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CATALOGAÇÃO DA PUBLICAÇÃO
(ficha catalográfica feita pela Editora)
ISBN: 978-65-87732-00-8
1.Literatura Brasileira. 2. Marielles. 3. Letras.
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Sumário
Apresentação...................................................................................................................... 09
Apresentação
O Seminário dos Alunos da Pós-Graduação em Letras da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro é um evento anual organizado por e para es-
tudantes com o objetivo de divulgar e compartilhar a produção discente da
Pós-Graduação em Letras da UERJ e demais universidades do Brasil, sendo
um evento organizado por e para alunos. Em 2018, o evento chegou a sua 9ª
edição e se realizou entre os dias 26 e 29 de novembro, no Instituto de Letras
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no Campus do Maracanã.
O IX SAPUERJ assumiu “Marielles” como temática (pluralização, de
forma a acentuar que somos muitos) e apresentou trabalhos que trouxe-
ram reflexões acerca das relações entre Línguas, Literaturas e Sociedade,
destacando-se o poder de transgredir, transfigurar, nomear, imaginar, res-
significar e criar mundos através de linguagens.
Resistir” tem sido a palavra de ordem em tempos tão bicudos que silen-
ciam, calam e atravancam os caminhos: “vocês passarão, eu passarinho”-
acentua Quintana. Desta forma, o legado político deixado por Marielle
Franco nos serviu de base para propor um conjunto de vozes que seguem
perseverando pela democracia, inclusão e fim das desigualdades. A univer-
sidade pública, desta forma, se confirma como espaço para proposição de
debates que tenham por escopo a luta contra as injustiças e a valoração do
ensino público (e popular) em seus diferentes segmentos.
Nossas discussões perpassaram a Análise do Discurso; Poesia; Música; Ci-
nema; Literatura e Feminismo; Discurso e Identidade; Gênero e sexualidade;
Teorias para o ensino e a aprendizagem de línguas; Conceição Evaristo; Gra-
ciliano Ramos; Idade Média; Renascimento; Narrativas identitárias: políticas,
desvios e marcas corporais; Vertentes insólitas na Literatura; Magistério, en-
sino e pesquisa; Violência; Transdisciplinaridades; Novas tecnologias em sala
de aula; Lexicografia; Práticas Políticas e (Re)existência; Direitos Humanos;
Peformances artísticas e a luta de Marielle Franco.
Comissão Organizadora do
IX Seminário dos Alunos da Pós-graduação em Letras da UERJ
Marielles: somos muitos, somos resistência.
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GÊNEROS: UM OLHAR CONTEMPORÂNEO SOBRE A
MULHER NORDESTINA E O ROTEIRO COMO LITERATURA
EM O CÉU DE SUELY, DE KARIM AÏNOUZ
Introdução
A obra O céu de Suely foi selecionada, dentre tantos outros, por trazer em
seu enredo a representação da personagem feminina, nordestina, e pelo diá-
logo instigante sobre corpo, sobre ser corpo de muitas formas, outras possi-
bilidades de ser, e pelo fazer cinematográfico das sensações, algo tão latente
na contemporaneidade.
Como um breve recorte dos estudos em desenvolvimento no programa
de mestrado, entendemos a importância e a complexidade ainda atrelada aos
estudos sobre o Nordeste e seus elementos literários. Por meio de pesquisa
de caráter explicativo, com base em análises e articulações das correntes teó-
ricas, e documental-bibliográfica, pois partimos tanto dos estudos desenvol-
vidos com base em materiais audiovisuais, quanto aos pressupostos teóricos
de análise literária.
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Caminhando por uma outra ótica de estudos que pensam a literatura do
Nordeste sob a ótica Graciliana, desenvolvida até então, conhecemos o dire-
tor cearense Karim Aïnouz, que dispensa apresentações, uma vez que seus
filmes Madame Satã, O Abismo Prateado, Viajo porque preciso/volto porque
te amo, entre tantos outros, falam por si.
Porque é diante de um aparelho que a esmagadora maioria dos citadinos precisa alie-
nar-se de sua humanidade, nos balcões e nas fábricas, durante o dia de trabalho. À
noite, as mesmas massas enchem o cinemas para assistirem à vingança que o intérprete
executa em nome delas, na medida em que o ator não somente afirma diante do apa-
relho sua humanidade (ou o que parece como tal aos olhos dos espectadores), como
coloca esse aparelho a serviço de seu próprio triunfo (BENJAMIN, 1985, p.179).
O roteiro
De modo bastante breve, tangenciaremos também o gênero roteiro e suas
funções e atuações na literatura, de modo que com a abertura e múltiplos
diálogos propostos pela contemporaneidade, ele possa ser lido de outras
formas que não apenas um manual de orientação para as cenas e falas das
personagens.
É bem verdade que este olhar veio após a publicação do roteiro de o céu
de Suely pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Entende-se que o
mesmo não ocupa o lugar de um romance ou de uma obra adaptada, mas
conquista o seu lugar, seu lugar de roteiro publicado. E cabe dizer que, en-
contramos sim as rubricas e todas as linguagens técnicas de um roteiro, mas
é possível encontrar certa prosa e arte no texto escrito.
É perfeitamente compreensível que a discussão sobre roteiro e literatura
ou mesmo roteiro em literatura seja densa o bastante, requeira muitas lei-
turas, discussões e considerações, e talvez não nos dê respostas significativas
àquilo que procuramos, no entanto, sob o aparato dos estudos de Literatura
comparada, e das considerações feitas pela professora Vera Follain, em sua
obra “Narrativas migrantes: literatura, roteiro e cinema” (2010), por exem-
plo, como através da seguinte citação:
Confirmamos, por meio dessa citação, que existe um olhar de mais valo-
rização sobre o roteiro, de modo que ele não seja apenas uma ferramenta a
ser abandonada após a realização do filme. É possível encontrar leitores inte-
ressados por este tipo de texto, a fim de que estejam mais próximos, inclusi-
ve, da arte cinematográfica. Porém, como já dissemos, esta é uma discussão
bastante densa, e o que queremos aqui é apenas trazer um olhar, uma ideia
de que há caminhos que podem ser percorridos no que se diz respeito aos
estudos do roteiro por um viés mais literário, digamos.
SUELY – “15 reais e você concorre... se ganhar passa a noite toda comigo. Já vendi
um monte, mas a chance é boa. (pausa). Faço tudo o que você quiser. Vale a pena,
viu... e não sou garota de programa, não. Sou moça de família, sabe?” Sérgio olha
para o corpo dela, impressionado com tudo. SÉRGIO – “Olhe... puta aqui dentro
não pode, não, menina.” SUELY - (dura) “Já falei que não sou puta!” (AÏNOUZ,
2008, p. 93-94).
Com o tempo, vê-se que o pênis, no universo feminino, lhe serve como
figura de aprazimento. Como o seio materno antes levado à boca para suprir
a necessidade imediata, a genitália masculina passa a ser busca constante para
outros fins, então sexuais e incessantes. Com esse anseio fisiológico pulsante,
a mulher se sente no direito de satisfazê-lo, assim como a figura masculina o
faz sem muito esforço, no entanto, à ela são impostas barreiras da virgindade
e castidade, fidelidade ao cônjuge, práticas apenas para a procriação e dentro
do matrimônio, e um sem-fim de limitações citadas anteriormente.
Dissemos que na ficção, a personagem feminina representa a figura da
mulher empírica, e em nosso objeto de estudos, o filme de Karim Aïnouz, a
personagem tem de enfrentar críticas e comentários de seus semelhantes por
usar seu corpo como rifa de um ato sexual para conseguir o dinheiro neces-
sário à sua partida de Iguatu.
Rifar-se se torna algo incomum, no entanto, o que está por detrás é a objetivi-
dade de lutar com as armas que tem a curto prazo, para alcançar determinado fim.
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SUELY – Tia...
IVONETE – Fala.
SUELY – Vou me rifar, tia.
IVONETE – (sem entender) O que é?
Suely está séria.
SUELY - Vou rifar minha xxxxxx e ficar rica... comprar uma casa pra morar com
meu filho.
Ivonete olha para Suely, incrédula. Suely desvia o olhar para o vazio. Pensa.
SUELY – Perdi a paciência, tia. Quero dinheiro, e agora.
IVONETE – (preocupada) Isso é ideia de puta, Suely...
SUELY (calam – seca) Quero ser puta não, tia. Quero ser coisa nenhuma.
(AÏNOUZ, roteiro, 2007, p.78-79).
O ser gênero feminino em Hermila é ser totalmente livre para fazer tudo
aquilo que todos os gêneros são capazes de fazer, sem se pormenorizar, sem
precisar passar por julgamentos como passou em seu próprio seio familiar,
quando avó e tia condicionaram o uso de seu próprio corpo à práticas de
prostituição, uma vez que enxergam a prostituição como algo baixo e vulgar.
A discussão é ampla, toca no Feminismo, assunto bastante amplo para o instante, no
entanto, ao falarmos de nossa personagem, falamos da mulher que se desafia e questiona.
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O interstício entre Hermila e Suely é movido pela força do capital. O que de fato
quer Suely? Ao rifar-se ‘como uma noite no paraíso’, atenua a possibilidade de pros-
tituição, um eufemismo que lhe confere um certo pudor, por isso a identidade du-
pla: Hermila é mãe, neta, sobrinha, o polo das identidades sociais valoradas na escala
da família; Suely é sua face reinventada no capitalismo da biopolítica. Diz que não
é puta. ‘pois puta trepa com todo mundo e eu só trepo com um cara’. E emenda:
‘não quero ser puta. Não quero ser coisa nenhuma’. Assim, sem saber o que quer
ser, mas sabendo que quer ir e por que meios pode voltar à estrada, Suely transita no
entre lugar que se torna Iguatu (BRANDÃO, 2008, p.96).
A pergunta feita, “o que quer Suely?”, por meio da citação anterior, nos
faz pensar a respeito da construção de sua resposta, que mais facilmente de-
veria ser feito através de negativas, uma vez que o que se tem é aquilo que ela
não quer.
Suely não quer continuar em Iguatu levando a vida da qual fugira um dia;
tampouco quer retornar para São Paulo, local que representa o seu fracasso.
Suely, outrossim, não quer ser prostituta, pois deseja ter seu corpo e desejos
livres para serem de quem ela quiser, e, certo modo, ser prostituta também é
criar raízes, ainda que seja a um modo de vida.
Em tempo, Suely não quer mais um ‘Matheus’ em sua vida, por isso rejei-
ta o antigo namorado que lhe passa a ideia de vida modesta nos moldes de
uma família tradicional, com marido, mulher, filhos e todo um ciclo que se
repete. Suely não quer nenhum desses caminhos. Ela quer algum que a leve
para mais longe.
Partindo do pressuposto de que a identidade se desenvolve durante o pro-
cesso de formação do indivíduo, a personagem em estudo, Hermila/Suely,
apresenta em seu ser volátil constantes mudanças. Estabelecemos referência
às relações entre gênero e identidade, porque o gênero é a nossa identidade
primeira, é aquilo que atribui existência significável para os sujeitos, qua-
lificando-os para a vida no interior da inteligibilidade cultural (BUTLER,
2003, p.102-118).
Dentre variados personagens que subsistem nos mais diversificados ro-
mances que se fixam no imaginário dos leitores, temos a marcante presença
da personagem feminina, que nos leva a refletir sobre os diferentes lugares e
eixos temáticos os quais ocupa.
Ao longo dos anos de criação literária, a mulher no romance preencheu
dois possíveis eixos principais de leitura bem demarcados ao longo do tem-
po, estabelecidos e encontrados nas mais variadas e consagradas obras. São
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eles: o eixo das musas e mulheres próximas do ideal, do amor inatingível,
encontradas nas literaturas clássicas, no Romantismo, entre cancioneiros,
sonetos e infindáveis obras de exaltação da mulher enquanto ser de adora-
ção, próximo ao divino; e o eixo feminino alcançável, presentificado na pros-
tituição, na vida extraconjugal, feitiçarias, e outros.
Pouco a pouco, arriscamos dizer que a personagem feminina, certo modo,
integralizou-se ao grupo das minorias do romance, tanto quanto aos negros,
aos pobres, aos de diferentes crenças, ou seja, faz parte de todos aqueles que
têm suas vozes silenciadas, e esta preocupação se acha de algum modo regis-
trada claramente em obras de anos e séculos anteriores, todavia na contem-
poraneidade há ainda muito o que se dizer e refletir a respeito.
Considerações Finais
É por observar a personagem feminina, seus desdobramentos ao longo
do tempo e espaço, acompanhar o seu processo evolutivo, por, justamente,
estar vinculada à representações do real cada vez mais complexas, bem como
seu processo de recepção e ou (idem)tificação, ver-se semelhante em algum
aspecto, com seu público-leitor-espectador.
Encontramos Hermila para análise e observações de estudos propostos, à
luz da contemporaneidade, e demais aspectos pesquisados, discutidos e de-
senvolvidos ao longo do vigente curso, vinculado ao programa de Mestrado,
e, de algum modo, percebemos que o encontro foi mútuo e a identificação
legítima. Somos Hermila. Somos Suely.
Referência Bibliográfica
AÏNOUZ, Karim; BRAGANÇA, Felipe; ZACHARIAS, Maurício.O céu de Suely (roteiro). São
Paulo: Imprensa Oficial, 2008. (Aplauso).
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura, história e cultura.
(Obras escolhidas, v.1). São Paulo: editora Brasiliense, 1985.
CANDAU, J. Memória e identidade. Trad. Maria Letícia Ferreira. São Paulo: Contexto, 2012,
p. 21-57.
CANDIDO, Antonio. [et al.]. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2007.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 1984.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad: Tomaz Tadeu da Silva. Rio de
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KRISTEVA, Julia. O gênio feminino: a vida, a loucura, as palavras: Hannah Arendt, Melaine
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SANTIAGO, Silviano. Uma literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. São Pau-
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SPIVAK, Chakravorty. Gayatri. Pode o subalterno falar? .Trad: Sandra Regina Goulart Almei-
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TIBURI, Marcia. Feminismo em comum: para todas, todes e todos. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 2018.
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FEMINISMO E REDES SOCIAIS NO ENSINO/APRENDIZA-
GEM DE INGLÊS EM CONTEXTO INFOPOBRE
Introdução
Em minha carreira como professora de língua inglesa da rede pública mu-
nicipal de Duque de Caxias no segundo distrito, foi possível perceber uma
frequente evasão de alunas do segundo segmento do nível fundamental, por
variados motivos: desde gravidez, até mesmo por terem assumido um com-
promisso sério (tendo em mente que o público atendido tem uma média
de idade de 16 anos). Outra situação muito alarmante é o alto índice de
violência contra a mulher na Baixada Fluminense e a naturalidade com que
discentes encaram essa realidade, tendo em vista caso relatado por alunas da
escola, que alegaram já terem sofrido esse tipo de agressão ainda na adoles-
cência. Esse crime é recorrente no município em questão já que esse ocupou
o terceiro lugar em recebimento de denúncias de violência contra a mulher
do estado do Rio de Janeiro, conforme aponta pesquisa feita pela Diretoria
de Análise de Políticas Públicas da FGV entre 2006 e 2017.
1
Especialização no Programa de Pós-graduação em Letras, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Área de atuação: Linguística
Aplicada ao Ensino de Inglês como Língua Estrangeira
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Além disso, com o advento das Redes Sociais, são frequentes as postagens
de alunos de ambos os sexos em que se observa uma visão sexista acerca do
papel da mulher na sociedade. Tal paradigma despertou o meu interesse em
desenvolver este projeto a fim de alcançar uma libertação tanto dos opri-
midos quanto dos opressores (FREIRE, 2018) através dessa ferramenta,
porém com um fim educativo e gerador de mudanças. Pensando no meio
utilizados pelos discentes para expor opiniões e voz, a Web 2.0, percebi a
urgência dessa geração em se expressar de uma maneira interativa, saindo
de um estágio passivo de receptores de informação para o de co-autores de
informação e conhecimento (SILVA, 2002). Para executar trabalhos com
interatividade em Redes sociais, será disponibilizado pela direção da escola
um único computador com acesso à Internet, pois a sala de informática en-
contra-se interditada por falta de manutenção nos aparelhos, todos inope-
rantes, o que caracteriza um contexto infopobre (idem), além dos aparelhos
celulares com acesso à Internet dos alunos que os possuam.
Ao longo deste projeto busca-se discutir o feminismo nas aulas de lín-
gua inglesa, utilizando tecnologia, a partir de uma WebQuest (CARDOSO,
2010) em que serão estudadas autoras, cientistas, ativistas, figuras políticas
feministas, que dêem aos alunos uma visão mais empoderada do papel da
mulher na sociedade atual, mostrando caminhos, que para alguns poderiam
parecer impossíveis. Não poderia deixar de ser lembrada a vereadora Mariel-
le Franco, cuja história será estudada e refletida, por se tratar de uma mulher
de um contexto social próximo ao de muitos alunos, que alcançou reconhe-
cimento por suas lutas, apesar de ter sido silenciada por exercer seu trabalho.
Numa outra etapa, será dada voz aos alunos para que se manifestem so-
bre o tema tendo como ponto de vista suas próprias redes sociais, buscando
memes, vídeos, textos que tragam traços de uma visão misógina, para que
mostrem seus pontos de vista, agora com uma visão de mulher empoderada.
Ao criarem uma espécie de réplica aos textos encontrados, serão exercitadas
a leitura crítica do mundo (PENNYCOOK, 2001) e a Interatividade (SIL-
VA, 2002). Tais objetivos, porém, demandariam de autorização do Comitê
de Ética, inviabilizando essas etapas na especialização, motivo pela qual o
trabalho será terminado futuramente.
As questões de pesquisa, até o momento da apresentação deste trabalho
no SAPUERJ 2018, são:
1.De que maneira desenvolver uma Webquest que trabalhe efetivamente o feminismo?
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2.Como fazer adaptações para utilizar tecnologias em contexto infopobre?
3.Como utilizar redes sociais para promover o multiletramento crítico?
Feminismo
Na célebre afirmação de Simone de Beauvoir “não se nasce mulher, torna-
2
Tradução minha para: “understanding a relation between concepts of society, ideology, global capitalism, colonialism, education, gender,
racism, sexuality, class, and second language acquisition, media texts.”
24
-se mulher”, corrobora-se essa noção de que há uma posição social ideologi-
camente fabricada para cada gênero.
Ensine a ela que “papéis de gêner” são totalmente absurdos. Nunca lhe diga para
fazer ou deixar de fazer alguma coisa “porque você é menina”. “Porque você é me-
nina” nunca é razão para nada. Jamais. Lembro que me diziam quando era criança
para “varrer direito, como uma menina”. O que significava que varrer tinha a ver
com ser mulher. Eu preferiria que tivessem dito apenas para “varrer direito, pois
assim vai limpar melhor o chão”. E preferiria que tivessem dito a mesma coisa para
os meus irmãos (ADICHIE, 2017, p. 21).
Essa visão de sala de aula combina com o perfil não só de aluno, mas de
indivíduo da atualidade. Porém, a referida interatividade conseguida através
de ferramentas tecnológicas, não é ainda acessível a todos os alunos e contex-
tos escolares. Os locais ou indivíduos que não dispõe de computadores, ce-
lulares, Internet, que estão alheios a todas essas possibilidades de interação,
são denominados Infopobres pelo autor.
Outros conceitos importantes apresentados por Silva (2002) que se rela-
cionam com o trabalho são a Co-autoria, Antiarte e Hibridação. A partir da
primeira, o espectador rompe com sua lógica passiva, assumindo diferentes
papéis: autor, produtor, um Co-autor. Antiarte, desenvolvida por Hélio Oi-
ticica, carrega consigo uma ideia de obra em construção, que demanda uma
interferência coletiva, sem distinção de sujeitos, fundindo criador, fruidor
e espectador. Os parangolés por ele criados eram um exemplo dessas obras
abertas, que permitiam aos espectadores interpretar suas performances li-
vremente. Hibridação é o resultado da soma dessas duas noções. A ação de
co-criar através de uma antiarte faz com que esses três itens: obra, autor e
espectador não ocupem papéis bem delimitados, atingindo um nível de in-
tercâmbio constante. Essa é a possibilidade gerada a partir da interatividade.
Propor novos papéis aos sujeitos, para que possam exercitar criatividade e
produzir ao final algo pessoal, significativo e verdadeiro.
26
Conceitos freireanos
Ao criticar a educação bancária, em que os professores são aqueles que
depositam conhecimento nas mentes de seus alunos, que devem memorizá-
-los passivamente sem qualquer reflexão ou voz, surge a noção de educação
problematizadora. Essa forma de pensar a pedagogia, “faz, assim, um esforço
permanente através do qual homens vão percebendo, criticamente, como
estão sendo no mundo com que e em que se acham” (idem, 2018, p.100).
Através desse espaço em que é possível dialogar, refletir sobre si mesmo e
suas ações no mundo, é aberta uma possibilidade de realizar uma “grande
tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores.
(idem, 2018, p.41)”. O autor explica que, muitas vezes, o opressor não se
percebe como tal e, através de uma prática educativa permeada por amor
e diálogo, é possível resgatar até mesmo esses indivíduos. Não é incomum
perceber que alunos expostos a violência doméstica por vezes reproduzem
com colegas o comportamento que tanto repudiam e reprovam, quando a
vítima é uma familiar ou pessoa de seu convívio.
Outro ponto que destaco é que, para Freire, o educador não é a única
fonte de saber numa sala de aula, pelo contrário, a “Educação autêntica [...],
não se faz de A para B ou de A sobre B, mas de A com B, mediatizados pelo
mundo. (idem, 2018, p. 116)“. Tal afirmação faz muito sentido na atualida-
de, especialmente num momento em que alunos dispõem de grandes volu-
mes de informação com facilidade, podendo conhecer vários aspectos desse
mundo cujas fronteiras têm se tornado bem menores através da Internet.
Cabe ao educador fazer com que os educandos percebam suas experiências
e conhecimento como relevantes, estimulando-os a se permitir um “pensar
autêntico [...]. Sua ação deve estar infundida da profunda crença nos ho-
mens. Crença no seu poder criador. (idem, 2018, p. 86)”. Assim, os atores
envolvidos nesta pesquisa, irão ter a oportunidade de criar juntos, para al-
cançar um trabalho final coletivo e autêntico.
Webquest
Para embasar discussões a respeito do tema do empoderamento feminino
com os alunos, será utilizada a metodologia da WebQuest, semelhante aos
projetos escolares, porém sendo executada na Internet, de maneira que os
professores direcionam sua organização e fontes de pesquisa a serem con-
sultadas para se completar uma tarefa (CARDOSO, 2010). Será um modo
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de utilizar tecnologia no ensino, promovendo, em alguns casos, letramento
digital para os que ainda não tiveram acesso.
Essa ferramenta em geral possui uma estrutura formada pelos seguintes
componentes: introdução, tarefa, processo, recurso, avaliação, conclusão e
créditos. Na introdução, uma espécie de convite ao trabalho, busca-se enga-
jar os alunos com uma breve e interessante contextualização da proposta e
assunto a ser desenvolvido. A tarefa lista as ações que deverão ser executadas
no trabalho. Recurso é uma lista de links que os alunos podem consultar
para executar o trabalho. Na avaliação, estão presentes os critérios que serão
analisados para se chegar a uma conclusão dos resultados finais obtidos em
conjunto com a observação do trabalho desenvolvido no processo. A conclu-
são traz um resumo dos objetivos do trabalho, além de sugerir outros pontos
interessantes a serem estudados numa pesquisa futura. Os créditos contêm
informações sobre o público alvo, data em que foi aplicada e quaisquer ou-
tras informações que ajudem outros professores a decidirem usar esta Web-
quest (CARDOSO, 2010).
Segundo o MEC (BRASIL, 2015), esta ferramenta tem como objetivos
educacionais modernizar a maneira de fazer educação, fornecer acesso a in-
formações autênticas e atuais, além de trazer ganhos nas habilidades cogniti-
vas, por se tratar de uma aprendizagem significativa, baseada em cooperação.
Em site oficial do ministério3, encontra-se uma lista de benefícios auferidos
por aqueles que dela se utilizam:
3
http://webeduc.mec.gov.br/webquest/index.php
28
Metodologia da pesquisa
O método de pesquisa a ser utilizado é o qualitativo, pois oferece um
olhar voltado às questões sociais encontradas nas relações humanas (MI-
NAYO, 2002, p. 23). Será também considerado o modelo de Pesquisa-a-
ção, pois o objetivo de pesquisas sob essa perspectiva é instrumental, pois
se deseja utilizá-la como ferramenta para forjar uma mudança, seja ela al-
cançada no curso da ação, ou no futuro, pois “não se trata apenas de resol-
ver um problema imediato e sim desenvolver a consciência da coletividade
nos planos político e cultural a respeito dos problemas importantes que
enfrenta, mesmo quando não se vêem soluções a curto prazo” (THIOL-
LENT, 2011, p. 25).
Os aspectos principais deste tipo de abordagem giram em torno da sua na-
tureza plural, investigativa e da busca de conhecimento partindo da situação
que a gerou. São característicos a interação entre pesquisador e participantes
originando uma ordem de prioridade de problemas a serem discutidos; o
objeto da pesquisa, em oposição às pesquisas tradicionais, não são pessoas
observadas, mas uma situação social problemática e complexa; empenho em
resolver a questão, ou ao menos esclarecer as problemáticas encontradas; e,
por fim, não se esperar uma sucessão de ações apenas, que pode levar a ati-
vismo, mas gerar ganho de conhecimento e melhora no nível de consciência
dos envolvidos (THIOLLENT, 2011, pp. 22 e 23).
Resultados
Pelo fato deste trabalho ser parte de um projeto a concluir-se no curso
de mestrado, entre 2019 e 2020, e pela necessidade de submeter etapas da
pesquisa à apreciação do comitê de ética, o resultado obtido através desta
pesquisa é a elaboração da WebQuest, ferramenta digital a ser utilizada com
meus alunos de sétimo a nono ano em escola municipal do segundo distrito
de Duque de Caxias. A partir dos passos nela orientados, os alunos escolhe-
rão a que grupo vão pertencer, de acordo com suas preferências pessoais e
que pesquisa irão desenvolver.
Abaixo serão expostas as páginas criadas. A primeira, o slide título, tem
como objetivo engajar os alunos, motivando-os a refletir sobre o tema. Foi
escolhida a língua inglesa para palavras de ordem frequentemente usadas ao
discutir o feminismo.
29
Figura 1 - Slide título
Nas etapas seguintes, em que me dirijo aos alunos com orientações a serem
executadas de maneira assíncrona, optei pela língua materna para que não seja
imposto um filtro afetivo que os desestimule a seguir no projeto. A introdu-
ção visa chamar atenção, funcionando como um convite ao projeto.
Figura 2 - Introdução
Na tarefa são descritas as ações que deverão ser tomadas pelos alunos. O
processo 1 solicita uma tomada de decisão a respeito de que tema o aluno de-
seja estudar para que sejam formados grupos temáticos, que nortearão a reali-
zação dos trabalhos.
Figura 3 - Tarefa (Processo 1)
30
No processo 2, são descritas as ações que deverão ser feitas após a separa-
ção dos alunos em grupos. A partir das perguntas deverão ser criados traba-
lhos a serem postados em redes sociais (memes), ou expostos no ambiente
escolar (cartazes). Como o contexto é infopobre, julguei importante man-
ter a possibilidade de fazer trabalhos em suportes diferentes, para que não
houvesse prejuízo para os que não possuem acesso à Internet e celulares ou
computadores em casa.
Figura 4 - Tarefa (Processo 2)
A etapa da seguinte visa estabelecer que critérios serão utilizados para fa-
zer a avaliação da participação dos discentes envolvidos no trabalho. Foram
feitas perguntas ao final da página para estimular os alunos a refletir sobre a
atuação nos trabalhos.
Figura 8 - Avaliação
32
Nas conclusões, são detalhados o objetivo que se esperava do projeto e são
feitas perguntas que visam alcançar um feedback dos aprendentes sobre o
conteúdo e a utilização da Webquest.
Figura 9 - Conclusões
Conclusão
Almeja-se com esta pesquisa alcançar um nível mais profundo de compre-
ensão de mundo dos alunos envolvidos, bem como travar uma luta contra as
amarras impostas social e politicamente às meninas, que em breve se tornarão
mulheres, cidadãs. O trabalho final dependerá muito da sensibilidade e pers-
picácia dos discentes envolvidos, pois o grosso será trazido por eles, porém não
me eximo da responsabilidade como participante da pesquisa em trazer con-
tribuições e apontamentos, com o cuidado de não me impor aos pontos de
vista dos alunos, que estarão em posição de destaque neste trabalho.
33
Espero alcançar o engajamento de meus alunos e alunas com esta pesquisa
para que o resultado ultrapasse os muros da escola, para que a vizinhança,
pais, familiares, amigos envolvidos possam vislumbrar mudanças num futu-
ro próximo. Com sorte, novos rumos poderão ser almejados e trilhados por
essa comunidade escolar. Sigo na torcida e na luta!
Referência Bibliográfica
ADICHIE, C. N. Para educar crianças feministas: um manifesto. São Paulo: Companhia das
Letras, 2017.
ADICHIE, C. N. Sejamos todos feministas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014,
ALVES, B. M.; PITANGUY, J. O que é feminismo. Abril Cultural: Brasiliense, 8ª ed. São Paulo,
1991.
FGV DAPP. PolicyPaper. Violência contra mulher. Rio de Janeiro, 2018. Disponível em: http://
dapp.fgv.br/wp-content/uploads/2018/03/Viole%CC%82ncia-contra-Mulher.pdf. Acesso em 10
jul. 2018.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. 66ª ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.
MINAYO, M. C. S. (org.). Pesquisa Social: teoria, método e criatividade. 18ª ed. Petrópolis:
Vozes, 2001.
Assume-se, assim, que afirmar que uma língua/variedade admite, por opção grama-
tical, uma dada estrutura não implica necessariamente o registro categórico dessa
estrutura, como se sabe, nem tampouco se pressupõe um comportamento efeti-
36
vamente variável. Há que se verificar quantitativa – um número restrito de dados
– e qualitativamente – contextos específicos em termos estruturais – a especializa-
ção dos usos para se determinar o parâmetro gramatical de certa língua/variedade
(VIEIRA; BRANDÃO, 2014, p. 86).
As variáveis controladas
A variável dependente, a ser matematicamente investigada, é composta
por duas formas alternantes: com ou sem o traço morfológico de marcação
de pluralidade (nós cantamos / nós canta / a gente canta / a gente cantamos), o
que permite que os falantes acentuem, através da língua, as diferenças entre
as classes sociais existentes no país.
Foram controladas variáveis de naturezas linguística e extralinguística, a
fim de observar os fatores que influenciam a não marcação padrão da pri-
meira pessoa do plural. A pesquisa foi desenvolvida com o corpus Concor-
dância (www.corporaport.letras.ufrj.br), organizado pelo Projeto Estudo
comparado dos padrões de concordância em variedades africanas, brasileiras
e europeias do Português. O banco de dados está socialmente estratificado e,
para este trabalho, conforme dito anteriormente, foi focalizada a cidade de
Nova Iguaçu, no estado do Rio de Janeiro. Os falantes são distribuídos por:
sexo/gênero (homem e mulher); faixa etária (A: 18-35 anos, B: 36-55 anos
e C: 56 anos em diante); e escolaridade (1: ensino fundamental, 2: ensino
médio e 3: ensino superior).
As variáveis linguísticas, por sua vez, estão relacionadas com os pronomes e
as formas verbais: explicitude do sujeito (se o sujeito da oração está expresso ou
não-expresso); paralelismo formal (para a qual se leva em consideração que as
marcas morfológicas usadas em contextos anteriores influenciam nas marcas
que se seguem); saliência fônica (maiores níveis de saliência fônica influenciam o
uso do traço morfológico de primeira pessoa do plural – mos), posição do sujeito
(anteposto ou posposto); tempos e modos verbais; distância entre o referente e
o verbo (em quantas sílabas o referente está separado da forma verbal). Por fim,
foram também controlados os informantes, com o objetivo de perceber se al-
gum deles produz maior marcação de concordância não-padrão do que outros.
A análise das variáveis e o comportamento do fenômeno em questão fo-
ram realizados com base no tratamento estatístico provido pelo pacote de
37
programas Goldvarb-X e a partir de uma análise qualitativa, em que se leva
em consideração o contexto linguístico de cada ocorrência.
