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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
H578
Histórias de doenças [recurso eletrônico] : percepções, conhecimentos e práticas / organização Sônia Maria de Magalhães
, Leicy Francisca da Silva , Roseli Martins Tristão Maciel. - 1. ed. - São Paulo : Alameda, 2018.
recurso digital : il. ; 4 MB
Formato: ebook
Modo de acesso: world wide web
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7939-557-4 (recurso eletrônico)
1. Doenças - Brasil - História. 2. Saúde pública - Brasil. 3. Livros eletrônicos. I. Magalhães, Sônia Maria de. II. Silva,
Leicy Francisca da. III. Maciel, Roseli Martins. Tristão.
11 Prefácio
ações empreendidas para combatê-las. A tônica de outros estudos está nos caprichos
das doenças antigas que voltam travestidas em novas roupagens. Outros, ainda, abor-
dam as doenças mentais cuja compreensão, o tratamento e a cura vêm desafiando, ao
longo dos séculos, a evolução do conhecimento e permanecendo, parcialmente, um
mistério. A vida, enquanto objeto social e historicamente constituído, mostra as per-
manências e as transformações que explicam, de certa maneira, como as inovações
e os retrocessos nas concepções, ações e políticas sanitárias tornaram-se elementos
essenciais para se pensar saúde e a doença.
Histórias de Doenças: percepções, conhecimentos e práticas convida o leitor
a embrenhar pela historiografia da saúde e das doenças oferecendo uma pequena
amostra, porém cabalmente profunda, em termos de pesquisa teórica e empírica
sobre os objetos e problemas. Os textos reunidos com as suas diferentes ênfases, ob-
jetos e estilos narrativos, individualmente e em seu conjunto, contemplam as escritas
dessa rica história, um quadro representativo da qualidade e da variedade temática
produzida no Brasil.
Referências
N o final do século XIX e início do XX, Fortaleza passou por significativas trans-
formações na organização da saúde pública. Observou-se que, apesar da inten-
sa divulgação dos novos conceitos médicos de tratamento desenvolvidos na Europa,
houve a permanência de alguns preceitos da ciência que vinham sendo usados ao
longo do século XVIII e XIX, assim também os da medicina popular e da Igreja
Católica que também influenciavam no modo de ver e tratar as doenças.
Os estudos da microbiologia desenvolvidos por Louis Pasteur na França a
partir da segunda metade do século XIX, também contribuíram para os novos es-
tudos e métodos de tratamentos para as doenças vigentes no Brasil. E também para
um aprofundamento dos estudos científicos relacionados aos contágios e as trans-
missões das moléstias através de mosquitos, uma vez que o desconhecimento dos
modos de contaminação levava a explicações relacionadas ao castigo divino, crença
das alterações climáticas e a contaminação através dos miasmas.2
No começo do século XX as mudanças dos discursos médicos no Brasil,
quanto as novas formas e métodos de tratamento sobre doenças, causadas por vírus,
1 Graduada em História (UFC, 2004), Mestre em História Social (PUC-SP, 2006), Doutora em
História Social (PUC-SP, 2011) e Pós-Doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação
em História pela UFC (em 2017). E-mail de contato: anakarine.mg@gmail.com
2 O conceito dos miasmas vigorou em Fortaleza em meados do século XIX e esses eram apon-
tados como responsáveis pelas principais doenças, já que “…. os miasmas seriam todas as
emanações nocivas, as quais corrompiam o ar e atacavam o corpo humano…” GARCIA, Ana
Karine Martins”. “A sombra da pobreza na cidade do sol: O ordenamento dos retirantes em
Fortaleza na segunda metade do século XIX”. São Paulo, Dissertação de Mestrado defendida
na PUC-SP, 2006, p. 144.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
16 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
3 Doenças tropicais são aquelas que atingem exclusivamente as regiões tropicais (a África (exce-
to os extremos norte e sul), a Ásia das monções (sul e sudeste asiáticos), o norte da Austrália,
o México, a América Central e a maior parte da América do Sul (centro e norte), além de
centenas de ilhas dos oceanos Pacífico, Atlântico e Indico). e mais raramente nas regiões sub-
tropicais (Califórnia, os baixos desertos do sudoeste dos Estados Unidos da América, a costa
do Golfo e a maior parte da Flórida, o sul do Mediterrâneo e o norte do Saara, norte da Índia,
sudeste da China, a parte central da América do Sul, grande parte da Austrália e o litoral da
África do Sul). São doenças infecciosas e aparecem mais nessas áreas devido a grande biodi-
versidade dos microbios patogênicos. Ver: http://www.clickescolar.com.br/regioes-tropicais-
-ou-zona-tropical.htm
Histórias de Doenças 17
…oito mezes de tentativas energicas e tenazes vieram por fim demonstrar que
por maior que fosse a bôa vontade era baldado todo esforço porquanto si os
mosquitos desappareciam em uns continuavam em outro ponto vizinho, vie-
ram demonstrar, que sem água encanada e esgoto é impossível um tal serviço
porque ou é completo extinguido de todo o mosquito ou não se faça porque
por menor que seja o numero dos restantes, não se pode viver coberto da
febre amarella. (Relatório da Inspetoria de Higiene Pública do Estado do Ceará,
30 de abril de 1913, p.100.)
…Dar caça ás moscas por todos os meios, protegendo contra ellas os alimen-
tos, destruindo as existentes e evitando a sua reprodução. As larvas das mos-
cas, conhecidas pelo povo com os nomes de “bicho” ou “tapuru” se desen-
volvem em qualquer sitio onde haja materia organica em decomposição, nas
sentinas, no lixo, nas immundiceis, nas estrumeiras, nos chiqueiros, nas vac-
carias, nas estribarias, etc. Com a remoção destes focos e asseio e desinfecção
dos irremovíveis evita-se a reprodução das moscas. (Relatório da Inspetoria de
Higiene Pública do Estado do Ceará, 1º maio de 1916, p.11.)
4 Em 20 de fevereiro de 1913 foi fundado a Associação Médica e Farmacêutica que entre suas
metas pretendia unir, inicialmente, os médicos e os farmacêuticos com o objetivo central de
que essa associação defendesse e amparasse seus membros, sobretudo, em caso de necessi-
dades materiais. Porém, na segunda sessão houveram redefinições no estatuto de funciona-
mento e isso ocasionou mudanças que os levaram a rumos diferentes de seus projetos iniciais.
Dentre essas modificações destacou-se: a inclusão da classe de cirurgiões dentistas, a publi-
cação de suas pesquisas científicas sobre as doenças que assolavam o Ceará, a realização de
atividades e ações que aproximasse esses membros da população local e a alteração do nome
para Centro Médico Cearense. Ver: GARCIA, Ana Karine Martins. A ciência na saúde e na do-
ença: Atuação e prática dos médicos em Fortaleza (1900-1935). São Paulo, Tese de Doutorado
defendida na PUC-SP, 2011.
Histórias de Doenças 19
palavras do inspetor e médico Carlos da Costa Ribeiro é mostrado o quanto era pre-
ocupante para a saúde pública a presença desses insetos e que as medidas necessárias
para “caçar” as moscas dependiam também das ações dos moradores, uma vez que
os meios apontados por ele para a reprodução dessas moscas faziam parte do conví-
vio desses habitantes e que as práticas higiênicas eram a solução para esse problema.
Outro ponto que se observou nos relatos do inspetor foi a questão da contri-
buição da estrutura para o agravamento do aumento dessas moscas. É interessante
analisar que nesse momento predominava o discurso modernizador na cidade de
Fortaleza e que muitas vezes se encobria suas problemáticas, no entanto através des-
sas fontes e dos relatos médicos pode-se desconstruir essa ideia e ver que Fortaleza
ainda enfrentava problemas em sua organização e estrutura e que isso contribuiu
para o aumento das doenças provocadas, sobretudo, pelos mosquitos. Desse modo,
é importante notar que a cidade ainda estava cercada pelas práticas do campo e que
na visão médica isso era um dos grandes empecilhos para a saúde pública.
Nas páginas do relatório da Inspetoria de Higiene Pública do Estado do Ceará
de maio de 1916, o médico Carlos Ribeiro também fez destaque aos procedimentos
que a população deveria seguir. Infelizmente, não se teve contato com as matérias
publicadas nos jornais locais e que tinham o intuito de alertar e orientar a popu-
lação para os cuidados a serem tomados contra os mosquitos, pois já não há mais
exemplares disponíveis nos locais de pesquisas em Fortaleza referentes aos periódi-
cos dos primeiros anos do século XX. No entanto, se pode comprovar a existência
desses artigos publicados em alguns jornais através dos indicativos e menções feitas
em algumas das publicações dos relatórios da Inspetoria de Saúde Pública contidos
também nas páginas da revista Ceará Médico.5
5 A revista Ceará Médico foi publicada no dia 15 de abril de 1913 e ficou conhecida inicialmen-
te como “Norte Médico”. A princípio teve publicações bimensais e posteriormente passou a
ser mensal. Seus primeiros redatores foram os médicos Aurélio Lavor, César Cals e Virgílio
de Aguiar e as pesquisas nessa fonte mostraram que os outros profissionais participantes do
Centro Médico Cearense participaram mais ativamente da revista através das publicações
de propagandas e artigos relacionados aos seus interesses, porém, é oportuno afirmar que
não foram tão ativos quanto a classe médica. Também foi órgão de divulgação das atividades
do Centro Médico Cearense e foi publicada até o ano de 1963. Ver: GARCIA, Ana Karine
Martins. A ciência na saúde e na doença: atuação e prática dos médicos em Fortaleza (1900-
1935). São Paulo, Tese de Doutorado defendida na PUC-SP, 2011.
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20 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
…Não tomar leite cru, salvo quando se tem certeza de ser ordenhado com o
maximo asseio previa e rigorosa lavagem das mãos e tetas; Não ingerir grande
porção dagua mesmo pura e potavel, porque dilue os succos gástricos e lhes
diminue o poder defensivo contra os micróbios; Evitar o excesso, como a defi-
ciencia, a ma qualidade ou mau preparo dos alimentos que perturbando a re-
gularidade da digestão facilitam a acção pathogena e os germes. (Relatório da
Inspetoria de Higiene Pública do Estado do Ceará, 1º de maio de 1916, p.11-12.)
nantes da cidade, uma vez que o desejo era a vitória da saúde e o extermínio das
doenças. Desse modo, observar as práticas usadas para a prevenção e eliminação
desses insetos e mosquitos permitirá compreender as formas de atuação e influência
médica na aplicação desses métodos junto à população de Fortaleza.
Analisando esse relatório observou-se que além das preocupações e ações para
deter a proliferação das moscas, devido às doenças digestivas, também foram aplica-
das medidas contra os focos de mosquitos causadores da febre amarela6 e da malária.
Dentre os procedimentos indicados estava a eliminação dos pontos de reprodução
desses mosquitos e que de acordo com o inspetor de higiene pública estavam locali-
zados nas cacimbas e águas paradas das moradias de Fortaleza. Assim, para evitar a
reprodução desses mosquitos nesses locais foram sugeridas as seguintes ações:
6 A febre amarela já se encontrava entre as doenças mais recorrentes no Brasil desde o século
XIX, no entanto, somente no começo do século XX com as novas pesquisas sobre as causas
dessa doença é que as medidas profiláticas e ações médicas se intensificaram. Não é objetivo
dessa tese estudar a febre amarela, mas atualmente já se encontra diversos estudos sobre o
assunto que permitem analisar além da doença as ações dos profissionais de saúde na busca
pelo seu tratamento. Ver, por exemplo, BECHIMOL, Jaime Larry (coord.). Febre amarela: a
doença e a vacina, uma história inacabada. Rio de Janeiro-RJ: Editora Fiocruz, 2001e LOWY,
Ilana. Virus, mosquitos e modernidade: febre amarela no Brasil entre ciência e política. Rio de
Janeiro: Editora Fiocruz, 2006.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
22 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
É relevante mencionar que essas ações não eram inéditas dentro do campo de
combate aos mosquitos, pois tanto nos demais estados brasileiros como nas campa-
nhas de divulgação e atuação da Fundação Rockefeller7 em outros países no começo
do século XX vinham empregando esses e outros métodos para que tais enfermida-
des fossem eliminadas.
Observando-se as diversas descrições do relatório da Inspetoria de Higiene
Pública notou-se que todas as medidas sugeridas precisavam da colaboração da po-
pulação para que houvesse resultados favoráveis, uma vez que a maioria das cacim-
bas e poços estavam localizados em suas moradias. Esse processo não foi tão simples
e as notícias dos jornais locais mais adiante vão mostrar que apesar das orientações
realizadas aos citadinos, que nos jornais aparecem na sessão chamada “conselhos ao
povo”, e que é mencionada também nos relatórios de 1916, não tiveram o resultado
esperado, e tal fato fez com que as medidas se tornassem mais fiscalizadas e obriga-
tórias a partir de 1923 com a contratação dos “mata-mosquitos”8, o que ocasionou
diversos conflitos junto aos moradores de Fortaleza.
Desse modo, analisando a situação a partir das diversas opiniões formadas
sobre os processos de tratamentos dessas doenças transmitidas pelos mosquitos per-
cebeu-se que os médicos atestavam a proliferação e existência dessas doenças à falta
de cuidados da população quanto às questões de higiene. E quanto aos preventivos
contra esses vetores o governo seguia sempre as orientações médicas, já que desejava
evitar que as epidemias e o caos que sempre se associava a esses problemas em de-
corrências das crises climáticas ou econômicas da cidade. E deve-se mencionar que a
população, de uma maneira geral, ignorava e suspeitava dos procedimentos médicos
e não tinham tanta confiança nessas ações de combate aos mosquitos e, portanto,
guiava-se através das experiências trazidas tanto pela medicina popular como pela
religião, que fornecia explicações amenizadoras para essas enfermidades.
7 É uma fundação criada em 1913 nos Estados Unidos da América e que aparesentava como
missão promover, no exterior, o estímulo à saúde pública, o ensino, a pesquisa e a filantropia.
É caracterizada como associação beneficente e não-governamental, que utiliza recursos pró-
prios para realizar suas ações em vários países do mundo, principalmente os subdesenvolvidos.
8 Eram contratados entre os populares para visitarem e fiscalizarem as casas dos moradores
de Fortaleza no intuito de tentarem eliminar as larvas dos mosquitos causadores da febre
amarela. Esse nome já era empregado desde 1902 com Oswaldo Cruz em suas campanhas
preventivas no Rio de Janeiro.
Histórias de Doenças 23
Houve também ações diretas da inspetoria para deter o avanço dessas do-
enças e não deixar que esses mosquitos se proliferassem ocasionando as epidemias.
Ao analisar um dos trechos do relatório de 1916, questões como a falta de pessoas
e recursos são apontadas pelo inspetor como motivos das dificuldades enfrentadas
pela Inspetoria de Higiene Pública do Ceará na eliminação dos mosquitos transmis-
sores da febre amarela, diferentemente do que ocorreu em outras capitais brasileiras.
Talvez, devido a essa deficiência houve tanta ênfase e orientações do inspetor para
que a população se utilizasse de alguns métodos, aprovados pela ciência médica,
para eliminação das larvas em suas residências:
Não temos pessoal nem recursos para proceder a caça systematica do ste-
gomya, na qual basta resumir-se a prophilaxia de febre amarella. O exemplo
dado pela Capital Federal, por S. Paulo (Santos), pelo Pará, por Manáos, etc.
ainda não pode ser seguido pelo Ceará. Conseguimos finalmente, em janeiro
deste anno que a Santa Casa preparasse um quarto à prova de mosquito, com
portas em tambor para isolar os amarílicos que até então eram recebidos em
plena enfermaria, se siquer ter mosquiteiro, tendo chegado a coisa a ponto de
um rapaz que entrava em outubro com uma ulcera na perna lá dentro con-
trahiu a febre amarella e morreu. (Relatório da Inspetoria de Higiene Pública
do Estado do Ceará, 1º de maio de 1916, p.22.)
-se que as medidas empregadas pelo inspetor da saúde pública em Fortaleza não
eram incomuns, mas eram resultados de práticas já aplicadas desde as campanhas
de Oswaldo Cruz em 1903 e que influenciaram não somente a capital federal, mas
outros estados brasileiros como o Ceará no início do século XX. Basta observar que
em Fortaleza as medidas de isolamento e também a utilização de uma polícia sanitá-
ria para a fiscalização e eliminação dos focos de mosquitos foram também utilizadas
no processo de tratamentos e profilaxias da febre amarela.
Deve-se mencionar que a grande maioria dos inspetores de saúde pública
fizeram parte do Centro Médico Cearense, inclusive o Dr. Carlos Ribeiro que foi ins-
petor de higiene pública. Porém, essa associação médica, farmacêutica e odontoló-
gica não teve em sua primeira fase uma atuação tão ativa nas questões da saúde pú-
blica e os médicos que participaram tanto na Inspetoria de Higiene Pública como no
Centro Médico se utilizaram dos seus cargos públicos para envolver e obter a apro-
vação dos outros profissionais em suas campanhas junto à população de Fortaleza.
“… O Dr. Carlos Ribeiro, Inspector de Hygiene, iniciou a leitura do novo re-
gulamento de sua repartição, que vae ser apresentado ao Sr. Presidente do Estado…”
(Revista Norte Médico de julho, agosto e setembro de 1916, p.15.) Notou-se na leitu-
ra da revista Ceará Médico que em vários momentos os inspetores da saúde pública
e sócios do Centro Médico buscavam não somente envolver os outros médicos em
suas ideias, mas também em conjunto aprovar alguns regulamentos e atuação da
Inspetoria de Higiene Pública para depois serem apresentados ao presidente de esta-
do. Assim, percebe-se que o Centro Médico teve uma forte influência e contribuição,
mesmo não participando de forma direta dessas campanhas e ações na cidade nessa
primeira parte de seu funcionamento.
A participação do Centro Médico Cearense durante esse processo de preven-
ções e combate aos mosquitos foi notada mais no campo das denúncias escritas do
que propriamente nos procedimentos, evidentemente, que sem contar aqui com as
atuações sozinhas de alguns de seus membros. E mesmo nesse meio dedicado à es-
crita, muitas das vezes, somente se apontava as causas do problema e a solução ficava
sob a responsabilidade do governo:
A febre amarella, quando investe contra nós, encontra à protecção dos este-
gomyas que vivem livremente em nossas habitações. Póde-se dizer que não há
casa que os não possúa mais ou menos, salvo rara excepção. A peste encontra
na edificação de nossas casas, muito proprias para ratos que são sempre em
Histórias de Doenças 25
maior numero que as pessôas, o auxílio efficaz para suas devastações epidemi-
cas. (Revista Norte Médico de julho, agosto e setembro de 1916, p.15.)
A análise de Lina Faria permite que se veja que a falta de recursos de alguns
estados impedia que mudanças na área da saúde fossem realizadas. Tal situação fa-
voreceu a Fundação Rockefeller a encontrar um campo aberto para realizar suas
intervenções e objetivos, uma vez que o Governo Federal tinha limitações nas ques-
tões de auxílio aos estados brasileiros, sobretudo nos períodos de epidemias. Desse
modo, analisando o caso do Ceará, percebe-se que no decorrer de sua História sem-
pre houve nos auges das crises a necessidade das ajudas externas seja por questões
da falta de recursos financeiros do estado como da falta de meios tecnológicos e de
profissionais da área da saúde para atender essas necessidades:
perceber as intervenções e teorias trazidas para o combate às doenças como a febre amarela,
a malária e a ancilostomose no Ceará e a aceitação e rejeição desses métodos pelos médicos
e pela população.
Histórias de Doenças 29
10 A atuação mais direta nos outros estados brasileiros do Governo Federal foi motivada sobre-
tudo pela epidemia da gripe espanhola em 1918, que atingiu tanto a Capital Federal como
outras cidades brasileiras e que demonstrou a fragilidade e incompetência do Departamento
Geral de Saúde pública. Até aquele momento as questões de saúde pública ficavam sempre ao
encargo de seus estados que esses nos períodos de crise contavam com a determinada cola-
boração financeira do Governo Federal, contudo, as propagações de epidemias fizeram com
que se repensassem tais ações e assim fossem tomadas medidas que atingissem aos estados
geradores dessas epidemias mais recorrentes.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
32 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
11 Oficialmente a região Norte passa ser chamada Nordeste, a partir dos anos 1922, e de acordo
com o historiador Durval Muniz “O termo Nordeste é usado inicialmente para designar a área
de atuação da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas (IFOCS), criada em 1919. ” Ou seja,
a denominação Nordeste foi dada para designar as áreas atingidas pela seca e somente a partir
dos anos de 1922 passou a definir uma determinada região que abrangia tanto as áreas secas
como outras. A esse respeito ver ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz. A invenção do
Nordeste e outras artes. São Paulo: Editora Cortez, 2001.
Histórias de Doenças 33
ainda é pouco abordado, talvez pela ausência de fontes, mas também pelo desconhe-
cimento, já que quando se fala de Comissão Rockefeller no Ceará somente se conhece
sua atuação no interior em 1939 no combate à Malária.
Os médicos no Ceará nos primeiros anos do século XX depararam-se com
novas formas de tratamento e entendimento sobre as doenças cujos transmissores
eram os mosquitos, insetos e ratos. Nesse processo de adaptações e descobertas, hou-
ve ajustamentos nas relações entre eles e os pacientes, em grande parte conflitantes.
As prevenções eram as possíveis saídas para evitar os descontroles ocasionados pelas
doenças, pois de acordo com o pensamento da classe médica cearense essa ação con-
tribuía de alguma forma para a manutenção da ordem e o crescimento econômico
da cidade. Contudo, para isso necessitava-se da colaboração da população, que em
geral não compreendia e nem confiava nessas práticas médicas. Desse modo, como
obter resultados favoráveis e como fazer com que os métodos aplicados pelos médi-
cos fossem utilizados pelos citadinos? Essa não foi uma tarefa tão fácil e se percebeu
que quando o Governo Federal e a Comissão Rockefeller trouxeram suas práticas e
tecnologias não foi algo tão inédito para a maioria, mas o que houve foi novamente
a dúvida quanto à eficiência desses procedimentos e também a provável rejeição dos
médicos que já realizavam seus trabalhos preventivos em Fortaleza.
Entender a presença e a atuação da Comissão Rockefeller no Ceará permite
analisar como os médicos de Fortaleza vão agir e pensar com relação a esses méto-
dos, de combate à febre amarela no começo do século XX, que em grande parte já vi-
nham sendo adotados antes mesmo da chegada dessa comissão, mas que nesse caso
essa problemática estava centrada na falta de recursos financeiros e na adoção dos
procedimentos pela população e que de certa forma isso vai ser resolvido aparen-
temente pela Rockefeller a partir dos recursos aplicados na área da saúde no Ceará
e também da obrigatoriedade no cumprimento das prevenções e ações higiênicas,
através de práticas rígidas e fiscalizadoras sobre a população local.
Fontes
Referências
encontrou o caminho para o milho. Foi enviada remessa dessa erva para analise pela
Coroa e se ficou combinado de enviar mudas da planta.
Além da erva foi enviado um novelo de fio de tucum e folhas dessa palmeira,
junto a uma analise comparativa do fio, no qual se aponta o uso:
Este é o mais rijo que há com tanta sustância, que se para suster avultado peso
foi necessário um cabo de linho de cem polegadas de grosso, sendo de tucum
bastará a grossura de dez polegadas. Conservam-se muito na água, circuns-
tancias porque me lembra que examinado, e a prova de seu vigor, será muito
util para amarrar. Em toda a America ha abundancia destas Palmas, mas com
tanta fertilidade no Pará, e Maranhão, que julgo bastarão estes dois Estados
para prover de amarras as Naus de Sua Magestade (LEME, Inácio Joaquim
Taques de Almeida Pais, 1783)
abunda de gado vacum: as cabras são poucas, e quase inúteis; as ovelhas pou-
co mais numerosas e úteis, porque ainda não se lhes aproveita bem a lã, com
a qual podia já haver alguns ramos de indústrias: dos porcos pouco mais se
criam do que os necessários para o consumo do país: criam-se também cava-
los, entre os quais os do Paraná são os melhores.
2 Cf: PAULA, Jason H. Capitania de Goiás: caminhos, negociantes, família e mobilidade so-
cial. Freguesia de Santa Luzia – c.1746 – c.1808. Tese de Doutorado. Goiania: PPGH, 2017.
Libelo Civel. Processo n° 4. Autor: Antônio de Araujo Braga. Réu: Francisco Borges da Costa.
Arquivo Frei Simão Dorvi. Livro F (1757-1797). Doravante AFSD, Libelo Civil n° 4….
3 RODRIGUES, Domingues. Arte da cozinha. 3º edição, Lisboa, 1748, pag. 258.
4 Ibdem, pag. 257.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
42 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
oferecem um tempero muito odorífero e salubre. O alho porro ou alho doce, que
possui, em menor grau, o sabor e as qualidades do alho ordinário, dá igualmente um
gosto agradável á comida. As cebolas empregam-se geralmente para dar às sopas,
aos molhos e aos guisados um sabor e perfume bastante agradáveis. As cebolas assa-
das dão boa côr ás iguarias. O manjericão, a manjerona, a hortelã, salvia e o alecrim,
possuindo as mesmas qualidades aromáticas, embora sejam diversos os seus perfu-
mes, empregavam-se com menos frequência do que as folhas de louro e o tomilho.5
Percebemos nesses manuais que a base da alimentação é sempre o alimento
bem cozido e; quando assado, voltava novamente à forma de guisado inclusive as
verduras e frutas: tudo colocado em um grande tacho:
A entrada dos militares enfermos deveria ser acompanhada por seu superior
competente, que se responsabilizava pelo comportamento daquele, e tinha o dever
de se informar acerca de sua situação. Este procedimento era seguido de perto pelo
escrivão, que devia lavrar em seu livro todas as altas e baixas dos pacientes, além das
informações pessoais e profissionais dos mesmos. O zelo para com o ambiente era
fiscalizado pelo almoxarife, que tinha um papel de imensa responsabilidade em suas
mãos. Na sessão Ordens do que se deve observar no Hospital Militar, o primeiro
parágrafo da parte que diz respeito aos serviços a serem desempenhados por este
funcionário, consta que deve fazer uma assistência tal, que faça exemplo a todos os
oficiais, enfermeiros, serventes e mais pessoas, que nele se ocupam. Para tanto, não
era tolerada a mínima falta ou desordem, sendo que os cuidados com a higiene do
local estavam entre uma das atribuições mais importantes nos Hospitais Militares.
Havia já naquela época, determinada consciência acerca das dificuldades
advindas do contato indevido com enfermos portadores das doenças ditas agudas,
malignas ou tísicas, consideradas prejudiciais. Não era consentido que nas camas em
que morresse algum enfermo diagnosticado com os referidos males, ou nas camas
em que morresse qualquer paciente, se deitasse outro enfermo. No caso das mor-
tes, ainda era permitido a reutilização desta e das roupas de cama após lavar-se de
maneira exímia e com todo o cuidado. No entanto, as camas de doença tísica não
deveriam tornar a servir qualquer outro enfermo, devendo ser lavadas à parte para
servir de mortalha aos defuntos.
Para além disso, não era tolerado que roupa alguma da enfermaria fique suja
de um para o outro dia; porque em todos se deve mandar para a lavandaria, ou em
muita ou em pouca quantidade. Aos enfermos eram oferecidas as melhores con-
dições no que tange ao asseio e os cuidados para sua melhora. Aos serventes que
terminassem os serviços maiores do Hospital e que não tivessem nenhum serviço
nas horas próximas, eram distribuídos pelas enfermarias de maneira a auxiliarem
os padres-enfermeiros na assistência aos doentes, ajudando-os a ministrarem-lhes
água benta ou os santos óleos.
Em lanço de arrematação para a administração do Hospital Real Militar em
30 de janeiro de 1807, no tribunal da Junta da Real Fazenda, Joaquim da Silva Freitas
ganhou o dito “pregão” debaixo das seguintes condições: assistirá com remédios para
curativos, com comida bem feita e quente, mandar realizar as sangrias, contratar os
enfermeiros, comprar todos os víveres e lenhas necessárias para as refeições e os ba-
nhos, se incumbir de mandar lavar toda a roupa do hospital, bem como, da limpeza
Histórias de Doenças 45
Ademais, benzeção, uso de pedras d’ara, patuás apesar de proibidos pela igre-
ja faziam parte do dia a dia dos habitantes do sertão dos guayazes; em conjunto com
Nossa Senhora do Carmo, imagem usada no bentinho para afastar inimigos invisí-
veis; Nossa Senhora do Bom Despacho protetora das noivas; Santa Ágata protetora
dos males pulmonares; Santa Apolônia a cuidar das dores de dente; São Bartolomeu
a cuidar das afecções nervosas e possessões demoníacas e São Benedito protetor das
mordeduras de cobras, dentre tantos santos. Outrossim, se o medicamento e o ali-
mento não resolviam, nem tampouco o santo, chamar-se ia o curandeiro ou o pajé.
Como exemplo, a carta do governador Luís da Cunha Menezes (1778 – 1783)
provavelmente para seu irmão Tristão da Cunha Meneses (governou entre 1783-
1800) traz indícios sobre a religiosidade ameríndia realizada provavelmente no al-
deamento de Mossâmedes por Karajá, Javaés e Caiapó. Apesar da distinção espacial
e de status inferior conferido aos pajés nos aldeamentos, fica evidente que continu-
avam a exercer sua religiosidade e suas práticas de cura. O governador identifica
mais, relaciona a figura do pajé como o especialista indígena em cura e interlocutor
com o sagrado, quando chama o curador de feiticeiro. Sobre o pajé afirma ele que:
Enfim, para o cuidado com a saúde sempre precária tentou-se fazer o melhor
para os homens e mulheres do sertão dos guayazes, utilizou-se o alimento, o me-
dicamento e a reza e se não desse certo, a encomendação da alma estaria garantida
com as 36 irmandades existentes somente no setecentos.
Referências
MIRANDA, Carlos Alberto Cunha. A arte de curar nos tempos da Colônia: limites e
espaços de cura. Recife: Fundação de Cultura da cidade de Recife, 2004.
MORAES, Cristina de Cássia P.; LEMKE, Maria; DIAS, Thiago Cancelier. “Fomos
aqui acometidos por três flagelos: a varíola, o morbo e o cólera.” Um ensaio
sobre as epidemias nos Guayazes. In: MOTA, André; PIMENTA, Tânia Salgado,
FRANCO, Sebastião Pimentel. No rastro das províncias. As epidemias no Brasil
oitocentista. Vitoria: EDUFES, (no prelo)
NAVA, Pedro da Silva. Capítulos da História da Medicina no Brasil. Cotia: São Paulo/
Ateliê Editorial: Londrina: Eduel/ São Paulo: Oficina do Livro Rubens Borba de
Moraes, 2003.
P. PLANTIER. O cozinheiro dos cozinheiros. Lisboa s/ed., 1905.
PAULA, Jason Hugo de. Entre picadas, estradas e trieiros: os caminhos que levam
à Freguesia de Santa Luzia. Negociantes, escravidão, família e mestiçagens na
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2009, p. 12-43.
Crime e loucura: o louco infrator nos
processos judiciais
Éder Mendes de Paula1
Introdução
O processo-crime passa a ser utilizado como fonte após uma ampliação acer-
ca do conceito de documento, uma inovação trazida a partir da Escola dos Annales
que ampliou o leque de possibilidades de investigação do historiador.
As novas abordagens também se estenderam a questões metodológicas, pois,
diferentes fontes passaram a requerer formas diferenciadas de análises, ou pelo me-
nos, uma variação no seu trato e questionamentos para finalidade de pesquisa.
A questão primeira que se coloca em relação ao processo criminal é que os
personagens que o compõem não estão ali voluntariamente:
a justiça, entre o louco e o louco criminoso podem ser apreendidos nas minúcias de
suas falas testemunhais.
De tal maneira o processo judicial escapa da pura aplicabilidade técnica
como fonte, não é apenas um compêndio fornecedor de dados para a História da
Justiça. Sua utilização ultrapassa tais sentidos e se coloca além, pois, torna possível a
compreensão das possíveis relações e sentidos morais de uma comunidade.
A relação com o crime, com a vítima, com o delituoso, suas visibilidades so-
ciais dão muito a entender sobre o cotidiano da cidade e, consequentemente, sobre
como constrói a própria história.
É preciso levar em conta também que a peça processual é uma disputa pela
verdade, um espaço de produção discursiva que se atendem a interesses opostos:
2 Marcos, no ano de 1993 assassina o Padre Peter Gerardus Berkens – conhecido como Padre
Pedro – na cidade de Montes Claros de Goiás, na divisa com o estado do Mato Grosso. Seu
crime chocou a cidade de tal maneira que o mesmo teve que ser recolhido em cadeia vizinha
por correr riscos de linchamento. Acompanhando o seu Processo Crime, desde o primeiro
Histórias de Doenças 53
o próprio aparato policial em suas perguntas nos interrogatórios, e a escolha das pala-
vras para fechar um inquérito, também corresponde a um texto, dentro do texto:
momento é pedido, por seu advogado, exame de Insanidade Mental para alegar sua inim-
putabilidade, no entanto, mesmo havendo o laudo atestando a incidência de doença mental,
[Marcos] permaneceu preso durante quinze anos.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
54 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
Um fato, duas versões. É neste caminho que a peça processual começa a ser
construída, necessidade de produzir verdades de ambos os lados e, da mesma forma,
de desconstruir tais verdades para que o juiz possa apreciar o caso e dar o veredicto.
Nesta acepção, o juiz não julga o fato em si, mas a versão que mais conseguiu
estruturar-se como verdade. Ou seja, aquela que não apenas apresenta elementos,
mas consegue desconstruir o discurso adversário como “real” e enfraquece-lo.
Existe ainda outro fator que corrobora para essa criação subjetiva do proces-
so criminal, ainda que obedecendo a uma técnica específica:
Ele é descrito chegando correndo, parecia estar escondendo algo nas mãos,
ela diz em linhas abaixo, teria sido com ela o primeiro contato após atacar o vigário.
Mas a intencionalidade do escrivão ao redigir em caixa alta as palavras de [Marcos],
conduzem a questionar posteriormente algumas alegações como aparece ainda no
depoimento de [Neide].
A depoente afirma ter ficado com medo do tio e sair de casa e ir ao encontro
da sua mãe que, naquele momento, encontrava-se no hospital da cidade. [Neide]
conta às pessoas que estavam presentes o que havia ocorrido em casa, logo em se-
guida é informada de que a polícia havia prendido um homem cujas características
coincidiam com as de [Marcos].
A notícia se espalhou de maneira rápida, ações concomitantes geraram as di-
versas trilhas realizadas pelos discursos oriundos do assassinato cometido na praça
Cristo Rei. Daquele lugar, vários murmúrios sobre o fato se reverberaram, até chegar
ao hospital onde [Neide] constatava que o assassino era seu tio.
A impressão é de que havia uma necessidade básica da comunidade de in-
formar a todos, espalhar a notícia para que, de alguma forma, todos buscassem o
assassino do padre e também guardassem por sua segurança. Uma comunidade em
que todos se conhecem, cria uma espécie de cumplicidade, de autoproteção que le-
vou da hora do crime em si, à prisão de [Marcos] e a notícia se espalhar pela cidade,
cerca de sessenta minutos.
Após estas informações, ao ser questionada sobre o contato que tinha com o
tio [Neide] dá algumas características:
Que a depoente tinha pouco contato com o tio, mas sempre achou no mesmo
atitudes estranhas, olhares distantes, parecendo que não se encontrava em si,
dando risadas sem motivos; que inclusive no momento em que chegou com a
faca nas mãos [Marcos] chegou dando risadas, apesar de meio apavorado; que
a depoente não tem conhecimento se seu tio já foi submetido a internamento a
manicômios ou casas de repouso (FÓRUM, Processo Crime Rg. 038/93, p. 25).
deitado no sofá de sua casa em um domingo à tarde. O que vejo, é um medo de que
suas palavras ou ações anteriores ligadas a [Marcos] de alguma forma poderiam
comprometê-la, na verdade o que se traduz em medo da justiça.
Este sentimento de medo é construído por temerem se envolver de alguma
forma, de falar algo que poderia pesar contra si mesmo. [Neide], portanto, nega sua
pessoalidade com o tio, porém, tem condições de caracterizá-lo fisicamente.
O delegado caminhou com as perguntas em torno das informações recebidas,
da estranheza do comportamento de [Marcos] que a mesma poderia ter observado,
mas nunca comentado por ser algo naturalizado no seio familiar.
O grupo, mesmo percebendo alguns traços de possível incidência de doença
mental em [Marcos], provavelmente não o tratou como tal, de maneira particular,
atribuindo-lhe um papel social. No entanto, a imprevisibilidade do seu ato retira es-
tas representações do espaço naturalizado e evidencia algo que poderia estar errado
já há algum tempo.
É no ato praticado que reside o fato de [Neide] falar sobre aquilo que anterior-
mente lhe causava estranheza, mas que não via necessidade de argumentar. Apenas
nesta fuga extrema do contrato social, no fato de retirar a vida do outro que seu com-
portamento é visto como definitivamente anormal, pois, a teia de relações estabeleci-
das entre o mesmo e a família não criava a zona de exclusão da normalidade.
[Marcos] como louco infrator começa a ser construído na narrativa de
[Neide], ainda que temerosa de qualquer envolvimento, mesmo dizendo-se distante
ela avisa a justiça de que há comportamentos que fogem ao padrão envolvendo o tio.
Vejo uma espécie de proteção ao familiar, uma consciência da gravidade do
delito praticado, um medo de ser vista próxima do assassino, mas uma proteção ao
buscar na memória comportamentos que pudessem justificar o ato praticado.
A segunda testemunha ouvida no dia 06 de Julho, seguiu a trilha criada pelo de-
poimento de [Neide]. O delegado optou por verificar os argumentos acerca do compor-
tamento de [Marcos], por isso foi ouvido nesta data o senhor [João] Barbosa, pai do réu.
[João], natural de Caruaru de Bezerra, Pernambuco nascido no dia 17 de de-
zembro de 1926, lavrador, viúvo e não alfabetizado. Já em sua primeira declaração,
é deixado claro que a autoridade policial buscou dar continuidade ao que [Neide]
havia começado a declarar a respeito de uma possível doença mental:
Que seu filho [Marcos] acerca de um ano e meio começou a ter mudanças
em seu comportamento, clamando ao depoente dores de cabeças e dizendo
sempre que ouvia vozes vindo de canto nenhum, ou dizia ao depoente que
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
58 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
trecho, é que não sabiam ao certo que remédio [Marcos] estava tomando, os compri-
midos não tinham uma função especificada.
Neste sentido, [Marcos] seguiu sem tratamento adequado, sem visitas e ob-
servação de psicólogo ou psiquiatra, o que também demonstra precariedade de dis-
tribuição da saúde nos sertões goianos. É este o quadro de desenvolvimento de seu
transtorno, das vozes que tanto passam a atormentá-lo, a acusa-lo, ofendê-lo até
chegar ao ponto de matar o vigário da cidade.
Estas questões já construíam o quadro da insanidade mental, pois, é reve-
lado também pelo pai que um ano antes [Marcos] havia atentado contra a vida de
um companheiro de trabalho na cidade de Jussara. Neste cenário, o mesmo já está
tomando os remédios indicados pelo farmacêutico, estava sendo “tratado” com me-
dicamentos que a família não sabia dizer sua verdadeira função.
No entanto, o mais importante deste depoimento é que ele nos traz a linha de
raciocínio do delegado, como ele aproveita o fio deixado pela testemunha anterior
e tentava de alguma forma seguir estes rastros. Porém, a questão da religiosidade,
sendo o cerne de sua versão, só evidencia os traços culturais ainda envoltos em pre-
conceitos e narrativas de exclusão.
Diante das duas falas [Neide] e [João] é clara a assertiva em relação à uma
possível doença mental, mas o que se vê na inquirição do delegado é provar que na
verdade teria sido crime ligado a questões religiosas, aproveitando-se da demoniza-
ção de tais crenças.
Na sequência ao depoimento do progenitor de [Marcos], constam no proces-
so, quatro depoimentos. São falas curtas direcionadas para a descrição de [Marcos],
com o objetivo de coloca-lo na cena do crime.
São narrativas sobre tê-lo visto passar correndo com a faca na mão, outra des-
creve a roupa que o mesmo usava se colocando na porta da casa do padre durante
toda à tarde. É válido lembrar que ele sai da casa da sobrinha por volta das 14 horas,
e o crime ocorre já perto das sete horas da noite.
Uma primeira testemunha, afirma que estava sentada na porta de sua casa
quando o homem passou segurando uma faca – consta nos autos p. 29. Outra se
encontrava na esquina de sua casa junto com uma amiga quando viu um homem
passar correndo, trajando camiseta listrada e calça jeans, fato que bate com a descri-
ção da polícia ao prender [Marcos] – consta nos autos p. 31.
Outra testemunha estava sentada no meio fio em frente à sua casa, quando
um desconhecido teria ido correndo na avenida com uma faca na mão, por volta das
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
60 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
19:20 horas. Ela descreve também o seu traje, camiseta listrada e calça jeans, e que
mais tarde soube que seria o assassino do padre – consta nos autos p. 33.
É interessante que essas testemunhas “oculares” – não do crime, mas servi-
ram para colocar [Marcos] na cena do fato delituoso – são tradução de uma pequena
comunidade, pessoas em um domingo que se colocam a conversar na porta de suas
casas até a hora de ir para missa, criando um costume. Todas narram como se hou-
vesse quase uma regra, estar na porta de casa a conversar com vizinhos depois do
almoço de domingo.
Ali não apenas atualizavam os assuntos da semana como observavam o que
poderia acontecer, viram que [Marcos] estava a tarde toda na porta da casa do vigá-
rio. Estas mesmas pessoas o viram em pontos diferentes descrevendo suas roupas e
a arma do crime, como também auxiliaram o espalhar da notícia por toda a cidade.
Outra testemunha não menos interessada em espargir a notícia, é [Gerson],
natural de Santo Amaro na Bahia, nascido em 31 de agosto de 1948, residente em
Montes Claros de Goiás, alfabetizado disse ao ser inquirido:
Que se encontrava no bar do Queiroz por volta das 19:30 horas, local onde fi-
cou inteirado do fato de que a poucos minutos atrás um indivíduo havia assas-
sinado o vigário (padre Pedro), fato ocorrido em frente à igreja católica local;
Que o depoente dirigiu-se até o Hospital Montes Claros de onde foi telefonar
para seu patrão para informa-lo do fato ocorrido; Que ao chegar ao hospital o
depoente fez um comentário com a enfermeira de plantão (FÓRUM, Processo
Crime Rg. 038/93, p. 37).
Que no domingo estava ele, o depoente, batendo o sino da Igreja, quando ter-
minou de bater o “sino” e já ia fazer o retorno para subir a rampa de entrada
da Igreja, um indivíduo que estava sentado no meio-fio da praça, que de vês
em outra abaixava com as mãos no rosto e levantava-se, olhando na direção
da casa do Padre, levantou-se e dirigiu-se na di […] braços sobre o pescoço
de Padre Pedro, e com a outra mão puxou da cintura uma faca, a qual des-
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
62 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
feriu no peito do Padre; Que após ferí-lo o indivíduo saiu correndo avenida
abaixo, deixando para trás o corpo do Padre pedindo socorro deitado no chão
(FÓRUM, Processo Crime Rg. 038/93, p. 43).
Que é do conhecimento da depoente que seu irmão foi levado por seu pai a
alguns “centros Espíritas” para tentar “curá-lo”, mais sem êxito nas tentativas;
(FÓRUM, Processo Crime Rg. 038/93, p. 45).
O enredo se torna uma luta entre o bem e o mal, aqui alicerçada nas figuras
de duas personagens: a igreja católica e o centro espírita. As aspas apresentadas na
citação acima colocam em dúvida a fé espírita, e também na perspectiva de cura que
ali poderia ser possível.
Cria-se na verdade uma desconfiança que todo o problema de [Marcos], teria
sido obra de crimes destinados à magia negra, termo pejorativo que evidencia o
preconceito no interior do cristianismo em relação às religiões de matrizes diferen-
ciadas ou não.
É interessante que, na medida em que os depoimentos são registrados e o
delegado estabelece este caminho como tese para o crime, suas testemunhas apare-
cem como personagens simplórios e inocentes. Seria como se a família de [Marcos],
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
64 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
tivesse sido enganada por charlatões que, ao invés de curá-lo fizeram seu problema
piorar e o tivessem utilizado para fazer o mal.
Este texto não é evidente no depoimento, no entanto, é na contextualização
das respostas que se consegue chegar a tais possibilidades narrativas. O crime de
magia negra, a loucura, a simplicidade da família, elementos necessários para que a
promotoria pudesse elaborar a sua verdade sobre o crime.
Percebo que, o aparato policial ao elaborar esta possível versão através dos
questionamentos durante os depoimentos, não pensou na possibilidade de que
[Marcos] poderia ser considerado inimputável.
