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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

ESCOLA DE COMUNICAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES DA CENA

Miro Spinelli

DA ABERTURA À DESPOSSESSÃO:

uma performance escrita em cinco movimentos

Rio de Janeiro

2018
Miro Spinelli

DA ABERTURA À DESPOSSESSÃO:

uma performance escrita em cinco movimentos

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Artes da Cena da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
requisito para obtenção de grau de Mestre em
Artes da Cena.

Linha de Pesquisa: Experimentações da Cena:


Formação Artística

Orientador: Prof. Dr. Denilson Lopes


Co-orientadora: Profa. Dra. Eleonora Fabião

Rio de Janeiro
2018
2
Resumo

SPINELLI, Miro. Da abertura à despossessão: uma performance escrita em cinco


movimentos. Rio de Janeiro, 2018. Dissertação (Mestrado em Artes da Cena) – Escola de
Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2018.

A investigação desenvolvida nesse trabalho parte da intersecção entre os estudos de


gênero, da performance, anti-racistas e descoloniais para elaborar uma escrita
simultaneamente experimental, performativa e teórica. O autor se vale de sua própria
experiência como pessoa trans e trabalho como performer para traçar uma uma rede de
conhecimento e afeto que abrangem questões relativas aos trânsitos entre arte, vida e política.
O íntimo aparece como modo de aproximação das marcas de abjeção e feridas coloniais
compartilhadas entre o autor, suas interlocutoras no interior do texto e a leitora. A
performance, além de prática fundante do modo de operação da pesquisa, aparece como
ferramenta de acesso às problemáticas ontológicas das vidas subalternas.

Palavras-chave: performance; gênero; descolonial.

3
Abstract

SPINELLI, Miro. Da abertura à despossessão: uma performance escrita em cinco


movimentos. Rio de Janeiro, 2018. Dissertação (Mestrado em Artes da Cena) – Escola de
Comunicação, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2018.

The investigation developed in this work, through the intersection between gender,
performance, antiracist and decolonial studies, elaborates a simultaneously experimental,
performative and theoretical writing. The author uses his own experience as a trans person
and work as a performer to draw a net of knowledge and affection that embraces questions
regarding the transits between art, life and politics. The intimate shows up as a way to
approach abjection marks and colonial wounds shared between the author, his interlocutors
and the reader. Performance, besides being the foundation practice of the research operation
mode, is explored as a tool that gives access to the ontological problematic of subaltern lives.

Keywords: performance; gender; decolonial.

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Agradecimentos

Esta pesquisa, por estar intimamente ligada às redes de afeto, confiança e amizade que
me sustentam, conta com a colaboração direta e indireta de muitas pessoas, cujos nomes eu
nem mesmo seria capaz de esgotar em uma lista. A todas as minhas amigas, irmãs, cúmplices
e parceiras não citadas aqui, obrigado, vocês sabem quem são vocês. No entanto, é importante
nomear algumas, que foram mesmo essenciais nesse processo.
Agradeço primeiramente à Jota Mombaça, cuja importância é explícita aqui, também
por seu trabalho como teórica e artista, mas principalmente por sua presença em minha vida.
Sinto-me mesmo agradecido e alegre que você tenha cruzado meu caminho, maninha, e que
possamos seguir produzindo força e potência de vida juntas, enquanto catamos os cacos do
mundo pelo chão ou cravados em nossas carnes de monstras.
Às minhas amigas e cúmplices Bel Flaksman, Caio Riscado e Mayara Yamada, pela
escuta e pelo cuidado. Por terem me acolhido nesta cidade e em suas casas. Pelas tantas
nuances das nossas amizades. Pelo amor.
Aos integrantes do Água Viva Concentrado Artístico, coletivo que integro e que, nos
anos que antecederam esta escrita, foi incubador dos projetos e desejos que agora sigo
desenvolvendo dentro e fora deste trabalho. Obrigado por, dentre tantas outras coisas, terem
realizado junto comigo as sete edições da Transborda – Mostra de Performance, projeto
essencial em minha (de)formação como performer. Agradeço especialmente à Bia Figueiredo,
que me levou à entrada de um caminho transformador e sem retorno quando me convidou
para criar junto com ela o que veio a ser meu primeiro trabalho em performance, e também
que, junto com Luciano Faccini, um dia me pediu em casamento em uma mesa de bar,
iniciando um episódio de nossas vidas que continua sendo minha principal referência de
reinvenção dos conceitos de lar e de família. Mesmo que já não vivamos juntas, para mim
vocês seguem sendo casa.
Aos Cactus: Elilson, Gunnar Borges, Luisa Marinho e Maria Palmeiro, colegas de
linha de pesquisa que, durante as aulas e fora delas, foram parceiras e apoiadoras umas das
outras. Foi mesmo uma sorte imensa ter dividido esse trajeto com vocês. À Luisa, agradeço
também por ter me convidado para fazer o Chupim Papers, trabalho definitivo na elaboração
das partes finais desta dissertação.
À Casa Selvática e ao extinto Cafofo Couve-Flor, espaços de experimentação onde
tantas coisas foram vividas antes que eu pudesse sequer nomeá-las. Em especial às amigas e

5
integrantes desses coletivos: Francisco Mallmann, Gabriel Machado, Princesa Ricardo
Marinelli, Ricardo Nolasco e Stéfano Belo. Agradeço novamente ao Ricardo Nolasco, que,
junto com Fernanda Magalhães, estava comigo e colaborou diretamente na primeira ação de
Gordura Trans.
À Dani D’Emilia, Daniel Coleman Chávez, Violeta Luna e a todos os residentes do
PPPP – Programa Público de Performance Península de 2016, onde vivi e compartilhei
estratégias de criação e de sobrevivência que direta ou indiretamente estão presentes aqui
também. Novamente à Dani, agradeço pelo afeto e acolhida em sua casa em Lisboa. Ao
Daniel pela troca em performance e em vida e por ter proporcionado o meu encontro, em
Tucson, com Lia La Novia Sirena, a quem também agradeço por me ensinar sobre as
alquimias afetivas e performativas do seu canto de sereia.
À Cintia Guedes, Michelle Mattiuzzi e SaraElton Panamby, as quais admiro e amo e
com quem amolo as facas para as tantas batalhas cotidianas. Ao Filipe Espíndola, pelo
carinho e pelo rito de força em sua perfuração cuidadosa da minha carne. Ao Txai, filhe de
SaraElton e Filipe, que nos traz alegria e esperança, e que, recém-chegado neste mundo, já
traz no peito uma ferida cicatrizada.
À Camilla Rocha Campos, que, em sonho, correu até a porta de um aeroporto para
garantir que eu não viajasse sem uma caneta esferográfica. Obrigado. Não fosse aquela
caneta, acho que não tinha mesmo conseguido finalizar esta escrita.
À Rosyane Trotta, por generosamente ter lido e pontuado coisas essenciais no projeto
de pesquisa inicial deste trabalho, mas principalmente pela amizade e pelas tantas conversas
em mesa de bar.
Não poderia deixar de agradecer também a Angela Ventura Spinelli e Alan Knust,
minha mãe e meu pai, pela vida e pelo apoio às minhas escolhas, ainda que nem sempre as
compreendam.
Por fim, agradeço muito às professoras que acompanharam esta pesquisa. Ao
orientador Denilson Lopes, pelas referências, provocações e ideias muito importantes no
processo. À orientadora Eleonora Fabião, pela leitura e interlocução sempre sensíveis,
criteriosas e cuidadosas, mas também pelas aulas instigantes e inspiradoras, pela oportunidade
de performar junto com ela e outras parceiras em azul, azul, azul e azul, pela acolhida em sua
casa em Nova York e, sobretudo, pela amizade. À Adriana Schneider, pelos debates ricos e
calorosos no curso de Arte e Política, pela força durante todo o período do mestrado, pelo
apoio e pelas colocações pertinentes e pontuais no exame de qualificação. À Angela Donini,
também presente na banca de qualificação, por dissipar cortinas de fumaça – que foi a
6
imagem que me veio enquanto você falava –, fazendo com que eu pudesse ver melhor o
trabalho. Agradeço também às professoras Luiza Leite e Dinah Cesare, que dão aula como
quem encontra amigas para conversar e que, em seu curso Escrita e Performance, me
ajudaram a encontrar ferramentas preciosas sem as quais este texto não seria possível.

7
Sumário

– Movimento 1: Abertura – Carta à leitora ...............................................................................9

– Movimento 2: Ferida – Carta a Jota Mombaça .....................................................................35

– Movimento 3: Cuidado .........................................................................................................50

– Movimento 4: Ancestralidade ...............................................................................................65

– Movimento 5: Despossessão ................................................................................................79

– Referências Bibliográficas ....................................................................................................94

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Movimento 1: Abertura – Carta à leitora

Rio de Janeiro, maio de 2017 – janeiro de 2018.

Cara leitora1,

Reinicio esta carta, cuja versão atual já é a terceira ou quarta, tentando projetar para
você um corpo, mesmo sabendo ser esta uma tarefa impossível. Passam pela minha lembrança
algumas pessoas que sei ou acho que irão ler estas palavras, mas me esforço para atravessá-las
e imaginar aquela leitora que eu não poderia supor que chegaria até aqui, aquela que nem
mesmo sei quem é, com quem nunca estive numa mesa de bar e com quem nunca cruzei na
rua. Nessa busca pelo impossível, não recebo imagem ou percepção de nenhum aspecto físico
ou psíquico seu. No entanto, desde o momento em que me propus a imaginar para você um
corpo, iniciou-se em mim uma certa inquietação, uma turbulência densa e grave, o peito
ecoando, os membros vibrando. Percebo então que posso, mais uma vez, começar. A
iminência do encontro está dada. Tenho um corpo e você também, apesar de provavelmente
não estarmos nos vendo agora; apesar também do tempo presente em que escrevo estas
palavras e aquele em que você as lê não coincida. Projeto meu próprio corpo para esse
encontro futuro e, ao fazê-lo, sinto arderem as feridas que me constituem, em especial aquelas
que nunca se cicatrizam.

Eu que habitei uma forma desparelhada ao meu desejo, eu cuja carne se tornou uma
colagem de peças anatômicas incongruentes (...) Convido-lhes a interrogar sua
natureza como eu tenho sido forçada a enfrentar a minha. Eu desafio-lhes a correr o
risco da abjeção e então florescer, como eu fiz. Guardem minhas palavras e talvez

1 Escrevo a partir de uma perspectiva feminista e, por esse motivo, toda ocorrência semântica de sujeito
indefinido ou plural será feita no feminino com o objetivo de desestabilizar o efeito universalizante do uso do
masculino nessas ocasiões pela norma culta da língua portuguesa.
9
vocês descubram as costuras e suturas em vocês mesmas.2 (STRYKER, 2011, p. 86,
minha tradução).

Este é, em uma cronologia sugerida, o primeiro texto deste trabalho de dissertação, e


tem como objetivo oferecer um prelúdio aos demais textos. Ele é também um convite para
que você adentre esse microuniverso fragmentado, constelação parcial de afetos, fatia
destacada do arquivo que é meu corpo e daquilo que pude escavar dele e de outros corpos
com os quais interagi no último um ano e pouco, enquanto escrevia este trabalho. Entendo o
desenvolvimento desta pesquisa como um processo vivo e indissociável das minhas
subjetivações e que contém em seu interior procedimentos e estratégias de aderência à vida e
de resistência aos sistemas de dominação.
Mais objetivamente, esta carta quer apresentar e introduzir a pesquisa, tanto a nível
íntimo, biográfico e afetivo – que, como veremos, são aspectos fundantes de seu modo de
operação –, quanto a nível teórico, o que faz com que se entrelacem aqui diferentes tipos de
textualidades. A imbricação entre esses modos é, talvez, o maior desafio lançado pelas
escolhas formais que fui fazendo no decorrer da escrita e, nesse momento, ainda que ao
menos a primeira versão de todos os textos que compõem o trabalho já exista, sinto-me ainda
buscando, no ato mesmo de escrever, um certo equilíbrio inalcançável entre os diferentes tons
e formatos aqui presentes. Com isso em mente, peço que considere durante a leitura o caráter
experimental deste texto, que abrange não apenas as formas da escrita, mas também seus
métodos de pesquisa e conteúdos.

Os questionamentos e reflexões que procuro esboçar aqui tiveram início quando


comecei a fazer performances e, não por acaso, quase simultaneamente iniciei de forma mais
afirmativa e consciente um processo de desidentificação ao gênero que me foi atribuído ao
nascer. Ou, nos termos instituídos pelos saberes/poderes médicos e psiquiátricos, iniciei uma

2 Tradução livre para: “I who have dwelt in a form unmatched with my desire, I whose flesh has become an
assemblage of incongruous anatomical parts [...]. I call upon you to investigate your nature as I have been
compelled to confront mine. I challenge you to risk abjection and flourish as well as have I. Heed my words, and
you may well discover the seams and sutures in yourself.” (STRYKER, 2011, p. 86).
10
transição de gênero. Esta co-incidência entre a prática performativa e o início dos trânsitos de
gênero se dá, acredito, pela capacidade que a performance pode ter de acessar saberes e
desejos do corpo que são sistematicamente soterrados por sofisticadas tecnologias de poder.
Assim, as relações entre performance e gênero, em especial no que refere à
experiência trans3, configuram uma das principais encruzilhadas desta pesquisa, tanto no que
diz respeito aos campos teóricos referenciados, quanto em minha pesquisa artística em
performance, que tem sido desde o início atravessada por problemáticas de gênero.
Para tentar explicar como venho entendendo essas questões em minha prática, faço
agora um exercício retrospectivo e convido vocês a lerem/ouvirem a história do primeiro
trabalho que desenvolvi em performance, no ano de 2012, junto à artista Bia Figueiredo, o
qual nomeamos Inventário.
Desenvolvemos a pesquisa no programa de residências 20MINUTOS.MOV, que na
época acontecia no espaço Cafofo Couve-Flor, em Curitiba, e que hoje já não existe, mas que
por alguns anos foi um dos principais espaços de prática e pesquisa em dança e performance
daquela cidade. Durante três meses, nós trabalhamos no estúdio do Cafofo durante dois dias
da semana. Nesse tempo, reunimos toda nossa escrita íntima: cadernos, anotações, bilhetes,
diários e cartas que havíamos recebido e escrito durante toda a vida. Além disso, recebemos
através de uma convocatória pública mais um grande número de cartas escritas e recebidas
por outras pessoas. Em nossos encontros de trabalho nós experimentávamos com esse
material e com nossos cabelos que havíamos recém-raspado. Nessas experimentações,
perseguíamos o que chamávamos então de corpo afetivo, sem ter nessa época exatamente uma
consistência de conceito, mas que entendíamos como um corpo capaz de afetar e ser afetado
pelo outro. O modo como nos relacionávamos com aquelas escritas íntimas, penso hoje,
funcionava como ativador de um estado que, através das ações que finalmente dividimos com
o público, buscávamos expandir.
Inventário era assim: enquanto o público adentrava o espaço, Bia, de costas para os
presentes, lentamente movia os músculos das costas e do abdômen de modo que a camiseta
larga que usava caísse lentamente aos seus pés. Então ela se deitava com as costas no chão e a
cabeça repousada em um emaranhado de cabelos e ria. Ria por muitos minutos, ria alto,
gargalhava. Até que sua face enrubescesse e lágrimas escorressem, até que o som do riso

3 Escolhi usar apenas o prefixo “trans” para me referir às experiências dissidentes de gênero por ser um termo
mais aberto que “transexual” ou “transgênero”, termos biopoliticamente marcados pelos saberes médicos e psi.
Quando digo trans, me refiro a uma gama de experiências distintas entre si que têm em comum a não
identificação com o sexo/gênero designado a um indivíduo no momento de seu nascimento.
11
parecesse agonia. (Enquanto rememoro, o ritmo sonoro deste riso vibra na minha caixa
torácica.) Ao mesmo tempo em que Bia ria, eu ficava na lateral da cena escrevendo breves
cartas aos presentes, que colocava em pequenos envelopes amarelos e entregava em seguida.
Tratava-se de uma escrita direcionada e elaborada no momento. Pequenas frases que
poderiam remeter à relação que eu tinha com a pessoa em questão ou sobre como esta pessoa
me afetava naquele momento. Na sequência, Bia vestia novamente a camisa e ocupava meu
lugar, realizando a mesma ação de escrita, e eu me direcionava mais ao centro do espaço com
um balde amarelo cheio de água. Ajoelhava-me em frente a ele e depois de inspirar e expirar
rápida e ritmadamente, enfiava a cabeça ali, onde permanecia por quanto tempo eu
aguentasse. Depois de emergir, muitas vezes em um movimento brusco, eu olhava o público
por longos instantes e então repetia a operação. Hiperventilação. Apneia. Mergulhar e retornar
transformado. Olhar recíproco. Da plateia, apreensão. Na quarta ou quinta vez, quando eu não
suportava mais a falta de oxigênio, em vez de levantar a cabeça, eu levantava o braço e
emergia apenas quando Bia vinha até mim e o tocava. Ela, então, secava meu rosto com as
mãos delicadamente (lembro muito do toque) e colocava sobre meu rosto uma barba
prostética, que havia sido confeccionada com os fios do meu próprio cabelo raspado. De
frente uma para a outra, nós despíamos nossas camisas e nos posicionávamos como na
imagem a seguir.

Imagem 1: “Inventário”
12
Posicionadas assim, eu olhava o público enquanto Bia segurava seu emaranhado de
cabelos na frente do rosto e ia, aos poucos, movendo os dedos e deixando cair sobre meu
corpo ainda molhado tufos e fios que se desprendiam, criando assim mais uma prótese de
pelos sobre meu ombro, peito e barriga. Com o desmanche do emaranhado, o seu olhar era
desvelado e então as duas olhávamos o público. Na sequência saímos da sala.
Bem, o que posso dizer por agora é que vestir e olhar a mim mesmo com essas
próteses e experimentar seu acoplamento ao meu corpo teve um efeito impactante e
transformador na minha autoimagem. Essa prática me fez acessar um desejo, antes soterrado
pela rigidez social do sistema binário de gênero, que tem como um de seus modos de ação a
invisibilização de experiências transmasculinas. Apesar de desde a adolescência me
apresentar como o que é frequentemente visto como uma “mulher masculina”, antes dessa
performance eu sequer vislumbrava a possibilidade trans. Mas ali eu entendi, a princípio de
forma bem conturbada, que essa imagem movimentava em mim subjetividades que iam além
de seu estatuto estético ou função em certa medida ficcional naquele contexto cênico. Não que
tal desejo fosse inédito ou sem precedentes, mas me foi possível, no decorrer do processo de
elaboração dessas ações e imagens junto com a Bia, formulá-lo por via da performance para,
então, maturá-lo intimamente. E, junto com autoras que busquei ler a partir daí, encontrar uma
possível inteligibilidade, mesmo que a princípio teórica e não aplicável a todos os contextos
sociais em que eu transitava.
Nessa época eu pouco sabia sobre teoria feminista, estudos de gênero ou mesmo sobre
performance. Até onde eu entendia, aquele trabalho era uma aventura artística que empreendi
a convite de Bia, uma artista da dança que também recentemente começava a se interessar por
performance. Eu era, então, uma estudante de cinema interessada por questões do corpo e dos
afetos na perspectiva de quem produz imagens de outros corpos. Naquela altura, eu mantinha
uma posição em que o meu próprio corpo estava bastante menos implicado. Fato é que fazer
aquela performance mudou drasticamente minha relação com o fazer artístico e me trouxe
uma série de problemas instigantes que não me ocorriam enquanto cineasta em formação. Ela
me fez experimentar um tipo de potência transformadora que, na minha experiência, foi
inaugurada ao trabalhar com meu próprio corpo, em especial no momento específico em que a
ação se desenvolvia junto ao público.
Os problemas que passaram a me perseguir a partir daí eram relativos aos trânsitos
entre arte e vida, em especial no que se relaciona às questões de gênero. Em busca de, mais
que resolvê-los, tentar elaborar com mais afinco tais questões, por mais ou menos dois anos

13
antes de fazer um novo trabalho em performance dediquei-me a estudar de forma autônoma
sobre a arte da performance e sobre gênero.
Dentro do campo dos estudos de gênero, interessei-me especialmente pelo feminismo
e pela teoria queer. Foi aí que o livro Problemas de Gênero, da filósofa feminista
estadunidense Judith Butler, caiu no meu colo feito uma bomba que implodiu tudo o que eu
entendia sobre o assunto e, consequentemente, sobre as minhas já conturbadas (ou troubled,
para referenciar o título original do livro de Butler: Gender Trouble) subjetivações. Ali, se
não me engano, li pela primeira vez a palavra performatividade, conceito que Butler se
apropria da teoria linguística do britânico J. L. Austin sobre os atos de fala (sem, no entanto,
citá-lo neste livro4) para então formular a noção de “performatividade de gênero”.
De forma resumida, Butler argumenta que o gênero é performativo, pois é produzido
pela repetição de atos corporais autorreferenciais, isto é, gestos estilizados que não
reproduzem uma matriz original ou essência anterior ao próprio ato. O gênero, diz ela, “é a
estilização repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura
reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma
substância, de uma classe natural de ser” (BUTLER, 2003, p. 59).
Tal formulação vai além do reforço à máxima da teoria feminista desde Beauvoir, a de
que o gênero é uma construção social – não se nasce mulher, torna-se. Numa complexa
argumentação em diálogo com o feminismo, a psicanálise, a filosofia e a ciência política,
Butler demonstra que a construção do gênero não se dá através de um processo exterior ao
corpo sexuado, ou seja, o corpo não é matéria neutra sobre a qual a cultura inscreve a
identidade, mas são os próprios atos corpóreos que performativamente produzem o gênero,
sendo este o mecanismo que garante a naturalização da diferença sexual. Para Butler, os atos
performativos corporais não precedem de um sujeito, ou um ‘eu’, mas são eles que constroem
o sujeito enquanto tal, uma vez que não existe sujeito antes de sua generificação.
Neste sentido, sexo e gênero voltam a ser equivalentes, não mais no sentido
essencialista de que uma determinada anatomia genital equivale a um determinado gênero,
mas, ao contrário, no sentido de que não existe função ou diferença anatômica tal qual
julgamos conhecer sem a produção performativa do gênero, uma vez que é esta produção que

4 Curiosamente, Butler não chega a mencionar Austin, apesar de operar com o conceito de performatividade
seguindo a lógica proposta por ele. Em seu livro seguinte, Bodies that Matter, onde a autora aprofunda melhor as
proposições de Gender Trouble, ela finalmente faz referência ao linguista.
14
territorializa a anatomia com uma função compulsoriamente reprodutiva, heterossexual5 e,
sobretudo – e aqui faço um adendo desde uma perspectiva trans – cisnormativa6.
Tendo entrado em contato com essas ideias, intrigava-me, especialmente, como o
conceito de performatividade carrega um tipo de ambivalência entre o real e o fantasioso. Isso
porque, naquele momento, a argumentação de Butler sobre o modo como o gênero é
performativamente produzido abriu uma brecha para que eu pensasse nele como um tipo de
fantasia coletiva socialmente aceita como realidade. Essa questão se complexificava quando
eu tentava traçar um paralelo com sua operatividade em performances artísticas, que são
eventos “criados” por artistas. Por mais relacional que seja uma ação, ao menos sua estrutura
inicial é imaginada e proposta por alguém. Foi justamente esse ponto que abasteceu a primeira
proposição de projeto de pesquisa, com o qual ingressei no curso de mestrado. Naquele
projeto, a minha pergunta era referente a um possível uso da ficção como metodologia de
criação de programas performativos7. Eu estava me perguntando se era possível criar
programas que se utilizassem da ficção como ferramenta metodológica para produzir
realidades outras.
Ora, mas não se trata, na verdade, do modo como a realidade é performativamente
produzida? Hoje me parece que colocar a dicotomia real/ficcional como centro de uma
pergunta dirigida ao performativo seria, na verdade, distanciar-se de sua maior potência
enquanto ferramenta criativa e política, já que uma das características do performativo “é
desestabilizar e mesmo colapsar oposições binárias”8 (FISCHER-LICHTE, 2008, p. 25,
minha tradução), tornando possível a proposição de ações que operem por meio das frestas
dessas supostas polaridades.
Hoje me parece que essa questão estava formulada a partir de um entendimento ainda
incipiente dessas teorias, que me inquietavam, também, porque não conseguia entendê-las o
suficiente. Acredito que um dos motivos dessa dificuldade no meu processo de entendimento