1. a minha mãe ela aprendeu a assinar o nome dela porque nós ensinamos pra ela assinar o
nome dela... (NIGA2M)
2. eu também não tenho escolaridade oitava série não é estudo assim... eu acho que você vê as pes-
soas falando... pô tá nós quatro aqui... ai ele tá observando ele viu que você falou tres reais (NIGB1M)
3. a biblioteca tá em reforma também então ela tá toda desmontada a gente tem uma biblioteca
que é aqui em cima (NIGA1H)
4. o estado dele ainda tá dentro dele aquelas palavra do jeito que a pessoa falar entendeu como:
Pernambuco ou como a gente vimos lá na reunião (NIGC2H)
6. os ensinamentos dentro de casa mesmo ... a ... mas estamos evoluindo ... acho que daqui a
alguns anos ... se Deus quiser ... eu sou muito otimista ... nós vamos melhorar (NIGA3H)
7. meus amigos assim ... a gente xinga mas se diverte ... (NIGA3H)
2. o estado dele ainda tá dentro dele aquelas palavra do jeito que a pessoa falar entendeu
como: Pernambuco ou como a gente vimos lá na reunião (NIGC2H)
4. eu também não tenho escolaridade oitava série não é estudo assim... eu acho que você vê
as pessoas falando... pô tá nós quatro aqui... ai ele tá observando ele viu que você falou três
reais (NIGB1M)
Referência Bibliográfica
LABOV, W. Some sociolinguistic principles. In Christina Bratt Paulston & G. Richard. Tucker
(ed.). Sociolinguistics: the essential readings. Oxford: Blackwell, 2003. p. 234-250.
42
MACHADO, M. S. Sujeitos pronominais “nós” e “a gente”: variação em dialetos populares do
norte fluminense. Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Faculdade de
Letras/UFRJ, 1995.
WEINREICH, U.; LABOV, W.; HERZOG, M. Empirical foundations for theory of linguis-
tic change. In: LEHMANN, W.; MALKIEL, Y. (Ed.) Directions for historical linguistics. Austin:
University of Texas Press, 1968. p. 97-195.
43
A ASCENSÃO DO MERCADO EDITORIAL E O RECRUDES-
CIMENTO DE ALGUNS GÊNEROS LITERÁRIOS,
NO BRASIL DO SÉCULO XIX.
Introdução
Em 1808, com a chegada da família real portuguesa ao Brasil, uma série de
transformações começara a acontecer. Dom João VI, amante da literatura,
inaugura a Impressão régia, pondo fim a um decreto de trezentos anos que
retardou a evolução do mercado editorial brasileiro, que impedia qualquer
tipo de impressão no país. Mais tarde, Dom Pedro II incentivara alguns edi-
tores a expandirem seus produtos, a exemplos de Paula Brito, que inaugurou
sua Imperial Tipografia, e o livreiro David Corazzi, principal responsável por
estabelecer a importação de edições portuguesas no país, estreitando a aliança
cultural luso-brasileira.
Segundo o jornalista e escritor Ubiratan Machado, as comunicações por na-
vio com a Europa são regularizadas e ampliadas. Passávamos a receber, com
algumas semanas de atraso, as últimas novidades portuguesas e, o que mais
nos interessava, francesas: livros de poemas, jornais, revistas e figurinos. An-
tes dessa conexão com a Europa, a expansão do mercado editorial brasileiro
44
representava, ainda, uma parcela muito pequena. Dessa forma, apenas uma
fração da sociedade com o poder aquisitivo elevado detinha o alcance das pu-
blicações. A diminuição dos preços dos livros, a linguagem menos rebuscada
e a tradução de alguns clássicos foram algumas estratégias dos negociantes da
época para venderem ao povo aquilo que até então era reservado à elite brasi-
leira, superando as fronteiras econômicas e sociais.
Devido ao progresso do mercado editorial, principalmente no âmbito das
grandes metrópoles, como Rio de Janeiro e São Paulo, alguns gêneros literá-
rios ganharam destaque naquela época, mas de maneira muito canhestra: a
literatura licenciosa. Munida de uma linguagem mais realista, trazia a lume
temas pouquíssimos divulgados para a sociedade, como o aborto, o sexo fora
do casamento, a traição, a pornografia homoerótica e o anticlericalismo.
Devido ao conteúdo possuir alguns temas considerados interditos, havia
uma certa restrição ao público leitor. Inicialmente, apenas os homens po-
deriam ter acesso àqueles tipos de conteúdos e a disposição destes nas pra-
teleiras das livrarias era distribuída de maneira estratégica, a fim de que não
ficassem expostos ao universo de todos os leitores.
Não era segredo para ninguém que a expressão “leitura (ou livros) para homens”
designava a leitura pornográfica. Alarmado, o padre português Sena Freitas descre-
via a presença de tais obras no Brasil como uma epidemia estrangeira. Para ele, a
disseminação do livro pornográfico europeu era uma face sombria da modernidade
industrial, do avanço da imprensa, da liberdade e das técnicas no “grande” século
XIX (ABREU, 2016, p. 337).
O termo “sensação” era usado de modo recorrente naquele século. Na vida real,
toda situação inesperada, assustadora, impetuosa, capaz de causar arrepios e surpre-
sa recebia tal conotação. Na literatura, essa expressão servia para avisar o leitor do
que estava por vir: dramas emocionantes, conflituosos, repletos de mortes violentas,
crimes horripilantes e acontecimentos imprevisíveis (EL FAR, 2004, p.14).
Esses negociantes queriam vender ao “povo” aquilo que até então havia sido reservado
a grupos específicos. Em vez de delimitar, segmentar, restringir, tinham o propósito
de estabelecer um comércio capaz de ampliar, extrapolar, superar as fronteiras econô-
micas e sociais. Foi exatamente isso que fez o jovem editor Pedro da Silva Quaresma,
que abriu no fim da década de 1870 sua Livraria do Povo. Além de vender livros usa-
dos e algumas raridades bibliográficas, editou inúmeros romances, livros de trovas e
cantigas e até mesmo os chamados “romances para homens”, de teor picante e proibi-
dos às moças de boa família (BRAGANÇA e ABREU, 2016, p. 95).
Outra estratégia importante que contribuiu para a difusão das obras foi a
linguagem menos rebuscada, com títulos aprazíveis que despertavam sensa-
ções aos leitores. Nos catálogos das prateleiras, os títulos eram os mais varia-
dos possíveis: Médico do povo, Trovador do povo, Mistérios do povo, Cozinhei-
ro popular. Vale ressaltar que a expressão “o povo” se repetia diversas vezes,
com o objetivo de inserir as camadas populares dentro desse universo da
leitura, de que antes apenas as elites burguesas faziam parte.
Diante de anúncios empolgantes, os editores publicavam: “tudo de
bom e barato no Treme Terra e terror dos careiros”5 - “todos sabem: vivos!
mortos! espectros! que só na Livraria do Povo se encontram livros bara-
tíssimos” e “até os cadáveres se levantam para aproveitar as pechinchas à
venda na Livraria do Povo”6- Se por um lado o anúncio da Gazeta do Povo
afirmava que “até os cadáveres se levantavam”, existia uma metáfora implí-
cita, mas por outro lado, era verossímil que pelo menos algum membro
em específico dos leitores mais vivos poderia se levantar, diante da leitu-
ra pornográfica. Por essas razões, mesmo com algum tipo de dificuldade
5
Gazeta de Notícias, Rio de janeiro, 12 mar. 1883.
6
Gazeta de Notícias, Rio de janeiro, 4 set 1882.
47
financeira encontrada por alguns escritores, eles não hesitaram esforços
para disseminar essa pandemia erótica:
A pornografia e o Naturalismo
A ficção naturalista e a pornografia tinham como alicerce o cientificismo,
que valorizava o corpo como uma de suas principais ferramentas de estudo.
Segundo Vartanian (1977), a noção materialista de natureza encorajava di-
retamente o erótico. Em conseqüência, vinculava-se a crença de que o sexo,
assim como o funcionamento do aparelho reprodutor, era algo humana-
mente natural e de que era indispensável a tentativa de sufocá-lo em nome
de preceitos religiosos ou sociais.
O principal objetivo dos romances naturalistas ou pornográficos não era
apenas colocar em evidência a figura do corpo feminino no centro da narrativa
erótica; e sim tratar de assuntos velados para a sociedade burguesa e patriarcal
da época, como a masturbação, a prostituição feminina, a traição, o aborto, o
homossexualismo, os pecados cometidos pela Igreja e o sexo fora do casamento.
É na madrugada, movida por essa força centrípeta de sua libido, que Leni-
ta parte, voluntariamente “em bicos de pés”, para o quarto de Manuel Bar-
bosa, abre a porta e aproxima-se de sua cama. Encurva-se próximo ao corpo
sonolento do homem, mas o braço pelo qual ela se escorava falseou, deixan-
do-a ser percebida. Manuel ficou perplexo com a presença de Lenita, pois
não contava com a atitude espontânea da jovem de estar ali, em seu quarto,
livremente, àquela hora da noite.
O comportamento da protagonista deixou muitos críticos desacreditarem
na possibilidade de existir uma jovem de vinte e dois anos, com esse perfil e
personalidade na realidade daquele século. Consideravam improvável que
51
uma moça com a classe social de Lenita pudesse assumir atitudes tão inde-
pendentes, sem pensar que antes poderiam denegrir a sua moral.
Veríssimo lista o inverossímil: uma moça culta e rica toma a iniciativa de ir ao quar-
to de um homem casado para ter relações sexuais. Comporta-se desse modo como
uma “mucama desbriada de fazenda”. No quarto, Lenita faz algo inacreditável:
“sujeita-se” aos caprichos do homem. Na sociedade que Veríssimo frequentava, as
mulheres de respeito resistiam aos caprichos do homem. Talvez ele fosse sincero
quando revela que o único sexo que conhecia entre pessoas de distinção era o sexo
contido, exilado do corpo e do prazer. Na literatura, o sexo das classes dominantes
seria mais bem representado pelas lacunas ou pontos de exclamação dos romances
de Machado de Assis. O sexo de Lenita, pensa Veríssimo, era como aquele praticado
nas senzalas (MENDES, 2016, p. 31).
Supostamente verídico, o caso era narrado com uma franqueza inaudita no romance
brasileiro. O folhetim causou tanto escândalo que o Província do Rio se viu obrigado
a interromper a publicação antes do final da história. Houve cancelamentos de assina-
turas e a redação foi inundada de cartas de reclamação. Só em 1893 Figueiredo Pimen-
tel lograria publicar a obra completa em formato de livro, com o título sensasionalista
de O aborto, pela livraria do Povo, do Rio de Janeiro (PIMENTEL, 2015, p.10).
O diabo era a prima. Não confiava muito em si próprio e achava que seria perigosa
a permanência de ambos na mesma casa. Evidentemente ela o amava, fazendo tudo
para lhe agradar. O fogo ao pé da pólvora faz explosão. Era o diabo, era! Mas saberia
conter-se (PIMENTEL, 2015, p. 54).
Mário sentia de perto a tentação que era em manter-se longe de sua prima
e resistiu por algum tempo aos encantos dela. O jovem demorava a chegar
a Niteroi, jantando em casa dos colegas, contando que Maricota já estivesse
dormindo. Quando chegava, no entanto, encontrava-a na sala de jantar, com
53
os cotovelos sobre a mesa e com algum livro qualquer aberto, simulando leitura.
Alguns dias da semana, Mário ensinava-lhe as lições de casa e durante os
encontros, Maricota aproveitava entre um intervalo e outro para seduzir o
primo. Quando falava, para perguntar acerca de alguma dúvida, direciona-
va-lhe o olhar com meiguice e suavizava o tom de voz, além de reclinar a
cabeça para um dos lados, aproximando-se dele. Ela perguntava como tinha
sido o seu dia, o que tinha aprendido nas aulas de botânica e prolongava a
conversa mesmo após a lição. A essa altura, o jovem encontrava-se em um
conflito entre sua razão, que o impelia de cometer qualquer desatino, e com
sua emoção, que o dizia para agarrá-la ali mesmo e despi-la por completo.
Mas naquele momento, pelo menos, a vitoriosa na disputa em sua consciên-
cia foi a razão e cada um foi em direção aos seus quartos.
Mário nada pensou. Desvairado, alucinado, louco, agarrou-a pela cintura, arremes-
sou-a brutalmente sobre a cama, forçou-lhe as pernas resistentes, separando-as, e,
deitado por cima, beijando-a, mordendo-a, enterrando-lhe a língua na boca até qua-
se a garganta, abraçando-a com frenesi, num longo e estreitado aperto, gozou-a uma
vez... duas vezes... três vezes... (PIMENTEL, 2015, p. 67).
54
Os lençóis sujos de sangue denunciavam o que teria acontecido naquela
noite: era a primeira vez que Maricota tinha relações sexuais. Depois que
todo o clima de voluptuosidade acabara, Mário quase não dormiu a noite
toda. Pensou em como seu tio ficaria descontente em saber que ele se apro-
veitou de sua hospitalidade para dormir com Maricota e talvez por isso, te-
riam que se casar. Pensou também que o casamento poderia interromper os
planos dele em sair da cidade para inaugurar a sua própria Farmácia. Entre
todos os pensamentos que teve, imaginou também a hipótese de Maricota
precisar fazer um aborto, caso ela engravidasse logo na primeira relação.
Ao contrário de Mário, sua prima estava despreocupada e orgulhava-se
de ter perdido a virgindade com o primo. Maricota já arquitetava que a se-
gunda ou a terceira vez poderia ser ainda melhor do que a primeira, visto
que não sangraria tanto. Ela não sentia vergonha dele, como ele passou a
sentir dela e evitava-a. A jovem era um exemplo de figura feminina realmen-
te atemporal. Certa manhã, remexendo nos livros de Mário, ela encontrara
alguns romances em uma espécie de baú. Dentro dele, havia O homem, de
Aluízio de Azevedo; O crime do padre Amaro; de Eça de Queirós; Esposa e
virgem, de Belot; Nana, de Emílio Zola; as Volúpias; de Rabelais e vários
outros. Em pouco tempo, ela leu todos os exemplares escondida de sua mãe
e passou a tomar gosto por aqueles gêneros pornográficos.
Como no resto do mundo, a palavra pornografia, no Rio de Janeiro de finais dos sécu-
lo XIX, adquiriu sentido mais amplo, não se restringindo somente aos fatos ou temas
relacionados à prostituição. No cotidiano da cidade, ela era utilizada para qualificar
encontros ou cenas amorosas que feriam o decoro público. Em nosso mercado edi-
torial, de modo específico, ela foi emprestada às histórias que davam vez a sequências
intermináveis de fornicações e cópulas como também a todo e qualquer enredo que
apresentasse em seu texto descrições corporais pouco sutis, namoros proibidos, men-
ções de relações adúlteras ou prazeres que deveriam, em nome dos bons costumes, ter
sido reprimidos ou mesmo interrompidos (EL FAR, 2004, p.194).
Maricota bebeu-a com grande repugnância. Minutos depois, veio forte vontade de
vomitar e fê-lo, sujando a cama, a pele de onça, todo o chão. Uma empregada foi
chamar o farmacêutico, que correu para o chalé. Achou a prima ainda a vomitar.
Com o esforço que fez, sobreveio-lhe uma hemorragia abundante.
56
“- Mário! Eu morro!”, bradou, sentindo o sangue correr em catadupa, molhando-
-lhe as coxas, ensopando-lhe as roupas do leito.
“- Sossega, Maricota, não é nada”, asseverou o moço. “É isso mesmo o que quere-
mos” (PIMENTEL, 2015, p. 129).
Referência Bibliográfica
MENDES, Leonardo. Livros para homens: sucessos pornográficos no Brasil no final do século XIX. Ca-
dernos do IL, Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, n 53, p. 173-191, 2016.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira – 50. Ed. – São Paulo: Cultrix, 2015.
Resumo: Esse artigo busca refletir sobre a narrativa literária do conflito en-
quanto mecanismo de fortalecimento de uma literatura de memória e resis-
tência, analisando como essa narrativa se desenvolve nas obras “No fundo do
canto” (2007) da guineense Odete Semedo e “Uma casa e duas vacas” (2000)
do timorense João Aparício, uma vez que essas obras poéticas estão balizadas
em um contexto de conflitos intensos na Guiné-Bissau e no Timor-Leste. A
obra de Semedo por tratar dos conflitos intensos ocorridos no período de
1998/1999, os quais deixaram amargas lembranças para o povo guineense; a
obra de João Aparício por inserir-se no bojo das consultas populares para deci-
dir se o país tornar-se-ia independente ou integrado à Indonésia. Os conflitos
descritos literariamente na Guiné-Bissau e no Timor-Leste são significantes
para entendermos a dinâmica de produção de uma literatura de resistência, as-
sim como para evidenciar uma obra que busca recontar a história das guerras,
golpes e abalos nacionais, para negociar uma identidade nacional, bem como
a ressignificação da nação.
Não te afastes
aproxima-te de mim
traz a tua esteira e senta-te
(........................................)
Não me subestimes
aproxima-te de mim
não olhes estas lágrimas
8
AUGEL, 2007, p. 328
63
descendo pelo meu rosto
nem desdenhes as minhas palavras
por esta minha voz trêmula
de velhice impertinente
Aproxima-te de mim
não te afastes
vem ...
senta-te que a história não é curta.
Dessa forma, para Augel (2007), o que se tem não é um compromisso li-
teral da história a ser contada, mas fragmentos das memórias mais dolorosas
daqueles dias. Há, portanto, uma poeta que aspirou toda poeira levantada
do chão da luta, misturadas com as cinzas dos escombros de seu chão-pátria,
aromatizadas pelo cheiro da morte espalhado no ar, e que agora, quer ex-
purgar toda secreção purulenta que se fez acumular em seus pensamentos.
Sendo assim, seu norte não busca eco na precisão da história oficial, mas um
retrato fidedigno “de uma paisagem de pesadelo, uma busca de um novo
‘chão’ depois do dilúvio” (AUGEL, 2007 p.198).
No fundo do canto (2007) de Odete Semedo, traz à tona os traumas, me-
dos e tristezas decorrentes de uma guerra que assolou a Guiné-Bissau de 7
de junho de 1998 a 7 de maio do ano seguinte. Este conflito deu-se a partir
da insatisfação popular, algo recorrente no país, que já havia produzido vá-
rias crises políticas nas Guiné-Bissau, gerando posteriormente uma rebelião
militar contra o presidente da República. Durante onze meses ou trezentos
e trinta e três dias, conforme recorrentemente reproduz Semedo, viram-se
65
tempos de brutalidade e exceção, com forças militares estrangeiras em Bis-
sau, tendo a população se deslocado para o interior, buscando fugir do epi-
centro dos conflitos. Após esse momento trágico da história do país, o qual
as mais variadas literaturas do país consideram como um dos mais graves
registrados pela história, a relativa paz conquistada tem experimentado aba-
los constantes, seja por conturbações políticas ou sociais; nunca fora recupe-
rada plenamente e o país vive desestabilizado. Dialogando com seu próprio
tempo, Odete Semedo apresenta poeticamente uma história que ainda sen-
do contada e que, ao que nos parece, está longe de ver seu fim chegar. Sua
poesia não é apenas um reconto do passado, de uma memória ou lembrança;
é também e acima de tudo uma indagação do futuro.
***
Das obras que lidam com a questão dos conflitos pelos quais o Timor-Leste
passou, o anedótico Uma casa e duas vacas (2000) parece-me representar na con-
temporaneidade um inusitado manifesto em forma de poesia que busca apontar
entre rimas e versos os desatinos praticados contra a pátria-mãe Timor, fazendo
eco junto aos prestigiosos trabalhos de figuras de destaque como Fernado Sylvan,
Luís da Costa, João Barreto, Borja da Costa, Luís Cardoso, Xanana Gusmão, Rui
Cinatti e tantos outras importantes figuras da resistência pelas armas e pelas letras.
É a poesia que talha no levantar da poeira do chão dos dias de amarga tristeza e dor,
escritas com as lágrimas da agonia e a esperança de dias de glória. São os versos de
um Timor que se quer livre e que livre há de ser pelas mãos da resistência.
Do prelúdio poético experimentado em Versos do Oprimido aos relatos memo-
rialísticos registrados em Uma casa e duas vacas (2000), João Aparício nos revela
as vis atrocidades desencadeadas no contexto da clausura colonial; em Timor, so-
bretudo, aos dias de agonia do povo durante anos de conflitos que deixaram cen-
tenas de milhares de mortos, um genocídio que se prolongou de 1975 a 2001. A
sua construção poética se deu durante o processo de consulta do povo timorense
em relação a independência ou a integração definitiva do país à Indonésia, lidos
durante programa de rádio “Timor, Sol Nascente”. O referendo foi realizado em
1999, oito anos após o conhecido Massacre de Santa Cruz que deixou centenas de
jovens mortos, feridos e desaparecidos; e que abriu os olhos do mundo para o que
estava acontecendo no país. Um olhar piedoso e ao mesmo tempo míope que se
bem calibrado poderia ter amenizado as chagas purulentas que feriram de morte
aquelas gentes.
66
O título é fruto de uma narração anedótica de um telespectador que con-
tou ter sido persuadido por militares indonésios a voltar em favor da integra-
ção do Timor-Leste à Indonésia, tendo como paga uma casa e duas vacas9.
Esse é o mote que vai, ao longo de toda a sua obra, delineando os contornos
de sua crítica e de seu inconformismo com a situação de sua país. Não à toa
questões como traição, fidelidade e honra são elementos recorrentes duran-
te toda a construção deste livro. Aparício compõe sua poética recorrendo
à memória, resgatando as trágicas passagens registradas na história do país,
e transbordando sua ira, seu desassossego, sua decepção e sua preocupação
com o futuro de sua pátria. Ao utilizar a literatura de reconto, o autor busca
refletir sobre a guerra, sobre os conflitos do país, e trazer ao centro das re-
flexões o caráter nacional, elementos importantes para a forja, elaboração e
negociação das identidades.
O livreto de 42 páginas, em tons pastel-acinzentados, editado pela Ca-
minho da Poesia, com tiragem de apenas 600 exemplares, não é daquelas
obras que nos enchem os olhos pela garbosidade de suas ilustrações, mas é o
retrato da falta de recursos editoriais e da tristeza que está a ser contada em
cada novo poema de seu interior. Não se deve julgar um livro pela capa antes
de se conhecer seu conteúdo; há capas que contam mais histórias do que
nossos olhos canônico-ocidentais podem imaginar. Assim o é Uma casa e
duas vacas. Com 16 poemas divididos por entre as páginas do livro, escritos
entre 6 de maio e 5 de junho de 1999 no Parque das Nações em Portugal10, a
obra conta ainda com uma seção de agradecimentos, notas explicativas acer-
ca de alguns acontecimentos importantes e um glossário que ajuda ao leitor
a compreender alguns termos em tétum utilizados pelo autor ao longo de
sua escrita. Nunca é demasiado lembrar que em países colonizados em que
há a incidência de um pluralismo linguístico tribal, os poetas se veem diante
do dilema de escrever em sua língua ancestral e sua língua colonial, o culmi-
na numa escrita poética bilíngue cujas repercussões se estendem por toda a
contemporaneidade (CAMPATO Jr., 2016).
A obra se insere no que se convencionou chamar de literatura diaspóri-
ca, ou seja, a literatura produzida por timorenses que vivem fora do país,
mas também integra a categoria das chamadas literaturas engajadas, a saber
aquelas produzidas por autores que descrevem a história das lutas de seu
país através das armas e das letras, ou seja, os poetas que escrevem são os
mesmos que ajudaram a construir a história através da luta armada. (BAR-
9
APARÍCIO, 2000 p. 7.
10
APARÍCIO, 2000 p. 41
67
BOSA, 2013; CAMPATO Jr., 2016). Nesse quadro sistemático, embora
opte pelo rechaço de um categorismo cartesiano que busca um forçoso en-
quadramento ocidentalizado das literaturas de África e Ásia, entendo ser
pertinente situá-los através de seu próprio movimento dentro da literatura e
da história, ou seja, dentro do espectro da resistência. Assim, sem embargo
do reconhecimento dos profundos e importantes aportes teóricos já produ-
zidos no campo dessa matéria, a opção que me parece mais adequada é a de
literatura na/da resistência.
De todo modo, como assevera Campato Jr (2016):
É viável ler Uma casa e duas vacas como dilatado poema do modo narrativo cons-
tituído de carias pequenas peças que, por sua vez, também, podem ser examinadas
isoladamente, cada uma tendo o próprio título. É um exemplo, semelhante a muitos
que temos visto, de como o discurso literário e o discurso histórico irmanam-se,
eventualmente, para a ponderação sobre a identificação de uma nação, para recupe-
rar a sua história e exercitar-lhe a memória11.
O poema A casa e as vacas (2000 p. 12-13), traz à tona a reflexão sobre as-
pectos significantes acerca da identidade timorense e a tentativa de corrom-
pe-la. Do poema que em parte dá nome ao livro, extraímos a casa ou úma
como objeto simbólico em Timor Leste: a casa, objeto concreto, enquanto
moeda de troca e corrupção, e, a casa, como fórmula abstrata de conspurca-
ção das identidades nacionais. Esses dois signos estão umbilicalmente inter-
ligados uma vez que é justamente a utilização da casa para corromper que
desencadeia o processo de conspurcação da identidade nacional. Isso por-
que a casa timorense é um objeto sagrado e carrega em si todo o simbolismo
da nação, ancestralidade e das identidades dos timorenses.
Acerca dessas considerações, as duas primeiras estrofes ilustram com rique-
za de detalhes esse processo de corrupção das identidades nacionais e conspur-
cação da úma lulic. Note-se, nas primeiras linhas do poema há um claro apon-
tamento à venda da alma em troca de uma casa e duas vacas, senão vejamos:
Só por isso
Voltaste as costas à nossa casa,
Correndo atrás de outra
11
CAMPATO Jr., 2016 p. 390 – o grifo é meu.
68
Que se nutre de mortes humanas e
Despejando bostas na morada de Deus?
...............................................................
Porventura a alma é vendível?12
12
APARÍCIO, 2000 p. 12
69
Quando a promessa
Vácua e fatal, tiver chegado,
Prepara-te para chorar tua desgraça.
.............................................................
Como essa promessa é o ópio!
............................................................
............................................................
Olha! A casa é morta, roxa e fria,
Lá vêm as duas vacas,
Estrangeiras entre os rouxinóis,
Magras e sem leite13.
(...)
Então, escrevi esta poesia
Só para ficar na memória
Após feita, sepultei-a no chão que durmo,
Para que pudesse ser lida pelas gerações
13
APARÍCIO, 2000 p. 13
70
E conhecessem a história verdadeira
(...)
Referência Bibliográfica
APARÍCIO, João. Uma casa e duas vacas. Lisboa: Caminho, 2000.
CAMPATO Jr. João Adalberto. A poesia da Guiné-Bissau: história e crítica. São Paulo: Arte
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em Goa, Macau e Timor-Leste. São Paulo: Alameda, 2004.
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LEITE, Ana Mafalda. Oralidades & Escritas Pós-Coloniais: Estudos Sobre Literaturas Africanas.
Niterói: Eduerj, 2012.
Referência Bibliográfica
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Nova York: Oxford University Press, 2004. p. 201-234
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81
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ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Pereira e Suely Fe-
nerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007. (1990)
82
OUTRO OLHAR SOBRE O BRASIL: A AMBIVALÊNCIA DO MITO
DO PARAÍSO RACIAL BRASILEIRO
Chinua Achebe
Introdução
Stefan Zweig escritor, dramaturgo, biógrafo, pacifista austríaco de origem
judaica. Considerado um dos escritores mais lido da literatura alemã. Visita
o Brasil em 1936, se encanta com a hospitalidade e a cordialidade do brasi-
leiro. Após essa experiência, decide escrever um livro sobre o “paraíso racial
brasileiro”. O livro é: Brasil um país do futuro.
Em tempos difíceis onde o retrocesso assume o controle da cena política
e social brasileira, a frase: Brasil, um país do futuro. Leva a uma pergunta:
Que futuro? O olhar de cada brasileiro, cada imigrante residente remete a
uma resposta ao mesmo tempo plural e pessoal. Derivada de sua experiência
cotidiana, do seu lugar de falar (gênero, classe, etnia).
A “pátria mãe gentil” revela-se para uma parcela considerável da popula-
ção brasileira, madrasta. A História oficial contada nos livros escolares apaga
83
lutas e personagens. Políticas segregacionistas, racistas são difundidas como
ações positivas em prol da unidade nacional. A História única prevalece nas
salas de aulas, nas campanhas dos governos republicanos, tendo em Getúlio
Vargas um grande aliado.
O governo varguista sedimenta a ambivalência dos mitos do paraíso racial
brasileiro, do Brasil para todos os brasileiros, da nação hegemônica, através
da apropriação da cultura oral, como o samba. A estatal rádio nacional é
o instrumento principal de divulgação das ideias de identidade nacional.
Também propagadas no exterior. O que pode ser lido como o uso de um
“sistema de representação, um regime de verdade, que estruturalmente se
parece ao realismo” como apontado por Bhabha (2012).
Na contra mão das políticas de valorização da cultural nacional, do trabalha-
dor, há o endurecimento das políticas de imigração, a politica de branqueamento
da população brasileira, assim como reformas na educação com forte tendência
eugênica. A modernização da capital republicana, que contou com a abertura da
Avenida Presidente Vargas, aumentou o recorte geográfico da exclusão social dos
negros, mestiços e pobres no Rio de Janeiro. O que nos remete à afirmação de
Fanon (2015) o mundo colonizado é um mundo cortado em dois.
Nesse contexto contraditório, Stefan Zweig escreve seu livro: Brasil, um
país do futuro, 1941. Zweig viajou pelo país na intenção de conhecer de per-
to as múltiplas realidades, personagens do cotidiano brasileiro. Seu olhar de
europeu cosmopolita, pacifista o acompanha nessa jornada de novas desco-
bertas. As paisagens naturais, o cotidiano dos cidadãos brasileiros, a História
oficial são descritos com entusiasmo.
A Utopia Zweiguiana
Na introdução de seu livro, a raça é apresentada ao leitor como um fator
relevante da narrativa. Uma lente de aumento orienta Zweig quanto a essa
questão, a politica nazista alemã centrada na soberania da raça puramente
ariana, e as implicações de tal política na segunda grande guerra. A dicoto-
mia “raça pura x mestiçagem” é debatida ao longo do livro. A comparação
entre a Alemanha nazista e o Brasil paraíso racial, produz um discurso criti-
co de raça como politica de Estado. “País doente” x “País do futuro”:
Enquanto, no nosso velho mundo, prevalece a loucura de se querer criar pessoas de “raça pura”,
[...], a nação brasileira se baseia há séculos unicamente no princípio da mistura livre e sem en-
traves, a total equiparação entre negros e brancos, morenos e amarelos (ZWEIG, 2006, p.18).
84
A ambivalência da raça enquanto signo vai sendo desenhado junto com as
paisagens e a História ocidental do novo mundo. Onde o controle prolonga-
do do velho mundo, o europeu, encontra-se fortemente marcado na língua
nacional, na cultura, na mestiçagem. Esta última considerada por Zweig con-
sequência positiva, eficaz para a construção de uma nação civilizada e pacifica.
A linguagem positivista do papel central do homem europeu na constru-
ção da nação brasileira, na obra de Zweig, continua através da reverência aos
intelectuais, religiosos e lideres militar como: Manuel da Nóbrega, José de
Anchieta, Mauricio de Nassau, Luís de Camões, D. Pedro II.
O recorte feito por Zweig destaca o dom pacifista do país do futuro. O
suposto sucesso politico da unificação territorial e integração das raças no
Brasil de Zweig tem sua explicação no passado histórico. O olhar atual do
passado, o dia de ontem refletido no presente. O tempo anacrônico que
tem como objetivo um projeto de futuro e o Brasil como modelo. Por
sua riqueza natural, dimensão territorial, mas, acima de tudo pela suposta
convivência pacífica entre as etnias que compõem o povo brasileiro. Zweig
observa (2006):
Quantas raças encontramos nas ruas: o senegalês negro de roupa rasgada e o euro-
peu de terno bem-talhado , os índios com seu olhar grave e cabelos pretos e lisos,
e, no meio disso, centenas e milhares de matrizes, as mesclas de todos os povos e
nações[...] (ZWEIG, p. 179, 2006).
