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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

GEORGE ROCHA HOLANDA

A AUTODIREÇÃO
COMO EXPERIÊNCIA CRIATIVA
DO ATOR

NATAL/RN
2019
GEORGE ROCHA HOLANDA

A AUTODIREÇÃO COMO EXPERIÊNCIA CRIATIVA DO ATOR

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Artes Cênicas da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como requisito
para a obtenção do título de Mestre em Artes
Cênicas.

Área de Concentração: Artes Cênicas

Linha de Pesquisa: Pedagogias da Cena – Corpo


e Processos de Criação

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ana Caldas Lewinsohn

NATAL/RN

2019
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN 

Sistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART

Holanda, George Rocha. 



A autodireção como experiência criativa do ator /
George Rocha Holanda. - 2019. 

143 f.: il. 


Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do
Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Le-
tras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Artes Cê-
nicas, Natal, 2019. 

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ana Caldas Lewinsohn. 



1. Autodireção. 2. Processo criativo. 3. Diretor.
I. Lewinsohn, Ana Caldas. II. Título. 


RN/UF/BS-DEART CDU 792


Elaborado por George Rocha Holanda - CRB-X


GEORGE ROCHA HOLANDA

A AUTODIREÇÃO COMO EXPERIÊNCIA CRIATIVA DO ATOR

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Artes Cênicas da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como requisito
para a obtenção do título de Mestre em Artes
Cênicas

Aprovado em 1º de março de 2019.

Banca Examinadora

___________________________________________

Prof.ª Dr.ª Ana Caldas Lewinsohn

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Orientadora

___________________________________________

Prof. Dr. Adriano Moraes de Oliveira

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Membro Interno/PPGArC

___________________________________________

Prof.ª Dr.ª Verônica Fabrini Machado de Almeida

Universidade de Campinas – UNICAMP

Membro Externo ao Programa


À minha família e ao teatro,
Cada pessoa é um abismo. Dá vertigem olhar para dentro delas. (Freud)
Agradecimentos

A autodireção num solo é um tema solitário. Busquei este momento de


estar só para criar. Mas até para ficar só, é preciso o outro. Alguns
sempre levamos conosco, outros nos aparecem de vez em quando. Fa-
zer este mestrado foi um passo decorrente de anos. Um ajuste de con-
tas com o passado. Uma ampliação de meus limites. A escrita mais de-
safiadora até aqui.

Encontrar uma orientadora como Ana Caldas Lewinsohn fez muita di-
ferença. As palavras de estímulo e a generosidade, os tantos livros em-
prestados, a ajuda para experimentar e aceitar o risco. Ter uma Pós-
Graduação em Artes Cênicas – PPGArC, do DEART/UFRN, na minha
cidade, tornou tudo isso possível. Conheço o desafio que é para essa
manter-se. Torço pelo seu crescimento. Esse tempo por lá me fez co-
nhecer pessoas, professores, funcionários, amigos e colegas, que estu-
daram comigo, compartilharam tantos momentos, angústias e alegrias.

Distanciar-me da minha família para fazer este trabalho foi um desafio.


Não tenho palavras para agradecer aos meus pais, Pedro e Ana, por
tudo que me deram, pelo amor e por estarem sempre comigo. Meus
avós, Pedro, Edward, Lilia e Lourdes, pela história de afeto, pelo pas-
sado, pelas raízes. Minhas irmãs, Silvinha e Lilia, pela segurança, calor
e companhia nessa relação única. Meus cunhados, Sérgio e Thiago,
essa nova família que tive sorte de ter. Sobrinhos, Bento, Bernardo,
Caetano e Enrico, essas alegrias em minha vida.

Foi estudando sobre estar só que encontrei alguém que não me faz
querer estar só. Sem Melissa Lopes ao meu lado toda essa experiência
não teria o mesmo sentido. As conversas, a inspiração, a ajuda, a paci-
ência, o amor, o futuro.

Tantas pessoas ainda me ajudaram. Henrique, Andréa, Aurel e Cris,


que me lembram constantemente como é bom ter amigos. As conver-
sas sobre tudo e tudo caber neste sentimento que nos reúne. André
Carrico, pelo contato sincero e fraterno, pelos livros e ensinamentos.
Leila Bezerra, pelo troca constante e transcrição das entrevistas. O
Duas Estúdio, onde dei os primeiros passos na experimentação do que
é este trabalho. Elisa Elsie, Lara Ovídeo e Mariana do Vale, pela ami-
zade, provocações e dissertações. Ana Zanandréia, pelo material bibli-
ográfico e por me apresentar a única obra de que tive notícia a tratar
da autodireção. Jefferson, pelas conversas, textos, referências, por tirar
minhas dúvidas sobre filme-ensaio e cinema. Suellen, pelo material
bibliográfico valioso. Daniel Minchoni, por intermediar meu contato
com Michel Melamed, quem eu dificilmente conseguiria entrevistar
sem sua ajuda. Cássia Damasceno, pelas tentativas de falar com Grace
Passô. Antônio, pelos textos de filosofia. Todas as pessoas que me in-
centivaram, me deram ideias, me indicaram textos…

Agradeço imensamente a Nena Inoue, Georgette Fadel, Michel Mela-


med e Matteo Bonfitto, por terem se aberto comigo de maneira tão
generosa e carinhosa. Sem seus relatos, a autodireção seria um tema
ainda mais solitário. Vocês se mostraram grandes como imaginei que
fossem.

O estímulo para ousar mais neste trabalho, a atenção e o cuidado nas


sugestões e correções, eu devo à Prof.ª Verônica Fabrini e ao Prof.
Adriano Moraes de Oliveira, que participaram da minha banca de qua-
lificação e defesa.

Sou grato a todos os mestres que tive no teatro. Adelvane Néia, por ter
sido um destes e por me apresentar o palhaço. Os companheiros de
grupos, os diretores, as diretoras, os atores e atrizes com quem convi-
vi e por terem deixado algo comigo.

Agradeço à vida, por tudo o que ela me deu.


Resumo

Esta pesquisa tem como objeto a autodireção num trabalho solo. O estudo parte de
processos criativos para investigar modos de se dirigir, o papel do ator e do diretor, bem
como a dinâmica de quem cria ocupando ao mesmo tempo a direção e a atuação. O
trabalho também analisa a posição do performer quanto à sua autonomia criativa, a relação
do teatro de grupo e a criação do palhaço. Foram realizadas entrevistas com quatro atores-
diretores que passaram pela recente experiência da autodireção: Georgette Fadel (SP), Nena
Inoue (PR), Matteo Bonfitto (SP) e Michel Melamed (RJ). As entrevistas foram utilizadas para a
análise dos modos de autodireção e delas foram extraídos pontos de discussão sobre o tema.
Serviram de base teórica para o trabalho as obras de autores como Anne Bogart (2011), Peter
Brook (2002), Antônio Araújo (2011) e David Mamet (2014), Matteo Bonfitto (2002, 2013),
Cassiano Sidow Quilici (2015), Sophie Proust (2006), Fayga Ostrower (2014), entre outros.
Destaque-se ainda a utilização do método cartográfico – em face da intervenção do
pesquisador no processo e de aquele investigar a autodireção durante uma experiência de
criação –, bem como a escrita por meio de ensaios.

Palavas-chaves: Autodireção. Processo Criativo. Diretor. Ator. Performer.


Abstract

This research refers to performing actors directing themselves in solo performance. It


has arisen from creative processes intended to investigate different manners of directing, the
role of both the actor and director, as well as the dynamics of creators that work as actor-
directors. This present study also analyzes the perspective of a performer with regard to their
autonomy to create, the existing relationship of theater groups with the creation of a clown.
Four actor-directors who have recently directed themselves have been interviewed for this
study, namely Georgette Fadel (SP), Nena Inoue (PR), Matteo Bonfitto (SP), and Michel
Melamed (RJ). The purpose of the interviews was to survey the different approaches of these
actors who have directed themselves. Interview data brought about discussing topics on the
subject of this study. This present research has been grounded on the works of Anne Bogart
(2011), Peter Brook (2002), Antônio Araújo (2011) and David Mamet (2014), Matteo Bonfitto
(2002, 2013), Cassiano Sidow Quilici (2015), Sophie Proust (2006), and Fayga Ostrower
(2014), among other. It is important to mention that this work is a cartographic type of
research, firstly because the researcher intervenes in the process and investigates the act of
directing himself throughout the experience of creation, and secondly, it includes essays on
the development of its writing.

Keywords: Directing yourself. Creative Process. Director. Actor. Performer.


Lista de Imagens

Duas imagens do meu diário de montagem 23

Duas imagens do meu diário de montagem 26

Obras de Tehching Hsieh, Chema Madoz e Richard Serra 27

Quatro imagens do meu diário de montagem 66

Tilted Arc, de Richard Serra 95

Nena Inoue 105

Michel Melamed 116

Georgette Fadel 127

Matteo Bonfitto 136


Sumário

Apresentação 13

Do coletivo ao início 16

A forma ensaiada 29

O ator além da cena 37

Em busca de direções 46

Se embrenhando na autodireção 58

A autodireção em experimentações 77

Nota-imagem 95

Referências 99

Anexo – Entrevistas

Nena Inoue 105

Michel Melamed 116

Georgette Fadel 127

Matteo Bonfitto 136


Apresentação

Este trabalho foi escrito na forma de ensaios. Diferentes aspectos da autodireção ser-
vem de tema para cada um deles. A leitura pode ser feita de modo independente, sem exi-
gência de uma ordem preestabelecida. Tal opção, contudo, não afasta uma ideia de com-
plementariedade entre eles. Apesar da autosuficiência dos ensaios, é necessário o contato
com todos eles para a compreensão integral da pesquisa.

Ainda que sejam complementares, o leitor poderá identificar, nos textos, a repetição de
algumas informações. Isso se dá pela necessidade de reapresentá-las, ainda que brevemente,
a fim de não remeter quem o leitor a um outro ensaio, o que contrariaria a proposta de auto-
nomia dos mesmos. Por outro lado, possíveis ausências ou abordagens rápidas de alguns
pontos podem ser sentidas em alguns textos, o que se deve à escolha de (melhor) tratá-las
em outros1.

A independência de cada ensaio impossibilitou a existência de um texto introdutório e


conclusivo num formato mais convencional, sob o risco de mais uma vez se atentar contra o
estilo adotado e aproximar aqueles da ideia de capítulos. Esta Apresentação faz as vezes de
uma incompleta introdução, já que outros dados sobre a pesquisa se encontram diluídos nos
demais textos. Já o ensaio Nota-imagem pode ser entendido como mais próximo de uma
conclusão, já que de algum modo sintetiza ideias sobre a autodireção, por meio dos comen-
tários à obra Tilted Arc, do escultor norte-americano Richard Serra. Cada ensaio também
possui seus interesses e estilos próprios, por exemplo, alguns possuem um tom mais pessoal,
outros, mais objetivo, outros ainda, mais reflexivo…

A dificuldade de encontrar trabalhos sobre a autodireção fez com que eu buscasse dia-
logar com muitos autores que entendi se aproximarem do tema. Alguns deles foram mais re-
correntes que outros, mas nenhum percorreu todo o trabalho. O mais frequente foi a utiliza-

1Numa exceção à ideia da independência dos ensaios, utilizo as notas de rodapé numa contagem
única e contínua ao longo de todo o trabalho.
13
ção das entrevistas2 realizadas com artistas que experimentaram a autodireção – Nena
Inoue, Georgette Fadel, Michel Melamed e Matteo Bonfitto –, além do meu ponto de vista
pessoal sobre o tema, a partir do meu histórico e prática para esta pesquisa.

O ensaio que se chama Do coletivo ao início reflete sobre os motivos que me levaram à
autodireção, as opções por trabalhar sozinho e como se deu esta prática. Discuto aqui os
formatos de autodireção, em especial a do solo.

Em A forma ensaiada, discorro sobre a escrita deste trabalho em ensaios. Também rela-
ciono essa com o tema da pesquisa e ainda com o método cartográfico e a performance. Uti-
lizo como base teórica as obras de Paul Corrigan (2015) e Jorge Larrosa (2003, 2004), além
de Escóssia, Kastrup e Passos (2009).

Considero o ator e o diretor como os agentes ou posições componentes da autodire-


ção. Dedico, portanto, um ensaio a cada um deles. No caso do ator, não busco falar da fun-
ção em toda a sua amplitude, me interessa aqui o ator que se conecta com toda a criação,
em diálogo com outros campos do fazer teatral, numa visão que não o liga somente ao seu
papel na cena, mas o enxerga como uma das raízes da autodireção. Daí o título O ator além
da cena. Alguns dos autores utilizados aqui foram Antônio Araújo (2011), Adélia Nicolette
(2002), Miriam Rinaldi (2002), Matteo Bonfitto (2002) e Cassiano Sydow Quilici (2015).

Em busca de direções trata da atividade do diretor e intenta compreender suas respon-


sabilidades e modos de criação. O relato de diretores sobre sua função se mostrou essencial
para a construção desse ensaio, daí ser esse o referencial teórico principal: Peter Brook
(2002), Anne Bogart (2011), Arianne Mnouchkine (Féral, 2010), Eugenio Barba (2010), Rob-
son Haderchpek (2016) e David Mamet (2014). Também dialogo com minha própria experi-
ência e com as entrevistas realizadas.

Discuto sobre o tema principal desta pesquisa em Se embrenhando na autodireção.


Nele, penso sobre o modo como a autodireção pode se dar, seus recursos, significados e
ideias que se assemelham a essa forma de trabalhar. Tento levantar alguns autores que tratam
do tema e outros que não falam diretamente mas que vejo proximidade. Utilizo os escritos

2 As entrevistas foram submetidas e aprovadas pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, conforme comprova o número 83235517.5.0000.5537, do Certificado de Apresen-
tação para Apreciação Ética (CAAE); o número 3.078.606, do parecer que aprovou a pesquisa; e o
número 3.300.767, do parecer que aprovou o relatório final, os quais identificam os protocolos e
confirmam a veracidade dos mesmos na aba “Público”, na Plataforma Brasil (http://plataformabrasil.-
saude.gov.br/login.jsf).
14
de Sophie Proust (2006), Grace Passô (2015), Jean-Jacques Roubine (1998, 2002), David
Mamet (2014), Matteo Bonfitto (2013), Eleonora Fabião (2008) e Josette Féral (2008).

Em A autodireção em experimentações, analiso mais especificamente o conteúdo das


entrevistas realizadas com Nena Inoue, Michel Melamed, Georgette Fadel e Matteo Bonfitto.
Identifico nelas pontos em comum e diferenças a partir da prática e reflexão de cada um dos
entrevistados. Também incluo minha própria experiência na discussão proposta.

Ressalto ainda alguns outros pontos deste trabalho. Faço a escolha de não realizar cita-
ções diretas. Entendo que tal recurso faria me distanciar da prática ensaística – por meio da
qual toda a experiência passaria por uma visão mais pessoal. Faço exceção apenas às falas
dos entrevistados, cuja contribuição se tornou tão valiosa que não teria sentido não transcre-
ver suas próprias palavras, e aos poemas utilizados, em face das suas construções únicas que
impedem qualquer modificação na sua forma.

Também opto por algumas desobediências formais quanto às regras determinadas pela
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), as quais poderão ser notadas ao longo do
texto. A intenção é uma maior expressão criativa, ainda mais pela pesquisa se dar no campo
das Artes, em que se entende caber transgressões ao rigor formal.

Por fim, chamo a atenção para o título do trabalho, ele resume minha trajetória com
relação ao tema. Um ator que experimenta criar a partir do formato da autodireção.

15
Do coletivo ao início

A ideia de desenvolver uma pesquisa sobre autodireção num trabalho solo surgiu para
mim como resultado da minha trajetória. Por muitos anos, me vi um ator de teatro de grupo3.
Foi em coletivos que comecei a fazer teatro e tive minha formação artística4 . Foi lá que eu
descobri formas de trabalhar, aprendi técnicas e sua ética, conheci mestres e parceiros. Mas
também foi onde enfrentei as dificuldades da prática cotidiana e da convivência com o ou-
tro.

Pensava que em cada grupo que estivesse nele permaneceria por toda a vida. Aconte-
ceu que por diversos motivos não me fixei em um único e acabei por passar por vários5.
Comecei a experimentar o movimento de entrar em um grupo e depois de um tempo não
prosseguir nele. De início, o intervalo entre um coletivo e outro era apenas um período de
espera até que a oportunidade por um novo grupo surgisse. Só com o tempo descobri que
esses momentos sozinho também podiam ser proveitosos.

Fui entendendo que podia atuar fora de um grupo. Nos intervalos entre os coletivos,
passei a participar de montagens mais curtas e com um número de apresentações definidas6.

3 O teatro de grupo, no Brasil, tem suas raízes na década de 60, fruto de um contexto político especí-
fico, em que o fazer teatral e sua investigação tem íntima relação com uma expressão de indignação
e luta por direitos civis, obstruídos por um regime militar que durou de 1964 a 1985. Mesmo com a
redemocratização e a implantação de políticas culturais pelos governos federais posteriores, a preo-
cupação política e a pesquisa estética permaneceram como pauta dos coletivos (CARREIRA apud
YAMAMOTO, 2012).
4Minha formação acadêmica foi em Direito, pela UFRN - Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (1996-2000).
5 Integrei, na cidade de Natal/RN, os grupos: Teatro do Puro Enquanto (2003), Pporppeta Clowns
(2003-2006), Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare (2004-2007), Grupo Beira de Teatro
(2008-2009) e Arkhétypos Grupo de Teatro (2011-2015). Desenvolvo ainda um trabalho ligado ao
cinema no Destino Coletivo (desde 2015), grupo de produção audiovisual, e faço parte de um coleti-
vo de crítica teatral, o Farofa Crítica (desde 2016).
6 Destaco os trabalhos: O Auto do Menino Deus (auto natalino dirigido por João Júnior, em 2007),
Até que a vida nos separe (espetáculo participante do Festival Agosto de Teatro, em 2009, e dirigido
por Eduardo Galvão), o projeto Cravo do Canavial (grupo de estudo sobre Maracatu dirigido por Car-
la Martins, em 2011) e a leitura dramática do texto Um bonde chamado desejo, de Tennessee Willi-
ams, dirigido por João Marcelino. Todos esses trabalhos envolveram vários participantes e tiveram
uma duração determinada.
16
Esses trabalhos me deram a oportunidade de aplicar o que aprendia nos grupos, além de vi-
venciar novas experiências e aproximações com outras pessoas.

Também construí um percurso para além dos coletivos e do teatro, experimentando ou-
tras linguagens. O audiovisual7 sempre foi uma área com que tive proximidade, posterior-
mente conheci e/ou pratiquei a performance8, a fotografia9 e artes plásticas10. Atuar não mais
se restringia ao palco e criar não mais se limitava ao teatro, apesar de esse sempre ser minha
mola-mestre e toda a bagagem adquirida ser pensada para ser aplicada de alguma forma na
cena.

A vivência não somente no teatro de grupo me fez construir uma autonomia como ator
que não mais enxergava o coletivo como única forma de desenvolver uma prática artística.
Estar só me fez entender a potência dessa situação e foi o primeiro passo que me levou à au-
todireção e ao solo.

Um outro impulso a me aproximar do tema foi minha experiência com o palhaço. Pa-
ralelamente às minhas passagens por grupos de teatro, sempre mantive o exercício da palha-

7 Atuei em curtas-metragem, sendo alguns deles: O Protocolo (2000, dirigido por Paulo Henrique
Borges), Olhos D´Água (2011, dirigido por Márcia Lohss), Ília (2014, dirigido por Dhara Ferraz e Mo-
niky Rodrigues), Três vezes Maria (2014, dirigido por Márcia Lohss) e Mar de Zila (2016, dirigido por
Ariane Mondo). Também trabalhei com VTs comerciais e teledramaturgia. E fiz uma Especialização
de Cinema pela UFRN (2016-2017).
8 Na performance destaco a participação em oficinas com o Cambar Coletivo (AL, RJ e Inglaterra),
em 2014, e com o coletivo ES3 (RN), também em 2014. Desta última vivência resultou a participa-
ção na I Mostra de Performance, Corpo, Processo e Criação (2014), realizada pelos próprios minis-
trantes da oficina, na Pinacoteca do Estado do Rio Grande do Norte (em Natal).
9A fotografia se deu sob uma ótica artística e performativa e ocorreu por meio de diversas oficinas no
Duas Estúdio, espaço cultural em Natal/RN, ministradas pelas fotógrafas Lara Ovídeo, Elisa Elsie e
Mariana do Vale. Entre os quais estão: Residência Artística em Fotografia (2015), Fotografia como Ex-
pressão Artística (2015), Fotografia Básica (2016), O Cotidiano Fotografado (2016) e Processos Criati-
vos (2016). Algumas das imagens produzidos nessas oficinas foram expostos no mesmo espaço e ser-
viram ainda como pesquisa para o processo criativo objeto de estudo neste Mestrado.
10Entre os anos de 2011 e 2014, fiz, por três vezes, o Curso de História da Arte, ministrado pelo Prof.
Dr. Everardo Ramos, que também é responsável pela cadeira de História da Arte no Departamento de
Artes da UFRN.
17
çaria11. Inicialmente vivenciado em oficinas e em apresentações (saídas12 ) com outros palha-
ços, cheguei a trabalhar no formato de duplas e a formar um coletivo na tentativa de pesqui-
sar a linguagem. Praticamente toda a minha formação na área esteve ligada à figura de Adel-
vane Néia13. Palhaça, atriz e diretora, natural de Jacarezinho/PR, há muito tempo vivendo e
trabalhando em Campinas/SP, ela construiu também uma história em Natal/RN, o que possi-
bilitou nosso encontro.

Depois de mais de uma década de várias oficinas14 com Adelvane e apresentações nes-
ta linguagem, tive a ideia de montar um número de palhaço para me inscrever no Festival de
Cenas Curtas da Casa da Ribeira e a convidei para dirigir, numa das suas vindas a Natal. Da
experiência surgiu Canudo vai ao palco15 (2013), que foi selecionado para a mostra. A partir
daí, sem a presença constante de Adelvane na cidade e com o desejo de continuar criando
com o palhaço, resolvi me dirigir. Para isso me utilizei do que aprendi no trabalho com ela,
além do meu próprio conhecimento do palhaço e da intenção de construir um modo de tra-
balhar sozinho.

Criei Sujinho16 (2014), a partir da ideia do meu palhaço se atrapalhar com uma sujeiri-
nha, e Canudo se apaixona17 (2016), da ideia do que aconteceria se meu palhaço se apaixo-
nasse por alguém da plateia. O ponto de partida era a descoberta de um mote para o núme-

11 Segundo Burnier (2001), o termo palhaço possui o mesmo sentido que clown, mas eles apresentam
diferenças quanto à linha de trabalho. O palhaço estaria ligado à ideia das gags e números. O clown
também trabalha com números, mas obedeceriam principalmente à sua lógica pessoal do clown.
Aqui, para fins deste trabalho, não vou diferenciar os termos, até por observar que na prática o uso
tem sido indistinto.

A saída é uma intervenção de clown em espaços (públicos ou privados) e que tem por base, geral-
12

mente, a improvisação, mas também pode abarcar pequenas cenas (números) preparadas anterior-
mente (Burnier, 2001).
13Adelvane tem sua formação na linha do trabalho energético e da antropologia teatral pesquisada
por Luís Otávio Burnier, fundador do Lume Teatro (Campinas/SP), continuada hoje pelos atores-pes-
quisadores do Lume Teatro.
14A oficina de Adelvane de introdução à palhaçaria, O Clowns e sua Poética (2002) foi minha pri-
meira oficina de teatro na vida. Depois desta, fiz várias outras ao longos dos anos, dentre as quais
destaco a de Números e Duplas e as de Assessoria Técnica.
15 Canudo é o nome do meu palhaço.
16Sujinho também foi selecionado para participar do Festival de Cenas Curtas da Casa da Ribeira na
edição de 2014.
17Canudo se apaixona também foi selecionado para participar do Festival de Cenas Curtas da Casa
da Ribeira, na edição de 2016. Este número vem sendo trabalhado para tornar-se um espetáculo, o
que ocorre desde 2018 e passou a acontecer concomitantemente com o processo para o qual me
submeti como pesquisa para este mestrado.
18
ro, do qual desdobravam-se ideias, que eu ia testando até desenvolver a estrutura do traba-
lho. Tinha uma ideia e a testava, da tentativa vinha mais uma ideia, e testava a nova ideia.
Descartava algumas, ampliava outras. Ao mesmo tempo, ia pensando a sonoplastia e ele-
mentos de cena.

Apesar do amadurecimento do trabalho com o palhaço e da experiência em estar só,


dirigir tornou-se um desejo que não se limitava somente a essa linguagem. Após ter passado
por vários processos criativos e ter tido contato com vários diretores, percebi que, ao longo
do tempo, comecei a nutrir discordâncias quanto às opções e visões dos encenadores. Acha-
va que alguns sentidos do texto poderiam ser diferentes, algumas escolhas conceituais pode-
riam ser outras, algumas cenas poderiam se dar de outra forma. Lembro, por exemplo, que
durante a montagem do espetáculo Aboiá18 (2013), pelo Grupo Arkhétypos de Teatro, um
processo colaborativo em que estava no elenco, tive o desejo de a pesquisa sobre o corpo
fosse continuada, mas as circunstâncias do processo o fizeram levar para uma próxima etapa
de encaminhamento dramatúrgico.

Dessas discordâncias, percebi que minhas ideias cada vez mais abarcavam questões da
encenação, daí notei o desejo de dirigir. Assim como o meu processo com o palhaço, a ideia
de dirigir foi crescendo ao longo de vários anos, com poucas e tímidas experiências19 e al-
gumas negativas minhas por não me me entender capaz. Somente durante este mestrado é
que, coincidentemente, passei a dirigir alguns projetos20 de forma mais continuada.

Dirigir significava para mim pensar a obra como um todo, seus conceitos e muitos de-
talhes. A preparação para essa prática decorreu da observação dos diretores com quem tra-
balhei e dos espetáculos e filmes21 que assisti, os quais despertaram em mim um senso analí-
tico.

18 O espetáculo foi dirigido por Robson Haderchpek, professor do DEART/UFRN.

Destaco a direção do show musical Histórias e canções de ninar, do músico Alexandre Gurgel (DJ
19

Macacco), selecionado para o Festival COSERN Musical no ano de 2005, evento viabilizado pela
COSERN – Companhia Energética do Rio Grande do Norte.
20 Dirigi a leitura dramática do texto Conselho de Classe, do dramaturgo carioca Jô Bilac, com um
elenco na sua maioria formada de professores do Curso de Teatro do DEART/UFRN, para o II Palavrar
– Ciclo de Leituras Dramáticas, realizado no mesmo Departamento e de iniciativa do Prof. Dr. André
Carrico. E estou dirigindo atualmente um processo criativo com o Grupo Avante, formado por alunos
do Curso de Teatro do DEART/UFRN, desde agosto de 2018 e com previsão de estreia no primeiro
semestre de 2019.
21O Cinema sempre foi um campo de estudo para a direção, no sentido de como esta pode se dar a
partir da uma visão autoral do seu diretor.
19
A prática do palhaço, a vontade de me dirigir e de estar só me levaram a ideia de reali-
zar um trabalho diferente, no qual pudesse utilizar outras referências. Assim, me comprometi
a me dirigir sozinho. Um solo não é o campo exclusivo da autodireção. Essa também pode
ocorrer em trabalhos coletivos, em que dentre os vários atores do elenco, um ou mais de um
seja o(s) diretor(es). Nesse caso, ele tem de lidar com a encenação em si e também com os
demais atores com quem contracena. Esta situação foi vivenciada por uma das entrevistadas,
a atriz e diretora Georgette Fadel, em seus espetáculos Gota D’Água (2006) e Bartolomeu,
que será que nele deu? (2000).

Uma outra variação que envolve a autodireção é o caso de um ator, atuando sozinho
ou não, codirigir um trabalho, sendo que o outro diretor ou diretores não se encontrem no
elenco. Essa situação consiste numa divisão da direção, sendo que um dos diretores se en-
contra na cena e o outro não. Uma possibilidade do desenrolar de um trabalho assim é o di-
retor que não se encontra na cena ser considerado como o que teria “a visão mais distancia-
da” do trabalho, o que pode desequilibrar a autoridade entre eles, em desfavor do que está
em cena, reforçando o argumento apontado por Sophie Proust (2006) da dificuldade de se
autodirigir sem um olhar externo.

A chamada criação coletiva experimentada por alguns coletivos teatrais também pode
ser entendida como uma forma de autodireção. Stella Fischer (2003) explica que há uma
descentralização da criação por contar com a livre interferência dos atores (e dos demais
participantes). A autora destaca que isso não elimina o aparecimento de líderes, que podem
tomar a frente do processo.

No processo colaborativo, pode-se também perceber uma participação dos atores na


direção, uma vez em que eles possuem liberdade para participar, mas numa medida menor
que na criação coletiva. Enquanto nessa, os atores propõem quanto a toda encenação e a
decisão final vem desse confronto de ideias, na outra, os atores interferem, mas a decisão
final fica por conta do diretor, que responde com a última palavra quando da diversidade de
opiniões.

Dentre essas possibilidades, opto por investigar a autodireção sob uma perspectiva de
um solo, em que as posições de ator e diretor são ocupadas exclusivamente por mim. Pereira
(2014) entende que solo é um gênero teatral, o qual tem ganho maior destaque no Brasil re-
centemente. O autor lembra para uma maior frequência de solos nos países de língua ingle-
sa, em que se utiliza o termo One-Man Show ou One-Woman Show, ou ainda Solo Show.

20
Há também uma proximidade daqueles com a espécie Stand-Up Comedy22, solo cômico de
origem inglesa.

Betancour (2015) aponta que o solo ainda pode ser chamado de monólogo. Este termo
possui relação mais próxima do texto dramatúrgico23 , podendo inclusive ser entendido como
sinônimo de solilóquio ou como um gênero deste último24. Opto por não utilizar o termo
monólogo em razão da sua associação à dramaturgia, a qual não foi o foco da minha pes-
quisa. Meu trabalho acaba se assemelhando com a proposta de Betancour (2015), que pes-
quisa um espetáculo (ou obra) unipessoal, em que a ideia da autoria estaria em primeiro
plano em função da cumulação do papel de ator, de diretor e de dramaturgo. No meu caso,
ainda que se discuta a autoria, o processo criativo e a relação ator/diretor se mostram até
mais importantes que a obra em si.

Assim, opto por utilizar o termo autodireção, por ser mais específico em relação ao que
pretendo pesquisar e o termo solo por ser mais amplo quanto à prática solitária.

Definida a ideia de atuar e dirigir ao mesmo tempo, quanto ao tema do trabalho, pen-
sei que ele25 deveria tratar de minha própria vida. Sem ter clareza sobre que partes escolher,
realizei um trabalho de mapeamento de mim mesmo, que entendi como uma cartografia ar-
tístico-afetiva. Comecei a fazer um levantamento de livros, filmes, imagens, músicas, lem-

22 Pereira (2014) explica que o Stand-Up Comedy é caracterizado pela presença em pé do comedian-
te, a utilização de microfone e a quebra da “quarta parede”. No Brasil, Jô Soares, Chico Anysio e Ary
Toledo se enquadrariam nesta categoria.
23Betancour (2015) ainda ressalta para o termo monodrama. Nesse, haveria apenas um ator, mas
uma multiplicidade de personagens e discursos. A expressão também me parece excessivamente li-
gado à dramaturgia.
24 Pavis, 2008.
25 O processo criativo em questão foi iniciado no dia 24 de dezembro de de 2016 e teve diversos in-
tervalos na sua realização, alguns de meses, por circunstâncias pessoais. Interrompi a pesquisa para
fins da presente análise, em 18 de novembro de 2018. Essas informações foram extraídas do relatos
no meu diário.
21
branças, objetos, desejos, histórias… Tudo isso me rendeu uma longa lista de itens26. A ideia
seria revisitar todas essas obras e tentar identificar nelas o que de mim entendia haver ali.

Essa proposta encontra eco no pensamento da atriz e diretora paulista Georgette Fadel
(2018). Ela explica que num trabalho solitário, como o que ela se autodirigiu, quem cria re-
corre a tudo o que tem, toda sua história e experiência, a fim de dar conta do projeto. Ela
chama esse processo de “trabalho-funil”, em que toda a sua bagagem artística e pessoal seria
utilizada no processo de criação, que seria o funil mencionado, a fim de auxiliar a realiza-
ção do trabalho. Transcrevo sua fala (2018):

Então... Agora, quando esse trabalho é solitário, onde você dirige, eu acho
que são os momentos onde você pega... Olha, eu tô falando você, mas sou
eu, tá... É o que tem acontecido até agora na minha vida. Eu acho que são os
momentos onde eu peguei o que eu tinha na mão. Eu peguei o que eu era até
aquele momento. Eu peguei... Eu peguei o que eu podia, o que eu tinha
construído sozinha, o que eu sou, e coloquei na roda o que eu sou, entende?
O que eu tenho, o que eu sou, o que eu aprendi, o que eu treinei, o que eu
desenvolvi. E quase num funil... Eu chamo até de trabalho-funil… Trabalho-
funil... Você pega a tua vida inteira e em pouco tempo você constrói um fu-
nil. Você constrói uma peça de teatro, uma forma, onde você vai se empres-
tar, onde o teu ser vai se emprestar como humano, como alguém que cons-
truiu alguma coisa até aquele momento na vida e pensa tal coisa. Então, pra
mim, esses trabalhos solitários estão sempre associados a esse trabalho-funil,
sabe, esse trabalho onde eu pego o meu repertório, onde eu pego o repertó-
rio da minha troca com todo mundo que eu trabalhei até esse momento, o
que eu penso da vida, o que tá acontecendo no mundo, as coisas que estão
pungindo o meu coração, atingindo o meu coração... Eu pego esse arcabou-
ço todo da vida e coloco num trabalho, coloco numa fala, e escolho esse tex-
to, e vou pro fronte com as armas que eu tenho, sabe…

Coloquei, portanto, todo o material que colhi neste funil. Meu objetivo era, por meio
desse encontro com tantas obras e objetos, identificar neles algo de pessoal, uma percepção
própria pelo reflexo, pela projeção, pelo que neles me tocava. Visitei e revisitei grande parte

26 O inventário consistiu em obras literárias como: O Apanhador nos Campos de Centeio (John Salin-
ger), William Wallace (Edgar Allan Poe), O Velho e o Mar (Ernest Hemingway), Hamlet (William Sha-
kespeare), O homem duplo (Dostoiévski), A paixão segundo G. H. (Clarice Linspector), entre outros.
Imagens de obras do escultor norte-americano Richard Serra (em especial o Tilted Arc) e as fotografias
do espanhol Chema Madoz. As performances do americano-taiuanês Tehching Hsieh. Além disso,
muitas músicas, em especial posso citar, A canção que chegou (Cartola). Também vários filmes (como
O Turista Acidental e Império do Sol), ideias para o trabalho e inúmeros objetos que mantinha uma
relação afetiva. Finalmente, ainda constava desse apanhado, uma série de fotos que tirei de mim
mesmo, numa pesquisa fotográfica-perfomática para oficinas de fotografia das quais participei no
Duas Estúdio.
22
dessa lista. Não consegui reler todos os livros, os quais na maioria já havia lido em outros
momentos da vida, e confiei na minha memória.

A dificuldade em encontrar, num primeiro momento, a reverberação que esperava ob-


ter a partir dessas obras, me fez considerar e experimentar a utilização literal de trechos e
imagens na cena, num trabalho de colagem de várias delas. Entretanto, desisti dessa ideia,
por sentir não ser isto o que queria. Também cheguei a cogitar a ideia de misturar esse mate-
rial com partes da minha vida ou da história da minha família, o que poderia aproximar o
trabalho de uma autoficção27. Mas também desisti disso.

Imagens do meu diário de montagem

A partir da lista, realizei práticas de criação: improvisações corporais, escrita de textos


e diários, gravação de fluxos de pensamento como experimentações dramatúrgicas e realiza-
ção de desenhos como forma de produzir imagens que pudessem ser referência para a cena.
Esses experimentos serviram para me aproximar desse universo pessoal e foram essenciais
para compreender a importância deste trabalho.

27A autobiografia possui um compromisso com a realidade dos fatos e tem no escritor francês Philip-
pe Lejeune (1938) um estudioso sobre o assunto. O tema foi alvo de confronto com a criação do ter-
mo autoficção, pelo também francês Serge Doubrovsky (1928-2017), que envolve o trânsito entre a
autobiografia, a ficção e o discurso referencial (Steltzer, 2016).
23
Independentemente dessa listagem, havia ideias que desde o início queria trabalhar e
que não diziam respeito às obras listadas. Queria operar a luz e o som da própria cena, as
quais também eu iria criar a partir da concepção total do trabalho, queria trabalhar uma
cena que tivesse uma proximidade com códigos da vida cotidiana e, sempre pensei, em tra-
balhar uma cena com a utilização do aparelho celular. Também tinha uma ideia do que não
queria. Com o tempo descobri que não queria uma bricolagem de referências, não queria
uma autoficção ou autobiografia, e não queria uma teatralidade “exagerada”, mas um traba-
lho não representacional, se posso chamar assim. Essas últimas ideias convergiram com a
entrevista de Georgette Fadel sobre seu processo, no qual vi similaridades com o que queria
trabalhar, quando ela diz que não queria “maneirismos” na encenação e na interpretação.

Algumas dessas opções do que queria e não queria fazer também eram próximas à fala
de Nena Inoue, ao perceber que o processo foi clareando desejos e descartando opções que
não me interessavam.

GEORGE – Eu fico com a impressão que você sabia muito bem o que queria
e na parte que você não sabia ainda com clareza, você sabia o que não que-
ria e aí teve a grande sorte ou sei lá, fortuna, de ter encontrado pessoas que
tinham uma sensibilidade de estarem exatamente nesse lugar e de entender o
que você não queria e o que você queria.

NENA – Sim, é! Eu sabia o que eu não queria... Eu falo que a gente saber e
assumir o que a gente não quer mais é meio caminho andado, né. Assim, eu
falo isso pra vida assim!

(…)

GEORGE – Mas todas essas decisões vinham de você, na verdade, né. Você
tinha muita certeza de que queria essas coisas...

NENA – Sim, a única coisa que eu não tinha certeza era a sonoplastia.

GEORGE – Que no final você teve a certeza...

NENA – Que no final eu tirei de vez.

GEORGE – Mas você também tirou, então...

NENA – Tirei, é... E a Babaya ainda falou: “Nena, a gente devia ter feito isso
desde o início, você tá certíssima.”... Falei: “Pois é...”.

Um outro interesse nesse processo era utilizar-me de elementos da performance. Pen-


sava num trabalho que ficasse entre o limite da representação e da não representação, e que
lidasse com questões cotidianas. Um dos primeiros passos que realizei no processo foi a ela-
24
boração e a realização de programas performativos28. O objetivo era me desafiar a progra-
mas simples e curtos, com ações bem definidas, de cunho íntimo, as quais planejei pouco
antes de realizar. Passei a observar meu dia a dia e ao identificar situações em que sentia
medo e me sentia desafiado29, passei a encará-las como ações a serem realizadas. Essas di-
ziam respeito a questões triviais, como ver um filme de uma determinada forma, usar uma
determinada peça de roupa em determinada circunstância… mais do que elas em si, era
uma sensação de alerta que sentia que me chamava a atenção e me fazia decidir pela sua
realização.

Ao longo do processo, percebi que fui abandonando um modo de proceder que me


remetia a processos passados. Um exemplo disso foi o abandono gradativo de um trabalho
corporal baseado num trabalho energético, o qual pratiquei em diversos processos criativos e
oficinas, como a do Lume Teatro. Comecei a pensar que a criação poderia se dar por toda
uma variedade de experiências e não somente nesses momentos de prática corpórea. Essa
mudança de parâmetros para um trabalho mais pessoal encontra relação com a fala de Mat-
teo Bonfitto (2018) sobre seu processo criativo e a necessidade desse se dar em um modo
diferente do que já havia praticado:

MATTEO – Então, teve uma lógica muito particular aqui que não foi essa ló-
gica, digamos, que é mais convencional assim, do treinamento, materiais e
dramaturgia, mas a lógica foi bem entrelaçada, né.
[…]
MATTEO – […] Na verdade as coisas se conectam, né... O que, se a gente
pensar nessa relação entre a preparação, material e dramaturgia, na verdade
as próprias práticas... É que normalmente nos processos criativos a gente vê
assim uma lógica que é: você treina, você tem práticas de preparação, aí
você utiliza isso nos materiais que você tá construindo, e se cria uma drama-
turgia. Na verdade nesse caso a ordem não foi essa assim, foi o próprio mate-
rial, a exploração do material foi gerando a necessidade de explorar práticas
de preparação que depois desembocaram numa dramaturgia e como já exis-
tia também uma parte dramatúrgica que tava definida, a própria dramaturgia
também já definia materiais que definiam práticas de preparação....

28Eleonora Fabião (2013) define programa performativo como um conjunto de ações determinadas,
expressas de forma clara e com exatidão, realizado pelo artista, público ou ambos, sem ensaio.
29Alguns exemplos cotidianos: um convite para lerem o tarô para mim, o enfrentar algumas situações
sozinho… Pensei em diversos desafios, acabei não realizando todos eles, mas a prática foi proveitosa
quanto aos que aconteceram.
25
Essa busca por modos de criar sozinho me fez encontrar diversos momentos de caos e
angústia, em que não sabia como proceder. A ideia de desistir do processo ficou recorrente,
mas ao mesmo tempo não conseguia decidir pelo fim do trabalho. Comecei a ter a sensação
de que levava minha busca e as tentativas de criação para todo o lugar, que vivia o processo
a todo momento. Levava sempre comigo meu diário e me percebia atento a querer captar
alguma informação em mim que pudesse utilizar para a cena. Virei uma cobaia de mim
mesmo, um experimento ambulante.

