania de Goiás para que a norma fosse seguida no hospital militar. Por meio
de fontes documentais, pode-se afirmar que no hospital militar da capitania, essa
ordem advinda do reino não alterou a alimentação dos enfermos que apresentavam
essas enfermidades, pois a galinha continuou a fazer parte da dieta desses acamados.
(MB, Caixa 12).
Diante do exposto, pode-se afirmar que as estratégias profiláticas e terapêuti-
cas usadas no tratamento de militares sifílicos, no ambiente hospitalar ou fora dele,
foram preconizadas e legitimadas na sociedade luso-brasileira por todo o século
XVIII e além dele. Além disso, em terras lusas a medicina se mantinha em constante
diálogo em relação aos conhecimentos produzidos sobre a medicina e que circula-
vam na Europa das Luzes. Portanto, as diferentes concepções sobre a sífilis, durante
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
180 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

os séculos XVIII e XIX, serviu de base para a renovação contínua do olhar médico
sobre essa enfermidade.

Abreviaturas

BA- Biblioteca da Ajuda/Pt.


AHM- Arquivo Histórico Militar/Pt.
APEB – Arquivo Público do Estado da Bahia
AHEx – Arquivo Histórico do Exército/R.J., Maço 43
BN- Biblioteca Nacional/R.J.
MB – Museu das Bandeiras/Cidade de Goiás.
FECG- Fundação Educacional da Cidade de Goiás

Referências

Manuscritos

Plano d’Organização dos Hospitais Militares do Reino e ultramar, de 1760. BA.Cota:


Ms. Av. 54-XIII-46 n. 4:
Correspondências ao Rei de Portugal D. João V. BA. Maço. 34-XIV-10
Governadores do Estado do Brasil. APEB. Governadores do Estado do Brasil. Maço 35
Ofícios referentes ao Hospital Real Militar da Capitania do Rio de Janeiro, 1800-
1805. AHEx. Maço 43.
Relação de medicamentos existentes na botica do HRMGo. Ano: 1752-1759/1780-
1789/1820-1822; Livro de Receituário médico – Ano: 1792-1804. MB, Caixas
34,12,34,56,67. Doc. Avulsos.
Ofícios da Secretaria do Estado dos Negocios da Guerra e da Marinha 1800-1815.
AHM. Caixa. 64.
Documentos relativos ao Hospital Real Militar da Bahia. Período colonial. APEB,
Caixa45.
Pedidos de compras para o Hospital Real Militar de Villa Boaz de Goyaz, 1799-1800.
FECG: Doc. Avulsos, Pac. 23.
Pedidos de compras para o Hospital Militar de Goyaz. MB: Cx. 29. Doc. Avulsos,
Pac. 13.
Ofícios diversos 1750-1800. MB: Docs. Avulsos, Caixa 12).

Impressos
Histórias de Doenças 181

Regulamento para os Hospitais Militares de 1765, 1805, 1813. AHM. Sec., Cx. 5, n. 39.
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O bom governo dos espaços e a assistência
aos enfermos na fronteira oeste da América
Portuguesa (1727-1808)1
Nauk Maria de Jesus2

A colonização da fronteira oeste da América portuguesa teve início nas primeiras


décadas do século XVIII com as descobertas das minas de ouro no Cuiabá.
Até 1748, ano em que foi criada a capitania de Mato Grosso, a Vila Real do Senhor
Bom Jesus do Cuiabá (1727) foi o principal núcleo urbano da região e pertencia à
jurisdição da capitania de São Paulo.
Com a fundação da Vila Bela da Santíssima Trindade em 1752 para ser capi-
tal, a capitania de Mato Grosso passou a contar com duas vilas: Vila Real do Senhor
Bom Jesus do Cuiabá, localizada no distrito do Cuiabá (entre a margem oriental do
Paraguai e o Araguaia) e Vila Bela da Santíssima Trindade, localizada no distrito do
Mato Grosso (entre a margem ocidental do rio Paraguai e o rio Guaporé). Embora
possuísse um extenso território (que hoje abrange os atuais estados de Mato Grosso,
Mato Grosso do Sul e Rondônia), a capitania teve uma população pequena, que até
o fim do século XVIII não atingiu trinta mil habitantes.
O estabelecimento da vila-capital nas raias da fronteira estava relacionado
à defesa e efetivação das conquistas obtidas pela Coroa Portuguesa. Era importan-
te deter o avanço espanhol das missões jesuíticas, na tentativa de se estabelecer na

1 As informações e análises apresentadas neste capítulo têm como base a dissertação de mes-
trado “Saúde e doença: práticas de cura no centro da América do Sul” defendida em 2001 na
Universidade Federal de Mato Grosso, com bolsa CAPES, e a comunicação “As câmaras mu-
nicipais e a saúde e higiene nas vilas Real e Bela (1727-1808) apresentada no XVII Encontro
Regional de História da ANPUH/SP e publicada em 2004. Optamos por manter as argu-
mentações desenvolvidas à época da defesa e por incluir algumas referências bibliográficas
referentes às câmaras e a medicina setecentista.
2 Professora Associada Universidade Federal da Grande Dourados.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
186 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

margem direita do rio Guaporé. Embora não fosse a principal área de conflito entre
os interesses luso-hispânicos, a capitania de Mato Grosso era importante porque
garantia a defesa do interior da América portuguesa, principalmente a região das
Minas Gerais.
Capitania situada no centro do continente, constituída por três ecossistemas
(floresta ao norte, cerrado e pantanal ao sul), habitada por grande diversidade de
sociedades indígenas, teve a mineração como atividade produtiva decisiva. Ela foi
ainda marcada pelo ser fronteira, limite dos domínios ibéricos na América austral.
Em seu interior, entre as instituições responsáveis pela sua administração es-
tavam as câmaras municipais de Vila Real do Cuiabá e de Vila Bela da Santíssima
Trindade. A primeira teve sua câmara criada em 1727, quando o arraial foi elevado
à condição de vila, e a segunda em 1752. (JESUS, 2011, p. 32 e 33)
As câmaras eram constituídas pelos vereadores, procuradores e juízes ordiná-
rios que tinham direito ao voto nas sessões de vereança. Além deles, outros oficiais
eram indicados pela vereação, como os almotacéis (responsáveis pela regularidade
do abastecimento dos gêneros, fiscalização de pesos e medi­das, vigilância dos preços
e da higiene pública), escrivães (remunerados e providos pela Coroa, podendo sua
nomeação ser vitalícia e hereditária), juízes de órfãos (cuidavam dos interesses das
viúvas e órfãos), alferes, por­teiro (às vezes trabalhava como arquivista) e carcereiro –
oficiais subordi­nados à municipalidade sem direito a voto e cujo número variava de
cidade para cidade. Em alguns lugares, as câmaras possuíam também represen­tantes
dos ofícios mecânicos e mercantis (ourives, carpinteiros, alfaiates etc.) (BOXER,
2001, p. 268).
Essas instituições ainda tinham o privilégio de se corresponderem direta­
mente com o rei, por meio das petições, que demonstram a capacidade de comuni­
cação dos poderes locais com o centro e a eficácia, a força simbólica da figura do
rei enquanto pai, sempre pronto a ouvir as aflições dos filhos. As câmaras enviaram
inúmeras petições ao monarca, o que, de certo modo, contraria a ideia de que rara-
mente as queixas e pedidos chegavam ao conhecimento do rei. Apesar da demora
na entrega da correspondência entre colônia e metrópole, muitas das petições obti-
nham respostas (BICA­LHO, 1999, p. 481).
Dentre as atribuições das câmaras estavam à limpeza das vias públicas, o con-
trole dos preços dos medicamentos, a contratação e pagamento dos salários de ofi-
ciais de cura. A partir dessas ações das municipalidades, discutiremos, como mesmo
diante das dificuldades, as autoridades locais agiram em relação à saúde e a doença
Histórias de Doenças 187

nas vilas da fronteira oeste entre os anos de 1727 e 1808. Para desenvolvimento do
texto privilegiamos dois aspectos: a preocupação com o ambiente urbano e a assis-
tência aos moradores manifestada na contratação e fiscalização de oficiais de cura.
Essas ações foram destacadas por Lycurgo Santos Filho (SANTOS FILHO,
1991), que as considerou como parte de uma preocupação pública com a saúde dos
colonos. Por outro lado, para ele, o cruzamento de saberes europeus, indígenas e
africanos foi um aspecto negativo na medicina praticada no período colonial.
Essa perspectiva foi defendida principalmente por médicos, que estudaram
a história da medicina e se preocuparam em buscar dados sobre o bom comporta-
mento dos oficiais de cura na sociedade e com o desenvolvimento dessa arte per-
cebida a partir de uma análise evolucionista e linear. 3 Esse tipo de análise reduz o
universo cultural das práticas de cura e das concepções de doenças existentes em
uma sociedade multifacetada.
Na década de 1970, em obra organizada por Roberto Machado (MACHADO,
1978, p.56), os autores analisaram a medicina no Brasil colonial, tendo como refe-
rência as obras de Michel Foucault. A análise se voltou para o papel dos médicos,
com o intuito de traçar linhas de continuidades e rupturas entre a medicina colonial
e aquela praticada no século XIX. Para eles, no século XVIII a medicina era mera co-
adjuvante do Estado, embora existisse uma preocupação pública com a saúde, mas
somente na perspectiva de combater o mal, sem fazer dela um objetivo fundamental
da especialidade médica, reflexão que somente ocorrera no oitocentos.
Para comprovarem a sua tese, os autores analisaram a atuação da Fisicatura-
Mor e da Junta do Protomedicato (instituições responsáveis pelo exercício da arte
médica durante o período colonial), das câmaras municipais e dos hospitais, pode-
res responsáveis pela saúde do bem comum que, na época, não teria sido objeto de
intervenção do saber médico (MACHADO, 1978, p. 25). 4

3 Embora não enfoquem a América portuguesa, George Rosen e Jaques Le Goff contrapõem-se
às análises evolucionistas e lineares. Eles optam pela noção de que os problemas de saúde e os
modos de enfrentá-los em cada sociedade são decorrentes de condições políticas, econômi-
cas, sociais e mentais. George Rosen. Uma história da saúde pública. São Paulo, 1994, p. 20.
Jacques Le Goff. (org.). As doenças têm história. Lisboa, 1985, p.8.
4 Adotando a tese defendida pelos autores citados, Jurandir Freire Costa concorda que no pe-
ríodo colonial a medicina esteve atrelada ao Estado, sendo as questões de higiene uma preo-
cupação que não pertencia à órbita médica. Além dessa tutela jurídica a que foi submetida, o
comportamento anti-higiênico da população também atrapalhou a saúde pública. Somente a
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188 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Em fins do século XX, pelo menos três trabalhos abordaram as artes de curar
no período colonial. Márcia Moisés Ribeiro (RIBEIRO, 1997) retomou o estudo da
arte médica e adotou uma perspectiva diferente das apresentadas por Santos Filho e
Roberto Machado. Ao acatar a noção de circularidade cultural, proposta por Carlo
Ginzburg, ela defendeu a interação entre os saberes oficiais e populares, analisou a
diversidade de práticas e procurou compreendê-las fora do campo do desenvolvi-
mento científico. Segundo ela, no Brasil surgiu uma medicina peculiar, devido aos
seguintes fatores:

A precariedade da vida material, marcada pela raridade de médicos, cirurgi-


ões e produtos farmacêuticos, e o sincretismo dos povos, responsável pela for-
mação de uma medicina multifacetada e afeita ao universo da magia. Por toda
a Colônia eram raros os legítimos profissionais da medicina, isto é, médicos
e cirurgiões com formação universitária. Tal fato, por sua vez, deixou amplo
espaço para a atuação de homens e mulheres que detinham os segredos das
curas (RIBEIRO, 1997, p. 16).

De acordo com a autora, apesar de não podermos falar ainda em uma me-
dicina estatal, existiu nesse período uma preocupação com a saúde dos povos. Isto
porque era necessário conservar ao máximo o corpo sadio, enquanto força para as-
segurar as terras conquistadas. (Ribeiro, 1997, p. 112).
Por sua vez, Vera Regina Beltrão Marques ao estudar as boticas e boticários,
defendeu que:

… o florescimento das demais artes de cura esteve intrinsecamente ligado às


diferentes raízes culturais das populações aqui residentes. Não foi o reduzido
número de médicos metropolitanos que estimulou ou proporcionou o desen-
volvimento dessas práticas. Não era a falta de médicos formados que possibi-
litava a atuação de curadores considerados ilegítimos. As tradições culturais
refletidas na arte de curar dos negros e indígenas abriam espaço para que se
disseminassem seus próprios curadores e suas terapêuticas. Considerar a me-
dicina lusitana oficial como saber legítimo e todo-poderoso seria desautorizar
outros conhecimentos, à revelia da legitimidade popular que os assinalava,

partir de 1808, com a vinda família real, é que a medicina conquistaria sua autonomia, cola-
borando inclusive para a reconversão das famílias aos preceitos da higiene. COSTA, 1990.
Histórias de Doenças 189

caindo nas malhas da medicina erudita como a única capaz de curar as doen-
ças, vulgarizando as demais práticas. (MARQUES, 1999, p. 28)

Conforme a autora, se os médicos ou medicamentos foram escassos não é


possível afirmar. Afinal, não temos dados sobre o número de oficiais de cura licen-
ciados que atuaram na América portuguesa.
Um terceiro trabalho que destacamos é o de Tânia Salgado Pimenta
(PIMENTA, 1997, p. 34). Ela analisou a arte médica a partir dos processos da
Fisicatura-Mor, entre os anos de 1808 e 1828. Sem desconsiderar a heterogeneidade
existente na prática da medicina, ela dividiu os indivíduos em dois grupos: no pri-
meiro estavam os médicos, cirurgiões e boticários, considerados pessoas abastadas,
com acesso às formações nessas especialidades e socialmente bem posicionadas; no
segundo, estavam as parteiras, sangradores e curandeiros, pessoas pobres, incluindo
escravos e forros, homens e mulheres. Segundo a autora, existiu uma medicina mar-
cada por trocas de saberes entre os representantes da medicina acadêmica e popular.
Além disso, ao verificar a ação dessa instituição, constatou que mesmo não
havendo nesse período uma medicina social havia:

…uma preocupação, pelo menos no discurso, com a saúde da população,


para além dos assuntos relacionados somente à medicina, e que era a jus-
tificativa para uma interferência nos assuntos relacionados à saúde, regu-
lando desde as atividades de quem curava até a venda de medicamentos
(PIMENTA, 1997, p.23).

Apesar de privilegiarem objetos, pressupostos teóricos-metodológicos e fon-


tes diferentes, os autores citados defenderam que na América portuguesa surgiu
uma medicina diversificada, marcada por saberes indígenas, europeus e africanos.
Do mesmo modo, consideraram a existência de uma preocupação com a saúde dos
moradores por parte das autoridades.
Compartilhamos desses argumentos e a análise que apresentamos procura
considerar a medicina e o modo que as instituições camarárias agiram em relação
à saúde, a conservação e cura dos corpos em uma região de fronteira geopolítica
e de mineração.
Ao longo do século XVIII, vários manuais voltados à conservação da saú-
de foram publicados e, como analisou Jean Luiz Neves Abreu, esse tema se tornou
preocupação do pensamento ilustrado, tanto em nível público quanto particular, e
foi incorporado por médicos e curadores. A publicação desses manuais se insere
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
190 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

no contexto de valorização de saúde das populações, vistas como essenciais para


o Estado, e da concepção do bem estar corporal como elemento de prosperidade
social. (ABREU, 2010)
Antes de avançarmos na análise, ressaltamos que outros trabalhos foram
desenvolvidos nos últimos anos sobre a medicina, saúde e doença, inclusive sobre
Mato Grosso nos séculos XVIII e XIX. Muitos destes foram influenciados pelas aná-
lises desenvolvidas nas décadas de 1980 e 1990 no Brasil. Para o período colonial,
entre 2001 e 2010 destacamos a dissertação de Nauk Maria de Jesus (JESUS, 2001)
sobre as práticas de cura na capitania de Mato Grosso; a tese de doutorado de Leny
Casely Anzai (2004), que analisou a obra redigida pelo viajante Alexandre Rodrigues
Ferreira sobre as enfermidades endêmicas na capitania de Mato Grosso; e, também,
com base nesse manuscrito a dissertação de mestrado defendida por Marina Azem
(AZEM, 2009).5

O bom governo das vilas:


os ares, as águas, os caminhos e as pestes

No século XVIII, os poderes públicos das diversas nações europeias passaram


a agir sobre a saúde pública, concebendo o bem-estar físico da população como um
de seus deveres (PEREIRA, 1998, p. 575). As considerações práticas e teóricas do
urbanismo também ampliaram seu campo de atuação, preocupando-se com ques-
tões de estética e com os aspectos relativos à higiene e à funcionalidade dos espaços.
Expressões do tipo “para dar maior comodidade”, “em sítio cômodo”, “hábil” ou “ca-
paz” são comuns nos manuscritos setecentistas sobre os espaços urbanos da época,
ao lado de outras como “aformoseamento da vila” (FONSECA, 1998, p. 51). Essas
intervenções no espaço ocorreriam por meio do traçado das ruas, da construção de
pontes e passeios públicos e do cuidado com as águas, por meio da construção de
chafarizes e encanamentos.
A preocupação com a conservação e o asseio foi manifestada pelos vereado-
res de Vila Bela nos Estatutos e Posturas Municipais de 1753 (Estatutos ou posturas
de Vila Bela, 1753-APMT). Esse tipo de regulamento era elaborado pelas câmaras

5 Lembramos a pesquisa inicial de Carlos Francisco Moura sobre médicos e cirurgiões na capi-
tania de Mato Grosso. MOURA, s/d.
Histórias de Doenças 191

municipais e estava voltado para o benefício e utilidade das vilas. Em caso de deso-
bediência, os infratores poderiam ser penalizados com prisão ou multas. 6
Na América portuguesa as posturas seguiam os padrões metropolitanos,
tendo seus capítulos adaptados de acordo com as especificidades locais. Em rela-
ção às Posturas de Vila Bela de 1753, percebemos em seu conteúdo o que Magnus
Roberto Pereira chamou de “agendas do viver urbano”, quando analisou a atuação
dos almotaceis, ou seja, questões voltadas para o mercado, o construtivo e o sanitá-
rio (PEREIRA, 2001).
No que diz respeito aos aspectos sanitários, nessas posturas notamos uma das
mais antigas correntes da medicina que associava as epidemias às impurezas do ar
conhecidas como miasmas. Estes seriam resultado das exalações de pessoas e ani-
mais doentes, das emanações dos pântanos, dos dejetos lançados no meio-ambiente
e de todos os elementos em estado de decomposição. Os defensores da teoria dos
miasmas acreditavam que ao impedir os maus odores estariam evitando as epide-
mias (MARTINS e MARTINS, s/d).
A forma de evitar os ares corrompidos era diversa, como, por exemplo, ten-
tar impedir águas estagnadas e dejetos nas vias públicas, itens abordados nos pará-
grafos das posturas municipais de Vila Bela de 1753, assim como proibir animais
nas ruas – principalmente porcos – e definir espaço de quarentena. Lembramos
que as Ordenações do Reino, que serviram de base para esse regulamento, estipu-
lavam que na:

(…) cidade ou vila… se não façam nela esterqueiras, nem lancem ao redor
do muro esterco, nem outro lixo, nem se entupam os canos da vila, nem a
servidão das águas…
(…) Outrossim mandarão pregoar em cada mês, que cada um limpe as tes-
tadas de suas vinhas e herdades… (Ordenações Filipinas do Reino, L.1 T.68
parágrafos 18, 19, 20).

Sobre os animais, de modo geral, as posturas de Vila Bela de 1753 determinavam:

Sendo tão prejudicial a criação dos porcos na vila tão prejudicial às ruas e ca-
sas pelo muito que ofendem fossando e danoso à saúde com a corrupção dos
ares, ocasionada do mau cheiro dos seus lameiros e por isso em toda a parte

6 A respeito das posturas em Portugal, consultar HESPANHA, 1994 e MONTEIRO, 1993.


Sobre as posturas e os contratos municipais da câmara de Vila Bela ver JESUS, 2015.
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muito proibida com penas.(Estatutos ou posturas de Vila Bela , 1753, capítulo


4º, parágrafo 12º-APMT)

A criação de porcos foi alvo da legislação e as autoridades locais pretenderam


impedi-la. As pessoas acreditavam que a presença de animais e seus dejetos nas vias
públicas corrompia o ar, exalava mau cheiro, causava constrangimento às pessoas e
ameaçava a saúde dos corpos, conforme a concepção miasmática. Por isso, a postura
era necessária, porque: “…El Rei Nosso Senhor nos não mandou fazer aqui chiquei-
ro, mas sim uma Bela Vila, e a permitir-se a alguns esta criação, a poderão ter todos
e não haverá quem se entenda com tanta porcada…” (Estatutos ou posturas de Vila
Bela , 1753, capítulo 4º, parágrafo 12º-APMT)
Assim como o ar foi motivo de preocupação, as águas para o consumo tam-
bém. Na América portuguesa, assim como muitas cidades europeias, os problemas
com abastecimento de água e com a sua qualidade existiram desde o início da co-
lonização. As bicas de água, chafarizes, riachos, lagos e rios eram fontes de abaste-
cimento do liquido nas vilas e cidades e a dificuldade em obtê-las para o consumo
determinou a existência e proximidade das cidades e vilas próximas de “boas águas”
(MARTINEZ, 2007, p.71).
Exemplo dessa prática foram as vilas da capitania de Mato Grosso, Vila Real
do Cuiabá e Vila Bela, erguidas às margens dos rios. A primeira próxima ao rio
Cuiabá e a córregos que cortavam a vila. A segunda perto do rio Guaporé.
Nas posturas de Vila Bela ficava evidente a preocupação em manter as águas
limpas e correntes, principalmente porque os moradores bebiam as águas do rio
Guaporé e das lagoas. Os vereadores acreditavam que a água do rio não poderia
ser contaminada por ser corrente e caudalosa, portanto, a sujeira nela lançada seria
levada para longe. Concepção, essa, assentada na crença de que as águas paradas,
quando cheias de dejetos poderiam prejudicar o precioso liquido, exalarem maus
odores e corromperem o ar.
No rio Guaporé, a preocupação era com o timbó, cuja prática tem sua origem
com os indígenas que o usavam na pesca:

Aos mesmos Almotacés incumbe a vigilância das aguadas que as se não vi-
ciem e como esta Vila não carece deste cuidado, por beber do largo e cauda-
loso Rio Guaporé e rios dessa qualidade não apanham vício; contudo como
há queixa de que os negros que vem e saem desta Vila costumam viciar com
timbó as aguadas das Lagoas do Campo e as dos Pantanais do Mato para ma-
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tarem e turbarem o peixe delas… (Estatutos ou posturas de Vila Bela, cap. 5º,
parágrafo 3º-APMT).

O timbó era uma planta que, uma vez, colocada na água, deixava os peixes
atordoados, facilitando que fossem pescados.
O uso de plantas com esse fim, também como o tingui, pode ser encontrado
em São Paulo desde 1591, quando a câmara dessa vila proibiu o seu uso em pes-
carias em todo o rio Tamanduateí. A proibição foi estendida a todos os ribeiros e
rios existentes dentro da vila para evitar a destruição inútil de peixes e por motivos
sanitários, pois acreditava que o acúmulo de peixes em decomposição corrompia o
ar e causava epidemias (JORGE, 2007, p. 178 e 179).
Esse pode ser um motivo que levou os vereadores de Vila Bela a proibirem a
prática do timbó, que ainda poderia prejudicar a água que era consumida.
Além dessas informações sobre o consumo das águas dos rios e das lagoas
próximas à vila-capital, não localizamos documentos referentes à construção e con-
servação de fontes públicas de água em Vila Bela, mas sabemos que nos quintas das
casas existiram poços.
Já em Vila Real do Cuiabá, desde a primeira metade dos setecentos, existiram
fontes públicas, o que para Carlos Alberto Rosa revela a existência de serviço urbano
básico de acesso à água potável. Do córrego da Prainha, que cortava a vila, não se
tem informações de que se bebesse sua água, pois havia algum azougue (mercúrio)
das lavagens de ouro, além de lixo que tornava a sua água perigosa para o consumo
(ROSA, 2003, p. 29).
A partir de fins dos anos 1760, algumas das fontes de água potável passaram à
categoria de bicas, com encanamento em alvenaria e metal. Em 1790 foi construído
o chafariz na margem direita do córrego Prainha. Ele era abastecido por outra fonte
com canos sobre um aqueduto de madeira (ROSA, 2003. 28).
Os aquedutos eram conhecidos desde a Antiguidade romana e foram trazi-
dos para a América portuguesa pelos portugueses. Além disso, apenas em fins do
século XVIII o sistema de condução de água se tornou uma preocupação frequente
na Europa, onde, até então se consumia o liquido sem atentar muito para a sua qua-
lidade (MARTINEZ, 2007, p. 78).
Na cidade do Rio de Janeiro, o aqueduto que foi construído impressionava
a todos pela sua utilidade e construção. Ele proporcionava água de melhor qua-
lidade, caracterizada pela sua pureza e frescor que brotavam das terras altas, nas
imediações da cidade. Vale lembrar que a construção dessa técnica de captação
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no século XVIII, na cidade, foi resultado de seu crescente papel socioeconômico


(MARTINEZ, 2007, p. 78).
Quanto aos chafarizes, tiveram papel importante por assegurar o abasteci-
mento das localidades, ainda que de modo precário, devido à falta de chuvas, entu-
pimento de canos e má conservação de instalações. Ao mesmo tempo, eles se torna-
ram espaços de sociabilidades, já que por ele circulavam muitas e diferentes pessoas
(MARTINEZ, 2007).
Essas fontes de água deveriam ser vigiadas a fim de evitar a sujeira e a conta-
minação. Em Vila Real do Cuiabá o almotacel multou em mil e oitocentos réis Tereza
Corrêa e a escrava Caetana por estarem lavando roupas na fonte da Mandioca. Já
Antonio Leite de Barros foi pago pela câmara para consertar as calçadas do Porto,
retirar o entulho do córrego da Cruz das Almas e consertar a fonte que ficava atrás
da matriz (Conta do Procurador Tesoureiro do Senado da Câmara da Vila Real do
ano de 177. Mss, cx. 1- senado da câmara de Cuiabá-APMT). Esses exemplos indi-
cam iniciativas da câmara destinadas à conservação e a limpeza das fontes de água,
porque o ambiente limpo era sinônimo de “bom governo”. Da mesma maneira, no-
tamos o trabalho do almotacel na fiscalização do espaço urbano.
Preocupados com o bom governo e com o conceito que as pessoas que che-
gassem de fora fizessem da vila, os vereadores de Vila Bela nas posturas de 1753
regulamentaram:

Como sejam as estradas gerais uma das coisas em que melhor se vê o zelo e vi-
gilância e cuidado dos que governam a República, que estando sempre feitas e
consertadas fazem os forasteiros ideia e conceito de bom governo. Acordaram
que o Procurador desta câmara em cada um ano, teria o cuidado no fim das
águas … propor e requerer em câmara o conserto das estradas públicas e ge-
rais, da entrada ou saída da vila…( Estatuto ou posturas de Vila Bela, 1753,
cap. 5, parágrafo 1º- APMT)

Apesar de não sabermos qual a regularidade dos serviços de limpeza e con-


servação das fontes de água e das estradas nas vilas, essas ações nem sempre ficaram
restritas à legislação e aos discursos dos vereadores. No ano de 1784, a câmara de
Vila Bela pagou o Alferes Francisco Garcia Velho por ter limpo o “caminho público
desta vila até os arraiais”. Em 1780, ela pagou Antonio Rodrigues Lima, pela limpeza
da ponte, e Domingos da Silva Pereira, pela limpeza do curral (Conta das rendas do
Conselho de Vila Bela. Mss., cx. 1769- 1790 – APMT).
Histórias de Doenças 195

Cuidar das águas, limpar os caminhos e vias públicas e agir diante das enfer-
midades faziam parte das atribuições das câmaras municipais. Em relação às pestes,
as posturas municipais de 1753, regulamentaram o estado de quarentena, antiga me-
dida a favor da saúde da coletividade. Caso fosse notificada alguma peste na vila do
Cuiabá, Pará ou rio Guaporé abaixo, as canoas e tropas seriam impedidas de entrar
em Vila Bela.
As canoas que chegassem do Grão Pará, não poderiam ultrapassar a Casa
Redonda, enquanto que as tropas vindas do Cuiabá não poderiam passar do rio Jauru,

…cujos lugares se assinalam para os lazaretos, e fazerem neles quarentenas, e


acabada ela, um dia antes de chegarem nesta vila, farão aviso a Câmara para
os mandar verificar pela saúde, sob pena de que obtendo o contrário, e cons-
tando a Câmara, logo os fará despejar da vila, e seus circuitos e deixa-los para
outros lazaretos …( Estatutos ou Posturas Municipais de Vila Bela. Capítulo
4, parágrafo 2º. Mss., lata 1 (1750-1758) –APMT).

A expulsão dos enfermos com doenças contagiosas das vilas e cidades foram
formas de prevenção adotadas no período. Desde a Idade Média, leprosos, assim
como estrangeiros e todos aqueles não integrados à sociedade, como os judeus, fo-
ram efetivamente acusados de espalharem a peste. O leproso, por sua aparência,
era um pecador, que desagradava a Deus, sendo seus pecados purgados através dos
poros. Todos acreditavam que eles eram devorados pelo ardor sexual, o que exigia
seu isolamento. (DUBY, 1998, p. 91).
Assim fizeram os vereadores em algumas circunstâncias. Em 1773, preocu-
pados com uma possível epidemia do Mal de São Lázaro (lepra) 7, solicitaram a
dois cirurgiões da vila que examinassem Dona Ana Ferreira. Eles atestaram que ela
estava “inteiramente infestada” pela doença e informaram que na vila havia outras
pessoas portadoras do mal. Diante desse quadro, por ordem do governador e capi-
tão general Luis de Albuquerque, Ana Ferreira foi levada para seu sítio distante da
vila-capital (Livro de registro de Termos de Fiança e Registro de Cartas Expedidas
(1751-1775). C7 – APMT).

7 Vale observar que desde a primeira metade do século XVIII existiam referências a lepra ou
ao Mal de São Lázaro no centro da América do Sul. Porém, eles chamavam lepra a muitas
erupções pustulentas, sarnas e escabioses.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
196 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Sete anos mais tarde chegou um padre portador do mesmo mal e, para que a
doença não se tornasse epidêmica, ele foi proibido de permanecer em Vila Bela. Ele
deveria retornar para o lugar de origem (Antonio José de Figueiredo a (ilegível). Vila
do Cuiabá, 29/12/1780. Mss., lata 1780 A –APMT).
O Mal de São Lázaro ou lepra também foi motivo preocupação em Vila Bela
no ano de 1761 e nesse caso notamos à adoção de outras medidas, porque os possí-
veis vitimados estavam presos na cadeia da vila. Eles enviaram uma representação
aos vereadores queixando-se da superlotação do local e do Mal de São Lázaro. Os
vereadores recorreram ao governador da capitania para saber como proceder diante
dessa situação. Em resposta, entre outras medidas, ele recomendou que fosse feita a
purificação do ambiente por meio de fogueiras com lenhas secas, limpeza geral, per-
fume com enxofre em pó e borrifos nas paredes com vinagre forte (Livro de registro
de Termos de Fiança e Registro de Cartas Expedidas (1751-1775). C7 – APMT).
Lavar, caiar as paredes e promover a circulação do ar foram expressões e prá-
ticas muito utilizadas no século XVIII, pois era necessário conservar os corpos e
afastar o mau cheiro que poderia contaminar o ar. A cadeia e o hospital foram alguns
dos espaços para os quais essa preocupação foi dirigida, já que o amontoamento dos
corpos era prejudicial à saúde (CORBAIN, 1987).
Essas práticas foram comuns na América portuguesa, assim como inge-
rir vinagre com outros frutos amargos, disparar tiros de canhão para purificar os
ares, queimar roupas e móveis dos vitimados pelas epidemias. Com esses métodos
acreditava-se que poderia evitar a contaminação e preservar os corpos da podridão
(ANZAI, 2004, p. 146).
O cuidado com os corpos atingia também as práticas alimentares. Em 1771
o governador da capitania de Mato Grosso ordenou que a câmara de Vila Bela fis-
calizasse com maior rigor as comerciantes de gêneros alimentícios. Caberia ao al-
motacel fiscalizar a venda de alimentos e as atividades das padeiras, quitandeiras
e vendeiras. A fiscalização das casas das padeiras deveria ser feita de dois em dois
meses a fim de verificar a qualidade das farinhas. Caso elas estivessem estragadas
deveriam ser lançadas no rio, “na forma que o requer a saúde pública”.
Caso a padeira transgredisse a lei duas vezes seria condenada em três oita-
vas de ouro. Desse modo, os oficiais camarários acreditavam ser possível “(…) evi-
tar as desordenadas desigualdades que o arbítrio e interesse das padeiras praticava
nesta matéria, em prejuízo público e mais principalmente dos doentes (…)” (Livro
Histórias de Doenças 197

de registro de Termos de Fiança e Registro de Cartas Expedidas (1751-1775). C.


7 – APMT).
Se por um lado essa fiscalização visava evitar que os cofres municipais fossem
lesados, já que as padeiras vendiam o pão com peso abaixo do determinado pela
câmara e a preços altos, por outro, ela nos indica a atenção que a municipalidade
deveria ter com a comercialização de alimentos estragados, que prejudicavam os
moradores, principalmente os doentes.
O pão, assim como o caldo ou canja de galinha faziam parte da dieta dos en-
fermos, pois se acreditava que eles revitalizariam os corpos doentes. Na capitania de
Mato Grosso, o galináceo foi consumido pelos doentes, assim como carne de porco
ou de vaca (JESUS, 2001).
O fato da farinha estragada ser descartada nas águas do rio, como requeria
a “saúde pública”, evidencia a inexistência de local especifico para receber a sujeira
pública e privada, assim como ocorria em outras vilas e cidades da América portu-
guesa. Além disso, como mencionamos, essa recomendação estava baseada na con-
cepção de que as águas correntes do caudaloso rio Guaporé levariam para longe os
lixos, imundices e detritos.
Se essas foram algumas das ações destinadas pelas municipalidades aos am-
bientes urbanos e aos enfermos em caso de epidemias, outras foram destinadas à
cura do corpo doente, como a contratação de oficiais da arte médica, como veremos
no item a seguir.

Assistir aos enfermos pobres e escravos gratuitamente com


remédios e sangrias

A arte médica no ultramar era desenvolvida por médicos, cirurgiões, boticá-


rios, barbeiros/sangradores, enfermeiros e parteiras. Vale lembrar que o médico era
o individuo que havia frequentado uma universidade e após quatro anos de curso,
se aprovado era autorizado a exercer medicina, fiscalizar a arte médica e prescrever
medicamentos internos. Ele ocupava posição privilegiada no interior da arte mé-
dica. O cirurgião, por sua vez, aprendia o ofício junto à orientação prática de um
médico, cirurgião ou em um hospital. Ao final do ensino, os aprendizes de cirurgia
eram avaliados por outros oficiais. Nesse contexto, a cirurgia era considerada indig-
na e servil. (SANTOS FILHO, 1991; PIMENTA; 1997; MARQUES, 1999).
Os cirurgiões, no entanto, contrariavam a legislação relativa à medicina no
reino português, pois agiam como médicos ao fazerem prognósticos e curas, tece-
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
198 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

rem teorias sobre as doenças, receitarem remédios e, como boticários, produzirem


medicamentos. Para tanto, utilizavam medicamentos tradicionais, que com morosi-
dade chegavam do reino, e os recursos da natureza (FURTADO, 2005).
Na capitania de Mato Grosso, notamos que os cirurgiões orientaram apren-
dizes na arte da cirurgia e alguns deles se autodenominaram “Professor cirúrgico”,
como Francisco Xavier dos Reis (Atestado do professor cirúrgico Francisco Xavier
Corrêa dos Reis. Vila do Cuiabá, 23 de setembro de 1781, lata 1781 A-APMT).
Enquanto na América portuguesa essa titulação era usada indistintamente, na
França os médicos se opuseram a essa prática, pois para eles os cirurgiões não passa-
vam de “demonstradores de cirurgia”. Esta denominação os distanciaria dos médicos
(BELLA HERSON, 355).
Os boticários eram responsáveis pela manipulação de medicamentos, apren-
diam o ofício com outro boticário ou na universidade (MARQUES, 1999, p. 168-
171) Já os barbeiros/sangradores aplicavam ventosas ou sangrias, cortavam cabelos
e faziam barbas. Eles aprendiam o ofício por meio da observação cotidiana. Quanto
aos enfermeiros eram como que cuidadores de enfermos. Não precisavam ter no-
ções da arte médica e deviam cumprir as recomendações dos médicos ou cirurgiões.
E, as parteiras, responsáveis pela arte de arte de partejar.
Em geral, esses praticantes deveriam fazer os exames, isto é, uma avaliação a
qual eram submetidos para obtenção da carta de licença para exercer o ofício. Eles de-
veriam apresentar um documento ou testemunho de prática ou exercício profissional
ao representante da Fisicatura-Mor8 ou a um cirurgião da vila. Se aprovado recebia
carta de licença selada e publicada, outorgada pelo Físico-Mor e atestada pelas câma-
ras locais comprovando sua experiência e saber (SANTOS FILHO, 1999, p. 221).
Era de responsabilidade dos representantes do Delegado do Físico-Mor ou
Cirurgião-Mor fiscalizar o exercício da profissão, cassar diplomas e licenças e inspe-
cionar hospitais e boticas de três em três anos, verificando o estado de conservação
e o preço das drogas (RIBEIRO, 1997, p. 24).
Contudo, independente de possuir licença desses representantes, as câmaras
municipais contrataram oficiais da arte de curar, cujo aprendizado tinha sido adqui-
rido na prática e observação cotidiana.9 Da mesma maneira, elas enviavam as suas

8 Sobre a Fisicatura –Mor e a Junta do Protomedicato ver SANTOS FILHO, 1999; RIBEIRO,
1997; PIMENTA,1997.
9 Infelizmente, devido à destruição em um incêndio da maior parte da documentação das câ-
maras, não temos as atas, os livros de contratos e os de mapas de rendas e despesas que pode-
Histórias de Doenças 199

correspondências ao reino para tratar de assuntos relativos aos curativos, como fez a
câmara de Vila Real do Cuiabá na primeira metade do século XVIII.
Ela pediu permissão ao rei para contratar um cirurgião devido à “grande
consternação e desamparo que vivia o povo”. Para tanto, propôs contratar Pedro
Rodrigues Duro que tinha “faculdades de cirurgia e sangrias” e que poderia subs-
tituir o falecido cirurgião Antonio Pinto da Fonseca. O envio dessa solicitação
pode ser compreendida pelo fato de que a vila tinha sido recém-criada e a sua câ-
mara se encontrava no início de sua gestão, com poucas rendas. (Microficha 11,
AHU- NDIHR).
Quanto à escolha do oficial de cura por parte da câmara, no caso dos ci-
rurgiões, com o tempo ela passou a ocorrer do seguinte modo: a nobreza e povo
indicavam aos vereadores três nomes de pessoas para exercer o ofício. Em seguida,
eles votavam em um nome. O mais votado era eleito e receberia um soldo pago pela
câmara (JESUS, 2004, p. 7).
Mesmo sem dados precisos sobre a remuneração dos oficiais de cura, ela não
era padronizada nas capitanias da América portuguesa, pois estava relacionada ao
imposto municipal arrecadado em cada vila. Cada câmara possuía seus contratos
que eram colocados em licitação e concedidos àquele que oferecesse menor preço
(JESUS, 2001, p. 110). Na primeira metade do século XVIII, os cirurgiões, por exem-
plo, foram contratados pela câmara da vila do Cuiabá para atender a quem solicitas-
se o curativo, enfermos pobres e escravos gratuitamente, assistindo com remédios e
sangrias, na vila e em seu termo (JESUS, 2001, p. 110).
Essas atribuições estavam entre os deveres dos cirurgiões da América por-
tuguesa e faziam parte dos deveres dos médicos em Lisboa em 1789. Estes deviam
assistir por mais de um dia os pobres com prontidão e caridade, sem qualquer
honorário, comprometendo- se a atendê-los sem qualquer hesitação (CRESPO,
1990, p. 50).
Observamos que os oficiais de cura podiam servir no partido público ou no
partido militar e/ou atendiam a particulares. Na primeira situação eles eram con-
tratados pelas câmaras e, na maioria das vezes, exerciam a arte de curar nas vilas e
imediações. Na segunda, serviam nas tropas militares e atuavam nas vilas, nos fortes

riam nos ajudar na elaboração de um estudo mais aprofundado sobre a relação câmara e artes
médicas na fronteira oeste. De qualquer modo, a partir dos dados que localizamos apresen-
tamos a seguir algumas informações na tentativa de recompor a arte médica na capitania de
Mato Grosso.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
200 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

e destacamentos militares. No entanto, na prática cotidiana, ambos assistiam aos


enfermos fossem civis ou militares (JESUS, 2001, p. 72).
O curativo também era aplicado pelos oficiais de cura quando chamados por
particulares para prestar assistência aos enfermos, inclusive escravos. O cirurgião
Eduardo Antonio Moreira, morador na Vila Real do Cuiabá, atendeu por vários anos
à família de Dona Doroteia Maria da Conceição. Como parte de seu pagamento, em
um dos atendimentos recebeu a obra A medicina doméstica (JESUS, 2001, p. 87).10
Em fins do século XVIII o valor cobrado pelos oficiais de cura foi conside-
rado pela câmara de Vila Bela exorbitante e por essa razão estipularam os “salários”
que deveriam ser cobrados. As parteiras não podiam levar mais que três oitavas, isto
depois de serem examinadas pelo Delegado do Fisico-mor, Doutor João do Couto
Urgel. Os cirurgiões por cada visita deveriam receber meia pataca e os boticários
usar o Regimento de Vaz Carapinho. As boticas seriam visitadas em correição pelo
Delegado. Caso ele constatasse a não obediência dessa instrução deveria realizar a
“prisão e condenação pecuniária contra os delinquentes” (Caetano Henrique Pereira
ao juiz presidente, vereadores e procurador da Câmara de Vila Bela, Vila Bela, 23 de
abril de 1780, lata 1780 A-APMT).
Não sabemos se o delegado Dr. João do Couto Urgel era médico, mas encon-
tramos referências a ele como cirurgião, que também atuou como boticário e ad-
vogado dos auditórios. A escassez de indivíduos formados em Direito na fronteira-
-oeste, assim como a busca por melhores condições financeiras, contribuíram para
que os cirurgiões, que no mínimo eram letrados, buscassem cargos na administra-
ção local, tivessem vendas ou lavras (JESUS, 2001, p. 109).
Outro aspecto na instrução passada pela câmara é o exame das parteiras e a
consequente presença de mulheres na arte de partejar. Não encontramos informa-
ções sobre elas, mas, em 1799 o governador da capitania propôs que fosse criado
um hospital público que atendesse aos enfermos e que também instruísse “alguns
filhos do país” nas artes de curar. Inclusive, poderiam ser instruídas “até algumas
Mulatas e Pretas… nos princípios mais essenciais da Arte da Obstetrícia” (Instrução
de Caetano Pinto de Miranda de Montenegro. Vila Bela 15 de maio de 1799. Livro de
Registro, 1796-1799, C 41-APMT). Não sabemos se a iniciativa foi levada adiante,
mas a proposta do governador reafirma o que estudos sobre o tema já constataram,
o parto ficava, na maioria das vezes, sob a incumbência das mulheres.

10 Sobre os manuais de medicina ver RIBEIRO, 1997 e ABREU, 2010.


Histórias de Doenças 201

As únicas referências localizadas sobre mulheres que atuaram na arte de


curar na fronteira oeste foram as das enfermeiras Maria Francisca e Ana de Campos
Maciel, respectivamente nos anos de 1816 e 1819 no hospital militar da Vila Real do
Senhor Bom Jesus do Cuiabá. Maria Francisca recebeu no ano de 1816 seu soldo em
espécie: ¼ de farinha, ¼ de feijão, toucinho e sal. Já a Dona Ana de Campos dizia ter
grande família e não ter meios de se sustentar, além de duas oitavas mensais que o
capitão general lhe havia arbitrado (Requerimento da enfermeira Maria Francisca.
Vila do Cuiabá, 19/09/1816. Junta da Administração e arrecadação da Real Fazenda
-NDIHR; Petição de Dona Ana de Campos Maciel, Cuiabá, 15 de maio de 1819.
Mss., Lata 1819 AAPMT).
Ainda é interessante destacarmos do documento citado, a regularização dos
valores cobrados pelos oficiais de cura, não sendo incluídos os médicos. Isto, possi-
velmente porque não existiam médicos na vila.
Sobre os barbeiros, as câmaras também os contratavam, assim como a Fazenda
Real possuía escravos barbeiros/sangradores. Esta foi uma denominação comum
utilizada pelos moradores da capitania de Mato Grosso para se referirem a esses
praticantes, como José Antonio Pereira conhecido em Vila Real do Cuiaba como
“oficial de barbeiro sangrador”. (Requerimento de José Antonio Pereira. Cuiabá, 23
de outubro de 1800. Microficha 1508, Provedoria da Real Fazenda- NDIHR).
Por ser uma prática usual, os sangradores/barbeiros foram muito solicitados
pelos moradores. Durante os séculos XVII e XVIII, a sangria foi apontada como
remédio contra vários males, conforme a concepção da medicina humoral. No pe-
ríodo, acreditava-se que ela poderia restabelecer o enfermo, pois com ela os maus
humores seriam expulsos por meio do sangue.
Observamos que a arte médica praticada na capitania de Mato Grosso contou
com expressivo número de oficiais de cura militares, cuja presença é compreendida
pelo fato de estarmos tratando de uma fronteira litigiosa, que recebeu muitos oficiais
das tropas. Além disso, não podemos esquecer que a partir da segunda metade do
século XVIII, a Coroa portuguesa intensificou a sua preocupação com o ensino, com
a militarização e com a saúde.
Em função dessa característica, em momentos de paz, os oficiais de cura se
deslocaram para os domínios hispânicos com seus medicamentos para prestar cura-
tivo aos moradores vizinhos. Nas eclosões dos conflitos bélicos envolvendo Espanha
e Portugal, as tensões eram sentidas na fronteira e nessas circunstâncias, os pratican-
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
202 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

tes das artes de curar foram convocados e seguiram para as áreas em disputa com as
tropas, fossem eles cirurgiões militares ou civis (JESUS, 2001, p. 116).
Apesar de não sabermos quantos oficiais de cura passaram pela aprovação da
Fisicatura-Mor ou Junta do Protomedicato ou possuíam a carta de licença atestada
pelas câmaras, entre os anos de 1726 e 1822 identificamos sessenta e dois oficiais de
cura que atuaram em Mato Grosso no período colonial, sendo três médicos, quaren-
ta cirurgiões, seis boticários, seis barbeiros/sangradores e sete enfermeiros. Talvez o
número de oficiais que serviu na região tenha sido maior, sobretudo, os contratados
pelas câmaras municipais.
Nesse universo, não podemos esquecer que os moradores buscavam ajuda
de curandeiros, feiticeiros, benzedores e toda forma de cura. As recorrências a esses
curadores e aos diferentes métodos faziam parte das práticas dos moradores no pe-
ríodo colonial e, concomitante a elas, como esperamos ter demonstrado, as câmaras
procuraram agir para garantir a conservação dos corpos e do ambiente. Isto era
necessário, sobretudo em uma região litigiosa e com reduzido número de pessoas,
como a da capitania de Mato Grosso.
Em fins do setecentos, medidas de cunho ilustrado foram propostas e ado-
tadas pelos governadores. Surgiram ações voltadas para investigações da fauna e da
flora, vacinação, enterramentos, instrução, regulamento de hospitais e criação de
aulas de cirurgias, como em 1799, quando foi proposto o estabelecimento de uma
aula de cirurgia e obstetrícia em Vila Bela.
Ao abrir o século XIX, o desejo de criação desse tipo de ensino ainda pairava
entre as autoridades locais de Vila Bela, que apresentaram uma proposta de cria-
ção de aula de cirurgia em 1808, sem obter sucesso, pois pelo o que constatamos a
aula não foi implantada. No entanto, na vila vizinha, Vila Real do Cuiabá, a aula de
cirurgia saiu do papel e entrou em funcionamento no ano de 1816. Novos tempos
eram vividos na fronteira oeste, que em 1817 também passou a ter uma Santa Casa
de Misericórdia.

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Histórias de Doenças 205

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Sertão, saúde e identidade em Goiás
Noé Freire Sandes1

A s narrativas sobre o sertão indicam com mediana clareza a percepção de um


não-lugar, paisagem em que se vislumbra o quase nada. Assim, no final do
século XIX, Alencar, em O Sertanejo vaticina:

É mais fúnebre do que um cemitério. Na cidade dos mortos as lousas estão cer-
cadas por uma vegetação que viça e floresce, mas aqui a vida abandona a terra,
e toda essa região que se estende por centenas de léguas não é mais que um vas-
to jazigo de uma natureza extinta e o sepulcro de sua própria criação (1875).

O sertanejo de Alencar pisa na caatinga, sertão de Quixeramobim no Ceará,


região marcada pelo domínio familiar. A paisagem descrita muitas vezes assumia
uma tonalidade romântica envolvendo a paisagem e o homem enredado na obedi-
ência ao dono da terra e a sua família. Mas essa paisagem fúnebre se alastrou para
territórios marcados pela distância do litoral. Assim, o sertão ganhou espaço na
memória social com base nas narrativas de escritores regionalistas. Mas essa ima-
gem negativa ganhou projeção quando Lobato criou o seu Jeca-Tatu, frustrado com
sua experiência de fazendeiro no interior paulista. A imagem do Jeca foi difundi-
da na campanha política de Rui Barbosa e se popularizou por meio do almanaque
Biotônico Fontoura. A questão sanitária logo se transformou em bandeira política.
Em “Urupês”, Lobato, o fazendeiro frustrado, reúne farta munição e descreve, em
minúcias, a rotina do Jeca. Em uma narrativa acentuadamente etnocêntrica, Lobato
descreve a casa, o sentar de cócoras, o pouco trabalho despendido no plantio da
mandioca, o predomínio da lei do menor esforço, o desligamento do mundo e a
ausência da nacionalidade. Todas essas características transformaram o Jeca no an-
cestral de brasilidade, o “selvagem” inapto ao trabalho disciplinado e árduo. Frente à
lei do menor esforço, o Jeca era equiparado a um parasita. Com Lobato, a questão do

1 Professor Titular da Faculdade de História/UFG.


Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
208 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

“ser brasileiro” encontrou uma resposta em tom de destempero: o Brasil se asseme-


lhava ao Jeca Tatu. Em “Urupês”, o escritor primeiro caçoa do imaginário nativista
presente em uma literatura que tanto prezava o “indianismo” e o “caboclismo” para,
em seguida, apresentar, por contraste, o seu personagem: o Jeca. O artigo que nota-
bilizou o jovem escritor transformou-se em título do seu primeiro livro de contos.
A imagem do Jeca Tatu ganhou a imaginação nacional como uma caricatura do cai-
pira. O incômodo provocado pelo personagem lobatiano foi dirimido com alguma
tensão com a aproximação do escritor dos sanitaristas. Assim, o atraso era menos
do caipira do que das condições de vida que os sertanejos enfrentavam. O Jeca se
desloca no tempo e se aproxima do Zé Brasil, o caipira consciente dos problemas
nacionais e se aproxima do partido comunista (LAJOLO 1983).
Lobato não se fez de rogado diante das inúmeras críticas acerca do seu fa-
moso personagem. O injusto juízo exigia reparação; portanto, publicou, em 1918,
o Problema vital, em que se dedica a discutir, em consonância com os escritos de
Arthur Neiva e Belisário Penna, o saneamento como problema fundamental para
o desenvolvimento nacional. Finalmente, o escritor redefine a imagem do Jeca
(Jeca-tatuzinho) com base nos princípios do saneamento e da moderna agricultura
(LOBATO 1964). A criatura lobatiana – o Jeca –, assim como o Brasil, exigia refor-
mas. Influenciado pelo debate em torno da saúde pública, o escritor posicionou-se
no espaço público em defesa do sanitarismo como proposta fundamental para o
desenvolvimento nacional.
Em Goiás, essa memória assumiu feição de estigma. O debate acerca dos pro-
blemas envolvendo o saneamento no Brasil padecia de dados concretos sobre os ma-
les que afligiam as regiões mais distantes dos centros urbanos. O desconhecimento
do sertão se apresentava como um desafio para os sanitaristas do porte de Arthur
Neiva e Belisário Penna. Assim, viajar pelo sertão no intuito de conhecer o país não
era apenas um empreendimento científico, pois estava associado a um claro projeto
político reformista (SANTOS 1985). Nessa direção, interessa-nos, sobretudo, avaliar
a relação entre o olhar dos sanitaristas, em suas andanças por Goiás e a recepção dos
seus escritos pela elite política goiana.
A ideia de isolamento era uma das principais representações sobre o sertão
de Goiás, entretanto tal percepção deve ser relativizada. Ainda no século XIX, na pe-
quena cidade de Meia-Ponte, no interior goiano, surgiu o primeiro jornal de Goiás,
o Matutina Meiapontese. No século seguinte, interessados em difundir as riquezas
de Goiás, os goianos publicaram uma revista, cujo objetivo era apresentar uma nova
Histórias de Doenças 209

visão sobe a região. A revista informação Goyana circulou entre os anos de 1917 e
35 e foi publicada e distribuída a partir do Rio de Janeiro, cuja sede se encontrava na
avenida Rio Branco 117, sala 13. Conta a informação que teria sido rodada nas ofici-
nas gráficas do Jornal do Brasil. Nos seus 22 anos de existência, a revista manteve sua
periodicidade mensal com a publicação de 213 números com inúmeras informações
sobre a vida sertaneja e as riquezas de Goiás. Em média, excluindo as propagandas,
a revista era composta por 12 páginas. Os anúncios se apresentavam sempre nas pri-
meiras páginas. No seu frontispício consta, Revista Mensal ilustrada e informativa
das possibilidades do Brasil Central. A referência ao Brasil Central definia o sentido
da região, pois, situar-se no centro do Brasil representava algo fundamental para os
intelectuais goianos, especialmente o major Henrique Silva atento aos debates sobre
geopolítica. Ainda no frontispício da revista, em seu primeiro número em 1917,
consta os nomes de Henrique Silva e Americano do Brasil como diretores. Não há
informação sobre a tiragem, mas há clara indicação de que a revista se encontra nas
principais livrarias da capital e nos estados. Conta também na edição de janeiro de
1917, na página 69, o agradecimento pelo acolhimento da revista pelos órgãos de
imprensa no Brasil e no exterior. Segundo Maria Araújo Nepomuceno a tiragem al-
cançava o número de 500 exemplares. Na edição de 15 de dezembro de 1917, consta
a seguinte declaração:

Esta revista dispõe de correspondentes nas principais localidades goianas,


presta informação à rua Figueiredo 63, Meyer aos capitalistas, industriais,
agricultores, criadores, etc., sobre qualquer assunto que possam interessar no
tocante as possibilidades econômicas do Estado central da República.

O sertão inspecionado

Homens de ciência do calibre de Arthur Neiva e Belisário Penna, por re-


quisição da Inspetoria de Obras contra as Secas, iniciaram a epopeia de mapear o
sertão no intuito de decifrá-lo com a força do discurso científico. Essa operação
representava algo distinto da costumeira crítica sobre o atraso e o isolamento do
interior brasileiro.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
210 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

O relatório de Neiva e Penna2 se afastava do circuito ufanista e romântico


que marcou o discurso regionalista. Designados para uma viagem ao Norte e ao
Nordeste em 1912, “através de seu relatório indicaram a reforma sanitária rural
como um meio eficaz de superar o impasse em que se achava a nação” (VIEIRA
2007, p.44). O relatório, publicado em 1916 com o título Viagem científica pelo norte
da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do Piauí e de norte a sul de Goiás, impactou
a opinião pública, mobilizando intelectuais e políticos em torno do debate sobre os
problemas sanitários no interior do país. O livro está organizado em duas partes: o
relatório propriamente dito e o diário de viagem acrescido por um anexo com mais
de cem fotografias, além de um encarte com um mapa do Brasil no qual é indicado
o roteiro percorrido pela expedição.
Os sanitaristas, ao adentrarem o extenso território do interior do Brasil, afir-
maram que, se fossem escrever um poema para descrever o sertão, seria um poema
trágico que destruiria o romantismo tão presente nas descrições do mundo sertane-
jo. Esse poema denunciaria o quadro infernal, que só poderia ser perfeito se descrito
pelo Dante imortal. Enfim, os sertões “que conhecemos, quer os do extremo norte,
quer os centrais, quer os do norte de Minas são pedaços do purgatório, como nol’o
pintam os padres, onde se purgam os pecados em vida…” (NEIVA, PENNA, 1999,
p.222). Para Neiva e Penna, surpreendidos pelo estado precário da população do
Brasil Central em relação à saúde, concluíram que as doenças eram responsáveis
pelo atraso da região e não o clima ou a raça argumentos comumente apresentados
na época.
A vila de São José do Duro, a leste do estado de Goiás, na divisa com a
Bahia, foi a porta de entrada pela qual os sanitaristas adentraram o território goiano:
“Uma pequena vila com 60 casas e 400 moradores” (NEIVA, PENNA 1999, p.207).
A preocupação dos médicos de contabilizar as habitações e quantificar seus habi-
tantes constituía um procedimento comum da atividade investigativa já presente
nos relatos dos viajantes estrangeiros que visitaram o interior do Brasil a partir do
século XIX. Entretanto, os sanitaristas desdobraram a perspectiva investigativa para
o interior das relações sociais. Nessa direção, observaram o apego dos sertanejos ao
uso de técnicas rudimentares para o fabrico de farinha e aguardente. A impressão
de declínio ou atraso da região tornou-se ainda mais forte ao constatarem, em suas

2 A publicação de Neiva e Penna foi reproduzida em uma edição fac-similar, lançada pelo
Senado Federal em 1999, acrescida das biografias dos referidos cientistas.
Histórias de Doenças 211

andanças, a presença de casas barreadas propícias à propagação do barbeiro. Diante


desse quadro, os médicos conjecturavam sobre a possível ligação entre o mal de
Chagas e a presença do bócio.3 O diagnóstico do atraso das regiões interioranas, sob
o ponto de vista do saneamento, não foi aceito pelo paciente.
O olhar do viajante é delineado, previamente, por um sentido de ordenação
advindo de outras paisagens. A propagada imagem da decadência da região, herança
da crise do ouro, apresentava-se, de antemão, à consciência do observador. De acor-
do com João Maia (2007, p.5), os cientistas estrangeiros viajavam motivados “pela
confirmação de certas teorias científicas e animados por uma perspectiva de carreira
científica”. Ao centrar sua análise nas narrativas de dois governadores goianos oito-
centistas, Couto de Magalhães e Leite Moraes, o autor aponta para a presença de
um forte sentimento de melancolia decorrente do choque entre as aspirações mo-
dernizantes da administração imperial e a instabilidade das terras interioranas: “É
constante a visão de ruínas e de vestígios que denotam um mundo instável e aberto,
constituído, destruído e reconstituído de forma incessante” (p.17).
Saindo da vila de Duro em direção à cidade de Porto Nacional, os médicos
passaram pelo arraial de Almas e pelo município de Natividade. Do arraial de Almas
ressaltaram apenas suas ruínas. Para os nossos narradores, a falta de conservação
dos prédios e a precariedade do comércio eram dados concretos do empobrecimen-
to da região. Entretanto, o aspecto físico dos homens, acrescido da observação da
paisagem, indicava que os moradores teriam sucumbido ao ataque da doença de
Chagas nas suas modalidades crônicas.
Adentrado o século XX, a presença das ruínas na região também foi regis-
trada pelos memorialistas que percorreram os antigos caminhos que levavam ao
norte de Goiás. O dominicano francês José Maria Audrin sublinhou a riqueza de
outros tempos presente na memória dos miseráveis habitantes das “taperas” de Pilar,

3 Em 1909, Carlos Chagas apresentou ao mundo científico a descoberta de “nova entidade mór-
bida”, causada por um protozoário denominado Trypanosoma cruzi, transmitido por inseto
hematófago, popularmente conhecido como barbeiro. De acordo com Simone Petraglia Kropf
(2009, p.205), a “tripla descoberta de Chagas (vetor, patógeno e infecção humana) é come-
morada como ‘grande feito’ da ciência brasileira”. A essa doença, Carlos Chagas associa várias
manifestações mórbidas, como a cardiopatia, o cretinismo e o hipertireoidismo. Certamente,
a primeira caracterização clínica da doença de Chagas teve enorme impacto no relatório de
Neiva e Penna. Os referidos médicos se deixaram guiar pelos distúrbios endócrinos e neuro-
lógicos como sinais clínicos da doença de Chagas, o bócio e o cretinismo (Kropf, 2009)
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
212 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Crixás, Amaro Leite e Carmo. Os moradores se esmeravam em contar aos viandan-


tes as lembranças das riquezas ali outrora encontradas. As igrejas quase em ruínas,
as peças sacras e os poucos prédios que ainda perduravam eram testemunhas da
opulência de um tempo distante. Os vestígios das construções antigas, as “taperas”,
eram uma coisa triste de se ver, na percepção do dominicano (AUDRIN 1947, p.55).
Em 1935, o médico Júlio Paternostro, funcionário do serviço de febre amarela do
Ministério da Saúde, deixou o registro de suas impressões em sua visita à região: “A
cidade de Palma, [atual Paranã] que há cem anos possuía 255 casas, atualmente é um
arraial de 120 habitações velhas ou em ruínas. Uma igreja que estava sendo constru-
ída há setenta anos, ainda não foi concluída. A vida parou” (PATERNOSTRO, 1945,
p.251). Nessa mesma direção, o Dr. Peixoto da Silveira estranhou de tal modo o ser-
tão que lhe pareceu um outro país, embora ali se falasse a mesma língua. Entretanto,
a distância cultural foi percebida em uma dimensão temporal, pois para o Peixoto da
Silveira os moradores do sertão viviam em outro século. O insulamento no espaço
conformou a população a um tempo diverso. Adentrar no sertão é retroceder no
tempo, recuar nos séculos (PEIXOTO, 1959).
O olhar fixo nas ruínas direcionou a descrição da paisagem, conformando os
ângulos possíveis a uma só perspectiva: a decadência. Neiva e Penna, influenciados pe-
las leituras dos viajantes e pela primeira caracterização da doença de Chagas, ficaram
chocados com o que viram. Na percepção dos sanitaristas, a falta de assistência médica
permitiu que a doença de Chagas atingisse cruelmente as pessoas. O espanto presente
na narrativa dos médicos se associava ao universo de suas expectativas: sonhavam
com cidades e vilas saneadas, com uma agricultura moderna amplamente integrada ao
mercado, cuja pujança pusesse fim à condição “primitiva” da vida sertaneja.
Em Goiás, a ladainha sobre os males do sertão ganhou a força de uma repre-
sentação histórica com marcada presença na imaginação regional. O costumeiro
argumento do atraso e do isolamento da pátria goiana, decorrente da crise da mi-
neração, era seguido pela enumeração das riquezas e potencialidades de uma re-
gião dominada pela imagem de uma natureza pródiga. Assim, anunciava-se uma
temporalidade esvaziada de sentido no presente e saturada de expectativas de fu-
turo.4 Certamente, a elite goiana, generosa em reverberar as necessidades do Brasil

4 Recorremos ao argumento, já apresentado em outra ocasião (Sandes, 2002b), de que não há


motivo para duvidar da percepção de cronistas e viajantes acerca do refluxo da atividade mi-
neradora na segunda metade do século XVIII. Outra questão incide na qualificação dessa
crise como um período de decadência, cujo sentido moral acabou por desviar a questão para
Histórias de Doenças 213

Central, tinha os mesmos sonhos que os viajantes sanitaristas: difundir o desamparo


do sertão era uma clara estratégia política. Dessa forma, exagerava-se o isolamento e
o abandono do homem do campo como forma de exigir a atenção e os investimentos
do governo republicano. Não se pode negar a diferença marcante entre o sertão e o
litoral; contudo, a exageração dualista carregava uma clara dimensão retórica.
Portanto, o diagnóstico acerca dos males de Goiás pareceu, no mínimo, ex-
cessivo na perspectiva dos vilaboenses. Ainda que a capital anhanguerina tenha sido
poupada pela verve cientificista dos sanitaristas, a comparação entre o sertão e o
purgatório não poderia ser acolhida pacificamente pela elite goiana.
Essa elite afirmava sua distinção mais pela posse do sobrenome que por os-
tentação e opulência. Em um estado com restrita capacidade de arrecadação, o poder
econômico se expressava, especialmente, pelo controle de cargos administrativos. O
zelo pelo nome e pela honra da família faz parte de um código social ordenador da
sociedade goiana. Bernardo Élis, ao rememorar o seu tempo de menino, descreve o
ambiente social da cidade de Corumbá:

Afinal, éramos classe dominante, devíamos dar exemplo de bom comporta-


mento e educação, sobretudo era preciso demonstrar a união do grupo fa-
miliar. Nós Fleury Curado entendíamos que o Estado de Goiás, que o Brasil,
eram parte de nós mesmos, e a primeira coisa a fazer era preservar a nação.
Formando um dos primeiros grupos de povoadores, tornávamo-nos a própria
pátria. Por essa compreensão, certamente erradíssima e absurda, vivíamos
como que aprisionados, cercados pela vigilância, pela maledicência dos que
não eram do nosso clã e que estavam prontos a cair sobre nós e nos liquidar
ante o primeiro sinal de erro ou de fragilidade (ÉLIS, 1997, p.39).