Referência Bibliográfica
ACHEBE, A. A educação de uma criança sob o protetorado britânico: ensaios. Tradução: Isa Mara
Lendo. São Paulo: Ed: Companhia das Letras, 2012.
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ADICHIE, N. C. article, African “Authenticity” and the Biafra Experience, Transintion , issue
99, p.42-53, Indiana, Ed: Indiana University press, 2008.
HALL, S. Raça, o significante flutuante. Revista zcultural, Tradução: Liv Sovik e Katia Santos.
Rio de Janeiro, Ed: UFRJ, 2014. http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/raca-o-significante-flutuante.
Acesso em: 06/10/2018
ZWEIG, S. Brasil: um país do futuro. Tradução: Kristina Michahelles. Porto Alegre, Ed: L&PM,
2006.
89
MIGRATION, DISPLACEMENT AND (NON)BELONGING IN
KIRAN DESAI’S THE INHERITANCE OF LOSS
Introduction
Kiran Desai is a contemporary Indian writer whose novels have been ac-
claimed by critics and scholars. Daughter of Indian novelist Anita Desai, she
was brought up in India and England. She later moved to the United States
with her family. Kiran Desai’s work gained recognition for the first time in
the 90s when Salman Rushdie mentioned an excerpt from her first novel in
the anthology Mirrorwork: Fifty Years of Indian Writing (1947-1997). She is
the author of two novels: Hullabaloo in the Guava Orchard (1998) and The
Inheritance of Loss (2006). Desai became the youngest woman to win the Man
Booker Prize (2006) for The Inheritance of Loss. In addition, the novel also
won the National Book Critics Circle Fiction Award in that same year.
Desai’s The Inheritance of Loss portrays the lives of Indian characters that
belong to different generations and backgrounds. However, they express a
strong sense of displacement inside and outside their own community. The
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ, na especialidade Literaturas de Língua Inglesa. Especialista em Docência
17
do Ensino Básico pelo Colégio Pedro II (2017). Graduada em Letras – Inglês/ Literaturas pela UERJ (2016).
90
story opens in 1986 and alternates mostly between Kalimpong, in the state
of West Bengal, north-eastern India, near the Himalayas, and the busy res-
taurants of New York, US. Among the main characters, there is Biju. He is a
young man who leaves India in order to work as a waiter or cook in New York
and provide his father with better living conditions in the future. Therefore,
this paper aims to analyze the representation of migration, displacement and
(non)belonging that unfold and develop throughout Desai’s The Inheritance
of Loss with a special focus on Biju’s character.
as the economic crisis of the 1980s leads millions to queuing up before Western
embassies, cringing in their black skin and adoring the white-skinned officers who
would decide their destiny. Illegal immigrants are dismissed after extracting cheap
labour and lead a fugitive life. Many cannot escape and for those who do, it is too
late to salvage a lost lifetime (VALIYAMATTAM, 2016, p. 97).
Good-bye, Baby Bistro. “Use the time off to take a bath,” said the owner. He had
been kind enough to hire Biju although he found him smelly (DESAI, 2006, p. 23).
Biju had started his second year in America at Pinocchio’s Italian Restaurant, stir-
ring vats of spluttering Bolognese, as over a speaker an opera singer sang of love and
murder, revenge and heartbreak. ‘He smells,’ said the owner’s wife. ‘I think I’m
allergic to his hair oil.’ She had hoped for men from the poorer parts of Europe—
Bulgarians perhaps, or Czechoslovakians. At least they might have something in
common with them like religion and skin color, grandfathers who ate cured sausa-
ges and looked like them, too, but they weren’t coming in numbers great enough or
they weren’t coming desperate enough, she wasn’t sure. . . . (DESAI, 2006, p. 55).
Kiran Desai also depicts the poor basements where immigrants share a
precarious communal accommodation in New York:
Almeida also mentions the contrast between classes as immigrants are su-
pposed to both live, work and sleep in basements. However, they do not
have access to the superior cosmopolitan world as citizens, but as servants
(ALMEIDA, 2015, p. 174). Thus, the metropolis depicted by Desai is based
on exclusion and inequality.
Biju is an example of a displaced individual, because he longs for home and
feels out of place, he misses his father and culture. However, he avoids making
complaints to his father, as he understands that his father’s hopes are depen-
dent on him alone. Meanwhile, the cook, Biju’s father, back in India, praises
the son and boasts about him in the village. According to Almeida, both fa-
ther and son are displaced and marginalized because they are considered su-
baltern individuals wherever they go. For instance, in India, they suffer social
exclusion, while Biju is exploited in New York (ALMEIDA, 2015, p. 178).
94
As Hua, Friedman and Papastergiadis accentuate, displacement is a possi-
ble result of the dislocations present in migration. Thus, there is a constant
feeling of displacement and loss in the accounts about Biju while living in
New York:
Biju put a padding of newspapers down his shirt—leftover copies from kind Mr. Iype
the newsagent—and sometimes he took the scallion pancakes and inserted them be-
low the paper, inspired by the memory of an uncle who used to go out to the fields in
winter with his lunchtime parathas down his vest. But even this did not seem to help,
and once, on his bicycle, he began to weep from the cold, and the weeping unpicked a
deeper vein of grief—such a terrible groan issued from between the whimpers that he
was shocked his sadness was so profound (DESAI, 2006, p. 51).
As he has no relatives in the city, the young man also suffers because his
fellow immigrants disappear suddenly and he cannot maintain strong con-
nections with them:
Biju knew he probably wouldn’t see him again. This was what happened, he had
learned by now. You lived intensely with others, only to have them disappear over-
night, since the shadow class was condemned to movement. The men left for other
jobs, towns, got deported, returned home, changed names. Sometimes someone
came popping around a corner again, or on the subway, then they vanished again.
Adresses, phone numbers did not hold. The emptiness Biju felt returned to him
over and over, until eventually he made sure not to let friendships sink deep anymo-
re (DESAI, 2006, p. 102).
In the novel, Biju is afraid he might even lose his affection for his own
father as a result of displacement and time abroad, because he may become
used to absence:
If he continued his life in New York, he might never see his pitaji again. It happened
all the time; ten years passed, fifteen, the telegram arrived, or the phone call, the pa-
rent was gone and the child was too late. Or they returned and found they’d missed
the entire last quarter of a lifetime, their parents like photograph negatives. And
there were worse tragedies. After the initial excitement was over, it often became
obvious that the love was gone; for affection was only a habit after all, and people,
they forgot, or they became accustomed to its absence (DESAI, 2006, p. 233).
Therefore, the novel depicts the precarious accommodations and work at-
mosphere, together with the displacement and prejudice that these poor im-
migrants have to face in order to live and work in the post-modern metropolis.
Thus, Biju’s journey in America represents how migration, displacement
and nonbelonging are intertwined in Kiran Desai’s novel. The character fe-
els displaced and understands that he does not fit in that metropolis. There
is a certain desire to come home, because he does not adapt to this different
culture. Sandra Almeida points out that only by leaving his Indian tradi-
tions and assimilating the host country ideas, Biju would be able to survive
and try to be successful in America.
The metropolis illustrated by Kiran Desai is based on exclusion and ine-
quality. In Kiran Desai’s novel, we observe a very negative angle on how ille-
gal immigrants live and work in the United States. Also, for many of them,
not only their stay in the host country, but also the return to home is trou-
bled and distant from an idealization. There is a physical as well as an emo-
tional displacement as these populations cannot adapt to the host culture.
References
ALMEIDA, Sandra. R. G. Cartografias Contemporâneas: Espaço, Corpo, Escrita. 1. ed. Rio de
Janeiro: Editora 7Letras, v. 1. 220p. 2015.
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VALIYAMATTAM, Rositta Joseph. Kiran Desai’s The Inheritance of Loss. In: ___. Personal
and National Destinies in Independent India: A Study of Selected Indian English Novels. Cambri-
dge Scholars Publishing, 2016.
97
PASSA NA PRAÇA E FEIRA DE POESIA: POESIA E POLÍTICA NA
REDEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRA
Introdução
Este trabalho estruturou-se a partir da análise textual e da reconstituição
histórica e crítica do papel da poesia carioca dentro do processo que ficou co-
mumente conhecido como a “redemocratização brasileira” dos anos 1980.
Nossas análises se apoiam em uma visão panorâmica da atuação de cole-
tivos poéticos cariocas dos anos 80. Em especial, os que promoviam even-
tos poético-artísticos nas ruas ou em quaisquer outros ambientes abertos
ao grande público. E esses movimentos serviram como instrumentos úteis
ao processo de retomada da democracia no Brasil, depois de uma longa dita-
dura de 21 anos. Além disso, também puderam promover, em larga escala, a
popularização e a desmistificação (despedestalização) do poeta e de seu fazer
artístico: a própria poesia.
A partir do contato com poetas de gerações anteriores à minha (comecei a
atuar no meio poético carioca a partir de 2007), tomei conhecimento de várias
18
Mestrando em Literatura brasileira, UERJ, Rio de Janeiro-RJ; Especializado em Literatura brasileira - UERJ, RJ. E-mail: polem.rio@gmail.
com. Este trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes) Código de
financiamento 001.
98
histórias sobre alguns grupos que movimentaram a mesma cena artística, só
que durante os anos 80 do século passado. A partir de tantos relatos, acabei
por construir uma das hipóteses centrais que passo a defender a partir deste
trabalho, a de que o surgimento e o crescimento dos movimentos coletivos de
apresentação pública de poesia estão intimamente ligados, de modo indissoci-
ável, ao vasto processo de redemocratização da sociedade brasileira do final dos
anos 1970 e do decorrer da década de 1980.
Percebo nitidamente que este trabalho de pesquisa vem contribuir de forma
original para uma compreensão bem maior da importância e das características
peculiares à década aqui tratada, visto que, além de ser escasso o registro dos fa-
tos pertinentes à vida literária carioca desse momento específico, a maioria dos
(poucos) críticos, que se propõem a fazer leituras sobre este período, insiste em
vê-lo apenas como um mero período de transição da Geração 70 – mais conhe-
cidos como “poetas marginais” – para a poesia da década de 90. Fora isso, tam-
bém teimam em eleger o poeta preparado, culto, conhecedor das técnicas como
a cara da década oitentista. Indo na contramão desse pensamento, meus estudos
aqui sintetizados mostram um painel que vai muito além disso e revelam, por
exemplo, que os saraus dos anos 1990 e 2000 só puderam se constituir como
tais devido a diversas reminiscências do tal período tido por muitos como sendo
sem valor, como sendo uma mera fase de transição, sendo intitulada injustamen-
te de “a década perdida”. Contrariando essa visão, meus estudos se propõem a
mostrar que, além de muito rica em termos literários e de atividades artísticas,
essa época foi revolucionária e definidora de muitos padrões de pensamento e de
certos modus operandi que até hoje vigoram no meio literário carioca.
Apesar do elevado número de poetas, grupos e movimentos que sacudiram
a vida literária oitentista, ficou nítido para nós que os eventos poéticos ocor-
ridos em lugares públicos, muito mais que aqueles realizados em ambiente
fechados, conseguiram desenvolver táticas e técnicas que não só foram impor-
tantes artisticamente, mas, de igual forma, politicamente. Percebemos tam-
bém que dois, dentre todos esses movimentos artísticos, conseguiram marcar
bastante os corações e mentes dos poetas e do público em geral, são eles: o
Passa na praça que a poesia te abraça e a Feira de Poesia Independente. O Passa
na praça que a poesia te abraça foi criado, produzido e coordenado pelo grupo
Poça d’água, oriundo da Zona Norte carioca. Já a Feira de Poesia Independente
era um sarau político-poético que conseguia aglutinar poetas das mais diversas
regiões do Rio de Janeiro.
99
Ambos os eventos realizavam-se nas ruas e misturavam poesia, música,
artes plásticas e teatro com manifestações políticas. Porém, o Passa na praça
era um sarau itinerante, que rodava por todas as praças do Rio de Janeiro,
aos domingos. Já a Feira de Poesia acontecia todas as sextas-feiras, só que
fixa, sempre ali no palco político da Cinelândia, praça muito conhecida do
centro do Rio de Janeiro. Estes dois grupos e seus respectivos movimentos
artísticos realizavam aquilo que, ao que parece, era uma tendência levada
adiante por vários outros poetas e coletivos poéticos da época: a mistura en-
tre o fazer poético (escrito, falado e/ou performatizado) e o fazer político.
Rio de Janeiro. Anos 80. Segunda metade da década. No ar, depois de muitos ca-
minhos e descaminhos, um certo clima de esperança mesclada com uma dose talvez
excessiva de euforia. E a poesia, mais uma vez sintonizada com seu tempo, vive o que
parece ser um novo boom. Pelo menos é o que se diz; na imprensa, nos bate-papos
de bar e, como não podia deixar de ser, na praia (MESSEDER, 1993, p.53).
Percebe-se claramente que esse boom poético traz consigo um painel plural na
forma dos mais variados tipos de artistas, textos, atuações e performances. Plural
também se mostra a própria arte poética que, pós-modernamente, irá se mani-
festar das mais diversas maneiras possíveis, indo desde as formas fixas mais tradi-
cionais, tais como a trova e o soneto - agora ressignificados - até os experimenta-
lismos, que continuam, mesmo distante dos períodos vanguardistas, a ocorrer.
Carlos Alberto Messeder confirma o que acabou por se configurar como
um consenso na crítica desta época: o imenso pluralismo acabou tornando-
100
-se não só a característica-mor do grupo de poetas desse período, mas tam-
bém um forte traço da própria produção poética dos anos 80:
Houve, com essa mudança de década, uma mescla, uma fusão maior de persona-
gens, de projetos e de diferentes dicções poéticas. Noto atualmente, uma certa con-
vivência pacífica de diferenças e mesmo um entrelaçamento. Isso me parece uma
novidade – e de peso (MESSENDER, 1993, p.56).
A poesia brasileira dos anos 1980 em diante é um vasto caldeirão de sopa para qual-
quer paladar, com ingredientes os mais díspares, quer pensando em temas, recursos,
regiões, credos, escolas. Formas e formatos, ou mesmo a partir de uma historiografia
comparatista (SALGUEIRO, 2013, p.18).
Ricardo Vieira Lima (2010), no prefácio que fez para a antologia “Roteiro da
poesia brasileira – Anos 80” (para a qual ele mesmo selecionou os poemas), se
refere a essa época como a inauguradora de uma (saudável) polifonia de vozes e
chega a nomear os poetas desse mesmo período de pluralistas.
No entanto, por outro lado, mesmo admitindo a pluralidade artística da cena,
a maioria dos críticos irá eleger o poeta culto, bem preparado intelectual e tec-
nicamente, como o representante maior deste momento plural. Assim sendo,
a mesma crítica irá definir essa época como sendo aquela em que a profissiona-
lização e o apuro técnico deixaram a escrita relaxada e instantânea dos poetas
da geração 70 para trás, distante das novas propostas artísticas. É preciso aqui,
neste ponto da discussão, registrar a minha posição contrária a essa visão que
tem dominado a crítica até os dias atuais. Afirmo, através dessa minha pesquisa,
que nem o poeta predominante na década de 80 é o poeta preparado, técnico
e culto, nem os anos 80 são apenas e simplesmente um momento de transição,
sem grandes destaques, como também costuma afirmar a maioria dos críticos.
Opondo-me a isso, penso que este período não só foi de extrema importância,
como até, em vários aspectos, se mostrou revolucionário e modificador de de-
terminadas estruturas que, a posteriori, possibilitaram a formação de vários ele-
mentos presentes nas cenas artísticas dos anos 90 e 2000.
Porém, segundo a crítica especializada nesse período, a escrita relaxada, ins-
tantânea, marginal, transgressora - que tão marcadamente caracterizou a
produção da geração 70 - vai aos poucos perdendo a sua força para uma ideia
de poesia muito mais elaborada, mais universal, menos panfletária. Ricardo
Vieira Lima afirma que:
102
(...)os novos poetas do período trabalhavam em silêncio. O binômio “arte/vida” não
era mais suficiente para justificar toda uma produção cultural. Era preciso preparar-
-se intelectualmente, ler os melhores autores, estudar as técnicas do verso, traduzir
poesia, tudo isso, às vezes, antes mesmo de estrear em livro (LIMA, 2010, p.10).
O poeta 90, nesse quadro, move-se com segurança. É a vez do poeta letrado que vai
investir, sobretudo na recuperação do prestígio e da expertise, no trabalho formal e
técnico, com a literatura. Seu perfil é o de um profissional culto, que preza a crítica,
tem formação superior e atua, com desenvoltura, no jornalismo e no ensaio acadê-
mico marcando assim uma diferença com a geração anterior, a marginal, antiesta-
blishment por convicção (HOLLANDA, 2000, p.193).
Essa intenção fica ainda muito mais clara no jornal O Globo, do dia 11 de
outubro de 1989, que assim fala sobre o grupo Poça d’água e seu, já bastante
conhecido na época, movimento de rua:
Para os integrantes do grupo Poça d’água, a poesia sempre será bem aceita quando
for apresentada de maneira acessível. Com uma proposta diferente de trabalho, o
grupo começou a atuar em 1984, encabeçando o projeto “Passa na praça que a poe-
sia te abraça”. Essa proposta, que levava textos teatralizados para as praças públicas,
contou com a colaboração de Douglas Carrara e Francisco Igreja. Segundo João Ba-
tista Alves, um dos componentes do grupo, o objetivo principal era desmistificar a
poesia, “afastando a imagem estática, monótona e cansativa, e apresentando-a como
uma coisa viva, com cara, corpo e roupa”.25
A partir do poema, é criada uma situação cênica, rítmica, gestual. É a busca de uma
Poesia Teatral, envolvente, participante e, ao mesmo tempo, lúdica e crítica, emo-
cional e política. (...) A recitação do poema é cada vez mais coletiva. (...) Já não é
suficiente a fala individual do poeta. Cresce a participação popular. (...) O público
não é um assistente passivo do que ouve e vê. O povo é fonte – ponto de partida e
chegada – da criação (NASCIMENTO, 2003, p.65)
Tudo isso reforça ainda mais nossa tese de que um processo nítido de po-
pularização da poesia se tornou um fato bastante relevante e novo na poesia
24
GONÇALVES, Zalmir. Poesia volta à moda e tem novas tribos. O Dia, Rio de Janeiro, 29 jul.1992. Caderno O Dia D, p.1.
25
ALFREDO, J. Poesia, a cada dia mais viva, movimenta a área do Méier. O Globo, Rio de Janeiro, 11 out.1989. Caderno especial Méier, p.2.
108
brasileira, a partir da década de 1980.
Não será à toa, portanto, que nesse panorama irá ocorrer um crescimento
bastante significativo não só das plateias mas também do número de poetas,
associações, academias e saraus, desembocando, nos dias atuais, na consta-
tação de que há, só no Rio de Janeiro, os mais diversos saraus em atividade
e um número de poetas que há muito já passou a casa do milhar. Segun-
do o site Blocos Online, de Leila Míccolis, no Brasil todo, este número deve
chegar, atualmente, a por volta de dez mil poetas. Segundo ela me confir-
mou em entrevista: “Blocos disponibiliza apenas dez mil poetas, mas, com
o advento da Internet, calculo que haja mais de cinquenta mil, certamente.
Nunca consegui terminar de fazer esta pesquisa, porque a cada dia conheço
de 50 a 100 poetas a mais.” (informação verbal)26
Esse processo de popularização da poesia intensificado na década de 80
trazia consigo, como uma de suas consequências, o aumento cada vez maior
do público que ia assistir a esses poetas. Só para citar exemplos disso, no
início dos anos 80, o trio de poetas Os Camaleões, com Claufe Rodrigues,
Pedro Bial e Luiz Petry, abriam shows de bandas roqueiras tais como Biquíni
Cavadão e Ultraje a Rigor, que arrastavam multidões em suas apresentações.
O grupo Mymba Kuera, que entre seus membros incluía os poetas Dalmo
Saraiva e Sady Bianchin, foi outro que, durante o evento Rio ECO-92, che-
gou a se apresentar para um público de vinte mil pessoas. A Gang pornô,
coletivo poético encabeçado por Cairo Trindade e Eduardo Kac, durante
essa mesma época, chegou a fazer a abertura de um show do roqueiro inglês
Sting, ex-integrante do grupo The Police. Essa espécie de status e de sucesso
alcançados pela poesia e pelos poetas dos anos 80, é bom destacar aqui, não
conseguiria repetir tamanhas amplitudes nas décadas seguintes.
Essa popularização da arte poética e o crescimento cada vez maior
das plateias desses tais shows poéticos terão também como consequência o
aumento significativo das casas e espaços interessados em abrigar os artistas e
esse público numeroso. A poesia, agora, de forma também nunca antes vista,
passava a ser capaz de dar lucros às casas que podiam abrigá-la. Sendo assim,
não será somente a performance que irá se expandir, desenvolver e dominar a
cena poética e a própria época, proliferam-se também os lugares que abriga-
rão saraus, eventos, manifestações e/ou happenings, transformando-se, no
Rio de Janeiro, em verdadeiros núcleos aglutinadores desses agitos. Exem-
plos disso, temos os bares Avatar e Botanic, no Jardim Botânico, o Mistura
26
MÍCCOLIS, Leila. Entrevista concedida a mim. Rio de Janeiro, 6 set.2017.
109
Fina, local mais habituado à música, porém, neste instante, de portas aber-
tas para a poesia, a CEU (Casa do Estudante Universitário), que servia não
só para realizar saraus (como o “Balcão Poético”), mas também como abrigo
e moradia para vários poetas sem teto e sem recursos para sobrevivência,
o Circo Voador (que misturava tribos e artes diferentes, principalmente, a
música, o teatro, a dança e a poesia), e as praias cariocas, onde vários eventos
foram realizados, talvez o mais famoso deles o “Top Less literário”, passeata
nudista ocorrida no posto 9 da praia de Ipanema, em março de 1980, pro-
movida pelos poetas da chamada poesia pornô.
Será também a partir desse contato dos artistas com essas plateias (nume-
rosas), que um fato irá surgir no cenário da poesia brasileira: a arte produ-
zida e pensada coletivamente, que podemos abreviar para arte coletiva. O
público do “Passa na praça”, por exemplo, tinha total liberdade para aden-
trar os esquetes e mudar falas e enredos pré-estabelecidos pelo grupo. João
Batista Alves confirma essa arte coletivizada, em entrevista que deu ao Jor-
nal O Globo, em 1986: “A improvisação está sempre presente em nossas
apresentações. Estamos o tempo todo estimulando a participação popular
e a partir de algumas dessas intervenções surgiram muitas das ideias para os
esquetes que mostramos.”27 Na “Feira da Poesia”, Flávio Nascimento, com
seu inseparável pandeiro, convidava poetas e público em geral a entrarem na
roda e dizer versinhos, compondo um grande poema, de improviso, como se
este fosse não ter fim. Por vezes, em determinados eventos poéticos, uma ou-
tra maneira de se compor coletivamente se dava na realização de um poemão
escrito por todos. Funcionava assim: a folha de papel ia rodando de mão
em mão e cada um colocava um verso e, ao fim, tinha-se um enorme poema
que era lido por um poeta escolhido dentre todos ali presentes. Formava-se,
então, uma única obra feita de misturas, em que cada um contribuía demo-
craticamente com ideias e versos.
Essa produção artística grupal dos anos 80 não se percebe tão somente na
construção de poemas e artes coletivas, mas é visível também em uma busca
por cada vez mais associações entre poetas. Heloísa Buarque salienta bem isso:
Outro resultado desse tal boom poético dos anos 80, dessa proliferação
de poetas, de grupos artísticos, de recitais (nessa época, não costumavam
ser chamados de “saraus”) e de lugares para apresentações foi o surgimento
também de algo bem diferente do que havia acontecido nos anos 70: uma
espécie de processo de maior profissionalização dos artistas. Vejamos o que
nos diz Carlos Alberto Messeder (1993, p.62):
Uma profissionalização do poeta viria a se acentuar logo no começo dos 80, bem
como anunciava o início de uma entrada mais sistemática (e já agora valorizada
positivamente) de um certo número dos “marginais/alternativos/independentes”
dos 70 no circuito das editoras comerciais. (...) Uma relação mais enfatizada, mais
marcada com o dinheiro, a qual se expressava, por exemplo, na busca de uma re-
muneração para o poeta nos recitais, na cobrança de ingressos ou couvert artístico,
num aumento crescente do custo de produção e mesmo do preço dos livros e assim
por diante. Ao longo dos 80, essa face do processo de profissionalização vai sendo
crescentemente enfatizada.
28
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Depois do Poemão. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 set.1980. Caderno B, p.3.
111
Esta organização mais sistemática do alternativo, juntamente com a tática da coedi-
ção (quando autor e editora se complementam) são tentativas de “negociar” com
os limites de absorção e com as regras do mundo das editoras comerciais ao mesmo
tempo que expressam os sinais dos novos tempos
Referência Bibliográfica
CARRARA, Douglas (Org.). Varal de poesias ao sabor do vento: poesia emergente dos anos 80.
Rio de Janeiro: Ribroarte, 1986.
DOIMO, Ana Maria. A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participação política no Bra-
112
sil pós-70. Rio de Janeiro: Relume-Dumará: ANPOCS, 1995.
GRUPO POÇA D’ÁGUA (Org.). Passa na praça que a poesia te abraça. Rio de Janeiro: Rio
Arte, 1990.
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Depois do poemão. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 dez. 1980.
LIMA, Ricardo Vieira (Org.). Roteiro da poesia brasileira: anos 80. São Paulo: Global, 2010.
NASCIMENTO, Flávio. Poesia na rua: Antologia (1967-1997). Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2003.
PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Em busca do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: No-
trya, 1993.
RODRIGUES, Marly. A década de 80 – Brasil: quando a multidão voltou às praças. São Paulo:
Ática, 2001.
______. Notícia da atual poesia brasileira – dos anos 1980 em diante. O eixo e a roda, v. 22, n.
2. Minas Gerais: UFMG, 2013.
SOUZA E SILVA, Antonio de Pádua de. Movimento Poetas na Praça: uma poética de ruptura e
resistência. São Paulo: PUC, 2008.
113
EXPERIÊNCIA DE PESQUISA-AÇÃO SOBRE PRECONCEITO LIN-
GUÍSTICO COM JOVENS DA REDE CUCA, DE FORTALEZA-CE
Introdução
O presente trabalho, ainda em andamento, aponta para um olhar sobre
a favela do ponto de vista linguístico, considerando seus jovens moradores
como atores conscientes de sua realidade e aptos a oferecerem uma contri-
buição academicamente relevante em discussões acerca de temas como va-
riedade linguística e preconceito linguístico. Esse direcionamento parte do
entendimento de que os estudos linguísticos e, mais especificamente, socio-
linguísticos, existentes já apresentam arcabouço suficiente para que se tenha
um amplo conhecimento sobre as línguas como um todo e para que se des-
façam quaisquer preconceitos de cunho linguístico. Cientes disso, os ganhos
que a Sociolinguística trouxe para os estudos linguísticos, bem como seus ar-
gumentos científicos para que caiam por terra os preconceitos linguísticos,
são o mote temático deste trabalho em desenvolvimento, que pretende, a
29
Contato: maria.herminia@gmail.com
114
partir de uma metodologia que parte de uma pesquisa-ação e, possivelmente,
desemboca em uma ecologia de saberes, aproximar a língua de seus falantes,
com o intuito de discutir estratégias divulgação do combate ao preconceito
linguístico. Para tanto, iniciaremos o trabalho com uma pesquisa-ação na
qual faremos oficinas com jovens da Rede Cuca, situada em Fortaleza (CE),
uma rede de proteção social e de oportunidades formada por três Centros
Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (Cucas), sobre os seguintes
temas: 1) Língua e opressão; 2) Língua e identidade; 3) Erros, normas e pre-
conceito linguístico; e 4) Preconceito linguístico ou social? O encaixe social
do preconceito linguístico. O segundo momento desse processo será pro-
por a elaboração e o desenvolvimento de estratégias de divulgação dos temas
discutidos. Alternativa ao padrão de pesquisa tradicional, a pesquisa-ação é
um tipo específico de investigação-ação que busca agregar à teoria um viés
prático, dando voz a atores sociais envolvidos em problemas que devem ser
conjuntamente identificados, discutidos e solucionados (TRIPP, 2005). Os
problemas a serem trabalhados também devem ser selecionados pelos parti-
cipantes, a partir de um diagnóstico da situação no qual todos os envolvidos
tenham voz e vez. Acreditamos que o terceiro momento de nossa pesquisa
será feito a partir de uma proposta de ecologia de saberes30, proposta defen-
dida por Souza Santos (2011), que alinha um representante da universidade
e um representante popular com notório saber para, juntos, construírem
o conhecimento. Nessa parte da pesquisa, é possível que agentes externos
sejam recrutados para a viabilização dessas propostas. Por exemplo, caso as
estratégias girem em torno dos próprios pilares do Hip Hop, é possível que
professores ou praticantes de cada um desses pilares sejam convidados. O
momento seguinte da pesquisa seria o de aplicação dessa(s) estratégia(s) co-
letivamente pensada e, por fim, teríamos um momento de avaliação, no qual
os resultados dessa(s) prática(s) seriam avaliados, considerando seu alcance e
sua aplicabilidade em sala de aula ou sua ampliação para estratégias de divul-
gação desses assuntos para a sociedade. Possivelmente, a atuação com esses
jovens irá oferecer à pesquisa e à universidade estratégias concretas e eficien-
tes de combate ao preconceito linguístico e, em contrapartida, oferecerá a
esses indivíduos uma carga de conhecimento que os subsidiem na atuação
política de luta contra o preconceito e em favor da inclusão social.
Neste artigo, limitar-mo-emos a um esboço da pesquisa que pretendemos
empreender, apresentando um projeto que contempla a parte central de nos-
30
Neste artigo, não nos aprofundaremos sobre a ecologia de saberes por não sabermos se essa será uma opção escolhida pelos jovens com os
quais trabalhamos, uma vez que, conforme a pesquisa-ação, todas as decisões devem ser tomadas em conjunto com os participantes.
115
so referencial teórico, ou seja, a Sociolinguística; a metodologia que adota-
remos, intitulada pesquisa-ação; e o grupo ao qual pertencem os jovens com
quem trabalharemos: a Rede Cuca. Todo o desenvolvimento desta pesquisa
será descrito em nossa tese, que se encontra em fase de desenvolvimento.
Referencial Teórico
Nosso trabalho, tal qual o propomos, não encontraria espaço de realização
até a década de 1960. Até então, estudos que tomassem a fala como escopo e a
entendessem como objeto passível de sistematização não encontravam suporte
nos teóricos da época. Em 1961, quando o americano Willian Labov iniciou-se
na Linguística, o então estudante decidiu pesquisar a língua “tal como usada na
vida diária por membros da ordem social” (LABOV, 2008) e esbarrou em um
programa linguístico ainda limitado por barreiras ideológicas que abnegavam o
estudo empírico da mudança linguística e da estrutura interna da variação.
Revisando a literatura sobre o tema, Labov descobriu, e elencou, algumas
dessas “barreiras ideológicas” para o estudo da língua na vida cotidiana, tais
como o princípio estrutural saussuriano que apartou os estudos sincrônicos
dos diacrônicos, ou as observações que davam conta de que a mudança sonora
não podia, a priori, ser observada diretamente. “Bloomfield defendia a regula-
ridade da mudança sonora contra a evidência irregular do presente declaran-
do (1933, p. 364) que quaisquer flutuações que pudéssemos observar seriam
apenas casos de empréstimo dialetal” (LABOV, 2008, p. 14) e Hockett con-
siderou a mudança fonológica lenta demais para ser observada e a mudança
estrutural muito rápida, afastando, assim, de acordo com Labov, o estudo da
mudança linguística do programa da época. Para o autor, a variação livre seria,
possivelmente, a restrição mais importante, uma vez que, para Bloomfield, al-
guns enunciados eram o mesmo, não tendo, portanto, necessidade de serem
estudados. Dessa forma, a estrutura interna da variação, juntamente com as
pesquisas de mudança em andamento, também foi relegada.