Imagens do meu diário de montagem

Fayga Ostrower (2013) diz que a descoberta do nosso potencial é uma necessidade in-
terna e profunda. Talvez por isso não tenha desistido, mas ao contrário, ampliado e desloca-
do a criação da sala de ensaio para o dia a dia. Foi nesse momento que comecei a me certi-
ficar de algumas opções que tinha desde o início: a não representação e o lidar com ques-
tões cotidianas, tendo como ponto de partida a utilização do celular. Notei que o celular pa-
recia um mote interessante para desenvolver questões próprias e retomar algumas que identi-
fiquei no meu mapeamento inicial.

Assim comecei a trabalhar com a ideia de uma cena que lidasse com o aviso de desli-
gar o celular para o espetáculo. As demais cenas que foram se desenrolando a partir desta
não diziam respeito tanto ao celular em si, mas eram desdobramentos dessa. Ensaiava ima-
ginando um público, num trabalho que dialogasse com ele. Reencontrei desenhos meus, do
26
início do processo, em que pensava a disposição do público e sempre me via em contato
direto com ele. Um processo de aceitação de ideias que tive há muito tempo e que perma-
necia em mim.

Imagens de três dos trabalhos que mais me inspirou no processo. Da esquerda para a direita: A per-
formance realizada por Tehching Hsieh, que passou um ano em Nova Iorque (EUA) sem entrar em
lugares fechados (com teto), uma fotografia de Chema Madoz e o Tilted Arc, de Richard Serra (crédi-
to: David Aschkenas)

Da minha lista inicial, algumas poucas obras resistiram ao longo do tempo: algumas
fotos que havia tirado há alguns anos para minha pesquisa inicial durante as oficinas no
Duas Estúdio, a performance de longa duração do americano-taiuanês Tehching Hsieh, que
perambulou por uma ano pelas ruas de Nova Iorque sem entrar em lugares cobertos, as
obras de Chema Madoz que sempre me marcaram pelo humor e poesia visual e a escultura
Tilted Arc, de Richard Serra, um trabalho que sempre foi muito marcante para mim. Além
dessas, a música de Cartola, A canção que chegou, sempre voltava a minha mente em diver-
sos momentos e que sempre a cantei, inclusive em aulas de canto que fiz durante esses últi-
mos anos.

27
Todas essas referências serviram talvez de baliza, por representarem questões que me
eram caras. O humor das fotos de Chema Madoz30, o mergulho interno e cotidiano da per-
formance de Tehching Hsieh31, a ruptura proposta pelo Tilted Arc, de Richard Serra32, e o afe-
to da música de Cartola. E minhas fotos, por me retratarem por uma visão muito pessoal.
Tudo isso me percorrendo internamente, num movimento de construção e desconstrução,
numa mistura de angústia, lembranças e uma persistência que nem eu saberia como expli-
car. Um processo cuja pessoalidade na criação não poderia compartilhar com ninguém.
Num processo que em parte era clara e em parte foi surgindo das sombras.

O poeta Augusto dos Anjos33, em sua obra Eu e outras poesias, a qual sempre acreditei
ter relação com meu processo mas que nunca soube como me aproximar, fala justamente da
criação e do seu desenvolvimento, bem como da luta pela sua existência:

A idéia


De onde ela vem?! De que matéria bruta 

Vem essa luz que sobre as nebulosas 

Cai de incógnitas criptas misteriosas 

Como as estalactites duma gruta?! 


Vem da psicogenética e alta luta 

Do feixe de moléculas nervosas, 

Que, em desintegrações maravilhosas, 

Delibera, e depois, quer e executa! 


Vem do encéfalo absconso que a constringe, 

Chega em seguida às cordas do laringe, 

Tísica, tênue, mínima, raquítica... 


Quebra a força centrípeta que a amarra, 

Mas, de repente, e quase morta, esbarra 

No mulambo da língua paralítica.

30 Nome artístico de José Maria Rodríguez Madoz (1958), um dos principais fotógrafos espanhóis da
atualidade. Disponível em: http://www.chemamadoz.com/
31Performer americano-taiunês, nascido em 1950, mas naturalizado norte-americano, conhecido por
performances que duraram um ano. Disponível em: https://www.tehchinghsieh.com
32Escultor e vídeoartista norte-americano, nascido em 1938, ele possui trabalhos expostos em diver-
sos museus pelo mundo, como o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque – MoMA (EUA) e o Museu
Guggenheim de Bilbao (Espanha). Disponível em: https://www.moma.org/calendar/exhibitions/14
33 Poeta paraibano (1884-1914), cuja obra é ligada a movimentos como o parnasianismo e o simbo-
lismo. Ele sempre foi um autor muito admirado pelo meu pai.
28
A forma ensaiada

Lembro do dia34 em que expressei para minha orientadora a vontade de escrever minha
dissertação de mestrado na forma de textos curtos. Eu vinha contaminado pela experiência
da escrita de críticas teatrais35 e vinha amadurecendo há um tempo a ideia de não fazer uma
dissertação organizada em capítulos. Eu havia tido contato recentemente com a escrita aca-
dêmica em um trabalho de conclusão de especialização36 e queria experimentar uma outra
forma de escrever sobre uma pesquisa. Ela me chamou a atenção para a escrita de ensaios.

Ainda que o ensaio não fosse um estilo estranho a mim, nunca tive maior familiaridade
com ele até o ano de 2016, quando descobri uma das suas variações, o filme-ensaio, na
mesma especialização. Esse último ficou caracterizado por questionar a forma cinematográ-
fica e não se submeter às convenções, tendo sua força na visão pessoal do seu criador37. O
assunto tem rendido recentes publicações sobre o tema, como O filme-ensaio: desde Mon-
taigne e depois de Marker (2015), do norte-americano Timothy Corrigan, uma das primeiras
a ganhar destaque ao discuti-lo.

Muitos diretores já produziram filme-ensaio, o que não mais o torna uma novidade,
ainda que apenas recentemente ele tenha passado a ser mais conhecido38. Chris Marke39 ,

34 O encontro aconteceu no final de 2017.


35 A atividade crítica vinha sendo exercida desde do final do ano de 2016, quando fundei, juntamen-
te com outros artistas de Natal/RN, o coletivo Farofa Crítica (www.farofacritica.com.br), em que pu-
blicamos críticas de teatro, dança e performance.
36 Refiro-me à Especialização em Cinema realizada pelo Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, de fevereiro de 2016 a junho de 2017, por iniciati-
va do Prof. Alex Beigui e da Prof.ª Maria Helena Braga e Vaz da Costa. Meu trabalho de conclusão
teve o título Uma luz sobre ‘O Pátio’ de Glauber Rocha, no qual realizei um estudo sobre o curta-
metragem O Pátio (1959), de Glauber Rocha, e tive a orientação da Prof.ª Maria Helena Braga e Vaz
da Costa.
37 Corrigan, 2015.
38 Corrigan (2015) entende que o filme-ensaio tem suas primeiras versões nas obras do norte-ameri-
cano Davida Wark Griffith, com A corner in wheat (1909), e do russo Sergei Eisenstein, com O capi-
tal (1920). A forma ganhou novo impulso a partir dos anos 1940, com o aparecimento de novos rea-
lizadores, que juntamente com teóricos e críticos, celebraram aquela forma cinematográfica.
39Cineasta, fotógrafo, escritor e artista multimídia francês (1921-2012), um dos primeiros a trabalhar
com o filme-ensaio.
29
Orson Welles40, Agnès Varda41 e Jean-Luc Godard42 são alguns dos muitos realizadores do
gênero. Curiosamente, alguns deles se autodirigiram em algum momento da sua carreira,
como Orson Welles, em seu filme-ensaio F for Fake – Verdades e Mentiras (1974), e Agnès
Varda, no documentário Os catadores e Eu (Les Glaneurs et la Glaneuse, 2000), em que faz a
narração.

Entretanto, o filme-ensaio vem sendo objeto de maior atenção pela crescente produção
de uma outra variante, o vídeo-ensaio. Utilizando a internet como habitat natural, o vídeo-
ensaio tem sido produzido intensamente e conquistado um grande número de espectado-
res43 . Os vídeos-ensaios que acompanhei tinham o cinema como temática principal. De
forma muito pessoal, eles analisavam obras, diretores, gêneros, além de diversos elementos
da linguagem cinematográfica44.

Foi percorrendo esse caminho que me aproximei do ensaístico e do trabalho de Corri-


gan (2015), que, para se aprofundar no filme-ensaio, parte do ensaio como gênero literário.
O autor aponta que, historicamente, o ensaio é identificado pela primeira vez no
trabalho Ensaios, de 1575, do francês Michel de Montaigne45 . Nesta obra, há reflexões sobre
uma ampla variedade de assuntos, entre eles, a educação, a moral, a obra do poeta romano
Virgílio, a embriaguez, o medo, coxos e até canibais! Se os temas são tão distintos, o ponto
de vista pessoal é o liame a conectar todos os ensaios. É pelos olhos de Montaigne que ob-
servamos o mundo e o que dele é apreendido pelo autor. E são estes os elementos que resta-
ram por identificar o gênero: uma visão pessoal amadurecida por meio da reflexão a partir
de uma experiência.

40Diretor, ator, roteirista e produtor norte-americano (1915-1985). Realizador de obras que entraram
para a história do cinema mundial.
41 Cineasta e fotógrafa belga, nascida em 1928, com produções de destaque na história do cinema.
42Diretor e roteirista franco-suíço, nascido em 1930, um dos maios importantes da história do cine-
ma mundial. Foi um dos principais nomes da Nouvelle Vague, movimento do cinema francês da dé-
cada de 60 que contestava as regras estéticas da época.
43Existem canais no youtube que possuem mais de 700 mil pessoas inscritas a acompanhar a produ-
ção dos seus vídeos-ensaios. Os canais com que tive contato são na sua maioria norte-americanos,
mas já existem alguns brasileiros.
44 Existem muitos canais norte-americanos no youtube de vídeos-ensaios sobre cinema, alguns dos
mais famosos são: o do vídeo-ensaista Kevin B. Lee, o do vídeo-ensaista Kogonada, o canal “Lessons
from a screeplay”, o canal “Every frame a painting” de Tony Zhou e o canal “The Nerdwriter” de Evan
Puschak. No Brasil, destaco dois canais: “Entre Planos”, de Max Valarezo, e o “Quadro em Branco”.
Os canais são identificados aqui conforme encontrados na plataforma de vídeos youtube, alguns pelo
nome dos seu realizador, outros pelo nome do canal.
45 Montaigne, 2010.
30
Ainda em seu livro, Corrigan (2015) ressalta três parâmetros estabelecidos pelo escritor
e ensaísta Aldous Huxley46 ao apontar o foco do ensaio: o pessoal-autobiográfico, o objeti-
vo-factual e o abstrato-universal. Sob essa ótica, respectivamente, há ensaístas que falam do
seu ponto de vista pessoal, misturando questões autobiográficas com a experiência descrita.
Outros optam por não se colocarem de forma tão evidente, mas voltarem-se especialmente
para o objeto de estudo. E ainda há os que possuem como principal preocupação o próprio
processo de reflexão. Pode o ensaísta se aproximar de qualquer uma dessas vertentes, mas o
trânsito pelas três em uma única obra resulta em um ensaio que, ainda segundo Huxley, seria
mais completo. Corrigan (2015), por sua vez, entende que tais dimensões não devem ser se-
paradas, ainda que varie a interatividade entre essas.

Com as particularidades de cada um que opta por ele, o ensaístico fez muitos admira-
dores entre grandes escritores e pensadores, como Roland Barthes, Jorge Luís Borges, Susan
Sontag, Umberto Eco, Michel Foucault, Theodor Adorno, apenas para citar alguns. Além de
ter ficado conhecido por ser uma forma híbrida, impura47, pelo seu entrelaçamento da litera-
tura com a filosofia, algumas práticas artísticas também fizeram uso do ensaio, como o
cinema e a fotografia. Diante de tantos casos de sua utilização, não seria de se estranhar que
o ensaio também pudesse servir para fins acadêmicos, mesmo que isso significasse flexibili-
zar suas regras. A utilização do ensaio nesse ambiente vem se associar a propostas que tem
objetivado inovar nesse tipo de escrita, especialmente no campo das Artes.

O uso do ensaístico no ambiente acadêmico foi objeto de reflexão por Jorge Larrosa
(2004). O autor problematiza as formas já estabelecidas e usualmente utilizadas, entendendo
que escrever sob a forma de ensaio já é pensar de um modo muito particular sobre um tema.
E esse modo de pensar/escrever confronta e não segue um saber sistematizado. O ensaio não
busca atingir uma verdade, um conceito, mas refletir sobre um processo (experiência), de
forma fragmentada, descontínua, num recorte que pode ser bastante pessoal, como ainda
explica Larrosa (2004), a partir do pensamento de Theodor Adorno, que também escreveu
sobre o ensaio.

Não se mostra necessário, portanto, reforçar uma defesa do uso do ensaio na escrita
acadêmica. Sua utilização nesse ambiente não é novidade e encontra na obra de Larrosa su-

46 A reflexão de Aldous Huxley citada por Thimoty Corrigan é extraída da obra “Preface to The Col-
lected Essays of Aldous Huxley” (2002), de Aldous Huxley, in Aldous Huxley Complete Essays, orga-
nizada por Baker, R. e Sexton, J., v. 6, 1956-1963, Chicago: Dee, p; 329-332.
47 Larrosa, 2004.
31
ficiente e rica argumentação. Interessa aqui refletir sobre o uso do ensaio no presente traba-
lho.

Relacionar o ensaístico com a autodireção exige que se reconheça, primeiramente, a


diferença de linguagens artísticas a que os dois se referem, o primeiro diz respeito a um esti-
lo literário, enquanto o outro está relacionado a uma forma de criação no teatro. Essa distân-
cia, ainda que deva ser considerada, não impede uma análise de ambas. Não se objetiva,
contudo, encontrar pontos em comum entre elas, o que se torna difícil pela natureza distinta
de cada uma, mas localizar ideias que permitam o diálogo entre a autodireção e o ensaísti-
co, como por exemplo, o rigor formal, o conceito de experiência, seus limites, entre outros.
Posteriormente, também serão incluídos em tal discussão o método cartográfico e a perfor-
mance.

Penso, inicialmente, que o meu maior contato com o ensaístico se deu por meio do
filme-ensaio/vídeo-ensaio, ou seja, por um caminho a partir do visual em direção à escrita,
acho curioso que a escrita ensaística seja produzida para falar de algo também visual: a cena
a partir de um processo criativo no teatro.

Ademais, foi animado pela escrita da crítica teatral que surgiu a vontade de me aventu-
rar no que eu descobriria ser o ensaio. Ainda segundo Larrosa (2004), a crítica nasce com o
ensaio, sendo esse o gênero do qual a crítica é espécie. O ensaio é o exercício da autocrítica
por excelência. Tanto pela reflexão recair sobre si mesmo, como pela necessidade de uma
liberdade interna para se dispor dessa forma.

O ensaio é um estilo de escrita que permite uma expressão sem tanto rigor e com mai-
or pessoalidade. Da mesma forma, pode-se supor uma liberdade criativa do ator-diretor que
experimenta a autodireção, pois aquele decide sozinho sobre a montagem e sobre o modo
como essa se desenvolve. As condições para a criação podem ser limitadas, nem por isso
deixa o ator-diretor de fazer as escolhas que desejar a partir da realidade que enfrenta. Meu
interesse na autodireção passa pela possibilidade de guiar o processo, sem ter que conciliar
seus rumos com outra pessoa.

Ainda sobre o rigor, no teatro não há formas precisas para se criar. Além disso, se pen-
sarmos especificamente quanto à autodireção, essa problematiza a forma de criação, na me-
dida em que confronta a posição do ator e do diretor em face de ambas serem ocupadas
pela mesma pessoa.

32
Corrigan (2015) explica que mais do que a expressão de uma subjetividade, o ensaio
discute a própria subjetividade e como se dá a experiência. Isso se dá em razão da visão
pessoal do ensaísta ser continuamente testada pela experiência, tensionando os limites desse
espaço interior diante desse mundo exterior, num processo de construção e desconstrução
da própria subjetividade.

Um processo pautado pela autodireção também lida com uma criação em que a subje-
tividade está em evidência, no caso, pelo fato de o ator e de o diretor serem a mesma pes-
soa, o que implica enfrentar os objetivos e competências de cada uma dessas funções, suas
proximidades e distâncias.

O ensaísta exercita pela escrita um processo de reflexão sobre sua experiência. Tal prá-
tica exige uma profunda percepção de si. Fazendo um paralelo com esta pesquisa, a autodi-
reção também representa um voltar-se para si mesmo, já que exige a análise do próprio per-
curso na construção de um modo de trabalho e na criação cênica como ator-diretor.

A ideia do ensaio como um campo de exercício, de trânsito, possui profunda relação


com o processo criativo na autodireção, em que o papel de ator e o de diretor se retroali-
mentam continuamente. Não poucas vezes não saberia separar quando fui diretor ou ator
durante os ensaios. As duas atividades se encontraram muitas vezes misturadas, sendo exer-
citadas conjuntamente, uma estimulando a outra.

Relacionar o ensaio com a metodologia de pesquisa pela cartografia também se apre-


senta possível, ainda que também caiba reconhecer para a natureza distinta deles. Assim
como na escrita ensaística, no método cartográfico se trabalha a partir da experiência, da
intervenção do pesquisador. A análise do que se obtém não se faz com distanciamento. Na
cartografia, o que se pesquisa e quem pesquisa não estão em campos opostos, mas se encon-
tram em lugares cujos limites são turvos, um interferindo no outro, de modo que analista e
analisando são transformados um pelo outro por meio de uma vivência concreta48 .

Esse método não segue regras estabelecidas previamente, o que não quer dizer que a
pesquisa prescinda de uma orientação. No lugar de metas fixadas em um momento anterior,
opta-se por metas que se revelam no decorrer da pesquisa. As orientações iniciais passam a
considerar o que é obtido na própria trajetória da pesquisa, seja quanto ao objeto, seja quan-

48 Passos; Barros apud Escóssia; Kastrup; Passos, 2009


33
to ao pesquisador49 . Esse alternativa a uma forma pré-estabelecida é reconhecível na escrita
ensaística.

Não se busca a representação de um objeto pelo método cartográfico, mas se volta


para o acompanhamento de um processo. Assim, um objeto não é isolado das suas conexões
externas, mas são exatamente essas que interessam à cartografia, que procura encontrar as
forças que o envolvem50.

Na autodireção, assim como na cartografia, há bastante espaço para uma percepção


mais particular do processo, especialmente por envolver um percurso muito pessoal e o ob-
jeto estar intimamente ligado ao próprio criador – já que muito da trajetória se faz pela per-
cepção interna dessa relação ator-diretor. A presente pesquisa sobre autodireção tem como
objetivo uma investigação sobre o modo de criar, sem um caminho previamente definido,
mas cuja descoberta se dá ao longo do próprio trajeto, o que acontece com a cartografia.

Larrosa (2003) explica que o ensaio questiona o método, esse mesmo uma forma de
controle do discurso científico. A partir disso, penso que a cartografia conversa com a escrita
ensaística também nesse ponto, pois aquele não se apresenta com rigidez, a impor uma for-
ma à pesquisa, mas como um questionamento às regras e como uma proposta de organiza-
ção que se dá durante o próprio processo de investigação51 . O diálogo entre o ensaio e a
cartografia permite buscar uma forma com maior liberdade e criatividade, especialmente por
tratar de uma escrita sobre processo de criação nas artes cênicas, que não obedece a pa-
drões estritos de produção.

Também se pode pensar numa discussão quanto aos limites que envolvem o ensaio, a
autodireção e a cartografia. A falta de delimitação precisa do que corresponde ao ensaio se
emparelha com a dificuldade de se definir o campo do ator e do diretor num processo de
autodireção. Há uma constante mutabilidade de posições na autodireção, em que as frontei-
ras do que cabe ao ator e ao diretor são muitas vezes apagadas, modificadas ou reconstruí-
das. Paralelamente a isso, o ensaio habita uma área difícil de definir, transitando entre o fic-
cional e o não ficcional, entre o autobiográfico confessional e o jornalístico52 . Na cartografia

49 Passos; Barros apud Escóssia; Kastrup; Passos, 2009


50 Passos; Barros apud Escóssia; Kastrup; Passos, 2009
51 Passos; Barros apud Escóssia; Kastrup; Passos, 2009
52 Corrigan, 2015.
34
também se percebe uma falta de clareza entre os limites do que se pesquisa e do pesquisa-
dor. 

Uma outra base da presente pesquisa foi a de pensar a autodireção pela perspectiva da
performance, como forma de compreensão da autonomia criativa deste ator-diretor. Eleonora
Fabião (2008) ressalta para uma certa indefinição terminológica da performance. A lingua-
gem performática desafia tentativas de classificação, não por um desejo pelo indecifrável,
mas por se constituir como um terreno fértil para se proliferar espécimes transitórias e híbri-
das. Em termos mais práticos, percebe-se que a performance possui uma variedade bastante
distinta quanto ao uso de materiais e mídias, à utilização de espaços e ao tempo de duração,
o que torna difícil a tarefa de estabelecer parâmetros gerais para sua caracterização.

No ensaio também cabe uma grande variedade de discussões, como demonstrou Mon-
taigne53, bem como de perspectivas de quem o escreve, como entendido por Aldous Hux-
ley54. Assim, a questão de não se poder formatar a performance pelas suas práticas acaba por
se aproximar da ideia proposta pelo ensaio, em que persiste um campo mais livre de regras
e, por conseguinte, de maior autonomia do ensaísta.

Ainda não se pode fugir de reconhecer que o termo ensaio é de comum utilização no
teatro. É no ensaio que se cria, se experimenta. O diretor Antônio Araújo (2011) lembra que
esse é o espaço para o erro, para se viver a crise e a frustração, para se adentrar em lugares
internos que desconhecemos e que podem nos deslumbrar. Neste sentido, Larrosa (2003)
nos diz que escrever ensaio já é uma forma própria de pensar.

No que se refere à experiência, também se pode identificar similitudes entre o ensaio e


a performance. Ainda como entendido por Fabião (2008), a performance busca na vida e na
vivência sua matéria de trabalho, daí o performer não buscar representar, mas fazer, ligando
sua prática a elementos não-ficcionais, mas a uma experiência em si55.

Em paralelo, se a experiência é o cerne do que se procura falar no ensaio, esse passa a


ser uma forma de escrita compromissada com a fidelidade do que se experimentou. O en-
saio é produzido tendo como base uma vivência pessoal, e mais, em um processo de pro-
blematização da subjetividade de quem o escreve a partir da experiência pela qual passou.

53 Montaigne, 2010.
54 A reflexão de Aldous Huxley citada por Thimoty Corrigan é extraída da obra “Preface to The Col-
lected Essays of Aldous Huxley” (2002), de Aldous Huxley, in Aldous Huxley Complete Essays, orga-
nizada por Baker, R. e Sexton, J., v. 6, 1956-1963, Chicago: Dee, p; 329-332.
55 Fabião, 2008.
35
Larrosa (2004) também ressalta para a experiência do leitor do ensaio, o qual é estimulado
por um texto que pode o levar a um ambiente de sentimentos e não de apatia.

Diante de todas essas questões, traçar essas relações entre as escolhas deste trabalho –
quanto ao modo de escrevê-lo, a metodologia utilizada, o tema em si e conceitos utilizados
– funciona como um exercício de reflexão sobre a relação entre a forma e o conteúdo, bem
como sobre o modo como se deu a pesquisa.

36
O ator além da cena

A posição de ator é meu ponto de partida para a direção e para a autodireção. A moti-
vação por essas nasce da vivência e da criação no teatro de grupo56 e da experiência com o
palhaço. A primeira permitiu me aproximar da função do diretor e a segunda me fez exerci-
tar sozinho, pela primeira vez, a autodireção.

Minha iniciação e formação com o clown se deu em oficinas de Adelvane Néia, na ci-
dade do Natal/RN. Ela, por sua vez, tem seu aprendizado a partir da pesquisa do clown pra-
ticada por Luís Otávio Burnier, que se utiliza de um treinamento energético e técnico57 , além
de exercícios específicos para a linguagem. Está-se falando de um palhaço que possui sua
tradição no teatro e não no circo, ainda que as semelhanças entre ambos sejam muitas.

O clown ou palhaço58 tem raízes na baixa comédia grega e romana e na commedia


dell’arte, além dos bufões da Idade Média. Ele trabalha com a ideia de revelar a estupidez do
humano e questionar a ordem social59 .

O palhaço utiliza-se do improviso para criar. Mesmo em apresentações em que há um


roteiro a ser seguido não se dispensa o acaso na execução do trabalho. Entretanto, antes de
improvisar, o palhaço cria sua própria identidade, a partir de características e potencialida-
des próprias (Pantano, 2007). Se na tradição circense a formação da identidade do palhaço

56 O teatro de grupo, no Brasil, tem suas raízes na década de 60, fruto de um contexto político espe-
cífico, em que o fazer teatral e sua investigação tem íntima relação com uma expressão de indigna-
ção e luta por direitos civis, obstruídos por um regime militar que durou de 1964 a 1985. Com o
tempo, a redemocratização e a implantação de políticas culturais ensejaram uma mudança quanto às
suas motivações. Ainda que o tom de provocação política permaneça, assim como a pesquisa estéti-
ca, uma preocupação com a manutenção financeira do grupo também se estabelece, o que exige a
construção de um diálogo entre as práticas teatrais e o mercado cultural (CARREIRA em prefácio de
YAMAMOTO, 2012).
57 Em sua obra A arte do ator, da técnica à representação (2001), identifica-se que o treinamento téc-
nico tem origem nos estudos de Grotowski, Barba e Decroux. O trabalho se concentra numa prepa-
ração do ator, a partir de exercícios, que objetivam a construção de uma energia a ser levada à cena
(Ferracini, 2001).
58 Aprendi na minha prática que o clown seria a expressão para os que teriam sua origem no teatro,
já palhaço estaria ligada ao circo. Na prática, os dois termos tem se mostrado indistintos. Adoto esta
não diferenciação neste trabalho.
59 Burnier, 2001.
37
se dá pelo seu contato com o ridículo nas apresentações, no clown teatral há um processo
por meio de exercícios em que, condensadamente, se descobre sua figura60.

O ator é o autor do seu palhaço. Ainda que esse seja decorrente de um tipo universal,
são as características pessoais de quem o cria que forma sua figura61. Um bom exemplo dis-
so são os casos dos clowns que encontramos no cinema. Palhaços como os norte-america-
nos Harold Lloyd (1893-1971) e Buster Keaton (1895-1966), o inglês Charles Chaplin (1889-
1977) – que ficaram famosos ainda no cinema mudo –, e ainda Jerry Lewis (1926-2017),
também norte-americano mas já do cinema falado, construíram figuras únicas a partir de
elementos pessoais.

Curiosamente, todos esses palhaços que atuaram no cinema também se dirigiram. Isso
denota a capacidade de pensar narrativas a partir da própria figura. Esse ponto foi fundamen-
tal para eu passar do improviso para a construção de uma cena com o clown.

Tendo meu palhaço como elemento central e me utilizando do conhecimento que te-
nho quanto ao seu modo de proceder e reagir, suas características e interesses, comecei a
desenvolver a ideia de cenas que tinham como base seu próprio universo. Por exemplo, um
jeito meticuloso me levou a pensar numa cena em que uma pequena sujeira seria um grande
empecilho. Livrar-se dela causaria uma série de atropelos os quais ele tentaria superar. Cha-
mei essa cena de Sujinho (2014). Produções assim me fizeram experimentar uma autonomia
criativa de uma forma sem precedentes na minha história, já que me fez descobrir a possibi-
lidade de uma realização solitária. Num momento posterior, esse me levou a pensar todo um
espetáculo a partir do desenvolvimento de uma cena62.

O palhaço significou um parâmetro no meu percurso artístico, pela autoria e indepen-


dência que seu trabalho me proporcionava. A sedimentação de tais características em mim,
contudo, não se limitaram a esta área, encontrei algo parecido no meu percurso no teatro de
grupo, em que vivenciei um modelo de organização que permitia a participação ativa do
ator em todas as searas do fazer teatral.

É necessário entender que no teatro de grupo existem dois modos de criação que se
apresentam usuais: o processo colaborativo e a criação coletiva. O primeiro diz respeito a

60 Burnier, 2001.
61 Pantano, 2017.
62O espetáculo a que me refiro se chama Canudo se apaixona (2016), o qual se encontra em proces-
so de criação.
38
um processo criativo em que as funções de cada participante são claras e acertadas anteri-
ormente, mas cada integrante possui espaço propositivo na área do outro, de modo que se
instaura uma hierarquia não rígida, mas aberta à discussão. Um ator pode sugerir ideias so-
bre a encenação ao diretor, que se sente livre para propor sugestões ao dramaturgo, que por
sua vez pode buscar interações com o iluminador63.

A experiência do processo colaborativo tem sido frequente entre os grupos de teatro da


atualidade. Ela permite esse trânsito entre as searas do teatro, permitindo a criação entre to-
dos. Segundo Antônio Araújo (2011), diretor do Teatro da Vertigem64, há um compartilha-
mento da autoria num processo colaborativo. 

A decisão final sobre uma área específica, entretanto, fica a cargo do seu responsável.
Mas essa decisão não o isenta de ter que lidar com as interferências dos demais integrantes,
nem de ser afetado por elas. Assim, no processo colaborativo há uma liberdade de atuações,
mas que se tem acordadas as responsabilidades de cada função. A atriz Miriam Rinaldi
(2006), que integrou o Teatro da Vertigem, entende que o processo colaborativo exige que o
ator se veja como um autor ou um performer, uma vez que tem a possibilidade de participar
da criação obra como um todo.

Diferentemente, a criação coletiva, que tem como marco os grupos das décadas de 60
e 7065 , propõe uma diluição das responsabilidades, com o trânsito de todos os integrantes do
grupo por cada uma delas, conforme explica Antônio Araújo (2011). Aqui não há hierarquia,
todos criam juntos, sem individualização das funções artísticas. O mesmo autor ressalta que,
na prática, as produções dessa natureza podem possuir contradições, pois diante da falta de
habilidade dos participantes por todas as áreas de trabalho, intencionalmente ou não, eles
acabavam se dirigindo para os campos que possuem mais capacidade e afinidade, o que não
se apresenta em consonância com o projeto idealizado para se fazer funcionar esse tipo de
criação.

Além disso, o mesmo autor (2011) destaca na criação coletiva para o aparecimento de
um desejo de manipulação por parte de alguns integrantes, no intuito de ocuparem um lugar

63 Araújo, 2011
64O Teatro da Vertigem é um dos principais coletivos de São Paulo. Foi fundado em 1992, sendo atu-
ante na reivindicação por políticas públicas no setor do teatro e conhecido por uma estética teatral
que busca incluir os espaços da cidade em suas encenações.
65 São exemplos de grupos que se utilizaram da criação coletiva nessa época: Asdrúbal Trouxe o
Trombone, Ornitorrinco, Mambembe e Pod Minoga (Fischer, 2003).
39
de poder, agindo veladamente para decidirem os rumos da montagem. Também acontece
que, diante dos muitos autores, a criação possui momentos de impasses em face de não se
chegar a concordâncias sobre os diversos pontos a serem decididos.

Stela Fischer (2003) explica que a improvisação é a base da construção cênica da cria-
ção coletiva, num processo de absorção da proposta de todos os envolvidos e de descentra-
lização da figura do diretor. Mas ela também reconhece a possibilidade do surgimento de
líderes em grupos cuja base seja a criação coletiva. Esses líderes geralmente são aqueles que
se destacam por uma maior postura intelectual, artística ou empreendedora.

Nos grupos, dos processos criativos de que participei, o processo colaborativo foi o
modo de criação com que mais tive contato, com poucas tentativas de criação coletiva. En-
quanto na primeira, eu me sentia estimulado a propor tudo o que desejava para a criação, na
mesma medida me sentia frustrado por ver que muitas das minhas propostas não eram apro-
veitadas no resultado final. Já nas criações coletivas, também experimentava a sensação de
liberdade, mas tinha de lidar com muitos outros atores-diretores, o que tornava um esforço
imenso caminhar com o processo, por isso muitas vezes esse modo de criação resultou num
abandono do projeto.

Experimentei a criação coletiva durante minha permanência no Grupo Beira de


Teatro66 . Éramos 07 (sete) atores que criávamos cenas a partir de um tema/título do trabalho:
…pq nunca nos trataram com amor!67. Criamos várias cenas, individualmente ou em con-
junto, mas não conseguíamos decidir sobre o que seria ou não aproveitado para o espetácu-
lo. Acontecia de frequentemente adotarmos novos rumos para a encenação. O processo le-
vou muitos meses nesse clima de instabilidade. Até que, diante do reconhecimento de não
conseguirmos caminhar com o trabalho, decidimos chamar uma diretora68 . Esta experiência,
pode-se dizer, foi minha primeira e mais próxima com a autodireção, ainda que tenha se
dado coletivamente.

66 O Grupo Beira de Teatro nasceu da reunião dos atores-criadores Henrique Fontes e Paula Vanina
em 2005 e teve com o espetáculo O tempo da chuva, direção de Lenilton Teixeira, sua principal
obra. Entrei no grupo em 2008, durante a montagem do segundo espetáculo do coletivo …pq nunca
nos trataram com amor!. O grupo possuía interesse em uma dramaturgia própria e numa cena que
dialogasse com questões contemporâneas. Ele encerrou suas atividades no ano de 2009.
67O título da peça remete a um verso da música Sou rebelde (1978), famosa na voz da cantora cari-
oca Lilian e composta por A. Magdalena, M. Alejandro e Paulo Coelho.
68 Quando entrei para o Grupo Beira de Teatro esse processo criativo já se desenrolava há um tempo.
Finalmente, depois de um longo período de ensaios, chamamos a diretora Carol Cantídio (RN/RJ), ex-
integrante do Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare (RN) e do Teatro Inominável (RJ).
40
O processo colaborativo me serviu como um campo seguro para pensar no espetáculo
como um todo e participar da direção, sem ter a responsabilidade de assumi-la em definiti-
vo, nem ter de arcar com a responsabilidade que dela advém. Para a atriz, dramaturga e dire-
tora Grace Passô (2015), o ambiente do processo colaborativo aproxima o ator da função de
direção. A criação coletiva, por outro lado, me fez me ver como diretor, mas, na época que a
experimentei, não senti ter a habilidade de exercer essa função e fazer com que o processo
caminhasse para a realização de um espetáculo. De todo modo, ambas as experiências me
levaram a transitar por diversos campos da criação teatral, me estimulando e me preparando
para ocupar posteriormente a direção. 

O conhecimento quanto às diversas áreas de trabalho que envolvem uma montagem


teatral não se dá apenas pelo modo escolhido para a criação, o cotidiano dos grupos tam-
bém leva a uma experimentação do teatro em seus diversas campos. A liberdade das rela-
ções e as condições financeiras limitadas demandam ou proporcionam uma certa versatili-
dade dos seus integrantes. Um ator, geralmente, não apenas atua, mas tem de desenvolver
outras atividades no coletivo. Não poucas vezes, por todos os grupos que passei, além da
minha função “original” de ator, exerci tantas outras. Era recorrente termos de trabalhar nas
montagens e desmontagens das apresentações dos espetáculos. Também a discussão diária
sobre a produção dos espetáculos tornava essa atividade inescapável, já que se trata de uma
demanda de trabalho constante e que tem o papel fundamental de buscar viabilizar a manu-
tenção do grupo. 

Também poderia acontecer, no dia a dia, de alguém de uma área perceber especial in-
teresse por uma outra. Não era incomum que pessoas que se iniciavam como atores, que é o
espaço de início de muitos, caminhassem posteriormente para a direção, iluminação, ceno-
grafia ou ainda outra função.

Acontece também de, nas montagens que possuem mais recursos financeiros, haver a
contratação de profissionais de áreas que não possuem pessoas especializadas dentro do
grupo69. Se não se há condições de contratar tais profissionais, o grupo muitas vezes supre
essa demanda em conjunto ou com algum integrante que acabe por ocupar tal espaço. 

A montagem do espetáculo …pq nunca nos trataram com amor! (2008), do Grupo Bei-
ra de Teatro, não teve subsídio de editais públicos e muito pouco apoio privado. Assim, não

69 Nos grupos que participei, os integrantes permanentes se resumiam basicamente a atores e direto-
res. Algumas variações aconteciam, havendo a acumulação de funções, como quando o diretor mu-
sical ou o cenógrafo eram também atores ou diretores do coletivo.
41
tivemos condições de contratar um profissional para elaborar nossos figurinos, o que levou o
grupo, juntamente com a diretora convidada, a pensar esses elementos, utilizando materiais
que já possuíamos.

As montagens com mais recursos financeiros podiam realizar a contratação de profissi-


onais, o contato com esses sempre rendiam novos aprendizados aos seus integrantes do co-
letivo. Destaco a enriquecedora experiência com a maquiagem cênica resultante do encon-
tro com Mona Magalhães70 , nos espetáculos O Casamento do Pequeno Burguês71 (2006), do
Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare72, e Aboiá73 (2013), do Grupo Arkhétypos de Tea-
tro74.

Ocorria que, mesmo nos casos de contratação, o profissional não acompanhava todo o
processo criativo, aparecendo em ocasiões pontuais, geralmente, num momento mais avan-
çado dos ensaios. Isso não impedia que até acontecer esse encontro nossa imaginação e na-
tural apropriação do espetáculo não se desenvolvesse, surgindo ideias para o trabalho, ainda
que essas pudessem não se sustentar (inteira ou parcialmente), em face das propostas dos
profissionais especializados.

O espetáculo O Casamento do Pequeno Burguês, do Grupo de Teatro Clowns de Sha-


kespeare, é um caso curioso que ilustra essa situação. O coletivo recebeu apoio público75
para sua montagem, o que permitiu a contratação de profissionais para a elaboração dos fi-
gurinos. Mas antes de nos comprometermos com especialistas dessa natureza, nós atores
fomos criando uma ideia do que enxergávamos para o figurino das personagens. Com isso, a
direção resolveu adotar nossas ideias e os profissionais que chamamos (House Estilo) passa-

A carioca Mona Magalhães é professora da UNIRIO (RJ) e já foi responsável pela caracterização de
70

mais de 60 (sessenta) espetáculos teatrais e e de diversos grupos de teatro.


71 O coletivo escolheu tachar parte do título da peça.
72O Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare nasceu em 1993, tendo da sua formação originária
apenas seu diretor Fernando Yamamoto e os atores Renata Kaiser e César Ferrário. É um dos coletivos
mais importantes do meio teatral nordestino, tendo realizado parceria com grandes nomes do artes
cênicas do país, como Eduardo Moreira (Grupo Galpão/MG), Marcio Aurelio Pires de Almeida (SP) e
Gabriel Villela (MG).
73 O espetáculo Aboiá foi montado com o apoio do Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz.
74O Grupo Arkétypos de Teatro é um projeto de extensão, que inclui alunos e pessoas da cidade do
Natal/RN, dirigido pelo Prof. Robson Haderchpek (UFRN). O grupo montou um total de 05 (cinco)
espetáculos a partir dos elementos da natureza.
75O espetáculo foi realizado com o apoio do Prêmio Funarte Petrobras de Fomento ao Teatro e do
Prêmio Funarte de Teatro Myriam Muniz, ambos de âmbito nacional, e do projeto Casa da Ribeira em
Cena, patrocinado pelo Banco do Brasil, de âmbito estadual.
42
ram a ser consultores de figurino, aceitando as ideias propostas, cabendo a eles fazer apenas
alguns ajustes e procurar as peças em brechós, com a nossa ajuda.

É importante destacar que um dos fatores desses desvios de função ou acumulação de


funções deve-se, muitas vezes, às possibilidades financeiras de cada montagem. Note-se que
em O Casamento do Pequeno Burguês, mesmo tendo o grupo decidido o figurino, tal deci-
são não impediu de mantermos a consultoria dos profissionais. Mas a situação descrita não
se apresenta costumeira, geralmente o especialista da área acaba por assinar o trabalho e
não limitar-se a uma consultoria. Um orçamento que possibilite arcar com artistas com habi-
lidades específicas tende, em teoria, a diminuir o trânsito dos integrantes do grupo por áreas
especializadas. 

Entendo, portanto, que a minha formação nos grupos de teatro pelos quais passei se
apresenta como um dos incentivadores para que me aproximasse da direção, pelo estímulo à
criação que o ambiente propiciava e pela proximidade com que me via da posição do dire-
tor. A vivência em grupo proporcionou um diálogo com as funções do fazer teatral, incitan-
do uma experimentação dessas atividades.

Entender o ator que caminha para a direção é não entendê-lo apenas ocupado com sua
personagem ou a cena em que atua. Até porque a personagem não é mais o único parâmetro
para definir o ofício do ator em cena. Nesse sentido, estão o teatro pós-dramático76 e o teatro
performativo77 . Também a dramaturgia e a encenação contemporâneas não veem a persona-
gem como único caminho de criação do ator, que pode estar em cena despido de uma per-
sonagem. E se ela não mais a veste, a própria pessoa do ator se evidencia. Não se quer dizer
com isso que a construção da personagem deixa de ser um elemento importante, mas que o
papel do ator na criação teatral tem encontrado outras possibilidades78 .