Em Goiás, a elite dirigente nem sempre contava com uma situação econô-
mica tranquila. Conforme registra Bernardo Élis (PAULA, 2014), a lida de sua mãe
na máquina de costura contribuía de modo efetivo para o sustento da casa. O teste-
munho do romancista goiano é certamente um indício da ordem social presente em
Goiás no início do século XX.
A direção apontada pelo romancista revela um tipo de sociabilidade marca-
da pela mágoa e pela esperança. Assim, era aceitável que a elite goiana compusesse

o controle da população e de seus modos de vida, conforme argumenta Bertran no prefácio


ao livro de Chaul (1997).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
214 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

sua narrativa histórica entremeada pelo lamento da crise do ouro. Esse argumento
era parte de um repertório que, ao final, visava propagar as riquezas da terra. Nas
pequenas pátrias, o discurso decadentista se transformava em demanda política a
exigir o cumprimento do pacto federativo. Outra coisa era admitir que os médicos
sanitaristas, distantes do mundo goiano, compusessem um hino assemelhando o
sertão goiano ao inferno.
A desinformação sobre a região apareceu como problema de vulto que me-
recia resposta à altura. Mas a interlocução desejada deveria ocorrer fora da esfera
regional, pois a voz dos goianos merecia ser ouvida na própria capital federal. A
polêmica travada no interior da revista A Informação Goiana era a resposta certa
ao malévolo alvitre que os sanitaristas lançaram sobre Goiás. O próprio título da
revista já antecipa sua função e seus objetivos, conforme se depreende da leitura da
apresentação da revista, em seu primeiro número, escrita, certamente, pela pena de
seu diretor Henrique Silva (2001ª, p. 1):

O aparecimento hoje desta publicação se justifica pela própria necessidade


que havia de um órgão informativo e de propaganda das incomparáveis ri-
quezas nativas do interland brasileiro – essa vastíssima região quase desco-
nhecida sob todos os aspectos e que, no entanto, possui os mais fortes ele-
mentos para se incorporar as correntes progressivas das mais prósperas zonas
do nosso país. Como se sabe, Goiás ocupa o centro geométrico do Brasil, e
não carece, pois, de razões geográficas para representar ainda um papel social
e econômico na grandeza futura da nacionalidade. O que é mister é tornar
conhecido de nós mesmos e dos estrangeiros o seu salubérrimo clima, as suas
riquezas extraordinárias, as suas fontes de vida, as suas possibilidades econô-
micas – como também refutar com fatos e algarismos exatos as apreciações
injustas que tantas vezes em livros e na imprensa se tem propalado acerca da
terra goiana.

A Informação Goiana utilizou amplamente o relatório Cruls na defesa dos


interesses de Goiás. Antônio M. de Azevedo Pimentel (2001a, p.6), colaborador do
periódico e participante da referida missão, afirma que a área demarcada possui
um clima salubérrimo: “A infecção palustre, que na opinião de todos os médicos
é a nota característica da patologia intertropical, é excepcionalmente rara em toda
a área do planalto central” [2001a p. 6]. No ano seguinte, o médico volta a tratar
do tema saneamento nos sertões apontando para a flagrante contradição entre suas
Histórias de Doenças 215

observações e as “tendenciosas afirmativas dos srs. Arthur Neiva e Belisario Penna,


ver-se-á que o sertão goiano não é precisamente ‘um vasto hospital’, como por aí
corre” (PIMENTEL, 2001b, p.109).
Americano do Brasil ressalta a variedade e opulência da flora goiana, ainda
não classificada, e o equívoco daqueles que divulgam informações sobre Goiás per-
correndo a mesma trilha dos naturalistas do século XIX – caminhos percorridos pe-
los “primitivos bandeirantes” –, que evitavam as “ensobradas matas percorridas pelo
gentio”. Essas observações visavam atingir outros viajores: “Mas nada disso sabem
os pseudofitologistas do Ministério da Agricultura ou os curiosos compendistas e
ensaístas que não viram outras florestas que as da Gávea e Tijuca e a vegetação de
climas europeus das nossas avenidas asfaltadas” (BRASIL 2001, p.2).
Para o médico goiano, esses apressados viajantes não teriam o direito de per-
correr rapidamente a região pelos antigos “caminhos reais” e chegar a conclusões
apressadas sobre Goiás: “Glorificando assim a própria ignorância e insuflando uma
antipática campanha contra as riquezas naturais do Alto Sertão” (BRASIL, 2001, p.2)
A primeira referência direta ao texto de Neiva e Penna na Informação Goiana
é feita por Henrique Silva, que noticia sua leitura do trabalho Viagem científica pelo
norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do Piauí e norte e sul de Goiás (NEIVA,
PENNA 1999) e Rondônia, de Roquete Pinto. Para o articulista goiano, tais obras já
nasceram consagradas, porque seus autores são “notáveis membros da Academia
Brasileira de Ciências”; entretanto, adverte que o livro de Neiva e Penna, “engra-
çados autores”, está cheio de “passagens contraditórias, inverossímeis”. Acrescenta
ainda o articulista:

E razão teve, portanto, o inolvidável senador do Rio de Janeiro – não permi-


tindo que o trabalho dos srs. Arthur Neiva e Belisario Penna aparecesse nas
Memórias do Instituto Oswaldo Cruz. Reteve-a o sábio patrício na sua gaveta; e
os que lhes eram íntimos talvez possam dizer os motivos (SILVA 2001b, p.91).

No geral, os diretores e articulistas do periódico buscaram desqualificar o


relatório Neiva e Penna, sob a alegação de que lhe faltava rigor científico. O próprio
título do artigo denuncia a ambição de desfazer a seriedade da investigação. O uso
do termo “viajores”, possivelmente, foi utilizado como recurso para enfatizar, por via
da rima, o que se segue: “mas superficiais observadores” (SILVA 2001b, p. 91). Se a
literatura de viagem carregava a marca do desejo de precisão, os viajores, na perspec-
tiva de Henrique Silva, percorreram caminho contrário.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
216 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

De certo modo, a motivação patriótica da campanha “pró-saneamento” sur-


te efeito contrário em Goiás. Faltava aos sanitaristas o vínculo com a terra goiana,
fundamento do sentimento de patriotismo, bem como o conhecimento específico
do mundo e da cultura da região. Um dos colaboradores da Informação Goiana,
Antônio Euzébio sugere, de modo crítico, que a possível verba destinada ao sane-
amento fosse transferida para o prolongamento da via férrea, para a expansão do
telégrafo ou ainda para a construção de estradas de rodagem e de postos zootéc-
nicos. Para não descontentar a comissão científica, defende “a criação de um la-
boratório químico que aproveite as inúmeras espécies vegetais” (EUZÉBIO, 2001,
p.130). Enfim, os articulistas de A Informação Goiana, apesar de resistirem a admitir
a gravidade da doença de Chagas na região, não faziam oposição alguma ao desen-
volvimento de profilaxias indutoras de investimentos em Goiás.
Na compreensão de Henrique Silva, não havia dúvidas de que vivíamos num
país singular. Frente às incoerências do poder público, que destina as verbas do sa-
neamento para as cidades do Sul e do Sudeste do país, resta a ironia e a indignação
dos goianos. Para o articulista, a transformação de Goiás num “quadro dantesco”
teve por objetivo a criação do Ministério da Saúde Pública, que deveria iniciar seus
trabalhos pelo saneamento rural do Brasil (SILVA 2001f, p.151). Assim, o sertão
goiano, apesar da propagação das “imagens infernais”, permaneceu, como antes,
abandonado. Por fim, a terra dos “cretinos” e dos “triponogoianos” não teve acesso
às verbas nem aos postos médicos como Neiva e Penna afirmaram.
Está claro que a Revista constitui um instrumento de afirmação de um sa-
ber sobre Goiás produzido pelos próprios goianos. Região, portanto, como cate-
goria do pensamento, se vincula ao gesto de hierarquização e ordenação do saber
(BOURDIEU 1989). Na conjuntura festiva que antecedeu a comemoração do cen-
tenário da independência – momento de afirmação e disputas acerca do destino do
Brasil e dos brasileiros –, a elite goiana lançou-se na necessária tarefa de “fazer ver
e fazer crer” que o “verdadeiro” Goiás era aquele “revelado” por um dado grupo,
os intelectuais goianos ou amantes e conhecedores das terras goianas. Esse grupo
redefiniu suas fronteiras a partir de um procedimento hierárquico: apenas os goia-
nos poderiam falar da sua região com propriedade. A Revista era portadora de um
saber legítimo que se fundamentava na relação de proximidade entre o grupo de
intelectuais e a “pátria goiana”. Finalmente, Goiás não poderia ser considerado terra
de ninguém. Afirmava-se, assim, a presença de uma elite política com capacidade
de articular um projeto para sua região e de romper com o tom de lamento que
Histórias de Doenças 217

marcou sua autoimagem no passado. Doravante, interessava aos goianos apresentar


sua região como alternativa de futuro para o país. Entre o final do século XIX e as
primeiras décadas do século XX, a interiorização da capital se apresentava como
uma proposição utópica. No entanto, em consonância com o dispositivo mudancista
da Constituição de 1891, a elite goiana mobilizou todos os recursos para reafirmar a
mudança como prioridade. Restava, portanto, preparar o terreno para que o destino
se cumprisse – mais uma vez fazer ver e crer (CHARTIER, 1990) – pois, as deter-
minações da geografia e da geopolítica exigiriam, cedo ou tarde, a transferência da
capital para o coração do Brasil.5 O Distrito Federal, é assim representado no poema
de Gilberto Mendonça Teles: “é um simples quadrado, sigla e veredas, buritizais. Um
mapa cheio de carrapatos, coceira viva do meu Goiás” (1982).

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Goiânia: Agepel. (CD-ROM). 2001.

5 Para efetivar a mudança da capital, a elite goiana apoiou a demarcação das terras pela missão
Cruls em 1892, apressou, em 1955, o processo de desapropriação das terras goianas e especu-
lou com a venda de terrenos, antes mesmo que Juscelino Kubitschek se comprometesse com a
construção de Brasília (Magalhães, 2004).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
218 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

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A lembrança dos esquecidos: o acervo
fotográfico dos internos do Asilo São Vicente
de Paulo na Cidade de Goiás
Rildo Bento de Souza1

Introdução

E m 2009, durante minha pesquisa para o mestrado, tive acesso a uma rica docu-
mentação até então inédita: o acervo documental do Asilo São Vicente de Paulo,
instituição construída para a brigar os pobres da Cidade de Goiás. Ao todo, durante
quase um ano de trabalho, conseguimos digitalizar mais de dez mil documentos entre
receituário, livro de visitas, livro de registro de entrada, livro de atas, relatórios admi-
nistrativos, comprovante de compras e pagamentos, testamentos, escrituras, procura-
ções, bilhetes, dentre outros, perfazendo o período de 1885 a 1990.2 Essa documen-
tação, possibilitou que vislumbrássemos novas abordagens e enfoques sobre a então
capital de Goiás na Primeira República, período que analisamos mais profundamente.
Dentre toda a documentação arrolada, o álbum fotográfico da instituição foi
pouco discutido em nossos trabalhos. Dentre as dezenas de fotografias, analisare-
mos aquelas que focam os internos da instituição. Num primeiro momento faremos
algumas considerações sobre o acervo e discutiremos questões metodológicas; de-
pois, perpassaremos pela história do Asilo São Vicente de Paulo; e, por fim, analisa-
remos as fotografias dos internos partindo da seguinte questão: quais discursos são
possíveis presumir a partir da leitura do contexto delas?

1 Doutor em História. Professor Adjunto do curso de Museologia da Universidade Federal de Goiás.


2 No mestrado analisamos o Asilo São Vicente de Paulo entre 1909 a 1935, ou seja, da inaugu-
ração da instituição ao pedido das Irmãs Dominicanas de se internarem pessoas acometidas
de loucura ou doenças contagiosas.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
222 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

O acervo fotográfico: algumas considerações

Enquanto os mais de dez mil documentos manuscritos do asilo São Vicente


de Paulo estavam acondicionados num velho armário, no fundo de uma sala, sem
nenhum cuidado, o acervo fotográfico, embora guardado, à época, com as irmãs do-
minicanas na parte administrativa da instituição, tampouco se encontrava em melhor
estado. Esse documento era constituído (uso o passado, porque a pesquisa foi realiza-
da em 2009, e desde então não tive mais notícias) de um velho álbum com páginas de
papel preto, onde as mais de setenta fotografias foram aleatoriamente coladas.
Digo aleatoriamente, porque o mesmo não obedecia a nenhum padrão, nem
cronológico e nem temático. Numa mesma página do álbum, por exemplo, havia
fotografias da década de 1910, 1950 e 1970; bem como fotografias das irmãs domi-
nicanas, dos internos, da Cidade de Goiás, e da região de Monteilss, França, onde se
situava a Congregação de Nossa Senhora do Rosário, de onde partiram as primeiras
oito irmãs que vieram para Goiás em maio de 1889, para trabalharem no Colégio
Santana, no Hospital de Caridade São Pedro de Alcântara e, posteriormente, no
Asilo São Vicente de Paulo.3
O álbum foi o último documento que eu digitalizei durante a pesquisa e fiquei
intrigado com a sua composição, justamente porque aqueles registros não vinham
acompanhados de nenhuma informação, que situasse o contexto e as personagens fo-
tografadas. Ora, como suporte para a memória o álbum ficava sempre dependente de
alguém que saberia todas aquelas informações e estaria sempre disposta a repassá-las
para os curiosos que viessem a toma-lo nas mãos. As irmãs que me assessoraram,
na época, não sabiam quase nada. Caso fosse um álbum de família, isso se justifica,
porque é algo circunscrito, mas como o álbum de uma instituição centenária, de uma
importância singular para a história da pobreza, da loucura, da velhice, dentre outros,
não se atentou, no decorrer das décadas a registrar a própria memória?
De acordo com Pierre NORA, a história “é a reconstrução sempre problemá-
tica e incompleta do que não existe mais”, enquanto que a memória “é um fenômeno
sempre atual, um elo vivido no eterno presente”; ou seja, nos lugares de memória,
a reconstrução do passado, ou melhor, a representação do passado, só consegue ter
um sentido se, pela memória, os indivíduos conseguem se identificar simbólica e
afetivamente (1993, p. 09). Outrossim, os lugares de memória, compreendem como

3 Sobre esse assunto ver: SANTOS, 1996, p. 137.


Histórias de Doenças 223

um momento de articulação onde a consciência “da ruptura com o passado se con-


funde com o sentimento de uma memória esfacelada, mas onde o esfacelamento
desperta ainda memória suficiente para que se possa colocar o problema da sua
encarnação” (1993, p. 07).
O asilo, por si só, é um local de memória privilegiado, por se tratar de uma
instituição que acolhe indivíduos em longa duração. Diferentemente de um hospital
em que há rotatividade dos seus pacientes, no asilo é como se as lembranças de cada
interno e de cada funcionário se entrelaçassem como fios na roda de fiar da memó-
ria. A instituição encarna nas suas paredes, mais de um século de história. Embora
tenha, no decorrer do tempo, se adequado ao desenvolvimento científico no campo
da medicina, seja mudando a estrutura interna ou construindo novos pavimentos,
com funções até então inéditas (como a ala da fisioterapia, por exemplo), o prédio
principal ainda continua o mesmo, com poucas alterações.
Na dissertação, no período que eu analisei, de 1909 a 1935, pude ver as mu-
danças que ocorreram na instituição a partir dos documentos. Para montar o intri-
cado quebra cabeças, recibos de material de construção, de pedreiros, de alvenaria,
me mostravam que as modificações estavam ocorrendo, como quando construíram
o pavilhão para as irmãs dominicanas, em 1922, que até então dormiam junto aos
internos. Ou a divisão da ala dos internos conforme o sexo, que só ocorreu em 1915.
Nessa reconstrução “problemática e incompleta” do passado dei pouca im-
portância as fotografias, embora as utilizasse mais como ilustração ou para descrever
algum cômodo da instituição. Não havia tempo suficiente para me deter em cada
uma delas e as analisasse da forma que elas mereciam.
Dessa forma, uso o acervo fotográfico da instituição como vestígios de uma
memória incompleta e de uma história em plena reconstrução. Esses indícios as ve-
zes revelam o que os documentos não trazem de informação. Como exemplo, cito o
caso da cor dos internos, nas fotografias são todos negros, porém, não há nenhuma
menção a isso em qualquer documento pesquisado.

Os homens e mulheres que se dedicam a pensar e a refletir sobre os diferentes


campos da dinâmica social não podem desconhecer o poder das imagens.
Para além de sua dimensão plástica, elas nos põem em contato com os siste-
mas de significação das sociedades, com suas formas de representação, com
seus imaginários (BORGES, 2003, p. 78-79).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
224 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Outrossim, as imagens são polissêmicas, há vários sentidos nas suas formas


de produção, emissão e recepção. A imagem é uma linguagem visual que faz uma
“representação do mundo que varia de acordo com os códigos culturais de quem a
produz”. Nesse sentido, ela não é nem verdadeira nem falsa, seus discursos “sinali-
zam lógicas diferenciadas de organização do pensamento, de ordenação dos espaços
sociais e de medição dos tempos culturais” (BORGES, 2003, p. 80).
É a partir dessas considerações que iremos analisar as imagens dos internos
do acervo fotográfico do Asilo São Vicente de Paulo. Acreditamos que todas as foto-
grafias foram produzidas entre 1909 a 1946.

As construções do asilo

O Asilo São Vicente de Paulo foi inaugurado no dia 25 de Julho de 1909


no subúrbio da Cidade de Goiás, e é o único prédio fora do centro histórico, tom-
bado pelo IPHAN. Foi construído por iniciativa dos irmãos leigos da Sociedade
São Vicente de Paulo, criada em Paris, pelo estudante Frederico de Ozanam (1813-
1853), em 1833, e tinha por objetivo a assistência aos pobres.4 Chegou em Goiás em
1885, por meio do Bispo Diocesano Dom Claudio José Gonçalves Ponce de Leão
(1841-1924).5
Funcionando em rede, a Sociedade São Vicente de Paulo era formada por
Conferências, que são grupos com número determinado de integrantes, que varia-
vam de doze a vinte e quatro, que se reuniam com regularidade e frequência e tinham
o objetivo de arrecadar recursos para o auxílio dos mais pobres. Cada Conferência
era batizada com o nome de um orago protetor e as reuniões ocorriam nas igre-

4 Consideramos o conceito de pobre a partir do estudo de Michel Mollat: “O pobre é aquele


que, de modo permanente ou temporário, encontra-se em situação de debilidade, depen-
dência e humilhação, caracterizada pela privação de meios, variáveis segundo as épocas e as
sociedades, que garantem força e consideração social: dinheiro, relações, influência, poder,
ciência, qualificação técnica, honorabilidade de nascimento, vigor físico, capacidade intelec-
tual, liberdade e dignidade pessoais. Vivendo no dia-a-dia, não tem qualquer possibilidade de
revelar-se sem a ajuda de outrem. Uma tal definição pode incluir todos os frustrados, todos
os enjeitados, todos os associais, todos os marginais; ela não é específica de época alguma, de
região alguma, de meio algum” (MOLLAT, 1989, p. 05).
5 A Conferência de São José, no Rio de Janeiro, foi a primeira a ser fundada no Brasil, em 1872.
Histórias de Doenças 225

jas.6 As Conferências de determinada cidade estão unidas entre si pelos Conselhos


Particulares. Estes, por sua vez, estão vinculados aos Conselhos Centrais, de caráter
executivo, que responde por determinada circunscrição.7
Nos seus primeiros anos de funcionamento na Cidade de Goiás, a Sociedade
São Vicente de Paulo se dedicou a quatro obras8: a Escola Noturna, voltada para a
alfabetização de adultos pobres, sendo fechada pouco tempo depois pela falta de
procura (vale lembrar que nessa época a educação não era vista como estratégia de
ascenção social e sim como algo restrito as pessoas mais abastadas9); a Obra dos
Enterros, que consistia numa carroça paramentada com um pano preto, com um fé-
retro dentro, que transportava até o cemitério os corpos dos pobres que não tinham
condições de pagar (ficou popularmente conhecido como o Caixão de São Vicente);
a Doutrina Cristã, que era o trabalho de orientação e catequese; e, por fim, as Visitas
às prisões e hospitais, para levar uma palavra de conforto de amparo as pessoas que
estavam nessas instituições.
Para além disso, cada Vicentino possuía os seus pobres, arrecadando donati-
vos para provê-los em tudo que necessitassem: desde generos alimentícios, roupas,
alguel de casas, patrocinio de casamentos e funerais, até noções de higiene e com-
portamento. Sobre essa relação íntima com os pobres, Michel Mollat constatou na
Idade Média, que o “interesse não era apenas moral – também era espiritual”. Por
que ter “seus pobres, tal como se tinha seus mansos e seus criados, também signifi-

6 Até 1888, nos três primeiros anos de implantação da Sociedade, havia na Cidade de Goiás, a
Conferência da Imaculada Conceição e a Conferência de São José, ambas com sede na Igreja
de São Francisco; a Conferência de Sant’Ana e a Conferência de São Luis Gonzaga, cujas reu-
niões se davam no interior da Catedral; a Conferência de Nossa Senhora do Rosário, com
sede na igreja de mesmo nome; e a Conferência de São Prudêncio, sede do Conselho Geral e
Particular, na Igreja do Carmo. (Asilo São Vicente de Paulo, doravante denominado pela sigla
ASVP: Documentos Avulsos. Histórico da Comunidade do Asilo São Vicente de Paulo – Cidade
de Goiás. Cidade de Goiás, 1975, p. 01).
7 Na sequência hierárquica há os Conselhos Metropolitanos, de âmbito regional. Em nível na-
cional, existe o Conselho Nacional do Brasil, com sede no Rio de Janeiro, RJ. Coordenando o
trabalho em todo mundo está o Conselho Geral Internacional, em Paris, na França.
8 ASVP: Documentos Avulsos. Relatório do Conselho Particular da Sociedade São Vicente de
Paulo enviado ao Conselho Central. Cidade de Goiás, 1888.
9 Mais sobre o assunto, ver os trabalhos de Genesco Ferreira Bretas (1997) e Nancy Helena
Ribeiro de Araújo e Silva (1981).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
226 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

cava ter seus intercessores, com o objetivo de redimir seus pecados e ter sua salvação
garantida” (MOLLAT, 1989, p. 149).10
Com isso os Vicentinos implantaram na Cidade de Goiás uma ampla e bem
organizada rede de assistência aos pobres. Houve época em que um só membro
de determinada Conferência assistia a sete pobres. Nos livros de contabilidade das
Conferências, percebe-se a regularidade com que o dinheiro era destinado a esses
indivíduos.11 Este trabalho foi amplamente reconhecido pela sociedade vilaboense,
que há muito esperava uma solução para o problema dos pobres e loucos mansos
que viviam espalhados pelas ruas da cidade colocando a ordem pública em constan-
te ameaça.12 Para ser atendido pela Sociedade São Vicente de Paulo, o pobre só ne-
cessitava ser católico, e os Vicentinos, por sua vez, acreditavam trilhar, deste modo,
os caminhos da salvação eterna.
Com o tempo, percebe-se pela documentação uma grande dificuldade em con-
seguir recursos, uma vez que o número de vicentinos decaía e o de pobres aumentava.
O aluguel de casas onerava em demasia a receita da Sociedade, e ainda em 1886, um
ano após o início dos seus trabalhos, cogitou-se a possibilidade de “adquirir um prédio
com as necessárias acomodações afim de melhor tratá-los em conjunto”.13

Esta idéia (construção do asilo) nasceu em 1886, mas não foi aceita pela maio-
ria dos sócios e permaneceu adormecida por dois anos sendo então renovada
em 1888 e aprovada por grande maioria, mas não teve a devida execução.
Em 1889 a Conferência de N. S. do Rosário da Capital a adotou alugando

10 A questão de interceder junto a Deus por meio da oração foi identificada no suplemento
do Correio Oficial de nº 58 de 10 de agosto de 1881, em que lê-se: “Um apelo aos corações
benfazejos e cristãos. A infeliz Theodora, moradora no beco da Villa Rica, não podendo mais
esmolar pelas ruas, como até há pouco o fazia, em consequência de haver-se agravado bastan-
te o enorme aleijão que tem, suplica às almas caritativas que não se esqueçam dela com o pão
diário e roupas servidas, promotendo a todos dirigir incessantemente rogos a Deus em favor
de seus benfeitores”. (CORREIO OFICIAL, apud RABELO, 1997, p. 67).
11 ASVP: Documentos Avulsos. 1º Livro de recibos das quantias pagas pelo thezoureiro da
Conferencia da Immaculada Conceição. Cidade de Goiás, 1888-1889.
12 Trabalhos como o de Cristina de Cássia Pereira Moraes (1995) e Danilo Rabelo (1997), que
discutem o modo como o poder público tratou esses indivíduos desde o segundo quartel do
século XIX até o fim do Império, demonstram que o problema ficou mal resolvido.
13 ASVP: Documentos Avulsos. Histórico da Comunidade do Asilo São Vicente de Paulo – Cidade
de Goiás. Cidade de Goiás, s/d, p. 02.
Histórias de Doenças 227

para esse fim dois prédios contíguos na rua Passo da Pátria, nos quais reuniu
diversos pobres por ela socorridos.14

O aluguel dos dois prédios pela Conferência de Nossa Senhora do Rosário,


resultou-se ineficiente para resolver o problema dos pobres na cidade de Goiás.
Somente em 1899 a ideia começou a sair do papel, com a aquisição do terreno do-
ado pelo então Intendente Municipal e Vicentino, o médico José Netto de Campos
Carneiro,15 numa região afastada do centro da cidade, como veremos mais adiante
quando analisaremos o acervo fotográfico da instituição.
Por conseguinte, a Pedra Fundamental do futuro asilo foi lançada em agosto
de 1900, em uma solenidade que contou com a presença da sociedade, dos confrades
Vicentinos, de clérigos e do então Bispo Diocesano, D. Eduardo Duarte e Silva (s/d-
1924), que sucedeu Dom Cláudio, a partir de 1891.
Durante os dez anos de construção do asilo, foram gastos “39 contos, assim
discriminada: esmolas, 14 contos; auxilio da União por meio de loterias, 12 contos
de réis; auxilio do governo estadual, 8 contos de réis; auxilio municipal, 5 contos de
réis” (AZEVEDO, 1987, p. 112).
Para além do objetivo principal da instituição que era o de “(…) recolher os
indigentes e mantel-os; dando-lhes o necessario abrigo, juntamente com o consolo
que proporciona a Religião Catholica”,16 a construção do asilo, camuflaria, outros-

14 ASVP: Documentos Avulsos. Histórico da Comunidade do Asilo São Vicente de Paulo – Cidade
de Goiás. Cidade de Goiás, s/d, p. 02.
15 José Netto de Campos Carneiro (Catalão-GO, 27 de Fevereiro de 1857 – Cidade de Goiás, 25
de Novembro de 1921). Médico formado na Faculdade de Medicina da Bahia. Foi Deputado
Estadual (1892-1894); Secretário de Estado de Instrução e Obras Públicas de Maio a Julho
de 1895; Intendente Municipal da Capital por dois mandatos (1899 e 1909); e Secretário de
Estado do Interior e Justiça (1913-1914). Foi Diretor do Hospital de Caridade São Pedro de
Alcântara (CAMPOS; DUARTE, 1998, p. 178). Além do mais foi um Vicentino muito queri-
do pela população vilaboense. Não constituiu família, nem deixou filhos. Em seu testamento
doou sua casa e sua fortuna para a instituição de um orfanato, denominado de Orfanato São
José. “Gostava imensamente de flores, trazendo sempre uma á lapela”. Ao falecer “(…) foi seu
caixão conduzido, da porta do cemitério ao tumulo, por moças de sua terra” (MONTEIRO,
1983, p. 187).
16 ASVP: Documentos Avulsos. “Regulamento do Asylo da Sociedade de S. Vicente de Paulo de
Goyaz. Confeccionado pelos Confrades: Desembargador Emilio Francisco Povoa e Dr. Maurílio
M. Curado Fleury”. Cidade de Goiás, 1909, p. 02.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
228 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

sim, sob o discurso da caridade cristã, o saneamento da cidade. Os pobres, mendi-


gos, doentes, velhos, e alienados mentais, que punham em risco a salubridade da
então capital, foram colocados numa instituição longe o suficiente da zona urbana.
O discurso da caridade, e a construção do asilo, resolveu, incialmente, um problema
que se arrastava há mais de um século, desde o período da tão propalada decadência
aurífera, na segunda metade do século XVIII.17
Por conseguinte, até o final do século XIX as teorias miasmáticas dominavam
o debate médico; segundo esse princípio, o surto de epidemias de doenças contagio-
sas era causado em decorrência do estado do ambiente, ou seja, o estado atmosférico
envolto pelas más condições sanitárias contribuía para o aparecimento de doenças
(ROSEN, 1994, p. 211).
A construção do asilo, visto por essa perspectiva, representou os esforços de
uma elite, que sob o discurso da caridade cristã, empreendeu grandes esforços para
higienizar as ruas, becos e vielas de uma cidade insalubre, localizada num fundo de
vale, entrecortada por um rio, cercada por um serra, o que impedia a livre circulação
do ar, e, consequentemente, uma sensação de bem estar.
Pois bem, o asilo foi construído e o edifício era imponente para a época, pos-
suindo oitenta metros cada lado, em formato de U. Na frente localizava-se a Capela
e o Salão da Junta Administrativa do Asilo. No lado esquerdo localizavam-se os dor-
mitórios das Irmãs Dominicanas, vindas diretamente da França para trabalharem
na instituição, a cozinha e a rouparia. O lado direito, por sua vez, era dedicado aos
alojamentos dos internos.
De acordo com o Regulamento do Asilo São Vicente de Paulo, a Junta
Administrativa tinha o objetivo de administrar e angariar recursos para prover a ins-
tituição.18 Era subjugada ao Conselho Particular da Sociedade, que elegia anualmen-
te uma nova Junta, sempre no dia 25 de Julho, data da inauguração do asilo. A Junta
Administrativa era composta de um Presidente, um Secretário e um Tesoureiro, que

17 Digo “inicialmente”, por que mesmo com a construção do asilo, o número de pobres que
necessitavam de amparo cresceu. Casas continuaram a ser alugadas pelas Conferências
Vicentinas, por exemplo. Mais sobre esse assunto ver o meu estudo: SOUZA, 2014.
18 ASVP: Documentos Avulsos. “Regulamento do Asylo da Sociedade de S. Vicente de Paulo de
Goyaz. Confeccionado pelos Confrades: Desembargador Emilio Francisco Povoa e Dr. Maurílio
M. Curado Fleury”. Cidade de Goiás, 1909, p. 03.
Histórias de Doenças 229

embora pudessem se reeleger, tal fato nunca ocorreu.19 Há que se ressaltar que os
membros não recebiam salários.
Às Irmãs Dominicanas, vindas diretamente da França para trabalharem na
instituição, cabia a administração interna, junto com os asilados. “O tratamento dos
Azylados ficará exclusivamente entregue ás Irmãs Dominicanas para isso contrac-
tadas pela Sociedade”.20 Pela documentação arrolada, até a década de 1960 as Irmãs
recebiam salários pelo trabalho realizado na instituição.
Em 2015, o nome da instituição foi alterado, de asilo para “lar”. Atualmente,
conta com sessenta e cinco internos, sob os cuidados das Irmãs Dominicanas, que
administram a instituição sozinhas, sem a divisão com os vicentinos. Assim como
no início, a maioria dos asilados constituem em idosos com problemas mentais.

Os internos

De acordo com o Livro de Registro de Entrada do Asilo São Vicente de


Paulo, no período compreendido entre 25 de julho de 1909, data da sua inaugura-
21

ção, a 25 de abril de 1946, data do último registro encontrado no referido documen-


to, 442 indivíduos foram internados na instituição pelos mais diferentes motivos. É
nesse período que se situa as fotografias que analisaremos a seguir. A idade desses
internos variaram de 06 meses a 115 anos. Quanto ao sexo, havia uma predominân-
cia feminina, com 281 registros contra 161 dos homens. Já em relação a localidade
de procedência dos internos, 59 cidades ou regiões foram catalogadas, destas se so-
bressaiu a Cidade de Goiás com 251 ocorrências. Ademais, foram observadas 42
enfermidades, dessas se destacaram a “Velhice”, com 101 casos; “Idiotia”, com 69;
“Cegueira”, com 31; e “Aleijado” com 25 ocorrências.22 Inicialmente, o asilo compor-

19 ASVP: Documentos Avulsos. Nomes dos confrades da Sociedade de S. Vicente de Paulo que tem
sido eleitos para administrar o Asilo. Cidade de Goiás, 1966.
20 ASVP: Documentos Avulsos. “Regulamento do Asylo da Sociedade de S. Vicente de Paulo de
Goyaz. Confeccionado pelos Confrades: Desembargador Emilio Francisco Povoa e Dr. Maurílio
M. Curado Fleury”. Cidade de Goiás, 1909, p. 03.
21 O Livro de Registro de Entrada é um documento com quinze páginas, de um caderno tipo
ata. Ele contém onze colunas com os respectivos títulos: “Número”, em ordem crescente;
“Data de Entrada”; “Nome”; “Idade”; “Sexo”; “Pátria”, que é o local de origem; “Enfermidade”;
“Retirada”, data; “Óbito”, data; “Causa Mortis” e “Observação”.
22 ASVP: Documentos Avulsos. Livro de Registro de Entrada do Asilo São Vicente de Paulo (1909-
1946). Cidade de Goiás.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
230 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

tava em torno de quarenta a sessenta internos; número que se manteve estável até
chegar aos sessenta e cinco atuais.
As duas primeiras fotografias, a seguir, mostram os internos divididos por
sexo, com as irmãs dominicanas. Na primeira imagem, com as mulheres, vemos
também muitas crianças. Em 1922 foi fundado o Orfanato São José�, na residência
do médio Dr. José Neto Campos Carneiro, que já falamos anteriormente, que, por
testamento, doou suas posses e sua casa para a construção do mesmo. Com isso,
diminuiu muito as crianças no asilo, uma vez que esse era um motivo de grande
preocupação dos vicentinos. Em 1922, por exemplo, dos sessenta e cinco internos,
vinte e quatro eram crianças, e nessa época não havia alojamentos adequados para
comportá-las.23
Na segunda imagem os homens da instituição junto com uma irmã domini-
cana, e o que parece ser uma mulher, no lado direito usando um chapéu. Também se
percebe a presença de crianças.

Fotografia nº 1: Internas do Asilo São Vicente de Paulo no quintal. Fonte: ASVP: Documentos Avulsos.
Álbum fotográfico do Asilo São Vicente de Paulo. Cidade de Goiás, s/d.

23 ASVP: Documentos Avulsos. Relatório da Junta Administrativa do Asilo São Vicente de Paulo
em 23 de julho de 1922. Cidade de Goiás, 1922.
Histórias de Doenças 231

Fotografia nº 2: Internos do Asilo São Vicente de Paulo no quintal. Fonte: ASVP: Documentos Avulsos.
Álbum fotográfico do Asilo São Vicente de Paulo. Cidade de Goiás, s/d.

Nas duas fotografias percebe-se há um maior número de internos do sexo


feminino, o que confirma os dados no Livro de Registro de Entrada. Deve-se deter
também no fato de que todos os internos da instituição serem negros. Esse ponto, na
dissertação, não me provocou maiores reflexões, porque o objeto de análise era outro.
Entretanto, ao analisarmos as imagens é impossível não pensar que o asilo, feito a
partir de um forte discurso embasado na caridade e nas ações cristãs, também possa
ter escondido um discurso de segregação por parte das elites, ou até mesmo de caráter
eugênico. Isso não fica explícito nos documentos analisados, porém, nos relatórios
anuais da junta administrativa do asilo, aos internos são dados os piores adjetivos:

Srs! Não é das cousas mais agradaveis viver entre as pobresas e desamparos,
entre os ascos e as miserias da gente mais inculta, da gente mais pobre, da gen-
te menos gente, de quantas nasceram ou abortaram neste mundo; é preciso
ser forte para percorrer este Asylo e vêr com attenção todas as miserias que
aqui se abrigam.24

24 ASVP: Documentos Avulsos. Relatório da Junta Administrativa do Asilo São Vicente de Paulo
em 23 de julho de 1922. Cidade de Goiás, 1922
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232 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

O projeto de construção do asilo, por sua vez, coincide com o fim da escra-
vidão. Os negros recém libertos pelo 13 de maio de 1888, ou já libertos, como no
caso da Cidade de Goiás,25 continuaram ou subservientes aos antigos senhores, ou se
marginalizaram ainda mais na sociedade. O asilo era o local destinado àqueles que
não tinham condições de trabalhar, seja pela idade, ou por problemas de saúde. Os
indesejados, que se amontoavam nas ruas, becos e vielas na cidade do Anhanguera,
encontravam guarida na instituição que se revestia com o discurso caritativo cristão.
No asilo, tinham acesso a comida, roupa, local para dormir, tomar banho, e atendi-
mento médico, além da participação em atividades religiosas.
Nessa perspectiva, o asilo lembra os hospitais medievais, que estão emba-
sados em dois valores cardeais, a caridade (caritas) e a enfermidade (infirmitas).
A caritas deriva da fraternidade humana, que, por sua vez, decorre do elo entre o
amor paternal de Deus e os homens, uma vez que a Igreja Católica ensinava que
“para amar Deus, é preciso amar nosso irmãos”. A infirmitas, por sua vez, está li-
gada à fraqueza do corpo e a sua dependência, sendo, por isso, “mais socialmente
desvalorizada”, tornando-se paulatinamente a condição de todos os homens frágeis,
pois assinalava o pecado original. A caritas e a infirmitas serão as alavancas para o
“nascimento do hospital medieval, lugar público e gratuito de caridade” (LE GOFF;
TRUONG, 2006, p. 118).
Outrossim Michel Foucault complementa que até o século XVIII, o “perso-
nagem ideal” do hospital não é o doente que precisa se curar e sim o pobre que está
morrendo. “É alguém que deve ser assistido material e espiritualmente, alguém a
quem se deve dar os últimos cuidados e o último sacramento. Esta é a função essen-
cial do hospital” (FOUCAULT, 1993, p. 101).
Assim era o asilo de Goiás, construído pelas famílias mais abastadas social-
mente para realocar em um lugar longe o suficiente do centro, aqueles que causa-
vam repulsa e poderiam, também, ser foco irradiador de doenças. De acordo com
MORAES (1995), durante o Império, com as novas medidas de higiene adotadas
houve uma mudança significativa no comportamento dos habitantes da Cidade de
Goiás. A construção do cemitério Santana na década de 1850, e a construção de
um primeiro andar sobre as casas visando fazer o ar circular são exemplos desse
processo. O fato da antiga capital goiana estar encravada no fundo de um vale, cer-

25 A Lei Áurea não encontrou nenhum negro na condição de escravo na Cidade de Goiás,
devido a intensa campanha abolicionista promovido, principalmente pela família Bulhões
(MORAES, 1972, p. 107)
Histórias de Doenças 233

cada por uma serra, e entrecortada por um rio, tornava-a um local muito insalubre.
Considero que retirar os pobres das ruas, mesmo com o viés da caridade, soa como
uma estratégia de controle dos espaços.
No decorrer dos anos, entretanto, isso foi mudando e pessoas de posses que
não tinham quem lhes valessem, principalmente no fim da vida, doavam os bens a
instituição com o intuito de serem aceitas por ela. Durante a pesquisa me deparei
com seis casos dessa natureza. Com o tempo, o discurso da caridade venceu e ga-
nhou a simpatia popular. Os pobres eram visitados pela comunidade nos domingos
e deixavam suas impressões no livro de visitas, sempre trazendo elogios às Irmãs
Dominicanas, pelos cuidados prestados aos pobres.26 Não houve uma só semana
sem visitantes, a não ser no período da gripe espanhola em 1918-1919, que grassou
o território goiano e matou quase 5% da população vilaboense.27
Voltando as duas fotografias acima, outro dado interessante é em relação as
roupas, que no período que supostamente essas fotografias foram tiradas (1909-
1946), as mesmas eram feitas por costureiras contratadas pela instituição,28 a partir
de tecidos comprados pelos vicentinos. O traje consistia em vestidos para as mu-
lheres e meninas, calças e camisas para os homens, e bermudas e camisas para os
meninos. Em todas as fotografias, como nas demais que compõe o álbum, há uma
predominância da cor clara, especialmente o branco, como uniforme para os inter-
nos. Chama a atenção também o fato dos internos estarem descalços.
Na próxima fotografia vemos um conjunto de internas do asilo; aparecem
sete no primeiro plano e uma atrás, no lado esquerdo. Assim como nas duas imagens
acima, elas são negras, estão descalças e usam vestidos brancos. Todas elas, excluin-
do a criança e a mulher em segundo plano, parecem ter algum tipo de problema,
seja por idade avançada, ou por transtornos psicológicos, uma vez que raros eram
os pacientes que gozavam de boa saúde. A primeira no lado direito, que está com as
mãos juntas, é portadora do bócio.29

26 ASVP: Documentos Avulsos. Livro de Visitas do Asilo São Vicente de Paulo (1909-1929).
Cidade de Goiás.
27 Mais sobre o assunto ver: DAMACENA NETO, 2011.
28 ASVP: Documentos Avulsos. Ata da sessão ordinária da Junta Administrativa do Asilo São
Vicente de Paulo aos 16 de Novembro de 1917. Cidade de Goiás, 1917.
29 O bócio consiste no crescimento da Tireoide, uma glândula localizada na parte da frente do
pescoço e responsável pela produção de hormônios. Quando ela não é capaz de produzi-los,
a glândula cresce. Pesquisas indicaram que o bócio era causado pela carência de iodo.
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234 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Fotografia nº. 03: Internas do Asilo São Vicente de Paulo no quintal. Fonte: ASVP: Documentos
Avulsos. Álbum fotográfico do Asilo São Vicente de Paulo. Cidade de Goiás, s/d.

Nas duas fotografias anteriores também vemos internos que padecem desse
mal. O bócio era endêmico em Goiás, que era conhecida como a terra dos papudos.
Durante o século XIX, viajantes como Auguste de Saint-Hilaire e Luiz D’Alincourt,
por exemplo, chamaram a atenção para esse problema. Na Cidade de Goiás “quase
todos os habitantes da cidade e de suas redondezas têm bócio, e muitas vezes essa
deformidade, quando muito acentuada, dificulta a fala de seus portadores” (SAINT-
HILAIRE, 1975, p. 51). Por muito tempo, acreditou-se que a temperatura, a umida-
de e a alimentação deficitária eram as causas dessa doença. No asilo, raros os indiví-
duos não possuíam o bócio.
Em 1909, ano em que o Asilo São Vicente de Paulo foi inaugurado, Carlos
Chagas, médico e pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz, descobriu uma nova pa-
tologia que foi batizada com o seu nome, a doença de Chagas. Essa descoberta ocor-
reu no interior de Minas Gerais, em Lassance, quando ele identificou o protozoário
causador, o Tripanossoma cruzi, e o vetor que o transmitia ao ser humano, um inseto
popularmente conhecido como barbeiro, comumente visto nos pequenos orifícios
que se formam nas paredes dos casebres de barro espalhados pelos sertões do Brasil.30

30 Mais sobre o assunto ver: DELAPORTE, François. A Doença de Chagas: História de uma ca-
lamidade continental. Ribeirão Preto – SP: Holos, 2003; KROPF, Simone Petraglia. Doença
Histórias de Doenças 235

Quando descobriu a nova doença, Carlos Chagas acreditava que sua patologia “estava
voltada, principalmente, para a tireoide e o sistema nervoso central, vindo a seguir as
alterações cardíacas” (REZENDE, 2009, p. 269). Ou seja, a forma crônica da doen-
ça era encontrada em pessoas com bócio, idiotia e cretinismo. Nas décadas seguintes
provou-se que não havia relação entre a doença de chagas e o bócio.
Em 1912, por solicitação da Inspetoria de Obras contra as Secas, órgão vin-
culado ao Ministério dos Negócios da Indústria, Viação e Obras Públicas, o Instituto
Oswaldo Cruz organizou uma expedição chefiada pelos médicos sanitaristas Arthur
Neiva31 e Belisário Pena,32 que, durante nove meses, mapeou o quadro nosológico do
Norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do Piauí e de todo o território goiano.

de Chagas, Doença do Brasil: ciência, saúde e nação, 1909-1962. Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz, 2009.
31 “O médico sanitarista baiano Artur Neiva desenvolveu importantes trabalhos nas áreas de his-
tória natural, etnografia e linguística. Formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
foi nomeado interventor da Bahia (1931), onde criou o Instituto do Cacau. Organizou e fun-
dou o Instituto Biológico de São Paulo e o Instituto de Tecnologia do Ministério do Trabalho
e criou o Instituto de Biologia Vegetal do Ministério da Agricultura. Elaborou o primeiro
código sanitário do Brasil quando dirigia o Serviço Sanitário do Estado de São Paulo e resta-
beleceu a profilaxia do tracoma e a vacina obrigatória e organizou o serviço para o combate
à sífilis. Como uma das maiores autoridades do país em malária, foi designado por Oswaldo
Cruz (1906) para organizar a profilaxia antimalárica na captação da água destinada ao Rio de
Janeiro, em Xerém e Mantiqueira” (MAGALHÃES, 2004, p. 101).
32 “Belisário Penna (1868-1939) doutorou-se em 1890, pela Faculdade de Medicina da Bahia.
Em 1905 foi designado para trabalhar na Inspetoria de Profilaxia Rural da Febre Amarela,
incorporando-se à campanha chefiada por Oswaldo Cruz para a erradicação desta doença
no Rio de Janeiro. A partir de então e até 1913, dedicou-se ao combate de endemias rurais,
como a malária e a ancilostomíase. Por volta de 1914, através do jornal Correio da Manhã
iniciou uma campanha “pelo saneamento físico e moral do Brasil”. Em 1918, publicou o livro
O Saneamento do Brasil. Ainda neste ano, foi nomeado para dirigir o recém-criado Serviço
de Profilaxia Rural, assumindo o cargo de Delegado de Saúde. Entre 1920 e 1922, foi diretor
de saneamento do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), instalado em quinze
estados os serviços de profilaxia rural. Em 1928, ocupou a chefia do Serviço de Propaganda e
Educação Sanitária, percorrendo os estados de Minas Gerais, Alagoas, Pernambuco, Paraíba e
Rio Grande do Norte, até ser requisitado pelo governo do Rio Grande do Sul para estudar as
condições sanitárias daquele estado. Durante dois breves períodos, em setembro de 1931 e de-
zembro de 1932, ocupou interinamente o Ministério de Educação e Saúde” (MAGALHÃES,
2004, p. 101).
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236 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Quatro anos depois foi publicado o extenso relatório dessa expedição nas Memórias
do Instituto Oswaldo Cruz, que descortinou para o litoral a face de um país atra-
sado, onde “(…) a solidão, a miséria, o analfabetismo universal, o abandono com-
pleto dessa pobre gente, devastada moralmente pelo obscurantismo, pelas abusões
e feitiçarias, e fisica e intelectualmente por terriveis molestias endemicas” (NEIVA;
PENA, 1999, p. 220-221). Este relatório tornou-se a égide do movimento sanitarista
na Primeira República. Na sua passagem pela Cidade de Goiás, em Setembro de
1912, os médicos de Manguinhos visitaram o Asilo São Vicente de Paulo:

Além de várias igrejas; conta diversos edificios publicos, e o excelente asilo


[…] dirijido por irmãs dominicanas onde se acham recolhidos muitos in-
felizes, na sua maioria cretinos vitimados pela moléstia de Chagas. (…) O
asilo […], instituição de caridade, de iniciativa particular, novo, vasto e bem
construido edificio, é um viveiro de infelizes de ambos os sexos e de todas as
idades, em sua quasi totalidade, vitimas das formas mais graves da moles-
tia de Chagas. Não se sabe o que mais admirar: se a desgraça dos infelizes,
se a paciencia evanjelica das dignas freiras que dirijem a caridosa instituição
(NEIVA; PENA, 1999, p. 222-223).

Na ocasião, os membros da expedição aproveitaram para fotografar os inter-


nos do asilo, produzindo um rico material disponível nos anexos do relatório. Nessas
imagens, aparecem somente os internos, cuja maioria os médicos de Manguinhos
diagnosticaram com cretinismo. O cretino, “é uma designação para pessoas retar-
dadas desde o nascimento, tanto mental como fisicamente. Elas também têm des-
figuração facial e podem ser surdas e mudas” (KARASCH, 1999, p. 34). O cretinis-
mo é uma variação da idiotia, que são aqueles indivíduos “privados mais ou menos
completamente da inteligência desde a mais tenra idade”. Também havia o imbecil,
que eram “idiotas cujas faculdades intelectuais estão desenvolvidas até certo ponto”
(CHERNOVIZ, 1890, p. 201 e 202).
Enfim, o asilo era conhecido como um lugar onde viviam os bobinhos (como
eram tratados os loucos mansos), os idiotas, os cretinos e os velhos, e que podiam ser
visitados pela sociedade (AZEVEDO, 1925, p. 97; MONTEIRO, 1983, p. 99). Como
numa exposição, os internos eram alvo da caridade e da curiosidade alheia. As irmãs
gozavam de todo prestígio por se entregarem a tão pesada atividade. Afinal, como
afirmou um documento no início desse tópico, era “preciso ser forte para percorrer
este Asilo e vêr com atenção todas as miserias que aqui se abrigam”.
Histórias de Doenças 237

Nesse sentido, quero ressaltar duas fotografias de dois internos, que no álbum
são os únicos que merecem poses individuais. Como as fotografias no início do sé-
culo XX eram muito dispendiosas, principalmente no interior, todas as fotografias
do álbum, a exceção dessas duas, quando há pessoas nelas, elas nunca estão sozi-
nhas. Primeiro, olhemos as imagens com atenção:

Fotografia nº. 04: Interno do Asilo São Vicente de Paulo. Fonte: ASVP: Documentos Avulsos. Álbum
fotográfico do Asilo São Vicente de Paulo. Cidade de Goiás, s/d.
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238 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Fotografia nº. 05: Interna do Asilo São Vicente de Paulo. Fonte: ASVP: Documentos Avulsos. Álbum
fotográfico do Asilo São Vicente de Paulo. Cidade de Goiás, s/d.

O primeiro questionamento que nos vem à tona são os motivos que levaram
somente esses dois internos a serem fotografados individualmente. O que esses dois
internos possuem de diferente em relação aos outros? Que interesses permearam a
construção da imagem pelo fotografo?
O primeiro personagem, por exemplo, pode ser visto em quase todas as
imagens desse estudo. Ele sempre aparece, não é difícil identificá-lo. Mesmo com o
passar do tempo (o que se percebe pela mudança da qualidade das fotografias, ele
pouco ou nada mudou). Foi uma pessoa que teve problemas de crescimento, possuía
as pernas tortas, e uma aparência que remete, ao que até nas primeiras décadas do
século XX era chamado de “idiota” ou “cretino”, como abordamos páginas atrás; ou,
para usar um termo popular em Goiás, o “bobo”.

A expressão “bobos de Goiás” concerne, aqui, a uma categoria de pessoas


com deficiência mental de grau leve a muito elevado, algumas apresentando
Histórias de Doenças 239

também lesões físicas, muitas surdas e mudas, outras com sequelas de bócio,
em sua grande maioria de estatura baixa e, em geral, de vida longeva. Não
são doidos varridos nem loucos de rua; tampouco doentes mentais. Insisto:
são deficientes mentais. Não parecem ser detentores de uma única síndrome
(MEIRELES, 2014, p. 23).

A segunda é uma menina que, aparentemente, sofre de hidrocefalia, que é


quando ocorre uma dilatação da cabeça, o que pode comprometer o desenvolvimento
físico e intelectual. Ela se encontra de olhos fechados, que pressupõe que estava dor-
mindo, ou protegendo os olhos do sol, já que ela estava no quintal. Deitada numa es-
pécie de carrinho de madeira, ela tem ao fundo as roseiras e o alojamento dos internos.
O personagem da fotografia de nº 04, por sua vez, está diante de uma pilastra
que nos revela o porão da instituição. Percebe-se um monte de cascalho e um prato
no lado esquerdo. Um prato vazio de alumínio esmaltado que insinua, dentre outras
coisas, a miséria em que viviam esses indivíduos… Por outro lado, um observador
mais atento, ao analisar todas as fotografias estampadas neste estudo, perceberá que
ele é o único interno que usa sapatos. Ele aparece também na imagem de nº 02 e 06
com o mesmo tipo de calçado, diferentemente dos outros que estão descalços. É uma
proteção muito precária, uma vez que as pedrinhas que formam o cascalho deveria
ser um empecilho muito grande para a locomoção.
Não sei se o que levou os idealizadores dessas fotográficas a retratá-los em
separado dos demais foi a piedade, a aparência diferente, ou a repulsa. Enquadrados
no centro de uma fotografia, eles estão eternamente encarcerados num álbum de
uma instituição que foi criada para cuidar dos pobres, dos doentes, dos desvalidos.
Por conseguinte, desde o final do século XVIII ao início do século XX, o
corpo do doente foi objeto de vários estudos, e carregados de diversos significados,
como o corpo “monstruoso” e o corpo “degenerado”. Os “monstros” eram aqueles
indivíduos que possuíam características excessivas, tais como “repetições errôneas
de certas partes, expansão desmedida, atrofia importante” (STIKER, 2008, p. 355).
E o conceito de “degenerado”, por sua vez, no qual se incluía o “microcéfalo,
o anão, o alcoólico confirmado, o idiota, o criptórquido (sem testículos), o cretino,
o alporquento, o escrofuloso confirmado, o tuberculoso, o raquítico”, se desenvolve a
partir da medicina alienista, “como uma categoria psiquiátrica genérica”. Influenciados
pela teoria da evolução das espécies, seus defensores argumentavam que o indivíduo
degenerado era o oposto do tipo perfeito, que era o homem branco, por isso os negros
são os principais alvos, e esses passariam suas “degenerescências” para a descendência
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
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por meio da hereditariedade. O alcoolismo, a criminalidade e as imperfeições no cor-


po são vistas por essa perspectiva. “O degenerado é a concentração de todas as taras; e
estas estão sempre inseridas no corpo” (STIKER, 2008, p. 367-368).
Suas deformações chamavam a atenção da sociedade, que os viam como alvo
principal tanto para a prática da caridade, como para a execração (OLIVEIRA, 2003).
O diferente, aqueles que não se encaixavam nos padrões da sociedade foram vistos de
diferentes formas ao longo do tempo, desde prenúncios de desgraças até como “lin-
guajem alegórica” de Deus (ECO, 2007, p. 241). Em Goiás, esses indivíduos, quando
não tinham o amparo da família, eram relegados à própria sorte e viviam à margem da
sociedade, definidos como não tendo domicílio fixo, que dormiam em qualquer lugar,
ou seja, “gente sem senhor”, “inúteis ao mundo” (SCHMITT, 2001, p. 280).33
Os dois personagens são, antes de tudo, dois seres humanos, que num deter-
minado momento de suas vidas, não tiveram quem lhes valessem e necessitaram da
caridade pública, sendo então, acolhidos pelo asilo. São duas crianças que possuem,
visivelmente, sérios problemas de saúde que as tonam diferentes dos demais.
Na fotografia abaixo, observamos uma confraternização dos internos do asilo
com, possivelmente, as crianças do Orfanato São José, o que data a imagem para
depois de 1923. No primeiro plano há vários internos que sofrem de problemas de
saúde ligados a locomoção e ao crescimento, inclusive no centro vemos o nosso per-
sonagem analisado anteriormente. Haviam outros com os mesmos problemas, o que
apenas nos deixa com a dúvida dos motivos que levaram apenas aqueles dois inter-
nos a serem fotografados individualmente. Por esse lado, o fascínio pelo diferente, e
pelo exótico, apenas, não sustenta a resposta ao questionamento.

33 Porém, para que se descortine a história desses indivíduos marginalizados é necessário trans-
por uma série de barreiras, a primeira delas é a seguinte: “como ouvir a voz dos marginais do
passado, quando, por definição, ela foi sistematicamente abafada pelos detentores do poder,
que falavam dos marginais, mas não os deixavam falar”. Deste modo o historiador deve partir
de indícios, que são encontrados nos documentos oriundos do centro. “Trata-se de vestígios
discretos, mas quão vivos!” (SCHMITT, 2001, p. 284-285).
Histórias de Doenças 241

Fotografia nº. 06: Festividade no Asilo São Vicente de Paulo. Fonte: ASVP: Documentos Avulsos.
Álbum fotográfico do Asilo São Vicente de Paulo. Cidade de Goiás, s/d.

Essas confraternizações eram organizadas geralmente no período do Natal,


quando os pobres recebiam uma comida melhor, uma vez que eram solicitadas “as
senhoras goianas os seus auxílios, isto é pedindo a cada uma Sra. um prato de iguarias
para o referido almoço”.34 Ademais, a comida era melhorada em outros dias de festas,
como na comemoração de São Vicente de Paulo, ou em algum outro evento religioso.35
Na fotografia percebe-se que s mesa está forrada, e decorada com vasos de
flores. Vê-se também garrafas, provavelmente de refrigerantes. Alguns internos es-
tão sentados em volta da mesa, alguns de frente e outros de costas, o que presume-se
que a fotografia foi retirada antes de começar a alimentação.
A dieta dos internos do asilo, de 1909 a 1935, era composta basicamente de
arroz, feijão, farinha de milho e de mandioca, leite, pão, verduras, frutas, carne de

34 ASVP: Documentos Avulsos. Ata da sessão ordinária da Junta Administrativa do Asilo São
Vicente de Paulo aos 09 de Setembro de 1923. Cidade de Goiás, 1923.
35 Como, por exemplo, quando da comemoração dos 25 anos de ordenação sacerdotal do Bispo
Dom Prudêncio Gomes da Silva. ASVP: Documentos Avulsos. Ata da sessão ordinária da Junta
Administrativa do Asilo São Vicente de Paulo aos 09 de Abril de 1917. Cidade de Goiás, 1917.
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porco, de franco e de gado. Para além disso, o asilo recebia muitas doações, princi-
palmente de vacas, porcos e aves. Nesse sentido, a fotografia abaixo, podemos ana-
lisar como ocorria a assistência aos internos, numa imagem privilegiada do quintal
da instituição.

Fotografia nº. 07: Internos no quintal do Asilo São Vicente de Paulo. Fonte: ASVP: Documentos
Avulsos. Álbum fotográfico do Asilo São Vicente de Paulo. Cidade de Goiás, s/d.

Na imagem, os internos aparecem no quintal, ao fundo se localizava o dor-


mitório das irmãs, a cozinha, e a rouparia. Há um estaleiro atrás dos internos que
se estende por quase toda a extensão da fotografia, que servia para sustentar os pés
de uva, que eram utilizadas para a fabricação de vinho no próprio asilo, que foi cria-
do em 1916.36 No primeiro plano destacam-se os canteiros de hortaliças que visava
complementar a alimentação dos internos.
Percebe-se também que o quão amplo era o quintal da instituição. Como dis-
semos páginas atrás, o formato do asilo era em U, e o espaço no centro, que aparece
na fotografia servia não somente de lazer como também para a produção de alimen-

36 ASVP: Documentos Avulsos. “Setimo Relatorio do Presidente da Junta do Asylo de São Vicente
de Paulo de Goyaz 1915-1916”. Cidade de Goiás, 1916.
Histórias de Doenças 243

tos. Ademais, havia uma colmeia, adquirida em 1915, cuja produção era suficiente
para prover todos os internos e as Irmãs Dominicanas.37
Um dado interessante na fotografia é a caixa d’água, objeto tão raro na antiga
capital goiana, cujas únicas fontes de água potável da cidade localizavam-se na “ca-
rioca” e no chafariz de calda, já que a que se encontrava no lençol freático continha
excesso de minerais o que impossibilitava tanto o seu consumo quanto a perfuração
de cisternas.38 No asilo, a água era trazida diretamente do córrego que ficava nos
fundos da instituição, por meio de uma bomba de aríete que foi conseguido depois
de intensa campanha dos vicentinos.39
A intenção de quem fez a fotografia, presume-se, foi de ressaltar não os inter-
nos e sim a instituição. Os internos, que ocupam a parte central, se perdem diante
da grandiosidade do ambiente. Uma imagem, que, diferentemente das anteriores,
o foco não foi no indivíduo e seus problemas e sim na estrutura que cercava sua
permanência. À disposição deles, se erguia uma bomba de aríete, uma colmeia, e
uma parreiral, algo de que não dispunham a grande maioria das família vilaboenses.
Talvez por isso, o asilo de pobres da Cidade de Goiás tenha se transformado em local

37 ASVP: Documentos Avulsos. “Relatório apresentado ao Snr. Presidente e mais membros do


Conselho Particular da Sociedade S. Vicente de Paulo em Goyaz, pelo Presidente da Junta
Administrativa do Asylo em 25 de Julho de 1915”. Cidade de Goiás, 1915.
38 Sobre esse assunto, o então Interventor Federal Pedro Ludovico Teixeira enfatizou no seu
Relatório de 1933, a “contingencia secular de necessitar a população de um exercito de balde-
adores de agua, deu lugar a que surgisse uma estranha instituição nitidamente local – o bôbo.
Caracteriza-se esta instituição pela tendencia comum, verificavel em muitas das familias goia-
nas, de manter cada uma delas um bôbo – mentecapto, idiota, imbecil – para o serviço de
transportes domésticos, especialmente o de agua. Há numerosas familias que se beneficiam
dos serviços desses desherdados da sorte, transformando-os em escravos irremissiveis, a tro-
co dos restos de comida e de um canto para dormir, não raro entre os animais domesticos.
Contam-se ás dezenas, nesta Capital, os infelizes classificaveis no extenso grupo patologico
dos debeis mentais, desde os imbecis natos até os cretinizados pela miseria física ou por outras
causas degenerescentes, congênitas ou adquiridas, os quais, como verdadeiras maquinas, se
esbofam nos trabalhos caseiros das familias que os acolhem” (TEIXEIRA, 1933, p. 115).
39 ASVP: Documentos Avulsos. “Relatório apresentado ao Snr. Presidente e mais membros do
Conselho Particular da Sociedade S. Vicente de Paulo em Goyaz, pelo Presidente da Junta
Administrativa do Asylo em 25 de Julho de 1915”. Cidade de Goiás, 1915.
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244 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

privilegiado para todos aqueles que necessitavam de amparo, e não tinham quem
lhes valessem.40

Considerações finais

As sete fotografias escolhidas para serem objetos de análise desse estudo tem
em comum o fato de evidenciar os internos do asilo. Com o apoio de uma rica litera-
tura procuramos reinterpretar os diversos signos presentes nas imagens, e relacionar
com o contexto da época e, principalmente, com a história da instituição.
Infelizmente, não foi possível afirmar com precisão o nome dos indivíduos
presentes nas fotografias. Tentei confrontar suas características físicas com o Livro
de Registro de Entradas, as atas, os relatórios, os receituários e as impressões dos
visitantes no Livro de Visitas. Nesse diálogo com as fontes foi possível reconstruir a
trajetória de vários internos, porém, a relação entre os documentos manuscritos e as
imagens foi infrutífera.
As fotografias desses indivíduos pobres, recolhidos numa instituição de ca-
ridade criada pela elite local, embora não nos fosse possível conhecer seus nomes,
suas trajetórias de vida e seus problemas, projetaram no tempo suas imagens e a car-
ga simbólica que elas encerram. Suas vozes foram silenciadas pela extensa documen-
tação, mas até mesmo esse silêncio diz muito sobre eles, muito sobre a constituição
do acervo, e muito sobre nós, que mesmo hoje não paramos para ouvir os pobres, os
doentes e os desvalidos…

Referências

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40 Sobre esse assunto ver, principalmente, o segundo capítulo do estudo de SOUZA, 2014.
Histórias de Doenças 245

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A Comissão Rondon no noroeste do Brasil e
sua atuação médico-militar: trabalhadores,
malária e propaganda (1907-1915)
Robson Mendonça Pereira1

E sse artigo é um desdobramento de pesquisa desenvolvida nos diários de campo


do marechal Cândido Rondon, organizado e publicado sob a supervisão deste
por Ester de Viveiros em 1958. Destaco nesse ponto sua atuação à frente da Comissão
de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas (CLTEMTA) entre
os anos de 1907 a 1915. O empreendimento intentava ligar através de uma linha
tronco as cidades de Cuiabá e Santo Antônio do Madeira, em território desconhe-
cido localizado na fronteira entre o Cerrado e a Floresta Amazônica. Um problema
que afetou enormemente o andamento dos trabalhos da comissão foram as desfavo-
ráveis condições nosológicas da região noroeste para o desenvolvimento do empre-
endimento, marcada principalmente pela incidência endêmica da malária e de ou-
tras doenças tropicais, causando significativo percentual de óbitos e incapacitando
cerca de um quarto dos soldados e “regionais”. Nesse quadro, a presença de oficiais
médicos-militares tornou-se fundamental, principalmente na última fase, quando
se instalou um serviço sanitário para a profilaxia da malária e melhoria da infraes-
trutura médico-hospitalar da Comissão. A despeito da efetividade de tais medidas,
analisamos o contraste existente entre as condições reais da região noroeste e a po-
sição oficial da comissão que escamoteava essas adversidades através de recursos
propagandísticos como filmes e fotografias que procuravam estimular a colonização
e a integração daquela porção do território nacional.