Em contrapartida ao que vinha sendo feito até então, principalmente pe-
los gerativistas, Labov insistiu em incluir nos estudos linguísticos os aspec-
tos sociais e trouxe para a academia aquilo que aprendera fora dela:
31
Publicado inicialmente em Word, 19: 273-309 (1963). Uma versão abreviada foi apresentada no 37o Encontro Anual da Sociedade Ameri-
cana de Luinguística em nova York, em 29 de dezembro de 1962. Usamos a tradução brasileira, cuja referência é: LABOV, William; tradução
Marcos Bagno; Martha Maria Pereira Scherre e Caroline Rodrigues Cardoso. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
32
LABOV, W. The Social Stratification of English in New York Cite. Washington, D.C.: Center for Appilied Linguistics, 1996. Usamos a
tradução brasileira, cuja referência é: LABOV, William; tradução Marcos Bagno; Martha Maria Pereira Scherre e Caroline Rodrigues Cardo-
so. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
117
A Sociolinguística tem como objeto de estudo o vernáculo, ou seja, a língua
em uso. Sendo assim, é de seu interesse observar, descrever e analisar a língua
em seu contexto social. Para tanto, é tomado como ponto de partida uma co-
munidade de fala, que, no dizer de Labov (2008, p. 188) “[...] não pode ser
concebida como um grupo de falantes que usam todos as mesmas formas; ela
é mais bem definida como um grupo que compartilha as mesmas normas a
respeito da língua”. Toda comunidade de fala é caracterizada por diferentes
modos de falar, intitulados variedades linguísticas. Por sua vez, ao conjunto
dessas variedades dá-se o nome de repertório verbal. As variedades linguísticas
mostram que nenhuma língua é homogênea e a Sociolinguística encara a he-
terogeneidade linguística não como um problema, mas como uma qualidade
constitutiva do fenômeno linguístico (ALKMIM, 2008, p. 33).
No dizer de Weinreich, Labov e Herzog (2006):
A Rede Cuca
A Rede Cuca nasceu de uma demanda popular, solicitada por meio do
Orçamento Participativo da prefeitura, para atender às principais necessida-
des da juventude de Fortaleza e da Região Metropolitana, sendo atualmen-
te considerada pela Prefeitura Municipal de Fortaleza a principal Política
Pública de Juventude do Município. A Rede Cuca, de acordo com o site
da Prefeitura de Fortaleza, “é uma rede de proteção social e oportunidades
formada por três Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte
(Cucas)”, localizados nos bairros Barra do Ceará, Mondubim e Jangurussu.
Esses Centros Urbanos são mantidos pela Prefeitura de Fortaleza, por meio
da Coordenadoria Especial de Políticas Públicas de Juventude, e geridos
pelo Instituto Cuca, uma Organização Social (O.S.)33 vinculada e financia-
da pela Prefeitura de Fortaleza e pelo Banco Interamericano de Desenvolvi-
mento (BID).
A rede atende prioritariamente jovens de 15 a 29 anos e tem como obje-
tivo promover a garantia de direitos humanos por meio da descentralização
das atividades que se concentram nos bairros mais abastados da cidade. Com
esse intuito, são oferecidos “cursos, práticas esportivas, difusão cultural, for-
mações e produções na área de comunicação e atividades que fortalecem o
protagonismo juvenil”, além de “eventos estratégicos, festivais, mostras, ex-
posições e programação permanente de shows, espetáculos e cinema”.
33
Organizações sociais (OSs) são instituições pertencentes ao terceiro setor, termo sociológico que abrange organizações de iniciativa privada
sem fins lucrativos, de direito privado e que prestam serviço de caráter público. Também pertencem a este setor as Organizações Não Gover-
namentais (ONGs), entidades filantrópicas em geral, Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), dentre outros. Cabe
pontuar que o primeiro setor contempla o poder público e o segundo, o setor privado. O terceiro setor, como definido, tem caráter misto,
sendo formado por entidades privadas, mas sem fins lucrativos, e ligadas ao poder público em quaisquer dos níveis de governo (municipal,
estadual ou federal).
119
Um breve panorama populacional de Fortaleza é necessário para que se
entenda o contexto social que levou à criação da Rede Cuca. Atualmente,
30% dos 2.571.896 habitantes que compõem a população total do Municí-
pio de Fortaleza são jovens. A maior parte dessa considerável fatia populacio-
nal de quase 800.000 habitantes está concentrada nas áreas com o Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) mais baixo. O mapa a seguir representa a
distribuição por IDH dos 119 bairros de Fortaleza, sendo os 28 bairros pin-
tados de vermelho os que possuem IDH mais baixo e os seis pintados de azul
os que apresentam IDH mais alto, seguindo a gradação exposta na legenda:
Pesquisa-ação
Recorremos a Tripp (2005) para dizer que se atribui a Lewin (1946) a
primeira menção ao termo pesquisa-ação em uma publicação, embora haja
versões concorrentes, dentre as quais a de que o termo já havia sido usado
em 1913 (Altrichter, Gestettner, 1992), na Alemanha, ou por John Collier
antes e durante a Segunda Guerra Mundial, ideia sustentada por Deshler
e Ewart (1995) e Cooke (s.d.). O autor também afirma que, considerando
que a investigação da própria prática com o objetivo de melhorá-la sempre
existiu, há registros de experiências que se assemelham à pesquisa-ação, mas
sem receber esse nome, como em Buckingham (1926)34 ou John Dewey
(1933)35, o que nos leva a crer que provavelmente não encontraremos um
marco inquestionável para o surgimento desse método. Após o registro de
Lewin (1946), o termo passou a designar quatro tipos distintos de pesquisa
– pesquisa-diagnóstico, pesquisa participante, pesquisa empírica e pesquisa
experimental (CHEIN; COOK; HARDING (1948) apud TRIPP (2005))
– e, desde então, tem se dividido em diferentes tipos nas mais diversas áreas,
tais como administração (Collier), desenvolvimento comunitário (Lewin,
1946), mudança organizacional (Lippitt, Watson; Westley, 1958), ensino
(Corey, 1949, 1953), agricultura (Fals-Borda, 1985, 1991) e, até, mais recen-
temente, em negócios bancários, saúde e geração de tecnologia, por meio do
34
SELENER (1997) apud TRIPP (2005).
35
ROGERS (2002) apud TRIPP (2005).
121
Banco Mundial e outros (Hart; Bond, 1997). (TRIPP, 2005).
Em uma tentativa de definição, podemos identificar a pesquisa-ação como
um tipo específico de investigação-ação, um termo guarda-chuva que con-
templa qualquer processo que siga um ciclo no qual haja um planejamento
para melhoria da prática, seguido da ação para concretizar o que foi planeja-
do, sucedido do monitoramento e descrição dos resultados alcançados por
meio da prática realizada e, por fim, da avaliação dos resultados obtidos a
partir da ação, que, por sua vez, servirá de mote para um novo planejamento,
que suscitará uma nova ação a ser monitorada, descrita e posteriormente
avaliada e assim sucessivamente, sempre no sentido de uma ação que busca
aprimorar a prática.
Thiollent (2011, p. 14) também aproxima a pesquisa-ação da pesquisa
participativa – ao mesmo tempo em que reforça que se trata de propostas
diferentes – por ambas buscarem dar, tanto aos pesquisadores quanto aos
participantes da pesquisa, meios eficientes de respostas a problemas reais vi-
venciados por estes, oferecendo diretrizes de ações transformadoras a situa-
ções nas quais os procedimentos convencionais não têm contribuído a con-
tento. Nesse sentido, é imprescindível pontuarmos que, na pesquisa-ação,
os grupos pesquisados são também participantes e possuem vez e voz ativa
em toda a pesquisa, desde o estabelecimento de prioridades a partir de um
diagnóstico da situação na qual estão envolvidos, passando pela execução da
ação, até a sua avaliação. Nas palavras de Thiollent (2011, p. 20):
A pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e reali-
zada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo
e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou problema
estão envolvidos de modo cooperativo e participativo. (Thiollent, 2005, p. 14).
Referência Bibliográfica
ALKMIM, Tânia. Sociolinguística (Parte I). MUSSALIN, Fernanda; BENTES, Anna Christi-
na (Org.). Introdução à linguística: domínios e fronteiras. v. 1. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2008, p.
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LABOV, William; tradução Marcos Bagno; Martha Maria Pereira Scherre e Caroline Rodrigues
Cardoso. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Universidade no Século XIX: para uma reforma democráti-
ca e emancipatória da Universidade. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2011. (Coleção questões da nossa
época, V. 11).
TRIPP, David. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. São Paulo: Educação e Pesquisa, v.
31, n. 3, p. 443-466, set./dez. 2005.
WEINREICH, Uriel; LABOV, William; HERZOG, Marvin I.; tradução Marcos Bagno. Fun-
damentos empíricos para uma teoria da mudança linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.
124
ENTRE SILÊNCIOS E PROTAGONISMOS: A LITERATURA COMO
ESPAÇO PARA SE (RE)PENSAR A HISTÓRIA DA
ESCRAVIDÃO NO BRASIL
Foi pelo Cais do Valongo que grande parte dos escravizados africanos che-
garam à cidade do Rio de Janeiro durante o período em que ocorria intenso
tráfico de pessoas no país. No local estavam situados armazéns onde os “pre-
tos novos”, como eram conhecidos os escravizados recém-chegados ao Bra-
sil, eram alocados e onde aguardavam serem comprados. Também na região,
conhecida como Pequena África, havia o Cemitério dos Pretos Novos, local
onde eram enterrados aqueles que morriam nos navios negreiros durante a
travessia do Atlântico ou já em solo brasileiro, mas antes de serem vendidos.
Além disso, havia o Lazareto dos escravos, uma espécie de hospital onde eram
tratadas as enfermidades dos escravizados.
Em 1843, o Valongo é reformado e passa a se chamar Cais da Imperatriz,
uma vez que de local de chegada e negociação de escravizados africanos, vira-
ria o cais por onde aportaria Teresa Cristina Bourbon-Duas Sicílias, aquela
que era noiva do imperador Dom Pedro II e futura imperatriz brasileira.
36
Doutoranda em Literatura Brasileira, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Teoria da Literatura e Literatura Compa-
rada, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Licenciada em Letras, pela Universidade Federal Fluminense e Bacharel em Comunica-
ção Social – Jornalismo, pela Universidade Federal de Viçosa. Email: mariainesfamorim@gmail.com
125
Com a mudança de nome e com a reforma há também o apagamento
do que aquele local representava para a história do Brasil, sendo relegado
ao esquecimento, se tornando em vestígios do passado escravista. Durante
mais de um século o local passou a ser apenas um espaço na região central da
capital fluminense. Entretanto, em 2011, com as obras do que viria a ser cha-
mado Porto Maravilha, projeto que tinha como objetivo revitalizar a zona
portuária carioca, foram encontrados vários restos materiais do que havia
sido aquela região e o que ela representava para a história do país.
Devido a uma forte mobilização da sociedade civil, sobretudo de entida-
des ligadas a movimentos negros, foi impedido que o local fosse destruído
e hoje, a região é tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artísti-
co Nacional (IPHAN). Assim, o sítio arqueológico do Cais do Valongo foi
preservado e pode ser visitado (SOARES, 2018, p. 419).
Pensar no Cais do Valongo como espaço de construção de narrativas so-
bre o passado brasileiro, sobretudo sobre a história da escravidão, é funda-
mental para que haja uma profunda reflexão sobre o presente e as intrinca-
das amarras excludentes nas quais ainda estão alicerçadas as relações sociais
brasileiras. Mais do que um espaço físico, a região da Pequena África ilustra
um pouco sobre o que significa a escravidão no Brasil: uma tentativa de apa-
gamento, mas que encontra resistências para que essa história seja contada.
A escravidão que atuou, durante cerca de quatro séculos, a África à América, mos-
trou-se especialmente perversa porque seus efeitos se prolongaram nos descenden-
tes dos que lhe sofreram a violência. Se em quase todas as sociedades se discrimina e
socialmente se exclui, humilha ou rebaixa quem tem antepassado escravo, este podia
em muitas delas – em Roma, por exemplo, ou em Axante, ou no Mali – conseguir
esconder sua origem, porque cativo e homem livre não diferenciam na aparência.
No caso americano, isso não era possível, porque escravo era sinônimo de negro
(COSTA E SILVA, 2018, p.14).
Cais do Valongo é a grande porta de entrada de grande parte dos escravizados das
Américas. Não por menos foi escolhido como patrimônio histórico da humanida-
de. De todos os escravizados trazidos para as Américas, mais de um milhão pisa-
ram por suas pedras e a gente não sabe nada sobre essa história. Ou muito pouco
(CRUZ, 2018).
To sum up, media of memory construct versions of a past reality. The materiality
of the medium is every bit as much involved in these constructions as is the social
dimension: The producers and recipients of a medium of memory actively perform
the work of construction – both in the decision as to which phenomena will be
ascribed the qualities of memory media, as well as in the encoding and decoding of
that which is (to be) remembered. Media and their users create and shape memory,
and they always do so in very specific cultural and historical contexts. Whether and
which versions of past events, persons, values or concepts of identity are construc-
ted through a medium of memory depends to no small extent on the conditions
prevailing within that memory culture.
Não nos acreditam e por isso nos fazem sofrer e sofrem também. Muitos povos
sabem que desde que o mundo é mundo como combater muitos males, mas vocês
pensam que apenas vocês sabem das coisas, que apenas vocês são donos da ciência e
só pensam em ganhar muito dinheiro, nem que para isso precisem matar e morrer
(CRUZ, 2018, p.136).
Trabalharíamos naquele mosteiro em troca de abrigo. (…) Uma vez nesse novo lugar,
nos demos conta de que não seríamos hóspedes e sim escravos que deveria conhecer
o verdadeiro Deus… mais um. O trabalho era bem duro e mesclado com orações
intermináveis. Nossa alma pagã precisava ser domada (CRUZ, 2018, p.119-20).
Meu pai sabia que os Macuas-Lómuès estavam exprimidos e acuados. Hoje eu sei que
todos estavam caçando. Caravanas e mais caravanas de homens akuya (brancos), e
também vários macuas do litoral entravam cada vez mais a fundo no território atrás
de gente, que também era um tesouro tão ou mais valioso quanto os enormes dentes
de elefantes, o cobre ou o ouro. E nós, os agricultores do interior, os filhos das monta-
nhas, éramos as presas mais apetitosas e lucrativas. Roubava nossa gente, nossa força,
nosso sangue… Eram morcegos sugadores (CRUZ, 2018, p.50-1).
(...) as mulheres também sofriam de forma diferente, porque eram vítimas de abuso
sexual e outros maus-tratos bárbaros que só poderiam ser infligidos a elas. A postura
dos senhores em relação às escravas era regida pela conveniência: quando era lucra-
tivo explorá-las como se fossem homens, eram vistas como desprovidas de gênero;
mas, quando podiam ser exploradas, punidas e reprimidas de modos cabíveis apenas
às mulheres, elas eram reduzidas exclusivamente à sua condição de fêmeas.
Nos corpos das mulheres escravizadas havia outra forma de posse e vio-
lência: o estupro. Angela Davis (Ibid, p.20) também afirma que “O estupro,
na verdade, era uma expressão ostensiva do domínio econômico do proprie-
tário e do controle do feitor sobre as mulheres negras na condição de traba-
lhadoras”. Além dos castigos que afligiam ambos os sexos, a violência sexual
assume, assim, outra marca de dominação. No romance, há uma passagem
em que descreve o primeiro estupro sofrido pela personagem Roza, uma das
escravizadas que tinham Bernardo Viana como senhor:
(….) até o dia em que sangrou pela primeira vez, aos 10 anos e o senhor Bernardo
espichou o olho para ela. Uma tarde dona Ignácia saiu em uma visita a uma irmã e o
senhor pegou a menina à força. Ela me olhava em desespero enquanto era arrastada
pelas escadas (CRUZ, 2018, p.63)
Nunca experimentei não possuir a mim mesmo. Eu, egocêntrico Nuno Alcântara
Moutinho, sabia o que eram os olhares tortos, os risos às costas, as ofensas atiradas
em rosto e oportunidades perdidas, mas não fazia ideia do que poderia ser ter que
dar as costas a outro alguém incluso para ir até o urinol aliviar-se. Não me passava
pela cabeça o que deveria ser ter que sair todos os dias, com chuva, sol, tempestade
ou lama; doente, são, com dores ou não; alegre, triste ou profundamente desencan-
tado do mundo para vender e ter que entregar quase a totalidade dos meus ganhos
a outrem que não saiu da cadeira de balanço de sua sala. Também não saberia dizer
o que é se ‘dado de presente’, como Tereza o fora por ocasião do casamento de sua
senhora (Ibid, p.183).
Referência Bibliográfica
COSTA E SILVA, Alberto. Prefácio: Escravidão e Liberdade. In: SCHWAECZ, Lilia M.; GO-
MES, Flávio (Orgs). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia
das Letras. p.13-19
CRUZ, Eliana Alves. O crime do Cais do Valongo. Rio de Janeiro: Malê, 2018.
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo,
2016.
ERLL, Astrid. Memory in Culture. Trad. Sara Young. London: Palgrave Macmillan, 2011.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. São Paulo: Global, 2005.
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad.
Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma
ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENEZES, Maria Paula (Orgs). Episte-
mologias do sul. São Paulo: Cortez, 2010. p.32-83
135
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Valongo. In: SCHWAECZ, Lilia M.; GOMES, Flávio
(Orgs). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras.
p.419-425.
136
OS EMBATES POLÍTICOS E LITERÁRIOS EM TORNO DA PUBLI-
CAÇÃO DE LIVRO DE UMA SOGRA, DE ALUÍSIO AZEVEDO NA
IMPRENSA OITOCENTISTA: ECOS DA DUALIDADE CONFLITANTE
ENTRE “ESCRITOR CONSAGRADO” E “ESCRITOR PERIGOSO”
o amor pouco tempo sobrevive à posse no estado matrimonial, porque este, facili-
tando-o completamente, traz a saciedade, e estabelecendo uma comunhão absoluta
de hábitos, gostos, necessidades, fraquezas, defeitos, pela convivência quotidiana,
tira completamente ao amor a idealidade e o encanto que lhe são essenciais (MA-
GALHÃES, 1895, p. 1) .
A partir disso, tinha-se por objetivo impedir que “as galés do matrimônio,
como dizia Balzac, matassem o amor” (MAGALHÃES, 1895, p. 1). Para
isso, entrou em ação a personagem paradigmática da sogra que, “tendo casa-
do por amor, não fora feliz no casamento, resolve evitar igual desgraça para a
sua filha” (MAGALHÃES, 1895, p. 1), pondo em ação um plano que “con-
sistia em impedir a coabitação completa da filha e do genro, sobretudo em
certas épocas e durante os períodos gestatórios, para conservar entre eles o
conjunto de encantos e ilusões que constituíam o amor” (MAGALHÃES,
1895, p. 1).
Como se percebe, Valentim Magalhães, membro do grupo de Aluísio,
intelectual empenhado na valorização dos méritos literários das obras do
maranhense, compartilhava dos mesmos ideais de Olímpia ao justificar o
seu plano de separações momentâneas dos cônjuges. Uma medida que vi-
sava a dificultar o desgaste do amor no casamento, uma vez que a posse, a
saciedade e a convivência cotidiana tiravam-lhe por completo a idealidade e
o encanto essenciais.
Em seguida, Valentim também falou sobre a impraticabilidade dos planos
de Olímpia, como ressaltou Veríssimo na sua crítica, o que, contudo, não
tirava a validade das suas ideias:
Creio que a tradição bíblica do pecado original foi alterada depois de Moisés. Um
amigo meu, versado em ciências ocultas, profundo conhecedor de todos os misté-
rios da Cabala, discípulo de Elifas Lévi e Papus, homem que confabula com o além-
147
-túmulo, e que, como Swedenborg sabe o que se passa no seio de Júpiter, afirma-me
que os versículos 13 e 16 do Gênesis estão errados. Segundo esse investigador de coi-
sas complicadas, o verdadeiro texto é este: “13. E o Senhor disse para a mulher: por
que foi que te arriscaste a ter uma filha? E ela respondeu: A serpente me enganou, e
eu comi o fruto. – 16. E o Senhor Deus disse para a mulher: Eu multiplicarei os teus
trabalhos e os teus partos. Tu em dor parirás filhos e filhas, estarás sob o poder de
teu marido, e ele te dominará. E, para que sejas castigada, teus filhos e filhas casarão,
e terás genros e noras. E serás sogra!” Esse foi o castigo da mulher. E assim se explica
o ódio que todo o mundo tem às sogras, e o pavor que elas incutem aos homens que
procuram matrimônio, e a perseguição que lhes movem os anedotistas, e o frecha-
mento de rimas venenosas com que a têm martirizado todos os poetas satíricos da
criação (BILAC, 1895, p. 1).
Contudo, o castigo das sogras não seria eterno, pois, Aluísio, o seu redentor,
as salvaria de tal condenação, visto que “não há maldição perpétua. O tempo
apaga tudo. Era justo que as sogras tivessem um redentor. Tiveram-no. [...]
Esse homem, que nasceu em São Luís do Maranhão, recebeu na pia batismal
o nome de Aluísio Azevedo” (BILAC, 1895, p. 1). Ele teve o seu destino pre-
destinado por quatro fadas. A primeira profetizou-lhe a beleza, a segunda lhe
ofertou o talento com as artes plásticas, enquanto a terceira prometeu a habili-
dade com a palavra escrita. Por fim, a última fada, a própria Eva, a primeira so-
gra, brindou-lhe com a tarefa de, como escritor, redimir as sogras caluniadas:
“E como escritor, redimirá as sogras! Para confusão dos genros, reabilitará as
sogras caluniadas, em um livro singular e piedoso, que será posto à venda na
heroica e leal cidade de S. Sebastião, na terceira semana do mês nono do ano de
mil oitocentos e noventa e cinco!” (BILAC, 1895, p. 3).
Em consequência disso, Eva, a causadora da má fama das sogras, se redimi-
ria de sua própria culpa. E o autor, clamado como o redentor das sogras, ao
final da nota, as libertaria do seu estigma perverso. Esta redenção das sogras
é ressaltada posteriormente numa nota policial sobre o espancamento de
uma sogra pelo próprio genro. Conforme o parecer policial do incidente, o
genro, preso por espancar a sogra, não teria cometido tal delito caso tivesse
lido o romance:
148
Como o parecer sugere, Olímpia teria conseguido a redenção das sogras,
visto que José Bernardo Machado não teria espancado a sua sogra se tives-
se lido o seu manuscrito. Uma nota que reforçava o valor da sua tarefa e
confirmava o reconhecimento de Aluísio Azevedo como o redentor das so-
gras, costumeiramente caluniadas pelos genros. Portanto, a nota reafirmava
o sentido da obra como redentora das sogras, como Olavo Bilac propusera
na propaganda do romance, indicando que Aluísio teria, de fato, redimido
e empoderado as sogras.
Dessa forma, o articulista igualmente se opõe à comparação de Olímpia
com o Cérbero acima. Para ele, a sogra não é um ser monstruoso e idealiza-
dor de um plano infernal. Destarte, renega-se a faceta perigosa do autor ao
mesmo tempo que se reforça a face de “escritor consagrado”, defendida na
imprensa por Arthur Azevedo, Olavo Bilac e Valentim Magalhães. Tal jul-
gamento condiz com o reconhecimento do papel de Olímpia por Palmira e
Leandro no final do romance. Apenas os articulistas contrários às ideias do
romance não reconheceram a sua contribuição para a felicidade conjugal do
casal por não compartilharem com os mesmos valores, princípios e ideias de
Aluísio e do seu grupo de amigos.
O embate destes dois grupos demonstra uma luta entre críticos e escrito-
res distintos em torno de uma disputa de concorrência dos sentidos simbóli-
cos do Livro de uma sogra, de Aluísio Azevedo. De um lado, tem-se o grupo
a favor da obra, representado pelos críticos que leram o romance como um
libelo contra os costumes conjugais da época. Já pelo outro, vê-se o grupo
contrário à obra, constituído pelos críticos que condenaram a sua leitura
como imoral e perigosa.
Uma discussão que evidencia a apropriação do Livro de uma sogra como
perigoso por propor, na visão dos articulistas contrários à proposta de Olím-
pia, um modelo de casamento econômica e socialmente inviável, além de
ser suscetível à infidelidade conjugal, aspectos contestados pelos críticos que
apoiavam a obra. Por outro lado, o romance rompe com a manutenção do
status quo no final do século e igualmente sugere uma revisão do papel da
mulher na sociedade, o que justifica o embate ferrenho entre os dois grupos
na imprensa fluminense do final dos oitocentos.
Todavia, a historiografia literária tradicional nos demonstra qual grupo
saiu vencedor dessa batalha quando consultamos os manuais da crítica lite-
rária, notadamente representados por Alfredo Bosi (1972) e Lúcia Miguel
149
Pereira (1988). Em ambos, há citações breves ao romance, as quais o classifi-
cam como romance ilegível e livro falso, cuja temática conduz a conclusão de
que o casamento leva as mulheres ao desequilíbrio (Cf. PEREIRA, 1988).
Enquanto para Bosi, descendo-se a casos fisiológicos, descreve-se episódios
de desvios melodramáticos ou distorções psicológicas grosseiras (Cf. BOSI,
1972). Isso dentro de uma abordagem que vê a mulher autônoma, dona do
seu corpo e do seu destino, como “histéricas”, “neuróticas” e “proscritas”
pela sociedade. Essa posição, portanto, indica o apagamento das leituras dos
críticos a favor da obra, as quais são essenciais para o seu entendimento no
seu momento de produção.
Destarte, analisou-se o romance Livro de uma sogra a partir do seu primeiro
momento de circulação, adotando como metodologia de pesquisa os pressu-
postos teóricos da história do livro e da leitura de Roger Chartier (1988). Jul-
ga-se, juntamente com o pesquisador francês, que para cada época e para cada
meio, as modalidades partilhadas do ler colocam no centro da sua interroga-
ção os processos pelos quais, face a um texto, é historicamente produzido um
sentido e diferenciadamente construída uma significação (Cf. CHARTIER,
1988). A partir desses procedimentos, almeja-se resgatar o romance do esque-
cimento e contribuir para a sua compreensão, a qual tem sido objeto de des-
crédito e desconhecimento pela Historiografia tradicional.
A pesquisa teve por fundamento demonstrar, por meio das fontes pri-
márias consultadas, que o Livro de uma sogra foi visto como uma obra que
escandalizou as regras e as convenções do final dos oitocentos por diversos
motivos. Primeiramente, era um romance que contestava as convenções do
casamento, dando autonomia para que a sua sogra paradigmática construís-
se um modelo de relacionamento conjugal de acordo as suas próprias expe-
riências matrimoniais. Tal posicionamento também lhe rendeu críticas de
leitura imoral e perigosa, vetada às mulheres, por trazer em si os riscos de
uma infidelidade conjugal.
Por outro lado, o romance igualmente questionava as hipocrisias e os pre-
conceitos da época, dando voz aos impulsos de autonomia e emancipação da
mulher no período e inserindo-se nos debates pela legalização do divórcio.
Portanto, uma obra extraordinária que precisa de um estudo mais profun-
dado, abrangendo as diversas possibilidades de análise, as quais vão além dos
ecos da dualidade conflitante entre “escritor perigoso” e “escritor consagra-
do”. Estudos que englobem o feminismo na obra, suas relações com a luta
150
pelo divórcio ou mesmo a comparação com outras obras do período que, do
mesmo modo, abordem tais temáticas.
Referência Bibliográfica
AZEVEDO, Aluísio de. Livro de uma Sogra. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2001.
AZEVEDO, Arthur. Palestra. O Paiz. Rio de Janeiro, p. 1, edição 4010, 24 de set. de 1895.
Disponível em <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 20 de set. de 2018.
ASSIS, Machado de. A Semana. Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, p. 1, edição 273, 29 de
set. de 1895. Disponível em < http://memoria.bn.br/pdf/103730/per103730_1895_00273.pdf>.
Acesso em: 21 set. 2018.
BILAC, Olavo. A Cigarra: Hebdomadario. Rio de Janeiro, p. 2-3, edição 20, 19 de set. de 1895.
Disponível em: <http://bndigital.bn.br/acervo-digital/cigarra/740446>. Acesso em: 21 set. 2018.
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Ber-
trand, 1990.
DEL PRIORE, Mary. Histórias da gente brasileira: volume 2: Império. São Paulo, Le Ya 2016.
GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
O PAIZ. Echos de toda a parte. Rio de Janeiro, p. 2, edição 5022, 5 de jul. de 1898. Disponível
em <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 20 de set. de 2018.
PEREIRA, Lúcia Miguel. História da literatura brasileira: prosa de ficção (de 1870 a 1920).
Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988.
REDONDO, Garcia. O Paiz, Rio de Janeiro, p. 2, edição 4023, 7 de out. de 1895. Disponível
em <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 20 de set. de 2018.
151
SANTANA, Maria Helena. Literatura e Ciência na ficção do século XIX – A narrativa natura-
lista e pós-naturalista portuguesa. Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Lisboa, 2007.
VERÍSSIMO, José. A questão do casamento: A propósito do “Livro de uma sogra”. Revista Brazi-
leira: jornal de sciencias, lettras e artes, Rio de Janeiro, p. 109-122, edição 4, tomo IV, outubro a de-
zembro de 1895. Disponível em <http://memoria.bn.br/pdf/139955/per139955_1895_00004.
pdf>. Acesso em: 20 de set. de 2018.
152
O CORPO FEMININO: DESEJO & VIOLAÇÃO NA CANTIGA
TROVADORESCA O ANEL DO MEU AMIGO (B920, V507)
Lembremos, por exemplo, o rapto da mulher de Sancho II, Mecia Lopez de Haro,
levada por Reimon Gonçalvez, tio do nosso autor, ou a obtenção da bula de deposi-
ção de Sancho II por parte de outro tio seu, Johan Viegas de Portocarreiro. Outra das
características a serem salientadas sobre a sua família é a sua grande relação não só com
a corte régia portuguesa, mas também com a castelã; assim como Pero Eanes de Por-
tocarreiro, primo de nosso trovador, aparece com Afonso III em 1251; Fernan Eanes,
irmão do anterior, aparece como notário procurador do rei Afonso X, enquanto ain-
da servia o rei português Alfonso III; Gonçal’Eanes, irmão dos dois anteriores, aparece
beneficiado no Repartimiento de Sevilha40 (BREA, 1996, p.855, Tradução nossa).
No qual hoje costumamos usar a aliança, devido ao nervo finíssimo que se encontra nesse dedo e que chega a se unir ao coração (CARCO-
41
A mim pareceis bem importuno querendo obter com tanta pressa os favores do
amor. Pois, ainda que vossos méritos pessoais vos tornem infinitamente dignos de
todas as honras, não vos cabe exigir que vos seja concedida, de pronto, tal dádiva.
Uma mulher que tem alguma virtude não deve ceder depressa demais aos desejos
de um enamorado, pois, caso se entregue afoitamente, despertará o desprezo dele e
depreciará o amor que ele por tanto tempo desejou; ao passo que se contemporizar,
purificará os sentimentos que ele nutre por ela, se forem fingidos, e os livrará de
tudo que possa destruí-lo. A mulher deve, pois, descobrir as virtudes de seu pre-
tendente a partir de numerosas provas e assegurar-se de sua fidelidade (CAPELÃO,
2000, p. 179-180).
As mulheres, aliás, não são apenas avaras por natureza, mas também são curiosas e
falam mal das outras mulheres; são vorazes, escravas do próprio ventre, volúveis, in-
constantes no que falam, desobedientes, rebeldes às proibições; são maculadas pelo
pecado do orgulho e cobiçam a vanglória; são mentirosas, dissolutas, tagarelas, não
respeitam segredos; são luxuriosas ao extremo, dadas a todos os vícios e não têm
afeição verdadeira pelos homens (CAPELÃO, 2000, p. 213).
Para concluir, chamamos atenção para como esse olhar sexista sobre o cor-
po feminino reproduzia o discurso dominante; podemos observar, ainda, o
quanto atualmente se mantém essa ordem de dominação, já perceptível no
contexto trovadoresco.
Ao observarmos o trato com a mulher ao longo dos tempos, podemos
tentar compreender o modo e o motivo da hostilidade contra a liberdade
feminina, que quer na Idade Média, quer em nossos dias, a mulher vai as-
sumindo sua sexualidade e seu lugar na sociedade, tentando abrir caminhos
que estejam livres de preconceitos, motivos pelos quais causam muito medo
na sociedade patriarcal. Concordamos que mesmo com todas as lutas e con-
quistas, ainda não conseguimos a plenitude de igualdade perante os homens
na sociedade. Para tanto, nosso estudo pretende observar como se dava a
construção da violência contra a mulher na sociedade medieval, mesmo que
no seu formato embrionário, dando luz à literatura em exemplos como as
cantigas trovadorescas galego- portuguesas e os poemas dos Carmina Bu-
rana, em prol do desenvolvimento de consciência crítica para o poder da
conscientização.