Diversos autores têm pensado esse ator que participa de toda a criação, propositivo em
diversas áreas do teatro, elemento-chave no acontecimento teatral.

76Utilizo aqui a expressão cunhada pelo autor alemão Hans-Thies Lehmann, em sua obra Teatro pós-
dramático (2007), quanto ao teatro produzido a partir da década de 1980.
77Uso aqui o termo trabalhado por Josette Féral (2008), em importante estudo sobre o assunto, utili-
zado na presente pesquisa.
78 É interessante lembrar que na Europa do século XIX, o atuar estava relacionado a uma obediência
a códigos predeterminados, na maioria poses e gestos que correspondiam a sentimentos e situações.
A personagem se revelava com a reprodução pelo ator de tais poses nos momentos exigidos. Uma
mudança nesta perspectiva ocorreu no final daquele e início do século XX, com o trabalho de Stanis-
lavski, Meyerhold, entre outros (Bonfitto, 2002).
43
Antônio Araújo (2011) utilizou a expressão ator-pensador ou ator-criador, ou ainda
ator-a(u)tor, para denominar este que não apenas se adere ao projeto artístico de alguém e
representa uma personagem, mas que se coloca como autor tanto quanto os demais envolvi-
dos.

Para Matteo Bonfitto (2002), o trabalho de composição é a peça-chave para a análise


do trabalho do ator. Ele utiliza o termo ator-compositor. É sob a ótica da composição que se
acessa seu ofício. É um ator que produz, que cria, que constrói. Sua criação tem como base
a ação física79, os processos improvisacionais e o seres ficcionais.

Todos esses elementos permitem entender um ator com diversas linhas de criação. A
visão de Bonfitto amplifica a posição do ator numa montagem teatral, fazendo com que esse
não seja apenas uma parte de uma engrenagem ou um aglutinador de técnicas, mas conside-
ra seu trabalho com as ações físicas como primordial para a criação teatral. Para isso, o tra-
balho de composição pelo ator não exigiria dele apenas o fazer, mas o pensar o fazer. O fa-
zer transforma o pensar e é transformado pelo pensar, num processo que se retroalimenta
incessantemente, sem que se torne um processo intelectual, mas que desenvolve a consciên-
cia do ator quanto ao seu potencial criativo (Bonfitto, 2002).

Cassiano Sydow Quilici (2015) trabalha com a ideia de um ator-performer. Um ator


que habita no teatro e na performance e ainda transita entre ambos. O diálogo entre essas
linguagens gera contribuições à prática do ator, num processo natural de renovação do seu
fazer, entendendo que o encontro com outras formas de expressão se apresenta como um
caminho potente para sua prática.

O autor não vê esse diálogo entre o teatro e a performance pela ótica do interesse no
acúmulo de novas técnicas, mas pela da preocupação com as qualidades humanas do ator. É
por meio de um trabalho voltado para si80 – que não implica numa desvalorização da cria-
ção coletiva, mas numa experiência essencialmente íntima e solitária – que se encontra um

79 No tocante à ação física, Bonfitto (2002) destaca a compreensão trabalhada por Grotowski ao dife-
renciá-la do gesto. Esse último tem seu impulso criador nas extremidades do corpo, na sua periferia,
sem um envolvimento dos espaços interiores, de onde nasceria a ação física. Bonfitto (2002) ainda
ressalta para a potência poética da ação física, a considerando como elemento essencial do fenôme-
no teatral.
80O autor utiliza como uma das bases para seu pensamento o conceito de “cuidado de si”, estudado
por Michel Foucault na década de 1980.
44
caminho para uma transformação ontológica do ator81. Esse processo solitário permite cons-
truir uma relação com a autodireção.

Quilici (2015) retoma, especialmente, a obra de Stanislavski, Artaud e Grotowski, no


intuito de realizar uma releitura de seus trabalhos, identificando uma atenção desses artistas
com uma transformação dos modos de ser do ator. Por exemplo, a Linha das Forças Motivas
de Stanislavski, elaborada numa primeira fase dos seus estudos, valorizou os processos inte-
riores e invisíveis como forma de se atingir camadas mais profundas do seu ser, de onde se
encontrariam qualidades e expressões singulares, que se diferenciariam dos modos de repre-
sentação praticadas na época. Já em Grotowski, o saber necessário ao ator para criar as
ações provocaria modificações na qualidade de consciência vividas, num trabalho que afeta-
ria a estrutura psicofísica do indivíduo, provocando um desbloqueio para a prática teatral e
também do seu próprio ser humano. Finalmente, para Artaud, a preparação do ator não se
limitaria a uma aprendizagem da sua prática, mas desafiaria a própria existência do artista.

A partir daí, Quilici (2015) passa a desenvolver uma reflexão sobre um treinamento do
ator que não se limite a uma técnica, mas que promova profundamente sua transformação
existencial. O autor busca, especialmente com o budismo, construir uma ponte que ligue o
trabalho do ator com essa atenção com seu ser, numa busca para preparar esse ator para de-
safios de uma sociedade contemporânea e para investir em um ser humano em constante
descoberta de si.

Importante destacar que os pensamentos desses autores não se mostram contrários,


mas complementares. Enquanto Araújo (2011) pensa o ator dentro do ambiente do teatro de
grupo, dentro de numa perspectiva que valoriza sua potencialidade e autonomia; Bonfitto
(2002) parece centrar-se na construção das ações físicas pelo ator, construindo um senso de
concretude ao tratar do seu trabalho artístico, valorizando seu poder de composição. Quilici
(2015), por sua vez, entende que a técnica que pode ser apreendida pelo ator serve a um po-
tencial de transformação do próprio ser humano, levando-o a camadas mais profundas da
sua expressão, o que reverbera na sua criação artística.

Enfim, a ideia de um ator que participa ativamente do processo criativo foi algo que
experimentei na minha vivência em grupos de teatro. O mesmo caráter criador também foi
saboreado por meio do trabalho com a palhaçaria. Seja no teatro de grupo, seja com o pa-
lhaço, ambos me levaram a pensar a cena e, em seguida, todo o espetáculo.

81 Quilici, 2015.
45
Em busca de direções 
  

O interesse pela autodireção passa pelo desejo de dirigir. Perceber meu interesse por
todo o espetáculo, me levou, como ator, a uma postura propositiva dentro do processo cria-
tivo, e em um segundo momento, me fez despertar para querer dirigir e a entender no que
consistia esta função, pois essa sempre me pareceu ser um tema de difícil apreensão.

Eugenio Barba (2010) entende que a função de diretor consiste em uma metade de
elementos profundamente subjetivos e em uma outra metade de conhecimentos objetivos.
Suas atribuições podem ser diversas e variar de acordo com o ambiente teatral. O diretor
pode ser alguém que compõe, um autor, um coordenador, um educador, um espectador. Ele
pode ser tudo isso junto ou apenas algumas dessas responsabilidades.

Recorro ao Dicionário de Teatro (2008), de Patrice Pavis. Nele, consegui identificar três
principais funções do diretor: a relação com os atores, o que o autor chama de diretor de
atores; a administração do processo criativo, que caberia ao diretor de cena; e a criação, que
teria na figura do encenador seu responsável. Os casos elencados por Pavis (2008) indicam
que as mesmas funções não obrigatoriamente são concentradas numa única pessoa. Entre-
tanto, na minha prática de teatro de grupo, todas essas funções foram desempenhadas pelo
mesmo profissional.

A direção de atores, como o próprio nome já diz, refere-se à função de preparar os ato-
res quanto à sua atuação, por meio de técnicas diversas, as quais seriam dominadas pelo di-
retor. No Cinema, essa função é comumente atribuída à pessoa do preparador de elenco,
que é o profissional específico a desempenhar tal papel no caso do diretor não o fazer. No
teatro, o desempenho dessa função por um profissional específico se mostra menos comum,
especialmente pelos limites orçamentários desse tipo de produção. Existe, contudo, o caso
da contratação de algum profissional para ensinar ao elenco alguma habilidade específica82 ,
necessária a um projeto em particular.

Na prática, o campo de atividades exercidas pelo diretor na direção de atores é bastan-


te vasto, pode ir desde a fixação de regras a fim de organizar o convívio do elenco até o

82Aconteceu de durante a montagem de O Casamento do Pequeno Burguês (2006), que participei


enquanto integrava o Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare, de termos aula de dança de salão
para uma cena do espetáculo. A dança foi ensinada e os movimentos desenhados por um professor,
em diálogo com o diretor do espetáculo.
46
acompanhamento e treinamento dos atores nas técnicas utilizadas no espetáculo, passando
ainda pela reflexão acerca da abordagem com os atores e do método de trabalho a ser utili-
zado, para que aqueles se sintam estimulados a criar. Por exemplo, Ariane Mnouchkine83 ,
diretora do Théâtre du Soleil, ao realizar seus estágios abertos para atores, faz várias exigên-
cias para o convívio, como compromisso com a pontualidade, a fim de evitar atrasos, e o
respeito com figurinos e máscaras.

O diretor, especialmente no ambiente dos coletivos teatrais, é investido ainda, muitas


vezes, do papel de construtor de uma ética84 de trabalho, bem como de fiscal da sua prática
cotidiana. Ainda sobre o relato do estágio no Théâtre du Soleil, a não obediência às regras
estabelecidas por Ariane Mnouchkine85 pelos participantes, já fez com que aquela desistisse
do processo. O desinteresse dos estagiários em viver essa ética fez a diretora identificar uma
impossibilidade de enxergar os elementos básicos para a nascimento do próprio teatro.

O lidar com o ator é um papel do diretor que possui particularidade no caso da autodi-
reção, pois nesse caso significa lidar consigo mesmo. Enquanto me autodirigia, experimentei
em vários momentos um funcionamento conjunto do ator e do diretor. Por vezes, se fez ne-
cessário pensar momentos de criação em separado, em função das próprias especificidades
de cada uma. Por exemplo, em momentos de levantamento de material a partir de um traba-
lho corporal, ficar pensando sobre uma seleção e o uso desses materiais desviava minha
atenção no momento da criação. Assim, deixar claro o papel do diretor me ajudou a saber o
que fazer como ator, reservando um tempo para criar como esse último e deixando para de-
pois o pensar sobre o que produzi.

Mas a característica mais marcante da função do diretor de atores e que emerge pelo
próprio termo utilizado, fica mesmo por conta da preocupação com a interpretação dos ato-
res. Para Ariane Mnouchkine86 , esse é o seu objetivo principal. Os modos que levam o ator à
personagem ou, no caso de não haver personagens, à cena, pode variar bastante, dependen-
do da linha de trabalho do diretor ou do que exige o projeto.

83 Féral, 2010.
84Sem querer adentrar numa vasta discussão sobre o conceito de ética, utilizo-me aqui do tema sob
a perspectiva mencionada por Matteo Bonfitto (2002), que relaciona a ética no teatro com o Teatro
Oriental, ao buscar entendê-la como a construção de um profundo conhecimento sobre o funciona-
mento e a prática teatral, especialmente quanto ao processo artístico e à arte do ator.
85 Féral, 2010.
86 Féral, 2010.
47
Haderchpek (2016) destaca que o diretor precisa do ator para concretizar sua proposta
e o ator precisa da encenação para revelar sua potencialidade. Cabe ao diretor utilizar de
exercícios para levar os atores à construção das personagens ou à sua preparação para a
cena. Nos casos de uma montagem que tem o texto como base do trabalho, a leitura desse
se apresenta como atividade essencial para sua compreensão e para a obtenção das infor-
mações nele contidas, sobre as personagens e o espetáculo87. Exige-se do diretor a sensibili-
dade para captar do texto suas informações e nuances, além do conhecimento de diversos
outros dados exteriores àquele, o que demanda leitura de outros materiais sobre a obra, seu
contexto histórico e universo estético.

Lembro que no processo de criação do espetáculo O Casamento do Pequeno Burguês


(2006), do Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare, tivemos como codiretor convidado o
integrante do Grupo Galpão (MG), Eduardo Moreira. Recordo-me dos primeiros encontros
estudando o texto de Bertold Brecht em que Eduardo explicava referências do texto dos
quais não tinha conhecimento, como a menção a Heinrich Heine, poeta romântico alemão
do século XIX.

Além da reflexão e compreensão sobre a dramaturgia textual, há o trabalho corporal a


ser elaborado e realizado pelo diretor com os atores. A escolha de como se dará a constru-
ção de ações físicas ou os limites para as improvisações são responsabilidades do diretor, o
qual deve ter suficiente conhecimento acerca da opção adotada.

A transmissão das instruções pelo diretor para o ator, a fim de que esse as apreenda e
desempenhe sua função da forma desejada, pode se dar de diversas formas. Patrice Pavis
(2008) elenca, ainda que de forma breve, algumas espécies: a mostração, em que o diretor
demonstra para o ator como este deve proceder; a indicação, por meio da qual o diretor in-
dica por uma palavra ou por uma ação o que pretende do ator; a direção comandada, quan-
do o ator é dirigido enquanto atua; a mímica interior do encenador, o que depende do ator
interpretar tal mímica; o vaivém de partituras e subpartituras, em que o ator é incentivado a
fixar os movimentos, cabendo ao diretor a organização das partituras de todos os atores.

Nota-se que essas formas de transmissão não são excludentes, podendo ser cumuláveis
entre si. Devido à riqueza das relações humanas, também não há concordância entre a fun-
cionalidade ou preferência dentre elas. Barba (2010) lembra que não se dirige atores da
mesma maneira, indistintamente. Ou seja, a melhor opção de técnica ou método para se di-

87 Pavis, 2008.
48
rigir depende das singularidades envolvidas. Não existe um modelo assegurado, mas cami-
nhos possíveis, sempre variando de acordo com os artistas envolvidos na criação. Um méto-
do pode não ser eficaz para algum ator ou diretor e ser para um outro.

O diretor de teatro e cinema David Mamet (2014) acredita que o diretor não deve so-
brecarregar o ator de informações. Ele entende que a influência do diretor sobre o ator é
pouco relevante, apenas ajudando-o a evitar o que ele chama de maus hábitos: o relaxamen-
to, o balbuciar, a distração da plateia, a não conclusão da fala, a movimentação sem inten-
ção… Instruções excessivas ou pouco claras acabariam por atrapalhar, assim como discursos
prolongados, os quais podem inibir o ator. Deve o diretor sugerir a natureza da cena e dar
forma a essa.

A escolha da maneira de se lidar com o ator se dá de forma muito pessoal, mas tam-
bém depende da demanda artística do trabalho. A visão de Mamet (2014) busca preservar o
texto e o ator, para que esses não sejam ofuscados por um diretor que queira se utilizar de
elementos desnecessários para a construção do trabalho.

Imagino que todo ator teve boas e más experiências quanto a essa relação com o dire-
tor. Trabalhei com diretores que, ao mostrar o que queriam ou para mudar algo feito por um
ator, imitavam ele de modo a ridicularizar o que o ator tinha feito. Esse comportamento ini-
bia a criação a partir das novas instruções transmitidas. Uma sensação de censura se sobre-
punha ao estímulo criativo.

A construção de uma relação de confiança e respeito é um caminho frutífero para am-


bas as partes. O diretor precisa de um ator criativo para que lhe dê material a ser trabalhado
para o espetáculo. E o ator anseia por um diretor que lhe dê segurança e o desafie a criar
mais. O relato de Nena Inoue (2018), em entrevista concedida para esta pesquisa, ilustra o
prazer desse tipo de relação com um diretor: “Eu sempre, eu gosto de diretor que... Assim,
de me jogar e saber que tem um diretor lá embaixo, entendeu? Que se jogue de um trampo-
lim e tenha um diretor lá embaixo, ou lá em cima te empurrando, ou lá embaixo te ampa-
rando, né”.

A atriz Georgette Fadel (2018) também fala sobre a relação de trabalho com um diretor,
que implica em aprendizado e na ajuda a ultrapassar os limites do ator:

Então eu acredito muito nessa troca! Eu gosto demais de trabalhar com dire-
tor! Diretor ou interlocutor, de qualquer maneira que seja. Eu gosto de ter
49
gente vendo... Esse espectador profissional que é o diretor, né. Essa pessoa
que olha pra você com cuidado, com carinho, e puxa de você a continuida-
de de indicações que você tá dando e às vezes nem tá percebendo que tá
dando, ou tá percebendo mas não tem tanta certeza se são bons caminhos, e
sempre quando se trabalha com bons diretores você amplia o teu horizonte,
amplia a tua consciência... Os diretores bons te forçam né, a radicalizar, a ir
mais longe, até em características que você possui mesmo, ou ajuda a desen-
volver características que você nem sonha que possui... Então, eu gosto de-
mais de trabalhar com interlocução.

Destaco para um outro caso, que entendo recorrente, de direção de atores. Em um en-
saio, um ator faz alguma ação em cena que interessa ao diretor. Esse pode pedir para que o
ator fixe o que fez e a repita. A diretora Anne Bogart (2011) considera um processo de vio-
lência, porém inerente à atividade do ator, esse ato de repetição forçada de algo que se fez
espontaneamente de início. O ator aprende a capturar esses momentos e repeti-los até que
nasça uma naturalidade a partir da reprodução. Esse processo exige disposição e paciência
do ator até que consiga realizá-lo e compreensão por parte do diretor diante do trabalho do
ator.

Essa relação do diretor com os atores chama atenção ainda para um caráter pedagógico
da sua atividade. Robson Haderchpeck (2016) trabalha com o conceito de um diretor-peda-
gogo. Segundo o autor, diferentemente de um diretor que coloca a encenação como priori-
dade, o diretor-pedagogo tem como objetivo primordial o desenvolvimento dos atores.

O viés pedagógico se inicia com o conhecimento do diretor quanto aos atores que par-
ticipam da montagem. Conhecer os limites e as potencialidades daqueles com quem se tra-
balha pode se mostrar essencial, a fim de se saber que propostas realizar e treinamentos
aplicar, de modo que se obtenha um atendimento das necessidades do grupo88 .

Esse acompanhamento pedagógico segue por todo o processo. O diretor deve saber
que, por vezes é preciso desafiar e por vezes transmitir questões básicas do teatro. Cada pas-
so dado no processo criativo é resultado do diálogo entre o entendimento do diretor acerca
das pessoas com quem está trabalhando e do percurso pedagógico planejado. Dentro da óti-
ca de um diretor-pedagogo, o processo é pautado pelo aprendizado dos atores e o tempo
desse aprendizado.

88 Haderchpek, 2016.
50
É importante lembrar do caráter pedagógico que esteve presente no trabalho de gran-
des diretores modernos89 . As construções teóricas de Stanislavski, Meyerhold, Brecht e Gro-
towski, por exemplo, possuem essa preocupação pedagógica, no sentido do ensino do tea-
tro, dos seus mais diversos princípios e técnicas.

Durante o processo do espetáculo O Casamento do Pequeno Burguês, tive contato com


um verdadeiro diretor-pedagogo, no caso um diretor musical, Ernani Maletta90. Estávamos
dispostos a um trabalho em que o canto e a utilização de instrumentos musicais tivessem
maior refinamento. Ernani conseguiu de forma muito cuidadosa entender as limitações de
cada ator e realizar um trabalho que extraiu de nós uma qualidade vocal superior ao que
conseguíamos até então. Ele ainda nos deu confiança para tocar em cena arranjos mais ela-
borados do que estávamos acostumados. A consciência da minha voz a partir desse trabalho
mudou e guardo suas lições com muito carinho ao longo da minha trajetória, inclusive de
como lidar com os atores. Seu trato delicado e bem-humorado com os atores rendeu um
grande aprendizado, o que me serve de modelo ao lidar comigo mesmo num processo em
que me autodirijo.

Assim, um diretor pode ser também um diretor-pedagogo na sua relação com os atores,
na transmissão de ensinamentos sobre o teatro, nas suas técnicas, no estudo do texto e na
sua ética. As atividades que podem se revestir desse caráter pedagógico são as mais diversas
e podem se dar de forma muito ampla.

Uma outra função do diretor que merece atenção é a que diz respeito à gestão do pro-
cesso e do espetáculo. Pavis (2008) entende que esse trabalho caberia ao diretor de cena. Na
minha prática, essa função foi desempenhada pelo diretor, ou pelo produtor, ou ainda pelo
coletivo teatral. Aconteceu, enquanto estive no Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare, de
dividirmos essa responsabilidade entre vários integrantes, de modo que cada um ficava res-
ponsável por parte dela, por exemplo, montagem e desmontagem, identificação dos elemen-
tos de cena, acondicionamento dos mesmos…

Enquanto a montagem e desmontagem dos espetáculos pode ser uma função diluída
entre atores, diretor e produtor, a questão do planejamento do processo acaba por ser do di-
retor. É ele que deve saber quanto tempo leva cada etapa da criação (levantamento de mate-

89 Haderchpek, 2016.
90Ernani Maletta é ator, músico e diretor musical. Mineiro, ele é professor da Escola de Belas-Artes,
do Departamento de Artes Cênicas da UFMG, participou de vários processos criativos e trabalhou
com diversos grupos, como o Grupo Galpão (MG) e o Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare (RN).
51
rial, pesquisa externa, leituras, ensaio das cenas…), havendo possivelmente um diálogo com
o produtor nas hipóteses de obediência a um cronograma ou prestação de contas em função
de editais públicos. Destaco para uma situação peculiar: o Grupo Galpão (MG) credita em
seu espetáculo Os Gigantes da Montanha (2013) a figura específica do “assistente de cenário
e planejamento”, o qual por desempenhar uma assistência pode-se supor que auxilia o dire-
tor ou o produtor nesta função.

Pavis (2008) entende que o diretor de cena teria um trabalho complementar ao do en-
cenador. O diretor de cena possuiria uma função mais ligada à manutenção do espetáculo,
sua continuidade após a estréia, enquanto caberia ao encenador a criação em si.

A visão de Pavis (2008) merece ser visto com cautela diante da realidade brasileira. Os
casos expostos anteriormente, a partir da minha experiência, demonstram situações que se
diferenciam do pensado por esse autor. Contudo, é preciso destacar que em uma produção
de elenco ou nos grupos de teatro que possuem produções maiores, a figura do diretor de
cena não é incomum, por vezes, sendo intitulado de forma diferente, como assistente de ce-
nário, ou ainda cenotécnico, como ocorre no Grupo Galpão (MG)91.

Há um caso específico que merece ser analisado: quando o diretor não é integrante do
grupo, mas um convidado, ou ainda quando a direção é dividida entre alguém do grupo e
alguém de fora. Quando Eduardo Moreira92 dirigiu O Casamento do Pequeno-Burguês jun-
tamente com Fernando Yamamoto93, aquele não podia estar conosco durante todo o proces-
so. Nosso contato com ele se deu com suas vindas a Natal/RN, onde ficava a sede do grupo,
para ensaiarmos. Era natural dentro dessa dinâmica de trabalho que questões mais cotidia-
nas, como a agenda dos ensaios, restassem capitaneadas por Fernando e não por Eduardo.

Além disso, após a estreia do espetáculo, nosso contato com Eduardo ficou menor por
não termos orçamento que permitisse suas vindas a Natal, de modo que posteriores altera-
ções na obra, as quais se mostravam naturais com o tempo, acabavam por ser realizadas es-
pecialmente por Fernando. Portanto, a existência de um diretor de fora do grupo tem reper-
cussão na continuidade do trabalho após a estreia do espetáculo, que comumente fica por
conta do próprio coletivo ou do diretor integrante do grupo.

91 É possível se identificar o assistente de cenário em várias montagens do grupo mineiro, dentre os


quais destaco os seguintes espetáculos: Tio Vânia (Aos que vierem depois de nós) (2011) e Os Gigan-
tes da Montanha (2013). Disponível em: www.grupogalpão.com.br
92 Eduardo Moreira é integrante e fundador do Grupo Galpão (MG).
93 Fernando Yamamoto é integrante e fundador do Grupo de Teatro Clowns de Shakespeare (RN).
52
Finalmente, a figura do encenador94. Esse seria, como dito antes, o responsável criati-
vamente pelo trabalho95. A criação das cenas pode ter vários pontos de partida, desde uma
dramaturgia a partir de um texto, dos improvisos dos atores, da concepção visual prévia do
diretor etc. As possibilidades são várias e não cabe aqui esgotá-las.

De todo modo, as escolhas ou a edição do que se construiu cabe a ele, assim como a
conjunção de todos os elementos disponíveis na criação espetacular. O nível de consciência
do discurso construído ou do conceito estético do trabalho se mostra uma atividade que exi-
ge uma profunda visão do teatro e da obra pelo diretor.

O trabalho de composição faz parte da atividade da direção. O diretor tem de escolher


e criar relações entre os vários elementos que vão compor a encenação. Haderchpek (2016)
ressalta a relação do diretor com o texto, mas estende a atenção do diretor para o trabalho
de composição juntamente com a iluminação, a sonoplastia e a cenografia. Todos esses ele-
mentos devem ser objeto de trabalho do diretor na construção da cena.

O seu trabalho de composição, selecionando o que fica no resultado final da monta-


gem e o que não serve para essa, representa uma grande responsabilidade do diretor para
com o espetáculo, que vai ganhando sua assinatura. Mesmo que haja o crédito de cada uma
das funções, de cada uma das searas do fazer teatral, a construção de um liame entre todos
os elementos ou de propositais desconexões é um trabalho do diretor.

Ainda nessa ideia, alguns diretores acabam por se sobressair, seja por um senso de ino-
vação diante do que já foi realizado, seja por seus caminhos conceituais que constroem uma
identidade artística própria, seja pelo apuro técnico que faz com que seus trabalhos se des-
taquem pela realização, seja ainda pela reunião de algumas ou de todas essas características,
as quais não esgotam as qualidades de um diretor.

A questão da autoria pode ter alguma relativização dentro do ambiente do teatro de


grupo que se utilize do processo colaborativo. Nesse, é permitida a participação dos inte-
grantes do processo em todos os campos, o que, em teoria, pode fazer pensar em um diálo-
go maior na criação entre todos os envolvidos e não apenas numa proposta única do diretor.

Um acontecimento que proporcionou uma maior autoridade ao diretor foi a saída do


texto como centro da relação teatral, o que ocorreu há pouco mais de cem anos (Nicolete,

94 Usarei o termo encenador e diretor indistintamente nessa parte do texto.


95 Pavis, 2008.
53
2002). Isso possibilitou abordagens diversas a partir de uma obra, aumentando o espaço de
atuação do diretor e o colocando como criador do espetáculo, se sobrepondo por vezes ao
dramaturgo.

Cabe ao encenador uma visão ampla do processo criativo, mas também dos seus deta-
lhes, relacionando elementos diversos, alguns diretamente ligados à montagem e outros ex-
ternos a ela. O diretor inglês Peter Brook (2002) indica que o encenador deve ter em mente o
local em que se passa a montagem, assim como seu contexto social e político, mas também
o pensamento e a cultura dominantes. Tudo isso, segundo esse autor, são armas que ajudam
na construção de uma ponte entre o tema trabalhado e o público, na compreensão de como
o trabalho afeta as pessoas.

Pensar em tudo isso durante a criação de uma obra parece um trabalho demasiadamen-
te árduo. Por isso, é preciso um passo de cada vez, e o diretor ainda que muito estude sobre
o espetáculo que quer criar, não pode ficar escravo desse estudo. Os caminhos a se tomar
num processo criativo se revelam no próprio desenvolvimento deste. O encenador deve,
portanto, ter sua escuta aguçada para entender o rumo que segue a montagem96 .

O diretor precisa estar conectado com o espetáculo por uma via que não apenas a ra-
cional. Ainda segundo Brook (2002), o teatro tem a ver com o emocional e não com o inte-
lectual, pois um espetáculo promove uma sensação de liberdade ao espectador, o atingindo
inconscientemente, num nível mítico.

O diretor deve possuir um pressentimento, uma intuição a guiá-lo, que se dá pelo seu
sentimento de interesse dentro do processo. É por meio da escuta do trabalho que o processo
caminha97 . A diretora norte-americana Anne Bogart (2011) também acredita na intuição
como força motriz da criação. Ela entende que essa não é uma ação racional, tanto que
qualquer crítica, análise ou reflexão não deve acontecer no momento da criação, mas antes
ou posteriormente a essa. No final das contas, a criação é algo muito pessoal e é exatamente
o caráter pessoal da intuição de cada diretor que torna única sua obra. Por ser pessoal, não
há que se falar em certo ou errado em uma atividade dessa natureza, mas em compromisso
com o que se faz, além da sua clareza e comunicabilidade98 .

96 Brook, 2002.
97 Brook, 2002.
98 Bogart, 2011.
54
Mnouchkine99 entende que seu conhecimento em dirigir foi formado ao longo de toda
a sua carreira, de um modo natural, como resultado de todas as suas experiências. Seu teatro
é construído sob o prisma da sua singularidade, utilizando-se do que já foi dito sobre tudo,
para, enfim, elaborar sua visão particular.

Como diretor, tenho uma experiência pessoal quanto à questão da intuição. Na monta-
gem de uma leitura dramática100 , em um dos ensaios, havia um solilóquio de uma das atrizes
a ser trabalhado. Como tudo se passava num ambiente de uma reunião de professores, as
cenas se desenvolviam em torno de uma mesa, com suas cadeiras. No caso específico desse
solilóquio, me veio a ideia, enquanto estudava previamente a cena, de toda a fala a ser dita
pela atriz ajoelhada sobre a mesa. Como resultado, me pareceu que aquele posicionamento
da atriz aludia ao tom de rememoração e divagação que a cena possuía, o que foi comple-
mentado pela luz em foco sobre ela.

A diretora Anne Bogart (2011) entende que dirigir não é controlar, mas compreender o
tempo do processo e o tempo dos atores. Ao mesmo tempo que o diretor tem que estar con-
sigo mesmo, em contato com a sua intuição, também deve se alimentar do que os atores (e
demais profissionais do processo) dão, para que, a partir daí possa decidir o que fica e o que
não fica na forma final do espetáculo.

Contudo, o percurso da criação não se dá de forma tranquila. Não é tarefa fácil criar
esse vínculo consigo mesmo a ponto de escutarmos nossa intuição e afastarmos a ansiedade,
a censura e a insegurança. A criação nasce também de um ambiente interno repleto desses
sentimentos.

Anne Bogart (2011) fala do terror da criação, já que a criatividade vem a partir do
medo e não da tranquilidade e da segurança. Essa diretora revela que a cada produção sen-
te-se uma impostora, pois imagina que o trabalho deveria estar sendo realizado por outra
pessoa, alguém seguro de si, que soubesse o que fazer, pois ela se sente aterrorizada e per-
dida, sem saber que caminho seguir.

Bogart (2011) diz que o início dos ensaios de um processo criativo lhe desperta a sen-
sação de incômodo, um sentimento de deslocamento, uma vontade de postergar o começo
dos trabalhos. Apesar de antes de os ensaios se iniciarem haver uma longa discussão sobre a

99 Féral, 2010.
100Tive a oportunidade de dirigir a leitura dramática do texto Conselho de Classe, de Jô Bi-
lac, tendo alguns professores do Departamento de Artes da UFRN como atores, que foi apre-
sentada no PALAVRAR II - Ciclo de Leituras Dramáticas do DEART, em maio de 2018.
55
dramaturgia, quando se iniciam os ensaios, esses parecem não ter nada do que foi conversa-
do anteriormente. Ela imagina que as pessoas desconfiam da sua capacidade e se sente
aquém da responsabilidade a que se destinou. Somente com o caminhar do processo, em
que os atores apresentam os primeiros esboços dos seus trabalhos, é que tudo parece come-
çar a fazer algum sentido.

Muitas vezes no meu processo de autodireção senti esse terror. Posso afirmar ainda que
a falta de escuta própria foi o principal empecilho que enfrentei. Em diversos ensaios queria
parar no momento que iria levantar algum material ou iniciar improvisações. Também fugi
de ensaiar outras tantas vezes por medo de enfrentar essa situação. A diferença é que na au-
todireção não temos o outro a nos empurrar e nos impor que façamos algo. Na autodireção
estamos sozinhos a enfrentar esse terror.

O medo do desconhecido, ainda segundo os relatos de Anne Bogart (2011), empurra o


diretor no sentido de um precipício, mas é na queda que o potencial criador se revela, é
quando algo acontece, o insight surge. O insight101 corresponde a um processo interno com-
plexo, possuindo um caráter dinâmico e que se liga diretamente à criatividade. Ele surge de
modo súbito e é resultado de associações entre elementos diversos, envolvendo todo o nosso
ser em um nível intelectual, afetivo e emocional.

Entre tantas atividades administrativas e criativas, o diretor parece se equilibrar entre


inúmeras demandas e um trabalho que não encontra fim, nem com a estréia do trabalho. Sua
atividade envolve ser líder e ser subserviente à cena, ser organizador e desorganizador das
estruturas criativas, olhar o todo e ser sensível a todos os pequenos espaços da criação.
Como diz Barba (2010), sua especialidade é algo intangível, correspondente à “realidade su-
batômica do teatro”.

Para mim, o que se evidencia diante desse panorama sobre a direção é que essa é uma
atividade complexa, em que se tem que lidar com questões díspares e muitas vezes, rapida-
mente. Michel Melamed (2018) lembra sobre o ritmo incessante da criação que o atinge em
determinado momento da montagem. Dirigir é um trabalho que exige sensibilidade e uma
coragem para enfrentar a si e todo o processo.

101 Ostrower, 2014.


56
Finalmente, relato uma história contada pelo diretor de cinema norte-americano, Sid-
ney Lumet (1998). Ele perguntou ao grande diretor japonês Akira Kurosawa102, como ele fez
uma determinada imagem no seu filme Ran (1985). Esse explicou que posicionou a câmera
no único lugar possível, pois, por se tratar de um filme com temática histórica, não poderia
movê-la uma polegada para a esquerda, pois apareceria uma fábrica da Sony, nem para a
direita, o que revelaria um aeroporto.

Se inicialmente essa história pode fazer concluir que o diretor não teria tanto a fazer e
seria ajudado pelas circunstâncias, penso que, antes de tudo, para que o filme acontecesse,
precisou que alguém tivesse a coragem de colocar a câmera naquele lugar e não tivesse de-
sistido da cena pelos obstáculos que circundavam o espaço, encontrando algo de marcante
ali, entre aquelas construções, e que tocou o entrevistador.

Dirigir é dosar substâncias para produzir uma faísca que acende algo em nós.

102 Um dos maiores diretores japoneses de todos os tempos, Kurosawa (1910-1088) realizou filmes
premiados em diversas partes do mundo.
57
Se embrenhando na autodireção

A autodireção pode ser compreendida como um modo de criação no teatro em que um


ator se dirige. Talvez a simplicidade dessa ideia, bem como a noção de que ela se esgotaria
por esse mesmo enunciado, tenha sido a causa para a pouca bibliografia sobre o assunto.
Minhas buscas pelo tema resultaram em nenhuma obra encontrada na Plataforma Sucupira,
no Banco de Teses e Dissertações da CAPES, no Sistema de Bibliotecas da UNICAMP, nas
bibliotecas acadêmicas digitais internacionais JSTOR e Project MUSE, em periódicos de des-
taque, como, por exemplo, a Urdimento (UDESC), a Cena (UFRGS) e a Repertório Teatro &
Dança (UFBA). Localizei apenas uma única menção ao termo em meio a um artigo da Revis-
ta da USP, Sala Preta, sobre práticas do ator103 , mas que não discorre sobre o assunto. Algu-
mas raras passagens em algumas poucas obras também foram encontradas, as quais identifi-
carei logo adiante.

Apesar da dificuldade em encontrar algo escrito sobre o assunto, não se pode dizer que
a autodireção seja uma prática nova ou incomum. A autodireção está ligada à direção, como
o próprio termo indica. Poderia-se pensar, com base nisso, que a autodireção apenas teria
surgido com a construção da figura do diretor, o qual, como o conhecemos hoje, tem sua
origem no final do século XIX e início do século XX, com Antoine, Stanislavski e Germier104 .

No entanto, antes de a autodireção ser reconhecida como uma prática em si e, portan-


to, antes da direção, pode-se perceber historicamente alguns exercícios do ator a fim de gui-
ar-se num processo de construção do seu trabalho para a cena. Noutros termos, é possível
ver ao longo do tempo situações que podem ser associadas ao tema em discussão, perce-
bendo ainda uma relação entre o percurso da direção e o da autodireção.

No teatro grego, por exemplo, em que não havia um diretor, o próprio autor do texto
desempenhava a função de organizador da cena. Esse mesmo autor, por um tempo, foi tam-
bém o ator principal, só depois esse lugar foi sendo desassociado dele e ocupado por um
ator especializado nesse papel105 . A acumulação de funções aqui chama a atenção como

103 JANUZELLI. A. JARDIM, J. Práticas do ator (uma ciência do corpo sutil): Brasil e América Latina.
Revista Sala Preta. São Paulo, vol. 02, 2002. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/salapreta/
article/view/57073/60061> Acesso em: 21 jan. 2019.
104 Azevedo, 2015.
105 Bourscheid, 2008.
58
uma primeira forma da autodireção, em que o ator criava e executava o próprio texto. A prá-
tica de autores buscarem guiar o espetáculo não cessou na Grécia, exemplos como Molière
e Shakespeare, para citar grandes dramaturgos, são casos ilustres de nomes que escreviam,
atuavam e também dirigiam (no sentido próximo ao que hoje entendemos).

O papel do diretor pode ser identificado também com nomenclaturas diferentes, as


quais são variações históricas do que se pode entender como alguém responsável pela dire-
ção. Na Idade Média, as peças religiosas eram conduzidas por pessoas que ficaram conheci-
das como meneu de jeu106 . Na commedia dell’arte107 houve uma valorização do trabalho do
ator, por lhe conferir mais autonomia com a improvisação na cena diante da hegemonia do
texto como elemento principal do fazer teatral108 , o que faz pensar em um ator que invadia o
campo da direção.

Com raízes no Renascimento, a figura do ensaiador teve sua atuação mais enfatizada a
partir de 1820, no movimento romântico, no qual passou a coordenar todos os elementos
que envolviam a cena, como a interpretação dos atores, o figurino, a iluminação…109 O en-
saiador muitas vezes foi o primeiro ator da companhia ou um ex-ator ou uma ex-atriz. Exis-
tem registros na Inglaterra dos séculos XVII e XIX de atores110 que acumulavam a função em
sua trupe do que hoje seria o diretor.

Se extravasarmos os limites do teatro, um senso de autodireção também pode ser per-


cebido em manifestações populares. No Brasil, diversos folguedos111 não se utilizam da figu-
ra de um diretor externo112, os brincastes tem suas ações balizadas pela tradição, pelos dire-
cionamentos dos mestres e pelo público. Nesses casos, os brincantes possuem uma liberda-

106Hadechpek, 2016, ao citar Edwin Wilson, em sua obra “O Diretor”. In Cadernos de Teatro no 81.
São Paulo: Publicação d’O Tablado, 1979.
107Dario Fo (1998) lembra, a partir da experiência da sua esposa e da família dela, que participavam
de uma companhia de commedia dell’arte, que era o poeta do grupo que escolhia as personagens
para os atores, rememorava a trama e afixava o roteiro das cenas em um lugar visível a todos.
108 Tezza, 2012.
109 Azevedo, 2005.

Thomas Betterton (1635-1710), David Garrick (1717- 1779), Charles Kemble (1775-1854), Willi-
110

am Charles Macready (1793-1873) e Henry Irving (1838-1905) (Haderchpek, 2016).


111Essa informação tem por base minha prática em festas como o bumba meu boi, o coco e o mara-
catu, não podendo ser estendida a todas as demais.
112Não se considera aqui manifestações parafolclóricas, as quais fazem uso de um diretor ou coreó-
grafo, o que se explica pela proximidade do seu modo de proceder com o teatro e a dança.
59
de na execução das danças dramáticas em que se pode perceber um guiar da sua própria
brincadeira113 .

No ambiente circense, ainda que se pense na figura do diretor do circo como um res-
ponsável geral pelo empreendimento e com o poder de guiar alguns rumos do espetáculo,
não se pode esquecer a autonomia da criação pessoal dos números pelos seus respectivos
artistas. O palhaço, figura com quem tive mais contato dentro desse universo, desenvolve
muitas vezes suas apresentações (originais ou não), testando-as com a audiência e aprimo-
rando-as com base na sua própria experiência e reações observadas114.

Voltando ao teatro, arrisco dizer que a especialização do trabalho do diretor e do ator


(e também do dramaturgo) parece ter separado cada uma dessas funções, de modo que pes-
soas diferentes passaram a executar cada uma delas. Contudo, isto não tornou a autodireção
uma experiência rara. Entrevistei quatro atores-diretores que estrearam espetáculos no ano
de 2017 e esse número está longe de dar conta da sua ocorrência no Brasil.

Apesar de tudo isso, não foi fácil localizar uma bibliografia sobre o assunto. As poucas
referências que consegui obter acabam por discutir o tema com brevidade e em abordagens
que priorizam partes da sua totalidade.