Em momento algum as respostas dão o indicativo de se preocupar de tratar
[Marcos] de forma diferenciada, o que denuncia um aspecto cotidiano de que ao
louco infrator em Goiás, em pleno final de século XX, tinha como destino apenas
a cadeia.
No depoimento, [Maria] continua:
Que quando soube do fato veio em sua mente o fato de dias atrás [Marcos]
ter lhe dito que o Padre juntamente com o Dr. Afrânio foi até a fazenda onde
estava trabalhando, para mata-lo, e que comentou ainda com a depoente que
havia ido até a Igreja em Montes Claros, para rezar, mas não entrou porque
estava a Igreja muito escura e todos que estavam presente tinham os pés de
pato; (FÓRUM, Processo Crime Rg. 038/93, p. 45).
Tal elemento reforça ainda mais fato de que a linha seguida pelo delegado na
investigação do crime, ligava o crime à loucura entrelaçando ao ato de magia negra
na compreensão do assassinato. Uma comunidade católica, que vê no assassinato do
vigário, algo muito maior, enxerga uma luta do bem contra o mal.
Este é o último depoimento, logo depois encerra-se o inquérito policial e toda
a documentação é encaminhada ao poder judiciário. Através dos depoimentos é
possível depreender que sua relação com padre Pedro se apresentava anteriormente,
que foi construindo em seu íntimo elementos que o levaram a matar o vigário na-
quele dia.
No entanto, os traços de sua loucura não são utilizados para que [Marcos]
possa receber um tratamento diferenciado. Ao contrário, passa a existir um peso
dessas narrativas para criar uma justificação para o crime, mas nada é dito sobre o
direito que o mesmo teria de ser encaminhado a uma instituição própria para rece-
ber tratamento.
A loucura é relacionada com o crime na medida em que na busca por uma
racionalização do fato, a própria comunidade não encontrando a explicação traz o
elemento da doença mental para construir uma explicação.
Este artifício, no entanto, não é utilizado como embasamento para um aten-
dimento especial em Goiás, os loucos infratores foram diluídos na categoria dos
presos comuns até o final da década de 1990. Apenas com o advento da luta anti-
manicomial e com as investigações que a lei impôs, foi possível encontrar outros
homens e mulheres que, como [Marcos], cometeram crime a partir de incidência de
doença mental.
Somente a partir destes subsídios é que se construiu o Programa de Atenção
Integral ao Louco Infrator em Goiás, no ano de 2001, que passou a acompanhar
esses casos mais de perto e possibilitar um tratamento humanitário a estas pessoas
vítimas do que chamamos de “seus próprios delírios”.
processado. É só por meio do corpo de delito, ou exame cadavérico, que se contata que houve
o crime. Embora se trate de peça fundamental, vê-se que somente no século XX é formado um
corpo pericial especializado para a feitura de tais exames. 3. Auto de perguntas ao ofendido;
Só válido, é claro, quando o crime não for de homicídio consumado. Aqui, a vítima dá a sua
primeira versão do acontecido. A linguagem usualmente utilizada é de denúncia. 4. Auto de
Qualificação e perguntas ao acusado Aqui, qualifica-se o acusado. As perguntas são padroni-
zadas, dependendo do marco legal, isto é, o Código de Processo Penal ou Civil. Nesse momen-
to, ainda no âmbito policial, normalmente os acusados prestam declarações mais extensas e
pormenorizadas. Nesse momento ele ainda não se faz acompanhar por seus patronos, logo, a
sua versão ainda pode ser vista como algo natural, embora mesmo aqui o grau de naturalidade
pode ser inferido, mas nunca sabido verdadeiramente. Até porque, mesmo se há naturalidade
na fala do acusado, o filtro do escrivão e o encaminhamento das questões por parte da au-
toridade policial. No Inquérito Policial não oferece ao suspeito a oportunidade do contradi-
tório, a mesma que terá no âmbito judicial. Como diz Hélio Tornaghi (Apud: MARZAGÃO
JÚNIOR. p. 50), “o caráter inquisitório significa que a autoridade policial enfeixa nas mãos
todo o poder de direção”. 5. Inquirição de testemunhas As primeiras testemunhas são ouvidas
para fundamentar o relatório do delegado. 6. Relatório do delegado; Peça que encerra a fase
inquisitorial. É nele que o delegado expõe, de forma detalhada, todos os indícios e provas que
levam ao acusado, fazendo-o autor do crime. Essa peça deve ser lida com bastante critério.
Primeiro porque o delegado tem um prazo para o encerramento do Inquérito, logo, ele não
pode ficar muito tempo para proceder outros atos. E mais, o delegado, como os inquisidores,
deseja, geralmente, a incriminação do acusado, pois isso o faz competente. Ora, se ele prendeu
o acusado e depois 7. Denúncia (Tudo que já falei, mais o fato de que é nesse momento que o
acusado, a partir da denúncia se torna um denunciado. 8. Inquirição de testemunhas (Atentar
para as diferenças entre testemunhas de acusação e testemunhas informantes. O que é uma
testemunha informante? E mais: o Código de Processo exige, sempre, o número de testemu-
nhas para cada caso. Atentar para esse fato. 9. Interrogatório Nesse momento, o denunciado,
já devidamente orientado, presta declarações sucintas. Como diz Boris Fausto, o denunciado
responde ao que é perguntado não para esclarecimento da verdade, mas para sua própria de-
fesa. Assim, as versões, nessa fase, são quase padronizadas, a individualidade quase some de
vez. Não há mais individuo, mas há O DENÚNCIADO, o sujeito que deve, necessariamente,
construir sua imagem, de acordo com os preceitos legais. Imagem essa que ajudará na sua
absolvição, a sua Impronúncia como autor do ato criminoso. Mais uma vez recorrendo a Boris
Fausto, percebe-se nitidamente que o acusado, sua fala, vai se apagando, a medida que os fei-
tos se aproxima do final. Agora ele só fala por meio do advogado, em momentos oportunos.
10. Pronúncia De posso de todo o processado, o juiz então irá decidir se o denunciado é ou
não passível de julgamento. Se a culpa estiver provada, o magistrado pronunciará o denun-
ciado, operando mais uma transformação: de denunciado, agora nosso cidadão será réu num
processo e terá seu nome lançado no rol dos culpados. Enfim, nesse momento, para o judiciá-
rio já ficou provada a culpabilidade do acusado. Ele já é um criminoso. Mas, no nosso sistema
judicial, os juízes não são os agentes da pena. Isso é feito pela sociedade, por meio do Tribunal
Histórias de Doenças 67
de Júri. 11. Libelo; Como o réu foi pronunciado, agora cabe ao Promotor dizer por qual cri-
me ele será julgado pela sociedade. No libelo, que também e uma peça quase padronizada, a
autoridade da Promotoria diz que irá provar que “em determinada data houve um crime” e
que o réu é o autor de tal crime. E pedirá, de acordo com o diploma legal (Processo Penal),
que os jurados o julguem culpado. 12. Interrogatório Nessa fase, pouca coisa se descobre, uma
vez que é quase ritualístico. As perguntas são padronizadas e as respostas devem ser breves,
uma narrativa para fundamentar a tese da defesa. 13. Julgamento Pela experiência retirada
da leitura de mais de mil processos, pude perceber que o julgamento na sessão do júri é o
que de fato determina a sorte do réu. Nada, ou quase nada mais vale todos os procedimentos
anteriores. Nos processos lidos, percebe-se que o que é levado em conta nessas sessões são as
argumentações da defesa e da acusação. Infelizmente, não há as transcrições dessas falas, mas
infere-se que, dependendo do status do réu, da vítima ou das famílias, ele é julgado culpado
ou inocentado. É nessa fase que o juiz elabora os quesitos pelos quais os jurados responde-
rão e, Consequentemente, decretará a sorte do infeliz. Os quesitos são elaborados tendo o
libelo como fonte, pois o réu não será julgado pelo que não consta na tal peça (o Libelo). 14.
Apelação 15. Novo Julgamento 16. Sentença (SANTOS, 2011).
Referências
Introdução
E ste estudo tem por objetivo historiar, segundo o modo e o estilo da epistemolo-
gia francesa contemporânea, a primeira fase da descoberta do agente da doença
de Carrión, ou seja, os estudos etiológicos sobre a presença endoglobular do agente,
realizados no período de 1903 a 1913. Procurou-se mostrar como a emulação dos
médicos do Instituto de Higiene de Lima e o trabalho hospitalar de Alberto Barton
criou o contexto histórico para que este acertasse o alvo na incriminação etiológi-
ca, em 1909. Faz-se a história da participação internacional dos centros médicos
de estudos microbiológicos e patológicos que confirmaram a descoberta do agente.
Procurou-se, com isso, evidenciar na dialética concreta de um pensamento médico
em curso, um tipo de desenvolvimento progressivo da racionalidade.
Objetivo e recorte
4 A pesquisa microbiológica centrada nos tecidos da erupção típica da doença foi iniciada por
IZQUIERDO (1885a, 1885b) e esteve impossibilitada de progressos até sua retomada por
LETULLE (1898A, 1898B), NICOLLE (1898), ESCOMEL (1902), VECCHI (1908).
Histórias de Doenças 71
Problema e hipótese
5 Sobre isso, ver DELAPORTE (1989). Este autor, além de ser uma referência para a história da
febre amarela, é também a referência filosófica e historiográfica central do presente trabalho,
enquanto herdeiro de Canguilhem (2002) e da história e epistemologia das ciências, tal como
se pratica na filosofia francesa contemporânea.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
72 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
o mesmo que Biffi (1903) e vários outros observadores (serão apresentados, a seguir)
muito melhor equipados, dotou o fenômeno do conceito apropriado, aquele que a
história posterior homologou, colocando-o do lado da verdade e desclassificando os
oponentes.
Nesse sentido, a hipótese básica deste artigo é que Barton (1909), mais que
descobridor de algo, é o inventor do primeiro núcleo conceitual atualmente verdadeiro
da etiologia da patologia conhecida como bartonellosis humana ou doença de Carrión.
Mas, se uma história da descoberta do agente toma, aqui, a obra e a pers-
pectiva de Alberto Barton por fio condutor, não é para construir mais uma história
monumental, uma narrativa laudatória de heróis nacionais (da medicina peruana)
ou regionais (da medicina latino-americana)6, mas para revisar as razões pelas quais
as observações deste estudante de medicina e, depois, médico clínico generalista,
impuseram-se de forma incontornável, sobre um campo de adversidade biomédico,
capitaneado pelo Instituto Municipal de Higiene de Lima.
Barton fora empurrado pelo destino a trabalhar só, sem laboratório espe-
cializado, sem suporte institucional, mas não empreendeu a descoberta do agente
baseando-se unicamente em seus próprios esforços. O recorte “autor e obra” é artifi-
cial e só vale aqui para fincar perspectivas. Nesse sentido, procura-se fazer reapare-
cer o modo como a descoberta emerge do contexto agônico de construção do pen-
samento médico peruano, dividido em dois polos: de um lado, Barton e a tradição
clínica dos médicos hospitalares; de outro lado, a microbiologia representada pelo
Instituto de Higiene de Lima. Estes dois polos centralizam um debate internacional,
na medida em que Lima fez-se epicentro de um rizoma: nascedouro e vertedouro de
uma comunicação entre vários dos postos mais avançados da medicina das doenças
tropicais do início do século XX.
Vou ocupar-me agora das granulações que se observam no interior das hemá-
cias dos verrucosos; este é um fenômeno bastante frequente e pode ser obser-
vado em todos os períodos da enfermidade; até faz pouco tempo, acreditava
que só se apresentavam na verruga, mas este fato, que se fosse certo teria tido
grande importância, não é positivo; tive a ocasião de vê-las [as inclusões] em
um caso de malária de forma grave.
Mais que isso, Gastiaburú (1903, p. 315) pretende que as mesmas inclusões
“foram encontradas por outros observadores em distintas anemias”. As granulações
podem ser móveis, podem estar em diferentes anemias, incluindo a malária e, ape-
lando para a autoridade do próprio descobridor do hematozoário do paludismo,
Gastiaburú parece querer por um ponto final na discussão: “Laveran, em sua obra
sobre os hematozoários do sangue humano, ao ocupar-se delas [das inclusões que
Gastiaburú acredita serem idênticas], disse que, em algumas ocasiões, apresentam
movimentos” (GASTIABURÚ, 1903, p. 315).
Dessa forma, Gastiaburú procura conduzir as coisas para um desfecho que
pretenderia encerrar completamente a possibilidade de que o achado pudesse ser
interpretado de maneira diversa daquela decisão de Biffi (1903). Inadvertidamente,
entretanto, Gastiaburú desconsidera algo que Biffi publicara sem verve teórica sufi-
ciente para levar as coisas às últimas consequências: “Nunca encontrei, nos glóbulos
vermelhos, inclusões tão claras, bem definidas, com o caráter de elementos inde-
pendentes, como aquelas que se vê no sangue dos verrucosos” (BIFFI, 1903, p. 151).
O doutor Alberto Barton leu um interessante estudo sobre dois casos de ane-
mia febril, de natureza desconhecida, que teve oportunidade de estudar no
Hospital de Guadalupe. Fez a história clínica dos dois casos. Anotou a seme-
lhança entre os sintomas dessa anemia e os da doença de Carrión. Deu conta,
em seguida, de seus estudos bacteriológicos que lhe permitiram encontrar,
nos glóbulos vermelhos do sangue dos atacados, um novo parasita, uma bac-
Histórias de Doenças 75
Parece que a pergunta fundamental seja: por que razões Barton, em 1909, re-
tomaria uma comunicação oral, feita em 1905, incriminando um corpúsculo endo-
globular logo depois que uma autoridade do peso internacional de Bindo de Vecchio
fortalecera a posição do Instituto de Lima?
Certamente a posição de Barton não se monta sobre a ignorância da perspecti-
va de seus opositores. Ele sabe que não possui uma nova caracterização do corpúsculo,
já que o corante viável e as formas vistas não rivalizam essencialmente com o que
foi descrito por Biffi (1903) e por Gastiaburú (1903). Trata-se, isso sim, de denegar a
interpretação dada para a inclusão globular pelos dois médicos do Instituto. Trata-se
de reafirmar a existência de um parasita, contra a posição final de Bindo de Vecchio
(1908). Segundo Barton (1909, p. 9), “quanto à natureza dos tantas vezes citados ele-
mentos, podemos afirmar que não se trata de simples restos nucleares nem de grânu-
los degenerativos e que […] nos inclinamos a crer que sejam organismos vivos […]”.
Após a reafirmação de posição da parte de Barton, o Instituto dá mostras de
que continua mobilizado no sentido apontado por Biffi: buscar apoio nos principais
centros europeus da nova medicina.
(1910, p. 310) entende que há corpos “incluídos nos glóbulos vermelhos e que se
coloram, por Giemsa, em vermelho escuro”.
Embora Mayer não tenha tido acesso ao texto de Barton (1909), corrobora
uma observação do médico peruano, oferecendo uma importantíssima ratificação.
Para Mayer (1910, p. 310), dentre as inclusões dos glóbulos vermelhos dos pacientes
da doença de Carrión, “outros bastonetes invadem a margem globular ou sobressa-
em dele, como se houvessem escorrido”. No ano anterior, dizia Barton (1909, p. 8):
“Em algumas preparações parece que os bastõezinhos [ou bacilozinhos] tenham a
tendência a ocupar a periferia dos glóbulos e, nestes casos, podem ver-se um ou ou-
tro deles parcial ou ainda totalmente fora das células”. Uma característica que, por si
só, falaria em favor da tese de a inclusão ser de natureza parasitária, em detrimento
da tese de que pudesse pertencer aos fenômenos fisiológicos da hemácia. Esta ob-
servação será continuamente colocada do lado da verdade pelos observadores que
se sucederão, ao longo das décadas seguintes, tornando-se um dos problemas a se
resolver. Com o advento da microscopia eletrônica, veio a saber-se que a Bartonella
bacilliformis, sendo dotada de múltiplos flagelos, é capaz de locomover-se, aderir à
parede do glóbulo vermelho e penetrá-lo. O que Barton e Mayer viram foi, numa
interpretação retrospectiva, a Bartonella bacilliformis no ato de sua penetração no
eritrócito ou parasitando sua parede.
Permanecendo ainda na leitura do artigo de Mayer, vemos que ele acompanha
a posição de Bassett-Smith, ao afirmar que “não se pode diferenciar, nos elementos in-
cluídos nos eritrócitos, o protoplasma da substância nuclear, devendo-se, então, con-
siderar como protoplasma as partes tingidas em vermelho” (MAYER, 1910, p. 310).
Mayer reconhece que seu achado é o mesmo de Biffi (1903), de Gastiaburú
(1903) e de Bassett-Smith (1909), artigos a que ele tem acesso, embora não cite Barton
(1909), um texto que não deve ter acompanhado as amostras enviadas de Lima.
Mas, se Mayer considera as referidas inclusões inconfundíveis com os sinais
de Schuffner-Tupfelung, presentes nas hemácias dos pacientes de malária, têm di-
ficuldades em diferenciar, em todas as amostras, as novas inclusões dos anéis de
Dohler e conclui que isso pesa contra a hipótese parasitária. Por outro lado, consi-
dera que há amostras em que a nova inclusão é claramente distinguível dos anéis de
Dehler. Por fim, conclui:
fundo estudo; tanto para seu estudo hematológico, quanto que se encontrará
pontos de vista novos no que se refere à constituição dos eritrócitos (MAYER,
1910, p. 311).
7 Lido na Seção de Patologia e Fisiologia da Associação Médica Americana, 62ª. Sessão Anual,
Los Angeles, junho de 1911.
Histórias de Doenças 81
época da epidemia da ‘febre de Oroya’, entre 1870 e 1872, que recolheu a experiência
de Crow e Ward (WARD, 1877), que conviveram com o primeiro médico de língua
inglesa a clinicar na região endêmica da doença, na década de 1870 e a se pronunciar
publicamente sobre ela (SOCIEDAD MÉDICA DE LIMA, 1875).
Ademais, o Hospital de Ancon tem uma posição estratégica em relação aos
trabalhadores de origem norte-americana que atuam nas obras da ferrovia peruana.
Isso dá a Darling: uma comunicação rápida com a medicina limenha; o acesso a
casos de doentes provenientes do Peru; materiais biológicos de primeira mão e a
possibilidade de autópsias, como a que ele relata ter feito, no artigo. Em função desta
posição estratégica, de todos os que se pronunciaram até o momento, só Darling
dispõe do texto de Barton (1909), enquanto os participantes acima apresentados só
tiveram acesso à produção do Instituto de Higiene de Lima.
Sobre a inclusão globular, Darling também as vê e as representa em uma ilus-
tração em seu artigo, chamando-as de corpúsculos x (x-bodies). Ao resumir suas
leituras sobre os outros observadores do fenômeno, como é costume neste tipo de
literatura, ele está em posição de colocar as coisas no lugar histórico correto. Para
Darling (1911, p. 2072), “Gastiaburú e Rebagliati, em outubro de 19098, confirma-
ram os achados de Barton”.
Darling (1911, p. 2073) compreende que o problema sobre a natureza das
inclusões globulares ou corpúsculos x seja o seguinte: “Seriam eles alguma forma de
basofilia ou mudança degenerativa dos eritrócitos ou são remanescentes nucleares?”.
Frente a tal problemática, Darling vai realizar as seguintes observações: (a) estuda os
“eritrócitos mostrando corpúsculos x de um caso fatal de verruga peruana, dois dias
antes da morte” de paciente atendido no Hospital de Ancon; (b) realiza a autópsia do
referido caso fatal; e (c) estuda as lâminas de sangue enviadas por Barton.
A conclusão de Darling é a seguinte: “vou limitar-me a afirmar que os corpús-
culos x em forma de bastonetes delgados parecem-me representar algum tipo único
de micro-organismo” (DARLING, 1911, p. 2073).
Dessa forma, Darling (1911) foi o primeiro a referendar, com amplo conhe-
cimento de causa, a posição de Barton (1909).
que subiam a serra andina (esta medicina era praticada por médicos estrangeiros
que publicavam em língua inglesa), seja na medicina hospitalar tradicional, que pu-
blicava em espanhol, na costa peruana. Segundo estas duas linhagens de pensamen-
to e prática médico-hospitalares (a peruana e a anglo-americana), tratava-se de uma
só doença, integrando um conjunto de sintomas que deviam ser vinculados ao dado
fundamental oferecido pela geografia médica do Peru, a estada do paciente na região
endêmica da doença. Assim, a doença perfaz o seguinte ciclo sintomático: febre, do-
res musculares e ósseas acompanhadas de anemia aguda e crescente, na fase de ins-
talação, não separável da fase aguda; um período de remitência dos sintomas agudos
e, finalmente, a fase do surgimento da erupção patognomônica, a verruga peruana.
Em qualquer das fases da doença, podia surgir uma síndrome aguda e de prognós-
tico quase sempre fatal, de sintomas tifoides, mas sem perda de consciência, nem
quadro delirante. Ademais, a área endêmica da doença, normalmente, é recoberta
pelo paludismo endêmico, apresentando-se a doença de Carrión, frequentemente,
complicada pela malária. Na clínica hospitalar, o tratamento quinínico era de praxe
em qualquer fase da doença, de forma que a prevalência dos sintomas e a proveni-
ência do paciente, supressa a possibilidade palúdica pelo uso do medicamento, indi-
cavam a possibilidade da doença de Carrión, mesmo na ausência da erupção típica.
Num quadro clínico tão complexo, Barton assumiu a posição epistemológi-
ca que guia claramente todo o seu percurso (SUGIZAKI, 2014). A sua busca fun-
damental sempre foi pela etiologia da doença. Para tal fim, ele precisava, tanto no
plano clínico, quanto no microbiológico, isolar a doença de suas complicações. Ele
devia constituir uma grade sistemática de isolamento das possibilidades causais, ou
seja, excluir causas que o pudessem conduzir às doenças complicadoras e não ao
isolamento da causa específica da doença de Carrión.
A sua primeira exclusão foi contornar ou evitar obstáculos conjunturais ou
situacionais. Ele renunciou às buscas no tecido da erupção, a verruga peruana, em
favor de uma pesquisa no sangue dos doentes. Barton sabia, pelas experiências de
seu trabalho de conclusão de curso de medicina, publicado em 1901, que a busca da
etiologia que tomasse a erupção típica para exame histológico deparava-se com uma
pletora de agentes microbianos de difícil isolamento, difícil cultivo e difícil produ-
ção experimental do sintoma patognomônico, via inoculações em animais. Por isso,
Barton (1901) escolheu buscar a etiologia da doença, não na erupção, mas na cor-
rente sanguínea periférica, para vincular o agente à doença, em sua fase aguda. No
Histórias de Doenças 85
sangue e nesta fase, era mais fácil eliminar as infecções intercorrentes, que a anemia
da doença favorecia fortemente, em todo o seu desenvolvimento.
Para eliminar as variantes de complicação presentes no sangue, Barton podia
contar, na clínica, com a quinina. No plano microbiológico, desenvolveu competên-
cia, ainda antes de ter o diploma médico, para isolar as diversas formas visíveis do
hematozoário de Laveran e o bacilo de Eberth. Sabe-se disso graças ao excelente do-
mínio microbiológico que demonstra sobre os dois temas, em seu artigo debutante,
de 1898, em Cadiz, na Espanha (Barton, 1898). Um texto que passou inteiramen-
te despercebido aos historiadores que se ocuparam do assunto (Rebagliati, 1940;
Lastres, 1957; García Cáceres, 1972 e 1991).
Recém-formado em medicina, Barton aproveita uma bolsa de estudos conce-
dida pelo Congresso Nacional do Peru e, na Inglaterra, adquire domínio para o isola-
mento do bacilo Coli comum. Outra complicação possível eliminada (Barton, 1902).
Depois de anos de investimento no estudo do sangue dos pacientes vitimados
pela doença de Carrión, pelo menos desde 1897, Barton viu na descoberta de Biffi
(1903) uma chance enorme de fazer avançar sua busca pela etiologia. O interior do
glóbulo vermelho só tinha, do que ele sabia, um problema. Era preciso separar os
doentes com complicação palúdica, com o máximo cuidado. É o caminho que suas
pesquisas tomam, já que, em 1905, ele vai à Sociedade Médica ‘União Fernandina’ e
incrimina a inclusão globular que Biffi (1903) havia dado como granulação basófila.
Nesta mesma ocasião, no mesmo evento comemorativo à morte de Carrión,
na Sociedade ‘União Fernandina’, em outubro de 1905, Tamayo (1905), a essa altura
não mais como colega de estudos de Barton, mas como funcionário do Instituto de
Higiene de Lima, apresenta aquele estudo que será o primeiro marco de conheci-
mento irrefutável sobre os processos complicadores da doença de Carrión, a presen-
ça universal dos bacilos paratíficos na síndrome tifoide que podia atacar os pacientes
de doença de Carrión em qualquer das fases da enfermidade.9 Esclarecia-se, assim,
9 Apesar da descoberta dos bacilos paratíficos ter ocorrido em 1896 (Achard e Bensaude, 1896a,
1896b, 1896c e Achard, 1915), a difusão do conhecimento deste agente pelos laboratórios pa-
rece ter sido lenta em função da grande dificuldade de se constituir uma coleção enorme de
parasitas diferenciáveis por procedimentos extremamente sutis e específicos, que vão, poste-
riormente, dar lugar ao grande grupo dos seres vivos classificados sob o gênero Salmonella. A
chegada ao Peru do acervo microbiológico bem como do domínio das técnicas laboratoriais
para a identificação da lista, a esta altura já extensa, dos bacilos paratíficos, é testemunhada
apenas em 1904, no artigo de Biffi e Carbajal, Sobre um caso de Enfermidade de Carrión com
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
86 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
verrucomas supurados. Apenas dois anos antes disso, quando outro funcionário do Instituto
de Higiene de Lima ocupa-se da tentativa de refletir sobre as características tifoides de pe-
ríodos de sintomas agudos na doença de Carrión e a relação dessa síndrome com possíveis
complicações, ele fala apenas do bacilo de Eberth e do parasita de Laveran. Referimo-nos ao
artigo de Gastiaburú (1902), Um caso de malária ‘Immaculata’. Por este artigo é possível saber,
com grau elevado de segurança, que não havia, no Peru, conhecimento dos agentes paratíficos
até o final do ano de 1902.
Histórias de Doenças 87
Parece-nos que existe uma relação definida entre o número destes elementos
e o estado dos pacientes, notando-se que a cura coincide com sua desapari-
ção […] e que, pelo contrário, enquanto persistem no sangue, os sintomas
continuam e se seu número aumenta consideravelmente, o paciente piora e
sucumbe em pouco tempo, se não se verifica o processo de involução [do
gérmen dentro da hemácia] (BARTON, 1909, p. 9-10).
Conclusões
dessa questão para ocupar-se com o problema da invenção de uma vacina contra os
bacilos paratíficos (Tamayo, 1906) e sobre a classificação desses bacilos (Tamayo e
Gastiaburú, 1907). Finalmente, é Barton (1909) que melhor se aproveita da desco-
berta de Biffi (1903), das inclusões globulares.
Reunindo as contribuições do Instituto às suas próprias pesquisas, Barton
procura totalizar os elementos teóricos dispersos. Procura coordenar o diagnóstico
clínico e o crivo crítico da pesquisa microbiológica. Como já foi dito anteriormente,
ele procura eliminar fatores causais de processos patológicos paralelos, para chegar
ao fator causal do mal principal. É essa perspectiva globalizante que lhe dá funda-
mentos para insistir na posição incriminatória, defendida em 1905 e em 1909.
De outro lado, a linha de pensamento do Instituto Médico de Lima e, de resto,
de todos os outros interventores internacionais no debate, exceto Darling, é de um
perfil epistemológico restrito ao crivo crítico microbiológico e, portanto, carente de
sustentação da orientação do diagnóstico clínico. Se Darling (1911), como também
Mayer, Rocha Lima e Werner (1913) homologam competentemente a descoberta de
Barton (1909) é por causa do acesso direto aos pacientes. Um acesso que o Instituto
de Higiene de Lima também tinha, mas optou por declinar da concepção clínico-
-global e unitária da doença de Carrión, que guiava Barton.
Enquanto Barton reúne os elementos que, num todo complexo, mas articu-
lado, apontam para uma etiologia determinada e segue um raciocínio afirmativo,
que implica o risco do que não é absolutamente certo, o padrão causal restritivo
seguido por Biffi e pelos laboratórios foi reativo e negativo. Segundo este padrão, é
preciso esgotar as possibilidades de explicação alternativa para um fenômeno antes
de guindá-lo ao estatuto de elo decisivo. Percebe-se bem que não é o desacerto de
uma das opções epistemológicas, a de Barton ou a do Instituto de Higiene de Lima,
que está em questão. O critério epistemológico dos laboratórios é etiologicamente
mais rigoroso que o de Barton. Mas, foram a cooperação dialética e a emulação
científica entre eles que conduziram ao sucesso histórico da razão sobre o desafio
imposto pela doença.
Referências
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Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
92 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
1 Este texto conta com o apoio da FAPEMIG e é resultado do projeto de Pesquisa: “As teses médi-
cas e a constituição da medicina acadêmica em Minas Gerais (18361897)” (FAPEMIG/MG)
2 Professor do Instituto de História, da Universidade Federal de Uberlândia.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
96 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
Chama a atenção o fato de que, aos casos descritos por outros médicos e
extraídos da literatura, Ricardo Baptista procurava incluir as observações clínicas
que teve oportunidade de acompanhar no hospital, como o caso de hemiplegia –
associada à encefalite aguda – verificada pela necropsia de um doente. No decorrer
da dissertação, há o relato de outros casos, como a de paralisia geral, tendo como
um dos sintomas “derramamentos serosos ou sanguíneos” e “amolecimentos perifé-
ricos das camas corticais do encéfalo”, lesões que pôde observar a partir a partir das
autópsias que fez na casa de saúde do Dr. Eiras (Ibidem, p.25), também conhecida
como Casa da Convalescença, uma das primeiras instituições particulares a receber
alienados mentais em um espaço dedicado à terapêutica alienista (GONÇALVES,
2013, p.71-72).
Os estudantes de medicina enfatizavam a adesão aos métodos experimentais
da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Em trabalho sobre a epilepsia (1872),
Pedro Sanches de Lemos afirmava que a patogenia fornecia “o molde científico da
medicina moderna”, apoiada na experiência e na experimentação, “tendo à mão ins-
trumentos apropositados e precisas observações (LEMOS, 1872, p.1-2).
Argumentos semelhantes são apresentados para o estudo da anatomia pato-
lógica da febre amarela (1885), de autoria de Francisco Augusto Cézar. No prefácio,
ele observava que para a confecção do trabalho consultou vários escritos de auto-
res, tantos nacionais, quanto estrangeiros. Entretanto, procurava expor, sobretudo, o
que viu nas autópsias do hospital da “Jurujuba”, o hospital marítimo de Santa Izabel
(CÉZAR, 1885, s.p).
Uma das características dessa experiência vivenciada pelos alunos nos hos-
pitais era o trabalho colaborativo. Francisco Augusto Cézar destaca que as peças
histológicas que teve oportunidade de examinar eram de seu colega Chapot-Prévost,
enquanto os exames microscópicos de líquidos pelos demais estudantes eram re-
alizados sob a supervisão do Dr. Freire. Chapot-Prévost fora também aluno da
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, tornando-se catedrático de histologia em
1890. Além disso, integrou a comissão que foi a Berlim para estudar a tuberculose e
o processo proposto por Robert Koch para curá-la.3 Já Domingos Freire de Andrade
consagrou-se pelos seus estudos sobre a febre amarela no Brasil e pelo envolvimento
nos debates que envolveram a questão (BENCHIMOL, 1995), assunto que retoma-
remos mais adiante.
A nosso ver, a menção aos trabalhos dos “mestres” é importante para com-
preendermos as teses como elemento de validação do saber elaborado na Faculdade
de Medicina do Rio de Janeiro, reforçando as posições e teorias defendidas no âmbi-
to daquela instituição. A esse respeito, a abordagem de Ludwig Fleck para a compre-
ensão da constituição dos conceitos científicos fornece uma perspectiva pertinente
para o entendimento dessas fontes. Esse autor aponta, dentre outros elementos, o
papel que adquire a aprendizagem para a formação de um determinado “estilo de
pensamento” adotado por determinada comunidade científica. A pesquisa científica
é indissociável, portanto, da “densidade social”, viabilizada pelo número das intera-
ções entre os membros de um grupo (LÖWY, 2012, p.22-23).
Tais interações eram, no caso específico, reforçadas pelas relações estabele-
cidas entre os alunos e os lentes da Faculdade, bem como o reconhecimento do
trabalho desenvolvido por esses. Além disso, a referência a autoridades brasileiras
pode ser vista como um elemento de valorização da ciência local, das experiências
clínicas e trabalhos publicados pelos médicos brasileiros. Em dissertação sobre o
paludismo, Azarias Monteiro de Andrade citava como referência o médico brasilei-
ro Torres Homem, a quem considerava o primus inter pares da medicina brasileira
(ANDRADE, 1897, p.8).
João Vicente Torres Homem (1837-1887) foi um dos mais destacados clíni-
cos do século XIX no Brasil, sendo integrado aos quadros da Faculdade de Medicina
do Rio de Janeiro, em 1860, para o lugar de Opositor da Seção de Ciências Médicas.
Da sua trajetória no interior da Faculdade merece destaque os concursos que pres-
tou para a cadeira de Clínica Médica, para a qual foi nomeado em 1866. Além de sua
atuação na Faculdade, Torres Homem publicou trabalhos sobre temáticas diversas.
(FERREIRA, 1994, p.58-71).
A autoridade de Torres Homem era reconhecida não somente entre seus pa-
res, como também entre seus alunos. Um dos discípulos de Torres homem foi Paulino
José Gomes da Costa (1873), que escolheu como ponto da cadeira de Clínica Médica
o tema Das indicações e contra-indicações do bromureto de potássio no tratamento das
moléstias nervosas. Além de ser dedicada a seu mestre, a tese fazia referência ao fato
de que ele teria sido o primeiro médico brasileiro a aplicar o Brometo de Potássio
como medicamento (COSTA, 1873).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
100 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
microscópico realizado pelo Dr. Menezes, o qual revelou células cilíndricas de natu-
reza cancerosa (Ibidem, p.13).
A introdução do microscópio e do laboratório como formas de validação do
saber e confirmação dos diagnósticos sinaliza para a introdução de outros elementos
que demarcam a medicina no século XIX. Conforme observa, Flávio Edler:
Entretanto, esse autor atenta para o fato de que as diferentes tradições cien-
tíficas da medicina acadêmica “nunca tiveram existência pura aparecendo sempre
uma maior ou menor interpenetração entre elas nas situações históricas concretas”
(Ibidem, p.359).
Nas fontes que tivemos oportunidade de acessar, é possível observar a coexis-
tência da tradição anatomoclínica e a experimental. Foi somente a partir da década
de 1870 que temas relacionados ao advento da medicina experimental começaram a
repercutir no âmbito da Faculdade de Medicina. A reforma Saboia (1880-1889), ao
criar novas instalações, separando a anatomia patológica da fisiologia patológica, e
novas modalidades clínicas, foi acompanhada do estreitamento entre as atividades
de ensino e pesquisa (EDLER, FERREIRA, FONSECA, 2001, p.74-5).
A bacteriologia assumia entre alguns alunos formados em fins do século XIX
um lugar de destaque, ao conferir legitimidade científica à medicina. Em tese que
tratava d’o parasitismo em relação ao diagnóstico e tratamento da tísica pulmonar
(1885), Luiz de Mello Brandão e Menezes postulava que coube a Pasteur fornecer à
ciência o “arsenal de conhecimento técnicos especiais para que ela pudesse progre-
dir e caminhar iluminada no mundo dos micro-organismos” (MENEZES, 1885, p.7)
O Dr. José Plácido Barbosa da Silva transformou sua tese, Necessidade do
diagnóstico bacteriológico da Clínica (1896), em verdadeira peça apologética da in-
trodução da bacteriologia no Brasil. A esse respeito, considerava que os estudos de
Pasteur “franquearam à medicina um novo campo de estudos”. Mas foi com a escola
alemã, com os estudo de Robert Koch, sobre os “micro-organismos patogênicos”,
que se ampliaram os estudos bacteriológicos. Entretanto, argumentava que não
bastavam aos médicos o cultivo dos micróbios ou sua descrição. O empenho de-
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
102 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
ocupando-se tão somente dos interesses da arte de curar, à medida que pu-
sesse patentes os trabalhos – clínicos, e as lucubrações dos facultativos bra-
sileiros, servisse, outrossim, de acordá-los do torpor e descuido, em que
parece jazer, e mostrasse ao mundo que entre nós também se cultiva, e por
ventura com aproveitamento, a divina e nobilíssima ciência de Hipócrates; tal
foi o pensamento que me levou a empreender a fundação do Archivo Medico
Brasileiro (LAPA, 1845, p.1).
Referências
Considerações iniciais
2 As principais foram o abrigo para meninas órfãs da Capital ou Colégio Isabel (1876); o Asilo
de Pobres de Ipameri, o Colégio Isabel/Dumbazinho, localizado à beira do Rio Araguaia, mais
tarde, transferido para a Fazenda Dumbazinho (1871); o Colégio de Aprendizes Militares da
cidade de Goiás (1877) e a Colônia Blasiana em Santa Luzia (Luziânia). Tinham como públi-
co uma população localizada à margem como indígenas, indigentes, pobres, abandonados e
delinquentes.
Histórias de Doenças 115
insistiram nos “temas do perigo e do fardo social” das crianças e jovens em condição
de anormalidade (FOUCAULT, 2000). Tais discursos redundaram, num primeiro
momento, em “justificativa de exclusão”, seja na construção de redes escolares como
de espaços de segregação (LOBO, 2011, p. 421). Durante o período em análise, en-
quanto problema político, as crianças são percebidas como risco de delinquência e
degenerescência em espaços que se urbanizam.
Sandra Caponi nos ajuda a perceber a descontinuidade relativa aos mode-
los de assistência desde fins do século XIX até a primeira metade do século XX no
Brasil. Haviam duas estratégias de proteção e intervenção que eram diferentes, em
relação aos seus impulsionadores, saíamos de uma prática fundada na ética da com-
paixão e passávamos à ética utilitária própria da assistência filantrópica (CAPONI,
2000). Na investida da filantropia e intervenção político-utilitarista, convivem em
um mesmo processo, as estratégias de poder pastoral e as de controle do tempo; que
demonstram o poder de inserção e controle no cotidiano da população “em nome
da utilidade e da felicidade do maior número” (CAPONI, 2000, p. 11). Na prática
notava-se a relação entre poder disciplinar e piedade enquanto estratégias de inter-
venção e controle sobre o cotidiano de pobres e doentes (CAPONI, 2000). O Estado
participava com a criação de impostos e taxas direcionados ao projeto assistencial,
já o exercício cotidiano da assistência se subordinava, quase que exclusivamente, ao
trabalho das chamadas “abnegadas damas da sociedade”.
Outro ponto importante é perceber que a ação do estado se fazia quando da
necessidade de prover um espaço ou carência deixada pela ausência da família. No
caso da maioria das instituições assistenciais, esse era o elemento definidor. Nesse
modelo assistencialista, como bem explica Villanueva (1999), o Estado aparece
como o sujeito benfeitor e o objeto da proteção apresenta-se como sujeitado a um
poder, que naquele momento se caracterizava pelo clientelismo. Em outras palavras,
não se tratava ainda de uma política pública de assistência, mas era um dos pontos
para constituição das condições para sua emergência.
3 A propaganda da puericultura e do cuidado com a saúde das crianças efetivava-se por meio
dos concursos de robustez infantil (MARTINS, 2010, p. 117).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
118 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
4 Ainda é preciso que se reforce que, a partir de 1942, a Associação recebe subvenção estadual
de vinte contos de reis para desenvolvimento de suas atividades, seguindo o que previa o
decreto-lei n. 6228.
Histórias de Doenças 119
Clube Agrícola da Colônia Santa Marta (BARBOSA e ALMEIDA, 2011). Não era
comum que a hanseníase fosse contraída na primeira infância, mas poderia ser em
idade infantil ou na adolescência. Por isso, na Colônia Santa Marta, foi preciso pre-
ver espaços particulares para acomodação dessa população. Nesse conjunto de me-
nores, alguns eram internados desacompanhados dos pais e foram resguardados de
forma especial, tanto relativamente ao espaço que ocupavam quanto à alimentação e
às atividades no interior do estabelecimento, que continha ambiente para formação
educacional, lazer, formação profissional e religiosa. No espaço colonial a primeira
sala de aula funcionou ao lado do Clube Recreativo e depois foi transferida para
a escola construída com recursos do estado, cuja inauguração ocorreu em 1952.
Decorrente do projeto de Reforma dos Serviços Públicos do Estado, que previa a
construção de seis pavilhões Carville, sendo um deles direcionado para cinquenta
crianças (TEIXEIRA, Pedro Ludovico. Mensagem…, 1953). O pavilhão das crianças,
a Escola Santa Marta e o Clube Agrícola foram espaços de guarda, criação, educação
e formação pelo trabalho das crianças e adolescentes doentes na Colônia.
res, a demanda social pelos serviços de assistência daquele tipo, bem como a condi-
ção clientelista da relação entre as instituições e os representantes do povo no poder:
Prosseguindo disse que o Abrigo ainda não foi inaugurado por falta de recur-
sos financeiros para compra de imóveis que só tem aceito crianças em caso de
emergência. O vereador Boaventura referiu-se (…) alegando que por várias
vezes se dirigiu a seu colega, solicitando o seu apoio no sentido de internar
na FAMA uma criança pobre desamparada, no entanto, tem recebido sempre
uma resposta negativa com o pretexto de que o Abrigo ainda não foi inau-
gurado. (…) Ao expor a situação da FAMA esclareceu que ainda não possui
verba para compra de móveis, pois o que recebe mal dá para a alimentação das
crianças (Ata da 143ª, 18 de agosto de 1953, p. 94).
des de lazer, alimentação, vestuário, ofício, lazer e repouso”, num elogio à disciplina
e controle (1999).
A criação do Departamento Municipal de Assistência à Infância e à
Maternidade (DMAIM, 1958) respondia ao proposto pelos 4º e 7º Congressos Pan-
Americanos da Criança. Seus objetivos específicos eram de ordem social e sanitá-
ria: o desenvolvimento orgânico da criança, o combate à mortalidade, o amparo à
mulher em relação específica com a maternidade (lei n. 1.401/1958). Naquele do-
cumento os preceitos, com conteúdo de ordem social, giravam em torno da preocu-
pação com o estímulo e auxílio às entidades privadas que se ocupavam da assistência
à infância e à maternidade. E a proteção, poucas vezes, considerava a família, se
restringia à promover a organização de patronatos, ou instituições para cuidado e
a indicação de “lar supletivo ou colocação familiar para as crianças em estado de
abandono material e moral” (lei n. 1183/1958). Nesses discursos e práticas, as crian-
ças eram subtraídas de seus lares e progenitores, fisicamente e teoricamente pensa-
das como um universo à parte, portanto, passíveis de internação. Paulatinamente, no
entanto, a preocupação em zelar pela família vai sendo integrada às normas e ações
interpostas (PASSETTI, 1999).
Nos projeto e leis para geração de recursos para financiamento público de
ações de amparo, a necessidade de produção de rendas para o fito de “internar o
maior número de crianças abandonadas” exibia a caracterização da institucionali-
zação como o caminho para a solução do problema (projeto de lei n. 167/1957) e a
elaboração de novas instituições dão a dimensão da problemática. Além das institui-
ções já citadas, temos a transformação do Lar de Meninas Santa Gertrudes em ins-
tituição de utilidade pública e a criação da Casa da Criança desvalida do município
de Goiânia, cujo objetivo era oferecer abrigo e educação aos menores abandonados
de ambos os sexos (leis n. 1579, n. 1618/59). Como definido nos objetivos dessa ins-
tituição, “procurará, dentro do possível, além de assistir e educar a criança, dotá-la
de condigna profissão”. A construção, se faria com recursos advindos do Ministério
da Justiça; naquele momento, no entanto, era apenas criada “por decreto”, como ex-
plicava o próprio prefeito da cidade na sua justificativa da lei “quando lançamos
o decreto tínhamos certeza de que nenhum vereador, por empedernido que seja,
ousaria impugnar uma providência de tão alto alcance para os humildes e para os
anônimos” (lei n. 1618/1959).