5 Em relação à heterossexualidade compulsória, Butler se refere à Monique Wittig, que anteriormente


desenvolveu o argumento de que a produção da diferença sexual/de gênero se dá com base na normativa
heterossexual. Para uma leitura mais detalhada, ver WITTIG (2010).
6 O prefixo cis se refere ao que teóricas trans têm definido como cisgeneridade, isto é, as experiências de gênero
em que a autoidentificação e/ou enunciação de alguém coincide com o gênero que lhe foi atribuído no
nascimento. Este termo é motivo de grande debate dentro dos estudos de gênero e escolho utilizá-lo de modo a
fazer uma marcação política sobre esse grupo não marcado. Mais que um novo binarismo, trata-se de uma
mudança de perspectiva no interior de um esquema binário já existente que, sem essa marcação, garante a
existência de pessoas trans como os outros construídos a partir de uma suposta matriz natural – a cisgênera.
7 Utilizo-me aqui da noção de “programa performativo”, desenvolvida por Eleonora Fabião (2013, p. 4): “o
programa é o enunciado da performance: um conjunto de ações previamente estipuladas, claramente articuladas
e conceitualmente polidas”. Ver mais em FABIÃO (2013).
8 Tradução livre para “to destabilize and even collapse binary oppositions” (FISCHER-LICHTE, 2008, p. 25).
15
do termo foi certa tendência que passei a observar em muitas autoras dos estudos da
performance, que utilizam da palavra “performativo” sem referenciar sua genealogia
conceitual e muitas vezes a empregam simplesmente como “aquilo que se refere à
performance”, criando certa nebulosidade para uma leitura interessada na forma como esse
conceito de fato opera nesse campo.
Entendo agora que a performatividade pode ou não ser intencionalmente acionada,
mas que seus efeitos em ambos os casos só se dão no momento presente de sua atuação.
Depois de ter aprofundado um pouco a pesquisa desse termo, penso que a contribuição de
Butler à discussão sobre performatividade se aplica largamente aos estudos da performance,
mesmo que a autora nem sempre seja referenciada. Até onde entendo, Butler foi responsável
pela ampliação da operatividade do conceito, uma vez que ela se dedica a analisar como ele
age no próprio corpo, e não apenas nos enunciados verbais performativos – aqueles que além
ou ao invés de comunicar uma ideia, realizam uma ação (os “atos de fala” de Austin).
A percepção de que o corpo por si só é performativo amplia a atuação desse conceito
na análise e elaboração de performances, que em sua grande maioria centralizam o corpo, e
não o texto, como suporte da obra de arte e como produtor de discursividades e saberes.
Houve um texto em específico que me ajudou a desamarrar muitos nós. Erika Fischer-Lichte,
teórica da performance alemã, fugindo à tendência que observei do uso do conceito de
performatividade como dado, dedica um capítulo de seu livro The Transformative Power of
Performance, ainda sem tradução para o português, a ele. Intitulado como Explicando
conceitos: performatividade e performance9, o capítulo referencia principalmente Austin e
Butler para realizar um tipo de dissecação genealógica do termo, de modo a instrumentalizá-
lo em favor do que ela propõe como uma “estética do performativo”. A autora aponta que “a
definição de Butler requer uma modificação no que se refere a uma estética do
performativo”10 (FISHER-LICHTE, p. 28, minha tradução). Tal estética, segundo ela, pode
ser definida justamente pela autorreferencialidade, o que significa que é no decorrer da
própria performance que seus sentidos são produzidos coletivamente pela artista que performa
junto com todas as presentes.
Outro aspecto interessante apontado por Fischer-Lichte é que “tanto Austin quanto
Butler aparentemente veem performance como o epítome do performativo, ainda que nenhum

9 Explaining concepts: performativity and performance. In: FISCHER-LICHTE, op. cit. p. 24-46.
10 Tradução livre para: “Butler’s definition requires further modification with regard to an aesthetics of the
performative.”
16
deles elucide a noção de performance”11 (FISCHER-LICHTE, 2008, p. 29, minha tradução).
Ou seja, as autoras tomam o significado de performance como implícito, do mesmo modo que
várias autoras do campo da performance fazem com a noção de performatividade. Esta dupla
omissão faz com que os conceitos interajam de diferentes formas nos diversos textos em que
são usados em ambos os campos e, ao menos no meu próprio esforço em entendê-los, causem
confusão entre seus possíveis sentidos. Vocês percebem que sem um devido cuidado, pode
haver uma armadilha em entender performance e performatividade como sinônimos, ainda
que eles estejam evidentemente relacionados? Só a palavra performance é usada, dentro dos
estudos da performance, para denominar eventos totalmente distintos, desde ações em galerias
a rituais religiosos e protestos políticos. Por isso também me incomoda como uma leitura
rápida de Butler pode gerar a formulação de que “gênero é performance”, o que é bastante
diferente de dizer que ele é performativamente construído.
Eleonora12, a noção de programa performativo que você propõe pode ser, neste
sentido, um tipo de solução prática para a questão da intencionalidade do performativo na
arte, não acha? Pois quando passamos a chamar nossas práticas de programas, já se
subentende que se tratam de ações intencionalmente programadas enquanto tal. O programa
performativo funciona como um ativador do modo de operar do performativo, estou certo?
Pois acho que antes mesmo de conseguir entender melhor essa problemática teórica, li seu
texto Programa Performativo: o corpo em experiência13 e reconheci ali uma ferramenta de
ordem prática que me encorajou a voltar, agora por iniciativa própria, a experimentar com a
performance enquanto prática artística.

O que é importante para mim pontuar a partir das questões que levantei até aqui (e
perdoe-me se para me fazer entender talvez já tenha me estendido demais) é que os programas
que realizei na sequência começaram a levantar ainda outras questões. Por isso respire fundo,
devo alertá-la que o que houve até aqui foi um preâmbulo, um desate de alguns nós que,

11 Tradução livre para: “both Austin and Butler seemingly view performance as the epitome of the performative,
even if neither of them further elucidates the notion of performance.”
12 Refiro-me aqui à performer e pesquisadora Eleonora Fabião, que foi orientadora desta pesquisa.
13 FABIÃO, 2013.
17
acredito, por muito tempo me impediram de acessar outras questões mais atuais e presentes no
meu trabalho e na minha vida.

Pois bem: em 2014, tendo já elaborado comigo mesmo a minha autoenunciação


enquanto pessoa trans, propus, dentro de uma oficina ministrada pela artista Fernanda
Magalhães, o primeiro programa performativo (aqui já entendido nestes termos) de Gordura
Trans, projeto continuado em performance que desenvolvo até hoje. O encontro com
Fernanda se deu na Casa Selvática, espaço em Curitiba gestionado por artistas e que foi,
naquele momento, de importância crucial na minha experimentação artística e de vida.
Fernanda também desenvolve um projeto continuado, Natureza da Vida, em que fica nua em
diversos espaços, a maioria públicos, exibindo seu corpo de mulher gorda e posando para
fotografias, que posteriormente são expostas. Gosto que esse trabalho tenha nascido ali, na
verdade de última hora, no contexto de uma oficina que ela ministrava. No último dia do
curso, estavam programadas algumas ações que faríamos coletivamente, dentro de um ônibus.
Eu tinha já guardada a vontade de fazer um trabalho com esse título e esse espaço em
específico, que é particularmente hostil aos corpos gordos, com suas roletas e bancos
apertados, que me levaram a pensar o primeiro programa do projeto. Era também muito forte
a referência da performance Pancake, da Márcia X., em que a artista se cobre com leite
condensado e confeitos coloridos, que caem sobre sua cabeça, corpo e sobre uma bacia de
metal.
Gordura Trans começou a ser feito já abastecido por algumas das teorias que
apresentei anteriormente e pela troca com artistas como Fernanda, o que resultou em uma
percepção política do meu próprio corpo muito mais aguçada. Se a elaboração de Inventário
funcionou como uma via de acesso a certos desejos através da produção do que chamávamos
então de corpo afetivo, em Gordura Trans aqueles desejos já haviam encontrado lugar no
meu corpo. A elaboração do programa performativo desse trabalho já continha em si algo de
afirmativo, algo que não mais procura nem pondera, mas declara: esse é meu corpo, conheço
seus atributos e as implicações políticas dele. O que eu desejava com essa proposição era
ativar, através da ação, um evento/situação/contexto performativo em que fosse possível
compreender melhor a construção relacional do estatuto de abjeção do meu corpo, isto é, “sua

18
inaceitabilidade por códigos de inteligibilidade” (BUTLER, 2002) e, assim, desnaturalizar os
sistemas que o constituem enquanto tal.
gordura trans #1 – ação que foi logo intitulada seguida de uma numeração porque
entendida desde o início como work in progress seriado – aconteceu assim: Eu, vestido com
um maiô, de pé dentro de uma bacia de metal, fui coberto por um litro de óleo de soja,
despejado sobre minha cabeça pelo artista Ricardo Nolasco, no fundo do último vagão do
ônibus biarticulado Santa Cândida/Capão Raso, que cruza a cidade de Curitiba de norte a sul.
A performance foi programada estrategicamente como uma ação rápida, com não mais de
cinco minutos, tempo que o ônibus leva para percorrer duas estações, já prevendo possíveis
problemas com a empresa de ônibus ou outras autoridades.
Coberto de óleo e quase imóvel, eu tentava olhar os presentes através da película que o
líquido corrente formava na frente dos meus olhos. Os passageiros, que em sua maioria já
haviam se afastado de mim no momento em que despi o vestido que usava por sobre o maiô,
aparentavam muita curiosidade diante da ação. Tentavam olhar, mas desviavam a mirada no
momento em que a cruzavam com a minha.

eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora

quem está por fora


não segura
um olhar que demora

de dentro de meu centro


este poema me olha

(LEMINSKI, 2013, p. 35).

A partir daquela primeira experiência no ônibus, realizei ações com muitos materiais
gordurosos (gordura vegetal hidrogenada, azeite de dendê, graxa azul, manteiga, spray
culinário, banha, manteiga de amendoim, chantilly, óleo de soja, óleo de babaçu, margarina,
maionese, sebo bovino, azeite de oliva) predominantemente em espaços institucionais:
museus, galerias, universidades e centros culturais. O motivo desta migração se deu
19
principalmente por já na ação seguinte, gordura trans #2, eu ter começado a trabalhar com a
nudez e com durações um pouco mais longas, elementos que combinados não seriam
possíveis em espaços públicos. Naquele momento eu não poderia prever que, dentro das
instituições de arte, estava talvez mais seguro em relação a possíveis violências física contra
meu corpo nu, no entanto estava ainda exposto a outros tipos de violência (assunto que
proponho desenvolver a seguir nesta pesquisa).
Cada uma das ações foi diferente das outras em vários aspectos, não só pela mudança
do material gorduroso de uma para outra, mas porque, sendo o programa uma estrutura aberta,
a minha movimentação e relação com o público depende de uma infinidade de aspectos
relativos ao contexto tanto material (como a arquitetura dos espaços onde as ações
acontecem), quanto subjetivo. Uma tendência geral que percebo em relação a essa primeira
ação foi um crescente interesse pela exploração do espaço através do movimento corporal, o
que não se deu dentro do ônibus. Além disso, considero que existem duas ações centrais e
comuns a todos os programas: o besunte com gordura, que comecei desde a ação #3 a fazer
quase sempre sozinho, e que passou a ser longa e minuciosamente explorado, e a de olhar
diretamente para o público, lembrando que essa busca pelo olhar recíproco também fazia
parte de Inventário.
Tendo feito essas ações várias vezes entendi que, em primeiro lugar, a nudez tem
dupla função: afirmar o corpo tal qual ele é em sua crueza despida de próteses externas e
ativar, logo de cara, um estado de vulnerabilidade compartilhado. Essa escolha é
especialmente importante no que concerne o corpo gordo, uma vez que sua nudez é
socialmente velada. Os discursos que recaem sobre a gordura corporal vão além da
patologização. Pessoas gordas são levadas a esconderem seus corpos sob vestimentas largas e
escuras, a se envergonharem deles, culparem-se por eles. Na maioria dos contextos, e aqui
falo desde minha experiência, as pessoas têm até mesmo dificuldade de mencionar a própria
gordura ou a das outras como existente, um dado perversamente irônico, uma vez que ela,
enquanto volume, é impossível de não ser percebida ou totalmente ocultada. Trata-se da
invisibilização discursiva de um dado que materialmente é impossível de ser invisibilizado.
Isto leva ao segundo ponto: cobrir-se de gordura funciona como ação afirmativa. Lembro-me
de, desde a primeira ação, entender esse ato como uma tentativa de inaugurar um novo terreno
relacional que parte do reconhecimento conjunto deste aspecto enquanto diferença. Nesse
sentido, a busca pelo olhar é uma espécie de convite de reconfiguração da percepção do
corpo. É como se eu dissesse “estou diante de você, nu e coberto de gordura, como nos
relacionamos a partir daqui, agora que você pode ver este corpo?.”
20
Entendendo a questão do olhar como um convite à relação e, também, como um
dispositivo afetivo, quero contar sobre mais uma ação desse projeto, que realizei em 2017. Em
fevereiro daquele ano estive em Cuiabá para o evento Políticas Culturais: Diversidades e
Direitos, no SESC Arsenal, onde performei gordura trans #13 / gordura localizada #5. Esta
ação integra uma segunda contagem dentro da série maior Gordura Trans, as “gorduras
localizadas”, nas quais a escolha do material é feita em diálogo com o contexto geopolítico
local. Nesta ação utilizei sete garrafas de óleo de soja e uma de óleo de babaçu, levando em
consideração que o Mato Grosso é o maior produtor de soja do Brasil, e que o óleo de babaçu,
segundo a vendedora do mercado público de Cuiabá, é extraído artesanalmente por povos
indígenas. Os materiais, assim, trazem em si uma problemática muito maior que a do corpo
individualizado. A expansão dos latifúndios destinados ao cultivo de soja no Mato Grosso
coloca os grupos indígenas em situação de vulnerabilidade constante, sendo expulsos de suas
terras, quando não dizimados, em favor da indústria agrícola.
Em um debate que aconteceu no dia seguinte à performance, uma mulher tomou a
palavra e disse o seguinte, que cito de memória:

Peço desculpas pela forma simples como vou falar, mas eu queria te parabenizar e
dizer que fiquei muito impressionada com a performance. E não foi por você estar
nu, pela forma como seu corpo é ou por você ter se coberto de óleo. O que me
impressionou foi que você nos olhava nos olhos. Eu ficava me perguntando o que
você estava pensando sobre nós quando nos olhava e o que você sentia.

Como mencionei, o programa de Gordura Trans é muito simples: nu, me cubro com
algum material gorduroso e experimento a corporalidade que o material, o espaço, o chão e
sobretudo o público incitam em mim. Há, no entanto, uma segunda ação, talvez tão ou mais
importante que o programa em primeiro plano: a de olhar diretamente para as pessoas
presentes, uma a uma, quando possível para todas elas, mais de uma vez. Deixo-me penetrar
pelo olhar das outras e, ao fazê-lo, divido com elas a responsabilidade pelo acontecimento
performativo e pelo meu corpo, por como ele é percebido e pelos discursos e práticas em
grande parte violentos que recaem sobre ele enquanto corpo gordo transmasculino.
O material, em contato com o linóleo do chão, criou uma superfície extremamente
escorregadia, de modo que, ao me movimentar, quase caí muitas vezes. Uma outra mulher me
abordou depois da performance para dizer que isso havia causado nela muita aflição e que o
seu grande desejo era me segurar para que eu não caísse, ao que eu respondi: mas eu não caí,
você me segurou. E era verdade, sem metáfora alguma. Ela me segurou porque um olhar de
cuidado afeta o corpo, contribuindo na sua capacidade de transitar por terrenos escorregadios.
21
Angela14, você estava lá nesse dia, com Camila15. Lembro-me de ter sentido, ao olhar
para vocês, uma cumplicidade muito grande e acho que não é porque seus rostos me eram
familiares, mas porque vocês estavam, de fato, presentes, estavam comigo. Isso muda muito o
meu estado durante a ação, pois quando não consigo encontrar resposta no olhar das pessoas,
isso me perturba muito.
Lembro, por exemplo, de um homem presente em uma outra ação que em um
determinado momento abaixou a cabeça e não mais levantou até que a performance
terminasse. Eu várias vezes olhei insistentemente para ele, ao que ele não reagia. Depois
fiquei sabendo – porque ele havia ido junto com uma amiga em comum – que ele havia
afirmado que não conseguia olhar porque sentia que ao fazê-lo estava sendo muito violento.
Disse também que via em mim um grande sofrimento. Esta formulação é, para mim, muito
curiosa porque, em geral, sinto muito prazer ao fazer a ação – ainda que esteja ativando ali
memórias íntimas por vezes dolorosas, a ação em si não é sofrida. Mas entendo muito bem
quando ele diz do potencial violento do olhar. Trata-se de como, mesmo sem falar ou se
tocarem, os corpos se afetam. Talvez a vulnerabilidade que ativo com a ação tenha sido
insuportável para ele. No entanto, recusar-se a olhar é também uma forma de, pela negação,
participar do jogo de afetos ativados pelo trabalho e, portanto, participar da criação
intersubjetiva da performance enquanto evento político.
A situação criada pela performance evidencia e exemplifica a dinâmica de produção
performativa do real assim como a produção do estatuto de abjeção do meu corpo, que
também é performativamente reforçada (ou não) naquele momento, por meio de uma
negociação entre as presentes. Essa relação intersubjetiva dá acesso a uma outra camada do
presente e da própria realidade, na qual fica evidente que o momento se refaz constantemente,
sempre pendendo na corda bamba entre o eu e o outro: gume de lâmina afiada onde o extra-
ordinário se dá.
Essa linha finíssima que separa o eu do outro, e que é potencializada no evento
performativo, não é barreira de separação. A linha permite uma troca de fluxos corporais-
energéticos nos quais as subjetivações se dão em conjunto e de forma interdependente. Somos
o que somos num determinado momento porque quem está diante de nós são aquelas outras, e
é na/com as outras que produzimos a nós mesmas. A imagem dessa linha para mim é
reluzente e reflexiva, como o limite entre o espaço real e o virtual quando se está diante do

14 Angela Donini, pesquisadora e cineasta que generosamente participou das bancas de qualificação e defesa
desta dissertação.
15 Camila Bastos Bacellar, performer e pesquisadora.
22
espelho – situação descrita por Foucault para explicar sua teoria das heterotopias. O espaço
que vemos através do espelho é utópico: podemos vê-lo, apesar dele não estar ali, e ao mesmo
tempo heterotópico, uma vez que o espelho existe no real:

Do lugar em que me encontro no espelho apercebo-me da ausência no lugar onde


estou, uma vez que eu posso ver-me ali. A partir deste olhar dirigido a mim próprio,
da base desse espaço virtual que se encontra do outro lado do espelho, eu volto a
mim mesmo: dirijo o olhar a mim mesmo e começo a reconstituir-me a mim próprio
ali onde estou. O espelho funciona como uma heterotopia neste momentum:
transforma este lugar, o que ocupo no momento em que me vejo no espelho, num
espaço a um só tempo absolutamente real, associado a todo o espaço que o circunda,
e absolutamente irreal, uma vez que para nos apercebermos desse espaço real, tem
de se atravessar esse ponto virtual que está do lado de lá. (FOUCAULT, 1967).

Se levarmos em consideração aquilo que constitui os corpos para além de sua


produção de imagem, ou daquilo que neles é visível, será possível transpor a lógica do
espelho para o corpo da outra. Pois, ao olharmos para ele, percebemos através de uma
refinada sensibilidade o que de nós se reflete ali. Tal percepção implica em uma
“autorreconstituição” constante, uma vez que aquilo que entendíamos como nós mesmas é
transformado por essa outra presença. Para mim, é isso que acontece no momento da
performance – um tipo de jogo reflexivo de afetos. Ao mesmo tempo em que os olhares e a
presença do público interferem diretamente na minha performatividade corpórea, também o
meu corpo oferece um espelho ao outro, que é levado a reelaborar suas percepções políticas
sobre o corpo diante deles e sobre si mesmos.
Nesse sentido, podemos dizer que a performance cria uma arena de responsabilidade
ética16, onde a presença do corpo da performer é renegociada junto ao corpo do público. No
caso dessa ação – cujo programa destaca os atributos físicos do meu corpo, tidos como abjetos
pela “normalidade” – é revelada a construção relacional e micropolítica desse estatuto de
abjeção, isto é, os presentes se tornam responsáveis por sua própria percepção daquele corpo
e, consequentemente, por como o corpo é afetado por tal percepção. Quando a primeira
mulher ressalta a reciprocidade do olhar, ela sugere ter sido surpreendida pela necessidade de
repensar como o olhar dela fazia com que eu me sentisse, chamando para si a
responsabilidade do potencial afetivo da sua própria presença. Já o diálogo com a segunda
mulher aponta para uma efetivação desta responsabilidade compartilhada, que só é possível
porque o corpo é “inacabado, ou ainda, inacabável, provisório, parcial, participante – está,

16 A pesquisadora Ana Bernstein usa esta expressão para descrever a situação criada na performance Ritmo 0, de
Marina Abramovic. A artista dispôs uma série de objetos para que o público usasse em seu corpo como bem
entendesse. Para mais detalhes, ver: BERNSTEIN, 2001.
23
incessantemente, não apenas se transformando, mas sendo gerado” (FABIÃO, 2008, p. 238)
por todas as presentes.
A mim, parece que essa geração constante e compartilhada do corpo no contexto da
performance prescinde de uma vulnerabilidade própria ao estado performativo que pode ser
acessada por diferentes mecanismos (ou programas). No caso de artistas que carregam a
marca da abjeção – seja por seu gênero, sexualidade, raça, classe, porte etc. – tal
vulnerabilidade ganha camadas sociopolíticas, uma vez que seus corpos experienciam
diariamente estados de vulnerabilidade social, fazendo com que o evento performativo se dê
como uma intensificação das situações cotidianas que, ali, podem ser “não apenas
transformadas, mas regeneradas” (FABIÃO, 2008, p. 238).
Neste sentido, a prática de Gordura Trans tem sido uma forma de experimentar e
entender como a performance pode operar como desestabilizadora do corpo que performa e
do meio onde atua, revelando os mecanismos normatizadores que agem na produção não
apenas das identidades, mas também das marcas de abjeção que determinados corpos
carregam.

Muitas são as questões que Gordura Trans levanta, por ter uma trajetória
relativamente longa, intensa e por já ter gerado uma multiplicidade de materiais, desde
registros fotográficos, textuais e relatos, até documentações de reações violentas e situações
extremas17 que já resultaram dele. Dito isso, gostaria que soubessem que muito embora eu
tenha consciência que um caminho talvez óbvio teria sido fazer dele o objeto principal desta
dissertação, escolhi elencá-lo apenas como um dentre outros trabalhos a serem tratados. Isso
porque, embora siga sendo importante e significativo em minha trajetória continuar a
desenvolvê-lo, é crescente meu interesse em desenvolver outros projetos e programas. Além

17 Em setembro 2015, em decorrência da terceira ação do projeto, gordura trans #3 / gordura localizada #1,
que aconteceu em Salvador no campus Ondina da UFBA, durante o II Seminário Internacional Desfazendo
Gênero, com azeite de dendê, fotografias de registro da performance foram publicadas na página do Facebook do
evento e, em seguida, massivamente compartilhadas acompanhadas de discursos predominantemente de ódio,
num efeito viral. Algumas pesquisadoras escreveram especificamente sobre este acontecimento, das quais
destaco aqui o artigo de Camila Bastos Bacellar, “Performance e Feminismos: diálogos para habitar o corpo-
encruzilhada”, e o capítulo “Gordura que não sai: análise da interação com imagens de registro da performance
gordura trans #3 / gordura localizada #1 do projeto Gordura Trans, de Miro Spinelli”, parte da tese de doutorado
de Caio Riscado, intitulada “Tese Bicha: marcas da abjeção na performance e no teatro performativo”, que foi
defendida no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UNIRIO em 2018.
24
do que, não me interessava fazer uma dissertação sobre um ou outro trabalho, mas sim fazer
com que a própria dissertação pudesse se dar, também, como um trabalho em performance,
um que fosse capaz de dialogar com este e outros trabalhos que venho desenvolvendo, mas
tivesse também a sua autonomia enquanto ação de escrita.