A única obra encontrada que se dedica ao assunto, ainda que de forma breve, foi La
Direction d’Acteurs: dans la mise en scène théâtrale contemporaine (2006), da estudiosa
francesa Sophie Proust115 . O trabalho tem como enfoque a direção de atores e considera a
hipótese de esta ocorrer também na forma da autodireção. O relato da autora, apesar de re-
velar uma certa desconfiança116 com a autodireção, especialmente pela ausência de um
olhar exterior e crítico a guiar o trabalho, destaca a sua prática entre comediantes, como é o
caso do One Man Show. A dificuldade de alguns atores em serem dirigidos, bem como o de-
sejo de fugir do autoritarismo de diretores, os levariam ao exercício da autodireção.

113Não localizei uma bibliografia própria nesse sentido, mas obtive tais informações com o Prof. An-
dré Carrico (UFRN), que possui amplo estudo na área da cultura popular e na palhaçaria.
114 Também me utilizo aqui da consulta realizada com o Prof. André Carrico (UFRN).
115 Sophie Proust é professora, pesquisadora e escritora do CEAC (Centre d’Étude des Arts Contempo-
rains) da Universidade de Lille (França). Ela possui diversos escritos sobre teatro. Além da obra men-
cionada no corpo deste ensaio, outras que merecem destaque são: Mise en Scene et Droits d’Auteur
e Parcours de Génétique Théâtrale: du Laboratoire d'Écriture à la Scène (nesta, ela é coautora, junta-
mente com Ana Isabel Vasconcelos e Ana Clara Santos). Não identifiquei publicação delas no Brasil
(2019).
116Michel Melamed (2018) também identifica que geralmente há um julgamento negativo quanto à
autodireção como modo de criação.
60
A autora relaciona o tema com o trabalho do gesto psicológico desenvolvido por Mi-
chael Chekhov117 , em sua obra Para o Ator (1996). Ela entende que esta pesquisa confere ao
ator uma autonomia criativa, pois a partir da escolha de um gesto e de exercícios de repeti-
ção desse, o ator veria despertar em si vontades e sentimentos que poderiam ser utilizados
na construção da personagem.

O entendimento de Proust (2006) de que a técnica de Chekov reconheceu uma auto-


nomia criativa do ator não afasta uma visão de que o foco desse continua a ser sua atuação.
Acredito que, apesar do gesto psicológico conferir ao ator uma capacidade criativa e técni-
ca, é numa outra passagem da mesma obra de Chekhov (1996) que entendo haver uma con-
tribuição mais relevante para a compreensão da autodireção como prática criativa que reúne
uma visão do ator e do diretor.

O autor explica que o ator seria formado por um eu superior, um eu cotidiano e um eu


personagem. O primeiro seria sua potência criativa, seu ser artístico, poderoso e livre das re-
gras do nosso cotidiano. O segundo eu é exatamente esse eu que conhecemos no dia a dia e
que é impregnado do senso comum e de regras. O terceiro eu seria a personagem, como cri-
ada pelo ator. Essas três consciências corresponderiam à individualidade criativa do ator.

Interessa especialmente aqui o pensamento sobre uma multiplicidade de eus como


modo de estudar a autodireção, destacadamente com relação ao eu superior e ao eu cotidi-
ano. Pode-se perceber que tal entendimento enxerga a criação a partir de uma dualidade en-
tre a liberdade e a contenção, a ampliação e a restrição. Pensar essas duas consciências
como forças que se atritam e que levam a uma síntese criativa pode ser comparado em es-
sência à relação ator/diretor num trabalho solo.

Sem utilizar o termo autodireção, essa ambivalência interna pode ser identificada nos
escritos de outros autores. O diretor polonês Jerzy Grotowski118 , com base nos seus estudos
sobre o teatro oriental, acredita em um ator que está mergulhado em si mas que não abdica
de uma visão de tudo o que se passa ao seu redor. Ele se utiliza da imagem do ator como um
pássaro, em que o atuar seria o correspondente a bicar, uma ação que o faria voltar-se para
si, mas, ao mesmo tempo, o ator também seria um outro pássaro, a sobrevoar o primeiro, a

117Michael Chekov (1981-1955) foi um ator, diretor e autor russo-americano que desenvolveu uma
técnica de atuação, amplamente estudada, em que um dos pilares corresponde ao citado gesto psico-
lógico.
118 Grotowski, 2015.
61
fim de ter uma visão distanciada de si e do que se passa a sua volta. O ator transitaria entre
uma visão interior e exterior, a fim de desempenhar sua atividade.

O ator e diretor japonês Yoshi Oida119 compartilha de entendimento semelhante. Se-


gundo ele, um ator deve ter sua concentração ao mesmo tempo para o que acontece exter-
namente e para o exercício da sua função em cena. Uma visão não deve ofuscar a outra,
mas devem coexistir.

Indo um pouco além nessa mesma ideia, o norte-americano David Mamet 120 chega a
usar o termo autodireção em algumas passagens da sua obra de ensaios, Teatro (2014). Ele se
refere àquela como uma postura que deve ser praticada pelo ator no desempenho do seu
trabalho. Acredita que a figura do diretor seria dispensável, de modo que ser ator é se autodi-
rigir. O alcance do diretor se limitaria a auxiliar os atores na compreensão das personagens e
em posicioná-los na cena.

Percebe-se aqui que a autodireção se dá pela não valorização do papel do diretor –


seja como encenador, seja como diretor de atores – e por acreditar-se na autonomia do ator.
A autodireção para Mamet (2014) seria pensada menos como modo de criação pelo ator do
que como um instinto de autosuficiência daquele.

Mamet (2014) entende que um grupo de atores, utilizando-se do improviso e da cons-


trução em relação entre eles, sem um diretor, veria despertado em si um senso de autodire-
ção que os levaria à realização da montagem teatral, cujo resultado não ficaria aquém de
uma que tivesse uma direção externa. Mamet (2014) entende a autodireção como um mo-
vimento natural dos atores e uma capacidade inerente a estes.

A brasileira Grace Passô 121 (2015) possui uma visão que tem como perspectiva a práti-
ca teatral de grupos e os caminhos que levam à direção. Os processos colaborativos desen-
cadeariam uma aproximação entre atores e outras funções, o que despertaria o interesse so-
bre demais campos da criação. No caso dela, esse contato fez com que ela se interessasse
pela dramaturgia e pela direção.

119 Ator e diretor japonês, Yoshi Oida (1933) participou de diversas montagens por vários países. Inte-
grou por muitos anos a companhia do diretor inglês Peter Brook. No cinema, trabalhou em filmes
como O livro de cabeceira (1996), dirigido por Peter Greenaway, e Silêncio (2016), dirigido por Mar-
tin Scorsese.
120 O romancista, poeta, diretor e dramaturgo David Mamet (1947) escreveu e dirigiu diversas peças
e filmes nos EUA.
121Atriz, dramaturga e diretora mineira, integrou o grupo Espanca!. Hoje realiza trabalho com diver-
sos outros grupos.
62
O trânsito por várias posições criativas no processo teatral também seria um dos fatores
a se caminhar para a autodireção, segundo Passô (2015), o que muitas vezes não acontece
em um único coletivo, mas pelo percurso por vários. Toda essa diversidade de ocupações
torna natural a ocorrência da autodireção, que, por sua vez, enriqueceria a visão do diretor e
do ator, porque leva à construção de formas próprias de criação.

A abordagem de Grace Passô, ainda que breve, se comunica com o meu interesse pela
autodireção. Os processos colaborativos experimentados foram, sem dúvida, um primeiro
momento de aproximação com a concepção como um todo de um espetáculo. A variedade
de grupos pelos quais passei me permitiu também um acúmulo de práticas. Tudo isso fez
nascer em mim o desejo de dirigir e me levou a estar sozinho numa posição criadora, para
que pudesse ter maior liberdade e autoria.

Entretanto, apesar de todas essas abordagens, sinto faltar um maior enfrentamento


quanto ao tema da autodireção. Ainda sobre a ideia inicial de um ator que se dirige, me pa-
rece que essa merece maior atenção. Vejo nesse conceito tão conciso um destaque para a
ação de dirigir, apesar da menção à figura do ator, o que permite considerarmos também a
função de atuar. De todo modo, é o verbo dirigir que se sobressai, até por estar explicitado
na forma verbal, enquanto o atuar estar subentendido.

Esse conceito permite vislumbrar a situação de um ator que sai do seu ambiente natural
e parte para uma outra função, a direção. Uma ideia de deslocamento, de movimento de
uma posição a outra, de ampliação de funções. Mas talvez, principalmente, de acumulação
de funções, já que o ator não deixa de desempenhar a atuação.

Há, portanto, a ideia de que à atividade de ator é adicionada a de diretor, sem afastar
ainda uma noção de que aquele se desloca de uma para a outra, pois se seu campo de traba-
lho era a atuação e, agora, é também a direção. É um deslocamento em que não se deixa de
ocupar o lugar original para estar no novo destino, mas um movimento em que se ocupa os
dois lugares ao mesmo tempo.

A autodireção coloca, portanto, como centro do seu acontecimento, o ator. E como


nova informação a este, o dirigir122. Sabe-se que o diretor e o ator possuem responsabilida-
des diferentes, ainda que o teatro de grupo permita entendimentos que aproximam cada vez
mais as duas funções, como é o caso do processo colaborativo e da criação coletiva. Há

122Mesmo no caso de se pensar num diretor que optasse por também atuar, ainda assim se destacaria
a ação de dirigir e se reconheceria ele como ator no desafio de dirigir-se.
63
também um trabalho conjunto de ambos, que, além de criar e ter a finalidade comum de re-
alizar uma produção teatral, se ajudam nesse percurso. O ator pode ter no diretor um apoio
e um guia na execução da sua função e o ator apresenta material a ser utilizado pelo diretor
na encenação.

De todo modo, existe uma parte do campo de atuação de cada um que não se mistura.
Um é responsável pela encenação como um todo, enquanto o outro, no final das contas,
responde pela sua atuação. A partir de uma perspectiva espacial, localiza-se o ator dentro da
cena e o diretor fora dela. Um produz a partir de elementos que o levem até ela, sejam estí-
mulos para a construção de ações, um texto dramatúrgico, improvisações a partir de um
tema… O outro está fora e assim permanece, além de ter à vista todos os campos criativos
do fenômeno teatral. A cena, portanto, é a fronteira física e simbólica entre os dois. A autodi-
reção, consequentemente, é o abandono dessa separação, pela ocupação simultânea das
duas posições, de modo que quem dirige vai para a cena e quem atua busca estar para além
dela.

Se a cena não mais se torna um limite, pode-se identificar uma relação entre os dois
papéis a partir das suas atribuições.

Enquanto me autodirigi123, observei momentos em que era clara a posição de ator,


como por exemplo, ao realizar exercícios que focavam na sua preparação, como o treina-
mento energético124 . Noutros, ficou evidenciado o lado de diretor, quando pensava na con-
cepção do espetáculo ou no planejamento do processo como um todo. Nada impedia, con-
tudo, que alguma informação surgisse relativa a uma função enquanto desempenhasse uma
atividade planejada e direcionada para a outra. Houve momentos também em que não po-
deria dizer se o que fazia era voltado para o trabalho de ator ou de diretor. Como a temática
para meu experimento envolvia questões muito pessoais, o ponto de partida foi realizar um
levantamento de várias coisas que me marcaram ao longo da minha vida. Livros, imagens,
fotografias, filmes, relatos de momentos, objetos, medos, desejos… todo esse inventário
emotivo-afetivo me fez entrar em contato com potencialidades criativas que eu poderia utili-
zar como uma ideia geral do espetáculo ou como criação de cenas em específico, ou ainda
como pesquisa para alguma referência de atuação, bem como para a dramaturgia.

Trabalhei num experimento para esta pesquisa de mestrado tendo meu próprio percurso pessoal
123

como tema.
124Refiro-me ao treinamento energético que segue a linha estudada por Luis Otávio Burnier no Lume
Teatro.
64
Destaco ainda outro exemplo. Experimentei numa das etapas de criação a improvisa-
ção a partir desses elementos. Espalhei pelo espaço de trabalho todos eles: livros, imagens,
filmes, objetos. A ideia era que cada um pudesse me despertar algo, seja um movimento,
uma ideia, uma história ou uma imagem. A criação aqui não me pareceu clara sobre se tratar
de algo mais voltada para o trabalho de ator ou de diretor. Entendi como uma atividade vol-
tado para a criação, como um todo, sem a preocupação em definir para qual campo especi-
ficamente.

Percebi, no decorrer do meu processo, que o papel do ator e do diretor passaram a se


entrelaçar, não obedecendo a uma separação que pudesse identificar quando se dava o
exercício de um ou de outro. A busca por criar cresceu na medida em que se dissolveu a
atenção em observar qual função desempenhava.  

No início do meu processo criativo, sentia que buscava dividir o tempo do ensaio entre
cada uma das funções. Um tempo para o trabalho do ator – com o treinamento físico e im-
provisação – e um momento para o diretor – a reflexão do que produzi como ator e o plane-
jamento do processo. Com o decorrer do tempo, comecei a abandonar tal divisão. Primeiro
porque percebia que não me agradava o que estava produzindo. E segundo porque comecei
a notar que precisaria mudar a forma de trabalho para que deste resultasse algo diferente.

Fui me impregnando e revisitando todo esse aquele material, para experimentá-lo


como espaço criativo. Usei o levantamento realizado como ponto de partida para improvisar
partituras físicas, escrever pelo fluxo de consciência, falar livremente improvisando textos
(gravando os áudios), refletir sobre material reunido e desenhar também de modo livre com
o fim de criar imagens. Uma recorrência a partir das práticas foi o aparecimento de insights,
estes como acontecimentos de natureza complexa que se revela como descoberta a partir de
uma conjuntura formada por informações diversas, sentimentos e pensamentos125 . O insight
se apresenta como uma autorrevelação que não obedece limites de tempo ou espaço.

125 Ostrower, 2014.


65
Desenhos e apontamentos produzidos durante o processo criativo

66
Busquei também no diálogo comigo mesmo um lugar de amadurecimento de ideias.
Conversar comigo mesmo, em voz alta, sobre as dúvidas, as descobertas, o planejamento…
me despertava para uma multiplicidade de eus e servia para traduzir em formas verbais con-
teúdos expressivos, como nos lembra Ostrower (2014). Escrever também buscava produzir o
mesmo resultado, o que ocorreu pela realização de um diário.

Ainda que não os tenha utilizado, destaco os recursos que observo comuns em quem
opta por se dirigir: a filmagem, a fotografia, o espelho e a utilização de objetos a substituir o
ator-diretor na cena durante o ensaio. O critério para a utilização destes é puramente pesso-
al, Michel Melamed (2018), por exemplo, fez uso de todos eles em montagens, da mesma
forma que também abdicou de todos em outras oportunidades126.

A utilização de meios eletrônicos – filmadora e máquina fotográfica – causa um distan-


ciamento e uma visão a posteriori do que se produziu. Essa experiência aproxima a autodi-
reção com a direção de fora da cena pela possibilidade de se localizar o diretor em um pon-
to exterior daquela, ainda que seja importante destacar que o ator-diretor que se filmou ou
fotografou não esteja vendo a cena em si, mas seu registro. O uso dessas tecnologias permite
uma espécie de cisão do ator com o diretor, por levar este para fora da cena. Permite tam-
bém ao ator ver o que produziu. Essas vias eletrônicas funcionam como uma extração do
ator-diretor da cena e sua utilização pode ser explorada de maneiras diversas. Proust (2006)
relata o trabalho de vídeo-manuscritos, realizado pelo ator e diretor Philippe Caubère, que
serve de registro para suas improvisações e base para se trabalhar a dramaturgia.

A filmagem é um recurso que relaciona a autodireção no teatro e no cinema. Esse últi-


mo tem um grande número de praticantes127 da autodireção, tem no seu registro o próprio
material-base para sua produção artística. A ideia de multiplicidade de funções permanece,
servindo a filmagem de divisória entre as funções. Um famoso caso de um diretor que tam-
bém atuou em diversos dos seus filmes é o de Woody Allen128 , o qual não considera uma
prática fácil. Ele relata uma percepção de si enquanto atua e dirige que o alerta para a auten-

126 O ator-diretor não entrou em detalhes sobre em quais processos criativos utilizou esses recursos.
127Diversos diretores optaram por também atuar em seus filmes, cito alguns que considero os mais
conhecidos: Orson Welles, Woody Allen, Roman Polansky, John Cassavetes, Nani Moretti, Charles
Chaplin e Jacques Tati. Alfred Hitchkock é um caso peculiar, pois ficou conhecido em seus filmes por
realizar aparições rápidas e que guardavam um certo humor, talvez a autodireção mais constante,
breve e jocosa do cinema.
128 Premiado diretor, roteirista e ator norte-americano, em atividade desde os anos 1950. As informa-
ções aqui apresentadas foram extraídas da entrevista que o mesmo concedeu a Eric Lax (2008), pu-
blicada na forma de livro.
67
ticidade no seu desempenho como ator. Ver a cena filmada é um auxílio nesse sentido. Há
de se recordar também que Woody Allen construiu uma personagem que parece repetir-se
em seus filmes, o que faz com que ele mesmo reconheça que muitos consideram aquele ser
ele próprio, com o que não concorda.

No teatro, ainda que a filmagem possa auxiliar, também cria um obstáculo para sua uti-
lização. Melamed (2017) explica que a filmagem da cena em que atua afastaria a dificuldade
em se dirigir no teatro, pois permitiria ao ator-diretor ver seu próprio trabalho. Contudo,
mesmo que a filmagem permita visualizar o que foi feito, como o posicionamento na cena,
sua composição e, enfim, a atuação, não vemos a cena ao vivo, como no teatro, mas seu re-
gistro filmado, o que envolve uma diferente percepção do que é visualizado. As artes cênicas
se caracterizam pela sua ocorrência ao vivo, presencial, gerando no espectador efeitos emo-
cionais, físicos e sensoriais, o que pode gerar uma dimensão diferente na sua filmagem e
posterior exibição, geralmente em telas de tamanho bastante reduzidas, se comparadas ao
real. Essa diferença de percepção não inviabiliza a filmagem como recurso para a autodire-
ção no teatro, mas exige uma compreensão do diretor de que aquilo não é o acontecimento
teatral ou o ensaio, mas um registro desses, o que demanda uma adaptação da sua análise e
julgamento quanto ao que viu na tela.

No caso do espelho, há particularidades que o diferenciam da filmagem e da fotogra-


fia. O espelho129 não pode ser considerado um registro, já que funciona apenas com a fun-
ção de refletir o que se coloca diante dele. Ele é um constante convite a se sair de um mer-
gulho interior para ver-se refletido. É tentador ver o próprio reflexo, mas quando aceitamos
esse convite (ou nos rendemos a essa tentação), saímos desse contato interior para vermos o
exterior. Diferentemente da filmagem e da fotografia, o ator-diretor, ao se ver no espelho, não
está diante de um registro posterior. Ele se torna um instrumento de resposta imediata, já que
seu manuseio envolve o reflexo do que se apresenta na sua frente. O espelho funciona como
um rompimento instantâneo na atuação, pois no momento em que se vê, o ator deixa auto-
maticamente de atuar (ainda que possa voltar logo em seguida à sua atividade se ignorar o
objeto). Sua função principal serviria à visualização da cena de dentro da cena, sua compo-
sição, movimentações e disposição dos elementos, entretanto não auxilia da mesma forma
quanto à atuação em si.

Possivelmente o formato mais utilizado em salas de ensaio segue o padrão encontrado geralmente
129

em espaços de dança, em tamanho que ocupa toda uma das paredes do ambiente.
68
Curiosamente, o espelho, em outros ambientes, é tido com outro significado, que não
remete a uma ideia de cisão, mas de união. Lacan130, ao elaborar sua Teoria da Estadia do
Espelho, identifica uma atração da criança pelo espelho nos seus primeiros anos de vida, o
que ele observou contribuir para a tomada de consciência de si mesmo e de uma percepção
da sua unidade corporal até então desconhecida. O objeto auxiliaria no processo de cons-
trução da sua identidade, demonstrando que a formação dessa tem a colaboração do que
vem de fora131. Na ótica teatral, se para a direção ele pode ajudar na visualização de todo o
ambiente cênico, na atuação, entretanto, ele se torna um elemento a conturbar a percepção
de si na cena.

Finalmente, também merece destaque na autodireção a utilização de objetos como ins-


trumentos a auxiliar o ator-diretor a obter uma visão de fora da cena. A prática de colocar
objetos no lugar do ator-diretor ajuda especialmente para ter-se uma visão da cena, da com-
posição visual construída. A ideia consiste na utilização de objetos (cadeira, por exemplo)
ou pessoas132 no lugar em que deveria estar o ator-diretor, para que esse, ao sair de cena e
visualizá-la, possa ver como ela está disposta com a presença de um corpo em seu lugar.
Esse recurso encontra limite na direção de atores, mas pode auxiliar na encenação, por per-
mitir a visualização de um substituto na cena do ator-diretor.

Todos esses recursos funcionam numa tentativa de separar o diretor do ator na autodi-
reção. Se a criação pode se dar de forma reunida, de modo que não se pode dissociar ambas
as figuras, tais recursos reconstroem a cena como fronteira entre eles. Há aqueles que levam
o ator-diretor para fora da cena – filmagem, fotografia e substituição do ator-diretor por um
corpo qualquer - e aqueles que deixam o diretor na cena, mas afastando o ator dela – como
o caso do espelho.

Em minha prática utilizo uma última forma de me dirigir: não saio da cena, imagino o
desenho dela, mas guio o trabalho de dentro. Assim fiz com o meu trabalho com o palhaço,
como também fiz no meu experimento para o mestrado. Em vários aspectos, entendo que tal
modo de criar se aproxima da performance, apesar de a autodireção ser um modo de cria-
ção e não uma linguagem, como acontece com a performance.

130O francês Jacques-Marie Émile Lacan (1901-1981) foi um dos principais nomes da história da psi-
canálise.
131 Salles, 2005.
132Michel Melamed (2018) explica que utiliza um dublê para os ensaios do seu programa Bipolar
Show, pelo Canal Brasil, no qual é apresentador e diretor.
69
Em ambas se pode pensar numa criação concentrada numa figura única. Artaud133 en-
tendia que no teatro deve ver dissolvida a dualidade entre o ator e o diretor, dando espaço
para a figura de um criador, a quem caberia a responsabilidade e a execução do trabalho.
Na autodireção, a diluição da figura do ator e do diretor numa só se apresenta como uma
evidente similaridade com a performance.

Uma outra aproximação com a performance se dá pela via do ator. Rinaldi (2002)
compara o ator-criador ao performer, por entender que aquele possui uma postura propositi-
va e se compromete com a criação de todo o trabalho, não apenas se preocupando com sua
atuação. Na autodireção de um solo, o ator-diretor, obrigatoriamente, ocupa esse papel na
medida em que se encontra sozinho na sua criação.

Matteo Bonfitto (2013) também investiga a relação entre o ator e o performer. Ele en-
tende não ser suficiente para compreender a diferença entre ambos a ideia do ator como
aquele que se veste da personagem e o performer como aquele que se veste de si mesmo. O
autor constrói uma discussão que amplia a questão, apontando para tópicos que a problema-
tizam, os quais ele chama de ambivalências, por abandonar a simples oposição entre as figu-
ras.

O autor esmiuça diversas matizes entre o ator e o performer. Ele abre uma escala entre
ambos, pensando elementos que não poderiam ser vistos de forma fixa. Ele identifica varia-
ções entre a representação e a apresentação de si próprio (considerando a referência utiliza-
da para o trabalho), os níveis de intenção de cada um deles e ainda a produção de sentido e
significado entre eles.  

Por ser a direção um dos papéis da autodireção, pode-se pensar a performance também
em relação ao diretor, numa reflexão que leva até a uma construção da relação entre a per-
formance e o teatro.

Josette Féral (2008) fala de um teatro performativo, em que elenca como características
não mais um ideia de representação ou ilusão teatral, mas um teatro que tem como cerne a
ação e a imagem, numa postura mais provocadora com o público e que exige desse outra
percepção. Se o teatro em si se ocupa da construção de sentido, com a representação pela
palavra ou imagem, daí a utilização da ficção e da narrativa, o teatro performativo não busca
criar signos dos quais se pode obter sentidos, mas questiona esses, se ocupando do real.

133 Fabião, 2008.


70
Pensando na cena em si, Renato Cohen (2006) aponta que a encenação envolve a ado-
ção de formas, tendo como recurso a representação. Entretanto, em seu chamado work in
progress há um abandono da aderência da cena com o campo da ficção e uma aproximação
com o ambiente do real, em que o erro e o risco, por exemplo, são absorvidos no momento
da apresentação.

Na autodireção, os relatos dos entrevistados apontam para uma proximidade com


questões da sua vida pessoal, com a adoção de procedimentos criativos próprios. Nena
Inoue (2018) utilizou-se de um texto dramatúrgico, numa construção que levou a uma cena
mais próxima da ficcão. Ainda que em contato com profissionais como um dramaturgo, um
iluminador, uma preparadora vocal... ela vai se sobrepondo a essas especialidades, colocan-
do suas intenções quanto à cena, mesmo sem abandonar as parcerias, em um processo que
perpassa toda a criação e obtém um resultado em que se pode ver evidenciadas questões
pessoais.

Georgette Fadel (2018) tem uma autonomia na criação que pode ser notada desde o
início do processo. Ela parte de um texto que não é teatral, mas filosófico, o que já remete
para um distanciamento da ficção. Àquele ela adicionou trechos de outros materiais. Ela
queria um trabalho que tivesse o texto como ponto central, numa encenação e atuação sem
“maneirismos”, mas “austeros”. Ela aprendeu a tocar um pouco de violoncelo (“o básico pra
eu me mover ali dentro de um esquema de improvisação”) e estudou o texto para poder im-
provisar a partir dele. Foi com essa preparação e poucos ensaios, ela apresentou Afinação I.
Percebe-se da experiência de Georgette que ela se propõe a um trabalho que busca o risco e
a construção com o público:

De vez em quando ele simplesmente não acontece, tem dias que é brilhante,
tem dias que é uma merda, justamente porque depende demais da relação
com o público porque ele não tem nenhum tipo de apelo ultrateatral, né?
Então ele fica nessa corda bamba mesmo dessa opção, mas ele é assim, e
como você disse, eu sentia que ele tinha uma unidade assim, e que qualquer
coisa que entrasse poderia interferir de uma maneira negativa, dividindo a
suavidade.

A busca pela construção de uma cena que se aproximasse do real também pode ser
notada na construção da iluminação da obra, já que Georgette “queria que a luz fosse im-
provisada, (…) queria que a luz fosse uma luz que pegasse o público pra gente ter uma sen-
sação de sala de aula e não de plateia de teatro”.
71
Matteo Bonfitto também ressalta a questão de se pôr em risco. Ele explica que estar so-
zinho tem essa finalidade:

[…] tem a ver com o querer mesmo levar algumas questões pra um outro
plano, né, e os riscos disso acontecer, é lidar com esses riscos e me colocar
nesse papel também do artista, de como o músico cria, de como o pintor
cria, de como o escultor cria, uma forma hibridizada com lógicas do fazer de
outras formas de arte.

  Bonfitto (2018), que pesquisa sobre a questão do performer e do ator, afirma que “a
narrativa do espetáculo é uma narrativa muito performativa assim, né, no sentido de que eu
tento quebrar, eu tento tencionar a questão da representação o tempo todo…”. Ele ainda ex-
plica que o próprio processo, por ter esse interesse performativo, foi diferente no sentido de
buscar questões mais pessoais.

Eu sinto que foi uma, sim, foi um outro tipo de relação de fazer, eu sinto que,
eu não falo isso de uma maneira hierárquica né, mas assim, é como se, é
como se eu de uma certa forma tivesse levado pra um outro patamar assim,
tanto a noção de ator-compositor, do ator que compõe os próprios materiais,
quanto essa coisa que se materializa não só através das palavras e essa ques-
tão do performer como alguém que traz as próprias questões que o mobili-
zam, né... Na performance tem muito essa noção de manifesto pessoal, né...
Mas de um jeito que esse pessoal também se ressignifica. Que isso foi muito
importante no encontro com os atores do Brook também, o ator ele é um ca-
nal, né… (…) Ele não tá ali só pra falar de questões pessoais, psicológicas,
mas ele é um instaurador de experiências que vão além dele, né.

A fala de Bonfitto (2018) remete a uma outra questão que merece ser analisada sob a
ótica da autodireção e que foi um dos motivos que me levaram a essa forma, a autoria. A in-
dividualização dessa é inerente ao trabalho solo com a autodireção, por aproximar sua prá-
tica de outras linguagens, como nos lembra Bonfitto (2018), ao comparar o ator que se dirige
ao exercício do escritor, do músico, do artista plástico, que usualmente trabalham sozinhos.

Artaud134 diz que a autoria corresponde ao responsável pelo discurso cênico. Se na


performance se atribui a autoria facilmente à própria figura do performer, que seria o corres-

134 Trotta, 2006.


72
pondente a um ator-diretor-autor135, no teatro, ela envolve uma discussão maior por envolver
o encontro de diversas funções.

Até o início do século XX não havia dúvidas quanto à autoria ser reconhecida na figura
do dramaturgo. O texto possuía um lugar de destaque no teatro e se sobrepunha aos seus
demais componentes136. É o surgimento da figura do diretor no mesmo período que incita a
discussão sobre os espaços autorais entre o encenador e o dramaturgo, em que se pode re-
sumir a disputa no conceito “forma versus conteúdo”.

É importante lembrar que o ator também tinha seu reconhecimento, especialmente na


figura dos “monstros sagrados”, como lembra Roubine137 sobre os que se sobressaíam nos
seus desempenhos. O ator ganhou nova força nessa disputa com a contribuição de Grotows-
ki, na década de 1960, que conferiu a ele a criação das suas ações e movimentos138 .

Um fator a conturbar os limites da autoria é a criação artística nos grupos teatrais139. O


processo colaborativo e a criação coletiva são exemplos dessa construção em que todos os
integrantes podem participar do processo de modo ativo. Rosyane Trotta (2006) ressalta que
a autoria se deveria, ora a uma maior participação do grupo como um todo, ora ao diretor e
sua proposta de encenação.

A autoria é um tema que também merece ser discutido sob a ótica da história do cine-
ma. Nos anos 50, a revista francesa Cahiers du Cinéma elaborou o que ficou conhecido
como política dos autores. A autoria não era um conceito novo no cinema. O próprio termo
poderia ser associada aos escritos do roteiro. E é justamente nas suas raízes literárias que
aquela construção teórica se baseia, tendo como foco o cinema norte-americano da mesma
época140.

135 Trotta, 2006.


136 Nicolete, 2002.
137 Roubine, 1998.
138 Trotta, 2006.
139 Roubine, 1998.
140 Bernardet, 2018.
73
O intuito da geração141 que editava Cahiers du Cinéma envolvia encontrar em diretores
de Hollywood uma expressão particular, a produção de um cinema que não se limitava a um
modo de fazer talhado pela indústria. Os autores seriam os que conseguiam imprimir uma
marca pessoal quanto à direção dentro de um modo de produção que se inclina para a cons-
trução de obras que seguem o mesmo padrão cinematográfico. O autor, portanto, estaria li-
gado à criatividade e a uma expressão própria na direção142 . A autoria continuaria a rondar,
portanto, a figura do diretor, o que pode ser estendido também para o ator-diretor, sendo esse
um dos meus interesses em trabalhar com a autodireção, encontrar um modo de criação par-
ticular num processo solitário.

Ainda sobre nessa ótica, Foucault143 entende a autoria marcada pela expressão, mas
também pela morte, na medida que implica na perpetuação do autor por meio da sua obra
mesmo depois daquele morrer. Foucault identifica, a partir do Renascimento, raízes históri-
cas para associar a autoria à preocupação com a individualização. O filósofo entende que o
autor estaria ligado historicamente à figura de um transgressor, por afrontar as regras domi-
nantes e propor novos parâmetros.

Noutro sentido, Jean-Claude Bernardet (2018) aponta que o termo autor, no dicionário
francês Nouveau Larousse Illustré, teria entre os primeiros significados: Deus, pai, aquele que
faz uma coisa… utilizo-me desses significados para pensar outros aspectos da autodireção.

Na filosofia, a sentença nietzschiana de que “Deus está morto” tem relação com a per-
da da força de uma ideia de um mundo suprasensível, a de um Deus cristão que não se en-
contra mais no patamar de valores superiores. Com a morte de Deus, o homem abandona a
referência divina e lida com o niilismo, este movimento que representa a perda de tais valo-
res144 .

A morte de Deus retira esse da posição de meta para o homem. A constatação feita por
Nietzsche de que Deus deixou de ser uma referência, coloca o homem no centro de uma
nova conjuntura, em que ele passa a buscar a si mesmo como própria referência145 .

141 Essa geração consistia em novos nomes que, posteriormente, se tornariam famosos no cinema
francês: Jean-Jean-Luz Godard, François Truffaut, Claude Chabrol, Éric Rohmer, Jacques Rivette e Jac-
ques Doniol-Valcroze.
142 Bernardet, 2018.
143 Cavalheiro, 2008.
144 Heidegger, 2003.
145 Artaud defende que o julgamento divino deve ser afastado para o que corpo surja (Fabião, 2008).
74
Para Freud (2011), a figura de Deus não existe por um desejo de encontrar uma espiri-
tualidade, mas por uma carência paterna tão internalizada que nos faz transferir esse senti-
mento à criação de uma figura divina, que teria uma função protetora e uma posição superi-
or.

Ao colocar o ator como centro da autodireção pode-se remeter à aludida sentença da


morte de Deus, em que esse seria o diretor. Sem o diretor, o ator não tem mais sua referência
externa. Ele mesmo passa a ser sua medida e é catapultado a um ambiente maior, da cena
para todo o espetáculo. O diretor, pela sua responsabilidade que abarca todo o processo,
abrange um campo de ação maior que o do ator. A cena é o momento em que os dois se se-
param, já que cabe ao ator agir por conta própria, sem a assistência do diretor, num momen-
to de solidão com relação a esse, que, agora, impotente, apenas assiste146. Se é possível ver
algo de uma relação pai e filho entre o diretor e o ator, como lembrado a partir da indicação
de Bernardet (2018), não acredito que a autodireção seja um caminho que configuraria um
amadurecimento do ator por assumir a própria criação.

O rompimento do ator com o diretor, como dito antes, é o próprio momento em que o
ator vai à cena. Esse é o instante do rompimento entre eles pela maturação do ator no pro-
cesso criativo a que se submeteu com a supervisão do diretor. A autodireção não é o desejo
de tornar-se esse diretor-pai, ela é a ocupação de si como pai e filho ao mesmo tempo. É o
trânsito constante entre os dois papéis. É na ausência do diretor que se vive uma liberdade
criativa que não mais tem o outro como limite. O limite passa a ser si próprio. A autodireção
é a posição ímpar de solidão em que se abdica de uma relação pai/filho para se viver uma
posição solitária. É a abdicação da relação pai/filho para a relação consigo mesmo, já que os
dois passam a ser uma só pessoa. A autodireção é, acima de tudo, uma relação de identida-
de e não, portanto, de maturidade.

Georgette Fadel (2018) diz que optou pela autodireção por entender que só ela poderia
fazer o que queria fazer. Chamar um diretor seria inserir alguém que poderia desvirtuar o
caminho que ela via com clareza como percorrer. Matteo Bonfitto (2018) indica que se ex-
pressou de uma forma diferente pela autodireção, lidando com questões que o mobilizaram
de forma intensa. Essa expressão não se daria pelo viés narcísico ou de uma busca por apro-
vação, mas de uma ampliação do modo de criar.

146 Grotowski chama o diretor de espectador profissional (Grotowski, 2010)


75
O narcisismo147, por sinal, pode ser um risco na autodireção, pela solidão a que se
propõe.  Não sei, contudo, o quanto esse poderia ser evitado pela presença de uma figura
externa. O diretor e dramaturgo carioca Márcio Abreu (2015)148 coloca o diretor no cerne da
criação e entende que seu olhar não é de alguém de fora, mas de alguém de dentro, pois
cabe a ele costurar uma série de relações que envolvem pessoas e opções estéticas particula-
res a cada trabalho. Dirigir seria um processo em que ele nunca conseguiu se ver distante e
sem contaminação de todos os fatos que envolvem a montagem.

De dentro e de fora, em dois lugares ao mesmo tempo, múltiplo e uno… a autodireção


se propõe a ser um veículo de proximidade, sob diversos ângulos, do seu criador consigo
mesmo.

  

147O ator e diretor francês Maurice Durozier (2012), integrante do Théâtre du Soleil, entende que ser
ator é lutar contra o próprio eu, já que o personagem se utiliza de tudo o que ele tem, do seu próprio
corpo.
148 Integrante da Companhia Brasileira de Teatro, grupo curitibano de destaque no país, além de ter
trabalhado com outros grupos, com destaque para as montagens recentes com o Grupo Galpão
(MG), nos trabalhos Nós e Outros.
76
A autodireção em experimentações

Não há formatos para o modo de proceder com a autodireção, desde que as funções
de ator e de diretor sejam exercidos pela mesma pessoa. Assim, o tema acaba por se tornar
uma experiência com suas particularidades caso a caso. Com a finalidade de discutir ques-
tões singulares de quem a pratica, realizei entrevistas com artistas que optaram por trabalhar
segundo esse parâmetro. Os entrevistados149 foram Nena Inoue, Michel Melamed, Georgette
Fadel e Matteo Bonfitto. Esses profissionais experimentaram recentemente a autodireção, to-
dos com espetáculos solos que estrearam no ano de 2017: Para não morrer (Nena Inoue),
Monólogo Público (Michel Melamed150), Afinação I (Georgette Fadel) e Palavras Corrompidas
(Matteo Bonfitto).

Michel151 já havia realizado outras autodireções em solo, os demais, apesar de já pos-


suírem uma longa jornada no teatro, apenas em 2017 se aventuram nesse modo de criação.
Nena realizou este seu primeiro trabalho sozinha como celebração dos seus 40 anos de es-
trada. Georgette já havia feito a direção de atores estando dentro da cena, no espetáculo
Gota D´Água – Breviário (2006). Em Bartolomeu, o que será que nele deu? (2000), ela dirigiu
o espetáculo e posteriormente substituiu uma das atrizes, que havia saído do projeto. Mas foi
em Afinação I que ela entendeu sua necessidade de se autodirigir. Matteo, em função de sua
trajetória acadêmica, trabalhou seu solo com foco na pesquisa da sua criação, pensando
num diálogo com a performance.

No que se refere ao modo de ver a autodireção, por exemplo, Michel é enfático em di-
zer que não vê qualquer diferença entre ela e uma direção em que não estivesse também
atuando. Ele explica que cada trabalho se sobressai pela visão única de cada diretor e essa
não se revela em função de um posicionamento dentro ou fora da cena. A localização do
diretor seria, portanto, indiferente para o resultado da montagem. Isso se daria porque dirigir

149 As entrevistas, todas realizadas no ano de 2018, poderão ser lidas na íntegra como anexos deste
trabalho. No projeto inicial, havia a intenção de entrevistar também Denise Stocklos e Grace Passô,
mas, infelizmente, não foi possível.
150 Além do seu solo, Michel Melamed estava envolvido na autodireção de um programa de entrevis-
tas chamado Bipolar Show, que ele apresenta pelo Canal Brasil.
151 No conteúdo das entrevistas há a indicação dos entrevistados pelo primeiro nome. No intuito de
unificar o modo de me referir a eles, opto por usar o prenome dos mesmos em todo este ensaio.
77
envolve uma percepção total, de todos os lugares. Ele entende que não caberia uma catego-
rização como “autodireção”. O importante é atentar para a criação em si. Explica ele (2018):

O olhar não se mede por uma questão física. O olhar, principalmente na arte,
se mede por milhões de instâncias... As percepções, a subjetividade, a intui-
ção, a tua rede de informações, a tua disponibilidade né, a abertura... Então,
não é parâmetro pra categorizar a direção estar de dentro ou fora. (…) De
maneira que não é através de autodireção ou direção que você configura
maior distanciamento, ou maior presença, ou uma posição mais privilegiada
ou menos privilegiada pra que aconteça a direção.

Michel problematiza a questão do diretor para além da sua localização física em rela-
ção à cena. Para ele, se houvesse a necessidade imprescindível de o diretor se posicionar
fora da cena, bastaria a ele, de dentro, filmar o que foi feito e ver posteriormente a filmagem,
assim ele garantiria sua participação na cena e fora dela. Isso não o leva a acreditar na auto-
direção como um modo de trabalho em particular, mas como uma direção como outra qual-
quer. O que de relevante ele considera sobre a função de diretor é seu potencial criativo par-
ticular.

O entrevistado pensa a posição do diretor não como de dentro ou fora da cena, mas
em espaços internos, valorizando a criação a partir de elementos singulares. Na minha expe-
riência, não experimento uma indiferença quanto à autodireção. Optei por esse modo de
criar pela vontade de ficar sozinho, por querer dirigir e não compartilhar a criação com ou-
tra pessoa. Queria trabalhar a partir de uma perspectiva muito pessoal, um tema de minha
escolha e no tempo que eu quisesse, descobrindo passo a passo como se daria essa prática.
Por outro lado, compreendo a questão da internalidade na criação a que se refere Michel,
pois essa também foi um dos meus objetivos ao optar pela autodireção.

O caso de Nena também questiona a autodireção, mas de um outro modo. Ela convi-
dou a diretora musical e cantora Babaya a participar da montagem de Para não morrer. Ape-
sar de Babaya ajudar a guiar o processo, a posição de direção ficou indefinida.