De outro lado, a percepção do cuidado da infância parecia sofrer uma ex-
pansão, ia além da sua manutenção física e formação moral. A década de 1950 é o
Histórias de Doenças 125
6 A ideia que permeava a criação da Junta era de efetivar o proposto na Lei Orgânica do
Município, item e do artigo 23, que propunha a assistência social do município. Integrava a
junta um consultor jurídico da prefeitura, um representante da Câmara dos Vereadores, um
membro da Associação Médica de Goiás, um conselheiro da Ordem dos Advogados de Goiás,
um sanitarista da Secretaria de Saúde Estadual, um técnico da Secretaria de Educação e dois
membros escolhidos pelo executivo municipal.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
126 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
7 O financiamento das instituições criadas e de sua manutenção se faria por meio de 60% do
lucro líquido da Loteria do Estado de Goiás; a dotação de recursos para instalação e funciona-
mento ocorre em 1963.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
128 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
8 As legislações citadas para os três estabelecimentos previam reserva de vagas para indicação
do executivo ou legislativo. No convênio, o número de vagas definido em cada instituição era
de seis, três por indicação do executivo e três do legislativo.
9 Em 1964 ocorre a aquisição de terreno e instalação da instituição, para tornar-se entidade
autárquica municipal.
Histórias de Doenças 129
Considerações finais
Fontes
Referências
Voluntário da pátria
as forças invasoras de Solano Lopes? O registro feito por ele não o consigna. A tra-
dição familiar mantém, entretanto, o relato - do próprio Pacífico aos filhos – de que
o Imperador Pedro II o elogiou e abraçou cordialmente, quando soube que o co-
mandante piauiense não tentara escusar-se do serviço militar, como muitos faziam,
mandando escravos em seu lugar para combater o inimigo.
Concluídos os remanejamentos necessários, Pacífico partiu do Rio de Janeiro
uma semana depois, a bordo do vapor inglês, Wisper, no comando de 32 oficiais e
248 praças, que viriam a formar o 55º. Corpo de Voluntários da Pátria. O destino era
Buenos Aires, aonde chegaram em 9 de janeiro de 1886, prosseguindo para Cidade
do Rosário e Corrientes, no teatro de guerra.
Em seu relato,12 Pacífico refere as batalhas de Tuiutí e Lomas Valentinas, nas
quais esteve presente; e registra o frio cortante dos pampas e das coxilhas do Sul, o
que provocava doenças pulmonares e levava à morte de voluntários piauienses.
Chamado de volta ao Rio de Janeiro,foi condecorado pelo Imperador com a
Imperial Ordem da Rosa, no grau de Oficial,13 “pelos relevantes serviços prestados
em campanha”.14 Incumbido de organizar novo batalhão de Voluntários, retornou ao
Piauí – mas, dadas as circunstância em que de desenrolava a campanha, não chegou
a ultimar a nova missão.
12 Derrota...cit.
13 A Imperial Ordem da Rosa foi instituída pelo Imperador Pedro I para perpetuar a memória
de seu casamento com D. Amélia de Leuchtenberg. Destinava-se a premiar militares e civis,
nacionais e estrangeiros que se distinguissem por sua fidelidade à pessoa do Imperador e por
serviços prestados ao Estado. Os seus graus até oficial conferiam honras militares. Disponível
em http://miltonbasile.blogspot.com/2011/04/historia-da-ordem-da-rosa_16.html
14 Condecoração conferida através do Decreto de 07.07.1868. Castello Branco, D. P. Op. cit.
15 Os dados biográficos que se seguem foram extraídos de Texto autobiográfico da autoria de
Pacífico da Silva Castello Branco, inserido in Caderno de notas cit., p. 10-45.
Histórias de Doenças 141
Dois anos depois, fez seguir o mais velho de seus filhos homens – de nome
Pacífico - para estudar em Pernambuco, onde “entrou no Collegio das Artes na ci-
dade do Recife”. Meticuloso, o pai registrou o custo do investimento no futuro do
jovem: 150$000 (cento e cinquenta mil réis) por trimestre – ou seja, 600$000 (seis-
centos mil reis) por ano. A título de referência, lembre-se que o preço médio de um
escravo – bem de alto preço - era 200$000 (duzentos mil réis).
Em data aproximada, o segundo dos filhos, Estevão, com dez anos de idade,
embarcou no porto da fazenda Desígnio com destino a Parnaíba, de onde prosse-
guiu viagem na companhia do Dr. Antonio Borges Leal Castello Branco: “ate [a]
França, pa(ra) [Estevão] ir, em um collegio de Paris, ser educado. Recebeo o mesmo
Dr. Borges pa(ra) despesa de passagens, e no primeiro anno, com o menino, um
conto e quinhentos mil rs. – 1:500$000rs”.16
Antônio Borges Leal Castello Branco (segundo do nome)17 era bacharel pela
Faculdade de Direito de Recife; foi juiz de direito na capital, Oeiras, deputado pro-
vincial, deputado geral pelo Piauí e presidente da província de Pernambuco. Primo
de Pacífico veio a ser também seu concunhado, porquanto eram irmãs as respectivas
esposas – Feliciana e Torquata, esta a segunda mulher do coronel.
Miguel, primogênito de Borges Leal, estudava no Liceu Imperial São Luis
(antigo Colégio D´Harcourt), em Paris; supõe-se que Estevão tenha sido interno no
mesmo colégio. Em janeiro de 1876, aos 16 anos de idade, ele regressou da Europa,
“vindo doente do peito”; faleceu dez meses depois e foi enterrado “no quarto do
oratório”, no sobrado da fazenda Desígnio.18
A ida dos filhos (homens) para centros maiores, a fim de estudarem, resultava
em longos períodos de separação: assim é que somente em 1873 – três anos depois
de ter seguido para o Recife – Pacífico veio passar as férias escolares no Desígnio.
Nesse mesmo ano, seu pai, o coronel Pacífico, casou-se em segundas núpcias com
16 Idem, p. 22.
17 Antônio Borges Leal Castello Branco (1816-1871) era sobrinho de Miguel de Souza Borges
Leal Castello Branco, primeiro piauiense a formar-se em direito na Universidade de Coimbra,
sendo eleito deputado constituinte às Cortes de Lisboa (1821) e, posteriormente, deputado
constituinte à Assembleia Constituinte do Brasil (1823). FERREIRA, E.P., 2013, p.297-298.
18 Texto autobiográfico cit. Miguel Gonçalves Castello Branco também morreu jovem; voltara
da Europa e cursava a Faculdade de Direito do Recife, quando faleceu aos 21 anos, em 1876.
FERREIRA, E.P. Op. cit., p.299.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
142 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
Torquata Gonçalves Castello Branco. Em junho de 1875, ela deu à luz uma menina,
que nasceu morta.
No ano seguinte, Pacífico e Torquata viajaram para o Recife, acompanhados
da sogra e da cunhada mais moça, Filomena, que iria casar-se na capital pernambu-
cana com o Dr. Hermógenes Sócrates Tavares de Vasconcelos. Alugaram uma casa
na Rua da Aurora n. 1; passearam e compareceram às festas da boda - em seguida,
voltaram para o Desígnio. Durante a estada no Recife, o casal foi retratado em gran-
de estilo: ele, de casaca; ela, vestida elegantemente, penteado alto, brincos e colar de
ouro com pendentif.19
(...) neste estado [de fraqueza] seguio no vapor Paranaguá no dia 27 de janeiro
de 1879, e desembarcou no porto da Repartição no dia de quinta feira, a 28,
e no dia 30 do m(es)mo mez seguiu em uma rede p(ar)a Santa Cruz, aonde
chegou as 5 oras (sic) da tarde (...)o medico Dr. Aurélio Lavor (...) chegou em
Sta. Cruz no dia 1º. de fev(erei)ro (...)aconselhando q. D. Torquata fosse para
o Brejo; effetivamente saio para a cidade do Brejo a 5 de Feve(rei)ro e no mes-
Torquata tinha 32 anos – e Pacífico viu-se viúvo uma vez mais, com dois
filhos pequenos. Iria passar por outras perdas dolorosas: dos filhos do primeiro
casamento, restava-lhe Arcângela Pulquéria, que morreu em 1883; meses depois,
um colapso cardíaco vitimou subitamente o último deles – Pacífico, então juiz de
Direito em Limoeiro (PE).22
Político e administrador
21 Idem, p. 38.
22 Idem, p. 39
23 Castello Branco, D.P., Op.cit, p. 15.
24 Livros de atas da Câmara Municipal de Parnaíba– sessões de 13.2.1883; 18.4.1884; 20.01.1886.
Idem, p. 14.
25 Sessões de 18.11.1885 e 11.1.1886. Idem., p. 15.
Histórias de Doenças 145
Doença e morte
O sepultamento
29 Ana fora mãe-de-leite de Domingos Pacífico, filho do coronel Pacífico e seu biógrafo. Castello
Branco, D.P. Op. cit.
30 Data de 1777 a realização de ofícios divinos na Igreja de Nossa Senhora Mãe da Divina Graça,
em Parnaíba.
31 A partir desse episódio, Humberto de Campos escreveu e publicou o conto O caixão da Tereza,
texto depreciativo para o coronel Pacífico – o que deu origem ao opúsculo de Domingos
Pacífico – “Em defesa da memória do Coronel Pacífico...” – referenciado no presente trabalho.
CAMPOS, Humberto de. Memórias Inacabadas. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1935.
32 Joffre Marcondes de Rezende (1921-2015): médico gastroenterologista, doutor e livre-do-
cente, professor titular da UFG e professor emérito da UnB; notabilizou-se como pesquisador
sobre a doença de Chagas.
Histórias de Doenças 147
33 Comentários enviados por e-mail à Autora, pelo Dr. Joffre Marcondes de Rezende, a quem a
Autora homenageia com a publicação deste artigo.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
148 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
Considerações finais
34 Idem.
Histórias de Doenças 149
Referências
Manuscritos
Impressos
Embora escrevendo sobre as cidades, Michel Foucault, fez uma clara distin-
ção entre salubridade e saúde:
Salubridade não é a mesma coisa que saúde, e sim o estado das coisas, do
meio e seus elementos constitutivos, que permitem a melhor saúde possível.
Salubridade é a base material e social capaz de assegurar a melhor saúde pos-
sível dos indivíduos. E é correlativamente a ela que aparece a noção de higie-
ne pública, técnica de controle e de modificação dos elementos materiais do
meio que são suscetíveis de favorecer ou, ao contrário, prejudicar a saúde.
Salubridade e insalubridade são o estado das coisas e do meio enquanto afe-
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
152 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
1 Um artigo deste pesquisador foi aceito e aguarda publicação no Boletim do Museu Paraense
Emilio Goeldi – Ciências Humanas. Hamilton
2 Bertran (2000, p. 105) apresenta o Diretor da Colônia Blasiana como “o nunca assaz citado
cronista de Santa Luzia”. Para ele, “Joseph de Mello Álvares – o conhecido Zé de Mello, que
a gente antiga de Luziânia achava ser auxiliado pelo Romãozinho, o Diabo, o Capeta, pela
sua versatilidade como político, farmacêutico, médico, advogado, fazendeiro e escritor – foi
o grande autodidata do Planalto em fins do século XIX, seu primeiro pesquisador científico
(...)”. Também o qualifica como “o Heródoto do Planalto” (p. 72).
3 Segundo Fernanda Franco Rocha (2007), que, apoiada em Marin (2006) e Bretas (1991), es-
tudou especificamente a questão da educação das crianças negras e pobres em Goiás do ponto
de vista social, a outra instituição educacional voltada para esse público era a Companhia de
Aprendizes Militares. Bretas estudou a instrução pública goiana e a Colônia Blasiana era uma
instituição particular, por isso mereceu dele apenas algumas linhas.
Histórias de Doenças 153
Mas, as memórias também são transmitas pela tradição oral e é nessa fonte
que a poetiza goiana bebe para escrever seus poemas e suas memórias, que não são
só suas, mas da casa da velha da ponte. E os manuais de Chernoviz e Langgaarde
devem ter permanecido por mais tempo em uso no Brasil Central por muito mais
tempo do que na Capital Federal ou outros grandes centros5.
O fato de Cora fazer alusão aos manuais associando a Seu Foggia, um boti-
cário e médico prático, permite concluir que Mello Álvares também se apoiava em
Chernoviz para tecer suas considerações sobre a salubridade na Colônia Blasiana.
Outro indício a respeito do uso generalizado do manual de Chernoviz é sua
menção no romance Inocência, de Alfredo d’Escragnolle Taunay, publicado em
1872. O autor foi comandante das tropas brasileiras que pretendiam combater o
Paraguai por terra e foi obrigado a retirar-se fugindo dos paraguaios, o que resultou
num dos mais comoventes romances da literatura brasileira, a Retirada de Laguna.
Foi percorrendo os sertões de São Paulo e do que hoje é o Mato Grosso do Sul que
Taunay coletou material que compõe também o seu Inocência.
O autor de Inocência é crítico com relação ao manual de Chernoviz:
Mas reconhece sua importância no sertão onde não há médicos6, fato não
suficientemente enfatizado por Guimarães, que também abordou a presença de
Chernoviz no romance de Taunay. Sua personagem é o retrato típico do charlatão: o
caixeiro da botica, que com o manual sob o braço, sai pelos rincões povoados a dar
consultas. Mais tarde imigrou das Minas Gerais para Camapuã, no hoje estado do
Mato Grosso do Sul. Taunay deve ter se inspirado em todos os boticários que encon-
trou nessas suas andanças como general do exército brasileiro e
Como educador de crianças que se destinam a vida agrícola, ligo sempre a pa-
lavra ao exemplo [...] vivendo todas as condições higiênicas, faço-lhes ver que
o asseio não está de maneira alguma incompatibilizado com a pobreza e que
[se] o lavrador não pode fazer do seu tugúrio à maneira da [...] da Arcádia,
o asilo da inocência, o abrigo privilegiado da felicidade, o templo dos gostos
simples e dos costumes suaves e hospitaleiros, deve-se ao menos promover a
troca do espetáculo que [em] muitas partes do alto sertão se depara de ver-se
o ente humano abrigado em imunda choça, vivendo em promiscuidade com
seus animais, constantemente embriagado pelo mefitismo doméstico, ou por
outra [habitação] qualquer onde haja luz, ar e asseio(ÁLVARES, 1889, p. 9).
Bela postura essa do educador Mello Álvares: educar pelo exemplo, certa-
mente inovadora para a época. E esse excerto permite também perceber o estado
geral das habitações populares goianas: mal cheirosas, mal ventiladas, pouco ilu-
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
160 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
É necessário que haja muita limpeza nos estábulos, que estes sejam bem ven-
tilados, que as camas sejam renovadas com frequência, e que as estrumeiras se
façam um pouco mais distantes do estabulo. [...] Devem recolher-se em cada
curral poucas cabeças de gado, repartindo os grandes rebanhos por diferentes
10 Havia também “gado ovino, caprino, cavalino e suíno, e aves domésticas” (ALVARES, 1889,
p. 11). Todos eram para autoconsumo.
11 Naquela época em Goiás, o gado era criado solto nos campos e exigia pouco manejo. Eram
marcados a ferro para identificar o proprietário e apenas era-lhes fornecido eventualmente o
sal. Na época da venda era recolhido e encaminhado aos mercados. Estabulação é indicativo
de modernidade.
12 Chernoviz fazia suas recomendações para tratamento dos animais “segundo o Compêndio de
Veterinária do Sr. Macedo Pinto”
Histórias de Doenças 161
currais; e melhor será, se forem um pouco distantes uns dos outros. No que
respeita aos doentes, é ainda mais necessário ter só poucos animais em cada
estábulo. (CHERNOVIZ, 1890, p. 996)
Dos vários intelectuais e políticos que visitaram a Blasiana nos seus 15 anos
de existência, somente o frei Raymundo M. Madré registrou que o gado da Colônia
Blasiana era criado pelo “sistema de estabulação” (MONOGRAFIA, 1895, p 3) e não
há descrição deles nos relatório de 1889, nos relatos dos viajantes, nem na imprensa.
A criação em estábulos tornaria viável acompanhar partos, curar feridas e tratar
outras moléstias que acometiam esses animais.
Não foi possível apurar se o estábulo da Blasiana era construído de forma
científica, mas assim como Mello Álvares conhecia o manual de Chernoviz, que traz
recomendações sobre convivência com os animais, provavelmente Mello Álvares de-
veria possuir também algum manual de medicina veterinária, pois, segundo Sávio
Tolentino (1911, p. 4 -5) era dono da melhor biblioteca particular de Goiás e tam-
bém tinha acesso aos principais periódicos científicos da época, pois era sócio de
diversas instituições científicas. Pode ser que ensinasse aos seus alunos e aplicasse
em seus animais métodos científicos de cura.
13 Reparar que o termo hereditário em Chernoviz não corresponde à acepção que a palavra é
usada hoje, que está relacionada à genética.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
162 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
fontes não deram conta de resolver satisfatoriamente: houve uma epidemia de varí-
ola na Blasiana ou em Santa Luzia? Essa vacina veio por determinação do Governo
Federal ou foi uma solicitação diretor da escola, que tinha por hábito frequente soli-
citar verbas, equipamentos, livros e sementes do governo, seja na época imperial ou
republicana. A nota do jornal carioca sugere gravidade e abandono, comentava que
“Graças a Deus já fez alguma coisa” (ESTADO DO RIO, 1896, p. 2)..
Quanto à existência de casos de varíola em Goiás entre 1890 e 1895, a lite-
ratura consultada não permite constatar sua presença. Eliezer Cardoso (2006), que
estudou o medo em Goiás, não menciona a varíola em Santa Luzia nessa época.
Em 14 de marco de 1890, o Sr. C. G. S. Guimarães em artigo no jornal anun-
ciava que havia dois doentes de varíola em Porto dos Barreiros, atual povoado do
município de Araguari, próximo a Corumbaíba. Alertava sobre as formas de con-
tágio e se oferecia para vacinar graciosamente a população. Essa informação indi-
ca a proximidade da doença, pois Bomfim fazia divisa com Santa Luzia. Cumpria,
portanto, proteger-se. Mas, entre 1890 quando circulou a notícia e 1896, quando
chegaram as vacinas, havia um intervalo de seis anos. Sem dúvida, não há relação
direta entre a notícia e o fato, mas criou-se uma expectativa da chegada da epidemia
e de medo: o mal rondava, ou seja, a varíola apresenta-se como uma possibilidade.
Em 1896, no jornal Estado de Goiaz, uma nota comenta uma notícia publica-
da no jornal carioca O Paiz: ou- autor em tom de blague começa dizendo estar com
medo, pois o governador fez um pedido de 200 tubos de linfa vacínica para com-
bater a varíola que grassava em Goiás. O articulista questiona se realmente havia a
doença em Goiás. Foi feita uma checagem n’O Paiz e não encontramos tal notícia.
Imaginamos que estaria a se referir à matéria da Gazeta carioca, pode ser possível
que o articulista tenha se enganado, mas há um espaço de onze meses entre a notícia
da Gazeta e notícia do Estado de Goyaz. O fato de haver notícias sobre dois envios
de vacinas em curto período permite inferir que, embora pouco documentada, a
situação não devesse ser tranquila, inclusive porque havia tom um tanto dramático
na primeira notícia. Somente pesquisa nos arquivos do Hospital de Caridade de São
Sebastião, da Cidade de Santa Luzia, poderá dizer se houve uma epidemia de varíola
por lá no período mencionado. É muito provável que se houve essa epidemia e os
doentes deveria ser internados em locais específicos e isolados, todavia os médicos e
boticários deveriam ser os mesmos do hospital.
Histórias de Doenças 163
Considerações finais
14 A “Escola Tropicalista Baiana foi (...) um grupo de médicos que se organizou em torno
de um periódico fundado em 1866, a Gazeta Médica da Bahia (1866-1915), à margem da
Faculdade de Medicina existente na antiga capital do Brasil colônia” (BENCHIMOL, 2000,
p. 266). Os trabalhos desse grupo relacionavam certas doenças a vermes e micróbios. Os
tropicalistas permaneceram na fronteira entre o paradigma miasmático/ambientalista e a
teoria dos germes.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
164 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
Referências
por origem astrológica3. Durante o século XVIII, predominava a ideia de que o vírus
do contágio, um mal invisível, era o responsável pela propagação da doença. O vírus
acometia os nervos e as artérias, ocasionando lesões cutâneas, pústulas, dores na
uretra, etc (PITA; PEREIRA, 2006, p. 364).
O físico-mor, português, Duarte Madeira Arraes em seu Método de conhecer
e curar o morbo gálico, reeditado em 1715, lista alguns dos sinais da sífilis:
(…) pela qualidade gálica, e que nos servem de sinaes, que em várias partes do
corpo se mostrão, a saber, chagas virulentas, corrosivas, ampolas vermelhas,
comichão universal, tumores de verilhas (…) E posto que há outros muitos
que não se podem numerar, estes são os principaes, e mais ordinários affectos,
que se seguem a qualidade morbo gálica (1715, p. 172).
vida Militar esta sujeita a grandes, e frequentes incomodos, que são insepara-
veis deste estado; e algumas vezes costumão ser taes, que comumente fazem
grandes estragos, sem perdoar aos corpos mais robustos; e assim não é de
3 O historiador francês Claude Quétel afirma que, pelos cânones do pensamento astrológico, a
sífilis era consequência direta da conjunção de Saturno e Júpiter, na casa de Marte, sob o signo
de Escorpião, ao qual estariam submetidos os órgãos sexuais. A explicação astrológica da
origem da sífilis era incontestavelmente a que tinha maior número de adeptos. Ver: QUÉTEL,
Claude. Le mal de Naples: histoire de la syphilis. Paris: Seghers, 1986. p. 42.
Histórias de Doenças 169
4 A assistência hospitalar dos militares em Portugal, durante o século XVIII e início do século
XIX, assentou-se na parceria entre o Rei D. João IV (1640-1656) e os Irmãos Hospitaleiros de
São João de Deus. Mesmo após à existência dos Reais Hospitais Militares, Portugal também
tratava seus doentes militares nos espaços religiosos, nas casas de particulares, no Hospital
Real de Todos os Santos, e, preferencialmente, nos hospitais das Santas Casas de Misericórdias.
Ver: AGE, Mônica. Hospital Real Militar: saúde e enfermidade em Villa Boa de Goyaz (1746-
1827). Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-Graduação em História; Universidade
Federal de Goiás (UFG), Goiânia, Goiás, 2014.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
170 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
Se, por um lado, as observações de Manuel Jose Leitão mostram que a enfer-
midade dos soldados não só afetava a estrutura militar como também representava
prejuízos à coroa, por outro, é necessário observar que, no discurso de Leitão, su-
bentende-se que o tema assumia outros desdobramentos. Segundo o cirurgião mor,
as mulheres prostitutas eram o principal veículo transmissor da sífilis e a discussão
do problema da doença deveria, portanto, ser pensada em relação ao controle da
prostituição. A partir daí, tornou-se relevante a intervenção do saber médico e das
leis portuguesas nesse controle, uma vez que, em Portugal, segundo Germano de
Sousa (2013. p. 239) “ainda não haviam sido tomadas medidas tão rígidas como em
outros países da Europa em relação a essas mulheres”.
Em conformidade com essas ideias, Francisco de Melo Franco, em sua
Medicina Teológica (1794), recomendava aos confessores que instruíssem os peni-
tentes, aconselhando-os que:
de nenhum modo passem por certas ruas infames, nem vão as casas das me-
retrizes, e do jogo, ás tabernas e outros lugares onde fysicamente se respira
hum ar pestilente ou inficcionado com exalações, que se levantaõ dos córpos
minados de doenças, taes como o gallico, sempre existente nas mulheres las-
civas (1794, p.131-132).
Histórias de Doenças 173
(…) homens chegam do reino doentes para compor os regimentos das tropas
em Pernambuco, sendo que um número considerável apresentam doenças gá-
licas e os ditos regimentos cada vez mais exibem número inferior ao permiti-
do de soldados, por muitos soldados das tropas se apresentarem quase sempre
com mal venéreo e outras mazelas (APEB, Maço 35).
(…) consta que no mez de agosto, setembro e outubro do ano de 1806 neste
Hospital Militar foram 25 os numeros de soldados internados com doença
gálica.(…) sendo sete mortos pelo mal venéreo (…) Como não (inlegível)
enfermarias sufficientes neste dito hospital, pesso providencia para que a Casa
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174 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
Pia Misericórdia não devolva os militares de mal gallico para os nossos hospi-
tais militares.(…). 3 de setembro de 1806 (AHEx, Maço 43).
Entre as doenças venéreas, cita-se: gálico, sarna gálica, cancro venéreo, ble-
norragia, bouba, cavalo e boubão. Verifica-se 285 casos de doenças venéreas, per-
fazendo 50% das enfermidades entre os anos de 1750 e 1824. A bouba ou sífilis
era denominada de pustulas gálicas (SILVA, 1789. p.305), sendo caracterizada por
Raphael Bluteau (1712, p. 170) como um “Mal torpe & açoute da luxuria. Chamase
assim por começar de ordinario por tumor de virilha, bubo”6. Luis Gomes Ferreira
descreve a bouba como uma causa gálica (FURTADO, 2002. p. 741). A doença cava-
lo trata-se de chagas gálicas: “Referem-se as chagas do membro viril ou genital, a que
vulgarmente chamam cavalo”. A blenorragia ou gonorreia foi caracterizada como
um “mal venéreo em que nos homens há uma evacuação de matéria de cor declinando
para amarela, e algumas vezes obscura” (Van-Switen 1786, p. 171-173).
Eram várias as medidas profiláticas e terapêuticas no tratamento e no com-
bate às doenças venéreas. Nos séculos XVIII e XIX, em terras lusas os médicos con-
servaram práticas antigas e vivenciaram novos experimentos, os quais marcaram o
início de lentas alterações na forma de pensar e combater as doenças.
Remedio pedido pelo cirurgiao Bartolomeu Lço Svapa comprar sete garrafas de
agua de Inglaterra por que falta na botica do dito hospital pa tratar os doentes.
Comprar o dito remedio na casa do fasedor de aguas medi (?) joao Anto Cta.
Villa boas 25 de setbro do ano 1803. Se comprou a dita agua.
Remeter p escrivão da Junta da Real fazenda Anto Tavares.
Soldado Pede Domingos Almeida (FECG, Pacote 23).
Água de Inglaterra, outras águas medicinais que eram certificadas pelos agentes de
saúde e reconhecidas por órgãos oficiais, no caso a Junta da Real Fazenda.
A Água da Rainha da Hungria também se encontrava na terapêutica dos do-
entes sifílicos do Hospital Real Militar de Goiás. No receituário médico de 1812, as-
sinado pelo enfermeiro Antonio Francisco Pimentel, consta a compra desse remédio
de segredo:
Henriques de Paiva (1786. p. 269) recomendava “pão, couve, nabos”. Para Paiva, não
havia restrição do uso desses alimentos para os doentes gálicos. Entretanto, na con-
cepção desse médico, deveria ser evitado o uso das carnes por ocasionar inflamação.
Em contrapartida, recomendava o leite.
O médico Van-Switen (1786, p. 33) sugeria que a dieta alimentar para os do-
entes venéreos deveria ser composta de alimentos tênues, como caldos, maçãs, pão,
cevada, carne magra, aveia, arroz, ervas, laticínios e frutas.
Em terras luso-brasileiras, entre as aves, a galinha era a mais recomendada
para o restabelecimento das doenças. De acordo com o médico lusitano Francisco
da Fonseca Henriques (1731. p. 150) a galinha “he bom alimento para os doen-
tes, digere-se, e distribue-se, nutre bastante e tem muytas virtudes medicinaes”. Nas
Minas Gerais setecentistas, a galinha também era recomendada aos doentes subme-
tidos às sangrias ou após serem purgados, com a finalidade de lhes restaurar a saúde
(STARLING, 2010. p. 92).
Na segunda metade do século XVIII, ficou proibido, nos Hospitais Reais
Militares do reino português, por ordem médica, o uso da galinha na dieta dos en-
fermos febricitantes e venéros quando acometidos de febre, uma vez que, na subs-
tância das galinhas, encontrava-se o fomento da mesma febre, além de ser consi-
derado um alimento indigesto. Em 1775, atendendo a sugestão de alguns físicos e
cirurgiões, Marquês de Pombal ordenou que o uso da galinha fosse restabelecido na
dieta dos enfermos febricitantes nos Hospitais Reais Militares de Portugal e de seus
domínios, pois considerava uma preocupação quimérica e inconsistente daqueles
que proibiam o uso desse alimento. O ofício foi enviado para a Junta da Real Fazenda
da capitania de Goiás para que a norma fosse seguida no hospital militar. Por meio
de fontes documentais, pode-se afirmar que no hospital militar da capitania, essa
ordem advinda do reino não alterou a alimentação dos enfermos que apresentavam
essas enfermidades, pois a galinha continuou a fazer parte da dieta desses acamados.
(MB, Caixa 12).
Diante do exposto, pode-se afirmar que as estratégias profiláticas e terapêuti-
cas usadas no tratamento de militares sifílicos, no ambiente hospitalar ou fora dele,
foram preconizadas e legitimadas na sociedade luso-brasileira por todo o século
XVIII e além dele. Além disso, em terras lusas a medicina se mantinha em constante
diálogo em relação aos conhecimentos produzidos sobre a medicina e que circula-
vam na Europa das Luzes. Portanto, as diferentes concepções sobre a sífilis, durante
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
180 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
os séculos XVIII e XIX, serviu de base para a renovação contínua do olhar médico
sobre essa enfermidade.
Abreviaturas
Referências
Manuscritos
Impressos
Histórias de Doenças 181
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Histórias de Doenças 183
1 As informações e análises apresentadas neste capítulo têm como base a dissertação de mes-
trado “Saúde e doença: práticas de cura no centro da América do Sul” defendida em 2001 na
Universidade Federal de Mato Grosso, com bolsa CAPES, e a comunicação “As câmaras mu-
nicipais e a saúde e higiene nas vilas Real e Bela (1727-1808) apresentada no XVII Encontro
Regional de História da ANPUH/SP e publicada em 2004. Optamos por manter as argu-
mentações desenvolvidas à época da defesa e por incluir algumas referências bibliográficas
referentes às câmaras e a medicina setecentista.
2 Professora Associada Universidade Federal da Grande Dourados.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
186 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
margem direita do rio Guaporé. Embora não fosse a principal área de conflito entre
os interesses luso-hispânicos, a capitania de Mato Grosso era importante porque
garantia a defesa do interior da América portuguesa, principalmente a região das
Minas Gerais.
Capitania situada no centro do continente, constituída por três ecossistemas
(floresta ao norte, cerrado e pantanal ao sul), habitada por grande diversidade de
sociedades indígenas, teve a mineração como atividade produtiva decisiva. Ela foi
ainda marcada pelo ser fronteira, limite dos domínios ibéricos na América austral.
Em seu interior, entre as instituições responsáveis pela sua administração es-
tavam as câmaras municipais de Vila Real do Cuiabá e de Vila Bela da Santíssima
Trindade. A primeira teve sua câmara criada em 1727, quando o arraial foi elevado
à condição de vila, e a segunda em 1752. (JESUS, 2011, p. 32 e 33)
As câmaras eram constituídas pelos vereadores, procuradores e juízes ordiná-
rios que tinham direito ao voto nas sessões de vereança. Além deles, outros oficiais
eram indicados pela vereação, como os almotacéis (responsáveis pela regularidade
do abastecimento dos gêneros, fiscalização de pesos e medidas, vigilância dos preços
e da higiene pública), escrivães (remunerados e providos pela Coroa, podendo sua
nomeação ser vitalícia e hereditária), juízes de órfãos (cuidavam dos interesses das
viúvas e órfãos), alferes, porteiro (às vezes trabalhava como arquivista) e carcereiro –
oficiais subordinados à municipalidade sem direito a voto e cujo número variava de
cidade para cidade. Em alguns lugares, as câmaras possuíam também representantes
dos ofícios mecânicos e mercantis (ourives, carpinteiros, alfaiates etc.) (BOXER,
2001, p. 268).
Essas instituições ainda tinham o privilégio de se corresponderem direta
mente com o rei, por meio das petições, que demonstram a capacidade de comuni
cação dos poderes locais com o centro e a eficácia, a força simbólica da figura do
rei enquanto pai, sempre pronto a ouvir as aflições dos filhos. As câmaras enviaram
inúmeras petições ao monarca, o que, de certo modo, contraria a ideia de que rara-
mente as queixas e pedidos chegavam ao conhecimento do rei. Apesar da demora
na entrega da correspondência entre colônia e metrópole, muitas das petições obti-
nham respostas (BICALHO, 1999, p. 481).
Dentre as atribuições das câmaras estavam à limpeza das vias públicas, o con-
trole dos preços dos medicamentos, a contratação e pagamento dos salários de ofi-
ciais de cura. A partir dessas ações das municipalidades, discutiremos, como mesmo
diante das dificuldades, as autoridades locais agiram em relação à saúde e a doença
Histórias de Doenças 187
nas vilas da fronteira oeste entre os anos de 1727 e 1808. Para desenvolvimento do
texto privilegiamos dois aspectos: a preocupação com o ambiente urbano e a assis-
tência aos moradores manifestada na contratação e fiscalização de oficiais de cura.
Essas ações foram destacadas por Lycurgo Santos Filho (SANTOS FILHO,
1991), que as considerou como parte de uma preocupação pública com a saúde dos
colonos. Por outro lado, para ele, o cruzamento de saberes europeus, indígenas e
africanos foi um aspecto negativo na medicina praticada no período colonial.
Essa perspectiva foi defendida principalmente por médicos, que estudaram
a história da medicina e se preocuparam em buscar dados sobre o bom comporta-
mento dos oficiais de cura na sociedade e com o desenvolvimento dessa arte per-
cebida a partir de uma análise evolucionista e linear. 3 Esse tipo de análise reduz o
universo cultural das práticas de cura e das concepções de doenças existentes em
uma sociedade multifacetada.
Na década de 1970, em obra organizada por Roberto Machado (MACHADO,
1978, p.56), os autores analisaram a medicina no Brasil colonial, tendo como refe-
rência as obras de Michel Foucault. A análise se voltou para o papel dos médicos,
com o intuito de traçar linhas de continuidades e rupturas entre a medicina colonial
e aquela praticada no século XIX. Para eles, no século XVIII a medicina era mera co-
adjuvante do Estado, embora existisse uma preocupação pública com a saúde, mas
somente na perspectiva de combater o mal, sem fazer dela um objetivo fundamental
da especialidade médica, reflexão que somente ocorrera no oitocentos.
Para comprovarem a sua tese, os autores analisaram a atuação da Fisicatura-
Mor e da Junta do Protomedicato (instituições responsáveis pelo exercício da arte
médica durante o período colonial), das câmaras municipais e dos hospitais, pode-
res responsáveis pela saúde do bem comum que, na época, não teria sido objeto de
intervenção do saber médico (MACHADO, 1978, p. 25). 4
3 Embora não enfoquem a América portuguesa, George Rosen e Jaques Le Goff contrapõem-se
às análises evolucionistas e lineares. Eles optam pela noção de que os problemas de saúde e os
modos de enfrentá-los em cada sociedade são decorrentes de condições políticas, econômi-
cas, sociais e mentais. George Rosen. Uma história da saúde pública. São Paulo, 1994, p. 20.
Jacques Le Goff. (org.). As doenças têm história. Lisboa, 1985, p.8.
4 Adotando a tese defendida pelos autores citados, Jurandir Freire Costa concorda que no pe-
ríodo colonial a medicina esteve atrelada ao Estado, sendo as questões de higiene uma preo-
cupação que não pertencia à órbita médica. Além dessa tutela jurídica a que foi submetida, o
comportamento anti-higiênico da população também atrapalhou a saúde pública. Somente a
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188 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
Em fins do século XX, pelo menos três trabalhos abordaram as artes de curar
no período colonial. Márcia Moisés Ribeiro (RIBEIRO, 1997) retomou o estudo da
arte médica e adotou uma perspectiva diferente das apresentadas por Santos Filho e
Roberto Machado. Ao acatar a noção de circularidade cultural, proposta por Carlo
Ginzburg, ela defendeu a interação entre os saberes oficiais e populares, analisou a
diversidade de práticas e procurou compreendê-las fora do campo do desenvolvi-
mento científico. Segundo ela, no Brasil surgiu uma medicina peculiar, devido aos
seguintes fatores:
De acordo com a autora, apesar de não podermos falar ainda em uma me-
dicina estatal, existiu nesse período uma preocupação com a saúde dos povos. Isto
porque era necessário conservar ao máximo o corpo sadio, enquanto força para as-
segurar as terras conquistadas. (Ribeiro, 1997, p. 112).
Por sua vez, Vera Regina Beltrão Marques ao estudar as boticas e boticários,
defendeu que:
partir de 1808, com a vinda família real, é que a medicina conquistaria sua autonomia, cola-
borando inclusive para a reconversão das famílias aos preceitos da higiene. COSTA, 1990.
Histórias de Doenças 189
caindo nas malhas da medicina erudita como a única capaz de curar as doen-
ças, vulgarizando as demais práticas. (MARQUES, 1999, p. 28)
5 Lembramos a pesquisa inicial de Carlos Francisco Moura sobre médicos e cirurgiões na capi-
tania de Mato Grosso. MOURA, s/d.
Histórias de Doenças 191
municipais e estava voltado para o benefício e utilidade das vilas. Em caso de deso-
bediência, os infratores poderiam ser penalizados com prisão ou multas. 6
Na América portuguesa as posturas seguiam os padrões metropolitanos,
tendo seus capítulos adaptados de acordo com as especificidades locais. Em rela-
ção às Posturas de Vila Bela de 1753, percebemos em seu conteúdo o que Magnus
Roberto Pereira chamou de “agendas do viver urbano”, quando analisou a atuação
dos almotaceis, ou seja, questões voltadas para o mercado, o construtivo e o sanitá-
rio (PEREIRA, 2001).
No que diz respeito aos aspectos sanitários, nessas posturas notamos uma das
mais antigas correntes da medicina que associava as epidemias às impurezas do ar
conhecidas como miasmas. Estes seriam resultado das exalações de pessoas e ani-
mais doentes, das emanações dos pântanos, dos dejetos lançados no meio-ambiente
e de todos os elementos em estado de decomposição. Os defensores da teoria dos
miasmas acreditavam que ao impedir os maus odores estariam evitando as epide-
mias (MARTINS e MARTINS, s/d).
A forma de evitar os ares corrompidos era diversa, como, por exemplo, ten-
tar impedir águas estagnadas e dejetos nas vias públicas, itens abordados nos pará-
grafos das posturas municipais de Vila Bela de 1753, assim como proibir animais
nas ruas – principalmente porcos – e definir espaço de quarentena. Lembramos
que as Ordenações do Reino, que serviram de base para esse regulamento, estipu-
lavam que na:
(…) cidade ou vila… se não façam nela esterqueiras, nem lancem ao redor
do muro esterco, nem outro lixo, nem se entupam os canos da vila, nem a
servidão das águas…
(…) Outrossim mandarão pregoar em cada mês, que cada um limpe as tes-
tadas de suas vinhas e herdades… (Ordenações Filipinas do Reino, L.1 T.68
parágrafos 18, 19, 20).
Sendo tão prejudicial a criação dos porcos na vila tão prejudicial às ruas e ca-
sas pelo muito que ofendem fossando e danoso à saúde com a corrupção dos
ares, ocasionada do mau cheiro dos seus lameiros e por isso em toda a parte
Aos mesmos Almotacés incumbe a vigilância das aguadas que as se não vi-
ciem e como esta Vila não carece deste cuidado, por beber do largo e cauda-
loso Rio Guaporé e rios dessa qualidade não apanham vício; contudo como
há queixa de que os negros que vem e saem desta Vila costumam viciar com
timbó as aguadas das Lagoas do Campo e as dos Pantanais do Mato para ma-
Histórias de Doenças 193
tarem e turbarem o peixe delas… (Estatutos ou posturas de Vila Bela, cap. 5º,
parágrafo 3º-APMT).
O timbó era uma planta que, uma vez, colocada na água, deixava os peixes
atordoados, facilitando que fossem pescados.
O uso de plantas com esse fim, também como o tingui, pode ser encontrado
em São Paulo desde 1591, quando a câmara dessa vila proibiu o seu uso em pes-
carias em todo o rio Tamanduateí. A proibição foi estendida a todos os ribeiros e
rios existentes dentro da vila para evitar a destruição inútil de peixes e por motivos
sanitários, pois acreditava que o acúmulo de peixes em decomposição corrompia o
ar e causava epidemias (JORGE, 2007, p. 178 e 179).
Esse pode ser um motivo que levou os vereadores de Vila Bela a proibirem a
prática do timbó, que ainda poderia prejudicar a água que era consumida.
Além dessas informações sobre o consumo das águas dos rios e das lagoas
próximas à vila-capital, não localizamos documentos referentes à construção e con-
servação de fontes públicas de água em Vila Bela, mas sabemos que nos quintas das
casas existiram poços.
Já em Vila Real do Cuiabá, desde a primeira metade dos setecentos, existiram
fontes públicas, o que para Carlos Alberto Rosa revela a existência de serviço urbano
básico de acesso à água potável. Do córrego da Prainha, que cortava a vila, não se
tem informações de que se bebesse sua água, pois havia algum azougue (mercúrio)
das lavagens de ouro, além de lixo que tornava a sua água perigosa para o consumo
(ROSA, 2003, p. 29).
A partir de fins dos anos 1760, algumas das fontes de água potável passaram à
categoria de bicas, com encanamento em alvenaria e metal. Em 1790 foi construído
o chafariz na margem direita do córrego Prainha. Ele era abastecido por outra fonte
com canos sobre um aqueduto de madeira (ROSA, 2003. 28).
Os aquedutos eram conhecidos desde a Antiguidade romana e foram trazi-
dos para a América portuguesa pelos portugueses. Além disso, apenas em fins do
século XVIII o sistema de condução de água se tornou uma preocupação frequente
na Europa, onde, até então se consumia o liquido sem atentar muito para a sua qua-
lidade (MARTINEZ, 2007, p. 78).
Na cidade do Rio de Janeiro, o aqueduto que foi construído impressionava
a todos pela sua utilidade e construção. Ele proporcionava água de melhor qua-
lidade, caracterizada pela sua pureza e frescor que brotavam das terras altas, nas
imediações da cidade. Vale lembrar que a construção dessa técnica de captação
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194 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
Como sejam as estradas gerais uma das coisas em que melhor se vê o zelo e vi-
gilância e cuidado dos que governam a República, que estando sempre feitas e
consertadas fazem os forasteiros ideia e conceito de bom governo. Acordaram
que o Procurador desta câmara em cada um ano, teria o cuidado no fim das
águas … propor e requerer em câmara o conserto das estradas públicas e ge-
rais, da entrada ou saída da vila…( Estatuto ou posturas de Vila Bela, 1753,
cap. 5, parágrafo 1º- APMT)
Cuidar das águas, limpar os caminhos e vias públicas e agir diante das enfer-
midades faziam parte das atribuições das câmaras municipais. Em relação às pestes,
as posturas municipais de 1753, regulamentaram o estado de quarentena, antiga me-
dida a favor da saúde da coletividade. Caso fosse notificada alguma peste na vila do
Cuiabá, Pará ou rio Guaporé abaixo, as canoas e tropas seriam impedidas de entrar
em Vila Bela.
As canoas que chegassem do Grão Pará, não poderiam ultrapassar a Casa
Redonda, enquanto que as tropas vindas do Cuiabá não poderiam passar do rio Jauru,
A expulsão dos enfermos com doenças contagiosas das vilas e cidades foram
formas de prevenção adotadas no período. Desde a Idade Média, leprosos, assim
como estrangeiros e todos aqueles não integrados à sociedade, como os judeus, fo-
ram efetivamente acusados de espalharem a peste. O leproso, por sua aparência,
era um pecador, que desagradava a Deus, sendo seus pecados purgados através dos
poros. Todos acreditavam que eles eram devorados pelo ardor sexual, o que exigia
seu isolamento. (DUBY, 1998, p. 91).
Assim fizeram os vereadores em algumas circunstâncias. Em 1773, preocu-
pados com uma possível epidemia do Mal de São Lázaro (lepra) 7, solicitaram a
dois cirurgiões da vila que examinassem Dona Ana Ferreira. Eles atestaram que ela
estava “inteiramente infestada” pela doença e informaram que na vila havia outras
pessoas portadoras do mal. Diante desse quadro, por ordem do governador e capi-
tão general Luis de Albuquerque, Ana Ferreira foi levada para seu sítio distante da
vila-capital (Livro de registro de Termos de Fiança e Registro de Cartas Expedidas
(1751-1775). C7 – APMT).
7 Vale observar que desde a primeira metade do século XVIII existiam referências a lepra ou
ao Mal de São Lázaro no centro da América do Sul. Porém, eles chamavam lepra a muitas
erupções pustulentas, sarnas e escabioses.
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196 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
Sete anos mais tarde chegou um padre portador do mesmo mal e, para que a
doença não se tornasse epidêmica, ele foi proibido de permanecer em Vila Bela. Ele
deveria retornar para o lugar de origem (Antonio José de Figueiredo a (ilegível). Vila
do Cuiabá, 29/12/1780. Mss., lata 1780 A –APMT).