Assim, a proposição de base da presente pesquisa é a experimentação. E tenho


acreditado que é necessário fazê-la dentro da própria escrita deste trabalho, entendendo teoria
e prática como indissociáveis. Digo isso porque fui me aproximando cada vez mais de
questões referentes à própria escrita quando relacionada à prática performativa e, ainda,
quando investida na problemática do silenciamento e subalternização de discursos elaborados
desde posições compulsoriamente marcadas como outras pelas gramáticas do poder. Para
mim é impossível, uma vez dentro de uma instituição acadêmica, ignorar que a produção de
conhecimento não se dá numa zona neutra onde o valor político de um trabalho independe de
quem o elabora, quando, em que condições e onde.
Por isso, foi necessário desenvolver estratégias que considerassem os mecanismos de
subalternização de determinadas vidas, buscando assim desenvolver enunciados
performativos – sejam eles ações ou textos – que desestabilizem tal lógica.
Nesse sentido, proponho que a prática performativa, seja ela elaborada enquanto ação
corporal, seja quando implicada na escrita, ganha potência subversiva quando ativadora de
afetividades, que por sua vez só são possíveis por via da ativação de vulnerabilidades. Isto
porque, desse modo, essas práticas são capazes de desestabilizar as dinâmicas de
subalternidade a nível micropolítico, fazendo com que as envolvidas (performer, público,
autora e leitoras) reelaborem sua própria implicação ética dentro dos eventos ou textos.
Também, nos textos a seguir, em especial no próximo, proponho pensar as
implicações políticas e emocionais que a ativação de vulnerabilidades podem ter para corpos
que já são expostos a diversas situações que os vulnerabilizam por meio de violências
cotidianas, requisitando que a elaboração de ações que visam subverter as dinâmicas que os
subalternizam sejam elaboradas de modo mais complexo e estratégico. A vulnerabilidade por
si só não pode se configurar enquanto ferramenta se estiver dada, no interior das relações, em
apenas um sentido. O ponto de chegada não pode ser a vulnerabilidade por si só, mas a

25
capacidade dessas ações de, por via da vulnerabilidade, proporcionar um giro performativo na
direção em que essas forças se dão, redistribuindo as violências que elas produzem.

Tais formulações requisitaram a elaboração de uma metodologia diretamente


implicada nas questões e, em certa medida, indissociável delas, uma vez que apontam para
modos de fazer que permitam a ativação do performativo no interior da escrita. Assim, quero
considerar como primeiro aspecto metodológico do presente trabalho a relação entre corpo e
escrita, pois creio que não seria suficiente retornar à noção de performatividade da fala em
Austin, uma vez que o movimento teórico de articular este conceito ao corpo performativo é
central nesta pesquisa.
Relaciono a necessidade de implicar o corpo na escrita com o que Suely Rolnik (2013)
chama de “retorno do corpo-que-sabe”. Segundo a autora, esse corpo foi recalcado pela
modernidade ocidental em seu processo racionalista e colonizador. Ela argumenta ainda que
essa anulação é o principal dispositivo micropolítico de implementação desta cultura enquanto
hegemônica. Não por acaso, Descartes e seu método científico marcam a passagem para a
modernidade na ciência. Penso, logo existo. Nada mais moderno que a crença de que a
ciência, regida pela consciência racional do homem branco – que em Descartes é garantida,
em última instância, por Deus –, seria capaz de dar conta não apenas da própria existência do
homem, como de todo o universo. Enquanto isso, o corpo deixa de ser produtor de saberes
múltiplos para se tornar um território colonizável por normativas de gênero, raça, porte,
hábitos culturais e tudo mais que define o sujeito homem, branco, cis-heterossexual, europeu
(e mais atualmente estadunidense) como universal.
A performance, seja ela realizada enquanto prática artística, seja em seu sentido mais
amplo ligado ao conceito de performatividade e às viradas performativas ocorridas em vários
gêneros artísticos18, trabalha pela afirmação dos saberes do corpo. Seria, então, um
contrassenso operacional guiar uma pesquisa teórico-prática nesta área de acordo com
métodos e formas engessadas pelo cientificismo. A performance, inclusive, pode ser geradora
de ferramentas para outras áreas, como ressalta Jota Mombaça, performer e pesquisadora

18 Sobre as viradas performativas na arte, ver FISCHER-LICHTE (2008, p. 11-23).


26
brasileira inserida na área das ciências sociais, no artigo Rastros de uma submetodologia
indisciplinada.

[...] como ativar esse corpo-que-sabe, pervertendo assim a corpo-política da


produção de conhecimento como está configurada no âmbito da ciência colonial?
São essas questões que movem minha submetodologia indisciplinada mais em
direção aos estudos da performance arte que às regras do método sociológico.
(MOMBAÇA, 2016a, p. 348).

Para Rolnik, o “corpo-que-sabe” seria

[…] a potência do corpo que consiste em ser vulnerável ao outro como uma
presença viva, como um campo de força que me afeta, que produz efeitos, e que cria
uma espécie de espaço de alteridade em mim a partir do qual, se eu tiver essa
possibilidade, vou me reinventar, me sentir exigida a uma reinvenção. (ROLNIK,
2013).

Em outro contexto, esse último trecho poderia descrever uma performer enquanto
executa um programa. A arte da performance, por mais múltipla que seja, e por vezes
indefinível, em geral se caracteriza pela centralidade do corpo e pela conexão com o presente
e com a presença do outro, complexificando as dinâmicas de poder e produzindo, assim, a
potência própria às práticas performativas. Tal potência é efêmera, relacional e irreproduzível,
tanto imagética quanto textualmente.
É o que afirma a teórica da performance Peggy Phelan em seu livro Unmarked: the
politics of performance. Ela aborda a irreprodutibilidade da performance como uma questão
ontológica e, endereçando as teóricas e críticas da performance, argumenta que escrever sobre
uma performance é necessariamente modificá-la. Segundo a autora, esta transformação
inescapável dos eventos pela escrita não deve, no entanto, ser um impedimento para que ela se
realize:

O desafio levantado pelas reivindicações ontológicas da performance para a escrita é


o de novamente re-marcar as possibilidades performativas da escrita em si. O ato de
escrever em relação ao desaparecimento, ao invés de escrever para a preservação,
deve se lembrar que o efeito posterior ao desaparecimento é a própria experiência da
subjetividade.19 (PHELAN, 2006, p. 148, minha tradução).

19 Tradução livre para: “The challenge raised by the ontological claims of performance for writing is to re-mark
again the performative possibilities of writing itself. The act of writing toward disappearance, rather than the act
of writing toward preservation, must remember that the after-effect of disappearance is the experience of
subjectivity itself.” (PHELAN, 2006, p. 148).
27
Esta afirmação leva em consideração uma suposta disparidade ontológica entre
performance e escrita no que se relaciona à preservação da primeira. Phelan considera que o
desaparecimento é o que constitui a performance enquanto tal, uma vez que, enquanto
acontecimento, ela não pode ser documentada ou arquivada em sua totalidade. Na contramão,
Rebecca Schneider, no texto Performance Remains, demonstra, em um diálogo com Derrida,
que a noção de arquivo é fundante da cultura ocidental, e por isso não deve ser tida como
universal. Ela também afirma que o pressuposto do arquivo como condição para a produção
de verdade e para a valorização dos saberes é uma via pela qual atuam poderes hegemônicos e
coloniais, uma vez que sua lógica impossibilita as culturas orais, ou os saberes transmitidos
pelo corpo por via de rituais ou performances artísticas, por exemplo, de articularem-se como
verdades. Nesse sentido “o arquivo se torna um modo de governança contra a memória”20
(SCHNEIDER, 2012, p. 141, minha tradução). A autora, assim, argumenta que a noção de
performance ligada ao desaparecimento defendida por Phelan é um enquadramento da
performance na própria lógica que a limita.
Na sequência, ela apresenta uma polaridade entre ossos e carne, sendo o arquivo
equivalente aos ossos, que permanecem depois que a carne é decomposta pelo tempo, e a
carne às vivências efêmeras e relacionais, que por sua vez possuem sua própria história e
genealogia. Esta proposição permite que pensemos o corpo como arquivo da memória
coletiva e, ainda, a performance como um modo de acessar aquelas memórias sem
documentação correspondente, mas que se manifestam através de reaparições no corpo
relacional.
Essa perspectiva me parece bastante próxima do corpo-que-sabe em Rolnik, mas além
dessas noções, precisamos lembrar que não estamos falando de qualquer corpo (ou pior, de
um pretenso corpo universal), nem partindo de uma relação sujeito/objeto tradicional nos
métodos científicos padrões, em que é mais frequente observarmos a artista ou a pessoa trans
como objeto da pesquisa. Aqui, quando escrevo, sou também o próprio artista que desenvolve
os trabalhos artísticos colocados em questão, do mesmo modo que sou a própria pessoa trans
que se dedica a pensar as implicações de seu corpo nos processos artísticos e de vida.
Diferente da crítica de arte ou da antropologia mais tradicionais, a autoimplicação é inerente
ao processo em que nos debruçamos, pois o que tradicionalmente é objeto de pesquisa (a
artista ou a pessoa trans) passa a, ao menos formalmente, ser sujeito pesquisador implicado.
Distante de qualquer pretensão de neutralidade, aqui nos interessa justamente o contrário: a

20 Tradução livre para: “the archive became a mode of governance against memory” (SCHNEIDER, 2012, p.
141).
28
não neutralidade dos saberes localizados e contextualizados. A pretensão do neutro e do
universal, característica do cientificismo moderno, oculta o sujeito do discurso que, através
desse ocultamento, cria a si mesmo como hegemônico através da denominação de seus
objetos de estudo como outros.

Ao chegar a esse ponto da carta, imagino que você já possa perceber uma inquietação
com certos modos de se produzir conhecimento no meio acadêmico. Minha desconfiança e
desconforto, no entanto, não me garantiram terreno livre e fértil para trabalhar. Sem os sólidos
pilares das metodologias instituídas, com frequência senti que nada sustentava o chão
enquanto eu esboçava meus próximos passos. Além da frequente sensação de não adequação
a este meio, tive que enfrentar os meus próprios obstáculos. Se o desenvolvimento desta
pesquisa dentro de uma instituição acadêmica pressupõe uma certa rigidez no que diz respeito
à temporalidade dos prazos, por exemplo, quando os processos de escrita estão intimamente
ligados a processos de vida cuja velocidade não se pode controlar; por outro lado, com
frequência esbarrei com limites bastante internos, ou talvez com a minha compreensão
internalizada daquilo que deveria ser um texto acadêmico. Eu pensava: “preciso descolonizar,
primeiro, o escritor”, ou seja, descolonizar a mim mesmo diante do texto. Precisei insistir em
seu caráter experimental mesmo quando não poderia vislumbrar uma única sentença além
daquela em que eu estava escrevendo no momento. Eu não tinha estrutura, meu projeto inicial
já não movia em mim nenhum desejo, e a única coisa que me salvava do desespero era uma
esperança quase cega no inesperado, na inteligência interna do texto, naquilo que só poderia
aparecer justo porque eu não tinha planejamento rígido. Não que eu não tenha tentado traçar
um, muito também porque, nessa indefinição, o diálogo com as professoras que me
acompanharam nesse processo foi, por vezes, desafiador – pode ser difícil conversar sobre
algo cuja forma não se pode ver ou tocar. Na ocasião da banca de qualificação cheguei mesmo
a traçar estruturas, sumário comentado, problema-hipótese, palavras-chave... Mas sempre
sentindo que eu estava forçando a produção de um material que não condizia com aquilo que
eu de fato estava fazendo e que, ao traçar tais estruturas, eu tentava dar passos largos demais,
tropeçando na própria rigidez desses esqueletos. Fato é que, em que pese as vicissitudes do
processo, escrevi algo, que é o que lhe apresento agora.
29
A verdade é que, enquanto escritor, nunca deixei de ser um performer, o que para mim
significa ser movido por um desejo constante pelo inesperado e por uma crença muito maior
na inteligência das coisas do mundo que na minha própria enquanto pesquisador ou artista. A
performer dispara, incita, oferece um ponto de partida, mas quem completa esse movimento
são as coisas do mundo, dentre elas o público, as leitoras e os materiais utilizados nas ações,
que neste caso é o próprio texto.

Antes de passarmos aos próximos movimentos, quero apenas trazer algumas questões
prévias ainda no que se refere a essa dinâmica de descolonização da escrita e suas implicações
nas especificidades deste trabalho. Os estudos descoloniais configuram o campo que, apesar
de não estar previsto no início desse processo, mais me abasteceu, especialmente na segunda
metade da pesquisa. Essa entrada no meio do caminho fica evidente também em sua presença
gradual na sequência dos textos.
Cheguei às questões descoloniais por via de autoras que interseccionam questões de
gênero com a colonialidade. A começar por algumas autoras trans. Uma delas é Sandy Stone,
teórica e performer estadunidense, que aponta em seu Manifesto Pós-Transexual21 a
semelhança da relação de poder entre pessoas trans e as instituições médicas, psiquiátricas e
acadêmicas, e a relação colonizado/colonizador. Ambas não podem falar por si mesmas ou
interferir na elaboração dos discursos que definem suas vidas. A verdade sobre as vidas e os
corpos desses grupos de indivíduos são similarmente elaboradas através de um processo de
exotificação em que o eu hegemônico os define como o outro dele mesmo, numa dinâmica de
alteridade marcada por uma subalternidade evidente.
Os mecanismos de subalternização de certos grupos de pessoas funcionam como um
impedimento à sua capacidade de se configurar como sujeitos. Ainda, a especificidade do
caso trans é profundamente marcada pelo saber científico, tanto médico, psiquiátrico e
biológico, quanto pelos discursos das ciências humanas, destacando aí a antropologia, a
psicologia e mesmo as vertentes mais essencialistas dos estudos de gênero. Por muito tempo
nós temos sido elencadas como objetos especialmente interessantes de pesquisas que na
maioria das vezes tomam para si o direito de falar por nós.

21 Disponível em: <http://sandystone.com/empire-strikes-back.pdf>


30
Outra autora que traz questões nesse sentido é Jota Mombaça, que, como veremos, tem
grande importância como interlocutora nesta pesquisa. Mombaça dialoga com a filósofa
indiana Gayatri Spivak e propõe uma virada performativa no enunciado da questão que dá
título ao seu mais conhecido livro: “Pode o subalterno falar?”.

Em lugar da pergunta sobre se pode ou não o subalterno falar, invoco outra: que
ocorre quando umx subalternx fala? Desse modo, procuro relocalizar uma crise que
tem, por muito tempo, servido para despotencializar a nós, sujeitxs fora das
gramáticas da produção de saber. Ao invés de pôr em dúvida nossa capacidade de
forjar discursos e saberes desde as subalternidades, escolho interrogar a capacidade
dos marcos hegemonicamente consolidados de reconhecer nossas diferenças. Assim
é que, no limite mesmo da minha pergunta, insinua-se ainda outra: pode um saber
dominante escutar uma fala subalterna quando ela se manifesta? (MOMBAÇA,
2015)

Afinal, não se trata da capacidade desses sujeitos elaborarem pensamentos e discursos


sobre si mesmos, mas sim de que modo estes discursos podem ou não interferir nos regimes
de verdade que os definem como subalternos. Reelaborando, trata-se de como os discursos se
configuram ou não como audíveis ao saber hegemônico. Já em Spivak esta pergunta está
implícita, pois quando ela responde que, não, o subalterno não pode falar,

não se trata de uma alusão à capacidade física da fala, tampouco à capacidade


intelectual de articular um discurso. Trata-se, mais bem, de uma alusão à
impossibilidade de forjar espaços de enunciação a partir dos quais umx subalternx
possa se expressar e ser ouvidx como sujeito. (MOMBAÇA, 2015).

Vale ressaltar aqui que, apesar da presença de pessoas trans no ambiente acadêmico ter
aumentado nos últimos anos e de, no ano de 2016, alguns cursos de ciências humanas e artes
terem criado pela primeira vez no Brasil cotas destinadas a estes grupos, as pesquisas sobre
tais vivências feitas pelas próprias pessoas trans ainda são exceção. No próprio contexto dos
estudos de gênero brasileiros, a elite teórica queer do Brasil22, como chama Mombaça, as
pesquisadoras trans sofrem frequentemente os efeitos do silenciamento estrutural. Mesmo a
minha presença nesse ambiente se dá em grande parte pelo fato de eu vir de um contexto de
classe média branca e de ter iniciado qualquer tipo de transição de gênero após a conclusão da

22 "(…) quando falo em ‘elite teórica queer do Brasil’, refiro-me à rede de teóricos de gênero e sexualidade
consolidados, bem posicionados nos rankings formais de produção de conhecimento, empregados por
universidades de renome, majoritariamente brancos e cisgêneros. Falo de gente como Richard Miskolci, que
durante o I Seminário Queer do SESC (que não por acaso ficou conhecido como Cisminário) chegou a afirmar
que a ausência de pessoas trans*, racializadas e dissidentes sexuais na programação do referido evento se devia a
uma “falta de vocabulário” que ele, e a equipe por ele formada, estava tentando suprir com suas pesquisas, falas
e publicações." (MOMBAÇA, 2016b, p. 200).
31
graduação23, o que me garantiu amplo acesso à biblioteca colonial24 ao longo da minha
trajetória.


O performer e pesquisador Daniel Coleman Chávez adiciona a performance ao
cruzamento entre as questões descoloniais e trans e, ao refletir sobre sua prática performativa
e de vida, ele pontua:

Estou interessado em pensar trans* como um movimento de transgressão e


transformação além das formas modernas/coloniais de subjetivação. Desse modo,
não estou tão interessado em pensar trans* relacionado à noção de transição dentro
de um enquadramento dado e já circunscrito por determinadas identidades
normativas. Não estou interessado em pensar trans* por via da performatividade se
ela já estiver circunscrita dentro de um campo moderno de possibilidades. (…)
Trans* como transgressão e transformação pode apontar para um movimento
descolonial capaz de desafiar o campo das identidades onde uma performatividade
enquadrada é encenada (played out).25 (CHÁVEZ e VÁSQUEZ, 2017, p. 41, minha
tradução).

Seu trabalho artístico e teórico também aponta para a necessidade de considerar a


questão racial como aspecto central das questões elaboradas em torno do gênero e da
colonialidade. Nesse sentido, outra autora que foi essencial no desenvolvimento deste trabalho
foi Maria Lugones, que apesar de não tocar diretamente na questão trans, traz a noção de
colonialidade de gênero, que detalharei mais além.

23 Refiro-me aqui ao altíssimo índice de evasão, devido à transfobia institucional e familiar, de pessoas trans dos
ensinos fundamental e médio.
24 Referência à frase “Que a biblioteca colonial não nos freie a capacidade de pensar”, dita pela pensadora
aymara Silvia Rivera Cusicanqui no documentário Mar Arriba. Disponível no link:
<https://youtu.be/OM6neUyza-0> Acesso em 13/01/2017.
25 Tradução livre para: “I am interested in thinking trans* as a movement of transgression and transformation
beyond the modern/colonial forms of subjectification. Thus, I am not so much interested in thinking trans* in
relation to the notion of transition from within a given framework that is already circumscribed by a set of
normative identities. I am not interested in thinking along the notion of performativity when it is circumscribed
within the modern field of possibilities. (...) Trans* as transgression and transformation can signal a decolonial
move that challenges the field of identities in which enframed performativity is played out.” (CHÁVEZ e
VÁZQUES, 2017, p. 41).
32
Foi, também, na leitura de autoras feministas negras ou chicanas como Gloria
Anzaldúa, bell hooks e Audre Lorde que reconheci uma textualidade menos rígida que a
maioria dos trabalhos acadêmicos, mais porosa e por vezes com interlocução direcionada
(como no caso do texto em que Anzaldúa se dirige às mulheres escritoras do terceiro
mundo26), que funcionaram como referência para o desenvolvimento de um modo de
operação performativo na própria escrita.
O primeiro modo de escrita que escolhi foram cartas, e é na forma epistolar que
apresento os dois primeiros textos. A interlocução marcada junto com o uso da primeira
pessoa constituiu uma forma de localizar radicalmente a escrita e, por meio do uso de
conteúdos íntimos e biográficos, acessar questões que de outra forma, talvez, eu não fosse
capaz de tocar. Os textos seguintes deixaram de ter essa delimitação formal da carta ao
mesmo tempo em que se apresentaram de modo mais fragmentado. Neles também me refiro
diretamente a algumas interlocutoras, mas o faço em meio a outras interlocuções, em um
movimento que me parece apontar para uma multiplicação das vozes presentes neste trabalho.
Também por isso, escolhi um modo de citação sem aspas e sem destacamento do texto,
apenas com o uso do itálico. Foi um modo simples que encontrei de, através da formatação,
pontuar um modo de aproximação da teoria que incorpore a citação ao texto, e ao corpo cujo
texto é extensão – o meu próprio.
Busco, assim, efetivar uma concepção descolonial da produção de saberes que entende
que o conhecimento é, além de político, comunal. Nesse sentido, mesmo quando não fica
evidente que uma outra voz se intercala com a minha, em todo momento o trabalho é
resultado de alianças afetivas e políticas com muitas pessoas que, direta ou indiretamente,
elaboram comigo essas ideias. Falo das personagens e autoras que trago no texto, mas
também de muito mais gente que mesmo não estando citada, compõe junto comigo a rede de
afeto, criação e pensamento que tornam possível não apenas este trabalho, mas também as
nossas vidas.

Resta dizer que o processo de escrita desse trabalho tem sido intenso, difícil e muitas
vezes confuso, mas indubitavelmente transformador. Escrever não é para qualquer um, e

26 Conferir: ANZALDÚA (2000).


33
muito sinceramente ainda não sei se é para mim. Mas sigo firme, me agarrando talvez em uma
única crença: a da impermanência. Em um dos meus primeiros escritos íntimos sobre meu
processo de transição de gênero, escrevi que transição é sempre, e isso segue retornando na
minha mente, como retorna agora. As palavras enfileiradas aqui fazem parte dessa e de outras
transições, do tipo que não têm um ponto de chegada ou se pretendem enquanto resolução de
qualquer coisa, mas que se desdobram sempre em outras e outras e mais outras transições.
A medida das coisas, o tom, a tessitura dos fragmentos, são até agora motivo de
dúvida. Apresento este trabalho ainda em busca da minha voz enquanto escritor. Mas talvez
encontrar a própria voz signifique ser capaz de escolher quais vozes ouvir. Daqui onde estou,
nem no centro, nem na margem extrema do mundo, giro meu pescoço para fora, apontando os
ouvidos atentos para as margens. Acho que tem sido isso, para mim, o significado da tentativa
de ser um pesquisador no contexto dessa escrita. As pessoas com quem escolhi falar são
também aquelas a quem dou ouvidos, buscando que de alguma forma os nossos discursos-
vida se somem não em uníssono, mas numa polifonia que, em vez de ensurdecer, possa calar,
nem que por um momento, as vozes que vêm do centro.

Desejo uma boa leitura.


Com afeto,

Miro.

34
Movimento 2: Ferida – Carta a Jota Mombaça

Rio de Janeiro, março-julho de 2017.

Jota, queride,

Evoco internamente a memória da sua presença para tentar elaborar a escrita desta
carta. Por um momento me confundo, pois é muito próxima do que entendo por mim mesmo,
não objetivamente nas marcas que nossos corpos carregam, mas nas nuances das dinâmicas de
subjetivação, que são também estratégias de sobrevivência nos espaços violentos em que
transitamos. Só neste exercício imaginativo de evocar sua presença já me sinto um pouco
mais forte e com maior habilidade para olhar as feridas que são muitas e muito profundas.
Elas se acumulam no corpo e, no entanto, continuamos. Hoje é um dia que nem sei como,
nem sei a que mecanismos recorrer. Também não acho que você ou qualquer uma de nós
saiba o tempo todo, mas quando me lembro que estamos vivas e fazemos tudo que fazemos,
penso que há de existir modos afetivos de revezamento de forças e de compartilhamento de
estratégias. A primeira proposição desta carta talvez seja justamente essa: olhar esses modos,
aprofundá-los, talvez criar novos.
Lembro-me de uma coisa que o Filipe me disse ano passado na Casa 2427, na
despedida de SaraElton, um dia que foi muito forte e importante para mim e um dia em que
conversamos sobre muitas das coisas que tentarei esboçar nesta carta. Ele me disse que
quando vai performar em um lugar hostil, como são a maioria das instituições de arte, faz um
gesto específico com as mãos, invisível ao público, mas que faz com que ele sinta que está
adentrando aqueles espaços com todas as amigas, com todas nós. Acho que tem dias que é
preciso encontrar esse gesto só para acordar, seguir o dia, performar o nosso corpo no espaço
cotidiano. Quando digo que evoco a memória de sua presença, assim como quando relembro
de Filipe e Elton, estou buscando um gesto interno que tenha a mesma função e me permita
então seguir esta escrita, que contém assuntos tão importantes quanto difíceis de tocar com
palavras.