1 Doutor em História pela UNESP e pós-doutor em História Social pela USP. Docente do curso
de Licenciatura em História e do Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões
Culturais no Cerrado (TECCER) da Universidade Estadual de Goiás. Bolsista do Programa
de Incentivo ao Pesquisador (BIP/UEG). robsonmenper@hotmail.com.br.
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248 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

O militar Rondon constrói a linha telegráfica e forja seu mito

Na época da criação pelo presidente Afonso Pena da Comissão de Linhas


Telegráficas Estratégicas do Mato Grosso ao Amazonas, em 1907, o coronel Cândido
Mariano da Silva Rondon, que seria designado seu chefe, já acumulara significativa
experiência na exploração do sertão mato-grossense.
No alvorecer da República fora designado membro da Comissão Construtora
de Linhas Telegráficas de Cuiabá ao Araguaia (1890-1898), sob o comando do co-
ronel Antônio Ernesto Gomes Carneiro2, na condição de Alferes-aluno3 para tra-
balhar na turma de retaguarda. Neste posto era responsável por efetuar os levanta-
mentos topográficos e determinar as coordenadas geográficas de pontos relevantes
(VIVEIROS, 1958, p.62-5).
Em sua autobiografia Rondon demonstra admiração pelo chefe Gomes
Carneiro: “…se revelou o grande conhecedor do problema indígena, o nobre defen-
sor dos donos da terra que atravessávamos, nossos irmãos das selvas. Proibiu termi-
nantemente, em cartazes que mandou afixar ao longo da linha, que neles se atirasse,
ainda que fosse para assustar…” (VIVEIROS, 1958, p.67).
Certamente essa postura foi bastante impactante na formação de Rondon
como sertanista e indigenista, pois desde sua passagem pela Escola Militar da Praia
Vermelha, na década de 1880, nutria convicções nacionalistas, que se tornaram cada
vez mais doutrinárias na medida em que entrou em contato com a visão de mun-
do positivista por influência de professores como Benjamin Constant. Todd Diacon
afirma que não é possível entender as ações de Rondon sem levar em conta sua
adesão ao positivismo, pois este teria fornecido o esquema para o “desenvolvimento

2 Gomes Carneiro nasceu em 1846 em Serro (MG). Durante a Guerra do Paraguai alistou-se
como soldado no Primeiro Corpo de Voluntários da Pátria, tendo sido ferido três vezes em
combate, e obteve promoção de Primeiro Sargento para Alferes. Ingressou na Escola Militar
em 1872 e ainda durante o Império envolveu-se na Comissão do Telégrafo. Continuou nesta
como comandante no contexto republicano, no período de 1891 a 1892, quando recrutou
Rondon. Faleceu durante a Revolução Federalista em fevereiro de 1894, durante o episódio
do “Cerco da Lapa”, como General de Brigada.
3 Primeira patente de oficial do Exército Brasileiro a época, sendo substituída pela de segundo-
-tenente após a reforma das Forças Armadas em 1930. Após desligar-se da Escola Superior
de Guerra como Engenheiro Militar e diplomado como bacharel em Matemática e Ciências
Físicas e Naturais, Rondon é promovido a Segundo Tenente de Artilharia e logo em seguida a
Primeiro-Tenente (VIVEIROS, 1958, p.62).
Histórias de Doenças 249

nacional que ele seguiu ao planejar e construir a linha telegráfica”, inclusive em suas
relações com índios e brancos no interior do país (DIACON, 2006, p.96).
A vertente ortodoxa veiculada por Constant, Miguel Lemos e Teixeira
Mendes, fundadores da Sociedade Positivista Brasileira era valorizada por Rondon e
transparece em seus diários de campo (LIMA, 1999, p.72). Ressalta em sua autobio-
grafia a ascendência indígena (de pelo menos três povos: guainá, terena e bororo), o
contato com a natureza cerratense e pantaneira, o ideal de “servir a nação”, dimen-
sionando seu trabalho na Comissão do Telégrafo como uma missão civilizatória des-
tinada a ligar os pontos estratégicos do país, e no qual a exploração do sertão é tam-
bém percebida ao mesmo tempo como missão militar e empreendimento científico.
No início de suas atividades, nos primeiros anos da República, a noção de
território era ainda algo problemático:

Sertão e viagens, estas vistas como expedições civilizatórias, são termos que
se interpenetram. O desbravamento do sertão pode ser visto como um movi-
mento de forte conteúdo simbólico, que acompanhou os projetos oficiais de
delimitação de fronteiras, saneamento, utilização de recursos naturais, povo-
amento e integração econômica e política. Este movimento missionário, for-
temente associado à expansão de presença do Estado, encontrou como atores
sociais agentes informados pelo cientificismo – quer na versão positivista or-
todoxa, quer nas versões mais heterodoxas e em interpretações evolucionistas
de cunho spenceriano (LIMA, 1999, p.67).

Concluída a ligação entre a capital federal e Cuiabá pelo telégrafo ainda no


final do século XIX, Rondon é designado para chefiar a Comissão Construtora de
Linhas Telegráficas no Estado do Mato Grosso e expandir a linha até os limites da
fronteira com o Paraguai e a Bolívia. Impõe uma organização severa aos trabalhos
desenvolvidos pela comissão, cercando-se de oficiais fieis aos seus princípios, con-
dução que irá de certa maneira caracterizar uma linha de ação nos futuros empreen-
dimentos da comissão chefiada por Rondon.
A rotina dos soldados que serviam a comissão telegráfica nos acampamentos
era marcada pela rigidez e disciplina próximo de uma colônia penal, tanto que até
castigos corporais, abolidos no Exército desde 1874, eram comumente utilizados
para lidar com os recalcitrantes e os desordeiros. Isso se devia sem dúvida ao perfil
de comando de Rondon definido por Diacon como “duro, exigente, rigoroso e, tal-
vez, até mesmo cruel e insensível” (2006, p.81). Rondon frequentemente justificava
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
250 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

suas ações tendo em vista, de um lado, as incontestáveis condições de construção


da linha telegráfica no “sertão bruto”, em meio a uma natureza indomável, nos pan-
tanais, “charravascais” e na densa floresta, em dias calor intenso ou no período de
monções ininterruptas, e por outro lado, levava em conta a qualidade dos praças em
serviço que “requeriam disciplina férrea”.
Dois casos que exemplificam o uso excessivo de medidas disciplinares se
deram quando da nomeação de Rondon para chefia do 16º Distrito Telegráfico de
Cuiabá ao Araguaia em 1892, posição que já ocupava interinamente após a saída do
coronel Gomes Carneiro. Devido a um contencioso nas relações entre o Brasil e a
Argentina, o governo resolveu promover a abertura de uma via terrestre pelo sertão
para facilitar o deslocamento de tropas. Rondon ficou então encarregado da abertu-
ra de um picadão no trecho rente a linha telegráfica que estava sendo reconstruída.
Durante os preparativos para seu embarque para capital federal, Rondon recebeu
notícias sobre um episódio no qual seus soldados haviam se amotinado e expulso os
oficiais do acampamento da comissão em Quebra-Pote. Resolvido a dar cabo a in-
disciplina, Rondon retarda sua partida, e montado num cavalo, parte em disparada
para as cercanias do acampamento. Chegando lá reuniu os amotinados:

Formados todos, fiz sentir aos soldados a gravidade do ato praticado. Tinham-
se tornado indignos da farda que traziam. Os oficiais foram também severa-
mente admoestados:
– Um oficial não pode abandonar o seu posto – nele morre, se necessário for.
Destaquei um pelotão para ir à mata buscar varas. E durante uma hora, foram
os soldados, em forma, vergastados.
Depois de deixar cada um no seu posto, regressei amargurado.
Doía-me profundamente ter sido forçado a recorrer ao processo do Conde de
Lipe. Entreguei-me a amargas reflexões sobre o fato de serem sempre envia-
dos, para trabalhar na comissão homens, na fase ainda da “obediência força-
da”. (VIVEIROS, 1958, p.109-10)

Ao fazer menção ao “processo” do Conde Guilherme Schaumburg-Lippe,


militar e político alemão que esteve a serviço da Corte portuguesa entre 1762 e 1777
para modernização de seu exército chegando a editar importante manual para sua
Histórias de Doenças 251

reorganização4, Rondon justifica o uso de punições como a chibata e o pelourinho


como método eficaz de disciplina tendo em vista que seus comandados ainda se en-
contravam no que denominava “obediência forçada” aos quais era lhe exigido “tra-
balhos penosos a que se não queriam submeter – eram por isso contínua as deser-
ções no contingente, a ponto de ser necessário mandar prender os desertores, para
manter o princípio da autoridade” (VIVEIROS, 1958, p.111).
As condições insatisfatórias para o pleno cumprimento do serviço, a indis-
ciplina reinante, as adversidades do clima palustre da região pantaneira, as doenças
e a possibilidade do ataque de índios constituíam um quadro nada favorável para o
avanço dos trabalhos da comissão do telégrafo. Um outro evento grave demonstra
de maneira contundente como o major Rondon impunha o que chama de “disciplina
do sertão” aplicada em “um lugar onde não havia cadeia”. Uma conjura fora prepara-
da para eliminar o chefe e seus oficiais por vinte praças; esta seria posta em execução
na hora do pagamento, mas, os envolvidos desistiram do intento e resolveram fugir.
No dia seguinte Rondon, estando a par do plano, organizou dois contingentes que
capturaram os trânsfugas. Desligou os menos culpados, mas usou o cabeça do movi-
mento como exemplo mantendo-o durante uma semana preso “ao pau da bandeira,
a olhar para o seu comandante, a meditar sobre a sinistra ideia de o querer assassi-
nar” (VIVEIROS, 1958, p.112).
Um capitão denunciou o que considerou excessos abusivos nos “métodos
de trabalhos que considerava prejudiciais aos soldados…” ao superior imediato de
Rondon, levando a abertura de um inquérito, que se desdobrou mais tarde na cons-
tituição de um Conselho de Guerra, sendo o acusado chamado ao Rio em janeiro de
1895. Na exposição de sua defesa justificava seus atos por se tratarem de “homens
que eram afastados de suas funções, no Rio, justamente por serem insubordinados”.
O processo acabou sendo arquivado por improcedência (DIACON, 2006, p.82),
permitindo que Rondon estabelecesse uma linha de conduta radical e violenta no
trato diário com os praças, que não tinham nem sequer seus nomes mencionados
em seus diários de campo, em contraste com seus cães, que mereciam da parte de

4 Trata-se aqui do Regulamento para o Exercicio, e Disciplina dos Regimentos de Cavallaria dos
Exercitos de Sua Majestade Fidelissima, Feito por ordem do mesmo Senhor POR SUA ALTEZA
o Conde Reinante de Schaumbourg Lippe, Marechal General. Lisboa, Na Regia Officina
Typografica. Anno M. DCC. XCVIII. [1798]. Ver também: FREIRE, Miguel. Um olhar actual
sobre a “transformação” do Conde de Lippe. In: Nação & Defesa. n.112, Lisboa, IDN, Outono-
Inverno, 2005, p.137-166.
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Rondon verdadeiro zelo e cuidados especiais, lamentando sua morte ou ferimentos


(DIACON, 2006, p.85-6).
Rondon descreve as difíceis condições enfrentadas pela comissão para avan-
çar na construção da linha telegráfica quando começa a atingir a região pantanei-
ra, marcada por atoleiros e chuvas torrenciais que provocavam frequente atraso:
“Cinquenta e um quilômetros de mato alto deram que fazer ao pessoal bisonho des-
ta seção – por isso, esta o serviço atrasado e muito teríamos de lutar para varrer os
tremendos obstáculos criados pelas chuvas e pelos pantanais” (VIVEIROS, 1958,
p.171). O suplício se estendia ao período noturno durante os pousos nessas áreas
como sugere a descrição a seguir: “noite infernal, pela quantidade de mosquitos,
malgrado o mosquiteiro. Os pobres animais, atropelados pelos culicídeos,5 passaram
a noite em torno de nossas redes, tendo um deles se coçar na minha” (VIVEIROS,
1958, p.171).
As piranhas infestavam os rios e lagoas, tornando sua travessia perigosa.
Rondon se refere ao caso da trágica morte do alferes Francisco cuja investigação che-
gou à conclusão que se tratava de uma funesta situação no qual o animal que o trans-
portava teria sido atacado pelas piranhas, e disparando deixou o cavaleiro “entregue
aos ferozes animais”, tendo sido encontrado apenas seu esqueleto e sua identificação
feita pelo vestuário (VIVEIROS, 1958, p.172). Episódios descritos dessa maneira, que
parecem algo lendário, tomam um tom impressionista quando se tratava do caso das
onças. Em certo momento da exploração depois da partida da estação telegráfica em
Aquidauana em março de 1905, o tenente Renato Rodrigues Pereira registra que a falta
de carne teve de ser compensada com a caça de aracuã (pequena ave) e onça parda,
sendo essa última considerada “carne menos almirascada do que o da onça pintada”.
Rondon seguia pelo Rio Negro, afluente do rio Paraguai, em chalana por região pan-
taneira. Durante o percurso era comum o avistamento de onças nas margens do rio
dando alento a caçadas que envolviam um misto de perigo e aventura:

Lá estava ela grande, majestosa, cabeça para baixo, uns três metros acima de
nós, em posição de descer: Vendo-a, preveni: – Esta onça vai saltar na chala-
na! – pulei para terra, de carabina engatilhada. Assentado na chalana, Renato
faz fogo; a bala penetrou os olhos da fera que se manteve imóvel. Saltamos,

5 Aqui, claramente, Rondon se refere aos mosquitos sugadores de sangue que atormentavam os
viajantes e os animais nas expedições – muito transmissores da malária como o Anopheles ou
dengue como os do tipo Aedes.
Histórias de Doenças 253

então, todos em terra. A onça ferida de morte, continuava na mesma posição.


(VIVEIROS, 1958, p.192)

Subi pelo tronco da figueira, para melhor ver a fera que roncava ameaçadora,
e estava procurando firmar-me para atirar, quando escorreguei, e teria ido
cair junto à onça, se uma raiz não me tivesse detido. Ao mesmo tempo, com
o movimento, disparava a Winchester e a onça fugira… Foi então novamente
acuada e morta com um tiro na testa. (VIVEIROS, 1958, p.193)

Estes felinos aparecem em profusão nas descrições minuciosas feitas por


Rondon, neste caso das caçadas aos animais silvestres que complementavam, junto
com cobras, jacarés e diversas espécies de pássaros, a alimentação da tropa, que se
tornou essencial com o avanço do trabalho da construção da linha telegráfica a regi-
ões distantes léguas dos postos mais próximos de abastecimento.

Explorando o desconhecido na região noroeste do Brasil

Quando a CLTEMTA iniciou seus trabalhos sob a chefia de Cândido Rondon,


avançou-se sob região do país sob o qual havia escassas informações, mesmo de
expedições e viajantes estrangeiros, a respeito do curso de rios, do relevo ou so-
bre povos indígenas como os Nambikwara. A chegada a Serra do Norte significaria
adentrar a floresta amazônica, com nuances desconhecidas e mortais, que ao final
acabariam impedindo o avanço da linha telegráfica para além de Santo Antônio do
Madeira, ponto de partida justamente de outro empreendimento modernizador, a
Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM), alcunhada funestamente de “ferrovia
do diabo”.
Hardman traça alguns comentários sobre as condições duríssimas de trabalho
enfrentadas pelos contingentes de soldados envolvidos na Comissão do Telégrafo,
lembrando a dos civis na construção da via férrea:

A organização do trabalho era de natureza militar. As estações eram constru-


ídas a cada noventa quilômetros. O sistema de acampamentos lembrava o da
construção de ferrovias, com a diferença de que a concentração de trabalha-
dores era bem menos. Para o estabelecimento da linha foram utilizados fios
de ferro zincado, isoladores de porcelana e postes, em geral de madeira; justa-
mente na Seção do Norte, que se estendia de Santo Antônio ao rio Jaru, com
um ramal até Guajará-Mirim – paralelo, portanto, à ferrovia –, dificuldades
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
254 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

técnicas obrigaram ao uso de postes de ferro. Durante dois anos de trabalho,


segundo relatório da Comissão, a Seção do Norte empregou 250 trabalhado-
res com o registro oficial de apenas cinco mortos. Resultado tão favorável é
imputado aos trabalhos sanitários do dr. Tanajura e à boa aclimatação dos
operários, em sua maioria soldados que já serviam na região. Parece claro
que esses dados subestimam os problemas sociais havidos, omitindo delibe-
radamente, por exemplo, o destino trágico de grande parte dos passageiros do
Satélite. (HARDMAN, 1988, p.160-1)

Em relação a esse último parágrafo, é importante notar que os oficiais da


Comissão Rondon frequentemente reclamavam em seus relatórios a respeito da
condição “indesejável” de boa parte do contingente enviado para construção da li-
nha telegráfica era constituída de remanescentes de revoltas militares como a da
fortaleza Santa Cruz (Rio de Janeiro) e a da Chibata na Marinha, em 1910.
O efetivo da Comissão Rondon, conforme estipulava a lei, seria de 350 ho-
mens, mas na verdade chegou a contar com até 600 homens. Rondon frequente-
mente utilizava guias e mão-de-obra indígena para suprir a escassez de soldados e
as deserções provocando problemas logísticos graves. O que se pode dizer a respeito
dos praças recrutados obrigatoriamente pelo 5º Batalhão de Engenharia do Rio de
Janeiro (às vezes de guarnições de Goiás e Mato Grosso), era a de sua condição em
geral pobre e analfabeta. Chegavam debilitados por doenças crônicas como a tuber-
culose e a malária. Nos casos de presos por se envolverem em revoltas, chegavam
“alquebrados por castigos corporais e por terem passado a pão e água durante vários
dias” (DIACON, 2006, p.68).
A empreitada da CLTEMTA é celebrada por Rondon como uma obra de di-
mensões épicas para época. Rondon fazia questão de registrar as conquistas super-
lativas, seja nos relatórios ou durante a comemoração de datas cívicas, tratando-os
como verdadeiros feitos militares e de conquista do território nacional, motivo maior
que ensejava seus empreendimentos. Entre 1907 e 1915, a Comissão estendera 2.270
quilômetros de linhas e inaugurado 28 estações telegráficas, descobriu-se doze novos
rios e corrigiram erros sobre o curso de muitos outros, “realizou-se o levantamento
geográfico de 50 mil quilômetros lineares de terras e águas”, além da determinação de
mais de duzentas coordenadas geográficas (HARDMAN, 1988, p.160).
Exemplo dessas façanhas foi a redescoberta do rio Juruena, na expedição de
reconhecimento de agosto de 1906. Haviam apenas vagas indicações de Taunay e
de alguns documentos cartográficos do período colonial a respeito de sua locali-
Histórias de Doenças 255

zação. O objetivo era alcançar a Serra do Norte para seguir em arremetida para o
rio Madeira, tanto que vão ocorrer posteriormente mais duas expedições para essa
região. O Juruena era considerado um rio “incógnito”, devido a sua inexistência em
mapas recentes e sobre o qual pairavam lendas a respeito da existência de tribos
de índios antropófagos. Essa expedição constava no programa da terceira seção da
Comissão chefiada pelo próprio Rondon.6
Após uma travessia difícil feita a pé abrindo pique, com alimentação redu-
zida e debaixo de chuva torrencial, avistaram o vale do rio Juruena após 48 dias
e 618 quilômetros percorridos. A expedição composta também pelo tenente João
Salustiano Lyra, pelo fotógrafo Leduc e mais cinco homens encontrou o rio após
seguir por uma trilha indígena. O desgaste da equipe envolvida foi enorme, metade
estava doente, os animais estropiados, sem pastagens e falta de munição de boca. A
caminho de uma aldeia dos índios Nambikwara, foram atacados inesperadamente:

Ainda não tínhamos percorrido um quilômetro. Nosso pensamento se dividia


entre a lembrança das dificuldades vencidas e das agruras curtidas e a alegria
do triunfo, a satisfação do dever cumprido. Súbito, senti no rosto um sopro e
divisei algo, rápido e fugaz, como se fosse um pássaro que cruzasse o caminho
na altura dos meus olhos, bem perto de mim. Num movimento instintivo,
meu olhar procurou segui-lo, e o que eu vi não foi um passarinho, mas a
choupa ereta e vibrante de uma flecha, com a ponta encravada no solo – errara
o alvo! […]
E vi, bem próximo, dois nhambiquaras possantes, peito largo, cabeça gran-
de, rosto de maçãs salientes. Firmes nas penas, bustos inclinados quase ho-
rizontalmente, arcos retesados, estavam prestes a desferir novas flechadas.
[…] Vinha essa direita ao meu peito, mas sua ponta se insinuou num furo da
bandoleira da espingarda e aí ficou engastada. Verificou-se, depois se tratar de
um flecha envenenada que figura no Museu Nacional (Nº 2178). (VIVEIROS,
1958, p.241-2)

6 A seções da CLTEMTA era divididas da seguinte maneira: Primeira Seção) Ramal de Cáceres
a cidade de Mato Grosso (na fronteira boliviana), sob a chefia do major Félix Fleury; Segunda
Seção) Linha tronco Cuiabá a Santo Antônio do Madeira (atual Rondônia), sob a chefia dos
capitães Custódio e Marciano Oliveira; Terceira Seção) Grande reconhecimento do sertão
e estudos preparatórios para instalação da Linha Tronco, sob a chefia pessoal de Rondon
(VIVEIROS, 1958, p.229).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
256 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

O objetivo dos expedicionários naquele momento era tentar trocar instru-


mentos por alimentos. Os ânimos se exaltaram, e até Rondon quase cedeu ao ins-
tinto dos demais de sair no encalço de seus atacantes, mas “fiel ao meu programa de
só penetrar no sertão com a paz e jamais com a guerra, não consenti com a menor
represália” (VIVEIROS, 1958, p.242). A retirada para a estação de Diamantino foi
feita com grande dificuldade, pois ao chegarem na beira do rio Sauêruína perce-
beram que teriam de transpô-lo sem o auxílio de duas canoas que foram perdidas.
Rondon resolve improvisar construindo uma espécie de embarcação feita de couro
de boi e revestida com varas vergadas e amarradas. E assim, material coletado e
doentes foram atravessados a seco. Reduzidos aos recursos da floresta (mel, palmito
e frutas), contentaram-se com uma pomba torcaz, enquanto se arrastavam em dolo-
rosa retirada. Só passaram a se alimentar melhor quando encontraram índios pareci
que lhes trouxeram carne de perdiz, mandioca assada, beijus, ovos e polvilho. Só
conseguiram chegar à estação de Aldeia Queimada em 13 de novembro, quando um
comboio de víveres vindo de Sepotuba os aguardava. (VIVEIROS, 1958, p.245-8)
Feitos como este colocaram Rondon no Panteão dos Heróis nacionais, refor-
ço fornecido por uma historiografia oficial que glorificava sua obra de sertanista e
indigenista, ficando um pouco obscurecida a imagem de “militar”, que é enfatizada
por Lima (1999) ao tratar de sua formação Academia Militar do Rio de Janeiro e de
como seu caráter foi moldado pela experiência na linha do telégrafo. Para Diacon
um aspecto negligenciado tanto pelos pesquisadores que exaltam a imagem de
Rondon, quanto pelos revisionistas que relativizam o legado da Comissão Rondon,
seria o papel do positivismo para compreensão da natureza de suas ações. Este se-
guia a vertente ortodoxa do positivismo, dedicando-se com afinco a causa da missão
de integrar o Brasil pelo desenvolvimento infraestrutural (DIACON, 2006, p.102-3).
Alinhava-se a isto o rigor nos levantamentos biológico e geográfico do sertão.
O domínio sobre a natureza como causa integrava a atividades de construção
de linhas telegráficas, que era acompanhada por trabalho de reconhecimento dos
rios, flora, fauna, de condições epidemiológicas e de contato com tribos indígenas
enfatizando o conhecimento de seus costumes e das línguas faladas. Em várias dessas
expedições, Rondon se fez acompanhar de cientistas e médicos ligados a Fundação
Oswaldo Cruz, de antropólogos e etnólogos do Museu Nacional do Rio de Janeiro
e outras instituições científicas, tomando o cuidado de formar um corpo de enge-
nheiros militares para efetuar os estudos cartográficos e de exploração minuciosa
das regiões cobertas pelos fios do telégrafo, guiado sempre pelo instinto de missão.
Histórias de Doenças 257

Cenário nosológico macabro em área de fronteira: os desafios


enfrentados pela Comissão Rondon

Uma demonstração das enormes dificuldades enfrentadas pela Comissão


Rondon pode ser exemplificada na descoberta do rio da Dúvida. O enigma em tor-
no desse curso d´água começou durante a Expedição de 1909. A essa época Rondon
contava com um corpo civil-militar constituído pelos tenentes João Salustiano Lyra
e Emanuel Silvestre de Amarante, pelo médico-militar Joaquim Tanajura, pelo zoó-
logo do Museu Nacional Alípio de Miranda Ribeiro, pelo geólogo Cícero Campos,
por um prático de farmácia Benedito Canavarro e pelo botânico Frederico Carlos
Hoehne. A expedição totalizava quarenta e dois homens, incluindo dois guias indí-
genas e partiu no início de junho de Tapirapuã (MT) em missão exploratória até o
rio Juruena, com o intuito de localizar a melhor direção a ser tomada para instalação
de postes da linha do telégrafo.7 No dia 26 de julho, ao seguir a direção noroeste,
a Comissão deparou com um rio de 12 metros de largura. Rondon tentou seguir
seu curso, mas era por demais sinuoso e extravagante, e as provisões perigosamen-
te escassas o fizeram recuar. Não por acaso, Rondon batizou aquele pequeno rio
de “Dúvida”. Naquele ponto, a expedição encontrava-se em péssimas condições: a
maioria de seus membros acometidos de malária, outros em estado de quase inani-
ção, muitos nus ou em farrapos, beirando a morte, depois de a Comissão ter percor-
rido mais de 900 quilômetros de território inexplorado (MILLARD, 2007, p.83-5;
VIVEIROS, 1958, p.402-3).
Esse mesmo rio seria percorrido pela Expedição Científica Roosevelt-
Rondon entre dezembro de 1913 e abril de 1914, com resultados poucos relevantes
para o chefe da C.R. que na época teria aceitado acompanhar o ex-presidente norte-
-americano com a condição de que não se tratasse de um “safári”, mas a motiva-

7 No período de 1907 a 1915, a CLTEMTA passou a agregar naturalistas ligados ao Museu


Nacional do Rio de Janeiro com o objetivo de concretizar uma das metas da Comissão
Rondon de realizar um inventário científico e geográfico do território nacional. Essa incorpo-
ração se ligava a demandas internas do Museu Nacional, por meio de seu diretor João Batista
de Lacerda, de “aquisição de novas coleções” devido às dificuldades de ordem financeira pelo
qual a instituição passava. O convênio atendia a essa premissa, e no início foram escolhi-
dos para fazer parte da comissão o zoólogo Miranda Ribeiro, o jardineiro-chefe do Horto
Botânico Frederico Carlos Hoehne e pelo Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil, o enge-
nheiro Cícero Campos. Na Expedição de 1909, apenas Miranda Ribeiro efetivamente seguiu
até o final acompanhando a comissão até o rio Madeira (SÁ; SÁ; LIMA, 2008, p.789-92).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
258 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

ção estava vinculada as dificuldades no cumprimento do prazo para fazer avançar


a linha do telégrafo quando lhe faltavam recursos e apoio institucional. Acrescia a
isto a hostilidade e crescente oposição aos seus projetos no noroeste brasileiro por
membros da Igreja Católica e oficiais do exército que questionavam os méritos das
atividades da Comissão do Telégrafo (DIACON, 2006, p.108).
Em 1910 a C. R. começou a desdobrar suas ações com a criação do Serviço
de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPI), no governo
de Nilo Peçanha. O intento pretendido seria o de facilitar, por um lado, o aldeamen-
to indígena objetivando sua pacificação e assimilação a nacionalidade, e por outro
lado, povoar as áreas percorridas pela linha do telégrafo incentivando a migração e
os deslocamentos por meio do estabelecimento de núcleos agropecuários em torno
das estações, objetivos incompatíveis como se percebeu com o passar do tempo.
A insatisfação com a produção de imagens feitas por fotógrafos contratados
pela C.R. levou a organização de uma Secção de Cinematographia e Photographia em
1912. A sugestão foi dada pelo major Thomas Reis acabou tendo um papel relevante
nesse empreendimento. O major viajou para Europa para adquirir equipamentos
e se especializar como fotógrafo nos trabalhos de campo, tornando-se o principal
fotógrafo e cineasta da Comissão (TACCA, 2002, p.189), junto com o fotógrafo Luiz
Leduc e o engenheiro militar João Salustiano Lyra. O material iconográfico produzi-
do por essa seção foi extremamente importante para promover as ações da comissão
e a obtenção de recursos e apoio político durante as exposições públicas de Rondon,
na confecção dos relatórios oficiais e anúncios em jornais de ampla circulação.
No entanto, é discutível que essa propaganda tenha conseguido escamotear
completamente a realidade enfrentada pelos trabalhadores na construção da linha
telegráfica. O cotidiano era marcado por uma labuta perigosa como salientado an-
teriormente. Os acidentes eram comuns, assim como os ataques de animais na selva
tropical amazônica. As botas ruins fornecidas pelo exército, que se estragavam fa-
cilmente, sujeitavam os soldados a andarem descalços, expondo pés e pernas a feri-
mentos. Doenças como a ancilostomose e as infecções por fungos, um mal constante
devido ao excesso de umidade, causava muitas baixas. Havia o tormento represen-
tado pelos bichos-de-pé, pelas formigas tocandira, formiga preta, formigas-brasa,
formigas carnívoras, carrapatos, abelhas lambe-suor e vespas, além dos escorpiões e
cobras; havia ainda uma infinidade de insetos sugadores de sangue e transmissores
de doenças com elevado nível de morbidade. A travessia de rios representava outro
Histórias de Doenças 259

momento de tensão, além é claro, da possibilidade de ser atingido por flechas enve-
nenada com curare (DIACON, 2006, p.74-5).
Havia um outro dilema mais difícil de ser contornado: a escassez crônica de
alimentos. O serviço da CLTEMTA era dividido basicamente em três unidades: a)
vanguarda; b) construção e abertura da picada (com 30 a 40 metros de largura), com
grupos espalhados com diferentes funções, e que instalavam cerca de 150 postes por
dia ou 11 quilômetros de linha; c) Retaguarda.8 Conforme a linha tronco avança-
va, mais precário tornava-se o abastecimento devido as imensas distâncias a serem
percorridas por carros de bois que ficava presos nos atoleiros. Foi necessário como
notei anteriormente a formação de destacamento de caça, pesca e coleta para suprir
de alimentos a comissão com trabalhadores espalhados por dezenas de léguas pelo
território mato-grossense.
Podemos ter uma ideia do quadro de moléstias incidentes nesta vasta região
através do relatório do segundo-tenente Otávio Felix Ferreira e Silva, engenheiro-
-militar e chefe da expedição que efetuou o levantamento do Rio Jamari. Este tece
uma série de considerações acerca das condições insalubres em que viviam os ri-
beirinhos, chegando a afirmar ser “difícil encontrarem-se no Jamari pessoas de
avançada idade”. Entre as doenças mais comuns assinala a ocorrência do beribéri
(caracterizada pela carência de vitamina B1), a tuberculose, a disenteria e o impalu-
dismo (malária), sendo esse último considerado o “maior consumidor de vidas no
Jamari”; também aparecia no conjunto a polinevrite palustre, moléstias nos olhos,
icterícia, eczema, lepra seca e úlceras nas pernas (FERREIRA E SILVA, 1920, p.21
apud CASER; SÁ; 2011, p.476).
O tenente Otávio Felix faz questão de assinalar o impacto causado na ex-
pedição, pois todos seus 16 membros “foram contaminados com malária”, vindo
dois a óbito, paralisando os trabalhos, ocorrência muito comum que chega quase a
estacionar completamente o andamento da construção da linha telegráfica em de-
terminados momentos.

8 Rondon coordenava a primeira unidade responsável por escolher o melhor percurso para li-
nha tronco, estabelecer coordenadas geográficas, encontrar madeira disponível para postes etc.
Alguns oficiais militares experimentados nestes empreendimentos no sertão auxiliavam dire-
tamente Rondon nestas expedições de reconhecimento. Entre estes destaca-se o tenente João
Salustiano Lyra (engenheiro militar), o capitão Amílcar Botelho de Magalhães (chefe do trans-
porte), o tenente Júlio Caetano Horta Barbosa e o tenente Alencarliense Fernandes da Costa.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
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Apesar desses percalços angustiantes, somente em pequenas passagens de sua


autobiografia Rondon tece comentários acerca do tenebroso quadro nosológico, in-
clusive da malária que o acometia pessoalmente, haja visto as recidivas de febres de
40º C que o levaram em determinado momento a se afastar do comando para tratar-
-se na capital federal, exclusividade a que só os oficiais tinham o direito.
Na verdade, os surtos de malária tornaram-se com o tempo a principal pre-
ocupação do alto comando. O corpo de oficiais incluía médicos militares como o
primeiro-tenente José Antonio Cajazeira (1914-1915), o capitão Murillo de Campos
(1910-1911) e Joaquim Tanajura (do quadro sanitário da Força Policial do Distrito
Federal e que serviu por longo período de 1909 a 1915), “autores dos mais extensos
e importantes relatórios médicos da Comissão”, pois possuíam um amplo conhe-
cimento a respeito da medicina tropical e singularmente a respeito dos mecanis-
mos de transmissão da malária, conforme assinalam Arthur T. Caser e Dominichi
Miranda de Sá (2011, p.479-80).9
Esse quadro médico, apesar de suas qualificações, encontrava-se disperso e
era inconstante. Não era à toa que os surtos de malária constituíam um temor cons-
tante entre os soldados, chegando a índices alarmantes. Conforme Laura Antunes
Maciel pelo menos um quarto dos membros da Comissão Rondon ficara incapaci-
tada pela malária (1988 apud DIACON, 2006, p.76-7), que na região de sua atua-
ção manifestava-se endemicamente conforme estudos de médicos sanitaristas como
Carlos Chagas. O próprio Oswaldo Cruz efetuou uma avaliação na área da ferrovia
Madeira-Mamoré a pedido da Brazil Railway Company de Percival Farqhuar. De seu
relatório apresentado em setembro de 1910 saiu o mais complexo trabalho médico-
-sanitário sobre o Alto Madeira e das medidas profiláticas a serem tomadas pelos
diretores da empresa e autoridades públicas (HARDMAN, 1988, p.150). Faz um in-
ventário das “moléstias reinantes”10 que se aproxima de alguma maneira daquele

9 Muitos outros médicos militares trabalharam a Comissão Rondon em diferentes momentos.


Em seguida a patente e o período aproximado em que serviram na CLTEMTA: do corpo
do Exército os primeiro-tenentes Armando Calazans (19007-1908) e Manoel Antonio de
Andrade (1907), os capitães Joaquim Rabello (1908) e João Florentino Meira de Faria (1914) e
o oficial médico da Armada Paulo Fernandes dos Santos (1909-1910); além destes são citados
Fernando Soledade (1916), Esperidião Gabino, Serapião e Alberto Moore, não se sabendo se
eram civis ou militares.
10 Cruz cita entre outras moléstias: pneumonia, sarampo, ancilostomíase, beribéri, disenteria, he-
moglobinúria, febre amarela, pé-de-madura, pinta, espundias e calazar (leishmaniose visceral).
Histórias de Doenças 261

redigido pelo oficial da C. R. Otávio Felix em relação ao rio Jamari: “… e mais grave
de todas, impaludismo (malária), o grande responsável, segundo o sanitarista, ‘pelo
descrédito crescente que infelicita esta região […], o único terror sério destas regi-
ões’, apesar de constituir ‘moléstia evitável’:

A região está de tal modo infectada que sua população não tem a noção do
que seja o estado hígido e para ela a condição de “ser enfermo” constitui a
normalidade. As crianças – as poucas que existem – inquiridas sobre o estado
de saúde respondem simplesmente “não tenho moléstia, só tenho baço”. E ca-
racterizam assim a enorme esplenomegalia cuja presença sentem e que é con-
secutiva aos acessos repetidos de malária. (CRUZ, 1910 apud HARDMAN,
1988, p.150-1)

Os médicos-militares da Comissão Rondon estavam atentos aos estudos re-


cente feitos por estes sanitaristas e ao debate internacional no campo da Medicina
Tropical acerca da malária. Já se conhecia os meios de transmissão cujo vetor era o
mosquito Anopheles e o causador da doença, o protozoário Plasmodium. Na inexis-
tência até então de um serviço ambulatorial ou hospitalar, tentavam difundir o uso
de mosquiteiro e a distribuição de doses diárias de quinina e de injeções de quinino
a cada 6 horas nas recidivas.
Ao longo da CLTEMTA houve vários casos de cancelamento de expedições
devido à malária (impaludismo ou febre palustre): 1) Durante a exploração das ca-
beceiras do rio Jiparaná em 1909, comandado pelo tenente Alencarliense Fernandes
da Costa, oito dos quinze membros foram acometidos de malária; 2) Em 1912, o
destacamento para explorar terras entre a estação telegráfica de Vilhena (atualmente
no Estado de Rondônia) e o rio Guaporé, foi cancelada, pois seis de seus sete mem-
bros contraíram malária; 3) Durante a Expedição Roosevelt-Rondon (1913-1914)
quase teve um final trágico, pois o ex-presidente Theodore Roosevelt e seu filho
Kermit pegaram malária, além de um saldo de três mortos.
Houve situações em que o surto de malária foi tão devastador que chegou a
interromper a construção da linha por longo período, isto ocorreu entre julho de
1910 e julho de 1911, quando até mesmo Rondon teve de se afastar permanecen-
do no Rio de Janeiro por quase um ano; um segundo caso de paralisação se deu
entre outubro de 1913 a abril de 1914, justamente, quando Rondon acompanhava
Roosevelt na expedição ao Rio da Dúvida. Essa foi uma temporada letal: o capitão
Cândido Cardoso sucumbiu à malária durante a viagem para substituir outros dois
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
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oficiais que se encontravam doentes, algo muito comum quando se avançava para
além da Serra do Norte. O tenente Nicolau Bueno Horta Barbosa adoeceu e foi subs-
tituído pelo tenente Bellaruino; para o enfermo capitão Tinoco foram enviados dois
substitutos que acabaram contraindo malária: tenente Coutinho e Carneiro Pinto. A
maioria destes oficias contava com a possibilidade de se tratarem no Rio de Janeiro,
mas devido as distâncias imensas e as dificuldades de transporte, acabavam muitas
vezes vindo a óbito em Cáceres ou Cuiabá, destino em geral dos praças (DIACON,
2006, p.81).
Houve uma expectativa de normalização no comando com a chegada do te-
nente Cândido Sobrinho, em abril de 1914, este ordena mudança do local do acam-
pamento para área mais seca – entretanto, durante a arrancada final, o comandante
teve de enviar 52 doentes de malária para tratamento, vindo a falecer 32 homens.
Baseado em relatórios oficiais 159 soldados morreram entre 1907 e 1915, sendo que
64% destes durante o esforço final, enquanto, dezessete oficias faleceram em serviço
entre 1901 e 1919 (DIACON, 2006, p.79-80).

Criação do Serviço Sanitário da CLTEMTA

Os médicos militares da Comissão Rondon perceberam que no noroeste do


Brasil, local de atuação dos trabalhos de construção da linha telegráfica, apresenta-
vam condições extremamente favoráveis ao cumprimento do ciclo do Plasmodium.
A geografia da região, cortada por diversos rios das bacias do Prata e Amazônica,
permitiam a reprodução do mosquito transmissor, principalmente no período de
monções. Como notei, pobreza, alimentação deficiente e más condições de trabalho
tornavam os soldados presas fáceis da malária.
A necessidade de estabelecimento de um serviço sanitário destinado a con-
trolar o impaludismo surgiu no esteio do avanço epidêmico dessa doença que aco-
metia e afastava cada vez mais trabalhadores da linha em velocidade que tornava
impraticável sua substituição.
Rondon em relatório de 1908, comenta sobre a difusão dos casos de malária,
atribuindo-a ao contato dos soldados com aldeias indígenas e seringueiros. Para tan-
to, chama atenção para o que denomina “trauma da retirada” dos expedicionários
da cidade de Mato Grosso (Vila Bela da Santíssima Trindade, antiga capital de Mato
Grosso), naquele mesmo ano, evacuação feita na tentativa de evitar a proliferação
da malária entre os soldados, decisão que não surtiu efeito pois de 228 membros
da comissão, apenas 24 chegaram saudáveis em Cáceres e seis faleceram durante o
Histórias de Doenças 263

trajeto (CASER; SÁ, 2011, p.483-4). Um outro evento bastante ilustrativo é caso do
médico Joaquim Tanajura que percorreu 72 km em julho de 1909 para socorrer um
soldado ferido na altura do tronco por uma flecha decorrente de ataque de índios
nambikwara. Conseguiu curar a tempo o soldado Pequeno com “lavagens antissép-
ticas” (Diacon, 2006, p.65-66). A mesma sorte não teve outro soldado que se ferira
gravemente com um tiro de Winchester, o médico Tanajura improvisou uma cirur-
gia de emergência em meio a condições precárias auxiliado pelo zoólogo Alípio de
Miranda Ribeiro, mas o paciente sucumbiu a infecção.
Esses episódios e a constatação de que havia poucos médicos à disposição
para atender cerca de 300 trabalhadores espalhados em duas seções de construção
por distintos pontos das turmas da Comissão, nos vastos sertões do noroeste leva o
comando da CLTEMTA a conscientizar-se da necessidade de um serviço sanitário
no próprio local da construção devido à ausência de infraestrutura adequada para o
combate às enfermidades que acometiam a tropa, em especial à malária.
Assim, em maio de 1910, é criado pela CLTEMTA um Serviço Sanitário ex-
clusivo, inclusive com o estabelecimento de instruções paras as Seções Norte e Sul. A
principal preocupação contida nesse documento era com o controle da malária por
meio de medidas e da otimização do trabalho dos médicos.
Estabelecia que o serviço ficaria a cargo de dois médicos, que se revezariam
na Enfermaria (em Santo Antônio do Madeira para a Seção do Norte e da Serra do
Norte para Seção do Sul) e nos trabalhos de construção da linha telegráfica. Essas
enfermarias contariam com uma equipe composta por nove pessoas, chefiada por
um médico, auxiliado por um farmacêutico, tendo dois enfermeiros, quatro serven-
tes e um cozinheiro.
Havia uma equipe que cuidava da profilaxia contra o paludismo nos acam-
pamentos, tendo inclusive a tarefa de eliminar os focos de lavas de mosquitos. Nesse
tópico as instruções estabeleciam seis recomendações: proibir a ingestão de álcool;
uso sistemático do mosquiteiro; quininização diária de todo pessoal; drenagem do
terreno; isolamento dos portadores de malária; recolhimento de amostras de sangue
para envio à Enfermaria e exame em microscópio; preleções sobre saúde feitas por
médicos da Comissão obrigatoriamente.
Conforme ressalta CASER & SÁ, a principal preocupação contida no regu-
lamento dizia respeito ao controle da malária e ao tratamento dos doentes como
função principal dos médicos da CLTEMTA, prescrevendo normas concernentes
a construção das enfermarias, locais apropriados para sua instalação, estrutura in-
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
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terna etc. (2011, p.487-8). Estes mesmos autores declaram que apesar dos cuidados
com a criação desse serviço sanitário, não é possível precisar a partir da documen-
tação existente o real impacto na melhoria no tratamento dos doentes e nem no es-
tado sanitário da Comissão, apenas observam que “até a inauguração da linha entre
Cuiabá e Santo Antônio do Madeira as doenças continuaram a ter significativo im-
pacto sobre os trabalhos realizados” naquela região, pois o número de óbitos citados
na Tabela 1 (CASER; SÁ, 2011, p.489), continuaram muito altos, de quinze em 1910,
deram um salto para 39 em 1913 e 70 em 1914.
O que sabe é que os frequentes surtos de malária levaram a um redimensio-
namento dos objetivos iniciais da CLTEMTA.
Em primeiro lugar, a ocupação da porção noroeste do Brasil abrangia o tre-
cho de Cuiabá a Santo Antônio do Madeira, e depois seguir adiante até Manaus
atravessando os territórios do Acre, do Alto Purus e do Alto Juruá, na floresta ama-
zônica; a linha telegráfica chegou efetivamente a Santo Antônio do Madeira, e foi
inaugurada oficialmente em 1915, sem os festejos e celebrações que Rondon fazia
questão de realizar, talvez porque efetivamente só viesse a funcionar em 1919 quan-
do a obra foi realmente concluída, e não se prosseguiu nem um quilômetro adiante
como estava previsto inicialmente.
O processo de ocupação produtiva do noroeste tornou-se um verdadeiro
fracasso, surgiram apenas pequenas vilas e cidades em torno de algumas estações
telegráficas mais importantes, e nem todo esforço da propaganda dos escritórios da
comissão no distrito federal foi capaz de estimular a migração para essas áreas.
Mesmo o medo da doença, neste caso da malária, sendo evitado nos relató-
rios para não ir contra o marketing oficial destinado a atrair o imigrante e o empe-
nho dos médicos designados para trabalhar na comissão para controlar as doenças e
diminuir a mortandade, não foram capazes de debelar o terror causado nos soldados
que eram enviados para trabalhar na construção da linha.
A péssima condição sanitária das cidades ao longo do trajeto da CLTEMTA
pode ser ilustrado pelo comentário nada lisonjeiro de Rondon acerca de Santo
Antônio do Madeira, nele se vislumbra a imagem da degradação humana e de uma
localidade condenada:

Não tenho lembrança de jamais ter visto outro povoado de aspecto tão feio e
tristonho. A população, constituída de aventureiros vindos de todas as partes
do mundo, cheia de vícios, alcoólatra, parece ter querido erigir em padrão de
glória o desprezo pela higiene e pelo asseio. O lixo amontoa-se no meio das
Histórias de Doenças 265

ruas; ali mesmo abatem-se, esfolam-se e esquartejam-se as rezes destinadas


à alimentação; de todos os lados levantam-se exalações pútridas. Os gêneros
de primeira necessidade, quase sempre deteriorados e imprestáveis, custam
preços exorbitantes, fabulosos. O principal ramo de comércio é o álcool. Em
resumo, depois de se ter visto essa infeliz aldeia, despovoada de crianças,
compreende-se que só por milagre não teria ela a assombrosa mortandade
que a celebrizou e cuja fama injustamente generalizada traz desde muitos
anos paralisado o movimento de conquista das margens do Madeira por uma
população honesta e laboriosa, capaz de beneficiar as incalculáveis riquezas
deste solo. (Rondon, 1919, p.75-76)

Rondon insistia na tese de associar clima a doença, baseando-se nos princí-


pios neo-hipocráticos, princípios que eram aplicados pelos reformadores urbanos
que demoliram os cortiços na área central do capital federal durante o governo do
prefeito interventor Pereira Passos. Associava-se a pestilência com determinadas
condições sociais pútridas que geravam os perigosos miasmas. O caráter disperso
da população nos sertões, o conhecimento parcial acerca de algumas endemias ru-
rais e as dificuldades apresentadas por territórios pouco explorados como era o caso
Cerrado, Pantanais e da Floresta Amazônica, constituíam uma fronteira incógnita
no qual Rondon moldou seu discutível mito heroico.

Referências

CASER, Arthur Torres; SÁ, Dominichi Miranda de. O medo do sertão: a malária e a
Comissão Rondon (1907-1915). História, ciências, saúde – Manguinhos, Rio de
Janeiro, v.18, n.2, p.471-497, abr.-jun. 2011.
CRUZ, Oswaldo Gonçalves. Considerações geraes sobre as condições sanitárias do rio
Madeira. Rio de Janeiro: Madeira-Mamoré Railway Company/Papel Americana,
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A lepra entre a religião e a medicina
Roseli Martins Tristão Maciel1

A doença é a zona noturna da vida, uma cidadania mais onerosa. Todos que
nascem têm dupla cidadania, no reino dos sãos e no reino dos doentes. Apesar
de todos preferirmos só usar o passaporte bom, mais cedo ou mais tarde nos
vemos obrigados, pelo menos por um período, a nos identificarmos como
cidadãos desse outro lugar (SONTAG, 2007, p.11).

O presente texto analisa a lepra (hanseníase) a partir das várias instituições eri-
gidas para o seu controle, tanto as de cunho religioso do mundo ocidental,
desde a Antiguidade mais remota até o final da Idade Média, como as embasadas
na ciência dos séculos XIX e XX. Através de seus respectivos dogmas e teorias, es-
sas instituições, introduziram um conjunto de práticas de isolamento impostas aos
portadores desta doença, muitas das quais prevaleceram mesmo após a descoberta
de sua forma de transmissão, em finais do século XIX, bem como de seu método de
tratamento e cura, através das sulfonas, descobertas na década de 1940.2
O objetivo aqui é discorrer sobre a trajetória histórica do drama dos hanse-
nianos e identificar como o medo milenar do contágio, fortalecido pelos estigmas,
acarretou um impacto subjetivo, porém, tão profundo na vida das várias sociedades
humanas a ponto de resistir aos séculos, às mudanças de pensamento introduzidas
pela ciência moderna. Pretende-se, ainda, demonstrar que os dogmas das religiões

1 Professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Goiás; Mestre em


História pela Universidade Federal de Goiás; Doutora em Políticas Públicas pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
2 Sulfona/Dapsona: medicamento descoberto na década de 1940 e que possibilitou o tratamen-
to ambulatorial da hanseníase, isto é, sem a internação de seu portador. (http://www.cve.sau-
de.sp.gov.br). (Acesso em: 07/02/2011).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
268 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

de matrizes, judaica e cristã foram responsáveis por várias das representações nega-
tivas atribuídas a lepra, cujos efeitos ainda se fazem sentir nos dias de hoje.
A análise é feita através do aporte teórico do institucionalismo histórico a fim
de lançar luz à história da hanseníase e tornar compreensível o medo e as interpre-
tações preconceituosas que atinge seus portadores em diferentes épocas. Trata-se
de uma abordagem que tem como premissa básica a ênfase sobre a influência das
instituições sobre o comportamento das sociedades e seus resultados políticos, con-
siderando sua contingência histórica (NORTH, 1990; 1994).

A lepra e a religião

Os hebreus, na Antiguidade, referendados por sua crença religiosa, criaram


e difundiram todo um conjunto de normas comportamentais e regras de conduta
para os leprosos, isto é, instituições, pois conforme North, “as instituições são os
constrangimentos humanamente concebidos que estruturam a interação política,
econômica e social” (NORTH, 1994, p.360).
A palavra lepra é de origem grega – lepein – e significa descamar, esfoliar e,
no período helênico, tinha para os gregos a conotação de “impureza” ou “desonra”.
(CUNHA, 2002, p.2). O termo lepein foi adotado pela religião judaica no século
III antes de Cristo, por iniciativa de Ptolomeu II, quando a Torá, os Neviim e os
Ketuvim, livros sagrados hebraicos, foram traduzidos para o grego e transformados,
da forma como pós-escrito, na Bíblia ou Velho Testamento. Os líderes religiosos
judeus encarregados de executar essa missão optaram por utilizar a palavra “lepra”
em substituição ao termo tsara´há� que, até aquele momento, era utilizado para de-
nominar a doença. A palavra lepra foi conservada na tradução latina da Bíblia deno-
minada “Vulgata”, porque a tradução foi realizada em latim popular.3
Alguns autores defendem que a lepra foi introduzida no Ocidente somente
no século I a. C4. Porém, é evidente que o mundo ocidental conhecia a doença, pois
desde época bem anterior, Hipócrates (400 a.C.) se refere à lepra descrevendo a do-
ença com todas suas características e a denomina de “a doença fenícia” (BROWNE,
2002, p.16).

3 A tradução latina da Bíblia foi feita por São Jerônimo, em meados do século IV d. C., propagan-
do-se, assim, por todo o Império Romano e pelo novo e crescente mundo cristão.
4 Ver BERIÁC apud LE GOFF, 1994 p.127-128; BROWNE, 2003, p.37.
Histórias de Doenças 269

O dogma da religião judaica fez com que os leprosos fossem alvo de temor, não
apenas em razão das mazelas biológicas próprias da moléstia, à época sem tratamento
eficaz e sem possibilidades de cura, mas principalmente pelo medo das consequências
que adviriam do “contato” com o pecador impuro, o que é bastante compreensível em
uma sociedade onde a razão é submetida ao totalitarismo dos dogmas.
A interpretação da doença como castigo divino não foi uma invenção ex-
clusiva das religiões de matriz judaica e cristã, conforme a interpretação de Diana
O. Torres (2002). S. Sontag (2007) demonstra que no mundo grego antigo, muitas
vezes a doença foi retratada como instrumento da ira divina. A autora cita como
exemplos a peste que Apolo, no Canto I da Ilíada, inflige aos aqueus em castigo por
Agamêmnon ter raptado a filha de Crises; a peste que ataca Tebas, em Édipo, em
razão da presença contagiosa do rei pecador ou a uma pessoa específica, a ferida no
pé de Filoctetes (SONTAG, 2007, p.39). Em outra passagem, esta autora afirma que

na Ilíada e na Odisséia, a doença ocorre como um castigo sobrenatural, como


uma possessão demoníaca e como resultado de causas naturais. Para os gre-
gos, a doença podia ser gratuita ou podia ser merecida (por causa de uma
falta pessoal, de uma transgressão coletiva, ou de um crime cometido por um
ancestral) (idem, p.42).

As instituições erigidas para o isolamento dos portadores de lepra está de acor-


do com à concepção de Erving Goffman e o seu conceito de instituições totais (2010).
Segundo o autor, todas as instituições destinadas a isolar indivíduos, criando uma bar-
reira entre eles e o mundo exterior, possuem características que as tornam comuns.
As instituições totais, segundo Goffman, promovem a quebra de todos os
laços com a sociedade civil para os indivíduos que nela adentram como pacientes. O
autor afirma que “os processos pelos quais o eu da pessoa é mortificado são relativa-
mente padronizados nas instituições totais. […] A barreira que as instituições totais
colocam entre o internado e o mundo externo assinala a primeira mutilação do eu”
(GOFFMAN, 2010, p.34).
Foucault, em Vigiar e Punir contextualiza os métodos de exclusão dos por-
tadores de lepra e os vitimados pela peste negra, problematizando-os de forma a
considerá-los como sendo responsáveis pelo estabelecimento de determinadas re-
lações de poder no Ocidente que permaneceram ao longo dos séculos. “O leproso
é visto dentro de uma prática de rejeição, do exílio cerca; deixa-se que se perca lá
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
270 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

dentro como uma massa que não tem muita importância diferenciar” (FOUCAULT,
2000, p.164).
Foucault (2001) analisa o isolamento dos leprosos em outra obra, em Os
Anormais, o autor afirma que

a exclusão da lepra era uma prática social que comportava primeiro uma di-
visão rigorosa, um distanciamento, uma regra de não contato entre um indi-
víduo (ou um grupo de indivíduos) e outro. Era, de um lado, a rejeição desses
indivíduos num mundo exterior, confuso, fora dos muros da cidade, fora dos
limites da comunidade. Constituição, por conseguinte, de duas massas estra-
nhas uma à outra. E a que era rejeitada era rejeitada no sentido estrito nas
trevas exteriores. Enfim em terceiro lugar, essa exclusão do leproso implicava
a desqualificação – talvez não exatamente moral, mas em todo caso jurídica e
política – dos indivíduos assim excluídos e expulsos. Eles entravam na morte,
e vocês sabem que a exclusão dos leprosos era regularmente acompanhada de
uma espécie de cerimônia fúnebre, no curso da qual eram declarados mortos
(e, por conseguinte seus bens, transmissíveis) os indivíduos que eram lepro-
sos e que iam partir para esse mundo exterior estrangeiro. Em suma, eram de
fato práticas de exclusão, práticas de rejeição (FOUCAULT, 2001, p.54).

O isolamento dos hansenianos foi institucionalizado inicialmente com os ju-


deus antigos ao criarem o “vale dos leprosos” descrito na Bíblia, que sobreviveu à Idade
Média e à Época Moderna, sob a forma dos leprosários e lazaretos instituídos pela
Igreja Católica, transformados em sanatórios e hospitais no século XIX e, finalmente,
em colônias e preventórios, no século XX sob os auspícios da medicina moderna.

O estigma que envolve a lepra ao longo da história

Segundo o institucionalismo as regras estão implícitos os elementos coer-


citivos que lhes garantem a observação e o cumprimento, ou seja, o enforcement
(NORTH, 1994). No caso da religião judaica, aqui analisada, o enforcement, isto
é, o elemento coercitivo que garantia o cumprimento das regras, eram os castigos
divinos. Quem violasse qualquer uma de suas leis, religiosas e sociais, simultanea-
mente, sofreria a punição de Deus, através da ação do sacerdote, que incorporava,
também, os poderes temporais. No caso, se a infração fosse de origem sexual, o pe-
cador tornava-se um proscrito ante a comunidade. Segundo os dogmas da religião
hebraica antiga, doenças como a lepra nada mais eram que um castigo divino, e
Histórias de Doenças 271

seu portador era considerado como alguém que teria praticado atos sexuais ilícitos,
tais como sodomia, relações homossexuais, sexo com animais ou durante o período
menstrual. Sendo assim, o leproso era alguém que trazia consigo os estigmas da
impureza, imundície e pecado, já que a lepra era a comprovação do pecado de que o
castigo divino fora aplicado.
É importante destacar que a percepção do castigo religioso estava diretamen-
te relacionada ao dogma do pecado original e aparece no livro de Gênesis (o pri-
meiro da Bíblia). Os termos religiosos pecado e castigo, em referência aos leprosos,
nesses livros são designados “tsara´ath”, palavra de origem aramaica que quer dizer
“golpeado por Deus” (BROWNE, 2003).
No livro sagrado dos hebreus, a Torá, encontra-se essas argumentações trans-
cendentes do judaísmo para explicar as “origens” e “causas” da lepra e as justificativas
da necessidade de isolamento de seus portadores, do restante da comunidade saudá-
vel. Assim está escrito, referindo-se ao leproso: “todos os dias em que praga houver
nele, será imundo; imundo está, habitará só; a sua habitação será fora do arraial”
(LEVÍTICO, 13:4). De acordo com Rotberg (1975, p.295), os leprosos “eram decla-
rados ‘imundus’ pelo sacerdote e expulsos para ‘fora do acampamento’ e suas roupas
e paredes com ‘tsara´ath’ eram queimadas ou destruídas, carregando-se as pedras e
restos de sua habitação para um ‘lugar imundo’”.
Os sacerdotes judeus representavam o poder instituído, tanto religioso quan-
to de governo, portanto, o isolamento dos leprosos insere-se no conceito que North
(1994, p.360) denomina como regra formal.
Na Antiguidade, diferentes religiões do mundo asiático apresentam em seus
preceitos noções estigmatizantes em relação à lepra, de maneira bastante similar
aos estabelecidos pela religião dos hebreus. Na Índia, as primeiras referências à le-
pra aparecem no Susruta Samhita, que menciona o conhecimento e tratamento da
doença com o óleo de chaulmoogra. A obra, que, provavelmente, é o resumo das
tradições orais mais antigas, identifica tanto sinais cutâneos quanto neurológicos e
foi escrita no século VI a.C (LOWE apud BROWNE, 2003). A lepra era considerada
como deslize moral, imundície e relacionava-se a tudo que merecesse desprezo.
Cabe lembrar que, nas religiões asiáticas da Antiguidade, não havia separa-
ção entre medicina e religião, característica que, por sinal, está muito presente ainda
hoje nessas culturas. Na China e no Japão, os registros sobre a lepra datam de época
posterior à da Índia. Segundo Veith apud Brown (2003), a história da lepra no Japão
apresenta paralelos interessantes com a história bíblica sobre a lepra, tais como a im-
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272 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

precisão, as implicações não clínicas e o medo excessivo. Além disso, o autor chama
a atenção para o fato de que as descrições mais antigas da lepra na Índia e na China
são surpreendentemente precisas e completas, demonstrando observação atenta e
um registro inteligente.
As regiões que foram dominadas pela China sofreram sua influência em re-
lação às formas de tratamento e diagnóstico da lepra (TRONCA, 2004). Na China,
também, acreditava-se que a lepra ocorria como punição em decorrência de depra-
vação sexual e que só seria possível dela se livrar deflorando uma virgem ou “ven-
dendo-a” a tantas pessoas quanto possível (SKINSNES apud BROWN, 2003, p.40).
O medo do contágio era tanto que muitas pessoas eram queimadas vivas.
Quanto ao mundo islâmico, a análise do Corão5 não revelou referência algu-
ma à lepra ou a quaisquer outras doenças como estando relacionadas ao pecado ou
à impureza. Foi realizada, para fins deste estudo, uma investigação minuciosa, prin-
cipalmente dos versículos que tratam da pureza, impureza, ablução, pecado, castigo,
ao sangue e às enfermidades. As únicas citações em que aparece a palavra lepra se
referem a Jesus, como na passagem abaixo:

O Suhaib (R) relatou que o Mensageiro de Deus (S) disse: “O jovem começou
a curar as pessoas que sofriam de cegueira congênita, de lepra, e de outras
enfermidades. A notícia chegou aos ouvidos de um cortesão do rei que havia
ficado cego. Ele foi ter com o jovem, levando muitos presentes, e disse: ‘Tudo
isto será teu, se me curas!’ O jovem lhe disse: ‘Eu não curo ninguém; é tão so-
mente Deus que concede a cura. Se declarardes a vossa fé em Deus, eu orarei
por vós, e Ele vos concederá a saúde’. Assim, ele declarou sua fé em Deus, que
lhe restaurou a visão (CORÃO, MUSLIN, 39, p.10).

A razão pela qual Jesus é mencionado no Corão deve-se à interpretação mu-


çulmana de que ele teria sido o último dos profetas enviados por Deus, antes de
Maomé, considerado por essa religião como sendo o mais importante dentre todos
os profetas. Segundo o Corão e as Sunas, Maomé estava encarregado de “revelar a
verdade total” de Deus à humanidade.

5 Corão: 30 (Muslin, 39, p.10); Sunas, (8:24) (Narrado por Ahmad, 3/128; al-Nasaa’i, 7/61; clas-
sificado como saheeh por al-Haakim). (Narrado por al-Bukhaari, 9/92; Muslim, 1400) (Al-Tibb
al-Nabawi, 251).
Histórias de Doenças 273

O Corão não faz nenhuma referência específica à lepra e nada indica em seus
preceitos que quaisquer doenças fossem consideradas como castigo ou pecado sexu-
al. Da mesma forma, não aparecem afirmações de algum tipo de doença que impu-
sesse o isolamento de seu portador. Ao contrário disso, identificamos passagens nas
quais os seguidores do Islamismo são exortados a cuidar dos enfermos, por exemplo,

aqueles dedicados à causa do Islã devem outorgar suprema importância à vida


e tratar de prevenir as guerras, encontrar remédios para as doenças, além de
saber que ressuscitar espiritualmente alguém é mais importante que curar as
doenças. O Alcorão declara: “Ó crentes! Obedeçam a Deus e ao Mensageiro,
quando este vos convida ao que vos dá a vida” (idem, 8:24).

Foi possível perceber, ainda, que a interpretação do Corão em relação à se-


xualidade difere-se bastante da visão judaico-cristã e nenhuma doença é associada à
perversão sexual. Isso pode ser percebido nos versículos a seguir, que afirmam que
dentre os benefícios do sexo está o fato de que ele

ajuda a baixar o olhar, traz autocontrole, possibilita que a pessoa mantenha-


-se afastada de coisas pecaminosas, e proporciona todas essas coisas à mulher
também. Ele traz benefícios ao homem neste mundo e no outro e beneficia a
mulher também. Portanto, o Profeta (saaws) costumava desfrutar de relações
íntimas regularmente com suas esposas, e disse, “No seu mundo, mulheres e
perfume me agradam.”. (Narrado por Ahmad, 3/128; al-Nasaa’i, 7/61; clas-
sificado como saheeh por al-Haakim). E o Profeta (saaws) disse: “Ó jovens,
qualquer um dentre vós que tenham condições, que casem-se, pois isso o aju-
da a baixar o olhar e protege sua castidade. E aqueles que não tenham con-
dições, que jejuem, pois isso será uma proteção para eles.” (Narrado por AL-
BUKHAARI, 9/92; MUSLIM,1400) (AL-TIBB AL-NABAWI, 251).