O Mal de São Lázaro ou lepra também foi motivo preocupação em Vila Bela
no ano de 1761 e nesse caso notamos à adoção de outras medidas, porque os possí-
veis vitimados estavam presos na cadeia da vila. Eles enviaram uma representação
aos vereadores queixando-se da superlotação do local e do Mal de São Lázaro. Os
vereadores recorreram ao governador da capitania para saber como proceder diante
dessa situação. Em resposta, entre outras medidas, ele recomendou que fosse feita a
purificação do ambiente por meio de fogueiras com lenhas secas, limpeza geral, per-
fume com enxofre em pó e borrifos nas paredes com vinagre forte (Livro de registro
de Termos de Fiança e Registro de Cartas Expedidas (1751-1775). C7 – APMT).
Lavar, caiar as paredes e promover a circulação do ar foram expressões e prá-
ticas muito utilizadas no século XVIII, pois era necessário conservar os corpos e
afastar o mau cheiro que poderia contaminar o ar. A cadeia e o hospital foram alguns
dos espaços para os quais essa preocupação foi dirigida, já que o amontoamento dos
corpos era prejudicial à saúde (CORBAIN, 1987).
Essas práticas foram comuns na América portuguesa, assim como inge-
rir vinagre com outros frutos amargos, disparar tiros de canhão para purificar os
ares, queimar roupas e móveis dos vitimados pelas epidemias. Com esses métodos
acreditava-se que poderia evitar a contaminação e preservar os corpos da podridão
(ANZAI, 2004, p. 146).
O cuidado com os corpos atingia também as práticas alimentares. Em 1771
o governador da capitania de Mato Grosso ordenou que a câmara de Vila Bela fis-
calizasse com maior rigor as comerciantes de gêneros alimentícios. Caberia ao al-
motacel fiscalizar a venda de alimentos e as atividades das padeiras, quitandeiras
e vendeiras. A fiscalização das casas das padeiras deveria ser feita de dois em dois
meses a fim de verificar a qualidade das farinhas. Caso elas estivessem estragadas
deveriam ser lançadas no rio, “na forma que o requer a saúde pública”.
Caso a padeira transgredisse a lei duas vezes seria condenada em três oita-
vas de ouro. Desse modo, os oficiais camarários acreditavam ser possível “(…) evi-
tar as desordenadas desigualdades que o arbítrio e interesse das padeiras praticava
nesta matéria, em prejuízo público e mais principalmente dos doentes (…)” (Livro
Histórias de Doenças 197
8 Sobre a Fisicatura –Mor e a Junta do Protomedicato ver SANTOS FILHO, 1999; RIBEIRO,
1997; PIMENTA,1997.
9 Infelizmente, devido à destruição em um incêndio da maior parte da documentação das câ-
maras, não temos as atas, os livros de contratos e os de mapas de rendas e despesas que pode-
Histórias de Doenças 199
correspondências ao reino para tratar de assuntos relativos aos curativos, como fez a
câmara de Vila Real do Cuiabá na primeira metade do século XVIII.
Ela pediu permissão ao rei para contratar um cirurgião devido à “grande
consternação e desamparo que vivia o povo”. Para tanto, propôs contratar Pedro
Rodrigues Duro que tinha “faculdades de cirurgia e sangrias” e que poderia subs-
tituir o falecido cirurgião Antonio Pinto da Fonseca. O envio dessa solicitação
pode ser compreendida pelo fato de que a vila tinha sido recém-criada e a sua câ-
mara se encontrava no início de sua gestão, com poucas rendas. (Microficha 11,
AHU- NDIHR).
Quanto à escolha do oficial de cura por parte da câmara, no caso dos ci-
rurgiões, com o tempo ela passou a ocorrer do seguinte modo: a nobreza e povo
indicavam aos vereadores três nomes de pessoas para exercer o ofício. Em seguida,
eles votavam em um nome. O mais votado era eleito e receberia um soldo pago pela
câmara (JESUS, 2004, p. 7).
Mesmo sem dados precisos sobre a remuneração dos oficiais de cura, ela não
era padronizada nas capitanias da América portuguesa, pois estava relacionada ao
imposto municipal arrecadado em cada vila. Cada câmara possuía seus contratos
que eram colocados em licitação e concedidos àquele que oferecesse menor preço
(JESUS, 2001, p. 110). Na primeira metade do século XVIII, os cirurgiões, por exem-
plo, foram contratados pela câmara da vila do Cuiabá para atender a quem solicitas-
se o curativo, enfermos pobres e escravos gratuitamente, assistindo com remédios e
sangrias, na vila e em seu termo (JESUS, 2001, p. 110).
Essas atribuições estavam entre os deveres dos cirurgiões da América por-
tuguesa e faziam parte dos deveres dos médicos em Lisboa em 1789. Estes deviam
assistir por mais de um dia os pobres com prontidão e caridade, sem qualquer
honorário, comprometendo- se a atendê-los sem qualquer hesitação (CRESPO,
1990, p. 50).
Observamos que os oficiais de cura podiam servir no partido público ou no
partido militar e/ou atendiam a particulares. Na primeira situação eles eram con-
tratados pelas câmaras e, na maioria das vezes, exerciam a arte de curar nas vilas e
imediações. Na segunda, serviam nas tropas militares e atuavam nas vilas, nos fortes
riam nos ajudar na elaboração de um estudo mais aprofundado sobre a relação câmara e artes
médicas na fronteira oeste. De qualquer modo, a partir dos dados que localizamos apresen-
tamos a seguir algumas informações na tentativa de recompor a arte médica na capitania de
Mato Grosso.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
200 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
tes das artes de curar foram convocados e seguiram para as áreas em disputa com as
tropas, fossem eles cirurgiões militares ou civis (JESUS, 2001, p. 116).
Apesar de não sabermos quantos oficiais de cura passaram pela aprovação da
Fisicatura-Mor ou Junta do Protomedicato ou possuíam a carta de licença atestada
pelas câmaras, entre os anos de 1726 e 1822 identificamos sessenta e dois oficiais de
cura que atuaram em Mato Grosso no período colonial, sendo três médicos, quaren-
ta cirurgiões, seis boticários, seis barbeiros/sangradores e sete enfermeiros. Talvez o
número de oficiais que serviu na região tenha sido maior, sobretudo, os contratados
pelas câmaras municipais.
Nesse universo, não podemos esquecer que os moradores buscavam ajuda
de curandeiros, feiticeiros, benzedores e toda forma de cura. As recorrências a esses
curadores e aos diferentes métodos faziam parte das práticas dos moradores no pe-
ríodo colonial e, concomitante a elas, como esperamos ter demonstrado, as câmaras
procuraram agir para garantir a conservação dos corpos e do ambiente. Isto era
necessário, sobretudo em uma região litigiosa e com reduzido número de pessoas,
como a da capitania de Mato Grosso.
Em fins do setecentos, medidas de cunho ilustrado foram propostas e ado-
tadas pelos governadores. Surgiram ações voltadas para investigações da fauna e da
flora, vacinação, enterramentos, instrução, regulamento de hospitais e criação de
aulas de cirurgias, como em 1799, quando foi proposto o estabelecimento de uma
aula de cirurgia e obstetrícia em Vila Bela.
Ao abrir o século XIX, o desejo de criação desse tipo de ensino ainda pairava
entre as autoridades locais de Vila Bela, que apresentaram uma proposta de cria-
ção de aula de cirurgia em 1808, sem obter sucesso, pois pelo o que constatamos a
aula não foi implantada. No entanto, na vila vizinha, Vila Real do Cuiabá, a aula de
cirurgia saiu do papel e entrou em funcionamento no ano de 1816. Novos tempos
eram vividos na fronteira oeste, que em 1817 também passou a ter uma Santa Casa
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Sertão, saúde e identidade em Goiás
Noé Freire Sandes1
É mais fúnebre do que um cemitério. Na cidade dos mortos as lousas estão cer-
cadas por uma vegetação que viça e floresce, mas aqui a vida abandona a terra,
e toda essa região que se estende por centenas de léguas não é mais que um vas-
to jazigo de uma natureza extinta e o sepulcro de sua própria criação (1875).
visão sobe a região. A revista informação Goyana circulou entre os anos de 1917 e
35 e foi publicada e distribuída a partir do Rio de Janeiro, cuja sede se encontrava na
avenida Rio Branco 117, sala 13. Conta a informação que teria sido rodada nas ofici-
nas gráficas do Jornal do Brasil. Nos seus 22 anos de existência, a revista manteve sua
periodicidade mensal com a publicação de 213 números com inúmeras informações
sobre a vida sertaneja e as riquezas de Goiás. Em média, excluindo as propagandas,
a revista era composta por 12 páginas. Os anúncios se apresentavam sempre nas pri-
meiras páginas. No seu frontispício consta, Revista Mensal ilustrada e informativa
das possibilidades do Brasil Central. A referência ao Brasil Central definia o sentido
da região, pois, situar-se no centro do Brasil representava algo fundamental para os
intelectuais goianos, especialmente o major Henrique Silva atento aos debates sobre
geopolítica. Ainda no frontispício da revista, em seu primeiro número em 1917,
consta os nomes de Henrique Silva e Americano do Brasil como diretores. Não há
informação sobre a tiragem, mas há clara indicação de que a revista se encontra nas
principais livrarias da capital e nos estados. Conta também na edição de janeiro de
1917, na página 69, o agradecimento pelo acolhimento da revista pelos órgãos de
imprensa no Brasil e no exterior. Segundo Maria Araújo Nepomuceno a tiragem al-
cançava o número de 500 exemplares. Na edição de 15 de dezembro de 1917, consta
a seguinte declaração:
O sertão inspecionado
2 A publicação de Neiva e Penna foi reproduzida em uma edição fac-similar, lançada pelo
Senado Federal em 1999, acrescida das biografias dos referidos cientistas.
Histórias de Doenças 211
3 Em 1909, Carlos Chagas apresentou ao mundo científico a descoberta de “nova entidade mór-
bida”, causada por um protozoário denominado Trypanosoma cruzi, transmitido por inseto
hematófago, popularmente conhecido como barbeiro. De acordo com Simone Petraglia Kropf
(2009, p.205), a “tripla descoberta de Chagas (vetor, patógeno e infecção humana) é come-
morada como ‘grande feito’ da ciência brasileira”. A essa doença, Carlos Chagas associa várias
manifestações mórbidas, como a cardiopatia, o cretinismo e o hipertireoidismo. Certamente,
a primeira caracterização clínica da doença de Chagas teve enorme impacto no relatório de
Neiva e Penna. Os referidos médicos se deixaram guiar pelos distúrbios endócrinos e neuro-
lógicos como sinais clínicos da doença de Chagas, o bócio e o cretinismo (Kropf, 2009)
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
212 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
Em Goiás, a elite dirigente nem sempre contava com uma situação econô-
mica tranquila. Conforme registra Bernardo Élis (PAULA, 2014), a lida de sua mãe
na máquina de costura contribuía de modo efetivo para o sustento da casa. O teste-
munho do romancista goiano é certamente um indício da ordem social presente em
Goiás no início do século XX.
A direção apontada pelo romancista revela um tipo de sociabilidade marca-
da pela mágoa e pela esperança. Assim, era aceitável que a elite goiana compusesse
sua narrativa histórica entremeada pelo lamento da crise do ouro. Esse argumento
era parte de um repertório que, ao final, visava propagar as riquezas da terra. Nas
pequenas pátrias, o discurso decadentista se transformava em demanda política a
exigir o cumprimento do pacto federativo. Outra coisa era admitir que os médicos
sanitaristas, distantes do mundo goiano, compusessem um hino assemelhando o
sertão goiano ao inferno.
A desinformação sobre a região apareceu como problema de vulto que me-
recia resposta à altura. Mas a interlocução desejada deveria ocorrer fora da esfera
regional, pois a voz dos goianos merecia ser ouvida na própria capital federal. A
polêmica travada no interior da revista A Informação Goiana era a resposta certa
ao malévolo alvitre que os sanitaristas lançaram sobre Goiás. O próprio título da
revista já antecipa sua função e seus objetivos, conforme se depreende da leitura da
apresentação da revista, em seu primeiro número, escrita, certamente, pela pena de
seu diretor Henrique Silva (2001ª, p. 1):
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Cruls em 1892, apressou, em 1955, o processo de desapropriação das terras goianas e especu-
lou com a venda de terrenos, antes mesmo que Juscelino Kubitschek se comprometesse com a
construção de Brasília (Magalhães, 2004).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
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A lembrança dos esquecidos: o acervo
fotográfico dos internos do Asilo São Vicente
de Paulo na Cidade de Goiás
Rildo Bento de Souza1
Introdução
E m 2009, durante minha pesquisa para o mestrado, tive acesso a uma rica docu-
mentação até então inédita: o acervo documental do Asilo São Vicente de Paulo,
instituição construída para a brigar os pobres da Cidade de Goiás. Ao todo, durante
quase um ano de trabalho, conseguimos digitalizar mais de dez mil documentos entre
receituário, livro de visitas, livro de registro de entrada, livro de atas, relatórios admi-
nistrativos, comprovante de compras e pagamentos, testamentos, escrituras, procura-
ções, bilhetes, dentre outros, perfazendo o período de 1885 a 1990.2 Essa documen-
tação, possibilitou que vislumbrássemos novas abordagens e enfoques sobre a então
capital de Goiás na Primeira República, período que analisamos mais profundamente.
Dentre toda a documentação arrolada, o álbum fotográfico da instituição foi
pouco discutido em nossos trabalhos. Dentre as dezenas de fotografias, analisare-
mos aquelas que focam os internos da instituição. Num primeiro momento faremos
algumas considerações sobre o acervo e discutiremos questões metodológicas; de-
pois, perpassaremos pela história do Asilo São Vicente de Paulo; e, por fim, analisa-
remos as fotografias dos internos partindo da seguinte questão: quais discursos são
possíveis presumir a partir da leitura do contexto delas?
As construções do asilo
6 Até 1888, nos três primeiros anos de implantação da Sociedade, havia na Cidade de Goiás, a
Conferência da Imaculada Conceição e a Conferência de São José, ambas com sede na Igreja
de São Francisco; a Conferência de Sant’Ana e a Conferência de São Luis Gonzaga, cujas reu-
niões se davam no interior da Catedral; a Conferência de Nossa Senhora do Rosário, com
sede na igreja de mesmo nome; e a Conferência de São Prudêncio, sede do Conselho Geral e
Particular, na Igreja do Carmo. (Asilo São Vicente de Paulo, doravante denominado pela sigla
ASVP: Documentos Avulsos. Histórico da Comunidade do Asilo São Vicente de Paulo – Cidade
de Goiás. Cidade de Goiás, 1975, p. 01).
7 Na sequência hierárquica há os Conselhos Metropolitanos, de âmbito regional. Em nível na-
cional, existe o Conselho Nacional do Brasil, com sede no Rio de Janeiro, RJ. Coordenando o
trabalho em todo mundo está o Conselho Geral Internacional, em Paris, na França.
8 ASVP: Documentos Avulsos. Relatório do Conselho Particular da Sociedade São Vicente de
Paulo enviado ao Conselho Central. Cidade de Goiás, 1888.
9 Mais sobre o assunto, ver os trabalhos de Genesco Ferreira Bretas (1997) e Nancy Helena
Ribeiro de Araújo e Silva (1981).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
226 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
cava ter seus intercessores, com o objetivo de redimir seus pecados e ter sua salvação
garantida” (MOLLAT, 1989, p. 149).10
Com isso os Vicentinos implantaram na Cidade de Goiás uma ampla e bem
organizada rede de assistência aos pobres. Houve época em que um só membro
de determinada Conferência assistia a sete pobres. Nos livros de contabilidade das
Conferências, percebe-se a regularidade com que o dinheiro era destinado a esses
indivíduos.11 Este trabalho foi amplamente reconhecido pela sociedade vilaboense,
que há muito esperava uma solução para o problema dos pobres e loucos mansos
que viviam espalhados pelas ruas da cidade colocando a ordem pública em constan-
te ameaça.12 Para ser atendido pela Sociedade São Vicente de Paulo, o pobre só ne-
cessitava ser católico, e os Vicentinos, por sua vez, acreditavam trilhar, deste modo,
os caminhos da salvação eterna.
Com o tempo, percebe-se pela documentação uma grande dificuldade em con-
seguir recursos, uma vez que o número de vicentinos decaía e o de pobres aumentava.
O aluguel de casas onerava em demasia a receita da Sociedade, e ainda em 1886, um
ano após o início dos seus trabalhos, cogitou-se a possibilidade de “adquirir um prédio
com as necessárias acomodações afim de melhor tratá-los em conjunto”.13
Esta idéia (construção do asilo) nasceu em 1886, mas não foi aceita pela maio-
ria dos sócios e permaneceu adormecida por dois anos sendo então renovada
em 1888 e aprovada por grande maioria, mas não teve a devida execução.
Em 1889 a Conferência de N. S. do Rosário da Capital a adotou alugando
10 A questão de interceder junto a Deus por meio da oração foi identificada no suplemento
do Correio Oficial de nº 58 de 10 de agosto de 1881, em que lê-se: “Um apelo aos corações
benfazejos e cristãos. A infeliz Theodora, moradora no beco da Villa Rica, não podendo mais
esmolar pelas ruas, como até há pouco o fazia, em consequência de haver-se agravado bastan-
te o enorme aleijão que tem, suplica às almas caritativas que não se esqueçam dela com o pão
diário e roupas servidas, promotendo a todos dirigir incessantemente rogos a Deus em favor
de seus benfeitores”. (CORREIO OFICIAL, apud RABELO, 1997, p. 67).
11 ASVP: Documentos Avulsos. 1º Livro de recibos das quantias pagas pelo thezoureiro da
Conferencia da Immaculada Conceição. Cidade de Goiás, 1888-1889.
12 Trabalhos como o de Cristina de Cássia Pereira Moraes (1995) e Danilo Rabelo (1997), que
discutem o modo como o poder público tratou esses indivíduos desde o segundo quartel do
século XIX até o fim do Império, demonstram que o problema ficou mal resolvido.
13 ASVP: Documentos Avulsos. Histórico da Comunidade do Asilo São Vicente de Paulo – Cidade
de Goiás. Cidade de Goiás, s/d, p. 02.
Histórias de Doenças 227
para esse fim dois prédios contíguos na rua Passo da Pátria, nos quais reuniu
diversos pobres por ela socorridos.14
14 ASVP: Documentos Avulsos. Histórico da Comunidade do Asilo São Vicente de Paulo – Cidade
de Goiás. Cidade de Goiás, s/d, p. 02.
15 José Netto de Campos Carneiro (Catalão-GO, 27 de Fevereiro de 1857 – Cidade de Goiás, 25
de Novembro de 1921). Médico formado na Faculdade de Medicina da Bahia. Foi Deputado
Estadual (1892-1894); Secretário de Estado de Instrução e Obras Públicas de Maio a Julho
de 1895; Intendente Municipal da Capital por dois mandatos (1899 e 1909); e Secretário de
Estado do Interior e Justiça (1913-1914). Foi Diretor do Hospital de Caridade São Pedro de
Alcântara (CAMPOS; DUARTE, 1998, p. 178). Além do mais foi um Vicentino muito queri-
do pela população vilaboense. Não constituiu família, nem deixou filhos. Em seu testamento
doou sua casa e sua fortuna para a instituição de um orfanato, denominado de Orfanato São
José. “Gostava imensamente de flores, trazendo sempre uma á lapela”. Ao falecer “(…) foi seu
caixão conduzido, da porta do cemitério ao tumulo, por moças de sua terra” (MONTEIRO,
1983, p. 187).
16 ASVP: Documentos Avulsos. “Regulamento do Asylo da Sociedade de S. Vicente de Paulo de
Goyaz. Confeccionado pelos Confrades: Desembargador Emilio Francisco Povoa e Dr. Maurílio
M. Curado Fleury”. Cidade de Goiás, 1909, p. 02.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
228 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
17 Digo “inicialmente”, por que mesmo com a construção do asilo, o número de pobres que
necessitavam de amparo cresceu. Casas continuaram a ser alugadas pelas Conferências
Vicentinas, por exemplo. Mais sobre esse assunto ver o meu estudo: SOUZA, 2014.
18 ASVP: Documentos Avulsos. “Regulamento do Asylo da Sociedade de S. Vicente de Paulo de
Goyaz. Confeccionado pelos Confrades: Desembargador Emilio Francisco Povoa e Dr. Maurílio
M. Curado Fleury”. Cidade de Goiás, 1909, p. 03.
Histórias de Doenças 229
embora pudessem se reeleger, tal fato nunca ocorreu.19 Há que se ressaltar que os
membros não recebiam salários.
Às Irmãs Dominicanas, vindas diretamente da França para trabalharem na
instituição, cabia a administração interna, junto com os asilados. “O tratamento dos
Azylados ficará exclusivamente entregue ás Irmãs Dominicanas para isso contrac-
tadas pela Sociedade”.20 Pela documentação arrolada, até a década de 1960 as Irmãs
recebiam salários pelo trabalho realizado na instituição.
Em 2015, o nome da instituição foi alterado, de asilo para “lar”. Atualmente,
conta com sessenta e cinco internos, sob os cuidados das Irmãs Dominicanas, que
administram a instituição sozinhas, sem a divisão com os vicentinos. Assim como
no início, a maioria dos asilados constituem em idosos com problemas mentais.
Os internos
19 ASVP: Documentos Avulsos. Nomes dos confrades da Sociedade de S. Vicente de Paulo que tem
sido eleitos para administrar o Asilo. Cidade de Goiás, 1966.
20 ASVP: Documentos Avulsos. “Regulamento do Asylo da Sociedade de S. Vicente de Paulo de
Goyaz. Confeccionado pelos Confrades: Desembargador Emilio Francisco Povoa e Dr. Maurílio
M. Curado Fleury”. Cidade de Goiás, 1909, p. 03.
21 O Livro de Registro de Entrada é um documento com quinze páginas, de um caderno tipo
ata. Ele contém onze colunas com os respectivos títulos: “Número”, em ordem crescente;
“Data de Entrada”; “Nome”; “Idade”; “Sexo”; “Pátria”, que é o local de origem; “Enfermidade”;
“Retirada”, data; “Óbito”, data; “Causa Mortis” e “Observação”.
22 ASVP: Documentos Avulsos. Livro de Registro de Entrada do Asilo São Vicente de Paulo (1909-
1946). Cidade de Goiás.
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tava em torno de quarenta a sessenta internos; número que se manteve estável até
chegar aos sessenta e cinco atuais.
As duas primeiras fotografias, a seguir, mostram os internos divididos por
sexo, com as irmãs dominicanas. Na primeira imagem, com as mulheres, vemos
também muitas crianças. Em 1922 foi fundado o Orfanato São José�, na residência
do médio Dr. José Neto Campos Carneiro, que já falamos anteriormente, que, por
testamento, doou suas posses e sua casa para a construção do mesmo. Com isso,
diminuiu muito as crianças no asilo, uma vez que esse era um motivo de grande
preocupação dos vicentinos. Em 1922, por exemplo, dos sessenta e cinco internos,
vinte e quatro eram crianças, e nessa época não havia alojamentos adequados para
comportá-las.23
Na segunda imagem os homens da instituição junto com uma irmã domini-
cana, e o que parece ser uma mulher, no lado direito usando um chapéu. Também se
percebe a presença de crianças.
Fotografia nº 1: Internas do Asilo São Vicente de Paulo no quintal. Fonte: ASVP: Documentos Avulsos.
Álbum fotográfico do Asilo São Vicente de Paulo. Cidade de Goiás, s/d.
23 ASVP: Documentos Avulsos. Relatório da Junta Administrativa do Asilo São Vicente de Paulo
em 23 de julho de 1922. Cidade de Goiás, 1922.
Histórias de Doenças 231
Fotografia nº 2: Internos do Asilo São Vicente de Paulo no quintal. Fonte: ASVP: Documentos Avulsos.
Álbum fotográfico do Asilo São Vicente de Paulo. Cidade de Goiás, s/d.
Srs! Não é das cousas mais agradaveis viver entre as pobresas e desamparos,
entre os ascos e as miserias da gente mais inculta, da gente mais pobre, da gen-
te menos gente, de quantas nasceram ou abortaram neste mundo; é preciso
ser forte para percorrer este Asylo e vêr com attenção todas as miserias que
aqui se abrigam.24
24 ASVP: Documentos Avulsos. Relatório da Junta Administrativa do Asilo São Vicente de Paulo
em 23 de julho de 1922. Cidade de Goiás, 1922
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O projeto de construção do asilo, por sua vez, coincide com o fim da escra-
vidão. Os negros recém libertos pelo 13 de maio de 1888, ou já libertos, como no
caso da Cidade de Goiás,25 continuaram ou subservientes aos antigos senhores, ou se
marginalizaram ainda mais na sociedade. O asilo era o local destinado àqueles que
não tinham condições de trabalhar, seja pela idade, ou por problemas de saúde. Os
indesejados, que se amontoavam nas ruas, becos e vielas na cidade do Anhanguera,
encontravam guarida na instituição que se revestia com o discurso caritativo cristão.
No asilo, tinham acesso a comida, roupa, local para dormir, tomar banho, e atendi-
mento médico, além da participação em atividades religiosas.
Nessa perspectiva, o asilo lembra os hospitais medievais, que estão emba-
sados em dois valores cardeais, a caridade (caritas) e a enfermidade (infirmitas).
A caritas deriva da fraternidade humana, que, por sua vez, decorre do elo entre o
amor paternal de Deus e os homens, uma vez que a Igreja Católica ensinava que
“para amar Deus, é preciso amar nosso irmãos”. A infirmitas, por sua vez, está li-
gada à fraqueza do corpo e a sua dependência, sendo, por isso, “mais socialmente
desvalorizada”, tornando-se paulatinamente a condição de todos os homens frágeis,
pois assinalava o pecado original. A caritas e a infirmitas serão as alavancas para o
“nascimento do hospital medieval, lugar público e gratuito de caridade” (LE GOFF;
TRUONG, 2006, p. 118).
Outrossim Michel Foucault complementa que até o século XVIII, o “perso-
nagem ideal” do hospital não é o doente que precisa se curar e sim o pobre que está
morrendo. “É alguém que deve ser assistido material e espiritualmente, alguém a
quem se deve dar os últimos cuidados e o último sacramento. Esta é a função essen-
cial do hospital” (FOUCAULT, 1993, p. 101).
Assim era o asilo de Goiás, construído pelas famílias mais abastadas social-
mente para realocar em um lugar longe o suficiente do centro, aqueles que causa-
vam repulsa e poderiam, também, ser foco irradiador de doenças. De acordo com
MORAES (1995), durante o Império, com as novas medidas de higiene adotadas
houve uma mudança significativa no comportamento dos habitantes da Cidade de
Goiás. A construção do cemitério Santana na década de 1850, e a construção de
um primeiro andar sobre as casas visando fazer o ar circular são exemplos desse
processo. O fato da antiga capital goiana estar encravada no fundo de um vale, cer-
25 A Lei Áurea não encontrou nenhum negro na condição de escravo na Cidade de Goiás,
devido a intensa campanha abolicionista promovido, principalmente pela família Bulhões
(MORAES, 1972, p. 107)
Histórias de Doenças 233
cada por uma serra, e entrecortada por um rio, tornava-a um local muito insalubre.
Considero que retirar os pobres das ruas, mesmo com o viés da caridade, soa como
uma estratégia de controle dos espaços.
No decorrer dos anos, entretanto, isso foi mudando e pessoas de posses que
não tinham quem lhes valessem, principalmente no fim da vida, doavam os bens a
instituição com o intuito de serem aceitas por ela. Durante a pesquisa me deparei
com seis casos dessa natureza. Com o tempo, o discurso da caridade venceu e ga-
nhou a simpatia popular. Os pobres eram visitados pela comunidade nos domingos
e deixavam suas impressões no livro de visitas, sempre trazendo elogios às Irmãs
Dominicanas, pelos cuidados prestados aos pobres.26 Não houve uma só semana
sem visitantes, a não ser no período da gripe espanhola em 1918-1919, que grassou
o território goiano e matou quase 5% da população vilaboense.27
Voltando as duas fotografias acima, outro dado interessante é em relação as
roupas, que no período que supostamente essas fotografias foram tiradas (1909-
1946), as mesmas eram feitas por costureiras contratadas pela instituição,28 a partir
de tecidos comprados pelos vicentinos. O traje consistia em vestidos para as mu-
lheres e meninas, calças e camisas para os homens, e bermudas e camisas para os
meninos. Em todas as fotografias, como nas demais que compõe o álbum, há uma
predominância da cor clara, especialmente o branco, como uniforme para os inter-
nos. Chama a atenção também o fato dos internos estarem descalços.
Na próxima fotografia vemos um conjunto de internas do asilo; aparecem
sete no primeiro plano e uma atrás, no lado esquerdo. Assim como nas duas imagens
acima, elas são negras, estão descalças e usam vestidos brancos. Todas elas, excluin-
do a criança e a mulher em segundo plano, parecem ter algum tipo de problema,
seja por idade avançada, ou por transtornos psicológicos, uma vez que raros eram
os pacientes que gozavam de boa saúde. A primeira no lado direito, que está com as
mãos juntas, é portadora do bócio.29
26 ASVP: Documentos Avulsos. Livro de Visitas do Asilo São Vicente de Paulo (1909-1929).
Cidade de Goiás.
27 Mais sobre o assunto ver: DAMACENA NETO, 2011.
28 ASVP: Documentos Avulsos. Ata da sessão ordinária da Junta Administrativa do Asilo São
Vicente de Paulo aos 16 de Novembro de 1917. Cidade de Goiás, 1917.
29 O bócio consiste no crescimento da Tireoide, uma glândula localizada na parte da frente do
pescoço e responsável pela produção de hormônios. Quando ela não é capaz de produzi-los,
a glândula cresce. Pesquisas indicaram que o bócio era causado pela carência de iodo.
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Fotografia nº. 03: Internas do Asilo São Vicente de Paulo no quintal. Fonte: ASVP: Documentos
Avulsos. Álbum fotográfico do Asilo São Vicente de Paulo. Cidade de Goiás, s/d.
Nas duas fotografias anteriores também vemos internos que padecem desse
mal. O bócio era endêmico em Goiás, que era conhecida como a terra dos papudos.
Durante o século XIX, viajantes como Auguste de Saint-Hilaire e Luiz D’Alincourt,
por exemplo, chamaram a atenção para esse problema. Na Cidade de Goiás “quase
todos os habitantes da cidade e de suas redondezas têm bócio, e muitas vezes essa
deformidade, quando muito acentuada, dificulta a fala de seus portadores” (SAINT-
HILAIRE, 1975, p. 51). Por muito tempo, acreditou-se que a temperatura, a umida-
de e a alimentação deficitária eram as causas dessa doença. No asilo, raros os indiví-
duos não possuíam o bócio.
Em 1909, ano em que o Asilo São Vicente de Paulo foi inaugurado, Carlos
Chagas, médico e pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz, descobriu uma nova pa-
tologia que foi batizada com o seu nome, a doença de Chagas. Essa descoberta ocor-
reu no interior de Minas Gerais, em Lassance, quando ele identificou o protozoário
causador, o Tripanossoma cruzi, e o vetor que o transmitia ao ser humano, um inseto
popularmente conhecido como barbeiro, comumente visto nos pequenos orifícios
que se formam nas paredes dos casebres de barro espalhados pelos sertões do Brasil.30
30 Mais sobre o assunto ver: DELAPORTE, François. A Doença de Chagas: História de uma ca-
lamidade continental. Ribeirão Preto – SP: Holos, 2003; KROPF, Simone Petraglia. Doença
Histórias de Doenças 235
Quando descobriu a nova doença, Carlos Chagas acreditava que sua patologia “estava
voltada, principalmente, para a tireoide e o sistema nervoso central, vindo a seguir as
alterações cardíacas” (REZENDE, 2009, p. 269). Ou seja, a forma crônica da doen-
ça era encontrada em pessoas com bócio, idiotia e cretinismo. Nas décadas seguintes
provou-se que não havia relação entre a doença de chagas e o bócio.
Em 1912, por solicitação da Inspetoria de Obras contra as Secas, órgão vin-
culado ao Ministério dos Negócios da Indústria, Viação e Obras Públicas, o Instituto
Oswaldo Cruz organizou uma expedição chefiada pelos médicos sanitaristas Arthur
Neiva31 e Belisário Pena,32 que, durante nove meses, mapeou o quadro nosológico do
Norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do Piauí e de todo o território goiano.
de Chagas, Doença do Brasil: ciência, saúde e nação, 1909-1962. Rio de Janeiro: Editora
Fiocruz, 2009.
31 “O médico sanitarista baiano Artur Neiva desenvolveu importantes trabalhos nas áreas de his-
tória natural, etnografia e linguística. Formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro
foi nomeado interventor da Bahia (1931), onde criou o Instituto do Cacau. Organizou e fun-
dou o Instituto Biológico de São Paulo e o Instituto de Tecnologia do Ministério do Trabalho
e criou o Instituto de Biologia Vegetal do Ministério da Agricultura. Elaborou o primeiro
código sanitário do Brasil quando dirigia o Serviço Sanitário do Estado de São Paulo e resta-
beleceu a profilaxia do tracoma e a vacina obrigatória e organizou o serviço para o combate
à sífilis. Como uma das maiores autoridades do país em malária, foi designado por Oswaldo
Cruz (1906) para organizar a profilaxia antimalárica na captação da água destinada ao Rio de
Janeiro, em Xerém e Mantiqueira” (MAGALHÃES, 2004, p. 101).
32 “Belisário Penna (1868-1939) doutorou-se em 1890, pela Faculdade de Medicina da Bahia.
Em 1905 foi designado para trabalhar na Inspetoria de Profilaxia Rural da Febre Amarela,
incorporando-se à campanha chefiada por Oswaldo Cruz para a erradicação desta doença
no Rio de Janeiro. A partir de então e até 1913, dedicou-se ao combate de endemias rurais,
como a malária e a ancilostomíase. Por volta de 1914, através do jornal Correio da Manhã
iniciou uma campanha “pelo saneamento físico e moral do Brasil”. Em 1918, publicou o livro
O Saneamento do Brasil. Ainda neste ano, foi nomeado para dirigir o recém-criado Serviço
de Profilaxia Rural, assumindo o cargo de Delegado de Saúde. Entre 1920 e 1922, foi diretor
de saneamento do Departamento Nacional de Saúde Pública (DNSP), instalado em quinze
estados os serviços de profilaxia rural. Em 1928, ocupou a chefia do Serviço de Propaganda e
Educação Sanitária, percorrendo os estados de Minas Gerais, Alagoas, Pernambuco, Paraíba e
Rio Grande do Norte, até ser requisitado pelo governo do Rio Grande do Sul para estudar as
condições sanitárias daquele estado. Durante dois breves períodos, em setembro de 1931 e de-
zembro de 1932, ocupou interinamente o Ministério de Educação e Saúde” (MAGALHÃES,
2004, p. 101).
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236 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
Quatro anos depois foi publicado o extenso relatório dessa expedição nas Memórias
do Instituto Oswaldo Cruz, que descortinou para o litoral a face de um país atra-
sado, onde “(…) a solidão, a miséria, o analfabetismo universal, o abandono com-
pleto dessa pobre gente, devastada moralmente pelo obscurantismo, pelas abusões
e feitiçarias, e fisica e intelectualmente por terriveis molestias endemicas” (NEIVA;
PENA, 1999, p. 220-221). Este relatório tornou-se a égide do movimento sanitarista
na Primeira República. Na sua passagem pela Cidade de Goiás, em Setembro de
1912, os médicos de Manguinhos visitaram o Asilo São Vicente de Paulo:
Nesse sentido, quero ressaltar duas fotografias de dois internos, que no álbum
são os únicos que merecem poses individuais. Como as fotografias no início do sé-
culo XX eram muito dispendiosas, principalmente no interior, todas as fotografias
do álbum, a exceção dessas duas, quando há pessoas nelas, elas nunca estão sozi-
nhas. Primeiro, olhemos as imagens com atenção:
Fotografia nº. 04: Interno do Asilo São Vicente de Paulo. Fonte: ASVP: Documentos Avulsos. Álbum
fotográfico do Asilo São Vicente de Paulo. Cidade de Goiás, s/d.
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238 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
Fotografia nº. 05: Interna do Asilo São Vicente de Paulo. Fonte: ASVP: Documentos Avulsos. Álbum
fotográfico do Asilo São Vicente de Paulo. Cidade de Goiás, s/d.
O primeiro questionamento que nos vem à tona são os motivos que levaram
somente esses dois internos a serem fotografados individualmente. O que esses dois
internos possuem de diferente em relação aos outros? Que interesses permearam a
construção da imagem pelo fotografo?
O primeiro personagem, por exemplo, pode ser visto em quase todas as
imagens desse estudo. Ele sempre aparece, não é difícil identificá-lo. Mesmo com o
passar do tempo (o que se percebe pela mudança da qualidade das fotografias, ele
pouco ou nada mudou). Foi uma pessoa que teve problemas de crescimento, possuía
as pernas tortas, e uma aparência que remete, ao que até nas primeiras décadas do
século XX era chamado de “idiota” ou “cretino”, como abordamos páginas atrás; ou,
para usar um termo popular em Goiás, o “bobo”.
também lesões físicas, muitas surdas e mudas, outras com sequelas de bócio,
em sua grande maioria de estatura baixa e, em geral, de vida longeva. Não
são doidos varridos nem loucos de rua; tampouco doentes mentais. Insisto:
são deficientes mentais. Não parecem ser detentores de uma única síndrome
(MEIRELES, 2014, p. 23).
33 Porém, para que se descortine a história desses indivíduos marginalizados é necessário trans-
por uma série de barreiras, a primeira delas é a seguinte: “como ouvir a voz dos marginais do
passado, quando, por definição, ela foi sistematicamente abafada pelos detentores do poder,
que falavam dos marginais, mas não os deixavam falar”. Deste modo o historiador deve partir
de indícios, que são encontrados nos documentos oriundos do centro. “Trata-se de vestígios
discretos, mas quão vivos!” (SCHMITT, 2001, p. 284-285).
Histórias de Doenças 241
Fotografia nº. 06: Festividade no Asilo São Vicente de Paulo. Fonte: ASVP: Documentos Avulsos.
Álbum fotográfico do Asilo São Vicente de Paulo. Cidade de Goiás, s/d.
34 ASVP: Documentos Avulsos. Ata da sessão ordinária da Junta Administrativa do Asilo São
Vicente de Paulo aos 09 de Setembro de 1923. Cidade de Goiás, 1923.
35 Como, por exemplo, quando da comemoração dos 25 anos de ordenação sacerdotal do Bispo
Dom Prudêncio Gomes da Silva. ASVP: Documentos Avulsos. Ata da sessão ordinária da Junta
Administrativa do Asilo São Vicente de Paulo aos 09 de Abril de 1917. Cidade de Goiás, 1917.
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porco, de franco e de gado. Para além disso, o asilo recebia muitas doações, princi-
palmente de vacas, porcos e aves. Nesse sentido, a fotografia abaixo, podemos ana-
lisar como ocorria a assistência aos internos, numa imagem privilegiada do quintal
da instituição.
Fotografia nº. 07: Internos no quintal do Asilo São Vicente de Paulo. Fonte: ASVP: Documentos
Avulsos. Álbum fotográfico do Asilo São Vicente de Paulo. Cidade de Goiás, s/d.
36 ASVP: Documentos Avulsos. “Setimo Relatorio do Presidente da Junta do Asylo de São Vicente
de Paulo de Goyaz 1915-1916”. Cidade de Goiás, 1916.
Histórias de Doenças 243
tos. Ademais, havia uma colmeia, adquirida em 1915, cuja produção era suficiente
para prover todos os internos e as Irmãs Dominicanas.37
Um dado interessante na fotografia é a caixa d’água, objeto tão raro na antiga
capital goiana, cujas únicas fontes de água potável da cidade localizavam-se na “ca-
rioca” e no chafariz de calda, já que a que se encontrava no lençol freático continha
excesso de minerais o que impossibilitava tanto o seu consumo quanto a perfuração
de cisternas.38 No asilo, a água era trazida diretamente do córrego que ficava nos
fundos da instituição, por meio de uma bomba de aríete que foi conseguido depois
de intensa campanha dos vicentinos.39
A intenção de quem fez a fotografia, presume-se, foi de ressaltar não os inter-
nos e sim a instituição. Os internos, que ocupam a parte central, se perdem diante
da grandiosidade do ambiente. Uma imagem, que, diferentemente das anteriores,
o foco não foi no indivíduo e seus problemas e sim na estrutura que cercava sua
permanência. À disposição deles, se erguia uma bomba de aríete, uma colmeia, e
uma parreiral, algo de que não dispunham a grande maioria das família vilaboenses.
Talvez por isso, o asilo de pobres da Cidade de Goiás tenha se transformado em local
privilegiado para todos aqueles que necessitavam de amparo, e não tinham quem
lhes valessem.40
Considerações finais
As sete fotografias escolhidas para serem objetos de análise desse estudo tem
em comum o fato de evidenciar os internos do asilo. Com o apoio de uma rica litera-
tura procuramos reinterpretar os diversos signos presentes nas imagens, e relacionar
com o contexto da época e, principalmente, com a história da instituição.
Infelizmente, não foi possível afirmar com precisão o nome dos indivíduos
presentes nas fotografias. Tentei confrontar suas características físicas com o Livro
de Registro de Entradas, as atas, os relatórios, os receituários e as impressões dos
visitantes no Livro de Visitas. Nesse diálogo com as fontes foi possível reconstruir a
trajetória de vários internos, porém, a relação entre os documentos manuscritos e as
imagens foi infrutífera.
As fotografias desses indivíduos pobres, recolhidos numa instituição de ca-
ridade criada pela elite local, embora não nos fosse possível conhecer seus nomes,
suas trajetórias de vida e seus problemas, projetaram no tempo suas imagens e a car-
ga simbólica que elas encerram. Suas vozes foram silenciadas pela extensa documen-
tação, mas até mesmo esse silêncio diz muito sobre eles, muito sobre a constituição
do acervo, e muito sobre nós, que mesmo hoje não paramos para ouvir os pobres, os
doentes e os desvalidos…
Referências
40 Sobre esse assunto ver, principalmente, o segundo capítulo do estudo de SOUZA, 2014.
Histórias de Doenças 245
NORA, Pierre. “Entre História e Memória: a problemática dos lugares.” In: Projeto
História. São Paulo: EDUC (10), dezembro/1993.
OLIVEIRA, Manoel Napoleão Alves de. Bobos e tipos de rua: tempo e memória das
cidades. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Goiânia: Universidade Federal
de Goiás, 2003.
RABELO, Danilo. Os excessos do corpo: A normatização do comportamento na
Cidade de Goiás (1822-1899). Dissertação (Mestrado em História). Goiânia:
Universidade Federal de Goiás, 1997.
REZENDE, Joffre M. de. “A viagem científica de Neiva e Penna: roteiro para os estu-
dos das doenças do sertão”. In: História, ciências e saúde – Manguinhos. Rio de
Janeiro, v. 16, supl. 1, jul. 2009.
ROSEN, George. Uma história da saúde pública. São Paulo: Hucitec/Unesp, 1994.
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem à província de Goiás. Tradução: Regina Regis
Junqueira. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São
Paulo, 1975.
SANTOS, Edivaldo Antônio dos. Os dominicanos em Goiás e Tocantins. 1881-1930.
Fundação e consolidação da missão dominicana no Brasil. Dissertação (Mestrado
em História). Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 1996.
SCHMITT, Jean-Claude. “A História dos Marginais”. In: LE GOFF, Jacques. A
História Nova. Tradução: Eduardo Brandão. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes,
2001.
SILVA, Nancy Helena Ribeiro de Araúo e. Tradição e renovação educacional em
Goiás. Goiânia: Ed. Oriente, 1981.
SOUZA, Rildo Bento de Souza. Pobreza, doenças e caridade em Goiás: uma análise
do Asilo São Vicente de Paulo (1909-1935). Jundiaí-SP: Paco Editorial, 2014.
STIKER, Henri-Jacques. “Nova percepção do corpo enfermo”. In: CORBIN, Alain
(Direção) História do corpo vol. 02. Da Revolução à Grande Guerra. Petrópolis,
RJ: Vozes, 2008.
TEIXEIRA, Pedro Ludovico. Relatório apresentado ao Ex.mo S.nr D.r Getúlio Vargas,
d. d. Chefe do Governo Provisorio, e ao povo goiano, pelo dr. Pedro Ludovico
Teixeira, Interventor Federal neste Estado. 1930-1933. Goiás, 1933.