27 A Casa 24 é um espaço cultural, de articulação política e de moradia de artistas e ativistas, localizado no


bairro de Santa Teresa, no Rio de Janeiro. É gerido, dentre outras pessoas, pelas performers SaraElton Panamby
e Filipe Espindola, citadas aqui.
35
O formato dessa escrita me coloca numa situação ambígua, em especial nesta carta: ao
mesmo tempo em que falo contigo, uma amiga que estimo muito e, sobretudo, confio
politicamente e divido questões íntimas, falo também com outras: a própria instituição
acadêmica onde desenvolvo a pesquisa que esta carta integra e, ainda, outras possíveis leitoras
futuras, desconhecidas e indefinidas. O que isso me faz sentir, ou duvidar, é o quanto devo
abrir minhas feridas íntimas (e altamente políticas) neste processo. Tenho a resposta a esta
dúvida: não olhar para os nossos pontos de vulnerabilidade significa perder potência. Se há
algo que aprendi fazendo performances, e de certa forma me faz continuar a fazê-las, é que a
vulnerabilidade é potência latente. É justamente ela que torna possível o rearranjo das
dinâmicas de poder dentro do evento performativo, que, embora provisório, perturba a
estabilidade de tais dinâmicas com efeitos a perder de vista. Em verdade, acho que, à
semelhança dos eventos performativos, a escolha pela escrita epistolar seja justamente um
modo de acessar pontos de vulnerabilidade através do ato de escrever.
Lucrecia Masson, pesquisadora e artista argentina que viveu em Barcelona durante a
insurgência dos movimentos transfeministas por lá, escreveu em seu texto Um rugido de
ruminantes: apontamentos sobre a dissidência corporal desde o ativismo gordo, que é parte
do livro Transfeminismos: epistemes, fricções e fluxos, publicado com a proposta de organizar
parte dos saberes produzidos por tais movimentos: “Se é vulnerável, é porque é suscetível a
ser afetado. E, paradoxalmente, no feito de reconhecer a vulnerabilidade está a potência, a
capacidade de. Falo do corpo e seus afetos, de sua capacidade de compor-se com outros
corpos” (MASSON, 2014, p. 232, minha tradução).
Masson afirma tal coisa partindo da noção de corpo em Spinoza, que o entende não
como essência, mas como potência. Para ele o corpo é relacional, e não existe senão quando
gerado no encontro com outros corpos, restando-nos perguntar o que pode um corpo ao invés
do que um corpo é. Para Masson, este entendimento permite que pensemos a dissidência
corporal, e em especial o corpo gordo, para além de uma funcionalidade preestabelecida pelos
sistemas normativos que o patologizam e o submetem a um regime funcional e utilitarista. Ela
nos permite experimentar e expandir o que estes corpos podem fazer.
Seguindo uma lógica que me parece similar no que diz respeito à vulnerabilidade
como pressuposto do afeto, as artistas portuguesas Fernanda Eugénio e João Fiadeiro (2012),
em uma conferência, afirmam que:

O encontro é uma ferida […] se suportarmos manter a ferida aberta, se suportarmos


simplesmente (re)parar – voltar a parar para reparar no óbvio até que ele se
“desobvie” – então, eis que o encontro se apresenta e nos convida, na sua
complexidade embrulhada em simplicidade.
36
Você também utiliza bastante a palavra ferida, tanto no título da ação A ferida colonial
ainda dói, em que você extrai com uma agulha gotas de sangue dos dedos e com um pincel
embebido delas traça o limite do continente europeu enquanto relata as diversas situações de
violência que viveu em uma passagem por alguns países deste território, assim como no texto
Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e anticolonial da violência!, do qual
destaco o seguinte trecho:

A presença do racismo como fantasia colonial indeterminadamente atualizada no


marco do colapso da colônia está exposta como ferida na paisagem das cidades, na
densidade dos muros, cercas e fronteiras. Está exposta também na coreografia das
carnes, na intensidade dos cortes e ancestralidade das cicatrizes. E tudo isso está
bastante evidente, ainda que mascarado; está latente em toda emoção possível de
forjar-se perante esse regime. (MOMBAÇA, 2016c).

O modo como você usa o termo ferida evoca um sentido social dessa ideia, o que me
parece importante para uma diferenciação de como manter a ferida aberta pode ter
implicações distintas em corpos marcados ou não pela violência. Assim, a questão que quero
trazer aqui trata das formas de acesso a essa vulnerabilidade enquanto potência relacional e,
ainda, sobre as implicações políticas, a nível macro e micro, que tais dinâmicas carregam.
Estou pensando em situações em que a violência torna a vulnerabilidade mais um risco que
uma potência, fazendo necessário que os corpos dissidentes elaborem estratégias mais
precisas e localizadas, em especial em situações nas quais são subalternizados por hierarquias
de poder, seja ele institucional ou afetivo.
Buscar acesso à vulnerabilidade implica uma dinâmica de abertura ou disponibilidade
emocional e física diante dos outros corpos. Apesar de perceber este movimento como
essencial na prática da performance e na própria vida, identifico também situações recorrentes
em que abrir-se de tal maneira pode ser altamente imprudente. Penso que este seja o motivo
pelo qual algumas de nós, ao nos depararmos seguidamente com situações de violência, que
se configuram como ataques diretos à nossa existência (e que nem preciso descrever para
você), elaboramos um tipo de bloqueio, algo como um embrutecimento, uma necessidade de
nos mantermos fortes, inabaláveis, donas de nós mesmas. Isso nos salva em algumas
situações, quando é mesmo melhor que sejamos impenetráveis, já que deixar que os ataques
transfóbicos, gordofóbicos, misóginos ou racistas28 abram nossas feridas, que já são tão

28 Vale ressaltar aqui que evoco esta primeira pessoa do plural de forma provisória e localizada neste texto, em
especial no que se trata de violências que não recaem sobre mim, como o caso da violência racial. A evocação
37
profundas, pode fazer jorrar uma sangria que nem sempre podemos suportar ou somos
capazes de estancar. Assim, criamos casca grossa, somos vistas como pessoas fortes e esse é
um atributo pelo qual somos admiradas. Essa casca, no entanto, funciona também como uma
barreira que nos impede de acessar a vulnerabilidade necessária para que o corpo produza um
potencial afetivo transformador daquelas mesmas dinâmicas que o violentam. Bloquear o
acesso à ferida aberta faz com que a nossa solidão seja duplamente alimentada: tanto pelo
preterimento afetivo que torna nossos corpos dissidentes um alvo, tanto por nossos próprios
mecanismos de defesa.
Diante disso, o que me pergunto agora é: em que medida isso não nos priva da
vivência de relacionamentos afetivos, do amor e do sexo como prática libertadora? Como
desenvolver uma inteligência emocional que nos permita escolher as situações em que nos
abrimos? E ainda: se até mesmo nossas amantes, amigas e parceiras políticas são
potencialmente violentas, se mesmo entre as pessoas que escolhemos nos relacionar as feridas
seguem sendo abertas sem o devido cuidado, como confiar na nossa capacidade de
regeneração e desenvolver o autocuidado e o cuidado mútuo?
Se trago agora a problemática do afeto implicado em relações íntimas é porque me
parece que tais dinâmicas de fechamento e abertura, vulnerabilidade e potência, encontram
manifestações especialmente intensas aí e, também, porque falar de afeto relacionado à
intimidade, à amizade, ao sexo e modos de vida pode ser também uma apropriação política de
ferramentas estéticas e teóricas que nos permita aproximar-nos de tais questões, que para mim
se tornam cada vez mais centrais na medida em que nos enfraquecem ou potencializam
enquanto corpos capazes de imaginar alternativas aos esquemas preestabelecidos.
No texto Vivendo de Amor, bell hooks aborda a dificuldade da mulher negra de se
relacionar intimamente. Ela ressalta que

o sistema escravocrata e as divisões raciais criaram condições muito difíceis para


que os negros nutrissem seu crescimento espiritual. Falo de condições difíceis, não
impossíveis. Mas precisamos reconhecer que a opressão e a exploração distorcem e
impedem nossa capacidade de amar. (HOOKS, 2015).

Esse texto me faz pensar sobre como os sistemas de opressão se asseguram, em parte,
justamente pela captura da nossa afetividade. E neste ponto, algumas de nós experienciam

deste “nós” se dá por entender que, junto comigo, caminham pessoas racializadas, bem como para não ocultar as
marcas que nos diferenciam. Ademais, neste caso em específico, tento traçar paralelos entre dinâmicas de
preterimento afetivo que recaem sobre diferentes formas de subalternidade. No entanto, esta construção de
sujeito plural não deve ser entendida como um “nós” absoluto capaz de operar em qualquer contexto.
38
coisas muito parecidas. Conversando com amigas cis negras, por exemplo, percebo que as
dinâmicas de poder afetivo que nos subalternizam dentro das relações se assemelham muito
em nossos relatos. A história das nossas opressões é diferente e, apesar de produzirem efeitos
distintos nas vidas de cada grupo oprimido e se entrelaçarem na vida daqueles que são
marcados com mais de um aspecto de subalternidade, estão conectados por uma mesma
matriz colonial. Não quero com isso sugerir que por sofrer os efeitos da transfobia e
gordofobia, eu saiba o que é sofrer os efeitos do racismo. O que estou querendo dizer aqui é
que o modo de funcionamento do poder hegemônico age de forma similar na marginalização
de diferentes corpos, pois é a própria criação das margens que garante a existência do centro.
Se pessoas negras carregam ainda hoje em seu corpo os efeitos brutais da escravidão de seus
antepassados, e são vítimas de uma necropolítica da qual depende o funcionamento do
sistema, as pessoas trans carregam sua própria história de apagamento histórico, extermínio e
deslegitimação. Em diferentes níveis e dinâmicas, estes, dentre outros aspectos, são marcas
que fazem com que nossos corpos tenham menos valor político, que nossas vidas não valham
o luto social. Muitas vezes, quando vejo as frequentes notícias de travestis assassinadas no
Brasil, ou de pessoas transmasculinas vítimas de estupros corretivos, sinto imediatamente no
peito os efeitos de um bloqueio emocional. Em certa medida é necessário que ele exista para
que consigamos permanecer vivas, não há corpo que individualmente aguente viver o luto e o
desespero que esses acontecimentos incitam. Não se trata do medo de passar pela mesma
coisa, trata-se de um desamparo, um tipo de vazio que resulta da percepção sempre renovada
de que as engrenagens do poder trabalham para que nós não existamos.
O que hooks faz em seu texto é apontar que esse bloqueio tem consequências afetivas
e emocionais graves. Ademais, as dissidências corporais e a racialização nos afastam dos
esquemas afetivos pré-moldados para manutenção da burguesia patriarcal e branca. Assim,
encontramo-nos frequentemente solitárias, sentindo como se cada dia fosse uma luta de um
contra todos. Inseguras, mal sabemos como falar sobre isso. Uma resposta rápida a este
problema poderia ser que precisamos praticar o amor entre nós, criar comunidades onde os
nossos aspectos marcados sejam valorizados ao invés de preteridos. Mas sabemos que não é
assim tão simples, pois, dentro mesmo das nossas comunidades, a economia do desejo segue,
por vezes, reproduzindo as mesmas lógicas cisheteropatriarcais que tornam alguns corpos
mais desejados que outros ou então hipersexualizados, mas deixados de lado quando se trata
de construir laços mais duradouros ou abertos socialmente. Para além da própria falência dos
modelos românticos, que por si só carregam o ranço da heterossexualidade compulsória, o que

39
acontece é que as dinâmicas de poder vão tomando uma complexidade tão grande, que mal
podemos tocá-las.
Em um texto intitulado Os homens que não amavam as mulheres, a feminista negra
Laura Elisa discorre sobre a assimetria estrutural presente em relações heterossexuais:

um homem que quisesse nos amar [...] deverá entender que a assimetria socialmente
imposta pede como resposta que tentemos construir, em esfera micropolítica, um
relacionamento contrariamente assimétrico. Devemos resistir aos comportamentos
padrão de feminilidade e masculinidade para tentar tornar a relação homem-mulher
não-sistematicamente abusiva. (ELISA, 2015).

O que Elisa propõe é a inversão da assimetria – se frequentemente os homens são


emocionalmente indisponíveis e egoístas; se, respaldados pelo sistema patriarcal, agem de
forma abusiva, fazendo com que as mulheres aceitem este tipo de comportamento como
padrão, então a solução seria que as mulheres heterossexuais dessem prioridade aos seus
próprios sentimentos quando numa relação com eles. Trata-se da substituição da lógica da
igualdade para a da equidade, muito defendida em contextos de ativismo de minorias
políticas: se um grupo de pessoas é histórica e socialmente excluído dos espaços de poder,
não basta que sejam tratados de “igual para igual”, pois esta igualdade é frequentemente falsa,
uma vez que este grupo continuará sendo preterido nas esferas sociais mais amplas.
Esta lógica, que pode ser efetiva no contexto da cis-heterossexualidade, perde
rapidamente sua operatividade quando consideramos as dissidências sexuais e de gênero e,
mais ainda, quando as combinações possíveis entre sujeitos com diferentes marcas se
complexificam a ponto de tornar impossível a elaboração de uma única fórmula ética em que
estas relações sejam possíveis de formas menos violentas. Pode ser difícil, por exemplo, para
uma mulher cis, negra e magra, quando num relacionamento com uma pessoa trans, branca e
gorda, estar sensível ao fato de que suas atitudes podem ativar feridas muito mais profundas
que a experiência individual daquela pessoa. Ainda que ela conheça a misoginia e o racismo,
pode não estar sensível ao modo como a transfobia e a gordofobia influenciam nas dinâmicas
da relação. E o contrário também é verdade, a segunda pessoa pode não estar sensível ao
potencial de violência racial presente em suas ações.
Mais uma vez, uma lógica puramente identitária encontra seu limite. Se
continuássemos a segui-la, o próximo passo seria o exercício vazio que muito temos
observado em contextos de ativismo de minorias políticas: o de escalonar os níveis de
opressão de modo que seja possível determinar quem dentro de uma relação é mais oprimido.

40
Quanto a isso, gostaria de lembrar deste pequeno trecho de Audre Lorde, em um dos seus
mais singelos apelos por uma perspectiva interseccional:

Dentro da comunidade lésbica eu sou negra, e dentro da comunidade negra eu sou


lésbica. Qualquer ataque contra pessoas negras é uma questão lésbica e gay, porque
eu e milhares de outras mulheres negras somos parte da comunidade lésbica.
Qualquer ataque contra lésbicas e gays é uma questão de negros, porque milhares de
lésbicas e gays são negros. Não existe hierarquia de opressão. (LORDE, 1983).

Se por um lado pode ser libertador concluir que não há fórmulas, já que a ausência de
padrão a ser seguido convoca a imaginação afetivo-política e cria, de fato, infinitos arranjos,
por outro lado nos vemos constantemente à deriva. Não sabemos como fazer, seguimos
reproduzindo os mesmos jogos de poder, cutucando as feridas umas das outras e, por vários
momentos, totalmente desacreditadas da nossa capacidade de produzir afetos que, em vez de
alimentar nossos ressentimentos, possam ser ativadores das nossas potências.
A noção de responsabilidade coletiva pelas feridas estruturais – aquelas relacionadas
às assimetrias de poder, sendo bem mais amplas que a experiência individual, mas que se
manifestam também a nível emocional – ainda falha em chegar nos âmbitos de intimidade,
seja ela sexual ou de amizade. O que vejo somos nós choramingando pelos cantos, nos
reconhecendo nas histórias umas das outras, prescrevendo-nos pequenos gestos de
autocuidado, mas seguindo envergonhadas demais para falar abertamente sobre quando a
nossa solidão deixa de ser um espaço de fortalecimento e cuidado de si para se tornar o buraco
do qual muitas de nós não consegue sair.
É evidente que isso não é via de regra e está mais para uma observação de situações
recorrentes nos espaços por onde transito. Sei que falo de contextos muito específicos, em que
o debate político acerca das minorias políticas é constante. Fora deles o silêncio dos corpos
que se assemelham aos nossos é possivelmente ainda maior.
Naquele texto do Daniel Lourenço, que conheci através de você, e é um dos poucos
em que encontrei algum eco para estes pensamentos, ele fala da economia do desejo entre as
bichas (ou paneleiras, no português lusitano que ele escreve) e os efeitos desta economia nos
corpos à margem dela:

[...] continuamos (todxs) com dificuldades estruturais em desmistificar a geometria


sagrada da beleza e falar dela como facto político, leia-se, percebê-la historicamente.
(...) há corporalidades iluminadas pelo desejo (objectos perfeitos de uma matemática
socialmente convencionada) e há corporalidades abjectadas do seu campo de acção
(formas monstruosas, ora entediantes ora aterradoras; algumas delas contradições
ambulantes, e outras ficções especulativas rarificadas demais). Algures entre os dois
polos, articulados com exactidão binária por motivos práticos e desejantes, a maioria
dos corpos. E em lado quase nenhum um repósito de imaginação que sustente a

41
travessia estético-erótica a um lugar mais improvável: assim, o desejo condensa-se
no mundo social como massa crítica e, enquanto tal, como críptica maquinaria de
violência política. (LOURENÇO, 2006).

Para mim, o grande trunfo da escrita de Daniel é conseguir a um só tempo reunir


reflexão teórica, ainda que bem distanciada dos moldes acadêmicos, com a densidade sensível
de que estão carregadas estas questões. O modo como ele se aproxima da questão do desejo
rompe com um certo padrão de percebê-lo como força natural e inquestionável, padrão que
instaura um dos aspectos mais difíceis de se aproximar criticamente ao desejo.
Interessado em ativar algo próximo de uma politização dos afetos em escala micro,
ano passado fiz uma ação na Esforços #4 – Mostra de Performances, que aconteceu no
Espaço Éden, zona portuária do Rio de Janeiro, e ao qual chamei de Cucharita. Tive e ainda
tenho certa dificuldade de escrever sobre ela, acho que porque eu mesmo sempre desconfiei
um pouco dela, me parecia meio fofa, meio Sophie Calle, meio despolitizada a priori, embora
eu soubesse que a situação proposta ganhava camadas políticas na medida em que era
acionada por um corpo como o meu. Mesmo com esta sensação, o que me fez de fato
performá-la foi que a ideia deste programa me colocava numa posição desconfortável. E se há
desconforto, suspeito sempre que há ali questões que precisam ser tocadas e trabalhadas. O
texto que escrevi para apresentá-la diz o seguinte:

Na língua espanhola, “cucharita” se traduz, literalmente, para colherinha. Na língua


inglesa, “spoon” se traduz para colher. Ambas as palavras também designam o ato
que, em português, chamamos de “conchinha”. Assim como a colher, a concha
possui um lado côncavo e um convexo, o que permite que se encaixem em uma
outra colher ou concha. Esta performance é um convite a habitar o côncavo/convexo
dos corpos e das políticas afetivas produzidas por eles.29 (SPINELLI, 2016).

O programa performativo consistia em colocar uma cama grande no espaço


expositivo, forrá-la com lençol branco de elástico, colocar sobre ela dois travesseiros com
fronhas brancas e um lençol grande avulso branco. Permanecer na cama pela duração total do
evento, isto é, seis horas, e convidar as pessoas que se aproximassem a fazer conchinha
comigo. Perguntar se elas queriam ser a colher grande ou a pequena. Não dormir e não deixar
ninguém dormir.
E assim aconteceu. No começo era um grande esforço romper com a minha timidez e
fazer o convite, que me parecia importante de ser feito verbalmente. Depois de um tempo,
com a situação dada, ele já não era mais necessário, ou as pessoas entendiam a ação ao

29 Programa veiculado no material de divulgação da Esforços – Mostra de Performances, realizada pelo coletivo
artístico Miúda em 2016.
42
observá-la, ou elas mesmas perguntavam. Deitaram-se comigo conhecidos e desconhecidos,
alguns queriam conversar sobre relacionamentos e sobre conchinhas. Sobre este assunto eu
sempre contava sobre como eu não gosto, odeio mesmo, dormir de conchinha, o que muitas
vezes provocou reações intensas de reprovação. Como pode alguém não gostar? E eu dizia
que acho que era por isso que eu estava ali, para entender porque eu não gostava. Outros
queriam só fazer a conchinha, sem dizer nada. Gostei especialmente desses, pois sentia que
falar, às vezes, era um modo de mascarar o constrangimento. Em oposição, alguns me
abraçavam forte e me espantava sua falta de constrangimento em estar na cama com um
desconhecido e tão rápido acessarem tal intimidade. Outros eram mais protocolares, só se
posicionavam ali com o corpo um pouco rígido, como se quisessem diminuir a superfície de
contato, ou limitar a intensidade da interação. Eu sempre seguia o tom/vibração dado pela
pessoa, ia no fluxo e com isso reparava as muitas dinâmicas que se desenrolavam. Fiz
conchinhas estranhas e tensas com pessoas com quem já tinha histórias longas e conturbadas.
Algumas pessoas passavam várias vezes ao lado da cama e se queixavam do fato dela estar
sempre ocupada. Outras se juntavam, criando conchinhas de muitas colheres. As conchinhas
grupais foram para um lugar bem distinto das outras, pois tinham o tom da amizade. Achei
bonito as pessoas deitadas juntas, os corpos empilhados, e elas falando sobre a vida, ou sobre
o modo como a proximidade corporal, o toque, são condicionados à lógica romântica e/ou
familiar. Aninhadas umas nas outras, nós refletimos sobre como pode também ser
descomplicado estar próximo. Acho que estes momentos foram mais leves e prazerosos
também, porque me deslocaram do centro da ação. Não importava mais se aquela era a
“minha” cama, pois ela se transformava numa plataforma de ativação da intimidade que
independia de mim.
Lembro de pensar em como a troca de calor corporal tem um efeito acalentador talvez
um pouco primitivo. E não importa tanto de quem seja o outro corpo, desde que ele esteja
aberto, e, por isso, vulnerável. O afeto pode ser provisório, não ter narrativa, ele depende,
penso agora, de uma disponibilidade em entender-se como corpo provisório que só se dá,
lembrando aqui novamente de Spinoza, junto com outros corpos.
Mas apenas o toque não implica no íntimo e o íntimo também se dá sem o toque. Um
corpo encaixado em outro corpo não garante afeto, mas a disponibilidade de afetar-se, sim.
Falar pode ser mais íntimo que sexo ou pode ser uma forma de afastar-se da intimidade.
Relações afetivas também se dão por dinâmicas de não envolvimento direto, como se deu com
as pessoas que desejaram se deitar na cama comigo, mas não encontraram um modo de
aproximar-se – elas também estavam afetadas pela ação.
43
Apesar de o programa ter ativado uma série de dinâmicas que podem contribuir para
pensarmos o problema da afetividade, todos estes pensamentos são ainda um pouco
inconclusivos para mim. Acho que o que me fez falta nessa ação no começo, e que me fez
duvidar dela, foi a não evidenciação das marcas em meu corpo e o risco do apagamento que
poderia haver nisso. Talvez eu precise investigar a invisibilidade, a poética do não dito, para
formular estratégias performativas mais elaboradas. Não que eu julgue sempre necessário
colocar essas questões no centro dos trabalhos, mas este é o modo que, até então, eu vinha
articulando politicamente minha prática. E aí é impossível não mencionar Gordura Trans,
trabalho que você conhece bem, e que tem sido nos últimos anos o projeto que abarca a
maioria de minhas práticas performativas.
Sabe, mana, de certa forma eu sinto que Gordura Trans já era, de um modo oposto à
Cucharita em alguns aspectos, uma forma de ativar e processar os mecanismos de
preterimento afetivo pelos quais passei e passo desde a minha corporalidade marcada. A
situação performativa de, sozinho ao centro, expor meu corpo, enfatizar seus atributos através
do material e olhar os presentes, para além das tantas reverberações políticas que não pretendo
detalhar aqui, emocionalmente tem sido sobre lidar com o lugar da solidão do corpo abjeto. E
é sobretudo por isso também que escrevo esta carta especificamente para você. Sabemos que
qualquer outro aspecto de abjeção é exponenciado quando se intersecciona com a gordura. A
vida inteira estivemos nos cantos das festinhas ou ouvindo nossas amigas magras relatarem
seus romances. Quando finalmente chegou a nossa vez, frequentemente as inseguranças que
nos foram empurradas goela abaixo a vida toda foram muito inteligentemente usadas por
nossas parceiras em seus jogos emocionais abusivos. Afinal, quem mais além delas poderia
nos desejar?
Eventualmente encontramos uma ou outra relação que fuja a esses padrões.
Aprendemos a reconhecer as pessoas justamente pelas feridas. Lambemos as feridas umas das
outras e, assim, entendemos algo sobre cuidado e responsabilidade. Mas essas relações
também acabam, viram outra coisa, se perdem. E aí tudo começa novamente. Estar no mundo
enquanto corpo gordo e trans, sexualmente ativo e afetivamente pulsante muitas vezes reativa
todo o nosso passado de rejeição. Vem como um flashback emocional da adolescência,
quando não fazíamos ideia que algo além daquele pequeno mundo normativo pudesse existir,
quando ainda não havíamos tido tempo para encontrar nossos pares e tínhamos certeza que
morreríamos sozinhas e fracassadas. Esta sensação de desamparo ainda retorna a cada
percalço que encontramos em nossas relações.