Referências Bibliográficas
BREA, M. (Org.). Lírica profana galego-portuguesa. Vol. II. Santiago de Compostela: Centro de
Investigacións Lingüísticas e Literárias Ramón Piñero da Xunta de Galicia, 1996.
CAPELÃO, André. Tratado do Amor Cortês (c. 1165). São Paulo: Martins Fontes, 2000.
CARCOPINO, Jérôme. Roma no apogeu do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
DIAS, Aida Fernanda. História Crítica da Literatura Portuguesa. Vol.1 Idade Média. Portugal:
Editorial Verbo, 1998.
158
LOPES, Graça Videira; FERREIRA, Manuel Pedro et al. Cantigas Medievais Galego Portugue-
sas [base de dados online]. 2011. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. Disponí-
vel em: <http://cantigas.fcsh.unl.pt/. > Acesso em: 20 nov. 2017.
MACEDO, Helder; STEPHEN, Reckert. Do cancioneiro de amigo. 3.ed. Lisboa: Assírio & Al-
vim, 1996.
The family of Dashwood had been long settled in Sussex. Their estate was large, and
their residence was at Norland Park, in the centre of their property, where for many
generations they had lived in so respectable a manner as to engage the general good
opinion of their surrounding acquaintance.
Jane Austen, Sense and Sensibility
42
Doutoranda em Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2018), com pesquisa majoritariamente
voltada para a Literatura Inglesa oitocentista e novecentista. Contato: natalia_benetti@yahoo.com.br
160
perpetuated. To corroborate that, we may bring to light the words of Henry
James, as he suggested in his travel memoir English Hours that:
Of all the great things that the English have invented and made part of the credit
of the national character, the most perfect, the most characteristic, the only one
they have mastered completely in all its details, so that it becomes a compendious
illustration of their social genius and their manners, is the well-appointed, well-ad-
ministered, well-filled country house (JAMES, 2011, p. 154).
As it is known, the modern novel arises as a new literary genre in the ei-
ghteenth century and it presents an inescapably domestic character since it
is mostly directed to the emergent bourgeoisie. Therefore, this new literary
form has middle-class families and their everyday life as their central subject.
Based on that, it has been argued that “from the beginning the house and the
novel are interconnected, for the eighteenth-century (...) was also the great
age of the English house” (TRISTRAM apud MEZEI; BRIGANTI, 2002,
p. 838) and because the novel “is invincibly domestic, it can tell us much
about the space we live in” (2002, p. 838). As a matter of fact, the concept of
house is rather common in novels of manners such as Austen’s novels, for
that matter. In fact, Jane Austen herself led an utterly domestic existence for
she spent most of her life at home, and in general her stories may be conside-
red household stories. To reiterate that, James Edward Austen-Leigh affirms
in A Memoir of Jane Austen that “the first twenty-five years, more than half
of the brief life of Jane Austen, were spent in the parsonage of Steventon”
(AUSTEN-LEIGH, 1882, p. 18), the house where the writer resided until
she moved to Bath in 1801, at the age of twenty-six. Apart from that, her
nephew Austen-Leigh also points out that Austen “lived in entire seclusion
from the literary world” (p. 108) and anything she wrote was a “genuine
home-made article.”
However, what is a country house? The authors of a book entitled Crea-
ting Paradise: the building of the English country house 1660-1880 have re-
marked: “A large, old house with numerous outbuildings, surrounded by
gardens and park, the main residence, at least historically, of a sizeable landed
estate – a statement of exclusiveness and authority, of expense and status”
(MACKLEY; WILSON, 2000, p. 5). When we analyse Austen’s works, we
may have the impression that all of the aforementioned elements regarding
the grand English estate lie in the core of her narrative, for it is possible to
notice that the manor house, and more specifically, property, plays a key role
161
in her stories. An adjacent cottage, a drawing room with a pianoforte, gar-
dens, sometimes a parish and even small woods, a library, countless rooms,
balls and dinner parties are an inherent part of the small universe delineated
in each one of her books. That is due to the fact that, in Austen, properties
represent “a direct preoccupation with estates incomes and social position,
which are seen as indispensable elements of all the relationships that are pro-
jected and formed” (WILLIAMS, 1995, p. 236-237).
It is common fact that Jane Austen has been granted the status of canoni-
cal writer throughout the last two hundred centuries; hence a lot has already
been discussed concerning her novels, and as much as her stories have been
adapted and readapted, especially in the present day, the huge variety of the-
mes that pervade her oeuvre have been subject of the investigation of several
critics and scholars worldwide. Apart from the unfinished books, an episto-
lary novella and the Juvenilia, which comprises her early works, the author
wrote six complete novels, and the ones selected as the primary sources to
this study have been regarded by Harold Bloom as Austen’s “four canonical
novels” (BLOOM, 1994, p. 263). Curiously enough, in spite of that, with
the exception of the countless articles and theoretical texts on the relevance
of property, landscape and the picturesque in Austen’s oeuvre, not much
has been specifically written on her representations of the English country
house and its importance along her works. Hence, it seems necessary to fur-
ther examine the referred subject in order to achieve the aim proposed in
this paper.
Curiously, the English manor has not only been recently depicted in no-
vels but also in a great deal of films and even television shows such as Down-
ton Abbey43, a period drama which has been highly acclaimed not only in
the United Kingdom but worldwide and has become one the most watched
TV series of the world. Besides, it is relevant to mention that a vast number
of tourists from all around the globe tend to include the visit to those grand
properties in their tours of Great Britain. In fact, English newspaper the
Guardian has recently explored the importance of the great English estates
in an issue entitled “The country house and the English novel”44. Throu-
ghout his text, journalist Blake Morrison remarks that the grand country
houses are such a national literary obsession as he mentions iconic novels
like Brideshead Revisited (1945), Howards End (1910), Wuthering Heights
(1847), amongst others, in which the house is the central theme. He goes on
43
English TV show broadcast from 2010 to 2015, whose central theme is the country state of Downton, set in Yorkshire, and the relationship
between its dwellers, servants and the house in the years that precede its decline. For further information: http://www.itv.com/downtona-
bbey. Last accessed on 25/08/2017.
44
Available at: https://www.theguardian.com/books/2011/jun/11/country-house-novels-blake-morrison. Accessed on 25/08/2017.
162
affirming that much to his surprise, novels with an “English country house
setting are among the most acclaimed written in recent years”, such as Ian
McEwan’s Atonement (2001) and Sarah Waters’s The Little Stranger (2009).
Still, the subject of the English country house is often portrayed in news-
papers, books, academic papers and also, it is important to stress that a lot
of British universities these days have offered several courses on the English
manor house in their international summer schools, especially after the
Downton Abbey boom. In 2017, for example, the University of Leeds offered
a summer course named “The English Country House: A Social History”45,
and in 2018, the University of Oxford will be offering short courses such as
“Upstairs, Downstairs in the English Country House”46, “House and Gar-
den: the Victorian Invention of the Ideal Home” and “Country Houses”,
amongst others.
When the novel comes out as a new literary form, it appears as a popular
genre for it is mostly consumed by the middle classes, hence its constant
depiction of families and common life. Jane Austen, one of the first female
English novelists, was born in 1775. Daughter of a rector, the writer was
usually surrounded by her family and her neighbours, who comprised the
Austens’s social circle. Since she lived at a time when the church and the
landed aristocracy were closely connected, the writer grew up amongst the
gentry, even though she did not really belong to them, and it is these rural
gentry that are always portrayed in her novels. Indeed, from the end of the
eighteenth century to the turn of the nineteenth, England was to suffer a
massive transition from a rural society to an industrial one. Nevertheless,
the young writer was born and inhabited a part of the country that was still
essentially rural.
As Welsh scholar Raymond Williams affirms in The Country and the City,
the eighteenth century was an era of rural society (WILLIAMS, 2011, p.
183, my translation). Still in regards to that, Williams points out that “the
true history of rural England has always revolved around land ownership
and the social and work relations resulting from it” (p. 104, my translation).
According to him, in seventeenth-century literature, poetry in particular, it
was already possible to perceive the depiction of the social issues which were
derived from important factors such as the common fields, the peasantry
and the rural gentry. However, it is in the novel that, in the late seventeenth
and early eighteenth centuries, these issues are most developed, especially in
Available at: https://www.leeds.ac.uk/downloads/download/62/the_english_country_house_a_social_history. Accessed on 10/09/2017.
45
46
Available at: https://www.conted.ox.ac.uk/courses/upstairs-downstairs-in-the-english-country-house?code=O17I111JDR. Accessed on
10/09/2017.
163
the works of Daniel Defoe, Samuel Richardson and Henry Fielding,
for instance.
The critic Terry Eagleton has mentioned that the late eighteenth and early
nineteenth centuries represented an “epoch of dramatic social and political
upheaval” characterised by revolutions “in France and North America, the
Napoleonic conquests, the massive expansion of empire, Britain’s domi-
nance of the seas, the prosperity reaped from the slave trade, the rise of the
European nation-state” (EAGLETON, 2005, p. 95), amongst others. Des-
pite that, lots of changes were happening in the countryside as well.
To comprehend the relevance of the country house in Austen’s novels,
it is important to get a brief glimpse of its origins and the socio-historical
period in which it is most prominent. Based on that, G.E. Mingay suggests
that still in the Middle Ages, lowland England already presented a few esta-
blished communities with their manor houses and “hierarchy of manorial
officials, farmers and cottagers” (MINGAY, 2002, p. 24). It is common fact
that large tracts of land have, since then, always been in the hands of tho-
se who occupy the top of the pyramid of rural society, the kind of society
upheld by Jane Austen.
As it has been claimed in the book English Social History, ever “since the
Restoration there had been a rapidly increasing movement to accumulate
land in large compact estate” and “the magnates of the realm (...) owned a
much larger (...) acreage of England in 1760” (TREVELYAN, 1948, p. 380,
381). These magnates were, in fact, the great landowners who end up profi-
ting the most with the transformations that the English countryside would
undergo, and above all, with the agricultural revolution. Still according to
Trevelyan, in the period ranging between 1760 and 1820, private Acts of
Parliament were passed imposing the enclosure of the common fields and
the consequent improvement of the land, which only contributed to conso-
lidate the power of the rural aristocracy.
Even though Jane Austen lived at a moment when England was going
through several different changes not only inside but also outside the coun-
try, she did not really approach the state of affairs of her time in her narrati-
ves. For, as it has been mentioned before, the social history of the families of
English landowners has “a central and structural function in Jane Austen’s
novels” (WILLIAMS, 2011, p. 191). In light of that, it is relevant to stress
the reason for the selection of the four books which comprise the primary
164
sources to this study. As it has been mentioned, Austen wrote six complete
novels, including Emma and Northanger Abbey.
In spite of that, the four titles previously mentioned have been chosen
because it is precisely in the core of each one of these four novels that the
theme of the English country house plays a key role in bringing up, in diffe-
rent ways, very strong social issues, such as: entail and the male inheritance
of family estates (to the detriment of women); the acquisition of those large
properties by the nouveaux riches (which outlines the emergence of new
social mobility); the exploitation of the slave plantations characteristic of
the British Empire serving as a means of funding for those wonder hou-
ses, and the impending removal of noble households from their traditional
country houses, amongst other things. Jane Austen was born at the end of
the eighteenth-century and her major concern was to explore the everyday
life of a rural bourgeoisie that was deeply guided by moral values. In fact,
her novels depict “the social history of the landed families at that time in
England” (WILLIAMS, 1995, p. 233). Although some of her works were
written at the end of the 18th century, most part of her oeuvre only gets to
be published at the beginning of the nineteenth century.
In great part of pre-Victorian and Victorian novels, the country house
represents the landed gentry, that is to say, the aristocracy that was still pro-
minent at the turn and beginning of the century and which, along with the
referred estates, starts to decline in the pre-war period. This fact may be best
corroborated by Eagleton as he affirms that:
In the eighteenth century, a few hundred families owned a quarter of the cultivated
land of England. (...) Throughout the eighteenth century, the gentry had been a
superbly self-confident class, one whose political dominance over English society as
a whole went largely unquestioned. As Austen is writing, it is about to confront a
formidable rival in the form of the urban middle class, which is being ushered over
the historical horizon by the industrial revolution. But this is largely in the future;
and even when industrial capitalism has arrived on the scene, the landed gentry will
come to strike an historic bargain with it. They will continue to exercise political
and cultural power themselves, even if, as the nineteenth century wears on, they will
find themselves governing increasingly in the name of their middle-class inferiors
(EAGLETON, 2005, p. 115).
Many were the tears shed by them in their last adieus to a place so much beloved.
‘Dear, dear Norland! said Marianne, (...) ‘when shall I cease to regret you? – when
learn to feel a home elsewhere? – O happy house! Could you know what I suffer in
now viewing you from this spot, from whence perhaps I may view you no more!
(AUSTEN, 1994, p. 25).
As it can be seen, departing from their house was rather painful to the
these four women for - regardless of the fact that they were moving to a
cottage, hence a far smaller house, and their lifestyle was going to be utterly
changed – to the Dashwood girls, Norland was not only considered a most
beloved home, but it also represented their “first universe, a real cosmos in
every sense of the word” (BACHELARD, 1994, p.4).
In Pride and Prejudice, Mrs Bennet feared for her daughters for, similarly
to the situation of the Dashwood sisters in Sense and Sensibility, they could
not inherit the house they lived in, since its legal heir was but a distant cou-
sin. Due to this fact, it is possible to notice along the story the sheer distress
of a mother and her urge to marry her daughters off, as a means to secure
them a safe future, for they had an entailed estate and their father was not
rich. It is not by chance though that in the very first page of Pride and Pre-
judice, Mrs Bennet marvels at the splendid news that Netherfield Hall, the
great mansion in the rural village nearby, has been hired by the Bingleys, a
family of nouveaux riches from the north of England. Besides approaching
166
the connection between property, in the form of manor houses, and a good
marriage (that is, as far as it concerns social status and income), the novel
also brings to light, in a subtle way, some of the economic changes of the
late eighteenth and early nineteenth centuries: the emergent bourgeoisie re-
presented by the Bingleys in contrast to the landed aristocracy - which was
to lose its strength only a few decades later - represented by Mr Darcy. To
corroborate that, it has been argued that:
We are introduced to Netherfield Park in the very first lines, as Mrs Bennet informs
her bored husband that ‘Netherfield Park is let at last’ by the rich young man Mr
Bingley. Netherfield Park is significant not so much for the description of the house
and grounds as for the circumstances surrounding it. We learn that Mr Bingley has
rented Netherfield because he does not have an estate of his own, not for lack of
money but because his father’s fortune had been made in trade and he was not a
member of the landed elite (PAGE, 2013, p. 100).
Still concerning the landed aristocracy that was to decline prior to the
war period, the opening of Persuasion presents the readers with Sir Walter
Elliot, a vain lord that was utterly proud of his baronetcy. Nonetheless, the
nobleman undergoes financial difficulties, and feels compelled to rent his
grand estate to a man of inferior rank. At first, his lawyer’s suggestion to
let the property strikes at the very heart of Sir Walter’s being, which can be
perceived in the following excerpt:
There was only a small part of his estate that Sir Walter could dispose of; (...) He had
condescended to mortgage as far as he had the power, but he would never condescend
to sell. No; he would never disgrace his name so far. The Kellynch estate should be
transmitted whole and entire, as he had received it (AUSTEN, 1994, p. 8).
I suppose, sister, you will put the child in the little white attic, near the old nurse-
ries. It will be much the best place for her, so near Miss Lee, and not far from the
girls, and close by the housemaids, who could either of them help to dress her, (...)
for I suppose you would not think it fair to expect Ellis to wait on her as well as the
others. Indeed, I do not see that you could possibly place her anywhere else (AUS-
TEN, 1994, p. 8).
Fanny is placed in a cold attic near the servants, which reinforces the idea
that the great country estate, most of the time, plays a key role in the main-
tenance of class division, which, in the novel, will only change when, at the
end of the story, the penniless heroine becomes its mistress. Regarding that,
Edward Said asserts that as “the conclusions of the novel confirm and highli-
ght an underlying hierarchy of family, property, nation, there is also a very
strong spatial hereness imparted to the hierarchy” (SAID, 1994, p. 79, italics
in the original). Another striking theme that Austen evokes in the narrative
is that of the British Empire, which is slightly alluded to due to the fact that
Sir Thomas Bertram, Fanny’s uncle and the owner of Mansfield Park, pos-
sesses a slave plantation in the West Indies. It is this very colonial estate in
Antigua that provides the sustenance of the family at Mansfield.
As it may be perceived, in each one of the aforementioned stories, the
country house functions as a leading factor. Because the Austenian world is
the world of the rural gentry, it is impossible to dissociate the landowning
class from land and vice-versa. However, as it has been suggested, in Austen,
land “is more a monetary abstraction than an expanse of soil” (EAGLE-
168
TON, 2005, p. 115). Land is seen as property, for it “had long been a com-
modity, and it is certainly that in Austen’s fiction. She has a notably quick
eye for the size and value of an estate, along with the likely social status of
its proprietor” (2005, p. 115). Given that the country house was the main
statement of this kind of rural order, whose society is deeply concerned with
rules and moral values, it can only be of utmost importance in Austen’s
novels. In fact, human behaviour and social conduct are possibly the main
themes pervading her oeuvre, where characters are judged and led to change
so that they can fit well into the society that is being depicted in the narrati-
ves. Still regarding that, it has been suggested that it is “precisely because the
rural gentry had long been a ‘modern’ as well as a ‘traditional’ class, involved
in rent, capital and property (...) that the moral rot had set in” (2005, p.
115). Hence, to reiterate what Raymond Williams has claimed, and which
has been previously mentioned in this paper, most of the relationships and
attachments formed in the stories revolve around the large country estates.
The manor houses of Austen’s time are, indeed, reminiscent of the power
houses present in medieval England, which may be corroborated by what
critic Mark Girouard asserts in Life in the English Country House when he
affirms that “for many centuries the ownership of land was not just the main
but the only sure basis of power” (GIROUARD, 1980, p.2). In the eighte-
enth-century, most of these houses are passed on from generation to gene-
ration, and a great part of its proprietors possesses titles, such as the title of
a duke, an earl, a baronet, amongst others, which accounts for Sir Walter
Elliot’s baronetcy and the fact that his estate was passed over the generations
of his venerable family, for example.
Also, these baronial houses were built with the money coming from rents
- for as it is known, great landowners were by no means farmers - from tra-
de, from services at the government, and also from the exploitation in the
colonies of the East and West Indies. These landlords had a sense of duty
towards their servants and the community, like what may be observed in
Pride and Prejudice, when Mr Darcy’s housekeeper affirms he was a great
master. When it comes to the maintenance of the English country house
being provided by the slave plantations of the British Empire, Edward Said
claims that in Mansfield Park: “Jane Austen sees the legitimacy of Sir Tho-
mas Bertram’s overseas properties as a natural extension of the calm, the
order, the beauties of Mansfield Park, one central estate validating the eco-
169
nomically supportive role of the peripheral other” (SAID, 1994, p. 79).
Daniel Pool asserts that the “overriding concern of the great landed fami-
lies who dominated English life was to maintain their influence and affluen-
ce down through the years by transmitting their enormous landed estates
intact, generation after generation, to their descendants” (POOL, 1993, p.
90). According to him, estates could be transmitted through the right of
primogeniture and through entail. The former immediately granted the
property to the eldest son, and the latter meant that “sufficient restrictions
were put on what could be done to the estate by that eldest son” (1993, p.
90, italics in the original). Given that, it is possible to infer that a woman
could not really inherit an estate, for if “she remained single the line could
die out and if she married the estate would pass in possession to someone
outside the family” (p. 90).
Raymond Williams (2011, p. 191,192) remarks that in Austen’s novels,
much of what happens comes from the unexpected, that is to say, a great
deal of her characters are left to the mercy of good luck, especially when it
comes to a process of general change and the possibility of social mobility,
which was affecting the landowning families of the time. Based on that, the
country estate is also a key element in the social mobility which is enabled
by attachments such as the marriages of Marianne Dashwood to Colonel
Brandon in Sense and Sensibility, and Fanny Price to Edmund Bertram in
Mansfield Park. Concerning that, we may infer that Marianne Dashwood’s
marrying into the estate of Delaford and Fanny into Mansfield shows that
“Austen is not against mobility within the class system” (EAGLETON,
2005, p.117) for as Eagleton points out, in these narratives, the “danger lies
at the moral and cultural level, not at the material one” (p. 117). Also, it is
important to stress that “it was on their culture, in the broad sense of values,
standards, ideals and a fine quality of living, that the landowning classes had
relied for so much of their authority” (2005, p. 117).
In a recent video published by the School of English at the University
of Sheffield47, British scholar Lauren Nixon comments on the role of the
country house in Austen and states that “country houses in Jane Austen
are very important because what she is writing about is a very domestic spa-
ce, and what she is interested in is the domestic life that takes place within
the country house” (2015). Apart from that, Nixon also argues that “the
country house is the expression of the person who resides within it, who
47
Available at: https://www.youtube.com/watch?v=OoezZeya8f4. Accessed on: 08/10/2017.
170
presides over it, and who runs it (IDEM)”. In fact, with the portrayal of the
households, which was so very dear to 18th-century novels, there comes also
the portrayal of the house as a private sphere, a restricted area that may tell
so much about the lives of its dwellers that the descriptions of the place and
its inhabitants merge into one another. Curiously enough, still regarding
Pride and Prejudice, the grand country property of Pemberley, for instan-
ce, is so inexorably linked to its owner, Mr Darcy, that we may affirm Pem-
berley is Darcy and Darcy is Pemberley. That may be best reiterated by the
words of professor Witold Rybczynski, who affirms that the “appearance
of the internal world of the individual, of the self, and of the family” finds
in the house that is being inhabited “a setting for an emerging interior life”
(RYBCZYNSKI, 1986, 35, 36).
Despite Austen’s association of the country house with the personality of
its owner in each one of her stories, it is also possible to notice descriptions
of the house per se, that is, descriptions of the house in its physical structure.
Austen often mentions elements such as the park, the gardens, the library,
the drawing rooms, amongst others, besides providing the reader with an
idea of the size and grandiosity of these large estates, and the kind of enter-
tainment the inhabitants of these houses have. In relation to the importance
of the grounds and the picturesque, it has been affirmed that gardens and
houses “play a variety of coded roles in the English novel” (DUCKWOR-
TH apud PAGE, 2013, p. 97) and in Austen’s narratives, it is possible to see
the “development of the main characters by the ways they respond to the
houses, estates and grounds that they encounter” (PAGE, 2013, p. 97). That
brings to light the fact that, in Pride and Prejudice, it is only when Elizabeth
Bennet sees Pemberley that the heroine changes her mistaken impression of
him, for “Pemberley teaches Elizabeth how to read Darcy” (2013, p. 105).
More than two hundred years after writing what is considered the fiction
of drawing rooms, a great deal of scholar and readers from all over the world
still turn to Austen’s stories and contribute to consolidate her status as one
of the dearest and most acclaimed English writers. With this constant and
never-ending revisiting of Austen’s works, and with the ongoing television
and film adaptations of her stories, more and more people tend to take in-
terest in and analyse some of the many elements present in them. In light of
that, it is possible to note that the country houses are one of them, for the
more readers and spectators see their representations, the more interested
171
they seem to be in visiting these power estates in real life. Also, in spite of the
decay of those large country houses after the Industrial Revolution, espe-
cially because of the prominence of the cities, it is still a key theme to many
novels in the twentieth century. As it has been pointed out, the persistence
of the country-house novel is due to the fact that:
Rural England became old-fashioned (...) from the late eighteenth century onwards.
Nevertheless, a great part of the rural past, of its feelings and its literature, was as-
sociated with the rural experience, and a great deal of its premises regarding welfare
remained and even strengthened in such a way that, in the twentieth century, there
is almost an imbalance between the importance of the current rural economy and
the importance of the rural ideas (WILLIAMS, 2011, p. 407, my translation).
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MINGAY, G.E. A Social History of the English Countryside. London: Routledge, 2002.
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ria. London: The Reprint Society, 1948.
WILLIAMS, Raymond. “The English Novel”. In: WALDER, Dennis (ed.). The Realist Novel:
Approaching Literature. London: Routledge, 1995.
173
SER MÃE É ENLOUQUECER NO PARAÍSO: CONSIDERAÇÕES
SOBRE A MATERNIDADE EM A DOIDA DO CANDAL,
DE CAMILO CASTELO BRANCO
Era o dono do melhor palácio e mais antigos apelidos da fidalguia portuense. Ga-
lhardo e valente. Pouco menos de ilustrado. Religioso bastantemente para crer em
Deus. Propenso a duvidar da religião dos mártires de toda a fé, e duvidar da ciência
insolente e brutal de Voltaire. (ADC, p. 21)
O filho era o aroma de uma flor sem viço e já esmaiada. O filho era todo o amor,
toda a esperança, a vida em que todo o coração dele pulsava. A ebridade de tanto
amor provinha do néctar: pouco importava a urna. Maria era como o despojo da
crisálida. A formosura, a graça, as cores do céu, resplandeciam na borboleta. Pobres
mães! (ADC, p.62).
Assim que a notícia da trágica morte do sedutor da filha chegou a sua casa, saiu logo
a velha a caminho do Candal, E, ao anoitecer daquele dia, a mãe, cheia de graça e
misericórdia do Senhor, foi buscar uma carruagem a filha e o neto, recolhidos em
casa das compassivas senhoras, que acudiram aos gritos da demente (ADC, p. 99).
E que lhe fazia isto a ela, se o não entendia? A criancinha acrescia-lhe em carícias a
ternura que Marcos lhe não dava. A parte do coração que podia doer-se do vácuo e
encher-se de lágrimas estava cheia de amor do filho. Por um amor que a fatalidade
lhe ia levando – o amor humano – dava-lhe outro a Providência – o amor do anjo
(ADC, p.62).
A ironia camiliana quase passa por despercebida quando lemos essas palavras e
acreditamos na maternidade como tabua de salvação / “reabilitação” (nas palavras
do autor) para o destino desgraçado daquelas que estavam marcadas socialmente
como perdidas. Não há como “desinfecciona-las”. Além disso, é necessário prestar
máxima atenção no léxico utilizado pelo autor e considerar os desfechos da histó-
ria. Maria de Nazaré levou uma vida miserável até chegar o dia em que as condições
para criar seu próprio filho fossem nulas. A personagem não tinha “valor”, “prés-
timo” ou “sublimidade”, apesar de essas características, escolhidas por Camilo,
fazerem parte do ideal materno que levaria as mulheres ao Paraíso pelas asas dos
filhos-anjos celestiais Por isso, “triste dela!”, que continua sendo a que o mundo
despreza e despreza-se a si mesma por ter internalizado essa dominação masculina.
179
Até o presente momento, Maria de Nazaré deixa de ser mulher para ser
mãe. Esse afastamento entre os papeis acontece como se ambos fossem dis-
tintos. Mas logo quando enlouquece, ela perde o posto materno e se torna
incapaz de criar o pequeno Álvaro. Além da problemática sobre materni-
dade, a moça sofre uma série de violências causadas pela opressão social. As
pessoas falavam dela: apontavam-na como desobediente e um mal exemplo
para as outras raparigas. Por isso, foi afastada de sua família para viver isolada
em uma casinha no Candal com muitas limitações. A sociedade não a acei-
tava por ser uma esposa ilegítima. O pai de Marcos Freire também rejeitava
seu neto por não ter sido gerado por uma fidalga. Todas essas questões con-
tribuíram para que Nazaré perdesse a sanidade bem como a identidade ao
final de história, e se tornasse “A doida de Candal”.
Nazaré foi considerada louca, mas na verdade essa loucura estava relacio-
nada à situação trágica das mulheres dessa época. Ter engravidado de um
homem sem ter sido, de fato, casada; ter se afastado de sua família em nome
de um amor proibido, contribuiu para esse escape à realidade que a manteria
como mãe pobre e abandonada. No oitocentos, elas estavam destinadas, na
maioria das vezes, ao casamento e à reprodução. Apesar de Camilo Castelo
Branco criar personagens altivas e atuantes, não há como fugir da realidade
opressora que fazia parte do século XIX. A maternidade negada contribuiu
fortemente para a loucura da personagem. Alda Lentina, analisando algu-
mas obras camilianas, percebe que “A medida que essas personagens se en-
contram enclausuradas no papel de esposa e depois no de mãe, os sintomas
psicossomáticos parecem agravar-se” (LENTINA, 2014, p. 29). As mulhe-
res por serem consideradas, inicialmente, como moralmente perfeitas são
tidas como loucas se, por ventura, recusam-se a assumir os modelos de vida
que lhe são impostos. Maria de Nazaré estava passando por um momento de
desequilíbrio quando não reconhece mais seu filho. Aparentemente, Álvaro
era seu bem mais precioso, ainda assim, ela acabou seus dias sem reconhecê-
-lo. A condição de mãe só durou enquanto Marcos era vivo, porque depois
de sua morte, a moça ficou fora do seu juízo perfeito e sem condições finan-
ceiras para continuar criando a criança. Em seu caso, a loucura funciona
como sintoma quando, por tristeza e infelicidade, ela se descuida de todos
os papéis femininos que lhe eram atribuídos: a filha, o de esposa e princi-
palmente o de mãe. Está claro que essa não é apenas uma história de amor
conjugal que não deu certo. A trama diz muito, também, sobre o amor ma-
180
terno idealizado e, nesse caso, infeliz. No entanto, admitamos! Sobre amores
felizes, não se conta história.
Referência Bibliográfica
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Paulo; Editora Cultrix, 1980.
LEAL, Ivone. Os papéis tradicionais femininos: continuidade e rupturas de meados do séc XIX a
meados do séc XX. Edição da comissão para a igualdade e para os Direitos das Mulheres. Portugal.
1992.
LENTINA, Alda Maria. Destinos femininos na obra de Camilo Castelo Branco.In: SOUSA,
Sérgio Guimarães de (Org). Representações do feminino em Camilo Castelo Branco. Vila Nova de Fa-
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PARREIRA DUARTE, Lélia. Introdução: a ironia na obra de Camilo Castelo Branco. Cader-
nos CESPUC de pesquisa, Belo Horizonte, n. 7, p. 7-12, maio 2001.
PERROT, Michele. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. 7. ed. São Pau-
lo:Editora Paz e Terra, 2017.
VAQUINHAS, Irene. Senhoras e mulheres na sociedade portuguesa do século XIX. Lisboa: Fer-
nando Mão de Ferro, 2011.
Pamela Mendes48
UERJ - FFP
Introdução
Este trabalho traz à discussão a configuração de um novo modelo de fe-
minino, vivenciado pela baronesa dinamarquesa Karen Blixen (pseudônimo
Isak Dinesen) na primeira metade do século XX. O corpus desta pesquisa é
o romance autobiográfico de Dinesen, A Fazenda Africana (Out of Africa)
(escrito em 1937, por ocasião da estadia da autora no Quênia).
Com caráter mais “etnográfico” do que melodramático, A Fazenda Africana
teve como ponto de partida a vida amorosa infeliz da baronesa européia que se
recusou a assumir o modelo dominante de mulher imposto no mundo colonial,
com perfil submisso e frágil, para se projetar numa nova configuração de mode-
lo de feminino, em uma grande fazenda africana. Tendo se casado com o primo
barão Bror Blixen-Finecke que lhe transmitiu sífilis logo no primeiro ano de casa-
mento, Karen Blixen ficou sozinha à frente da fazenda de café, enquanto o marido
seguiu uma vida ausente da fazenda, em aventuras e safáris com outras mulheres.
48
Graduada em Letras – Português/Literaturas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na Faculdade de Formação de Professores (UER-
J-FFP); Pós-graduada em Estudos Literários e Mestranda em Estudos Literários pela mesma universidade. Contato: pamelaf22@gmail.com
182
Neste cenário, Karen não só administrou a fazenda e interagiu com os na-
tivos, como também, registrou em seu livro, suas observações em torno das
pessoas com as quais se relacionou, paisagens, animais do território africano
e as histórias nele ouvidas. Desse modo, mais do que uma trama amorosa, a
autora construiu um material autoral de caráter amplamente antropológico.