Nena explica que o convite inicial não consistia em Babaya dirigir, mas cuidar do tex-
to, já que depois alguém seria chamado para dirigir. Após levantar vários nomes para a dire-
ção, Nena decidiu: “e aí eu pensei e tal... E aí no meio assim, eu falei: ‘Ôh Babaya, eu num
vou chamar diretor nenhum não’, e acho que ela falou: ‘É, não chama mesmo não…”. Mas
também não parece ter se definido qual das duas dirigiria. Assim, percebe-se que a direção

78
do espetáculo sempre esteve envolto de alguma incerteza, em uma constante desconstrução
de uma hierarquia entre quem estava fora da cena e quem estava dentro dela.

Nota-se que Babaya entendeu que havia uma direção de dentro da cena feita por
Nena, que, por sua vez, necessitava da presença de Babaya fora da cena, mesmo que com
Nena consciente quanto ao que queria do trabalho. A autodireção aqui estava por se revelar
e esta foi uma provocação da entrevista:

NENA – Então eu fiquei pensando quando você me falou ali, porque você
veio muito certo, né, falando se eu dirigia, eu falei: “É, é sim...”...

GEORGE – Foi, eu suspeitei ali...

NENA – É... Foi, foi... Foi, mas, é o que eu te falei ontem, eu nunca teria feito
se eu num tivesse com uma figura na minha frente que seja a Babaya, me
olhando, me permitindo, me direcionando de alguma forma, né, dizendo tá
certo isso que eu tô propondo, né. E por incrível que pareça, tem uma auto-
direção minha, sim, e eu sou uma atriz muito obediente a diretor. (…) E nun-
ca fiz um solo, né... Então é um lugar assim, é um lugar novo pra mim, isso
tudo aí, né?! Mas, enfim…

(…)

NENA – É, mas quando você chegou falando eu falei: “Filho da puta!”... (Ri-
sos)

GEORGE – “Filho da puta, me revelou...” (Risos) Você num tá querendo se


assumir.

NENA – E eu dirijo!

GEORGE – Sim, é! Eu sei!

NENA – Mas num dirijo eu né!

GEORGE – O que é um baita... Poxa... Eu acho que dentro da carreira de al-


guém, alguém se dirigir... Você depois de quarenta anos, acho que é um pas-
so tão forte , né...

NENA – É...

GEORGE – Eu fico imaginando o significado disso pra você...

NENA – É... Mas foi bom você ter falado. Eu fiquei pensando hoje que você
vinha, né, eu fiquei pensando isso, eu falei: “Gente, quê que eu vou falar pra
esse menino, sobre o meu processo, num sei o quê?”. Agora já descobriu
né...

GEORGE – Disse tudo! Falou tudo! Obrigado!

79
Pode-se ver que apesar da confiança gerada pela presença de Babaya, Nena possuía to-
tal consciência do que queria criar, ou ao menos sabia o que não queria, de modo que du-
rante o processo foi vivendo o movimento de descoberta do que realmente gostaria de ter na
montagem. O diretor Peter Brook (2002) nos lembra que trabalhamos rejeitando o que não
nos interessa e permitindo o que queremos aparecer.

Verifica-se que, se a percepção da encenação foi sendo construída ao poucos por Nena
ao longo do processo, a concepção geral do trabalho foi dela desde o início. Ela escolheu o
texto que iria montar e pensou no conceito visual para o trabalho, o que não contou com a
participação de Babaya.

O tema da assinatura da direção foi conversado por elas. Nena conta que “ela (Ba-
baya) disse, no último dia de ensaio, a Babaya falou no café, durante o café. A gente foi to-
mar café depois, né, nesse dia... Aí ela falou: ‘Oh Nena, eu sei que você vai achar que eu
não dirigi, eu não dirigi mesmo’, ela falou, ‘Porquê já tava pronto’.” Nena ainda pontua que,
apesar de Babaya ser reconhecida como uma grande preparadora vocal, ela não a dirigiu
nem cantando, mas a encorajou a cantar a música Gracías a la vida no espetáculo, como
Nena (2018) desejava:

Babaya num me dirigiu nem cantando. Aí eu falei “Babaya!”... Ela olhou eu


cantando e falou: “Ôh Nena, num vou mexer não. Eu num vou mexer porque
se eu mexer vai estragar. Você vai perder a naturalidade de cantar assim, você
vai cantar tecnicamente, vai prum outro lugar... Eu num vou mexer.”. E não
mexeu”.

Nena revela que a sensibilidade de Babaya em entender o que ela própria queria com
este trabalho – seu incentivo com suas escolhas –, a fez creditá-la na ficha técnica como
uma “parceira de direção e de criação”, mas que a palavra final sobre as questões era de
Nena. A relação entre ambas demonstra muita confiança e amizade, o que serviu de estímu-
lo a Nena para realizar seu primeiro solo depois de 40 anos de carreira.

Uma prática recorrente na criação de solos é o caso de trabalhos em que o ator possui
consciência do que quer abordar no espetáculo, mas não quer se dirigir. Assim, ele produz
sozinho, numa etapa inicial da criação, um material cênico a ser trabalhado posteriormente
pelo diretor, que somente passa a participar da criação num segundo momento. Ou seja, o
processo se inicia para o ator antes do encontro com o diretor. Contudo, mesmo que a parti-
cipação do diretor implique em uma recriação ou edição do que foi inicialmente produzido,
80
o ator com isso garante uma maior participação na criação do trabalho ao entregar ao diretor
um material cênico que balizará sua participação152 , não ficando ao alvedrio do diretor.

Entretanto, não foi isso que aconteceu com Nena na montagem de Para não morrer. No
seu caso houve o que se poderia chamar de uma autodireção assistida, pois ela se dirigiu
sempre tendo a presença de Babaya como figura a lhe estimular. Há uma relação de afeto
existente entre as duas parceiras que viabilizou a direção do trabalho: Nena por querer criar
o espetáculo e tomar as decisões de dentro da cena e Babaya por entender isso e permitir
que ela assim o fizesse.

No ano de 2014, convidei a atriz Potyra Pinheiro, com quem já havia realizado alguns
trabalhos, para experimentarmos um processo em que nós atuaríamos e nos dirigiríamos. O
processo perdurou de março a outubro daquele ano. Sentimos uma grande dificuldade de
darmos encaminhamento ao trabalho (quanto à dramaturgia e à encenação), que terminou
sem ter como resultado um espetáculo. A experiência me despertou ainda mais para meu
desejo de dirigir, mas nesse caso hesitei e não consegui assumir esse papel sozinho. O con-
vite feito à minha amiga tinha a intenção de me garantir alguma segurança diante dessa res-
ponsabilidade. Assim como Nena, eu tive dificuldades em assumir sozinho a direção.

As experiências de Michel e Nena permitem questionar por óticas diferentes a existên-


cia em si da autodireção. Por outro lado, os casos de Georgette e Matteo não problematizam
tal ponto, já que eles aceitam e assumem a autodireção, eles levam a discussão para o moti-
vo da escolha desse modo de trabalhar.

Para Georgette (2018), o processo de resolução para se trabalhar com a autodireção


não se deu por uma opção estética, ela diz que a ideia foi amadurecendo aos poucos até o
ponto de estar certa de não trabalhar com um diretor que não ela própria. Isto aconteceu em
face da clareza do que ela queria com esse trabalho e como esse se daria, sendo o primeiro
espetáculo em que ela desejou se dirigir:

[em] Afinação o que aconteceu foi que era uma coisa pra mim tão simples,
tão íntima, tão minha, tão clara, no sentido de nítida, das intenções que eu
tava movimentando pra fazer aquilo, que o que aconteceu... Eu achei que
qualquer tipo de interlocução me tiraria de uma coisa muito precisa, que eu

152 Cito como exemplo desse procedimento o caso do ator e diretor Eduardo Okamoto (SP), em seus
solos Agora e na hora da nossa hora (direção de Verônica Fabrini) e Eldorado (direção de Marcelo
Lazzarato). Essas informações foram obtidas em conversa com o artista após a apresentação dos seus
espetáculos.
81
tava buscando... […] Então aconteceu isso... A minha opção pela autodireção
não foi uma opção de estética a priori num sentido: “Não, eu sei muito bem
o que fazer, eu quero me autodirigir porque eu tô com uma ideia maravilhosa
na cabeça e porque eu quero reduzir equipe…”. Não... é uma coisa tão deli-
cada e tão precisa, e tá tão formada dentro de mim, que assim, eu não preci-
so de mais ninguém nesse momento.

A autodireção não era algo incomum para Georgette, embora tenha sido a primeira vez
em que ela a praticou num projeto solo. Como já mencionado, em Bartolomeu, o que será
que nele deu? (2000), ela dirigiu e passou também a atuar. Já em Gota D´Água – Breviário
(2006), ela fez a direção de atores de dentro da cena.

O processo de autodireção com Georgette se contrapõe ao de Nena. Georgette decidiu


pela autodireção antes de iniciar o processo criativo. Ela possuía uma clareza do que queria
para o trabalho que a fez dispensar a ideia de um outro diretor que não ela. Nena iniciou a
montagem com uma indefinição quanto à direção, descobrindo ao longo dela a desnecessi-
dade de um diretor outro, ainda que sem assumir por completo que dirigiu, mantendo a
companhia de Babaya numa parceria criativa.

Em Afinação I, Georgette sabia que queria um trabalho simples e austero, que dispen-
sasse qualquer “maneirismo” na encenação ou na atuação. Ela tinha consciência do trabalho
como um todo: “eu queria que a luz fosse improvisada, eu queria que a luz fosse uma luz
que pegasse o público pra gente ter uma sensação de sala de aula e não de plateia de
teatro”, pois queria o foco na palavra.

Tanto Nena como Georgette tinham claro o ponto de partida para os solos. Nena usou
o texto Mulheres, do escritor uruguaio Eduardo Galeano153 . O original foi adaptado pelo
dramaturgo curitibano Francisco Mallmann. Georgette optou pelo texto O movimento do
pensamento, do filósofo alemão Georg Hegel154 , acrescentando trechos de A Santa Joana
dos Matadouros, de Bertolt Brecht, textos de Marx, de Goethe, além de referências atuais.
Ela diz que fez “uma colcha de retalhos, poucas palavras são minhas. Ali eu só ampliei
mesmo”.

153O uruguaio Eduardo Hughes Galeano (1940-2015) foi um jornalista e escritor. Autor de mais de
quarenta livros, que já foram traduzidos em diversos idiomas.
154O alemão Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) foi um dos principais filósofos da história.
Entre seus principais estudos, destacam-se os sobre a dialética e o idealismo absoluto.
82
Diferentemente delas, eu não tinha um texto dramatúrgico com o qual quisesse traba-
lhar, mas sempre soube que adotaria a autodireção. Tinha uma ideia do universo que queria
trabalhar: questões pessoais, artísticas, históricas… Meu primeiro passo foi construir um
grande inventário afetivo-emotivo, em que reuni filmes, músicas, imagens, lembranças… A
construção da dramaturgia, por sua vez, se deu de forma conjunta com a cena.

Georgette, ao contrário de Michel, enxerga profunda diferença em dirigir e se dirigir.


Apesar de optar pela autodireção em função de não enxergar a necessidade de um diretor
outro, ela gosta de ser dirigida, por entender que o trabalho com um diretor leva o ator a
uma experiência de expansão dos seus limites, “porque tem uma outra pessoa te olhando, e
essa outra pessoa tá vendo, e elaborando de acordo com a visão dela, de acordo com a ex-
periência dela, então ela acaba sempre te levando pra coisas que você não suspeitaria
fazer”. Portanto, é nessa troca entre ator e diretor que aconteceria a riqueza desse encontro,
com cada um dando para a relação o que não seria possível ser feito sem o outro.

Quanto a Matteo, sua relação com a autodireção tem a ver com sua história e sua pes-
quisa. Seu incômodo com a dificuldade de organização de grupos - que, se por um lado au-
xilia a criação pela força do coletivo, por outro, faz o ator depender dessas mesmas relações
para o fazer teatral, em face de precisar trabalhar com um figurinista, um iluminador, um ce-
nógrafo… –, o levou a participar de um processo com um número menor de pessoas, do
qual resultou seu solo Palavras corrompidas. Nesse processo ele pensou o ator como um ar-
tista independente de outros profissionais, o que o aproximaria da autonomia vivida por um
músico, um escultor, um pintor ou, por vezes, um bailarino155 .

O performer seria uma outra figura a inspirar o trabalho solo de Matteo, que explica
que a “narrativa do espetáculo é uma narrativa muito performativa assim, né, no sentido de
que eu [Matteo] tento quebrar, eu tento tensionar a questão da representação o tempo todo”.
Sua pesquisa sobre a relação entre a performance e o teatro resultou na sua obra Entre o ator
e o performer: alteridades, presenças e ambivalências. O diálogo entre o teatro e a perfor-
mance foi um dos estímulos para minha pesquisa pessoal, o que encontro proximidade com
o processo relatado por Matteo (2018):

155 Na dança, como nos lembra Matteo Bonfitto, não é incomum o coreógrafo ser o próprio bailari-
no, em trabalhos solos. Tal questão não foi ignorada nesta pesquisa, mas o recorte pelo teatro, bem
como minha pouca experiência na área da dança, me fez delimitar o estudo no âmbito dos solos tea-
trais.
83
E quando eu chego na pesquisa sobre o performer isso fica muito forte assim,
porque uma das críticas que a performance faz em relação ao teatro é porque
que o ator ele depende de textos, da palavra escrita por outras pessoas pra
poder ser um ator... Então, como se implicitamente na performance se per-
guntasse quais são as suas questões... Assim, porque que você precisa de
questões de outros e da palavra de outros pra poder existir como artista. E,
então, isso também, essa e outras questões, né... Essa questão da simulação
de experiências que na performance fala muito que o ator ele não vive expe-
riência, que ele simula experiência, enfim, provocações, e etc. E... Então,
tendo passado por esses processos, esses percursos né, de pesquisa, e artísti-
cos também de criação artística que acompanharam esses processos, chegou
um momento em que, no ano passado, final de 2016, na verdade pra 2017,
que surgiu a necessidade de vivenciar um tipo de processo criativo diferente
em que eu pudesse cuidar de todas as etapas aí de criação, tanto adaptação
do texto do Hofmannsthal (Carta de Lorde Chandos)... Nesse caso do “Pala-
vras corrompidas” […] eu sinto que foi uma, sim, foi um outro tipo de rela-
ção de fazer, eu sinto que, eu não falo isso de uma maneira hierárquica, né,
mas assim, é como se, é como se eu de uma certa forma tivesse, né... Na per-
formance tem muito essa noção de manifesto pessoal, né... Mas de um jeito
que esse pessoal também se ressignifica. Que isso foi muito importante no
encontro com os atores do Brook também, o ator ele é um canal, né...

O desejo de autonomia experimentado por Matteo se estendeu para outros campos da


criação: além de ator e diretor, fez o figurino, adaptou o texto dramatúrgico e escolheu a tri-
lha sonora do espetáculo156.

Quanto à ideia de estar sozinho na criação, entendo ser um tópico relevante a se pen-
sar no tocante à autodireção. Para Matteo, esse foi um ponto de seu interesse, pela possibili-
dade de experimentar um trabalho diferente e também por entender que “pra poder levar
essas questões pra intensidade que eu quero, eu preciso tá sozinho”, tais decisões não afas-
tam uma angústia e solidão em um processo assim, como diz o entrevistado (2018):

Então tá sendo bem importante e o fato de tá sozinho, claro, é angustiante...


Tenho consciência de todos os riscos que isso envolve, né, de você tá numa
bolha, de você perder a crítica, de você perder a dimensão do que tá aconte-
cendo e do que não tá acontecendo... Claro, tem o feedback das pessoas que
veem o espetáculo, né…

156A contribuição de outras pessoas se deu no campo da iluminação (Camila Jordão), vídeos (Lucas
Reitano), trilha sonora (Deivison Nunes) e produção (Graziela Manotvanello). Encontrei na internet
algumas fichas técnicas do espetáculo que creditam o figurino a Helô Cardoso (https://www.maxpres-
s.com.br/Conteudo/1,885136,Estreia_no_Sesc_Ipiranga_o_espetaculo_Palavras_Corrompidas_com_-
Matteo_Bonfitto,885136,1.htm) e noutros apontam uma codireção de Gisele Dória (http://www.per-
formateatro.org/palavras-corrompidas). Utilizo-me das informações da entrevista prioritariamente em
função da diferença quanto a esses dados.
84
A escolha pela autodireção num solo leva, obrigatoriamente, a uma experiência solitá-
ria. Angustiante ou estimulante, ou ambas, a vivência possibilita um encontro com os pró-
prios limites pessoais. Transcrevo a fala de Matteo (2018) sobre o assunto:

Isso também sempre, isso também sempre é um filtro que é importante, mas
ao mesmo tempo essa angústia de tá “sozinho”, assim, entre aspas, foi bem
importante porque num tem a ver com a vaidade artística, mas tem a ver com
o querer mesmo levar algumas questões pra um outro plano, né, e os riscos
disso acontecer é lidar com esses riscos, e me colocar nesse papel também
do artista, de como o músico cria, de como o pintor cria, de como o escultor
cria, de como... De me colocar nesse lugar mesmo, hibridizado com lógicas
do fazer de outras formas de arte, né.

Quilici (2015) fala do receio que temos de ficarmos sozinhos no mundo contemporâ-
neo, cuja integração às mais diversas demandas sociais se impõe como uma obrigação, a
negativa em participar delas cria o risco de um alheamento. Por outro lado, o mesmo autor
fala do perigo de uma solidão narcísica. O objetivo defendido por aquele é de uma solidão
investigativa, de uma desconstrução desse eu. É no confronto das suas inquietações que Qui-
lici (2015) pensa o estar só como um cuidado de si, numa construção que tem o pensamento
de Foucault157 como base.

Para falar da dificuldade em isolar-se, Quilici (2015) nos lembra da figura do dramatur-
go, que antes tinha sua atividade isolada das demais da prática teatral, mas que posterior-
mente foi incluído nos processos coletivos. Sua atividade, contudo, parece paralelamente,
exigir um isolamento a fim de ocupar espaços de subjetividade para a construção da escrita.

Para Georgette (2018), seu processo criativo foi muito solitário, ela chega a chamar de
egoísta por não ter convidado ninguém a acompanhá-la:

E talvez no sentido egoísta mesmo, mas não no sentido egoísta da obra, mas
da intenção, do princípio da ação que eu tava querendo promover, da radica-
lidade da ação que eu tava querendo promover. Então acabou sendo um pro-
cesso praticamente muito solitário... Eu não mostrei pra ninguém, eu não fiz
nada com ninguém antes do dia, e a Julia Jaker, que foi minha parceira inicial

157O filósofo, professor, filólogo e crítico francês Michel Foucault (1926-1954) foi um dos principais
pensadores do século XX. Produziu diversas obras, dentre as quais cito Arqueologia do Saber (1969),
Vigiar e Punir (1975) e História da Sexualidade (iniciada em 1976 e dividida em várias partes escritas
nos anos posteriores).
85
de produção e de concepção da luz, ela mesma ficou super permeável ao
que eu tava pedindo. Porque eu já tinha a concepção da luz também...

Georgette (2018) explica a dimensão pessoal dessa experiência. Ela entende que um
processo solitário assim gera um amadurecimento artístico pela oportunidade de olhar para
si, de tudo depender de si próprio para acontecer, pois “às vezes esse olhar pra si é facilitado
quando você tá solitário, né. Se você ouve a tua voz, você ouve a tua bagunça, ou a tua
calma... Você ouve... Tem mais silêncio pra ouvir, né…”. Mas mais do que isso, Georgette
(2018) faz um relato muito tocante do seu percurso íntimo e solitário, o que teve reflexo no
seu trabalho como atriz-diretora, além de na sua própria vida. Transcrevo:

A solidão de uma sala de ensaio sem diretor é uma coisa muito louca, você
se encontra com você num nível muito pequeno, muito minucioso. Com a
direção, essa interlocução às vezes até esconde aspectos muito íntimos de
indisciplina, de rebeldias, de vícios, de coisas... Então, os dois trabalhos se
equilibram... Eu acho importante pro diretor perceber... Se perceber... Um
diretor-ator, né, diretora-atriz... Eu acho gostoso passar por esse momento
onde você se autodirige, porque esse encontro da diretora com a atriz não
necessariamente é uma coisa pacífica. Eu, por exemplo, sou uma diretora
que a minha atriz não sei se gosta muito de trabalhar, sabe, então esse con-
fronto entre o que a gente é como diretor e o que a gente é como atriz é uma
coisa bonita de se atravessar e ensina demais. É claro que a gente se trata de
uma maneira diferente que a gente trata um outro ator, mas de uma mesma
maneira os autoritarismos, as fraquezas, as inseguranças, as fragilidades todas
de uma maneira geral, e também as qualidades ficam muito aparentes nessa
solidão da sala, né. Eu tenho achado assim importante de tempos em tempos
parar e olhar pra mim na solidão, sabe, e vê o que é que eu tô realmente sen-
tindo, sendo e fazendo naquele momento da minha vida e devolver isso pro
público, sabe. Acho que tem sido rico essas paragens... Eu tenho entendido
quase como paragens, de autoanálise, de autoinvenção, não no sentido tera-
pêutico só, mas no sentido de devolver pro mundo um pensamento de uma
humana, um ser humano que tá vivo neste momento. Então, é nesse sentido,
no sentido épico né, não no sentido de: “Ah, agora eu vou fazer um psico-
drama...”, embora eu ache muito válido o psicodrama, mas não nesse senti-
do... No sentido de reunir todo o material, inclusive filosófico e tal, que se
tem até aquele momento, e devolver de uma maneira épica pra esse público,
né; se colocando um pouco até em sacrifício, né... No “Afinação” eu falo
isso, eu introduzido a peça dizendo isso, que eu me ofereço em sacrifício.
Que eu vou fazer uma personagem, e eu ofereço essa personagem em sacri-
fício naquele momento. O pensamento dela eu ofereço em sacrifício.

Pode-se perceber que os casos de Georgette e Matteo foram marcados por momentos
de angústia, mas que eles também entenderam a experiência como algo engrandecedor e
uma possibilidade de descobrir formas de trabalhar. A atividade solitário não era uma triste
86
consequência ou uma desvantagem da escolha, mas uma condição de potência para a cria-
ção e uma razão para a escolha da autodireção. O trabalho sozinho permite a possibilidade
de uma proposta artística mais pessoal. Uma fala de Matteo (2018) resume isto muito signifi-
cativamente: “a partir de tudo isso, eu falei: ‘Não, eu quero, pra poder levar essas questões
pra intensidade que eu quero, eu preciso tá sozinho’”. Eu também queria estar só, por um
desejo, por uma experimentação, por uma criação que fizesse sentido para mim e que se
voltasse para mim. Dividir esse momento com outra pessoa representaria uma distração ou
um obstáculo a alcançar meu objetivo.

Quanto à criação em si, cada entrevistado falou um pouco da sua experiência, bastante
diferentes entre elas. Michel (2018), em face da sua experiência com a autodireção, explica
que tentou diversas formas de se dirigir, não se fixando em um único modo de trabalho. Ele
já se filmou para uma montagem, no intuito de poder se ver em cena, mas também já passou
por um processo em que não se filmou nem usou espelho, não se vendo de fora em nenhum
momento do processo e levando o resultado à plateia assim, tudo feito de dentro da cena.
Apesar das suas experimentações em sala de ensaio, Michel entende não se fixar em ne-
nhuma delas. Mas elege um único caminho que tem percorrido novamente a cada trabalho:
uma exaustiva preparação sobre os temas a serem tratados. Ele explica:

Sabe uma coisa que eu gosto muito nos trabalhos... É que isso, apesar de re-
cusar a metodologia, não acho que seja um método, talvez seja, mas é que
eu experimentei também tantas vezes, que chegou um ponto que eu vi que é
algo que acontece sempre também. Pra todo trabalho, eu faço um dever de
casa amplo, até por essa questão de grande parte das vezes tá em várias po-
sições, eu tenho que preparar muito...

Esse estudo anterior ao trabalho o prepara para o momento da criação em que ele,
como diretor, começa a ser alvo de uma intensa demanda por soluções das mais diversas na-
turezas. O ritmo de trabalho aumenta à medida que avança o processo criativo, o que faz
com que Michel (2018) passe a tomar decisões muito rapidamente: “depois que o trabalho
começa a entrar em ritmo de produção e aí você começa a saltar as noites e os dias e entra
num turbilhão e você tem que tomar muitas decisões, eu vou tomando todas as decisões
com extrema velocidade”.

87
Michel não vê em nenhum momento a direção de dentro da cena como um obstáculo,
o trabalho se dá com a mesma naturalidade e fluidez de quem apenas dirige. A crise fica por
conta da criação, esta sim um desafio a exigir sempre mais do diretor.

Enquanto Michel se prepara exaustivamente, Georgette realizou Afinação I com poucos


ensaios, deixando a “afinação” do trabalho por conta do contato com o público. Ela estru-
turou o trabalho, mas entendia que esse apenas aconteceria com as apresentações, com as
quais conseguiria perceber os ajustes que se fariam necessários. Não que Georgette não con-
siderasse importante a preparação, ela mesma trabalhou bastante o texto dramatúrgico, mas
sua proposta envolvia a lapidação das escolhas do espetáculo dessa forma. Ela (2018) chega
a dizer que o público foi seu diretor. Transcrevo as suas palavras:

Eu senti que a minha comunicação tinha que ser com o público. Que o pú-
blico seria o que mudaria no decorrer do trabalho a atuação, a minha atua-
ção. Então, assim... Isso foi uma coisa arriscadíssima, por quê? Porque eu pra-
ticamente não ensaiei. O quê que eu fiz... Eu preparei um material. Eu sabia
o que eu ia tocar, eu estudei muito pouco mas um pouco de violoncelo, en-
tão eu preparei o instrumento um pouco, o básico pra eu poder me mover ali
dentro de um esquema de improvisação, eu “decorei” entres aspas o texto,
mas foi um decorar estudar, estudei o texto, ao ponto de poder improvisar
sobre ele, e eu fui pro público, eu fui pro público. Com uma ordem estabele-
cida, e comigo mesma, e na intenção de dar uma aula sobre aquele texto.
[...] eu sabia que eu ia estrear muito crua, que eu ia aos poucos delimitando
meu espaço de ação. No contato com o público, que o público seria minha
direção. Na verdade é isso... O público seria minha direção, né, e eu confiei
nisso. O que aconteceu foi que acabou dando um resultado até melhor do
que eu esperava que era o da comunicação com o público, era um texto difí-
cil e as plateias estão segurando a onda, sabe, as pessoas têm estado interes-
sadas assim do começo ao fim. Não todo mundo, é claro, mas eu acho que
funcionou, sabe...

 Por sua vez, a criação para Nena foi se revelando ao longo do processo. O processo
teve um foco no trabalho de atriz enquanto a diretora que existia nela foi se assumindo aos
poucos, inicialmente pelo que ela sabia não querer e posteriormente pelo que descobriu
querer. Possivelmente pela sua rica história como atriz, ela foi formando a concepção da en-
cenação a partir da personagem:

Eu parti do texto pronto, eu só comecei a partir do texto, mas a ideia de que,


por exemplo, essa coisa da imobilidade, de tá sentada, né, tudo isso... tem a

88
ver com o momento que eu tava lá, que eu falei, né... Eu ensaiava numa ca-
deirinha assim lá na casa das meninas onde eu ficava, e eu ficava passando o
texto e sentei numa poltroninha na sala e me acomodei, e cheguei pra Ba-
baya e falei “Babaya, vai ser sentada. Vai ser sentada porque eu fazia de pé,
fazia deitada, e sentada eu encontrava esse lugar”. E eu falei: “Então vou fa-
zer sentada”, e a Babaya falou: “Tá bom, mas alguma hora você vai levantar,
né?!”, eu falei: “É...”, mas num me via levantando. Como eu num me via fa-
zendo nenhuma cena, nada. No começo a Babaya até botou um negocinho
de água, aquelas antigas que você põe água que tem a canequinha em cima,
que eu não sei o nome, e tinha água e tinha uma Santa Rita do lado, como se
fosse quase um lugar mais beata, mais cabocla, essa mulher, porque não era
essa figura, né, arquetípica, essa velha, né, num era, era eu. Então, tinha esse
lugar... Mas eu nunca, nunca me vi assim, né, com a santinha... Mas me vi
com a mesinha, porque eu precisei tomar água. E aí, como eu precisava to-
mar água, eu falei: “Babaya, eu tenho que tomar água.”, e falei pro cenógra-
fo: “Eu tenho que tomar água, não tenho como fazer se eu não tomar água.”.
Aí tinha uma mesinha com um jarrinho de água com copo, aí virou uma sa-
linha, né, porque uma velha sentada com uma mesinha, com uma jarra e
com uma água, é uma sala que tá contando a história, é uma sala. E aí achei
esquisito, falei: “Ai gente, também não é...”. Aí botei mais uma água. [...] en-
tão, assim, foi a única coisa que eu pus a mais, né, o resto eu fui tirando. E eu
sabia desde o início que eu queria tirar coisas, eu sabia que queria ser sim-
ples e que eu tinha que trabalhar muito pra conseguir essa simplicidade. Eu
sabia que eu não queria fazer ceninha, não queria levantar pra fazer um café,
não queria... Não queria... Até num momento lá, por conta de umas coisas,
eu pensei que podia ter um ritual no começo, um tipo de dança, de num sei
o quê, mas é tanto, mas aí fui tirando, fui tirando, fui tirando... E tem uma
coisa muito clara assim, que isso é da direção, que eu acho que é mesmo...
Eu nunca vi sonoplastia, nunca vi música nesse trabalho. E a Babaya, que é
da música, também, mas é que eu sou ruim de sonoplastia, é a última coisa
que me vem no espetáculo é a sonoplastia, quando eu dirijo, eu cato sono-
plasta e falo: “Filho, é assim, assim, vê aí que música...”. Eu não tenho esse
direcionamento já assim. Então eu não tinha e deixei pra Babaya, e a Babaya
também não tinha, e a Babaya é diretora musical.

Sua visão do espetáculo foi se ampliando, ela parecia ir descobrindo exatamente o que
queria no diálogo com as diversas especialidades: cenografia, iluminação, figurino… tudo
parecia surgir como uma imagem para Nena. Uma exceção a isso foi a dúvida sobre a ne-
cessidade de uma sonoplastia, que ela optou por não utilizar, decisão essa que contou com
o apoio de Babaya:

GEORGE – Mas todas essas decisões vinham de você, na verdade, né. Você
tinha muita certeza de que queria essas coisas...

NENA – Sim, a única coisa que eu não tinha certeza era a sonoplastia.

GEORGE – Que no final você teve a certeza...

NENA – Que no final eu tirei de vez.

89
GEORGE – Mas você também tirou, então...

NENA – Tirei, é... E a Babaya ainda falou: “Nena, a gente devia ter feito isso
desde o início, você tá certíssima.”... Falei: “Pois é...”.

GEORGE – Babaya foi uma amiga né, assim...

NENA – Foi uma amiga!

GEORGE – Uma mulher muito sensível em ter entendido o que você queria
fazer, né.

NENA – É, é! E de ter topado! Porque a Babaya se colocou num lugar que ela
sempre diz e continua dizendo que não é o lugar dela. Ela não é uma direto-
ra de espetáculo, ela não é... E ela fala isso. Mas ela se colocou... Ela falava:
“Ai, Nena, não vou... Não, não, não vai pôr não.”. E ela topou eu colocar
parceira de criação porque ela foi parceira nesse processo de criação, mas
ela realmente não se intitula como diretora de espetáculo.

A ideia de uma criação pela visualização de uma imagem da cena pode ser deduzida
da entrevista de Nena e se apresenta declarada na entrevista de Michel. Este último diz que
ao escrever já pensa na imagem da cena: “quando eu escrevo, eu já tô pensando na cena e
eu já tô pensando na imagem, existe um tráfico e um tráfego entre essas coisas”. A criação
mental prévia, antes de se testar as ações, é um modo de criar que utilizei ao me dirigir. O
desejo de dirigir e de criar cenicamente acompanhou a construção de imagens internas do
que se queria fazer.

Fayga Ostrower (2014) explica que a imaginação pode ser traduzida em formas, por
meio das quais o conteúdo interno é comunicado. Aquelas podem ser verbais, musicais,
imagéticas… É compreensível uma usual utilização de formas afins às áreas em que se des-
penha a atividade. Por exemplo, um escritor pode imaginar a partir das palavras, que são
formas verbais. No teatro, pela variedade de áreas que envolve, como cenografia, dramatur-
gia, iluminação… entendo que se recorra a formas diversas.

Peter Brook (2002) explica que o diretor tem um pressentimento ligado à forma que é
poderosa e intuitiva. Essa visão anterior da cena é um guia para o trabalho solitário, especi-
almente por se estar sozinho, como na autodireção, o que torna essa criação um potente
caminho a se seguir.

Para Nena e Michel, as imagens serviram de guia para a criação, sendo aquelas testa-
das, desenvolvidas e/ou transformadas, seguidamente. Transcrevo a fala de Nena (2018) so-
bre como construiu sua personagem como um desenrolar de cada passo do processo:

90
Eu saía com meu cachorro e ia decorando texto, com a boca torta, porque eu
não consigo decorar sem entortar a boca. E eu ensaiava de noite, e aí as luzes
eram umas luzes brancas, e eu comecei a apagar essas luzes porque elas me
tiravam da concentração essas luzes brancas, e eu apaguei e comecei a dei-
xar as luzes de fora só acesas, então a luz entrava pela janela. Então, era um
ambiente muito íntimo, né. E muito... Eu acho que esse lugar que eu preparei
assim, que eu fui apagando a luz, que eu fui fazendo sozinha, a peruca ficou
logo pronta logo no inicio, então eu fazia com essa peruca e tava o maior
calor e eu ficava com essa peruca, fazia pelada, e, acho que foi me dando
esse lugar assim, sabe...

[...]

A Babaya tem uma moça que trabalha pra ela, a Rosa, que trabalha com ela
há anos, e a Rosa é uma mulher aí do povo que tem num sei quantos filhos,
que já perdeu quatro filhos no tráfico, num sei aonde, uma mulher negra,
negra já mais pra branca, mas é negra. E aí ela ficou fazendo sala pra mim
esse dia porque Babaya foi ver um negócio dum carro e atrasou e num sei o
quê e a Babaya falou: “Rosa, fica aí com a Nena!”, e ela ficou. E foi um dia
que eu tava com a minha pressão altíssima e eu falei: “Rosa, eu vou ficar
com as pernas pra cima porque tô com o pé inchado e tal...”, e eu não sabia
que eu tava com a pressão alta, porque eu achava que era o sol, e eu fiquei
ali e a Rosa começou a falar, e conversar, e falar, e falar, e falar, e falar, das
mulheres, dos filhos, num sei o quê... Ela tava com um problema com uma
filha... E começou a falar. Ela ficou umas duas horas e meia falando, e eu fi-
quei escutando e fui dando trela pra Rosa, assim, sabe. E observando... E ela
tinha um jeito de falar... Ela não tinha a boca torta, mas ela tinha um tique,
ela tinha um negócio assim que me chamou atenção e eu fiquei olhando pra
copiar a Rosa. Falei: “Eu vou botar a Rosa em cena!”. E aí comentei com a
Babaya, eu falei: “Ôh Babaya, a Rosa ficou aqui esse dia...”, eu falei pra ela,
ela falou: “É mesmo, Nena...?”, e aí eu tentei um pouco esse lugar da Rosa,
esse lugar de falar, de falar sem parar, de falar, sabe, de ter uma história que
emenda com outra, mas não rolou. Daí quando eu fui pra casa, daí no outro
dia que eu falei né que a minha boca torta é porque eu deitei, né... Deitei de
lado e a boca entortou, daí quando eu cheguei, então eu misturei um pouco
a Rosa com a minha boca torta lá... Mas eu acho que eu, sei lá... Acho que,
como diz a Regina Bastos, mulher do Beto Bruel, acho que teve aí um alin-
hamento de planetas.

A descoberta de como criar para Matteo se deu com o andamento do processo. Para
ele, o caminho criativo foi se revelando a cada exploração e assim desenvolvendo sua conti-
nuidade. Eis as palavras dele (2018) sobre o assunto:

MATTEO – Não, é isso assim… Na verdade, as coisas se conectam, né... O


que, se a gente pensar nessa relação entre a preparação, material e dramatur-
gia, na verdade, as próprias práticas... É que normalmente nos processos cria-
tivos a gente vê assim uma lógica que é: você treina, você tem práticas de
preparação, aí você utiliza isso nos materiais que você tá construindo, e se
cria uma dramaturgia. Na verdade, nesse caso a ordem não foi essa assim, foi
o próprio material, a exploração do material foi gerando a necessidade de
91
explorar práticas de preparação que depois desembocaram numa dramatur-
gia, e como já existia também uma parte dramatúrgica que tava definida, a
própria dramaturgia também já definia materiais, que definiam práticas de
preparação....

GEORGE – Entendi…

MATTEO – Então, teve uma lógica muito particular aqui que não foi essa ló-
gica, digamos, que é mais convencional assim, do treinamento, materiais e
dramaturgia, mas a lógica foi bem entrelaçada, né.

A minha criação na autodireção com o palhaço se aproxima desse modo de trabalhar.


O início da produção de cada cena tinha como marco a escolha de mote principal. Um
cena de amor, por exemplo. Pensei que meu palhaço poderia se apaixonar por uma mulher
da plateia. Mas o que fazer a partir daí? Tentar conquistar sua atenção e interesse. Um jantar
romântico foi a escolha. Mas como um palhaço prepara um jantar romântico? Que trapalha-
das ele vive? Um primeiro momento em que imagino o que fazer é seguido de testes dessa
ideia, em que trabalho detalhes e a desenvolvo. Rever cenas, melhorar a técnica, mudar op-
ções dramatúrgicas, tudo isso vai acontecendo ao longo do tempo e tendo aquele mote pon-
to inicial e conceito geral.

Além da ideia central da cena, o principal suporte que eu tinha era a figura do meu pa-
lhaço. Ele era minha bússola. A partir das ideias eu improvisava, mas os improvisos seguiam
suas características, as quais eu tinha internalizadas e apareciam a cada experimentação.
Essa é a diferença para a montagem que não envolve o palhaço. Sem ele como referencial,
busco outros. No caso do experimento que serviu da base para investigar a autodireção nes-
sa pesquisa de mestrado, tive em mim o referencial, minha história, dificuldades, desejos… o
que representa a construção dessa autorreferencialidade, para usar o termo que Bonfitto
(2013) utiliza como ligado à performance. Não à toa, esta foi uma linguagem que me auxili-
ou no estudo sobre o tema da autodireção.

No meu processo eu visualizava o que queria e trabalhava a partir dessa ideia. A exe-
cução prática dessas imagens produzia reverberações internas, que, por sua vez, me geravam
novas imagens. Um fluxo de movimento criativo que apenas cessava diante de um sensação
de satisfação com o que foi feito, o que não costumava ocorrer em pouco tempo. Um traba-
lho em que o ator e o diretor estão criando conjuntamente, em que me comprometia como
um todo.

92
É a existência e a exposição de um estímulo interior que gera o movimento criativo. A
sensação de se mostrar talvez seja uma das principais percepções do trabalho com a autodi-
reção. Esse é o relato de Georgette Fadel (2018):

Então... Agora, quando esse trabalho é solitário, onde você dirige, eu acho
que são os momentos onde você pega... Olha, eu tô falando você, mas sou
eu, tá... É o que tem acontecido até agora na minha vida. Eu acho que são os
momentos onde eu peguei o que eu tinha na mão. Eu peguei o que eu era até
aquele momento. Eu peguei... Eu peguei o que eu podia, o que eu tinha
construído sozinha, o que eu sou, e coloquei na roda o que eu sou, entende?
O que eu tenho, o que eu sou, o que eu aprendi, o que eu treinei, o que eu
desenvolvi. E quase num funil... Eu chamo até de trabalho-funil… Trabalho-
funil… Você pega a tua vida inteira, e em pouco tempo você constrói um fu-
nil. Você constrói uma peça de teatro, uma forma, onde você vai se empres-
tar, onde o teu ser vai se emprestar como humano, como alguém que cons-
truiu alguma coisa até aquele momento na vida e pensa tal coisa. Então, pra
mim, esses trabalhos solitários estão sempre associados a esse trabalho funil,
sabe, esse trabalho onde eu pego o meu repertório, onde eu pego o repertó-
rio da minha troca com todo mundo que eu trabalhei até esse momento, o
que eu penso da vida, o que tá acontecendo no mundo, as coisas que estão
pungindo o meu coração, atingindo o meu coração... Eu pego esse arca-
bouço todo da vida e coloco num trabalho, coloco numa fala, e escolho esse
texto, e vou pro fronte com as armas que eu tenho, sabe...