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Parece-me que no contexto das questões que trago aqui, Gordura Trans e Cucharita
investigam, de formas muito diferentes e com ênfases distintas, um mesmo lugar emocional e
político. Ambas estão tensionando dinâmicas, perturbando esquemas preestabelecidos que
querem se fazer invisíveis e inquestionáveis e que ditam os modos de percepção e
envolvimento com determinados corpos.
Mas quero agora focar em Gordura Trans, pois sua prática tem trazido questões
relativas a uma outra camada relacional que extrapola o momento mesmo da performance.
Como você sabe, nos últimos anos, desde que as fotos de Salvador viralizaram, tenho sido
convidado com alguma frequência para performar ações deste projeto em diferentes
contextos. Por ele ser um trabalho em que me coloco numa posição extremamente vulnerável,
acabo tendo que lidar com muitas destas sensações que provêm do conflito de ser um corpo
desejante, mas socialmente marcado como indesejável. Comecei a reparar que o modo como
parte das instituições de arte lidam com o trabalho e com o meu corpo se parece muito, em
algum nível, com as mais abusivas das relações íntimas.
Guardadas as devidas proporções das esferas macro e micro em que estas relações
operam e excluindo por um momento a pretensa não corporalidade institucional, eu me peguei
muitas vezes, após a performance, às vezes ainda no banho, enquanto dissolvia a gordura
incrustada no corpo com detergente de louças, traçando esse paralelo. Está tudo imbricado ali
se olhamos a situação um pouco mais de longe. Dentro do museu, da galeria, do centro
cultural, em uma sala quase sempre escondida, o público entra furtivo, silencioso, muitas
vezes com os olhos lotados de uma mistura de medo e excitação de quem espera uma
experiência extrema, grotesca, impactante. Muita gente procura o bafo, o exótico em estado
de extravasão. Arte contemporânea como freak show. Pois é assim também que é vendido o
trabalho por alguns desses espaços. E eu estou ali, parado ou caminhando lentamente, sempre
silencioso, concentrado, olhando para elas. Calmo e lento, prestes a frustrar essas
expectativas.
Há uma pergunta que me persegue desde que comecei a fazer esse trabalho: o que
acontece quando o freak olha de volta? Quando o seu olhar para o observador se torna um
dado ativo, seu estatuto de abjeção permanece funcional? Tenho suspeitado que não.
Com o aumento do debate sobre gênero e sexualidade e da ascensão do queer como
palavra/conceito “inovadora” no Brasil, essas instituições querem estar por dentro. Querem
ser “inclusivas”, “radicais” e “impactantes”. Só que não estão preparadas para quando o
impacto dos trabalhos se localiza muito além da fruição estética. Elas não estão dispostas a
lidar com as delicadas situações políticas que estes trabalhos podem ativar. Foi assim com o
45
Desfazendo Gênero em Salvador. Postaram as fotos de Gordura Trans sem autorização e,
quando perceberam que o compartilhamento das imagens tomou proporções enormes, virais e
violentas, chamaram de “resistência” a escolha por mantê-las no ar. Em nenhum momento
entraram em contato comigo, que era quem estava sendo exposto. Uma outra vez o Museu
Guido Viaro, em Curitiba, num movimento contrário, pediu publicamente que as fotos da
performance fossem retiradas do ar, pois não queriam vincular a imagem do museu ao
trabalho. Isso para não falar das milhares de sutilezas em várias outras situações em que tenho
a nítida impressão que os produtores e curadores sentiam um tipo de nojo, às vezes pena, ou
então exotizavam meu corpo e o do trabalho ao extremo, admirando sua “coragem”. Por que
eu haveria de precisar de coragem? É corajoso o fato desse corpo existir no mundo sem se
envergonhar de si? Este é o meu corpo, o meu corpo sou eu. A constatação da coragem é uma
afirmação que deflagra a normatividade do olhar de quem a observa.
É curioso que, entre a primeira e a segunda versão desta carta – que por integrar uma
dissertação passa por várias leituras e tratamentos – você escreveu junto com Michelle um
texto que endereça justamente a presença de corpos dissidentes nas instituições de arte,
partindo da experiência de vocês em Atenas durante a Documenta 14. Essa simultaneidade só
evidencia a necessidade constante e quase inevitável de tensionarmos a nossa relação com a
arte enquanto um espaço de articulação de poder, para assim elaborar estratégias que
considerem o impacto do fazer artístico em nossas vivências para além da nossa relação
pessoal com nossa própria criação e das potências que identificamos neste fazer. Quanto mais
espaços somos capazes de adentrar com nossas produções artísticas e intelectuais, e quanto
mais reconhecidos são eles, mais acirradas ficam as tensões políticas, fazendo-se necessário
abandonar a ingenuidade que se alimenta de uma certa sensação de encantamento muito bem
produzida nestes territórios pela própria potência estética dos produtos que estão em jogo. Se
em algum momento fazer arte já pareceu uma alternativa à nossa exclusão de outros espaços
aparentemente mais normativos, se acreditamos algum dia finalmente ter encontrado uma
alternativa de vida em que nós e o que fazemos é valorizado ao invés de preterido, gerando
um status social que jamais havíamos conhecido, uma vez que somos mais frequentemente
convidadas para entrar em museus e galerias, percebemos que os modos de operação podem
cambiar um pouco, mas que a violência frequentemente está lá, intacta. A pergunta que se
reformula a cada evento em que nos relacionamos com as instituições é sobre o preço político
e emocional que pagamos por estarmos lá, e se esse preço vale o que recebemos em troca, seja
literalmente em valor financeiro, seja em valor político. Neste sentido, considero muito
pontual o que vocês escrevem neste trecho:
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Nem todas as portas se fecham, mas mesmo as abertas guardam lá seus espinhos:
como uma fronteira que, para dar passagem, cobra um pedágio alto demais; uma
fronteira que nos faz chegar quebradas do lado de dentro dos espaços e sistemas dos
quais temos sido historicamente excluídas. Falar de presenças dissidentes e
minoritárias em espaços de poder é falar também do efeito emocionalmente duro de
fazer-se presente em espaços construídos por sobre nosso apagamento ontológico,
ou reestruturados a partir da apropriação extrativista de nossas experiências e
perspectivas. (MATTIUZZI; MOMBAÇA, 2017).

Imediatamente, lembro-me também do relato de Elton sobre sua passagem com Filipe
pela Suíça, onde performaram em um festival. A lembrança que tenho é de seu relato oral,
quando me contava também dos motivos de estar cada vez mais inclinadx a abandonar o fazer
artístico. Mas copio aqui o que elx escreveu em sua tese de doutorado, ao refletir sobre o teor
exotizante do texto de uma crítica local:

As pessoas em geral, tanto no festival quanto nas ruas, inclusive a jornalista que
assistiu às performances e redigiu o artigo, não se dirigiam a mim mas falavam
sobre, olhando e apontando à distância. Me sentia num zoológico ou safári, animal
exposto para análise dos críticos. Ao utilizar meus atributos físicos de maneira
irresponsável, como quando coloca que meus pelos, acredito que tentava se referir à
minha barba, se devem à ministração de hormônios sendo que não tomo, os brincos
em meus peitos, meu cabelo. O corpo toma o foco como um objeto a ser decalcado,
a ser anatomizado e dissecado. (PANAMBY, 2017).

Trata-se de um perverso jogo de desejos. O museu, a crítica e a curadoria


frequentemente parecem aguardar a nossa gratidão por nos permitirem estar nos espaços que
controlam. Afinal, quem mais, dentre todas as instituições macropolíticas, poderia nos desejar
e legitimar nosso trabalho e, por extensão, o nosso corpo? É neste fetiche exotizante que vive
o paralelo que tenho percebido com os relacionamentos afetivos. Uma boa parte das
instituições e dos nossos pares nos desejam até o limite da responsabilização coletiva pelas
marcas que carregamos. Podemos estar ali, somos até mesmo convidadas, mas seguimos
sendo miradas pelo mesmo olhar que nos enquadra como objetos e como abjetos. Já passa da
hora de nos desiludirmos por completo e nos utilizarmos do poder relativo que nos é dado
como artistas e pesquisadoras para sabotar sempre que possível estes esquemas, e penso que
esta postura não pode estar apenas na forma como negociamos com as instituições, mas
também nas nossas escolhas estéticas.
Cada ponto que levanto aqui para dividir com você poderia seguir e se desenvolver
muito mais, mas por agora preciso suspender um pouco. Amiga, eu estou cansado, e não de
um cansaço momentâneo que se cura com sono e inatividade, é quase como um cansaço

47
incurável, que se retroalimenta de si e das inquietações que o constituem e que não tem
resposta definitiva, pois

eu quis começar aos gritos. E se não gritei é porque cansa, mas também tenho cada
dia na sua transitoriedade a relembrar-me que não gritar é igualmente exaustivo,
gerando uma compactação do peito que ameaça extrair ao coração falante a maioria
das cores que possibilitam sequer a sua retórica. Contra isso, não há magia nem
mnemónica. (LOURENÇO, 2006).

Escrever sobre essas coisas tem sido extremamente difícil. Às vezes bastam quatro ou
cinco sentenças e já estou emocionalmente exausto: “o cansaço também é, afinal, o registro
no corpo dos efeitos do desejo enquanto poder que atravessa o campo relacional”
(LOURENÇO, 2006). Pensei em desistir incontáveis vezes, mudar a forma, fazer teoria de
modo distanciado e neutro. Mas eu não quero. Há em mim certo senso de sinceridade para
comigo mesmo que é, de alguma forma, incontornável. Eu não estou interessado em
convencer quem quer que seja da potência performativa do corpo abjeto ou de analisar as
situações pelas quais passamos com elegância e frieza, costurando tudo com citações de gente
certificada. Estou interessado em falar de nós para nós, numa linguagem que possamos
entender, para assim conseguir descobrir como processar nossa dor e seguir em frente. Você
disse, eu repito, é preciso politizar a ferida!
Percebi enquanto escrevia que, quando estava tratando dos relacionamentos afetivos,
me debati muito com o ressentimento. Entrando nas instituições, ele foi se transformando em
raiva. Com a raiva é mais fácil operar, ela é mais facilmente convertível em energia de ação.
Já o ressentimento é extremamente angustiante. Sinto vergonha por ele. Esta vergonha, eu
tenho pensado, é a internalização das acusações de vitimismo que quase sempre aparecem
quando tentamos falar. Mas me nego a me dobrar a ela. Também é necessário entender como
lidar com o ressentimento e com a vergonha. Pode ser que uma das coisas que esta escrita
tenta fazer é esta transmutação do ressentimento em raiva, amor ou em qualquer outra emoção
que nos mobilize. Pode ser que seja isso que eu esteja tentando fazer com Gordura Trans,
com Cucharita e com todo o resto, tentando transmutar, através de um tipo de alquimia
performativa, o ressentimento inescapável desde a subalternidade em uma emoção outra, uma
que seja capaz de gerar ações, reunir pessoas, imaginar outros modos de afetividade, seja ela
íntima ou política.

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Vou me encaminhando para o fim, que é onde eu te faço uma proposta. Anzaldúa
(2004, p. 80) disse que “na solidão prospera a rebeldia30”, mas acho que é em conjunto que
conseguiremos colocá-la em ação. Há um tempo sinto que preciso elaborar novos programas
que não façam parte de Gordura Trans, não porque este projeto tenha deixado de fazer
sentido. Pelo contrário, ele segue me ensinando a cada ação coisas sobre o meu corpo e sobre
as estratégias de habitar o mundo com este corpo, segue me ensinando sobre o outro, sobre
tecnologias de encontro, sobre violência. Mas agora preciso de outros programas através dos
quais seja possível endereçar mais diretamente algumas questões, como estas que tento
esboçar aqui. E preciso pensar junto. Acho que fazemos isso já há um tempo, direta ou
indiretamente, nos breves dias em que conseguimos nos encontrar ou quando nos lemos,
damos notícias e suporte uma à outra. De minha parte a sensação de irmandade para contigo
extrapola a admiração e a identificação, que também existem. Já estamos agindo juntas, eu
sinto, mesmo que fazendo trabalhos diferentes. E com o desejo de efetivar esta irmandade,
misturar nossos anseios, desejos e modos de fazer, te convido agora para criarmos um
programa performativo e, juntas, acioná-lo. Não tenho proposta formada a partir daqui,
apenas este objetivo. Responda com o que quiser, do jeito que quiser. Daqui para frente, tudo
é o corpo do trabalho.
Espero que não tenha me alongado demais e que tudo isso encontre reverberação por
aí. No mais, espero que você siga forte aí no além-mar, e se estiver em mais um dia difícil,
que saiba encontrar aqueles gestos simples de autocuidado que nos salvam, nem que seja por
um momento. Eu estou sempre aqui.

Com muito amor,

Miro

30 Tradução livre para: "Aquí en la soledad prospera su rebeldía. / En la soledad Ella prospera." (ANZALDÚA,
2004. p. 80).

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Movimento 3: Cuidado

Há de se começar de novo sempre


Desviar do seguir do dia e tentar

A partir daí podem aparecer muralhas


Torneiras, rochedos ou panelas
Talvez um pacová

Ao mesmo tempo em que, pelo mundo


Copos se quebram em milimétricos novos cacos
Para os nossos pés descalços

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Tenho quebrado copos
é o que tenho feito
raramente me machuco embora uma vez sim
uma vez quebrei um copo com as mãos
era frágil demais foi o que pensei
era feito para quebrar-se foi o que pensei
e não: eu fui feita para quebrar
em geral eles apenas se espatifam
na pia entre a louça branca e os talheres
(esses não quebram nunca) ou no chão
espalhando-se então com um baque luminoso
tenho recolhido cacos
tenho observado brevemente seu formato
pensando que acontecer é irreversível
pensando em como é fácil destroçar
tenho embrulhado os cacos com jornal
para que ninguém se machuque
como minha mãe me ensinou
como se fosse mesmo possível
evitar os cortes
(mas que não seja eu a ferir)
tenho andado a tentar
não me ferir e não ferir os outros
enquanto esgoto o estoque de copos
mas não tenho quebrado minhas próprias mãos
golpeando os azulejos
não tenho passado a noite
deitada no chão de mármore
estudando as trocas de calor
não tenho mastigado o vidro
procurando separar na boca
o sabor do sangue o sabor do sabão
nem tenho feito uma oração
pelo destino variado
do que antes era um
e por minha força morre múltiplo
tenho quebrado copos
para isso parece deram-me mãos
tenho depois encontrado
cacos que não recolhi

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e que identifico por um brilho súbito
no chão da cozinha de manhã
tenho andado com cuidado
com os olhos no chão
à procura de algo que brilhe
e tenho quebrado copos
é o que tenho feito

(MARQUES, 2015, p. 101-102).

Começo a escrever com a palavra empatia me martelando na cabeça. Na parte anterior


deste trabalho, escrevi uma carta à minha amiga Jota. Recomeço sem ter ainda enviado aquela
carta para ela. No entanto, estive com ela, depois de vários meses, na festa de aniversário de
uma amiga, em um terraço em Santa Teresa, com uma vista impressionante do centro do Rio
de Janeiro e da Baía da Guanabara. A posição elevada em relação ao que se podia ver da
cidade não me salvou da sensação de estar sendo engolido por ela. Ali conversamos muito,
sem parar. Nos entorpecemos, trocamos notícias, boletins emocionais, falamos das escritas,
dos trabalhos, falamos deste trabalho. Com o desenrolar da conversa, observamos certa
densidade inescapável da nossa troca, que se dava, ali, numa verborragia que, diferente da
maioria delas, era centrada na escuta e na alegria pela presença uma da outra. A tal densidade,
penso agora, está no fato de que sempre seguimos retornando a uma dor que não estanca,
mesmo que seja suavizada por certos períodos ou circunstâncias, como a do nosso encontro.
Diante da Jota, sinto-me de frente a um tipo de reflexo modificado de mim mesmo no que se
refere a constante construção precária e difícil daquilo que somos em relação ao mundo.
Sempre um esboço, série de tentativas constantes que nunca se completam, pois são incapazes
de pertencer aos espaços e a boa parte das relações.
Enquanto isso, muita gente dançava na pista, até o chão. Não sei exatamente do que
falávamos quando Jota me disse uma coisa que ficou me perseguindo desde então. Eu estava
um pouco bêbado, não tenho certeza se era uma citação ou coisa que ela mesmo andava
pensando. Não importa muito, é tudo um pouco tudo. Mas o que ela me disse se relacionava
com um entendimento da empatia como aquilo que nos obriga a, diante da diferença, nos

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reorganizar. Isso deve fazer entre quinze e vinte dias e desde então não se passou um dia
sequer em que eu não tenha pensado nisso.
Depois desse encontro, estivemos trabalhando juntas por cinco dias em uma ação de
Gordura Trans em que fiquei reparando esse entendimento de empatia nas dinâmicas do
trabalho, dos nossos corpos e dos outros envolvidos. Principalmente quando a empatia não
acontecia. Mas não vou, agora, falar sobre essa ação. Quero falar que uma chave virou dentro
de mim e uma porta se abriu quando percebi que essa palavra continha um potencial de
sentido muito mais amplo que o de apenas uma emoção, ou algo que intimamente se sente
diante do outro. Eu percebi que aí dentro dela há um potencial de deslocamento de posições
no mundo: um potencial performativo. Reorganizar-se diante de uma experiência diferente da
nossa própria implica em uma disponibilidade de fazer com que o mundo inteiro se mova
quando nos abrimos à diferença. Não que a emoção não seja importante nesse processo – ela é
possivelmente a disparadora inicial – mas enquanto força, precisa ser colocada em ação.
Lembro-me então desta pergunta: “Qual o destino político das emoções?”
(MONDZAIN, 2002, p. 65), e a desdobro em outra: como elaborar estratégias para direcionar
(e percebam que direcionar não é controlar) o destino político das nossas emoções?
A resposta no contexto deste trabalho é, por si só, inconclusiva, pois sua única forma
possível se encontra nas proposições artísticas aqui presentes, tanto as ações performativas
descritas, quanto o próprio texto, ambos muito mais perguntadores que respondedores. No
entanto, me parece que a prática performativa pode servir como mecanismo não só para o
questionamento, mas também para um tal direcionamento das emoções. Seguiremos, então,
performando.

Recentemente, estive com a artista Princesa Ricardo Marinelli, que integrou o extinto
Couve-Flor Minicomunidade Artística Mundial, coletivo de pesquisa em dança e performance
sediado em Curitiba. Princesa estava presente na primeira vez em que performei Inventário
com Bia, na sede desse mesmo coletivo. Ela é uma artista da dança e performer
impressionante. Das vezes que a vi em performance, nunca deixei de estar impactado pela
densidade de sua presença. É uma entrega total, uma integração irrestrita ao instante que vai
sendo criada por suas ações. Assisti duas delas na ocasião do evento Outros Curitibanos, que
aconteceu no SESC Consolação e dentro do qual fui mediador de uma mesa de debate. Eram
53
uma peça de dança e uma performance de rua – Travesqueens (feita junto com o artista
Erivelto Viana) e Não alimente os animais. Em ambas Princesa Ricardo cria uma figura
similar (a própria Princesa?), com meia arrastão, calcinha e saltos pretos, o dorso nu. A
primeira acontece no teatro e é organizada por uma sequência de cenas e a segunda acontece
na rua e tem um programa simples: Princesa se desloca no plano baixo das calçadas, se
arrastando ou andando de quatro, com uma corrente fina prateada amarrada em sua cintura.
Na ponta da corrente há uma pequena placa com os mesmos dizeres que dão título ao
trabalho.
Vou pular descrições mais detalhadas e esquemáticas desses trabalhos – a dramaturgia
cênica de Travesqueens e mesmo a tensa interação com a polícia que se deu em Não alimente
os animais – para ir direto ao ponto: os afetos, ou melhor dizendo, aquilo que esses trabalhos
tocaram e moveram em mim. Diante da figura da Princesa, em ambos os trabalhos, eu ficava
pensando em como ela criava uma situação performativa para o sofrimento, para a dor. Seja
nos efeitos especiais (e precários) de Travesqueens – como quando um contrarregra explode
uma chuva de papéis metálicos sobre as performers caídas no chão –, seja no contato de sua
pele com a aspereza das calçadas, Princesa parecia endereçar algumas dores simultaneamente
individuais e coletivas.
Queria dividir com ela um pouco desses afetos, e fomos a um café ao lado do hotel em
que estávamos hospedadas perto da Praça da República. Disse a ela sobre esse espaço para a
dor, e sobre como isso se relaciona diretamente com o que tenho pensado e desejado
artisticamente no momento. Princesa me contou sobre a literalidade da dor que sentiu em
algumas das vezes que performou Não alimente os animais, como quando um grupo de
pessoas jogou pedras contra ela. Ao mesmo tempo em que tais espaços performativos podem
ter até mesmo uma função terapêutica, no sentido de que podemos endereçar e materializar
questões antes confinadas, eles também abrem fendas amplas, justo porque uma vez que essas
dores deixam de trabalhar apenas internamente, criam uma possibilidade de redistribuição
das violências31 que as proporcionam. Essas violências podem assim ser percebidas e ter seus
mecanismos desestabilizados.
Digo isso tudo assim, um pouco brevemente, pois ver a Princesa performar me deu um
clique sobre o ponto de partida de um possível trabalho (uma performance é um disparador
de performances32), ou talvez tenha só traduzido o que eu mesmo já tenho feito: elaborado

31 Expressão construída por Jota Mombaça no texto “Rumo a uma redistribuição desobediente de gênero e
anticolonial da violência!”. Fundação Bienal de São Paulo, 2017.
32 Frase de Eleonora Fabião (2013, p. 9) presente no artigo Programa Performativo: o corpo em experiência.
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ações que, em meio a outros tantos efeitos que uma performance pode ter, sejam capazes de
criar um espaço performativo para a dor, sem que esta seja negativada em absoluto, mas onde
seja reconhecido o seu papel essencial no processamento de nossas feridas e,
consequentemente, em nossas estratégias de emancipação.