Dentro deste contexto, este estudo desenvolve uma leitura comparativa,
sem hierarquizações, acerca das configurações de um modelo de feminino
vivenciado pela baronesa Blixen em contraponto ao modelo de feminino
vigente em seu tempo cronológico e, sobretudo, à cultura africana. Nesse
sentido, serão analisados tópicos da obra literária ligados à descrição memo-
rialística da autora em relação à cultura local e seu posicionamento diferen-
ciado enquanto mulher protagonista da própria história de vida.
A partir das reflexões Judith Butler em Regulações de Gênero (2004), ob-
servaremos como os gêneros eram regulados na cultura africana, descrita
através dos relatos sobre mulheres somalis na obra de Dinesen. De acordo
com Butler (2004), existem visões normativas de feminilidade e masculini-
dade, não sendo, o gênero, exatamente o que alguém “é” e nem precisamente
o que alguém “tem”. Segundo a teórica, gênero é, então, o aparato pelo qual
a produção e a normalização do masculino e do feminino se manifestam
junto com as formas intersticiais, hormonais, cromossômicas, físicas e per-
formativas que este gênero assume. Assim, gênero é, também, o mecanismo
pelo qual as noções de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas,
podendo ser o aparato através do qual esses termos podem ser desconstruídos
e desnaturalizados. Nesse viés, destacaremos como as regulações de gênero
sob o padrão comum implícito da normalização eram incorporadas social-
mente em A Fazenda Africana (1937) e como Karen Blixen, “desregulava”
os conceitos vigentes acerca de feminino e masculino, com seu posiciona-
mento como “dona de si”.
Buscando compreender, mesmo que em parte, como se dão as identida-
des, sobretudo femininas, a partir das questões de sexualidade, entrelaçare-
mos à Blixen (1937) e Butler (2004) os estudos de Michel Foucault em A
História da Sexualidade (2017). Sob o pensamento foucaultiano, analisare-
mos como as regulações assumiam forma legal através de operações de poder
e vinculavam-se ao processo de normalização. Nesse circuito, observaremos
como se dão os contratos sociais atuantes na representação dos corpos hie-
rárquica e dicotomicamente.
183
Com as contribuições teóricas de Adrienne Rich no artigo Quando da
morte acordamos: a escrita como re-visão (2017), teceremos algumas obser-
vações acerca do ato desafiador de escrita da baronesa Blixen em um cenário
colonial predominantemente patriarcal.
Por fim, suplementaremos as reflexões acerca da escrita de Karen Blixen
com as contribuições de Gayatri Chakravorty Spivak no artigo Literatura
(1999), comentando brevemente alguns aspectos da relação entre a barone-
sa e os sujeitos nativos, em um rico processo de interação social e cultural.
Quando veio viver conosco, ela estava com onze anos, e sempre escava do círculo
familiar a fim de me seguir por toda a parte. Montava o meu cavalo e carregava a
minha arma, ou então acompanhava os totos quicuius ao açude, erguendo a saia e
correndo descalça pelas margens com uma rede de pesca. [...] Todavia, com o passar
do tempo, e sob a influência das meninas mais crescidas, ela também se transformou
e ficou fascinada e arrebatada pelo próprio processo de mudança. Exatamente como
se um peso tivesse sido amarrado a suas pernas, ela passou a caminhar de maneira
lenta; agora seus olhos permaneciam sempre fixos no chão, seguindo as melhores
tradições, e para ela tornou-se uma questão de honra desaparecer assim que surgia
184
um estranho. Deixou de cortar o cabelo e, quando este alcançou o comprimento
apropriado, as outras jovens o dividiram e o trançaram em pequenos rabos-de-cava-
lo. A noviça submeteu-se com toda seriedade e orgulho a todos os constrangimen-
tos do ritual; notava-se que preferia morrer a faltar com seus deveres em relação a ele
(BLIXEN, 1937, p.198).
o poder regulador não apenas age sobre um sujeito pré-existente, mas, também,
molda e forma esse sujeito; e (2) tornar-se sujeitada/o a uma regulação significa tor-
nar-se subjetivada/o por ela, ou seja, vir a ser um sujeito precisamente por ser regu-
lada/o. (BUTLER, 2017, p.693)
A mulher mais velha, a sogra de Farah, era, segundo este, muito conceituada em sua
região por causa da excelente educação que proporcionara às filhas. Ali elas eram o
espelho da elegância e molde da forma virginal. Na verdade, as três jovens davam
prova do mais refinado decoro e dignidade. Nunca conheci damas tão femininas.
Seu recato virginal era acentuado pelo estilo de suas roupas. (BLIXEN, 1937, p.198)
[...] Trata-se das mulheres de Farah. Quando este se casou e trouxe sua esposa da
Somalilândia para a fazenda, veio também um pequeno bando animado e gentil
de pombas morenas: a mãe da noiva, sua irmã menor e uma jovem prima que fora
criada pela família. Farah me contou que este era o costume em sua terra. Na So-
malilândia, os casamentos são arranjados pelos parentes mais velhos, que levam em
186
conta a família, a riqueza e a reputação dos jovens; nas melhores famílias, os noivos
só se encontram no dia do casamento. Mas os somalis são um povo cavaleiresco e
zelam pela proteção de suas donzelas. Espera-se que um marido recém casado more
na aldeia de sua mulher durante pelo menos seis meses após o casamento; nesse
período, ela pode ainda desfrutar de sua posição de anfitriã e de pessoa conhecida e
influente. Quando, porém, isto é impossível, as parentas da noiva não hesitam em
acompanhá-la no início de sua vida conjugal, mesmo que tenham de se mudar para
regiões distantes (BLIXEN, 1937, p.197).
Assim, o poder, no sentido foucaultiano, como sendo uma ação sobre ações,
nos aponta a imersão da subjetivação das mulheres somalis e de Karen Blixen
em suas redes. Entretanto, observando a biografia da escritora dinamarquesa,
segundo teorizações de Judith Butler (2004), compreendemos que Blixen se
colocava (inconscientemente ou não) fora de algumas normas reguladoras e
da visão normativa de feminilidade de sua época. De acordo com seus pró-
prios relatos, Dinesen possuía hábitos e comportamentos que estavam mais
em consonância com a visão normativa de masculinidade, como, por exem-
plo, a prática da caça e a administração financeira de seus negócios, dentre ou-
tras tarefas, em início do século XX, incomuns para mulheres:
Eu já havia participado de um safári de caça antes, mas até então nunca ficara sozi-
nha com africanos. (BLIXEN, 1937, p.300)
A situação tornou-se muito difícil na fazenda. Não podíamos saldar nossas dívidas,
e não tínhamos como manter as plantações. [...] Elaborei vários esquemas para a
salvação do negócio. (BLIXEN, 1937, p.363-364)
Administrar uma fazenda é um fardo pesado. Os nativos e europeus que dela de-
pendiam preferiam deixar por minha conta os problemas e as preocupações [...].
(BLIXEN, 1937, p.366-367)
Perguntei aos padres franceses se poderia levar o grupo de jovens muçulmanas para
conhecer a Missão e, quando assentiram de maneira afável e animada – contentes
com algo que ia romper sua rotina -, certa tarde fomos até lá. Uma a uma as moças
entraram solenemente na fresca igreja. Nunca haviam entrado em um edifício tão
191
imponente. Ao voltarem os olhos para o alto, colocaram as mãos sobre a cabeça de
modo a se proteger caso o teto desmoronasse. Também nunca haviam visto nada
parecido com as estátuas existentes na igreja, com exceção do cartão postal com a
imagem de Cristo (BLIXEN, 1937, p.206)
Quanto a mim, já nas minhas primeiras semanas de África, fui tomada por uma
enorme afeição pelos nativos. Era um sentimento intenso que abarcava todas as ida-
des e ambos os sexos. A descoberta das raças negras foi, para mim, um esplêndido
alargamento de todo o meu mundo. [...] Depois de ter conhecido os nativos, a me-
lodia deles passou a influenciar toda a rotina dos meus dias. (BLIXEN, 1937, p.30)
Considerações Finais
Diante dos relatos de Karen Blixen em A Fazenda Africana (1937), obser-
vamos como os gêneros foram experienciados nas culturas europeia e africana,
através de uma pluralidade de sujeitas/os em experiências de interação social.
Numa sociedade (neste caso, a africana) de poderes hegemonicamente
masculinos, Blixen foi, sob alguns aspectos, sujeita a algumas regulações in-
trojetadas por processos de naturalização, mas, também, e, sobretudo, mu-
lher que desafiou as normas sociais impostas, rompendo com determinações
comportamentais, compreendendo-se como sujeita de si mesma.
192
Assim, estabelecendo uma convivência interativa entre identidades, cul-
turas e regulações sociais distintas, Karen Blixen construiu sua identidade
de gênero que em um início de século ainda predominantemente patriarcal,
desconfigurou de modo singular o modelo de mulher feminina até então,
preeminente (virginal, elegante, intelectual e/ou discreta).
Referência Bibliográfica
BLIXEN, Karen. A Fazenda Africana. Tradução Cláudio Marcondes. Rio de Janeiro: Editora
Civilização Brasileira, 1987.
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re-visão”. In Traduções da Cultura: Perspectivas Críticas Feministas (1970-2010). Tradução Susana
Funck. Florianópolis: EDUFAL, Editora UFSC, 2017.
THURMAN, Judith. A vida de Isak Dinesen (Karen Blixen). Tradução Aulyde Soares Rodri-
gues. Rio de Janeiro: Editora Record, 1982.
Filmografia:
ENTRE DOIS Amores. (Out of Africa). Direção: Sidney Pollack. Roteirização: Kurt Luedtk.
Los Angeles, 1985. (160min), colorido.
193
FORMAÇÃO LEITORA DOS PROFESSORES DE FRANCÊS NO
CONTEXTO DA PRÁTICA DE ENSINO
Introdução/ Justificativa
Por causa da globalização e o uso frequente de diversos recursos tecnoló-
gicos no cotidiano, a comunicação entre nações passa a ser mais constante.
Para que estas interações sejam bem sucedidas é necessário termos em nos-
sa sociedade cidadãos críticos e reflexivos. Neste contexto, a leitura é vista
como um caminho para conseguir tais objetivos, uma vez que ela abre portas
para se alcançar o conhecimento e permite que as pessoas se atualizem. O
acesso à informação é uma das ferramentas mais importantes, pois possibili-
ta a ascensão social, ao mesmo tempo evita a marginalização ou exclusão dos
sujeitos perante a sociedade.
Soma-se o fato de que na maioria das vezes no meio virtual as notícias são
difundidas prioritariamente através da escrita, o que demanda o processo
leitor. Em virtude disto, podemos afirmar que o ato de ler é bastante pre-
sente em diversos momentos de nossas vidas. Contudo, não é concedida a
194
leitura a sua devida importância, uma vez que o Brasil é caracterizado por ser
um país composto por uma população com baixo índice de leitores.
De acordo com a pesquisa intitulada Retratos da Leitura no Brasil (2016),
44% da população brasileira não lê e 30% nunca comprou um livro. Acre-
ditamos que esta falta de fomento ao hábito de leitura ocorre, pois quanto
maior a proporção de indivíduos escolarizados, mais difícil será a sua ma-
nipulação e alienação. Desta forma, não é interessante nem para elite como
tampouco para os governantes, a existência em nossa sociedade de cidadãos
capazes de reivindicar os seus direitos. Consequentemente, esta postura aca-
ba gerando uma educação pública, com uma carência de qualidade de ensi-
no e uma ausência de incentivo à leitura.
No que diz respeito aos resultados obtidos através do Programa Interna-
cional de Avaliação de Estudantes (PISA, na sigla em inglês) realizado em
2016, o Brasil ocupa a 59ª posição quando o assunto é desempenho em lei-
tura. Considerando-se os baixos índices de leitura vigente na população bra-
sileira faz-se necessário investigar mais sobre o ato de ler, no que diz respeito
a averiguar qual conceito de leitura está presente no contexto escolar.
Pautando-nos em nossa experiência, podemos afirmar que comumente
a compreensão leitora no ensino é atrelada à ideia de decodificação. Porém,
para ensinar uma criança a ler não é suficiente apenas apresentar as letras,
fazê-la decorar e a juntar as formas gráficas. Saber decodificar não implica
dizer que os alunos estariam em seguida lendo com eficiência qualquer tex-
to, num simples jogo de decifração. Esta perspectiva está de acordo com
Cuq e Gruco (2017, p. 166) que aponta que “ler não consiste em decodificar
signos ou unidades gráficas, mas sim na construção de um sentido a partir
da formulação de hipóteses de significados, constantemente redefinidas ao
longo do ato de leitura e da exploração do texto”.
Neste estudo, compreendemos o conceito de leitura fundamentando-nos
em uma visão sociointeracional. Baseando-nos em Koch e Elias (2012, p.11),
consideramos a compreensão leitora como “uma atividade interativa altamente
complexa de produção de sentidos, que se realiza evidentemente com base nos
elementos linguísticos da materialidade textual e na sua forma de organização,
mas requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes no interior do evento
comunicativo”. Em virtude do seu caráter essencialmente interativo, a leitura
engloba diferentes fontes de informação em diálogo, associamos, como Vergna-
no-Junger (2009), este modelo à perspectiva multidirecional de leitura.
195
Apoiando-nos em Coracini (2002, p.14), podemos afirmar que “o leitor,
portador de esquemas (mentais) socialmente adquiridos, acionaria os seus
conhecimentos prévios e os confrontaria com os dados do texto, “construin-
do”, assim, o sentido”. Por causa disto, podemos considerar o receptor, em
certa medida, como um coautor do texto.
Diante disso, ressaltamos que não existe uma supremacia nem do texto e
nem do leitor, mas ambos estabelecem uma relação interativa na construção
do sentido durante o ato de ler. Conforme Macedo (2015), a ênfase da lei-
tura sociointeracional é autor-texto-leitor. Em consonância com esta ideia
Koch e Elias (2012, p.11) afirmam que:
O ato de ler demanda do leitor um papel ativo, pois à medida que ele lê o
texto, o receptor deve ter a capacidade de completar as lacunas textuais. O
acionamento do conhecimento prévio é essencial para a compreensão textu-
al, pois se o leitor antes de efetuar a leitura do texto, ele já tiver uma noção
do assunto a ser lido, este fato contribuirá para um melhor entendimento
textual. Além disso, ao se deparar com o texto, o receptor mobiliza diferen-
tes estratégias que o auxiliam na construção do sentido textual.
Tendo em vista que os professores são os profissionais incumbidos pelo
ensino da compreensão leitora na escola, ele é consequentemente responsá-
vel pelos resultados positivos e negativos escolares, o que pressupõe o desem-
penho leitor de seus discípulos. Portanto, cabe refletir sobre a formação do-
cente e as práticas leitoras priorizadas no âmbito do ensino-aprendizagem.
A escola tem sido o locus priorizado para o desenvolvimento da compre-
ensão leitora, já que muitos alunos não possuem o hábito de ler em casa. Em
virtude disto, concerne à instituição escolar incentivar o costume de ler, pois
conforme a proficiência leitora é aprimorada portas são abertas para uma
melhor qualificação profissional, inserção social e o exercício da cidadania.
Para despertar o gosto pela leitura é imprescindível que os docentes leiam.
Quanto mais letrados forem os professores, consequentemente eles terão
mais chances de estarem aptos a formarem alunos letrados.
196
Pautando-nos em Schön (2000), concordamos que o docente tem a ne-
cessidade de refletir sobre o seu trabalho e sempre estar em constante atu-
alização repensando a sua metodologia. Porém, para os professores serem
profissionais que reflitam sobre a sua prática docente é necessário haver uma
mudança qualitativa durante o seu processo de formação. Neste contexto,
a leitura deve ocupar um lugar de relevância e ser vista como um importan-
te instrumento para a formação humana. Consequentemente esta postura
qualitativa descarta o ensino tradicionalista e dá preferência a uma prática
construtivista que compreenda que a reflexão docente é primordial para o
entendimento da realidade.
Por conseguinte, a priorização de um processo educacional pautado pelo
construtivismo contribui para a desmistificação da posição passiva do edu-
cando. Além disto, este modelo de ensino-aprendizagem potencializa o de-
senvolvimento da prática crítico-reflexiva.
Todavia, muitas vezes a realidade de um professor no seu cotidiano exaus-
tivo de trabalho não é a de reflexão. As razões para esta ausência de pensa-
mento reflexivo em seu ofício são diversas, tais como: baixa remuneração,
escassez de recursos e infraestrutura básica, assim como também a falta de
motivação e interesse dos alunos.
Apesar das péssimas condições de trabalho vivenciadas pelos docentes e o
aviltamento de seus salários ainda podemos, afirmar que a educação possibi-
lita as pessoas à ascensão social e tem a finalidade de preparar os indivíduos
para o exercício da cidadania. Considerando o papel fundamental do docen-
te no contexto educacional, a formação de professores é questão central no
que diz respeito ao processo educativo. Concordamos com Esteve (2004)
que enfatiza que a qualidade do ensino depende da qualidade dos professo-
res, isto é, um bom trabalho educacional está associado a uma formação de
excelência do pessoal que nela trabalha.
Cabe ao professor, não apenas ministrar suas aulas, mas sim este profis-
sional precisa ter uma boa formação para se mostrar preparado para adaptar
os seus ensinamentos em função das necessidades dos seus discentes. Além
disto, o docente tem a incumbência de realizar pesquisas, preparação de ma-
terial, planejamento do curso e refletir sobre a reconstrução de sua prática.
Todas estas atividades mencionadas pressupõem um profissional extrema-
mente reflexivo e em constante formação.
Ademais, para que o docente consiga refletir sobre a sua prática pedagó-
197
gica é necessário que ele possua um grande embasamento teórico que lhe
permita este questionamento sobre a metodologia utilizada. Quando isto
não se concretiza, a tendência é o professor ficar acomodado e priorizar ati-
vidades mecânicas que serão respondidas sem que seja necessário, uma refle-
xão aprofundada.
Ainda que existam imposições didáticas e metodológicas das instituições
é conveniente que o professor tenha uma postura decisiva em sala de aula e
esteja preparado para fazer o seu trabalho respeitando a sua perspectiva de
ensino. Porém, esta atitude só é possível quando o docente reflete sobre o
que está ao seu redor, assim como também a sua prática pedagógica.
No que diz respeito à valorização do repertório cultural dos alunos duran-
te o ensino, pautando-nos em Freire (2005), podemos considerar que todo
mundo sabe alguma coisa. Partindo deste princípio, o professor no decorrer
do processo de aprendizagem precisa levar em conta e apreciar o conheci-
mento prévio de seus alunos.
O diálogo deve ser uma condição sine qua non para o ensino. Dessa forma,
o docente deixa de ser o detentor do saber e a construção do conhecimento
se concretiza na interação entre professor e discente. Em consonância com
esta ideia Freire (2005, p. 12) ressalta que:
[...] de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para
a sua produção ou a sua construção. [...] embora diferentes entre si, quem forma se
forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado. É
neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos nem formar
é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso
e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos,
apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do
outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Quem
ensina ensina alguma coisa a alguém.
Compreensão leitora
Nesta parte do estudo ressaltamos as diferentes concepções de prática lei-
tora ao longo do tempo e destacamos suas respectivas características. Para
tanto, nos fundamentamos em Moita Lopes (1996), que associa a leitura a
três possíveis modelos: ascendente, descendente e interativo.
Algumas perspectivas de leitura defendem que a atenção se volta sobre o
texto e outras no leitor. No entanto, de acordo com a perspectiva unidirecio-
nal o foco incide em somente um dos elementos no processo de informação.
Esta ideia está em consonância com Vergnano-Junger (2009, p.70), que apon-
ta que “não importa se a ênfase recai sobre o texto ou sobre o leitor, mas sim
que apenas um caminho é escolhido de cada vez”. Desta maneira, ou se con-
sidera que a informação reside no texto, ou que o leitor tem uma participação
ativa e é responsável pela construção do sentido durante a leitura.
Na perspectiva unidirecional, podemos incluir dois modelos de leitura:
o ascendente e o descendente. Primeiramente, temos o modelo ascendente
(bottom-up) que propõe uma leitura decodificadora. O leitor é visto como
passivo e todo significado está atrelado à materialidade linguística textual.
Corroborando com esta ideia em relação a este modelo de leitura, Jeronimo
(2012, p.85) ressalta que “Evidentemente, há leitores que permanecem, ao
longo da sua experiência de vida, realizando apenas uma leitura mecânica e
não conseguem ultrapassar o nível da decodificação”.
No que diz respeito ao modelo descendente (top-down), o foco desloca-
-se da materialidade linguística textual e incide sobre o leitor, que tem uma
participação ativa durante a compreensão textual. É o receptor que atribui
significados ao texto acionando os seus conhecimentos prévios. Pautando-
-nos em Kato (2007), podemos ressaltar que no processamento descendente
200
o leitor apreende as ideias principais do texto, contudo ele lê de modo mais
rápido podendo desta forma fazer adivinhações excessivas.
Em oposição aos modelos unidirecionais, temos a perspectiva multidi-
recional da informação (VERGNANO-JUNGER, 2010), que se realiza
através do processamento ascendente e descendente ocorrendo simultane-
amente, em diálogo e interação. Nessa abordagem, abre-se o leque de possi-
bilidades de interpretações, são levados em conta não somente os elementos
linguísticos, mas também os não linguísticos. Esta concepção está em con-
sonância com o fato de que “ler é também a reconstrução/negociação de
sentidos de imagens e sons (não apenas de materiais verbais)” (VERGNA-
NO-JUNGER, 2010, p.4).
Para complementar o modelo interativo surgiu o modelo sociointeracio-
nal que é a perspectiva leitora com a qual trabalhamos. Esta visão leva em
conta que a interação texto-leitor se concretiza por diversos aspectos con-
textuais que influenciam e contribuem para o siginificado textual. Concor-
dando com este ponto de vista Kleiman (1989, p. 39) ressalta que “a leitura
ocorrerá na relação do locutor com o interlocutor através do texto e na de-
terminação de ambos pelo contexto”.
Caracterização da pesquisa
Para construir as etapas teórico-metodológicas optam-se, como técnicas
investigativas da presente pesquisa, pela análise documental das ementas da
disciplina de prática de ensino de língua francesa, assim como também a
realização de entrevistas semiestruturadas com os docentes desta matéria.
Além disto, observaremos e faremos a transcrição das aulas. Os registros dos
cursos serão feitos através do uso de gravadores dispostos na sala mediante
autorização prévia dos professores responsáveis que administram as disci-
plinas. Conforme demanda a ética de pesquisa apagaremos a identidade de
todos os participantes.
Na primeira etapa metodológica da pesquisa, nos dedicaremos a uma
análise documental das ementas das disciplinas prática de ensino de francês.
Observamos que o fluxograma de letras português-francês é composto por
10 disciplinas de prática eletivas. Porém, para concluir o curso, o aluno pre-
cisa apenas cursar 2 matérias.
Para esta pesquisa dentre as 10 opções de disciplinas, selecionamos como
corpus para análise somente duas. Fizemos este recorte, pois apenas o título
de ambos os cursos estão relacionados com a nossa problemática de estu-
do proposta, o que justifica a nossa escolha. Sendo assim, nos ateremos a
investigar as ementas das disciplinas Produção Material Didático de Com-
preensão Leitora em Francês e Prática de Ensino em Língua Francesa II – O
Uso de Novas Tecnologias. Mapearemos os documentos e utilizaremos os
seguintes critérios norteadores para análise das ementas:
a) Evidenciaremos de que modo à compreensão é mencionada nos documen-
tos e se existe uma preocupação metodológica de como ela deve ser desenvolvida;
b) Observaremos se o aspecto digital é contemplado ou não e caso ele este-
ja presente, averiguaremos em qual contexto a tecnologia é inserida;
c) Verificaremos se nos objetivos e conteúdos propostos nas ementas é
explicitado como se trabalhar a leitura e a tecnologia em sala de aula;
d) Investigaremos se as bibliografias propostas nas ementas estão em con-
202
sonância ou apresentam inconsistência com o conteúdo e os objetivos a se-
rem alcançados.
Partimos do pressuposto de que a leitura é naturalizada, ou seja, não é
mencionada ou quando é citada está atrelada à ideia de uma das quatro ha-
bilidades linguísticas a serem desenvolvidas. Portanto, não existe uma pre-
ocupação metodológica sobre de que maneira trabalhá-la, pois pressupõe
que as pessoas alfabetizadas já são leitoras. Pautando-nos em Leffa (1996),
defendemos que o ato de ler envolve estratégias que precisam ser ensinadas,
e não é possível fazer a leitura de um texto sem uma boa proficiência. Em
consonância com esta ideia Solé (1998) ressalta que é imprescindível um
ensino de estratégias de leitura.
No que concerne à tecnologia, defendemos a ideia de que ela é apenas uti-
lizada como fonte de busca ou receptáculo de material. Partimos do pressu-
posto de que ainda persiste na universidade uma predominância do suporte
impresso durante a aula.
Optamos neste estudo pela realização de entrevistas, pois consideramos
que este instrumento possibilita o acesso ao saber e a visão particulizada de
um determinado grupo. No caso em questão, restringimos-nos aos docentes
de prática de ensino de francês em virtude da problemática de pesquisa a ser
investigada e por ser a nossa área de atuação.
No que diz respeito à estruturação da entrevista, de um modo geral, ela
acontece através de uma série de perguntas dirigidas ao entrevistado relacio-
nadas ao tema estudado. Devido a este caráter de troca interacional entre o
pesquisador e o entrevistado, a entrevista é comparada a um diálogo.
Neste trabalho, a entrevista será realizada nas dependências da faculdade
onde é ministrado o curso da prática de ensino de língua francesa. O dia e
horários serão definidos pelos entrevistados, tendo sido previamente acor-
dada a gravação em áudio com posterior transcrição. Para cada professor en-
trevistado será apresentado um termo de consentimento livre e esclarecido,
deste modo asseguraremos a não identificação dos participantes no material
da pesquisa conforme demanda a ética de estudo com sujeitos.
Primeiramente elaboraremos um roteiro de entrevista que nos servirá
como um elemento facilitador para uma melhor análise do problema e se for
preciso, em seguida, fazermos os ajustes que julgarmos necessários. No en-
tanto, sempre objetivando refletir e responder as perguntas propostas neste
trabalho. Por causa disto, a construção do roteiro priorizará: (a) as informa-
203
ções que serão obtidas ao longo da análise documental, no caso o enfoque
será as ementas da disciplina prática de ensino de francês; (b) os temas da
própria entrevista que estão relacionados com a problemática da pesqui-
sa; (c) levar em conta as hipóteses que temos de como os docentes atuam,
pautando-nos em nossa experiência profissional e em nosso conhecimento
teórico sobre o assunto; (d) o tempo para a concretização deste estudo; (e)
os recursos disponíveis; (f) o modo direto de acesso aos entrevistados, visto
que se estabelecia uma distância geográfica existente entre o entrevistador e
entrevistado que poderia comprometer a qualidade interacional.
Prentendemos articular todos os dados coletados ao longo da entrevista
com a base teórica levantada no decorrer deste estudo. Além disto, iremos
associar as informações obtidas nas entrevistas com as ementas do curso de
prática de ensino de francês, assim como também correlacioná-las às anota-
ções adquiridas durante as observações das aulas. Desta forma, no que diz
respeito à constituição do instrumento, a entrevista, precisou se levar em
conta: (a) os objetivos a serem alcançados; (b) os problemas que foram pro-
postos a ser respondidos; (c) as hipóteses que norteiam o estudo. Somente
depois do levantamento destas informações foi possível (d) estabelecer as
perguntas que nos permitiriam emitir uma opinião a respeito do instrumen-
to e para fazermos a sua adequação no que for necessário.
Com relação à última etapa da pesquisa consiste em um estudo etnográ-
fico, pois o pesquisador realizará in loco a observação e gravará em áudio 5
aulas de 2 tempos de cada professor entrevistado. Sendo que os primeiros
dois dias serão descartados, pois acreditamos que o grupo de alunos não agi-
rá naturalmente em virtude do estranhamento da presença do pesquisador
durante o curso.
Realizaremos uma observação direta não estruturada, uma vez que iremos
registrar em notas de campo, acontecimentos nas aulas que possam vir a
contribuir para a análise dos dados. Optamos por utilizar áudio e não vídeo
em virtude de seu caráter aparentemente menos invasivo, contribuindo des-
ta maneira para a preservação do anonimato dos participantes envolvidos.
Distribuiremos 4 gravadores pela sala com o intuito de captarmos a inte-
ração docente-alunos e alunos-alunos. Evidenciaremos as atividades leitoras
trabalhadas e de que modo à tecnologia é usada em sala. Nesta etapa, temos
como principais objetivos:
a) Descrever de que maneira a leitura é trabalhada neste contexto e qual a
204
sua relevância;
b) Observar de que o modo à tecnologia está presente neste contexto de
ensino-aprendizagem;
c) Comparar as consistências e contradições entre o que está priorizado
nas ementas com o discurso do professor e a prática ministrada.
Conclusão
A leitura e a capacidade de reflexão precisam ser estimuladas ao longo do
processo de aprendizagem. A universidade, da mesma maneira do que a es-
cola deve evitar automatismos e atividades de repetição. No que diz respeito
às práticas leitoras, estas instituições precisam implantar uma metodologia
que favoreça a ativação do conhecimento prévio e que prepare os alunos
para estarem aptos a completarem as lacunas textuais. Com estas condições
durante o processo de ensino, os discentes se apresentarão mais capazes e
prontos para penetrarem neste universo amplo do mundo da leitura.
No entanto, sabemos que apesar de o Doutorado ter a duração de 4 anos,
consideramos um tempo inviável para se realizar uma pesquisa exaustiva
sobre o assunto proposto. Objetivamos com este trabalho abrir caminhos
para que outros estudiosos reflitam sobre a relevância do desenvolvimento
da compreensão leitora na formação docente. Acreditamos que, através do
enriquecimento de estudos sobre o tema, a leitura conquiste cada vez mais
espaço na vida das pessoas.
Referência Bibliográfica
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206
MEMÓRIA E RESISTÊNCIA – A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO
SÉCULO XVII NAS LETRAS
Patrícia Bastos49
UERJ - CAPES
Quando decidi pesquisar a poesia do século XVII através de um recorte que pri-
vilegiasse a construção das personagens femininas em Gregório de Matos já supu-
nha que encontraria não só a chave para algumas questões contemporâneas como
também uma série de indagações que poderiam, ou não, serem solucionadas.
Enquanto pesquisadora e sabendo que a trajetória se dá ao longo do ca-
minho, o que venho percebendo no decorrer desses já quase seis anos de
investigação sobre o tema é que as revelações sobre o período em questão,
no que concerne à gênese de tradições perpetuadas tanto em nível cultural
como social, deveriam não apenas serem conhecidas como serem óbvias. No
entanto, são para grande maioria superficiais ou completamente ocultas. O
que me leva a pensar em como o Barroco e o período colonial vêm sendo
abordados nas escolas e em algumas universidades brasileiras.
Subestimar um período tão vasto e crucial representa a total incapacidade
de uma nação em saber lidar com sua própria memória e cultura, no que me
pergunto a quem serve esse apagamento de nossa origem e substância.
49
Graduada em Português/Literaturas e mestranda em Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
207
Desta forma, um dos aspectos que venho tentando demonstrar é que atra-
vés da poesia luso-brasileira do século XVII é possível encontrar o corpo
feminino já estatizado/vigiado e como, ao longo de mais de 300 anos, conti-
nua sendo objeto de punição e controle.
Conforme nos esclarece Ana Lúcia Machado Oliveira (2003), anatomizar
é examinar até o momento em que se pode, com uma palavra, condensar,
definir. Logo, para uma melhor compreensão desta abordagem é necessário
conhecer a sociedade receptora do discurso em questão, assim como a rela-
ção que há entre o corpo e a carne, o sagrado e o profano. É preciso observar
que a desigualdade também se encarna no corpo e na anatomia, enxergando
a linguagem e as imagens produzidas nas obras Seiscentistas através desse
ponto de vista.