A origem da atitude muçulmana quanto à lepra e aos leprosos não é conheci-


da, no entanto, considera-se, neste trabalho, que os muçulmanos podem ter herdado
a postura de seus ancestrais, como pode ser exemplificado através da história bíblica
de Naamã. Capitão dos exércitos da Síria, Naamã não era, portanto, de origem isra-
elita. A Síria lutava contra o povo de Israel. Naamã era considerado um grande líder
e, por isso, era bastante respeitado pelo rei da Síria e, entretanto, ele era leproso.
Ouvindo falar do profeta Eliseu na cidade de Samaria, que poderia curá-lo de sua
lepra, Naamã dirigiu-se até ele. Para Eliseu, a lepra era o pecado e a cura dela seria o
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274 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

equivalente ao perdão. Assim, Eliseu mandou dizer a Naamã para se banhar no Rio
Jordão que ficaria “purificado”. Naamã quis recompensar Eliseu dando-lhe dinheiro,
que ele recusou. Porém, o seu criado Geazi pegou uma parte do dinheiro e Eliseu
afirmou que a lepra de Naamã cairia sobre ele por esta razão, o que aconteceu, se-
gundo a Bíblia (II REIS, 5:1-27 e 5:14).
Tudo indica que os muçulmanos mantiveram, ao longo dos séculos, práticas
similares de não exclusão e estigmatização aos leprosos, como haviam feito seus an-
cestrais em seu “paganismo” na Antiguidade. É digno de nota, ainda, o fato de que
os médicos muçulmanos deram grande contribuição ao diagnóstico para a lepra, na
Idade Média. Por volta do século XII, descobriram as placas de insensibilidade na
pele e com a observação de casos e dos diversos sintomas a doença pôde ser com-
preendida e descrita de forma mais coerente pelos médicos da época (BERIÁC, apud
LE GOFF, 1994).
Pelo relato acima, pode-se concluir que a origem dos estigmas de pecado e
impureza que envolveu, por séculos, os hansenianos, tem sua origem na religião
judaica. Portanto, é imprescindível, aqui, discorrer sobre esse fenômeno e seus fun-
damentos epistemológicos.
A evidência de que uma pessoa tem atributos diferentes das demais faz com
que ela deixe de ser considerada criatura comum e total, reduzindo-lhe a uma pessoa
imperfeita e diminuída. Essa é a característica do estigma, segundo Goffman (1980),
principalmente quando o efeito de descrédito lançado à pessoa é muito grande por
constituir uma discrepância entre a identidade social virtual e a identidade social
real. Assim,

criamos um modelo social do indivíduo e, no processo de nossas vivências


nem sempre é imperceptível à imagem social do indivíduo que criamos; essa
imagem pode não corresponder à realidade, mas ao que Goffman denomina
de uma identidade social virtual. Os atributos, nomeados como identidade
social real, são, de fato, o que pode demonstrar a que categorias o indivíduo
pertence (MELO, 2005, p.1).

Aquele que possui atributos diferentes ou incomuns costuma sofrer rejeição


por parte dos membros da sociedade a que pertence pelo simples fato de muitas pes-
soas não conseguirem aceitar ou lidar com o diferente. Consequentemente, em situ-
ações extremas, o diferente é percebido como perigoso ou de índole má, deixando de
ser enxergado em sua totalidade e capacidades múltiplas. Além disso, quase sempre,
Histórias de Doenças 275

o diferente é representado pelas características que o distingue dos seus semelhantes,


em detrimento de sua identidade, ou seja, ele é percebido e referenciado não mais
pelo seu nome ou profissão e, sim, pelas imagens simbólicas de sua condição física
ou mental.
Os estigmas impostos à lepra e aos seus portadores sobreviveram ao surgi-
mento do cristianismo e do Novo Testamento, muito embora eles tenham sido per-
cebidos e abordados de maneira diferente da concepão judaica pela nova religião.
Quanto a isso, são elucidativas as passagens dos evangelistas – Mateus, 8:2-4, 10:1-
15, 11:5; Marcos, 1:40-45; Lucas, 4:17, 5:12-15, 7:22, 17:11-19 –, mencionando a
cura de leprosos por Jesus. Merece destaque o fato de que a cura dos leprosos é
denominada “purificação”. Ao enviar os doze discípulos, Jesus deu-lhes a ordem
de “purificar os leprosos” (MATEUS, 10:18) e “os dez leprosos foram purificados”
(LUCAS, 17:11-19).

A lepra e os leprosos na Idade Média

O novo contexto religioso, surgido com o cristianismo, não significou o fim


das práticas discriminatórias e excludentes direcionadas aos leprosos. Ao contrário
disso, os estigmas já culturalmente enraizados nas sociedades hebraica e romana
estenderam-se com a expansão da nova religião por todo mundo ocidental.
O isolamento dos leprosos na Europa Medieval ficou a cargo dos represen-
tantes da Igreja Católica, da mesma forma como havia acontecido na Antiguidade
hebraica. Conquanto o tipo de confinamento tenha sofrido modificações, desde o
período da Alta Idade Média (séculos V e VI), mantiveram-se muitos dos disposi-
tivos prescritos anteriormente pela instituição judaica. Por outro lado, embora os
cristãos tivessem construído uma visão mais piedosa e caritativa em relação aos le-
prosos, a enfermidade da qual eram portadores continuou sendo percebida como
a prova material de seus pecados, portanto, prevalecera a ideia de castigo divino.
Para explicar esse processo, recorre-se à interpretação de dependência de trajetória
proposta por North (1990), segunda a qual as mudanças institucionais nunca são
totalmente descontínuas, pois mesmo que se mudem as limitações formais, perma-
necem os constrangimentos informais, inseridos em costumes, tradições e códigos
de conduta que são mais impenetráveis a políticas deliberadas e limitam a possibili-
dade de ruptura institucional.
A dependência de trajetória das medidas instituídas para os leprosos na Idade
Média, em relação às que lhes antecedem, pode ser claramente percebida a partir de
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vários aspectos, como, por exemplo, a associação das características físicas apresen-
tadas pelas pessoas enfermas como sendo sinais exteriorizados de pecado. Outro
exemplo está no fato de o diagnóstico da doença continuar sob a responsabilidade
sacerdotal, em detrimento da medicina que, embora limitada, tivera consideráveis
avanços em relação à época Antiga. Destarte, o ritual de proscrição, “a morte civil”
do leproso, perante a comunidade que na sociedade hebraica era realizado pelos sa-
cerdotes judeus, também, prevaleceu durante a Idade Média, com a única diferença
de ser ministrado por um clérigo católico.
Da mesma forma que na época dos hebreus, os leprosos católicos eram ex-
pulsos de suas residências e obrigados a participar de um ritual conduzido pelos
clérigos em ofícios religiosos que significava “morte civil”. A liturgia, nesse sentido,
era tão enfática que, ao seu final, era derramada terra sobre a cabeça do leproso
(FORNAZARI; MATTOS, 2005, p.49). A liturgia da morte do leproso não se trata-
va de uma simples representação, mas de fato, depois daquele momento, o doente
tornava-se definitivamente morto para sua família e sociedade. Chegavam até ao
ponto de realizar missas fúnebres de corpo presente com os leprosos, antes que fos-
sem encaminhados aos leprosários (LE GOFF, 1984).
A Igreja Católica institucionalizou a exclusão e o isolamento dos leprosos no
século IV, através do Concílio de Ancyra em 314. No Concílio de Lyon, em 583, foi
reafirmada essa determinação e acrescentada a proibição de qualquer contato entre
pessoas contaminadas e pessoas sãs. Em várias regiões da Europa Ocidental e do
Império Bizantino, não apenas essas exigências foram colocadas em prática, como
também foram criados códigos emblemáticos capazes de identificar os leprosos.
Era comum que os leprosos vestissem um hábito específico que os caracteri-
zassem e que carregassem consigo sinos ou um instrumento chamado de matraca,
os quais deveriam ser manipulados pelos doentes, quando avistassem qualquer pes-
soa próxima de si.
Pelas determinações do II Concílio de Latrão, de 1179, o isolamento dos
leprosos recrudeceu, segundo Le Goff (1984, p.82), “autorizando a construção de
capelas e cemitérios no interior das leprosarias, contribuiu para fazer delas outros
tantos mundos fechados, de onde os gafos só podiam sair agitando matracas para
que as pessoas deles se afastassem”.
Desde a Alta Idade Média (século V), a Igreja Católica também se responsa-
bilizou por erigir as instituições asilares, denominadas leprosários, para recolher os
leprosos. Dentre os objetivos dessas instituições, destacava-se a tarefa de purificar
Histórias de Doenças 277

as cidades dos elementos impuros que colocavam em risco as cidades, ou seja, os


leprosos. Purificar, nesse contexto, significava isolar do convívio social pessoas que
apresentavam uma grande ameaça aos demais cidadãos, os sãos.
A benemerência tornara-se, também, institucionalizada porque era impos-
sível separá-la dos espaços destinados ao abrigo dos leprosos que sobreviviam de
doações e esmolas. A Igreja Católica construiu o primeiro leprosário da Europa, em
Sant Oyen, na França, no ano de 460 d.C. Na metade do século VII, construiu um
em Metz, na Alemanha e outro em Verdum, na França. Tratava-se de edificações que
poderiam abrigar, no máximo, doze pessoas, construídas do lado de fora dos muros
das cidades e acompanhadas de uma capela e um cemitério.
A lepra conferia às suas vítimas um estatuto jurídico especial que foi estabe-
lecido no século XII: “depois do nome menciona-se ‘leproso’, como ‘padre’, ‘cavaleiro’
ou ‘donzel’”. Em algumas regiões, como por exemplo, na Normandia isso acarretava
a perda dos direitos jurídicos (Op.cit. BERIÁC, 136).
Os médicos medievais do Ocidente também consideravam a lepra uma do-
ença decorrente de relações sexuais inapropriadas, como a consumada durante a
menstruação, período em que a mulher era considerada impura na tradição judaico-
-cristão. Isso estava descrito no tratado O Lírio da Medicina, escrito no ano de 1305,
por Bernard de Gordon, professor em Montpellier.
Sendo assim, apresenta-se certa continuidade das concepções anteriores,
uma vez que os fundamentos religiosos do judaísmo permaneciam vivos, até mesmo
na medicina medieval. Até mesmo a concepção resultada de relações consideradas
ilícitas ou durante o período menstrual justificavam o ser leproso.

O homem é leproso ab útero ou depois do nascimento porque é engendrado


durante as menstruações ou porque é filho de leproso, ou porque um leproso
conheceu uma mulher grávida, e então a criança será leprosa, a lepra advém
destas graves deficiências de geração. Depois do nascimento, devido a um ar
malévolo ou pestilento ou devido à ingestão de alimentos suspeitos (…) ou
por se ter estado com leprosos (BERIÁC apud LE GOFF, 1994, p.132).

É importante deixar claro que as concepções religiosas de pecado e castigo


em relação aos leprosos durante a Idade Média colaboraram e fundamentaram o
aparecimento de vários tabus entre a população laica. Um deles se refere ao fato de
que os leprosos adquiriam a doença por terem uma alma deformada. Denominavam
o doente como leprosi ianimi (“alma leprosa”). De acordo com Schmitt (1993, p.268),
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
278 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

uma concepção corrente no período era que “a lepra também é a prova corporal do
pecado: a corrupção da carne manifesta a da alma”.
Esses tabus e outras crenças tinham origem na cultura, engendradas pelo
convívio cotidiano entre as pessoas de diferentes gerações e daquilo que, segun-
do Perry Anderson, constituiu o mundo medieval, isto é, uma “Síntese Histórica”
(ANDERSON, 1995, p.123) entre os resquícios do Império Romano, com a cultura
judaico-cristã e com as diversas sociedades tribais – germânicos, gauleses, anglo-sa-
xões, unos, dentre outras, que foram adentrando e se misturando com os romanos.
As instituições informais construídas pela população leiga para lidar com a
lepra e seus portadores no ocidente medieval cristão expressaram toda a carga cul-
tural do passado e das culturas dos diversos grupos humanos que lhes antecederam,
colaborando não apenas para que sobrevivessem durante quinze longos séculos, mas
para que fossem legados às sociedades que lhes sucederam no tempo e no espaço.
A dinâmica histórica da lepra na Idade Média preservou e fez surgir meca-
nismos de controle e de organização que se tornaram constituintes de instituições
específicas destinadas aos leprosos e à lepra, de cunho formal e informal, que se
cristalizaram, expandiram e sobreviveram nos séculos seguintes.
A incidência de lepra na Europa, a partir do século XV, passou a apresentar
um grande decréscimo. Os historiadores não estabelecem consenso em suas expli-
cações sobre o ocorrido. Muitos afirmam que a grande crise dos séculos XIV e XV,
como também a Peste Negra que assolou o mundo medieval, foi, em parte, respon-
sável pela eliminação dos leprosos. Segundo Rosen (1994), devido à debilidade física
dos leprosos, em decorrência da moléstia, eles eram facilmente vitimados pela peste
e pela fome. Outros autores afirmam ter sido, provavelmente, a melhoria das con-
dições de higiene pelas quais as sociedades passaram a partir de então (OBREGÓN
apud MACIEL, 2007).
O declínio da lepra na Europa Ocidental, nos finais do século XIV, permane-
ce um mistério, assim como o seu desaparecimento na Inglaterra no século seguinte
e de outros países europeus, na sequência (LEWINSOHN, 2003, p.69). A autora
considera controversa a explicação de Rosen, no entanto, não introduz outra expli-
cação possível para o fenômeno. Contudo, afirma que a moléstia não foi erradicada,
inclusive na Escandinávia, não sofreu alteração.
Histórias de Doenças 279

Os leprosos sob a perspectiva científica

No século XIX, a lepra ressurgiu na Europa e expandiu-se pela América do


Norte, principalmente, Estados Unidos e Canadá, causando verdadeiro terror em
suas populações, “possivelmente por obra das expansões colonialistas do século”,
conforme compreendem Rosen (1994, p.12) e Diana Obregón Torres (2002).
O novo colonialismo decorrente do processo da expansão do capitalismo
imperialista, no século XIX, levou várias regiões da Ásia, África e Oceania, dentre
outras, a serem invadidas por comerciantes, diplomatas ocidentais e pelas missões
religiosas de católicos e protestantes (DEBROY, 1994).
A visão que esses expansionistas elaboraram e disseminaram sobre os coloni-
zados e a tudo que lhes dizia respeito foi de extrema negatividade. Os missionários
religiosos, particularmente, mostraram-se indignados em relação à cultura dos povos
que habitavam as recentes colônias. Isso fez com que lançassem conotação moral des-
respeitosa contra os seus costumes e, simultaneamente, apresentassem uma grande
intolerância pelas suas práticas religiosas, as quais foram percebidas como manifesta-
ções pagãs. Destarte, consideraram as leis dos nativos como sendo tabus, tanto quanto
suas organizações familiares e sociais como depravadas. Sendo assim, pode-se afirmar
que esses povos foram percebidos sob o viés da própria cultura e doutrina religiosa
daqueles que os subjugaram, isto é, de forma etnocêntrica e xenófoba.
A esse respeito, são interessantes as observações de Swedberg (1998) sobre a
relação que Weber faz entre a economia e outras esferas sociais, como arte, ciência,
raça, geografia, dentre outras. Ao demonstrar como certos fenômenos científicos
são economicamente relevantes, o autor exemplifica que os fenômenos geográficos
e biológicos racionais podem ser vistos como estímulos ou inibidores para obtenção
de bens econômicos.
O processo de colonização do século XIX – cuja participação de missionários
religiosos o torna, sob esse aspecto, semelhante ao movimento colonizador do sé-
culo XVI – apresenta originalidades. Se a primeira forma de colonização impetrada
pelos europeus contou com a colaboração dos jesuítas por meio da catequização dos
povos nativos da América e da Ásia, o segundo movimento expansionista teve, além
da contribuição religiosa das missões católicas e protestantes, elementos advindos
do desenvolvimento das ciências, especialmente da biologia.
Nos finais do século XIX, a maioria das potências europeias, portanto, fun-
damentava sua concepção de nação na ideia de raça, contexto que Hanna Arendt
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
280 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

(2004) denominou como a nova chave da história porque a importância ideológica


das teorias raciais está relacionada às finalidades políticas de suas aplicações. Uma
das principais doutrinas racistas do período foi o darwinismo social, segundo o qual
a civilização seria determinada por leis biológicas. Os darwinistas sociais defendiam
a ideia de que a evolução das sociedades humanas seria o resultado da competição
entre as diferentes raças existentes, classificadas como inferiores e superiores. Dentre
estas últimas, os brancos liderariam, enquanto que as demais, compostas por negros
e indígenas, estariam fadadas à extinção graças ao processo de seleção natural e so-
cial (HOBSBAWM, 1991).
A eugenia6, teoria do aperfeiçoamento da raça humana, e o darwinismo so-
cial, nesse contexto, pregavam a ideia da existência de raças superiores e inferiores,
sendo que as primeiras estariam mais aptas a enfrentarem os desafios da civilização.
A proposta dos eugenistas era da criação do corpo do novo homem, que constituiria
o corpo da nova sociedade civilizada, da qual fariam parte as pessoas perfeitas, nor-
mais, saudáveis, inteligentes e talentosas. A eugenia através de argumentos científi-
cos tornou-se uma das mais eficazes armas de controle social e político.
Pietra Diwan (2007, p.30) enfatiza que esse processo “se consolidou com o
“darwinismo social”, que deu voz a elementos racistas e eugenistas”, que, por sua vez,
fundamentaram teoricamente, o movimento denominado neocolonialismo.
Segundo Monteiro;

George Stocking Jr. (1968) ressalta como o próprio conceito de “civilização”


se transformou no século XIX, com o surgimento de novos discursos cientí-
ficos sobre as raças humanas. Se para uns, era este o destino comum de toda
a humanidade, para outros, tornou-se um estado ao alcance de algumas “ra-
ças”. O recorte pessimista dos teóricos que postulavam a impossibilidade de
certas raças atingirem a civilização confirmava-se nas próprias circunstâncias
históricas da expansão europeia, com o rápido desaparecimento de diversas
sociedades primitivas nas Américas e no Pacífico Sul (1996, p.18).

Francis Galton, o pai da eugenia, por sua vez, defendia em sua obra A Teoria
da Hereditariedade, de 1875, a ideia de que a doença e o crime seriam hereditários
(DIWAN, 2007). A esse respeito, é bastante elucidativo um documento oficial da
cidade de Chicago, de 1906, cujo objetivo seria a criação de leis de esterilização e de

6 Ver nota 28 na página 44.


Histórias de Doenças 281

restrição de casamento de pessoas consideradas inaptas. Esse documento classifica


como inaptos:

os débeis mentais, os loucos, os criminosos, os epiléticos, os alcoólatras e todo


tipo de viciados, os doentes (tuberculosos, sifilíticos, leprosos) os cegos, os
surdos, os disformes, os indivíduos marginais (órfãos, vagabundos, morado-
res de rua e indigentes) (DIWAN, 2007, p.57).

Nesse contexto, a lepra adquiriu o sentido que Cabral (2013, p.47) denomina
de “contágio simbólico da falta de civilização”. Assim, nas regiões que sofreram o
processo de ocupação pelo novo tipo de colonialismo, ressurgiram as práticas de
isolamento e estigmatização dos leprosos, de forma bastante similar aos contextos
da Antiguidade e da Idade Média, porém, subsidiados pelos arcabouços de teorias
pseudocientíficas.
A esse respeito, o caso do Havaí� é o mais emblemático. No arquipélago ha-
vaiano, por volta da década de 1850, foi inaugurada uma política sanitária contra
os leprosos, reservando a ilha de Molokai como local para o isolamento, onde os
doentes de lepra ou suspeitos de contaminação eram transferidos e lá eram deixados
à própria sorte.
O contexto em que viveram os leprosos, sob a égide da expansão neocolo-
nialista, pode ser elucidado através do conceito de dependência de trajetória, uma
vez que as instituições erigidas em atenção a eles tiveram suas bases assentadas nos
preceitos das religiões de matriz judaica e cristã, embora, fundamentadas na ciência.
É possível afirmar que as mudanças que foram introduzidas em relação à lepra e aos
leprosos, ao longo do século XIX, ocorreram de forma lenta e gradual, não se carac-
terizando como transformações radicais ou inovações totalmente originais, o que as
assinalam como sendo mudanças institucionais, de caráter incremental.
Os institucionalistas concebem como mudança institucional incremental
aquelas que acontecem gradualmente, por etapas ou por camadas, cujo processo
se dá através da introdução de novas regras ou normas, no topo ou ao longo das
já existentes. De acordo com Mahoney e Thelen (2006), elas acontecem através de
emendas, revisões, ampliação, enfim, quando novas regras são anexadas às antigas
mudando os caminhos pelos quais as regras originais estruturaram o comportamen-
to. Esse processo normalmente acontece porque os indivíduos que propõem as mu-
danças não possuem condições ou capacidades para transformar radicalmente o sis-
tema institucional original. Assim, eles atuam através de deslocamento e adaptação,
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
282 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

no entorno do sistema vigente, impondo novas regras que convivem com aquelas já
existentes (MAHONEYe THELE, 2003).
As mudanças nas instituições destinadas à lepra e a seus portadores, perpe-
tradas no século XIX, foram feitas através das relações de poder estabelecidas entre
representantes dos Estados imperialistas, das religiões de matriz judaica e cristã e
os cientistas. Dessas relações, a prática de isolamento dos leprosos se adequou ao
novo contexto histórico. Dentre todos os agentes de poder, aqueles que ocupavam
os órgãos relacionados à saúde tentaram suplantar os outros poderes, através da au-
toridade científica, “só especialistas podem lutar contra os personagens [os vírus e
micróbios], identificá-los” (FERRO, 1996, p.163).
As interpretações de que hanseníase estaria relacionada ao clima, às especi-
ficidades geográficas e aos fenômenos sobrenaturais foram substituídas por outras
explicações científicas fundadas nos estudos da microbiologia, no final do século
XIX. Das origens miasmáticas, climáticas e religiosas, passara-se para a definição de
agentes causais específicos da doença, germes e bactérias.
A figura do médico e de outros profissionais de saúde, portanto, foi de funda-
mental importância, em todo o processo de institucionalização da saúde, pois assu-
miram várias funções, além das que lhes são comumente atribuídas pelas profissões,
destacando-se as funções na administração pública como planejadores, organizado-
res e implementadores de políticas sanitárias e de saúde pública. Foram partícipes,
dirigentes do poder político, pautados pela autoridade do conhecimento técnico e
científico que detinham. O papel do médico destacava-se, ainda, como o produtor e
difusor de conhecimento relacionado à saúde, portanto, atuando também, nas várias
instituições de ensino e pesquisa.
Os profissionais da saúde desempenharam papel central em todos os pro-
cessos de estatização das medidas de prevenção, combate e controle das doenças.
Graças à autoridade científica de que eram revestidos, encarregaram-se dos planeja-
mentos, da organização, da constituição e até da implantação dos serviços médicos
e hospitalares (MACHADO, 1988).
A medicina no século XIX, segundo Marc Ferro (1996), também serviu para
acirrar as disputas entre as potências imperialistas. O objetivo da medicina colonia-
lista, conforme o autor, era proteger a sociedade contra os agentes causadores das
doenças, o que levou à grande rivalidade entre “os Institutos Pausteur, na França, e
Histórias de Doenças 283

os Lister Institutes7, na Inglaterra, e outras instituições científicas que reeditavam as


rivalidades imperialistas” (FERRO, 1996, p.163).
Os colonizadores, ou seja, as metrópoles, assim fundamentados, atribuíram o
“ressurgimento” da lepra na Europa, durante o século XIX, como sendo exclusivamen-
te de “responsabilidade” dos colonizados. No mesmo período, apareceu o conceito de
doença tropical que foi atribuído à lepra. No entanto, é necessário lembrar que a des-
coberta do bacilo causador da lepra deu-se na Europa, mais precisamente na Noruega,
onde até o final do século XIX a lepra era considerada doença endêmica.
A afirmação acima também exemplifica o quanto é inapropriada a catego-
rização da lepra como doença tropical. Trata-se de mais um dos preconceitos lan-
çados aos povos colonizados no período do capitalismo imperialista. Para Erwin
Ackerknecht apud Tronca (2000, p.40), por medicina tropical

devia-se entender realmente medicina colonial, ou seja, aquele ramo da me-


dicina voltado às doenças que, em sua maior parte, não eram tropicais per se,
mas surgiam como prevalecentes nas colônias tropicais, as quais, portanto, se
revestiam de grande interesse para as potências coloniais.

A respeito disso, Ferro que diz que

em 1905, observou-se que não existiam doenças tropicais em si, algumas de-
las, ou definidas como tais, surgiram igualmente nas regiões temperadas, a
lepra, por exemplo, em suma, se trataria de doenças, quiçá de epidemias, da
pobreza – que só atacavam os indivíduos vulneráveis (Op.cit., p.164).

Zachary Gussow apud Tronca (2000, p.39) afirma que um grande número de
asiáticos, especialmente indianos e chineses, que se dirigiam à Austrália, ao Havaí e
aos Estados Unidos, juntamente com outros asiáticos e negros, eram imediatamente
identificados como população prevalecentemente leprosa e, assim, sofriam perse-
guições e deportações. No novo colonialismo, os hospitais substituíram o papel do
quartel e da igreja.
A descoberta do bacilo causador da lepra pelo norueguês G. Hansen, em
1874, deu uma visão científica para o contágio. Além disso, essa descoberta foi um
marco na história da medicina, por se tratar da primeira prova de que um único
agente poderia causar uma doença. Mais uma vez, o isolamento seria prescrito, sob

7 Fundado pelo Reino Unido em 1891.


Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
284 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

uma autoridade diferente da religiosa, mas motivado pela ameaça social que o do-
ente continuou representando.
O século XIX inaugurou “a lepra moderna”,8 a partir das relações estabeleci-
das entre a instituição estatal e suas várias instâncias de poder, os profissionais de
saúde e os portadores dessa enfermidade. Conforme Torres (2002, p.45), um ele-
mento que merece destaque na construção do conceito moderno de lepra é a mútua
relação “entre o conhecimento médico e os interesses da profissão, a dinâmica nacio-
nal e internacional de luta contra a lepra e as lutas de poder dos médicos”.
Partindo da perspectiva descrita anteriormente, buscar-se-á compreender
a realidade da lepra, ou hanseníase, desde a inserção do Brasil no regime político
republicano até o ano de 2013, tendo como foco de análise a trajetória das políti-
cas públicas que foram implementadas tanto para eliminar sua condição endêmica
quanto para solucionar os problemas que envolvem os seus portadores. É disso que
trata o capítulo a seguir.

Considerações finais

A análise apresentada neste texto buscou, à luz da abordagem institucionalis-


ta conhecer e tornar evidentes a institucionalização do isolamento dos leprosos e o
surgimento e sobrevivência de seus estigmas desde a Antiguidade até o século XX.
A reconstrução da trajetória histórica da hanseníase trouxe a constatação de
que os seus estigmas, na atualidade, são heranças culturais que sobrevivem sob a
dependência de sua trajetória desde suas origens. Na Antiguidade, as religiões de
matriz judaica e cristã, através de seus clérigos, erigiram normas e regras para iden-
tificar, classificar e isolar os leprosos. A lepra, então, era considerada a prova ma-
terial de uma série de pecados de natureza sexual, de acordo com o livro sagrado
dos hebreus que, também, ordenava o banimento social e definitivo da pessoa que
a manifestasse.
Essas instituições atravessaram toda a longa Idade Média e tornaram-se ob-
soletas a partir do século XVII na Europa ocidental, quando a hanseníase quase de-
sapareceu desse continente, entretanto, foram mantidas nas regiões colonizadas pe-

8 O conceito lepra moderna foi cunhado pela estudiosa colombiana Diana Obregón Torres (2002,
p.41), com a finalidade de referenciar a doença “desde su descripción como uma enfermedad
infecciosa producida por um microorganismo específico, há sido descuidado por los historia-
dores professionales”.
Histórias de Doenças 285

las potências europeias até a segunda metade do século XIX. Nessa mesma época, a
hanseníase ressurgiu na Europa, simultaneamente ao desenvolvimento das ciências
biológicas e à descoberta dos agentes bacteriológicos como causadores de doenças.
A medicina, então, constatou a eficiência do isolamento contra a transmissão
da hanseníase, e o método foi reintroduzido na Europa, porém, não mais através
de regras fundamentadas em dogmas religiosos, e sim, no conhecimento científico.
Entretanto, nas regiões sob o domínio imperialista, África, Ásia e Américas, com
exceção dos Estados Unidos, o isolamento dos hansenianos manteve as regras reli-
giosas ao lado das que foram introduzidas sob os auspícios da medicina.

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A medicina pioneira: protestantismo e prática
médica na expansão da fronteira em Goiás
na primeira metade do século XX
Sandro Dutra e Silva1
Heliel Gomes de Carvalho2
Carlos Hassel Mendes da Silva3

Introdução

E ste trabalho está vinculado aos estudos sobre a expansão da fronteira agrícola
na microrregião de Ceres em Goiás4 e o processo de desflorestamento da região,
resultante da política de colonização agrária promovida pelo Estado Novo (1937-
1945), conhecida como Marcha para o Oeste. A pesquisa sobre a história ambiental
da área florestada da microrregião de Ceres, conhecida na época com região das
Matas de São Patrício, tem como interesse analisar a relação entre os processos de
ocupação humana (no caso colonização e migração) e a sua interação com o meio
natural (as florestas). Os processos de colonização e migração, aliadas a devasta-

1 Doutor em História pela UnB. Professor na Universidade Estadual de Goiás e no Centro


Universitário de Anápolis.
2 Mestre em Ciências Ambientais (PPSTMA/UniEVANGELICA). Professor no Centro
Universitário de Anápolis.
3 Graduação em Medicina pela UnB e Mestre em Educação Superior pela Universidade de
Havana, Cuba. Reitor do Centro Universitário de Anápolis.
4 Projeto de pesquisa intitulado “Novas fronteiras no Oeste: relação entre sociedade e nature-
za na microrregião de Ceres em Goiás (1940-2013)” do Edital 071/2013 – Programa Nacional
de Cooperação Acadêmica – PROCAD/CAPES. O projeto é realizado em parceria com as se-
guintes instituições: Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP/Presidente
Prudente) e o Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (CDS/UnB).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
290 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

ção florestal fazem parte do projeto geral da pesquisa. Assim questionamos: de que
forma as questões relacionadas à história da saúde entram nessa discussão? Qual a
relação mais direta entre os estudos de história ambiental de área florestada, desma-
tada e ocupada no início da década de 1940, e a história da saúde? A princípio, esses
pontos podem parecer temáticas distintas, que exigiria metodologias e olhares dis-
tintos. No entanto, podemos justificar e esclarecer a conexão que fazemos nesse de-
bate. A primeira consideração trata-se do escopo interdisciplinar da própria história
ambiental (WORSTER, 1991; DRUMMOND, 1991; PÁDUA, 2012). Essa disciplina,
que surge nos Estados Unidos na década de 1970, tem como enfoque a ampliação do
campo historiográfico, sobretudo, na inclusão das questões ambientais como foco
do olhar do historiador (PÁDUA, 2012; CRONON, 2003). O segundo ponto é a rela-
ção entre os processos de colonização e migração e a sua consequente conexão com
a temática da fronteira e os processos de ocupação territorial, em que as condições
naturais e os enfrentamentos com o mundo natural, ou a Wilderness (NASH,1982)
são elementos fundamentais de análise. E nesse sentido, os enfrentamentos com as
febres e os males do sertão, ou da fronteira, são temas fundamentais para a investi-
gação da relação entre história e natureza. Outro fator, e que aqui insere-se a nos-
sa discussão, é o papel daquilo que consideramos como “medicina pioneira”, e que
será apresentado adiante, em que as temáticas propõem um diálogo estreito entre a
História Ambiental, a História da Ciência, a História da Saúde.
Nesse sentido é importante apresentarmos o que consideramos como
“Medicina da Fronteira”. Um conceito ainda em construção, mas que utilizamos na
orientação para a identificação do sentido da prática médica exercida por um con-
junto de profissionais da saúde que se voluntariavam nessa atividade durante o pro-
cesso de expansão da fronteira, sobretudo nas décadas 1940 e 1950. São os processos
médicos relacionados com a expansão da fronteira, às migrações humanas e as po-
líticas de colonização. Outro fator que vai caracterizar a “Medicina da Fronteira” é a
sua vinculação com o ethos protestante, ou à medicina como vocação.
Também consideramos como parte da categoria analítica da medicina pio-
neira o que os próprios médicos, em muito de seus depoimentos e relatos memo-
rialistas consideravam como o sentido pioneiro, ou vocacional, da sua ação. Um
médico pioneiro, em termos gerais de categorização, poderia ser considerado aquele
que se obtêm uma formação médica em centros importantes de medicina, mas que
não se “aventura” em trabalhos onde a prática médica é precária, onde existem sé-
rios casos de patologias e carência de medicina. Esse médico pioneiro, portanto,
Histórias de Doenças 291

escolhe o seu campo de trabalho não em função das disponibilidades de infraes-


trutura médica, mas na carência delas e no pioneirismo em suprir essa carência. A
escolha desse termo, no caso específico dos médicos a serem analisados, não se deu
de forma aleatória. Pelo contrário, ele aparece como a reprodução de um discurso e
de uma ideologia que ressoava de forma muito intensa em Goiás no final da década
de 1930, mas sobretudo nas décadas de 1940 e 1950, que era a Marcha para Oeste.
Orientados, sobretudo, pelo texto clássico de Cassiano Ricardo (1959), e reproduzi-
dos pelo governo federal nessa época, o termo “pioneiro” recebeu um sentido muito
mais abrangente do que ele teria a princípio. Ele esteve ligado, principalmente du-
rante o governo do Presidente Getúlio Vargas (1930-1945), ao sentido a ocupação
efetiva do território, aos deslocamentos em sentido Oeste, ao senso da brasilidade e
patriotismo, bem como outros indícios de nacionalismos, muito utilizados na retó-
rica discursiva da época. Cassiano Ricardo (1959), por exemplo, utilizava o termo
“desbravador”, para os sujeitos que se aventuravam nos deslocamentos para a fron-
teira, dando a eles a carga de glória dos bandeirantes históricos. Esses médicos, num
certo sentido, estavam enquadrados na lógica desbravadora e pioneira da Marcha
para Oeste, em que o enfrentamento ao cenário hostil da natureza se apresentava
como elemento fundamental desse ethos (DUTRA E SILVA, 2008; 2012; 2013).
Os estudos weberianos nos auxiliam na constituição das categorias analíticas
para a interpretação da prática e dos elementos vocacionais que constituíam esse
ethos na fronteira em Goiás. No caso específico dessa abordagem, consideramos os
processos médicos que acompanham a política governamental implementada du-
rante o período do Estado Novo, dentro das prerrogativas da Marcha para o Oeste.
O recorte espacial considerado foi o saber e a prática médica na Colônia Agrícola
Nacional de Goiás (CANG). A CANG foi uma área doada pelo governo do Estado
de Goiás à União, nas Matas de São Patrício para a construção da primeira colônia
de povoamento da Marcha para Oeste. A área doada compreendia um vasto terri-
tório de floresta tropical estacional, que passou a ser desmatada para a construção
da Colônia. Nesse sentido, o que o artigo procurará abordar, na chamada “Medicina
Pioneira” é o saber e a prática médica e a sua relação com o poder simbólico e o
combate às doenças tropicais mais comuns durante a colonização.
Segundo Weber (1999), a ética protestante calvinista imputava ao trabalho
um sentido moral, que teria de ser executado como um fim absoluto ou um senso
de vocação. A moral do trabalho considera toda e qualquer atividade laboral como
mais do que apenas a execução de uma tarefa, mas continha o sentido moral desse
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
292 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

exercício. Da mesma forma que o ócio assumia um sentido imoral e que deveria ser
combatido. Essa visão de mundo não nasce naturalmente, mas tinha em Weber um
longo e árduo processo cultural, e que, portanto, poderia ser explicado pela “ciência
da cultura” (WEBER, 2003). O objetivo da ciência da cultura seria a busca pelos
significados das ações sociais dos indivíduos, cuja objetividade geral era vista como
impossível, utilizando para tanto o caminho da subjetividade. Weber (2003) defen-
dia a objetividade por meio da redução da realidade empírica da realidade social à
determinadas leis, com as seguintes recomendações: i) que o conhecimento de leis
sociais não poderia ser entendido como um conhecimento do “socialmente real”,
mas um meio auxiliar; ii) e também que nenhum conhecimento dos acontecimen-
tos culturais pode ser concebido a priori, mas deve considerar e se fundamentar na
“significação” que a realidade da vida se apresenta nas configurações individuais, no
sentido que elas tem para os indivíduos em sua forma de agir, de se relacionar com o
mundo e com as outras pessoas (WEBER, 2003). Portanto, os comportamentos, ou
o sentido desses comportamentos eram fonte fundamental para o que Weber con-
siderava como ciência da cultura. A ética protestante, o significado que o agir desse
grupo tinham, bem como as orientações desse agir foram elementos utilizados por
Weber (1999) e que nos auxiliam a compreender a “Medicina Pioneira” vocacionada
por um grupo de médicos protestantes e sua atuação em Goiás.
Para Keller (2014), em consonância com as concepções weberianas, Calvino
via o trabalho como uma vocação e uma forma de demonstrar a relação como o
Criador e a comunidade. Nesse sentido, compreendia que o indivíduo era chama-
do a exercer a sua vocação, e que todo e qualquer forma de trabalho (vocação) era
preciosa aos olhos de Deus. A ética protestante do trabalho recai sobre um serviço
como um fim em si mesmo, que desemboca num bem ao mundo onde a frugalidade
deve ser experimentada, pois, segundo Weber a “velha atitude de lazer e conforto
para com a vida deu lugar à rija frugalidade” (1999, p. 44). Portanto, consideramos
que, de todas as formas de trabalho como vocação, a prática médica é que talvez
melhor exemplifique esse chamado. Sobretudo nas orientações calvinistas em que
a relação com o criador se processava não pelo clero. Alguns puritanos, inclusive,
tinham grande aversão à atividade clerical. Assim, uma forma de expressar a sua
vocação, ou seu chamado, era exercendo bem o seu trabalho. Por isso que, o traba-
lho missionário era concebido não como uma forma de catequização exercida por
membros do clero, mas pela prática leiga no exercício de um determinado trabalho,
tido como vocacional. A medicina foi uma das principais atividades missionárias
Histórias de Doenças 293

exercidas sob a orientação desse princípio. Nesse sentido é que a medicina como
vocação considera os processos valorativos da moral do trabalho no exercício pro-
fissional e na forma de exteriorização dos valores culturais que constituem um de-
terminado ethos.
Holanda (1995), baseando-se na tipologia weberiana, apresenta as categorias
“trabalhador” e “aventureiro” como modelo de análise da relação entre o homem e o
trabalho. Nessa compreensão, o autor elabora os princípios que regem essas catego-
rias, evidenciando que a formação social brasileira foi regida, segundo essa propor-
ção tipológica, muito mais pelos princípios da aventura do que pela moral do traba-
lho. A colonização aventureira se caracterizava pela busca de resultados imediatos
e pela conquista de riquezas em curto prazo, à custa de investimentos despojados e
através do desbravamento que dava pouco crédito às adversidades e aos confortos.
Já a colonização regida pela moral do trabalho, caracteriza-se pela priorização da
atividade utilitária, racionalizando a realização das tarefas e afazeres e ponderando
os caminhos para alcançar os resultados planejados, valorizando práticas que per-
mitiam a manutenção da harmonia social, na representação de um estilo de vida or-
deiro e cujas relações se sustentavam na associação racional dos indivíduos. É nessa
mesma orientação que se estabelece a cidade semeada (orientada pela aventura) e a
ladrilhada (orientada pelo planejamento). Essa construção tipológica concebida por
Holanda teve, no caso específico da análise das representações urbanas da Colônia
e Barranca, um elemento simbólico interessante, e até de certa forma contraditório.
Esse detalhe fica evidente na medida em que as observações são dirigidas para o
campo das lutas simbólicas, ao apresentar indícios de como os discursos, que se
fundamentaram em relações de poder e que, sutilmente, tiveram novos significa-
dos. Por exemplo, a moral da aventura teve uma relação histórica com o espírito
da colonização portuguesa e que, posteriormente foi traduzida no desbravamento
territorial das bandeiras. É nessa mesma lógica que a Marcha para Oeste teve no
bandeirismo o seu referencial simbólico e nos pioneiros a sua tradução contempo-
rânea. Entretanto, no processo de ocupação e povoamento da CANG, outros ele-
mentos foram trazidos para o campo das lutas simbólicas, colocando os pioneiros
em contato com um novo princípio de sociabilidade e racionalidade. Assim, apesar
do processo de deslocamento populacional ter sido orientado pela “moral da aven-
tura”, a racionalidade da ocupação processou-se a partir da “moral do trabalho”. Esse
artigo trabalha com a hipótese de que o papel do campo médico – aliado ao ethos
protestante e ao background da “medicina pioneira”, uma medicina como vocação e
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
294 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

com forte orientação missionária – foi fundamental na luta simbólica pela constitui-
ção da lógica do espaço social.
A relação entre sujeito, experiência e consciência, ponto chave da discussão
histórica em Thompson (1981) foi apropriada também por Ginzburg (1989). Se
para Thompson a experiência é um elemento estruturado pelo universo social e a
consciência é o resultado da relação do sujeito com sua experiência, para Ginzburg,
a compreensão das experiências do sujeito histórico dá-se a partir da apropriação
dos traços distintos dos indivíduos passíveis de interpretação. Ambos buscam a re-
lação do universo micro (sujeito) e macro sociais (estrutura), desconsiderando os
determinismos. Assim, histórias paralelas e marginais podem ser apreendidas em
sua inserção nos contextos mais gerais, da mesma forma que a consciência (univer-
so micro) tem uma relação direta com as experiências sociais (universo macro). A
consciência histórica apresenta-se como um dos elementos da cultura, manifestado
na articulação temporal do agir pragmático, orientando os sujeitos para a percepção
do seu passado, para agir no presente e para a projeção do futuro. A ação social dos
indivíduos está relacionada com a cultura histórica por ser a referência existencial
que vincula uma consciência de pertencimento a uma coletividade, bem como a
identificação da própria individualidade dos sujeitos (MARTINS, 2002). Portanto,
a cultura é compreendida, ao mesmo tempo, como elemento identificador e de dis-
tinção, na descoberta incontestável de si mesmo e dos outros, orientando as práticas
sociais, na medida em que essa ação parte de uma consciência histórica.

A medicina como vocação:


James Fanstone e a medicina em Goiás

Uma personagem fundamental para a discussão da medicina da fronteira em


Goiás foi o médico inglês James Fanstone (1890-1987). Filho de missionários bri-
tânicos, nascido no Brasil, mas com cidadania inglesa, o Dr. James Fanstone teve
sua formação na London University, onde obteve o grau de doutor em medicina em
1921, ocupando mais tarde a cadeira de livre Docente no London Hospital of Tropical
Medicine. Ele foi alistado como médico no Royal Army Medical Corps durante a I
Guerra Mundial (1914-1918). Após a guerra ele se inscreveu para um curso de pre-
paração de missionários na Glasgow Bible Training Institute. O interesse na formação
teológica tinha como finalidade trabalhar como médico missionário no Brasil, país
em que os pais haviam trabalhado e no qual ele havia nascido. Em1922 ele mudou-se
para o Brasil, passando um período entre São Paulo e Minas Gerais e transferindo-
Histórias de Doenças 295

-se, posteriormente, para Goiás, onde trabalhou o restante de sua vida como médico
missionário. James Fanstone faleceu em Anápolis em 1987.
O trabalho médico na CANG teve início por meio da influência do Dr.
Fanstone, bem como sua participação na constituição e na indicação dos pioneiros
para o trabalho com a medicina naquela área de colonização em Goiás na década de
1940 (ABREU, 2000). Outro fator fundamental é a conexão que o Dr. Fanstone estabe-
lecia entre a medicina e o trabalho missionário, atuando numa rede internacional de
missões protestantes. O primeiro médico a trabalhar na CANG foi o Dr. Jair Dinoah
de Araújo, que já havia visitado à Colônia em companhia de Bernardo Sayão.
O Dr. Jair Dinoah, que era presbiteriano, assim como Dr. Fanstone, veio para
Goiás para trabalhar no Hospital Evangélico Goiano. Em 1945, Jair foi indicado por
Fanstone para iniciar a construção do Hospital da CANG e para trabalhar, sobre-
tudo, no combate à malária e à febre amarela, cuja epidemia assolava essa área de
grande fluxo migratório e de colonização agrícola. Outros médicos, também de ori-
gem protestante, tiveram contato com o Dr. Fanstone e vieram trabalhar no Hospital
da CANG, como os médicos batistas Domingos Mendes da Silva e Isaac Barreto
Ribeiro, e Dr. Álvaro de Melo, origem congregacional (Cristã Evangélica).
O trabalho desempenhado pelo Dr. Fanstone em Anápolis, que desde a cons-
trução do Hospital Evangélico em 1927 e a chegada da ferrovia em 1935, tornava-
-se o centro catalizador de uma rede de saúde vinculada a instituições protestantes
missionárias brasileiras e internacionais. A partir de Anápolis e dos trabalhos co-
ordenados pelo Dr. Fanstone, um conjunto de ações de suporte logístico e de ou-
tras categorias como apoio a projetos de combate à hanseníase, doenças de chagas,
malária, febre amarela, dentre outras doenças. Também apoiou e treinou médicos e
enfermeiras que atuariam em diferentes regiões do Centro-Oeste brasileiro. No caso
da CANG, sua participação foi efetiva no apoio médico nos primeiros anos de colo-
nização, bem como na indicação e no envio de outros médicos para o trabalho pio-
neiro nessa área de colonização agrícola de grande fluxo migratório. Consideramos,
nessa abordagem fazer uma breve descrição biográfica de James Fanstone e o seu
background missionário. Por isso, consideramos fundamental apresentar referên-
cias da biografia do seu pai, o Reverendo James Fanstone (1851-1937) que atuou
como missionário no Brasil, e que, de certa forma, influenciou o filho a retornar da
Inglaterra para trabalhar como médico no país onde havia nascido.
James Fanstone era filho de missionários ingleses e nasceu em Recife no dia
08 de agosto de 1890. Ele recebeu o mesmo nome do pai, o Rev. James Fanstone, que
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
296 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

veio ao Brasil assumiu o posto de missionário deixado por Percy Bowers, missioná-
rio inglês que faleceu de febre amarela no vigésimo primeiro dia após sua chegada
ao Brasil (FANSTONE, 1972).
A relação entre a medicina como vocação e a prática missionária teve como
representante pioneiro o médico Robert Kalley. O Dr. Fanstone, em relato memo-
rialista procurou relacionar o trabalho do Dr. Kalley com o chamado missionário
do seu pai, ao afirmar que: “To visualize the type of missionary work to which Mr.
Fanstone was called, it is necessary to know something of the title known but fascina-
ting life work of Dr. Robert Kalley, the first pioneer missionary to Brazil” (Fanstone,
1952, p. 22). Kalley era um jovem médico de Edimburgo, Escócia, e que ira servir
como missionário na China. Em 1833 aportou em Funchal, na Ilha da Madeira,
devido a problemas de saúde. Lá ele trabalhou como médico particular e começou
a dar aulas em inglês. Ao mesmo tempo familiarizou-se com a língua portugue-
sa. Proibido de trabalhar na Ilha da Madeira e sendo perseguido pela intolerância
religiosa, Dr. Kalley retornou para Inglaterra e depois foi para os Estados Unidos
onde trabalhou por cerca de dois anos visando construir uma colônia cristã portu-
guesa no Estado de Illinois. Mais tarde sentindo que estaria habilitado a exercer seu
trabalho no Brasil chegou, no Rio de Janeiro, em maio de 1855, acompanhado da
esposa. A partir do trabalho no Rio de Janeiro fundou uma comunidade protestante
em Pernambuco no ano de 1873. Foi nesta pequena comunidade que o Rev. James
Fanstone foi designado como missionário em 1879 (FANSTONE, 1972).
Os relatos de James Fanstone (1952) sobre a relação entre o projeto missio-
nário do seu pai, Rev. Fanstone, e o projeto missionário do Dr. Kalley, evidenciam
alguns elementos que aparecem na sua própria biografia e que as suas narrativas
memorialistas confirmam. Ou seja, Fanstone parece procurar justificar essa cone-
xão, reforçando as suas orientações como médico missionário no Brasil, o seu país
de nascimento.
Depois de certo tempo trabalhando na obra missionária em Pernambuco, o
Rev. Fanstone retorna à Inglaterra e se casa com a missionária escocesa Elizabeth
Baird em 01 de março de 1886, retornando ao Brasil no mesmo mês. Em 1891 os
Fanstones voltaram a Inglaterra de licença, levando consigo os dois filhos nasci-
dos no Brasil. James Fanstone havia nascido no ano anterior, mas não tinha sido
registrado no país. Segundo depoimento de Henrique Fanstone, “quando meu pai
Histórias de Doenças 297

tinha três meses de idade o meu avô voltou para a Inglaterra para fazer funções
executivas na missão”5.
Retornando à Europa o Rev. Fanstone percorria a Inglaterra e a Escócia
divulgando as necessidades de obras missionárias e assistências para o Brasil e
Portugal, e em 1892 participou na criação da missão Help For Brazil. De acordo
com Matos (2014) dentre eles presentes nessa reunião estavam Sarah Poulton Kalley,
viúva do Dr. Robert Reid Kalley, O Rev. James Fanstone, pastor da Igreja Evangélica
Pernambucana, e o missionário inglês Hudson Taylor, famoso por suas missões na
Índia e o Dr. João Gomes da Rocha.
O Rev. Fanstone passou os próximos doze anos ou mais cruzando o atlântico
mais de vinte vezes. A Conferencia Missionária de Edimburgo, realizada em 1910,
teve como resultado a constituição da Missão responsável pelas obras filantrópicas
de construção de leprosários e assistência médica aos leprosos em Goiás. Além dis-
so, representou a vinda de um grupo de missionário para o Brasil, como o casal
James e Daisy Fanstone, Josiah e Rittie Wilding, Archibald e Bonina Tripple e Moris
Bernard, que atuaram diretamente no trabalho médico missionário ligado à consti-
tuição dos leprosários (SILVA L., 2013; MATOS, 2014).
Em 1913 foi fundada a Evangelical Union of South America (UESA) e a Help
For Brazil e outras agências missionárias menores como a Patagonian Missione a
South American Evangelical Mission foram unidas nesta nova Sociedade. O Rev.
Fanstone foi liberado de muitas responsabilidades, sobretudo no campo missioná-
rio, continuando como membro do conselho dos UESA. Em 1919 ele se aposentou
e faleceu em 1937 (FANSTONE, 1972).
O jovem James Fanstone demonstrava desejos de continuar a obra do pai,
sobretudo como médico missionário no seu país de nascimento. Relacionava as suas
memórias de infância na Inglaterra aos relatos do pai sobre o Brasil e a suas belezas
naturais, como uma coleção de borboletas coletadas no país. O Rev. Fanstone tinha
feito uma coleção de alguns dos mais belos exemplares de borboletas do Brasil e
que apresentou ao British Museum. Relatou ainda que o pai havia levado do Brasil
para a residência dos Fanstone na Inglaterra, pássaros, macacos, tartarugas e uma
vez até mesmo um pequeno crocodilo, que foi repassado para o Brighton Aquarium.
Nos pequenos cadernos de bolso do Rev. Fanstone, que abrange alguns destes anos
de viagem e ausência de casa, são encontrados breves relatos dessas catalogações

5 Entrevista com o Dr. Henrique Fanstone, 19 de fevereiro de 2015.


Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
298 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

(FANSTONE, 1972). No entanto, o seu desejo em trabalhar como médico missioná-


rio no Brasil, surgiu, em uma reunião do Help for Brazil, conforme o relato memo-
rialista (FANSTONE, 1972).
Toda sorte de formação na infância foi-lhe útil mais tarde na construção,
manutenção, montagem e confecção de instrumentos úteis para a vida médica e so-
cial do carente interior de Goiás no início do século XX. A sua base educacional na
infância e adolescência foi realizada na Higher Grade Schooland Schoolof Science and
Art em Brighton, Inglaterra. Depois dessa formação em Brighton e se mudou para
Londres para estudar medicina na London University no verão de 1909. Em Londres
morava na 49, Highbury Park, em um hostel disponibilizado pela Medical Missionary
Association, que dava suporte a estudantes e profissionais de saúde que almejavam
trabalhar na medicina missionária. James Fanstone (1972) relatou que essa foi a so-
lução para o problema dos meus pais em financiar seus estudos. Pelo exemplo de
seus pais que gastaram as forças e energias no norte do Brasil, afirmava que o seu
desejo era se formar em medicina e retornar ao Brasil como médico missionário.
Por esse tempo havia movimentos de jovens cristãos universitários pensando
no trabalho missionário em países estrangeiros e Fanstone se incluía entre esses vo-
luntários. Ele participou de uma associação de jovens cristãos na London University,
e os membros dessa associação recebiam treinamento de médicos missionários.
Com o início do conflito da I Guerra Mundial (1914-1918) ele foi convo-
cado, juntamente com os jovens médicos, a se inscrever como voluntário na Royal
Army Medical Corps. Fanstone relata com humor britânico que ao final desse perío-
do a conclusão que ele tirava era que: “There followed four of the most valuable years
of my life, practically wasted, in an exciting picnic of humour and pathos called The
War.”(FANSTONE, 1972, p. 53). No final da guerra permaneceu na Alemanha até
1919 como integrante do Exército de Ocupação. Voltou para Londres onde se espe-
cializou em doenças tropicais visando o trabalho no Brasil. Em um relato afirmou:
“When I returned from war service abroad, I coveted M.D. in its sixth division, that
of Tropical Diseases, and thus found myself enrolling at the London School of Tropical
Medicine, a branch of the London University” (FANSTONE, 1972, p. 54). Fanstone
chegou a ocupar uma cadeira de professor assistente no London Hospital of Tropical
Medicine. Terminado o período de treinamento formal, Fanstone entendeu que es-
tava pronto para atuar como médico missionário no Brasil. Contudo, a UESA, que
enviava profissionais missionários a outras partes do mundo, não pensava da mesma
forma. Fanstone, ao contrário de ser enviado ao Brasil, foi então enviado para pas-
Histórias de Doenças 299

sar alguns meses na Glasgow Bible Training Institute para treinamento teológico. No
período de estudo em Glasgow, Fanstone conheceu Josiah Wilding, que era casado
com a médica missionária Dr. Rittie Buchan e pai do Dr. Joe Wilding, também mé-
dico missionário e que trabalhava com indígenas da Ilha do Bananal (FANSTONE,
1972, p. 58). Esse contato reforçou nele a intenção em escolher o Brasil como país
para o exercício da medicina.
Em julho de 1922, Fanstone casou-se com Ethel Marguerite Peatfield, e em
agosto do mesmo ano retornou ao Brasil, desembarcando no Rio de Janeiro. Logo
em seguida mudaram-se para São Paulo onde passaram dois anos aprendendo a
língua, viajando para obter a qualificação no Brasil nas áreas terapêuticas, farmaco-
logia e patologia na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte. Ao mesmo tempo,
fazia consultas sobre a sua possível mudança para o Centro-Oeste brasileiro como
o seu novo campo de atuação (FANSTONE, 1972). Em 1924, mudou-se definiti-
vamente para Anápolis, onde inaugurou o Hospital Evangélico Goiano em 1927,
fazendo todo serviço de engenharia, arquitetura e supervisão da obra. Em 1932,
ele participou da fundação do Colégio Couto Magalhães. James Fanstone fundou
em 1933 a Escola de Enfermagem Florence Nightingale, que foi reconhecida como
escola de nível superior em 1947 pelo governo federal, sendo a terceira nesse nível a
ser criada no Brasil. Participou da fundação da Associação Educativa Evangélica em
1947, que atualmente é a Mantenedora do Centro Universitário de Anápolis, cinco
Faculdades e três Colégios. A partir da estrutura médica construída em Anápolis,
James Fanstone funcionou como mediador na vinda de médicos e enfermeiras da
Inglaterra, Escócia, Estados Unidos e Canadá para trabalhar no Hospital Evangélico
e também atuarem como professores na escola de enfermagem. Também, favorecia
o intercambio entre médicos estrangeiros que tinham desejo de passar pequenos
períodos de estudo no Brasil. Pelo contato com o Dr. Fanstone, planos médicos fo-
ram elaborados e profissionais da saúde foram enviados a Ceres (CANG), Brasília,
Goiânia, Rio Verde, dentre outras, sendo que alguns destes contatos foram funda-
mentais para a expansão da rede médico-hospitalar na região central do Brasil.
Fanstone trabalhou na medicina até o final de sua vida, recebendo impor-
tantes homenagens, condecorações e honrarias, como a que recebeu em 1951,do
Rei George VI, da Inglaterra, conferiu-lhe condecoração pelos trabalhos prestados
como assistente médico na clínica de Lord Dawson, no início da carreira, e pela
livre docente da Cadeira de Medicina Tropical na London University, e também pelo
trabalho como Capitão-Médico no Exército britânico, na Royal Medical Corps, em
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
300 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Northampton, durante aI Guerra Mundial. James Fanstone faleceu em Anápolis


em agosto de 1987, recebendo, inclusive, na ocasião, uma referência no Diário da
Assembleia Nacional Constituinte no dia 21 de agosto de 1987 (BRASIL, 1987).

A prática médica, protestantismo e o poder simbólico na CANG

O Decreto Lei 3.059 de 1941 criava as Colônias Agrícolas Nacionais como


parte das políticas de colonização e migração do Estado Novo (1937-1945). Para
o país foram designadas oito áreas de colonização, sendo que a primeira delas foi a
CANG. O engenheiro Bernardo Sayão foi nomeado pelo Presidente Getúlio como
o administrador da CANG e teria como tarefa inicial a construção de uma rodovia
ligando a cidade de Anápolis às matas de São Patrício. Também seria responsável
para selecionar, distribuir e dar assistência aos colonos que se instalassem na colô-
nia. Os trabalhos de demarcação e a efetiva ocupação da área começou a partir de
1942 (SILVA, 2008).
Os relatos memorialistas dos pioneiros da Colônia descrevem os primeiros
anos de instalação da CANG como um período de muita dificuldade. Segundo esses
relatos as principais dificuldades estavam em conseguir mantimentos e assistência
para os serviços que não haviam sido instalados a contento no início. Os pioneiros
destacavam, ainda, como dificuldades, a precariedade das moradias, a travessia do
rio das Almas pela ponte de tambor improvisada por Sayão, o isolamento e a distân-
cia de outros centros urbanos, bem como as estradas nos períodos chuvosos, que,
por não serem pavimentadas deixavam os moradores ilhados e a produção agrícola
era impossibilitada de ser vendida. A Colônia encontrava-se numa região de floresta
tropical estacional, com área de densa mata, e que além da precária infraestrutura,
os primeiros colonos sofreram com as epidemias tropicais. Vários casos de malária
e febre amarela, ou “maleita”, que era o nome dado pelos colonos a essas epidemias,
foram registrados pelo hospital da Colônia. Além da malária, era comum na região
a doença de Chagas, que tinha sua difusão facilitada pelo tipo de moradia da época,
geralmente de “pau-a-pique”, cobertas de folhas de palmeira. Também, em 1942 o
Brasil entrava na Segunda Guerra Mundial e a Colônia, que estava em fase inicial
de seu povoamento, sofria com a falta de produtos básicos do cotidiano dos colo-
nos, como querosene, petróleo, açúcar e sal. Segundo o depoimento do médico Jair
Dinoah, as condições do serviço de saúde nos primeiros anos da colonização eram
extremamente precárias. O isolamento e a precariedade na instalação de infraestru-
turas refletiam na péssima condição assistencial em que os colonos se encontravam.
Histórias de Doenças 301

Os registros memorialista identificam casos de várias famílias que vinham e tinha


seus parentes dizimados pela maleita6 (SILVA, 2008).
O primeiro médico a trabalhar na CANG foi o cearense Dr. Jair Dinoah
de Araújo (1914-2007). Formado em medicina na Faculdade de Medicina de
Pernambuco em 1942, veio para Goiás para trabalhar no Hospital Evangélico de
Anápolis. Ele era presbiteriano, o que favoreceu a sua vinda para compor a equipe
de médicos do hospital dirigido pelo Dr. Fanstone. Sobre a sua vinda para Goiás,
Dr. Jair afirmava que a grande motivação em deixar a cidade de Recife para vir para
Goiás era o “espírito pioneiro” (DUTRA E SILVA, 2008). Segundo esse médico, o
espírito pioneiro é que fazia com que ele, e outros colegas seus, deixassem os grandes
centros urbanos do país para trabalhar com “maleita” no vasto sertão brasileiro. Ele
queria trabalhar com doenças tropicais e em Goiás existia uma grande carência de
médicos. Durante o seu trabalho em Anápolis ele ficou conhecendo o engenheiro
Bernardo Sayão, que nos primeiros anos de instalação no núcleo colonial da CANG,
hospedou-se na cidade e estabeleceu um grande vínculo de amizade com o Dr.
Fantone. Ele acompanhou o administrador da CANG em várias missões na região
das matas de São Patrício. Os casos de malária e febre amarela estavam assolando
a região desflorestada para a colonização. Um grande número de migrantes partia
em direção às matas e muitas famílias adoeciam. Era uma verdadeira epidemia e
que exigia um trabalho intenso do campo médico. Assim, entre 1942 a 1945, com a
indicação de Dr. Fanstone, ele trabalhou na coordenação dos serviços médicos da
CANG. Em 1945 ele mudou-se definitivamente para a colônia com a finalidade de
construir o Hospital da Cang, que recebia recursos do Ministério da Agricultura,
responsável pela estrutura de saúde em áreas de colonização federal.
O médico baiano Domingos Mendes da Silva (1915/2006) foi outro médi-
co pioneiro na CANG. O seu trabalho em CANG esteve relacionado ao combate
à malária, hanseníase, tuberculose e febre amarela. Em 1942, ano em se efetivava a
ocupação da CANG, iniciou os estudos na Faculdade de Medicina da Universidade
Federal Fluminense em Niterói, concluindo o curso em 1947. Em outubro de 1948
o jovem médico veio para o Estado de Goiás, para trabalhar no Hospital da Colônia,
ficando no cargo até 1951. De acordo com relatos memorialistas, o Dr. Domingos
tinha o desejo de trabalhar como missionário na Bahia. No entanto, a Junta de

6 Uma grande dificuldade encontrado na pesquisa das doenças tropicais na Cang é a falta de
documentação, tanto no que se refere à documentos oficiais da colonização, quando por pron-
tuários e outros registros médicos no Hospital da Cang, atualmente o Hospital São Pio X.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
302 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Missões Nacionais da Convenção Batista Brasileira exigia que ele fizesse um curso
teológico e tivesse dedicação exclusiva. Em contato com o Dr. Fanstone em Anápolis,
ele recomendou ao médico baiano, utilizando argumentos fundamentados na me-
dicina como vocação, servir como missionário por meio do exercício da medicina
(LEAL, 2008). Assim, com esse objetivo ele parte para a CANG, trabalhando como
um dos médicos no Hospital da Colônia, iniciando uma carreira médica na cidade
que durou até o final de sua vida. Tempos mais tarde, Dr. Domingos e D. Eudméa
foram reconhecidos como Missionários Honorários da Junta de Missões Nacionais
da Convenção Batista Brasileira, por seus serviços prestados na assistência a saúde
de pastores, missionários e suas famílias.
Em 1949 foi um dos membros fundadores da Igreja Batista de Ceres. Em
1951, após deixar os trabalhos como médico do Hospital da Cang, iniciou a cons-
trução de seu próprio hospital. Em 1953 passou a ser Membro da Associação
Médica Brasileira, sob o número 6130. Nesse mesmo ano fundou a Escola Goiana
de Auxiliares de Enfermagem, posteriormente, Escola Técnica de Enfermagem de
Ceres, tendo como Diretora a enfermeira Eudméa Hassel Mendes da Silva, sua es-
posa. Em 1954 o Dr. Domingos Mendes atuou no atendimento aos empregados da
construção da Rodovia Anápolis-Miracema, posteriormente denominada de Belém-
Brasília. Em 1955 ele foi eleito como o primeiro Prefeito de Ceres, agora município
emancipado da extinta Colônia Agrícola Nacional de Goiás. Foi ainda eleito como
Deputado Estadual por Goiás em 1962atuando na Comissão de Saúde Pública e
Assistência Social. Teve grande atuação política, sobretudo em pautas relacionadas à
saúde e à educação em Ceres e em Goiás. Foi professor, fundador e primeiro Diretor
do Colégio Estadual de Ceres; professor do Colégio Álvaro de Melo, da Faculdade
de Filosofia do Vale do São Patrício e Membro Dirigente da Associação Educativa
Evangélica desde a década de 1950.Faleceu em Ceres no dia 22 de novembro de 2006
(LEAL, 2008).
Outro médico pioneiro foi o Dr. Isaac Barreto Ribeiro (1924/2015) que tra-
balhou entre os anos de 1949 a 1956 na CANG, transferindo-se para Brasília, onde
foi um dos médicos pioneiros a trabalhar na nova capital brasileira. Dr. Isaac nas-
ceu no estado da Bahia em 1924. Na década de 1940 ele ingressou na Faculdade de
Medicina de Minas Gerais, Belo Horizonte. De acordo com Vieira (2007, p. 124) a
sua “vocação para a medicina e para o trabalho no interior, onde, […], não havia
muitos médicos, aflorou desde sua juventude. Dividindo as aulas com estudantes
em sua maioria de origem mineira, demonstrava inclinação para o campo médico-
Histórias de Doenças 303

-cirúrgico”. Assim que se formou em medicina no ano de 1948, não acompanhou


a maioria dos colegas de faculdade, que optava em seguir uma carreira médica na
capital. Veio então para a fronteira que se abria em Goiás, iniciando o seu trabalho
como médico em Rio Verde, no Hospital Evangélico, fundado na cidade por pres-
biterianos. De Rio Verde mudou-se para Anápolis, onde trabalho como cirurgião
no Hospital Evangélico Goiano, de propriedade de James Fanstone. Em 1949 ele
instalou-se na cidade de Ceres, permanecendo como médico naquela cidade até
1956.De acordo com Vieira (2007) ele instalou em Ceres um Centro Cirúrgico com
recursos próprios, contando com outros médicos que vieram para aquela área de
colonização. No entanto, em sua prática médica em Goiás ele não se restringiu em
trabalhar apenas com cirurgias, mas buscou trabalhar com diferentes problemas de
saúde: “Os casos mais atendidos eram os de doença de Chagas, febre tifoide e varí-
ola. Uma grande infestação de barbeiros na região o motivou a publicar um artigo
sobre o assunto no segundo número da Revista Goiana de Medicina, ainda em 1955”
(VIEIRA, 2007, p. 124). Em 31 de dezembro de 1956 o Dr. Isaac Barreto mudou-se
para Brasília, para atuar como um dos médicos pioneiros na nova capital federal,
ainda em construção. Conforme Tércio (1997), o espírito “desbravador” do médico
via em Brasília condições para ampliar o seu campo de atuação. Em um relato em
que narra a chegado do médico pioneiro ao grande campo de obras e com grande
número de imigrantes, afirma:

Enquanto caminhava com a família por entre as barracas, Isaac ficou magne-
tizado. Cerca de mil pessoas já circulavam pelo local. Era isso mesmo que ele
queria, não continuar em Ceres […] Via o quão necessário seria seu trabalho
durante a construção de Brasília, com gente de todo o país e de todas as con-
dições sociais, a maioria trabalhadores pobres, sujeitos às doenças endêmicas
do interior goiano – esquistossomose, malária, tracoma, bócio, leishmaniose,
doença de Chagas – e as doenças naturais do cotidiano hostil que viveriam
(TÉRCIO, 1997, 61).