A Comissão Rondon no noroeste do Brasil e
sua atuação médico-militar: trabalhadores,
malária e propaganda (1907-1915)
Robson Mendonça Pereira1
1 Doutor em História pela UNESP e pós-doutor em História Social pela USP. Docente do curso
de Licenciatura em História e do Programa de Pós-Graduação em Territórios e Expressões
Culturais no Cerrado (TECCER) da Universidade Estadual de Goiás. Bolsista do Programa
de Incentivo ao Pesquisador (BIP/UEG). robsonmenper@hotmail.com.br.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
248 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
2 Gomes Carneiro nasceu em 1846 em Serro (MG). Durante a Guerra do Paraguai alistou-se
como soldado no Primeiro Corpo de Voluntários da Pátria, tendo sido ferido três vezes em
combate, e obteve promoção de Primeiro Sargento para Alferes. Ingressou na Escola Militar
em 1872 e ainda durante o Império envolveu-se na Comissão do Telégrafo. Continuou nesta
como comandante no contexto republicano, no período de 1891 a 1892, quando recrutou
Rondon. Faleceu durante a Revolução Federalista em fevereiro de 1894, durante o episódio
do “Cerco da Lapa”, como General de Brigada.
3 Primeira patente de oficial do Exército Brasileiro a época, sendo substituída pela de segundo-
-tenente após a reforma das Forças Armadas em 1930. Após desligar-se da Escola Superior
de Guerra como Engenheiro Militar e diplomado como bacharel em Matemática e Ciências
Físicas e Naturais, Rondon é promovido a Segundo Tenente de Artilharia e logo em seguida a
Primeiro-Tenente (VIVEIROS, 1958, p.62).
Histórias de Doenças 249
nacional que ele seguiu ao planejar e construir a linha telegráfica”, inclusive em suas
relações com índios e brancos no interior do país (DIACON, 2006, p.96).
A vertente ortodoxa veiculada por Constant, Miguel Lemos e Teixeira
Mendes, fundadores da Sociedade Positivista Brasileira era valorizada por Rondon e
transparece em seus diários de campo (LIMA, 1999, p.72). Ressalta em sua autobio-
grafia a ascendência indígena (de pelo menos três povos: guainá, terena e bororo), o
contato com a natureza cerratense e pantaneira, o ideal de “servir a nação”, dimen-
sionando seu trabalho na Comissão do Telégrafo como uma missão civilizatória des-
tinada a ligar os pontos estratégicos do país, e no qual a exploração do sertão é tam-
bém percebida ao mesmo tempo como missão militar e empreendimento científico.
No início de suas atividades, nos primeiros anos da República, a noção de
território era ainda algo problemático:
Sertão e viagens, estas vistas como expedições civilizatórias, são termos que
se interpenetram. O desbravamento do sertão pode ser visto como um movi-
mento de forte conteúdo simbólico, que acompanhou os projetos oficiais de
delimitação de fronteiras, saneamento, utilização de recursos naturais, povo-
amento e integração econômica e política. Este movimento missionário, for-
temente associado à expansão de presença do Estado, encontrou como atores
sociais agentes informados pelo cientificismo – quer na versão positivista or-
todoxa, quer nas versões mais heterodoxas e em interpretações evolucionistas
de cunho spenceriano (LIMA, 1999, p.67).
Formados todos, fiz sentir aos soldados a gravidade do ato praticado. Tinham-
se tornado indignos da farda que traziam. Os oficiais foram também severa-
mente admoestados:
– Um oficial não pode abandonar o seu posto – nele morre, se necessário for.
Destaquei um pelotão para ir à mata buscar varas. E durante uma hora, foram
os soldados, em forma, vergastados.
Depois de deixar cada um no seu posto, regressei amargurado.
Doía-me profundamente ter sido forçado a recorrer ao processo do Conde de
Lipe. Entreguei-me a amargas reflexões sobre o fato de serem sempre envia-
dos, para trabalhar na comissão homens, na fase ainda da “obediência força-
da”. (VIVEIROS, 1958, p.109-10)
4 Trata-se aqui do Regulamento para o Exercicio, e Disciplina dos Regimentos de Cavallaria dos
Exercitos de Sua Majestade Fidelissima, Feito por ordem do mesmo Senhor POR SUA ALTEZA
o Conde Reinante de Schaumbourg Lippe, Marechal General. Lisboa, Na Regia Officina
Typografica. Anno M. DCC. XCVIII. [1798]. Ver também: FREIRE, Miguel. Um olhar actual
sobre a “transformação” do Conde de Lippe. In: Nação & Defesa. n.112, Lisboa, IDN, Outono-
Inverno, 2005, p.137-166.
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252 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
Lá estava ela grande, majestosa, cabeça para baixo, uns três metros acima de
nós, em posição de descer: Vendo-a, preveni: – Esta onça vai saltar na chala-
na! – pulei para terra, de carabina engatilhada. Assentado na chalana, Renato
faz fogo; a bala penetrou os olhos da fera que se manteve imóvel. Saltamos,
5 Aqui, claramente, Rondon se refere aos mosquitos sugadores de sangue que atormentavam os
viajantes e os animais nas expedições – muito transmissores da malária como o Anopheles ou
dengue como os do tipo Aedes.
Histórias de Doenças 253
Subi pelo tronco da figueira, para melhor ver a fera que roncava ameaçadora,
e estava procurando firmar-me para atirar, quando escorreguei, e teria ido
cair junto à onça, se uma raiz não me tivesse detido. Ao mesmo tempo, com
o movimento, disparava a Winchester e a onça fugira… Foi então novamente
acuada e morta com um tiro na testa. (VIVEIROS, 1958, p.193)
zação. O objetivo era alcançar a Serra do Norte para seguir em arremetida para o
rio Madeira, tanto que vão ocorrer posteriormente mais duas expedições para essa
região. O Juruena era considerado um rio “incógnito”, devido a sua inexistência em
mapas recentes e sobre o qual pairavam lendas a respeito da existência de tribos
de índios antropófagos. Essa expedição constava no programa da terceira seção da
Comissão chefiada pelo próprio Rondon.6
Após uma travessia difícil feita a pé abrindo pique, com alimentação redu-
zida e debaixo de chuva torrencial, avistaram o vale do rio Juruena após 48 dias
e 618 quilômetros percorridos. A expedição composta também pelo tenente João
Salustiano Lyra, pelo fotógrafo Leduc e mais cinco homens encontrou o rio após
seguir por uma trilha indígena. O desgaste da equipe envolvida foi enorme, metade
estava doente, os animais estropiados, sem pastagens e falta de munição de boca. A
caminho de uma aldeia dos índios Nambikwara, foram atacados inesperadamente:
6 A seções da CLTEMTA era divididas da seguinte maneira: Primeira Seção) Ramal de Cáceres
a cidade de Mato Grosso (na fronteira boliviana), sob a chefia do major Félix Fleury; Segunda
Seção) Linha tronco Cuiabá a Santo Antônio do Madeira (atual Rondônia), sob a chefia dos
capitães Custódio e Marciano Oliveira; Terceira Seção) Grande reconhecimento do sertão
e estudos preparatórios para instalação da Linha Tronco, sob a chefia pessoal de Rondon
(VIVEIROS, 1958, p.229).
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momento de tensão, além é claro, da possibilidade de ser atingido por flechas enve-
nenada com curare (DIACON, 2006, p.74-5).
Havia um outro dilema mais difícil de ser contornado: a escassez crônica de
alimentos. O serviço da CLTEMTA era dividido basicamente em três unidades: a)
vanguarda; b) construção e abertura da picada (com 30 a 40 metros de largura), com
grupos espalhados com diferentes funções, e que instalavam cerca de 150 postes por
dia ou 11 quilômetros de linha; c) Retaguarda.8 Conforme a linha tronco avança-
va, mais precário tornava-se o abastecimento devido as imensas distâncias a serem
percorridas por carros de bois que ficava presos nos atoleiros. Foi necessário como
notei anteriormente a formação de destacamento de caça, pesca e coleta para suprir
de alimentos a comissão com trabalhadores espalhados por dezenas de léguas pelo
território mato-grossense.
Podemos ter uma ideia do quadro de moléstias incidentes nesta vasta região
através do relatório do segundo-tenente Otávio Felix Ferreira e Silva, engenheiro-
-militar e chefe da expedição que efetuou o levantamento do Rio Jamari. Este tece
uma série de considerações acerca das condições insalubres em que viviam os ri-
beirinhos, chegando a afirmar ser “difícil encontrarem-se no Jamari pessoas de
avançada idade”. Entre as doenças mais comuns assinala a ocorrência do beribéri
(caracterizada pela carência de vitamina B1), a tuberculose, a disenteria e o impalu-
dismo (malária), sendo esse último considerado o “maior consumidor de vidas no
Jamari”; também aparecia no conjunto a polinevrite palustre, moléstias nos olhos,
icterícia, eczema, lepra seca e úlceras nas pernas (FERREIRA E SILVA, 1920, p.21
apud CASER; SÁ; 2011, p.476).
O tenente Otávio Felix faz questão de assinalar o impacto causado na ex-
pedição, pois todos seus 16 membros “foram contaminados com malária”, vindo
dois a óbito, paralisando os trabalhos, ocorrência muito comum que chega quase a
estacionar completamente o andamento da construção da linha telegráfica em de-
terminados momentos.
8 Rondon coordenava a primeira unidade responsável por escolher o melhor percurso para li-
nha tronco, estabelecer coordenadas geográficas, encontrar madeira disponível para postes etc.
Alguns oficiais militares experimentados nestes empreendimentos no sertão auxiliavam dire-
tamente Rondon nestas expedições de reconhecimento. Entre estes destaca-se o tenente João
Salustiano Lyra (engenheiro militar), o capitão Amílcar Botelho de Magalhães (chefe do trans-
porte), o tenente Júlio Caetano Horta Barbosa e o tenente Alencarliense Fernandes da Costa.
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redigido pelo oficial da C. R. Otávio Felix em relação ao rio Jamari: “… e mais grave
de todas, impaludismo (malária), o grande responsável, segundo o sanitarista, ‘pelo
descrédito crescente que infelicita esta região […], o único terror sério destas regi-
ões’, apesar de constituir ‘moléstia evitável’:
A região está de tal modo infectada que sua população não tem a noção do
que seja o estado hígido e para ela a condição de “ser enfermo” constitui a
normalidade. As crianças – as poucas que existem – inquiridas sobre o estado
de saúde respondem simplesmente “não tenho moléstia, só tenho baço”. E ca-
racterizam assim a enorme esplenomegalia cuja presença sentem e que é con-
secutiva aos acessos repetidos de malária. (CRUZ, 1910 apud HARDMAN,
1988, p.150-1)
oficiais que se encontravam doentes, algo muito comum quando se avançava para
além da Serra do Norte. O tenente Nicolau Bueno Horta Barbosa adoeceu e foi subs-
tituído pelo tenente Bellaruino; para o enfermo capitão Tinoco foram enviados dois
substitutos que acabaram contraindo malária: tenente Coutinho e Carneiro Pinto. A
maioria destes oficias contava com a possibilidade de se tratarem no Rio de Janeiro,
mas devido as distâncias imensas e as dificuldades de transporte, acabavam muitas
vezes vindo a óbito em Cáceres ou Cuiabá, destino em geral dos praças (DIACON,
2006, p.81).
Houve uma expectativa de normalização no comando com a chegada do te-
nente Cândido Sobrinho, em abril de 1914, este ordena mudança do local do acam-
pamento para área mais seca – entretanto, durante a arrancada final, o comandante
teve de enviar 52 doentes de malária para tratamento, vindo a falecer 32 homens.
Baseado em relatórios oficiais 159 soldados morreram entre 1907 e 1915, sendo que
64% destes durante o esforço final, enquanto, dezessete oficias faleceram em serviço
entre 1901 e 1919 (DIACON, 2006, p.79-80).
trajeto (CASER; SÁ, 2011, p.483-4). Um outro evento bastante ilustrativo é caso do
médico Joaquim Tanajura que percorreu 72 km em julho de 1909 para socorrer um
soldado ferido na altura do tronco por uma flecha decorrente de ataque de índios
nambikwara. Conseguiu curar a tempo o soldado Pequeno com “lavagens antissép-
ticas” (Diacon, 2006, p.65-66). A mesma sorte não teve outro soldado que se ferira
gravemente com um tiro de Winchester, o médico Tanajura improvisou uma cirur-
gia de emergência em meio a condições precárias auxiliado pelo zoólogo Alípio de
Miranda Ribeiro, mas o paciente sucumbiu a infecção.
Esses episódios e a constatação de que havia poucos médicos à disposição
para atender cerca de 300 trabalhadores espalhados em duas seções de construção
por distintos pontos das turmas da Comissão, nos vastos sertões do noroeste leva o
comando da CLTEMTA a conscientizar-se da necessidade de um serviço sanitário
no próprio local da construção devido à ausência de infraestrutura adequada para o
combate às enfermidades que acometiam a tropa, em especial à malária.
Assim, em maio de 1910, é criado pela CLTEMTA um Serviço Sanitário ex-
clusivo, inclusive com o estabelecimento de instruções paras as Seções Norte e Sul. A
principal preocupação contida nesse documento era com o controle da malária por
meio de medidas e da otimização do trabalho dos médicos.
Estabelecia que o serviço ficaria a cargo de dois médicos, que se revezariam
na Enfermaria (em Santo Antônio do Madeira para a Seção do Norte e da Serra do
Norte para Seção do Sul) e nos trabalhos de construção da linha telegráfica. Essas
enfermarias contariam com uma equipe composta por nove pessoas, chefiada por
um médico, auxiliado por um farmacêutico, tendo dois enfermeiros, quatro serven-
tes e um cozinheiro.
Havia uma equipe que cuidava da profilaxia contra o paludismo nos acam-
pamentos, tendo inclusive a tarefa de eliminar os focos de lavas de mosquitos. Nesse
tópico as instruções estabeleciam seis recomendações: proibir a ingestão de álcool;
uso sistemático do mosquiteiro; quininização diária de todo pessoal; drenagem do
terreno; isolamento dos portadores de malária; recolhimento de amostras de sangue
para envio à Enfermaria e exame em microscópio; preleções sobre saúde feitas por
médicos da Comissão obrigatoriamente.
Conforme ressalta CASER & SÁ, a principal preocupação contida no regu-
lamento dizia respeito ao controle da malária e ao tratamento dos doentes como
função principal dos médicos da CLTEMTA, prescrevendo normas concernentes
a construção das enfermarias, locais apropriados para sua instalação, estrutura in-
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terna etc. (2011, p.487-8). Estes mesmos autores declaram que apesar dos cuidados
com a criação desse serviço sanitário, não é possível precisar a partir da documen-
tação existente o real impacto na melhoria no tratamento dos doentes e nem no es-
tado sanitário da Comissão, apenas observam que “até a inauguração da linha entre
Cuiabá e Santo Antônio do Madeira as doenças continuaram a ter significativo im-
pacto sobre os trabalhos realizados” naquela região, pois o número de óbitos citados
na Tabela 1 (CASER; SÁ, 2011, p.489), continuaram muito altos, de quinze em 1910,
deram um salto para 39 em 1913 e 70 em 1914.
O que sabe é que os frequentes surtos de malária levaram a um redimensio-
namento dos objetivos iniciais da CLTEMTA.
Em primeiro lugar, a ocupação da porção noroeste do Brasil abrangia o tre-
cho de Cuiabá a Santo Antônio do Madeira, e depois seguir adiante até Manaus
atravessando os territórios do Acre, do Alto Purus e do Alto Juruá, na floresta ama-
zônica; a linha telegráfica chegou efetivamente a Santo Antônio do Madeira, e foi
inaugurada oficialmente em 1915, sem os festejos e celebrações que Rondon fazia
questão de realizar, talvez porque efetivamente só viesse a funcionar em 1919 quan-
do a obra foi realmente concluída, e não se prosseguiu nem um quilômetro adiante
como estava previsto inicialmente.
O processo de ocupação produtiva do noroeste tornou-se um verdadeiro
fracasso, surgiram apenas pequenas vilas e cidades em torno de algumas estações
telegráficas mais importantes, e nem todo esforço da propaganda dos escritórios da
comissão no distrito federal foi capaz de estimular a migração para essas áreas.
Mesmo o medo da doença, neste caso da malária, sendo evitado nos relató-
rios para não ir contra o marketing oficial destinado a atrair o imigrante e o empe-
nho dos médicos designados para trabalhar na comissão para controlar as doenças e
diminuir a mortandade, não foram capazes de debelar o terror causado nos soldados
que eram enviados para trabalhar na construção da linha.
A péssima condição sanitária das cidades ao longo do trajeto da CLTEMTA
pode ser ilustrado pelo comentário nada lisonjeiro de Rondon acerca de Santo
Antônio do Madeira, nele se vislumbra a imagem da degradação humana e de uma
localidade condenada:
Não tenho lembrança de jamais ter visto outro povoado de aspecto tão feio e
tristonho. A população, constituída de aventureiros vindos de todas as partes
do mundo, cheia de vícios, alcoólatra, parece ter querido erigir em padrão de
glória o desprezo pela higiene e pelo asseio. O lixo amontoa-se no meio das
Histórias de Doenças 265
Referências
CASER, Arthur Torres; SÁ, Dominichi Miranda de. O medo do sertão: a malária e a
Comissão Rondon (1907-1915). História, ciências, saúde – Manguinhos, Rio de
Janeiro, v.18, n.2, p.471-497, abr.-jun. 2011.
CRUZ, Oswaldo Gonçalves. Considerações geraes sobre as condições sanitárias do rio
Madeira. Rio de Janeiro: Madeira-Mamoré Railway Company/Papel Americana,
1910.
DIACON, Todd A. Rondon: o marechal da floresta. Tradução Laura Teixeira Motta.
Coordenação Elio Gaspari e Lilia M. Schwartz. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006.
FREIRE, Miguel. Um olhar actual sobre a “transformação” do Conde de Lippe. In:
Nação & Defesa. N.112, Lisboa, IDN, Outono-Inverno, 2005, p.137-166.
HARDMAN, Francisco Foot. Trem fantasma: a modernidade na selva. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988.
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266 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
A doença é a zona noturna da vida, uma cidadania mais onerosa. Todos que
nascem têm dupla cidadania, no reino dos sãos e no reino dos doentes. Apesar
de todos preferirmos só usar o passaporte bom, mais cedo ou mais tarde nos
vemos obrigados, pelo menos por um período, a nos identificarmos como
cidadãos desse outro lugar (SONTAG, 2007, p.11).
O presente texto analisa a lepra (hanseníase) a partir das várias instituições eri-
gidas para o seu controle, tanto as de cunho religioso do mundo ocidental,
desde a Antiguidade mais remota até o final da Idade Média, como as embasadas
na ciência dos séculos XIX e XX. Através de seus respectivos dogmas e teorias, es-
sas instituições, introduziram um conjunto de práticas de isolamento impostas aos
portadores desta doença, muitas das quais prevaleceram mesmo após a descoberta
de sua forma de transmissão, em finais do século XIX, bem como de seu método de
tratamento e cura, através das sulfonas, descobertas na década de 1940.2
O objetivo aqui é discorrer sobre a trajetória histórica do drama dos hanse-
nianos e identificar como o medo milenar do contágio, fortalecido pelos estigmas,
acarretou um impacto subjetivo, porém, tão profundo na vida das várias sociedades
humanas a ponto de resistir aos séculos, às mudanças de pensamento introduzidas
pela ciência moderna. Pretende-se, ainda, demonstrar que os dogmas das religiões
de matrizes, judaica e cristã foram responsáveis por várias das representações nega-
tivas atribuídas a lepra, cujos efeitos ainda se fazem sentir nos dias de hoje.
A análise é feita através do aporte teórico do institucionalismo histórico a fim
de lançar luz à história da hanseníase e tornar compreensível o medo e as interpre-
tações preconceituosas que atinge seus portadores em diferentes épocas. Trata-se
de uma abordagem que tem como premissa básica a ênfase sobre a influência das
instituições sobre o comportamento das sociedades e seus resultados políticos, con-
siderando sua contingência histórica (NORTH, 1990; 1994).
A lepra e a religião
3 A tradução latina da Bíblia foi feita por São Jerônimo, em meados do século IV d. C., propagan-
do-se, assim, por todo o Império Romano e pelo novo e crescente mundo cristão.
4 Ver BERIÁC apud LE GOFF, 1994 p.127-128; BROWNE, 2003, p.37.
Histórias de Doenças 269
O dogma da religião judaica fez com que os leprosos fossem alvo de temor, não
apenas em razão das mazelas biológicas próprias da moléstia, à época sem tratamento
eficaz e sem possibilidades de cura, mas principalmente pelo medo das consequências
que adviriam do “contato” com o pecador impuro, o que é bastante compreensível em
uma sociedade onde a razão é submetida ao totalitarismo dos dogmas.
A interpretação da doença como castigo divino não foi uma invenção ex-
clusiva das religiões de matriz judaica e cristã, conforme a interpretação de Diana
O. Torres (2002). S. Sontag (2007) demonstra que no mundo grego antigo, muitas
vezes a doença foi retratada como instrumento da ira divina. A autora cita como
exemplos a peste que Apolo, no Canto I da Ilíada, inflige aos aqueus em castigo por
Agamêmnon ter raptado a filha de Crises; a peste que ataca Tebas, em Édipo, em
razão da presença contagiosa do rei pecador ou a uma pessoa específica, a ferida no
pé de Filoctetes (SONTAG, 2007, p.39). Em outra passagem, esta autora afirma que
dentro como uma massa que não tem muita importância diferenciar” (FOUCAULT,
2000, p.164).
Foucault (2001) analisa o isolamento dos leprosos em outra obra, em Os
Anormais, o autor afirma que
a exclusão da lepra era uma prática social que comportava primeiro uma di-
visão rigorosa, um distanciamento, uma regra de não contato entre um indi-
víduo (ou um grupo de indivíduos) e outro. Era, de um lado, a rejeição desses
indivíduos num mundo exterior, confuso, fora dos muros da cidade, fora dos
limites da comunidade. Constituição, por conseguinte, de duas massas estra-
nhas uma à outra. E a que era rejeitada era rejeitada no sentido estrito nas
trevas exteriores. Enfim em terceiro lugar, essa exclusão do leproso implicava
a desqualificação – talvez não exatamente moral, mas em todo caso jurídica e
política – dos indivíduos assim excluídos e expulsos. Eles entravam na morte,
e vocês sabem que a exclusão dos leprosos era regularmente acompanhada de
uma espécie de cerimônia fúnebre, no curso da qual eram declarados mortos
(e, por conseguinte seus bens, transmissíveis) os indivíduos que eram lepro-
sos e que iam partir para esse mundo exterior estrangeiro. Em suma, eram de
fato práticas de exclusão, práticas de rejeição (FOUCAULT, 2001, p.54).
seu portador era considerado como alguém que teria praticado atos sexuais ilícitos,
tais como sodomia, relações homossexuais, sexo com animais ou durante o período
menstrual. Sendo assim, o leproso era alguém que trazia consigo os estigmas da
impureza, imundície e pecado, já que a lepra era a comprovação do pecado de que o
castigo divino fora aplicado.
É importante destacar que a percepção do castigo religioso estava diretamen-
te relacionada ao dogma do pecado original e aparece no livro de Gênesis (o pri-
meiro da Bíblia). Os termos religiosos pecado e castigo, em referência aos leprosos,
nesses livros são designados “tsara´ath”, palavra de origem aramaica que quer dizer
“golpeado por Deus” (BROWNE, 2003).
No livro sagrado dos hebreus, a Torá, encontra-se essas argumentações trans-
cendentes do judaísmo para explicar as “origens” e “causas” da lepra e as justificativas
da necessidade de isolamento de seus portadores, do restante da comunidade saudá-
vel. Assim está escrito, referindo-se ao leproso: “todos os dias em que praga houver
nele, será imundo; imundo está, habitará só; a sua habitação será fora do arraial”
(LEVÍTICO, 13:4). De acordo com Rotberg (1975, p.295), os leprosos “eram decla-
rados ‘imundus’ pelo sacerdote e expulsos para ‘fora do acampamento’ e suas roupas
e paredes com ‘tsara´ath’ eram queimadas ou destruídas, carregando-se as pedras e
restos de sua habitação para um ‘lugar imundo’”.
Os sacerdotes judeus representavam o poder instituído, tanto religioso quan-
to de governo, portanto, o isolamento dos leprosos insere-se no conceito que North
(1994, p.360) denomina como regra formal.
Na Antiguidade, diferentes religiões do mundo asiático apresentam em seus
preceitos noções estigmatizantes em relação à lepra, de maneira bastante similar
aos estabelecidos pela religião dos hebreus. Na Índia, as primeiras referências à le-
pra aparecem no Susruta Samhita, que menciona o conhecimento e tratamento da
doença com o óleo de chaulmoogra. A obra, que, provavelmente, é o resumo das
tradições orais mais antigas, identifica tanto sinais cutâneos quanto neurológicos e
foi escrita no século VI a.C (LOWE apud BROWNE, 2003). A lepra era considerada
como deslize moral, imundície e relacionava-se a tudo que merecesse desprezo.
Cabe lembrar que, nas religiões asiáticas da Antiguidade, não havia separa-
ção entre medicina e religião, característica que, por sinal, está muito presente ainda
hoje nessas culturas. Na China e no Japão, os registros sobre a lepra datam de época
posterior à da Índia. Segundo Veith apud Brown (2003), a história da lepra no Japão
apresenta paralelos interessantes com a história bíblica sobre a lepra, tais como a im-
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precisão, as implicações não clínicas e o medo excessivo. Além disso, o autor chama
a atenção para o fato de que as descrições mais antigas da lepra na Índia e na China
são surpreendentemente precisas e completas, demonstrando observação atenta e
um registro inteligente.
As regiões que foram dominadas pela China sofreram sua influência em re-
lação às formas de tratamento e diagnóstico da lepra (TRONCA, 2004). Na China,
também, acreditava-se que a lepra ocorria como punição em decorrência de depra-
vação sexual e que só seria possível dela se livrar deflorando uma virgem ou “ven-
dendo-a” a tantas pessoas quanto possível (SKINSNES apud BROWN, 2003, p.40).
O medo do contágio era tanto que muitas pessoas eram queimadas vivas.
Quanto ao mundo islâmico, a análise do Corão5 não revelou referência algu-
ma à lepra ou a quaisquer outras doenças como estando relacionadas ao pecado ou
à impureza. Foi realizada, para fins deste estudo, uma investigação minuciosa, prin-
cipalmente dos versículos que tratam da pureza, impureza, ablução, pecado, castigo,
ao sangue e às enfermidades. As únicas citações em que aparece a palavra lepra se
referem a Jesus, como na passagem abaixo:
O Suhaib (R) relatou que o Mensageiro de Deus (S) disse: “O jovem começou
a curar as pessoas que sofriam de cegueira congênita, de lepra, e de outras
enfermidades. A notícia chegou aos ouvidos de um cortesão do rei que havia
ficado cego. Ele foi ter com o jovem, levando muitos presentes, e disse: ‘Tudo
isto será teu, se me curas!’ O jovem lhe disse: ‘Eu não curo ninguém; é tão so-
mente Deus que concede a cura. Se declarardes a vossa fé em Deus, eu orarei
por vós, e Ele vos concederá a saúde’. Assim, ele declarou sua fé em Deus, que
lhe restaurou a visão (CORÃO, MUSLIN, 39, p.10).
5 Corão: 30 (Muslin, 39, p.10); Sunas, (8:24) (Narrado por Ahmad, 3/128; al-Nasaa’i, 7/61; clas-
sificado como saheeh por al-Haakim). (Narrado por al-Bukhaari, 9/92; Muslim, 1400) (Al-Tibb
al-Nabawi, 251).
Histórias de Doenças 273
O Corão não faz nenhuma referência específica à lepra e nada indica em seus
preceitos que quaisquer doenças fossem consideradas como castigo ou pecado sexu-
al. Da mesma forma, não aparecem afirmações de algum tipo de doença que impu-
sesse o isolamento de seu portador. Ao contrário disso, identificamos passagens nas
quais os seguidores do Islamismo são exortados a cuidar dos enfermos, por exemplo,
equivalente ao perdão. Assim, Eliseu mandou dizer a Naamã para se banhar no Rio
Jordão que ficaria “purificado”. Naamã quis recompensar Eliseu dando-lhe dinheiro,
que ele recusou. Porém, o seu criado Geazi pegou uma parte do dinheiro e Eliseu
afirmou que a lepra de Naamã cairia sobre ele por esta razão, o que aconteceu, se-
gundo a Bíblia (II REIS, 5:1-27 e 5:14).
Tudo indica que os muçulmanos mantiveram, ao longo dos séculos, práticas
similares de não exclusão e estigmatização aos leprosos, como haviam feito seus an-
cestrais em seu “paganismo” na Antiguidade. É digno de nota, ainda, o fato de que
os médicos muçulmanos deram grande contribuição ao diagnóstico para a lepra, na
Idade Média. Por volta do século XII, descobriram as placas de insensibilidade na
pele e com a observação de casos e dos diversos sintomas a doença pôde ser com-
preendida e descrita de forma mais coerente pelos médicos da época (BERIÁC, apud
LE GOFF, 1994).
Pelo relato acima, pode-se concluir que a origem dos estigmas de pecado e
impureza que envolveu, por séculos, os hansenianos, tem sua origem na religião
judaica. Portanto, é imprescindível, aqui, discorrer sobre esse fenômeno e seus fun-
damentos epistemológicos.
A evidência de que uma pessoa tem atributos diferentes das demais faz com
que ela deixe de ser considerada criatura comum e total, reduzindo-lhe a uma pessoa
imperfeita e diminuída. Essa é a característica do estigma, segundo Goffman (1980),
principalmente quando o efeito de descrédito lançado à pessoa é muito grande por
constituir uma discrepância entre a identidade social virtual e a identidade social
real. Assim,
vários aspectos, como, por exemplo, a associação das características físicas apresen-
tadas pelas pessoas enfermas como sendo sinais exteriorizados de pecado. Outro
exemplo está no fato de o diagnóstico da doença continuar sob a responsabilidade
sacerdotal, em detrimento da medicina que, embora limitada, tivera consideráveis
avanços em relação à época Antiga. Destarte, o ritual de proscrição, “a morte civil”
do leproso, perante a comunidade que na sociedade hebraica era realizado pelos sa-
cerdotes judeus, também, prevaleceu durante a Idade Média, com a única diferença
de ser ministrado por um clérigo católico.
Da mesma forma que na época dos hebreus, os leprosos católicos eram ex-
pulsos de suas residências e obrigados a participar de um ritual conduzido pelos
clérigos em ofícios religiosos que significava “morte civil”. A liturgia, nesse sentido,
era tão enfática que, ao seu final, era derramada terra sobre a cabeça do leproso
(FORNAZARI; MATTOS, 2005, p.49). A liturgia da morte do leproso não se trata-
va de uma simples representação, mas de fato, depois daquele momento, o doente
tornava-se definitivamente morto para sua família e sociedade. Chegavam até ao
ponto de realizar missas fúnebres de corpo presente com os leprosos, antes que fos-
sem encaminhados aos leprosários (LE GOFF, 1984).
A Igreja Católica institucionalizou a exclusão e o isolamento dos leprosos no
século IV, através do Concílio de Ancyra em 314. No Concílio de Lyon, em 583, foi
reafirmada essa determinação e acrescentada a proibição de qualquer contato entre
pessoas contaminadas e pessoas sãs. Em várias regiões da Europa Ocidental e do
Império Bizantino, não apenas essas exigências foram colocadas em prática, como
também foram criados códigos emblemáticos capazes de identificar os leprosos.
Era comum que os leprosos vestissem um hábito específico que os caracteri-
zassem e que carregassem consigo sinos ou um instrumento chamado de matraca,
os quais deveriam ser manipulados pelos doentes, quando avistassem qualquer pes-
soa próxima de si.
Pelas determinações do II Concílio de Latrão, de 1179, o isolamento dos
leprosos recrudeceu, segundo Le Goff (1984, p.82), “autorizando a construção de
capelas e cemitérios no interior das leprosarias, contribuiu para fazer delas outros
tantos mundos fechados, de onde os gafos só podiam sair agitando matracas para
que as pessoas deles se afastassem”.
Desde a Alta Idade Média (século V), a Igreja Católica também se responsa-
bilizou por erigir as instituições asilares, denominadas leprosários, para recolher os
leprosos. Dentre os objetivos dessas instituições, destacava-se a tarefa de purificar
Histórias de Doenças 277
uma concepção corrente no período era que “a lepra também é a prova corporal do
pecado: a corrupção da carne manifesta a da alma”.
Esses tabus e outras crenças tinham origem na cultura, engendradas pelo
convívio cotidiano entre as pessoas de diferentes gerações e daquilo que, segun-
do Perry Anderson, constituiu o mundo medieval, isto é, uma “Síntese Histórica”
(ANDERSON, 1995, p.123) entre os resquícios do Império Romano, com a cultura
judaico-cristã e com as diversas sociedades tribais – germânicos, gauleses, anglo-sa-
xões, unos, dentre outras, que foram adentrando e se misturando com os romanos.
As instituições informais construídas pela população leiga para lidar com a
lepra e seus portadores no ocidente medieval cristão expressaram toda a carga cul-
tural do passado e das culturas dos diversos grupos humanos que lhes antecederam,
colaborando não apenas para que sobrevivessem durante quinze longos séculos, mas
para que fossem legados às sociedades que lhes sucederam no tempo e no espaço.
A dinâmica histórica da lepra na Idade Média preservou e fez surgir meca-
nismos de controle e de organização que se tornaram constituintes de instituições
específicas destinadas aos leprosos e à lepra, de cunho formal e informal, que se
cristalizaram, expandiram e sobreviveram nos séculos seguintes.
A incidência de lepra na Europa, a partir do século XV, passou a apresentar
um grande decréscimo. Os historiadores não estabelecem consenso em suas expli-
cações sobre o ocorrido. Muitos afirmam que a grande crise dos séculos XIV e XV,
como também a Peste Negra que assolou o mundo medieval, foi, em parte, respon-
sável pela eliminação dos leprosos. Segundo Rosen (1994), devido à debilidade física
dos leprosos, em decorrência da moléstia, eles eram facilmente vitimados pela peste
e pela fome. Outros autores afirmam ter sido, provavelmente, a melhoria das con-
dições de higiene pelas quais as sociedades passaram a partir de então (OBREGÓN
apud MACIEL, 2007).
O declínio da lepra na Europa Ocidental, nos finais do século XIV, permane-
ce um mistério, assim como o seu desaparecimento na Inglaterra no século seguinte
e de outros países europeus, na sequência (LEWINSOHN, 2003, p.69). A autora
considera controversa a explicação de Rosen, no entanto, não introduz outra expli-
cação possível para o fenômeno. Contudo, afirma que a moléstia não foi erradicada,
inclusive na Escandinávia, não sofreu alteração.
Histórias de Doenças 279
Francis Galton, o pai da eugenia, por sua vez, defendia em sua obra A Teoria
da Hereditariedade, de 1875, a ideia de que a doença e o crime seriam hereditários
(DIWAN, 2007). A esse respeito, é bastante elucidativo um documento oficial da
cidade de Chicago, de 1906, cujo objetivo seria a criação de leis de esterilização e de
Nesse contexto, a lepra adquiriu o sentido que Cabral (2013, p.47) denomina
de “contágio simbólico da falta de civilização”. Assim, nas regiões que sofreram o
processo de ocupação pelo novo tipo de colonialismo, ressurgiram as práticas de
isolamento e estigmatização dos leprosos, de forma bastante similar aos contextos
da Antiguidade e da Idade Média, porém, subsidiados pelos arcabouços de teorias
pseudocientíficas.
A esse respeito, o caso do Havaí� é o mais emblemático. No arquipélago ha-
vaiano, por volta da década de 1850, foi inaugurada uma política sanitária contra
os leprosos, reservando a ilha de Molokai como local para o isolamento, onde os
doentes de lepra ou suspeitos de contaminação eram transferidos e lá eram deixados
à própria sorte.
O contexto em que viveram os leprosos, sob a égide da expansão neocolo-
nialista, pode ser elucidado através do conceito de dependência de trajetória, uma
vez que as instituições erigidas em atenção a eles tiveram suas bases assentadas nos
preceitos das religiões de matriz judaica e cristã, embora, fundamentadas na ciência.
É possível afirmar que as mudanças que foram introduzidas em relação à lepra e aos
leprosos, ao longo do século XIX, ocorreram de forma lenta e gradual, não se carac-
terizando como transformações radicais ou inovações totalmente originais, o que as
assinalam como sendo mudanças institucionais, de caráter incremental.
Os institucionalistas concebem como mudança institucional incremental
aquelas que acontecem gradualmente, por etapas ou por camadas, cujo processo
se dá através da introdução de novas regras ou normas, no topo ou ao longo das
já existentes. De acordo com Mahoney e Thelen (2006), elas acontecem através de
emendas, revisões, ampliação, enfim, quando novas regras são anexadas às antigas
mudando os caminhos pelos quais as regras originais estruturaram o comportamen-
to. Esse processo normalmente acontece porque os indivíduos que propõem as mu-
danças não possuem condições ou capacidades para transformar radicalmente o sis-
tema institucional original. Assim, eles atuam através de deslocamento e adaptação,
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
282 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
no entorno do sistema vigente, impondo novas regras que convivem com aquelas já
existentes (MAHONEYe THELE, 2003).
As mudanças nas instituições destinadas à lepra e a seus portadores, perpe-
tradas no século XIX, foram feitas através das relações de poder estabelecidas entre
representantes dos Estados imperialistas, das religiões de matriz judaica e cristã e
os cientistas. Dessas relações, a prática de isolamento dos leprosos se adequou ao
novo contexto histórico. Dentre todos os agentes de poder, aqueles que ocupavam
os órgãos relacionados à saúde tentaram suplantar os outros poderes, através da au-
toridade científica, “só especialistas podem lutar contra os personagens [os vírus e
micróbios], identificá-los” (FERRO, 1996, p.163).
As interpretações de que hanseníase estaria relacionada ao clima, às especi-
ficidades geográficas e aos fenômenos sobrenaturais foram substituídas por outras
explicações científicas fundadas nos estudos da microbiologia, no final do século
XIX. Das origens miasmáticas, climáticas e religiosas, passara-se para a definição de
agentes causais específicos da doença, germes e bactérias.
A figura do médico e de outros profissionais de saúde, portanto, foi de funda-
mental importância, em todo o processo de institucionalização da saúde, pois assu-
miram várias funções, além das que lhes são comumente atribuídas pelas profissões,
destacando-se as funções na administração pública como planejadores, organizado-
res e implementadores de políticas sanitárias e de saúde pública. Foram partícipes,
dirigentes do poder político, pautados pela autoridade do conhecimento técnico e
científico que detinham. O papel do médico destacava-se, ainda, como o produtor e
difusor de conhecimento relacionado à saúde, portanto, atuando também, nas várias
instituições de ensino e pesquisa.
Os profissionais da saúde desempenharam papel central em todos os pro-
cessos de estatização das medidas de prevenção, combate e controle das doenças.
Graças à autoridade científica de que eram revestidos, encarregaram-se dos planeja-
mentos, da organização, da constituição e até da implantação dos serviços médicos
e hospitalares (MACHADO, 1988).
A medicina no século XIX, segundo Marc Ferro (1996), também serviu para
acirrar as disputas entre as potências imperialistas. O objetivo da medicina colonia-
lista, conforme o autor, era proteger a sociedade contra os agentes causadores das
doenças, o que levou à grande rivalidade entre “os Institutos Pausteur, na França, e
Histórias de Doenças 283
em 1905, observou-se que não existiam doenças tropicais em si, algumas de-
las, ou definidas como tais, surgiram igualmente nas regiões temperadas, a
lepra, por exemplo, em suma, se trataria de doenças, quiçá de epidemias, da
pobreza – que só atacavam os indivíduos vulneráveis (Op.cit., p.164).
Zachary Gussow apud Tronca (2000, p.39) afirma que um grande número de
asiáticos, especialmente indianos e chineses, que se dirigiam à Austrália, ao Havaí e
aos Estados Unidos, juntamente com outros asiáticos e negros, eram imediatamente
identificados como população prevalecentemente leprosa e, assim, sofriam perse-
guições e deportações. No novo colonialismo, os hospitais substituíram o papel do
quartel e da igreja.
A descoberta do bacilo causador da lepra pelo norueguês G. Hansen, em
1874, deu uma visão científica para o contágio. Além disso, essa descoberta foi um
marco na história da medicina, por se tratar da primeira prova de que um único
agente poderia causar uma doença. Mais uma vez, o isolamento seria prescrito, sob
uma autoridade diferente da religiosa, mas motivado pela ameaça social que o do-
ente continuou representando.
O século XIX inaugurou “a lepra moderna”,8 a partir das relações estabeleci-
das entre a instituição estatal e suas várias instâncias de poder, os profissionais de
saúde e os portadores dessa enfermidade. Conforme Torres (2002, p.45), um ele-
mento que merece destaque na construção do conceito moderno de lepra é a mútua
relação “entre o conhecimento médico e os interesses da profissão, a dinâmica nacio-
nal e internacional de luta contra a lepra e as lutas de poder dos médicos”.
Partindo da perspectiva descrita anteriormente, buscar-se-á compreender
a realidade da lepra, ou hanseníase, desde a inserção do Brasil no regime político
republicano até o ano de 2013, tendo como foco de análise a trajetória das políti-
cas públicas que foram implementadas tanto para eliminar sua condição endêmica
quanto para solucionar os problemas que envolvem os seus portadores. É disso que
trata o capítulo a seguir.
Considerações finais
8 O conceito lepra moderna foi cunhado pela estudiosa colombiana Diana Obregón Torres (2002,
p.41), com a finalidade de referenciar a doença “desde su descripción como uma enfermedad
infecciosa producida por um microorganismo específico, há sido descuidado por los historia-
dores professionales”.
Histórias de Doenças 285
las potências europeias até a segunda metade do século XIX. Nessa mesma época, a
hanseníase ressurgiu na Europa, simultaneamente ao desenvolvimento das ciências
biológicas e à descoberta dos agentes bacteriológicos como causadores de doenças.
A medicina, então, constatou a eficiência do isolamento contra a transmissão
da hanseníase, e o método foi reintroduzido na Europa, porém, não mais através
de regras fundamentadas em dogmas religiosos, e sim, no conhecimento científico.
Entretanto, nas regiões sob o domínio imperialista, África, Ásia e Américas, com
exceção dos Estados Unidos, o isolamento dos hansenianos manteve as regras reli-
giosas ao lado das que foram introduzidas sob os auspícios da medicina.
Referências
Introdução
E ste trabalho está vinculado aos estudos sobre a expansão da fronteira agrícola
na microrregião de Ceres em Goiás4 e o processo de desflorestamento da região,
resultante da política de colonização agrária promovida pelo Estado Novo (1937-
1945), conhecida como Marcha para o Oeste. A pesquisa sobre a história ambiental
da área florestada da microrregião de Ceres, conhecida na época com região das
Matas de São Patrício, tem como interesse analisar a relação entre os processos de
ocupação humana (no caso colonização e migração) e a sua interação com o meio
natural (as florestas). Os processos de colonização e migração, aliadas a devasta-
ção florestal fazem parte do projeto geral da pesquisa. Assim questionamos: de que
forma as questões relacionadas à história da saúde entram nessa discussão? Qual a
relação mais direta entre os estudos de história ambiental de área florestada, desma-
tada e ocupada no início da década de 1940, e a história da saúde? A princípio, esses
pontos podem parecer temáticas distintas, que exigiria metodologias e olhares dis-
tintos. No entanto, podemos justificar e esclarecer a conexão que fazemos nesse de-
bate. A primeira consideração trata-se do escopo interdisciplinar da própria história
ambiental (WORSTER, 1991; DRUMMOND, 1991; PÁDUA, 2012). Essa disciplina,
que surge nos Estados Unidos na década de 1970, tem como enfoque a ampliação do
campo historiográfico, sobretudo, na inclusão das questões ambientais como foco
do olhar do historiador (PÁDUA, 2012; CRONON, 2003). O segundo ponto é a rela-
ção entre os processos de colonização e migração e a sua consequente conexão com
a temática da fronteira e os processos de ocupação territorial, em que as condições
naturais e os enfrentamentos com o mundo natural, ou a Wilderness (NASH,1982)
são elementos fundamentais de análise. E nesse sentido, os enfrentamentos com as
febres e os males do sertão, ou da fronteira, são temas fundamentais para a investi-
gação da relação entre história e natureza. Outro fator, e que aqui insere-se a nos-
sa discussão, é o papel daquilo que consideramos como “medicina pioneira”, e que
será apresentado adiante, em que as temáticas propõem um diálogo estreito entre a
História Ambiental, a História da Ciência, a História da Saúde.
Nesse sentido é importante apresentarmos o que consideramos como
“Medicina da Fronteira”. Um conceito ainda em construção, mas que utilizamos na
orientação para a identificação do sentido da prática médica exercida por um con-
junto de profissionais da saúde que se voluntariavam nessa atividade durante o pro-
cesso de expansão da fronteira, sobretudo nas décadas 1940 e 1950. São os processos
médicos relacionados com a expansão da fronteira, às migrações humanas e as po-
líticas de colonização. Outro fator que vai caracterizar a “Medicina da Fronteira” é a
sua vinculação com o ethos protestante, ou à medicina como vocação.