Em “O espelho da alma”, Jean-Jacques Courtine, descreve a fisiognomo-
nia como “a arte de decifrar a linguagem do corpo” (2009, p. 402), que du-
rante os séculos XVI e XVII teve um papel de grande relevância intelectual
e social. Esse eco da fala do corpo irá repercutir ao longo de toda era clássica
através de manuais de retórica e livros de civilidade, que ofereciam “técni-
cas” para o controle de si mesmo e de cuidadosa observação do outro; artes
da conversação que ensinavam o domínio e o comedimento do gesto assim
como o propósito (COURTINE, 2009, p. 402), tudo baseado na impor-
tância de estabelecer o arbítrio do conhecimento físico e natural do corpo e
da alma, para que se pudesse alcançar a moral do homem , assim como suas
paixões, vícios e virtudes (OLIVEIRA, 2011, p. 46).
Cabe ressaltar que o exame meticuloso, a observação dos gestos e signos
que imprimem os movimentos internos dos corpos é esperado em um con-
texto da vida inserida na sociedade de corte, onde as leis da etiqueta ditam o
domínio sobre os comportamentos e as paixões (OLIVEIRA, 2011).
Deste modo, a fisiognomonia reúne sempre um grupo de princípios teó-
ricos que estabelecem uma produção da natureza humana através de signos
oferecidos pelo corpo agregando semelhanças, opondo diferenças e estabe-
lecendo um paradigma favorável a determinadas marcas físicas nas quais o
conteúdo moral é posteriormente anexado (OLIVEIRA, 2011, p. 46).
‘Os olhares que a fisiognomonia lança sobre o corpo constroem portanto uma ima-
gem, uma memória, usos do corpo. Essas decifrações da fisiognomonia têm, contu-
do, elas mesmas uma história: ao longo de toda era clássica, as percepções dos sinais
do corpo se deslocam, as sensibilidades à expressão individual se complexificam, a
leitura da aparência humana se transforma” (COURTINE, 2009, p.405)
Destaco ainda que o amor cortês aqui referido e presente na lírica amoro-
sa de Gregório de Matos, não inverte as polaridades tradicionais do mascu-
lino e feminino, pois, mesmo sendo colocada em uma espécie de santuário,
a mulher continua sendo obediente à obsessão da virgindade vigente no pe-
ríodo aqui discutido. Segundo Jean Delumeau em “História do medo no
Ocidente”, ele não foi capaz de modificar as estruturas sociais nem mesmo
na Occitanie, sua terra de origem.
Conforme Hansen (2013) a divisão sexual está relacionada a padrões
comportamentais e de caracteres, referentes à natureza feminina e masculina
suposta. Sob essa perspectiva a produção satírica é sempre misógina, repro-
duzindo um olhar baseado em lugares comuns do período aqui abordado
relacionados às mulheres, como vaidade, futilidade e inconstância. A lógica
desse olhar pode ser relacionada à afirmação de Courtine (2009) sobre a fi-
siognomonia referente a sua participação na construção das discriminações
210
sociais e das diferenças sexuais no campo do olhar, o que é possível enxergar
na poesia atribuída a Gregório de Matos no tocante à elaboração da ima-
gem das mulheres negras e mestiças, na medida em que este retrato traduz
não apenas plasticidade mas uma realidade cultural e social engendrada no
século XVII, já que o corpo feminino deveria estar sempre sendo vigiado
e que na hierarquia presente no período em questão, as mulheres escravas
eram ainda mais desprovidas de qualquer direito do que as mulheres bran-
cas abastadas economicamente.
Para um maior aprofundamento na questão da constituição do retrato
feminino elaborado, gostaria de acrescentar a esta análise o conceito Ho-
raciano ut pictura poesis, doutrina que estabelece relação entre linguagem e
pintura. Demonstrando sua influência no que diz respeito à técnica de cria-
ção utilizada no retrato feminino composto na sátira licenciosa produzida
através de um olhar que estabelece vícios e deformidades.
Segundo Ana Lúcia Oliveira, foi através de Horácio, poeta satírico e lati-
no, que o paralelo mencionado “recebeu o seu batismo, sendo cunhado na
bem sucedida fórmula ut pictura poesis” (OLIVEIRA, 2001, p.1). Oliveira
esclarece que resgatando o que na época já representava um lugar comum,
Horácio foi o primeiro a reconhecer o impacto das sensações visuais e com
a finalidade de demonstrar os critérios do decoro poético necessários para
agradar o leitor crítico desenvolveu três comparações: em relação à distância
adequada ( perto/longe), à luz ( obscuridade/ claridade) e em relação ao nú-
mero (uma/ divesas vezes).
O Tratado do Juízo (1625) em que Emmanuel Tesauro aplica a técnica ,
assim como o tratado de Poesia e pintura (1630), de Manuel Pires de Almei-
da, onde encontramos sequências como “ e assim como o pintor imita a na-
tureza, ações e semelhanças de homem ou de qualquer animal, ou parte da
terra ou do mar, assim a pena retrata tudo”, e ainda “ infinitas vezes se unem
a poesia e a pintura em um mesmo sujeito” (MUHANA, 2002, p.73) - e
tantos outros escritos da época, reforçam a grande importância da doutrina
do ut pictura poesis nos períodos renascentista, maneirista e barroco:
“Rensselaer Lee (1982), em seu estudo já clássico acerca do tema em foco, pretende
definir a teoria humanística da pintura, que, baseando-se na releitura horaciana de
Aristóteles, parte da suposição fundamental de que a boa pintura, assim como a
boa poesia, é a imitação ideal da ação humana. Tal teoria está amplamente imbuí-
da da doutrina do ut pictura poesis, de grande fortuna nos períodos renascentista,
211
maneirista e barroco. Assim, um lugar – comum nos tratados sobre arte e poesia
desses períodos é assinalar a estreita relação entre as artes irmãs (...)” (OLIVEIRA,
2001, p.3).
Puta canalha,
Torpe e mal feita,
A quem se ajeita
Uma estátua de trapo
Cheia de palha
Vamos ao sundo
De tão mau jeito,
Que é largo, e estreito
Do rosto estreito e largo
Do profundo
[...]
Adiciono a esta leitura que a palavra sundo significa ânus, o que somado à
estrofe anterior: “puta canalha...”, revela a construção violenta do corpo fe-
minino violado e exposto através de uma obscenidade evidente. A sátira uti-
liza portanto a obscenidade para criar imagens deformadas e grotescas, onde
“a obscenidade sexual de estilo sórdido é adequada para descrever partes do
corpo e ações indecentes dos tipos viciosos” (HANSEN, 2013, p. 418):
Referência Bibliográfica
ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios: transgressão e transigência na sociedade urbana colo-
nial. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1993.
COURTINE, Jean- Jacques. O espelho da alma. In: História do corpo: Da renascença às luzes.
vol. I. 3 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
__________. “O corpo inumano”. In: História do corpo: Da renascença às luzes. vol. I. 3 ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
DELUMEAU, Jean. “Os agentes de Satã / A mulher”. In: História do medo no Ocidente. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009.
FLANDRIN, Jean Louis. “Homem e mulher no leito conjugal”. In: O sexo e o Ocidente. São
Paulo: Brasiliense, 1988.
HANSEN, João Adolfo. Para que todos entendais: poesia atribuida a Gregório de Matos e Guer-
ra: Letrados, manuscritura, retórica, autoria, obra e público na Bahia dos séculos XVII e XVIII,
vol.5. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
_________. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahía do século XVII. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1989.
MATOS, Gregório de. Obras completas. vol. III. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
MUHANA, Adma. Poesia e Pintura ou Pintura e Poesia. Tratado Seiscentista de Manuel Pires
de Almeida, tradução do Latim de João Ângelo Oliva Neto, São Paulo: EDUSP, 2002.
OLIVEIRA, Ana. Lucia de. Por quem os signos dobram: uma abordagem das letras jesuíticas.
Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.
217
__________. Ut pictura poesis: do ato de batismo à fortuna do nome. Texto apresentado na 4ª
Semana de Letras Neolatinas, UFRJ, 10-14 Setembro 2001.
__________. “Imagens do corpo e representação retórica das paixões nas letras Seiscentistas:
um breve estudo de caso”. In: Maria Conceição Monteiro; Ana Cristina Chiara; Francisco Vences-
lau dos Santos. (Org.). Escritas do corpo. Rio de Janeiro: Caetés, 2011.
218
AS MULHERES E A RUA – UMA ANÁLISE DE FLANANDO POR
LONDRES DE VIRGINIA WOOLF
Resumo: O presente artigo tem por intuito teorizar sobre a experiência femi-
nina no espaço urbano, tendo como base aspectos presentes no ensaio Flanando
por Londres de Virginia Woolf. Realizaremos uma breve digressão teórica para
considerar a cidade e suas características primordiais e também discutiremos as
mudanças histórias necessárias para sua constituição na modernidade. Explora-
remos o flâneur enquanto figura narrativa e estabeleceremos uma diferenciação
subversiva do arquétipo original e tradicionalmente masculino com seu possível
equivalente feminino, a flâneuse, para considerar qual o impacto que espaços
urbanos e públicos acarretam às produções narrativas femininas.
Introdução
“É assim que começa o espaço: com palavras apenas,
sinais traçados na página branca.51”
(George Perec)
Não somos mais exatamente quem somos. Quando, num bonito fim de tarde, entre
as quatro e as seis horas, colocamos os pés fora de casa, deixamos cair a máscara pela
qual nossos amigos nos conhecem e nos tornamos parte desse vasto exército repu-
blicano de vagabundos anônimos, cuja companhia, após a solidão de nosso quarto,
nos é tão agradável (WOOLF, 2015, p. 24).
O flâneur
Virginia Woolf e João do Rio compartilham essa descrição democrática
da rua. E em ambos os trabalhos, quem descreve a rua em suas andanças
é uma figura de caráter paradoxal, ao mesmo tempo integrante e alheio às
constituições sociais. Uma característica formadora da identidade daqueles
que flanam é o destaque que sua presença dá às disparidades sociais. A seg-
222
mentação desigual da estrutura social, favorecendo uma elite em detrimento
de ‘outros’ é parte integral do entendimento da cidade contemporânea, como
atesta Raquel Rolnik: “Indissociável à existência material da cidade está sua
existência política” (ROLNIK, 1995, p.8). O flâneur usufrui do privilégio
de observação dos outros; os habitantes da margem, das zonas esquecidas e
escondidas. Logo, não surpreende a presença de figuras marginais no ensaio
de Virginia, mulheres, uma anã, cegos, coxos, idosos – como João do Rio já
descrevia, a rua de Virginia agasalha os infelizes, os outros, e ela os captura em
seu olhar. “O outro urbano é o homem ordinário que escapa – resiste e sobre-
vive – no cotidiano, da anestesia pacificadora.” (JACQUES, 2012, p.15). O
flâneur é reinventor da experiência da vida urbana hierarquizada – subversivo
ao vagar em busca da alteridade esterilizada pela urbanização. Sua presença
ratifica as diferenças que constituem a rua e se opõem a um entendimento de
experiência urbana única. “O errante, em suas errâncias pela cidade, se con-
fronta com os vários outros urbanos.” (JACQUES, 2012, p. 22).
Outra parte chave para o entendimento da figura narrativa do flâneur é
seu movimento. Com o advento da modernidade, a rua foi rapidamente
alterada para a incorporação do automóvel como principal meio de deslo-
camento e, dentre outras razões, tais reformas atingiram diretamente a ex-
periência do caminhar e indiretamente a de experenciar a alteridade (JAC-
QUES, 2012). O flâneur surge como crítica ao processo de modernização,
se opondo a esterilização do espaço que ele promove. A modernidade res-
significou a rua como espaço de movimento do capital e o flâneur se insere
justamente em oposição a isso e em afirmação de uma experiência corporal
do ócio. O ensaio de Virginia Woolf ecoa essa relação moderna do indiví-
duo com a cidade e nele o flanar surge como respiro em meio às mudanças
resultantes do processo de urbanização e da nova consciência que o sujeito
traçou com o espaço moderno. Caminhante observador da pluralidade da
vida urbana, ele é figura paradoxal que ao vagar constitui sua existência e a
das histórias que conta.
As narrativas dos que flanam agem para além do movimento espacial, ser-
vindo de crítica ao empobrecimento de transmissão de experiência descrito
por Walter Benjamin em seu ensaio Experiência e Pobreza. Para Benjamin,
a modernidade, o desenvolvimento da técnica e o das práticas capitalistas
resultou na desorientação do sujeito contemporâneo, fragmentando-o nas
esferas pública e privada e empobrecendo a experiência e sua transmissão. O
223
flâneur, por sua vez, se opõe ao empobrecimento ao contemplar os espaços
e os tipos sociais, percorrendo o imaginário do que compõem a cidade. Ao
narrar, o flâneur concebe o espaço percorrendo-o em texto. Não passa des-
percebida a escolha do pretexto de Woolf para flanar: a compra de um lápis,
um uso imagético referencial a atividade narrativa. Paola Berenstein Jacques,
atualmente professora da Faculdade de Arquitetura da Universidade Fede-
ral da Bahia, comenta em seu livro Elogio aos Errantes: “O próprio exercício
de narração já está associado também a uma prática espacial, ao movimen-
to, à viagem ou, ainda, ao andar pela cidade.” (JACQUES, 2012, p. 16-17).
Narrar não só exprime o movimento-contramão do flâneur pelas ruas, mas
o é movimento também.
Nascido do urbano dos meados do século XIX e teorizado por Benjamin
ao deparar-se com sua presença nas obras de Beaudelaire, o flâneur é a per-
sonificação do privilégio de contemplação. Um indivíduo simultaneamente
parte e à parte do espetáculo urbano:
A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes.
Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o obser-
vador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante,
no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em
casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permane-
cer oculto ao mundo (…) (BEAUDELAIRE apud JACQUES, 2012, p. 40)
Vocês, que são de uma geração mais jovem e mais feliz, talvez não tenham ouvido
falar dela – talvez não saibam o que quero dizer com o Anjo do Lar. Vou tentar
resumir. Ela era extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente
altruísta. Excelente nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os
dias. (...) Naqueles dias – os últimos da rainha Vitória – toda casa tinha seu Anjo. E,
quando fui escrever, topei com ela já nas primeiras palavras. (...) Fui para cima dela
e agarrei-a pela garganta. Fiz de tudo para esganá-la. Minha desculpa, se tivesse de
comparecer a um tribunal, seria legítima defesa. Se eu não a matasse, ela é que me
mataria. Arrancaria o coração de minha escrita (WOOLF, 2012, p. 11-13).
Foi assim que virei jornalista; e meu trabalho foi recompensado no primeiro dia do
mês seguinte – um dia gloriosíssimo para mim – com uma carta de um editor e um
cheque de uma libra, dez xelins e seis pences. Mas, para lhes mostrar que não mereço
muito ser chamada de profissional, que não conheço muito as lutas e as dificuldades
da vida de uma mulher profissional, devo admitir que, em vez de gastar aquele di-
nheiro com pão e manteiga, aluguel, meias e sapatos ou com a conta do açougueiro,
saí e comprei um gato (…) (WOOLF, 2012, p. 10-11).
Não passava despercebido para a autora o privilégio que era sua subsistên-
cia através da escrita. É nesse atravessamento de identidades, a hegemônica
racial e social e a marginal feminina, que nasce o ensaio aqui trabalhado.
Conclusão
É a natureza transgressiva do movimento de Virginia a razão da produ-
ção do presente trabalho. O movimento espacial exercitado pelo flâneur
era desconhecido no imaginário dos construtos sociais femininos; só foi
possível Virginia vaguar porque antes se opôs a rejeitar a sombra que Anjo
226
do Lar projetava. Desafiando construtos e segmentações sociais, o flâneur
está aquém das estruturas sociais; não as reconhece, tendo o privilégio de
vagar entre espaços. Tal cruzamento de margens para a contemplação foi
tradicionalmente realizado por homens, já que estes não têm/tiveram seu
caminhares restringidos – os perigos presentes nas ruas ou a imposição da
obrigação doméstica não são fatores a serem considerados antes de vagar a
cidade. O ensaio de Woolf entra nesse contexto, mais de um século depois,
ressignificando-o.
Exercitar o pertencimento ao espaço público é subverter a posição tra-
dicionalmente doméstica imposta às mulheres; condição primeira para a
constituição do que deveria ser a experiência urbana feminina. George Perec
descreve a árdua missão de todo indivíduo para a experiência e habitação
plena dos espaços: “O espaço é uma dúvida: Eu tenho que constantemente
marca-lo, designá-lo. Ele não é nunca meu, nunca dado a mim. Eu preciso
conquistá-lo.” (PEREC, 1997, p. 91). Cabe então à flâunese e as outras tan-
tas habitantes do espaço urbano designar as ruas como suas. Conquistá-las,
conjugá-las – marcá-las em feminino.
Referência Bibliográfica
DO RIO, João. A alma encantadora das ruas. H. Garnier, 1908.
WOLFF, Janet. The invisible flâneuse. Women and the literature of modernity. Theory, Culture
& Society, v. 2, n. 3, p. 37-46, 1985.
WOOLF, Virginia. O sol e o peixe: prosas poéticas. Seleção e tradução Tomaz Tadeu. 1º edição.
Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
Introdução
Neste trabalho, abordam-se os processos cognitivos que subjazem à cons-
trução de significação de piadas com emprego de nomes populares para a
vulva e o pênis. A motivação para o referido estudo sucedeu de listas dispo-
níveis na internet que demonstram habilidade inventiva na atribuição de
nomes aos referidos órgãos. Tais listas expressam um quantitativo de apro-
ximadamente 3.940 designações para o órgão sexual feminino e 930 nome-
ações ao pênis.
Por meio desse corpus inicial foi possível observar as restrições de cunho
moral que impedem a circulação verbal da terminologia anatômica dos ór-
gãos sexuais no meio social. Uma vez que determinadas partes do corpo in-
tegram os tabu sociais, consequentemente, há um reflexo dessas interdições
no âmbito linguístico e na forma como essas áreas censuradas são chamadas.
52
Doutoranda em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: freitasp.letras@gmail.com.
228
Como corolário, defende-se que a integração conceptual (cf. FAUCON-
NIER; TURNER, 2002) é o processo pelo qual os diversos domínios cog-
nitivos são acionados de modo a viabilizar o enfrentamento de tabus pelo
uso do léxico. Isso ocorre tanto na criação de eufemismos para contornar
o significado quanto na consequente aceitação social de vocábulos/objetos
tabuizados.
Dessa forma, conjectura-se que os falantes de língua portuguesa, os quais
adotam uma perspectiva hegemonizante de gênero em caráter predomi-
nantemente patriarcal, miniminzam e contornam os aspectos linguísticos
tabuizados em relação a nomes para órgão sexuais. Isso ocorre por meio de
nomes não anatômicos que despertam a risibilidade dos indivíduos. Entre-
tanto, assim o fazem ratificando a proeminência da figura do homem, es-
pecialmente do órgão sexual masculino, tendo em vista que tais conceitos/
objetos/nomes são minimizados pela supremacia de ordem social, em que a
figura masculina é proeminente.
Isso significa dizer que, embora suavize o ônus provocado pela visão pre-
conceituosa em relação à condição feminina, o reafirma de maneira insólita.
É o caso, por exemplo, da nomenclatura que tipifica a vulva como um reci-
piente/extensão do pênis, expressa em metáforas linguísticas como “aboca-
nha-caralho, abridor de caralho, abrigo-do-meu-pau, babadeira do caralho,
baba-pau, buraco de avestruz (esconde a cabeça), buraco de cobra, buraco de
mandioca”, dentre outros.
Referência Bibliográfica
FAUCONNIER, G.; TURNER, M. The way we think: conceptual blending and the mind`s
hidden complexities. New York: Basis Books, 2002.
FREITAS, Patrícia Oliveira de. Mesclagem conceptual na construção de sentido em piadas com
nomes de órgãos sexuais. 2017. 122 f. Dissertação (Mestrado em Linguísticas) - Instituto de Letras,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
LAKOFF, G. JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: The University Chicago Press,
1980.
Por ser um escritor consciente das questões políticas e sociais do seu tem-
po, Lima Barreto buscou captar em sua literatura o curso de pequenos e
grandes eventos ocorridos no Brasil, durante a primeira República, inserin-
do novas formas de pensamento e percepção na estruturação de suas obras.
Observamos no seu acervo ficcional um testemunho particular sobre a
sociedade e suas profundas transformações. Ao captar o fluxo intenso de
acontecimentos, ele esclarece seu interesse em fornecer importantes dados e
circunstâncias inerentes ao seu tempo.
A amplitude de temas sobre o contexto da Belle Époque carioca era uma
forma do escritor de transmitir diretamente aos seus leitores a sua concep-
ção sobre os eventos que ocorriam, estimulando-os a tomar uma posição e a
esboçar uma reação sobre o estímulo dado. Ele se propôs a trazer para suas
54
Mestre na área Estudos de literatura pela Universidade Federal Fluminense. Doutoranda na área de Teoria da literatura e literatura comparada
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
237
obras acontecimentos históricos e sociais que evidenciaram transformações
bastante significativas. O historiador Nicolau Sevcenko aponta para os te-
mas típicos abordados por Lima Barreto:
Os temas citados por Sevcenko são refletidos de tal forma e enovelados nas
obras que não se pode dissociar ou isolá-los, uma vez que a disposição desses
elementos concorre para “compor um imenso mosaico, rude e turbulento,
que despoja a Belle Époque de seus atavios de opulência e frivolidade” (SEV-
CENKO, 1983, p.162).
De acordo com o teórico, Lima Barreto lutou por um país que construísse
sua autonomia a partir da crítica das condições legadas por seu passado colo-
nial e da compreensão das necessidades de uma sociedade pluriétnica e desi-
gual. Essa atitude reflete o pensamento do artista sobre a adoção da literatura
ligada com a observação direta da realidade, bem como da condição humana
em si, sem deixar de levar em conta os reflexos do passado no presente.
Ao traçarmos um breve panorama sobre a Belle Époque, pode-se dizer que
foi um período marcado de contradições que ressaltaram as condições adver-
sas estabelecidas no cenário da vida urbana ocidental, entre o final do século
XIX e as primeiras décadas do século XX, época de profundas transformações
culturais que se traduziram em novos modos de pensar e viver o quotidiano.
O espírito da Belle Époque tomou conta do Rio de Janeiro, uma cidade
fervilhante que comportava equipamentos dos novos tempos como bondes
elétricos, telefone e máquinas a vapor. Por ser o cartão postal da república, o
Rio de Janeiro adotou o espírito francês, conferindo-lhe aspectos parisien-
ses, para identificar-se com a burguesia europeia e reafirmar sua condição de
superioridade no país, passando por várias reformas urbanas como o alarga-
mento das ruas e a modernização da sua arquitetura, inspirados no modelo
Haussmaniano55. Reformas que não passaram despercebidas pelo olhar crí-
tico de Lima Barreto, sendo reveladas desde a primeira obra, Recordações do
escrivão Isaias Caminha: “Está tudo mudado: abolição, república... Como
55
Modelo urbanístico que tinha como característica construções de Boulevards com contornos definidos por formas geométricas, inspirado na
reforma do prefeito francês Haussmann na cidade de Paris.
238
isso mudou! Então de uns tempos para cá, parece que essa gente está doida,
botam abaixo, demolem casas, levantam outras, tapam umas ruas, abrem
outras...” (BARRETO, 1917, p.54).
O clima estabelecido pelo “mito do progresso” atraiu a empatia dos jo-
vens instruídos procedentes da Escola Politécnica e da Escola Militar. Nes-
te período, havia uma grande expectativa de que a ciência iria promover o
controle das forças naturais, a compreensão do eu e do mundo, o progres-
so moral, a justiça e a felicidade, sendo, então, considerada o novo símbolo
redentor da humanidade. A doutrina positivista, uma das alavancas do
movimento republicano, foi muito difundida, quando Lima Barreto era
jovem, e bastante questionada pelo escritor posteriormente. Em contra-
partida, os reflexos negativos do progresso tecnológico repercutiram no
Rio de Janeiro, onde o rápido crescimento urbano, de acordo com Jane
Santucci, “não veio acompanhado de oportunidade para todos, deixando
uma grande parcela da população à margem, em meio à miséria e vitimada
pelas doenças” (SANTUCCI, 2008, p.39). A cidade era repleta de con-
trastes que podem ser visualizados nos dias atuais. Se de um lado havia
livrarias, redações, a boemia dos cafés e tertúlias literárias frequentadas por
intelectuais e pela elite carioca da época; do outro, havia o mundo peri-
férico dos excluídos composto por ex-escravos, lavadeiras, trabalhadores
informais, desempregados e mendigos.
Diante do movimento cultural contraditório vigente da Belle Époque,
já que não cinde antigo e moderno, mas realiza uma confluência perversa
desses dois elementos, o autor reconhece que sua narrativa não poderia se-
guir os mesmos recursos, estratégias e princípios, por exemplo, de escritores
como Balzac, Flaubert ou Stendhal. Embora considere importante a ideia de
formação como leitor da tradição, nela apoia-se para encontrar uma forma
própria, com elementos coerentes aos movimentos externos, especialmente
considerando os contornos excêntricos da modernidade. Nesse sentido, é
interessante observar que no espaço de representação da narrativa, o escri-
tor estabeleceu uma combinação simultânea de gêneros e estilos para buscar
“nas mais variadas experiências literárias os padrões de que comporia sua
arte, dosando-os com criatividade” (SEVCENKO, 1983, p. 164).
Em seu artigo Amplius!, publicado em 1916, ele justifica, por exemplo, o
processo de experimentação de gêneros literários como forma de captar os
sofrimentos humanos a fim de atingir os mais diversos tipos de leitores:
239
o nosso dever de escritores sinceros e honestos é deixar de lado todas as velhas regras,
toda a disciplina exterior dos gêneros e aproveitar de cada um deles o que puder e
procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças, su-
gerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes a altas
emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a huma-
nidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas individuais e
do que elas têm de comum e dependente entre si (BARRETO, 2011, p.58).
tingir de tons uniformes uma realidade multifacetada e criativa; tão criativa que des-
piu a fantasia de ordem e progresso que, com violência, lhe fora imposta e o projeto
histórico arquitetado pelos intelectuais diluiu-se no movediço e assimétrico corpo
social. (FIGUEIREDO, 1997, p. 372)
Todos nós que escrevemos, que queremos realizar uma obra intelectual, seja ela qual
for, sofremos muito quando exercemos uma atividade normal na sociedade. [...]
Não te julgues a única vítima dos duros tempos que atravessamos. O nosso destino
é sofrer nesta ou naquela profissão. O nosso temperamento e o feitio da nossa ati-
vidade intelectual estão sempre em conflito com a sociedade. [...] A insatisfação é a
nossa lei, ainda se fôssemos grandes! (BARRETO, 1956, p.201-202)
Não nego que para isso tenha procurado modelos e normas. Procurei-os, confesso;
e, agora mesmo ao alcance das mãos tenho os autores que mais amo. Estão ali “O
242
crime e castigo”, de Dostoiévski, um volume dos contos de Voltaire, “A guerra e a
paz”, de Tolstói [...] sob minhas vistas tenho o Taine, o Bouglé, o Ribot e outros
autores de literatura propriamente, ou não. Confesso que os leio, que os estudo,
que procuro nos grandes romancistas o segredo de fazer (BARRETO, 1917, p.81).
Apesar da diferença entre os estilos dos autores citados, Lima Barreto ab-
sorveu pontos em comum como o caráter crítico, desmascarador e compas-
sivo presente nos textos lidos. Em vários outros escritos, como as reminis-
cências pessoais contidas nos artigos, Lima Barreto remete-se com gratidão
a alguns dos escritores citados, pois, segundo ele, lhe deram a sabedoria de
conhecer a si mesmo e com isso entender melhor suas emoções e pensamen-
tos conturbados. Com base nas referências teóricas e literárias, podemos ve-
rificar elementos ideológicos que fizeram parte da sua formação e amadure-
cimento como escritor e intelectual, encontrando nelas um direcionamento
para sua atividade literária.
Em sua conferência, o autor enfatiza o caráter social e o valor universal da
arte, reiterando a sua importância de estar a serviço da humanidade. Para
ele, compete à literatura pregar “o ideal de fraternidade e de justiça entre os
homens e um sincero entendimento entre eles”, e nisso reside, segundo o
romancista, o teor da militância literária, na função de “revelar umas almas
às outras, de restabelecer entre elas uma ligação necessária ao mútuo enten-
dimento dos homens” (BARRETO, 1998, p. 391).
De acordo com o escritor, o destino da literatura não está unicamente em
deleitar-se com o belo, tendo como padrão a beleza plástica grega. A crítica
se volta para a veneração à Grécia exibida pelos seus pares, já que sua posição
se direciona contra a ideia de que a literatura deva ser entretenimento, cheia
de pompas e desligada da realidade circundante, ou seja, uma literatura ar-
tificial. A arte literária possui um papel muito mais diverso e amplo, já que
tem o poder de nos fazer reconhecer e compreender a natureza humana em
si, instaurando, dessa forma, o sentimento de solidariedade:
Mais do que nenhuma outra arte, mais fortemente possuindo essa capacidade de
sugerir em nós o sentimento que agitou o autor ou que ele simplesmente descreve, a
arte literária se apresenta com um verdadeiro poder de contágio que a faz facilmente
passar de simples capricho individual, para traço de união, em força de ligação en-
tre os homens, sendo capaz, portanto, de concorrer para o estabelecimento de uma
harmonia entre eles, orientada para um ideal imenso em que se soldem as almas,
aparentemente mais diferentes, reveladas, porém, por ela, como semelhantes no so-
frimento de serem humanos (BARRETO, 1998, p. 391)
243
Influenciado pela concepção de Tolstoi sobre arte, Lima Barreto entendia
que a missão da arte é se tornar um grande instrumento de comunicação
e ligação entre os homens. Nesse sentido, quanto mais pudéssemos com-
preender o outro, por meio da capacidade que arte tem de se comunicar ao
representar e transmitir sentimentos e ideias, de forma diversa, mais haveria
uma compreensão mútua que acarretaria numa maior ligação entre os ho-
mens e consequentemente sua união.
Movido pelo caráter social da arte, o escritor entendia que para comunicar
suas ideias e compartilhá-las com a humanidade, era fundamental ter inteli-
gência necessária e clareza de pensamento para expressar suas concepções sobre
a sociedade, por meio de uma linguagem acessível, com intuito que as pessoas
em geral tenham acesso ao seu discurso e possam assimilá-lo. Nesse ponto,
R.J. Oakley aponta para dois aspectos ligados à concepção de arte barretiana:
pregar, seja como for, o ideal da fraternidade e justiça entre os homens e um sincero
entendimento entre eles. E o destino da literatura é tornar sensível, assimilável, vul-
gar esse grande ideal de poucos a todos, para que ele cumpra ainda uma vez mais a
sua missão quase divina (BARRETO, 1998, p.110).
244
O escritor dedicou-se ir além das injunções particulares e cotidianas para
adentrar nas decisões sobre o destino da humanidade. Pode-se dizer, en-
tão, que a arte, para ele, era um instrumento eficaz na sociedade, “sendo
um canal de comunicação entre os homens, é ao mesmo tempo um veículo
de valores éticos superiores e condicionadora de comportamentos” (SEV-
CENKO, 1983, p.168). Para isso, a literatura foi utilizada como forma de
conhecimento cujo alicerce se encontra na observação direta da realidade
que o circundava.
Portanto, tendo em vista a concepção de Lima Barreto sobre a finalidade
da literatura e sua capacidade de ainda intervir na realidade, observamos a
atuação do intelectual militante no contexto da Belle Époque que planeja
suas obras a fim de quebrar resistências a ideias feitas e a preconceitos incor-
porados pela sociedade. O escritor fez de sua militância, tendo a literatura
como sua principal ferramenta, sua profissão de fé, por cujo ideal sofreu,
lutou e morreu.
Referência Bibliográfica
BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. 2ª ed. Rio de
Janeiro: A. de Azevedo & Costa Editores, 1917.
_______. Triste fim de Policarpo Quaresma. Org. Antonio Houaiss e Carmem Lúcia Negreiros
de Figueiredo. São Paulo: Allca XX, 1997.
_______. “O destino da literatura”. In:_____. Um longo sonho do futuro: diários, cartas, entre-
vistas e confissões dispersas. 2. ed. Rio de Janeiro: Graphia, 1998.
_______. Correspondência, ativa e passiva. Tomos I e II. São Paulo: Brasiliense, 1956.
_______. “Amplius”. In:_____. Contos completos de Lima Barreto. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011, p. 15-53.
FIGUEIREDO, Carmem Lúcia Negreiros de. “Cotidiano de ficção: escrita de vida e morte”.