O Dr. Isaac, como um dos médicos pioneiros em Brasília, teve que lidar com
diferentes patologias em sua prática médica. No entanto, um dos seus grandes lega-
dos foi o combate à doença de Chagas, com publicações em diferentes revistas de
medicina, desde o tempo em que trabalhava com médico na CANG. Também se
tornou em uma das referências nessa área no país, apesar de se considerar como um
médico sertanejo que vivia no coração do Brasil e isolamento dos grandes centros
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
304 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

de cultura (VIEIRA, 2007; KROPF, 2009). O Dr. Isaac faleceu no dia 07 de maio de
2015 em Brasília.
Os médicos citados acima, tiveram grande relevância no trabalho com do-
enças tropicais nas primeiras décadas da colonização na região das matas de São
Patrício em Goiás, com destaque para os três médicos citados. No entanto, a relação
destes com o espaço social extrapolou o campo da medicina e sendo importante
na constituição dos habitus e da formação do espaço social na CANG. A atuação
desses agentes de saúde na CANG estava ligada, ainda, à constituição do espaço so-
cial, controlado por uma rígida disciplina dos usos dos espaços públicos. Portanto,
estabeleceram, com apoio do administrador da CANG, as regras de convivência,
bem como as proibições de determinadas práticas no cotidiano da colônia (como a
proibição do meretrício, festividades, a venda de bebida alcóolica e outros códigos
de conduta) estavam relacionados com a concepção protestante dos espaços comu-
nitários7 (STOLL, 2011).
Segundo Bourdieu (1998), no mundo social existem “propriedades atuantes”,
que são as diferentes espécies de força (capital) que agem no espaço social e que
detêm o poder de legitimação simbólica do lugar. Essas propriedades manifestam-se
como relações de força entre os agentes detentores das diferentes espécies de capital
(econômico, cultural, social, político ou simbólico) e que são geradoras do consen-
so – o que reforça o papel desses agentes na representação e percepção do mundo
social. É uma visão objetiva da realidade, socialmente estruturada, em que a visão
estabelecida para o mundo social implicará a atuação dos agentes na ocupação do
espaço e decorrente da influência de lutas simbólicas. Assim, considerando essas
assertivas, a disciplina imposta na CANG não pode ser compreendida como uma
imposição dominante, contrária à “consciência de classe”, mas com o que Bourdieu
(1998) define como “inconsciência de classe”, que seria a conformidade com a posi-
ção ocupada no espaço social na legitimação da visão do mundo social. Para o autor,
o “sentido da posição”, é o sentido do que se pode ou se não pode permitir a si mes-
mo e aos outros, e “implica uma aceitação tácita da posição, um sentido dos limites
(‘isso não é pra nós’) ou, o que é a mesma coisa, um sentido das distâncias, a marcar
e a sustentar, a respeitar e a fazer respeitar” (BOURDIEU, 1998, p. 141). Porém, mes-

7 Stoll (2011) apresenta como esses elementos estiveram presentes nas colônias puritanas da
Nova Inglaterra. No entanto, sua ênfase é com a agenda conservacionista, sobretudo do grupo
congregacional e presbiteriano de Connecticut e sua influência nas origens do ambientalismo
americano. (ver também STOLL, 2015).
Histórias de Doenças 305

mo que essa normatividade não pareça ser uma imposição ideológica, na medida em
que os indivíduos assimilam e reproduzem esses valores em suas práticas cotidianas,
ela reflete um cenário de lutas, em que os sistemas simbólicos apresentam-se para
demarcar os elementos da distinção (consciência do que pertence e não pertence
àquela comunidade).
Indispensável, portanto, o conhecimento não só do mundo social, mas das
categorias de percepção desse mundo, em que o poder de conservação ou transfor-
mação se caracteriza como luta simbólica, regida por “propriedades atuantes” que
estabelecem as representações imaginárias do lugar. E na luta pela imposição da vi-
são legítima do mundo social, os agentes transitam e atuam à proporção do seu capi-
tal. Assim, se as normas que compunham o decreto federal (que exigiam o trabalho
dos colonos nos lotes de assentamento agrário e o cumprimento de boa convivência
com os demais, sob pena de serem expulsos na área de colonização) não eram explí-
citas em relação às condutas sociais, a não ser no sentido da “perturbação” da ordem
pública, de onde se originaram essas proibições? É claro que elas se originam dos
agentes administradores, mas não é essa a questão. Ou seja, os pioneiros afirmavam
que essas normas eram impostas por Bernardo Sayão, administrador da Colônia
(“Bernardo Sayão não permitiu”, ou “Foi o Sayão quem estipulou”). Mas sabemos
que existiam prerrogativas legais para a exclusão (Decreto Lei 3.059/1941), e que
em parte o conteúdo era muito subjetivo, o que permitia a interpretação por parte
dos agentes locais. Portanto, a questão era saber de onde partiram essas orientações,
ou quais eram as representações imaginárias que se impuseram para a construção
simbólica do lugar. Ou ainda, quais eram as orientações morais defender uma so-
cialmente ordeira e sadia, do ponto de vista da saúde pública? Ao mesmo tempo,
de onde vinham às orientações para o combate às casas de jogos, à malandragem, a
bebida e a prostituição? De onde se originaram essas regras? Quais as representações
simbólicas e imaginárias que objetivavam estabelecer para o lugar? Ou, qual o papel
dos médicos protestantes na construção simbólica do espaço social da CANG?
Destacamos duas referências que podem explicar a constituição do padrão
de valores instituído na Colônia, sendo a primeira resultante da atuação do cam-
po religioso e a segunda originada nos conteúdos ideológicos do Estado Nacional.
Essas referências ajudam a esclarecer os traços da distinção desejada, e também in-
dicar como essas coerções determinaram práticas e estilo de vida na comunidade
da Colônia. A moral religiosa, e sua circulação como capital simbólico na Colônia,
aparece evidenciada nos relatos memorialistas, e também nos estudos realizados
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
306 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

por Pessoa (1999), que fez um trabalho antropológico sobre o campo religioso na
CANG. Porém, diferente dos estudos de Pessoa (1999), que se concentraram na
análise do campo religioso, entendemos que não foi apenas a atuação isolada do
campo religioso que estabeleceu esse conteúdo moral de sociabilidade, mas esse
campo ajudou a reforçar uma conduta moral que repercutiu nas práticas sociais do
lugar. Primeiro, porque já existiam previamente, determinações normativas acerca
da conduta dos colonos, e segundo, porque o campo religioso contribui em qualifi-
car essas condutas e não em estabelecê-las. Também, porque outras orientações de
ordem ideológicas ajudaram a qualificar os padrões de sociabilidade aceitáveis, são
sendo estes impostos exclusivamente pelo campo religioso. Portanto, esses padrões
morais de conduta social não foram resultantes da imposição religiosa dominante,
mas surgiram motivados e orientados por fatores culturais que historicamente se
encontraram na colônia goiana.
Nas narrativas orais (DUTRA E SILVA, 2008) os pioneiros reforçavam as
normas de conduta, afirmando que, além de serem impostas por Bernardo Sayão
(agente do Estado Novo), tiveram a influência dos grupos religiosos. No depoimento
do Sr. Philemon, um agrimensor que acompanhou Sayão no desenho da planta ur-
bana de Ceres, ele ressaltou que o colono instalado na CANG teria que se enquadrar
nas exigências locais (“trabalhar e produzir”). Ele afirmou que as normas cotidianas
eram rigorosas com a conduta dos colonos e que a “parte religiosa sempre apoiava
a ideia do Dr. Sayão” (Silva, 2008). A “parte religiosa” da Colônia foi evidenciada
também em outros depoimentos, indicando, por exemplo, sua influência no estabe-
lecimento das normas de convivência e no controle social exercido sobre as práticas
contrárias à moral do trabalho, dentre outras.
Para o médico pioneiro, Dr. Jair Dinoah, a Colônia permitiu a circulação de
variadas ramificações religiosas, que tiveram trânsito entre a sociedade local, sem,
contudo, apresentar o monopólio de uma determinada denominação:

Aqui se formou uma cidade cosmopolita. Veio gente de todo lugar. Gente
protestante, gente espírita, gente de todas as religiões. Então, aqui era uma re-
gião que ninguém podia comandar. Uns eram crentes, outros católicos, aquele
era espírita, e finalmente essa “miscelânia” de religiões evitou que houvesse o
feudalismo de uma religião.

O campo religioso na Colônia caracterizava-se pela concorrência entre os


credos e não pela hegemonia de uma única crença. Essa característica era apontada
Histórias de Doenças 307

pelos pioneiros como o fator positivo da colonização, em que a cidade se formou com
grande influência dos setores religiosos que ajudavam a definir as relações sociais na
CANG. Apesar das diferenças identificadas na composição do campo religioso na
Colônia, esses grupos tiveram como ponto comum a identificação dos elementos
que iriam constituir as regras de conduta naquela sociedade em formação, em que a
moral do trabalho e a convivência fundamentada nos “bons costumes” foram uma
das principais bandeiras levantadas pelos grupos religiosos estabelecidos. Outra ca-
racterística era que não existia uma neutralidade em relação aos demais campos
sociais atuantes na Colônia, e o campo religioso tinha uma grande penetração, prin-
cipalmente por parte do grupo católico e protestante. De acordo com o relato do Sr.
Jonatas Carvalho, um comerciante pioneiro da CANG:

A vida religiosa aqui sempre predominou. Sabe, foi muito importante. Tanto
a católica quanto os protestantes. Isso aqui era cidade religiosa. Então?! Aqui
é uma cidade religiosa, uma cidade, assim, que não é tão tumultuada, tão ba-
dernada como é muita cidade aí, que a gente não tem liberdade quase, e é um
perigo danado. Isso aqui não tem muita pinga, não tem muita cachaça. Então,
foi uma cidade criada dentro dos termos religiosos aqui.

Para o pioneiro, a Colônia desenvolveu-se sob a forte influência religiosa, e


os elementos que utilizou para justificar a contribuição da vida religiosa no lugar ba-
seavam-se na ordem social que vigorava. A participação efetiva do campo religioso,
aparece nesse relato, fortemente inserida no estabelecimento e na manutenção dos
padrões morais e nas normas de conduta na Colônia. Segundo sua argumentação, a
predominância da participação religiosa favoreceu para que a Colônia não fosse “tão
tumultuada, tão badernada como é muita cidade aí”, justificando o imaginário da
distinção, comum em outros relatos memorialistas. Outra questão interessante é o
uso do tempo verbal para descrever as proibições ao consumo de bebidas no tempo
da Colônia (“aqui não tem muita pinga, não tem muita cachaça”). A princípio fica
parecendo que o uso correto do verbo deveria estar no pretérito (não tinha), mas
o sentido simbólico dessa narrativa consiste na vontade de distinção que se impõe,
ou das coerções sociais que ainda vigiavam as condutas dos moradores. Ou seja, se
naquele tempo a vigilância dos grupos religiosos sobre a conduta moral dos colonos
era fato, sua representação imaginária permanecia. Mesmo consciente de que nos
dias atuais não existem essas proibições e esse controle, procurava reforçar esses
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
308 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

traços como se existissem, ou mesmo para reforçar um passado que fazia questão de
afirmar (DUTRA E SILVA, 2008).
A atividade religiosa na Colônia estava vinculada a grupos missionários,
nacionais e estrangeiros, sendo que algumas missões já circulavam na região antes
mesmo da colonização federal e outras acompanharam a imigração no início da
década de 1940. Dentre as formações religiosas pioneiras destacaram-se os católi-
cos, presbiterianos, congregacionais (cristãos evangélicos) e os batistas. Os católicos
tiveram uma forte atuação desde a origem da colônia, pois Bernardo Sayão, além de
professar a fé católica, recorria muitas vezes a párocos de Anápolis e Jaraguá para
que assistissem aos fiéis na CANG. A presença franciscana na Colônia data de 1948,
ano em que a paróquia foi entregue aos frades vindos de Nova York, a pedido de
Dom Manuel, arcebispo de Goiânia (PESSOA, 1999).
O grupo protestante era composto por presbiterianos, congregacionais (ou
cristãos evangélicos, como eram denominados) e batistas. Na Colônia o trabalho
presbiteriano teve início em 1942 na zona rural, e em 1950 os missionários James R.
Woodson, Theodore Richard Taylor, David Lee Williamson e Waldemar Rose cria-
ram a primeira congregação presbiteriana na sede urbana, transformada em Igreja
em 1952. Os presbiterianos se destacaram na área médica, com apoio do médico in-
glês Dr. James Fanstone, fundador do Hospital Evangélico de Anápolis e que presta-
va serviços na Colônia desde a vinda de Bernardo Sayão. O médico pioneiro, Dr. Jair
Dinoah, pernambucano recém-formado, também era presbiteriano, e foi indicado
pelo Dr. Fanstone para auxiliar nos trabalhos de fundação do hospital da Colônia.
A Igreja Batista instalou-se na Colônia por intermédio de colonos mineiros
vindos da cidade de Araguari em 1942. Um representante de destaque da congre-
gação batista foi o médico baiano Dr. Domingos Mendes da Silva, que teve gran-
de influência na vida social e política da Colônia, fundando na cidade um hospital
e uma escola de enfermagem na década de 1950. Apesar de ter sido fundada por
brasileiros, os batistas tiveram a assistência de missionários norte-americanos, que
na década de 1950 ajudaram a construir uma escola agrícola em Ceres, conhecida
como “Escola Batista”, administrada por Horace Wilson Fite e Salle Ann Fite, que
vieram do Texas para a CANG.
Os congregacionais (Igreja Cristã Evangélica)iniciaram o trabalho na região
por meio dos missionários pioneiros Bannyster Forsyth e Arthur Wesley Archibald
(este, assim como Fanstone, estava vinculado a UESA) que em 1946 promoveram
o trabalho missionário na sede da Colônia, instalando uma congregação na região.
Histórias de Doenças 309

O médico Álvaro de Melo iniciou na Colônia o primeiro ponto de pregação dessa


denominação, que teve destaque na área educacional, fundando na sede da Colônia
uma escola primária e um internato colegial, que levam seu nome, Colégio Álvaro
de Melo.
Considerando a atuação de protestantes e católicos, percebemos que o rigor
imposto às condutas cotidianas se assemelhava às concepções da moral do trabalho
(WEBER, 1981; HOLANDA, 1995), consideradas como traços do protestantismo,
mas que na região foram adotadas também pelos franciscanos que tiveram forte
influência no lugar. No catolicismo franciscano, instalado na Colônia por padres
norte-americanos, a simbologia e a festividade ibérica eram suplantadas por outros
valores como educação e trabalho. Existia uma intensa luta por parte dos francis-
canos para impor essa ortodoxia católica aos camponeses que fugiam do controle
clerical. Esse fato se exemplifica no combate às festividades populares:

[…] quase sempre, aparecia a religião dos padres querendo extinguir ou, pelo
menos, disciplinar as práticas religiosas dos colonos. Haja vista a persegui-
ção sofrida pela folia de reis, ordenada pelo bispo Dom Cândido Penso a to-
dos os padres da prelazia, na carta pastoral para o ano de 1952, denominada
“Faculdades Ordinárias e Extraordinárias”. Um franciscano que trabalhou
em Ceres de 1950 a 1956 confirma que seguiram “a risca” essa determinação,
dizendo: “os padres faziam pregação contra para não benzer as bandeiras e
quase excomungar. A parte moral era ruim, tinha bebedeira. Os freis foram
rigorosos nisso”. No mesmo depoimento, o já idoso frade diz que a folia de
reis era proibida não só pela Igreja, mas também pela lei civil, porque, além da
bebida, a folia tinha o inconveniente de o folião abandonar o serviço durante
todo o tempo do giro. (PESSOA, 1999, p. 61)

O texto destaca que a “folia” era combatida por desviar os colonos das con-
dutas morais aceitáveis (“A parte moral era ruim, tinha bebedeira”), que além dos
excessos, permitiria ao camponês abandonar suas atividades no serviço, o que evi-
dencia que o trabalho não era apenas uma atividade, mas uma conduta moral, mais
importante do que as festividades e os rituais religiosos. Também o protestantismo
presente na Colônia valorizava um modelo de conduta social semelhante, com a
influência missionária inglesa e norte-americana sobre as normas e as condutas so-
ciais. A escola e a igreja estavam presentes na comunidade, evidenciando uma nova
simbologia da religiosidade, que valorizava a educação, não apenas no estabeleci-
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
310 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

mento das crenças, mas também como um meio de impor valores e concepções,
interferindo nas práticas cotidianas daquela sociedade.8
Os médicos pioneiros na Colônia eram de origem protestante. O presbite-
riano Jair Dinoah de Araújo; os batistas, Domingos Mendes da Silva e Isaac Barreto
Ribeiro; e o congregacional (Igreja Cristã Evangélica) Álvaro de Melo. Para Pessoa
(1999) essa peculiaridade explicava as medidas adotadas pelo administrador no sen-
tido de impor um rigor social na Colônia por meio das proibições e em nome da
“boa conduta”, o que evidenciava a grande influência do campo religioso no campo
político. Para o autor, a “expansão religiosa por meio do atendimento médico, por
presbiterianos e cristãos evangélicos, exerceu influência significativa, do ponto de
vista moral, na organização social emergente” (PESSOA, 1999, p. 57). Na visão do
autor, o controle social imposto na Colônia foi uma concessão feita pelo adminis-
trador a solicitações dos médicos protestantes. No nosso entendimento não ocorreu
uma concessão por parte do administrador, como que se ausentasse dessas prerro-
gativas, mas um conjunto de elementos e orientações simbólicas e ideológicas aglu-
tinou-se para garantir o estabelecimento dos padrões de conduta para o lugar. No
entanto, o campo médico, associado ao campo religioso, regidos por uma “ética pro-
testante” (WEBER, 1999), buscava construir o espaço social a partir dos elementos
simbólicos que compunham os valores essenciais de moral, cultura e comportamen-
to desses segmentos sociais, regidos pelo moral do trabalho. No início do século XX
o saber médico era identificado como o saber legítimo na compreensão da realidade

8 Os principais colégios confessionais instalados na Colônia foram o Colégio Álvaro de


Melo, mantido pelos evangélicos e funcionava na época no regime de internato, e o Ginásio
Imaculada Conceição, mantido pela ordem franciscana. Entre 1955 e 1956 foi construída uma
escola americana em Ceres para atender aos filhos de missionários norte-americanos que re-
alizam seus trabalhos na região Centro-Norte do país, denominada de “Escola Bandeirante”,
que também funcionava no regime de internato, dedicando-se ao ensino ginasial, pois a
educação primária era responsabilidade dos pais missionários. Essa escola era mantida pela
missão norte-americana da Igreja Presbiteriana do Sul, que enviava professores dos Estados
Unidos para ministrar a educação aos filhos dos missionários. Professores brasileiros também
eram convidados a lecionar para os norte-americanos e filhos de brasileiros também podiam
ser matriculados. Em 1982 a escola foi fechada e grande parte da sua biblioteca transferida
para a Escola Americana de Brasília. Em 1983, num concílio realizado nos Estados Unidos foi
decretada a desvinculação da Igreja Presbiteriana do Brasil e a Igreja Presbiteriana americana.
Os missionários foram dispensados e o patrimônio deixado pelos americanos foi transferido
para a Igreja brasileira (DUTRA E SILVA, 2002).
Histórias de Doenças 311

social. Esse fato foi evidenciado em Goiás, principalmente a partir de 1930, quan-
do no processo de intervenção estadual nos municípios as autoridades municipais
passaram a ser subordinadas às autoridades sanitárias instituídas pelo Interventor
Pedro Ludovico (foi exigido dos municípios destinarem 10% das arrecadações aos
serviços de saúde pública conforme decreto estadual nº 1180/1931). Essa reflexão
apresenta a importância que o saber médico adquire no campo político no período
da Intervenção de Pedro Ludovico durante a Era Vargas.

Considerações finais

O saber médico na CANG se constituía não apenas em conhecimento cientí-


fico a respeito da saúde e condições sanitárias, mas também em instância de poder:
“A intervenção médica se faz através do Regulamento. Ele, em sua natureza é polí-
tico. Enquanto elementos de intervenção na sociedade, penetrando no mais recôn-
dito da vida do homem, seja urbano ou rural, esquadrinha e interfere em todos os
espaços sociais, tendo por base o saber médico-sanitário” (CAMPOS, 1996, p. 181).
A legitimidade do saber médico, no entanto, não se baseava no seu discurso polí-
tico, mas, sobretudo no seu conhecimento científico, sendo esse conhecimento que
garantia e justificava a certeza de ser obedecido. Mesmo não estando subordinada
ao governo estadual, pode-se perceber a grande influência dos médicos no estabe-
lecimento das normatividades da Colônia e o seu trânsito nas instâncias de poder.
Assim, os valores, comportamentos e o cotidiano do lugar foram definidos
a partir da autoridade constituída por esses campos, que mesmo se configurando
numa minoria, estavam ligados às instâncias de poder e autoridade, que por sua vez
tinha concepções ideológicas semelhantes, principalmente, no que se referia à valo-
rização do trabalho e o papel do trabalhador no Estado Nacional (GOMES, 1982).
No estabelecimento da colônia acontece à implementação da medicina pio-
neira a partir das orientações da medicina como vocação, pautada na ética protes-
tante. O entendimento destes não só da medicina, mas de todo trabalho como vo-
cação influencia positivamente a comunidade estabelecida na região, mas também o
ethos social a partir da cosmovisão destes pioneiros. As implicações politicas, sócias,
econômicas e morais podem ser percebidas na região ainda hoje, conforme alguns
estudos têm apresentado.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
312 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

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Os depoimentos e o cotidiano da Colônia de
Itanhenga no Espírito Santo: apontamentos
iniciais
Sebastião Pimentel Franco1
Simone Santos de Almeida Silva2

A Lepra é mais frequente do que parece, só não sendo encontrada quando não procurada
Pedro Fontes, médico, diretor da Colônia de Itanhenga/ES

Introdução

O trabalho é parte de uma pesquisa que busca recuperar a história do Hospital


Pedro Fontes, conhecido como Colônia de Itanhenga, situado em Cariacica,
no estado do Espírito Santo.3
A pesquisa busca identificar o acervo recuperando a documentação do antigo
leprosário, fundado em 1937, composta por documentos administrativos, prontuá-
rios, dados estáticos. No trabalho recolhemos também os depoimentos de pacientes
do hospital que residem atualmente na Colônia de Itanhenga.4 Assim buscamos res-

1 Professor Titular Programa de Pós-graduação em História na Universidade Federal do


Espírito Santo (UFES).
2 Pós-doutoranda no Programa de Pós-graduação em História na Universidade Federal do
Espírito Santo (UFES), como bolsista FAPES /CAPES – Projeto de Fixação de Doutores.
3 A Colônia de Itanhenga posteriormente foi denominada Sanatório Pedro Fontes, ou Hospital
Pedro Fontes. Também é conhecida como leprosário de Itanhenga. Aqui utilizaremos de forma
indistinta as referências à Colônia. Optamos pelo uso dos termos, lepra e leprosário, ao longo do
texto, por considera-lo mais adequado diante do período analisado.
4 A pesquisa “Inventário e organização da Colônia de leprosos Itanhenga no Espírito Santo” e
formada pelo Prof. Dr. Sebastiao Pimentel (coordenador), Prof. Dr. André Nogueira, Prof. Dr.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
316 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

gatar parte do acervo presente nos arquivos da Colônia, referente aos familiares dos
internos, médicos, diretores e demais funcionários do hospital de leprosos no ES. O
objetivo é reunir o material coletado, para a criação de um banco de dados de fontes
primárias de diversas naturezas, para tornar disponível a pesquisa on line sobre a
doença no ES em especial sobre a história da lepra.
Ao recolher os depoimentos busca-se também recuperar a memória e a histó-
ria da Colônia de Itanhenga, através dos moradores do leprosário, que ainda residem
no local, realizando entrevistas com internos e ex-internos, funcionários, e médicos.
A proposta é recompor as narrativas das pessoas acometidas, direta ou indiretamen-
te pela lepra, permitindo, trazer à tona pluralidades de vozes que circundam o le-
prosário reconstruindo memórias, produzindo sentido a elas, na medida em que são
narradas e reelaboradas.5 Logo buscamos a recuperação da história da instituição,
das práticas de isolamento, e das políticas de combate a lepra pela interlocução entre
funcionários e administradores do hoje, Hospital Pedro Fontes, dos pacientes e seus
familiares, ressaltando que a relação entre esses agentes são marcadas por momentos
de consonâncias e dissonâncias.
Portanto acreditamos que os depoimentos colhidos na Colônia entrecruza-
dos com os documentos administrativos e prontuários, pontuam, além da dinâmica
de funcionamento do hospital, as práticas cotidianas de internos e funcionários, re-
cuperam a memória e a história da Colônia de Itanhenga.
A aproximação do acervo e das experiências vividas no leprosário, nos mos-
tra inúmeras questões que vão além da doença, restrita ao viés biológico. Permite
recuperar o cenário sócio histórico que envolve a doença, trazendo à tona histórias

Sergio Marlow, Prof. Dra. Simone S. de Almeida Silva, e a doutoranda Tânia Araújo. A pesqui-
sa é realizada junto ao Laboratório de História Poder e Linguagens, no PPGHIS/UFES, e visa a
composição de um banco de dados permitindo a pesquisa em ambiente virtual. Agradecemos
o apoio da atual administração da Colônia de Itanhenga pela acolhida e suporte ao nossa
equipe e também aos “nossos” depoentes que carinhosamente nos receberam aceitando o
desafio de rememorar trajetórias e experiências, impregnadas de sentimentos, sensibilidades,
alegria e dor.
5 Keila Carvalho analisando a questão da memória e sua relação com o as informações passado
e presente, nos brinda como uma análise de Thompson, que traduz com maestria nossa per-
cepção sobre a importância do resgate da memoria. Para Thompson: “as histórias que relem-
bramos não são representações exatas do nosso passado, mas trazem aspectos desse passado
e os moldam para que se ajustem às nossas identidades e aspirações atuais.” (THOMPSON,
Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 57).
Histórias de Doenças 317

marcadas por perdas, exclusão, e separações entre os familiares. Ao recolher estas


histórias encontramos narrativas de rupturas com projetos de vida e de trabalho,
histórias de sofrimento daqueles obrigados a se internar repentinamente, em função
da politica de internação compulsória, que em muitos casos ‘arrancavam’ as pessoas
do convívio social.
A visão do leprosário como um espaço fechado, com documentação esque-
cida em meio a poeira e o silêncio dos que ainda permanecem internos, logo se
desfaz, diante de uma aproximação dos arquivos e depoimentos. Um novo cenário
se compõe diante dos entrevistados, quando, nossos depoentes nos apresentam uma
visão múltipla daquela localidade.
Ao longo das entrevistas recolhemos situações de ressignificação, onde os in-
ternos, diante da lepra, e da experiência do recolhimento compulsório, precisaram
recriar seu cotidiano. Os depoimentos colhidos mostram que as pessoas foram aos
poucos “se adaptando” ás condições que dispunham, reconstruindo suas histórias
em cima da marca da segregação social, do internamento compulsório, de precon-
ceito e dor.
Nas margens, retomando a historiadora Natalie Zemon Davis (1995, p. 196),
os internos da Colônia de Itanhenga, no Espírito Santo, reconstruíram suas vidas,
numa situação limítrofe, desenvolveram uma forma de vida surpreendentemente re-
novadora, e não raro, dentro das possibilidades, fizeram do leprosário um ambiente
para se viver.6
Neste sentido, gostaríamos de destacar que nosso objetivo, é encontrar, não a
lepra, conforme procurava o doutor Pedro Fontes. Buscamos encontrar os persona-
gens que compõem o mosaico da história da saúde pública referente a lepra. Nosso
objetivo é procurar através dos registros documentais e de suas vozes, a história da
Colônia de Itanhenga, recuperando suas vivências, trazendo a tona suas experiências,
sensibilizando o olhar para uma questão ainda presente na história da saúde pública.
É certo que ao tratar de fontes orais, não se pode perder de vista a singulari-
dade do trato com o objeto de pesquisa. Recolher histórias de vida sensibilidades e
subjetividades é uma experiência extremamente rica, mas ao mesmo tempo, delica-
da. Tal tarefa exige suporte teórico que de conta de manter o historiador equilibrado

6 Natalie Zemon Davis na obra, Nas Margens, estuda o caso de três mulheres resgatando seus
papéis enquanto sujeitos históricos, que se situavam nas margens da sociedade europeia, sen-
do as margens, compreendida como “uma região limítrofe, entre depósitos culturais que per-
mitiam novos cultivos e híbridos surpreendentes” (1995, p. 196).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
318 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

diante de uma fonte que se “cria” sendo assim, é preciso que a “crítica das fontes se
torne imperiosa”, usando as palavras de Pollack (1992, p. 208)

O doutor Pedro Fontes: “quem procura, acha!”

As políticas de combate a lepra no Brasil e no Espírito Santo, se enquadravam


nos princípios de uma medicina social, que desde o século XVIII preocupava-se
com a organização sanitária, com o isolamento dos doentes. No caso da lepra, a
preocupação era “detectar o leproso, para em seguida excluí-lo do convívio com os
sãos, inserindo o doente, no lugar correto, junto aos demais leprosos”. (FOUCAULT,
1979, p. 6).
No Espírito Santo, ao longo do século XIX, a lepra não ocupou lugar central,
“a lepra foi ignorada”, por longo período, conforme o médico Souza-Araujo (1937,
p. 553). 7
Em 1922 foi criado o Serviço de Profilaxia Rural, no Espírito Santo, tendo
como parte integrante a Inspetoria de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas.8 Em
1926 chega ao fim o Serviço de Profilaxia Rural, mas permanece a Inspetoria, sendo
esta, ligada a partir de então, à Diretoria de Higiene do Estado do Espírito Santo.
Para chefiar essa Diretoria foi convidado, o doutor Pedro Fontes, transferido do
Distrito Federal. 9

7 O médico Heraclides César de Souza-Araujo foi chefe do Instituto Oswaldo Cruz. Entre
outras funções, Souza-Araujo foi também professor de leprologia na Universidade do Rio
de Janeiro, chefe do Centro Internacional de Leprologia; editor das Memórias do Instituto
Oswaldo Cruz; membro da Academia Nacional de Medicina. Realizou exaustivo inventário
dos estudos sobre lepra, História da Lepra no Brasil, transcrevendo para sua obra, as fontes
pesquisadas. SOUSA-ARAUJO, Heraclides Cesar de. A lepra no Espírito Santo e a sua pro-
phylaxia: a “Colônia de Itanhenga” Leprosário modelo. Memorias do Instituo Oswaldo Cruz, v.
32, n. 4, p. 551-605, 1937.
8 Adiante retornaremos ao tema do funcionamento da Inspetoria de Profilaxia da Lepra.
9 Na pesquisa sobre o médico Pedro Fontes, verificamos que ele se formou na Faculdade de
Medicina da Bahia em 1903, defendendo a tese “Estudo sucinto de uma das modalidades clí-
nicas da demência precoce: a variedade paranoide”. O médico foi para Vitória, em 1927, após
transferência do Serviço de Saneamento Rural do Distrito Federal, assumindo a Inspetoria
de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas no Espírito Santo. No ano seguinte deu início as
ações para a construção de um leprosário na região, que resultaram na fundação da Colônia
de Itanhenga, em 1937.
Histórias de Doenças 319

O doutor Pedro Fontes dirigiu a Inspetoria de Profilaxia da Lepra e de Doenças


Venéreas e colaborou com as mudanças à situação geral da lepra no Espírito Santo.
Conforme ele declarou em relatório apresentado em 1928 bastou percorrer algu-
mas regiões do estado do Espírito Santo, e realizar um inquérito, para verificar que
o número de leprosos no estado estava aquém da realidade. (Pedro Fontes, apud,
SOUZA-ARAUJO, 1937, p. 556-57).
Segundo Souza-Araujo (1937, p. 552-53):

Pedro Fontes, então, começou a procurar leprosos no Espírito Santo e elles


foram encontrados em numero sempre maior de anno para anno (…). Pedro
Fontes creou, portanto, para o Espírito Santo, o problema da lepra: mas creou-
-o para ter o prazer de domina-lo, de extingui-lo, dando aos nossos pósteros
um exemplo de patriotismo e de sabedoria.10

A afirmação de Souza-Araujo de que Pedro Fontes “criou o problema da le-


pra” no Espírito Santo, refere-se as ações do médico, que chefiando a Inspetoria de
Profilaxia da Lepra, empreendeu diversas levantamentos contabilizando o número
de leprosos no estado. Segundo as palavras de Souza-Araujo, havia uma “ilusão fa-
gueira” que levava as autoridades sanitárias a acreditar que não eram numerosos os
casos de doentes de lepra do Espírito Santo (SOUZA-ARAUJO,1937 p.552).
Pedro Fontes liderou um levantamento estatístico dos pacientes de lepra e
de possíveis casos previstos na capital do estado e municípios vizinhos. Ao longo de
uma década, os relatórios elaborados pelo médico indicavam um número de doen-
tes três vezes maior do que os dados antes apresentados. Conforme relato do médico
Souza-Araujo, (1937, p. 552), o doutor Pedro Fontes, contabilizava nos relatórios
sobre o estado do Espírito Santo apenas 22 leprosos, em 1927, mas em 1937, era
possível contabilizar 719 leprosos.
O médico Pedro Fontes, demonstrando preocupação com o controle da dis-
seminação da doença, tratou de defender a construção de um leprosário no Espírito
Santo, afinal os números “encontrados” legitimavam a necessidade, e urgência do
projeto. Em 1928, num ofício ao presidente do Estado, Aristeu Aguiar, o médico
informava que: “É premente a construcção de um leprosário antes que o número de le-

10 Optamos por manter a grafia, conforme as normas da língua portuguesa da época, em todas
as citações retiradas das obras publicadas na década de 1930 e 1940. Seguiremos este padrão
em todo o texto.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
320 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

prosos avulte e o problema fique mais difícil” (FONTES, 1928 apud SOUZA-ARAUJO,
1937, p. 570).
No cenário nacional, a partir da segunda metade do século XIX segundo
Dilma Cabral (2013, p.13) é que se perceberam, no Brasil, as ações em prol da com-
preensão da lepra e da inclusão da doença na pauta das políticas sanitárias. No en-
tanto a identificação da lepra como parte dos elementos que conformavam o flagelo
da nação se configurou aos poucos nas primeiras décadas do século XX, sendo in-
cluída timidamente nas ações do movimento sanitarista.11
O movimento sanitarista por volta da década de 1920 empenhou-se no com-
bate as endemias rurais, investindo na cura dos doentes do sertão e na sua integração
à nação. Sendo assim, foram empreendidas campanhas de saneamento no interior
do Brasil, promovendo a criação de inúmeras agências voltadas para aplicação das
políticas de saúde pública e de saneamento. (HOCHMAN, 1998, p.60-1).
Desde o ano de 1918 a lepra estava na pauta do relatório da Diretora Geral
de Saúde Pública (DGSP), focado na estruturação de um programa de prevenção do
contágio e de medidas de isolamento.
Porém foi a partir do Departamento Nacional de Saúde Pública (denomi-
nado pela sigla DNSP) que se construiu uma rede de informações por meio das
Inspetorias de Saúde. Este departamento era responsável pelo gerenciamento dos
serviços de saúde nos estados, e tinha entre as finalidades, identificar quantitativo
de doentes mapeando a geografia das doenças. Assim coube ao DNSP, a responsa-
bilidade do cuidado com a lepra no Brasil. A partir dele foi criada a Inspetoria de
Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas, responsável pelas ações e campanhas
de combate a doença no Brasil. A luta contra a lepra tornou-se mais evidente a par-
tir deste contexto, que possibilitou a formulação de um regulamento sanitário que
incidiu fortemente sobre a profilaxia da lepra no Brasil (CABRAL, 2013, p.17-18).
Ao longo das décadas de 20 e 30 a preocupação era cada vez maior com o
trânsito dos doentes de lepra entre os estados e a concentração dos doentes na ca-
pital federal. A migração de doentes e a entrada numerosa de leprosos no Rio de
Janeiro foram importantes temas nos debates dos órgãos de saúde pública neste pe-
ríodo. Segundo Hochman, (1998, p. 153) discutia-se muito sobre a possibilidade de
criação de um grande leprosário nacional, para centralizar os doentes de lepra num

11 Sobre as políticas sanitárias no Brasil, consultar: HOCHMAN, G. A Era do Saneamento. São


Paulo: HUCITEC, 1998.
Histórias de Doenças 321

só local, e sobre a possível criação de diferentes hospitais de isolamento pelo país.


Conforme veremos as decisões tomadas se afinam mais com a ideia de pulverização
dos leprosários pelo país poupando o Distrito Federal de se tornar “uma hospeda-
ria de lázaros do Brasil”, conforme as palavras do médico Theóphilo Torres, diretor
Geral de Saúde Pública. (Theóphilo Torres, apud, HOCHMAN, 1998, p.153).12
A partir dos anos 30 com o governo Vargas, conforme destaca Carvalho, a
política de profilaxia da lepra passou a ser realizada de maneira uniforme no Brasil,
facilitando a expansão das medidas em todo o território. E 1933 foi realizado no
Distrito Federal a Primeira Conferência Nacional de Lepra conhecida como confe-
rência para a uniformização da campanha contra a lepra, que entre outras medidas
sugeria o isolamento como medida importante no combate a doença. Tinha início as
primeiras ações rumo a política de isolamento compulsório no país.13
Em 1935, foi elaborado um plano de combate à doença, encabeçado pelo
ministro Gustavo Capanema, como parte de um projeto renovador das estratégias
da União para o controle da lepra no país. As ações de combate a lepra a partir desse
momento, passaram a enfatizar a necessidade das práticas de isolamento. (CUNHA,
2005, p.87-8).
O novo plano de ação do governo apoiava-se na construção de leprosários
em regiões diferentes, para abrigar os doentes. A Inspetoria de Profilaxia da Lepra
e das Doenças Venéreas atuava na legitimação de um discurso que defendia o iso-
lamento do leproso, “a política adotada para o controle da doença seria estruturada
por um novo paradigma profilático”, e com o isolamento “a segregação dos leprosos
foi institucionalizada”. (CABRAL, 2013, p. 18).
No caso do estado do Espírito Santo, é possível constatar que Pedro Fontes
acompanha essa tendência nacional de combate a lepra fortemente pautada pela
ideia de que isolar o leproso, era o método mais eficaz de controle da doença.
(CARVALHO, 2012, p. 114). No relatório de 1934, a partir do recenseamento reali-
zado, ele demonstra que o número de leprosos no Espírito Santo era maior do que
se pensava.

12 Theóphilo Torres considerava grave a ida de leprosos para o Rio de Janeiro, sobrecarregando
o leprosário. Ele publicou um relatório denominado “A saúde pública no Brasil em 1918”,
na Revista Médico-Cirúrgica do Brasil. HOCHMAN, G. A Era do Saneamento. São Paulo:
HUCITEC, 1998, p. 153.
13 CARVALHO, Keila A. Colônia Santa Izabel: a lepra e o isolamento em Minas Gerais(1920-1960).
2012, p. 82.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
322 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Neste sentido as ações do médico abriam espaço para medidas profiláticas


“mais enérgicas e radicais”, promovendo o isolamento imediato dos “casos mais
perniciosos”.
É importante destacar que para a execução dos planos de combate a doença
e das práticas de isolamento, era preciso que o doente “existisse”, que a doença fosse
evidenciada. Neste sentido os dados estatísticos eram um meio de representação da
doença.14 Os doentes precisavam ser fichados, o que gerava a necessidade do registro
de informações sobre os leprosos, contabilizando os doentes e suspeitos de lepra,
trazendo informações detalhadas das regiões afetadas, bem como os índices e as ca-
racterísticas da endemia. Os diversos censos realizados quantificaram homens e mu-
lheres infectados, a faixa etária, as classes sociais de cada grupo e os tipos de lepra.
Para o doutor Pedro Fontes, o censo “(…) é medida primordial a uma boa
organização de combate à lepra; sem ele não será possível um calculo exacto e uma
conveniente distribuição do serviço”. Segundo o médico, o censo proposto por ele,
deu mostras “ao governo Estadual e ao Federal a necessidade da creaçao de uma co-
lônia de leprosos neste Estado (…)”. A construção do leprosário foi iniciada em sua
gestão, na Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas. (Pedro Fontes,
apud, SOUZA-ARAUJO, 1937, p. 567).

A Colônia de Itanhenga: humanitária finalidade

Em carta ao interventor federal do estado, capitão João Punaro Bley, o dou-


tor Pedro Fontes, reafirma a urgência e necessidade da construção da Colônia no
Espírito Santo. Segundo o médico, cerca de 300 leprosos aguardavam o “tratamento
conveniente”, o que nos sugere que, na visão do médico, tal tratamento somente seria
possível através da internação na Colônia. Neste sentido, Pedro Fontes argumenta
que a construção do leprosário era urgente, resolveria o problema da profilaxia da le-
pra, sendo portanto merecedora de “toda atenção do poder público” (Pedro Fontes,
apud, SOUZA-ARAUJO, 1937, p. 575-76)
As instalações da instituição seguiram as plantas de edificação, fornecidas
pela Saúde Pública Federal, pelos Serviços de Profilaxia dos Estados de São Paulo e

14 Para informações sobre os dados estatísticos, da lepra nas primeiras décadas republicanas, ver
Laurinda R Maciel. “Em proveito dos sãos perde o lázaro a liberdade: uma história das poli-
ticas públicas de combate à lepra no Brasil”, (1941-1962). 2007. Tese (Doutorado em História
Social) – Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro. p. 158.
Histórias de Doenças 323

Minas Gerais e pela Seção de Leprologia do Instituto Oswaldo Cruz. Após visitas aos
leprosários instalados em outros Estados, ficou definido que o modelo a ser seguido
seria o da Colônia de Pirapitingui, de São Paulo, moderno e mais econômico.
A escolha do local a ser erguido o leprosário, foi marcada pela participação
do médico Souza-Araujo, segundo registro realizado por Pedro Fontes em relatório
de 1933. O médico menciona no seu relatório que o projeto de construção, segun-
do sugestão de Souza-Araujo, era baseado no modelo do leprosário de Carville, no
Estado de Louisiana, nos Estados Unidos.15 Nesse leprosário, as habitações eram
coletivas, e situavam num mesmo no mesmo espaço, hospital, dispensário e educan-
dário. Seguindo as orientações arquitetônicas de Carville e adotando os modelos de
construção de outros leprosários, como o de São Paulo, o leprosário de Itanhenga,
estava dividido em três zonas: sadia, intermediária e doente. O objetivo da adoção
deste modelo separação era garantir a integridade das pessoas sadias que prestavam
serviços aos doentes na Colônia.16
A capacidade da Colônia era de 380 internos, mas chegou abrigar em 1942,
cerca de 450 adoentes. Foi construída com 3 áreas distintas: sadia, intermediaria e
doente. Além dos pavilhões de internação dos doentes, o leprosário era constituído
por clinica, laboratório, refeitório e lavanderia. (CYPRESTE, VIEIRA, 2014, p. 39).
As obras da Colônia de Itanhenga foram iniciadas em março de 1934 e custea-
das pelo governo do estado e pela União, com parte do apoio também do município.17
A administração das verbas remetidas para a construção do leprosário ficou a cargo do

15 No leprosário de Carville, os dormitórios eram coletivos que compunham os chamados pa-


vilhões. Cf. SANTOS, Vicente S. M Entidades filantrópicas & políticas públicas no combate à
lepra: ministério Gustavo Capanema (1934-1945). 2006. Dissertação (Mestrado em História
das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz). Rio de Janeiro, 2006, p. 95.
16 H C Souza-Araujo apresenta uma descrição detalhada das dependências da Colônia de
Itanhenga, situando cada área construída, função de cada pavilhão, custos, e etc. Ao final ana-
lise refinada conclui que “em resumo, consideramos a Colônia de Itanhenga como leprosário
modelo” (cf. SOUZA-ARAUJO, 1937, p. 599).
17 A organização desse material ficou a cargo de Pedro Fontes e de Carlos Rosas. Para a exe-
cução da obra, foram despendidos os seguintes recursos: 200:000$000 enviados pela União;
25:000$000 correspondentes à venda de 3.000 sacas de café doadas pelo Departamento
Nacional de Café; 25:000$000 doados pela Prefeitura de Vitória; e 60:000$000 concedidos
pelo governo do Espírito Santo, além do crédito de 105:775$000 para indenização dos terre-
nos desapropriados e suas benfeitorias. COLONIA de Itanhenga. Diário da Manhã, Vitória, p.
1, 23 mai.1935.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
324 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

médico Pedro Fontes, e a obra, segundo Souza-Araujo, foi modelar, pois apresentava
os elementos necessários para bem atender “todas as faces do problema da lepra, den-
tro da mais rigorosa técnica prophylactica” (SOUZA-ARAUJO, 1937, p.606).
Em 22 de maio de 1935, data comemorativa no Espírito Santo, foi realizada
uma inauguração parcial da Colônia de Itanhenga, num evento que contou com a
participação de membros do clero, do governador do Estado João Púnaro Bley, e do
ministro da educação Gustavo Capanema. Também estavam presentes autoridades
do Espírito Santo, de outras unidades da Federação e do Distrito Federal, entre elas,
o Dr. Ernani Agrícola, representando o ministro da Educação e Saúde Pública, e o
Dr. Souza-Araujo, representando o Centro Internacional de Leprologia (SOUZA-
ARAUJO, 1937).
Ao longo das comemorações de inauguração da Colônia em 11 de abril de
1937, o governador João Punaro Bley, realizou um discurso de inauguração, e ao
longo deste discurso, ele caracterizou a inauguração da Colônia de Itanhenga, como
um ato de “humanitária finalidade”, um ato que resolveria “o problema da segrega-
ção dos morféticos”. (Punaro Bley, apud, SOUZA-ARAUJO, 1937, p. 583)
No ano de 1938, seguindo orientações do Congresso Internacional de Lepra,
o leprosário de Itanhenga investiu na organização da atividade agrícola, e na pecuá-
ria, aproveitando a mão de obra dos internos na produção de alimentos que serviam
ao leprosário e as futuras dependências como educandário e preventório. O objetivo
era que os leprosários se tornassem mais autônomos economicamente, sendo as ati-
vidades agrícolas uma forma dos internos obterem seus ganhos. O trabalho dentro
da Colônia permitia também um efeito terapêutico para os internos e facilitava o
controle e a vigilância “medico-sanitária dos leprosos clinicamente curados” (SOUZA-
ARAUJO, 1937, p. 584).
Conforme o governador Punaro Bley, (apud SOUZA-ARAUJO, 1937, p. 582)
a instalação dos internos no trabalho agrícola propiciava a eles viver num “meio
idêntico ao de onde provieram”, o que aumentava as chances de adaptação dos doen-
tes às necessidades do isolamento.

Os primeiros moradores – atraídos aos dispensários,


“pegos” pelos agentes

As ações de internamento dos pacientes no leprosário de Itanhenga eram


pautadas no modelo tripé, que tratava da lepra com base em três pilares unia lepro-
sário (para os internos), preventório (para os filhos dos leprosos) e dispensário (para
Histórias de Doenças 325

vigilância médica e epidemiológica dos comunicantes, ou seja, aqueles que tiveram


contato com os o internado). O objetivo era controlar a lepra, com o isolamento dos
doentes, o controle dos comunicantes e a separação dos filhos sadios. (MACIEL,
2007, p. 296).
Conforme destaca um dos entrevistados, funcionário da Colônia de
Itanhenga, que frequentava o leprosário desde menino:

as pessoas eram pegas na família (…) quando descobriam (…) que tinha pa-
ciente, hanseniano, na família, (…), ia o serviço público lá, (…) pegava essa
pessoas, tirava do convívio e traziam pra cá, [para a Colônia de Itanhenga]
(…). Ah, descobriu que tinha um doente lá no interior Baixo Guandu, Afonso
Claúdio, o serviço de lepra ia lá pegava trazia e botava aqui, isolava aqui né.
Era esse o conhecimento que tinha na época…18

Dona Graça, outra interna de Itanhenga, reforça este depoimento, afirmando


que havia um funcionário, motorista do leprosário, que buscava os doentes “em todo
o lado”. Dona Graça declara que foi levada pelo motorista, que, acompanhado da
polícia, teria forçado ela e sua mãe a entrar no carro, deixando os familiares para
traz. Ela afirma ainda, que seus parentes, tiveram dificuldades para saber o paradeiro
das duas.19
Analisando o isolamento compulsório como política de combate a lepra no
Brasil, entre as décadas de 20 e 40, no Brasil, Vivian Cunha (2005, p. 89), destaca que:

os leprosários não tinham a função de curar o doente, mas principalmente


de mantê-lo longe das pessoas sadias. O tratamento lá aplicado visava tornar
o doente menos contagiante, conter a evolução da doença, ou ainda, curar as
lesões aparentes. A cura até poderia ser alcançada, mas, definitivamente, não
era o objetivo central do leprosário.

Logo, conforme verificamos o paciente era identificado pelo serviço de saúde,


encaminhado ao posto médico, dispensário ou levado ao leprosário. Aqueles enca-

18 O funcionário, aqui denominado Jair, frequenta a Colônia de Itanhenga desde que era meni-
no. Era filho de um dos funcionários do Estado que morava numas das casas cedidas pelo go-
verno para os trabalhadores. Ressaltamos que trocamos os nomes dos entrevistados visando
manter os internos no anonimato.
19 Dona Graça Entrevista n° 11 realizada em 05/04/2016
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
326 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

minhados para o leprosário, via internação compulsória, eram recolhidos com o


amparo da lei. Os agentes pegavam os doentes sem maiores explicações.
Foi possível verificar que nem sempre havia resistência, por parte dos reco-
lhidos, implicando o uso da força policial nas ações de internamento. O que não
significa que houvesse aceitação quanto às medidas de internação. Ao longo das
pesquisas vimos que o Serviço de Saúde Pública atraia para o recolhimento ao lepro-
sário, os doentes que chegavam aos postos de saúde e dispensários, providenciando
o transporte daqueles doentes de lepra.
Aliás, esta prática foi bastante valorizada pelos agentes sanitários. O doutor
José Augusto Soares, um dos membros do serviço de Profilaxia da Lepra no Espírito
Santo, destaca na obra “Aspectos da Profilaxia e da Epidemologia da Lepra no Estado
do Espírito Santo” que “os leprosos e comunicantes deveriam ser atraídos aos dis-
pensários ao em vez de serem procurados nos domicílios” (SOARES, s/d, p.2).
O médico, Pedro Fontes também declarou que os pacientes não se opuseram
a internação na Colônia de Itanhenga, não sendo preciso usar o recurso policial
para levar os doentes para o leprosário, pois os pacientes já tinham uma “educação
sanitária”, já sabiam da enfermidade e da necessidade de ficarem isolados, bem como
estavam cientes da possibilidade da cura. (SOUZA-ARAUJO, 1937, p. 600).
Mas a pesquisa realizada na Colônia de Itanhenga, através dos documentos
e dos depoimentos, nos aponta para controvérsias entre a realidade dos internos e o
discurso oficial. A fala do doutor Pedro Fontes, de que pacientes eram atraídos ao le-
prosário, e de que não havia oposição ao internamento, pode ser facilmente colocada
em contraste com os depoimentos, como o do funcionário Jair, mencioando acima.
Da mesma maneira, não podemos considerar como factíveis as afirmações
do médico de que os doentes de lepra tinham consciência da importância do tra-
tamento e que soubessem com exatidão do local que seriam destinados. Enfim a
imagem de que o processo de internação como algo natural e pacífico, não pode ser
concebida como de fato. As entrevistas nos mostram que o ato de internação do do-
ente notificado, além de ser imposto era realizado abruptamente, sem que o paciente
soubesse de seu destino.
Logo é possível supor que além da autoridade dos “dos guardas”, que agiam
no recolhimento dos doentes, imperava sobre os pacientes a força do discurso médi-
co. A política de combate a lepra, a ação dos agentes de saúde, baseavam-se no argu-
mento em prol da necessidade de isolar o doente. O isolamento era uma necessida-
de, o meio de evitar o “perigo tremendo do rápido contágio” segundo as palavras do
Histórias de Doenças 327

governador João Punaro Bley, em discurso na inauguração da Colônia de Itanhenga.


(SOUZA-ARAUJO, 1937, 583).
A afirmação de Pedro Fontes quanto a aceitação dos pacientes no momento
da internação, como destacamos, nos faz refletir sobre a força do discurso de auto-
ridade dos médicos, diante dos doentes internados compulsoriamente. A absorção
destas ideias pelos doentes, talvez se explique justamente por conta da falta de “edu-
cação sanitária” e do desconhecimento sobre a doença e sua terapêutica, da parte do
doente de lepra. A autoridade médica sobre os doentes, também se efetivava pela
ausência de esclarecimentos à população de uma possível política pública de com-
bate a doença.
É comum ouvir entre os pacientes questionados quanto as declarações acerca
da internação na Colônia de Itanhenga, repostas de aparente aceitação, denotando
comportamento de submissão ao discurso médico. Obviamente, tal comportamento
era fruto das ameaças frequentes, ainda que veladas, para aqueles que demonstras-
sem oposição as políticas de isolamento.
Mais uma vez, recorremos a entrevista de Dona Graça. Esta senhora, quando
questionada sobre a reação dela e da mãe, no momento da notícia de que seriam
levadas para a Colônia, nos respondeu que aceitou a ordem do motorista. Naquele
momento ela teria dito para sua mãe: “é isso ai mãe, vamos embora”. Ela afirmou
ainda que entraram no carro e saíram em direção ao leprosário.20
Em outra entrevista, realizada com uma interna, que também foi levada para
a Colônia de Itanhenga, podemos novamente destacar a “aceitação” dos doentes,
ao discurso médico. Dona Joana, afirma que vive a 63 anos no leprosário e que foi
levada junto com a mãe, também leprosa. Durante a entrevista, questionamos sobre
sua reação, e de sua mãe, quando souberam que deveriam ir para a Colônia com
urgência. Ao perguntar se elas tinham consciência de sua enfermidade, Dona Joana
nos respondeu:

Nós não falamo nada, minha mãe aceitou, numa boa”. [A mãe disse:] “se é
doente vamo tratar, vamo ”(…) [Sobre a lepra] “não, não sabia o que, que era
não. Nunca sabia o que era. Fui sabê aqui dentro [da Colonia]. (…), nós não
sabia não, nós foi criada na roça.21

20 Dona Graça Entrevista n° 11 realizada em 05/04/2016


21 Dona Joana. Entrevista n° 15 realizada em 19/04/2016.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
328 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Os doentes encaminhados para a internação chegavam ao leprosário e aguar-


davam a entrada da documentação na administração do leprosário sendo encami-
nhados em seguida para o centro clínico, onde passavam por uma avaliação e cuida-
dos necessários. Dali o paciente era destinado aos pavilhões onde tinha início uma
nova trajetória. Segundo um dos funcionários da Colônia de Itanhenga, os pacientes
eram “pegos” pelos agentes, tirados do convívio e isolados. 22 Assim, começava então
um processo de exclusão e sofrimento do interno, que além das dores físicas sofriam
a dor da separação e da exclusão social.
Contudo, conforme veremos com a internação iniciava-se também um pro-
cesso de adaptação e de reinvenção erguidos aos poucos pelos internos, em cima da
ruptura que o isolamento compulsório representava.
Uma das falas de uma interna, aqui denominada Cintia, mostra com muita
clareza, essa adaptação à vida na Colônia. Cintia nos revela ao longo da entrevista
que se acostumou na Colônia e que depois de um bom tempo vivendo como interna,
ela sentia que ali tinha uma família. Sair do leprosário para Cíntia é o mesmo que
joga-lá numa prisão. Ela termina sua declaração, afirmado que deve muito “aquele
lugar” e que pretende ficar por lá, até o final de sua vida. 23
No entanto, a vida no leprosário não é de plena liberdade, os internos ficam
mantidos sob vigilância e controle da administração local. Desde o inicio do seu
funcionamento, para eventuais saídas da Colônia o interno deveria solicitar licen-
ça ao diretor do leprosário, que poderia ser permitida conforme as possibilidades
e necessidades do caso. A concessão da licença era dada em situações específicas,
como visitas familiares por motivos fundamentados, tratamentos de saúde em ou-
tros hospitais, e devido a questões burocráticas. O retorno era estipulado previa-
mente, devendo o interno obedecer as regras, sob pena de sanções, em caso de não
cumprimento delas.
Em geral os pacientes retornavam no prazo determinado pelo diretor, talvez
por conta da temeridade de um descumprimento das regras, o que evidencia a força

22 O funcionário denominado na pesquisa, Jair, trabalhava na administração da Colônia de


Itanhenga, ficava na recepção da Colônia, era o contato inicial do doente, representava a fron-
teira entre a sociedade e o “o universo fechado da lepra”, reservado aos leprosos.
23 Cintia. Entrevista n° 13 realizada em 12/04/2016. O que mais chama a atenção para a entrevis-
ta da Cintia é que ela entrou para a Colônia de Itanhenga, surpreendentemente, em outubro
de 1990, ou seja, muitos anos após o fim das medidas de internamento compulsório, e num
período que o tratamento da doença perpassa outro viés terapêutico.
Histórias de Doenças 329

dos mecanismos disciplinares. É claro que além do temor, os pacientes, em boa parte
dos casos retornavam, pois havia a questão do agravamento da doença, e da necessi-
dade de manter o uso de medicamentos.
Outro ponto importante registrado nos depoimentos refere-se as dificulda-
des relatadas por alguns internos de permanência fora dos muros da Colônia, passa-
dos um período de internação. Eles relatam que após convivência no leprosário não
“se encaixam” mais no ambiente de origem, tendo dificuldades de convivência social
com o grupo de onde foram retirados. Eles afirmam que fora do leprosário não es-
tavam entre iguais, e assim ficavam expostos aos olhares preconceituosos, notando
inclusive entre amigos e familiares, atitudes temerárias diante de uma proximidade.
A entrevista realizada com o sr. Antônio ilustra essa dificuldade. Ele foi inter-
nado aos 22 anos na Colônia de Itanhenga, após ser diagnosticado através de um tu-
bérculo, durante o trabalho na roça. Antônio foi levado de imediato, para um posto
de saúde em Linhares/ES indo depois para o leprosário, onde vive desde então. Na
entrevista, questionamos sobre como foi o momento em que ele descobriu a doença.
Senhor Antonio nos respondeu:

Pô, pra mim foi o mesmo que ter me matado e ter jogado fora! [porque] na
hora que ele falou que eu estava com essa doença, (…) nós trabalhávamos
lá em 20 tantas pessoas, aquilo acabou tudo! Não eram mais meus amigos,
sumiu tudo! Lá em casa eles não deixaram eu nem entrar na porta mais pra
panhar roupa, tive que vir com a roupa que eu estava trabalhando. (…) eu
nunca mais voltei lá nem pra ver eles, por que eles estavam com medo de mim
né. Ai eu vim pra aqui, mas eu findei bem aqui Graças a Deus (…).

Logo, a rejeição fora dos muros da Colônia a não adaptação dos doentes de
lepra a sociedade, somada ao desejo de logo retornar ao universo do leprosário,
acabam por reforçar as estruturas de funcionamento asilar pautadas na exclusão. De
acordo com as palavras de um dos entrevistados que vive na Colônia de Itanhenga;
no leprosário os internos permaneciam “presos pela doença”.24

Os doentes de lepra – infelizes?!