O mesmo sentimento é compartilhado por Matteo Bonfitto (2018):

Então, assim... Eu sinto com esse trabalho, é como se esse trabalho fosse uma
– eu não gosto da palavra síntese porque a palavra síntese ela chapa as coisas
– mas eu sinto que eu consigo fazer convergir nesse trabalho questões que
me mobilizaram em várias outras pesquisas e experiências artísticas, e que
aqui eu me coloco numa situação de exposição – eu nunca me expus tanto,
né, na verdade, como nesse projeto em que eu... Normalmente quando al-
guém dirige e você atua, se acontece algum problema se fala assim: “Ah, ó, a
direção...”, “Ah, a atuação é legal mas a direção num sei o quê...”, ou o con-
trário: “A direção é legal mas a sua ação num sei o quê...” – nesse caso eu
não tenho saída, né… […] E essa exposição ela é importante porque não é só
uma exposição assim que tem a ver com o que vocês acham de mim ou bus-
cando uma aprovação. Essa exposição tem a ver com tentar se colocar num
lugar de criação, que tem a ver, que se aproxima da lógica de outras formas
de arte, como eu falei, assim, do músico, do escultor, do pintor, dessas pes-
soas que trabalham solitárias mas que ao mesmo tempo não trabalham des-
conectas a elas com a própria existência de uma maneira profunda, né...

As facetas de um trabalho com a autodireção são variadas, mas também se pode ver
alguns pontos em comum entre os processos. As falas dos entrevistados revelam isso. A di-
93
versidade de percursos envolve uma escuta atenta e uma percepção particular, a fim de en-
contrar os próximos passos a serem seguidos num trabalho em que descobri-lo é conhecer a
si mesmo.

Apesar de tudo isso, imagino que a autodireção pode ser exercida de forma a não en-
volver um compromisso pessoal e íntimo do ator-diretor na criação. Mas não é o que perce-
bo pelos relatos obtidos nesta pesquisa. O desejo de realizar uma obra em que se tem a si
próprio como parâmetro para a construção cênica se revela na fala dos entrevistados. Com-
partilho desse posicionamento. Para mim, não teria sentido estar só e não aproveitar esse
momento para um mergulho mais aprofundado em abismos internos.

94
Nota-imagem

Tilted Arc, de Richard Serra (Crédito: Anne Chauvet)

Em 1979, o Federal General Services Administration - GSA158, órgão norte-americano


que ajuda a gerir e apoiar as agências federais, financiou o artista plástico Richard Serra159

158 <https://en.wikipedia.org/wiki/General_Services_Administration> Acesso em: 21 de jan. 2019.


159Escultor e vídeoartista norte-americano, nascido em 1938, ele possui trabalhos expostos em diver-
sos museus pelo mundo, como o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque – MoMA (EUA) e o Museu
Guggenheim de Bilbao (Espanha).
95
para que realizasse uma obra na Federal Plaza, em Nova York (EUA). A escultura consistia
numa gigantesca placa de aço de 3,66 m de altura, por 36,58 m de cumprimento e 6,5 cm
de largura, que cortava transversalmente a praça.

A reação à obra foi bastante negativa. A população local a considerou opressiva, além
de representar um obstáculo à visão da praça e ao livre trânsito pelo lugar. Depois de um
processo judicial que durou quatro anos, foi determinado que a mesma Federal General Ser-
vices Administration - GSA a retirasse do lugar. Ela foi destruída. Richard Serra pediu para
não mais ter seu nome associado à obra.

A imagem deste trabalho sempre foi muito marcante para mim160. Lembro de quando a
descobri, há muitos anos. Ela possuía uma desobediência àquele espaço, criava um barulho
num ambiente comportado. Seu arco oblíquo sequer seguia as linhas existentes no chão da
praça, mas as desafiava.

Quando pensei em trabalhar sozinho e me dirigir, passei a reunir muitas imagens, obras
e referências que me foram marcantes. Era o meu primeiro solo que não tinha o universo do
palhaço como base e queria me armar do que me inspirou e me marcou na vida. Essa ima-
gem foi uma delas. Mesmo num segundo momento do processo criativo, quando fiz uma
triagem sobre o que deveria permanecer de referencial para o trabalho, ela se manteve.

Ao pensar sobre a autodireção, identifiquei nessa escultura questões que me fizeram


refletir sobre o tema.

A obra representa uma ocupação de uma área, a qual considerarei simbolicamente


como o processo de criação. Ela separa a praça em duas metades. E a referência de uma du-
alidade acompanhou por um tempo minha ideia de autodireção. De um lado, o ator, e do
outro, o diretor.

Entretanto, o arco de aço que dividiu a praça, não impediu o trânsito das pessoas pelas
suas extremidades. A comunicação entre os dois lados não foi cessada, mas acontecia por
vias determinadas. A dualidade não se apresentava de modo absoluto. A criação na autodi-
reção pode ter momentos de clareza quanto ao desempenho do papel do ator e do diretor,
mas também por vezes deixa turvo qualquer limite entre eles. Ao contrário do proposto na
escultura, na autodireção, a mistura entre os lados acontece de modo amplo, especialmente
pela reunião de ambos em um só corpo. Neste caso, o contato ator-diretor não se dá pelas
extremidades do espaço criativo, não exige cerimônia para se chegar ao outro lado, mas

160 Nunca cheguei a ver a obra ao vivo. A fotografia da escultura é o que guardo em minha memória.
96
ocorre de modo direto, com um interferindo no outro, atrapalhando, invadindo, no que diz
respeito às funções que não lhe cabem. Enquanto dirijo sou ator, enquanto trabalho como
ator sinto estímulos de diretor.

Penso que a obra de Serra, apesar de imensa, está localizada (aparentemente) num es-
paço plano, o que coloca o ator e o diretor na mesma altura. Essa posição de igualdade re-
mete a uma relação que tem origem no teatro de grupo, em que seus integrantes são vistos
como co-partícipes de um projeto comum. O coletivo, apesar das inúmeras maneiras de se
organizar e das responsabilidades de cada função que o compõe, não busca uma parâmetro
de autoritarismo, mas uma criação compartilhada, seja pelo processo colaborativo, seja pela
criação coletiva. No caso do processo colaborativo, mesmo que haja um responsável pela
última palavra para cada área artística, não se abdica do espaço para que todos contribuam
e opinem. Na criação coletiva, de modo ainda mais enfático, todos estão em pé de igualda-
de criativa todo o tempo.

A escultura não deixou de ser um obstáculo. Uma dificuldade a ser enfrentada para
quem transita pela praça. Mas é na obstrução deste espaço que se confere uma nova visão
sobre aquele. Quem caminha por ali com habitualidade está possivelmente acostumado a
percorrer o mesmo caminho, provavelmente o mais curto. A escultura o obriga a mudar a
trajetória. Mas o que pode ser um incômodo, pode também ser uma descoberta. Um desbra-
var de um outro percurso, que se abre para novos encontros, novas experiências, novas vi-
sões, novos pensamentos. Foi a saída do meu caminhar em coletivos que me fez me aproxi-
mar da autodireção.

A reunião do ator e do diretor na autodireção permite repensar o trabalho de cada um


deles. A dificuldade em ter de acumular as duas funções permite uma experiência em que se
pode repensar o modo de trabalho, especialmente por se estar sozinho. Não há caminhos
certos na criação artística, nem errados161. Não há obstáculos, há o mundo com que temos
que lidar, independentemente de onde estejamos. Não vivemos isolados sem qualquer inter-
ferência. O contato com tantas coisas e ter de lidar com tantas questões que nos aparecem,

161Serra diz que cabe ao escultor definir o que seja escultura e não ser soterrado por uma estrutura
de poder que visa apenas embelezar o espaço. Ele explica que sua ideia de escultura sempre é dife-
rente da noção de beleza das pessoas que o contratam. Disponível em: https://www.ppgav.eba.ufrj.-
br/wp-content/uploads/2012/01/ae17_Harriet_Senie.pdf
97
mesmo sem querermos, é o lugar da criação. Noutras palavras, o que interfere também é
campo de criação. Viver é ir entre o que vive162 .

Tilted arc, em tradução livre, significa arco inclinado. É comum encontrarmos arcos em
grandes cidades, alguns mais antigos podem marcar fatos históricos, outros mais modernos
dão outras formas aos lugares. Richard Serra opta por deitar um imenso arco. Esse artista cos-
tuma trabalhar com metais.

Pensando na forma arqueada, posso imaginar uma forma inicial reta sendo pressionada
por uma força num ponto central até aquele envergar. Um deslocar-se de um lado para o ou-
tro que arqueia o que antes era uma linha reta e imutável. Um ator que se direciona para a
direção, conquistando outros espaços, assim vejo minha história.

O arco de Serra possui uma altura que impede de vermos o outro lado, nos direcio-
nando a outros percursos. Na autodireção, pode-se ver o outro lado da linha imaginária que
separa o ator da direção. Perfurar o aço não se torna impossível aqui. Aliás, que limite é
esse? Que linha separa os dois? Onde ela está? Desapareceu.

Ver-se como dois poderia me chamar a atenção no início do processo. No seu decorrer,
tudo conclama para a criação, independentemente de que posição do fazer teatral se esteja.
Os obstáculos internos, nossos medos e inseguranças, são arcos de metal. Mas eles podem
aparecer e desaparecer. A criação acontece com a comunicação entre todos os nossos lados
(pelas extremidades ou através dos nossos arcos), não mais o do ator e o do diretor, mas de
todos que formam nossa multiplicidade. Quando não acontece essa comunicação, perma-
necemos em um só dos lados, o mais seguro ou mais confortável para criar.

A autodireção tem lados e não tem lados. É um campo único, mas em movimento,
como um rio (e seus lados). Ora lamacento e raso, ora encorpado e cheio. É dele que produ-
zimos, com toda a matéria (viva ou morta) que é carregada por este rio. Porque é muito mais
espessa a vida que se desdobra em mais vida. […] A vida que se luta cada dia163 .

Verso do poema “O Cão sem Plumas”, do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-
162

1999).

Verso do poema “O Cão sem Plumas”, do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-
163

1999).
98
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fev. 2019.

104
Anexo - Entrevistas

Crédito: Lídia Ueta

Nena Inoue
Atriz e diretora, natural de Curitiba/RN, ela montou o espetáculo Para não morrer
(2017) em parceria com a diretora e preparadora vocal mineira Babaya. Nena possui mais de
40 anos de carreira e esse trabalho é o seu primeiro solo. A entrevista foi realizada presenci-
almente, no dia de 16 de dezembro de 2018.

...

GEORGE – Vou gravar!

NENA – Já trabalhasse, alguma coisa assim, não?

105
GEORGE – Eu sou ator.

NENA – Você é ator?!

GEORGE – Sou ator!

NENA – Ah, então, tá, é você, uai...

GEORGE – Também faço coisa de palhaço.

NENA – Ah, então é você! É, eu vi rapidamente, eu vi uma foto de palhaço assim com o pú-
blico e tal.

GEORGE – Ah é, é, foi uma apresentação que eu fiz de palhaço, é! Foi muito legal aquilo! Aí
foi, na verdade, começou com palhaço, fazendo autodireção, porque não tem muita gente
pra dirigir, palhaço é uma coisa, uma linguagem muito específica.

NENA – É...

GEORGE – E aí eu fiz muitas oficinas, fazia saídas, e eu disse: “Pô, queria montar um núme-
ro pra mim!”. Aí montei. O primeiro, você deve conhecer... Adelvane. Ah, acho que você
conhece, Adelvane tá aqui.

NENA – Sim, conheci ela lá no curso de teatro do Guaíra.

GEORGE – Pois é, ela disse depois! Aí Adelvane me dirigiu num... Porque foi uma grande
mestra do palhaço pra mim. Aí depois eu disse: “Pô, eu vou experimentar me dirigir sozi-
nho”. Aí vinham as ideias, eu ia testando, ia fazendo, e foi rolando, sabe?! Aí veio a ideia do
mestrado... Só que agora eu quero fazer uma coisa diferente, porque o palhaço tem a facili-
dade da linguagem ser bem mais definida, então eu posso atuar dentro daquilo. E eu queria
uma coisa diferente, mais contemporânea, sei lá.

NENA – E fez?

GEORGE – Tô fazendo!

NENA – Tá fazendo!

GEORGE – Tô no dilema... E era exatamente o que eu queria saber. Saber de você o que
você acha, como é essa relação, porque ter escolhido Babaya. Você falou um pouco já no
final do espetáculo né, mas...

NENA – É, eu acho... A Babaya fala isso. Ela disse, no último dia de ensaio, a Babaya falou
no café, durante o café. A gente foi tomar café depois, né, nesse dia... Aí ela falou: “Oh
Nena, eu sei que você vai achar que eu não dirigi, eu não dirigi mesmo”, ela falou: “Porque
já tava pronto”. Esse negócio que eu tenho falado que veio, veio de um jeito muito simples,
por exemplo, eu trabalho com a Babaya, que é uma mestra da voz e do canto, e eu falei:
“Bom, vou cantar!”, e eu sou semitonada e tal, sou um pouco desafinada, mas quando eu tô
em cena eu não desafino, mas fora de cena, eu desafino.

GEORGE – Ah, tá!

NENA – E aí eu falei: “Bom, vou cantar!”, aí quando falei pra Babaya, contei toda a história
de “Gracías a la vida”, porque tem toda uma história, enfim...

GEORGE – Você que escolheu a música no final?

106
NENA – É, mas olha só... Eu achava ela muito óbvia, muito óbvia da década de 70, muito
emblemática, que aquele cara levanta e fala lá, e achava que ela era muito um lugar-comum,
assim, apesar d’eu achar ela uma música muito simbólica e representativa daquela mulher
também e de mim, porque é uma música que eu canto e me emociono e tal. Aí o Chico
chegou pra mim um dia e falou: “Ah, Neninha, sonhei com você e tal, e você tava
cantando...”, e isso no começo do trabalho. Eu falei: “E o quê que eu tava cantando?”, ele
falou: “Gracías a la vida!”.

GEORGE – Sem saber que a música...

NENA – É, sem saber! Aí eu falei: “Ai meu Deus do céu”, aí falei: “Chico, então, olha só...”...
E aí cheguei em Belo Horizonte, que eu fui ensaiar em Belo Horizonte, fiquei na casa de
duas amigas minhas, e aí eu chego, a Lica, que trabalhou comigo na produção e tal, e a Tâ-
nia também tem tatuado aqui “Gracías a la vida”.

GEORGE – Meu Deus...

NENA – E aí eu falei: “Bom, né, gente, acho que é pra fazer o ‘Gracías a la vida’, porque,
né”. Aí falei pra Babaya, e ela falou: “Ah, não, vamos fazer sim!”. Aí a Babaya, num primeiro
momento, ela tinha falado: “Ah, podia cantarolar e tal...”... Então eu começo assim, é, quan-
do o povo entra, eu tô fazendo essa cantarola aí, né, bem baixinho, mas eu fico assim.

GEORGE – Ah, entendi...

NENA – Então... E aí Babaya num me dirigiu nem cantando. Aí eu falei: “Babaya!”... Ela
olhou eu cantando e falou: “Ôh Nena, num vou mexer não. Eu num vou mexer porque se eu
mexer vai estragar. Você vai perder a naturalidade de cantar assim, você vai cantar tecnica-
mente, vai prum outro lugar... Eu num vou mexer”. E não mexeu.

GEORGE – Olha... Caramba!

NENA – Então, a Babaya teve essa sensibilidade. Por isso que eu falo que ela é parceira de
direção, e de criação, isso ela aceita... ...Tem mosquito, né?

GEORGE – Tem... Tá sentindo?

NENA – Ah, eu tenho negócio de mosquito. É, porque lá na Casa da Ribeira tem, e eu faço o
negócio, eu sou super alérgica. Quer passar? Passa você primeiro...

GEORGE – Eu também! Eu quero! Eu tô cheio de... Eu tenho muito alergia.

NENA – Eu também, eu também. Eu não passava, depois falei: “Ah gente, não, não dá, pra
ficar com trocentas mordidas...”. E lá na Casa da Ribeira os mosquitos mordem a gente...
Benzadeus!

GEORGE – Não, eu tomo um banho disso! Fica um gosto ruim na boca depois, né...

NENA – Então eu fiquei pensando quando você me falou ali, porque você veio muito certo,
né, falando se eu dirigia, eu falei: “É, é sim...”...

GEORGE – Foi, eu suspeitei ali...

NENA – É... Foi, foi... Foi, mas, é o que eu te falei ontem, eu nunca teria feito se eu num ti-
vesse com uma figura na minha frente que seja a Babaya, me olhando, me permitindo, me
direcionando de alguma forma, né, dizendo tá certo isso que eu tô propondo, né. E por in-
crível que pareça, tem uma autodireção minha, sim, e eu sou uma atriz muito obediente a
107
diretor. Eu sempre, eu gosto de diretor que... Assim, de me jogar e saber que tem um diretor
lá embaixo, entendeu? Que se jogue de um trampolim e tenha um diretor lá embaixo, ou lá
em cima te empurrando, ou lá embaixo te amparando, né. E nunca fiz um solo, né... Então é
um lugar assim, é um lugar novo pra mim, isso tudo aí, né?! Mas, enfim... Eu fiquei pensan-
do, quando você falou, acho que o que você tava querendo era que eu te dissesse um pouco
talvez da metodologia desse processo de criação?

GEORGE – Também pode ser... Ajudaria!

NENA – Que não teve, né?!

GEORGE – Também pode ser, que não teve...

NENA – Não, teve, teve que era... Teve que era... Como eu trabalhei sozinha, muito tempo,
né, assim... Quando eu cheguei pra ensaiar com a Babaya, eu já tinha separado os textos, eu
e o Chico, a gente já tinha feito... A Babaya não participou desse processo de seleção de tex-
to, de nada. Ficou eu e o Chico e eu acabei mexendo em algumas coisas, acabei colocando
outras coisas porque na hora de ler eu sentia que tava... E o Chico super permitiu, assim. O
Chico foi muito... Aquilo que eu falei, como ele era...

GEORGE – Você sempre teve o texto pronto pra trabalhar...?

NENA – Sempre! Sempre!

GEORGE – Ah, tá...!

NENA – Eu parti do texto pronto, eu só comecei a partir do texto, mas a ideia de que, por
exemplo, essa coisa da imobilidade, de tá sentada, né, tudo isso... tem a ver com o momento
que eu tava lá, que eu falei, né... Eu ensaiava numa cadeirinha assim, lá na casa das meni-
nas, onde eu ficava, e eu ficava passando o texto e sentei numa poltroninha na sala e me
acomodei, e cheguei pra Babaya e falei: “Babaya, vai ser sentada. Vai ser sentada, porque eu
fazia de pé, fazia deitada, e sentada eu encontrava esse lugar”. E eu falei: “Então vou fazer
sentada”. E a Babaya falou: “Tá bom, mas alguma hora você vai levantar, né?!”, eu falei
“É...”, mas num me via levantando. Como eu num me via fazendo nenhuma cena, nada. No
começo a Babaya até botou um negocinho de água, aquelas antigas que você põe água que
tem a canequinha em cima, que eu não sei o nome, e tinha água e tinha uma Santa Rita do
lado, como se fosse quase um lugar mais beata, mais cabocla, essa mulher, porque não era
essa figura, né, arquetípica, essa velha, né, num era, era eu. Então, tinha esse lugar... Mas eu
nunca, nunca me vi assim, né, com a santinha... Mas me vi com a mesinha, porque eu preci-
sei tomar água. E aí, como eu precisava tomar água, eu falei: “Babaya, eu tenho que tomar
água.”, e falei pro cenógrafo: “Eu tenho que tomar água, não tenho como fazer se eu não
tomar água”. Aí tinha uma mesinha com um jarrinho de água com copo, aí virou uma sali-
nha, né, porque uma velha sentada com uma mesinha, com uma jarra e com uma água, é
uma sala que tá contando a história, é uma sala. E aí achei esquisito, falei: “Ai, gente, tam-
bém não é...”. Aí botei mais uma água. Aí mais outra. Aí o Rafa, que é esse amigo meu que
veio ver quando o Beto dormiu... Que eu gosto muito dele, ele é diretor, dramaturgo, é meu
amigo... O Rafa falou: “Ô Nena, se a gente tivesse dinheiro, a gente enchia de água, né,
aqui, botava água por tudo quanto é canto aqui”. Aí falei pro cenógrafo e a gente trabalhou
com essa ideia das águas.

GEORGE – Ah!

NENA – Então, assim, foi a única coisa que eu pus a mais, né, o resto eu fui tirando. E eu
sabia desde o início que eu queria tirar coisas, eu sabia que queria ser simples e que eu tinha

108
que trabalhar muito pra conseguir essa simplicidade. Eu sabia que eu não queria fazer ceni-
nha, não queria levantar pra fazer um café, não queria... Não queria... Até num momento lá,
por conta de umas coisas, eu pensei que podia ter um ritual no começo, um tipo de dança,
de num sei o quê, mas é tanto, mas aí fui tirando, fui tirando, fui tirando... E tem uma coisa
muito clara assim, que isso é da direção, que eu acho que é mesmo... Eu nunca vi sonoplas-
tia, nunca vi música nesse trabalho. E a Babaya, que é da música, também, mas é que eu sou
ruim de sonoplastia, é a última coisa que me vem no espetáculo é a sonoplastia, quando eu
dirijo, eu cato sonoplasta e falo: “Filho, é assim, assim, vê aí que música...”. Eu não tenho
esse direcionamento já assim. Então eu não tinha e deixei pra Babaya, e a Babaya também
não tinha, e a Babaya é diretora musical.

GEORGE – Hum hum...!

NENA – E aí, como eu fazia esse projeto chamado Curitiba Mostra, onde o Beto Bruel fazia
luz de quatro espetáculos, a figurinista fazia figurino de quatro espetáculos, todo mundo fa-
zia pra quatro espetáculos, e a Jô Michinguê, que é a sonoplasta, fez uma trilha que eu num
gostei, num era pela qualidade do trabalho, porque ela é uma excelente sonoplasta, é por-
que eu não via mesmo, e a Babaya também não via, mas a gente foi tirando, foi tirando, foi
tirando, e no final eu falei: “Babaya, você decide aí, porque isso eu realmente não vou me-
xer nisso, eu vou deixar na tua mão”. E foi a última coisa que a gente bateu o martelo e tal
porque por mim não entrava desde o início. E aí a gente pôs uma música de ambientação no
início quando o povo chega, que é uns pássaros, uns negócio meio que parece que tá numa
floresta. A hora que eu punha a água tinha uns pingos, uns negócios, um som assim, e no
final, eu canto “Gracías a la vida” e a gente fez uma gravação eu cantando “Gracías a la
vida” que se sobrepõe a essa voz minha. A ideia era como se fosse um cânone que se multi-
plica. Essa ideia eu gostava, mas a execução ficou ruim e eu nunca gostei. Eu tava em São
Paulo, fazendo, e eu comecei a cantar o “Gracías a la vida” e o povo começou a cantar jun-
to...

GEORGE – Ontem também, né?

NENA – Ontem também! Mas em São Paulo começaram a cantar assim, sabe, começaram a
cantar, cantar, e quando entrou a sonoplastia, porque daí entrava a sonoplastia, o povo parou
de cantar, eu falei: “Tá vendo, tá errado, tira”, aí tirei, aí tirei tudo, porque eu sou uma mu-
lher que é uma mulher que tá ali falando para aquelas pessoas naquele teatro, não tô dentro
de uma floresta, não tô nessa ambientação aí, né. E o copo, o barulho do copo, que eu tam-
bém não gostava, eu acho que todas as vezes que eu pego um pouquinho mais pesado, eu
paro e tomo a água e dá um tempo pro povo respirar porque eu sinto que a peça vai num
fôlego só, que eu bombardeio muito, e eu acho que no primeiro dia aqui eu fiz muito rápido
e aí né também... Mas eu sinto que as pessoas ficam, parece que não respiram assim, parece
que... Então, nessa hora, quando tinha sonoplastia, a impressão que eu tinha era que parava
pra virar um teatrinho, sabe? E aí eu tirei a sonoplastia, que daí no seco as pessoas refletem
sobre o que eu acabei de dizer. Eu digo: “Qual foi a última vez que você ficou quieta?”... E
venho e não tem música, é seco.

GEORGE – Mas todas essas decisões vinham de você, na verdade, né? Você tinha muita cer-
teza de que queria essas coisas...

NENA – Sim, a única coisa que eu não tinha certeza era a sonoplastia.

GEORGE – Que no final você teve a certeza...

NENA – Que no final eu tirei de vez.

109
GEORGE – Mas você também tirou, então...

NENA – Tirei, é... E a Babaya ainda falou: “Nena, a gente devia ter feito isso desde o início,
você tá certíssima”... Falei: “Pois é...”.

GEORGE – Babaya foi uma amiga né, assim...

NENA – Foi uma amiga!

GEORGE – Uma mulher muito sensível em ter entendido o que você queria fazer, né.

NENA – É, é! E de ter topado! Porque a Babaya se colocou num lugar que ela sempre diz e
continua dizendo que não é o lugar dela. Ela não é uma diretora de espetáculo, ela não é... E
ela fala isso. Mas ela se colocou... Ela falava: “Ai, Nena, não vou... Não, não, não vai pôr
não”. E ela topou eu colocar parceira de criação porque ela foi parceira nesse processo de
criação, mas ela realmente não se intitula como diretora de espetáculo.

GEORGE – Sim, sim!

NENA – E eu também não coloco que é minha direção, eu coloco que é minha idealização,
né, mas acaba sendo mesmo porque todas as coisas eu fui fazendo com a Babaya, testando e
eliminando ou não. A palavra final era minha.

GEORGE – Hum hum... Então você dirigiu, né?

NENA – É...! Por exemplo, eu não fazia ela tão velha. Eu não fazia ela tão velha. Eu fazia
com a boca torta, imóvel, mas ela não era tão velha, e aí tinha uns momentos que eu ia pra
essa velha e voltava. A Babaya me falou isso, falou: “Olha, Nena, tem umas horas que eu
não sei que horas, por exemplo, na hora da ditadura...”, que eu voltava muito pra Nena e as
outras eu fazia mais velha. E a Babaya, isso ela me falou [...]: “Ó, Nena, eu gosto mais quan-
do é mais velha”. E daí a gente mostrou pra algumas pessoas, o Marcelo Bonis, todo mundo
de teatro, o Leo Lessa, a mulher do Bonis lá, essas minhas amigas e a Sueli Machado, de
dança, e todos eles acharam que era mais legal quando eu ficava mais velha porque eu tava
nesse... Mas mesmo nessa hora Babaya falou: “Ó, Nena, eu gosto mais quando tá velha, mas
assim, é o lugar onde você estiver mais confortável, onde você achar que tem que ser.”, aí eu
fui pra velha.

GEORGE – Entendi. Como é que era isso então de ensaiar... Quando você ensaiava com Ba-
baya tava claro esse retorno. Mas como é que você fazia pra capturar esses momentos que
você diz: “É isso que eu quero...!”, e eu acho que muitas vezes acontecia no ensaio sozinha,
né?

NENA – Sim!

GEORGE – Como era, então, o ensaio sozinha?

NENA – Não, é porque é muito solitário, né, você ensaiar sozinha, pra ninguém. Eu...
Quando eu comecei a fazer esse trabalho, eu tava numa fase de desacelerar e diminuir um
pouco o meu ritmo, que eu sou muito acelerada, faço um monte de coisa. Então eu tava nes-
se momento. Então eu pedi pra ensaiar, o Gabriel tava fazendo a produção junto comigo, e
eu fazia a produção junto de mais quatro espetáculos, do Curitiba Mostra inteiro, mais esse...
E aí eu pedi pra ensaiar num lugar perto de casa, porque é o espaço que eu ia caminhando,
que eu ia ter que decorar texto andando, então eu ia caminhando e decorando texto. Eu saía
com meu cachorro e ia decorando texto, com a boca torta, porque eu não consigo decorar
sem entortar a boca. E eu ensaiava de noite, e aí as luzes eram umas luzes brancas e eu co-

110
mecei a apagar essas luzes porque elas me tiravam da concentração essas luzes brancas, e
eu apaguei e comecei a deixar as luzes de fora só acesas, então a luz entrava pela janela.
Então, era um ambiente muito íntimo, né. E muito... Eu acho que esse lugar que eu preparei
assim, que eu fui apagando a luz, que eu fui fazendo sozinha, a peruca ficou logo pronta
logo no início, então eu fazia com essa peruca e tava o maior calor e eu ficava com essa pe-
ruca, fazia pelada, e, acho que foi me dando esse lugar assim, sabe... Quando eu falo olhar
pra fora, de olhar pra fora pra falar a Lua da Xerazade, que ela fala: “Na penumbra do quarto
somente com a luz da lua...”... Eu olhava, eu via mesmo essa lua. A ancestralidade às vezes
me chega de grito, às vezes de sussurro, mas eu vejo as marcas das que já estiveram aqui. É
um lugar que eu tava sozinha. Então, era um lugar que eu podia estabelecer qualquer tipo de
relação do que tivesse que ter, ou de está sozinha mesmo, dela tá sozinha, de tá falando so-
bre isso talvez pra ninguém. Esse lugar ancestral também de que ela talvez já teve nesse lu-
gar, essa coisa um pouco de bruxaria... Tem um pouco de bruxaria nesse sentido. Aquela
menina ontem quando ela falou que ela dormiu e que eu tinha falado que sempre tem um
cara que dormia... Não sei se você tava no debate de antes de ontem...

GEORGE – Tava, tava...

NENA – Que eu falei que o Beto Bruel dormiu e que sempre tem um cara que dorme...
Quando ela falou que ela dormiu e ela falou que foi bom porque ela dorme e quando ela
dorme é bom e que num sei o quê... Alguém me disse uma vez, quando eu falei que tinha
gente que dormia: “Ah, porque é uma cura, né...”, e eu nunca tinha entendido isso, sabe,
mas eu acho que tem mesmo. Porque ela ficou falando, né: “É bom porque eu dormi...”. Tem
uma igreja dos Capuchinhos lá em Curitiba que faz um trabalho de celebração entre ajuda e
eu vou às vezes e eles fazem, os dez primeiros minutos, eles fazem um trabalho de parapsi-
cologia, que é um trabalho de relaxamento pra você desligar e silenciar e ficar quieta e se
conectar com você. Eu durmo. Os dez minutos eu durmo. Aí eu levo o meu filho, às vezes
ele dorme. O povo dorme, dorme esses dez minutos, e depois acorda e vai lá e vê a celebra-
ção dos freis lá, dos Capuchinhos e tal. Mas é um lugar que você desliga, sabe. É a primeira
vez que eu não fico incomodada com público dormindo... Eu já vi público dormindo, me
incomoda profundamente, né...

GEORGE – Então é um trabalho diferente até pra você, né?

NENA – É... Sim!

GEORGE – O que você acha que esse trabalho te traz? Sei lá, algum tipo de amadurecimen-
to artístico mais do que simplesmente quando você ou atua ou quando só dirige, mas nesse
especificamente, você vê um outro tipo de amadurecimento, ou um outro ganho pessoal?

NENA – Acho que sim... Eu acho que como eu...

GEORGE – Ele primeiro celebra teus 40 anos...

NENA – 40 anos de teatro, é...

GEORGE – Não é à toa né, já é um grande sinal aí...

NENA – É... Eu acho que tem um pouco isso que o Henrique falou, que afinal de contas tem
40 anos... É... Eu comecei a fazer teatro muito cedo, então tem um monte de ferramenta aí
que eu adquiri que tá chipado de alguma forma e que veio e que vem, né, e que, enfim...
Ferramenta técnica mesmo, eu falo assim, né.

GEORGE – Você acha que chegou a esse momento pra dar esse passo de trabalhar sozinha...
Vê alguma razão, alguma relação [...]?
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NENA – Eu nunca achei que ia trabalhar sozinha, eu acho monólogo um pouco... Nunca
quis fazer monólogo, nunca era o meu lugar... Eu sou de grupo, de misturar as pessoas, tá
com o povo, depois muda, depois faz outro, faz outro. Nunca, nunca achei que eu ia fazer
um monólogo, e fazia uma certa crítica ao pessoal que já sai fazendo monólogo, sabe, e di-
rigindo, e escrevendo, e num sei o quê. Eu falava: “O pessoal entra no teatro e já tá fazendo
monólogo, nem leu Shakespeare, sei lá o quê, e tá ali... Enfim, tá desconstruindo uma coisa
que nem construiu ainda, que nem sabe...”. Então eu era muito, eu sou das antigas, né, então
eu tenho essa... Mas quando eu li, eu vi que eu que tinha que fazer, porque em Curitiba sou
eu que falo disso assim... Esses dias o Ricardo… falou isso pra mim no final de “Murro em
Ponta de Faca”, que é outro espetáculo que eu faço lá e ele falou: “Nena, quem é que faz
teatro político assim aqui é você, né...”; e eu nunca tinha parado pra pensar isso assim, então
quando eu me vi fazendo, é porque eu não vi outra pessoa, porque se eu visse outra pessoa
fazendo, eu chamaria pra atuar, e talvez dirigisse, sei lá. Mas eu não via, aí eu me vi... E
quando eu comecei a fazer esse trabalho, com o Chico e com a Babaya, especialmente com
o Chico assim, quando o Chico trouxe esse texto, quando ele me mistura, quando ele mistu-
ra as mulheres da plateia, mistura essa mulherada toda, num único lugar, eu falei: “Ah, sou
eu mesmo que vou ter que fazer, sou eu...”.

GEORGE – Era o que você queria dizer, né?!

NENA – Era o que eu queria dizer! Mas o Chico foi muito sensível de captar. Assim, eu acho
que uma pessoa que ajudou muito... Eu falo do Chico porque eu acho que ele me ajudou
mesmo, ele captou. Porque se eu não tinha claro... Eu falava: “Chico, eu também não quero,
não quero pegar essas mulheres e deixar ela lá numa prateleira pra dizer: “Ah, as mulheres
da década de 70, as revolucionárias de Berlim, sei lá o quê...”, e agora eu saio aqui do teatro
e fecho a porta do teatro e deixo esse história num lugar intocável”. Eu queria que essas his-
tórias fossem num lugar palpável, concreto, real, agora.

GEORGE – Eu fico com a impressão que você sabia muito bem o que queria e na parte que
você não sabia ainda com clareza, você sabia o que não queria e aí teve a grande sorte ou
sei lá, fortuna, de ter encontrado pessoas que tinham uma sensibilidade de tarem exatamente
nesse lugar e de entender o que você não queria e o que você queria.

NENA – Sim, é! Eu sabia o que eu não queria... Eu falo que a gente saber e assumir o que a
gente não quer mais é meio caminho andado, né. Assim, eu falo isso pra vida assim!

GEORGE – É verdade!

NENA – Por exemplo, vou dá o exemplo do Beto Bruel. O Beto Bruel é um cara que bota luz
em tudo e é um grande iluminador aí no mundo, no país... E o Beto ficou, é... Eu falei: “Beto,
é simples essa luz... Eu não quero...”, e ele reclamava, e ele falava pro Gabriel: “Pô, a Nena
quer luz de banheiro”; e eu falei: “É luz de banheiro, é, Beto...”. E o Beto fez a contragosto
assim, eu sei que ele não queria, ele queria outra luz. Em São Paulo que ele entendeu e gos-
tou, e aí achou que era isso mesmo e assim. Mas eu sabia que eu não queria uma luz a
cada... Por exemplo, essa luz que apaga, que acende os pins na hora que eu vou tomar água,
isso é um efeito que o Beto pôs porque era direto a mesma luz. Ele pôs e falou: “Não, coma-
dre, então peraí, então pelo menos pra dá um...”, e eu falei: “Tá bom, tá bom, faz aí...!”, aí
eu vi que era só diminuía e voltava, e falei: “Tá bom!”. E era o Beto Bruel, né. Porque uma
coisa é eu falar com a Babaya, que não é diretora, e falar: “Não, Babaya, acho que eu vou
fazer outra coisa.”, do que falar pro Beto Bruel, que é o lugar dele, né. Então é... Mas foi isso
mesmo, eu me cerquei de gente muito sensível...

GEORGE – Como é que você descobriu a hora de acabar, que você achou assim “Tá pronto!
Posso apresentar, posso estrear”?
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NENA – Olha, eu trabalhei muito tempo com projeto de pesquisa que a gente não tinha data
pra estrear, então a gente dilatava tudo, dilatava tudo, ficava oito meses trabalhando sobre
um tema, depois mais num sei o quê, depois num sei o quê, depois fazia outro projeto que
ficava meio assim... E eu entendi que esse negócio de você ter muito tempo, você dilata, en-
tão eu me coloquei um prazo de quando é que eu ia começar, combinei com Babaya quan-
do é que terminava e quando é que estreava. Então eu fui bem prática nisso, sabe, assim...
Bem produtora, né?! Então eu tinha que estrear...

GEORGE – Você era dona do trabalho, né?!

NENA – Era dona do trabalho, é! Aí eu tinha que estrear dia 1 de abril, era a estreia em Curi-
tiba, então dia 1 de abril eu estreei em Curitiba. E o trabalho, acho que... Aí depois que eu
estreei, eu, claro, com público, né, você vai vendo outras coisas... Por exemplo, ela não era
tão velha quanto é agora, eu fui ficando mais velha e mais... As risadas foram ficando mais
largadas, os esquecimentos... Veio um esquecimento um dia. Eu falei pro Vini: “Ó, se eu es-
quecer você me fala lá!”, porque eu sabia que era um lugar onde... Porque era um texto
novo que a gente botou e que ele confundia e que depois eu troquei pra poder... Porque ele
não dava liga, ele tava errado, e não me veio, e eu falei, e o Vini me disse ali, ele me falou...
E aí eu incorporei esse negócio de esquecer. Então os esquecimentos dela são maiores agora,
eu faço uns dois, três esquecimentos...

GEORGE – Foi amadurecendo...

NENA – Foi amadurecendo! Ah, a hora foi a hora de estrear!

GEORGE – Acho que pra mim Babaya era um duplo seu, né, quase, que ela ia apenas te di-
zendo “Ok!” e você se tranquilizando, né, com a presença dela. Mas tudo já vinha de você,
foi desse momento dessa tua fala no final quando eu vi o crédito que eu fiquei: “Caramba,
tem alguma coisa aí... Porque ela é parceira de direção, mas cadê a direção que nem ela as-
sume...? É a parceira, mas quem é a diretora...?”. Você não bota no crédito, aí eu fiquei:
“Tem alguma coisa estranha aí...”, que me farejou a autodireção. E aí quando eu vi o traba-
lho, você começou as outras falas, me pareceu... É um processo pessoal, ela tá falando de si,
o discurso é muito importante pra ela, o processo deve ter sido todo esse dilema, que eu vivo
também um pouco isso; então, pra mim é exemplo de uma direção enrustida, digamos as-
sim.

NENA – É, é que eu queria que a Babaya assumisse a direção, não assumiu...

GEORGE – Ela teve essa sensibilidade até pra isso, né, pra se colocar no lugar onde realmen-
te ela atuou.

NENA – Foi, foi, foi! Mas olha só... Isso eu falo, porque eu te falei ontem e acho que falei
hoje já também... Se ela não tivesse estado ali comigo, eu não teria feito, eu não teria feito. E
eu não via também, porque se eu visse um diretor eu teria chamado. Mas eu não via um di-
retor.

GEORGE – Mas é um ato falho você chamar uma não diretora pra ser uma diretora, né. Eu
acho que você tava querendo se dirigir talvez aí...

NENA – Não, é porque eu não chamei ela pra dirigir, eu chamei ela só pra cuidar do texto e
depois eu ia chamar uma outra diretora. Eu cheguei a consultar alguns amigos, quem que eu
podia chamar, falei com Grami Veb, que é meu amigo, que me deu vários nomes, e aí eu
pensei e tal... E aí no meio assim, eu falei: “Ôh, Babaya, eu num vou chamar diretor ne-
nhum, não”, e acho que ela falou: “É, não chama mesmo não...”.

113
GEORGE – Ah, tá...! Então você descobriu ao longo do processo...

NENA – É...! Mas a ideia era que eu chamasse um diretor.

GEORGE – Interessante!

NENA – Mas, também fiquei pensando, chamar um diretor homem pra fazer...? E eu não te-
nho muito esse negócio não, sabe, de “Ah, porque tem que ser só mulher e num sei o
quê...”, eu num tenho muito isso não. Mas eu não via mesmo, nem um diretor homem e não
via diretora mulher nenhuma. Então fui fazendo...! Ah, teve umas coisas assim, ó, por exem-
plo... A Babaya tem uma moça que trabalha pra ela, a Rosa, que trabalha com ela há anos, e
a Rosa é uma mulher aí do povo que tem num sei quantos filhos, que já perdeu quatro filhos
no tráfico, num sei aonde, uma mulher negra, negra já mais pra branca, mas é negra. E aí ela
ficou fazendo sala pra mim esse dia porque Babaya foi ver um negócio dum carro e atrasou
e num sei o quê, e a Babaya falou: “Rosa, fica aí com a Nena!”, e ela ficou. E foi um dia que
eu tava com a minha pressão altíssima e eu falei: “Rosa, eu vou ficar com as pernas pra cima
porque tô com o pé inchado e tal...”, e eu não sabia que eu tava com a pressão alta, porque
eu achava que era o Sol, e eu fiquei ali e a Rosa começou a falar, e conversar, e falar, e falar,
e falar, e falar, das mulheres, dos filhos, num sei o quê... Ela tava com um problema com
uma filha... E começou a falar. Ela ficou umas duas horas e meia falando, e eu fiquei escu-
tando e fui dando trela pra Rosa, assim, sabe. E observando... E ela tinha um jeito de falar...
Ela não tinha a boca torta, mas ela tinha um tique, ela tinha um negócio assim que me cha-
mou atenção e eu fiquei olhando pra copiar a Rosa. Falei: “Eu vou botar a Rosa em cena!”. E
aí comentei com a Babaya, eu falei: “Ôh, Babaya, A Rosa ficou aqui esse dia...”, eu falei pra
ela, ela falou: “É mesmo, Nena...?”, e aí eu tentei um pouco esse lugar da Rosa, esse lugar de
falar, de falar sem parar, de falar, sabe, de ter uma história que emenda com outra, mas não
rolou. Daí quando eu fui pra casa, daí no outro dia que eu falei, né, que a minha boca torta
é porque eu deitei, né... Deitei de lado e a boca entortou, daí quando eu cheguei, então eu
misturei um pouco a Rosa com a minha boca torta lá... Mas eu acho que eu, sei lá... Acho
que, como diz a Regina Bastos, mulher do Beto Bruel, acho que teve aí um alinhamento de
planetas.