Daniel33, te invoco a partir de uma memória, um instante ínfimo que se cristalizou em


mim. Trata-se de você coberto de argila vindo em minha direção através de uma corda
tensionada por nós dois. Estávamos prestes a nos misturarmos, corpo terroso e corpo
gorduroso. Eu olhei para você e te vi gigante, tua postura ereta e longilínea, os olhos
brilhantes no meio do rosto enlamaçado. Na hora senti que você encarnava seus ancestrais e a
força que emanava do seu corpo não cabia naquele espaço mal iluminado. Tua mirada chegou
em mim e permaneceu. Senti algo como honra de dividir com você aquele instante, de evocar
junto contigo forças maiores que nós. Por ter vivido aquele momento, posso formular agora
numa frase algo que sempre soubemos sem saber que sabíamos: o corpo comporta não apenas
dores maiores que ele mesmo, mas também forças impressionantes. Sem origem marcada, ele
carrega histórias as quais não se lembra, mas que ainda assim compõem aquilo que cada
corpo é e negocia no mundo.
Para chegar nesse momento, foi necessário primeiro que eu tenha performado Gordura
Trans em Salvador, que as fotos de registro dessa ação tenham sido compartilhadas
exaustivamente e chegado em ti, que você tenha me enviado uma solicitação de amizade pelo
facebook e que, assim, nós dois tenhamos ficado cientes da vida e existência remota um do
outro. Lembro-me de uma sensação de sincronia estranha naquela vez em que te escrevi, pois
estava considerando ir ao México e você, surpreso, me disse que estava fazendo a curadoria
da noite de performances da conferência de Transgender Studies, na Universidade do Arizona
e pensando em me chamar. Antes disso nunca havíamos conversado e, no entanto,
pensávamos simultaneamente no trabalho um do outro. Um encontro iniciado antes mesmo
que nós soubéssemos.
Foi necessário também viver a residência em Porto Alegre, em agosto de 2016. Um
período de duas semanas que me marcou tão profundamente que me senti diretamente

33 Daniel Coleman Chávez, performer e pesquisador.


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implicado no processamento daqueles dias por vários meses. Também porque foi
extremamente duro retornar ao Rio, à vida cotidiana. Lembro-me bem do dia que voltei, ou
talvez tenha sido no dia seguinte. Eu estava sozinho no apartamento em que morava
provisoriamente em Copacabana. Lá tem uma janela enorme que dá para a praça do Bairro
Peixoto, e o apartamento é todo branco – paredes, portas e boa parte dos móveis. O dia
também era branco. Fumei um cigarro nessa janela e senti uma dor enorme, uma sensação de
não pertencimento tão grande àquele contexto, àquele momento, que era como se eu estivesse
descolado do espaço e fosse apenas um volume, um aglomerado de matéria incapaz de me
tornar um corpo funcional.

Minha memória funciona de forma muito afetiva, às vezes esqueço coisas estruturais e
importantes, mas guardo pequenos detalhes, fragmentos carregados de sensações. Sinto como
se alguns espaços em que ocorreram eventos com muita carga emocional se transmutassem
em espaços internos em que posso transitar. Por isso agora, enquanto escrevo, sinto-me
novamente à beira daquela janela. Faço um esforço e me transporto, então, para dentro da
Galeria Península, onde ocorreu a residência, ou para as calçadas da Rua dos Andradas, que
desce desde o centro de Porto Alegre até as margens do Rio Guaíba (que naquele momento,
em 2016, tinha o acesso bloqueado por tapumes de obra que prometiam a “revitalização” do
porto). Quase posso sentir o sol de inverno no rosto, o amargo do chimarrão no fundo da
língua, o azedo das bergamotas, a temperatura do suor que compartilhamos dia após dia.
Levantei da cadeira da escrita para preparar um chimarrão para agora, que é de novo
inverno, mais precisamente início de setembro. Bombeio o mate verde enquanto reconstruo na
memória o rosto e a presença de cada uma das parceiras de trabalho: Claudia Paim, Manoela
Moura, Cali Ossani, Violeta Pavão, Ingrid Kali, Espírito Santo, Betyna Ventu, Natalie
Mirêdia, Paula Blower, além das proponentes daquele encontro: Dani D'Emilia, Daniel
Coleman Chávez e Violeta Luna – todas elas ex-integrantes da La Pocha Nostra34, trupe de
performance que desenvolveu boa parte das práticas35 que as três compartilharam conosco,
embora aquela residência não tenha sido programada como um dos workshops da La Pocha, o

34 Na época da residência, Daniel e Dani ainda integravam La Pocha Nostra, mas se desligaram posteriormente
da trupe.
35 Para conferir algumas dessas práticas, pode-se consultar GÓMEZ-PEÑA e SINFUENTES, 2011.
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que nos rendeu mais autonomia para criar novos métodos e flexibilidade para transitar entre o
trabalho coletivo iniciado ali e as pesquisas individuais de cada participante.
As práticas eram muitas, bastante diversas e foram facilitadas não só por Dani, Daniel
e Violeta, mas por todas as participantes que tiveram desejo de sugerir algo ao coletivo. Nós
corremos de olhos fechados em praça pública; caminhamos lentamente de mãos dadas por
uma rua movimentada; compusemos imagens vivas com materiais diversos e os corpos das
outras; nos vestimos da forma mais distante de nós mesmas que fomos capazes de imaginar e
assim vivemos um dia inteiro; buscamos, em silêncio, a pessoa que nos parecia mais diferente
de nós no grupo e então a olhamos nos olhos por um longo período; exercitamos nosso olhar
sobre a outra de muitas maneiras; nos deixamos cair no chão, para trás, confiando que as
outras chegariam a tempo de nos salvar da queda; exploramos o jardim da galeria em busca de
materiais; fizemos diferentes rodas de alongamento, movimento, dança e conversas sem fim.
E também dividimos muitas memórias, estratégias, refeições, mates, cafés, mezcais, cervejas
e cachaças.
Tratava-se de uma metodologia de trabalho flexível, que fomos gradativamente
criando juntas, tendo como pontapé inicial a pergunta “Como imaginar um processo de justiça
que envolva a cura?”, feita recentemente pela filósofa e ativista Angela Davis. Esse
questionamento ativou o trabalho para o nosso coletivo provisório, formado inteiramente por
mulheres e pessoas dissidentes de gênero e sexualidade, incluindo nesse grupo também
pessoas racializadas, imigrantes e portadores de doenças degenerativas. Friso agora esses
grupos de minorias políticas sem nenhum desejo de fixar-nos ou reduzir-nos a essas palavras,
mas sim por entender que os nossos posicionamentos descentrados em relação à hegemonia
branca cisheteronormativa foi ponto central em nosso trabalho na medida em que criaram um
terreno comum para transitarmos. Um terreno cujo solo é tão instável como nossos corpos e
existências são vulneráveis. A ferida aberta do mundo pulsava em cada um daqueles corpos
reunidos e, juntas, pudemos ter um senso um pouco mais amplo de sua constituição, da
densidade das diferentes dores causadas por ela e, quanto mais as relações entre nós eram
aprofundadas, quais cuidados cada uma dessas dores exigia naquele contexto.
E aqui estamos novamente falando da ferida, essa que é ao mesmo tempo individual e
coletiva e, por isso, contraditória. “Como assumir cotidianamente a contradição entre
comunidade e indivíduo? O problema não é como superar essa contradição, mas sim como

57
conviver com ela, como habitá-la”36 (CUSICANQUI, 2016, p. 94, minha tradução). Não
estava ao nosso alcance curar a ferida do mundo, apenas reconhecê-la e cuidar de suas
manifestações em nossos corpos para, assim, também contraditoriamente, insistir em suavizar
os efeitos dessa ferida que só parece abrir-se mais e mais enquanto é também tapeada,
costurada às pressas, maquiada e mesmo mercantilizada, mas nunca cicatrizada por completo.
Acho que foi Cali, uma amiga de longa data que também estava na residência, que
disse e posteriormente escreveu na parede branca da galeria: “a ferida é a porta de entrada da
cura”, nos lembrando da impossibilidade de cicatrização desses tantos cortes sem antes poder
vê-los, tocá-los e, principalmente, senti-los. Não podemos, no entanto, sentir tudo sozinhas. A
necessidade de pensar modos coletivos de cuidado é uma das razões que convoca a
elaboração de ações performativas, em especial no contexto dessa residência, mas não só.

Quando digo e repito cura, estou distante de me alinhar ao emprego dessa palavra pelo
discurso médico e psiquiátrico em sua biopolítica do bem-estar mercantilizável. Além do
mais, o reconhecimento da ferida como constitutiva do próprio mundo nos mostra que não há
cura possível para algo que se refaz cotidiana e continuamente. O que há é apenas o cuidado.
Cuidado de si e da outra. Cuidado como método de elaboração de éticas e estéticas capazes de
considerar as especificidades das narrativas e contextos em questão. Afinal, para muitas de
nós, os processos que requisitam os nossos cuidados são disparados precisamente por isso que
aqueles saberes identificam como cura ou saúde. Para nós é preciso cuidar justamente dos
efeitos que tais entendimentos refletem sobre nossos corpos e subjetividades. O que para eles
é cura, para nós, em muitos casos, é o veneno entranhado nas vísceras, no estômago que tenta
processar o indigerível, nas musculaturas tensas e na boca amarga e seca de silêncio.

36 Tradução livre para: “¿cómo asumir cotidianamente la contradicción entre comunidad y persona individual?
El problema no es cómo superar esa contradicción sino cómo convivir con ella, cómo habitar en ella”.
CUSICANQUI, Silvia Rivera em entrevista a PAZZARELLI, Francisco (2016, p. 94).
58
Na segunda semana de residência, quando começamos a preparar trabalhos para
dividir com o público, inicialmente me juntei a Cali na elaboração de uma ação que faríamos
juntas e consistia em injetar, com seringas e agulhas, um líquido dourado nas fendas
milimétricas de uma rachadura que atravessa o piso da galeria, ressaltando e valorizando sua
presença, como na técnica japonesa kintsugi, que consiste em reparar com ouro objetos de
cerâmica quebrados. Para nós, o uso das agulhas se relacionava diretamente com nossa prática
cotidiana de injeção de hormônios. Pensei junto com Cali essa ação, mas, a partir de uma
sugestão de Dani e Daniel, resolvi dar continuidade a uma ação que havia criado durante uma
prática da residência em que nos relacionamos com objetos encontrados no jardim da galeria.
Com o título de El Varón, a ação consistia em uma experimentação corporal por um
longo período de tempo a partir de um objeto: uma vara de metal de cerca de três metros de
comprimento e um centímetro de diâmetro, dessas que são usadas como estrutura ou
esqueleto de construções. A vara, que já no nome remete a estereótipos de masculinidade
falocêntrica, era ligeiramente flexível, o que me permitiu tensioná-la em movimentos de força
e repetição. Sua extensão tomou ares talvez ameaçadores quando apontada para o público de
cima de uma espécie de mezanino de mais de dois metros de altura onde eu performei. A vara
foi arma, foi ferramenta, extensão erótica e experimental do corpo. A vara foi prótese. Eu
vestia uma camisa social comprida cinza de flanela, na qual costurei botões dourados
buscando uma relação íntima com a ação de Cali, que acontecia simultaneamente no plano
baixo da mesma galeria. Por baixo da camisa não usava nada, de modo que, pela altura
elevada, fosse possível a quem passasse na galeria ver minha genitália. A vara pedia esforço,
era bruta, e a ação foi exaustiva.
Ali comecei a esboçar uma pesquisa sobre masculinidade que há um tempo desejava
desenvolver. Enquanto preparava a ação, Daniel subiu comigo no mezanino, e lembro de
reparar na grande diferença das nossas corporalidades. Daniel tem um modo de se mover que
é ao mesmo tempo suave e forte, e sua postura remete aos seus anos de balé clássico.
O que nos leva novamente ao momento que relatei anteriormente, em que eu e Daniel
performamos juntos em Tucson. Elaboramos a ação – que segue até hoje sem um nome
próprio, embora tenhamos tentado mais de uma vez nomeá-la – a partir do simples desejo de
fazer algo juntos. Já em Tucson, durante a conferência, resolvemos fazer uma espécie de
encontro entre performances que já fazíamos: Gordura Trans e Descendencia Agencia, ação
em que Daniel se cobre de argila ou outro material terroso e fica de pé em diferentes espaços
vestindo algemas usadas por africanos escravizados.

59
Em nossa ação ficávamos ligados por uma corda amarrada em nossas cinturas, cada
um em um extremo do espaço – uma galeria onde acontecia a festa de encerramento da
conferência – e nos cobríamos com nosso material correspondente, eu com banha e ele com
argila. Depois de experimentarmos nossas corporalidades separados, porém ligados por essa
corda tensionada, íamos ao encontro do outro puxando a corda, como num cabo de guerra. Foi
esse momento que se tornou enorme na minha memória: o trajeto até ele através da corda.
Quando finalmente nos encontrávamos, misturávamo-nos, tocando o corpo do outro com toda
a superfície da pele besuntada e criando um novo corpo escorregadio e escuro de gordura e
terra.
Penso que o que permitiu o encontro desses dois trabalhos foi primeiramente o fato de
serem similares em seus programas. Ambos têm como elemento de ativação um material que
destaca um atributo físico nosso, especificamente um que funciona como marcador dos nossos
corpos como subalternos: a gordura e a racialidade. Mas o que de fato permitiu que se
fundissem em uma só ação foi uma abertura radical à diferença, uma que talvez se traduza
naquele entendimento de empatia que a Jota apontou e que trago no início deste texto. Que
tenhamos misturado nossos trabalhos e materiais não nos fez encarnar o aspecto presente no
outro que é diferente de nós mesmos, mas, enquanto ação performativa e disparadora de
subjetivações, fez com que pudéssemos provisoriamente compor um só corpo capaz de somar
nossas diferenças sem, no entanto, apagá-las, criando novas potências eróticas e de aderência
e conexão com a vida.
Ademais, penso que isso só é possível, também, por algo que tenho chamado de
confiança política, que, a meu ver, está longe de ser depositada em pessoas que acredito que
jamais irão “falhar” em suas manifestações ou modos de relacionar-se, mas sim naquelas que
percebo uma disposição a se colocarem em questão nas tão diversas situações cotidianas em
que se manifestam os problemas políticos. O que é o mesmo que dizer que são capazes de
empatizar-se politicamente a ponto de estarem abertas a modificar-se (e por isso vulneráveis),
criando assim um terreno comum onde é possível transitar, dialogar e produzir não apesar de,
mas justo por causa da diferença e das especificidades que cada corporalidade marcada
demanda em termos de cuidado.

60
Lembro-me de uma vez que caí fazendo uma trilha e ralei o joelho. Afeiçoei-me tanto
à ferida que a desenhei em um caderno. Acho que menos para me lembrar dela e mais para
registrar a beleza que nela eu via. Em um movimento similar, agora tento desenhar aqui uma
ferida que, suspeito, nunca cicatrizará por completo, apesar de constantemente mudar de
forma. Ela também carrega uma beleza enorme e estou tão afeiçoado a ela que não posso
desassociá-la dos processos de subjetivação incessantes que entendo por mim mesmo. A
ferida tem a ver com gênero, mas gostaria de não usar essa palavra para descrevê-la. Parece
que quando se diz gênero a palavra já pipoca em um imaginário cheio de dicotomias:
bonequinhos de banheiro, pau e buceta, flecha e cruz, maquiagem e pelos. Dizer gênero, por
mais que numa perspectiva ampliada, parece evocar essas imagens e elas não servem para
descrever essa ferida. É melhor começarmos imaginando uma fenda se abrindo no corpo, uma
abertura para algo tão profundo que a luz não alcança para que possamos ver o que há dentro.
A ferida tem a ver com dominação, com corpos que se constroem coletivamente não para
potencializar-se, mas para homogeneizar-se de acordo com determinadas categorias impostas.
Ela se abre, muitas vezes, por meio de atos explícitos de violência, e se mantém aberta por
estruturas naturalizadas que querem se fazer invisíveis, funcionando com tamanha
sofisticação que são capazes de fazer a ferida se dar de dentro para fora, sendo nós mesmas a
alimentarmos aquilo que nos corrói.
Que ela, aqui, tenha a ver com gênero, não a faz flutuar no espaço destacada de
contextos sociopolíticos. Normatividade e binarismo de gênero são só mais uma forma pela
qual se expressam e se mantêm a colonialidade, o fascismo e o poder. “A imposição dessas
categorias dicotômicas ficou entretecida com a historicidade das relações, incluindo as
relações íntimas” (LUGONES, 2013, p. 936). Falo aqui da colonialidade de gênero, que se
baseia na constatação de que o gênero tal qual o conhecemos e experienciamos é uma fantasia
moderna e colonial: “Diferentemente da colonização, a colonialidade do gênero ainda está
conosco; é o que permanece na intersecção de gênero/classe/raça como construtos centrais do
sistema de poder capitalista mundial” (LUGONES, 2013, p. 939).
Assim, “descolonizar o gênero é necessariamente uma práxis” (LUGONES, 2013, p.
940), pois os gêneros só existem se incorporados, e, portanto, não podem ser desafiados senão
nos próprios corpos que os administram. Se o processo de descolonização se inicia
intimamente, ele encontra efeitos muito além do nível pessoal. A partir daí quero sugerir que
as experiências trans podem ser entendidas como uma constelação de gestos descoloniais que,
apesar de muito diferentes entre si e repletos de especificidade, desafiam não apenas o próprio
sistema de gênero, mas toda a lógica colonial em que este se baseia.
61
As experiências trans – e não apenas elas, que fique evidente – pressupõem uma
“subjetividade ativa, aquela noção mínima de agenciamento necessária para que a relação
opressão ← → resistência seja uma relação ativa” (LUGONES, 2013, p. 940). Para mover-se
para além do gênero que nos foi designado é necessário enfrentar frontalmente a opressão e,
junto com ela, infindáveis atos de violência que resultam desse enfrentamento. É como
abraçar com força um volume macio e suculento, mas coberto de espinhos. Para acessar esse
centro, é preciso primeiro colocar-se numa posição muito mais vulnerável que o habitual. Até
chegar ao ponto de “nossas existências colonizadas, racialmente gendradas e oprimidas, em
que somos também diferentes daquilo que o hegemônico nos torna” (LUGONES, 2013, p.
940).
A transmasculinidade em específico encontra seus próprios desafios, pois é
frequentemente entendida – seja pelo senso comum, seja no interior das disputas discursivas
dos movimentos feministas e queer/kuir37, como uma aderência ao polo hegemônico do
sistema colonial de gênero, isto é, o masculino.

Ainda que, na minha própria corporalidade cada vez mais masculina, conquistada
através do uso de testogel, masculinidade não seja nada mais que o cheiro das
minhas ancas, o corte das minhas calças, a linha dos músculos abdominais, o estilo
do meu cabelo e a forma quadrada da minha mandíbula. É um clitóris maior que o
típico feminino, e que requer diferentes métodos de estímulo. Tenho uma sensação
de força física na masculinidade, mas também nunca tive problemas em associar a
força física com o sexo feminino. (CHÁVEZ, 2016, p. 62, minha tradução).38

A minha própria trajetória trans sempre esteve baseada em um senso de contradição,


pois é no reconhecimento da violência com a qual se constrói o sistema binário cisgênero que
afirmativamente me desloco rumo a uma masculinidade que se dá distante de uma imitação
ou reprodução do polo dominante desse sistema hegemônico. Empreendo essa jornada pessoal
e performativa como alguém que fracassou na tarefa imposta de tornar-me mulher e, na
impossibilidade de produzir um gênero socialmente inteligível que se distancie totalmente dos
binários, escolheu tornar-se uma espécie de agente infiltrado. Nunca me reconheci como
homem, embora muitas vezes seja identificado como tal, tanto em situações cotidianas, quanto
em ambientes supostamente interessados na “diversidade”, que me estampam com rótulo de

37 Grafia adaptada à fonética da língua portuguesa referente à apropriação da palavra inglesa “queer”.
38 Tradução livre para: "Yet in my own increasingly masculine embodiment, accomplished through the periodic
use of testogel, masculinity consists of nothing more than the scent of my loins, the cut of my pants, the line of
abdominal muscles, the style of my hair, and the squareness of my jaw. It is a clitoris larger than the typical
female’s that requires different methods of stimulation. I feel a feeling of physical strength in masculinity, but
then again, I never had any problem associating physical strength with being female". (CHÁVEZ, 2016, p. 62).
62
homem trans. Jamais quis ser um homem. Movo-me e me transformo às vezes em fluxo livre,
às vezes em densos rastejos afetivos, hormonais, capilares, gestuais, genitais – todos esses
igualmente políticos.
Se o meu corpo e os signos que ele carrega te dizem homem, ele está a todo tempo
traindo aquilo que socialmente funda essa categoria – sua rigidez, seu embrutecimento
emocional, sua fome pelo poder. Ao mesmo tempo em que minha aparência aos poucos se
torna mais como a de um homem, também pouco a pouco me dou conta da necessidade de me
conectar com modos ditos femininos de percepção: intuição, timidez, silêncio, delicadeza e
cuidado. E também com espaços como a casa e a cozinha. Quanto mais masculina me torno,
mais feminino também sou.

É importante reconhecer a dimensão espiritual da capacidade erótica inalienável que


nos habita, e que ao mesmo tempo ela está sempre passível de ser furtada pela
persistência do poder colonial. Assim, a afirmação da transmasculinidade é um ato
de insurgência, uma rebelião contra esse roubo em curso – é uma afirmação da
noção de que o nosso poder erótico pertence somente a nós. (CHÁVEZ, 2016, p. 63,
minha tradução) 39
A produção de uma masculinidade contra-hegemônica, não apenas no sentido de sua
diferença da categoria homem (cis) – que quer se fazer passar como universal em contraponto
a tudo que difere de si (mulheres, bichas, sapatonas, pessoas trans, travestis etc) – mas
também e principalmente no que tange sua potência de desestabilização dessa hegemonia, não
pode se dar enquanto tal se não estiver construída a partir de uma ética do cuidado. Se Daniel
e eu, na ação em Tucson, não endereçamos diretamente a questão da masculinidade, nós
estávamos durante a ação produzindo nossas próprias transmasculinidades, que por sua vez
não podem de modo algum ser destacadas de todas as outras marcas que carregamos. Se no se
puede descolonizar sin despatriarcalizar40, o contrário também é verdade: não há como
romper as amarras patriarcais e suas imposições de gênero sem olhar a ferida maior, a ferida
colonial.

39 Tradução livre para: "It is important to recognize the spiritual dimension of the inalienable erotic capacity
that lies within us, which is likewise always on the brink of theft by the persistence of colonial power. Asserting
transmasculinity is thus an act of insurgency, a rebellion against this ongoing robbery — it is an assertion of the
sense that our erotic power belongs to us alone." (CHÁVEZ, op. cit, p. 63).
40 Um dos pixos mais icônicos do grupo feminista boliviano Mujeres Creando e também título do livro de
María Galindo, uma de suas integrantes.
63

Chegamos até aqui repetindo muitas vezes a palavra ferida. Também falamos de
como algumas de nós carregamos marcas que são tidas como índices das dinâmicas de
subalternização de nossas vidas e vozes. Mas entre ferida e marca há uma diferença:

A marca é, antes de tudo, uma visualidade – produz um enquadramento que


constrange limites ao que pode ser visto; é uma forma de olhar o outro, uma mirada.
Por isso conhecemos dela a aparência, o design: é a genitália, a pele escura,
vermelha, ou sei lá: certo tipo de pelo corporal, o tamanho do pescoço, uma maneira
de modificar o corpo e de portar-se (…) A ferida é o que subjaz à marca. É uma
sensibilidade – um canal de afetação alojado no corpo monstrificado. Se a marca é
uma aparência, ela se produz entre o corpo e a mirada; assim, não obstante pareça
um atributo do corpo, ela é uma projeção à qual se atribui valor de verdade. A ferida,
de maneira distinta, não se percebe pela aparência; é mais como uma dor, uma
intensidade do corpo monstruoso que o torna singularmente sensível ao mundo que
o monstrifica. (MOMBAÇA, 2017, p. 211).

Trata-se de “uma situação colonial, na qual o colonizado é constituído pelo olhar


absoluto e absolutista do outro colonizador” (MOMBAÇA, 2017, p. 212). E é a colonialidade,
como projeto político cuja continuidade se aloja nos corpos, que através dessa marcação
produz os efeitos da racialização, da generificação e da monstrificação. Esta última, aqui, está
relacionada à atribuição de um valor menor que o humano a esses corpos, em ordem de
garantir a humanidade do sujeito hegemônico (o único sujeito possível, já que nós-outras
nunca chegamos a sê-lo) e condenando, assim, as corporalidades marcadas a uma economia
da dor.
Em outros termos, se a ferida é uma sensibilidade, não significa que possamos escapar
dela. Ao contrário, ela é uma fenda constituinte desse projeto sempre incompleto que somos
nós.