No discurso inaugural da Colônia, o governador do estado do Espírito Santo,


penalizado com a situação dos doentes, se refere a eles utilizando, algumas vezes o

24 Marcus. Entrevista n° 27 realizada em 22/11/2016.


Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
330 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

termo, infelizes. Ele identifica os pacientes como “creaturas de cujos corações angus-
tiados se esvaneceram todos os sonho de alegria e de esperança” (Punaro Bley, apud,
SOUZA-ARAUJO, 1937, p. 581).
Não é de nosso interesse aqui, refletir sobre os adjetivos utilizados pelo go-
vernador aos doentes, nem mesmo fazer qualquer juízo. Também não pretendemos
alongar a questão em torno da condição emocional dos internos. É certo que a in-
terrupção na vida dos leprosos e de seus familiares, ocorrida de forma tão abrupta,
causou sofrimentos e lhes deixou marcas profundas.
As ações de internamento empreendidas pelo Estado certamente causavam
pânico entre os doentes. Talvez não soubessem exatamente o significado das medi-
das sanitárias, como já dissemos, mas sabiam da temeridade da doença, ou do que
ela representava no meio social. Os leprosos, não compreendiam bem o que era a le-
pra, mas sentiam, na pele, o estigma, sabiam do terror que ela representava no meio
social. Eles tinham medo daquilo que viam ou ouviam sobre os outros doentes de
lepra mesmo estando no leprosário. Os doentes, menos afetados fisicamente, tinham
noção de que aquela doença era marcada por sofrimento, que deixava sequelas e
representava a morte. No dia a dia, temiam os sinais e os sintomas da doença, a evo-
lução e as sequelas da lepra em seus corpos.
O terror acerca da doença sempre foi presente nas políticas sanitárias, per-
meava o discurso que visava disseminar a ideia da importância das ações médicas e
da necessidade de afastamento do indivíduo doente. Conforme destaca Cabral, os
debates levantados pelos sanitaristas eram geradores de uma lógica que identificava
a enfermidade da lepra como um flagelo nacional. O objetivo dos agentes sanitários
foi durante um bom tempo, fazer com que a profilaxia da lepra fosse transformada
numa questão nacional. (CABRAL, 2103, p. 16).
A lepra representava um mal que deveria ser combatido pelos médicos, pelas
políticas sanitárias e em benefício dos sadios. A doença era a representação da morte
que precisava permanecer longe da vista dos sadios, permanecer oculta. Os leprosos
deveriam ser afastados, mantidos distante da sociedade sadia, esquecidos. Eles não
cabiam no cotidiano da sociedade sadia. (OLIVEIRA, 2011, p. 119)
Portanto mesmo que o discurso voltado do combate a lepra se apresentasse
como uma medida de saúde pública, ele carregava consigo a repugnância à lepra e
ao leproso. Ainda que o objetivo fosse a saúde e o bem estar social, as medidas de
combate a doença, propagavam o estigma e o preconceito social contra os doentes
que eram rejeitados pela comunidade na qual estavam inseridos. Os doentes eram
Histórias de Doenças 331

recusados pela sociedade e pelas famílias, por conta do pouco que se sabia sobre a
doença e por conta do muito que se falava em torno dela. Eles eram facilmente iden-
tificados como frágeis, e infelizes, conforme as palavras do governador do Espírito
Santo, o leprosário abrigaria “os infelizes a morphea implacável sella, com seu estig-
ma execrando (Punaro Bley, apud SOUZA- ARAUJO, 1937, p, 582).25
Os homens e mulheres, levados para a Colônia, procediam em grande par-
te de áreas agrícolas, vindos do interior do estado. Eram trabalhadores rurais, por
vezes, donos de pequenas propriedades, vivendo da agricultura e da criação de
animais. Ao serem notificados pelo serviço de profilaxia da lepra deviam seguir as
orientações profiláticas e não tendo a quem recorrer para evitar a ação dos agentes
de internação compulsória.26 Aliás, em muitos casos, seus familiares e empregado-
res eram os primeiros a promover o afastamento do doente, através da dispensa ao
trabalho e da exclusão, alimentados pelo preconceito e pelo o estigma, como vimos.
Os trabalhadores rurais em sua maioria povo simples, sem acesso as letras
e as leis, desconhecedores das políticas de higiene, ficavam a mercê das ações dos
agentes sanitários que atuavam em nome do Estado. Os doentes eram recolhidos
pelo serviço de profilaxia, e encaminhados aos dispensários, onde recebiam trata-
mento e realizavam exames. Em algumas situações, os suspeitos e os familiares dos
doentes eram orientados e registrados para compor os importantes dados estatísti-
cos que as inspetorias de profilaxia da lepra desejavam contabilizar. Em outras situ-
ações os doentes recebiam cuidados e permaneciam em casa, ficando sob controle
das inspetorias, bem como os comunicantes.27
Vimos anteriormente que em muitas ocasiões os leprosos eram subtraídos,
e levados pelo serviço sanitário, como já observou o funcionário da Colônia de

25 Fala do interventor P. Bley no discurso de inauguração da Colônia de Itanhenga. In: SOUSA-


ARAUJO, Heraclides Cesar de. A lepra no Espírito Santo e a sua prophylaxia: a “Colônia de
Itanhenga” Leprosário modelo. Memórias do Instituo Oswaldo Cruz, v. 32, n. 4, p. 551-605,
1937. p. 582.
26 Dos leprosos fichados pelo Serviço de Profilaxia da Lepra entre 1927 e 1945
27 É interessante notar que mesmo após a criação do leprosário de Itanhenga alguns doentes
são mantidos em tratamento domiciliar, denotando que a prática do isolamento compulsório
não foi adotada integralmente. Alguns fatores influenciavam na “escolha” da adoção ou não
das medidas de internação. Em determinadas situações, como por exemplo, a internação de
mulheres e mães era numericamente menor, o que nos sugere que seria por conta do papel
desempenhado por elas nos lares.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
332 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Itanhenga. Vimos nas entrevistas que pais e mães eram separados de seus filhos, e
que não havia informações aos familiares sobre os rumos do doente de lepra após o
recolhimento. Também os doentes retirados do seu convívio ignoravam o destino da
viagem que iniciava, “levados”, rumavam ao desconhecido, guiados por uma medi-
cina científica, também desconhecedora dos resultados futuros que o internamento
compulsório reservava aos doentes.28
Contudo percebemos também que após o período inicial de entrada na
Colônia, superando a dor da separação e a angústia da exclusão, os doentes se in-
tegravam aos outros internos. Aos poucos, começavam uma rotina de tratamento,
cuidado de si e dos outros. Num cotidiano de trabalho, em muitos casos, muito
trabalho, os internos foram construindo algumas possibilidades de reelaboração,
puderam se reinventar. Após a ruptura de suas vidas, da segregação, construíram,
por tortuosos caminhos, um destino diferente daquele delineado pelo interventor
estadual, de “doentes infelizes marcados pela morfeia e execrados pelo estigma”.
Os pacientes internos também refizeram seus laços afetivos, muitos deles ali
trilharam um caminho traçado por si mesmo. Ao longo da permanência no lepro-
sário, conheceram pessoas, construíram amizade se casaram, tiveram filhos, cons-
truíram um patrimônio. Boa parte dos entrevistados, hoje vive com simplicidade,
parte do grupo se apoia financeiramente numa aposentadoria por tempo de servi-
ço e outros vivem do benefício concedido pelo governo aos pacientes internados
compulsoriamente.29
Ao longo dos depoimentos recolhidos, ouvimos as diversas experiências de
internos e ex-internos, não apenas dos que sofreram internação compulsória, mas
também de pacientes que buscaram auxílio na Colônia.
Ouvimos histórias, de pessoas internadas, mas também de pessoas que se in-
ternaram na Colônia e que nesta condição, na margem, puderam reconstituir suas
vidas. Os relatos nos mostraram as diversas experiências e vivências de pacientes,

28 O desconhecimento e a ausência de informações para os doentes era tal que, verificamos, após
o fim da internação compulsória, que havia quem ignorasse, na década de 1980, o fim da obri-
gatoriedade de internação. Esta foi finalizada por decreto em 1962, e significou um problema
para aqueles internos, que ao serem retirados de suas casas, não tinham para onde voltar após
a alta, ocorrida em muitos casos cerca de 20 ou 30 depois.
29 A partir do ano de 2007 o governo federal adotou uma medida provisória que concedeu uma
pensão especial mensal, vitalícia e intrasferível as pessoas atingidas pela hanseníase, que fo-
ram internadas compulsoriamente em hospitais colônias até o ano de 1986.
Histórias de Doenças 333

pessoas que fizeram daquela realidade, de afastamento e de exclusão, uma experiên-


cia transformadora descobrindo outras formas de sociabilidade e de trabalho dentro
do hospital. Seu Josué, um dos pacientes entrevistados, por exemplo, conta-nos que
lá no leprosário trabalhou muito, lá “fazia tudo em quanto era serviço, (…) eletricis-
ta, (…) bombeiro (…) recebia salarinho”.30
Algumas histórias recheadas de sentimento de solidariedade, e de ajuda mú-
tua, em que os internos em melhores condições físicas auxiliavam aqueles de saúde
fragilizada. É importante observar que nem todos os doentes de lepra levados pela
internação compulsória estavam impossibilitados de trabalhar. E mesmo aqueles
que chegavam mais adoentados, se recuperavam e em pouco tempo tinham condi-
ções de colaborar para o bom funcionamento da Colônia.
Os internos trabalhavam nas atividades agrícolas, nos serviços de manuten-
ção do leprosário, como limpeza dos pavilhões, lavanderia, cozinha, enfermaria,
bem como as demais atividades relacionadas às habilidades de cada um, como cos-
tura, cortes de cabelo, carpintaria, enfim funções importantes para o funcionamento
do leprosário.31
Além das histórias de superação, de melhoria das condições de saúde física e
psíquica, recolhemos também muitas narrativas saudosas de festividades que acon-
teciam dentro do hospital colônia. É claro, as narrativas de momentos felizes são fa-
ces de histórias marcadas pela experiência do isolamento e pelo desejo de retomada
da vida fora dos muros da Colônia. Mas os depoentes traziam as lembranças das fes-
tas ocorridas no leprosário com alegria no olhar. A maioria dos que entrevistamos,
trouxeram os momentos de diversão e prazer das festas juninas, das celebrações de
natal, a alegria do carnaval. Eles narraram a satisfação de poder assistir no lepro-
sário, apresentações de artistas como Emilinha Borba, Marlene e Cauby Peixoto.
Como destaca uma das internas da Colônia de Itanhenga, Dona Joelma:

30 Entrevista n°3 com o Sr. Josué, realizada em 01/03/2016. A prática de remuneração do traba-
lho dentro dos leprosários era permitida, conforme regulamentos criados pelos departamen-
tos estaduais de saúde e pelo DNSP
31 As atividades exercidas no leprosário eram tidas como terapêuticas, colaborando para o de-
senvolvimento físico e mental dos pacientes, são ainda hoje denominadas praxiterapia. A co-
lônia funcionava como uma pequena cidade, onde os serviços de educação e segurança eram
realizados pelos próprios internos.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
334 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

todo fim de semana, carnaval, festa junina também (…) Vinha muitos artista
naquele tempo, Emilinha Borba, vinha Marlene, ah diversos artistas, foi muitos
(..) Cauby Peixoto (…) aqui vinha muito artistas antigamente, cantavam (…).32

Na medida em que avançávamos nas entrevistas diferentes histórias de vida


dos leprosos foram se compondo. Percebemos inclusive que, para alguns internos,
a situação de recolhimento no hospital colônia, representava a chance de receber
cuidados e medicamentos. Alguns pacientes, convivendo com a lepra e percebendo
o avançar dos sintomas da doença, desejavam acima de tudo, a terapêutica, e o alívio
dos incômodos como dores, sangramentos, dormências e outros. Estes doentes per-
cebiam o internamento como uma etapa necessária, um caminho a ser percorrido
que acenava para a cura e para uma suposta alta. As palavras do Sr. Josué mostra
bem essa situação, ao responder uma pergunta sobre um possível desejo de fuga da
Colônia de Itanhenga. Ele respondeu:

tinha vontade de ir embora, fugir, mas eu achei; não adianta eu ir, (…). Eu
tenho que tratar, se eu tô doente eu tenho que tratar, eu não posso ir embora
(…). Eu tomava muito remédio pra modo de eu sarar depressa pra ir embora
(…) mas eu falei se eu for embora vou ficar do jeito dele também [do outro
doente com sequelas], tem que tratar mesmo.33

Nas entrevistas encontramos também histórias de pessoas que viam o reco-


lhimento no leprosário, como um caminho natural a ser seguido, representava quase
um destino do doente, já que este teria sido o percurso igualmente realizado por
outros familiares em outras ocasiões. É frequente nos depoimentos dos internos a
lembrança da passagem de um pai, tios primos ou irmãos pela Colônia.
Um das entrevistadas, dona Sebastiana, natural do município de Santa Teresa
afirmou que seu pai tinha sido levado para a Colônia duas semanas após o seu nas-
cimento, permanecendo por lá, até os seus 17 anos de vida. Ela permaneceu privada
do convívio do pai por longa data. Dona Sebastiana nos conta que também viu sua
mãe ser levada para a Colônia de Itanhenga, bem como um irmão e um tio. Quando
perguntamos se ela ficou assustada com a notícia de que ela também seria interna-
da, naturalmente ela nos respondeu: “não; já tava acostumada na enfermidade por

32 Conforme as palavras de D. Joelma. Entrevista n° 20 realizada em 26/04/2016.


33 Entrevista n°3 com o Sr. Josué realizada em 01/03/2016
Histórias de Doenças 335

causas dos parentes, ai foi normal”.34 Ao final da entrevista, nossa depoente afirma
que não se imagina saindo da Colônia, pois já acostumou; ali tem sua casa e seu
emprego.
Outra interna entrevistada também fala sobre a experiência na Colônia de
Itanhenga e sobre as condições de sua ida para o leprosário. Dona Luiza relata que
via a Colônia como uma salvação, um espaço de cura, o destino a ser buscado, por
vezes, revelado ao doente. Durante nossa conversa, foi possível perceber que Dona
Luiza tinha uma percepção escatológica acerca de sua ida para o leprosário.
Relembrando a experiência do internamento ela conta que por volta dos 15
anos, buscou ajuda para se internar no leprosário. Ela foi de trem para Vitória em
busca de atendimento médico. Viajou com uma tia, que não estava interessada em
abrigá-la em Vitória. Em seu depoimento, Luiza nos conta que, insistiu para ir para
Vitória, dizendo para a tia que:

Tenho certeza (…) que Jesus vai me deixar na casa da senhora só quinze dias,
por que Deus vai me mostrar um lugar que eu vou” [para ser atendida pelos
médicos].35

Em seguida D. Luiza justifica a insistência junto as familiares, para partir em


direção a Vitória:

Eu só me via assim, fechava olho eu via, (…) Só médico me atendendo, mé-


dico de roupa branca, Deus vai me levar (…) eu tive um sonho a noite, (…)
Jesus tá me indicando pra lá, eu vou é pra lá.36

Enfim, como já dissemos anteriormente, ao longo das entrevistas realizadas


registramos histórias de superação, de pacientes que conseguiram obter melhorias
das condições de saúde física e psíquica. A cada conversa com os internos foi pos-
sível recolher narrativas de reelaboração, experiências de quem teve seu cotidiano
abruptamente destruído em nome de uma política sanitária que mal conheciam.
Ao longo da pesquisa estamos cientes dos cuidados necessários quanto ao
trato das fontes, sobretudo no uso de fontes orais. Durante nossas atividades consi-
deramos que as falas de nossos depoentes, são marcadas por decisões de apagamento

34 Dona Sebastiana. Entrevista n° 14 realizada em 05/04/2016.


35 Dona Luiza. Entrevista n° 10 realizada em 22/03/2016
36 Dona Luiza. Entrevista n° 10 realizada em 22/03/2016
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
336 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

e rememorações, e com certeza de reconstruções. Assim não deixamos de levar em


conta que uma determinada visão do passado, pontua elementos da memória, recor-
dando e omitindo experiências, conforme seus interesses. Sabemos, inclusive, que
parte dessas narrativas e de usos memória foi construída no momento da entrevista.
Durante as entrevistas percebemos que os depoentes olham para o seu passa-
do, mas nem sempre rememoram as dores e dificuldades vividas, com toda a viva-
cidade. Eles recuperam o seu passado, relembram sua ida para a Colônia e as ligam
a sua situação presente. E com frequência criam e recriam suas identidades, origi-
nalmente perdidas no momento de entrada no leprosário. Assim, num movimento
de enquadramento da memória, os entrevistados buscam controlar suas lembranças
sofridas, ajustando-as a uma imagem do passado, construído coletivamente. Eles
compõem e recompõem, uma imagem oficial, ou mesmo imaginada. (POLLACK,
1989, p. 12).
É importante afirmar que aqui, não buscamos uma história de verdades, mas
sim a captura da memória e a história que os pacientes decidiram elencar. São as
memórias enquadradas que nos interessam neste trabalho.
É importante destacar que durante nossa pesquisa na Colônia de Itanhenga,
percebemos que alguns internos decidiram pelo “controle ou apagamento” das lem-
branças que lhe fazem sofrer. Em alguns depoimentos situamos claramente narrati-
vas que falam com muita naturalidade das experiências de dor, onde o doente parece
evitar trilhar pelo viés vitimizador.37
Como destaca Keila A. Carvalho (2011, p. 69), em análise dos depoimentos
dos internos da Colônia Santa Izabel, em Minas Gerais, as pessoas criaram um sen-
timento de identidade que lhes possibilitaram ver suas experiências, além da dor,
“pessoas antes de tudo, vencedoras, que enfrentaram a doença e superam a rejeição”.
Assim nos vimos diante de um cenário com narrativas e histórias de vida de
pessoas trabalhadoras, que dentro das possibilidades que lhes restavam, reiniciaram
suas trajetórias, costurando um cotidiano de luta, de adaptação de suas vivências ao

37 Não temos a intenção de esvaziar a experiência de dor e sofrimento que as pessoas com lepra,
internadas compulsoriamente enfrentaram. Muito menos considerar os muitos momentos de
tristeza que passaram e ainda passam, em função da experiência de dor causada pela lepra e
pelos ações dos agentes das políticas sanitárias, a partir da década de 30. No entanto queremos
aqui mostrar outro cenário, possível dentro da experiência dos internos com lepra na Colônia
de Itanhenga. Propomos aqui uma releitura, não polarizada da história da lepra e das práticas
medicas em torno do combate a doença.
Histórias de Doenças 337

cenário que a internação compulsória e a lepra lhes apresentavam. São pessoas que
aprenderam a lutar contra as dores físicas e as limitações do corpo e que driblaram
as dores da alma.
A partir dos depoimentos recolhidos na Colônia percebemos que os doentes
se identificavam com outras histórias similares. E ainda que, encontrassem pacientes
em diferentes estágios da doença, não raro mutilados pelo avanço da lepra, havia um
sentimento comum entre eles; a ideia de que todos que ali estavam, compartilhavam
da mesma história, estavam “no mesmo barco” lutando contra a maré da indiferen-
ça, do estigma e da dor. Ali compartilhavam identidades, e dessa forma reconstruí-
am suas vidas, sua história.
Diante da experiência das identidades compartilhadas, os internos se sentiam
acolhidos, pois estavam imersos entre iguais. Partilhavam semelhantes experiências
de dor, de separação, de necessidade de recomeço de uma nova vida. E segundo
Keila A. Carvalho (2011, p. 83), por mais estranho que possa parecer, as pessoas
inseridas nos hospitais colônias se sentiam acolhidas, ainda que num espaço origi-
nalmente elaborado como espaço de exclusão.
Nossa pesquisa encontra-se em fase inicial de trabalho, e a inserção ao inte-
rior do leprosário, um universo desconhecido por muitos e à primeira vista, marca-
do pela exclusão e preconceito, nos apresentou histórias de vida distintas. Histórias
de pessoas que mesmo sendo pegas pelos agentes do serviço de profilaxia da lepra,
não se anularam. Pessoas que não permitiram “que a morphea implacável, selasse
seu destino como vítimas de um estigma execrável, fazendo-lhes calar”, contrarian-
do os termos de Punaro Bley. (Punaro Bley, apud SOUZA- ARAUJO, 1937, p, 582).
Os anos se passaram, as ações políticas mudaram, a medicina adotou novos tra-
tamentos e a sociedade, novas posturas. Cabe a nós historiadores, colaborar para
externar, as experiências, as reelaborações e a trajetória de nossos internos; se assim
podemos carinhosamente chamá-los.

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A organização dos Dispensários de combate
à sífilis no Paraná: de Souza Araújo a Barros
Barreto (anos 1920)
Silvia de Ross1
Liane Maria Bertucci2

Introdução

A sífilis é uma doença infectocontagiosa sistêmica, ou seja, manifesta-se em todo


o organismo – do cancro na região genital, a erupções na pele, até o compro-
metimento de órgãos vitais. A moléstia tem como agente etiológico a bactéria tre-
ponema pallidum e pode ser transmitida tanto por via sexual quanto para a criança
durante a gestação (AVELLEIRA; BOTTINO, 2006, p.116). Até as primeiras déca-
das do século XX esta doença era incompreendida em muitas de suas formas de
manifestações e apesar dos tratamentos utilizados no seu combate com elixires, xa-
ropes, mercuriais e compostos arsenicais, ainda não havia uma droga considerada
eficaz como a penicilina, que começou a ser utilizada nos anos 1940. Descoberta no
final da década de 1920 produzida em larga escala no Brasil a partir de 1943, a peni-
cilina pode ser considerada uma das substâncias com maior eficácia no tratamento
dessa moléstia. No entanto, mesmo com este medicamento e com as pesquisas sobre
a causa da enfermidade (o agente etiológico da doença foi descoberto em 1905), a
sífilis continua fazendo vítimas (AVELLEIRA; BOTTINO, 2006, p.116).
A doença, que desde o século XV acometeu grande número de pessoas no
Ocidente, foi objeto de diversas explicações a respeito da sua origem e das formas

1 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Paraná. Membro do Núcleo de Estudos e


Pesquisas em História da Formação e das Práticas Educativas – NUHFOPE.
2 Doutora em História, professora associada de História da Educação no Departamento de Teoria
e Fundamentos da Educação da Universidade Federal do Paraná. Coordenadora do NUHFOPE.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
342 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

de sua propagação. Em meados dos Oitocentos a hipótese da sífilis ser causada por
um vírus transmitido por via aérea dividiu espaço, nos debates médico-científicos,
com duas teses: a de a moléstia ser disseminada de forma hereditária e a que de-
fendia a propagação da sífilis por herança (congênita) durante a gestação, ou seja, a
mãe contaminada, em geral pelo marido, transmitia ao filho por meio da placenta
(PARASCANDOLA, 2008; QUÉTEL, 1986). A partir dos anos 1860, em especial
com a publicação dos trabalhos de Alfred Fournier (1832-1914), a questão da sífilis
hereditária, ou heredo-sífilis, ganhou cada vez mais espaço em meio aos debates
médicos e passou a ser apontada como causa de “quase todas as más-formações,
quase todas as monstruosidades [humanas]” (CORBIN, 1977, p.249) e, também,
como uma moléstia que poderia causar outras doenças, como a paralisia geral do
organismo (QUÉTEL, 1986, p.5). Fournier não negava a ideia da possibilidade da
mãe transmitir a sífilis para a criança na forma congênita (herdada), mas defendia
a possibilidade da transmissão hereditária do pai para a criança, sem que a mulher
estivesse contaminada, bem como a transmissão hereditária de ambos os genitores
(CARRARA, 1996, p.63). A recepção dos escritos de Alfred Fournier no Brasil foi
contemporânea a sua grande difusão na Europa3.
Mas não foi apenas o tratamento da doença e o entendimento da moléstia
que passaram por transformações ao longo dos anos. Desde o final dos anos 1400,
quando a sífilis irrompeu na Europa sob a forma epidêmica4, os significados atribu-
ídos à moléstia, às suas formas de transmissibilidade e seus portadores, bem como
os argumentos mobilizados na defensa de tratamentos da enfermidade também
foram sendo debatidos e (re)significados (FLECK,1981; PARASCANDOLA, 2008;
MCGOUGHT, 2010). Segundo Quétel (1988, p.286-287), a sífilis foi a doença sobre
a qual mais se escreveu desde esse período até o século XX, ainda que a cólera e a
tuberculose matassem muito mais.

3 As pesquisas apresentadas por Alfred Fournier seriam um dos impulsos para a criação de uma
nova especialidade médica, a sifilografia (ou sifiligrafia), que em pouco tempo se consolidou
em meio às cadeiras universitárias, conferências e sociedades científicas de diversos países
(QUÉTEL, 1986, p.5-6). No Brasil, a sifilografia foi implantada a partir das últimas duas déca-
das dos Oitocentos (CARRARA, 1996, p. 76).
4 Em 1495 foram detectadas epidemias de sífilis na Itália, na França e no território alemão. Nos
anos seguintes a doença fez vítimas na região dos Países Baixos e na Grécia e depois alcançou
a Inglaterra e a Escócia (MARQUES, 2004, p.278).
Histórias de Doenças 343

Entre os significados atribuídos à sífilis figuravam noções assustadoras da


doença como castigo divino ou praga sexual – um sinal de decadência moral –, no-
ções que são possíveis verificar nos relatos de médicos das cidades italianas atingidas
pela enfermidade no século XV (QUÉTEL, 1986, p.10). Paralelamente, nesse mesmo
contexto europeu, a sífilis foi caracterizada também como um indício de virilidade
(BROWN, 2013, p.145), perspectiva difundida no Brasil desde os tempos coloniais.
Gilberto Freyre, em Casagrande & Senzala, afirmou que neste período era costume
o filho do senhor do engenho ser “ridicularizado por não conhecer mulher e leva-
do na troça por não ter marcas de sífilis no corpo” (FREYRE, [1933] 1952, p.160).
Outra conotação atribuída à sífilis, que perdurou durante décadas, foi a associação
de sua disseminação no país devido a suposta sexualidade exacerbada dos brasilei-
ros, opinião explicitada na fala de muitos médicos que lançavam mão de hipótese
climática e raciológica – a que afirmava que a sífilis ocorreria principalmente nos
trópicos devido a expressiva presença de africanos e ao clima cálido que favoreceria
a devassidão e a luxúria (CARRARA, 1996, p.126-127).
Entretanto, a percepção desta doença como um terrível mal sempre preva-
leceu, concorrendo para que ninguém quisesse ser responsabilizado pela origem e
difusão de epidemias da doença.5 À moléstia foram atribuídos diversos nomes, tais
como: Mal de Nápoles, Mal Francês, Mal Gálico, Mal Polonês, Mal Germânico, Mal
Cristão. Dessa forma, a sífilis, também denominada lues venerea (praga sexual, em
latim), ou simplesmente lues, foi muitas vezes apresentada como “o mal do outro”.
No Brasil, tal como a sífilis, a alusão a portadores da doença e às tentati-
vas de cura, tanto quanto aos significados da moléstia, estiveram presentes desde
o século XVI (SANTOS FILHO, 1991). Nas terras que formaram o Paraná, temos
informações sobre a doença inclusive em narrativas feitas por viajantes europeus
dos Oitocentos. Em 1820, o botânico francês Auguste de Saint-Hilaire afirmou que
nos Campos Gerais (ou Segundo Planalto) as doenças venéreas eram muito comuns
e que na vila de Curitiba, localizada a cerca de sessenta quilômetros daquela área,
a sífilis seria uma das principais causas do pequeno número de longevos (SAINT-

5 A maioria dos estudos historiográficos aponta a América como lugar original da sífilis, apesar
de alguns estudiosos afirmarem a origem europeia da doença, defendendo que casos da mo-
léstia eram confundidos com lepra já na Idade Média e que a evidência da sífilis na Europa, a
partir do século XV, teria acontecido devido ao incremento da circulação humana e a multi-
plicação de contatos sexuais.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
344 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

HILAIRE, [1851] 1964, p.14 e 118). O tempo passou, a vila tornou-se cidade e, em
1853, capital paranaense e a sífilis continuou a vitimar a população.
Nos anos seguintes, entre o final do século XIX e as primeiras décadas dos
Novecentos, coincidindo com a chegada de grandes contingentes de imigrantes e do
crescimento urbano de várias áreas do país, a sífilis passaria a ser considerada uma
ameaça para a saúde nacional (MARQUES, 2004, p.270). Nessa época, o Paraná vi-
veu o boom dos engenhos de erva-mate, uma atividade que se desenvolvia próxima
de áreas urbanas pelo tipo de práticas que demandava, contribuindo para o cresci-
mento de vilas e cidades e para o dinamismo comercial e crescimento de oficinas
e fábricas notadamente na região de Curitiba (DE BONI, 1998; PEREIRA,1996).
Durante esse período a Capital paranaense passou de 24.453 habitantes em 1890,
para 60.800 pessoas em 1910 e 78.986 moradores em 1920 (DE BONI, 1998, p.11;
MARTINS, 1941, p.102). Mas esse crescimento também acarretou problemas rela-
cionados à manutenção ou restauração da saúde da população de algumas áreas ur-
banas, principalmente de Curitiba – falta de água e de esgoto encanados, edificações
precárias, insalubridade urbana, doenças epidêmicas; nesse cenário a sífilis, que cem
anos antes havia chamado a atenção de Saint-Hilaire, tornou-se uma das preocupa-
ções centrais das autoridades médico-governamentais paranaenses.
No Paraná dos anos 1920, como em outras partes do Brasil, o combate à sífi-
lis teve um alvo privilegiado: as meretrizes. Segundo Engel (1989, p. 91), a ideia da
prostituição como “fonte de propagação da sífilis” não era nova e circulava no país,
pelo menos, desde os debates da Academia Imperial de Medicina. Segundo essa his-
toriadora, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro as primeiras teses nas quais
prostituição e sífilis foram conjugadas como objeto central de análise datariam de
1845: a Dissertação sobre a prostituição, em particular na cidade do Rio de Janeiro, de
Herculano A. L. Cunha, e Algumas reflexões sobre a cópula, onanismo e prostituição,
cujo autor era Miguel A.H de Sá (ENGEL, 1989, p.56). Conforme escreveu Rago
(1991, p.134), na cidade de São Paulo dos anos 1870, o combate às doenças venéreas
e, em especial, à sífilis, reforçou a iniciativa que os médicos tomaram para “conhecer
minuciosamente a vida cotidiana das meretrizes e o interior dos bordéis”.
Nessa época, nacional e internacionalmente, duas propostas dividiam os mé-
dicos em relação à prostituição: a da regulamentação – fichar, controlar, punir – e
a da abolição – supervisionar, educar e extinguir (RAGO, 1991; CARRARA, 1996).
Entretanto, no início do século XX as discussões e ações desses dois grupos giravam
Histórias de Doenças 345

em torno do controle da sífilis (RAGO, 1991, 134) e suas ações, por vezes, pareciam
combinar aspectos destas duas propostas.6
Mas, divididos entre a tese da sífilis hereditária e a da sífilis congênita e entre
as ações regulamentaristas e as abolicionistas, os médicos encontraram um ponto
em comum, a partir do qual todos deveriam agir: a ideia que a sífilis era um fator
de degeneração, que ganhou força especialmente a partir da virada para o século
XX7. Em 1923, o médico Oscar Fontenelle, que discordava da tese da sífilis ser uma
moléstia hereditária, foi enfático ao afirmar que, embora não fosse efetivamente he-
reditária a sífilis era uma doença herdada e, portanto, um “poderoso fator de dege-
neração da raça” (Archivos Paranaenses de Medicina, out.-nov.1923, p.112).
Como escreveu Silveira (2005), no final do século XIX a perspectiva (funda-
da no darwinismo) de que a espécie humana estava sujeita as leis da evolução bioló-
gica contribuiria para a construção de outra, a de que era necessário cuidar do de-
senvolvimento da espécie e orientá-la para o progresso. A eugenia concorreria para
legitimar e estimular esta proposição. No Brasil, ideias eugênicas ganharam ampla
divulgação a partir de meados dos anos 1910, notadamente a tese que “práticas de
melhoramento”, como hábitos de higiene e saneamento, poderiam concorrer para o
aperfeiçoamento da espécie humana8, paralelamente, o Movimento Sanitarista ga-

6 Desde a virada para o século XX, também havia aqueles que defendiam uma posição neorre-
gulamentarista (CARRARA, 1996, p.172; CORBIN, 1982, p.362), ou seja, a regulamentação
para a preservação da moral, dos bons costumes e, também, para combater doenças venéreas,
mas combinada com ações educativas, uma prática abolicionista. Nas fontes citadas neste
capítulo não foram localizados médicos que se autodenominaram neorregulamentaristas.
7 A ideia de uma debilitação progressiva da espécie a partir de um tipo primitivo humano ide-
al, debilitação que seria transmitida hereditariamente, foi defendida pelo psiquiatra franco-
-austríaco Bénédict Augustin Morel (1809-1873) em sua “teoria da degeneração”, publicada
na primeira metade do século XIX. Para Morel, assim como as características ideais seriam
transmitidas, também poderiam ser adquiridas influências nocivas de origem patológica ou
social que passariam de pais para filhos. Segundo Corbin (1981, p.131), “a sífilis foi pratica-
mente ignorada” no trabalho de Morel e foi pouco debatida como fator de degeneração da
espécie por outros estudiosos, situação que mudou no final dos Oitocentos.
8 A eugenia “positiva”, com ações preventivas e práticas de melhoramento, era definida pela
atenção com a procriação sadia e o combate a fatores ambientais (disgênicos) que compro-
meteriam o desenvolvimento saudável do ser humano; a “eugenia negativa” tinha como meta
impedir a procriação de doentes e assim concorrer para a melhora da raça – seus partidários
defendiam a esterilização em vários casos e o rígido controle matrimonial. (MARQUES, 1994;
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
346 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

nharia dimensão nacional, e muitas vezes suas ideais foram combinadas com propo-
sições eugênicas. Os sanitaristas tinham como objetivo a educação sanitária da po-
pulação e a elaboração e realização de políticas de saúde pública para o país (LIMA;
HOCHMAN, 1996; MARQUES, 1994; MOTA, 2003; STEPAN, 2004).
Os debates e a mobilização sociopolítica que o Movimento Sanitarista provo-
cou foram decisivos para a organização, durante a presidência de Epitácio Pessoa, do
Departamento Nacional de Saúde Pública, com vistas a reformar os serviços sanitários
ofertados no país, o que incluiu o combate às doenças venéreas, entre elas a sífilis.

Entre a força policial e as ações educativas: o combate à sífilis no


tempo dos Dispensários

O Departamento Nacional de Saúde Pública foi criado pelo Decreto nº 3987,


de 2 de janeiro de 1920, com a incumbência de promover a centralização dos ser-
viços de saneamento por parte da União, reduzindo a autonomia dos estados na
tomada das decisões no âmbito da saúde pública (HOCHMAN, 1998). Como parte
de sua estrutura, o artigo 5º deste Decreto estabelecia: “Anexos à Secretaria Geral
e diretamente subordinados ao diretor do Departamento funcionarão os seguintes
serviços: […] e) serviço de profilaxia contra a lepra e contra as doenças venéreas em
todo o país” (BRASIL, 1920a, p.437). O Decreto criou a Inspetoria de Profilaxia da
Lepra e das Doenças Venéreas para orientar medidas sanitárias de combate a estas
enfermidades, o que incluiu o controle dos serviços de propaganda e educação sa-
nitária no país (COSTA, 2007). Nos estados, conforme artigo 134 do Regulamento
do Departamento, esse serviço de profilaxia ficaria a cargo do Serviço de Profilaxia
Rural, quando este já existisse, ou de Comissões de Saneamento Rural, que ficaram
subordinados à Inspetoria (BRASIL, 1920b, art.134, p.273)9.

STEPAN, 2004). No Brasil, a eugenia “positiva” ganhou ênfase, entretanto a “eugenia negati-
va” teve vários adeptos e não foram poucos os debates sobre o tema.
9 Segundo o regulamento do Departamento publicado em setembro de 1920, os inspetores e
subinspetores sanitários rurais da Diretoria de Saneamento e Profilaxia Rural e os ajudan-
tes médicos da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas eram nomeados pelo
Diretor geral do Departamento Nacional de Saúde Pública (BRASIL, 1920b, art.70, s.p.). Em
dezembro de 1923, uma nova versão do regulamento foi publicada, com algumas alterações,
prevendo que em caso de não haver Serviço de Profilaxia Rural no local e havendo créditos
para a despesa, seria nomeado um chefe de serviço diretamente subordinado a Inspetoria
(BRASIL, 1924, art.122, s.p.).
Histórias de Doenças 347

No Paraná, o Serviço de Profilaxia Rural foi criado pelo Decreto 13.001, de 1º


de maio de 1918, e entre suas funções estava o combate à sífilis em todo o território
paranaense (KUMMER, 2007).10 Para sua direção foi nomeado o médico Heráclides
César de Souza Araújo, formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro,
membro do Instituto Oswaldo Cruz, reconhecido por suas pesquisas sobre lepra
e como sifilógrafo. O paranaense Souza Araújo seria mantido no cargo por Carlos
Chagas depois da criação do Departamento Nacional de Saúde Pública.
Como órgão impresso o Serviço de Profilaxia Rural do estado contaria com
a revista Archivos Paranaenses de Medicina, que circulou entre os anos 1920-1924, e
que foi, neste período, porta-voz de discussões e práticas médicas voltadas ao com-
bate da sífilis no estado. O fundador e redator-chefe até 1921 foi Souza Araújo, auxi-
liado pelo secretário-geral doutor Eduardo Leal Ferreira. A partir desta data existiria
uma “comissão de redação”.
Entre as ações desenvolvidas pelo Serviço de Profilaxia Rural, e alardeada na
revista, estava a instalação de um Dispensário Antivenéreo em Curitiba, autorizada
pelo Decreto estadual nº 779, de 8 de outubro de 1918, portanto, antes da criação do
Departamento Nacional de Saúde Pública. Mas o Dispensário, inaugurado em 1919,
começou a funcionar somente 1920 e ficou conhecido também como Dispensário
Central (Archivos Paranaenses de Medicina, jun. 1920, p. 48).
No relato de 1920 sobre o Serviço de Profilaxia Rural, o doutor Souza Araújo,
fazendo uma espécie de balanço de sua gestão, preocupou-se em ressaltar que no
início de 1918 os custos deste Serviço, conforme constava no acordo governamental,
teriam sido divididos e pagos em parcelas iguais pelo governo federal e pelo governo
estadual. Mas, a partir de meados daquele ano e em 1919, as verbas teriam atrasa-
do e Heráclides de Souza Araújo apelou emergencialmente para empréstimos, de
particular e do Banco Francês e Italiano, entretanto a solução do problema, que in-
cluiu saldar a dívida, demoraria meses. (Archivos Paranaenses de Medicina, fev.1921,
p.320-321). Todavia, em meados de 1920 o Dispensário Antivenéreo da Curitiba
estava funcionando e foram instalados outros dois, um em Ponta Grossa, a cerca de
noventa quilômetros da Capital, e outro na cidade portuária de Paranaguá. Talvez a
nova organização do Departamento Nacional de Saúde Pública e, em nível nacional,

10 O Decreto federal nº 13.055 de 1918 havia determinado a organização do Serviço de


Profilaxia Rural nos estados e o governo central brasileiro realizava parcerias com governos
estaduais para viabilizar sua efetivação. O Paraná foi um dos primeiros a realizar este acordo
(HOCHMAN, 1998, p. 119-121; 183-205).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
348 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

um incremento na economia do pós Primeira Guerra Mundial, estivessem come-


çando a reverter em benefício de ações para a saúde.
Em Curitiba e Paranaguá, as instalações dos Dispensários foram obras do
Serviço de Profilaxia Rural do Paraná. Em Ponta Grossa, no entanto, o Dispensário
foi criado a partir de um acordo entre a prefeitura, médicos da cidade e a polícia
estadual, algo que evidenciava a atenção com o principal público alvo no combate à
sífilis: as meretrizes. Este Dispensário foi depois vinculado ao Serviço de Profilaxia
Rural do Paraná, a partir de uma solicitação feita ao doutor Souza Araújo pelo pre-
feito da cidade. Em 1923, seriam instalados Dispensários nas cidades de Castro e Rio
Negro e alguns anos depois em União da Vitória e em Antonina – apenas a última
localidade ficava no litoral (Archivos Paranaenses de Medicina, nov.1920, p.257; abr.
1923, p.456-457; PARANÁ, 1928, p.301).
Entretanto, quando o número de Dispensários aumentou no Paraná
Heráclides de Souza Araújo não mais chefiava o Serviço de Profilaxia Rural no esta-
do: em 1921 o doutor Souza Araújo pediu transferência e foi para o Pará (MILÉO,
2012, p.18). Seu substituto foi o médico carioca João de Barros Barreto, formado
pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, sanitarista que, conforme desta-
cou Hochman (2005, p. 131), foi um dos principais responsáveis pela implantação
de reformas na área da saúde no país a partir de 1937, durante a gestão Gustavo
Capanema no Ministério da Educação e Saúde.
Vários motivos podem ter concorrido para a saída de Souza Araújo da dire-
ção do Serviço de Profilaxia Rural do Paraná, entre eles as divergências com alguns
de seus pares sobre o combate à sífilis entre as meretrizes.11 Mas em artigo sobre a
transferência desse médico, publicado na Archivos Paranaenses de Medicina, é pos-
sível também perceber indícios de apoio de colegas paranaenses à perspectiva regu-
lamentarista defendida por Souza Araújo. O texto, que não foi assinado, afirmava:
“Graças a energia, atividade e patriotismo ele saiu deixando instalado no seu estado
grande cópia de serviços de alta relevância médico-social [entre eles] o Dispensário

11 Outro caso que pode ter concorrido para a transferência de Souza Araújo foi o atrito que o
médico teve com o doutor Victor Ferreira do Amaral, diretor do Serviço Sanitário do Estado
e da Faculdade de Medicina do Paraná. Souza Araújo, funcionário do Departamento de Saúde
Pública, denunciou infrações referentes ao exercício da medicina no estado ao Departamento,
entre as quais a autorização da atuação de médicos estrangeiros no Paraná sem a devida re-
validação de diplomas por parte do Serviço Sanitário do Estado (Archivos Paranaenses de
Medicina, abr. 1921, p.388).
Histórias de Doenças 349

Antissifilítico (com regulamentação higiênica do meretrício)” (Archivos Paranaenses


de Medicina, abr. 1921, p.388).
Cerca de um ano depois, Souza Araújo defendeu teses e procedimentos re-
gulamentaristas em pronunciamento realizado na Sociedade de Medicina e Cirurgia
do Rio de Janeiro. Afirmando só deixar “de ser regulamentarista quando o nosso
país tornar obrigatório a notificação geral e o tratamento de todos os casos de doen-
ças venéreas”, Souza Araújo declarou:

a fiscalização sanitária do meretrício em relação ao combate às doenças venére-


as, tem o mesmo valor que a desratização na profilaxia da peste. Quando digo
que ela tem o mesmo valor, isso significa que ela é uma medida soberana, não
que sejam comparáveis objetivamente: matam-se os ratos e cuida-se de tornar
as meretrizes inofensivas a Saúde Pública por meio de uma rigorosa vigilância
sanitária (Archivos Paranaenses de Medicina, nov.-dez. 1922, p. 260 e 276).

Em sua empreitada pela regulamentação do meretrício, quando agiu no


Paraná Souza Araújo contou com o apoio de Affonso Camargo, então presidente
do estado, que respaldava suas escolhas, tais como a intervenção policial nos ca-
sos julgados necessários pelo médico. Para Camargo, “digno de nota [era] o auxílio
prestado pela polícia civil desta capital [Curitiba] à campanha de profilaxia contra a
sífilis, a cargo da Diretoria da Profilaxia Rural” (PARANÁ, 1920, p.19).
Durante a gestão Souza Araújo, concomitante a instalação do Dispensário
Central foi instituída a fiscalização higiênica do meretrício, que teve como desdo-
bramento o serviço sistemático de exame e tratamento das prostitutas, realizado
a partir das ações do Gabinete de Identificação e Estatística, do Departamento de
Medicina Legal e Anexos, do Paraná. Em parceria com a polícia, os médicos reali-
zavam a identificação sistemática dessas mulheres, acompanhada de exames e trata-
mentos. Atendimento específico às meretrizes, em parceria com a polícia estadual,
também se daria nas cidades de Ponta Grossa e Paranaguá.
No relatório do Serviço de Profilaxia Rural do Paraná de 1920 foi divulga-
do um recenseamento que apontava a existência de 96 casas de prostituição em
Curitiba. Nessas casas, o trabalho da polícia seria identificar as mulheres no exercí-
cio do meretrício, promover o preenchimento de fichas – fornecidas pelo Gabinete
de Identificação – para o posterior encaminhamento das prostitutas, com suas res-
pectivas fichas, ao Dispensário Antivenéreo (Archivos Paranaenses de Medicina, mar.
1921, p.367).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
350 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

A partir de 1920 o preenchimento de tais prontuários ocorreria de ma-


neira sistemática, bem como a intervenção policial no envio das meretrizes para o
Dispensário de Curitiba. Nessas fichas estavam discriminados: o nome da meretriz,
o número de seu prontuário, o nome dos pais, a nacionalidade, a naturalidade, o
grau de instrução, o estado civil, as cores de olhos, cabelos e pele; também conti-
nham informações sobre a altura de cada mulher e características singulares como
cicatrizes e manchas. Além disso, detalhavam aspectos da vida de cada uma delas,
destacando se a mulher era solteira, casada, viúva ou desquitada, se tinha abando-
nado o lar e há quanto tempo dedicava-se ao meretrício. Caso a mulher fosse casada
ou desquitada o nome do (ex)marido constava no prontuário e neste também eram
arrolados os antecedentes criminais, as contravenções ou os possíveis delitos prati-
cados pela meretriz. (PRONTUÁRIOS, 1920-1940).
Segundo o relatório do Serviço de Profilaxia Rural do Paraná, em 1920 a polí-
cia teria identificado 284 meretrizes em Curitiba.12 Considerando as fichas policiais e
as observações anexadas pelos médicos, algumas delas tornaram-se prostitutas com,
aproximadamente, 13 anos e eram poucas as que ultrapassavam os 39 anos. Quanto
à nacionalidade, 248 eram brasileiras e 36 estrangeiras. No entanto, os doutores afir-
mavam que, embora nascidas no Brasil, a maior parte das mulheres teria origem
familiar polonesa ou alemã (Archivos Paranaenses de Medicina, mar. 1921, p.367-
368). Mas, nos prontuários do Gabinete de Identificação preenchidos pelos policiais,
muitas eram as prostitutas que se diziam francesas, algo que parecia agregar valor à
prostituta naqueles tempos – uma herança do período imperial (PRONTUÁRIOS,
1920-1940; LEITE, 1984, p.115-119). Entretanto, mesmo que muitas dessas mulhe-
res mentissem sobre seu nome, ascendência ou nacionalidade, era grande a proba-
bilidade de um número expressivo delas ser de origem europeia, repetindo algo que
ocorria no período em localidades de significativa presença de imigrantes, como Rio
de Janeiro e São Paulo (KUSHNIR, 1996; RAGO, 1991).
Ainda segundo o relatório das autoridades médicas paranaenses de 1920,
as meretrizes curitibanas eram filhas de lavradores e operários, empregados pú-

12 O relatório do Serviço de Profilaxia Rural sobre 1920, afirmava que o recenseamento realizado
pela polícia de Curitiba apontava a existência de 96 casas de prostituição na cidade, “sendo
algumas pensões, muitas casas de uma ou duas meretrizes e várias outras de rendez-vous […]”
(Archivos Paranaenses de Medicina, mar. 1921, p.366-367). Considerando o número de casas
e pensões de meretrício na capital paranaense, é muito provável que várias meretrizes não
tenham sido fichadas.
Histórias de Doenças 351

blicos e “fazendeiros”, oficiais de polícia e, uma delas, de um sargento do exército


nacional. Nesse relatório constam informações sobre grau de instrução de apenas
192 das meretrizes fichadas: “Das brasileiras inscritas sabem ler 83, analfabetas 89;
das estrangeiras inscritas sabem ler 10, analfabetas 10 […]” (Archivos Paranaenses
de Medicina, mar. 1921, p.367). Difícil calcular o que o total de alfabetizadas re-
presentava no universo feminino de mulheres curitibanas ou no da população em
geral, mas, para simples comparação, no ano de 1921 o número de matricula-
dos, de ambos os sexos, nas diversas escolas de Curitiba, não ultrapassou os 10%
da população, que era de cerca de 79.000 habitantes (CONCEIÇÃO, 2012, p.16;
MARTINS, 1941, p.102).
Apesar da diversidade cultural, de cores de pele e cabelo, todas elas partilha-
vam, por diferentes motivos e histórias de vida, a prática da prostituição. E por tal
decisão, ou imposição, independente da idade, nacionalidade ou filiação, elas seriam
convocadas a se apresentarem no Dispensário Antivenéreo, onde seriam submetidas a
exames ginecológicos semanais. Após o exame ginecológico, dependendo do parecer
médico, a mulher teria suas secreções vaginais e sangue coletados para identificação de
possíveis infecções, dentre elas a sífilis (Archivos Paranaenses de Medicina, mar. 1921,
p.367). Confirmada a sífilis com o Teste de Wasserman ou, em alguns casos, o Teste
de Kahn, a prostituta poderia ser tratada com medicamentos derivados do arsênico
– Salvarsan (ou 606), Neosalvarsan (ou 914), Sulfoxylat e Silbersalvarsan, com prepa-
rados à base de mercúrio ou, em menor escala, com bismuto.
Nos Dispensário os doutores decidiam se cada uma das mulheres poderia ou
não receber a carteirinha de meretriz. A criação de tal documento, além do objetivo
de sinalizar o estado saudável da mulher que o recebesse, também concorria para a
regulamentação do exercício do meretrício já que as mulheres que não o recebessem
estavam interditadas para exercer tal atividade (Archivos Paranaenses de Medicina,
mar. 1921, p.367).
Considerando as informações divulgadas no relatório de 1920, no Dispensário
curitibano eram 284 as prostitutas inscritas e que deveriam ser examinadas sema-
nalmente, mas deste total foram registradas informações médicas relativas a 232
prostitutas: quando da conclusão do relatório, 53 não estavam com sífilis e 179 fo-
ram consideradas sifilíticas – ficariam em tratamento e interditadas.13 Quanto ao

13 O relatório de 1920, também informava: 11 mulheres foram dispensadas do exame semanal


por motivo de gravidez; 2 porque notificaram o abandono do meretrício; 3 mulheres falece-
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
352 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

número de não sifilíticas, dados do relatório sobre os primeiros meses do ano indi-
cavam 60 livres da moléstia, portanto 7 meretrizes teriam ficado sifilíticas (ou ma-
nifestado novamente a doença) durante o ano de 1920; o que nos remete à questão
da eficiência das preleções e prescrições que eram ministradas às prostitutas inscri-
tas, isso para não mencionar a dificuldade, debatida entre os próprios médicos, de
diagnóstico da sífilis. Nessas 179 meretrizes que tiveram o resultado positivo de seu
Teste de Wasserman ou apresentaram lesões consideradas sifilíticas, foram aplicadas
205 injeções de Neosalvarsan, 21 de Silbersalvarsan e 162 de mercúrio – muitas ve-
zes dois medicamentos eram ministrados conjuntamente (Archivos Paranaenses de
Medicina, mar. 1921, p.367).
Mas nem todas as prostitutas que eram interditadas paravam de exercer o
meretrício. Em outubro de 1920 a revista Archivos Paranaenses de Medicina publi-
cava informação sobre 4 meretrizes curitibanas multadas por “infração ao regula-
mento”, pois teriam descumprido a normativa médica de afastar-se da prática do
meretrício durante o período de tratamento. Quantas outras teriam burlado a puni-
ção? (Archivos Paranaenses de Medicina, out. 1920, p.187). Segundo Marques (2004,
p.286), em Curitiba várias meretrizes que se negavam a interromper seu trabalho
teriam ido “parar no xilindró”. E algumas dessas mulheres reagiam. É o que pode-
mos deduzir a partir da informação que circulou em Curitiba, em março de 1921,
sobre uma prostituta que, meses antes, teria impetrado habeas corpus na época que
o doutor Souza Araújo dirigia o Dispensário (Archivos Paranaenses de Medicina,
mar.1921, p. 379).
Entretanto, se para as meretrizes essas imposições do Dispensário deveriam
ser constrangedoras e opressivas, para alguns médicos essa forma regulamenta-
rista era pouco eficiente, uma perspectiva que vinha ao encontro das diretrizes
da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas, do Departamento
Nacional de Saúde Pública, que difundiam a tendência internacional abolicionis-
ta.14 Em 1923 o doutor João de Barros Barreto, diretor do Serviço de Profilaxia

ram. Sobre 12 prostitutas nenhum dado foi informado. (Archivos Paranaenses de Medicina,
mar.1921, p.367).
14 A prática regulamentarista de fichar prostitutas, indiretamente, chancelava o meretrício ao
liberar ou interditar as meretrizes, o que era entendido por seus defensores como um mal
menor, necessário enquanto a prostituição não fosse eliminada; entretanto, muitos médicos
discordavam: cuidar da saúde de meretrizes sim, mas não era plausível um médico avalizar,
mesmo de forma indireta, a prática da prostituição através da liberação ou interdição dessas
Histórias de Doenças 353

Rural do Paraná, manifestou sua opinião contrária às ações de seu antecessor.


Segundo Barros Barreto,

Não me era possível, todavia manter um dispensário Antissifilítico [sic] em


Curitiba a intimar, baseado em artigos do regulamento, mulheres públicas a
se virem deixar examinar uma vez por semana por um médico, que a inter-
ditava se com qualquer doença venérea, em uma caderneta médico-policial,
com retrato ou a declarava, com sua assinatura, sem lesões, dando uma garan-
tia oficial, evidentemente falsa aos incautos, durante os sete dias subsequentes
(Archivos Paranaenses de Medicina, dez. 1923, p.410).

Meses antes, em relato enviado à diretoria nacional do Serviço de Profilaxia


Rural, Barros Barreto já havia afirmado: “o movimento dos dispensários [do
Paraná] se intensifica, sem que haja da parte do serviço a menor ação coercitiva,
e isso de acordo com o nosso regulamento sanitário”. Segundo ele, mesmo sem as
ações coercitivas, tais como as multas que, como destacava o médico, não estavam
previstas no Regulamento Sanitário do Departamento Nacional de Saúde Pública
de setembro de 1920, a frequência das mulheres ao Dispensário curitibano su-
bira de 46 em agosto, para 188 em dezembro de 1921. (Archivos Paranaenses de
Medicina, nov.-dez.1921, p. 285).
É possível que a nova administração, contrária a prática regulamentarista, não
tenha pautado suas ações pelas fichas de meretrizes que existiam no Dispensário, en-
tretanto, também não seria descabido supor que algumas dessas meretrizes inscritas,
que meses antes compareciam compulsoriamente ao local, percebendo bons resulta-
dos com as instruções e tratamentos recebidos estivessem, pouco a pouco, voltando
a frequentar o Dispensário.
Retomando as considerações de 1923, João de Barros Barreto afirmava que,
como chefe do Serviço de Profilaxia Rural do Paraná, utilizaria a educação e a pro-
paganda como estratégias para convencer as meretrizes a procurarem o Dispensário
o que, na perspectiva dos abolicionistas, seria suficiente:

Por outros meios, sem a coerção direta por parte do serviço, que desses recur-
sos evidentemente antirregulamentares não podia [antes da atual administra-

mulheres. Segundo Carrara (1996, p.172), pelo menos desde a realização do 2ª Conferência
Internacional de Bruxelas sobre Dermatologia e Sifilografia, em 1902, as ideias abolicionistas
teriam prevalecido entre os membros especialistas da comunidade científica.
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354 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

ção] se valer, continuamos a ver, em breve, o dispensário […] frequentado de


novo pelo meretrício, a que foi fornecida uma caderneta, mas de tratamento;
cuidamos de fazê-lo intensivamente e, por uma propaganda, que encetamos
pela imprensa, por conferências, pela distribuição de impressos, pela afixa-
ção de cartazes, temos procurado divulgar os perigos das doenças venéreas e,
sobretudo, como trata-las precoce e racionalmente (Archivos Paranaenses de
Medicina, dez.1923, p.414).

Entretanto, o investimento em educação e propaganda tornava-se ainda mais


necessário quando o foco da atenção médica eram outros grupos sociais. Nos anos
1920, outro alvo foi explicitamente incorporado ao combate à sífilis pelo serviço de
profilaxia: homens jovens (12 a 18 anos) e adultos.
Defendendo a educação como meio de combate à doença e afirmando que
o meretrício não existiria sem aqueles que o procurassem ou que com ele corro-
borassem de diversas maneiras, a Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças
Venéreas, do Departamento Nacional de Saúde Pública, capitaneou em todo o país
a difusão de práticas educativas no sentido de educar os homens, o que reverberaria
nas mulheres “de bem”, que eram suas namoradas ou esposas.
Na empreitada de educação preventiva da população, a ampliação nos alvos
de combate à sífilis se deu, em especial, por dois movimentos. O primeiro: aque-
le que deslocou, lentamente, a doença da esfera do privado, do individual para o
público, tornando-a um problema de Estado, que passou a intervir em função da
necessidade de contê-la (MARQUES, 2004, p.276). E o segundo, indissociável do
anterior: a ideia de que os governantes não conseguiriam combater a doença sem
ações de todos os indivíduos neste sentido. Em 1923 a Revista de Medicina, órgão
impresso do Centro Acadêmico da Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo,
publicou artigo do ex-aluno Felício Cintra do Prado afirmando que “[…] a profila-
xia dos males venéreos [tem] que ocorrer por conta própria do indivíduo, que teria
de medir todos os seus atos nos assuntos que se referem à vida sexual” (Revista de
Medicina, jun-jul.1923, p.25).15
O combate, mas, principalmente, a prevenção era um dever e também um
direito de todos. Portar a sífilis, concorrer para sua disseminação, seria colaborar

15 Nos anos 1910 este Centro Acadêmico organizou e manteve, com particulares e eventualmen-
te auxilio do governo estadual, um Ambulatório Antissifilítico com dois postos na cidade de
São Paulo.
Histórias de Doenças 355

para a decadência de si e de todos, para o abastardamento da raça, a inferioridade da


espécie e a ruína da pátria. Nessa perspectiva, ações mais notáveis seriam destinadas
especialmente à promoção da educação dos homens, porque esses eram considera-
dos suspeitos em potencial, os que procuravam as prostitutas e assim os responsáveis
por transmitirem à suas esposas as moléstias venéreas.
Convictos que os homens mantinham relações sexuais antes e/ou fora do ca-
samento, especialmente com prostitutas, a educação de combate à sífilis voltada ao
público masculino procuraria convencê-los dos perigos de frequentar o meretrício,
apontado como o lugar de propagação do “perigo venéreo” por excelência (RAGO,
1991; ENGEL, 1989). Nessa perspectiva, o médico e eugenista Renato Kehl afir-
mava que a prevenção da sífilis e de outras moléstias venéreas dependeria de uma
educação que mudasse uma prática arraigada, a de frequentar prostíbulos, e que
os homens passassem a “[…] fugir das prostitutas e, em geral, das relações sexuais
extraconjugais” (KEHL apud SOUZA, 2006, p.109).
A preocupação em transformar uma prática costumeira de homens sexual-
mente ativos permeou as campanhas educativas promovidas nacionalmente pela
Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas. Nesse sentido o Brasil es-
tava em sintonia com vários outros países, entre eles Alemanha, Argentina, Estados
Unidos, Inglaterra, França e Uruguai, que implementavam programas de educação
para os homens com o objetivo de promover a continência sexual antes do casamen-
to e a fidelidade conjugal (COMTE, 2013; PARASCANDOLA, 2008).
No Brasil, cartazes e materiais voltados à prevenção das doenças venére-
as, destinados ao público masculino foram disponibilizados pelo Departamento
Nacional de Saúde Pública e as propagandas também buscaram difundir a ideia
da continência sexual como meio para combater sífilis. Como estratégia para o
convencimento da população, recursos retóricos foram utilizados para tentar des-
construir o mito de virilidade e da exacerbada necessidade sexual masculina; algo
que, com peculiaridades, também aconteceu em outros países da América e da
Europa (COMTE, 2007, 192).
No Paraná, além dos próprios Dispensários, muitas fábricas, associações
operárias e esportivas, estabelecimentos industriais, colégios, hotéis e pensões se-
riam espaços onde os médicos fariam circular os impressos, “em linguagem acessí-
vel”, enviados pela Inspetoria. Argumentando em defesa da ampla divulgação deste
material nesses estabelecimentos, doutor Luiz Medeiros, porta-voz do Serviço de
Profilaxia Rural do Paraná ao qual os Dispensários Antivenéreos eram anexos, afir-
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mou que vários dos diretores dessas coletividades, que receberam os impressos de
propaganda, responderam “com aplausos” e também “envia[n]do vários doentes ao
Dispensário” (Archivos Paranaenses de Medicina, jun. 1923, p. 53, 58-59). Medeiros
era médico do Dispensário Antivenéreo de Curitiba.
Entre os médicos, as conferências para os leigos foram especialmente acla-
madas nos relatórios do Serviço de Profilaxia Rural do Paraná, como “uma das me-
lhores instituições […] na obra ingente do combate aos morbus que deterioram o
sangue e as energias da raça”. Elas foram realizadas em escolas, teatros e outros espa-
ços coletivos (Archivos Paranaenses de Medicina, jun. 1923, p.59). Os doutores ainda
utilizaram uma invenção moderna: o cinema. As propagandas em diapositivos, no
intervalo dos filmes em Curitiba e no interior do Paraná, também representaram
importante meio de propaganda (Archivos Paranaenses de Medicina, jul. 1923, p.93).
Essa preocupação com a saúde dos homens esteve diretamente relacionada
ao papel masculino como o grande responsável pela manutenção de um casamento
sadio e, assim, pelo nascimento de crianças saudáveis. (MARQUES, 1994; MATOS,
2004). Tal noção extrapolou a academia e circulou nacionalmente, podendo ser
detectada inclusive entre militantes operários nesse período (BERTUCCI, 1997,
p.125-168).
Todavia, educar para que os homens praticassem a continência e a fidelidade,
bem como para que os indivíduos procurassem o médico, assumissem a possibili-
dade de serem portadores da sífilis e aceitassem tratamento, não seria uma tarefa
simples. Entre os homens não era incomum a negação “de um passado venéreo” –
como diziam os doutores – que pudesse contribuir para a suspeita de sífilis. Alguns
negavam veementemente a possibilidade de ter sífilis. Outros, apesar de admitirem
o “passado venéreo” também não procuravam atendimento médico, mesmo com
sintomas que poderiam significar manifestações da sífilis ou outras moléstias.
No Paraná eram vários os casos de pacientes que negavam ter sífilis ou que
conviviam com a moléstia durante anos sem tratamento algum. Um caso: J.M, bran-
co, 23 anos, casado, residente em Curitiba. O rapaz procurou atendimento médico
com lesões na pele dos braços e atrofia muscular, mas “nega antecedentes”. Outro
caso: J.P, um imigrante italiano, não negou a possibilidade de “um passado venéreo”,
mas teria convivido com as manifestações na pele durante nove anos antes de pro-
curar tratamento médico. O homem teria afirmado “viver em promiscuidade com
seus pais, mulher e filhos por não saber ser contagioso seu mal [e que] mantém sem-
Histórias de Doenças 357

pre relações sexuais com sua mulher” (Archivos Paranaenses de Medicina, mar.1921,
p.396-397).
Nesse contexto, a revista Archivos Paranaenses de Medicina, publicação “lar-
gamente distribuída no estado e fora dele”, foi um singular exemplo de impresso mé-
dico com a pretensão também de atingir um público mais amplo, leigo, notadamente
com uma Seção de Propaganda e de Educação Higiênica. (Archivos Paranaenses de
Medicina, jan. 1922, p.282 e 374). O primeiro texto publicado nessa Seção, em janei-
ro de 1922, foi o da conferência “A educação sexual em face do problema venéreo”,
de autoria do doutor Luiz Medeiros. Esta conferência foi realizada meses antes, em
novembro de 1921, para os alunos do sexo masculino do Ginásio Paranaense e seu
conteúdo foi transcrito e distribuído, como folheto, em várias escolas do Paraná,
com a finalidade de difundir a importância da educação dos jovens para evitar a
propagação da gonorreia e, principalmente, da sífilis, doença “[com] consequências
ainda mais tremendas” que teria assumido “um papel salientíssimo em patologia”
(Archivos Paranaenses de Medicina, jan. 1922, p. 325-340).16
Nesse período, conjugada com ações educativas, os médicos paranaenses li-
gados a Inspetoria divulgaram os meios para a realização da “desinfecção individual”
ou “preventiva” para tentar barrar uma possível contaminação por doenças venéreas.
Mas, segundo João de Barros Barreto, “a desinfecção preventiva é aconselhável, des-
de que se diga que a continência pré-matrimonial é o meio de prevenção”. (Archivos
Paranaenses de Medicina, dez. 1923, p.362).
Essa prática preventiva consistia na higienização do órgão genital após o coi-
to com meretriz, seguida da aplicação da pomada Metchnikoff, feita de calomelano
(cloreto de mercúrio), vaselina e lanolina (LEITNER et al, 2007,p.14). Seguindo de-
terminação das autoridades sanitárias brasileiras, os órgãos de saúde instalados nos
estados deveriam incentivar a “desinfecção” com a distribuição gratuita dos “neces-

16 No Paraná dos anos 1920, muitos médicos eram favoráveis à educação sexual voltada para ho-
mens e mulheres como meio de combater a sífilis. (Archivos Paranaenses de Medicina, mar. 1921,
p.375; jun. 1923, p.17, entre outros). Alguns, no entanto, se posicionavam em defesa da obriga-
toriedade da educação sexual nas escolas públicas do país, o que efetivamente causava muita
polêmica (MUNHOZ, 1929). Nacionalmente, entre os debates e propostas sobre o tema que
aconteciam nesse período, pode ser destacado o Projeto de Lei nº 235-A que o médico Oscar
Fontenelle apresentou à Câmara dos Deputados federal em 1928. O projeto tinha como prin-
cipal objetivo a instituição, através de conferências, da educação sexual obrigatória nas escolas
públicas. Entretanto, a proposta de Fontenelle não foi aprovada e a educação sexual ainda ficaria,
pelo menos formalmente, fora das escolas brasileiras (BRASIL, 08/10/1928, p.4014).
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sários individuais” – cartuchos com algodão, sabão e pomada – e, paralelamente,


prover a instalação de Postos de Desinfecção Individual em locais que deveriam ser
de acesso fácil e discreto, com funcionamento noturno e perto das zonas de me-
retrício. Esses Postos, segundo Barros Barreto, não deveriam ser utilizados apenas
por homens, mas também pelas meretrizes que deveriam ser induzidas à prática de
desinfecção. (Archivos Paranaenses de Medicina, ago.1923, p.229).
Com o intuito de disseminar a prática da “desinfecção”, os membros do Serviço
de Profilaxia Rural do Paraná espalhavam cartazes pelas cidades, especialmente
nas casas ou pensões de meretrizes. Os cartazes, fornecidos pelo Departamento
Nacional de Saúde Pública, eram colocados nesses locais obrigatoriamente, por de-
terminação do Chefe de Polícia. O conteúdo dos mesmos, reproduzidos na Archivos
Paranaenses de Medicina, tinha como objetivo educar os homens para que utilizas-
sem os “necessários individuais” e informar os locais onde funcionavam os Postos de
Desinfecção Individual, informação também divulgada em jornais diários (Archivos
Paranaenses de Medicina, dez. 1923, p.360; Diário da Tarde, 03/06/1923, p.1, en-
tre outros). Os “necessários individuais” eram distribuídos gratuitamente pelos
Dispensários Antivenéreos paranaenses e poderiam também ser encontrados e uti-
lizados nos Postos de Desinfecção Individual – o de Curitiba funcionava no próprio
Dispensário durante o período noturno.
Mas, se a adesão à continência sexual era pequena, o uso do “necessário in-
dividual” também não era amplo. Criar nos homens tal hábito não era fácil, pois
entrar em um Posto de Desinfecção ou ser flagrado carregando esses cartuchos era
quase uma declaração de culpa pela degeneração da raça naqueles dias de intensa
campanha antissifilítica. Como relatou Barros Barreto, no I Congresso Brasileiro de
Higiene, no Paraná o Posto de Desinfecção instalado em Curitiba ainda contava com
“frequência bem pequena”. (ANAIS, 1923, p. 229).