Também consideramos como parte da categoria analítica da medicina pio-
neira o que os próprios médicos, em muito de seus depoimentos e relatos memo-
rialistas consideravam como o sentido pioneiro, ou vocacional, da sua ação. Um
médico pioneiro, em termos gerais de categorização, poderia ser considerado aquele
que se obtêm uma formação médica em centros importantes de medicina, mas que
não se “aventura” em trabalhos onde a prática médica é precária, onde existem sé-
rios casos de patologias e carência de medicina. Esse médico pioneiro, portanto,
Histórias de Doenças 291
exercício. Da mesma forma que o ócio assumia um sentido imoral e que deveria ser
combatido. Essa visão de mundo não nasce naturalmente, mas tinha em Weber um
longo e árduo processo cultural, e que, portanto, poderia ser explicado pela “ciência
da cultura” (WEBER, 2003). O objetivo da ciência da cultura seria a busca pelos
significados das ações sociais dos indivíduos, cuja objetividade geral era vista como
impossível, utilizando para tanto o caminho da subjetividade. Weber (2003) defen-
dia a objetividade por meio da redução da realidade empírica da realidade social à
determinadas leis, com as seguintes recomendações: i) que o conhecimento de leis
sociais não poderia ser entendido como um conhecimento do “socialmente real”,
mas um meio auxiliar; ii) e também que nenhum conhecimento dos acontecimen-
tos culturais pode ser concebido a priori, mas deve considerar e se fundamentar na
“significação” que a realidade da vida se apresenta nas configurações individuais, no
sentido que elas tem para os indivíduos em sua forma de agir, de se relacionar com o
mundo e com as outras pessoas (WEBER, 2003). Portanto, os comportamentos, ou
o sentido desses comportamentos eram fonte fundamental para o que Weber con-
siderava como ciência da cultura. A ética protestante, o significado que o agir desse
grupo tinham, bem como as orientações desse agir foram elementos utilizados por
Weber (1999) e que nos auxiliam a compreender a “Medicina Pioneira” vocacionada
por um grupo de médicos protestantes e sua atuação em Goiás.
Para Keller (2014), em consonância com as concepções weberianas, Calvino
via o trabalho como uma vocação e uma forma de demonstrar a relação como o
Criador e a comunidade. Nesse sentido, compreendia que o indivíduo era chama-
do a exercer a sua vocação, e que todo e qualquer forma de trabalho (vocação) era
preciosa aos olhos de Deus. A ética protestante do trabalho recai sobre um serviço
como um fim em si mesmo, que desemboca num bem ao mundo onde a frugalidade
deve ser experimentada, pois, segundo Weber a “velha atitude de lazer e conforto
para com a vida deu lugar à rija frugalidade” (1999, p. 44). Portanto, consideramos
que, de todas as formas de trabalho como vocação, a prática médica é que talvez
melhor exemplifique esse chamado. Sobretudo nas orientações calvinistas em que
a relação com o criador se processava não pelo clero. Alguns puritanos, inclusive,
tinham grande aversão à atividade clerical. Assim, uma forma de expressar a sua
vocação, ou seu chamado, era exercendo bem o seu trabalho. Por isso que, o traba-
lho missionário era concebido não como uma forma de catequização exercida por
membros do clero, mas pela prática leiga no exercício de um determinado trabalho,
tido como vocacional. A medicina foi uma das principais atividades missionárias
Histórias de Doenças 293
exercidas sob a orientação desse princípio. Nesse sentido é que a medicina como
vocação considera os processos valorativos da moral do trabalho no exercício pro-
fissional e na forma de exteriorização dos valores culturais que constituem um de-
terminado ethos.
Holanda (1995), baseando-se na tipologia weberiana, apresenta as categorias
“trabalhador” e “aventureiro” como modelo de análise da relação entre o homem e o
trabalho. Nessa compreensão, o autor elabora os princípios que regem essas catego-
rias, evidenciando que a formação social brasileira foi regida, segundo essa propor-
ção tipológica, muito mais pelos princípios da aventura do que pela moral do traba-
lho. A colonização aventureira se caracterizava pela busca de resultados imediatos
e pela conquista de riquezas em curto prazo, à custa de investimentos despojados e
através do desbravamento que dava pouco crédito às adversidades e aos confortos.
Já a colonização regida pela moral do trabalho, caracteriza-se pela priorização da
atividade utilitária, racionalizando a realização das tarefas e afazeres e ponderando
os caminhos para alcançar os resultados planejados, valorizando práticas que per-
mitiam a manutenção da harmonia social, na representação de um estilo de vida or-
deiro e cujas relações se sustentavam na associação racional dos indivíduos. É nessa
mesma orientação que se estabelece a cidade semeada (orientada pela aventura) e a
ladrilhada (orientada pelo planejamento). Essa construção tipológica concebida por
Holanda teve, no caso específico da análise das representações urbanas da Colônia
e Barranca, um elemento simbólico interessante, e até de certa forma contraditório.
Esse detalhe fica evidente na medida em que as observações são dirigidas para o
campo das lutas simbólicas, ao apresentar indícios de como os discursos, que se
fundamentaram em relações de poder e que, sutilmente, tiveram novos significa-
dos. Por exemplo, a moral da aventura teve uma relação histórica com o espírito
da colonização portuguesa e que, posteriormente foi traduzida no desbravamento
territorial das bandeiras. É nessa mesma lógica que a Marcha para Oeste teve no
bandeirismo o seu referencial simbólico e nos pioneiros a sua tradução contempo-
rânea. Entretanto, no processo de ocupação e povoamento da CANG, outros ele-
mentos foram trazidos para o campo das lutas simbólicas, colocando os pioneiros
em contato com um novo princípio de sociabilidade e racionalidade. Assim, apesar
do processo de deslocamento populacional ter sido orientado pela “moral da aven-
tura”, a racionalidade da ocupação processou-se a partir da “moral do trabalho”. Esse
artigo trabalha com a hipótese de que o papel do campo médico – aliado ao ethos
protestante e ao background da “medicina pioneira”, uma medicina como vocação e
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
294 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
com forte orientação missionária – foi fundamental na luta simbólica pela constitui-
ção da lógica do espaço social.
A relação entre sujeito, experiência e consciência, ponto chave da discussão
histórica em Thompson (1981) foi apropriada também por Ginzburg (1989). Se
para Thompson a experiência é um elemento estruturado pelo universo social e a
consciência é o resultado da relação do sujeito com sua experiência, para Ginzburg,
a compreensão das experiências do sujeito histórico dá-se a partir da apropriação
dos traços distintos dos indivíduos passíveis de interpretação. Ambos buscam a re-
lação do universo micro (sujeito) e macro sociais (estrutura), desconsiderando os
determinismos. Assim, histórias paralelas e marginais podem ser apreendidas em
sua inserção nos contextos mais gerais, da mesma forma que a consciência (univer-
so micro) tem uma relação direta com as experiências sociais (universo macro). A
consciência histórica apresenta-se como um dos elementos da cultura, manifestado
na articulação temporal do agir pragmático, orientando os sujeitos para a percepção
do seu passado, para agir no presente e para a projeção do futuro. A ação social dos
indivíduos está relacionada com a cultura histórica por ser a referência existencial
que vincula uma consciência de pertencimento a uma coletividade, bem como a
identificação da própria individualidade dos sujeitos (MARTINS, 2002). Portanto,
a cultura é compreendida, ao mesmo tempo, como elemento identificador e de dis-
tinção, na descoberta incontestável de si mesmo e dos outros, orientando as práticas
sociais, na medida em que essa ação parte de uma consciência histórica.
-se, posteriormente, para Goiás, onde trabalhou o restante de sua vida como médico
missionário. James Fanstone faleceu em Anápolis em 1987.
O trabalho médico na CANG teve início por meio da influência do Dr.
Fanstone, bem como sua participação na constituição e na indicação dos pioneiros
para o trabalho com a medicina naquela área de colonização em Goiás na década de
1940 (ABREU, 2000). Outro fator fundamental é a conexão que o Dr. Fanstone estabe-
lecia entre a medicina e o trabalho missionário, atuando numa rede internacional de
missões protestantes. O primeiro médico a trabalhar na CANG foi o Dr. Jair Dinoah
de Araújo, que já havia visitado à Colônia em companhia de Bernardo Sayão.
O Dr. Jair Dinoah, que era presbiteriano, assim como Dr. Fanstone, veio para
Goiás para trabalhar no Hospital Evangélico Goiano. Em 1945, Jair foi indicado por
Fanstone para iniciar a construção do Hospital da CANG e para trabalhar, sobre-
tudo, no combate à malária e à febre amarela, cuja epidemia assolava essa área de
grande fluxo migratório e de colonização agrícola. Outros médicos, também de ori-
gem protestante, tiveram contato com o Dr. Fanstone e vieram trabalhar no Hospital
da CANG, como os médicos batistas Domingos Mendes da Silva e Isaac Barreto
Ribeiro, e Dr. Álvaro de Melo, origem congregacional (Cristã Evangélica).
O trabalho desempenhado pelo Dr. Fanstone em Anápolis, que desde a cons-
trução do Hospital Evangélico em 1927 e a chegada da ferrovia em 1935, tornava-
-se o centro catalizador de uma rede de saúde vinculada a instituições protestantes
missionárias brasileiras e internacionais. A partir de Anápolis e dos trabalhos co-
ordenados pelo Dr. Fanstone, um conjunto de ações de suporte logístico e de ou-
tras categorias como apoio a projetos de combate à hanseníase, doenças de chagas,
malária, febre amarela, dentre outras doenças. Também apoiou e treinou médicos e
enfermeiras que atuariam em diferentes regiões do Centro-Oeste brasileiro. No caso
da CANG, sua participação foi efetiva no apoio médico nos primeiros anos de colo-
nização, bem como na indicação e no envio de outros médicos para o trabalho pio-
neiro nessa área de colonização agrícola de grande fluxo migratório. Consideramos,
nessa abordagem fazer uma breve descrição biográfica de James Fanstone e o seu
background missionário. Por isso, consideramos fundamental apresentar referên-
cias da biografia do seu pai, o Reverendo James Fanstone (1851-1937) que atuou
como missionário no Brasil, e que, de certa forma, influenciou o filho a retornar da
Inglaterra para trabalhar como médico no país onde havia nascido.
James Fanstone era filho de missionários ingleses e nasceu em Recife no dia
08 de agosto de 1890. Ele recebeu o mesmo nome do pai, o Rev. James Fanstone, que
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
296 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
veio ao Brasil assumiu o posto de missionário deixado por Percy Bowers, missioná-
rio inglês que faleceu de febre amarela no vigésimo primeiro dia após sua chegada
ao Brasil (FANSTONE, 1972).
A relação entre a medicina como vocação e a prática missionária teve como
representante pioneiro o médico Robert Kalley. O Dr. Fanstone, em relato memo-
rialista procurou relacionar o trabalho do Dr. Kalley com o chamado missionário
do seu pai, ao afirmar que: “To visualize the type of missionary work to which Mr.
Fanstone was called, it is necessary to know something of the title known but fascina-
ting life work of Dr. Robert Kalley, the first pioneer missionary to Brazil” (Fanstone,
1952, p. 22). Kalley era um jovem médico de Edimburgo, Escócia, e que ira servir
como missionário na China. Em 1833 aportou em Funchal, na Ilha da Madeira,
devido a problemas de saúde. Lá ele trabalhou como médico particular e começou
a dar aulas em inglês. Ao mesmo tempo familiarizou-se com a língua portugue-
sa. Proibido de trabalhar na Ilha da Madeira e sendo perseguido pela intolerância
religiosa, Dr. Kalley retornou para Inglaterra e depois foi para os Estados Unidos
onde trabalhou por cerca de dois anos visando construir uma colônia cristã portu-
guesa no Estado de Illinois. Mais tarde sentindo que estaria habilitado a exercer seu
trabalho no Brasil chegou, no Rio de Janeiro, em maio de 1855, acompanhado da
esposa. A partir do trabalho no Rio de Janeiro fundou uma comunidade protestante
em Pernambuco no ano de 1873. Foi nesta pequena comunidade que o Rev. James
Fanstone foi designado como missionário em 1879 (FANSTONE, 1972).
Os relatos de James Fanstone (1952) sobre a relação entre o projeto missio-
nário do seu pai, Rev. Fanstone, e o projeto missionário do Dr. Kalley, evidenciam
alguns elementos que aparecem na sua própria biografia e que as suas narrativas
memorialistas confirmam. Ou seja, Fanstone parece procurar justificar essa cone-
xão, reforçando as suas orientações como médico missionário no Brasil, o seu país
de nascimento.
Depois de certo tempo trabalhando na obra missionária em Pernambuco, o
Rev. Fanstone retorna à Inglaterra e se casa com a missionária escocesa Elizabeth
Baird em 01 de março de 1886, retornando ao Brasil no mesmo mês. Em 1891 os
Fanstones voltaram a Inglaterra de licença, levando consigo os dois filhos nasci-
dos no Brasil. James Fanstone havia nascido no ano anterior, mas não tinha sido
registrado no país. Segundo depoimento de Henrique Fanstone, “quando meu pai
Histórias de Doenças 297
tinha três meses de idade o meu avô voltou para a Inglaterra para fazer funções
executivas na missão”5.
Retornando à Europa o Rev. Fanstone percorria a Inglaterra e a Escócia
divulgando as necessidades de obras missionárias e assistências para o Brasil e
Portugal, e em 1892 participou na criação da missão Help For Brazil. De acordo
com Matos (2014) dentre eles presentes nessa reunião estavam Sarah Poulton Kalley,
viúva do Dr. Robert Reid Kalley, O Rev. James Fanstone, pastor da Igreja Evangélica
Pernambucana, e o missionário inglês Hudson Taylor, famoso por suas missões na
Índia e o Dr. João Gomes da Rocha.
O Rev. Fanstone passou os próximos doze anos ou mais cruzando o atlântico
mais de vinte vezes. A Conferencia Missionária de Edimburgo, realizada em 1910,
teve como resultado a constituição da Missão responsável pelas obras filantrópicas
de construção de leprosários e assistência médica aos leprosos em Goiás. Além dis-
so, representou a vinda de um grupo de missionário para o Brasil, como o casal
James e Daisy Fanstone, Josiah e Rittie Wilding, Archibald e Bonina Tripple e Moris
Bernard, que atuaram diretamente no trabalho médico missionário ligado à consti-
tuição dos leprosários (SILVA L., 2013; MATOS, 2014).
Em 1913 foi fundada a Evangelical Union of South America (UESA) e a Help
For Brazil e outras agências missionárias menores como a Patagonian Missione a
South American Evangelical Mission foram unidas nesta nova Sociedade. O Rev.
Fanstone foi liberado de muitas responsabilidades, sobretudo no campo missioná-
rio, continuando como membro do conselho dos UESA. Em 1919 ele se aposentou
e faleceu em 1937 (FANSTONE, 1972).
O jovem James Fanstone demonstrava desejos de continuar a obra do pai,
sobretudo como médico missionário no seu país de nascimento. Relacionava as suas
memórias de infância na Inglaterra aos relatos do pai sobre o Brasil e a suas belezas
naturais, como uma coleção de borboletas coletadas no país. O Rev. Fanstone tinha
feito uma coleção de alguns dos mais belos exemplares de borboletas do Brasil e
que apresentou ao British Museum. Relatou ainda que o pai havia levado do Brasil
para a residência dos Fanstone na Inglaterra, pássaros, macacos, tartarugas e uma
vez até mesmo um pequeno crocodilo, que foi repassado para o Brighton Aquarium.
Nos pequenos cadernos de bolso do Rev. Fanstone, que abrange alguns destes anos
de viagem e ausência de casa, são encontrados breves relatos dessas catalogações
sar alguns meses na Glasgow Bible Training Institute para treinamento teológico. No
período de estudo em Glasgow, Fanstone conheceu Josiah Wilding, que era casado
com a médica missionária Dr. Rittie Buchan e pai do Dr. Joe Wilding, também mé-
dico missionário e que trabalhava com indígenas da Ilha do Bananal (FANSTONE,
1972, p. 58). Esse contato reforçou nele a intenção em escolher o Brasil como país
para o exercício da medicina.
Em julho de 1922, Fanstone casou-se com Ethel Marguerite Peatfield, e em
agosto do mesmo ano retornou ao Brasil, desembarcando no Rio de Janeiro. Logo
em seguida mudaram-se para São Paulo onde passaram dois anos aprendendo a
língua, viajando para obter a qualificação no Brasil nas áreas terapêuticas, farmaco-
logia e patologia na Faculdade de Medicina de Belo Horizonte. Ao mesmo tempo,
fazia consultas sobre a sua possível mudança para o Centro-Oeste brasileiro como
o seu novo campo de atuação (FANSTONE, 1972). Em 1924, mudou-se definiti-
vamente para Anápolis, onde inaugurou o Hospital Evangélico Goiano em 1927,
fazendo todo serviço de engenharia, arquitetura e supervisão da obra. Em 1932,
ele participou da fundação do Colégio Couto Magalhães. James Fanstone fundou
em 1933 a Escola de Enfermagem Florence Nightingale, que foi reconhecida como
escola de nível superior em 1947 pelo governo federal, sendo a terceira nesse nível a
ser criada no Brasil. Participou da fundação da Associação Educativa Evangélica em
1947, que atualmente é a Mantenedora do Centro Universitário de Anápolis, cinco
Faculdades e três Colégios. A partir da estrutura médica construída em Anápolis,
James Fanstone funcionou como mediador na vinda de médicos e enfermeiras da
Inglaterra, Escócia, Estados Unidos e Canadá para trabalhar no Hospital Evangélico
e também atuarem como professores na escola de enfermagem. Também, favorecia
o intercambio entre médicos estrangeiros que tinham desejo de passar pequenos
períodos de estudo no Brasil. Pelo contato com o Dr. Fanstone, planos médicos fo-
ram elaborados e profissionais da saúde foram enviados a Ceres (CANG), Brasília,
Goiânia, Rio Verde, dentre outras, sendo que alguns destes contatos foram funda-
mentais para a expansão da rede médico-hospitalar na região central do Brasil.
Fanstone trabalhou na medicina até o final de sua vida, recebendo impor-
tantes homenagens, condecorações e honrarias, como a que recebeu em 1951,do
Rei George VI, da Inglaterra, conferiu-lhe condecoração pelos trabalhos prestados
como assistente médico na clínica de Lord Dawson, no início da carreira, e pela
livre docente da Cadeira de Medicina Tropical na London University, e também pelo
trabalho como Capitão-Médico no Exército britânico, na Royal Medical Corps, em
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6 Uma grande dificuldade encontrado na pesquisa das doenças tropicais na Cang é a falta de
documentação, tanto no que se refere à documentos oficiais da colonização, quando por pron-
tuários e outros registros médicos no Hospital da Cang, atualmente o Hospital São Pio X.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
302 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
Missões Nacionais da Convenção Batista Brasileira exigia que ele fizesse um curso
teológico e tivesse dedicação exclusiva. Em contato com o Dr. Fanstone em Anápolis,
ele recomendou ao médico baiano, utilizando argumentos fundamentados na me-
dicina como vocação, servir como missionário por meio do exercício da medicina
(LEAL, 2008). Assim, com esse objetivo ele parte para a CANG, trabalhando como
um dos médicos no Hospital da Colônia, iniciando uma carreira médica na cidade
que durou até o final de sua vida. Tempos mais tarde, Dr. Domingos e D. Eudméa
foram reconhecidos como Missionários Honorários da Junta de Missões Nacionais
da Convenção Batista Brasileira, por seus serviços prestados na assistência a saúde
de pastores, missionários e suas famílias.
Em 1949 foi um dos membros fundadores da Igreja Batista de Ceres. Em
1951, após deixar os trabalhos como médico do Hospital da Cang, iniciou a cons-
trução de seu próprio hospital. Em 1953 passou a ser Membro da Associação
Médica Brasileira, sob o número 6130. Nesse mesmo ano fundou a Escola Goiana
de Auxiliares de Enfermagem, posteriormente, Escola Técnica de Enfermagem de
Ceres, tendo como Diretora a enfermeira Eudméa Hassel Mendes da Silva, sua es-
posa. Em 1954 o Dr. Domingos Mendes atuou no atendimento aos empregados da
construção da Rodovia Anápolis-Miracema, posteriormente denominada de Belém-
Brasília. Em 1955 ele foi eleito como o primeiro Prefeito de Ceres, agora município
emancipado da extinta Colônia Agrícola Nacional de Goiás. Foi ainda eleito como
Deputado Estadual por Goiás em 1962atuando na Comissão de Saúde Pública e
Assistência Social. Teve grande atuação política, sobretudo em pautas relacionadas à
saúde e à educação em Ceres e em Goiás. Foi professor, fundador e primeiro Diretor
do Colégio Estadual de Ceres; professor do Colégio Álvaro de Melo, da Faculdade
de Filosofia do Vale do São Patrício e Membro Dirigente da Associação Educativa
Evangélica desde a década de 1950.Faleceu em Ceres no dia 22 de novembro de 2006
(LEAL, 2008).
Outro médico pioneiro foi o Dr. Isaac Barreto Ribeiro (1924/2015) que tra-
balhou entre os anos de 1949 a 1956 na CANG, transferindo-se para Brasília, onde
foi um dos médicos pioneiros a trabalhar na nova capital brasileira. Dr. Isaac nas-
ceu no estado da Bahia em 1924. Na década de 1940 ele ingressou na Faculdade de
Medicina de Minas Gerais, Belo Horizonte. De acordo com Vieira (2007, p. 124) a
sua “vocação para a medicina e para o trabalho no interior, onde, […], não havia
muitos médicos, aflorou desde sua juventude. Dividindo as aulas com estudantes
em sua maioria de origem mineira, demonstrava inclinação para o campo médico-
Histórias de Doenças 303
Enquanto caminhava com a família por entre as barracas, Isaac ficou magne-
tizado. Cerca de mil pessoas já circulavam pelo local. Era isso mesmo que ele
queria, não continuar em Ceres […] Via o quão necessário seria seu trabalho
durante a construção de Brasília, com gente de todo o país e de todas as con-
dições sociais, a maioria trabalhadores pobres, sujeitos às doenças endêmicas
do interior goiano – esquistossomose, malária, tracoma, bócio, leishmaniose,
doença de Chagas – e as doenças naturais do cotidiano hostil que viveriam
(TÉRCIO, 1997, 61).
O Dr. Isaac, como um dos médicos pioneiros em Brasília, teve que lidar com
diferentes patologias em sua prática médica. No entanto, um dos seus grandes lega-
dos foi o combate à doença de Chagas, com publicações em diferentes revistas de
medicina, desde o tempo em que trabalhava com médico na CANG. Também se
tornou em uma das referências nessa área no país, apesar de se considerar como um
médico sertanejo que vivia no coração do Brasil e isolamento dos grandes centros
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
304 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
de cultura (VIEIRA, 2007; KROPF, 2009). O Dr. Isaac faleceu no dia 07 de maio de
2015 em Brasília.
Os médicos citados acima, tiveram grande relevância no trabalho com do-
enças tropicais nas primeiras décadas da colonização na região das matas de São
Patrício em Goiás, com destaque para os três médicos citados. No entanto, a relação
destes com o espaço social extrapolou o campo da medicina e sendo importante
na constituição dos habitus e da formação do espaço social na CANG. A atuação
desses agentes de saúde na CANG estava ligada, ainda, à constituição do espaço so-
cial, controlado por uma rígida disciplina dos usos dos espaços públicos. Portanto,
estabeleceram, com apoio do administrador da CANG, as regras de convivência,
bem como as proibições de determinadas práticas no cotidiano da colônia (como a
proibição do meretrício, festividades, a venda de bebida alcóolica e outros códigos
de conduta) estavam relacionados com a concepção protestante dos espaços comu-
nitários7 (STOLL, 2011).
Segundo Bourdieu (1998), no mundo social existem “propriedades atuantes”,
que são as diferentes espécies de força (capital) que agem no espaço social e que
detêm o poder de legitimação simbólica do lugar. Essas propriedades manifestam-se
como relações de força entre os agentes detentores das diferentes espécies de capital
(econômico, cultural, social, político ou simbólico) e que são geradoras do consen-
so – o que reforça o papel desses agentes na representação e percepção do mundo
social. É uma visão objetiva da realidade, socialmente estruturada, em que a visão
estabelecida para o mundo social implicará a atuação dos agentes na ocupação do
espaço e decorrente da influência de lutas simbólicas. Assim, considerando essas
assertivas, a disciplina imposta na CANG não pode ser compreendida como uma
imposição dominante, contrária à “consciência de classe”, mas com o que Bourdieu
(1998) define como “inconsciência de classe”, que seria a conformidade com a posi-
ção ocupada no espaço social na legitimação da visão do mundo social. Para o autor,
o “sentido da posição”, é o sentido do que se pode ou se não pode permitir a si mes-
mo e aos outros, e “implica uma aceitação tácita da posição, um sentido dos limites
(‘isso não é pra nós’) ou, o que é a mesma coisa, um sentido das distâncias, a marcar
e a sustentar, a respeitar e a fazer respeitar” (BOURDIEU, 1998, p. 141). Porém, mes-
7 Stoll (2011) apresenta como esses elementos estiveram presentes nas colônias puritanas da
Nova Inglaterra. No entanto, sua ênfase é com a agenda conservacionista, sobretudo do grupo
congregacional e presbiteriano de Connecticut e sua influência nas origens do ambientalismo
americano. (ver também STOLL, 2015).
Histórias de Doenças 305
mo que essa normatividade não pareça ser uma imposição ideológica, na medida em
que os indivíduos assimilam e reproduzem esses valores em suas práticas cotidianas,
ela reflete um cenário de lutas, em que os sistemas simbólicos apresentam-se para
demarcar os elementos da distinção (consciência do que pertence e não pertence
àquela comunidade).
Indispensável, portanto, o conhecimento não só do mundo social, mas das
categorias de percepção desse mundo, em que o poder de conservação ou transfor-
mação se caracteriza como luta simbólica, regida por “propriedades atuantes” que
estabelecem as representações imaginárias do lugar. E na luta pela imposição da vi-
são legítima do mundo social, os agentes transitam e atuam à proporção do seu capi-
tal. Assim, se as normas que compunham o decreto federal (que exigiam o trabalho
dos colonos nos lotes de assentamento agrário e o cumprimento de boa convivência
com os demais, sob pena de serem expulsos na área de colonização) não eram explí-
citas em relação às condutas sociais, a não ser no sentido da “perturbação” da ordem
pública, de onde se originaram essas proibições? É claro que elas se originam dos
agentes administradores, mas não é essa a questão. Ou seja, os pioneiros afirmavam
que essas normas eram impostas por Bernardo Sayão, administrador da Colônia
(“Bernardo Sayão não permitiu”, ou “Foi o Sayão quem estipulou”). Mas sabemos
que existiam prerrogativas legais para a exclusão (Decreto Lei 3.059/1941), e que
em parte o conteúdo era muito subjetivo, o que permitia a interpretação por parte
dos agentes locais. Portanto, a questão era saber de onde partiram essas orientações,
ou quais eram as representações imaginárias que se impuseram para a construção
simbólica do lugar. Ou ainda, quais eram as orientações morais defender uma so-
cialmente ordeira e sadia, do ponto de vista da saúde pública? Ao mesmo tempo,
de onde vinham às orientações para o combate às casas de jogos, à malandragem, a
bebida e a prostituição? De onde se originaram essas regras? Quais as representações
simbólicas e imaginárias que objetivavam estabelecer para o lugar? Ou, qual o papel
dos médicos protestantes na construção simbólica do espaço social da CANG?
Destacamos duas referências que podem explicar a constituição do padrão
de valores instituído na Colônia, sendo a primeira resultante da atuação do cam-
po religioso e a segunda originada nos conteúdos ideológicos do Estado Nacional.
Essas referências ajudam a esclarecer os traços da distinção desejada, e também in-
dicar como essas coerções determinaram práticas e estilo de vida na comunidade
da Colônia. A moral religiosa, e sua circulação como capital simbólico na Colônia,
aparece evidenciada nos relatos memorialistas, e também nos estudos realizados
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
306 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
por Pessoa (1999), que fez um trabalho antropológico sobre o campo religioso na
CANG. Porém, diferente dos estudos de Pessoa (1999), que se concentraram na
análise do campo religioso, entendemos que não foi apenas a atuação isolada do
campo religioso que estabeleceu esse conteúdo moral de sociabilidade, mas esse
campo ajudou a reforçar uma conduta moral que repercutiu nas práticas sociais do
lugar. Primeiro, porque já existiam previamente, determinações normativas acerca
da conduta dos colonos, e segundo, porque o campo religioso contribui em qualifi-
car essas condutas e não em estabelecê-las. Também, porque outras orientações de
ordem ideológicas ajudaram a qualificar os padrões de sociabilidade aceitáveis, são
sendo estes impostos exclusivamente pelo campo religioso. Portanto, esses padrões
morais de conduta social não foram resultantes da imposição religiosa dominante,
mas surgiram motivados e orientados por fatores culturais que historicamente se
encontraram na colônia goiana.
Nas narrativas orais (DUTRA E SILVA, 2008) os pioneiros reforçavam as
normas de conduta, afirmando que, além de serem impostas por Bernardo Sayão
(agente do Estado Novo), tiveram a influência dos grupos religiosos. No depoimento
do Sr. Philemon, um agrimensor que acompanhou Sayão no desenho da planta ur-
bana de Ceres, ele ressaltou que o colono instalado na CANG teria que se enquadrar
nas exigências locais (“trabalhar e produzir”). Ele afirmou que as normas cotidianas
eram rigorosas com a conduta dos colonos e que a “parte religiosa sempre apoiava
a ideia do Dr. Sayão” (Silva, 2008). A “parte religiosa” da Colônia foi evidenciada
também em outros depoimentos, indicando, por exemplo, sua influência no estabe-
lecimento das normas de convivência e no controle social exercido sobre as práticas
contrárias à moral do trabalho, dentre outras.
Para o médico pioneiro, Dr. Jair Dinoah, a Colônia permitiu a circulação de
variadas ramificações religiosas, que tiveram trânsito entre a sociedade local, sem,
contudo, apresentar o monopólio de uma determinada denominação:
Aqui se formou uma cidade cosmopolita. Veio gente de todo lugar. Gente
protestante, gente espírita, gente de todas as religiões. Então, aqui era uma re-
gião que ninguém podia comandar. Uns eram crentes, outros católicos, aquele
era espírita, e finalmente essa “miscelânia” de religiões evitou que houvesse o
feudalismo de uma religião.
pelos pioneiros como o fator positivo da colonização, em que a cidade se formou com
grande influência dos setores religiosos que ajudavam a definir as relações sociais na
CANG. Apesar das diferenças identificadas na composição do campo religioso na
Colônia, esses grupos tiveram como ponto comum a identificação dos elementos
que iriam constituir as regras de conduta naquela sociedade em formação, em que a
moral do trabalho e a convivência fundamentada nos “bons costumes” foram uma
das principais bandeiras levantadas pelos grupos religiosos estabelecidos. Outra ca-
racterística era que não existia uma neutralidade em relação aos demais campos
sociais atuantes na Colônia, e o campo religioso tinha uma grande penetração, prin-
cipalmente por parte do grupo católico e protestante. De acordo com o relato do Sr.
Jonatas Carvalho, um comerciante pioneiro da CANG:
A vida religiosa aqui sempre predominou. Sabe, foi muito importante. Tanto
a católica quanto os protestantes. Isso aqui era cidade religiosa. Então?! Aqui
é uma cidade religiosa, uma cidade, assim, que não é tão tumultuada, tão ba-
dernada como é muita cidade aí, que a gente não tem liberdade quase, e é um
perigo danado. Isso aqui não tem muita pinga, não tem muita cachaça. Então,
foi uma cidade criada dentro dos termos religiosos aqui.
traços como se existissem, ou mesmo para reforçar um passado que fazia questão de
afirmar (DUTRA E SILVA, 2008).
A atividade religiosa na Colônia estava vinculada a grupos missionários,
nacionais e estrangeiros, sendo que algumas missões já circulavam na região antes
mesmo da colonização federal e outras acompanharam a imigração no início da
década de 1940. Dentre as formações religiosas pioneiras destacaram-se os católi-
cos, presbiterianos, congregacionais (cristãos evangélicos) e os batistas. Os católicos
tiveram uma forte atuação desde a origem da colônia, pois Bernardo Sayão, além de
professar a fé católica, recorria muitas vezes a párocos de Anápolis e Jaraguá para
que assistissem aos fiéis na CANG. A presença franciscana na Colônia data de 1948,
ano em que a paróquia foi entregue aos frades vindos de Nova York, a pedido de
Dom Manuel, arcebispo de Goiânia (PESSOA, 1999).
O grupo protestante era composto por presbiterianos, congregacionais (ou
cristãos evangélicos, como eram denominados) e batistas. Na Colônia o trabalho
presbiteriano teve início em 1942 na zona rural, e em 1950 os missionários James R.
Woodson, Theodore Richard Taylor, David Lee Williamson e Waldemar Rose cria-
ram a primeira congregação presbiteriana na sede urbana, transformada em Igreja
em 1952. Os presbiterianos se destacaram na área médica, com apoio do médico in-
glês Dr. James Fanstone, fundador do Hospital Evangélico de Anápolis e que presta-
va serviços na Colônia desde a vinda de Bernardo Sayão. O médico pioneiro, Dr. Jair
Dinoah, pernambucano recém-formado, também era presbiteriano, e foi indicado
pelo Dr. Fanstone para auxiliar nos trabalhos de fundação do hospital da Colônia.
A Igreja Batista instalou-se na Colônia por intermédio de colonos mineiros
vindos da cidade de Araguari em 1942. Um representante de destaque da congre-
gação batista foi o médico baiano Dr. Domingos Mendes da Silva, que teve gran-
de influência na vida social e política da Colônia, fundando na cidade um hospital
e uma escola de enfermagem na década de 1950. Apesar de ter sido fundada por
brasileiros, os batistas tiveram a assistência de missionários norte-americanos, que
na década de 1950 ajudaram a construir uma escola agrícola em Ceres, conhecida
como “Escola Batista”, administrada por Horace Wilson Fite e Salle Ann Fite, que
vieram do Texas para a CANG.
Os congregacionais (Igreja Cristã Evangélica)iniciaram o trabalho na região
por meio dos missionários pioneiros Bannyster Forsyth e Arthur Wesley Archibald
(este, assim como Fanstone, estava vinculado a UESA) que em 1946 promoveram
o trabalho missionário na sede da Colônia, instalando uma congregação na região.
Histórias de Doenças 309
[…] quase sempre, aparecia a religião dos padres querendo extinguir ou, pelo
menos, disciplinar as práticas religiosas dos colonos. Haja vista a persegui-
ção sofrida pela folia de reis, ordenada pelo bispo Dom Cândido Penso a to-
dos os padres da prelazia, na carta pastoral para o ano de 1952, denominada
“Faculdades Ordinárias e Extraordinárias”. Um franciscano que trabalhou
em Ceres de 1950 a 1956 confirma que seguiram “a risca” essa determinação,
dizendo: “os padres faziam pregação contra para não benzer as bandeiras e
quase excomungar. A parte moral era ruim, tinha bebedeira. Os freis foram
rigorosos nisso”. No mesmo depoimento, o já idoso frade diz que a folia de
reis era proibida não só pela Igreja, mas também pela lei civil, porque, além da
bebida, a folia tinha o inconveniente de o folião abandonar o serviço durante
todo o tempo do giro. (PESSOA, 1999, p. 61)
O texto destaca que a “folia” era combatida por desviar os colonos das con-
dutas morais aceitáveis (“A parte moral era ruim, tinha bebedeira”), que além dos
excessos, permitiria ao camponês abandonar suas atividades no serviço, o que evi-
dencia que o trabalho não era apenas uma atividade, mas uma conduta moral, mais
importante do que as festividades e os rituais religiosos. Também o protestantismo
presente na Colônia valorizava um modelo de conduta social semelhante, com a
influência missionária inglesa e norte-americana sobre as normas e as condutas so-
ciais. A escola e a igreja estavam presentes na comunidade, evidenciando uma nova
simbologia da religiosidade, que valorizava a educação, não apenas no estabeleci-
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
310 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
mento das crenças, mas também como um meio de impor valores e concepções,
interferindo nas práticas cotidianas daquela sociedade.8
Os médicos pioneiros na Colônia eram de origem protestante. O presbite-
riano Jair Dinoah de Araújo; os batistas, Domingos Mendes da Silva e Isaac Barreto
Ribeiro; e o congregacional (Igreja Cristã Evangélica) Álvaro de Melo. Para Pessoa
(1999) essa peculiaridade explicava as medidas adotadas pelo administrador no sen-
tido de impor um rigor social na Colônia por meio das proibições e em nome da
“boa conduta”, o que evidenciava a grande influência do campo religioso no campo
político. Para o autor, a “expansão religiosa por meio do atendimento médico, por
presbiterianos e cristãos evangélicos, exerceu influência significativa, do ponto de
vista moral, na organização social emergente” (PESSOA, 1999, p. 57). Na visão do
autor, o controle social imposto na Colônia foi uma concessão feita pelo adminis-
trador a solicitações dos médicos protestantes. No nosso entendimento não ocorreu
uma concessão por parte do administrador, como que se ausentasse dessas prerro-
gativas, mas um conjunto de elementos e orientações simbólicas e ideológicas aglu-
tinou-se para garantir o estabelecimento dos padrões de conduta para o lugar. No
entanto, o campo médico, associado ao campo religioso, regidos por uma “ética pro-
testante” (WEBER, 1999), buscava construir o espaço social a partir dos elementos
simbólicos que compunham os valores essenciais de moral, cultura e comportamen-
to desses segmentos sociais, regidos pelo moral do trabalho. No início do século XX
o saber médico era identificado como o saber legítimo na compreensão da realidade
social. Esse fato foi evidenciado em Goiás, principalmente a partir de 1930, quan-
do no processo de intervenção estadual nos municípios as autoridades municipais
passaram a ser subordinadas às autoridades sanitárias instituídas pelo Interventor
Pedro Ludovico (foi exigido dos municípios destinarem 10% das arrecadações aos
serviços de saúde pública conforme decreto estadual nº 1180/1931). Essa reflexão
apresenta a importância que o saber médico adquire no campo político no período
da Intervenção de Pedro Ludovico durante a Era Vargas.
Considerações finais
Referências
STOLL, Mark. Sagacious Bernard Palissy: Pinchot, Marsh, and the Connecticut
Origins of American Conservation. Environmental History, 16 (January 2011),
p. 4–37.
______. Inherit the holy mountain. Religion and the rise of American environmenta-
lism. New York: Oxford University Press, 2015
TÉCIO, Jason. Os escolhidos: a saga dos evangélicos na construção de Brasília. Brasília:
Coronário Editora Gráfica Ltda, 1997.
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao
pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981.
VIEIRA, Tamara Rangel. Uma clareira no sertão? Saúde, nação e região na constru-
ção de Brasília (1956-1960). Dissertação (Mestrado em História das Ciências e
da Saúde) Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da
Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz. Rio de Janeiro : Fiocruz, 2007
WEBER, Max. A ética protestante o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1999
______. A “objetividade” do conhecimento nas ciências sociais. In: COHN, Gabriel
(org.). Weber. Sociologia. Grandes cientistas sociais. Coleção coordenada por
Florestan Fernandes. São Paulo: Editora Ática, 2003.
WORSTER, Donald. Para fazer história ambiental. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
4 (8), 1991, p. 198-215.
Os depoimentos e o cotidiano da Colônia de
Itanhenga no Espírito Santo: apontamentos
iniciais
Sebastião Pimentel Franco1
Simone Santos de Almeida Silva2
A Lepra é mais frequente do que parece, só não sendo encontrada quando não procurada
Pedro Fontes, médico, diretor da Colônia de Itanhenga/ES
Introdução
gatar parte do acervo presente nos arquivos da Colônia, referente aos familiares dos
internos, médicos, diretores e demais funcionários do hospital de leprosos no ES. O
objetivo é reunir o material coletado, para a criação de um banco de dados de fontes
primárias de diversas naturezas, para tornar disponível a pesquisa on line sobre a
doença no ES em especial sobre a história da lepra.
Ao recolher os depoimentos busca-se também recuperar a memória e a histó-
ria da Colônia de Itanhenga, através dos moradores do leprosário, que ainda residem
no local, realizando entrevistas com internos e ex-internos, funcionários, e médicos.
A proposta é recompor as narrativas das pessoas acometidas, direta ou indiretamen-
te pela lepra, permitindo, trazer à tona pluralidades de vozes que circundam o le-
prosário reconstruindo memórias, produzindo sentido a elas, na medida em que são
narradas e reelaboradas.5 Logo buscamos a recuperação da história da instituição,
das práticas de isolamento, e das políticas de combate a lepra pela interlocução entre
funcionários e administradores do hoje, Hospital Pedro Fontes, dos pacientes e seus
familiares, ressaltando que a relação entre esses agentes são marcadas por momentos
de consonâncias e dissonâncias.
Portanto acreditamos que os depoimentos colhidos na Colônia entrecruza-
dos com os documentos administrativos e prontuários, pontuam, além da dinâmica
de funcionamento do hospital, as práticas cotidianas de internos e funcionários, re-
cuperam a memória e a história da Colônia de Itanhenga.
A aproximação do acervo e das experiências vividas no leprosário, nos mos-
tra inúmeras questões que vão além da doença, restrita ao viés biológico. Permite
recuperar o cenário sócio histórico que envolve a doença, trazendo à tona histórias
Sergio Marlow, Prof. Dra. Simone S. de Almeida Silva, e a doutoranda Tânia Araújo. A pesqui-
sa é realizada junto ao Laboratório de História Poder e Linguagens, no PPGHIS/UFES, e visa a
composição de um banco de dados permitindo a pesquisa em ambiente virtual. Agradecemos
o apoio da atual administração da Colônia de Itanhenga pela acolhida e suporte ao nossa
equipe e também aos “nossos” depoentes que carinhosamente nos receberam aceitando o
desafio de rememorar trajetórias e experiências, impregnadas de sentimentos, sensibilidades,
alegria e dor.
5 Keila Carvalho analisando a questão da memória e sua relação com o as informações passado
e presente, nos brinda como uma análise de Thompson, que traduz com maestria nossa per-
cepção sobre a importância do resgate da memoria. Para Thompson: “as histórias que relem-
bramos não são representações exatas do nosso passado, mas trazem aspectos desse passado
e os moldam para que se ajustem às nossas identidades e aspirações atuais.” (THOMPSON,
Paul. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 57).
Histórias de Doenças 317
6 Natalie Zemon Davis na obra, Nas Margens, estuda o caso de três mulheres resgatando seus
papéis enquanto sujeitos históricos, que se situavam nas margens da sociedade europeia, sen-
do as margens, compreendida como “uma região limítrofe, entre depósitos culturais que per-
mitiam novos cultivos e híbridos surpreendentes” (1995, p. 196).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
318 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
diante de uma fonte que se “cria” sendo assim, é preciso que a “crítica das fontes se
torne imperiosa”, usando as palavras de Pollack (1992, p. 208)
7 O médico Heraclides César de Souza-Araujo foi chefe do Instituto Oswaldo Cruz. Entre
outras funções, Souza-Araujo foi também professor de leprologia na Universidade do Rio
de Janeiro, chefe do Centro Internacional de Leprologia; editor das Memórias do Instituto
Oswaldo Cruz; membro da Academia Nacional de Medicina. Realizou exaustivo inventário
dos estudos sobre lepra, História da Lepra no Brasil, transcrevendo para sua obra, as fontes
pesquisadas. SOUSA-ARAUJO, Heraclides Cesar de. A lepra no Espírito Santo e a sua pro-
phylaxia: a “Colônia de Itanhenga” Leprosário modelo. Memorias do Instituo Oswaldo Cruz, v.
32, n. 4, p. 551-605, 1937.
8 Adiante retornaremos ao tema do funcionamento da Inspetoria de Profilaxia da Lepra.
9 Na pesquisa sobre o médico Pedro Fontes, verificamos que ele se formou na Faculdade de
Medicina da Bahia em 1903, defendendo a tese “Estudo sucinto de uma das modalidades clí-
nicas da demência precoce: a variedade paranoide”. O médico foi para Vitória, em 1927, após
transferência do Serviço de Saneamento Rural do Distrito Federal, assumindo a Inspetoria
de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas no Espírito Santo. No ano seguinte deu início as
ações para a construção de um leprosário na região, que resultaram na fundação da Colônia
de Itanhenga, em 1937.
Histórias de Doenças 319
10 Optamos por manter a grafia, conforme as normas da língua portuguesa da época, em todas
as citações retiradas das obras publicadas na década de 1930 e 1940. Seguiremos este padrão
em todo o texto.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
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prosos avulte e o problema fique mais difícil” (FONTES, 1928 apud SOUZA-ARAUJO,
1937, p. 570).