64
Movimento 4: Ancestralidade

O presente texto foi escrito durante uma passagem que fiz pela Europa, mais
precisamente pela Suíça e por Portugal, e finalizado no Rio de Janeiro. A temperatura varia,
assim, entre -6ºC e 38ºC, entre deslocamentos e retornos, distâncias abissais e o mais próximo
que conheço da sensação (nunca plena e sempre provisória) de pertencimento, encontrada
tanto no lado de lá do Atlântico, quando na companhia de algumas amigas, quanto na solidão
do apartamento em que estou agora.
Não acho que o texto seja exatamente conclusivo. Embora me pareça que ele amarre
algumas pontas, outras são inevitavelmente deixadas soltas. Por isso, chamo-o agora de
movimento. Depois de um movimento há sempre um outro e outro e outro, nem que seja uma
pausa ou um silêncio. Considerando toda a energia que tenho movido para fazer possível esta
escrita, intuo que depois da última palavra, do último ponto, da última revisão, precisarei de
uma longa pausa silenciosa. Depois, talvez, algumas ações sem palavras para iletrar o corpo
afoito por descanso e por escuta, deixar que ele trabalhe numa frequência mais solta, na qual
os processos seguem seu rumo, talvez um pouco mais distantes da consciência e do desejo
pela coerência.
Não sei ainda nomear bem as emoções, nem tampouco ter uma consciência ampliada
de tudo que tem sido movido por este trabalho, tanto em torno do ato de escrevê-lo: as
ansiedades, excitações, expectativas e projeções fantasiosas que se dão em relação à escrita
enquanto ação e trabalho a ser realizado; quanto em seu interior: nas emoções movidas pelo
próprio conteúdo dos textos. Quero acreditar, no entanto, que elas estão aí, trabalhando
através das palavras, desse jeito misterioso que os textos às vezes têm de expressar até mesmo
aquilo que não temos intenção ou que não sabemos que sabemos.

Estou agora na Suíça e neva muito lá fora. É o quinto dos vinte e seis dias que passarei
aqui em uma residência onde estou desenvolvendo, junto à artista e colega de mestrado Luisa
Marinho, o projeto Chupim Papers, cujo programa consiste em interferir, através da inserção
de textos copiados a mão e imagens impressas, nos livros da Biblioteca Andreas Züst, que foi

65
criada a partir da coleção particular do artista suíço de mesmo nome e instalada no prédio
onde estamos hospedadas. Alpenhof é um antigo hotel restaurado para receber, além da
biblioteca, uma hospedaria, um centro cultural e, duas vezes ao ano, artistas residentes. Fica
localizado nos Alpes, a 1100m de altitude, perto da fronteira com a Áustria. Das janelas do
quarto e do espaço de convivência, nomeado como Panorama Room, vê-se uma grande
extensão das montanhas nevadas.
A paisagem me acalma, o trabalho me inquieta. Nesse balanço instável percorro os
dias sempre parecidos desde o isolamento de um prédio no meio de uma estrada no alto de
uma montanha congelada. Não sinto falta do borbulhar da cidade ou das demandas
emocionais dos círculos sociais. Não invejo o calor que certamente já faz no Rio em
novembro. Vagamos pela biblioteca, seus corredores são apertados. Passo quase batido pela
sessão de arte. Rapidamente encontramos uma sessão de livros escritos por “viajantes”
europeus com destino a diversas outras partes do mundo, em especial as colônias. Os livros
começam a pesar, os tempos históricos se misturam. Sinto-me exausto, recorro às montanhas.

Penso: preciso escrever. E tal necessidade tem muitas origens. Preciso intimamente
como preciso institucionalmente. Foco no desejo íntimo, que me causa menos ansiedade. Leio
coisas que estão na minha biblioteca pessoal, procuro algo que me ajude a seguir e encontro
este trecho:

[Por ter sofrido racismo] Alicia é transportada para um outro lugar na história, como
se referissem a ela um século atrás. Ela não está mais aqui. (…) Nossa história nos
assombra porque foi impropriamente enterrada. Escrever é, nesse sentido, um modo
de ressuscitar uma experiência traumática coletiva a enterrá-la propriamente. (…)
Nesse sentido, a ausência de temporalidade fixa (timelessness), por um lado,
descreve o passado coexistindo com o presente, e pelo outro lado, descreve como o
presente coexiste com o passado. O racismo de todos os dias nos realoca nas cenas
do passado colonial – colonizando-nos novamente.41 (KILOMBA, 2010, p. 137,
minha tradução, grifos acrescentados).

41 Tradução livre para: “Alicia is transported somewhere else in history, being addressed as if it were a century
ago. She is not here anymore.. (…)Our history haunts us because it has been improperly buried. Writing is, in
this sense, a way to resuscitate a traumatic collective experience and bury it properly. (…) Hence timelessness,
on the one hand, describes the past co-existing with the present, and on the other hand describes how the present
co-exists with the past. Everyday racism places us back in the scenes of a colonial past – colonizing us again.”
(KILOMBA, 2010. p. 137).
66
Essa coexistência de temporalidades, ou como coloca Kilomba, a ausência de uma
temporalidade fixa (timelessness), que se dá pelas atualizações do racismo e do colonialismo,
parecem descrever minha sensação ao me deparar, na biblioteca Andreas Züst, com livros
europeus publicados nos séculos XVIII e XIX cujo conteúdo é explicitamente violento, na
medida em que descrevem e retratam o outro racial, isto é, africanos escravizados e povos
originários das diversas colônias pelo mundo como selvagens desumanizados a tal ponto que
chegam a ser comparados com animais. Ao mesmo tempo em que percebo a distância secular
e as ideologias datadas que permitiram a própria existência desses textos, sinto-me diante de
dinâmicas extremamente atuais que, apesar de se apresentarem de outras formas, são
brutalmente similares em seu funcionamento. A materialidade presente e incontornável de tais
volumes me afeta de forma densa. Palavras escritas há trezentos ou duzentos anos que, no
entanto, permaneceram e falam alto diante de mim, pois aqui dentro e mundo afora essas
histórias estão ainda vivas, agora com novos adornos, novos disfarces, mas operantes.

“Chupim é um passarinho latino-americano que esconde seus ovos em ninhos


construídos por outras espécies para que sejam chocados. Assim como ele, buscamos ninhos
estrategicamente posicionados para botar ovos considerados estranhos demais para estarem
ali, seja por sua origem, gênero ou aspecto.”42 Posto de outro modo, podemos dizer que as
interferências nos livros estão sendo pensadas desde uma perspectiva descolonial, com o
objetivo de oferecer contrapontos às narrativas em sua esmagadora maioria brancas,
europeias, masculinas e cisheteronormativas presentes nos livros aqui enfileirados.
As interferências consistem em trechos de textos copiados à mão e imagens de
trabalhos artísticos impressos, que, em sua maioria, não estão presentes na biblioteca. Os
textos e imagens são tanto de autoras e artistas que fazem críticas e oposições diretas ao
pensamento moderno colonial, tanto de outras que, ainda que não toquem especificamente no
tema, têm sua enunciação localizada e marcada como “outras” da perspectiva pretensamente
universal presente em boa parte dos livros. Trata-se de um movimento de carregar conosco
nossas pesquisas bibliográficas prévias e encontrar para elas um lugar fértil para que
trabalhem. É como buscar lugares propícios para que choques entre mundos aconteçam,

42 Texto de apresentação do projeto disponível em <https://www.chupimpapers.com/info>


67
esperando que deste atrito brotem faíscas. É também uma operação de sabotagem do arquivo
oficial, sem, no entanto, destruí-lo, entendendo a importância de lidar com ele, desde que
portando ferramentas que nos permitam desmantelá-lo.
A ação copista vem como um leve transe. Palavras passando pelas mãos que desenham
as letras, gravando esses textos também no corpo que copia, descolonizando esse corpo.
Aproxima-se da prática meditativa – ação contínua, mas não automática – pois vez em quando
uma frase emociona ou inquieta e aí, então, a letra cursiva é deformada e é preciso respirar
mais fundo, recentrar a mente. E assim seguem os dias.

Chupim deixou seus ovos instalados permanentemente na biblioteca, dentro dos livros,
onde não se pode supor quem os vai encontrar. Reproduzo alguns de seus rastros-imagens
aqui, nas fotografias impressas em anexo. Os demais se encontram no seguinte endereço, que
também as convido ao acesso: https://www.chupimpapers.com/

Ao chegar aqui para desenvolver um projeto diretamente ligado a questões


descoloniais, já nos primeiros dias, estive curioso sobre a participação da Suíça na
colonização brasileira. Especialmente porque aqui se sustenta um mito de neutralidade
colonial: a Suíça, diferente de boa parte dos países da Europa Ocidental, não teve colônias
propriamente ditas, o que está relacionado também à ideia de neutralidade política que o país
sustenta oficialmente desde 1815, não tendo diretamente tomado parte em nenhuma das duas
grandes guerras nem tampouco se integrado à União Europeia ou à ONU, associações que
compartilham uma série de posicionamentos políticos comuns que escapariam a uma tal
concepção de neutralidade.
A minha curiosidade foi aguçada pelo fato de Nova Friburgo, cidade localizada na
serra fluminense onde nasci e vivi até os dezoito anos e onde grande parte dos meus
familiares ainda vive, ter sido, segundo a história que é contada nas escolas e em que seus
habitantes em sua maioria acreditam, fundada por colonos suíços, tendo eu mesmo, por parte
da minha bisavó materna, descendência suíça. Na “Suíça brasileira”, apelido da cidade, corre
68
o mito de que a colonização suíça foi sinônimo de trabalho livre e que a história da cidade não
estaria, então, ligada à escravatura de africanos. Com algum esforço tento me lembrar das
aulas sobre a história da cidade no ensino fundamental. Tenho na memória a imagem de um
livro de capa azul anil, com o mapa da cidade, que lembra uma baleia, estampado, mas não
consigo recordar um momento sequer em que eu tenha recebido a informação de que ali se
praticou o trabalho escravo. Suponho que essa memória tenha sido apagada em favor da
manutenção de uma certa zona de conforto branca diante desse episódio brutal e em certa
medida insuperável que foi a escravidão no Brasil.
Não foi necessário muita pesquisa para saber que a Suíça não apenas participou
financeiramente do tráfico humano de africanos escravizados, prestando serviço de crédito,
importando bens produzidos com mão de obra escrava e fornecendo tecidos nobres que eram
usados como moeda de troca nas negociações, como também os colonos suíços que migraram
para a serra fluminense e outras regiões brasileiras, em especial Bahia e Santa Catarina, foram
participantes ativos desse mercado.43 Mas ainda que historiadores já tenham desbancado os
mitos que sustentam a não implicação da branquitude suíça ou friburguense no problema do
racismo, na “Suíça brasileira” e na europeia os brancos queremos acreditar-nos inocentes.44
Nos dias atuais, declarar-se abertamente racista não é bem visto pelo senso comum. O
racismo, inegavelmente ainda presente tanto de modo estrutural quanto em relações
interpessoais, é então sublimado para o inconsciente, sendo isso o que torna possível uma tal
sensação de inocência branca. Afinal, o

racismo hoje é paradoxalmente “irracional e normal”. Quando nossa cultura nos


ensina a sermos racistas e nossa ideologia nos ensina que o racismo é ruim, nós
respondemos excluindo a lição proibida da consciência. A repressão do nosso
racismo é uma peça crucial na retórica da inocência. Primeiramente, quando
negamos a acusação do racismo, passamos a poder reivindicar o manto da inocência.
Como pessoas brancas não racistas, somos inocentes; não fizemos mal algum
àquelas pessoas e não merecemos sofrer pelos pecados dos outros, as pessoas
brancas não inocentes que são racistas.45 (ROSS, 1997, p. 29, minha tradução).

43 Para informações mais detalhadas sobre a relação da suíça com a escravatura ver FÄSSLER, 2005.
44 Sobre a prática da escravidão em Nova Friburgo ver MARRETTO, 2014.
45 Tradução livre para: "Racism today paradoxically is both ‘irrational and normal’. When our culture teaches us
to be racist and our ideology teaches us that racism is evil, we respond by excluding the forbidden lesson from
consciousness. The repression of our racism is a crucial piece of the rhetoric of innocence. First, we sensibly can
claim the mantle of innocence only by denying the charge of racism. As white persons and nonracists, we are
innocent; we have done no harm to those people and do not deserve to suffer for the sins of the other, not
innocent white people who were racists..." (ROSS, 1997, p. 29).
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Enquanto escrevo, inevitavelmente resgato memórias de episódios racistas que
presenciei e participei dentro da minha família. Desde coisas simples como o modo de se
referir a pessoas negras, até mesmo atualizações quase literais da lógica escravagista no que
se refere, por exemplo, ao modo de tratar empregadas domésticas. A noção de superioridade
branca sempre esteve pairando por ali na forma de comentários ácidos e jocosos que, nesse
tom, querem passar por brincadeiras ao mesmo tempo em que atualizam as subjetividades que
tornam possível a permanência de uma tal ideia racista de superioridade cultural e histórica da
branquitude.

Saí da depressão. Vinham à mente as madames de novela, as falas ancestrais, minha


avó vociferando contra a maldita princesa Isabel que acabou com o chicote,
chamando empregada de la domestique; meu tio-avô maldizendo o energúmeno que
havia terminado com o horário solar de trabalho e imposto esse absurdo de oito
horas ao dia; das minhas tias constatando cientificamente a superioridade de São
Paulo em relação ao Nordeste graças à imigração europeia; Milu mandando Joel
comer tudo senão ia ficar feio como os moleques de rua. Não havia suavidade
alguma nesse solo eivado da pior tradição do mundo, o mesmo solo das camisinhas
de pagão feitas com algodão pele de ovo bordadas pela tia-avó, aquela que chamava
todas as empregadas de Maria pois não tinha mais paciência de ficar decorando os
nomes dessas fulanas. (BRACHER, 2002, p. 77-78).

As branquitudes são muitas, e sua presença no Brasil evidentemente tem muitas


histórias, algumas mais facilmente traçáveis que outras. Mas tendo eu nascido na cidade de
Nova Friburgo, que tem fundação datada no início do século XIX, e tendo, ao menos na parte
da história que é contada, as famílias que me deram origem se estabelecido nessa cidade
desde a migração da Europa para o Brasil, sem muito mistério posso concluir qual o projeto
político principal que levou com que meu nascimento tenha se dado no espaço-tempo em que
se deu. Sou um fruto já tardio, do fim do século XX, de um projeto de embranquecimento da
colônia escravagista datado do início do século anterior.
O motivo pelo qual traço rapidamente essa história genealógica racial não é
simplesmente para assumir nenhum tipo de culpa branca. A culpa por si só não é suficiente
como alternativa à inocência. De modo mais complexo, acredito ser preciso transformar o
modo de se olhar para essas histórias como um todo para, também, entender como o
imaginário colonial se atualiza no cotidiano, subalternizando de modo estrutural pessoas
racializadas, mas também mulheres e pessoas dissidentes de gênero e sexualidade; e se
complexificando ainda mais nas intersecções entre estes grupos. Isso porque o gênero
enquanto normativa binária não pode ser dissociado do imaginário colonial.


70
Lembro-me de, muito cedo, ainda na infância, sentir-me imensamente deslocado do
meu contexto familiar. Mesmo carregando no corpo a genética e os costumes coloniais
parcialmente dissolvidos pelo tempo, apesar de atualizados, eu não correspondia (e não
correspondo) a um dos aspectos fundantes de tais costumes: heterossexualidade e
cisgeneridade compulsórias – dois dos pilares principais da cultura patriarcal que segue, ao
menos até a geração dos meus pais, quase intacta. Não tenho conhecimento de nenhum
parente que não seja cisgênero, e mesmo a homossexualidade de alguns primos distantes é
tratada de forma velada. Não por acaso precisei distanciar-me de tais contextos, literalmente e
muito cedo, e optei por mudar de estado aos dezoito anos. Quase inconscientemente eu sabia
que se era para explorar mais livremente as subjetivações que eu sentia pulsar por dentro sem
ainda entender muito bem, eu teria que fazê-lo distante dos olhos familiares.
Ainda, entendendo que não há neutralidade possível em discurso algum, faz-se
necessário localizar minha fala. Se a princípio cheguei às teorias descoloniais através de uma
investigação acerca das normativas de gênero desde uma experiência trans, sei bem que não
se pode falar em colonialidade sem falar dos processos de racialização, assim como não se
pode falar de gênero sem considerar esse aspecto. Muitas autoras feministas negras e de cor
demonstram por diversas vias a impossibilidade de pensar em gênero sem considerar o
aspecto racial, mas me alinho aqui em específico ao que Maria Lugones chama de feminismo
descolonial. A autora aponta para uma necessidade de olhar novamente as relações de poder
em curso em nossas vidas – cujo um dos efeitos é a produção das categorias de gênero –
considerando a historicidade que lhes é intrínseca. Na perspectiva descolonial de Lugones, a
chave para entender a relação entre gênero, colonialidade e raça está nos mecanismos de
desumanização do outro racial empreendido pela máquina moderna colonial: “Só os
civilizados são homens ou mulheres. Os povos indígenas das Américas e os/as africanos/as
escravizados/as eram classificados/as como espécies não humanas – como animais,
incontrolavelmente sexuais e selvagens” (LUGONES, 2014, p. 936). Mas também eram
considerados menos que humanas qualquer dissidência do rígido sistema de gênero:
“Hermafroditas, sodomitas, viragos e os/as colonizados/as, todos eram entendidos como
aberrações da perfeição masculina” (LUGONES, 2014, p. 937).
Partindo da posicionalidade menos-que-humana que se atribui às vidas negras, Jota
Mombaça traz a noção de morte social para falar também das vidas trans e reflete que:

71
[…] a posição negra é anti-humana, precisamente porque o humano – como projeto
de sujeito e de mundo – é antinegro. Assim, num mundo antinegro (este mundo),
“negros são doença”. (…) Ocorre que, embora não se possa (nem seja esse meu
interesse aqui) equalizar a marca da escravidão com o tipo de inexistência projetada
contra as vidas trans, talvez seja possível refigurar a noção de morte social a fim de
dar conta da inviabilidade ontológica, sentimento de inexistência e posicionalidade
menos-que-humana de certas experiências dissidentes de gênero. Afinal, num
mundo antitrans (também este mundo), trans é doença (literalmente!) (MOMBAÇA,
2017, p. 223-224).

Como ela bem pontua, essas posições não são equalizáveis, mas guardam lá suas
semelhanças no que diz respeito à sua inviabilidade ontológica, ou seja, sua impossibilidade
de existir enquanto sujeito. Tal inexistência, por sua vez, é garantida pela persistência da
colonialidade, que se refere justamente a essas dinâmicas de produção de outros da
humanidade que, pelo contraste, resguardam o eu hegemônico e humano. É nesse sentido que
a colonialidade permanece e nos requisita a elaboração de práxis descolonizadoras, baseadas
menos em um olhar unidirecional para o passado que numa percepção da historicidade
intrínseca às teias relacionais e de poder que constituem nossas vidas.
Assim, ao pensar a intersecção que se dá em um corpo como o meu, isto é, um corpo
branco e trans, faz-se necessário que os processos de descolonização que agencio tanto íntima
quanto relacional e coletivamente deem-se em sentido duplo e complementar, através do qual
gradativamente implodo os efeitos da branquitude ao mesmo tempo em que refaço-me
enquanto pessoa trans justo no espaço aberto por esse desfacelamento. Pois se a branquitude
enquanto sistema de poder constituiu uma série de privilégios estruturais no decorrer da
minha vida, ela é também o mesmo sistema que garante a permanência da colonialidade de
gênero e todos seus efeitos violentos de invisibilização e inviabilidade da existência trans.

Antes de vir para a Suíça, passei por Lisboa para visitar amigas. Por sorte minha, no
mesmo dia em que cheguei ocorreram as aberturas de duas exposições individuais da artista e
escritora portuguesa Grada Kilomba. As exposições estão instaladas no MAAT – Museu de
Arte, Tecnologia e Arquitetura e na Galeria das Índias, ambas no bairro de Belém, onde se
encontram alguns monumentos à colonização. Dentre eles, na margem do Rio Tejo e
apontando para a foz que desemboca no Oceano Atlântico, está o Padrão do Descobrimento,
representação escultórica e estilizada de uma caravela com dimensões bastante próximas do
real. Lembro-me bem do espanto e desconforto ao visitar esse monumento da primeira vez
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que vim à Lisboa anos atrás. Para mim, estar ali foi extremamente doloroso. A própria
existência de um monumento como esses em tamanha proporção e destaque na paisagem já é
evidência do quão aberta ainda está a ferida colonial. E era essa que me doía, transpassando
barreiras entre o íntimo e o histórico e fazendo arder a contradição que carrego no corpo tendo
nascido na maior ex-colônia desse país onde eu então colocava meus pés pela primeira vez. O
desconforto era ainda aguçado pelas dezenas de turistas, dentre eles muitos brasileiros, que
falavam alto e tiravam fotos posando diante do monumento. Penso que a cena foi tão
desconcertante para mim porque embora parecesse absurda, me era extremamente familiar o
tipo de mentalidade que a tornava possível.
O modo como a memória colonial é sustentada, de forma geral, como positiva pela
branquitude brasileira parece se dar pelo apagamento da memória de violência inerente a essa
parte da história da imigração europeia para o Brasil. Preserva-se uma memória parcial que
permite que o orgulho da origem europeia seja possível sem nenhum remorso relativo a dados
brutais e centrais nessa história: a escravatura, a exploração e o extermínio de africanos e
nativos. Tal apagamento é o que permite, precisamente, a atualização do racismo, agora de
forma menos explícita, ainda que muitas vezes direta.
Em uma das obras de Kilomba, intitulada Dictionary, estamos diante de cinco
monitores de tela plana presos à parede e dispostos lado a lado, na altura dos olhos. Em cada
um deles, com fundo preto e letras brancas, há uma definição escrita pela artista em cinco
palavras, apresentadas alternadamente em português e inglês nas cartelas do vídeo: negação,
culpa, vergonha, reconhecimento e reparação. São, na tradição psicanalítica, as possíveis fases
experenciadas pela psique após um trauma. Também no trabalho teórico de Kilomba, ela se
aproxima da psicanálise para abordar o que chama de trauma colonial. A artista, que é negra,
nasceu em Portugal e vive na Alemanha, apesar de já desenvolver carreira como artista e
teórica há vinte anos, não tinha ainda sido convidada para expor no país, o que pode ser
diretamente relacionado ao racismo fundante da cultura portuguesa. Também nesse sentido,
Kilomba afirmou em entrevistas e na fala que fez em Lisboa na semana da abertura das
exposições, que Portugal ainda está na fase da negação quanto ao aspecto violento da
colonização. Fala-se “dos mares, dos ‘descobrimentos’, das naus com um romantismo tal,
como se a história colonial e da escravatura, que aqui é completamente banalizada, fosse um
encontro intercultural e não uma história de tortura, genocídio, desumanização, exploração
patriarcal.” (KILOMBA, 2017).
Não ousaria dizer, de forma tão generalizante, que o Brasil encontra-se no mesmo
estágio. Muitas e complexas são as diferenças hoje entre Brasil e Portugal, a começar pela
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parcela predominantemente negra da população brasileira, passando também pelo abismo
social marcado pela precarização da vida do lado de lá do Atlântico, enquanto aqui se goza de
privilégios cuja manutenção não pode, ainda hoje, ser separada da história colonial. Mas ao
menos no que se refere à branquitude brasileira, a negação é quase tudo que vejo. “O racismo,
(afinal), é uma problemática branca” (KILOMBA, 2016). A diferença racial no Ocidente foi
inventada por brancos a serviço de nós próprios, e não há resolução completa para o potencial
violento de nossos corpos.
Podemos, no entanto, tentar reduzi-lo. Na pista de Kilomba, no último verbete de seu
sucinto dicionário, lemos a palavra reparação, que a mim parece indicar diretamente ao seu
sufixo, à ação, ao movimento, à mobilização e à responsabilidade. Ademais, “acredito que o
nosso papel mais importante é criticar e enfraquecer as estruturas que asseguram a nossa
existência aos custos de outros – incluindo o colonialismo, o racismo e o capitalismo
extrativista”46 (MITCHELL, 2017, minha tradução).

Como ser uma máquina de guerra com lágrimas nos olhos?