Considerações Finais

No Paraná dos anos 1920, quando os Dispensários Antivenéreos passaram


a capitanear o combate à sífilis, dois modelos de ação que tinham como alvos pri-
vilegiados as meretrizes e também os homens, marcaram as práticas médicas: o da
regulamentação e o da abolição. Tais perspectivas tiveram em Heráclides Souza
Araújo, regulamentarista, e João de Barros Barreto, abolicionista, os seus principais
representantes no estado. Entretanto, apesar da diferença evidente quando a ques-
tão era o exame e tratamento compulsório de prostitutas fichadas pela polícia, não
Histórias de Doenças 359

eram poucos os médicos paranaenses que deixavam de se posicionar efetivamente


sobre este tema, atentos muito mais aos resultados “práticos” das ações embasadas
em cada uma das teses médico-científicas. Em 1923 Luiz Medeiros, que atuou como
porta-voz do Serviço de Profilaxia Rural e era médico do Dispensário de Curitiba,
afirmou que para o combate à sífilis era preciso agir por meio da “ação inteligente
e enérgica, de um encarregado do serviço [de profilaxia]” (Archivos Paranaenses de
Medicina, jan.1922, p.334), uma consideração genérica que poderia tanto ser de um
regulamentarista, quanto de um abolicionista.
Assim, a postura antirregulamentarista de Barros Barreto, substituto de
Souza Araújo na chefia do Serviço de Profilaxia Rural do Paraná, não significou ne-
cessariamente o abandono, por muitos médicos paranaenses, da defesa da coerção
como meio para realizar o tratamento contra a sífilis nas meretrizes. E, embora di-
versos médicos, assim como Barros Barreto, fossem contrários a regulamentação do
meretrício e a favor da intensificação das ações educativas voltadas, em especial, aos
homens (jovens e adultos), isso não se traduziu forçosamente em posicionamentos
pelo fim do uso de medidas compulsórias. Afinal, o próprio Barros Barreto defendeu
no I Congresso Brasileiro de Higiene que, pelo menos entre os militares – obrigados
a obedecer – a desinfecção individual deveria se tornar uma prática compulsória
(ANAIS, 1923, p.227-229). Além disso, mesmo que a regulamentação do meretrício,
aos moldes de Souza Araújo, não tenha continuado de forma evidente após a ida
deste médico para o Pará, as discussões sobre o uso ou não da coerção no combate à
sífilis permaneceriam até o final dos anos 1930, em meio a rearticulação dos serviços
de saúde no Paraná, com a instalação dos Centros de Saúde.

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A união faz a força: a Associação Médica de
Goiás e os desafios da medicina no sertão
(1950-1960)
Tamara Rangel Vieira1

(…) Do ponto de vista geral, Brasília representou o grande progresso que o


estado e toda região centro-oeste brasileiro sentiu com a sua construção. (…)
Os médicos que inicialmente viviam no interior, aqui era interior, tinha[m]
uma medicina prática, pouco científica, mais empírica ou mais prática. Na me-
dida [em] que Brasília se consolidava como capital e a população aumentava,
as exigências da própria população obrigava[m] os médicos a melhorar a sua
capacitação profissional. Com isso os médicos se especializaram. Muitos per-
maneceram, outros se especializaram. De que forma? Buscando conhecimento
em outros lugares, outros centros médicos mais avançados, trazendo para essa
região os conhecimentos mais atualizados (…) (RASSI, 2006, fita 04/lado A)

D urante boa parte de sua história, Goiás foi identificado como sertão.
Reconhecido mais pelas ideias negativas que esta categoria encerra do que pe-
las positivas, relacionadas à originalidade da cultura sertaneja que refletiria o Brasil
autêntico (LIMA, 1999; SENA, 2003), entre as imagens negativas que constituem
o sertão figuram a decadência, o atraso, o isolamento, o abandono, a estagnação, a
pobreza e a doença – ideias que aparecem em variados tipos de fontes relacionados
à Goiás até pelo menos meados do século XX. Tais ideias acabaram sendo reforça-
das pela historiografia local, ajudando a perpetuar uma imagem pessimista sobre a
região (VIEIRA, 2012). A história do projeto de transferência da capital federal para
o Planalto Central Goiano é um bom exemplo de como estes diversos sentidos fo-

1 Pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz e Professora do Programa de Pós-Graduação em


História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz – COC/Fiocruz.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
364 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

ram incorporados pelo imaginário social ao longo do tempo, sendo mobilizados de


diferentes maneiras e por diferentes atores nos debates entre os que eram favoráveis
e contrários ao empreendimento (VIEIRA, 2007; 2009).
O trecho acima, parte do depoimento concedido pelo médico goiano Luiz
Rassi, nos leva a pensar que teria sido somente a partir da construção de Brasília, en-
tre os anos de 1956 e 1960, que a medicina praticada no interior, especificamente na
região do Brasil Central, conseguiu desenvolver-se. As dificuldades enfrentadas por
aqueles que optavam pela carreira nos sertões do país teriam impedido que os profis-
sionais ali atuantes, os médicos entre eles, se aprimorassem – cenário que teria muda-
do profundamente, segundo sugere Rassi, a partir da transferência da capital federal.
Tal percepção se coaduna com as análises dos cientistas sociais que, entre os
anos 40 e 60, se ocuparam dos temas da modernização e do que viam como resis-
tências culturais à mudança (WILLEMS, 1944; ARAÚJO, 1979; FERNANDES, 1979).
Embalados pelas discussões em torno da importância da saúde como um fator de pro-
gresso/desenvolvimento, decorrente do clima de ‘otimismo sanitário’2 do pós-guerra,
estes cientistas sociais posicionaram-se como “tradutores” entre os profissionais de
saúde e as populações que habitavam estes sertões. Percebidos como o local da per-
sistência do passado, da tradição e do atraso, estes cientistas orientavam a intervenção
estatal com o objetivo de integrar tais comunidades ao processo de mudança social
mais amplo vivido pelo país (LIMA, 1999; 2009; CHOR & LIMA, 2009).
Florestan Fernandes foi um dos autores que se ocupou desta questão. Em
Um retrato do Brasil (1979), trabalho publicado na forma de artigos no Jornal de São
Paulo em 1946, Fernandes reflete sobre a dicotomia litoral e sertão. Tomando por
base o relato da viagem realizada nos anos 30 pelo médico Júlio Paternostro (1945)
ao vale do rio Tocantins – um dos principais rios de Goiás – a conclusão a que che-
gou o sociólogo foi a de que as diferenças existentes entre estes dois pólos – sertão e
litoral – se deviam muito mais a uma distância temporal do que espacial. Tal distan-
ciamento explicaria a resistência à modernização por conta daqueles que habitavam
os sertões do Brasil, inclusive os médicos ali residentes – ponto que chamou minha

2 Os avanços médicos e científicos mostraram-se grandes aliados dos países envolvidos no con-
fronto mundial, uma vez que minimizaram as perdas de grandes contingentes de soldados
decorrentes de algumas doenças enfrentadas nos campos de batalha. Os inseticidas (como o
DDT), as vacinas (como a da febre amarela) e os antibióticos (como a penicilina) foram alguns
dos produtos utilizados durante este período de conflito e que impactaram positivamente so-
bre toda a sociedade, gerando o clima de ‘otimismo sanitário’ dos anos 50 (GARRETT, 1995).
Histórias de Doenças 365

atenção. Segundo ele, uma vez submetidos ao isolamento e à escassez das trocas cul-
turais com centros mais dinâmicos, os médicos teriam dificuldade de se manterem
atualizados e seriam afetados pelo que ele chamou de “demora cultural”, culminando
na deserção da profissão e opção por outras atividades tais como criação de gado,
lavoura ou comércio.
Esta conclusão de Fernandes, no entanto, contrasta com a trajetória dos mé-
dicos que atuavam em Goiás nos anos 50, ou seja, com o fato de que ali se constituiu
um grupo médico importante, que embora alocado em Goiás, falava em nome de
todo o Brasil Central. Um grupo que se notabilizaria pelas pesquisas em torno das
doenças regionais, tornando-se centro de referência para o estudo de algumas delas,
e que chama a atenção pelas redes estabelecidas com centros de ciência importantes
no Brasil e no mundo. Além disso, possuía uma revista de circulação nacional e in-
ternacional e preparava-se, já nos anos 60, para concretizar o plano de fundação de
uma faculdade médica – ápice de sua institucionalização (VIEIRA, 2012). E vale re-
gistrar que tudo isso não aconteceu apenas depois da construção de Brasília, em ge-
ral apontada como ‘redentora dos sertões goianos’. Tendo em vista que a construção
da nova capital federal apenas conferiu maior visibilidade às atividades destes médi-
cos, ela não pode ser considerada a força responsável pelo início daquele processo.
Ao contrário das imagens de atraso, resistência cultural e passividade que
acompanhariam aqueles que optassem por uma carreira nos sertões do Brasil, o que
observa-se é que os médicos de Goiás atuavam intensamente, envolviam-se com
questões que abrangiam todo o país e buscavam manter-se atualizados profissio-
nalmente. Assim, mesmo quando se deparavam com dificuldades, segundo eles,
inerentes à prática médica no interior, como a falta de infra-estrutura, pobreza da
população ou vida social menos intensa (NOTICIÁRIO, 1960), agiam de forma a
superá-las. Deste modo, apesar das impressões positivas do médico Luiz Rassi sobre
o papel que a transferência da capital exerceu sobre o desenvolvimento médico na
região do Brasil Central, vale destacar que ele não foi determinante deste processo
(VIEIRA, 2012).
É certo que a nova capital federal representou um grande motor para o desen-
volvimento do interior do país em vários sentidos, inclusive para a medicina goiana.
No entanto, é possível observar a conformação de uma comunidade médica regio-
nal bastante ativa e afinada com preceitos médico-científicos comuns aos grandes
centros antes mesmo do início da construção de Brasília. Neste sentido, meu ob-
jetivo com este trabalho é evidenciar que a medicina praticada em Goiás já vinha
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
366 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

vivenciando seu processo de institucionalização desde o final dos anos 30, fruto das
mudanças provocadas pela construção de Goiânia,3 e mais nitidamente a partir dos
anos 40, quando idealizou-se a criação de uma associação médica local.
Configurando-se como uma etapa importante no processo de organização
da comunidade médica da região nos anos de 1950, a Associação Médica de Goiás
(AMG) ganhou uma abrangência maior envolvendo todo o estado a partir da insta-
lação de sedes regionais em diferentes municípios. Como projeto que levou a uma
maior aproximação entre os médicos atuantes no território goiano e à melhoria qua-
litativa da medicina ali praticada, meu objetivo neste capítulo é compreender as con-
dições de surgimento desta sociedade e sua relação com os demais órgãos sanitários
de Goiás, já que se deve a esta entidade algumas medidas no campo da saúde pública
local. Tendo em vista que a história desta associação médica é indissociável da traje-
tória do médico Luiz Rassi, proponho também acompanhar parte da biografia deste
que foi seu primeiro presidente e que se constituiu como verdadeira liderança dos
médicos goianos, capaz de consolidar a associação como instituição, de fato, repre-
sentativa dos mesmos.

Associação Médica de Goiás – breve histórico

Da ideia de um pequeno grupo de médicos que participou do Congresso


Médico do Triângulo Mineiro em Uberaba, e da vontade de trazer para Goiás uma
de suas edições, originou-se a Associação Médica de Goiás. Fundada em 1950, teve
sua primeira diretoria empossada em 1951. Seu primeiro presidente foi Luiz Rassi,
médico que estava entre os participantes daquele evento e que teve papel importante
à frente da nova instituição em seus primeiros anos de vida. Reeleito duas vezes
como presidente da associação, durante os quatro primeiros anos de sua gestão a so-
ciedade médica se consolidou como espaço legítimo de reunião dos médicos atuan-
tes em Goiás, sendo reconhecida como sua porta-voz junto a entidades médicas de
cunho nacional, como a Associação Médica Brasileira, e junto ao governo em suas
diferentes esferas. Inicialmente configurada como um projeto dos médicos atuantes
em Goiânia, aos poucos ela foi ganhando maior abrangência e envolvendo também
os médicos de cidades do interior, onde foram fundadas suas sedes regionais.

3 As obras de construção de Goiânia iniciaram-se em 1933, mas seu batismo cultural, evento que
marcou a fundação da nova capital do estado, aconteceu apenas em 1942 (FREITAS, 1999).
Histórias de Doenças 367

Pra começar a entender esse processo de organização dos médicos em Goiás,


temos que remontar ao processo de consolidação de Goiânia como nova capital do
Estado entre o final dos anos 30 e início dos anos 40. Atraindo inicialmente médicos
recém-formados que apostaram nas perspectivas profissionais abertas com a nova
cidade, não contavam inicialmente com nenhum órgão oficial que os agregasse. Tais
órgãos associativos já eram comuns no país e se encontravam plenamente difundi-
dos pelo território nacional desde o século XIX (TEIXEIRA, 2007). No entanto, em
Goiás ele ainda não era uma realidade e só o seria na década de 1950.
A motivação para a criação de uma associação médica em Goiás decorreu da
necessidade de organizar os médicos do estado para receber o III Congresso Médico
do Brasil Central e V do Triângulo Mineiro em 1951. Bem pouco conhecidos no âm-
bito acadêmico, estes conclaves regionais evidenciaram não apenas a possibilidade
de estreitamento de laços oferecida por eventos desta natureza, mas significaram o
marco inicial da conformação de uma comunidade médica regional mais organiza-
da. Estes congressos proporcionaram maior visibilidade tanto às enfermidades que
mais acometiam os habitantes do interior, quanto ao trabalho realizado pelos médi-
cos goianos, ganhando um peso importante na projeção de seus trabalhos além dos
limites do Brasil Central (VIEIRA, 2015a).
Dados os limites deste texto, não vou me deter muito nesse tema, porém deixo
registrado por meio do gráfico a seguir o peso que adquiriram estes eventos ao longo
do tempo, reunindo médicos provenientes de vários estados (não só do interior),
alguns estrangeiros e representantes de órgãos de saúde federais. Neste sentido, se
afiguravam também como boa oportunidade de cobrar às autoridades medidas em
prol do combate às doenças que mais acometiam os habitantes do interior. Mesmo
sem informações acerca de todas as edições, foi possível fazer a projeção abaixo. A
partir dela percebe-se o crescimento considerável destes congressos: de cerca de 40
pessoas em sua primeira edição, saltamos para mais de 400 em 1958, quando acon-
teceu o segundo congresso médico sediado em Goiânia:
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
368 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Gráfico 1: Congressos Médicos do Brasil Central (1947-1958)

Fonte: III CMBCTM – ligeiros dados históricos, 1951, p.06-08; III CMBCTM – notas do importante
conclave científico em Goiânia, 1951, p. 08-23; NOTICIÁRIO. 1956, p. 217-223; NOTICIÁRIO. 1958,
p. 263-295.

Estes eventos começaram em 1947 e se estenderam até 1965. As primei-


ras edições aconteceram em cidades mineiras – daí o nome inicial de Congressos
Médicos do Triângulo Mineiro (embora os goianos estivessem presentes desde sua
primeira edição). A mudança do nome, com a inclusão de Brasil Central, aconteceu
já em 1949, por decisão em assembleia ao final do congresso de Araxá. Nestes even-
tos, várias enfermidades eram consideradas, mas nota-se uma preocupação especial
com as patologias que mais assolavam os habitantes daquelas zonas, principalmente
o megaesôfago, a doença de Chagas, o bócio endêmico e a hanseníase. Em algumas
destas, os médicos que atuavam no interior tornaram-se especialistas pelo fato de
estarem em contato com os enfermos no dia-a-dia de seus consultórios. Foi no con-
gresso de Uberaba que a decisão de formalizar uma sociedade médica foi tomada
porque a expectativa era que os goianos sediassem o congresso do ano seguinte. Em
28 de novembro de 1950 pouco mais de uma dúzia destes profissionais se reuniu
na sede do Laboratório Mazda, em Goiânia, para fundar a AMG. No ano seguinte,
Goiânia sediava seu primeiro congresso médico.
Histórias de Doenças 369

No arquivo disponibilizado para consulta na sede da associação, as primeiras


atas de suas reuniões não foram localizadas. No entanto, a reprodução da ata funda-
cional da AMG em livro comemorativo de seus 60 anos permite que seja observado
um aspecto interessante: a preocupação em fundar uma sociedade “inteiramente
afastada da influência oficial” (MORAIS, 2009, p. 14). Esta preocupação, registrada
nesta primeira reunião, chama a atenção e merece ser ressaltada, especialmente pela
oportunidade que oferece de se abordar este tipo de associação historicamente. Se
na época aqui considerada constituir uma sociedade científica nestes moldes, ou
seja, sem a ingerência direta do Estado, já era algo bastante comum, nas primeiras
instituições deste tipo que surgiram na América Latina entre os séculos XVIII e
XIX, os interesses privados e estatais não eram tão facilmente discerníveis. Embora
a maioria destas agremiações tivesse caráter privado, o Estado desempenhou um
papel importante em sua manutenção e funcionamento, afinal, ao mesmo tempo em
que se apresentavam como locais por excelência da prática científica, convertiam-se
também em órgãos assessores dos governos, colocando-se a serviço da moderniza-
ção de seus países (CAPEL, 1992; FERREIRA, MAIO, AZEVEDO, 1998).
Apesar da efemeridade da maioria destas sociedades científicas no contexto
latino-americano, os historiadores ressaltam seu importante papel no processo de
institucionalização das ciências (FERREIRA, MAIO, AZEVEDO, 1998; TEIXEIRA,
2007). No entanto, à medida que o lugar preferencial de produção científica foi se
transferindo para o ambiente das universidades e institutos de pesquisa no final do
século XIX, estas instituições tornaram-se cada vez mais especializadas e profissio-
nais (CAPEL, 1992). Segundo Teixeira, nas últimas décadas deste século as socieda-
des científicas se multiplicaram pelo Brasil. Deste conjunto, destacam-se as socieda-
des médicas que, segundo o autor, teriam especificidades que as singularizariam em
relação às demais. Tais especificidades se referem justamente ao importante papel
que desempenharam na organização profissional da categoria médica, na defesa de
seus interesses corporativos e na sua atuação como consultores do Estado para as-
suntos relacionados à saúde pública (TEIXEIRA, 2007).
Abordadas segundo um contexto bastante específico, no qual o conhecimen-
to médico ainda buscava se afirmar como saber oficial perante o Estado e a socieda-
de, é possível notar algumas semelhanças entre o perfil destas sociedades descritas
por Teixeira e outras que nasceram já no século XX sob a égide da medicina como
conhecimento plenamente estabelecido e consolidado oficialmente. É o caso da
Associação Médica de Goiás, que tal como suas congêneres do final do século XIX,
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
370 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

ainda carregava as bandeiras da ‘união e defesa da classe médica’ como prioridades.


Embora o cenário para o atendimento destas demandas tivesse se alterado profun-
damente desde então e conformasse outro repertório de questões a ser enfrentado,
muitas vezes é possível se deparar com embates que seriam facilmente reproduzíveis
no passado, como, por exemplo, a questão medicina x curandeirismo.
Embora não tenha sido possível localizar os estatutos originais da Associação
Médica de Goiás, nos quais as finalidades da instituição estariam claramente indi-
cadas, por meio das fontes coletadas foi possível delinear alguns objetivos bastante
representativos das atividades que a associação encetaria desde seus primórdios.
Assim, além de seu comprometimento com o aperfeiçoamento da medicina prati-
cada na região, a associação buscou desde o início agregar em torno de si todos os
médicos atuantes no Estado e se engajou em projetos que visavam melhorar os ní-
veis da saúde pública. Para alcançar êxito nestas tarefas, a AMG organizou jornadas
médicas e passou a instituir nas cidades do interior seções regionais, o que ampliava
sua legitimidade e representatividade. Além disso, se envolveu diretamente em cam-
panhas de educação sanitária, debateu junto à Secretaria de Saúde do Estado medi-
das de prevenção a determinadas doenças e cobrou das autoridades a nível federal
mais atenção para problemas específicos de Goiás.
Atuando intensamente em vários âmbitos, a diretoria da AMG contaria com
o auxílio de algumas comissões. Inicialmente foram criadas apenas a de finanças e a
de defesa da classe. A elas se somariam já no biênio 1953/1954 as comissões de saúde
pública, científica e de ensino médico, cujas especialidades já indicam os principais
temas que mobilizavam os médicos goianos em suas reuniões. A princípio a AMG
não contava com sede própria – assunto que estaria em pauta ao longo de todo o
período aqui abordado, que vai desde a fundação da AMG em 1950 até a fundação
da Faculdade de Medicina de Goiás em 1960. Até a inauguração de sua sede, as
reuniões se realizaram inicialmente nas dependências do Laboratório Mazda e logo
depois no auditório da Secretaria de Saúde do Estado. Geralmente eram semanais e
noturnas, e, através das assinaturas nas atas, é possível constatar que pelo menos até
1955 a quantidade de associados presentes às reuniões nunca ultrapassou o núme-
ro de 20. Muitos e diversificados eram os temas abordados nestas ocasiões, sendo
possível reuni-los em três categorias-chave: união e defesa dos médicos, aperfeiçoa-
mento médico-científico e saúde pública. Estes temas serão considerados com mais
vagar adiante.
Histórias de Doenças 371

Luiz Rassi – liderança à frente da AMG

Luiz Rassi foi o primeiro presidente da AMG e foi dele a ideia de associar os
médicos do estado. Descendente de família libanesa, que se estabeleceu em Goiás nos
anos 20 do século passado, Luiz Rassi nasceu em Cuba em 1920 e chegou ao Brasil
quando tinha apenas quatro anos de idade. Se formou na Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro em 1942 e em sua turma estavam também outros goianos, que viriam
a ser seus colegas de profissão em Goiás. Após sua formatura em 1947, Rassi não co-
gitou permanecer no Rio, apesar das propostas que recebeu. Dirigiu-se para Goiânia
para trabalhar ao lado do irmão no Serviço Médico-Cirúrgico (que mais tarde se
transformaria em uma casa de saúde) e lá fixou residência deste então.
À frente de um grupo que apenas ensaiava uma organização mais sistemática,
Rassi teve papel de peso na condição de uma espécie de líder de um projeto que,
com o passar do tempo, foi se mostrando bastante exitoso. Escolhido como primeiro
presidente da associação em 1951, foi reeleito para o biênio seguinte e permaneceu
no cargo durante os quatro primeiros anos de vida desta sociedade médica, voltan-
do a assumi-lo em 1957. O fato de ter estado no comando desta instituição desde
seus primórdios, em um período que pode ser considerado de amadurecimento e
consolidação da AMG como órgão representativo dos médicos goianos, confere a
Rassi um papel de destaque nesta análise. A fala de Eduardo Jacobson, médico que o
sucederia na direção da sociedade em 1959, sintetiza a importância de Rassi à frente
da AMG:

(…) Ao receber esta Presidência, caros colegas, permitam-me parodiar um


estadista brasileiro: “ao Luiz Rassi, não se substitui – sucede”. Sim, porque
este colega, por duas vezes Presidente da AMG, deixou seus períodos mar-
cados por indeléveis realizações que nos esforçaremos por ombrear. Dois
Congressos Médicos que por si só responderiam por estas gestões foram
acrescidos de realizações que tornam o seu nome eternamente ligado à his-
tória da AMG. Estes dois Congressos, de repercussão nacional, dos quais re-
sultaram medidas governamentais que vieram beneficiar a população do país,
são frutos da iniciativa e espírito de organização do nosso ex-presidente (…)
(NOTICIÁRIO, 1959, p. 70).

Durante sua gestão inicial, a referida entidade promoveu e se engajou em uma


série de atividades marcantes para a história da medicina local. Além da realização
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
372 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

de dois congressos médicos de grande relevância para Goiás, ao longo dos quatro
anos em que Rassi atuou como presidente da AMG foram também lançadas as bases
para a constituição da Faculdade de Medicina de Goiás (VIEIRA, 2015b). Atuando
como liderança de peso, Rassi contribuiu para que a AMG se firmasse localmente e
obtivesse reconhecimento interno, adquirindo autonomia para falar em nome de to-
dos os médicos do Estado. Conferindo organicidade e coesão aos médicos goianos,
a associação também obteve reconhecimento externo e alcançou êxito ao vocalizar
algumas de suas demandas junto a entidades médicas de cunho nacional, como a
Associação Médica Brasileira, e junto ao governo em suas diferentes esferas.
Além de se constituir como órgão de defesa dos médicos no estado, função
que exercia, por exemplo, ao pleitear um valor mais justo para os honorários mé-
dicos e fiscalizar o exercício da medicina, os médicos também atuavam junto às
instituições de saúde pública, das quais muitos deles eram funcionários. Entre os
principais objetivos daquela entidade estavam não apenas a melhora qualitativa da
medicina praticada no estado, mas também a melhoria dos níveis de saúde da popu-
lação. Inicialmente configurada como um projeto dos médicos atuantes em Goiânia,
aos poucos ela foi ganhando uma abrangência maior e envolvendo também os mé-
dicos de cidades do interior, onde foram fundadas suas sedes regionais:

Não podemos deixar de tecer comentários e fazer os melhores elogios ao espí-


rito associativo que anima, atualmente, todos os colegas de profissão, na luta
por ideais sadios, no desejo elogiável de unificar cada vez mais a poderosa
classe médica. Dias de fastígio estarão reservados para nós, estejamos cer-
tos! As dificuldades encontradas no início da caminhada serão consideradas
motivo de estímulo, para que os esforços se redobrem e, possamos, afinal,
atingir um amadurecimento eficaz e produtivo. E, ao fazermos essa referên-
cia – autêntica profissão de fé – apelamos com veemência para os ilustrados
colegas do interior goiano, no sentido de que eles se integrem totalmente em
nosso seio, emprestando seus valiosos concursos à Associação, de vez que,
cada adesão, de um colega representará mais um elemento ativo de progresso,
concorrendo para o maior prestígio de nossa agremiação no conceito das de-
mais filiadas à Associação Médica Brasileira
(DISCURSOS PROFERIDOS DURANTE O CONGRESSO, 1951, p. 31-32).

Sempre que possível, como no trecho acima, Rassi reforçava a importância


de os médicos goianos se vincularem oficialmente à sua entidade. Embora todos
Histórias de Doenças 373

tenham se empenhado nesta causa, foi ele o que mais se manifestou a respeito até
o término de seu último mandato. Sua atuação à frente da sociedade nos seus pri-
meiros anos de vida, conduzindo seus rumos e definindo as prioridades da nova
instituição, fez a diferença. Entre as estratégias de que lançou mão para levar o nome
da associação a diferentes regiões do estado destaco a realização de excursões e a
organização de jornadas médicas – estas últimas, o ponto de partida para a fundação
de seções regionais da entidade.
As excursões, ao que parece, foram iniciativas mais pontuais que se carac-
terizaram por viagens encetadas por alguns membros com a intenção de divulgar
a associação e conseguir novos sócios. Já as jornadas médicas configuraram um
evento mais amplo e bem organizado, programadas com mais antecedência, no qual
tomavam parte inclusive os cidadãos locais. Conformando uma excelente oportu-
nidade de os médicos da capital estreitarem os laços com seus colegas atuantes em
cidades mais distantes, por meio das jornadas médicas também o conhecimento
médico-científico circulava. Na medida em que alguns membros da associação eram
chamados a participar apresentando trabalhos sobre temas que lhes fossem mais
convenientes, isto contribuía para que seus pares atuantes em cidades mais distantes
se atualizassem, melhorando o padrão da medicina praticada no estado.
Uma vez instaladas, cada regional possuía um calendário próprio de even-
tos e reuniões científicas que contava também com seminários, visita de persona-
gens ilustres do meio médico nacional e cursos de atualização – tudo divulgado
por meio da Revista Goiana de Medicina, a publicação oficial da AMG. Isso permite
concluir pela autonomia de que desfrutaram em relação à sede em Goiânia, o que
não implicava em isolamento e indiferença para com os problemas que mobilizavam
a Associação. A cooperação e interação entre as seções regionais são bastante visí-
veis. Seus membros circulavam indistintamente participando de reuniões científicas
e seminários.
Sobre este tema, vale destacar uma certa liturgia que existia na fundação des-
sas sedes regionais e que demonstra tal integração. A solenidade de instalação da
seção regional de Anápolis, registrada em ata, permite que se acompanhe em de-
talhes seu funcionamento. Tendo sido a primeira a ser fundada, em 1951, ao que
tudo indica, sua instalação foi fruto de um requerimento assinado por nove colegas
daquela cidade (ATA DA 33ª SESSÃO – 18/09/1951), os quais demandaram por
escrito uma regional. Sua fundação foi registrada na ata da 5ª sessão extraordinária
da AMG, datada de 16/09/1951, mas a posse definitiva de sua diretoria só aconteceu
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374 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

um ano depois. Na ocasião estavam presentes não apenas os médicos de Anápolis


e de Goiânia, mas também juízes, promotores públicos, autoridades municipais e
representantes da imprensa. Na ocasião discursaram Luiz Rassi, para o qual “os co-
legas já começavam a compreender a força da união”, Anapolino de Faria, que na po-
sição de presidente provisório dessa regional teceu um histórico sobre sua fundação
e congratulou-se com seus colegas pela escolha de James Fanstone4 como presidente
definitivo, Paulo Rosa, médico de Anápolis, e o próprio Fanstone, que tomava pos-
se naquela oportunidade (ATA DA SESSÃO EXTRAORDINÁRIA DE POSSE DA
DIRETORIA DEFINITIVA DA SEÇÃO REGIONAL DE ANÁPOLIS – 06/09/1952).
Em seguida aos discursos, teve início a programação científica da solenida-
de, aberta ao público, que contou com a apresentação de trabalhos por parte de
Rodovalho Mendes Domenici falando sobre “O valor do dispensário na luta contra
a lepra” e Francisco Ludovico de Almeida Neto abordando o tema do câncer do colo
e a importância do diagnóstico precoce. Após a apresentação destes trabalhos foi
exibido o filme “Zé: o descuidado que focalizou a luta contra a verminose na zona
rural”. Depois a sessão foi encerrada para o público, mas continuou para os médicos
e Wilson Mendonça apresentou seu trabalho “puramente científico”. Em seguida os
médicos debateram alguns temas importantes como o valor dos honorários pagos
pelos exames realizados para companhias de seguros. Finalizando os trabalhos deste
dia, Almeida Neto propôs que os colegas de Anápolis os visitassem “levando para
Goiânia as suas experiências no campo vasto da medicina tão bem representada nos
colegas dessa florescente cidade, estreitando cada vez mais nossos laços de amizade e
elevação cultural e científico” e “como já fosse 1 e meia da manhã, foram os trabalhos
encerrados” (ATA DA SESSÃO EXTRAORDINÁRIA DE POSSE DA DIRETORIA
DEFINITIVA DA SEÇÃO REGIONAL DE ANÁPOLIS – 06/09/1952).

4 Vale a pena destacar a trajetória peculiar deste médico. James Fanstone era filho de missio-
nários ingleses que se estabeleceram temporariamente no Recife no final do século XIX. Três
meses após seu nascimento a família voltou para a Inglaterra, onde Fanstone se formaria mé-
dico pela Universidade de Londres. Em 1922 chegou ao Brasil e permaneceu por dois anos
entre São Paulo e Belo Horizonte preparando uma tese que o permitiria atuar como médico
no país. Em 1924 se instalou definitivamente em Anápolis, onde começou a clinicar deste en-
tão. Em 1927 sua clínica, que até então havia funcionado em sua própria casa, transformou-se
no Hospital Evangélico Goiano – o primeiro hospital particular de Goiás. Em 1934 fundou a
Escola de Enfermagem Florence Nigthingale – terceira do país (Cf. GODINHO, 2005).
Histórias de Doenças 375

Como foi possível perceber, a instalação de uma seção regional envolvia não
apenas os médicos, mas também a sociedade. Assim, o ritual de sua fundação ultra-
passava o campo da mera formalidade, na qual os membros da diretoria empossa-
da discursavam e confraternizavam com seus pares. Configurava-se também como
oportunidade de difundir algumas informações importantes sobre saúde e higiene,
ficando nítido o compromisso assumido pela AMG com questões ligadas à saúde
pública. Nestas ocasiões, questões importantes para os médicos que diziam respeito
diretamente a seus interesses eram debatidas, e estimulava-se a reflexão e o trabalho
científico na medida em que os colegas de Goiânia proferiam palestras sobre temas
relevantes. Em algumas ocasiões, médicos de fora do estado também eram convida-
dos a tomar parte nestes eventos.

AMG em ação: aperfeiçoamento médico, saúde pública e


fortalecimento do grupo

Como mencionado anteriormente, podemos observar a atuação da AMG em


diferentes frentes, seja visando o aperfeiçoamento médico, a saúde pública ou o for-
talecimento do grupo. A seguir, discorro sobre alguns aspectos relacionados a cada
uma destas frentes, a título de exemplificação do papel importante assumido por
esta instituição em Goiás. Neste sentido, inicio pelas estratégias de que lançou mão a
AMG para “elevar o padrão” da medicina que se praticava no estado, entre as quais
estavam as conferências e as reuniões científicas. Para as primeiras eram geralmente
convidadas personalidades reconhecidas como especialistas em determinadas áreas;
já nas reuniões científicas os membros da associação se inscreviam para falar aos
seus próprios pares. À comissão científica da AMG estava reservada a função de
estimular estas reuniões, animando seus colegas a se pronunciarem periodicamente.
Nas sessões realizadas semanalmente no auditório da Secretaria de Saúde do Estado,
os médicos podiam se inscrever livremente para tratar de assunto de sua especiali-
dade e interesse.
O convite para que ilustres personagens do meio médico nacional viessem
a Goiás, especialmente a Goiânia, para proferir conferências, dar cursos de atuali-
zação ou fazer alguma demonstração de procedimento cirúrgico, também era fun-
ção daquela comissão auxiliar da AMG. As seções regionais também contaram com
visitas importantes neste sentido. Dentro do recorte temporal selecionado, muitos
foram os médicos que viajaram a Goiás com este intuito, a maioria proveniente de
São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte (entre eles Nelson de Souza Campos,
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
376 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

José Scherman, Liberato Di Dio, Edmundo Vasconcelos e Franz Ingelfinger).5 Em


geral apresentavam-se em sessões extraordinárias, dedicadas somente à conferência.
Algumas delas foram subvencionadas por laboratórios farmacêuticos, os quais cola-
boravam cobrindo os custos de passagem e hospedagem.
A Revista Goiana de Medicina também se constituiu como um instrumento
de aperfeiçoamento da prática médica local na medida em que fazia circular o co-
nhecimento entre os médicos atuantes em várias regiões do país. Nela eram também
publicadas notícias de congressos, seminários e cursos que aconteciam no Brasil e
no exterior, o que mostra que os goianos estavam a par do que acontecia no mundo.
Vale ressaltar, no entanto, que sua importância vai além da possibilidade de atualizar
os médicos do interior sobre os últimos procedimentos médicos em voga ou de dar
a conhecer as principais questões de saúde pública que mobilizavam seus colegas em
diferentes regiões do país. Essa publicação viabilizou também a constituição de uma
biblioteca, aberta a todos os médicos da região, a partir dos periódicos que recebia
em caráter de permuta (Vieira, 2012).

5 Nelson de Souza Campos, renomado hansenólogo, ex-diretor do Serviço Nacional da Lepra


em São Paulo e membro da Organização Mundial da Saúde; José Schermann, endocrinolo-
gista fundador da Sociedade de Endocrinologia e Metabologia do Rio de Janeiro; Liberato Di
Dio, catedrático do Departamento de Anatomia da Faculdade de Medicina da Universidade
de Minas Gerais; Edmundo Vasconcelos, Catedrático de Clínica Cirúrgica da Faculdade de
Medicina da Universidade de São Paulo; Franz Ingelfinger, gastroenterologista alemão que
atuava no Evans Memorial Hospital em Boston (EUA)
Histórias de Doenças 377

Capa do primeiro número da Revista Goiana de Medicina: volume 1 (1) – janeiro-março, 1955.

Desde as primeiras reuniões da AMG, percebe-se também seu compromisso


com assuntos referentes à saúde pública. Várias foram as questões que preocuparam
os goianos neste âmbito, alguns mais importantes e graves, outros mais pontuais,
referidos a problemas do cotidiano, entre eles: o excesso de moscas em Goiânia, o
controle de indigentes, o combate a surtos de gripe e a educação sanitária. Doença
de Chagas, hanseníase e tuberculose estavam entre os temas mais graves que mobi-
lizaram os membros da associação (VIEIRA, 2012). A tuberculose, por exemplo, era
endêmica no Estado, que só contava com um dispensário para dar conta de todos
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
378 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

os casos. Peixoto da Silveira ao assumir o cargo de secretário da saúde em 1951,


apontou uma série de dificuldades enfrentadas por aquela instituição, que estava
praticamente abandonada. Sendo assim, tomou uma série de medidas para que o
Dispensário para Tuberculosos do Centro Médico de Goiânia funcionasse minima-
mente dentro de padrões aceitáveis. Ao longo de seu primeiro ano no cargo, teria
conseguido dotar o referido dispensário de todo pessoal auxiliar, material e instru-
mental necessário, conseguindo já ao final deste ano dados estatísticos relativos ao
cadastro torácico, que havia sido deixado de lado. Segundo o secretário, a constru-
ção de um novo sanatório era algo que já estava nos planos do Serviço Nacional de
Tuberculose, e a única condição para que se concretizasse era a de que o governo
do Estado cedesse o terreno e garantisse a instalação de água, luz e esgoto. Os mé-
dicos da AMG se envolveram fortemente na campanha em prol da construção deste
sanatório, encetada pelo Rotary Clube local (ATA DA 43ª SESSÃO – 25/03/1952).
Chamados a cooperar, os médicos realizaram palestras no rádio, tendo inclusive a
Rádio Clube cedido 10 minutos semanais para as mesmas (ATA DA 45ª SESSÃO
– 23/04/1952).
Do ponto de vista da necessidade de se fortalecerem enquanto grupo frente a
outros praticantes das artes de curar, o exercício ilegal da medicina talvez tenha sido
um dos temas mais candentes. Eram comuns as denúncias de médicos a respeito de
curandeiros, charlatães e sanatórios espíritas, cujo registro consta em ata e na pró-
pria revista médica goiana. As acusações eram tão frequentes que o assunto mereceu
um editorial inteiro a seu respeito. Assinado por Wilson Mendonça, presidente da
AMG entre 1955 e 1956, vale a pena reproduzi-lo na íntegra:

(…) Ultimamente, a Associação Médica de Goiás tem sido instada com fre-
quência a se manifestar sobre casos de curandeiros, benzedores e outros tais
que, utilizando-se da boa fé do povo, promovem tratamentos de saúde sem
estarem para isso devidamente habilitados.
Temos já bastante experiência sobre o assunto e conhecemos todos os artifí-
cios empregados por eles. Os curandeiros, ora se apresentam sob a forma de
farmacêuticos que, por falta de médicos na localidade, fizeram sua clínica e
não a querem largar; ora é um enfermeiro que resolve internar-se pelo sertão
e ganhar a vida; ora são indivíduos que, sob a capa da caridade ou de “mis-
são a cumprir na Terra” enveredam por este caminho. Não nos esqueçamos
o desvio que resolveram trilhar muitos adeptos do espiritismo, medicando e
tratando em nome do além.
Histórias de Doenças 379

Os curandeiros são, em geral, espertos, procuram agradar e passam como ho-


mens virtuosos, incapazes de fazerem o mal. Procuram quase sempre o apoio
de chefes políticos influentes, transformando-se em cabos eleitorais para
maior segurança de sua atividade ilegal.
Há em Goiás uma “santa” que há mais de 30 anos exerce a medicina, estando
atualmente instalada com pequeno Hospital num dos bairros de Goiânia pra-
ticando inclusive a chamada “cirurgia espiritual”.
Infelizmente a nossa opinião é pessimista. Não veremos tão cedo o desapa-
recimento dos curandeiros do Estado de Goiás. A ignorância do povo, a sa-
gacidade dos curandeiros, a displicência de alguns colegas do interior que se
deixam seduzir por atividades estranhas à medicina e não evoluem na profis-
são, as interferências políticas e a deficiente fiscalização por parte dos Poderes
Públicos constituem os motivos do nosso pessimismo em relação à extensão
do curandeirismo.
O curandeirismo se equipara a certos males que têm desafiado através dos
tempos a ação das autoridades e das organizações de classe, tais como a pros-
tituição, o “vigarismo”, o jogo de azar. Está acima de nossas forças extingui-lo.
A Associação Médica de Goiás continuará a receber denúncias de curandei-
ros, tomará as providências que lhe compete dentro da lei, notificará as repar-
tições competentes e ficará na expectativa de repressão… Estas nem sempre
virão (…).
(MENDONÇA, 1956, p. 81-82).

Um dos pontos levantados por Mendonça neste editorial se refere à conivên-


cia das autoridades com esses praticantes ilegais da medicina. Um exemplo disso
ficou registrado na ata da sessão de 07 de julho de 1953, na qual Alcyr Mendonça
denunciou um hospital-sanatório clandestino em Pires do Rio e estranhou a exis-
tência de um projeto da Câmara concedendo verbas ao mesmo. Sobre este estabe-
lecimento comentaram outros médicos que as “pretensas intervenções cirúrgicas aí
realizadas” segundo teria informado seu proprietário, seriam feitas por “cirurgiões
além-túmulo” (ATA DA 91ª SESSÃO – 07/07/1953). Ao que tudo indica, tratava-se
de um sanatório espírita.
Sobre o tema foi publicado no segundo número da RGM do ano de 1957
matéria sobre um programa da Rádio Difusora de Jataí na qual o médico Mozart
Moraes de Assis teria respondido com “muito descortínio e objetividade as pergun-
tas que lhe foram feitas sobre curandeirismo”. Nesta “progressista cidade do sudoeste
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380 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

goiano”, que então já contava com uma seção regional da AMG, os médicos estariam
desenvolvendo um movimento bem organizado visando dar combate ao curandei-
rismo (NOTICIÁRIO, 1957). As perguntas feitas ao médico em questão versaram
sobre as causas e consequências do aparecimento do curandeirismo em Jataí e sobre
o significado da presença do curandeiro em uma localidade. Assim se posicionou o
referido médico:

(…) O curandeiro tem o papel de um indicador ou revelador, isto é, a sua


presença é índice de uma civilização primitiva (como é o caso dos índios) ou
de um povo civilizado mas de baixo padrão cultural e social. Felizmente o
número de curandeiros em Jataí é pequeno, o que demonstra que somos um
povo já adiantado (…)
(NOTICIÁRIO, 1957, 140).

Ao ser questionado sobre as medidas que estariam sendo tomadas pelos mé-
dicos de Jataí para impedir a ação do curandeirismo, Moraes de Assis se refere ao
editorial assinado por Mendonça e afirma que ação educativa e assistência médico-
-social adequada diminuiriam sua atuação. Neste sentido, reunidos na seção regio-
nal da AMG na cidade, teriam elaborado um programa de assistência médico-social
em colaboração com a sociedade local. Tal programa visava propiciar assistência
médica gratuita a pessoas comprovadamente necessitadas, dar assistência médico-
-social sob a forma de orientação às mães, conferências pelo rádio, pelo jornal etc.
(NOTICIÁRIO, 1957, p.141). Esta mobilização dos médicos de Jataí mostra que não
apenas a AMG, enquanto sede, respondia aos anseios dos médicos, defendendo-os.
Suas seções regionais também eram atuantes e tinham a autonomia necessária para
promover medidas que coibissem este e outros tipos de prática.
Cabe lembrar que não competia à AMG fiscalizar ou punir colegas. A ela esta-
va reservado o direito de levar ao conhecimento do Conselho Regional de Medicina,
“quando os houver e puder provar, atos condenáveis de médicos que militem em
nosso Estado, alijando-os do nosso meio, se o julgamento do Conselho assim o re-
comendar” (NOTICIÁRIO, 1959). Como órgão defensor dos direitos e prerrogati-
vas adquiridas pelos médicos, e não apenas um órgão disciplinador, defenderiam
os mesmos “contra a intromissão afrontosa do curandeirismo ou do charlatanismo
nos seus vários aspectos, quer os de cunho místico, ou dos que se revestem de franca
licenciosidade, subordinados a interesses políticos e econômicos” (NOTICIÁRIO,
1959, p. 75).
Histórias de Doenças 381

Considerações Finais

Ao final deste texto, espero ter evidenciado aspecto para o qual chamei a
atenção na introdução: apesar do importante papel que a transferência da capital
exerceu sobre o desenvolvimento médico na região – quase um lugar comum na fala
dos médicos goianos – ele não foi determinante. Não há dúvidas de que a constru-
ção de Brasília contribuiu para o desenvolvimento do interior do país, repercutindo
também sobre a medicina goiana, seja ampliando sua visibilidade ou viabilizando
projetos locais importantes, como a própria fundação de uma faculdade de medici-
na. No entanto, como busquei demonstrar, já era possível identificar a conformação
de uma comunidade médica regional bastante ativa e influente antes mesmo do iní-
cio de sua construção, fosse participando de ações voltadas para a saúde pública ou
promovendo estratégias de fortalecimento e aperfeiçoamento da comunidade médi-
ca local. Longe de negar que tenham existido dificuldades para aqueles que optaram
pelo trabalho no interior do país, a análise em questão procurou mostrar que estas
não figuraram como obstáculos intransponíveis. Neste sentido, estudar a atuação
dos médicos goianos através de sua associação permitiu a relativização deste quadro,
matizando a ideia do isolamento goiano reforçada pela historiografia.
Se Goiânia pode ser reconhecida como cidade onde isso se observa de modo
mais evidente, também não se pode negar o esforço dos médicos ali atuantes em
expandir para todo o Estado os benefícios adquiridos por conta de sua ampla circu-
lação e contato com médicos importantes. Assim, se o desenvolvimento da medici-
na em padrões elevados, comparáveis aos dos grandes centros, não abrangeu todo
o território goiano, também não ficou restrito à capital. A implantação de seções
regionais da AMG em diferentes pontos de Goiás, por exemplo, funcionou como
estratégia de que lançou mão a associação não apenas para estreitar os vínculos com
seus membros mais distantes, mas também para facilitar a difusão do conhecimento
e o aprimoramento da medicina levada a cabo no Estado. Em síntese, o fato de atua-
rem no interior do país não deve ser diretamente relacionado a uma prática médica
pouco afeita aos avanços da medicina ou mesmo defasada devido ao ‘provável’ iso-
lamento em que se encontravam. Além disso, tanto os congressos médicos regionais
como a associação médica mostram que, mesmo antes de Brasília, a comunidade
médica goiana não deixava de se atualizar, de se aperfeiçoar e se reinventar. O papel
desempenhado pela AMG, tendo Luiz Rassi em sua dianteira, é bastante revelador
neste sentido.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
382 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

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Estigma, filantropia e infância: o preventório
de Santa Teresinha
Yara Nogueira Monteiro1

O combate à hanseníase realizado pelo Estado de São Paulo se constitui em


importante capítulo da História das doenças e da Saúde 2. A forte estigmatização que
envolve a doença, e que perdurou ao longo dos séculos, foi de tal forma introjetada
em nossa cultura que continuou subsistindo mesmo após a descoberta da cura ocor-
rida há mais de meio século, e da terapêutica ser barata e eficaz 3. Nos estudos sobre
a doença verifica-se que essa estigmatização extrapolava a órbita da vida dos doentes
chegando a atingir as pessoas sadias a eles relacionadas, como foi o caso dos filhos
sadios dos pacientes, objeto desse trabalho.

1 Foi Pesquisadora Científica do Instituto de Saúde, atualmente Coordena o Núcleo de


Discriminação do Leer – Laboratório de Estudos de Etnicidade, Racismo e Discriminação da
Universidade de São Paulo.
2 No Brasil, numa tentativa de contribuir para a minoração do estigma que envolve tanto a do-
ença como seu portador, o termo “lepra” foi substituído por “hanseníase” a partir da Lei 9.010
de 29/03/95. O artigo 1º dessa Lei dispõe que: “o termo ““Lepra” e seus derivados não poderão
ser utilizados na linguagem empregada nos documentos oficiais da Administração centraliza-
da e descentralizada da União e dos Estados-membros”. Por estarmos nos reportando à época
anterior à lei, por não constituir documentação oficial e sim uma pesquisa científica na área das
ciências históricas, por permitimos a utilização da terminologia em uso na época em estudo.
3 No início da década de quarenta foi descoberto o tratamento através das sulfonas. Com pou-
cos meses de tratamento o doente tinha sua baciloscopia negativada, significando que ele per-
dia sua condição de infectante e portanto deixando de representar uma ameaça à coletividade,
podendo conviver normalmente em sociedade. Esse fato representou um marco revolucioná-
rio na trajetória dessa doença, que o ano de 1943 passou a se constituir num marco.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
386 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

A política de combate à lepra em São Paulo

A profilaxia de combate a Lepra no país era baseada no tripé composto por:


asilo, dispensário e preventório. O primeiro era destinado para o internamento dos
portadores da doença; o segundo para a detecção de casos novos e a atendimento
dos “comunicantes”, e o terceiro para o acolhimento de filhos sadios dos pacien-
tes. Entretanto não havia homogeneidade em sua forma de execução; enquanto em
outros Estados da Federação, como o Rio de janeiro, por exemplo, eram isolados
apenas os doentes portadores de formas contagiantes, os de lesões abertas ou ainda
aqueles que não tinham condições econômico-sociais para permanecer em trata-
mento domiciliar; no “Modelo Paulista” a norma era o isolamento compulsório e
imediato de todas as pessoas diagnosticadas como portadores do mal; para tanto
não era considerado faixa etária, nível socioeconômico ou se a forma da doença
apresentava, ou não, perigo de contagio.
A implantação do isolamento resultou na segregação de milhares de pes-
soas bem como na estigmatização dos familiares dos internados. Para o Serviço
Profilático todos aqueles que tivessem mantido contato mais próximo com o doente,
familiares ou não, passavam a ser considerados “comunicantes” o que equivalia a ser
um doente em potencial e, como tal, eram também fichados e intensamente vigiados
pelo poderoso Departamento de Profilaxia da Lepra- o DPL. Toda a pessoa fichada
teria que se submeter às consultas periódicas, ter sua casa e familiares observados e
ainda sofreriam restrições na vida cotidiana devido a identificação de proximidade
com alguém doente (MONTEIRO, 1995, p.161-167).
A profilaxia paulista era tida como exemplar e acabou servindo como mode-
lo, não apenas para outros estados brasileiros como para outros serviços da América
Latina. Visitas internacionais aos leprosários paulistas eram realizadas com frequên-
cia 4 Diferentes publicações traziam elogios à organização implantada, dentre deles
tem-se a declaração do chefe da Comissão da Lepra da Sociedade das Nações, Dr.
Brunet após a visita realizada ao Brasil na década de trinta: “O Brasil é um dos países
mais adiantados na luta contra a lepra. Sua organização, sobretudo no Estado de São
Paulo, pode ser colocada no mesmo plano das do Japão e das Filipinas”. Havia tam-

4 A denominação Leprosário, utilizada inicialmente para designar o local de internação dos


doentes foi posteriormente alterada para asilo-colônia, entretanto nossas pesquisas revelaram
ambas as formas foram utilizadas pelo governo, de forma concomitante, tanto em papéis ofi-
ciais como nos textos legais até a década de cinquenta.
Histórias de Doenças 387

bém grande contato entre leprólogos latino-americanos e o serviço profilático pau-


lista como atesta Balina “Quem quiser estudar e conhecer os resultados obtidos com
a aplicação dos novos métodos terapêuticos no tratamento desta moléstia, precisa
vir ao Brasil, sobretudo a S. Paulo” (ROCHA, 1942, p.33). Com o respaldo interna-
cional e as verbas estaduais, São Paulo pode atuar de forma independente, pratican-
do uma profilaxia própria, amparada em uma legislação específica do Estado.
O discurso do Serviço Profilático paulista prometia acabar com a doença em
apenas uma geração, porém para tanto seria necessário identificar e isolar todos os
pacientes. Para viabilizar os fins propostos era vital contar com o auxílio da socie-
dade civil, tanto para obtenção de fundos suplementares como para a identificação
rápida de doentes. As denúncias se configuravam em importante meio que viabiliza-
va esquadrinhar todos os recantos do Estado, para incentiva-las foi elaborada ampla
campanha educativa alicerçada na ideia da periculosidade do contágio e no terror
infundido pela moléstia. Prometia-se que se doentes fossem banidos do todo social
a segurança da coletividade estaria assegurada. Esse procedimento contribuiu para
que aflorassem verdadeiras ondas de pânico e, em decorrência, aumentou o temor
contra pessoas, imóveis e objetos que tivessem tido algum tipo de contato com um
doente, ou daquele que fosse identificado como doente. Desta forma, qualquer pes-
soa que apresentasse algum sintoma que se assemelhasse aos elencados pelo Serviço
Profilático passava a ser vista, e tratada, como possível portadora do mal.
Como resultado da politica de internação adotada, crescia a necessidade de
uma politica específica que atendesse ao grande número de crianças que ficavam
desamparadas. Ou seja, fazia-se urgente que se adotasse as recomendações interna-
cionais acerca da construção de Preventórios em número suficiente para acolher os
filhos de pacientes asilados.

Os Preventórios nos congressos internacionais de lepra

Ao se estudar as politicas profiláticas adotadas para o combate da hanseníase


verifica-se que o famoso tripé, que alicerçou as ações promovidas durante boa parte
do século XX, foi objeto de debates em praticamente todos os congressos realizados
até a década de sessenta. Durante os anos de sua implantação foi deixado claro que
todo e qualquer esforço profilático só teria sucesso se fosse adotada uma politica de
acolhimento dos filhos sadios dos pacientes isolados, caso contrário aumentariam as
chances do paciente não aceitar o isolamento e, se isolado, procuraria fugir a fim de
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
388 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

prover sua família. Ou seja, o preventório passava a ser visto como peça fundamen-
tal que garantiria o êxito da política profilática.
O estudo das conferências internacionais realizadas nos permite verificar a
adoção e as modificações na postura dos leprólogos sobre o assunto. A 1º Conferencia
Internacional de Lepra, realizada em Berlin em 1897, já preconizava o isolamento
dos pacientes sem que fossem discutidas as ações a serem tomadas com os filhos
sadios dos asilados. Na 2º Conferencia Internacional de Lepra, que ocorreu na ci-
dade Bergen em 1909, o problema dos filhos sadios dos pacientes de hanseníase foi
objeto de discussão e, em dentre as resoluções finais, foi aconselhado que filhos de
leprosos fossem separados dos pais logo que possível, e submetidos à rigorosa obser-
vação (DINIZ, 1960 P.26). A 3º Conferencia Internacional de Lepra, que ocorreu em
Estrasburgo em 1923, ratificou as deliberações das primeiras conferências e, no item
três das resoluções finais, dispôs que “é aconselhável separar de seus pais os filhos
de leprosos desde o nascimento e mantê-lo em observação” (ROCHA, 1942, p.400).
Em São Paulo as primeiras discussões sobre Preventórios foram realizadas
durante o Iº Congresso Médico Paulista realizado em 1926 que, de certa forma, re-
fletiu discussões ocorridas internacionalmente. Durante o congresso diferente pos-
turas foram propostas, desde as mais humanitárias defendidas por Emilio Ribas até
outras como as de Souza-Araujo que defendia a segregação dos filhos de portadores
de hanseníase (MONTEIRO, 1995, 138).
Na 4º Conferencia Internacional de Lepra, realizada no Cairo em 1938, algu-
mas das decisões dos congressos anteriores foram relativizadas, o que deu origem
a duas tendências profiláticas opostas, a primeira propunha o abandono do isola-
mento priorizando o tratamento em dispensário, enquanto que segunda continuava
recomendando o isolamento, porém aplicado de forma mais humana e compassiva.
Essa conferência preconizava uma postura mais branda com relação aos filhos sa-
dios dos asilados recomendando que “os filhos de leprosos dever ser afastados dos
pais, quando estes são fonte potencial de infecção; os filhos de leprosos de formas
abertas devem ser retirados logo após o nascimento para os preventórios”, e que
caberia ao Estado o amparo das famílias dos asilados, de modo que não lhes pese a
visão do abandono e miséria dos familiares (ROCHA, 1942, p.401).

Preventórios: eugenia e filantropia.

As primeiras décadas do século XX, época em que ocorreram as quatro con-


ferências internacionais, foi também um período marcado pela influência dos ideais
Histórias de Doenças 389

eugênicos cujos reflexos atuaram fortemente tanto na Europa como no Brasil. A


partir do final do século XIX as propostas apregoadas pela a eugenia entusiasmavam
parte da intelectualidade da época, seduzindo, em especial, médicos, juristas e edu-
cadores. Dentre as novas ideias a preocupação com a infância passou a ser objeto de
intensos debates.
Na Europa foi realizado Iº Congresso Internacional de Proteção à Infância,
que ocorreu na Bélgica em 1913; logo após, tem-se o Iº Congresso Americano da
Criança, realizado na Argentina em 1916. O equivalente brasileiro foi o Iº Congresso
de Proteção à Infância que ocorreu em 1922; dele participaram importantes nomes
da área médica e governamental, resultando na organização de novos eventos, publi-
cações e discussões pela imprensa. Acreditava-se que o desenvolvimento do país só
seria possível com a melhoria da raça, e que isso só seria possível se medidas concre-
tas fossem tomadas que permitissem o alijamento dos “indesejáveis”. Acreditava-se
na possibilidade de construção de uma “raça forte”, para tanto era necessário incen-
tivar a natalidade daqueles considerados como portadores de caracteres ótimos e,
por outro lado, controlar a prole de todos identificados como “degenerados”, como
também dos portadores de taras hereditárias e dos de moléstias infectocontagiosas.
Dentre essas últimas a lepra era com frequência assinalada (MONTEIRO, 1995, p.
154 a 160). Diferentes medidas eram propostas até mesmo a esterilização daqueles
tidos como “indesejáveis” (KEHL, R, 1930, p108-111).
A doença passava a ser vista como uma ameaça à nacionalidade forte e a mor-
talidade infantil, figurava como um sério obstáculo ao desenvolvimento da nação.
Dentro desse quadro a criança representava uma peça fundamental, deixava de ser
um assunto exclusivamente de âmbito familiar para se configurar numa questão de
ordem social. Essas ideias, que permeavam tanto as elites técnicas como sociedade
da época, tiveram influência direta nas discussões sobre a prole sadia dos pacientes
de hanseníase, na necessidade de atendimento, e no dever social perante a infân-
cia. Ao estudarmos as discussões sobre necessidade de construção de Preventório
e internação de crianças, verificaremos que o ideário eugênico contribuiu para que
questões, até mesmo como a do pátrio poder, passassem a ser um assunto de menor
importância a ser relativizado perante a tarefa maior que seria o bem do Estado.
Muito embora os congressos de leprologia, médicos e governantes acatassem,
endossassem e até indicassem a construção de Preventórios, verifica-se que tudo
ficava apenas dentro de um amplo discurso, enquanto que na prática foi a sociedade
civil que se responsabilizou pela idealização e construção do primeiro Preventório.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
390 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Ao examinarmos a situação em termos nacionais, veremos que dos 24


Preventórios existentes no país em 1944, 23 deles foram resultantes do trabalho fi-
lantrópico realizado pela sociedade civil: o Santa Terezinha em São Paulo e os outros
22 foram fruto da Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros - FSAL. Em
todos havia uma figura feminina que capitaneava a arrecadação de fundos e ações
pertinentes, no primeiro tem-se a Margarida Galvão e nas FSAL a figura proemi-
nente de Eunice Weaver. Essa atuação era reconhecida pelo serviço oficial a ponto
de Souza Campos afirmar que em muitos estados essas Sociedades desenvolveram
trabalhos melhores do que os dos próprios hospitais e ambulatórios que contavam
com ajuda oficial (CAMPOS, 1948 e SOUZA ARAUJO, 1944, p44). De todos eles
apenas um resultou dos esforços unicamente governamentais, foi Jacareí construído
pelo Serviço Profilático de Estado de São Paulo.
Em suma, ao se analisar o ocorrido durante as primeiras décadas do século
XX, verificamos que a ação governamental, amparada pelos discursos técnicos e re-
comendações internacionais, foram menos eficazes do que a ação filantrópica, em
especial quando a questão era arrecadar fundos, planejar, construir e abrigar.

São Paulo e a construção dos Preventórios

Como resultante da politica de internação compulsória adotada em São


Paulo que resultou na internação em massa, se intensificou a problemática referente
aos filhos dos pacientes asilados. Em tese as crianças deveriam ser entregues aos
familiares, entretanto a forte estigmatização e o medo do contágio fazia com que
raramente encontrassem familiares dispostos a acolhê-las. Dentro disso tem-se a
intensificação das discussões sobre a necessidade de construção de Preventórios.
Aos se estudar o histórico da construção e funcionamento dos Preventórios
em São Paulo, verifica-se a adoção de dois modelos diferentes. O primeiro, o Santa
Terezinha fundado em 1926, foi resultado da ação filantrópica sem nenhum auxilio
do Estado, enquanto que o segundo, o Jacareí, foi fundado 1932, pelo Departamento
de Profilaxia da Lepra premido pela superlotação do Santa Teresinha, pela necessi-
dade de um rápido aumento do número de vagas e também por uma postura interna
que acreditava que todos os serviços e atuações relativas à hanseníase deveriam estar
diretamente subordinadas ao DPL. Essa postura esteve explicita no Jacareí que, des-
de seu início teve ali reproduzida a rígida estrutura do serviço profilático do estadu-
al. Em ambos os preventórios supervisão médica era feita pelo DPL.
Histórias de Doenças 391

A análise da construção e equipamentos previstos denota também ter havi-


do grande diferença, enquanto que o primeiro foi especialmente construído para
a finalidade proposta, no segundo ocorreu uma adaptação de imóvel já existente
cuja construção visava finalidade diversa. A instalação do Jarareí foi feita nas anti-
gas instalações ginásio “Nogueira da Gama”, comprado pelo DPL e adaptado para
receber os menores. A partir da fundação desse segundo preventório, foi firmado
um acordo entre ambas as instituições, a partir de então todos os recém-nascidos
iriam para o Santa Terezinha que ali conservaria as meninas já existentes, enquanto
que os meninos só ali permaneceriam até os 12 anos, a partir dessa idade iram para
o Jacareí. Essa segunda instituição também era a responsável pelo recebimento dos
menores em alta condicional e egressos dos asilos-colônia. Era prevista uma idade
limite para a permanência em ambas instituições: 18 anos para as meninas e 15 para
os meninos, quando então seriam devolvidos à sociedade.
Previa-se que os Preventórios pudessem atender crianças de todas as idades,
desde o recém-nascido, que seria separado de sua mãe imediatamente após o par-
to, como também daquelas que já tivessem sido expostas ao contágio, em razão de
terem convivido com familiares doentes. Dessa forma, devido a postura adotada
na época, os filhos saídos de hansenianos acabaram por ter vedado seu direito de
ingresso a outras instituições congêneres.
É importante destacar que havia vozes discordantes sobre o modelo adotado
para o acolhimento e que, já na década de trinta, alertavam para os riscos do aumen-
to da estigmatização que envolveriam essas crianças. Dentre essas vozes destacam-se
a de Alice Tibiriçá e Floriano Lemos, ambos partidários de um segundo modelo: o
da criação de granjas, onde as crianças poderiam ser criadas juntamente com seus
familiares 5. Tibiriçá acreditava que as granjas contribuiriam para manter a núcleo
familiar e que, com pouco dispêndio, de forma saudável e junto à natureza, as crian-
ças poderiam ser criadas por seus familiares que receberiam ajuda para mantê-las.
A construção de uma granja chegou a ser iniciada nas proximidades da cidade de
Bauru, onde quatro conjuntos de casas estavam sendo erguidas; contudo o DPL por
encarar a medida como sendo uma interferência no plano profilático e, em 12 de ju-
nho de 1934, determinou que “fossem interditados os serviços da granja que estava

5 Alice Tibiriçá teve atuação destacada no campo da hanseníase nas décadas de vinte e trinta;
foi a fundadora da Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e teve sérios embates
com o DPL. Floriano Lemos foi professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e es-
crevia artigos em jornais daquela cidade.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
392 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

sendo construída pela Liga de S. Lazaro, onde seriam recolhidas as famílias dos han-
senianos e de internados nos asylos colônia” (TIBIRIÇÁ, A. s/d, 119). Cabe ressaltar
o poder do DPL paulista, visto que uma simples resolução interna conseguir amparo
jurídico para barrar a continuidade do projeto.
A ideia de construção de granjas continuou em discussão por mais algum
tempo, porém sempre alvo de grande discordância do Serviço Profilático que, com
base na premissa de que filhos de hansenianos teriam mais predisposição a desen-
volver a doença, afirmava que essas crianças deveriam crescer sob “rigoroso contro-
le médico”. Muito embora o atendimento médico e o “rigoroso controle” também
pudesse ser exercido nas granjas, o modelo prevento rial acabou prevalecendo em
todo o país. A ideia de controle e vigilância foi adotada ficando evidente já no artigo
primeiro do Regimento Interno dos Preventório, que apresentava como sendo obje-
tivo dessas instituições, além de prover a educação dos menores, “mantê-los sob a
vigilância das autoridades sanitárias competentes”. Tal rigor abrangia até mesmo as
ações relativas à liberação do menor internado, que só poderia sair da instituição
após seis anos de permanência.