No cenário nacional, a partir da segunda metade do século XIX segundo
Dilma Cabral (2013, p.13) é que se perceberam, no Brasil, as ações em prol da com-
preensão da lepra e da inclusão da doença na pauta das políticas sanitárias. No en-
tanto a identificação da lepra como parte dos elementos que conformavam o flagelo
da nação se configurou aos poucos nas primeiras décadas do século XX, sendo in-
cluída timidamente nas ações do movimento sanitarista.11
O movimento sanitarista por volta da década de 1920 empenhou-se no com-
bate as endemias rurais, investindo na cura dos doentes do sertão e na sua integração
à nação. Sendo assim, foram empreendidas campanhas de saneamento no interior
do Brasil, promovendo a criação de inúmeras agências voltadas para aplicação das
políticas de saúde pública e de saneamento. (HOCHMAN, 1998, p.60-1).
Desde o ano de 1918 a lepra estava na pauta do relatório da Diretora Geral
de Saúde Pública (DGSP), focado na estruturação de um programa de prevenção do
contágio e de medidas de isolamento.
Porém foi a partir do Departamento Nacional de Saúde Pública (denomi-
nado pela sigla DNSP) que se construiu uma rede de informações por meio das
Inspetorias de Saúde. Este departamento era responsável pelo gerenciamento dos
serviços de saúde nos estados, e tinha entre as finalidades, identificar quantitativo
de doentes mapeando a geografia das doenças. Assim coube ao DNSP, a responsa-
bilidade do cuidado com a lepra no Brasil. A partir dele foi criada a Inspetoria de
Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas, responsável pelas ações e campanhas
de combate a doença no Brasil. A luta contra a lepra tornou-se mais evidente a par-
tir deste contexto, que possibilitou a formulação de um regulamento sanitário que
incidiu fortemente sobre a profilaxia da lepra no Brasil (CABRAL, 2013, p.17-18).
Ao longo das décadas de 20 e 30 a preocupação era cada vez maior com o
trânsito dos doentes de lepra entre os estados e a concentração dos doentes na ca-
pital federal. A migração de doentes e a entrada numerosa de leprosos no Rio de
Janeiro foram importantes temas nos debates dos órgãos de saúde pública neste pe-
ríodo. Segundo Hochman, (1998, p. 153) discutia-se muito sobre a possibilidade de
criação de um grande leprosário nacional, para centralizar os doentes de lepra num
12 Theóphilo Torres considerava grave a ida de leprosos para o Rio de Janeiro, sobrecarregando
o leprosário. Ele publicou um relatório denominado “A saúde pública no Brasil em 1918”,
na Revista Médico-Cirúrgica do Brasil. HOCHMAN, G. A Era do Saneamento. São Paulo:
HUCITEC, 1998, p. 153.
13 CARVALHO, Keila A. Colônia Santa Izabel: a lepra e o isolamento em Minas Gerais(1920-1960).
2012, p. 82.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
322 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
14 Para informações sobre os dados estatísticos, da lepra nas primeiras décadas republicanas, ver
Laurinda R Maciel. “Em proveito dos sãos perde o lázaro a liberdade: uma história das poli-
ticas públicas de combate à lepra no Brasil”, (1941-1962). 2007. Tese (Doutorado em História
Social) – Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro. p. 158.
Histórias de Doenças 323
Minas Gerais e pela Seção de Leprologia do Instituto Oswaldo Cruz. Após visitas aos
leprosários instalados em outros Estados, ficou definido que o modelo a ser seguido
seria o da Colônia de Pirapitingui, de São Paulo, moderno e mais econômico.
A escolha do local a ser erguido o leprosário, foi marcada pela participação
do médico Souza-Araujo, segundo registro realizado por Pedro Fontes em relatório
de 1933. O médico menciona no seu relatório que o projeto de construção, segun-
do sugestão de Souza-Araujo, era baseado no modelo do leprosário de Carville, no
Estado de Louisiana, nos Estados Unidos.15 Nesse leprosário, as habitações eram
coletivas, e situavam num mesmo no mesmo espaço, hospital, dispensário e educan-
dário. Seguindo as orientações arquitetônicas de Carville e adotando os modelos de
construção de outros leprosários, como o de São Paulo, o leprosário de Itanhenga,
estava dividido em três zonas: sadia, intermediária e doente. O objetivo da adoção
deste modelo separação era garantir a integridade das pessoas sadias que prestavam
serviços aos doentes na Colônia.16
A capacidade da Colônia era de 380 internos, mas chegou abrigar em 1942,
cerca de 450 adoentes. Foi construída com 3 áreas distintas: sadia, intermediaria e
doente. Além dos pavilhões de internação dos doentes, o leprosário era constituído
por clinica, laboratório, refeitório e lavanderia. (CYPRESTE, VIEIRA, 2014, p. 39).
As obras da Colônia de Itanhenga foram iniciadas em março de 1934 e custea-
das pelo governo do estado e pela União, com parte do apoio também do município.17
A administração das verbas remetidas para a construção do leprosário ficou a cargo do
médico Pedro Fontes, e a obra, segundo Souza-Araujo, foi modelar, pois apresentava
os elementos necessários para bem atender “todas as faces do problema da lepra, den-
tro da mais rigorosa técnica prophylactica” (SOUZA-ARAUJO, 1937, p.606).
Em 22 de maio de 1935, data comemorativa no Espírito Santo, foi realizada
uma inauguração parcial da Colônia de Itanhenga, num evento que contou com a
participação de membros do clero, do governador do Estado João Púnaro Bley, e do
ministro da educação Gustavo Capanema. Também estavam presentes autoridades
do Espírito Santo, de outras unidades da Federação e do Distrito Federal, entre elas,
o Dr. Ernani Agrícola, representando o ministro da Educação e Saúde Pública, e o
Dr. Souza-Araujo, representando o Centro Internacional de Leprologia (SOUZA-
ARAUJO, 1937).
Ao longo das comemorações de inauguração da Colônia em 11 de abril de
1937, o governador João Punaro Bley, realizou um discurso de inauguração, e ao
longo deste discurso, ele caracterizou a inauguração da Colônia de Itanhenga, como
um ato de “humanitária finalidade”, um ato que resolveria “o problema da segrega-
ção dos morféticos”. (Punaro Bley, apud, SOUZA-ARAUJO, 1937, p. 583)
No ano de 1938, seguindo orientações do Congresso Internacional de Lepra,
o leprosário de Itanhenga investiu na organização da atividade agrícola, e na pecuá-
ria, aproveitando a mão de obra dos internos na produção de alimentos que serviam
ao leprosário e as futuras dependências como educandário e preventório. O objetivo
era que os leprosários se tornassem mais autônomos economicamente, sendo as ati-
vidades agrícolas uma forma dos internos obterem seus ganhos. O trabalho dentro
da Colônia permitia também um efeito terapêutico para os internos e facilitava o
controle e a vigilância “medico-sanitária dos leprosos clinicamente curados” (SOUZA-
ARAUJO, 1937, p. 584).
Conforme o governador Punaro Bley, (apud SOUZA-ARAUJO, 1937, p. 582)
a instalação dos internos no trabalho agrícola propiciava a eles viver num “meio
idêntico ao de onde provieram”, o que aumentava as chances de adaptação dos doen-
tes às necessidades do isolamento.
as pessoas eram pegas na família (…) quando descobriam (…) que tinha pa-
ciente, hanseniano, na família, (…), ia o serviço público lá, (…) pegava essa
pessoas, tirava do convívio e traziam pra cá, [para a Colônia de Itanhenga]
(…). Ah, descobriu que tinha um doente lá no interior Baixo Guandu, Afonso
Claúdio, o serviço de lepra ia lá pegava trazia e botava aqui, isolava aqui né.
Era esse o conhecimento que tinha na época…18
18 O funcionário, aqui denominado Jair, frequenta a Colônia de Itanhenga desde que era meni-
no. Era filho de um dos funcionários do Estado que morava numas das casas cedidas pelo go-
verno para os trabalhadores. Ressaltamos que trocamos os nomes dos entrevistados visando
manter os internos no anonimato.
19 Dona Graça Entrevista n° 11 realizada em 05/04/2016
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
326 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
Nós não falamo nada, minha mãe aceitou, numa boa”. [A mãe disse:] “se é
doente vamo tratar, vamo ”(…) [Sobre a lepra] “não, não sabia o que, que era
não. Nunca sabia o que era. Fui sabê aqui dentro [da Colonia]. (…), nós não
sabia não, nós foi criada na roça.21
dos mecanismos disciplinares. É claro que além do temor, os pacientes, em boa parte
dos casos retornavam, pois havia a questão do agravamento da doença, e da necessi-
dade de manter o uso de medicamentos.
Outro ponto importante registrado nos depoimentos refere-se as dificulda-
des relatadas por alguns internos de permanência fora dos muros da Colônia, passa-
dos um período de internação. Eles relatam que após convivência no leprosário não
“se encaixam” mais no ambiente de origem, tendo dificuldades de convivência social
com o grupo de onde foram retirados. Eles afirmam que fora do leprosário não es-
tavam entre iguais, e assim ficavam expostos aos olhares preconceituosos, notando
inclusive entre amigos e familiares, atitudes temerárias diante de uma proximidade.
A entrevista realizada com o sr. Antônio ilustra essa dificuldade. Ele foi inter-
nado aos 22 anos na Colônia de Itanhenga, após ser diagnosticado através de um tu-
bérculo, durante o trabalho na roça. Antônio foi levado de imediato, para um posto
de saúde em Linhares/ES indo depois para o leprosário, onde vive desde então. Na
entrevista, questionamos sobre como foi o momento em que ele descobriu a doença.
Senhor Antonio nos respondeu:
Pô, pra mim foi o mesmo que ter me matado e ter jogado fora! [porque] na
hora que ele falou que eu estava com essa doença, (…) nós trabalhávamos
lá em 20 tantas pessoas, aquilo acabou tudo! Não eram mais meus amigos,
sumiu tudo! Lá em casa eles não deixaram eu nem entrar na porta mais pra
panhar roupa, tive que vir com a roupa que eu estava trabalhando. (…) eu
nunca mais voltei lá nem pra ver eles, por que eles estavam com medo de mim
né. Ai eu vim pra aqui, mas eu findei bem aqui Graças a Deus (…).
Logo, a rejeição fora dos muros da Colônia a não adaptação dos doentes de
lepra a sociedade, somada ao desejo de logo retornar ao universo do leprosário,
acabam por reforçar as estruturas de funcionamento asilar pautadas na exclusão. De
acordo com as palavras de um dos entrevistados que vive na Colônia de Itanhenga;
no leprosário os internos permaneciam “presos pela doença”.24
termo, infelizes. Ele identifica os pacientes como “creaturas de cujos corações angus-
tiados se esvaneceram todos os sonho de alegria e de esperança” (Punaro Bley, apud,
SOUZA-ARAUJO, 1937, p. 581).
Não é de nosso interesse aqui, refletir sobre os adjetivos utilizados pelo go-
vernador aos doentes, nem mesmo fazer qualquer juízo. Também não pretendemos
alongar a questão em torno da condição emocional dos internos. É certo que a in-
terrupção na vida dos leprosos e de seus familiares, ocorrida de forma tão abrupta,
causou sofrimentos e lhes deixou marcas profundas.
As ações de internamento empreendidas pelo Estado certamente causavam
pânico entre os doentes. Talvez não soubessem exatamente o significado das medi-
das sanitárias, como já dissemos, mas sabiam da temeridade da doença, ou do que
ela representava no meio social. Os leprosos, não compreendiam bem o que era a le-
pra, mas sentiam, na pele, o estigma, sabiam do terror que ela representava no meio
social. Eles tinham medo daquilo que viam ou ouviam sobre os outros doentes de
lepra mesmo estando no leprosário. Os doentes, menos afetados fisicamente, tinham
noção de que aquela doença era marcada por sofrimento, que deixava sequelas e
representava a morte. No dia a dia, temiam os sinais e os sintomas da doença, a evo-
lução e as sequelas da lepra em seus corpos.
O terror acerca da doença sempre foi presente nas políticas sanitárias, per-
meava o discurso que visava disseminar a ideia da importância das ações médicas e
da necessidade de afastamento do indivíduo doente. Conforme destaca Cabral, os
debates levantados pelos sanitaristas eram geradores de uma lógica que identificava
a enfermidade da lepra como um flagelo nacional. O objetivo dos agentes sanitários
foi durante um bom tempo, fazer com que a profilaxia da lepra fosse transformada
numa questão nacional. (CABRAL, 2103, p. 16).
A lepra representava um mal que deveria ser combatido pelos médicos, pelas
políticas sanitárias e em benefício dos sadios. A doença era a representação da morte
que precisava permanecer longe da vista dos sadios, permanecer oculta. Os leprosos
deveriam ser afastados, mantidos distante da sociedade sadia, esquecidos. Eles não
cabiam no cotidiano da sociedade sadia. (OLIVEIRA, 2011, p. 119)
Portanto mesmo que o discurso voltado do combate a lepra se apresentasse
como uma medida de saúde pública, ele carregava consigo a repugnância à lepra e
ao leproso. Ainda que o objetivo fosse a saúde e o bem estar social, as medidas de
combate a doença, propagavam o estigma e o preconceito social contra os doentes
que eram rejeitados pela comunidade na qual estavam inseridos. Os doentes eram
Histórias de Doenças 331
recusados pela sociedade e pelas famílias, por conta do pouco que se sabia sobre a
doença e por conta do muito que se falava em torno dela. Eles eram facilmente iden-
tificados como frágeis, e infelizes, conforme as palavras do governador do Espírito
Santo, o leprosário abrigaria “os infelizes a morphea implacável sella, com seu estig-
ma execrando (Punaro Bley, apud SOUZA- ARAUJO, 1937, p, 582).25
Os homens e mulheres, levados para a Colônia, procediam em grande par-
te de áreas agrícolas, vindos do interior do estado. Eram trabalhadores rurais, por
vezes, donos de pequenas propriedades, vivendo da agricultura e da criação de
animais. Ao serem notificados pelo serviço de profilaxia da lepra deviam seguir as
orientações profiláticas e não tendo a quem recorrer para evitar a ação dos agentes
de internação compulsória.26 Aliás, em muitos casos, seus familiares e empregado-
res eram os primeiros a promover o afastamento do doente, através da dispensa ao
trabalho e da exclusão, alimentados pelo preconceito e pelo o estigma, como vimos.
Os trabalhadores rurais em sua maioria povo simples, sem acesso as letras
e as leis, desconhecedores das políticas de higiene, ficavam a mercê das ações dos
agentes sanitários que atuavam em nome do Estado. Os doentes eram recolhidos
pelo serviço de profilaxia, e encaminhados aos dispensários, onde recebiam trata-
mento e realizavam exames. Em algumas situações, os suspeitos e os familiares dos
doentes eram orientados e registrados para compor os importantes dados estatísti-
cos que as inspetorias de profilaxia da lepra desejavam contabilizar. Em outras situ-
ações os doentes recebiam cuidados e permaneciam em casa, ficando sob controle
das inspetorias, bem como os comunicantes.27
Vimos anteriormente que em muitas ocasiões os leprosos eram subtraídos,
e levados pelo serviço sanitário, como já observou o funcionário da Colônia de
Itanhenga. Vimos nas entrevistas que pais e mães eram separados de seus filhos, e
que não havia informações aos familiares sobre os rumos do doente de lepra após o
recolhimento. Também os doentes retirados do seu convívio ignoravam o destino da
viagem que iniciava, “levados”, rumavam ao desconhecido, guiados por uma medi-
cina científica, também desconhecedora dos resultados futuros que o internamento
compulsório reservava aos doentes.28
Contudo percebemos também que após o período inicial de entrada na
Colônia, superando a dor da separação e a angústia da exclusão, os doentes se in-
tegravam aos outros internos. Aos poucos, começavam uma rotina de tratamento,
cuidado de si e dos outros. Num cotidiano de trabalho, em muitos casos, muito
trabalho, os internos foram construindo algumas possibilidades de reelaboração,
puderam se reinventar. Após a ruptura de suas vidas, da segregação, construíram,
por tortuosos caminhos, um destino diferente daquele delineado pelo interventor
estadual, de “doentes infelizes marcados pela morfeia e execrados pelo estigma”.
Os pacientes internos também refizeram seus laços afetivos, muitos deles ali
trilharam um caminho traçado por si mesmo. Ao longo da permanência no lepro-
sário, conheceram pessoas, construíram amizade se casaram, tiveram filhos, cons-
truíram um patrimônio. Boa parte dos entrevistados, hoje vive com simplicidade,
parte do grupo se apoia financeiramente numa aposentadoria por tempo de servi-
ço e outros vivem do benefício concedido pelo governo aos pacientes internados
compulsoriamente.29
Ao longo dos depoimentos recolhidos, ouvimos as diversas experiências de
internos e ex-internos, não apenas dos que sofreram internação compulsória, mas
também de pacientes que buscaram auxílio na Colônia.
Ouvimos histórias, de pessoas internadas, mas também de pessoas que se in-
ternaram na Colônia e que nesta condição, na margem, puderam reconstituir suas
vidas. Os relatos nos mostraram as diversas experiências e vivências de pacientes,
28 O desconhecimento e a ausência de informações para os doentes era tal que, verificamos, após
o fim da internação compulsória, que havia quem ignorasse, na década de 1980, o fim da obri-
gatoriedade de internação. Esta foi finalizada por decreto em 1962, e significou um problema
para aqueles internos, que ao serem retirados de suas casas, não tinham para onde voltar após
a alta, ocorrida em muitos casos cerca de 20 ou 30 depois.
29 A partir do ano de 2007 o governo federal adotou uma medida provisória que concedeu uma
pensão especial mensal, vitalícia e intrasferível as pessoas atingidas pela hanseníase, que fo-
ram internadas compulsoriamente em hospitais colônias até o ano de 1986.
Histórias de Doenças 333
30 Entrevista n°3 com o Sr. Josué, realizada em 01/03/2016. A prática de remuneração do traba-
lho dentro dos leprosários era permitida, conforme regulamentos criados pelos departamen-
tos estaduais de saúde e pelo DNSP
31 As atividades exercidas no leprosário eram tidas como terapêuticas, colaborando para o de-
senvolvimento físico e mental dos pacientes, são ainda hoje denominadas praxiterapia. A co-
lônia funcionava como uma pequena cidade, onde os serviços de educação e segurança eram
realizados pelos próprios internos.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
334 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
todo fim de semana, carnaval, festa junina também (…) Vinha muitos artista
naquele tempo, Emilinha Borba, vinha Marlene, ah diversos artistas, foi muitos
(..) Cauby Peixoto (…) aqui vinha muito artistas antigamente, cantavam (…).32
tinha vontade de ir embora, fugir, mas eu achei; não adianta eu ir, (…). Eu
tenho que tratar, se eu tô doente eu tenho que tratar, eu não posso ir embora
(…). Eu tomava muito remédio pra modo de eu sarar depressa pra ir embora
(…) mas eu falei se eu for embora vou ficar do jeito dele também [do outro
doente com sequelas], tem que tratar mesmo.33
causas dos parentes, ai foi normal”.34 Ao final da entrevista, nossa depoente afirma
que não se imagina saindo da Colônia, pois já acostumou; ali tem sua casa e seu
emprego.
Outra interna entrevistada também fala sobre a experiência na Colônia de
Itanhenga e sobre as condições de sua ida para o leprosário. Dona Luiza relata que
via a Colônia como uma salvação, um espaço de cura, o destino a ser buscado, por
vezes, revelado ao doente. Durante nossa conversa, foi possível perceber que Dona
Luiza tinha uma percepção escatológica acerca de sua ida para o leprosário.
Relembrando a experiência do internamento ela conta que por volta dos 15
anos, buscou ajuda para se internar no leprosário. Ela foi de trem para Vitória em
busca de atendimento médico. Viajou com uma tia, que não estava interessada em
abrigá-la em Vitória. Em seu depoimento, Luiza nos conta que, insistiu para ir para
Vitória, dizendo para a tia que:
Tenho certeza (…) que Jesus vai me deixar na casa da senhora só quinze dias,
por que Deus vai me mostrar um lugar que eu vou” [para ser atendida pelos
médicos].35
37 Não temos a intenção de esvaziar a experiência de dor e sofrimento que as pessoas com lepra,
internadas compulsoriamente enfrentaram. Muito menos considerar os muitos momentos de
tristeza que passaram e ainda passam, em função da experiência de dor causada pela lepra e
pelos ações dos agentes das políticas sanitárias, a partir da década de 30. No entanto queremos
aqui mostrar outro cenário, possível dentro da experiência dos internos com lepra na Colônia
de Itanhenga. Propomos aqui uma releitura, não polarizada da história da lepra e das práticas
medicas em torno do combate a doença.
Histórias de Doenças 337
cenário que a internação compulsória e a lepra lhes apresentavam. São pessoas que
aprenderam a lutar contra as dores físicas e as limitações do corpo e que driblaram
as dores da alma.
A partir dos depoimentos recolhidos na Colônia percebemos que os doentes
se identificavam com outras histórias similares. E ainda que, encontrassem pacientes
em diferentes estágios da doença, não raro mutilados pelo avanço da lepra, havia um
sentimento comum entre eles; a ideia de que todos que ali estavam, compartilhavam
da mesma história, estavam “no mesmo barco” lutando contra a maré da indiferen-
ça, do estigma e da dor. Ali compartilhavam identidades, e dessa forma reconstruí-
am suas vidas, sua história.
Diante da experiência das identidades compartilhadas, os internos se sentiam
acolhidos, pois estavam imersos entre iguais. Partilhavam semelhantes experiências
de dor, de separação, de necessidade de recomeço de uma nova vida. E segundo
Keila A. Carvalho (2011, p. 83), por mais estranho que possa parecer, as pessoas
inseridas nos hospitais colônias se sentiam acolhidas, ainda que num espaço origi-
nalmente elaborado como espaço de exclusão.
Nossa pesquisa encontra-se em fase inicial de trabalho, e a inserção ao inte-
rior do leprosário, um universo desconhecido por muitos e à primeira vista, marca-
do pela exclusão e preconceito, nos apresentou histórias de vida distintas. Histórias
de pessoas que mesmo sendo pegas pelos agentes do serviço de profilaxia da lepra,
não se anularam. Pessoas que não permitiram “que a morphea implacável, selasse
seu destino como vítimas de um estigma execrável, fazendo-lhes calar”, contrarian-
do os termos de Punaro Bley. (Punaro Bley, apud SOUZA- ARAUJO, 1937, p, 582).
Os anos se passaram, as ações políticas mudaram, a medicina adotou novos tra-
tamentos e a sociedade, novas posturas. Cabe a nós historiadores, colaborar para
externar, as experiências, as reelaborações e a trajetória de nossos internos; se assim
podemos carinhosamente chamá-los.
Referências
Introdução
de sua propagação. Em meados dos Oitocentos a hipótese da sífilis ser causada por
um vírus transmitido por via aérea dividiu espaço, nos debates médico-científicos,
com duas teses: a de a moléstia ser disseminada de forma hereditária e a que de-
fendia a propagação da sífilis por herança (congênita) durante a gestação, ou seja, a
mãe contaminada, em geral pelo marido, transmitia ao filho por meio da placenta
(PARASCANDOLA, 2008; QUÉTEL, 1986). A partir dos anos 1860, em especial
com a publicação dos trabalhos de Alfred Fournier (1832-1914), a questão da sífilis
hereditária, ou heredo-sífilis, ganhou cada vez mais espaço em meio aos debates
médicos e passou a ser apontada como causa de “quase todas as más-formações,
quase todas as monstruosidades [humanas]” (CORBIN, 1977, p.249) e, também,
como uma moléstia que poderia causar outras doenças, como a paralisia geral do
organismo (QUÉTEL, 1986, p.5). Fournier não negava a ideia da possibilidade da
mãe transmitir a sífilis para a criança na forma congênita (herdada), mas defendia
a possibilidade da transmissão hereditária do pai para a criança, sem que a mulher
estivesse contaminada, bem como a transmissão hereditária de ambos os genitores
(CARRARA, 1996, p.63). A recepção dos escritos de Alfred Fournier no Brasil foi
contemporânea a sua grande difusão na Europa3.
Mas não foi apenas o tratamento da doença e o entendimento da moléstia
que passaram por transformações ao longo dos anos. Desde o final dos anos 1400,
quando a sífilis irrompeu na Europa sob a forma epidêmica4, os significados atribu-
ídos à moléstia, às suas formas de transmissibilidade e seus portadores, bem como
os argumentos mobilizados na defensa de tratamentos da enfermidade também
foram sendo debatidos e (re)significados (FLECK,1981; PARASCANDOLA, 2008;
MCGOUGHT, 2010). Segundo Quétel (1988, p.286-287), a sífilis foi a doença sobre
a qual mais se escreveu desde esse período até o século XX, ainda que a cólera e a
tuberculose matassem muito mais.
3 As pesquisas apresentadas por Alfred Fournier seriam um dos impulsos para a criação de uma
nova especialidade médica, a sifilografia (ou sifiligrafia), que em pouco tempo se consolidou
em meio às cadeiras universitárias, conferências e sociedades científicas de diversos países
(QUÉTEL, 1986, p.5-6). No Brasil, a sifilografia foi implantada a partir das últimas duas déca-
das dos Oitocentos (CARRARA, 1996, p. 76).
4 Em 1495 foram detectadas epidemias de sífilis na Itália, na França e no território alemão. Nos
anos seguintes a doença fez vítimas na região dos Países Baixos e na Grécia e depois alcançou
a Inglaterra e a Escócia (MARQUES, 2004, p.278).
Histórias de Doenças 343
5 A maioria dos estudos historiográficos aponta a América como lugar original da sífilis, apesar
de alguns estudiosos afirmarem a origem europeia da doença, defendendo que casos da mo-
léstia eram confundidos com lepra já na Idade Média e que a evidência da sífilis na Europa, a
partir do século XV, teria acontecido devido ao incremento da circulação humana e a multi-
plicação de contatos sexuais.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
344 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
HILAIRE, [1851] 1964, p.14 e 118). O tempo passou, a vila tornou-se cidade e, em
1853, capital paranaense e a sífilis continuou a vitimar a população.
Nos anos seguintes, entre o final do século XIX e as primeiras décadas dos
Novecentos, coincidindo com a chegada de grandes contingentes de imigrantes e do
crescimento urbano de várias áreas do país, a sífilis passaria a ser considerada uma
ameaça para a saúde nacional (MARQUES, 2004, p.270). Nessa época, o Paraná vi-
veu o boom dos engenhos de erva-mate, uma atividade que se desenvolvia próxima
de áreas urbanas pelo tipo de práticas que demandava, contribuindo para o cresci-
mento de vilas e cidades e para o dinamismo comercial e crescimento de oficinas
e fábricas notadamente na região de Curitiba (DE BONI, 1998; PEREIRA,1996).
Durante esse período a Capital paranaense passou de 24.453 habitantes em 1890,
para 60.800 pessoas em 1910 e 78.986 moradores em 1920 (DE BONI, 1998, p.11;
MARTINS, 1941, p.102). Mas esse crescimento também acarretou problemas rela-
cionados à manutenção ou restauração da saúde da população de algumas áreas ur-
banas, principalmente de Curitiba – falta de água e de esgoto encanados, edificações
precárias, insalubridade urbana, doenças epidêmicas; nesse cenário a sífilis, que cem
anos antes havia chamado a atenção de Saint-Hilaire, tornou-se uma das preocupa-
ções centrais das autoridades médico-governamentais paranaenses.
No Paraná dos anos 1920, como em outras partes do Brasil, o combate à sífi-
lis teve um alvo privilegiado: as meretrizes. Segundo Engel (1989, p. 91), a ideia da
prostituição como “fonte de propagação da sífilis” não era nova e circulava no país,
pelo menos, desde os debates da Academia Imperial de Medicina. Segundo essa his-
toriadora, na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro as primeiras teses nas quais
prostituição e sífilis foram conjugadas como objeto central de análise datariam de
1845: a Dissertação sobre a prostituição, em particular na cidade do Rio de Janeiro, de
Herculano A. L. Cunha, e Algumas reflexões sobre a cópula, onanismo e prostituição,
cujo autor era Miguel A.H de Sá (ENGEL, 1989, p.56). Conforme escreveu Rago
(1991, p.134), na cidade de São Paulo dos anos 1870, o combate às doenças venéreas
e, em especial, à sífilis, reforçou a iniciativa que os médicos tomaram para “conhecer
minuciosamente a vida cotidiana das meretrizes e o interior dos bordéis”.
Nessa época, nacional e internacionalmente, duas propostas dividiam os mé-
dicos em relação à prostituição: a da regulamentação – fichar, controlar, punir – e
a da abolição – supervisionar, educar e extinguir (RAGO, 1991; CARRARA, 1996).
Entretanto, no início do século XX as discussões e ações desses dois grupos giravam
Histórias de Doenças 345
em torno do controle da sífilis (RAGO, 1991, 134) e suas ações, por vezes, pareciam
combinar aspectos destas duas propostas.6
Mas, divididos entre a tese da sífilis hereditária e a da sífilis congênita e entre
as ações regulamentaristas e as abolicionistas, os médicos encontraram um ponto
em comum, a partir do qual todos deveriam agir: a ideia que a sífilis era um fator
de degeneração, que ganhou força especialmente a partir da virada para o século
XX7. Em 1923, o médico Oscar Fontenelle, que discordava da tese da sífilis ser uma
moléstia hereditária, foi enfático ao afirmar que, embora não fosse efetivamente he-
reditária a sífilis era uma doença herdada e, portanto, um “poderoso fator de dege-
neração da raça” (Archivos Paranaenses de Medicina, out.-nov.1923, p.112).
Como escreveu Silveira (2005), no final do século XIX a perspectiva (funda-
da no darwinismo) de que a espécie humana estava sujeita as leis da evolução bioló-
gica contribuiria para a construção de outra, a de que era necessário cuidar do de-
senvolvimento da espécie e orientá-la para o progresso. A eugenia concorreria para
legitimar e estimular esta proposição. No Brasil, ideias eugênicas ganharam ampla
divulgação a partir de meados dos anos 1910, notadamente a tese que “práticas de
melhoramento”, como hábitos de higiene e saneamento, poderiam concorrer para o
aperfeiçoamento da espécie humana8, paralelamente, o Movimento Sanitarista ga-
6 Desde a virada para o século XX, também havia aqueles que defendiam uma posição neorre-
gulamentarista (CARRARA, 1996, p.172; CORBIN, 1982, p.362), ou seja, a regulamentação
para a preservação da moral, dos bons costumes e, também, para combater doenças venéreas,
mas combinada com ações educativas, uma prática abolicionista. Nas fontes citadas neste
capítulo não foram localizados médicos que se autodenominaram neorregulamentaristas.
7 A ideia de uma debilitação progressiva da espécie a partir de um tipo primitivo humano ide-
al, debilitação que seria transmitida hereditariamente, foi defendida pelo psiquiatra franco-
-austríaco Bénédict Augustin Morel (1809-1873) em sua “teoria da degeneração”, publicada
na primeira metade do século XIX. Para Morel, assim como as características ideais seriam
transmitidas, também poderiam ser adquiridas influências nocivas de origem patológica ou
social que passariam de pais para filhos. Segundo Corbin (1981, p.131), “a sífilis foi pratica-
mente ignorada” no trabalho de Morel e foi pouco debatida como fator de degeneração da
espécie por outros estudiosos, situação que mudou no final dos Oitocentos.
8 A eugenia “positiva”, com ações preventivas e práticas de melhoramento, era definida pela
atenção com a procriação sadia e o combate a fatores ambientais (disgênicos) que compro-
meteriam o desenvolvimento saudável do ser humano; a “eugenia negativa” tinha como meta
impedir a procriação de doentes e assim concorrer para a melhora da raça – seus partidários
defendiam a esterilização em vários casos e o rígido controle matrimonial. (MARQUES, 1994;
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
346 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
nharia dimensão nacional, e muitas vezes suas ideais foram combinadas com propo-
sições eugênicas. Os sanitaristas tinham como objetivo a educação sanitária da po-
pulação e a elaboração e realização de políticas de saúde pública para o país (LIMA;
HOCHMAN, 1996; MARQUES, 1994; MOTA, 2003; STEPAN, 2004).
Os debates e a mobilização sociopolítica que o Movimento Sanitarista provo-
cou foram decisivos para a organização, durante a presidência de Epitácio Pessoa, do
Departamento Nacional de Saúde Pública, com vistas a reformar os serviços sanitários
ofertados no país, o que incluiu o combate às doenças venéreas, entre elas a sífilis.
STEPAN, 2004). No Brasil, a eugenia “positiva” ganhou ênfase, entretanto a “eugenia negati-
va” teve vários adeptos e não foram poucos os debates sobre o tema.
9 Segundo o regulamento do Departamento publicado em setembro de 1920, os inspetores e
subinspetores sanitários rurais da Diretoria de Saneamento e Profilaxia Rural e os ajudan-
tes médicos da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas eram nomeados pelo
Diretor geral do Departamento Nacional de Saúde Pública (BRASIL, 1920b, art.70, s.p.). Em
dezembro de 1923, uma nova versão do regulamento foi publicada, com algumas alterações,
prevendo que em caso de não haver Serviço de Profilaxia Rural no local e havendo créditos
para a despesa, seria nomeado um chefe de serviço diretamente subordinado a Inspetoria
(BRASIL, 1924, art.122, s.p.).
Histórias de Doenças 347
11 Outro caso que pode ter concorrido para a transferência de Souza Araújo foi o atrito que o
médico teve com o doutor Victor Ferreira do Amaral, diretor do Serviço Sanitário do Estado
e da Faculdade de Medicina do Paraná. Souza Araújo, funcionário do Departamento de Saúde
Pública, denunciou infrações referentes ao exercício da medicina no estado ao Departamento,
entre as quais a autorização da atuação de médicos estrangeiros no Paraná sem a devida re-
validação de diplomas por parte do Serviço Sanitário do Estado (Archivos Paranaenses de
Medicina, abr. 1921, p.388).
Histórias de Doenças 349
12 O relatório do Serviço de Profilaxia Rural sobre 1920, afirmava que o recenseamento realizado
pela polícia de Curitiba apontava a existência de 96 casas de prostituição na cidade, “sendo
algumas pensões, muitas casas de uma ou duas meretrizes e várias outras de rendez-vous […]”
(Archivos Paranaenses de Medicina, mar. 1921, p.366-367). Considerando o número de casas
e pensões de meretrício na capital paranaense, é muito provável que várias meretrizes não
tenham sido fichadas.
Histórias de Doenças 351
número de não sifilíticas, dados do relatório sobre os primeiros meses do ano indi-
cavam 60 livres da moléstia, portanto 7 meretrizes teriam ficado sifilíticas (ou ma-
nifestado novamente a doença) durante o ano de 1920; o que nos remete à questão
da eficiência das preleções e prescrições que eram ministradas às prostitutas inscri-
tas, isso para não mencionar a dificuldade, debatida entre os próprios médicos, de
diagnóstico da sífilis. Nessas 179 meretrizes que tiveram o resultado positivo de seu
Teste de Wasserman ou apresentaram lesões consideradas sifilíticas, foram aplicadas
205 injeções de Neosalvarsan, 21 de Silbersalvarsan e 162 de mercúrio – muitas ve-
zes dois medicamentos eram ministrados conjuntamente (Archivos Paranaenses de
Medicina, mar. 1921, p.367).
Mas nem todas as prostitutas que eram interditadas paravam de exercer o
meretrício. Em outubro de 1920 a revista Archivos Paranaenses de Medicina publi-
cava informação sobre 4 meretrizes curitibanas multadas por “infração ao regula-
mento”, pois teriam descumprido a normativa médica de afastar-se da prática do
meretrício durante o período de tratamento. Quantas outras teriam burlado a puni-
ção? (Archivos Paranaenses de Medicina, out. 1920, p.187). Segundo Marques (2004,
p.286), em Curitiba várias meretrizes que se negavam a interromper seu trabalho
teriam ido “parar no xilindró”. E algumas dessas mulheres reagiam. É o que pode-
mos deduzir a partir da informação que circulou em Curitiba, em março de 1921,
sobre uma prostituta que, meses antes, teria impetrado habeas corpus na época que
o doutor Souza Araújo dirigia o Dispensário (Archivos Paranaenses de Medicina,
mar.1921, p. 379).
Entretanto, se para as meretrizes essas imposições do Dispensário deveriam
ser constrangedoras e opressivas, para alguns médicos essa forma regulamenta-
rista era pouco eficiente, uma perspectiva que vinha ao encontro das diretrizes
da Inspetoria de Profilaxia da Lepra e das Doenças Venéreas, do Departamento
Nacional de Saúde Pública, que difundiam a tendência internacional abolicionis-
ta.14 Em 1923 o doutor João de Barros Barreto, diretor do Serviço de Profilaxia
ram. Sobre 12 prostitutas nenhum dado foi informado. (Archivos Paranaenses de Medicina,
mar.1921, p.367).
14 A prática regulamentarista de fichar prostitutas, indiretamente, chancelava o meretrício ao
liberar ou interditar as meretrizes, o que era entendido por seus defensores como um mal
menor, necessário enquanto a prostituição não fosse eliminada; entretanto, muitos médicos
discordavam: cuidar da saúde de meretrizes sim, mas não era plausível um médico avalizar,
mesmo de forma indireta, a prática da prostituição através da liberação ou interdição dessas
Histórias de Doenças 353
Por outros meios, sem a coerção direta por parte do serviço, que desses recur-
sos evidentemente antirregulamentares não podia [antes da atual administra-
mulheres. Segundo Carrara (1996, p.172), pelo menos desde a realização do 2ª Conferência
Internacional de Bruxelas sobre Dermatologia e Sifilografia, em 1902, as ideias abolicionistas
teriam prevalecido entre os membros especialistas da comunidade científica.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
354 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
15 Nos anos 1910 este Centro Acadêmico organizou e manteve, com particulares e eventualmen-
te auxilio do governo estadual, um Ambulatório Antissifilítico com dois postos na cidade de
São Paulo.
Histórias de Doenças 355
mou que vários dos diretores dessas coletividades, que receberam os impressos de
propaganda, responderam “com aplausos” e também “envia[n]do vários doentes ao
Dispensário” (Archivos Paranaenses de Medicina, jun. 1923, p. 53, 58-59). Medeiros
era médico do Dispensário Antivenéreo de Curitiba.
Entre os médicos, as conferências para os leigos foram especialmente acla-
madas nos relatórios do Serviço de Profilaxia Rural do Paraná, como “uma das me-
lhores instituições […] na obra ingente do combate aos morbus que deterioram o
sangue e as energias da raça”. Elas foram realizadas em escolas, teatros e outros espa-
ços coletivos (Archivos Paranaenses de Medicina, jun. 1923, p.59). Os doutores ainda
utilizaram uma invenção moderna: o cinema. As propagandas em diapositivos, no
intervalo dos filmes em Curitiba e no interior do Paraná, também representaram
importante meio de propaganda (Archivos Paranaenses de Medicina, jul. 1923, p.93).
Essa preocupação com a saúde dos homens esteve diretamente relacionada
ao papel masculino como o grande responsável pela manutenção de um casamento
sadio e, assim, pelo nascimento de crianças saudáveis. (MARQUES, 1994; MATOS,
2004). Tal noção extrapolou a academia e circulou nacionalmente, podendo ser
detectada inclusive entre militantes operários nesse período (BERTUCCI, 1997,
p.125-168).
Todavia, educar para que os homens praticassem a continência e a fidelidade,
bem como para que os indivíduos procurassem o médico, assumissem a possibili-
dade de serem portadores da sífilis e aceitassem tratamento, não seria uma tarefa
simples. Entre os homens não era incomum a negação “de um passado venéreo” –
como diziam os doutores – que pudesse contribuir para a suspeita de sífilis. Alguns
negavam veementemente a possibilidade de ter sífilis. Outros, apesar de admitirem
o “passado venéreo” também não procuravam atendimento médico, mesmo com
sintomas que poderiam significar manifestações da sífilis ou outras moléstias.
No Paraná eram vários os casos de pacientes que negavam ter sífilis ou que
conviviam com a moléstia durante anos sem tratamento algum. Um caso: J.M, bran-
co, 23 anos, casado, residente em Curitiba. O rapaz procurou atendimento médico
com lesões na pele dos braços e atrofia muscular, mas “nega antecedentes”. Outro
caso: J.P, um imigrante italiano, não negou a possibilidade de “um passado venéreo”,
mas teria convivido com as manifestações na pele durante nove anos antes de pro-
curar tratamento médico. O homem teria afirmado “viver em promiscuidade com
seus pais, mulher e filhos por não saber ser contagioso seu mal [e que] mantém sem-
Histórias de Doenças 357
pre relações sexuais com sua mulher” (Archivos Paranaenses de Medicina, mar.1921,
p.396-397).
Nesse contexto, a revista Archivos Paranaenses de Medicina, publicação “lar-
gamente distribuída no estado e fora dele”, foi um singular exemplo de impresso mé-
dico com a pretensão também de atingir um público mais amplo, leigo, notadamente
com uma Seção de Propaganda e de Educação Higiênica. (Archivos Paranaenses de
Medicina, jan. 1922, p.282 e 374). O primeiro texto publicado nessa Seção, em janei-
ro de 1922, foi o da conferência “A educação sexual em face do problema venéreo”,
de autoria do doutor Luiz Medeiros. Esta conferência foi realizada meses antes, em
novembro de 1921, para os alunos do sexo masculino do Ginásio Paranaense e seu
conteúdo foi transcrito e distribuído, como folheto, em várias escolas do Paraná,
com a finalidade de difundir a importância da educação dos jovens para evitar a
propagação da gonorreia e, principalmente, da sífilis, doença “[com] consequências
ainda mais tremendas” que teria assumido “um papel salientíssimo em patologia”
(Archivos Paranaenses de Medicina, jan. 1922, p. 325-340).16
Nesse período, conjugada com ações educativas, os médicos paranaenses li-
gados a Inspetoria divulgaram os meios para a realização da “desinfecção individual”
ou “preventiva” para tentar barrar uma possível contaminação por doenças venéreas.
Mas, segundo João de Barros Barreto, “a desinfecção preventiva é aconselhável, des-
de que se diga que a continência pré-matrimonial é o meio de prevenção”. (Archivos
Paranaenses de Medicina, dez. 1923, p.362).
Essa prática preventiva consistia na higienização do órgão genital após o coi-
to com meretriz, seguida da aplicação da pomada Metchnikoff, feita de calomelano
(cloreto de mercúrio), vaselina e lanolina (LEITNER et al, 2007,p.14). Seguindo de-
terminação das autoridades sanitárias brasileiras, os órgãos de saúde instalados nos
estados deveriam incentivar a “desinfecção” com a distribuição gratuita dos “neces-
16 No Paraná dos anos 1920, muitos médicos eram favoráveis à educação sexual voltada para ho-
mens e mulheres como meio de combater a sífilis. (Archivos Paranaenses de Medicina, mar. 1921,
p.375; jun. 1923, p.17, entre outros). Alguns, no entanto, se posicionavam em defesa da obriga-
toriedade da educação sexual nas escolas públicas do país, o que efetivamente causava muita
polêmica (MUNHOZ, 1929). Nacionalmente, entre os debates e propostas sobre o tema que
aconteciam nesse período, pode ser destacado o Projeto de Lei nº 235-A que o médico Oscar
Fontenelle apresentou à Câmara dos Deputados federal em 1928. O projeto tinha como prin-
cipal objetivo a instituição, através de conferências, da educação sexual obrigatória nas escolas
públicas. Entretanto, a proposta de Fontenelle não foi aprovada e a educação sexual ainda ficaria,
pelo menos formalmente, fora das escolas brasileiras (BRASIL, 08/10/1928, p.4014).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
358 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
Considerações Finais
Referências
Fontes
Bibliografia
D urante boa parte de sua história, Goiás foi identificado como sertão.
Reconhecido mais pelas ideias negativas que esta categoria encerra do que pe-
las positivas, relacionadas à originalidade da cultura sertaneja que refletiria o Brasil
autêntico (LIMA, 1999; SENA, 2003), entre as imagens negativas que constituem
o sertão figuram a decadência, o atraso, o isolamento, o abandono, a estagnação, a
pobreza e a doença – ideias que aparecem em variados tipos de fontes relacionados
à Goiás até pelo menos meados do século XX. Tais ideias acabaram sendo reforça-
das pela historiografia local, ajudando a perpetuar uma imagem pessimista sobre a
região (VIEIRA, 2012). A história do projeto de transferência da capital federal para
o Planalto Central Goiano é um bom exemplo de como estes diversos sentidos fo-
2 Os avanços médicos e científicos mostraram-se grandes aliados dos países envolvidos no con-
fronto mundial, uma vez que minimizaram as perdas de grandes contingentes de soldados
decorrentes de algumas doenças enfrentadas nos campos de batalha. Os inseticidas (como o
DDT), as vacinas (como a da febre amarela) e os antibióticos (como a penicilina) foram alguns
dos produtos utilizados durante este período de conflito e que impactaram positivamente so-
bre toda a sociedade, gerando o clima de ‘otimismo sanitário’ dos anos 50 (GARRETT, 1995).