GEORGE – Ai que massa! É isso!

NENA – Tá ótimo, então!

GEORGE – Nossa, obrigado!

NENA – Resolveu tua vida, será?

GEORGE – Sim! Nossa, demais! Eu acho que abre espaço pra discutir uma coisa que eu
nunca tinha pensado, porque eu tava escolhendo pessoas que se declaravam autodiretoras,
mas você foi um caso muito interessante de alguém que ficou aí, me pareceu meio que na
dúvida se era auto-diretora ou não e me pareceu que era sim.

NENA – É, mas quando você chegou falando, eu falei: “Filho da puta!”... (Risos)

GEORGE – “Filho da puta, me revelou...” (Risos) Você num tá querendo se assumir.

NENA – E eu dirijo!

GEORGE – Sim, é! Eu sei!

NENA – Mas num dirijo eu, né!

114
GEORGE – O que é um baita... Poxa... Eu acho que dentro da carreira de alguém, alguém se
dirigir... Você depois de quarenta anos, acho que é um passo tão forte , né...

NENA – É...

GEORGE – Eu fico imaginando o significado disso pra você...

NENA – É... Mas foi bom você ter falado. Eu fiquei pensando hoje que você vinha, né, eu
fiquei pensando isso, eu falei: “Gente, quê que eu vou falar pra esse menino, sobre o meu
processo, num sei o quê?”. Agora já descobriu, né...

GEORGE – Disse tudo! Falou tudo! Obrigado!

NENA – Então tá ótimo!

GEORGE – Vou parar de gravar, então! Obrigado!

NENA – Deu certo?

GEORGE – Deu, deu!

115
Divulgação Canal Brasil

Michel Melamed
Ator, diretor, performer, dramaturgo, poeta, músico e apresentador de televisão164. Na-
tural do Rio de Janeiro/RJ. Possui vários trabalhos em que se autodirige. Atualmente, ele
apresenta o programa de entrevistas Bipolar Show, pelo Canal Brasil. A entrevista foi realiza-
da via Skype, no dia 19 de dezembro de 2018.

...

MICHEL – Peraí... Achar o melhor momento, achar o melhor momento e...

GEORGE – É verdade! É verdade!

MICHEL – O melhor momento é agora!

GEORGE – Concordo contigo! Bem... Bem, eu tô fazendo um mestrado, né, aqui em Natal
em Artes Cênicas, em Teatro, e a minha pesquisa é sobre autodireção. Eu sei que você tem
uma vasta experiência já no assunto, né. Você já fez várias autodireções no caso, num foi?!

MICHEL – É... Cara, eu não compartilharia dessa mesma premissa sua.

164MICHEL Melamed. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú
Cultural, 2019. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa383523/michel-mela-
med> Acesso em: 28 de Jan. 2019. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
116
GEORGE – Não?

MICHEL – Não, por que qual seria a diferença entre direção e autodireção?

GEORGE – Alguém te dirigir ou você estar somente na posição de diretor ou de ator, e no


caso da autodireção você tá ocupando as duas opções ao mesmo tempo.

MICHEL – Sim, mas isso me soa levar... Eu tô falando isso não só relacionado ao que você
apontou, mas obviamente nesses anos todos esse assunto já surgiu diversas vezes. As pesso-
as, cada vez menos, mas principalmente quando eu comecei, se surpreendiam muito com
essa coisa já: “Mas quem se dirigiu? Você se dirigiu?”. E sempre me surpreendeu... Com o
passar dos anos, eu fui compreendendo com mais clareza o porquê... Se há uma distinção
entre direção e autodireção, isso deveria ser verificável, quer dizer, toda vez que alguém diri-
ja sem estar em cena, teria alguma característica nessa direção que seria detectável e que
não estaria presente nisso que você está chamando de autodireção. Faz sentido? O que eu tô
querendo dizer é: não existe, principalmente em arte, e agora fazendo um outro parêntese,
né, que hoje eu li um texto super bonito por ocasião dessa, de… desse absurdo que foi essa
desembargadora acelerada...

GEORGE – Sim, sim...

MICHEL – Você viu essa mulher?

GEORGE – Eu vi, sim!

MICHEL – Que não só falou da Marielle, como falou de uma professora com síndrome de
down, não sei se você viu isso...

GEORGE – Essa eu não vi...

MICHEL – Perdão!

GEORGE – Não... Essa da garota com síndrome de down, da professora, eu não vi...

MICHEL – Então, isso foi até matéria do Fantástico, uma matéria aliás muito tocante, e aí
hoje eu li um texto que, se não me engano, é da Associação Brasileira de Síndrome de
Down, de portadores ou de parentes, e em algum momento a discussão era sobre educação.
E fala justamente isso, que todos somos diferentes, então toda diferença tem uma contribui-
ção a dar. E isso me chamou atenção porque é a maneira como eu vejo o mundo e, por con-
seguinte, é a maneira como eu vejo a produção artística. Então voltando ao nosso assunto...
Todo mundo tem um olhar único, singular, para exercitar e para criar.

GEORGE – Sim!

MICHEL – De maneira que não é através de autodireção ou direção que você configura
maior distanciamento, ou maior presença, ou uma posição mais privilegiada ou menos privi-
legiada pra que aconteça direção. Então isso foi só retificando, já trazendo uma problemáti-
ca pra você como estudioso, que na minha perspectiva não existe autodireção.

GEORGE – Olha... Alô?! Falhou... Alô?!

MICHEL – Oi?

GEORGE – Desculpa, falhou aqui, eu parei de escutar quando você disse que não existe au-
todireção.

117
MICHEL – Então... Eu nunca me autoproclamei autodiretor. Eu não sou um autodiretor, eu
sou um diretor.

GEORGE – Hum hum...

MICHEL – Com as mesmas responsabilidades e os mesmos pecados de qualquer diretor.

GEORGE – Hum hum!

MICHEL – Não menos...

GEORGE – Nossa, tá falhando aqui...

MICHEL – Enfim, em nenhum momento em posição diferente de qualquer outro diretor que
porventura não esteja no palco.

GEORGE – Hum hum! Entendi...

MICHEL – Cara, eu jamais poderia acreditar que o fato de tá no palco me impede de perce-
ber o todo.

GEORGE – Hum hum!

MICHEL – Porque poderia de outra maneira falar assim: “Como é que alguém pode querer
dirigir sem estar no palco?”. É uma visão parcial do que tá acontecendo?

GEORGE – É verdade!

MICHEL – Porque eu posso filmar... Se essa é uma questão assim arquitetônica, uma questão
assim, de fato, de olhar de frente, eu posso filmar e assistir, ao passo que alguém que tá de
fora dirigindo... Nunca vi alguém botar um ator dentro filmando pra de fora assistir, ter a ex-
perenciação de como é estar naquela cena...

GEORGE – Hum hum...

MICHEL – Então, é isso... Eu não... Nunca trabalhei com essa ideia de autodireção. Pra mim
o que existe é direção. E a direção, é... É isso, envolve todas as questões, estando você den-
tro do palco ou fora dele.

GEORGE – Nossa, isso derruba muitas questões que eu ia colocar pra você, porque é uma
outra visão, e uma visão muito interessante ao colocar-se como próprio[…] Na verdade, me
remete um pouco à ideia de uma criação, né. Parece que não é tanto a posição, mas a posi-
ção de criador do próprio trabalho.

MICHEL – Mas é! É isso! Acho que no âmago da questão, acho que é isso. Mas sem ser no
âmago, eu desempenho a função de direção nos meus projetos, entre aspas “pessoais”, ou
que eu sou o – faz tanto edital que eu fico com essa palavra proponente na cabeça... – mas,
que eu sou o propositor!

GEORGE – Falhou!

MICHEL – O meu lugar como diretor desses projetos... Eu dirijo o “Bipolar Show”, que é um
programa de televisão[…] Eu sou o diretor do programa, independentemente do fato d’eu ser
o apresentador do programa.

GEORGE – Sim...

118
MICHEL – É... Eu não sou um apresentador que estou criando... Isso é verdade. Lógico que,
nesse caso, existe uma criação que é contígua. Se eu escrevo, o que eu digo... Quando eu
escrevo, eu já tô pensando na cena e eu já tô pensando na imagem, existe um tráfico e um
tráfego entre essas coisas. Mas o fato de haver essa troca por você ser o criador, como você
colocou, não me destitui a posição de diretor do trabalho.

GEORGE – Não, não!

MICHEL – Da mesma maneira que um diretor que não estivesse em cena... Eu estou preocu-
pado com as mesmas coisas, eu me organizo da mesma maneira, eu preciso conceituar o
trabalho, preciso ter uma ideia do todo... Enfim... Tudo que concerne...

GEORGE – Ai, falhou... Alô, alô?!

MICHEL – Oi?

GEORGE – É, não, desculpa... Falhou rapidamente. Mas me fala uma coisa, então... Já que
você é o diretor, você é diretor, é o criador? E me parece que essa visão tua te aproxima, faz
muito sentido em trabalhos que você tá falando muito de si. Num sei se... Como você... Pa-
rece que você se coloca ainda mais, por estar dentro, por estar fora, por estar na cena e por
estar na cena como diretor, né... Colocando da forma que você disse mais... Você acha que
isso te coloca numa posição de mais proximidade com todo o discurso, com mais apropria-
ção?

MICHEL – Não, se não eu taria me contradizendo, não que a contradição não seja algo mui-
to bem-vinda, como diria Oscar Wilde, a contradição é um direito da beleza e da inteligên-
cia, né. Não que eu seja belo, e nem que eu seja de todo não burro, ou de todo burro. Mas o
fato é que não, porque eu não acho que exista uma posição de privilégio na construção de
um projeto artístico.

GEORGE – Hum...

MICHEL – O que existe é uma posição sempre singular. Por isso que eu discuto sobre essa
denominação de direção e autodireção como se houvesse diferenças. Diferenças existem
entre todos os diretores, se não você colocaria 100 diretores fora de cena, e os 100 dirigiri-
am igualmente... Não! Se você colocar 100 diretores pra dirigir um trabalho, teremos 100
trabalhos artísticos. Se tivermos 100 dentro e 100 fora, teremos 200 visões de 200 diretores.

GEORGE – Hum hum...

MICHEL – O fato de você tá dentro e tá fora não muda a questão central, que é a questão da
criação, do desafio da criação, de como você se aproxima, como você olha... E o olhar não
está, muito pelo contrário, diretamente ligado a uma questão física.

GEORGE – Sim...

MICHEL – O olhar é um olhar subjetivo... O olhar é um olhar intuitivo... O olhar é duvidar


do seu olhar... Olhar é olhar e olhar de novo a mesma coisa e encontrar uma nova coisa.

GEORGE – Hum hum...

MICHEL – Quê que adianta ter um cara do lado de fora da cena que não veja nada? Não é
por estar fora da cena que você vê mais, ou menos...

GEORGE – Hum hum! Hum hum!

119
MICHEL – Então eu não vejo diferenciação, o que existe é direção de um trabalho. Tanto que
eu já dirigi trabalhos em que eu estava em cena e trabalhos em que eu não estava em cena.

GEORGE – Hum hum...

MICHEL – Então, dirigir pra mim não está diretamente relacionado ao estar em cena.

GEORGE – Hum hum! Entendo...

MICHEL – É isso... Eu trabalho como diretor. Ocasionalmente, ou mesmo mormente, por


uma questão de interesse, eu trabalho em muitos trabalhos em que eu estou em cena sendo
diretor. Mas já trabalhei em alguns sendo diretor sem estar em cena.

GEORGE – Você poderia falar um pouco de como se dá esse modo de trabalho quando você
está em cena e também é diretor? Eita, falhou um pouquinho aqui...

MICHEL – Comecei a usar óculos há um tempo...

GEORGE – Como é? Eu também tô usando óculos faz três meses, eu não usava...

MICHEL – Exato, devemos ter idade próxima aí... Tá muito louco porque... É meio óbvio,
mas experienciando isso que é...

GEORGE – E tem algo de visão, né, tem algo sobre a visão do trabalho, sobre como se en-
xergar, tem um simbolismo...

MICHEL – E há uma diferença entre ter visto, quem usa óculos durante anos de fora e ter ou-
vido falar que quando você coloca o óculos você não tira mais etc. etc... E a diferença que é
passar a usar óculos e entender: “Caramba, quando você passa a usar, você não tira mais.”,
que é o que tá acontecendo comigo agora...

GEORGE – É, eu também...

MICHEL – Então conversar contigo sem a imagem piora muito.

GEORGE – Eu também! (Risos)

MICHEL – Então entra nesse caso do óculos... Como é me dirigir com óculos, eu estando
dentro do óculos, dentro da cena, me faz mais rico do que eu ter dirigido com os óculos de
fora...

GEORGE – Isso!

MICHEL – Então... Então, o que eu tava dizendo é que eu posso te comentar é que trabalho é
trabalho, que acho que justamente um dos trabalhos, uma das questões centrais de um traba-
lho artístico é a questão, e talvez seja até mais específico da direção... A questão da direção
é justamente estabelecer métodos, né...

GEORGE – Hum hum...

MICHEL – A direção é metodologia.

GEORGE – Hum hum!

MICHEL – Então... Como a ideia é sempre... O desejo, ao menos, é se envolver com um tra-
balho criativo, eu não poderia, e não experenciei a reprodução de um método. A cada traba-
lho houve o hercúleo trabalho de inventar o método.

120
GEORGE – Entendi...

MICHEL – Não há um método único que eu aplico a todos os trabalhos... Eu posso comen-
tar... Trabalho é trabalho...

GEORGE – Entendi, entendi... E, devem variar bastante, então...

MICHEL – Como é que é?

GEORGE – Eles devem variar bastante, então...

MICHEL – Ah, bastante! Exatamente! Por exemplo... Monólogos pra teatro... Eu já fiz espetá-
culos em que eu me filmei pra ver...

GEORGE – Sei...

MICHEL – Já fiz espetáculos em que eu não me filmei, não me vi no espelho, nada, zero, só
de dentro pra fora.

GEORGE – Hum hum...

MICHEL – Televisão... O “Bipolar”, por exemplo, que é o último projeto... O “Bipolar”,


como envolve uma série de questões técnicas, como posicionamento de câmera, ilumina-
ção, o tempo de uma série de movimentações do set, eu ensaio no mínimo uma semana an-
tes o programa inteiro.

GEORGE – Hum hum...

MICHEL – Pra ensaiar o programa inteiro, eu chamo um dublê, então... Eu tenho dublê em
cena durante sete dias e eu fico por trás das câmeras, pra entender quem sou eu lá dentro e
o que que tem que tá acontecendo fora quando eu estiver lá dentro...

GEORGE – Sim... Alô?! Alô?! Alô?! Desculpa, falhou! Você vê quando você está lá dentro,
porque é televisão... Televisão ajudaria ter esse dublê, no caso.

MICHEL – Porque como tem muitas coisas que acontecem fora de cena, eu preciso está es-
ses sete dias antes fora de cena pra repassar todos os acontecimentos, ser surpreendido pelas
coisas imprevistas e poder deixar tudo organizado de maneira que no dia que começa a gra-
vação e eu vou pra frente da cena, todo mundo que tá por trás já sabe qual é a direção que
tem que fazer...

GEORGE – Entendi!

MICHEL – E mesmo assim, muitas vezes, praticamente o tempo inteiro, eu estou dentro de
cena também dirigindo.

GEORGE – Nossa...!

MICHEL – Isso acontece muito. E não é uma coisa... É uma coisa que é natural... Como eu tô
envolvido, como eu participei da construção, da pré-produção, fiz uma semana de ensaio,
eu muitas vezes tô conversando com o convidado percebendo que tem questões ali, eu paro
a gravação, comento uma coisa que tá fora, a gente refaz... Então...

GEORGE – Você dirige de dentro...

MICHEL – Hum?

121
GEORGE – Você dirige de dentro mesmo!

MICHEL – De dentro mesmo!

GEORGE – Que incrível isso!

MICHEL – É... É isso aí... Acho que... É, é isso aí... É que parte do trabalho do apresentador é,
em algum sentido, dirigir, né?

GEORGE – Sim!

MICHEL – O apresentador está direcionando o acontecimento ali, portanto, pressupõe-se


que tem uma interpretação do que está acontecendo, e interpretação do apresentador, ela é
hegemônica.

GEORGE – Hum hum...

MICHEL – Porque é ele que tá conduzindo aquele encontro... Se eu sinto de dentro que o
programa não está acontecendo, não está andando, há alguma falta, e eu sou o apresentador
e o personagem que tem que denunciar isso e buscar novas estratégias pra resolver aquela
questão, porque é quem tem um poder pra isso. Claro que em muitos programas o apresen-
tador tá dentro e o diretor comenta fora, ele faz um comentário no microfone etc., alertando
pra isso. Agora, me surpreenderia que um diretor alertasse pra algo está acontecendo dentro
que o apresentador não está vendo.

GEORGE – Ah! Mas pode acontecer!?

MICHEL – Pode acontecer! Mas acho que seria surpreendente, porque como é que o cara tá
dentro ali e não tá percebendo que a conversa tá andando, que ele não explorou um ponto,
ou que...

GEORGE – Falhou, falhou um pouco.

MICHEL – Enfim... Esse é o trabalho do apresentador.

GEORGE – Entendi! E, me fale uma coisa... Como é que, já que você tá dentro, tá fora, pra
você é muito claro colocar o ponto-final no trabalho, numa montagem? Você acha que é
muito tranquilo isso, já que também não há crise quanto à posição do diretor dentro ou fora?

MICHEL – Não, não tem crise nenhuma!

GEORGE – Nossa... Nossa, falhou aqui. Alô?! Oi, desculpa, deu uma falhadinha aqui no seu
áudio.

MICHEL – A crise que existe não é quanto a estar dentro ou fora, quanto à direção. A crise
que existe é quanto a criar, sobre criar.

GEORGE – Hum hum... Sim!

MICHEL – Criar é se colocar numa situação de crise.

GEORGE – Sim, sim...!

MICHEL – De um círculo de forças. Isso pra qualquer criador, independentemente do papel,


na minha visão. Então eu, nos meus trabalhos, não é pelo fato de que haveria um diretor fora
que num momento de crise dá o ponto-final, seria a voz que... Isso não existe.

122
GEORGE – Hum hum...

MICHEL – O que existe... Se está em crise permanente, com todas as oscilações que a crise
permite, que é a extrema confiança na direção de um trabalho que tá tomando, e no dia se-
guinte a completa derrota, né, do fracasso iminente... E, no entanto, há uma curiosidade
mesmo que me deixa feliz, porque se não eu morreria de úlcera... Mas nos meus trabalhos
todos, eu sinto a sensação de morte em todos […], a cada vez que se aproxima estreia ou
primeiro dia de gravação, eu cada vez vou sentindo assim um desespero maior...

GEORGE – Nossa...

MICHEL – E, no momento em que começa, eu me sinto... Eu tenho certeza absoluta, e dá


tranquilidade, de que era exatamente aquele o trabalho que eu queria realizar e daquela
forma. Eu não tenho experiência e me sinto muito grato a isso. Espero que eu não tenha ex-
periência adversa dessa porque essa é muito feliz... De estrear, começar a gravar um projeto,
ou estrear um espetáculo e concluir que não era aquilo, que estava errado, que eu estou ar-
rependido daquela... Isso nunca aconteceu. Não quer dizer que eu não tenha mudado coisas
durante, ao contrário. Eu levo a mudança até o último segundo. Numa temporada eu posso
mudar no último dia de espetáculo... Eu considero que o trabalho tá vivo.

GEORGE – Sim, sim...

MICHEL – Né... Eu estou vivo... Portanto, não há razão pra não continuar respirando com
ele. Mas nenhuma situação de, relacionado ao que você falou, que a crise ou a dificuldade
em relação ao ponto-final, que alguma coisa ficou pelo caminho, de que... Não. Eu batalho
até o último momento, brigo, me mato, acho que eu vou morrer e quando acontece, pelo
menos até hoje, eu... Isso é muito formalizado pra mim porque, já tem alguns anos, eu tinha
um outro programa que chamava “Decote”, da TV… atual TV Brasil, e eu lembro que che-
gou um escritor uma vez lá, que eu não lembro quem é, mas ele me falou assim: “Pô, esse é
meu 11º livro! Finalmente, eu sinto que eu estou representado, esse é o meu trabalho!”.

GEORGE – Nossa, falhou... Alô?! Desculpa, desculpa... Deu uma falhada aqui... E quando
ele diz que “Esse realmente é o meu trabalho...”...

MICHEL – Aí ele me transferiu a pergunta. E por isso, isso foi uma coisa que ficou na minha
cabeça esses anos todos, porque na mesma hora que ele me perguntou: “E você? Como é?”,
eu parei pra pensar e vi que eu quase morro, mas assim que o trabalho tem um ponto-final,
eu vou pra praça bater bumbo porque eu tenho certeza que é aquilo e eu quero comparti-
lhar com as pessoas.

GEORGE – Que massa!

MICHEL – Então eu vi que havia um tipo de experiência que era muito diversa da minha,
mas através da dele eu pude ver que a minha não é essa.

GEORGE – Hum hum...

MICHEL – Eu realmente tenho um ponto-final.

GEORGE – Entendi... E é muito claro pra você, então... É muito, muito... Nossa... É muito
interessante porque é uma direção que vem muito fluida, né... Lógico, apesar da crise da cri-
ação, que é inevitável, eu tô vivendo isso também, mas flui, né; você parece aceitar muito
bem, esse fluxo que vem de você, apesar de, lógico, como diretor se questionar, pensar as
opções, né, prever, tentar prever se funciona ou não, como qualquer diretor...

123
MICHEL – Sabe uma coisa que eu gosto muito nos trabalhos... E que isso, apesar de recursar
a metodologia, não acho que seja um método, talvez seja, mas é que eu experimentei tam-
bém tantas vezes, que chegou um ponto que eu vi que é algo que acontece sempre também.
Pra todo trabalho eu faço um dever de casa amplo, até por essa questão de grande parte das
vezes tá em várias posições, eu tenho que preparar muito...

GEORGE – Sim...

MICHEL – Então... Por exemplo... Agora mesmo eu tô fazendo um projeto pra televisão etc.
Eu vou assim... Eu vou buscando todos os detalhes, todas as referências ligadas a cenografia,
figurino, tudo ligado a câmeras, enquadramentos, lentes... Então eu faço um trabalho imenso
de casa...

GEORGE – Hum hum...

MICHEL – Aí quando o trabalho começa a ser produzido, as coisas começam a ter uma ve-
locidade, uma demanda que é num ritmo avassalador, e que não é esse mais dessa reflexão
pausada. E aí eu entro num outro modo, que é um modo que poderia se chamar intuitivo, e
que eu adoro a frase, não me canso de repetir, do Bourdieu, que se eu não me engano é
dele, que fala que a intuição é o paroxismo da razão, que ela não seria algo ligado ao misti-
cismo; ao contrário, seria um raciocínio tão veloz que você não refaz o trajeto. E eu experi-
enciei isso muitas vezes... Então... Depois que o trabalho começa a entrar em ritmo de pro-
dução e aí você começa a saltar as noites e os dias e entra num turbilhão e você tem que
tomar muitas decisões, eu vou tomando todas as decisões com extrema...

GEORGE – Ai, desculpa... Alô... Alô... Com extrema... Você falou “Com extrema...” veloci-
dade, é isso?

MICHEL – Velocidade... E me sinto muito confortável e, a posteriori, eu fico muito satisfeito


vendo que as decisões que eu tomei aparentemente intuitivamente eram as decisões que,
tempos depois, parando para refletir pausadamente, eu tomaria.

GEORGE – Nossa! Olha só...

MICHEL – Então eu adoro essa sensação de primeiro fazer o dever de casa, preparar muito, e
quando a roda começa a girar, de bate pronto, qualquer resposta sobre qualquer assunto.
Mudo o estado e a maneira de me relacionar com as coisas... Eu passo a acreditar piamente
e pude verificar depois que, sim, eu tomaria aquelas decisões, mas eu passo a me sentir con-
fortável na decisão dos centésimos.

GEORGE – Que maravilha!

MICHEL – É!

GEORGE – Poxa... Nossa...

MICHEL – É! Experimenta aí!

GEORGE – Não, eu adorei isso, eu vou experimentar, sim... Adorei!

MICHEL – Claro, pra mim é obrigatório, básica experiência, porque na hora que o bicho
começa a pegar, você num tem tempo pra ficar pesando coisas, você tem que dizer é isso ou
aquilo; isso.

GEORGE – É verdade, é verdade...! Tem prazos, né, às vezes... Tem prazos, tem outras cir-
cunstâncias, tem conveniências também... Poxa...
124
MICHEL – Exato, exato! É isso aí...

GEORGE – Nossa... Nossa, Michel, eu só tenho a agradecer! Não sei se você quer acrescen-
tar mais alguma coisa, sei lá...

MICHEL – Não... O que você quiser!

GEORGE – Não... A sua ideia de direção é fantástica, é totalmente diferente e até me bota
abaixo várias questões que eu já tinha preparado, e me faz repensar outras... O que é mara-
vilhoso pra mim! Por tá investigando essa palavra que você meio que destrói, né... É muito
interessante, que eu tô entrevistando outros artistas e é engraçado, é uma palavra às vezes
que parece meio maldita mesmo, sabe... Nem todo mundo recebe bem, seja pelas mais vari-
adas razões.

MICHEL – É, não... Mas a razão me parece óbvia, que é: há um juízo de valor implicado
nessa palavra.

GEORGE – Hum hum...

MICHEL – Porque a atividade profissional se chama direção. Não se questiona que Orson
Welles é um diretor, que Chaplin é um diretor, que Woody Allen é um diretor, não se questi-
ona isso...

GEORGE – É verdade!

MICHEL – Que Marina Abramovic é uma diretora, que Molière era diretor, que
Shakespeare... Não se questiona. Então criar uma subcategoria “autodireção”, parece que
essa pessoa não é diretora, que ela tá fazendo um trabalho que não é o trabalho de direção,
é uma outra coisa...

GEORGE – Ai, falhou, falhou agora... E é uma outra coisa e o quê...

MICHEL – E acho que a razão, a explicação mais clara foi a que eu te falei antes... Se você
pegar 100 diretores...

GEORGE – Alô, alô, alô...!? 100 diretores que vão resultar em 100 direções diferentes, no
caso...

MICHEL – Não não, mas se você colocar 50 fora de cena e 50 dentro de cena, e construir
100 espetáculos, alguém do público é capaz de dizer quem dirigiu de dentro e de fora? Ja-
mais!

GEORGE – É...

MICHEL – Jamais! Por quê? Porque a questão não é... O olhar não se mede por uma questão
física. O olhar, principalmente na arte, se mede por milhões de instâncias... As percepções, a
subjetividade, a intuição, a tua rede de informações, a tua disponibilidade né, a abertura...
Então não é parâmetro pra categorizar se a direção está dentro ou fora.

GEORGE – É verdade! Nossa! Interessantíssima essa visão! Adorei! Nossa... Michel, muitís-
simo obrigado!

MICHEL – (falha)… Depois quero saber notícias aí do seu espetáculo... Tomara que você ve-
nha ao Rio!

125
GEORGE – Ah, te mando sim! Vou te mandar e, sei lá, mais tarde eu apresento até pra você a
dissertação, caso você queira ler, num sei...

MICHEL – Ah, também queria! Depois me manda, por favor!

GEORGE – Ah, mando sim, com o maior prazer! Nossa, obrigado demais! Você... Poxa, não
tenho nem palavras pra agradecer a sua disponibilidade e carinho.

MICHEL – Que isso, irmão...

GEORGE – Você foi 10, cara... Você foi... Nossa... Um amor!

MICHEL – É disso que somos feitos: de amor!

GEORGE – É verdade!

MICHEL – Muito obrigado a você pelo interesse, pela gentileza!

GEORGE – Que isso, eu que agradeço! Pois um beijão e boa sorte, então!

MICHEL – Beijo imenso e até a próxima!

GEORGE – Até! Até mais! Tchau tchau!

MICHEL – Boa sorte aí! Tchau tchau!

126
Crédito Julia Zakia

Georgette Fadel
Atriz e diretora165. Natural de Laranjal Paulista/SP. Ela participou de vários trabalhos
como atriz e diretora, em solos e em coletivos. Sua primeira autodireção, sozinha em cena,
se deu com o espetáculo Afinação I (2017). A entrevista foi realizada por telefone, no dia 21
de dezembro de 2018.

...

GEORGETTE – Alô!

GEORGE – Tudo bom, Georgette?

165GEORGETTE Fadel. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú
Cultural, 2019. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa402509/georgette-fa-
del>. Acesso em: 28 de Jan. 2019. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
127
GEORGETTE – Tudo! Muito prazer falar com você, amor!

GEORGE – Ah, prazer é o meu, viu! Nossa, tava difícil, né, esse encontro! Nossa!

GEORGETTE – Difícil esse encontro! Vida muito muito corrida, picadinha, né!

GEORGE – Demais! Ah, mas eu entendo, é assim mesmo! Eu num tava esperando nada me-
nos do que isso não, sabia?!

GEORGETTE – Oh meu querido... Escute uma coisa, você tá na Bahia, é isso? Me relembra...

GEORGE – Eu tô em Natal, Rio Grande do Norte!

GEORGETTE – Tá em Natal! 084!

GEORGE – 084, é! Isso, isso!

GEORGETTE – Certíssimo! Ó, tô a sua disposição! Me explica aí o que você quer de mim!

GEORGE – Tá, é o seguinte... Eu faço mestrado aqui com Ana, Ana Caldas, que é minha pro-
fessora, eu acho que ela te conhece, né, vocês trocaram até contato...

GEORGETTE – Sim, sim!

GEORGE – E é sobre autodireção, então eu tava buscando alguns grandes artistas que passa-
ram por isso e seu nome tá desde o início nessa lista. Então eu queria saber, na verdade,
como é que é pra você esse trabalho de se autodirigir, né, num solo, em que você atua e di-
rige ao mesmo tempo... Como é que é pra você, o porquê disso, como é esse trabalho...

GEORGETTE – Olha só, vou te falar sobre o “Afinação”, que foi esse último trabalho que eu
fiz, que foi na verdade o primeiro trabalho onde eu quis me autodirigir, no sentido mais
completo...

GEORGE – Sei...

GEORGETTE – Porque os outros trabalhos onde eu dirigi e estive em cena, foi na verdade
quase que por eventualidade. Aconteceu por exemplo com “Bartolomeu”, um espetáculo
que eu fiz com uma companhia de teatro muito querida aqui de São Paulo... Mas, assim, eu
tinha dirigido esse espetáculo, aí uma das atrizes saiu do trabalho, e eu, depois da primeira
temporada, entrei no lugar dela.

GEORGE – Entendi...

GEORGETTE – A mesma coisa aconteceu com “Estela do Patrocínio”. Eu dirigi o ator que
fazia, o ator morreu e eu entrei no lugar dele pra fazer.

GEORGE – Nossa!

GEORGETTE – Então sempre foi uma eventualidade. Em outro momento que aconteceu isso
foi “Gota D’água”, onde havia uma direção geral do Heron Coelho, mas eu de alguma ma-
neira dirigia de dentro da cena um pouco os atores, e a própria cena, e as marcações e tudo
mais, então eu tive um trabalho no “Gota D’água” que foi um trabalho... Eu tava em cena e
acabei dirigindo os atores quase identificada com a própria personagem.

GEORGE – Hum, sei...

GEORGETTE – Como se a personagem tivesse uma energia de diretora...

128
GEORGE – Entendo...

GEORGETTE – E aí eu consegui criar rumos, eu consegui falar pros atores e tudo mais sem
me desligar da própria criação daquela personagem, entende?

GEORGE – Hum hum...

GEORGETTE – Então, assim, foram experiências muito diferentes... No “Gota D’água” eu


não assinei a direção, entendeu? Eu assinava a direção de atores. Mas aconteceu isso. Acon-
teceu algo interessante assim. Que eu vejo, aconteceu um pouco com o Ilo Krugli, num sei
se você conhece esse grande dramaturgo, diretor e tal...

GEORGE – Sim, sim!

GEORGETTE – Ele faz muito isso! Ele sempre tá nos espetáculos dele, e ele dirige de dentro,
ele dirige ali vestido, ele dirige, sabe, de dentro do palhaço ele tá dirigindo a coisa, então,
aconteceu isso no “Gota D’água”, agora no “Afinação” o que aconteceu foi que era uma
coisa pra mim tão simples, tão íntima, tão minha, tão clara, no sentido de nítida, das inten-
ções que eu tava movimentando pra fazer aquilo, que o que acontece, eu achei que qual-
quer tipo de interlocução me tiraria de uma coisa muito precisa, que eu tava buscando…

GEORGE – Hum hum! 


GEORGETTE – Então eu senti que a minha comunicação tinha que ser com o público. Que o
público seria o que mudaria no decorrer do trabalho a atuação, a minha atuação. Então as-
sim... Isso foi uma coisa arriscadíssima, por quê? Porque eu praticamente não ensaiei. O quê
que eu fiz... Eu preparei um material. Eu sabia o que eu ia tocar, eu estudei muito pouco,
mas um pouco de violoncelo, então eu preparei o instrumento um pouco, o básico pra eu
poder me mover ali dentro de um esquema de improvisação, eu “decorei” entres aspas o
texto, mas foi um decorar estudar, estudei o texto, ao ponto de poder improvisar sobre ele, e
eu fui pro público, eu fui pro público. Com uma ordem estabelecida e comigo mesma, e na
intenção de dar uma aula sobre aquele texto. 


GEORGE – Hum hum!


GEORGETTE – E eu senti que qualquer tipo de interferência ou na direção musical, ou na


direção ou na... Qualquer tipo de interferência poderia tentar tornar mais firme e mais tea-
tral, e mais interessante, e mais fixo. Alguma coisa que eu sentia, que tinha que ser simples-
mente uma aula muito bem dada, sabe?


GEORGE – Hum hum! Hum hum!

GEORGETTE – Então aconteceu isso... A minha opção pela autodireção não foi uma op-
ção… não foi uma opção de estética a priori num sentido “Não, eu sei muito bem o que fa-
zer, eu quero me autodirigir porque eu tô com uma ideia maravilhosa na cabeça e porque eu
quero reduzir equipe”. Não. Foi assim… é uma coisa tão delicada e tão precisa, e tá tão
formada dentro de mim, tá tão formada dentro de mim, que assim, eu não preciso de mais
ninguém nesse momento.

GEORGE – Hum hum...

129
GEORGETTE – E talvez no sentido egoísta mesmo, mas não no sentido egoísta da obra, mas
da… da… da intenção, do princípio da ação que eu tava querendo promover, da radicalida-
de da ação que eu tava querendo promover. Então acabou sendo um processo praticamente
muito solitário... Eu não mostrei pra ninguém, eu não fiz nada com ninguém antes do dia, e
a Julia Jaker, que foi minha parceira inicial de produção e de concepção da luz, ela mesma
ficou super permeável ao que eu tava pedindo. Porque eu já tinha a concepção da luz tam-
bém... Eu queria que a luz fosse improvisada, eu queria que a luz fosse uma luz que pegasse
o público pra gente ter uma sensação de sala de aula e não de plateia de teatro... Enfim, ela
mesma teve que ser pautada pelo que eu tava querendo, porque eu tava muito nítida sobre
as intenções do trabalho, e eu tava querendo muito o foco na palavra, e eu sabia como lidar
com aquela palavra, ou melhor, eu sabia que eu ia estrear muito crua, que eu ia aos poucos
delimitando meu espaço de ação. No contato com o público, que o público seria minha di-
reção. Na verdade, é isso... O público seria minha direção, né, e eu confiei nisso. O que
aconteceu foi que acabou dando um resultado até melhor do que eu esperava que era o da
comunicação com o público, era um texto difícil do Hegel, e as plateias estão segurando a
onda, sabe, as pessoas têm estado interessadas assim do começo ao fim. Não todo mundo, é
claro, mas eu acho que funcionou, sabe... Agora, definitivamente, o motivo da escolha não
foi um motivo a priori estético; nesse sentido, “tenho uma boa ideia e quero fazer valer essa
boa ideia da direção comigo mesma”. Não. Foi… eu acho que qualquer coisa que vier em
termos de boas ideias pra esse trabalho, vai atrapalhar o cerne do trabalho, que é justamente
um texto dentro de uma aula dada por uma professora boa que gosta de dar aula.

GEORGE – Entendo... Entendi!

GEORGETTE – E qualquer coisa iria atrapalhar... Foi esse o motivo de eu conduzir.

GEORGE – Mas então era um trabalho que você tinha bastante propriedade sobre todo ele,
né? Você tinha já uma visão completa do que queria fazer, né? Talvez outra pessoa agindo
até interferisse nisso ou causasse só conflito de uma coisa que você já tinha clara pra si.

GEORGETTE – Exatamente! Exatamente isso! Eu não senti que eu deveria dividir essa criação
com ninguém, justamente por esse motivo que você falou. Eu sentia ela completa dentro de
mim, embora não perfeita, não perfeita, mas era uma unidade, era de mim que tava brotan-
do, e pelo contrário, seria vaidade minha se eu chamasse outra pessoa pra contribuir, enten-
deu? Porque daí seria talvez querer chamar um nome ou outro, um parceiro, um irmão ou
outro, pra dar força pro projeto, ou pra tornar o projeto mais bonito, ou pra tornar o projeto
mais cheio, mais gordo, mais vistoso, mas, eu não podia. Eu senti que realmente o que tava
pedindo... Eu senti que tinha que ser um trabalho austero, você entende?

GEORGE – Hum hum...

GEORGETTE – Um trabalho austero, um trabalho simples... Onde eu não podia ter nenhum
tipo de glacê, nenhum tipo de maneirismo de encenação, nenhum tipo de maneirismo de
interpretação.

GEORGE – Entendo...

GEORGETTE – Por isso é um trabalho super duro... De vez em quando ele simplesmente não
acontece, tem dias que é brilhante, tem dias que é uma merda, justamente porque depende
demais da relação com o público, porque ele não tem nenhum tipo de apelo ultrateatral, né?
Então ele fica nessa corda bamba mesmo dessa opção, mas ele é assim, e como você disse,
eu sentia que ele tinha uma unidade assim, e que qualquer coisa que entrasse poderia inter-
ferir de uma maneira negativa, dividindo a suavidade.

130
GEORGE – Hum hum... Entendo... Entendo... E você vê alguma diferença entre quando você
dirigiu outras pessoas pra quando você se autodirigiu? Você achou que a atriz…

GEORGETTE – Sempre! Sempre! Sempre, sempre! Na verdade, há muita diferença entre


cada diretor e a solidão de tá concedendo alguma coisa sem ninguém, é tudo muito diferen-
te, como cada dia é diferente, né.

GEORGE – Hum hum...

GEORGETTE – Então, assim, em primeiro lugar, quando tem alguém te olhando, se você
quer saber, eu acho que tem uma... Sempre tem uma possibilidade de expansão dos seus li-
mites muito grande. Porque tem uma outra pessoa te olhando, e essa outra pessoa tá vendo,
e elaborando de acordo com a visão dela, de acordo com a experiência dela, então ela aca-
ba sempre te levando pra coisas que você não suspeitaria fazer.

GEORGE – Hum hum…

GEORGETTE – Então eu acredito muito nessa troca! Eu gosto demais de trabalhar com dire-
tor! Diretor ou interlocutor, de qualquer maneira que seja. Eu gosto de ter gente vendo... Esse
espectador profissional que é o diretor, né. Essa pessoa que olha pra você com cuidado, com
carinho, e puxa de você a continuidade de indicações que você tá dando e às vezes nem tá
percebendo que tá dando, ou tá percebendo, mas não tem tanta certeza se são bons cami-
nhos; e sempre quando se trabalha com bons diretores, você amplia o teu horizonte, amplia
a tua consciência... Os diretores bons te forçam, né, a radicalizar, a ir mais longe, até em ca-
racterísticas que você possui mesmo, ou ajudam a desenvolver características que você nem
sonha que possui... Então, eu gosto demais de trabalhar com interlocução.

GEORGE – Hum hum…

GEORGETTE – E eu sempre considero, mesmo no caso do “Afinação”, por exemplo, ou do


“Gota D’água”, ou de coisas que eu dirigi, de dentro, eu sinto que é no encontro com o pú-
blico que a direção acontece. Então eu tenho direção, é direção do público, é uma direção a
posteriori, sabe?

GEORGE – Hum hum... Entendo.