Idealização, construção e funcionamento do Santa Teresinha.

O Preventório Santa Teresinha foi resultado de ações desenvolvidas por um


grupo de senhoras pertencentes à elite paulista que, desde 1913, já atuavam provi-
denciando o afastamento de criança dos focos de contágio e também no amparo de
famílias dos doentes internados no primeiro Hospital de leprosos de São Paulo: o
Guapira (PUPO, p 264). O grupo se transformou em pessoa jurídica em março de
1922, com a fundação da Associação Therezinha do Menino Jesus sendo liderado pela
figura emblemática de Da. Margarida Galvão. A transformação do grupo em pessoa
jurídica era necessária para viabilizar a aquisição de imóveis, fator essencial para os
planos de construção de um local de acolhimento para os filhos sadios dos doentes
de hanseníase, conforme consta no artigo II § 2. ° de seus estatutos

A Associação Therezinha do Menino Jesus, creará um asylo de preservação ex-


clusivamente destinado aos filhos de leprosos ainda não attingidos pela enfermi-
dade, subordinando-o a um regimento especial, de accordo com as prescripções
scientificas e inspirações da Caridade Christã.

Os estatutos contaram com a aprovação do Arcebispo Metropolitano, D.


Duarte Leopoldo e Silva, cujo prestigio e apoio explicito auxiliavam tanto na credi-
Histórias de Doenças 393

bilidade do grupo como na arrecadação de fundos. No mesmo ano de sua fundação,


a Associação recebeu a doação, através do Dr. Celestino Bourroul,6 de um grande
terreno localizado no bairro da Lapa, zona oeste da cidade de S. Paulo, que perten-
cera à extinta Sociedade Paulista de Assistência à Infância. O terreno ocupava pra-
ticamente uma quadra, medindo 100 metros de frente para Rua Catão, 150 metros
para Rua Coriolano e a mesma metragem para Rua Clélia, e ali pretendiam construir
o “Asilo”. Entretanto o projeto foi vetado pelo Serviço Sanitário sob a alegação de ser
o terreno muito central para os fins propostos. Cabe lembrar que os discursos dos
leprólogos da época aconselhassem que a construção de preventórios fosse realizada
em zona urbana para facilitar o atendimento médico e a inserção dos menores na
sociedade local (MONTEIRO, 1998 p 9 a 11).
Com o veto do plano inicial, a Associação foi em busca de novo imóvel que
viabilizasse a futura construção. Foi comprado um terreno com 145.000 m2, loca-
lizado no município de Carapicuíba, distante 23 quilómetros de São Paulo. Com
a aprovação do projeto nele seria construído o complexo arquitetônico que daria
origem ao que foi considerado como “Preventório Modelo” e que serviria como ins-
piração para outras instituições congêneres que viriam a ser construídas no país
(MONTEIRO, 1992, P.12).
Para viabilizar os planos de construção foi realizada uma grande campanha
para arrecadação de fundos, denominada “Movimento Confortador” que contou
com o forte apoio Júlio de Mesquita, dono do Jornal O Estado de São Paulo. A cam-
panha conseguiu envolver a sociedade como um todo, sensibilizando desde a elite
econômica paulista chegando até a base da pirâmide social; desta forma um grande
número de pessoas foi envolvida, cada um sentindo-se participante da obra. “Assim,
iniciadas as construcções do Asylo em 24 de maio de 1926, correspondendo ao
appelo prestigioso do jornal “O Estado de S. Paulo”, o povo paulista encheu as listas
da subscripção promovida para as obras, com uma quantia superior a 1000 contos
de réis, realisando-se em S. Paulo a mais popular das subscripções, cujos obulos
desceram da opulencia dos abastados á bolsa modesta dos operarios e colonos, ex-

6 Celestino Bourroul médico com renome internacional. Tornou-se catedrático da Faculdade


de Medicina de São Paulo 5 de agosto de 1914, chegando a ser diretor daquela instituição. Em
1921 ingressou na Santa Casa de Misericórdia onde foi chefe do Serviço de Clínica Médica
daquele Hospital. Fundou, juntamente com Antonio C. Camargo e Antonio Prudente a
Associação Paulista de Combate ao Câncer (APCC) em 1934.
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primindo em sua realidade a veracidade da epigraphe com que o grande diario a


realizou: Movimento Confortafor! (PUPO, 1936, p. 264).
A importância da participação da imprensa, na construção desse Preventório,
foi destacada durante a 4º Conferência Sul Americana de Hygiene, Microbiologia
e Pathologia realizada em 1930 “O (jornal) Estado de São Paulo, que conseguiu
chamar para o assumpto a atenção e a benevolência da opinião pública, abrindo
subscripção, que rapidamente reuniu os fundos necessários. Foi então construído o
Asylo, que se acha em funcionamento desde setembro de 1927” (SILVEIRA, R et alii,
1936 p. 319). Esse jornal cedia espaço gratuito para divulgação das atividades pro-
movidas e incentivava novas doações a partir da publicação de relação dos doadores
e doações. Essa participação, ao longo da trajetória do Santa Terezinha, foi essencial
tanto para a viabilização de seus projetos como na saúde financeira da instituição.
Devido à distância da Capital, havia grande dificuldade de acesso para o
Asilo, dificultando inclusive as obras. Negociações foram realizadas entre a direto-
ria da Associação com a Estrada de Ferro Sorocabana e foi construída uma estação
de trem, especialmente para atender o Preventório, a 50 metros de seus portões. De
acordo com descrições de época a estação contava com “um telheiro para abrigar
do sol e da chuva os viajantes”, além de uma plataforma de cimento para embarque
desembarque de gêneros. O transporte também poderia ser realizado por automó-
vel, porém devido aos altos custos, era utilizado apenas para transportes de urgên-
cia (JORNAL DIÁRIO NACIONAL, 2 de 1929, p.7).
Para a idealização do projeto do Asilo, a Associação se cercou dos melhores
nomes da época, tendo o apoio de Armando Sales de Oliveira.7 O projeto foi entre-
gue para um escritório de arquitetura ligado à Santa Casa de Misericórdia e liderado
por Adelardo Soares Caiuby.8 A idealização do projeto contou com a colaboração
técnica de dois médicos professores da Faculdade de Medicina de São Paulo, o lepró-

7 Armando Sales de Oliveira foi fundador da Universidade de São Paulo. Casou-se com Raquel
de Mesquita, filha única de Júlio de Mesquita. Com morte do sogro em 1927, assumiu a pre-
sidência do jornal O Estado de S. Paulo, continuando a apoiar, e auxiliar financeiramente, o
Santa Terezinha ao longo dos anos.
8 Adelardo Soares Caiuby-. Importante arquite.to da época, dentre suas obras tem-se o prédio
da Curia Metropolitana de São Paulo. Foi o autor da planta do primeiro asilo-colônia cons-
truído em São Paulo, o asilo de Santo Angelo e autor de “Leprosaria Modelo” que inspirou a
construção dos demais asilos paulistas.
Histórias de Doenças 395

logo Aguiar Pupo9 e Rezende Puech, que possuía vasta experiência com construção
e administração de hospitais.10
O projeto previa a construção de uma série de edifícios, cada um com sua
função específica de forma a permitir a separação por sexo e idade, tanto nos pavi-
lhões de dormitórios como nos refeitórios e classes escolares. Os edifícios possuíam
tamanhos diferentes e se distribuíam a partir de uma espécie de ponto central cons-
tituído pela capela. Na parte frontal tinha-se: portaria, parlatório, igreja e residência
das religiosas que administram a casa. Atrás da Igreja vinha o corpo principal das
construções: dois pavilhões do tipo “Escola Maternal” para habitação dos meninos
tendo como anexos uma classe primária e sala de diversões e mais dois pavilhões do
mesmo tipo para meninas, tendo como anexos uma classe primaria e sala de traba-
lhos manuais. Nos andares superiores ficavam os dormitórios, estes eram divididos
por idades, contendo seus respectivos sanitários e vestiário. Posteriormente foi cons-
truído o pavilhão da creche destinado unicamente aos recém-nascidos.
No corpo central havia a cozinha e os refeitórios, aos fundos seria erguido
o pavilhão de suspeitos em observação. Havia ainda três edifícios destinados à la-
vanderia, garagem e habitação de empregados. Todos os edifícios eram providos de
água, esgotos, telefone, energia elétrica e eram ligados entre si por meio de passadi-
ços cobertos de telha e dotados de piso cimentado (PUPO, 1936 p.265 e SILVEIRA,
1936, p.320).

9 João de Aguiar Pupo, foi um dos leprólogos paulista mais importantes da época chegado a
chefiar a Inspetoria de Profilaxia da Lepra em 1927. Foi diretor da Faculdade de Medicina de
São Paulo, membro honorário da Academia Nacional de Medicina.
10 Rezende Puech ortopedista ligado à Santa Casa de Misericórdia. Foi catedrático
da antiga cadeira de clínica ortopédica e cirurgia infantil da Faculdade de Medicina de São
Paulo. Dedicou-se aos problemas relacionados à construção e à administração de hospitais.
Participou da Comissão de Assistência Hospitalar do Estado de São Paulo e dentre suas publi-
cações tem-se: Censo Hospitalar do Estado de São Paulo e O Problema Hospitalar do Estado
de São Paulo.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
396 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Projeto arquitetônico do Asilo de Santa Teresinha.


Arquivo Iconográfico do Instituto de Saúde

Um dos prédios era destinado aos serviços médicos e administrativos. Neste


além dos consultórios havia farmácia, laboratório, gabinetes médicos, gabinete den-
tário e seis salas de enfermaria cada uma com capacidade para cinco crianças. Neste
edifício se localizava a secretaria e o arquivo clínico das crianças. Todos os prédios
possuíam refeitórios e dormitórios para as irmãs de caridade. O complexo arqui-
tetônico era cercado de parques e jardins e havia ainda criação de vacas, carneiros,
porcos, coelhões e galinhas, tanto a criação de animais como a lavou era realizada
pelos internos.
As obras de construção do Preventório foram realizadas em ritmo acelerado,
o lançamento da pedra fundamental ocorreu em 24 de maio de 1926 e, em apenas
dois anos quatro pavilhões estavam prontos possibilitando a inauguração que ocor-
reu em 8 de setembro de 1927 com solenidades e autoridades presentes. O impacto
da inauguração foi enorme com reflexos tanto na imprensa como dentre os lepró-
logos da época; as primeiras crianças ali recolhidas eram provenientes do Guapira
e dentre elas havia recém-nascidos. Tanto a grandiosidade da obra, como também
o fato de ter sido o primeiro estabelecimento do gênero no país, contribuíram para
que muito se escrevessem sobre o evento. “É o primeiro preventório deste gênero no
país e sobressai pelo vulto de seus edifícios, de puro estilo colonial, com capacidade
para abrigar duzentas crianças de ambos os sexos” (GONZAGA et alii, 1941, p.13)
Aos poucos outros seis pavilhões foram sendo incorporados, cabe ressaltar
que as obras nunca foram interrompidas por carência de fundos. A sociedade paulis-
Histórias de Doenças 397

ta acompanhava os progressos das obras uma vez que cada etapa, cada inauguração
era realizada em meio a eventos divulgados pela imprensa.
Desde seu início, o então denominado Asilo-Escola foi administrado por ir-
mãs de caridade porém a direção foi sempre exercida por Margarida Galvão, cuja
trajetória de vida passou a estar intimamente ligada a essa obra.

Entrada e fichamento das crianças

Desde o início foram adotados critérios que normatizavam o fluxo dos inter-
nos. Ao entrar todas as crianças passavam por exames médicos passando pelas ins-
peções dermatológica, bacteriológica e clínica. A dermatológica era a mais rigorosa,
realizava-se a descrição pormenorizada do corpo e em toda lesão suspeita era feita
a verificação de sensibilidade. O exame no muco nasal com resultado negativo era
condição indispensável para o ingresso do candidato e, em caso de positivo a criança
seria enviada para um asilo-colônia. A bacterioscopia, para pesquisa do bacilo de
Hansen, ainda que negativa no primeiro exame seria efetuada repetidas vezes. Após
essas inspeções é que era procedido o exame clínico pelo pediatra que fazia anamne-
se e registrava os dados antropomórficos.
Na anamnese eram registrados os dados familiares até a segunda ascendência
e colaterais leprosos, anotados dados sociais dos familiares e tempo de convivência
da criança com o foco da doença. Os dados obtidos nesses três exames davam ori-
gem a três diferentes fichas para cada criança sendo que a dermatológica se com-
punha de duas partes, uma referente à lepra e outra que abrangia outras questões
dermatológicas. A cada dois meses esses exames eram repetidos.
Uma vez admitida, a criança permaneceria em isolamento em pavilhão espe-
cial durante dez dias para prevenção de doenças infeciosas que porventura estivessem
em fase de incubação, somente depois é que iria para o convívio com outras crianças.
No espaço preventorial as decisões institucionais eram tomadas a partir da
direção e/ou do Serviço Profilático sem que fossem levadas em conta as necessidades
ou anseios dos internos, como foi o caso do acordo firmado entre Santa Terezinha e
Jacareí. Com o acordo ocorreu a transferência de crianças sem que houvesse algum
tipo de preparo, os menores saiam de um ambiente que lhes era familiar, deixando
para trás os amigos e adentrando a um espaço até então desconhecido com uma
estrutura onde imperava extremo autoritarismo. Em muitos casos ocorrendo a se-
paração de irmãos. (MONTEIRO, 1995, p. 336).
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398 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Quanto ao relacionamento com a família, verifica-se que sob a alegação de


que seria melhor para a criança o alijamento do peso e do estigma da doença, a ins-
tituição procura dificultar ao máximo, e mesmo cortar, os laços familiares. Pedidos
como a permissão para ver os filhos, ou simplesmente para obter notícias ou mesmo
uma fotografia dependiam de trâmites burocráticos e raramente eram atendidos.
Com isso formaram-se gerações de crianças sem vinculo com seu meio familiar e
com estrema dificuldade de adaptação quando, e se, o familiar tivesse alta e se dis-
pusesse a ir busca-la para tentar retomar a vida familiar.

O isolamento dos “suspeitos”

Em caso de haver alguma lesão suspeita de lepra, ainda que com baciloscopia
negativa, a criança deveria ser enviada para o Pavilhão dos Suspeitos. Nos primeiros
anos não havia um prédio específico para o isolamento e, de acordo com publica-
ção de época, em 1929 havia duas as crianças recém-internadas que apresentaram
manchas brancas, sem sensibilidade, porém com baciloscopia negativa. A direção
optou por alugar uma casa em Pinheiros onde as crianças foram instaladas e seriam
tratadas até que o diagnóstico fosse possível (JORNAL NACIONAL, 1929, p. 7).
O Pavilhão dos Suspeitos foi construído em local distante dos demais e re-
presentava uma espécie de zona intermediária entre o Preventório e o Asilo-colônia.
Possuía estrutura própria de funcionamento a fim de impedir o contato das crianças
ali internadas com as outras. Os suspeitos eram submetidos a exames semanais até
que o diagnóstico se fizesse possível, nesse meio tempo recebiam tratamento preven-
tivo com óleo de chaulmoogra. Uma vez afastada a suspeição a criança sadia voltaria
para o convívio com as outras e a doente seria encaminhada para a internação na
rede asilar (ROCHA, 1942 p 471). Para esse Pavilhão eram também direcionadas
crianças que haviam convivido em foco de contaminação, ficando em isolamento
até que as autoridades tivessem certeza de não ter havido contágio. O local possuía
equipe própria e todas as instalações necessárias em separado.
A construção do Pavilhão dos Suspeitos foi viabilizada pela “Campanha
Humaníssima”, que arrecadou os fundos necessários para a obra. Sua inauguração
ocorreu em 23 de fevereiro de 1931, apenas quatro anos após a inauguração do Asilo,
contando naquela data com 10 meninos e três meninas ali internados. A data, como
de praxe, foi cercada de solenidades contando com a presença do Arcebispo de São
Paulo, autoridades e convidados. Dentre os presentes estava Alice Tibiriçá que pu-
blicou relato detalhado sobre a ocasião e nele elogiando a direção e sua capacida-
Histórias de Doenças 399

de de angariar fundos. Este permite verificar a estratégia adotada que possibilitava,


através de homenagens, como a nomeação de edifícios, anagariar fundos e recom-
pensar o envolvimento de pessoas e de doadores instituição, “O pavilhão Ritinha
Rangel Pestana comportará dezenas de crianças. Duas irmãs de caridade velarão
por ellas. Há cozinha própria, refeitório, escola e dormitórios. Capella”. (TIBIRICÁ,
1931, p.24)
Cabe destacar que a necessidade de construção de espaço especial para se-
gregação de suspeitos dentro de Preventórios foi objeto de debates durante o Vº
Congresso Internacional de Lepra, realizado em Havana em 1948. Dentre as dispo-
sições técnicas realizadas tem-se a “exigência de que cada um tivesse seu pavilhão
de observações destinado ao acolhimento de crianças suspeitas e de outras que por-
ventura fosse portador de formas indeterminadas, bacteriologicamente negativas,
ou ainda para menores egressos de leprosário, contanto que apresentassem lepromi-
noreação positiva” (DINIZ, O. 1960, p. 30). Nesse ponto destaca-se pioneirismo do
Santa Terezinha que há 17 anos já dispunha de seu pavilhão.

Os recém-nascidos

Desde seu início, o Santa Terezinha recebia todas as crianças nascidas na rede
asilar paulista, na data de sua inauguração já contava com treze recém-nascidos. Nos
primeiros tempos a creche havia sido instalada em um dos pavilhões, apenas poste-
riormente é que um pavilhão seria construído para esse fim.
O elevado número de óbitos ocorridos nos primeiros anos de funcionamento
o que acabou gerando debates e publicações que procuravam explicar a mortalidade.
As mortes eram justificadas pelos médicos do Serviço Profilático como decorrentes
da fragilidade dessas crianças e de sua debilidade congênita. Porém, estudos poste-
riores demonstraram a incorreção das premissas alegadas, vinculando as mortes às
condições de transporte e as dificuldades de prover alimentação adequada devido às
dificuldades na obtenção de leite humano.
A norma adotada na época era a da separação imediata do recém-nascido
e sua mãe no momento do parto, seguida do envio da criança para o Preventório.
Adotava-se a regra sem considerar os riscos a que seriam submetidas crianças,
com apenas algumas horas de vida, durante as longas distâncias a serem percor-
ridas entre os Asilos-Colônia, situados no interior do Estado, ao Santa Terezinha.
Médicos ligados ao Preventório alertavam sobre os perigos decorrentes da forma
de transporte inadequada e das condições adversas das viagens “A distância em
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
400 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

que se acham localizados os Asilos-Colonia, alguns a mais de 400 quilómetros da


Capital, motiva a demora da chegada daquelas crianças à Instituição, demora essa
que expõe a saúde e ulterior desenvolvimento dos recém-nascidos a graves danos
(...). Acresce notar-se que o transporte feito por estradas de ferro, caminhões, etc,
nem sempre atende e provê à necessária proteção contra resfriamentos e infec-
ções...” (BARROS, 1943, p.93 e 94)
Verificamos que os cuidados com envio dos recém-nascidos não parecia ser
fator de preocupação da direção dos Asilos-Colônia uma vez que, além dos riscos
já elencados, remetiam as crianças sem o acompanhamento de pessoas qualificadas;
conforme demonstra o documento nº. 747 emitido pela direção do Asilo-Colônia
Aimorés, uma lavadeira foi designada para acompanhar duas crianças recém-nasci-
das numa viagem de cerca 350 quilómetros de São Paulo.

Bauru, 11 de outubro de 1943.


Ilmo Sr. Dr. Nelson de Souza Campos
DD Diretor do D.P.L.
É a portadora do presente a lavadeira Maria Conceição Silva, que con-
duz para a internação as recém-nascidas N. L. P, filha dos internado G.
P. e E. L. P. e S. N. M., filha dos internados S. M. e L. N. . Envio também
para serem encaminhadas a referida Creche, fichas social e de interna-
ção das menores acima.
Tenho a honra de reiterar a V.S os protestos de minha distinta consi-
deração e elevada estima.
Dr. Murilo A de Oliveira
Diretor Clínico 11

Discussões sobre a vulnerabilidade de filhos de hansenianos era tese comum


na época sendo frequente atribuir as mortes a fatores como fragilidade e menor
resistência dessas crianças às doenças infecciosas, como assinalava Pupo “A grande
mortalidade do primeiro anno de vida entre as crianças, resulta de um déficit de
resistência, dependente das condições de saúde de seus paes e da má hygiene dos
lares de onde provieram” (PUPO, 1936, p. 274). Durante os nove anos iniciais dos

11 Na transcrição do documento optamos por omitir os nomes e mantendo apenas as iniciais


Histórias de Doenças 401

127 recém-nascidos recebidos pela instituição, 53 morreram antes de completar um


ano, dessa forma o índice de mortalidade chegava a 41,7%.
O número de óbitos fez com que a direção do Santa Terezinha procurasse
formas de reverter o quadro e dentre elas estava a transferência da creche para a
Capital. As dificuldades para implantação do projeto fizeram com que somente em
1937 fosse fundado o berçário “Carolino Motta e Silva” num imóvel adaptado loca-
lizado na Avenida Água Branca, nº 147, na cidade de S. Paulo. Esse fato teve reflexos
imediatos o índice de mortalidade cujos índices passaram a ser equivalente aos das
outras crianças da época (MONTEIRO, 1998, p. 12).

Crianças no Asilo de Santa Terezinha.


Arquivo Iconográfico do Instituto de Saúde

Questões envolvendo a mortalidade dos recém-nascidos foram criteriosa-


mente analisadas por Octavio Gonzaga pediatra do Santa Terezinha juntamente
com outros três médicos que atendiam na instituição. O grupo passou a estudar
criteriosamente cada caso realizando autópsias em todos eles. A partir desses es-
tudos foi possível a contestação das teses que atribuíam o elevado a fatores como
lepra congênita ou desnutrição progressiva. Em suas conclusões a mudança da creche
para a Capital foi assinalada como um importante marco a partir do qual a situação
de alta mortalidade foi revertida. A nova creche foi descrita como não sendo ainda
uma instituição modelar “mas que tem permitido uma melhor assistência médica e
dietética, fazendo cair a elevada mortalidade assinalada pelos colegas Aguiar Pupo e
Nelson de Souza Campos, quando relataram os obituários nos seus primeiros nove
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
402 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

anos de funcionamento” Gonzaga fez fortes críticas aos estudos até então publicados
por grandes nomes da época afirmando que “para chegar a resultados satisfatórios,
não basta reunir documentos, mas é preciso examinar cada caso com método e es-
pírito crítico” (GONZAGA et alii, 1941, p 19).

A publicação dos estudos de Gonzaga e seu grupo se constitui em uma das


poucas críticas realizadas na época, nela os autores apontam as dificuldades
enfrentadas pelo atendimento médico devido a superlotação e por não contar
um serviço técnico de enfermagem. Criticavam o fato dos serviços serem re-
alizados por religiosas pois, muito embora fossem dotadas de “espírito de de-
dicação, “não primam pelos seus conhecimentos de puericultura”. Criticavam
ainda o fato das religiosas, por economia, serem auxiliadas pelas asiladas mais
crescidas porém de instrução rudimentar. (GONZAGA et alii, 1941, p 21).

Com o passar dos anos, e devido à alta demanda de leitos, fez-se necessário a
ampliação da creche. Novas campanhas foram realizadas para levantamento de fun-
dos e uma nova creche foi construída e, em 23 de agosto de 1950 a creche foi trans-
ferida para o novo prédio, localizado à Rua Morato Coelho, no bairro de Pinheiros
com capacidade para abrigar 100 crianças12. Desde sua transferência para a Capital,
o berçário recebia todas as crianças nascidas nas instituições de isolamento que ali
permaneciam até três anos de idade quando então eram transferidas para a unidade
de Carapicuíba.
É interessante destacar que nos Preventórios paulistas havia uma normati-
zação quanto a documentação da criança. Todas as crianças nascidas nos Asilos-
Colônia, ao sair deveriam obrigatoriamente portar um rol de documentos constituí-
dos por: registros de nascimento, de batismo e das fichas social, dermatológica, e de
internação. A ficha epidemiológica do recém-nascido era extensa e nela deveriam
constar: nome, dia e hora e ano do nascimento; dia nora e ano da saída do hospital
e de entrada na creche; nome do pai e da mãe, declaração de seu estado de saúde
dos genitores; tempo e forma da moléstia, se leprosa a mãe por ocasião do parto e
seu estado durante a gravidez; existência ou não existência de reação leprótica e de
lesões lepróticas nos órgão genitais, exames bacteriológicos, tipo de parto, número

12 A família Mesquita esteve sempre ligada ao Santa Terezinha, e uma das herdeiras do Jornal
Estado de São Paulo, Maria Mesquita Mota e Silva doou o terreno para sua construção e o
Jornal contribui na divulgação campanha de arrecadação de fundos.
Histórias de Doenças 403

de filhos e de abortos depois o início da doença. Essa ficha acompanhava a criança


ao preventório, lá ela seria examinada periodicamente, os exames eram mensais du-
rante os três primeiros anos de internação e depois ficavam mais espaçados. De dois
em dois meses no terceiro ao quinto ano de internação e depois a cada três meses do
quinto ao oitavo ano passando então a cada quatro meses (ROCHA, 1942, p. 458).
Ao estudar a documentação desses menores verificamos que a ficha contendo
dados clínicos, e que possibilitava informes e controle sobre a doença, tinha prio-
ridade sobre os registros. A análise da documentação demonstrou que, embora as
instituições declarassem sua eficiência, muitas vezes acontecia de providenciarem
o registro de nascimento da criança. Como foi o caso da menor M. A J, nascida
no Asilo-Colônia Aimorés, somente depois de oito anos de internação é que foram
solicitados os dados da mãe para que o Registro de nascimento fosse providenciado
(Prontuário Clínico n.º. 4497).
Fatos como esse demonstram que dados e informações sobre a doença eram
mais importantes do que a documentação pessoal da criança, e que os documentos
que a identificavam como filha de leprosos prevaleciam sobre o documento civil que
a identificaria como cidadã.

Críticas ao Santa Terezinha e ao modelo preventorial

Muito se escreveu na época elogiando as instalações e a orientação dada pelo


Estado de São Paulo com respeito aos Preventórios, entretanto poucos tiveram espaço
para criticar o sistema, dentre eles destaca-se o médico e jornalista carioca Floriano
Lemos que, com frequência, criticava o modelo paulista de assistência à lepra; sendo
que suas críticas também abrangiam os Preventórios. Em artigo publicado em 1939
ele já antevia o problema que o modelo iria gerar no futuro, explicitando de forma
clara e objetiva o que seria o destino dessas crianças que, embora sadias, estariam
condenadas à exclusão social:

não acreditamos que essas criancinhas (...) amanhã quando adultas tenham
fácil acesso em nossos lares, em nossa sociedade. Estarão condenadas a
constituir um grupo à parte e, como parias, terão que viver à margem da
nossa sociedade. Serão ex-pensionistas do Asylo Santa Terezinha! Senão no
physico, pelo menos moralmente carregarão para sempre a herança paterna.
(...) Maldirão por certo a nossa falsa caridade que permitiu a sua existência
(LEMOS, 1939).
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404 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Reconhecendo as dificuldades dos egressos Margaria Galvão, em 1940, su-


geriu ao Departamento de Profilaxia da Lepra que nas certidões de nascimento não
constasse ter a criança nascido em leprosário Alegava a existência de dificuldades
quase insuperáveis por as mesmas não poderem ocultar serem filhos de leprosos.
A sugestão foi acatada e, a partir de 1941, nas certidões emitidas passaram constar
apenas o município nascimento. Entretanto, e ainda assim, o fato de terem vivido, ou
passado por Preventório constituía por si só em fator de descrédito social; fazendo
com que o egresso procurasse formas de manipular informações sobre seu passado
não fosse de conhecimento terceiros. Ou seja, os egressos passavam a vida procu-
rando ocultar suas origens.
As características e o modelo de funcionamento do Santa Terezinha permite
que se enquadre no conceito de instituição total do Goffman. Nela seus internos
tinham a vida inteiramente controlada e as possibilidades de interação com a so-
ciedade mais ampla eram extremamente difíceis. As regras eram rígidas, o controle
absoluto e a submissão era a norma.
Os estatutos previam a educação e o preparo para a vida extramuros, mas
o que ocorria era o despreparo e a situação de vulnerabilidade. As crianças faziam
o curso primário dentro da própria instituição e o ensino profissionalizante que,
dentro da ótica da época significava formação de mão-de-obra para o mercado de
trabalho, se constituía na realidade em aprendizados realizados em oficinas dentro
do Preventório ou no exercício de funções internas. Em geral as meninas aprendiam
a costurar, bordar, cozinhar e eram aproveitadas como pajens das crianças mais no-
vas; os meninos aprendiam certos ofícios como sapataria, carpintaria e seus serviços
eram muito utilizados na lavoura e cuidado dos animais. Ou seja, o chamado ensino
profissionalizante acaba por ser realizado dentro dos espaços institucionais fazendo
com que o menor tivesse contato apenas com seus pares.
Muito embora, nos discursos, o menor estivesse sendo preparado para ter
uma profissão para quando saíssem, na realidade eles eram “preparados” para viver
na instituição e não fora dela. Os relatos de egressos evidenciam as dificuldades de
adaptação, a falta de confiança, além de certo sentimento de inferioridade que os
acompanhariam para o resto de suas vidas. Fatores esses agravados pela estigmatiza-
ção e o medo sempre presente de serem “descobertos” como egresso de preventório.
Em 1952, ocorreu a modificação do nome, de Preventório para Educandário
medida que, em tese, ajudaria a minimizar a estigmatização das crianças internadas,
entretanto verifica-se que a modificação foi apenas terminológica em nada alteran-
Histórias de Doenças 405

do o cotidiano dos internos. Ao se analisar o ocorrido dentro de um quadro maior,


podemos verificar que o fato ocorreu no bojo de reformulações que estavam ocor-
rendo no DPL, dentro disso foi decidido que o ônus representado pelo Preventório
de Jacareí saísse de sua estrutura passando a ser responsabilidade da então Secretaria
da Saúde Pública e da Assistência Social, conforme pode ser verificado no texto da
Lei 1676 de 31/07/1952. A decisão teve reflexos também no Santa Terezinha que
alterou sua designação para Educandário.
Em 1957 jornais publicaram matérias sobre irregularidades no Santa
Terezinha, funcionários mal preparados, violência e espancamento contra as crian-
ças foram publicadas; situação que culminou em sindicância realizada pelo Juizado
de Menores. Nela servidores foram acusados, porém a direção acabou sendo ino-
centada por afirmar ignorar o que ali se passava. Verificamos que na época ocor-
reram embates entre os jornais, enquanto A Ultima Hora, criticava a instituição O
Estado de São Paulo, saia em sua defesa. Apesar das acusações, tudo acabou sendo
acertado e a continuidade em nada foi alterada, a direção se manteve assim como
a vida intramuros.

Considerações finais

Nos anos cinquenta discussões intensas estavam sendo mantidas entre os


grupos técnicos nacionais e internacionais resultando na pressão para que mudan-
ças significativas fossem adotadas. Nos congressos internacionais, com reflexos nos
nacionais, já havia sido atestada a inutilidade da politica profilática até então ado-
tada. Nas resoluções finais do 7º Congresso Internacional de Lepra, realizado em
Tóquio em 1958, foi reafirmado ser o isolamento obsoleto e anacrônico, que a lepra
era uma doença como qualquer outra e que não deveria ser vista ou tratada de for-
ma diferente. No Brasil estava sendo proposta a “Nova Orientação Profilática” que
atestava o insucesso da politica anterior afirmando que a “fórmula: Leprosário+ dis-
pensário especializado + preventório = Controle da Lepra; perdeu completamente o
valor por ser inoperante” (Manual de Leprologia, 1960). Foi proposta a substituição
da politica profilática anterior por outra profilaxia baseada no diagnóstico precoce,
tratamento sistemático e educação sanitária.
Dentro desse quadro a justificativa para a existência de preventórios foi sendo
paulatinamente relativizada. Em 1960 ainda era recomendado que, quando possível,
os menores fossem afastados do foco contagiante; porém foram reconhecidas e assi-
naladas as desvantagens psicológicas e sociais advindas da internação das crianças.
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406 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Quanto aos recém-nascidos a indicação era de que fossem separados dos pais en-
fermos, porém e apenas se esses fossem portadores de forma contagiante da doença
(Manual de Leprologia 1960, p166). A partir disso o Preventório perdia seu papel
de importância passando a ser “Tecnicamente dispensável como órgão profilático.
Útil como órgão de assistência social”. A orientação era de que os descendentes de
portadores de hanseníase deveriam ser admitidos em estabelecimentos gerais de
assistência á infância e que os preventórios existentes não deveriam ser fechados,
porém reajustados a nova situação de fato recebendo também “crianças de outras
origens” (DINIZ, 1960, p 106). As propostas feitas pela Nova Orientação Profilática
resultaram no Decreto Federal nº 928 de 7 de maio de 1962 que, ao menos no texto
legal, aboliu isolamento compulsório no país.
Entretanto, apesar das discussões realizadas e a nova norma legal que passava
a ter vigência no território nacional, São Paulo continuava isolando os portadores de
hanseníase e, por conseguinte a continuidade do problema do abandono das crian-
ças sadias. O DPL por não dispor de dados que comprovassem a eficácia do isola-
mento se escudava no discurso da proteção a sociedade sadia. Essa postura acabou
por prolongar a vida dos Preventórios Paulistas dentro do modelo anteriormente
concebido; demonstrando que ideias arraigadas podem se perpetuarem por mais
tempo, a revelia até mesmo da modificação das leis.
Ao analisarmos o funcionamento dos Preventórios em São Paulo, verifica-
mos que estes acabaram por adquirir características semelhantes às das instituições
totais descritas por Goffman e que o tipo de política profilática adotada pelo Estado
acabou por dar origem a um grupo social que, embora fosse sadio, partilhava da
mesma herança estimagmatizante dos portadores de hanseníase. Pudemos verifi-
car que o simples fato da existência dessas instituições com suas das características
peculiares de funcionamento tais como o distanciamento dos centros urbanos e a
segregação de seus internos, contribuíram para o fortalecimento da estigmatização
que envolve seus egressos até os dias de hoje.

Referências

Fontes Primárias

Acervo Iconográfico do Instituto de Saúde


Arquivo de Médico de Hanseníase do Estado de São Paulo
Histórias de Doenças 407

Jornal Diário Nacional


Jornal Folha da manhã
Jornal O Estado de São Paulo
Regulamento dos Preventórios para filhos de Lázaros instalados no Brasil,
Rio de Janeiro, 1941.

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Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
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Uma estratégia Sui generis de combate
à lepra no Ceará: escrita e publicação do
livro Memórias de um leproso de Anselmo
Fraga, na década de 1920
Zilda Maria Menezes Lima1

O combate à lepra no estado do Ceará ocorreu de modo mais sistemático a partir


da década de 1920, orquestrado por inúmeras associações de caridade exis-
tentes principalmente na cidade de Fortaleza, sob as “bênçãos incondicionais” da
Igreja Católica. A exemplo do que ocorrera em outros estados e cidades no Brasil,
foram utilizadas inúmeras estratégias para arrecadação de recursos, no sentido do
empreendimento da luta contra a temível doença na­quele momento: o isolamento.
Em meio a chás dançantes; óbulos recolhidos de casa em casa; bilheteria de cinemas;
festivais de canto e piano; campanhas para doação de material de cons­trução e até a
renda de uma noite em um prostíbulo de luxo, enfim, foram muitas as iniciativas no
período acima citado, na tentativa de angariar o montante necessário para a edifica-
ção do primeiro leprosário cearense.
Porém, apresentar o livro “Memórias de um Leproso” como mais um elemen-
to dessa “batalha renhida” é o objetivo deste ensaio. No entanto, antes de apresentar
esta inusitada ação de combate à lepra, creio ser pertinente expor algumas estraté-
gias encampadas por vários seg­mentos da sociedade fortalezense, empenhados na
construção do primeiro leprosário cearense no período em tela.
A iniciativa de vários setores da sociedade cearense, e mais particularmente
fortale­zense, foi fundamental para desencadear inúmeras campanhas em prol da
construção da pri­meira leprosaria cearense. Várias comissões percorreram a cidade,

1 Professora Adjunta da Universidade Estadual do Ceará. Doutora em História Social (UFRJ) e


pós-doutora pela Indiana University (USA).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
410 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

divididas em circunscrições, visando bem organizar o serviço de arrecadação de


meios para “tão justo e humanitário fim”.
Em meados de 1926, no entanto, a imprensa local noticiou amplamente que
o Coronel Antonio Diogo de Siqueira, abastado “capitalista” cearense, financiaria as
obras de constru­ção do leprosário do Ceará. A notícia causou grande alvoroço e as
manchetes dos principais jornais em tom provocativo e irônico anunciaram: “Seria
então um homem a fazer o que os governos não podiam ou não queriam fazer?”
(Jornal O Nordeste, 14 de agosto de 1926, p 01) ou “O Coronel Antônio Diogo vai
construir, às suas expensas, o leprosário?” (Jornal Diário do Ceará, 16 de agosto
de 1926, p 02) ou ainda “Abastado Capitalista faz às vezes de governo e constrói
Leprosário no Ceará” (Jornal Correio do Ceará, 18 de agosto de 1926, p. 3). Nos
dias seguintes o Coronel Antônio Diogo concedeu entrevistas aos vários periódicos
da cidade, transformando-se seguramente, no personagem mais popular das terras
alencarinas naquele ano. Mais de vinte anos depois, tal feito ainda seria recordado:

O Coronél Antônio Diogo, num gesto de elevado alcance social, fez doação de
cem mil contos, destinada à construção de um isolamento, que ficou situado
nas adja­cências do Povoado da Canafístula, terras da Colônia Cristina, cedi-
das pelo Presi­dente Moreira da Rocha. O governo, além do terreno, uma área
de um quilômetro quadrado, concorreu mais ou menos com a importância de
cinquenta contos de réis. Todavia, a contribuição particular foi sempre mais
entusiástica e segura, sendo de notar, sobretudo, o nobre gesto do capitalis-
ta cearense. (BOLETIM COMEMORA­TIVO DAS BODAS DE PRATA DA
COLÔNIA ANTÔNIO DIOGO, 1953, p. 82.).

Naquele ano, a iniciativa de Antônio Diogo e sua ruidosa divulgação, pro-


vocou uma onda de novas campanhas em prol da construção do leprosário. A im-
prensa publicava quase diariamente o surgimento e desenvolvimento de uma série
de iniciativas da sociedade fortale­zense em favor da construção do “abrigo para os
leprosos”, vejamos:

A Liga Operária pró-leposário, projetando uma Festa Veneziana no parque


da Li­berdade nos 10, 11 e 12 do corrente em benefício da construção do le-
prosário, apela por nosso intermédio para a generosidade das distintas famí-
lias fortalezenses, no sentido de as mesmas enviarem algumas prendas para
a kermesse que ali se rea­lizará, como um dos números do programa da festa.
Histórias de Doenças 411

As distintas famílias que se de­signarem a atender a este apelo poderão dirigir-


-se ao Sr. Abel Teixeira, no Clube Iracema (JORNAL O NORDESTE, 26 de
setembro de 1926, p 2).

E ainda:

A Escola de Aprendizes Marinheiros querendo prestar o seu concurso à ideia


altruística e humanitária do Coronel Antônio Diogo, em benefício da cons-
trução do leprosário, levará a efeito uma festa náutica no Par­que da Liberdade
no dia 05 de setembro próximo (JORNAL CORREIO DO CEARÁ, 18 de de-
zembro de 1926, p.3).

Iniciativas semelhantes neste período, muito concorridas, figuravam dias e


meses nas páginas dos jornais. No ano seguinte, ainda posso citar a realização de
um Festival de Pia­no no Teatro José de Alencar, em março. Em abril, um Leilão
Benemérito de várias telas doadas pelos pintores cearenses Darki Parreiras e Ângelo
Guido, na sede do Clube Iracema. Os “Chás Elegantes” também conhecidos como
“five o’clock”, reverteram-se em chás de caridade em proveito do leprosário. Enfim:
saraus, apresentação de orquestras e exposições entre outros eventos, foram comuns
em 1927 com vias a contribuir para a edificação daquele que seria “o mair legado de
almas caridosas em prol dos leprosos necessitados” (O NORDESTE, 22 de outubro,
1927, p. 3).
Além das iniciativas citadas, ainda posso destacar o empenho das várias as-
sociações de classe, na arrecadação de auxilio financeiro junto aos seus associados,
os comitês criados pela Escola Normal e Acadêmicos da Faculdade de Direito. Sobre
este último, foi publicada uma nota deveras interessante, provando que nem todas
as doações eram bem vindas:

Esteve nesta redação uma comissão do Comitê Acadêmico da Facul­dade de


Direito Pró-Leprosário, que nos pediu tornássemos público, que o mesmo
comitê, absolutamente, não aceitou o produto de uma noite de orgia, organi-
zada em certa pensão suspeita, nesta capital, por uma rameira, em favor da
construção da Lazarópolis. (O NORDESTE, 27 de dezembro de 1927, p. 3).

Nos primeiros dias do ano seguinte, o mesmo periódico noticiou que a


Câmara Muni­cipal de Fortaleza havia instituído um imposto de 6% sobre os in-
gressos do cinema e de ou­tras diversões, reservando do total da referida quota, 8%
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
412 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

para auxiliar na criação do leprosário do Estado. A iniciativa foi muito louvada pelo
referido jornal que sugere à Assembleia Esta­dual votar uma verba especial destinada
à construção de um hospital para os “lázaros”2.
Importantes também neste sentido foram as várias campanhas organizadas
pela Liga das Senhoras Católicas (LSC), presidida pelo Monsenhor Tabosa Braga,
Vigário-Geral da Arquidiocese de Fortaleza e Membro da Comissão Pro-Leprosário
da Canafístula (CPLC), posteriormente, Comissão Pró-Leprosário Antonio Diogo
(CPLAD). Nesta cidade, reafirmo, a ação da Igreja Católica foi fundamental, não só
para a edificação de um espaço específico para os “le­prosos”, como para a manuten-
ção e funcionamento do mesmo (LIMA, 2009, p. 102).
Assim, foi intrigante realizar um levantamento das ações publicadas pelos
jornais cujo objetivo eram a construção do leprosário cearense no ano de 1925 (ano
de publicação da obra) e constatar que em ne­nhuma aparece ou foi sequer mencio-
nada a publicação de uma obra intitulada “Memórias de um Leproso” cuja venda
deveria reverter em prol da edificação da leprosaria do Ceará. Porém, para maior
entendimento da questão que suscitou a escrita deste texto, começo pelo excerto
abaixo que consiste numa espécie de apresentação da obra supracitada:

Ao regressar ao Ceará, depois de uma longa ausência, o meu primeiro cui-


dado foi rever os velhos companheiros de infância. Entre eles era o Henrique
um dos que mais se me afeiçoara e um dos mais distinguidos pela minha
amizade. Uma sur­presa horrível estava reservada ao meu coração: o Henrique
ficara leproso e vivia abandonado num velho casebre, morto de fome e de
frio. Ainda assim, fui procurá-lo. Não o reconheci: era uma carcaça, no fundo
de uma rede imunda, quase nos úl­timos estertores da vida. Não me reconhe-
ceu também. Ao dizer-lhe quem era chorou muito, desdobrando diante dos
meus olhos o quadro horroroso da sua moléstia, desde os seus primórdios.
Ao despedir-me, disse-me – Anselmo, vou confiar-te um trabalho meu, são
minhas memórias. Se encontrares, algum dia, os meus filhos, en­trega-as para
que vejam o quanto sofri! Em caso contrário, dá-lhes o fim que te aprouver.
Não encontrei os filhos do querido amigo. Li as memórias e fiquei real­mente

2 As campanhas eram frequentes, embora se destacassem aquelas promovidas em datas especiais


como o natal, festas juninas e como não poderia deixar de ser, a páscoa. A campanha denomi-
nada “Jejum dos Lázaros,” promovida anualmente pelo periódico O Nordeste, constituía-se na
principal ação de distribuição de “óbolos aos lázaros” organizada pela sociedade fortalezense.
Histórias de Doenças 413

impressionado. Assim, resolvi publicar as memórias do meu infeliz amigo e


oferecer o produto de sua venda em favor da leprosaria que o governo cearen-
se, inspirado no mais são e humano dos patriotismos pretende construir para
fazer a verdadeira campanha de profilaxia contra a doença da morte. Aí fica
o meu pequeno contingente, já que a fortuna não quis permitir que ofereces-
se coisa de maioria. Entrego-o ao coração generoso dos meus conterrâneos.
(FRAGA, 1925, p.3).

O único exemplar do livro “Memórias de um Leproso” do qual o excerto aci-


ma foi extraído, pode ser encontrado no setor de Obras Raras da Academia Cearense
de Letras3. Porém, atualmente, é impossível ler/manusear/analisar, tocar que seja, a
citada obra, face ao seu péssimo estado de conservação. Porém, em julho de 2003,
quando com ele me deparei ao recolher material para minha tese de doutoramento,
encontrei-o ainda em bom estado e pude utilizá-lo em algum momento na compo-
sição da escrita da minha tese4.
“Memórias de um Leproso” apresenta a cidade de Fortaleza como cenário ve-
rossímil para o drama particular de Henrique, um jovem médico que, nos primeiros
anos da década de 1920, descobriu-se leproso. O período em que ocorre a narrativa
de Henrique e a publicação do livro pelo amigo Anselmo Fraga (1925), após a morte
do primeiro, coincidem exatamente com o momento em que foi amplamente veicu-
lada pela imprensa cearense a expansão da “moléstia de Lázaro” na capital do estado.
O leitor, a princípio, não pode definir se é real ou fictícia, a narrativa da dor
e deses­pero de um homem acometido pela lepra a partir das páginas do texto em
questão. Afinal, aquela poderia ser tão somente a descrição dos suplícios de qual-
quer portador da doença na­quela ou em qualquer outra cidade no Brasil. Porém,
uma análise mais atenta pode revelar outras inten­ções a um leitor portador de infor-
mações que ultrapassassem o conteúdo ali depositado.

3 A Academia Cearense de Letras situa-se à Rua do Rosário, n. 1. Centro, Fortaleza-Ce.


4 Minha tese de Doutoramente, intitulada “O grande polvo de mil tentáculos: a lepra em
Fostaleza (1920 -1942), orientada por Maneol Salgado (UFRJ, 2007), versou sobre o impacto
ocasionado pela lepra na cidade de Fortaleza-Ce e as estratégias dos poderes e saberes cons-
tituídos no sentido de combate-la, foi publicada em versão reduzida em 2009, sob o título de
“Uma enfermidade à flor da pele: a lepra em Fortaleza (1920-1937)” com o selo da secretaria
de cultura do estado do Ceará.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
414 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Naquelas páginas é claramente perceptível um manifesto acerca da neces-


sidade do isolamento compulsório dos doentes; é óbvia a defesa contundente de
medidas estatais de controle da doença bem como a crença no caráter contagioso da
enfermidade. Tais questões eram ainda polêmicas no Ceará do primeiro quartel dos
anos 1920, mas já se encontravam desenhadas na narrativa do leproso Henrique e
por ele ardorosamente defendidas no trans­correr do seu relato.
As “Memórias” do Dr. Henrique expressam, com riqueza de detalhes, todo
o processo de evolução da doença de que teria sido vítima e o incipiente tratamen-
to a que fora submetido. A narrativa conduz o leitor por uma trilha que revela os
vários estágios clínicos da doença bem como o drama psicológico vivenciado por
Henrique, situado entre as suspeitas e o diag­nóstico definitivo. Assim, há o momen-
to que antecede ao conhecimento do diagnóstico em que é descrito todo o drama:
as dúvidas que o atemorizam; a esperança de que não tivesse contraído a doença; o
receio de ir ao médico; o medo da reação dos amigos; os planos para o futuro e por
fim, o diagnóstico fatal; a fuga da família e da sociedade; a necessidade de “por no
papel toda a sua dor” e por fim, a morte presumida.
O que chama a atenção, no entanto, é o caráter didático da obra no sentido
das infor­mações prestadas acerca da profilaxia da doença, ou melhor, do que se con-
siderava à época prevenção e tratamento para a “moléstia” – afinal, Henrique era
médico. São também muito claros os argumentos e a in­sistente argumentação na de-
fesa da necessidade do isolamento compulsório bem como da urgência na constru-
ção de um leprosário no Ceará. Porém, o autor não mencionou a responsabilidade
que cabia aos poderes instituídos nessa empreitada. Seu texto parece sugerir que a
sociedade em geral era portadora do dever moral de encampar essa luta.
A narrativa e autoria do livro me intrigaram desde a primeira leitura. Primeiro,
por estar classificada como obra de memória e, segundo, porque a obra me parecia
tão afinada com os preceitos higiênicos da época que mesmo para profissionais da
medicina (ambos eram médicos – personagem/narrador e o amigo, supostamen-
te responsável por publicizar a obra) que a mim pareceu, a despeito de uma certa
qualidade literária, que o autor objetivava escla­recer aos supostos leitores acerca da
importância de se combater a lepra em virtude do perigo que ela representava para a
população sã. Parece também representar um alerta no sentido de esclarecer à soci­
edade em geral que ninguém estava imune ao seu contágio: nem mesmo os médicos!
Naquele momento, apesar da obra me atrair e intrigar muito, pela narrativa
pungente e mais ainda pelas informações técnicas ali depositadas, não consegui des-
Histórias de Doenças 415

cobrir absolutamente nada sobre um romancista, contista, jornalista ou mesmo um


médico chamado Anselmo Fraga. Muito menos havia nos anais médicos cearenses
um médico sequer, cujo um dos no­mes fosse Henrique no âmbito daquele contexto.
A princípio imaginei que se a narrativa fosse realmente fruto da memória de um
leproso, era muito comum que fosse ocultado seu verda­deiro nome, afinal aqueles
acometidos pela lepra ocultavam a doença e tal atitude era con­tumaz entre a família
e os amigos de um leproso.
A escrita da tese como absoluta prioridade bem como a ausência de res-
postas que a leitura de Memórias de um Leproso pudesse me fornecer, quase me
fizeram esquecer a obra. Porém, uma década depois, por mero acaso, ao folhear
despretenciosamente um dos números da Revista do Instituto do Ceará: Histórico
e Antropológico, descobri finalmente, quem era Anselmo Fraga, o que estava subja-
cente à escrita do livro e qual o seu objetivo com o texto Memórias de um Leproso.

Atualpa Barbosa Lima ou Anselmo Fraga: sobre a lepra

Atualpa Barbosa/Anselmo Fraga. Fonte: http:arch.coc.fiocruz.br/index.php/qfdmw.

Em um subúrbio de Fortaleza, no Barro Vermelho, nasceu Atualpa Barbosa


Lima no dia 19 de janeiro de 1894, tendo como pais o capitão Norberto Barbosa
Lima e a professora Sabina da Cunha Barbosa Lima, sendo o terceiro de uma fa-
mília de 10 filhos (Maria, Aristó­fanes, Atualpa, Georgina, Maria Augusta, Roberto,
Norberto, Maria Isaura, Joanita e Judite).
Médico formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, em 1918,
Atualpa iniciou o exercício da profissão como clínico e cirurgião no interior do
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
416 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

Ceará. Manteve con­sultório nos municípios de Baturité�, Camocim5, Sobral6, onde


ocupou o cargo de chefe do Ser­viço de Profilaxia Rural, somente estabelecendo re-
sidência na capital cearense por volta de 1920. Em uma época em que eram raros os
especialistas, consolidou sua presença nos campos da Neurologia e da Leprologia,
dedicando-se ao tratamento da lepra e tornando-se um dos pioneiros no trato com
esta enfermidade no Ceará.
Dr. Atualpa foi responsável pelo primeiro censo estatístico dos doentes de le-
pra reali­zado neste estado. Os censos eram, óbviamente, fundamentais para as ações
de profilaxia da doença posto que era primordial saber, afinal, qual o número (pelo
menos aproximado) de en­fermos no Brasil. Planejar ações de combate à moléstia
sem a realização de um censo poderia levar a equívocos no sentido de não serem
atendidas as regiões mais endêmicas. Desse modo, entre 1923 e 1927 foi iniciado
um levantamento do número de leprosos em alguns estados brasileiros. Vejamos:
CENSO 1923 1924 1927
Amazonas 272 838 1000
Pará 1452 2540 2000
Maranhão 450 680 1200
Ceará 141 457 1000
Pernambuco 131 355 427
Distrito Federal 456 1200 1607
Minas Gerais 601 601 5000

Revista Ceará Médico, abril, 1929, p. 5.

A partir do quadro acima é possível observar que o Ceará foi um dos sete
estados be­neficiados com o censo e dentre os estados inicialmente observados ocu-
pou a quarta posição com o estado do Amazonas. Sob a coordenação do Dr. Carlos
Ribeiro, chefe do Serviço de Profilaxia Rural, Dr. Atualpa executou o primeiro pla-
nejamento para a realização do censo de leprosos no Ceará, cujo objetivo era rea­lizar
o exame dos suspeitos nos 84 municípios cearenses. Foram distribuídos formulá-
rios de notificação aos prefeitos, delegados de higiene e médicos nas 84 localidades.
Cerca de 50% dos municípios realizaram o censo e assim, conforme o quadro acima,
por volta de 1927, o Estado à época abrigaria por volta de mil leprosos. Porém, é
importante reafirmar que apenas metade dos municípios atendeu à solicitação de
realizar o censo.

5 Cidade praiana, situada a noroeste do estado.


6 Cidade também situada ao norte do estado.
Histórias de Doenças 417

Segundo o leprólogo cearense, um grande problema no trato com aos doentes


era a au­sência de cuidados higiênicos básicos entre os enfermos, bem como o fato
dos leprosos cir­cularem livremente e frequentarem todos os lugares públicos como
os cafés, cinemas, igrejas, bondes, casas de diversões e jardins, além de conviverem
normalmente com suas famílias e amigos mais chegados. Desse modo, a construção
do leprosário era absolutamente necessário. Para barrar essa “promiscuidade”.
Dr. Atualpa Barbosa Lima, escreveu e publicou em 1925, sob o pseudônimo
de An­selmo Fraga, o livro Memórias de um Leproso. Neste, descreveu em forma de
diário, “as dores físicas e a tragédia moral de um desgraçado sem salvação e sem
esperança: o leproso” bem como detalhou “todos os horrores sofridos pelo ser hu-
mano mais infortunado, pustu­lento e desesperado” (RAMOS, 1945, p.7).

Ainda muito moço e devotado à ciência médica que abraçara se lhe tem sido
propício o inexorável destino, decerto, deveriam nos­sas letras à sua pena, es-
tudos incontestáveis porque era notoável sua cultura geral e verdadeiramen-
te um intelectual. Cientista e Lite­rato deixou uma obra valiosa e hoje, rara,
“Memórias de um Le­proso” que se não é rigorosamente uma jóia, um modêlo
de lingua­gem, é, entretanto, um grande livro que cumpriu uma função social
benemérita ao tempo de sua publicação (RAMOS, 1945, p. 3).

O médico publicou seu livro num contexto em que inúmeras campanhas


eram realiza­das na tentativa de edificar a primeira instituição para isolamento dos
leprosos cearenses. As­sim, Dr. Atualpa, imaginou uma trama onde pudesse expor as
reais dificuldades e tristezas de um indivíduo acometido pela lepra. Acredito que
por ter uma formação específica em leprologia, entendeu que poderia contribuir
com lições minuciosas – e até didáticas, para uma campreensão maior dor enfermos
sobre a doença. Por outro lado, penso, Dr. Atualpa julgava que escrever sobre uma
realidade que fazia parte do seu cotidiano, poderia significar um alerta para a popu-
lação cearense como um todo.
Através da leitura do livro, é possível adquirir uma série de informações acer-
ca da doença, apresentadas em capítulos breves, porém, bem articulados num estilo
que situa-se entre o romântico e o informativo. Porém, é claramente perceptível as
mensagens principais da obra: estimular a piedade/caridade no que concerne à si-
tuação do leproso para consequentemente, reforçar a necessidade do seu isolamento
para a proteção dos sãos. Em essência: o que parece muito importante para o mé-
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
418 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

dico nesse momento, é que fosse iniciada, o mais rápido possível, a construção do
leprosário.
Segundo Ramos (1945 p. 4), os recursos levantados com a venda do livro
foram com­pletamente revertidos em prol da construção do primeiro leprosário do
Ceará, desejo expresso por Dr. Henrique, o personagem leproso na apresentação da
obra. Nas palavras de Dr. Atualpa (Anselmo Fraga) nas Memórias, estar doente de
lepra significava viver “um inferno de chagas e lágrimas, pois o leproso é o trapo
humano!” Necessário “ter compaixão da sua dor, a maior de todas, pelo angustiado
desespero que o cerca”. Aconselhava então: “fugi do seu contacto, pois êle é o porta-
dor do mal da morte” (FRAGA, 1925, p. 48).
No epílogo da obra, Henrique, o personagem leproso, despede-se:

Já não posso mais escrever as minhas memórias. A vista dantes tão clara, es-
curece a cada instante. Tenho a impressão nítida da morte, que já me não
apavora como anteriormente. É com absoluta serenidade que a receberei…
Também falta muito pouco para eu morrer. Vivos, creio, só tenho os braços e
o cérebro. Enfim, despeço-me do mundo, sem levar saudades… Pudera não…
Quem dele mal se apercebeu e tanta mágoa nele curtiu… Morro no escuro
como um cão vadio. Tanto melhor: as­sim não divisarei, na minha agonia, a
miséria humana… A misericórdia divina é sábia e protetora não iluminando
o nosso último instante de vida. É o con­forto dos desesperados. É o prêmio
de sua desdita.

Usar um pseudônimo para escrever, publicar e por à disposição da sociedade


cearense uma obra que acreditava, ser de fundamental importância para o combate à
doença, posto que possibilitava um conjunto de esclarecimentos acerca da moléstia
que a todos apavorava, foi uma estratégia ingênua se levarmos em consideração que
o público leitor era exíguo e por­tanto, vender o livro e arrecadar somas consideráveis
com a sua venda era uma qui­mera. Infelizmente, não consegui informações acerca
do sucesso ou fracasso no tocante a venda do livro citado. Também me é desconhe-
cido se houve uma segunda edição. È provável que não.
Como pôde ser observado, não foram poucas as estratégias utilizadas pelos
grupos li­gados ao exercício da caridade no estado do Ceará no sentido de armar
estratégias para arre­cadar fundos para a construção do primeiro leprosário cearense.
A iniciativa de Dr. Atualpa foi, talvez, interessante, mas não há indícios de que tenha
sido lucrativa. Acredito que a es­crita e publicação da obra podem ser entendidas
Histórias de Doenças 419

no âmbito do trágico significado da moléstia para a sociedade fortalezense e para a


sensibilidade de um médico que aparentemente, so­nhava ser um médico-escritor. A
obra é um alerta de alguém que acompanhou a trajetória da doença por dez anos:
de 1920, quando inicia o Dr. Atualpa o exercício da medicina em Fortaleza até 1930,
quando morre prematuramente, aos 36 anos.

Considerações finais

Em 09 de agosto de 1928, foi levada a primeira turma de enfermos para o


leprosário ccearense da Canafístula, transportada em um vagão isolado num trem
da Rede de Viação Cearense (RVC). Saíram de Fortaleza em número de 35 doentes
e mais sete foram recolhidos em outras estações, totali­zando em número de 42 os
primeiros enfermos. A composição do trem estava assim disposta: um carro aberto
para o transporte da bagagem dos doentes, uma prancha que faria o transporte dos
doentes da Canafístula até o Leprosário, um carro de passageiros exclusivamente
para os leprosos e um carro especial para o médico e o sacerdote. Ficou a cargo do
Dr. Antônio Justa7 (e não do Dr. Atualpa como era de se esperar) a direção clínica do
leprosário. A Administração geral da instituição foi entregue a três irmãs da Ordem
Franciscana. (BOLETIM COMEMORATIVO DAS BODAS DE PRATA DA COLÔ­
NIA ANTONIO DIOGO, 1953, p. 38).
O Leprosário da Canafístula – quando da sua inauguração, possuía instala-
ções físicas extremamente precárias, sem luz e sem um sistema de água adequado.
Eram mínimas as pos­sibilidades de prestar atendimento médico especializado visto
que o médico visitava o lepro­sário uma vez por semana e a medicação estava sempre
em falta. Concluo, então, que a cons­trução do Leprosário da Canafístula objetivava
atender a duas necessidades urgentes: evitar o “espetáculo” dos leprosos perambu-
lando pelas ruas da capital e tranquilizar a população apa­vorada, diante da ameaça
do contágio, na medida em que o perigo era afastado para longe do maior centro
urbano do Estado.

7 Dr. Antônio Alfredo da Justa, foi até sua morte, em 1941, o mais importante nome da le-
prologia cearense. Maiores informações sobre o médico e sua trajetória no combate à lepra
no Ceará, ver: PINHEIRO, Francisca Gabriela Bandeira, “O Médico dos Lázaros”: Antonio
Justa e o Combate à Lepra no Ceará. Fortaleza: 2016, Dissertação de Mestrado – Mestrado
Acadêmico em História (MAHIS-UECE).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
420 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)

A imagem aérea abaixo reflete a Colônia Antònio Diogo (não mais Leprosário
da Ca­nafístula, referência ao Distrito em que se localizava, mas nesse momento seu
nome é uma homenagem ao benemérito que ajudara a construir a agora moderna
colônia) já no final da década de 1930, após ter passado por várias reformas. Em
1928, havia apenas as 32 casas em formato de U, representando a zona doente. Após
o Plano de Construção dos Leprosários de Gustavo Capanema, grandes reformas
foram realizadas no Leprosário Antonio Diogo. Segundo a imagem abaixo, vê-se
ainda em forma de U a zona doente, ao meio a intermediária, seguida pela área
administrativa (a primeira edificação à esquerda na imagem). Informo que quase
nada mudou em nossos dias do ponto de vista da conservação das edificações que
formam o complexo hoje, denominado, Centro de Convivência Antônio Diogo.

Colônia Antônio Diogo - Redenção, Ceará. Final da década de 1930


Fonte: http:arch.coc.fiocruz.br/index.php/qfdmw.

As imagens da enfermidade, que a obra Memórias de um Leproso descor-


tinou, não são menos alarmantes que aquelas explicitadas pela imprensa cearense
– principalmente, nos jornais O Nordeste, Diário do Ceará e Correio do Ceará, que
durante as décadas de 1920, 1930 e 1940, circularam na cidade de Fortaleza. Os pe-
riódicos acima citados publicavam com regu­laridade, denúncias sobre “a situação de
penúria a que estavam submetidos os pobres lázaros a perambular pelas principais
artérias da cidade”. Ou seja, a necessidade do isolamento era a única solução viável
para a proteção de todos. E mesmo quando o isolamento compulsório foi visto de
forma “natural” não foram raros mo momentos em que a imprensa cearense articu-
Histórias de Doenças 421

lou campanhas em prol de possibilitar aos segregados uma vida mais dígna. (LIMA,
2007, p 232).
Assim, pode ser que ao leitor que uma questão acerca do Dr. Atualpa/Anselmo
Fraga desperte curiosidade: foi o cotidiano do médico que inspirou a sua prosa ou
a sua prosa foi inspirada pelo seu cotidiano. Não importa. Como bem enfatizou
Antônio Candido (Apud, SERNA, 2003, p.11) toda ficção está sempre enraizada na
sociedade, pois é em de­terminadas condições de espaço, tempo, cultura e relações
sociais que o escritor cria seu mundo de sonhos, utopias ou desejos, explorando ou
inventando formas de linguagem. É uma construção: uma forma de impressão e
expressão de uma dada realidade.

Referências

Fontes

Revista Ceará Médico, abril, 1929.


Boletim Comemorativo das Bodas de Prata da Colônia Antônio Justa – IOCE/1953.
Jornal “O Nordeste”, 1926, 1927.
Jornal “Correio do Ceará”, 1926.
Jornal “Diário do Ceará”, 1926.
FRAGA, Anselmo. Memórias de um Leproso. Fortaleza, 1925.

Bibliografia

LIMA, Zilda Maria Menezes. Uma Enfermidade à flor da pele: a lepra em Fortaleza
(1920-1937). Fortaleza, Secult/Museu do Ceará, 2009.
______. “O Grande Polvo de Mil Tentáculos”: a lepra no Ceará (1920-1942). Rio de
Janeiro, UFRJ, 2007. Tese de Doutorado.
RAMOS, Antônio. Uma Pena de Ouro.
SANTOS, Pedro Brum. Teorias do Romance:relações entre ficção e história. Santa
Maria: Editora da UFSM, 1993.
SERNA, Jorge Ruedas de. História e Literatura: Homenagem a Antônio Cândido.
Campinas, Unicamp, 2003.
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Esta obra foi publicada em São Paulo


no outono de 2018. No texto foi uti-
lizada a fonte Minion Pro em corpo
10,25 e entrelinha de 15 pontos.

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