Poderia ser o título desta dissertação de mestrado que tanto tem me custado nomear.
Mas é o nome do programa interdisciplinar com curadoria de Jota Mombaça e Daniel
Lourenço, do qual sou o primeiro convidado. Agora já é dezembro e estou novamente em
Lisboa depois da incursão na neve. Faz frio aqui também. Nas esplanadas de cafés espalhados
pela cidade, escrevo parágrafos picados em todos os fragmentos deste texto. Ao mesmo
tempo, planejo uma ação de Gordura Trans para esta cidade. A pergunta título martela no
fundo da cabeça, como se sempre tivesse estado lá, como se me constituísse. Como, afinal?
Penso em quanto tempo faz que não choro, de modo que a pergunta muda de sentido, não é
como se as lágrimas fossem um obstáculo para que eu me torne uma máquina de guerra. A
guerra, desde esse corpo, é imanente desde que dela não se escape. Como, então, deixar que a
dor escoe? Como ter lágrimas nos olhos? Talvez Gordura Trans já seja um modo de chorar.
A vulnerabilidade que acesso durante a ação se torna cada vez mais densa e a cada vez a

46 Tradução livre para: "I believe that our more important role is in critiquing and weakening the structures that
secure our existences at the expense of others – including colonialism, racism and extractive capitalism."
(MITCHELL, 2017).
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alquimia performativa que o programa me permite realizar é mais potente, no sentido de sua
capacidade de transformar as emoções que carrego no corpo, justo por ser esse corpo.
A nível íntimo, parece-me que esse projeto performativo foi em um dado momento da
minha trajetória um movimento autoafirmativo e de autoconhecimento essencial para a
incorporação mais consciente das marcas que meu corpo carrega. Ainda que não considere
que um processo como esse possa ser concluído ou finito em qualquer sentido, uma vez que
as subjetivações em torno dessas marcas estão em constante transformação; percebo que meus
desejos no âmbito da criação – entendida aqui como simultaneamente estética, intelectual,
afetiva, política e de vida – seguem se deslocando desde essas particularidades já afirmadas e
incorporadas rumo a uma perspectiva mais ampliada, mesmo social, de onde elas estão
inseridas. Tudo que aconteceu no tempo que venho performando esses programas, em
especial as pessoas que encontrei e que passaram a compor as constelações de ideias e afetos
que carrego, apontam para problemas mais amplos na medida em que englobam ainda outras
particularidades que não me atravessam enquanto corpo marcado, como a racialidade, por
exemplo, mas que tangem, no campo ampliado, as lógicas que tornam possível esse corpo.
Foi assim que decidi, complexificando a lógica que vinha seguindo com as gorduras
localizadas – em que o material é escolhido de acordo com a localidade em que o programa
acontece – utilizar, além de quatro garrafas do tradicional azeite de oliva português, também
uma garrafinha de azeite de dendê, que compramos em uma loja de produtos brasileiros. Estar
em Portugal, para mim, é ativador de tantas contradições, tantas temporalidades
embaralhadas, dinâmicas de identificação e negação, que a ideia de me banhar apenas em óleo
de oliva não me parecia suficiente. Aqui sinto-me sempre como se chegasse à casa de um
parente que não conheço bem e nem gosto muito, mas com quem me pareço de alguma forma.
Por mais incômoda que seja essa imagem espelhada e turva, algo em mim é movido por ela,
mesmo que um desejo por tornar-me menos parecido com esse primo distante, um
colonizador que vive e me consome por dentro e a quem eu sei que é preciso matar. Eu
precisava que o trabalho fosse capaz de incorporar essa contradição, então nada melhor que
retornar ao início, não à primeira ação do projeto, mas àquela em que ele ganhou mais força:
quando utilizei o azeite de dendê, na cidade de Salvador. É quase como fechar um ciclo, mas
sem amarrá-lo, deixando que siga em espiral.
Utilizei a garrafinha de dendê por último, na cabeça. Lembrei-me que em Cuiabá,
quando também utilizei dois óleos, de soja e babaçu, Angela Donini havia me dito que pensou
que eu guardaria a cabeça para o óleo de babaçu. Angela, eu devia mesmo ter guardado, e
dessa vez o fiz. O dendê, no quase inverno português, solidificou, e tive que aquecê-lo em
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banho-maria para que mudasse de estado e assim eu pudesse retirá-lo da garrafinha durante a
ação. Mas de todo modo ele permaneceu denso, mais pesado, e veio escorrendo pelo topo da
minha cabeça numa viscosidade aveludada que imediatamente mudou meu próprio estado. A
textura, a temperatura, o cheiro, tudo era diferente e me transportou momentaneamente para
fora dali, numa suspensão que durou alguns instantes até que eu pudesse novamente abrir os
olhos e ver o público. Era um ato de cuidado em um momento já avançado de ação, em que a
ferida já estava aberta e ardia. E arderam meus olhos quando desceu sobre eles o óleo
avermelhado. Mas não ver, de repente, era justo o escape para dentro que eu precisava ainda
sem saber.
Os materiais, também corpos como os nossos, de todas nós presentes ali, são arquivos
vivos de histórias coloniais, seja lá com qual implicação. E me interessava ali fazer com que
essas corporalidades todas se encontrassem, que pudéssemos reconhecermo-nos, a nós
mesmas e às outras; e a partir desse choque, ferida aberta, mundo, então, talvez, atravessar
algo, pisar em um novo chão, ainda que um chão escorregadio como o de Gordura Trans. E

não me preocupa aqui nem uma subjectividade heróica, nem uma subjectividade de
vítima — especialmente dados os mitos ideológicos nocivos quanto a agência que
ambos estes extremos reproduzem. Porque, no final de contas, para além de achar
este dualismo historicamente desonesto e epistemologicamente violento, considero
que a questão que nos devemos colocar nesta matéria não é, sequer, a de uma
subjectividade, tanto quanto de uma travessia, de um contacto, ou de um toque.
(LOURENÇO, 2017).

Performance, travessia, contato e toque agem diretamente na produção de contra-


arquivos, precisamente no espaço vazio deixado pelas histórias e pelos arquivos oficiais e
hegemônicos, evidenciando, assim, marcas e feridas e destacando a carne ao invés dos ossos,
o corpo em detrimento dos órgãos. A noção de contra-arquivo é inaugurada por Ann
Cvetkovich em um breve artigo intitulado The Queer Art of Counterarchive e desenvolvido
pela pesquisadora Adriana Azevedo, que, em diálogo com Derrida, afirma que:

a própria ideia de arquivo implica em uma verdade arquivista (ou arquivada). Ela dá
corpo ao saber histórico produzido a partir do acúmulo de traços da memória. No
entanto, os traços e as inscrições da memória são os eleitos pelo próprio arconte, que
funciona como um “curador”, mas também censor. (AZEVEDO, 2016, p. 70).

76
O contra-arquivo surge dessa constatação da parcialidade dos mecanismos de
produção de memória, surge “quando se tiram as fotos escondidas do baú guardado em
sótãos, porões, no fundo dos armários, debaixo das camas, dentro de livros antigos. Desse
vasculhar, dessa bagunça, surgem das profundezas arquívicas o queer do arquivo – os seus
restos” (AZEVEDO, 2016, p. 71).
Para além da evidente pertinência dessas reflexões, que promovem uma abertura no
leque de arquivos possíveis, desestabilizando assim os modos de produção de conhecimento,
sugiro que a performance também pode ser um mecanismo de produção de contra-arquivos,
na medida em que permite um entendimento do corpo como “um tipo de arquivo e hospedeiro
da memória coletiva”47 (SCHNEIDER, 2012, p. 142, minha tradução). O modo de
permanência da performance age no outro extremo da lógica do arquivo como documento, ela
se dá através de reaparições daquilo que foi sublimado por esta mesma lógica, e é por via do
corpo em relação que esses conhecimentos são repassados, renovados ou transformados.48 A
performance, então, pode ser uma ferramenta de acesso, por via do corpo, às ancestralidades
soterradas pelo domínio do arquivo, que seleciona quais memórias permanecem como
verdadeiras e válidas e quais não, privilegiando sempre a lógica hegemônica e subalternizante
da qual viemos falando.

Existem muitas outras ancestralidades em curso. Do mesmo modo que nas narrativas
trans uma oposição frontal ao determinismo biológico é necessária para que estas se deem
tanto enquanto narrativa dissidente quanto como materialidade corpórea, um tal
enfrentamento se dá também no que se refere à hereditariedade. A ausência de histórias com
as quais possamos nos identificar no interior da lógica colonial – que traz consigo o
patriarcado e a cis-heterossexualidade compulsória tal qual os conhecemos – ou, mais
precisamente, a ausência de narrativas cuja lógica de operação possibilite o agenciamento de
nossas subjetivações, nos leva a buscar tais narrativas em outros espaços que não o das
instituições preestabelecidas, como a família sanguínea, fazendo com que associemos nossas
subjetividades a cosmologias outras e das mais diversas.

47 Tradução livre para: “a kind of archive and host to a collective memory” (SCHNEIDER, 2012, p. 142).
48 Para um desenvolvimento detalhado do modo como a performance permanece por via da reaparição ver
SCHNEIDER, 2012, p.137-150.
77
Se falo em ancestralidade, não é por achar possível encontrar aí nenhum tipo de pureza
anterior ao advento do colonialismo. O que está feito não se pode desfazer. O que está em
jogo, no entanto, é a perspectiva sempre parcial e hegemônica que nos trouxe até aqui, sendo
necessário considerar o aspecto fantasmático das narrativas, encontros e subjetivações que se
deram apesar de e em resistência às normatividades e violências raciais, de gênero etc. Afinal,
“o ancestral não é simplesmente a potência da virtualidade, ele é o terreno seguro do que já
foi vivido, é a experiência vivida da colonialidade latente por sob o manto moderno do
esvaziamento do presente, por sob as forças de negação, ausência e esquecimento”49
(CHÁVEZ e VÁSQUEZ, 2017, p. 43, minha tradução).
Assim, sendo concebido pelos genomas de meus pais e por toda a bagagem cultural
com o qual estes se combinam, ao mesmo tempo reconcebo-me nos incontáveis atos de
desobediência que se deram antes dos meus próprios. Sou fruto de ousadias múltiplas,
insistências impensáveis em modos de vida aparentemente impossíveis. Sou filho e irmão de
muitas pessoas e coisas, algumas que pude conhecer e amar, e outras que projeto por meio de
arquivos precários ou fantasiosos, como este trabalho. Incorporo essas entidades remontadas e
inventadas, que por vezes escapam mesmo de qualquer personificação ou materialidade.
Reconstruo-as em mim e também as destruo enquanto vivo, pois vivendo é que faço possível
uma existência como tal, não sem dor, não sem medo, mas possível porque já está sendo feita.
Falo das redes de apoio, das irmandades políticas, das cumplicidades. Construções
afetivas por vezes impensáveis a priori, mas não utópicas, porque, mesmo em meio a tantos
impedimentos, elas de fato acontecem. Falo do amor que se dá pelo reconhecimento, por
vezes silencioso, das feridas carregadas pelas outras, e em especial pelas formas que, em meio
a um mundo quebrado que segue insistindo na impossibilidade de nossas existências,
inventamos o contrário: a possibilidade da vida.

49 Tradução livre para: "The ancestral is not just the potency of virtuality, it is the ground of certainty of what
has been lived, it is when in the lived experience of coloniality remains latent under the veil of the empty present
of modernity, under the forces of negation, of absencing, of oblivion." (CHÁVEZ; VÁZQUES, 2017, p. 43).

78
Movimento 5: Despossessão

Escrevi o texto anterior imaginando-o como último movimento do presente trabalho.


No entanto, fez-se necessário acrescentar ainda este último, não exatamente como uma
conclusão, no sentido mais corrente desta palavra em trabalhos acadêmicos, mas como última
amarra nas linhas de força que compõem os processos que este trabalho traduz.
Como disse no primeiro movimento, o modo como a escrita se deu aqui não foi
organizado por meio de uma estrutura rígida ou mesmo por uma questão única que guiasse
todo o texto. Precisei escrever cada parte para saber do que elas tratavam, e precisei olhar para
todas juntas com o intuito de identificar uma certa pulsão comum a todas elas. Também por
isso, agora, já muito perto do fim, não fui ainda capaz de dar título ao trabalho como um todo,
e tampouco a cada parte. A necessidade constante de dar abertura à indefinição parece me
segurar diante desse gesto final de dar nome às coisas.
Mas porque é necessário fazê-lo, no topo da lista de ações que compõem o programa
implícito a esse último movimento está a de chegar a esses nomes, confiando talvez nos
buracos de sentido abertos pelas próprias palavras que os irão compor. É curioso que, uma vez
completado o objetivo de nomear, você, que agora lê o texto, já saberá que nomes são esses,
apesar de eu mesmo ainda não saber enquanto escrevo. Parece que, em meio a essas
temporalidades e posicionamentos embaralhados, quem olha de fora sempre tem lá seus
privilégios.

Ainda sem querer formular, mesmo agora, uma questão única para este trabalho,
percebo que entre as várias forças que o movem, há sempre ali uma certa dinâmica entre
pertencer e não pertencer: às categorias, às relações, às instituições, aos espaços – ao mundo,
por fim. Mas talvez, ao invés de falarmos delas como dinâmicas de pertencimento, seja mais
preciso falar em integração ou aderência. Pois parece-me que nem mesmo seja do nosso
interesse pertencer, estar sob posse, ou ainda, possuídos por qualquer coisa, em especial a
uma concepção de mundo ordenado segundo aquelas perspectivas que nos objetificam. Mas
se não podemos escapar dos efeitos em cadeia de uma tal concepção, se estamos fadados a
uma posição de objetos e de abjetos que é cotidianamente renovada, o que nos resta talvez

79
(inclusive enquanto potência) seja uma inseparabilidade do mundo. Afinal, como nos lembra
Mombaça (2017, p. 227), é o sujeito hegemônico, branco, moderno e cisheteronormativo
quem separa a si mesmo do mundo, o qual “ele domina, submete, apropria”.
“E se, ao descobrir-se objeto em meio a outros objetos, determinada entidade pudesse,
em vez de encontrar seu lugar no mundo, perder-se no movimento indefinido” (MOMBAÇA,
2017, p. 229) do mundo? Se em vez de nos debruçarmos sobre nossa impossibilidade de
integrarmo-nos a um ordenamento prévio das coisas do mundo, nos dedicássemos à
perdermo-nos em meio a essas coisas?
No texto citado acima, Gritaram-me aberração: inexistecialismo e fugitividade,
Mombaça leva ao limite o problema ontológico constituinte das vidas negras e trans: se não
podemos ser sujeitos, é como objetos que fugiremos do cativeiro do mundo ordenado. Essa
possibilidade de fuga “se dá justamente no momento em que a morte do sujeito difere da
morte da vida ela mesma; no momento em que a morte do sujeito coincide com ‘o autêntico
ressurgimento’ do objeto em sua plena fugitividade, que é, sempre já, sua identificação com o
mundo” (MOMBAÇA, 2017, p. 229).
Mombaça defende a noção de inseparabilidade em um diálogo com Denise Ferreira da
Silva (2016), que, ao discutir sobre a questão dos refugiados na Europa, ressalta a importância
de se elaborar um programa ético-político que não refaça a “separação fundante do texto
moderno entre o sujeito (o nós) e o outro (o estrangeiro)”. Ferreira da Silva propõe “pensar a
diferença sem reproduzir a separabilidade, isto é, sem estruturar a lógica de dominação e
controle que precipita o ordenamento do mundo, para então ir em direção a um modo de
pensar o mundo ‘como um todo complexo sem ordem’” (FERREIRA DA SILVA, 2016, apud
MOMBAÇA, 2017, p. 228-229).
À noção de inseparabilidade, Mombaça adiciona a de fugitividade do objeto, que
elabora em diálogo com Fred Moten, e a define como sua resistência ao cativeiro imposto
pelo ordenamento do mundo. A fugitividade, no pensamento da autora, só pode se dar através
daquela noção de inseparabilidade – só seremos capazes de escapar pelas frestas das grades
que ordenam e categorizam o mundo quando entendermos que integramos não apenas o que
está dentro dessas grades, mas sobretudo aquilo que desordenadamente está fora.

80
Na performance, um movimento similar pode ser relacionado ao que André Lepecki
observa como:

um interesse em objetos, bem como uma proliferação incrível de coisas em obras


recentes de dança, de performance e de instalação, sendo que um dos efeitos desse
investimento e dessa proliferação é o deslocar das noções de sujeito e objeto,
performer e arte, em detrimento de uma ligação profunda entre performatividade e
coisidade. (LEPECKI, 2012, p. 94).

Em sua defesa da coisa, Lepecki também recorre a Fred Moten, de quem destaca a
noção de despossessão. Moten, em sua análise sobre a performance radical negra, observa o
que chama de resistência do objeto, e neste contexto afirma que “enquanto a subjetividade é
definida pela posse que o sujeito tem de si mesmo e dos seus objetos, ela é perturbada por
forças despossessivas que os objetos exercem – de tal forma que o sujeito parece ser possuído
(infundido, deformado) pelo objeto.” (MOTEN, 2003, p. 1, apud LEPECKI, 2012, p. 96). A
partir desse trecho, Lepecki elabora sua definição de coisa como uma força des-possessiva e
deformadora que todo objeto exerce sobre o sujeito, numa operação que propõe uma
mudança radical nos modos de olhar as relações entre o humano e o não-humano e, eu
acrescentaria também, as relações colonizadoras e violentas que marcam certos corpos, como
o corpo racializado e o corpo trans, como menos-que-humanos.

Embora não tivesse ainda trazido aqui esse texto de Lepecki, já há um tempo ele me
acompanha, e cheguei inclusive a utilizá-lo como ponto de partida para um exercício
experimental que realizei a partir da proposta de trabalho final de uma das disciplinas que
cursei no PPGAC, denominada Escrita e Performance e que foi ministrada pelas professoras
Luiza Leite e Dinah Cesare. No decorrer do curso, trabalhamos alguns procedimentos de
escrita, dentre eles o da tradução, a partir de Walter Benjamin, que afirma que “nenhuma
tradução será viável se aspirar essencialmente a ser uma reprodução parecida ou semelhante
ao original”. (BENJAMIN, 2008, p. 30). Com isso em mente, levamos ao limite a expansão
que faz Benjamin da noção de tradução, passando a poder utilizá-la como procedimento
criativo, e podendo assim acessar outros conteúdos além daqueles próprios ao material
original.

81
A proposta do trabalho final era que escolhêssemos um texto teórico e com base nele
fizéssemos uma tradução, que poderia incluir mais de uma linguagem além da escrita. Escolhi
o texto de Lepecki e o traduzi em um programa performativo, que foi registrado, e fiz então
uma segunda tradução partindo de algumas das imagens de registro, como detalho um pouco
melhor no trabalho que reproduzo agora na íntegra.

Imagem 2: “Tudo que me possui”

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Imagem 3: “Tudo que me possui”

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Imagem 4: “Tudo que me possui”

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Imagem 5: “Tudo que me possui”

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Imagem 6: “Tudo que me possui”

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Imagem 7: “Tudo que me possui”

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Imagem 8: “Tudo que me possui”

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Imagem 9: “Tudo que me possui”

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Imagem 10: “Tudo que me possui”

Lembrei desse trabalho quando comecei a elaborar o presente texto. Ao olhar para ele
novamente depois de algum tempo, pareceu que ele continha precisamente o que gostaria de
trazer como finalização para esta escrita. Coisas de carne e de papel, despossuindo-se
mutuamente. Pois se o meu corpo representado nessas imagens nunca chega a se parecer
consigo mesmo, se as suas linhas de definição nunca o delimitam por completo em relação ao
espaço e ao corpo dos livros, é porque através do programa eu e os livros já nos tornamos um
90
pouco mais coisa e um pouco menos nós mesmos. E essa me parece agora a metáfora mais
adequada como gesto de suspensão desta escrita: os livros – metonímia máxima do
conhecimento, e aqui, nesse contexto, da teoria – despossuindo e sendo despossuídos de sua
funcionalidade junto a esse corpo por via do qual eu agencio ou esboço qualquer tentativa de
vida, ainda que em meio ao processo de integrar-se ao movimento indefinido do mundo, seja
cada vez menos eu e cada vez mais mundo.

A despossessão, enquanto palavra e conceito, chegou no fim, por último, mas agora
que está aqui, posso percebê-la agindo por todo o trabalho, tanto no texto quanto nas ações
descritas. Ela me parece ser agora o que há de mais preciso para descrever as múltiplas forças
descolonizadoras ativadas aqui. Enquanto relembro os movimentos anteriores, posso
identificar essa força aumentando gradualmente, fazendo pressão nas questões que vim
apresentando, desestabilizando minhas escolhas. Talvez fosse ela também a me cutucar com a
constante necessidade de colocar em cheque a própria ação de escrever, lembrando que forma
e linguagem não são veículos neutros de expressão – elas são, como tudo (e talvez até
particularmente), dispositivos já investidos, capturados, possuídos.
A dramaturgia performativa presente nesses cinco movimentos apontam para o que me
parece ser o vetor da força despossessiva: um tipo de contra-ontologia – movimento contrário
ao de ser um eu separado de seu entorno. Nesse sentido, percebo ela agindo na dissolução
gradual da carga íntima e biográfica como mecanismo de individuação. Aos poucos, essas
estratégias deixam de trabalhar por uma afirmação do eu e passam, ao contrário, a trabalhar
no desfazimento do que ainda resta dessa ilusão moderna e colonial que é a separação do
sujeito em relação ao mundo, que por sua vez só é possível, como já repetimos várias vezes
aqui, através da marcação de certos corpos como outros, atribuindo a eles um valor menor-
que-humano, um valor de objetos.
Do mesmo modo, quando afirmo no movimento anterior que Gordura Trans – e cito
especificamente esse trabalho agora por seu caráter serial permitir uma aproximação
comparativa às questões que ele levanta, mas poderíamos identificar essa força agindo em
todos os trabalhos citados – começou a ser feito a partir de uma necessidade de
reconhecimento e afirmação das marcas que meu corpo carrega, mas que na medida em que o
trabalho foi sendo desenvolvido se abriu para outras questões, estou também me dando conta
91
dessa mesma dinâmica no interior da trajetória deste trabalho. Os próprios materiais utilizados
já estão imbuídos de forças despossessivas. As gorduras, que a princípio funcionavam para
mim como uma ênfase à minha própria gordura corporal, foram se mostrando também
portadoras de funções mais amplas no interior das ações. Elas são, tanto quanto o meu corpo,
performers, disparadoras e complicadoras dos eventos. Destituídas de suas diversas funções
preestabelecidas no contexto das ações, elas não apenas promovem uma abertura do corpo à
vulnerabilidade que lhe é intrínseca, mas agem sobre ele e sobre seus vínculos com o mundo,
ampliando a teia relacional que pode tornar possível que esses vínculos trabalhem como
projeto emancipatório.
No entanto, a necessidade de afirmação e de reconhecimento das marcas que havia no
início deste trabalho foi também um estágio essencial. Pois é justo nesse processo de
reconhecimento, de dar-se conta das dinâmicas violentas de marcação dos corpos, que fica
evidente a quebra constituinte da concepção moderna, colonial e ordenada do mundo, fazendo
que nos voltemos novamente para os objetos (nós mesmos e os outros), buscando agora
aquilo que neles escapa ao ordenamento, isto é, sua força despossessiva, o seu devir-coisa.
E se é justo nos atos de violência através do qual se estabelece o ordenamento do
mundo que são produzidas as marcas que carregamos, que por sua vez possibilitam o
surgimento das feridas, a despossessão torna-se também, sobretudo, um gesto de cuidado.
Mas, enquanto tal, ela não pode ser confundida com uma força de esquecimento ou
apagamento da historicidade constituinte dessas marcas e feridas, como se permitisse que os
objetos se tornem matéria neutra. Nossos corpos continuarão sendo marcados, pois os poderes
seguem agindo segundo sua lógica de ordenamento e separação. Assim, a despossessão ganha
potência política justamente quando é capaz não apenas de se lembrar, mas sobretudo de fazer
brotarem as memórias soterradas sob os séculos de apagamento das entidades dissidentes ao
modelo moderno de humanidade. O que é o mesmo que dizer que a despossessão ganha força
política quando opera também como ferramenta de acesso às tantas ancestralidades que nos
são negadas pelos domínios hegemônicos do arquivo.

Dito tudo isso, por último, finalmente realizo a ação de titular. Começo nomeando este
texto em específico como despossessão. Releio o trabalho inteiro e vejo nele uma série de
movimentos, uma trajetória errante, não linear e não direta entre um ponto e outro. O primeiro
92
movimento parece-me, mais que uma introdução, uma abertura: dos trabalhos, das feridas,
dos caminhos para que os outros movimentos se deem, de modo que este se torna o nome
dele. Dou então o seguinte nome para o trabalho como um todo: Da abertura à despossessão:
uma performance escrita em cinco movimentos. Aos três movimentos do meio, dou o nome
daquilo que me parece melhor traduzir suas linhas de força: ferida, cuidado e ancestralidade.
Com essas palavras, permito-me agora suspender esses movimentos todos, confiando que os
próximos, ainda que desconhecidos, serão abastecidos por estes e esperando também que eles
tenham sido proveitosos, informativos e/ou instigantes a você que o leu até aqui. Em que pese
toda a carga formal que a repetição dessa frase carrega, digo-a agora da forma mais sincera
possível: pela atenção, obrigado.

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