Histórias de Doenças 365
atenção. Segundo ele, uma vez submetidos ao isolamento e à escassez das trocas cul-
turais com centros mais dinâmicos, os médicos teriam dificuldade de se manterem
atualizados e seriam afetados pelo que ele chamou de “demora cultural”, culminando
na deserção da profissão e opção por outras atividades tais como criação de gado,
lavoura ou comércio.
Esta conclusão de Fernandes, no entanto, contrasta com a trajetória dos mé-
dicos que atuavam em Goiás nos anos 50, ou seja, com o fato de que ali se constituiu
um grupo médico importante, que embora alocado em Goiás, falava em nome de
todo o Brasil Central. Um grupo que se notabilizaria pelas pesquisas em torno das
doenças regionais, tornando-se centro de referência para o estudo de algumas delas,
e que chama a atenção pelas redes estabelecidas com centros de ciência importantes
no Brasil e no mundo. Além disso, possuía uma revista de circulação nacional e in-
ternacional e preparava-se, já nos anos 60, para concretizar o plano de fundação de
uma faculdade médica – ápice de sua institucionalização (VIEIRA, 2012). E vale re-
gistrar que tudo isso não aconteceu apenas depois da construção de Brasília, em ge-
ral apontada como ‘redentora dos sertões goianos’. Tendo em vista que a construção
da nova capital federal apenas conferiu maior visibilidade às atividades destes médi-
cos, ela não pode ser considerada a força responsável pelo início daquele processo.
Ao contrário das imagens de atraso, resistência cultural e passividade que
acompanhariam aqueles que optassem por uma carreira nos sertões do Brasil, o que
observa-se é que os médicos de Goiás atuavam intensamente, envolviam-se com
questões que abrangiam todo o país e buscavam manter-se atualizados profissio-
nalmente. Assim, mesmo quando se deparavam com dificuldades, segundo eles,
inerentes à prática médica no interior, como a falta de infra-estrutura, pobreza da
população ou vida social menos intensa (NOTICIÁRIO, 1960), agiam de forma a
superá-las. Deste modo, apesar das impressões positivas do médico Luiz Rassi sobre
o papel que a transferência da capital exerceu sobre o desenvolvimento médico na
região do Brasil Central, vale destacar que ele não foi determinante deste processo
(VIEIRA, 2012).
É certo que a nova capital federal representou um grande motor para o desen-
volvimento do interior do país em vários sentidos, inclusive para a medicina goiana.
No entanto, é possível observar a conformação de uma comunidade médica regio-
nal bastante ativa e afinada com preceitos médico-científicos comuns aos grandes
centros antes mesmo do início da construção de Brasília. Neste sentido, meu ob-
jetivo com este trabalho é evidenciar que a medicina praticada em Goiás já vinha
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
366 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
vivenciando seu processo de institucionalização desde o final dos anos 30, fruto das
mudanças provocadas pela construção de Goiânia,3 e mais nitidamente a partir dos
anos 40, quando idealizou-se a criação de uma associação médica local.
Configurando-se como uma etapa importante no processo de organização
da comunidade médica da região nos anos de 1950, a Associação Médica de Goiás
(AMG) ganhou uma abrangência maior envolvendo todo o estado a partir da insta-
lação de sedes regionais em diferentes municípios. Como projeto que levou a uma
maior aproximação entre os médicos atuantes no território goiano e à melhoria qua-
litativa da medicina ali praticada, meu objetivo neste capítulo é compreender as con-
dições de surgimento desta sociedade e sua relação com os demais órgãos sanitários
de Goiás, já que se deve a esta entidade algumas medidas no campo da saúde pública
local. Tendo em vista que a história desta associação médica é indissociável da traje-
tória do médico Luiz Rassi, proponho também acompanhar parte da biografia deste
que foi seu primeiro presidente e que se constituiu como verdadeira liderança dos
médicos goianos, capaz de consolidar a associação como instituição, de fato, repre-
sentativa dos mesmos.
3 As obras de construção de Goiânia iniciaram-se em 1933, mas seu batismo cultural, evento que
marcou a fundação da nova capital do estado, aconteceu apenas em 1942 (FREITAS, 1999).
Histórias de Doenças 367
Fonte: III CMBCTM – ligeiros dados históricos, 1951, p.06-08; III CMBCTM – notas do importante
conclave científico em Goiânia, 1951, p. 08-23; NOTICIÁRIO. 1956, p. 217-223; NOTICIÁRIO. 1958,
p. 263-295.
Luiz Rassi foi o primeiro presidente da AMG e foi dele a ideia de associar os
médicos do estado. Descendente de família libanesa, que se estabeleceu em Goiás nos
anos 20 do século passado, Luiz Rassi nasceu em Cuba em 1920 e chegou ao Brasil
quando tinha apenas quatro anos de idade. Se formou na Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro em 1942 e em sua turma estavam também outros goianos, que viriam
a ser seus colegas de profissão em Goiás. Após sua formatura em 1947, Rassi não co-
gitou permanecer no Rio, apesar das propostas que recebeu. Dirigiu-se para Goiânia
para trabalhar ao lado do irmão no Serviço Médico-Cirúrgico (que mais tarde se
transformaria em uma casa de saúde) e lá fixou residência deste então.
À frente de um grupo que apenas ensaiava uma organização mais sistemática,
Rassi teve papel de peso na condição de uma espécie de líder de um projeto que,
com o passar do tempo, foi se mostrando bastante exitoso. Escolhido como primeiro
presidente da associação em 1951, foi reeleito para o biênio seguinte e permaneceu
no cargo durante os quatro primeiros anos de vida desta sociedade médica, voltan-
do a assumi-lo em 1957. O fato de ter estado no comando desta instituição desde
seus primórdios, em um período que pode ser considerado de amadurecimento e
consolidação da AMG como órgão representativo dos médicos goianos, confere a
Rassi um papel de destaque nesta análise. A fala de Eduardo Jacobson, médico que o
sucederia na direção da sociedade em 1959, sintetiza a importância de Rassi à frente
da AMG:
de dois congressos médicos de grande relevância para Goiás, ao longo dos quatro
anos em que Rassi atuou como presidente da AMG foram também lançadas as bases
para a constituição da Faculdade de Medicina de Goiás (VIEIRA, 2015b). Atuando
como liderança de peso, Rassi contribuiu para que a AMG se firmasse localmente e
obtivesse reconhecimento interno, adquirindo autonomia para falar em nome de to-
dos os médicos do Estado. Conferindo organicidade e coesão aos médicos goianos,
a associação também obteve reconhecimento externo e alcançou êxito ao vocalizar
algumas de suas demandas junto a entidades médicas de cunho nacional, como a
Associação Médica Brasileira, e junto ao governo em suas diferentes esferas.
Além de se constituir como órgão de defesa dos médicos no estado, função
que exercia, por exemplo, ao pleitear um valor mais justo para os honorários mé-
dicos e fiscalizar o exercício da medicina, os médicos também atuavam junto às
instituições de saúde pública, das quais muitos deles eram funcionários. Entre os
principais objetivos daquela entidade estavam não apenas a melhora qualitativa da
medicina praticada no estado, mas também a melhoria dos níveis de saúde da popu-
lação. Inicialmente configurada como um projeto dos médicos atuantes em Goiânia,
aos poucos ela foi ganhando uma abrangência maior e envolvendo também os mé-
dicos de cidades do interior, onde foram fundadas suas sedes regionais:
tenham se empenhado nesta causa, foi ele o que mais se manifestou a respeito até
o término de seu último mandato. Sua atuação à frente da sociedade nos seus pri-
meiros anos de vida, conduzindo seus rumos e definindo as prioridades da nova
instituição, fez a diferença. Entre as estratégias de que lançou mão para levar o nome
da associação a diferentes regiões do estado destaco a realização de excursões e a
organização de jornadas médicas – estas últimas, o ponto de partida para a fundação
de seções regionais da entidade.
As excursões, ao que parece, foram iniciativas mais pontuais que se carac-
terizaram por viagens encetadas por alguns membros com a intenção de divulgar
a associação e conseguir novos sócios. Já as jornadas médicas configuraram um
evento mais amplo e bem organizado, programadas com mais antecedência, no qual
tomavam parte inclusive os cidadãos locais. Conformando uma excelente oportu-
nidade de os médicos da capital estreitarem os laços com seus colegas atuantes em
cidades mais distantes, por meio das jornadas médicas também o conhecimento
médico-científico circulava. Na medida em que alguns membros da associação eram
chamados a participar apresentando trabalhos sobre temas que lhes fossem mais
convenientes, isto contribuía para que seus pares atuantes em cidades mais distantes
se atualizassem, melhorando o padrão da medicina praticada no estado.
Uma vez instaladas, cada regional possuía um calendário próprio de even-
tos e reuniões científicas que contava também com seminários, visita de persona-
gens ilustres do meio médico nacional e cursos de atualização – tudo divulgado
por meio da Revista Goiana de Medicina, a publicação oficial da AMG. Isso permite
concluir pela autonomia de que desfrutaram em relação à sede em Goiânia, o que
não implicava em isolamento e indiferença para com os problemas que mobilizavam
a Associação. A cooperação e interação entre as seções regionais são bastante visí-
veis. Seus membros circulavam indistintamente participando de reuniões científicas
e seminários.
Sobre este tema, vale destacar uma certa liturgia que existia na fundação des-
sas sedes regionais e que demonstra tal integração. A solenidade de instalação da
seção regional de Anápolis, registrada em ata, permite que se acompanhe em de-
talhes seu funcionamento. Tendo sido a primeira a ser fundada, em 1951, ao que
tudo indica, sua instalação foi fruto de um requerimento assinado por nove colegas
daquela cidade (ATA DA 33ª SESSÃO – 18/09/1951), os quais demandaram por
escrito uma regional. Sua fundação foi registrada na ata da 5ª sessão extraordinária
da AMG, datada de 16/09/1951, mas a posse definitiva de sua diretoria só aconteceu
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374 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
4 Vale a pena destacar a trajetória peculiar deste médico. James Fanstone era filho de missio-
nários ingleses que se estabeleceram temporariamente no Recife no final do século XIX. Três
meses após seu nascimento a família voltou para a Inglaterra, onde Fanstone se formaria mé-
dico pela Universidade de Londres. Em 1922 chegou ao Brasil e permaneceu por dois anos
entre São Paulo e Belo Horizonte preparando uma tese que o permitiria atuar como médico
no país. Em 1924 se instalou definitivamente em Anápolis, onde começou a clinicar deste en-
tão. Em 1927 sua clínica, que até então havia funcionado em sua própria casa, transformou-se
no Hospital Evangélico Goiano – o primeiro hospital particular de Goiás. Em 1934 fundou a
Escola de Enfermagem Florence Nigthingale – terceira do país (Cf. GODINHO, 2005).
Histórias de Doenças 375
Como foi possível perceber, a instalação de uma seção regional envolvia não
apenas os médicos, mas também a sociedade. Assim, o ritual de sua fundação ultra-
passava o campo da mera formalidade, na qual os membros da diretoria empossa-
da discursavam e confraternizavam com seus pares. Configurava-se também como
oportunidade de difundir algumas informações importantes sobre saúde e higiene,
ficando nítido o compromisso assumido pela AMG com questões ligadas à saúde
pública. Nestas ocasiões, questões importantes para os médicos que diziam respeito
diretamente a seus interesses eram debatidas, e estimulava-se a reflexão e o trabalho
científico na medida em que os colegas de Goiânia proferiam palestras sobre temas
relevantes. Em algumas ocasiões, médicos de fora do estado também eram convida-
dos a tomar parte nestes eventos.
Capa do primeiro número da Revista Goiana de Medicina: volume 1 (1) – janeiro-março, 1955.
(…) Ultimamente, a Associação Médica de Goiás tem sido instada com fre-
quência a se manifestar sobre casos de curandeiros, benzedores e outros tais
que, utilizando-se da boa fé do povo, promovem tratamentos de saúde sem
estarem para isso devidamente habilitados.
Temos já bastante experiência sobre o assunto e conhecemos todos os artifí-
cios empregados por eles. Os curandeiros, ora se apresentam sob a forma de
farmacêuticos que, por falta de médicos na localidade, fizeram sua clínica e
não a querem largar; ora é um enfermeiro que resolve internar-se pelo sertão
e ganhar a vida; ora são indivíduos que, sob a capa da caridade ou de “mis-
são a cumprir na Terra” enveredam por este caminho. Não nos esqueçamos
o desvio que resolveram trilhar muitos adeptos do espiritismo, medicando e
tratando em nome do além.
Histórias de Doenças 379
goiano”, que então já contava com uma seção regional da AMG, os médicos estariam
desenvolvendo um movimento bem organizado visando dar combate ao curandei-
rismo (NOTICIÁRIO, 1957). As perguntas feitas ao médico em questão versaram
sobre as causas e consequências do aparecimento do curandeirismo em Jataí e sobre
o significado da presença do curandeiro em uma localidade. Assim se posicionou o
referido médico:
Ao ser questionado sobre as medidas que estariam sendo tomadas pelos mé-
dicos de Jataí para impedir a ação do curandeirismo, Moraes de Assis se refere ao
editorial assinado por Mendonça e afirma que ação educativa e assistência médico-
-social adequada diminuiriam sua atuação. Neste sentido, reunidos na seção regio-
nal da AMG na cidade, teriam elaborado um programa de assistência médico-social
em colaboração com a sociedade local. Tal programa visava propiciar assistência
médica gratuita a pessoas comprovadamente necessitadas, dar assistência médico-
-social sob a forma de orientação às mães, conferências pelo rádio, pelo jornal etc.
(NOTICIÁRIO, 1957, p.141). Esta mobilização dos médicos de Jataí mostra que não
apenas a AMG, enquanto sede, respondia aos anseios dos médicos, defendendo-os.
Suas seções regionais também eram atuantes e tinham a autonomia necessária para
promover medidas que coibissem este e outros tipos de prática.
Cabe lembrar que não competia à AMG fiscalizar ou punir colegas. A ela esta-
va reservado o direito de levar ao conhecimento do Conselho Regional de Medicina,
“quando os houver e puder provar, atos condenáveis de médicos que militem em
nosso Estado, alijando-os do nosso meio, se o julgamento do Conselho assim o re-
comendar” (NOTICIÁRIO, 1959). Como órgão defensor dos direitos e prerrogati-
vas adquiridas pelos médicos, e não apenas um órgão disciplinador, defenderiam
os mesmos “contra a intromissão afrontosa do curandeirismo ou do charlatanismo
nos seus vários aspectos, quer os de cunho místico, ou dos que se revestem de franca
licenciosidade, subordinados a interesses políticos e econômicos” (NOTICIÁRIO,
1959, p. 75).
Histórias de Doenças 381
Considerações Finais
Ao final deste texto, espero ter evidenciado aspecto para o qual chamei a
atenção na introdução: apesar do importante papel que a transferência da capital
exerceu sobre o desenvolvimento médico na região – quase um lugar comum na fala
dos médicos goianos – ele não foi determinante. Não há dúvidas de que a constru-
ção de Brasília contribuiu para o desenvolvimento do interior do país, repercutindo
também sobre a medicina goiana, seja ampliando sua visibilidade ou viabilizando
projetos locais importantes, como a própria fundação de uma faculdade de medici-
na. No entanto, como busquei demonstrar, já era possível identificar a conformação
de uma comunidade médica regional bastante ativa e influente antes mesmo do iní-
cio de sua construção, fosse participando de ações voltadas para a saúde pública ou
promovendo estratégias de fortalecimento e aperfeiçoamento da comunidade médi-
ca local. Longe de negar que tenham existido dificuldades para aqueles que optaram
pelo trabalho no interior do país, a análise em questão procurou mostrar que estas
não figuraram como obstáculos intransponíveis. Neste sentido, estudar a atuação
dos médicos goianos através de sua associação permitiu a relativização deste quadro,
matizando a ideia do isolamento goiano reforçada pela historiografia.
Se Goiânia pode ser reconhecida como cidade onde isso se observa de modo
mais evidente, também não se pode negar o esforço dos médicos ali atuantes em
expandir para todo o Estado os benefícios adquiridos por conta de sua ampla circu-
lação e contato com médicos importantes. Assim, se o desenvolvimento da medici-
na em padrões elevados, comparáveis aos dos grandes centros, não abrangeu todo
o território goiano, também não ficou restrito à capital. A implantação de seções
regionais da AMG em diferentes pontos de Goiás, por exemplo, funcionou como
estratégia de que lançou mão a associação não apenas para estreitar os vínculos com
seus membros mais distantes, mas também para facilitar a difusão do conhecimento
e o aprimoramento da medicina levada a cabo no Estado. Em síntese, o fato de atua-
rem no interior do país não deve ser diretamente relacionado a uma prática médica
pouco afeita aos avanços da medicina ou mesmo defasada devido ao ‘provável’ iso-
lamento em que se encontravam. Além disso, tanto os congressos médicos regionais
como a associação médica mostram que, mesmo antes de Brasília, a comunidade
médica goiana não deixava de se atualizar, de se aperfeiçoar e se reinventar. O papel
desempenhado pela AMG, tendo Luiz Rassi em sua dianteira, é bastante revelador
neste sentido.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
382 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
Referências
Obras completas:
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FREITAS, Lena Castello B. F. de (org.). Saúde e Doenças em Goiás – a medicina pos-
sível. Goiânia: Editora da UFG, 1999.
GODINHO, Iúri Rincon. Médicos e Medicina em Goiás: do século XVIII aos dias de
hoje. Goiânia: Ed. da UCG; Contato Comunicação, 2005.
LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação geo-
gráfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan, Iuperj/ Ucam, 1999.
MORAIS, Ana Maria. AMG 60 anos: história da Associação Médica de Goiás.
Goiânia: Contato Comunicação, 2009.
PATERNOSTRO, Julio. Viagem ao Tocantins. São Paulo: Companhia Editora
Nacional (Coleção Brasiliana, série 5, v.248), 1945.
SENA, Custódia Selma. Interpretações Dualistas do Brasil. Goiânia: Editora UFG,
2003.
TEIXEIRA, Luiz Antonio. Na arena de Esculápio – a Sociedade de Medicina e Cirurgia
de São Paulo (1895-1913). São Paulo: Editora UNESP, 2007.
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de Brasília (1956-1960). Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação
em História das Ciências e da Saúde, Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo
Cruz, Rio de Janeiro, 2007.
VIEIRA, Tamara Rangel. “Médicos do sertão”: pesquisa clínica, patologias regionais
e institucionalização da medicina em Goiás (1947-1960). Tese (Doutorado)
– Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde, Casa de
Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2012.
WILLEMS, Emílio. O problema rural brasileiro visto do ponto de vista antropológico.
SP: Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio do Estado de São Paulo,
1944.
Capítulos:
Artigos:
Fontes de Arquivo
Arquivo da Associação Médica de Goiás – Atas das reuniões realizadas entre setem-
bro de 1951 e janeiro de 1955
RASSI, Luiz. Depoimento. Projeto Brasil Imenso Hospital: idéias e políticas de saú-
de na invenção do país. Rio de Janeiro: Programa de História Oral da Casa de
Oswaldo Cruz, 2006.
Estigma, filantropia e infância: o preventório
de Santa Teresinha
Yara Nogueira Monteiro1
prover sua família. Ou seja, o preventório passava a ser visto como peça fundamen-
tal que garantiria o êxito da política profilática.
O estudo das conferências internacionais realizadas nos permite verificar a
adoção e as modificações na postura dos leprólogos sobre o assunto. A 1º Conferencia
Internacional de Lepra, realizada em Berlin em 1897, já preconizava o isolamento
dos pacientes sem que fossem discutidas as ações a serem tomadas com os filhos
sadios dos asilados. Na 2º Conferencia Internacional de Lepra, que ocorreu na ci-
dade Bergen em 1909, o problema dos filhos sadios dos pacientes de hanseníase foi
objeto de discussão e, em dentre as resoluções finais, foi aconselhado que filhos de
leprosos fossem separados dos pais logo que possível, e submetidos à rigorosa obser-
vação (DINIZ, 1960 P.26). A 3º Conferencia Internacional de Lepra, que ocorreu em
Estrasburgo em 1923, ratificou as deliberações das primeiras conferências e, no item
três das resoluções finais, dispôs que “é aconselhável separar de seus pais os filhos
de leprosos desde o nascimento e mantê-lo em observação” (ROCHA, 1942, p.400).
Em São Paulo as primeiras discussões sobre Preventórios foram realizadas
durante o Iº Congresso Médico Paulista realizado em 1926 que, de certa forma, re-
fletiu discussões ocorridas internacionalmente. Durante o congresso diferente pos-
turas foram propostas, desde as mais humanitárias defendidas por Emilio Ribas até
outras como as de Souza-Araujo que defendia a segregação dos filhos de portadores
de hanseníase (MONTEIRO, 1995, 138).
Na 4º Conferencia Internacional de Lepra, realizada no Cairo em 1938, algu-
mas das decisões dos congressos anteriores foram relativizadas, o que deu origem
a duas tendências profiláticas opostas, a primeira propunha o abandono do isola-
mento priorizando o tratamento em dispensário, enquanto que segunda continuava
recomendando o isolamento, porém aplicado de forma mais humana e compassiva.
Essa conferência preconizava uma postura mais branda com relação aos filhos sa-
dios dos asilados recomendando que “os filhos de leprosos dever ser afastados dos
pais, quando estes são fonte potencial de infecção; os filhos de leprosos de formas
abertas devem ser retirados logo após o nascimento para os preventórios”, e que
caberia ao Estado o amparo das famílias dos asilados, de modo que não lhes pese a
visão do abandono e miséria dos familiares (ROCHA, 1942, p.401).
5 Alice Tibiriçá teve atuação destacada no campo da hanseníase nas décadas de vinte e trinta;
foi a fundadora da Federação das Sociedades de Assistência aos Lázaros e teve sérios embates
com o DPL. Floriano Lemos foi professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e es-
crevia artigos em jornais daquela cidade.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
392 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
sendo construída pela Liga de S. Lazaro, onde seriam recolhidas as famílias dos han-
senianos e de internados nos asylos colônia” (TIBIRIÇÁ, A. s/d, 119). Cabe ressaltar
o poder do DPL paulista, visto que uma simples resolução interna conseguir amparo
jurídico para barrar a continuidade do projeto.
A ideia de construção de granjas continuou em discussão por mais algum
tempo, porém sempre alvo de grande discordância do Serviço Profilático que, com
base na premissa de que filhos de hansenianos teriam mais predisposição a desen-
volver a doença, afirmava que essas crianças deveriam crescer sob “rigoroso contro-
le médico”. Muito embora o atendimento médico e o “rigoroso controle” também
pudesse ser exercido nas granjas, o modelo prevento rial acabou prevalecendo em
todo o país. A ideia de controle e vigilância foi adotada ficando evidente já no artigo
primeiro do Regimento Interno dos Preventório, que apresentava como sendo obje-
tivo dessas instituições, além de prover a educação dos menores, “mantê-los sob a
vigilância das autoridades sanitárias competentes”. Tal rigor abrangia até mesmo as
ações relativas à liberação do menor internado, que só poderia sair da instituição
após seis anos de permanência.
7 Armando Sales de Oliveira foi fundador da Universidade de São Paulo. Casou-se com Raquel
de Mesquita, filha única de Júlio de Mesquita. Com morte do sogro em 1927, assumiu a pre-
sidência do jornal O Estado de S. Paulo, continuando a apoiar, e auxiliar financeiramente, o
Santa Terezinha ao longo dos anos.
8 Adelardo Soares Caiuby-. Importante arquite.to da época, dentre suas obras tem-se o prédio
da Curia Metropolitana de São Paulo. Foi o autor da planta do primeiro asilo-colônia cons-
truído em São Paulo, o asilo de Santo Angelo e autor de “Leprosaria Modelo” que inspirou a
construção dos demais asilos paulistas.
Histórias de Doenças 395
logo Aguiar Pupo9 e Rezende Puech, que possuía vasta experiência com construção
e administração de hospitais.10
O projeto previa a construção de uma série de edifícios, cada um com sua
função específica de forma a permitir a separação por sexo e idade, tanto nos pavi-
lhões de dormitórios como nos refeitórios e classes escolares. Os edifícios possuíam
tamanhos diferentes e se distribuíam a partir de uma espécie de ponto central cons-
tituído pela capela. Na parte frontal tinha-se: portaria, parlatório, igreja e residência
das religiosas que administram a casa. Atrás da Igreja vinha o corpo principal das
construções: dois pavilhões do tipo “Escola Maternal” para habitação dos meninos
tendo como anexos uma classe primária e sala de diversões e mais dois pavilhões do
mesmo tipo para meninas, tendo como anexos uma classe primaria e sala de traba-
lhos manuais. Nos andares superiores ficavam os dormitórios, estes eram divididos
por idades, contendo seus respectivos sanitários e vestiário. Posteriormente foi cons-
truído o pavilhão da creche destinado unicamente aos recém-nascidos.
No corpo central havia a cozinha e os refeitórios, aos fundos seria erguido
o pavilhão de suspeitos em observação. Havia ainda três edifícios destinados à la-
vanderia, garagem e habitação de empregados. Todos os edifícios eram providos de
água, esgotos, telefone, energia elétrica e eram ligados entre si por meio de passadi-
ços cobertos de telha e dotados de piso cimentado (PUPO, 1936 p.265 e SILVEIRA,
1936, p.320).
9 João de Aguiar Pupo, foi um dos leprólogos paulista mais importantes da época chegado a
chefiar a Inspetoria de Profilaxia da Lepra em 1927. Foi diretor da Faculdade de Medicina de
São Paulo, membro honorário da Academia Nacional de Medicina.
10 Rezende Puech ortopedista ligado à Santa Casa de Misericórdia. Foi catedrático
da antiga cadeira de clínica ortopédica e cirurgia infantil da Faculdade de Medicina de São
Paulo. Dedicou-se aos problemas relacionados à construção e à administração de hospitais.
Participou da Comissão de Assistência Hospitalar do Estado de São Paulo e dentre suas publi-
cações tem-se: Censo Hospitalar do Estado de São Paulo e O Problema Hospitalar do Estado
de São Paulo.
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
396 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
ta acompanhava os progressos das obras uma vez que cada etapa, cada inauguração
era realizada em meio a eventos divulgados pela imprensa.
Desde seu início, o então denominado Asilo-Escola foi administrado por ir-
mãs de caridade porém a direção foi sempre exercida por Margarida Galvão, cuja
trajetória de vida passou a estar intimamente ligada a essa obra.
Desde o início foram adotados critérios que normatizavam o fluxo dos inter-
nos. Ao entrar todas as crianças passavam por exames médicos passando pelas ins-
peções dermatológica, bacteriológica e clínica. A dermatológica era a mais rigorosa,
realizava-se a descrição pormenorizada do corpo e em toda lesão suspeita era feita
a verificação de sensibilidade. O exame no muco nasal com resultado negativo era
condição indispensável para o ingresso do candidato e, em caso de positivo a criança
seria enviada para um asilo-colônia. A bacterioscopia, para pesquisa do bacilo de
Hansen, ainda que negativa no primeiro exame seria efetuada repetidas vezes. Após
essas inspeções é que era procedido o exame clínico pelo pediatra que fazia anamne-
se e registrava os dados antropomórficos.
Na anamnese eram registrados os dados familiares até a segunda ascendência
e colaterais leprosos, anotados dados sociais dos familiares e tempo de convivência
da criança com o foco da doença. Os dados obtidos nesses três exames davam ori-
gem a três diferentes fichas para cada criança sendo que a dermatológica se com-
punha de duas partes, uma referente à lepra e outra que abrangia outras questões
dermatológicas. A cada dois meses esses exames eram repetidos.
Uma vez admitida, a criança permaneceria em isolamento em pavilhão espe-
cial durante dez dias para prevenção de doenças infeciosas que porventura estivessem
em fase de incubação, somente depois é que iria para o convívio com outras crianças.
No espaço preventorial as decisões institucionais eram tomadas a partir da
direção e/ou do Serviço Profilático sem que fossem levadas em conta as necessidades
ou anseios dos internos, como foi o caso do acordo firmado entre Santa Terezinha e
Jacareí. Com o acordo ocorreu a transferência de crianças sem que houvesse algum
tipo de preparo, os menores saiam de um ambiente que lhes era familiar, deixando
para trás os amigos e adentrando a um espaço até então desconhecido com uma
estrutura onde imperava extremo autoritarismo. Em muitos casos ocorrendo a se-
paração de irmãos. (MONTEIRO, 1995, p. 336).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
398 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
Em caso de haver alguma lesão suspeita de lepra, ainda que com baciloscopia
negativa, a criança deveria ser enviada para o Pavilhão dos Suspeitos. Nos primeiros
anos não havia um prédio específico para o isolamento e, de acordo com publica-
ção de época, em 1929 havia duas as crianças recém-internadas que apresentaram
manchas brancas, sem sensibilidade, porém com baciloscopia negativa. A direção
optou por alugar uma casa em Pinheiros onde as crianças foram instaladas e seriam
tratadas até que o diagnóstico fosse possível (JORNAL NACIONAL, 1929, p. 7).
O Pavilhão dos Suspeitos foi construído em local distante dos demais e re-
presentava uma espécie de zona intermediária entre o Preventório e o Asilo-colônia.
Possuía estrutura própria de funcionamento a fim de impedir o contato das crianças
ali internadas com as outras. Os suspeitos eram submetidos a exames semanais até
que o diagnóstico se fizesse possível, nesse meio tempo recebiam tratamento preven-
tivo com óleo de chaulmoogra. Uma vez afastada a suspeição a criança sadia voltaria
para o convívio com as outras e a doente seria encaminhada para a internação na
rede asilar (ROCHA, 1942 p 471). Para esse Pavilhão eram também direcionadas
crianças que haviam convivido em foco de contaminação, ficando em isolamento
até que as autoridades tivessem certeza de não ter havido contágio. O local possuía
equipe própria e todas as instalações necessárias em separado.
A construção do Pavilhão dos Suspeitos foi viabilizada pela “Campanha
Humaníssima”, que arrecadou os fundos necessários para a obra. Sua inauguração
ocorreu em 23 de fevereiro de 1931, apenas quatro anos após a inauguração do Asilo,
contando naquela data com 10 meninos e três meninas ali internados. A data, como
de praxe, foi cercada de solenidades contando com a presença do Arcebispo de São
Paulo, autoridades e convidados. Dentre os presentes estava Alice Tibiriçá que pu-
blicou relato detalhado sobre a ocasião e nele elogiando a direção e sua capacida-
Histórias de Doenças 399
Os recém-nascidos
Desde seu início, o Santa Terezinha recebia todas as crianças nascidas na rede
asilar paulista, na data de sua inauguração já contava com treze recém-nascidos. Nos
primeiros tempos a creche havia sido instalada em um dos pavilhões, apenas poste-
riormente é que um pavilhão seria construído para esse fim.
O elevado número de óbitos ocorridos nos primeiros anos de funcionamento
o que acabou gerando debates e publicações que procuravam explicar a mortalidade.
As mortes eram justificadas pelos médicos do Serviço Profilático como decorrentes
da fragilidade dessas crianças e de sua debilidade congênita. Porém, estudos poste-
riores demonstraram a incorreção das premissas alegadas, vinculando as mortes às
condições de transporte e as dificuldades de prover alimentação adequada devido às
dificuldades na obtenção de leite humano.
A norma adotada na época era a da separação imediata do recém-nascido
e sua mãe no momento do parto, seguida do envio da criança para o Preventório.
Adotava-se a regra sem considerar os riscos a que seriam submetidas crianças,
com apenas algumas horas de vida, durante as longas distâncias a serem percor-
ridas entre os Asilos-Colônia, situados no interior do Estado, ao Santa Terezinha.
Médicos ligados ao Preventório alertavam sobre os perigos decorrentes da forma
de transporte inadequada e das condições adversas das viagens “A distância em
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
400 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
anos de funcionamento” Gonzaga fez fortes críticas aos estudos até então publicados
por grandes nomes da época afirmando que “para chegar a resultados satisfatórios,
não basta reunir documentos, mas é preciso examinar cada caso com método e es-
pírito crítico” (GONZAGA et alii, 1941, p 19).
Com o passar dos anos, e devido à alta demanda de leitos, fez-se necessário a
ampliação da creche. Novas campanhas foram realizadas para levantamento de fun-
dos e uma nova creche foi construída e, em 23 de agosto de 1950 a creche foi trans-
ferida para o novo prédio, localizado à Rua Morato Coelho, no bairro de Pinheiros
com capacidade para abrigar 100 crianças12. Desde sua transferência para a Capital,
o berçário recebia todas as crianças nascidas nas instituições de isolamento que ali
permaneciam até três anos de idade quando então eram transferidas para a unidade
de Carapicuíba.
É interessante destacar que nos Preventórios paulistas havia uma normati-
zação quanto a documentação da criança. Todas as crianças nascidas nos Asilos-
Colônia, ao sair deveriam obrigatoriamente portar um rol de documentos constituí-
dos por: registros de nascimento, de batismo e das fichas social, dermatológica, e de
internação. A ficha epidemiológica do recém-nascido era extensa e nela deveriam
constar: nome, dia e hora e ano do nascimento; dia nora e ano da saída do hospital
e de entrada na creche; nome do pai e da mãe, declaração de seu estado de saúde
dos genitores; tempo e forma da moléstia, se leprosa a mãe por ocasião do parto e
seu estado durante a gravidez; existência ou não existência de reação leprótica e de
lesões lepróticas nos órgão genitais, exames bacteriológicos, tipo de parto, número
12 A família Mesquita esteve sempre ligada ao Santa Terezinha, e uma das herdeiras do Jornal
Estado de São Paulo, Maria Mesquita Mota e Silva doou o terreno para sua construção e o
Jornal contribui na divulgação campanha de arrecadação de fundos.
Histórias de Doenças 403
não acreditamos que essas criancinhas (...) amanhã quando adultas tenham
fácil acesso em nossos lares, em nossa sociedade. Estarão condenadas a
constituir um grupo à parte e, como parias, terão que viver à margem da
nossa sociedade. Serão ex-pensionistas do Asylo Santa Terezinha! Senão no
physico, pelo menos moralmente carregarão para sempre a herança paterna.
(...) Maldirão por certo a nossa falsa caridade que permitiu a sua existência
(LEMOS, 1939).
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404 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
Considerações finais
Quanto aos recém-nascidos a indicação era de que fossem separados dos pais en-
fermos, porém e apenas se esses fossem portadores de forma contagiante da doença
(Manual de Leprologia 1960, p166). A partir disso o Preventório perdia seu papel
de importância passando a ser “Tecnicamente dispensável como órgão profilático.
Útil como órgão de assistência social”. A orientação era de que os descendentes de
portadores de hanseníase deveriam ser admitidos em estabelecimentos gerais de
assistência á infância e que os preventórios existentes não deveriam ser fechados,
porém reajustados a nova situação de fato recebendo também “crianças de outras
origens” (DINIZ, 1960, p 106). As propostas feitas pela Nova Orientação Profilática
resultaram no Decreto Federal nº 928 de 7 de maio de 1962 que, ao menos no texto
legal, aboliu isolamento compulsório no país.
Entretanto, apesar das discussões realizadas e a nova norma legal que passava
a ter vigência no território nacional, São Paulo continuava isolando os portadores de
hanseníase e, por conseguinte a continuidade do problema do abandono das crian-
ças sadias. O DPL por não dispor de dados que comprovassem a eficácia do isola-
mento se escudava no discurso da proteção a sociedade sadia. Essa postura acabou
por prolongar a vida dos Preventórios Paulistas dentro do modelo anteriormente
concebido; demonstrando que ideias arraigadas podem se perpetuarem por mais
tempo, a revelia até mesmo da modificação das leis.
Ao analisarmos o funcionamento dos Preventórios em São Paulo, verifica-
mos que estes acabaram por adquirir características semelhantes às das instituições
totais descritas por Goffman e que o tipo de política profilática adotada pelo Estado
acabou por dar origem a um grupo social que, embora fosse sadio, partilhava da
mesma herança estimagmatizante dos portadores de hanseníase. Pudemos verifi-
car que o simples fato da existência dessas instituições com suas das características
peculiares de funcionamento tais como o distanciamento dos centros urbanos e a
segregação de seus internos, contribuíram para o fortalecimento da estigmatização
que envolve seus egressos até os dias de hoje.
Referências
Fontes Primárias
Fontes secundárias
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TIBIRIÇÂ, A. de T. R. - Como eu vejo o problema da lepra: e como me vêem os
que o querem “manter”. São Paulo, Distribuidor - Jorge Tibiriçá Neto. s/d.
Uma estratégia Sui generis de combate
à lepra no Ceará: escrita e publicação do
livro Memórias de um leproso de Anselmo
Fraga, na década de 1920
Zilda Maria Menezes Lima1
O Coronél Antônio Diogo, num gesto de elevado alcance social, fez doação de
cem mil contos, destinada à construção de um isolamento, que ficou situado
nas adjacências do Povoado da Canafístula, terras da Colônia Cristina, cedi-
das pelo Presidente Moreira da Rocha. O governo, além do terreno, uma área
de um quilômetro quadrado, concorreu mais ou menos com a importância de
cinquenta contos de réis. Todavia, a contribuição particular foi sempre mais
entusiástica e segura, sendo de notar, sobretudo, o nobre gesto do capitalis-
ta cearense. (BOLETIM COMEMORATIVO DAS BODAS DE PRATA DA
COLÔNIA ANTÔNIO DIOGO, 1953, p. 82.).
E ainda:
para auxiliar na criação do leprosário do Estado. A iniciativa foi muito louvada pelo
referido jornal que sugere à Assembleia Estadual votar uma verba especial destinada
à construção de um hospital para os “lázaros”2.
Importantes também neste sentido foram as várias campanhas organizadas
pela Liga das Senhoras Católicas (LSC), presidida pelo Monsenhor Tabosa Braga,
Vigário-Geral da Arquidiocese de Fortaleza e Membro da Comissão Pro-Leprosário
da Canafístula (CPLC), posteriormente, Comissão Pró-Leprosário Antonio Diogo
(CPLAD). Nesta cidade, reafirmo, a ação da Igreja Católica foi fundamental, não só
para a edificação de um espaço específico para os “leprosos”, como para a manuten-
ção e funcionamento do mesmo (LIMA, 2009, p. 102).
Assim, foi intrigante realizar um levantamento das ações publicadas pelos
jornais cujo objetivo eram a construção do leprosário cearense no ano de 1925 (ano
de publicação da obra) e constatar que em nenhuma aparece ou foi sequer mencio-
nada a publicação de uma obra intitulada “Memórias de um Leproso” cuja venda
deveria reverter em prol da edificação da leprosaria do Ceará. Porém, para maior
entendimento da questão que suscitou a escrita deste texto, começo pelo excerto
abaixo que consiste numa espécie de apresentação da obra supracitada:
A partir do quadro acima é possível observar que o Ceará foi um dos sete
estados beneficiados com o censo e dentre os estados inicialmente observados ocu-
pou a quarta posição com o estado do Amazonas. Sob a coordenação do Dr. Carlos
Ribeiro, chefe do Serviço de Profilaxia Rural, Dr. Atualpa executou o primeiro pla-
nejamento para a realização do censo de leprosos no Ceará, cujo objetivo era realizar
o exame dos suspeitos nos 84 municípios cearenses. Foram distribuídos formulá-
rios de notificação aos prefeitos, delegados de higiene e médicos nas 84 localidades.
Cerca de 50% dos municípios realizaram o censo e assim, conforme o quadro acima,
por volta de 1927, o Estado à época abrigaria por volta de mil leprosos. Porém, é
importante reafirmar que apenas metade dos municípios atendeu à solicitação de
realizar o censo.
Ainda muito moço e devotado à ciência médica que abraçara se lhe tem sido
propício o inexorável destino, decerto, deveriam nossas letras à sua pena, es-
tudos incontestáveis porque era notoável sua cultura geral e verdadeiramen-
te um intelectual. Cientista e Literato deixou uma obra valiosa e hoje, rara,
“Memórias de um Leproso” que se não é rigorosamente uma jóia, um modêlo
de linguagem, é, entretanto, um grande livro que cumpriu uma função social
benemérita ao tempo de sua publicação (RAMOS, 1945, p. 3).
dico nesse momento, é que fosse iniciada, o mais rápido possível, a construção do
leprosário.
Segundo Ramos (1945 p. 4), os recursos levantados com a venda do livro
foram completamente revertidos em prol da construção do primeiro leprosário do
Ceará, desejo expresso por Dr. Henrique, o personagem leproso na apresentação da
obra. Nas palavras de Dr. Atualpa (Anselmo Fraga) nas Memórias, estar doente de
lepra significava viver “um inferno de chagas e lágrimas, pois o leproso é o trapo
humano!” Necessário “ter compaixão da sua dor, a maior de todas, pelo angustiado
desespero que o cerca”. Aconselhava então: “fugi do seu contacto, pois êle é o porta-
dor do mal da morte” (FRAGA, 1925, p. 48).
No epílogo da obra, Henrique, o personagem leproso, despede-se:
Já não posso mais escrever as minhas memórias. A vista dantes tão clara, es-
curece a cada instante. Tenho a impressão nítida da morte, que já me não
apavora como anteriormente. É com absoluta serenidade que a receberei…
Também falta muito pouco para eu morrer. Vivos, creio, só tenho os braços e
o cérebro. Enfim, despeço-me do mundo, sem levar saudades… Pudera não…
Quem dele mal se apercebeu e tanta mágoa nele curtiu… Morro no escuro
como um cão vadio. Tanto melhor: assim não divisarei, na minha agonia, a
miséria humana… A misericórdia divina é sábia e protetora não iluminando
o nosso último instante de vida. É o conforto dos desesperados. É o prêmio
de sua desdita.
Considerações finais
7 Dr. Antônio Alfredo da Justa, foi até sua morte, em 1941, o mais importante nome da le-
prologia cearense. Maiores informações sobre o médico e sua trajetória no combate à lepra
no Ceará, ver: PINHEIRO, Francisca Gabriela Bandeira, “O Médico dos Lázaros”: Antonio
Justa e o Combate à Lepra no Ceará. Fortaleza: 2016, Dissertação de Mestrado – Mestrado
Acadêmico em História (MAHIS-UECE).
Sônia Maria de Magalhães | Leicy Francisca da Silva |
420 Roseli Martins Tristão Maciel (orgs.)
A imagem aérea abaixo reflete a Colônia Antònio Diogo (não mais Leprosário
da Canafístula, referência ao Distrito em que se localizava, mas nesse momento seu
nome é uma homenagem ao benemérito que ajudara a construir a agora moderna
colônia) já no final da década de 1930, após ter passado por várias reformas. Em
1928, havia apenas as 32 casas em formato de U, representando a zona doente. Após
o Plano de Construção dos Leprosários de Gustavo Capanema, grandes reformas
foram realizadas no Leprosário Antonio Diogo. Segundo a imagem abaixo, vê-se
ainda em forma de U a zona doente, ao meio a intermediária, seguida pela área
administrativa (a primeira edificação à esquerda na imagem). Informo que quase
nada mudou em nossos dias do ponto de vista da conservação das edificações que
formam o complexo hoje, denominado, Centro de Convivência Antônio Diogo.
lou campanhas em prol de possibilitar aos segregados uma vida mais dígna. (LIMA,
2007, p 232).
Assim, pode ser que ao leitor que uma questão acerca do Dr. Atualpa/Anselmo
Fraga desperte curiosidade: foi o cotidiano do médico que inspirou a sua prosa ou
a sua prosa foi inspirada pelo seu cotidiano. Não importa. Como bem enfatizou
Antônio Candido (Apud, SERNA, 2003, p.11) toda ficção está sempre enraizada na
sociedade, pois é em determinadas condições de espaço, tempo, cultura e relações
sociais que o escritor cria seu mundo de sonhos, utopias ou desejos, explorando ou
inventando formas de linguagem. É uma construção: uma forma de impressão e
expressão de uma dada realidade.
Referências
Fontes
Bibliografia
LIMA, Zilda Maria Menezes. Uma Enfermidade à flor da pele: a lepra em Fortaleza
(1920-1937). Fortaleza, Secult/Museu do Ceará, 2009.
______. “O Grande Polvo de Mil Tentáculos”: a lepra no Ceará (1920-1942). Rio de
Janeiro, UFRJ, 2007. Tese de Doutorado.
RAMOS, Antônio. Uma Pena de Ouro.
SANTOS, Pedro Brum. Teorias do Romance:relações entre ficção e história. Santa
Maria: Editora da UFSM, 1993.
SERNA, Jorge Ruedas de. História e Literatura: Homenagem a Antônio Cândido.
Campinas, Unicamp, 2003.
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