GEORGETTE – Então... Agora, quando esse trabalho é solitário, onde você dirige, eu acho
que são os momentos onde você pega... Olha, eu tô falando você, mas sou eu, tá... É o que
tem acontecido até agora na minha vida. Eu acho que são os momentos onde eu peguei o
que eu tinha na mão. Eu peguei o que eu era até aquele momento. Eu peguei... Eu peguei o
que eu podia, o que eu tinha construído sozinha, o que eu sou, e coloquei na roda o que eu
sou, entende? O que eu tenho, o que eu sou, o que eu aprendi, o que eu treinei, o que eu
desenvolvi. E quase num funil... Eu chamo até de trabalhos funis... Trabalho funil... Você
pega a tua vida inteira, e em pouco tempo você constrói um funil. Você constrói uma peça
de teatro, uma forma, onde você vai se expressar, onde o teu ser vai se expressar como hu-
mano, como alguém que construiu alguma coisa até aquele momento na vida e pensa tal
coisa. Então, pra mim, esses trabalhos solitários estão sempre associados a esse trabalho fu-
nil, sabe, esse trabalho onde eu pego o meu repertório, onde eu pego o repertório da minha
troca com todo mundo que eu trabalhei até esse momento, o que eu penso da vida, o que tá
acontecendo no mundo, as coisas que estão pungindo o meu coração, atingindo o meu co-
ração... Eu pego esse arcabouço todo da vida e coloco num trabalho, coloco numa fala, e
escolho esse texto, e vou pro fronte com as armas que eu tenho, sabe...


131
GEORGE – Hum hum. Hum hum!

GEORGETTE – Então, muito importantes da vida, onde você fala: “meu, agora sou eu, sou eu
comigo mesma, numa sala de ensaio, a responsa tá comigo”. E como eu sou muito ruim de
produção... Geralmente são uns trabalhos mais simples, né... “Estela do Patrocínio”, “Gota
D’água” e “Afinação” são meus trabalhos mais pobres em termos de produção, mas são tra-
balhos que eu precisava fazer e ponto. Entendeu? E aí quando se procura um diretor, ou
quando se trabalha com um diretor, você tem, como eu disse, instruções, né? Então... Eu sin-
to momentos diferentes da vida, trabalhos diferentes, e abordagens e ensaios muito diferen-
tes. A solidão de uma sala de ensaio sem diretor é uma coisa muito louca, você se encontra
com você num nível muito pequeno, muito minucioso. Com a direção essa interlocução às
vezes até esconde aspectos muito íntimos de indisciplina, de rebeldias, de vícios, de coisas...
Então, os dois trabalhos se equilibram... Eu acho importante pro diretor perceber... se perce-
ber... um diretor-ator, né, uma diretora-atriz... eu acho gostoso passar por esse momento
onde você se autodirige, porque esse encontro da diretora com a atriz não necessariamente
é uma coisa pacífica. Eu, por exemplo, sou uma diretora que a minha atriz não sei se gosta
muito de trabalhar; sabe, então esse confronto entre o que a gente é como diretor e o que a
gente é como atriz, é uma coisa bonita de se atravessar e ensina demais. É claro que a gente
se trata de uma maneira diferente que a gente trata um outro ator, mas de uma mesma ma-
neira os autoritarismos, as fraquezas, as inseguranças, as fragilidades, todas de uma maneira
geral, e também as qualidades ficam muito aparentes nessa solidão da sala, né. Eu tenho
achado assim importante, de tempos em tempos, parar e olhar pra mim na solidão, sabe, e
vê o que é que eu tô realmente sentindo, sendo e fazendo naquele momento da minha vida
e devolver isso pro público, sabe. Acho que tem sido rico essas paragens... Eu tenho enten-
dido quase como paragens, de autoanálise, de autoinvenção, não no sentido terapêutico só,
mas no sentido de devolver pro mundo um pensamento de uma humana, um ser humano
que tá vivo neste momento. Então, é nesse sentido, no sentido épico, né, não no sentido de:
“ah, agora eu vou fazer um psicodrama...”, embora eu ache muito válido o psico-drama, mas
não nesse sentido... no sentido de reunir todo o material, inclusive filosófico e tal, que se
tem até aquele momento, e devolver de uma maneira épica pra esse público, né. Se colo-
cando um pouco até em sacrifício, né... no “Afinação” eu falo isso, eu introduzido a peça
dizendo isso, que eu me ofereço em sacrifício. Que eu vou fazer uma personagem e eu ofe-
reço essa personagem em sacrifício naquele momento. O pensamento dela eu ofereço em
sacrifício.

GEORGE – Entendo... Nossa, parece até que você antecipou a minha pergunta porque era
exatamente isso, […] você acha que se há algum, algum... Como é que eu digo... Algum
amadurecimento artístico ou até pessoal, num processo assim solitário, como o da autodire-
ção, e você... Nossa, eu acho que você colocou isso muito bem...

GEORGETTE – É... Eu acho que é por aí, sim, acho que tem, sim... É bem diferente do traba-
lho com parceiros, mas é um trabalho onde você vê que tipo de parceira você é, sabe, e que
tipo de parceira você vai ser com o público, inclusive, como é que você vai preparar esse
encontro especialíssimo, sabe, que vai acontecer só com o público. Então, sim... É um olhar
pra si, como sempre, e às vezes esse olhar pra si é facilitado quando você tá solitário, né. Se
você ouve a tua voz, você ouve a tua bagunça, ou a tua calma... Você ouve... Tem mais si-
lêncio pra ouvir, né...

GEORGE – Sim, sim! É verdade! E esse você trabalhou com o texto... O texto já tava pronto
antes, num era? Você já pegou um texto...

GEORGETTE – É, eu peguei um texto do Hegel, adaptei muito pra se tornar mais palatável
que o oral, né, teatral, então é fundamentalmente um texto do Hegel chamado “O movimen-
132
to do pensamento” e eu enxertei trechos de “A Santa Joana dos Matadouros” do Brecht, en-
xertei um pequeno trecho do Marx e outras coisinhas mais. Exemplos do Goethe, exemplos
do Bolsonaro... Eu fui enfiando... Eu fiz uma colcha de retalhos, poucas palavras são minhas.
Ali eu só sampliei mesmo, eu só peguei e fiz o sampler da coisa.

GEORGE – Entendo... Mas como é que você chegou, mesmo o texto estando pronto, teve
um momento... Como foi definir esse momento: “agora o espetáculo tá pronto, tá pronto pra
estrear” ou como saber...

GEORGETTE – Eu marquei a estreia!

GEORGE – (Risos) Simples assim, simples assim!

GEORGETTE – Escuta... Como é que você vai morrer? Você vai marcar o dia de sua morte?

GEORGE – Não!

GEORGETTE – Ou melhor, você quer morrer? Não! Então você tem que marcar o dia da
morte, entendeu, porque se não você não morre.

GEORGE – É verdade!

GEORGETTE – Você tem que morrer, você tem que marcar o dia da morte! Porque se não tu
não vai escolher morrer. É que nem essa porra da estreia... Se você for esperar tá pronto, se
você for esperar tá perfeito... então... ninguém quer morrer, ninguém quer estrear...

GEORGE – Não, não quer!

GEORGETTE – Então você precisa marcar o velório!

GEORGE – (risos) É, é exatamente! Eu já ia dizer, que parece que a estreia não é um momen-
to muito feliz né, porque é um momento de crise mesmo, de que há um confronto com o
que se criou e o público, né...

GEORGETTE – Não, isso é uma coisa muito louca... Você sabe que eu tava pegando um tex-
to meu... olha, eu tinha 18 anos, 19 anos no máximo... e eu li um texto meu, eu achei num
caderno antigo, um texto meu, literalmente de faculdade, era tipo primeiro ano, era primeiro
ano de faculdade... Aí eu tava lendo, e era exatamente sobre isso, falava assim... é… falava
que o artista se alimenta do público, o artista se alimenta dos urubus que vão assistir... que o
ator só não morre porque come a carne dos urubus, que o olhar do outro é o olhar assassino,
é o olhar que vai pegar tudo, é o olhar que vai comer o seu cadáver, que vai comer o que tá
morto em você... E a gente só não morre porque a gente come antes o urubu, porque antes
do urubu comer a gente, a gente faz a fritadinha do urubu, entendeu...

GEORGE – (Risos)

GEORGETTE – Então, eu falei: “caralho, meu...”... Eu com 19 anos já tava pressentindo,


sabe, o desespero que é o encontro com o público. Pra mim, pelo menos... eu não tenho as-
sim: “Eba, vou me encontrar com o público!”. Pra mim não, pra mim é uma responsa... Eu
vou chorando, eu vou chorando cada vez mais, e é claro, que quando tudo começa, tudo
começa, e aí a relação se estabelece, mas nem sempre pra mim é uma diversão garantida,
sabe. Tem, sim, muita imperfeição que é exposta, né... 90% de imperfeição humana pra 10%
de coisa treinada, bacanona, boas ideias, coisas interessantes... então, é uma exposição
imensa, e o público justamente gosta de ver isso, gosta de ver essa imperfeição, ao vivo e a
cores. Então eu acho sempre um espanto, sabe, esse encontro com o público, ainda mais so-
zinha, né, sempre me dá uma sensação de morte, né... eu morri. Morri.
133
GEORGE – Sim, sim, sim! É verdade! Não, engraçado como realmente esse trabalho tem
algo de muito pessoal, me parece, porque a sua fala, quando tava na universidade no início
da carreira, era de que havia essa questão da morte em ir encontrar com o público; e agora,
nesse trabalho você diz que começa dizendo que tá em sacrifício pra ele, né, então, tem um
reencontro aí, né, de toda a carreira mesmo, como você disse.

GEORGETTE – Exatamente... Exatamente! É, você falar isso pra mim agora que me faz essa
ponte na verdade, viu... é muito interessante mesmo! A gente vai buscando as questões sem-
pre, né, a gente vai atrás das questões da adolescência, das questões da infância... A gente
vai em busca mesmo dessa reunião, dessa paz né, a gente vai em busca da paz consigo
mesmo, com o mundo, em busca do equilíbrio, em busca da solução, né, é engraçado...

GEORGE – Sim, sim! Nossa, eu entendo porque eu tô passando por isso agora, e eu tenho
menos, nossa, eu tenho menos tempo de carreira que você, bem menos e...

GEORGETTE – Quantos anos você tem, amore?

GEORGE – Eu tenho 39!

GEORGETTE – Ahhh, pertinho de mim!

GEORGE – (risos) Então, me dá mais segurança até!

GEORGETTE – É, eu tô com 44, então, 5 aninhos a mais...

GEORGE – Ah, então estamos pertinho, estamos pertinho...

GEORGETTE – Estamos pertinho! (risos)

GEORGE – Mas é, eu entendo, eu tenho olhado muito pro passado! Como?

GEORGETTE – Você é ator?

GEORGE – Eu sou ator! Mas eu dirigi muito pouco, mal dirigi, né, me dirigi algumas vezes
num trabalho de palhaço que eu tenho, mas eu queria fazer um trabalho mais pessoal noutro
sentido, e eu tô revendo todas essas questões pessoais, históricas... E pra mim é tão inspira-
dor ouvir você falar isso tudo, porque é mais do que a informação que você me passa pra
pesquisa, mas é a inspiração que você me alimenta com a tua fala […] eu consegui me ver
tanto no que você fala e me dá forças pra continuar nessa pesquisa, nessa montagem...

GEORGETTE – Oh, cara... Que maravilha! Que bom que tá servindo pra isso, pra ficar co-
nectado. Vamos sempre ficar conectados, tá bom?

GEORGE – Nossa, demais, demais! Ai, tomara! Ai, por favor, agradeceria demais! Nossa!

GEORGETTE – Bacana, pra mim tá feito! Eba!

GEORGE – Poxa, obrigado, viu, Georgette! Nossa, sua fala foi incrível! Incrível mesmo!

GEORGETTE – Obrigada você por procurar... Me avisa quando tua pesquisa tiver pronta!
Manda pra mim, tá bom?

GEORGE – Ahh, mando, sim, com o maior prazer! Mando, sim! Obrigado mesmo!

GEORGETTE – Tá bom, meu lindo! Guarda meu número aí, fica em contato comigo, quando
vier pra São Paulo e fica aqui em casa!

134
GEORGE – Ai, brigadão mulher! Poxa... e você também, se quiser vir pra Natal, já tem casa,
viu?! Por favor!

GEORGETTE – Fechou! Ebaa!!! Valeu, parceiro!! Boa sorte em tudo aí, então, viu?!

GEORGE – Obrigado! Pra você também! Um beijão!

GEORGETTE – Um beijo grande! Tchau tchau!

GEORGE – Tchau tchau!

135
Crédito Leo Brant

Matteo Bonfitto
Ator-performer, diretor e Professor Livre-Docente do Instituto de Artes da Unicamp. Ele
é autor de diversas obras sobre teatro, dentre os quais se destacam O Ator Compositor (Pers-
pectiva, 2002), A Cinética do Invisível (Perspectiva, 2009) e Entre o Ator e o Performer (Pers-
pectiva, 2013). Seu primeiro trabalho com autodireção se deu com o solo Palavras Corrom-
pidas (2017). A entrevista foi realizada, por telefone, em 22 de dezembro de 2018.

...

MATTEO – Alô?
GEORGE – Alô, Matteo?

136
MATTEO – Oi, tudo bom?
GEORGE – Oi, tudo bem? Nossa, quanto desencontro, não foi?
MATTEO – É, mas tudo bem...
GEORGE – Até peço desculpas pelos desencontros todos…
MATTEO – Não, não, não, tudo bem... Importante é achar esse momento aí pra fazer...
GEORGE – Ah, sim... Nossa... Obrigado demais pela disponibilidade, viu? Por essa entrevis-
ta... Vai me ajudar muito, sem dúvida!
MATTEO – Tranquilo, vamos lá!
GEORGE – Ai... Matteo, na verdade, assim, a minha pesquisa de mestrado é sobre autodire-
ção, e aí eu tô passando por um processo criativo em que eu me autodirijo, e a ideia é en-
trevistar pessoas que passaram pela mesma experiência. E aí eu fui atrás de pessoas que pas-
saram por isso e eu vi que você tem um trabalho muito bacana pelo que eu vi, pelas reações
que eu consegui colher, e aí eu fiquei curiosíssimo, até porque eu tô usando os teus livros,
então eu achei que seria extremamente bacana se eu conseguisse te entrevistar. E eu queria
te perguntar se você poderia... Começar com isso... Quê que é essa experiência da autodire-
ção, como é que você encarou isso, como é que foi pra você...
MATTEO – Hum hum... Então, na verdade essa questão da autodireção, acho que ela vem de
uma... Tá conseguindo me ouvir bem?
GEORGE – Tô, tô conseguindo sim! Tô gravando tudo isso, tudo bem?
MATTEO – Ah, tá, não… Sim sim, claro!
GEORGE – Beleza!
MATTEO – Então, na verdade a questão da autodireção ela vem como desdobramento de
experiências de pesquisas anteriores e que convergiram assim, porque se de um lado, quan-
do eu tava trabalhando em cima dessa noção de ator-compositor, pensava num ator que pu-
desse ser um artista “autônomo” entre aspas assim – porque essa questão da autonomia tam-
bém é uma questão grande, eu acho – eu já tava meio me preparando pra essa sensação, ao
mesmo tempo quando eu comecei as pesquisas sobre performance e sobre o trabalho do
performer, isso também se reforçou e, por um outro lado, foi um desdobramento desse en-
contro com os atores do Brook, né... Que eles, apesar de trabalharem com um diretor como
ele, já traziam um trabalho deles assim... Os três que eu tive mais contato, né, o Yoshi Oida,
que eu ainda tenho contato, o Tapa Sudana, todos eles tinham uma dimensão assim de um
trabalho de atuação também muito autoral etc. Então, na verdade, esse “Palavras corrompi-
das” que agora eu tô circulando aqui no Estado de São Paulo, na verdade, é o resultado de
um processo longo assim em que as três pesquisas, né, tanto “O ator-compositor”, quanto “A
cinética do invisível” quanto “Entre o ator e o performer”, prepararam pra isso. Ao mesmo
tempo, eu não tenho... A noção de autodireção aqui é muito específica nesse sentido, né,
porque ela catalisa esses percursos assim, porque no “O ator-compositor” me indignava mui-
to essa situação em que eu encontrava, sei lá, colegas nos bares de São Paulo e nas conver-
sas a gente falava e que as pessoas diziam: “Ah, tô num projeto...” ou: “A gente tá
ensaiando...” e a coisa nunca acontecia, ou por falta do dinheiro, mas principalmente pela
dificuldade de você se organizar em grupos... De ter um diretor, de ter um cenógrafo, de ter
um espaço, de ter um iluminador, de ter um figurinista, de ter um blábláblá... Então essa
questão da... que, se por um lado o teatro ele tem essa força do trabalho coletivo e do traba-
lho de grupo, por um outro lado, isso me indignava, essa situação em que o ator, ele depen-
dia de uma relação com outras pessoas pra poder ser um artista. Então isso me indignava
137
muito isso assim... Então quer dizer que eu não posso ser um artista por minhas próprias
mãos assim, como é o pintor, como é o escultor, como é o músico, e como é o bailarino,
muitas vezes... Porque essa questão da dança, essa situação autoral ela já existe há bastante
tempo, né.
GEORGE – Sim, sim...
MATTEO – E... Quando eu encontro os atores do Brook, isso se desdobra porque cada um
vem de uma cultura diferente, e culturas que valorizam essa questão autoral do ator, né... O
---, por exemplo, no trabalho com contador de histórias, no Griô, ele tem toda uma implica-
ção social também... O contador de histórias não é simplesmente uma pessoa que entretém,
mas o contador de histórias na cultura Griô, ele é a própria memória coletiva, assim; então o
quanto ele é responsável também por um tipo de trabalho que vai além do artístico, enfim...
E com o Tapa e o Ioshi, de maneira diferente, também com trabalhos autorais... E quando eu
chego na pesquisa sobre o performer, isso fica muito forte assim, porque uma das críticas
que a performance faz em relação ao teatro é porque que o ator ele depende de textos, da
palavra escrita por outras pessoas pra poder ser um ator... Então como se implicitamente na
performance se perguntasse quais são as suas questões... Assim, porque que você precisa de
questões de outros e da palavra de outros pra poder existir como artista. E, então, isso tam-
bém, essa e outras questões, né... Essa questão da simulação de experiências que na perfor-
mance fala muito que o ator ele não vive experiência, que ele simula experiência, enfim,
provocações etc. E... Então, tendo passado por esses processos, esses percursos, né, de pes-
quisa, e artísticos também de criação artística que acompanharam esses processos, chegou
um momento em que, no ano passado, final de 2016, na verdade pra 2017, que surgiu a ne-
cessidade de vivenciar um tipo de processo criativo diferente em que eu pudesse cuidar de
todas as etapas aí de criação, tanto adaptação do texto do Hofmannsthal... Nesse caso do
“Palavras corrompidas”, é uma adaptação que eu fiz do ---, que é um texto do Hof-
mannsthal... Ao mesmo tempo, eu entrelacei esse material com questões minhas assim...
GEORGE – Sim!
MATTEO – Então essa indignação em relação à palavra, da palavra como uma dimensão que
não dá conta das nossas experiências mais profundas e, enfim, e significativas... Que na ver-
dade é a crise que a personagem do Hofmannsthal enfrenta, né, um escritor que se desen-
canta com as palavras, mas na verdade, ele ao se desencantar com as palavras, ele não tá se
desencantando com as palavras, né, ele tá percebendo o como as palavras são só a ponta de
um iceberg e que na verdade ele tá falando na verdade de outras crises né, da crise ética, da
crise relacional, da crise política, da crise existencial, da crise... E... Então, na verdade, nesse
projeto a decisão de fazer ele sem um diretor, sem um figurinista, sem um iluminador... Ilu-
minador não, tô trabalhando com uma iluminadora, que é a Camila Jordão... Mas não tô tra-
balhando com diretor, não tô trabalhando com figurinista e nem com músico... A trilha foi
toda eu que fiz e defini também. Essa decisão ela partiu de tudo isso que eu te falei, e de
uma sensação de que pra poder levar algumas questões que são tuas que te mobilizam pra
um ponto de ebulição, às vezes você tem que tá sozinho.
GEORGE – Hum hum! Entendo!
MATTEO – Porque muitas vezes essas relações, elas mediadas, elas apaziguam as suas ques-
tões... Elas falam: “Ah, legal o que você tá trazendo, mas, num sei o quê, olhando por aqui,
mas num sei o quê, mas num sei o quê lá...”. Então, eu não queria isso. Eu sabia da questão
que eu queria leva pra um ponto de ebulição, eu sabia do que tava em jogo pra mim nesse
projeto e, porque também, isso também tem a ver com uma outra pesquisa que eu tô fazen-
do, que eu sou bolsista do CNPq, e eu tô fazendo uma pesquisa que chama “O performer
como filósofo praticante”, então tem essa questão da filosofia como prática e que a dimen-
138
são tácita, a dimensão tácita tem tudo a ver com isso, o quanto, o quanto, na verdade, pra
gente poder – essa é uma hipótese, né – pra gente poder aprofundar a experiência em dife-
rentes campos, etc., a gente tem que tá lidando o tempo todo com isso que eu tô chamando
de dimensão tácita... Não só eu chamo, assim, mas enfim... Uma dimensão do que não é
nomeável, né...
GEORGE – Entendo...
MATTEO – E... Então, isso converge muito com a crise do --- que é essa personagem do
Hofmannsthal... Então, aí eu, a partir de tudo isso, eu falei: “Não, eu quero, pra poder levar
essas questões pra intensidade que eu quero, eu preciso tá sozinho”. E foi uma experiência
difícil, tá sendo, né, eu tô circulando com o espetáculo e acabei de mudar a primeira parte
do espetáculo e reescrevi em função de uma lapidação mesmo do material, né...
GEORGE – Entendo…
MATTEO – A primeira temporada foi bem importante assim, mas aí eu fazia a primeira parte
numa quadra e levava as pessoas pra uma sala pequena... Dessa vez, não, dessa vez eu tô
fazendo tudo no mesmo espaço e tem uma mudança de luz e tem uma troca de figurino aí
que eu também achei que seria importante e mudei o texto também... Tá sendo, essa segun-
da versão eu tô achando que ela intensifica mais um tipo de experiência que eu tento instau-
rar... Então tá sendo bem importante e o fato de tá sozinho, claro, é angustiante... Tenho
consciência de todos os riscos que isso envolve, né, de você tá numa bolha, de você perder
a crítica, de você perder a dimensão do que tá acontecendo e do que não tá acontecendo...
Claro, tem o feedback das pessoas que veem o espetáculo, né...
GEORGE – Sim!
MATTEO – Isso também sempre, isso também sempre é um filtro que é importante, mas ao
mesmo tempo essa angústia de tá “sozinho”, assim, entre aspas, foi bem importante porque
num tem a ver com a vaidade artística, mas tem a ver com o querer mesmo levar algumas
questões pra um outro plano, né, e os riscos disso acontecer é lidar com esses riscos, e me
colocar nesse papel também do artista, de como o músico cria, de como o pintor cria, de
como o escultor cria, de como... De me colocar nesse lugar mesmo, hibridizado com lógicas
do fazer de outras formas de arte, né.
GEORGE – Sim, sim!
MATTEO – Então tá sendo bem importante assim... São muitas questões né, mas...
GEORGE – Sim, eu entendo demais… Eu me sinto... Eu compartilho demais... Eu não sei se
eu tô errado, mas... Me parece, primordialmente, pelo que você me fala, que o que leva,
pelo menos nesses casos de autodireção, é muito essa necessidade de maior, até de incom-
preensão de um outro pra poder participar de um processo tão íntimo e também uma possi-
bilidade de viabilizar isso da forma que a gente precisa até como tradução desse discurso tão
pessoal, né, que é difícil chegar no outro como veículo de concretização dele...
MATTEO – É! O outro tá sempre presente, né, mesmo quando você tá sozinho...
GEORGE – Sim, sim!
MATTEO – Você é o outro, né?
GEORGE – Mas como esse lugar principal, digamos assim, de elaboração do discurso, ou
pelo menos, não como reação e amadurecimento do discurso, mas quase como criação
dele, né, como... Como conceito do trabalho...

139
MATTEO – Hum hum! É, como conceito, sim! Como questão do discurso, na verdade essa
pesquisa, esse trabalho também, e essa pesquisa sobre o tácita, ela questiona muito a ques-
tão do discurso, né, porque, na verdade é como se eu quisesse escavar uma dimensão que
vem antes dos discursos, né...
GEORGE – Hum hum…
MATTEO – Porque eu acho que a gente tá vivendo um momento muito complicado, desse
momento dos discursos, né, os discursos eles estão se potencializando cada vez mais porque
na verdade é como se eles fossem palavras ocas, né...
GEORGE – Sei…
MATTEO – É muito o que o Hofmannsthal diz assim... Ele fala das palavras... Ele fala de uma
imagem, que eu acho muito interessante, que ele fala como se as palavras tivessem se trans-
formado em cogumelos podres. E... Inclusive é a imagem que eu uso no cartaz do espetácu-
lo e...
GEORGE – Até cogumelos atômicos podres, de certa forma…
MATTEO – É… Assim, na imagem tem cogumelos saindo da minha boca, assim...
GEORGE – Ah, sei… Muito legal!
MATTEO – Porque isso, assim...
GEORGE – Mofado, né…
MATTEO – É… A verbalização, ela se tornou uma ação assim tão manipuladora e tão em
que você, ainda mais no Brasil, né, que tem essa questão da desconfiança, que é tão arrai-
gada assim... A palavra, ela se tornou... Você vê esses políticos falando, assim, é uma sensa-
ção de náusea, né...
GEORGE – Hum hum!
MATTEO – Porque é como se fosse uma palavra que tá completamente desconectada com o
sentir, com o pensar, né, com o fazer...
GEORGE – Sim...
MATTEO – Como se fosse um... É como se fosse uma palavra assim que é só uma espuma de
cappuccino.
GEORGE – Sei…
MATTEO – É uma coisa que tá lá só pra criar um efeito, e que logo logo desaparece porque
ela não se sustenta.
GEORGE – Entendo…
MATTEO – E… Então, na verdade, eu não tô atrás de discursos, eu tô, pelo contrário, eu tô...
Eu acho que o espetáculo ele, de uma forma sútil, poética, ele propõe um passo pra trás, as-
sim...
GEORGE – Hum hum...
MATTEO – E que palavra é essa, que palavra é essa que a gente pode produzir... E que pala-
vra outra é essa que a gente pode produzir e quais são necessárias pra que essa palavra surja
ali, e aí isso tem a ver com o trabalho sobre si, né...
GEORGE – Hum hum... Sim!
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MATTEO – Isso tem tudo a ver com o trabalho sobre si, assim... Então tá sendo muito impor-
tante assim, porque, acho que eu nunca... Essa questão de uma solidão, essa questão da au-
todireção, ela é uma solidão, né, colaborativa assim, mas que é... Quando você tá comple-
tamente imbuído, absorvido, pelo processo que você tá vivenciando, e ele realmente te mo-
biliza... Assim... Não é só uma ideia... Você não tá indo só atrás de uma ideia...
GEORGE – Sim...
MATTEO – Mas, é algo que te mobiliza assim psico-fisicamente, né... Eu acho que é um de-
safio bem importante... Pode ser bem importante... Claro, que, sabe, eu tô lhe dando com
isso, bom, eu faço teatro há mais de vinte anos, e essa incursão na performance nos últimos
sete anos, só me senti assim, apto, digamos, em condições de fazer isso agora...
GEORGE – Sim, sim!
MATTEO – Agora tá sendo muito importante, tá sendo muito importante... E me dá uma sen-
sação, me dá uma sensação que eu acho que é bonita, assim de conexão com artistas de ou-
tras formas de arte assim. É como se eu entendesse melhor como o músico trabalha, como o
escultor trabalha, como o pintor trabalha, sabe?
GEORGE – Sei, sei demais!
MATTEO – Mas num outro plano assim, né... E... A gente tem os nossos materiais e a gente
cria uma obra assim... Tudo isso vivendo sem desvalorizar a relação com o diretor, e essa
questão colaborativa do teatro, né...
GEORGE – Sim, sim!
MATTEO – Eu acho que quando acontece essa colaboração e esse trabalho de grupo é lindo
assim... Eu acho que tem uma força imensa, agora, não é fácil, tanto é que eu tenho um Co-
letivo chamado “Performa Teatro”, mas eu mantenho como um coletivo que agrega pessoas
diferentes a cada projeto porque eu não acredito muito em grupo, eu acho que grupo fixo
você acaba sempre adaptando às coisas que você quer criar, às pessoas que estão no grupo,
e eu acho que na verdade é o material que tem que definir quem é que tá no projeto ou não.
GEORGE – Hum hum!
MATTEO – Não são as pessoas que definem o projeto, é o projeto que define as pessoas.
Mas, enfim, é muito pessoal isso...
GEORGE – Entendo… Mas, me fala uma coisa, como, partindo pra uma coisa mais prática,
como tem sido esse trabalhar, essa prática mesmo sozinho, numa sala de ensaio, o quê que,
que mecanismos, que instrumentos, o quê que você tem feito uso nesse trabalho solitário no
processo que você participou, e como é que foi entender que o espetáculo chegou num fim,
que tava pronto pra estrear...
MATTEO – É, nunca tá pronto né, tá sempre em processo... Mas um certo ponto a gente ti-
nha também uma data de estreia e isso também acabou entrando em jogo... No próprio pro-
cesso criativo, quando você tem uma data, isso também atua criativamente...
GEORGE – Hum hum! Sim, sim!
MATTEO – Agora, essa preparação, esse trabalho, não é só na sala de ensaio, né, na verdade,
eu faço Benedito... Aliás, esse trabalho cataliza, na verdade, se existe um treinamento pra
esse trabalho, é o trabalho sobre si mesmo, mas não fica só no plano e na loja do Stanislavs-
ki e de outros diretores que acontecem dentro de uma sala de ensaio, mas na verdade o que
acontece fora da sala de ensaio é tão importante quanto. O como você se observa na rela-
ção, o quanto essa questão nesse caso desse projeto específico, como é que a palavra, ela é
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um conector relacional assim nos diferentes contextos que você atravessa no teu dia a dia e
nas ocasiões especiais e o quanto o silêncio e o quanto a ausência de palavra ela é muito
mais reveladora em certos casos... Agora, claro, digamos, eu tenho práticas que acabaram
sendo muito exploradas no espetáculo, né, então toda essa questão plástica, corporal do
Kung Fu, das danças orientais também – tem algumas práticas de danças orientais, balinesas
etc... – o quanto essas práticas, elas não são transpostas literalmente assim, transferidas sim-
plesmente, mas elas criam impulsos, elas criam tensões, elas criam plasticidades... O quanto
essas qualidades que permeiam essas práticas que eu faço foram sendo exploradas na cria-
ção das ações do espetáculo, mas não explícita, né.
GEORGE – Entendo, entendo…
MATTEO – Assim, como vocais, né... Eu estudo canto há algum tempo, assim, há bastante
tempo, então também tem um momento do espetáculo que eu canto, mas o canto ali tem
um sentido muito particular, assim, tanto é que eu não canto uma música inteira, é uma área
que se alterna na fala, eu canto, falo e canto, e que tinha uma função muito específica de
deixar clara uma situação daquele ser ficcional ali naquele momento, porque o espetáculo
ele é dirigido em duas partes, tem uma primeira em que eu entro como se fosse o narrador, e
aí a um certo ponto eu tiro um colete, que é um colete bem contemporâneo, assim, bem de
hoje, e coloco uma camisa também, e aí tem a segunda parte do espetáculo que é quando
eu entro na ficção digamos assim, né.
GEORGE – Hum…
MATTEO – Então a narrativa do espetáculo é uma narrativa muito performativa assim, né, no
sentido de que eu tento quebrar, eu tento tencionar a questão da representação o tempo
todo...
GEORGE – Hum hum! Nossa, é exatamente isso...
MATTEO – Oi?
GEORGE – Eu tenho pensado exatamente nisso também...! Trazer muito de mim e quebrar
um pouco esse vão, né, entre o extrapalco e o palco também. Trazer um... Esse processo é
quase um processo também pessoal, né, que a gente traz e, até... Mas termina, termina, te
interrompi... Eu tenho mais uma pergunta, mas, continua, por favor...
MATTEO – Não, é isso assim… Na verdade, as coisas se conectam, né... O que, se a gente
pensar nessa relação entre a preparação, material e dramaturgia, na verdade as próprias prá-
ticas... É que normalmente nos processos criativos, a gente vê assim uma lógica que é: você
treina, você tem práticas de preparação, aí você utiliza isso nos materiais que você tá cons-
truindo, e se cria uma dramaturgia. Na verdade, nesse caso a ordem não foi essa assim, foi o
próprio material, a exploração do material foi gerando a necessidade de explorar práticas de
preparação que depois desembocaram numa dramaturgia, e como já existia também uma
parte dramatúrgica que tava definida, a própria dramaturgia também já definia materiais que
definiam práticas de preparação....
GEORGE – Entendi…
MATTEO – Então, teve uma lógica muito particular aqui, que não foi essa lógica, digamos,
que é mais convencional, assim, do treinamento, materiais e dramaturgia, mas a lógica foi
bem entrelaçada, né.
GEORGE – Entendi… Como é, você vê, diante desse percurso pessoal tão forte, né, me pare-
ce assim, e tão desafiador também... Pelo menos pra mim tem sido imensamente... Você vê

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algum tipo de amadurecimento nesse seu percurso, seja pessoal, seja artístico, depois dessa
experiência tão singular...?
MATTEO – Ah, eu... Eu sinto que… Eu sinto que foi uma, sim, foi um outro tipo de relação
de fazer, eu sinto que, eu não falo isso de uma maneira hierárquica, né, mas assim, é como
se, é como se eu de uma certa forma tivesse levado pra um outro patamar assim, tanto a no-
ção de ator-compositor, do ator que compõe os próprios materiais, quanto essa coisa que se
materializa não só através das palavras e essa questão do performer como alguém que traz as
próprias questões que o mobilizam, né... Na performance tem muito essa noção de manifes-
to pessoal, né... Mas de um jeito que esse pessoal também se ressignifica. Que isso foi muito
importante no encontro com os atores do Brook também, o ator ele é um canal, né...
GEORGE – Hum hum!
MATTEO – Ele não tá ali só pra falar de questões pessoais, psicológicas, mas ele é um instau-
rador de experiências que vão além dele, né.
GEORGE – Entendo...
MATTEO – Então, assim... Eu sinto com esse trabalho, é como se esse trabalho fosse uma –
eu não gosto da palavra síntese porque a palavra síntese ela chapa as coisas – mas eu sinto
que eu consigo fazer convergir nesse trabalho questões que me mobilizaram em várias ou-
tras pesquisas e experiências artísticas, e que aqui eu me coloco numa situação de exposição
– eu nunca me expus tanto, né, na verdade, como nesse projeto em que eu... Normalmente,
quando alguém dirige e você atua, se acontece algum problema, se fala assim: “Ah, ó, a di-
reção...”, “Ah, a atuação é legal mas a direção num sei o quê...”, ou o contrário: “A direção é
legal, mas a sua ação num sei o quê...” – nesse caso eu não tenho saída, né...
GEORGE – Entendo… Interessante isso…
MATTEO – Eu tô assumindo aí, eu tô me expondo num outro nível mesmo.
GEORGE – Entendo…
MATTEO – E essas exposição ela é importante porque não é só uma exposição assim que
tem a ver com o que vocês acham de mim ou buscando uma aprovação. Essa exposição tem
a ver com tentar se colocar num lugar de criação, que tem a ver, que se aproxima da lógica
de outras formas de arte, como eu falei, assim, do músico, do escultor, do pintor, dessas pes-
soas que trabalham solitárias, mas que ao mesmo tempo não trabalham desconectas a elas
com a própria existência de uma maneira profunda, né...
GEORGE – Entendo…
MATTEO – Então sim, pra mim tá sendo um... Esse trabalho tem um lugar específico dentro
do meu percurso.
GEORGE – Entendo! Nossa, que interessante, que interessante! Nossa, eu acho que, eu acho
que é isso! Eu não sei se você quer acrescentar alguma coisa, se sentiu falta de... Mas aca-
bou que sua fala foi abrangendo já as perguntas que eu ia lançar naturalmente e eu nem
precisei... Parece que tava tudo aí já muito presente em você, né... Tua fala foi muito bacana,
porque já tinha todo um, tinha um processo já amadurecido realmente... Apesar de você fa-
lar do não discurso, mas tem um discurso em função do processo que é muito bacana já, e
me ajuda demais... Que curioso!
MATTEO – Ah, que legal! Que legal! É… Eu num sei o que acrescentar, eu num sei, assim,
eu fico pensando, essa experiência também me faz pensar, mas na verdade já é uma questão
que me acompanhava antes... Às vezes eu, uma coisa que me causa curiosidade assim, uma
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certa inquietação, porque às vezes no teatro, claro, tem mesmo na --- vi espetáculos superin-
teressantes, mais que interessantes, na verdade, potentes e que são bem imobilizadores...
Mas que eu fico pensando nessa questão do teatro no Brasil, o quanto muitas vezes você vê
projetos e que eu não consigo perceber a razão de ser deles, sabe...?
GEORGE – Ah, sei...
MATTEO – Por que montar aquele texto daquele jeito, por quê... Não sei, são questões as-
sim... Eu num tô falando nem de, às vezes o espetáculo é bem feito, a encenação é bonita, a
atuação é legal, mas eu fico pensando, essa experiência também, não só essa experiência na
verdade, todo esse percurso que também passa pela performance, sabe, assim, o quanto se-
ria importante... O quanto seria importante pra um artista também tentar perceber as razões
que te levam a fazer um trabalho, né...
GEORGE – Sim, sim!
MATTEO – Algumas vezes eu sinto que no teatro existe uma inércia assim, um pouco... Cla-
ro, eu não tô generalizando, existem muitos grupos que eu admiro não só de São Paulo, mas
do Brasil, assim, então é uma reflexão bem, não é nada generalizante assim, né... Mas eu às
vezes me deparo assim, fico me questionando, porque fazer aquele projeto desse jeito, eu
fico pensando o quanto ainda existe uma inércia assim no fazer teatral, e o quanto o pensar
sobre isso e o seguir e o criar a partir de coisas que realmente te mobilizam, que eu acho
que é essa uma das questões que a performance traz, né... O quanto a tua criação ela tem a
ver com um processo que emerge de algo que te mobiliza profundamente, né...
GEORGE – Hum hum!
MATTEO – O quanto isso pode ser importante, enfim, né!
GEORGE – Sim... Sim! É! Não, eu entendo perfeitamente! É exatamente... São essas as ques-
tões que têm me inquietado muito nesse processo, é trazer de mim, construir a partir de
mim, mas também dialogar com esse mundo, encontrar, se não a síntese como uma palavra
que você não gosta, mas esse encontro, né, desse interno e desse externo é uma coisa... In-
clusive no próprio processo, né, de como o ator que cria material, como o diretor que sele-
ciona esse material, tudo ao mesmo tempo às vezes, às vezes separado...
MATTEO – Hum hum!
GEORGE – É um processo muito diferente! Pra mim tem sido uma coisa realmente transfor-
madora! Transformadora! Nossa!
MATTEO – Ah, que bom, que bom! É... Claro que muitas dessas coisas que eu tô falando só
ficam claras também na prática, né...
GEORGE – Sim, sim!
MATTEO – Mas, enfim... Tentei aí, a partir do que você me colocou, tentar colocar em pala-
vras coisas que são difíceis de serem ditas...
GEORGE – É! Não, acredito! Acredito!
MATTEO – Mas, enfim… É isso assim... E você vai usar isso na tua pesquisa, é isso?
GEORGE – Sim, sim! As falas são cinco... Tô entrevistando cinco pessoas, e que passaram
por isso... É... Nena, Nena Inoue, de Curitiba, você... Meu Deus, até fugiu agora... Grace
Passô, que eu tô tentando entrevistá-la, que ela também passou por uma autodireção recen-
te, também muito bacana, né... Meu Deus, bem, eu vou lembrar os outros dois, eu até te
passo, porque agora eu fiquei até...
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MATTEO – Não, liga não, liga não...
GEORGE – Mas, nossa, sua fala me ajudou demais, Matteo! Queria agradecer imensamente
teu empenho e não ter desistido ao longo de ter esses desencontros, me deixou tão feliz e...
E eu me encontrei demais nas tuas palavras... Ah, Michel Melamed foi um outro, que tam-
bém vai numa pegada um pouco mais da performance até, né, digamos assim... E dialogar,
misturar isso tudo, gente que é mais do teatro, você que é muito bacana, que você tá usando
esse hibridismo e que eu também tô fazendo o uso disso... Então tá muito rico pra mim, que
cada entrevista tá indo por um caminho e tá dando um panorama muito bacana. Nossa,
obrigado, obrigado demais, viu; depois eu, sei lá, se quiser eu até te mando, sei lá, se tiver
interesse de ler ou qualquer coisa, seria um prazer!
MATTEO – Ah, com certeza... Com certeza! Quando você tiver com o trabalho estruturado,
queria ler sim!
GEORGE – Ah, poxa, obrigado! Obrigado! E obrigado, mais uma vez, por essa entrevista! Foi
essencial pra mim! Demais!
MATTEO – Ah, que bom! Que bom! Foi bom pra mim falar sobre assim... Falar sobre isso pra
mim é bom porque, enfim, me coloca também num lugar de reflexão, né...
GEORGE – Sim, sim! Imagino! Imagino! Obrigado! Obrigado!
MATTEO – Então... Boa semana aí pra você!
GEORGE – Ai, pra você também! Boa sorte no teu espetáculo e que essa transformação per-
dure aí... O tempo que for necessário e que você precise! Tá bom?
MATTEO – Obrigado! Obrigado, George!
GEORGE – Beijão! Tchau tchau!
MATTEO – Beijão! Tchau tchau!

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