In: HOUAISS, Antonio; FIGUEIREDO, Carmem Lúcia Negreiros de (org.). Triste fim de Poli-
carpo Quaresma. São Paulo: Allca XX, 1997, p. 275-285.
OAKLEY, R.J. Lima Barreto e o destino da literatura. São Paulo: Unesp, 2011.
SANTUCCI. Jane. Cidade rebelde: as revoltas no Rio de Janeiro no início do século XIX. Rio de
janeiro: Casa das letras, 2008.
245
SEVCENKO, Nicolau. Lima Barreto e a “República dos Bruzundangas”. In: _____. Literatura
como missão. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 161-194.
_____. “Lima Barreto, a consciência sob assédio”. In: HOUAISS, Antonio; FIGUEIREDO,
Carmem Lúcia Negreiros de (org.). Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Allca XX, 1997,
p.318- 350.
246
UTILIZANDO A MÚSICA UPTOWN FUNK NO ENSINO DE
LÍNGUA INGLESA: UMA ABORDAGEM INTERCULTURAL
Introdução
É do saber popular que a música faz parte do ensino de línguas. Letras de
Caetano Veloso, Renato Russo, Chico Buarque e Nando Reis, por exemplo,
aparecem tanto em materiais didáticos de Língua Portuguesa que circulam
pelo país como em exames de vestibular. Da mesma forma, Michael Jackson
e Beatles se apresentam nas salas de aula de Língua Inglesa. Confia-se, portan-
to, em aspectos como o poético, o metafórico, o motivacional e, sobretudo o
de difusora de opiniões apresentado pelas músicas. A música pode, portanto,
ser utilizada como meio para ampliar o conhecimento para questões que vão
além de tópicos linguísticos, especialmente considerando-se que, no ensino de
inglês como língua estrangeira, seu uso é uma prática amplamente difundida
entre professores do idioma, geralmente como atividades extras, buscando la-
pidar a habilidade auditiva e ampliar o vocabulário dos alunos de forma lúdica.
Com o advento da globalização, pessoas oriundas de diferentes culturas pas-
saram a interagir entre si, e a Língua Inglesa acabou se tornando o principal
meio de comunicação nesse cenário, unindo falantes não nativos de diferen-
tes nacionalidades. Sendo assim, para que essa comunicação se dê de forma
56
Discente do curso de Mestrado em Linguística pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
247
efetiva, não basta apenas que as pessoas aprendam a falar em inglês, mas que
compreendam como e com quem falam utilizando o idioma. Para tanto, faz-se
necessário o desenvolvimento da competência intercultural dos indivíduos.
Ser competente pela perspectiva intercultural não se caracteriza somente por
saber se comunicar adequadamente com pessoas de outros países – indivíduos
precisam aprender a se relacionar com pessoas de outros grupos, inseridos em
distintas culturas. Essa diferença pode ser encontrada, por exemplo, dentro de
uma única empresa: o departamento financeiro vive em consonância com um
conjunto de regras, normas e linguagens próprios, ao passo que o departamen-
to jurídico tem seu próprio conjunto, enquanto a TI e o setor de vendas têm
os seus. Todos esses setores e departamentos precisam conviver e se comunicar
da forma mais efetiva possível, consequentemente, fazendo-se necessário o de-
senvolvimento da competência intercultural dos indivíduos.
Podemos também afirmar que pelo contexto de polarização sócio-política
no qual o Brasil está inserido atualmente, pode-se constatar que a intolerância
vem atingindo níveis alarmantes. Nesse sentido, a diversidade cultural precisa
ser defendida e preservada e isso está diretamente ligado ao desenvolvimento
de empatia nas pessoas.
A proposta do presente trabalho é demonstrar como podemos desenvolver
competência intercultural de forma leve e divertida, por meio de uma ativida-
de produzida e aplicada em grupos de alunos adultos, de nível intermediário
a avançado, aprendendo inglês como língua estrangeira, utilizando a letra da
música Uptown Funk.
Uptown Funk
A atividade foi desenvolvida a partir da música Uptown Funk, lançada em
2014 pelo produtor Mark Ronson em parceria com o cantor Bruno Mars. A
música citada foi selecionada por, além do ritmo dançante, apresentar várias re-
ferências culturais dos EUA e tópicos linguísticos como contrações informais.
• Preencha as lacunas:
“(…)
I’m too hot (hot damn)
Call the _________ and a fireman
I’m too hot (hot damn)
Make a dragon wanna _________, man
I’m too hot (hot damn)
Say my _______, you know who I am
I’m too hot (hot damn)
And my band ‘bout that ___________
Break it down
(…)”
Análise e Resultados
Conforme a atividade aqui desenvolvida foi apresentada e explicitada,
pudemos observar que a mesmas parece apresentar-se alinhada aos cinco
componentes propostos para o desenvolvimento para a competência comu-
nicativa intercultural por Byram, Gribkova e Starkey (2002: 12-13): atitudes
interculturais, conhecimentos, habilidades de interpretação e de relação, ha-
bilidades de descoberta e de interação e consciência crítica cultural.
A partir de uma check list contrastando esses cinco componentes e as eta-
pas da atividade, analisaremos cada componente pertinente para o desen-
volvimento da competência comunicativa intercultural, indicando em qual
parte das atividades determinado componente foi contemplado.
Atitudes interculturais
O primeiro item da check list pode ser encontrado no primeiro passo da
atividade, pois ele suscita nos aprendizes a curiosidade e a abertura para ou-
tras culturas quando questionamos sobre as regiões Downtown e Uptown
e sobre como tal divisão territorial é estabelecida.
Conhecimentos
Na atividade, o segundo item da check list é abordado no segundo passo,
quando buscamos estabelecer uma conexão entre os conhecimentos prévios
dos estudantes sobre aspectos culturais, como a arquitetura da vizinhança,
e o conteúdo do vídeo. Este item também está presente no quarto passo da
mesma atividade, quando exploramos as referências culturais contidas na
letra de Uptown Funk, como, por exemplo, a bebida Fresh Dry Skippy.
• Primeiro Passo, quando explicamos as divisões espaciais nos centros urbanos nos EUA;
• Segundo Passo, quando solicitamos que os alunos elaborem sobre seu conheci-
mento a respeito do tema;
• Quarto Passo, quando discutimos as referências culturais presentes na letra da música;
• Sexto Passo, quando provocamos a reflexão e a discussão sobre as semelhanças e
diferenças entre as divisões territoriais de Manhattan e as do Rio de Janeiro.
Resultados
Este trabalho teve como objetivo principal verificar se atividades desenvol-
vidas como material extra para o ensino de inglês em uma escola de idiomas,
apesar de não terem sido elaboradas à luz de nenhuma teoria metodológica,
poderiam encontrar-se alinhadas a métodos de ensino já estabelecidos te-
255
oreticamente. Levando-se em consideração as propostas comunicativas do
curso em questão, foram pesquisados diversos métodos de ensino que sub-
jazem a essa teoria. Dessa forma, foi feito um estudo comparativo com os
pré-requisitos para a teoria que nos pareceu melhor se associar às atividades.
Como resultado da análise da pesquisa, podemos afirmar que as ativida-
des com letras de música propostas se alinham à abordagem comunicativa
intercultural, pois apresentam todos os componentes necessários para o de-
senvolvimento da competência comunicativa intercultural. A tabela abaixo
resume a análise produzida neste trabalho:
Considerações Finais
A análise apresentada neste trabalho demonstrou que as atividades me-
lhor se adequam à abordagem comunicativa intercultural, tendo em vista
que estão em conformidade com todos os cinco componentes necessários
para o desenvolvimento da competência comunicativa intercultural. Toda-
via, isso não significa que as mesmas atividades não apresentem característi-
cas de outros métodos de ensino de língua estrangeira.
Por outro lado, vale ressaltar que nossa proposta não se trata de um pós-
-método, no qual os métodos podem se fundir para melhor atingir as neces-
sidades dos alunos, mas trata-se de uma atividade que foca no conhecimento
intercultural. Dessa forma, esperamos justificar nossa escolha metodológica
em não incluir os requisitos dos outros métodos em nossa check list.
É importante salientar que a atividade foi desenvolvida e aplicada inde-
pendente de teoria ou método. Embora sua receptividade não faça parte do
escopo desta pesquisa, pudemos observar que os alunos conseguiram com-
preender que no mundo há distintas culturas e que elas não se atêm a nacio-
nalidades e que, sendo assim, a diversidade cultural existe e deve ser respeita-
da. É preciso observar também que, como pesquisador, ter uma teoria que
confira respaldo às atividades desenvolvidas mostra que o professor que está
em consonância com a movimentação acadêmica, acaba, ainda que instin-
tivamente, levando em consideração os conhecimentos teóricos adquiridos.
Além, disso, a resposta dos alunos comprova que a abordagem comunicati-
va intercultural pode contribuir para a formação linguística do aluno, uma
vez que o capacita a discutir a cultura do outro e, sobretudo, a sua cultura
na língua do outro, possibilitando também compartilhar criticamente seu
conhecimento regional e ampliar seu conhecimento de mundo. Métodos
257
como esse, associados a fontes motivacionais como músicas, dão voz ao
aprendiz para expressar assuntos do seu próprio interesse e de acordo com
o andamento do mundo, considerando mudanças e variações linguísticas.
Referências Bibliográficas
BÉRTOLI, P. Convergência lexical entre letras de música e inglês geral: um estudo baseado em
corpus. In Letras & Letras v. 30, n2. 2014.
OLIVEIRA, L. A. Métodos de ensino de inglês: teorias, práticas, ideologias. São Paulo: Parábola, 2014.
POTTER, L. E.;LEDERMAN, L. Atividades com música para o ensino de inglês. Barueri: Di-
sal. 2013
WERNER, V. Love is all around: a corpus-based study of pop lyrics. In Corpora 2012 Vol. 7. n 1. 2012.
258
TRÂNSITO, TERRITÓRIO E FALA: SOBRE CORPOS E POESIA
Localizado na Maré, bairro da zona norte da cidade do Rio de Janeiro e cujo nome oficial é Parque Ambiental da Praia de Ramos Carlos de
68
Oliveira Dicró, em homenagem ao já falecido cantor Dicró, conhecido também por cantar a canção “Praia de Ramos”.
262
A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
Ou pra Benguela, ou pra Guiné
É como se o poema abrisse um livro para cada uma das histórias que são
romantizadas sobre a pobreza e construídas sobre quem “venceu na vida”,
cenário distante da realidade de quem trabalha como vendedor ambulante
que é parado pela polícia quando chega mais tarde em casa “Porque tem cara
de ladrão”, suspeito, assim, de estar com drogas na mochila ou, como acres-
centa a poeta, uma reação de quem enxerga um futuro diferente do que lhes
é imposto, tendo então nessa mochila “Um lápis, um caderno com versos,
um coleta à prova de balas e uma armadura / Pra se proteger de tanta luta”.
Os outros obstáculos desenhados nesse poema incluem o ter que se es-
conder das balas achadas e perdidas, ordenadas por “Ladrão, polícia, milí-
cia”, que atingiram o amigo “Dado como bandido enquanto fazia mais um
bico para ajudar a família”. E isso pode acontecer com qualquer pessoa que
more na periferia, que nunca fica na memória coletiva e compõe histórias
que se repetem a cada verso, abafadas como qualquer outro grito nascido no
lado mais frágil da cidade. (SALLES e LUDEMIR, 2017, p. 217).
O texto “A reivindicação da não violência”, que compõe o livro Quadros
de guerra, (BUTLER, 2018a, p. 233) nos ajudam a elucidar a discussão aqui
proposta ao ser possível percebermos as escritas literárias como uma possível
forma para reivindicar espaços tomados pelas violências contra o trânsito
pelo viver. Para Butler, esse gesto carece de sua negação como um “fato so-
cial normal”, aproximando-as então, de algo presente em nossa formação.
No último poema apresentado neste trabalho, essa formação é iniciada
264
pela infância, cujo fundo sonoro é o “PAPUM, o barulho do pipoco” de
alguém que daqui a pouco morre “e vira estatística para ser mostrada pro
povo”. O poema “Olho pelos seus olhos”, de Beatriz Souza (SALLES e LU-
DEMIR, 2017, p. 229), conjuga o espaço também apresentado pelos demais
poemas, mas a partir de apenas dois sentidos, o olhar e o ouvir.
E da infância seguem as violências que formam o sujeito que se apresenta
no poema: “Me empresta o lápis cor da pele? / O da cor da minha pele”; o
escutar a briga dos vizinhos; o ser visto nas lojas de roupas das madames que
sentem medo de um outro que “só estava admirando a blusinha e se per-
guntando o / porquê de o segurança já estar atrás de você”. Os batimentos
acelerados de uma moça que sobe no ônibus são ouvidos e associados aos
barulhos das “correntes do passado que trazem o racismo como tradição”,
ao final do poema sabemos o que era aquele PAPUM:
Referência Bibliográfica
BUTLER, Judith. relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Tradução de Rogério Bettoni. 1.
ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
________. A reivindicação da não violência. In: Quadros de guerra: quando a vida é passível de
luto? Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 4. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2018a. p. 233 - 259
________. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de as-
sembleia. Tradução de Fernanda Siqueira Miguens. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2018b.
COUTO, Mia. Línguas que não sabemos que sabíamos. In: E se Obama fosse africano?: e outras
intervenções. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 11 - 24.
HOLLANDA, Chico Buarque. As Caravanas. In: Caravanas. [CD] Rio de Janeiro: Biscoito
Fino, 2017. CD.
SALLES, Ecio; LUDEMIR, Julio. (Org.). Seis temas à procura de um poema. 1. ed. Rio de Ja-
neiro: Mórula, 2017.
SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart
Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
REIS, Luís; BARBOSA, Haroldo. Notícia de jornal. In: Chico Buarque e Maria Bethânia ao
vivo. [CD]. São Paulo: Philips/Polygram, 1975.
Sonja H. Voitovitch
UERJ - SME-RJ
Introdução
Este artigo tem como objetivo apresentar uma pesquisa sobre o fenômeno
chamado de empréstimo lexical. O estudo enfoca a inserção de uma expressão
inglesa na língua portuguesa em uso e suas possíveis transformações ao longo
de um tempo. O foco da pesquisa é a expressão fake news em textos veiculados
em mídias digitais brasileiras no período entre 2016 e 2018. Este estudo está
no âmbito da Linguística Aplicada aos Estudos Lexicais, focando mais espe-
cificamente nos empréstimos linguísticos. Utiliza-se a Linguística de Corpus
como metodologia para a extração e análise da expressão e seus ‘colocados’ vis-
to que a Linguística de Corpus pode investigar a linguagem em uso de forma
sistemática e abrangente
Justificativa
Ao longo dos dois últimos anos, nota-se um aumento considerável no uso
da expressão inglesa fake news em diversos meios de comunicação. Há pales-
tras sobre como combater a propagação das famosas fake news em escolas e
universidades71, workshops72 e cursos online73 ensinando como identificá-las.
71
http://www.tre-sp.jus.br/imprensa/noticias-tre-sp/2018/Junho/ministro-do-tse-faz-palestra-sobre-fake-news-para-alunos-do-curso-de-espe-
cializacao-em-direito-eleitoral
72
https://www.espm.br/educacao_continuada/fake-news-como-desmontar-fraudes-nas-redes/
73
https://vazafalsiane.com/
268
Há, ainda, estudos na área de Psicologia (Tsipursky & Votta, 2018) sobre o
tema, focando nas necessidades humanas de espalhar notícias inverídicas. Por
outro lado, área de Tecnologia (Fletcher et al., 2018) estuda os algoritmos de
propagação das mesmas notícias.
Na área da Linguística Aplicada na interface do inglês e da língua por-
tuguesa, não há, até a presente data, evidência de estudos formais sobre o
assunto. Considera-se, portanto, que a adoção da expressão inglesa em tela
pela língua portuguesa em um passado recente, e as diversas formas que a
expressão assume no português constituem um tema atual e pertinente para
um estudo linguístico de cunho lexical. Dessa forma, as intercorrências do
uso do termo fake news e sua ‘viralização’ despertam interesse investigativo,
no âmbito linguístico.
Notícias falsas e boatos sempre existiram. Entretanto, o termo fake news
ganhou destaque ao ser amplamente utilizado por um dos candidatos à elei-
ção presidencial americana em 2016 para designar as críticas que a mídia
veiculava sobre sua pessoa. No mesmo ano, o uso do termo também foi
intensificado ao se circularem notícias falsas, que afetaram o resultado do
referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia. Em 2017, a po-
pularização do termo foi tamanha que atingiu status de “a palavra do ano”
pela editora britânica Collins74, ganhando inclusão em seus dicionários.
Durante as eleições de 2018 no Brasil, o uso da expressão fake news atingiu
um pico considerável do mesmo modo que a produção e circulação de notí-
cias falsas tornaram-se rotineiras em mídias digitais. Um conhecido conglome-
rado de telecomunicações lançou uma seção chamada “Fato ou Fake”75, que se
propôs a checar conteúdos suspeitos, através de seus veículos de informações.
O que seriam fake news? De acordo com o dicionário Collins (op. cit),
fake news significa “informações falsas e/ou notícias sensacionalistas apre-
sentadas e publicadas como fato que se espalham pela internet”. Apesar de
as estratégias de desinformação e as publicações de notícias falsas não serem
algo recente, a digitalização das notícias e sua ampla divulgação através da
internet mudou a tradicional definição do que seriam notícias.
Aparentemente, a resposta à questão ‘o que seriam fake news?’ ainda não
foi respondida visto que as fake news vêm sendo estudadas em diversas áreas
como Direito (Watson, 2018) e Comunicação (Tandoc Jr. et al, 2018). Já
no campo linguístico, um estudo como este, sobre o uso do termo em tela,
faz-se pertinente uma vez que a expressão inglesa e o seu uso em português
74
HarperCollins Publishers LLC é uma das maiores editoras do mundo, estando no chamado “Big Five”, grupo das cinco maiores editoras de
língua inglesa. Sediada em Nova Iorque, a companhia é subsidiária da News Corp. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-41843695
75
https://oglobo.globo.com/fato-ou-fake/o-globo-lanca-fato-ou-fake-para-checagem-de-conteudo-suspeito-22930724
269
não são devidamente explorados em razão de a área só ter averiguado, até o
momento, estratégias em como detectar as notícias falsas (Jankowski, 2018).
Problematização
O objetivo geral desta pesquisa é investigar variações léxico-gramaticais
da expressão em língua inglesa fake news em textos midiáticos brasileiros,
durante um período de 2 anos, através dos preceitos e metodologia da Lin-
guística de Corpus, tendo como guia o conceito de “empréstimo linguísti-
co”. Para tal, e considerando um corpus de língua portuguesa, têm-se como
objetivo responder às seguintes perguntas:
4. Qual a frequência de uso da expressão fake news entre os anos de 2016 até 2018?
5. Quais palavras estão associadas a fake news no seu entorno?
6. É possível identificar alguma variação no sentido da expressão através de um estu-
do dos colocados da expressão?
Arcabouço teórico
Esta seção começa com um aprofundamento teórico sobre os conceitos
de estrangeirismo e de empréstimo lexical, necessários uma vez que a pes-
quisa analisa uma expressão em língua inglesa utilizada no português. Ainda
nesta parte, uma ampliação da definição da expressão fake news é estudada
para melhor responder aos questionamentos iniciais.
Já Matras (2009, pp. 134) acrescenta que no inventário dos itens que uma
língua toma emprestado da outra, os substantivos ocupam posição de desta-
que, porque são palavras de conteúdo, representando o inventário mais di-
ferenciado de rótulos para conceitos, práticas, artefatos, produtos e agentes.
Atualmente, com o avanço do uso das mídias digitais, os estrangeirismos,
especialmente os substantivos, fazem parte da comunicação rotineira dos
brasileiros. As pessoas fazem meetings para darem feedback a respeito do bu-
dget; freelancers aceitam jobs por preços mais acessíveis; mamães fazem en-
saios newborn; e milhares de brasileiros utilizam a #tbt76 sem ao menos terem
noção do significado da expressão na língua de origem.
Quando uma sociedade faz uso de estrangeirismos os adaptando ao idio-
ma, isto é denominado empréstimo linguístico. O empréstimo de elemen-
tos estrangeiros é um fenômeno que atinge praticamente todas as línguas.
No português, Alves (1988, p. 2) aponta exemplos de palavras que diversas
pessoas desacreditariam descender de origem estrangeira, como é o caso de
linhagem (francês), guerrilha (espanhol), entre outras. No entanto, ao de-
talhar o fenômeno do empréstimo linguístico, é significativo salientar que,
de acordo com Bloomfield (1933 apud Carvalho, 2009, p.47) “deve ficar
bem clara a distinção entre empréstimo e estrangeirismo (...) o empréstimo
é o estrangeirismo adaptado de várias formas”. Por exemplo, temos a palavra
fetish que veio da palavra feitiço (português).
O estrangeirismo caracteriza-se, então, como termo ou expressão sentidos
como estranhos à língua portuguesa. E, somente poderá se tornar emprésti-
mo quando não for mais considerado incomum ao sistema linguístico ainda
que preserve a grafia de sua língua originária O estudo empírico da expressão
76
A expressão throwback thursday e o uso da #tbt é uma tendência de publicação entre os usuários de redes sociais como Instagram e Facebook. A
proposta da hashtag é publicar fotos antigas às quintas-feiras, sendo imagens que remetem a sentimentos nostálgicos e de saudades.
271
inglesa fake news com base nos conceitos apontados acima, possibilita ana-
lisar um estágio de aquisição de um empréstimo, verificando seu emprego
em textos midiáticos em português e as teorias apontadas nesta seção. No
entanto, uma detalhada definição do termo estrangeiro faz-se necessária, tal
definição será apontada adiante.
Fake news
Como visto na seção introdutória do presente estudo, a expressão fake news
foi considerada em 2017 pela editora Collins (op. cit) como a palavra do ano
por conta do intenso uso no ano de 2016. Entretanto, para caracterizar o que
são fake news, faz-se necessário a explanação do que são news, ou melhor, as
notícias. Em termos gerais, subentende-se que as notícias são consideradas
um formato de divulgação de um acontecimento por meios jornalísticos, que
têm o intuito de fornecer informações precisas e confiáveis à população. As
notícias são a matéria-prima do jornalismo, normalmente reconhecidas como
eventos relevantes que merecem publicação em uma mídia.
De acordo com Alsina (2009, p.185), “a notícia é uma representação so-
cial da realidade cotidiana produzida institucionalmente e que se manifesta
na construção de um mundo possível.” Podemos observar outras definições
de notícia em Erbolato (1979, p. 49), o qual constata que
Notícia é o relato de um fato recentemente ocorrido, que interessa aos leitores. – No-
tícia é o relato de um acontecimento publicado por um jornal, com a esperança de,
divulgando-o, obter proveito. – Notícia é tudo quanto os leitores querem conhecer
sobre um fato. – Qualquer coisa que muitas pessoas queiram ler é notícia, sempre que
seja apresentada dentro dos cânones do bom gosto e das leis da imprensa.
Quando o autor explana acima que [a notícia deve ser] “apresentada den-
tro (...) das leis da imprensa” compreende-se que tais leis percorrem os cam-
pos da verdade e ética. Porém, o que se observa na mídia e, principalmente,
nas redes sociais é um aumento significativo de notícias falsas.
A notícia pode ser falsa por conta de um erro ou falha em sua construção,
sendo assim, produzida em caráter acidental. Contudo, fake news não são
resultado de erros ou falhas, são cirurgicamente planejadas com o intuito
de confundir, enganar ou manipular o usuário. Para Gelfert (2018, p. 108),
fake news são a apresentação deliberada de alegações (tipicamente) falsas ou
enganosas em formato de notícias (MINHA TRADUÇÃO)77, nas quais
77
Fake news is the deliberate presentation of (typically) false or misleading claims as news, where the claims are misleading by design.
272
tais alegações são projetadas com o intuito de enganar, corromper, induzir
ao erro, ludibriar, iludir ou mistificar o usuário.
Apesar de as fake news não serem algo recente, visto que a propagação
de desinformação e boatos sempre existiu no meio jornalístico. Fake news,
portanto, não quer dizer informação falsa, mas desinformação ou boato vei-
culados em plataformas digitais, o que faz com que se espalhem com rapi-
dez. Além disso, de acordo com Allcott & Gentskow (2017, p. 212) fake
news “... são como sinais distorcidos não correlacionados com a verdade (...)
tornando mais difícil para os leitores inferirem a verdadeira situação de seu
mundo.” (MINHA TRADUÇÃO)78.
O presente estudo tem natureza empírica, lida com dados reais e faz
uma análise da expressão utilizando um corpus de textos verdadeiros
para extração e análise do termo e melhor compreensão das variações
de suas co-ocorrências. Trabalhar com um corpus compilado para um
estudo e usar um programa concordanciador são tópicos discutidos na
próxima seção.
Metodologia
A presente pesquisa possui caráter empírico e probabilístico uma vez que
é desenvolvida a partir da Linguística de Corpus, que é fundamentada na
análise de dados linguísticos autênticos, processados por um computador.
A metodologia possibilita que se trabalhe com uma larga escala de informa-
ções ou textos digitalizados e, através de ferramentas apropriadas, é possível
extrair-se padrões, ocorrências e frequências do termo pesquisado. Após a
coleta de dados no corpus, estes são interpretados pelo linguista. No caso
desta monografia, analisamos as ocorrências da expressão inglesa fake news,
empréstimo lexical à língua portuguesa no âmbito digital, e possíveis coloca-
dos com base nos resultados apresentados pela ferramenta.
78
We conceptualize fake news as distorted signals uncorrelated with the truth. (…)—for example, by making it more difficult for voters to infer
the true state of the world
273
Linguística de Corpus
A Linguística de Corpus faz uso de uma abordagem empirista, distinta da
abordagem racionalista, do ponto de vista linguístico, e tem como foco cen-
tral a noção de linguagem enquanto sistema probabilístico. Berber Sardinha
(2004, p.30) explica que essa característica da linguagem permite ao analista
examinar amostras da língua em uso, não sendo preciso examinar todas as
instâncias de um mesmo fenômeno para se ter ideia de sua distribuição e
escopo dentro da língua.
Berber Sardinha (op.cit.) explica ainda que um dos preceitos da Linguísti-
ca de Corpus é ocupar-se da coleta e da exploração de corpora, ou conjuntos
de dados linguísticos textuais coletados criteriosamente, com o propósito de
servirem para a pesquisa de uma língua ou variedade linguística. O corpus
deve ser constituído de dados autênticos, legíveis por computador e repre-
sentativos de uma língua ou variedade da língua a qual se deseja estudar.
A Linguística de Corpus está estreitamente ligada ao uso de programas
computacionais, visto que os corpora usados na análise são dados digitais
ou digitalizados. Logo, o computador desempenha um papel crucial para
os estudos na área. As ferramentas computacionais são geralmente utiliza-
das para compilação, organização e extração de informações no corpus e para
observação e interpretação de dados, fornecendo novas perspectivas para
a análise linguística. Tais ferramentas permitem apresentar resultados lin-
guísticos de pesquisa na forma de linhas de concordância, que consistem no
item léxico-gramatical buscado aparecendo no centro de cada linha, inserida
em seu contexto, que pode ser exposto em diversos tamanhos.
Os dados que aparecem nas linhas de concordância possibilitam que o
analista observe se há padrões de uso, ou seja, se há preferência por determi-
nadas construções. O analista também pode ver a posição que a expressão
ocupa na oração em termos gramaticais. Em outras palavras, ao descobrir
padrões lexicais, pode-se também olhar padrões gramaticais. A aplicação dos
preceitos e métodos da Linguística de Corpus no presente trabalho é essen-
cial para a investigação da expressão em inglês fake news nos textos midiáti-
cos selecionados em português.
Corpus da Análise
Visando responder às perguntas da pesquisa elencadas na introdução so-
bre o uso da expressão em língua inglesa fake news utiliza-se um corpus com-
274
posto por textos veiculados em mídias digitais brasileiras entre os anos de
2016 e 2018.
O ano de 2016 foi selecionado como marco inicial da análise visto que
diversos meios de comunicação brasileiros fizeram uso da expressão durante
a eleição presidencial nos Estados Unidos e, também, durante o referendo
sobre o Brexit no Reino Unido.
A inclusão do ano de 2018 é justificada porque no Brasil, pois tal ano
foi caracterizado pelas eleições presidenciais e pela propagação do uso da
expressão inglesa fake news nas mídias brasileiras. Assim sendo, a pesquisa
considera este ano relevante para a representação da linha final para a coleta
dos dados.
A origem, filtragem e extração do corpus foram feitas a partir de O corpus
do português79 a ser detalhado mais adiante. O uso dos filtros de pesqui-
sa desse corpus possibilitou que a pesquisa englobasse o período temporal
selecionado, se restringisse aos textos em português do Brasil e garantisse
que as ocorrências da expressão fossem visualizadas, bem como sua origem.
Quanto à ferramenta de tratamento dos dados após extraídos de O corpus
do português, utilizou-se a ferramenta Wordsmith 6.080.
O corpus do português
Com o intuito de realizar a pesquisa do termo, um banco de dados acopla-
do a uma ferramenta de busca fez-se necessário para a busca e filtragem dos
dados, ou corpus. Neste trabalho, uma das ferramentas utilizadas é o site O
corpus do português.
Os corpora que fazem parte de O corpus do português possuem vários
sub-corpora contendo pelo menos 1.1 bilhão de palavras, extraídas de textos
em português europeu e brasileiro. No entanto, a presente pesquisa utiliza
as ocorrências da expressão fake news entre os anos de 2016 e 2018 em mí-
dias brasileiras uma vez que o dispositivo possui filtros que possibilitam o
corte temporal e geográfico de uso da expressão. Pode-se também procurar
por associações de palavras dentro de uma distância de até dez palavras. O
recurso também permite que se compare a frequência e a distribuição de
palavras, frases e construções gramaticais entre textos.
A interface do corpus do português é semelhante às interfaces fornecidas
pelos mecanismos de pesquisa padrão. Ao inserir uma palavra ou frase, po-
79
Corpus de textos em português, compilado e mantido pelos pesquisadores Mark Davies e Michael J. Ferreira, com suporte financeiro prove-
niente do U.S.National Endowment for the Humanities, escolhida por conter um grande número de publicações. https://www.corpusdopor-
tugues.org/
80
O programa foi desenvolvido pelo linguista britânico Mike Scott na Universidade de Liverpool e lançado como versão 1.0 em 1996. Sua versão
6.0 pode ser baixada gratuitamente a partir de https://lexically.net/wordsmith/version6/index.html
275
de-se escolher opções nos menus fornecidos e, em seguida, buscar as ocor-
rências digitadas no campo de busca.
O subcorpus usado nesta pesquisa foi criado a partir de um filtro deno-
minado NOW81 (2012 – até o mês passado). Tal filtro restringe a pesquisa
de palavras em ocorrências linguísticas iniciadas a partir no ano de 2012 até
o presente momento, possibilitando assim, uma análise atual e genuína da
língua pesquisada.
Wordsmith 6.0
A fim de que a análise fosse feita de maneira efetiva, um conjunto de
programas foi usado para auxiliar no tratamento dos dados. Tal software
é denominado Wordsmith 6.0 e consiste em um pacote de ferramentas de-
senvolvido principalmente para linguistas, em particular para o trabalho no
campo da linguística de corpus. O programa é composto por uma coleção de
módulos que são utilizados para pesquisar padrões em um idioma. Os prin-
cipais programas do software incluem três módulos: WordList, Keyword e
Concord. O último módulo é o aplicado nesta monografia.
De acordo com Berber Sardinha (2004, p. 104) o Concord é usado para
criar concordâncias ou listagens das ocorrências de um item específico acom-
panhado do texto ao seu redor. A ferramenta lista todas as ocorrências de um
item em um texto já definido anteriormente. Este último programa permite a
extração de ‘colocados’, que são palavras parceiras constantes do item buscado.
O WordSmith 6.0 é um programa para a pesquisa baseada na metodologia de
Linguística de Corpus e contribuiu assim, para esta análise no referido campo.
A pesquisa em Linguística de Corpus, segundo Tognini-Bonelli (2001,
p.65) tem dois pontos de entrada nos dados. Um dos pontos é de cima para
baixo (top-down) – isto se dá quando o analista sobrepõe aos dados algum
sistema de categorias analíticas. O outro ponto de entrada, que é bottom up,
não tem sistema analítico como ponto de partida e o desenvolve a partir das
observações do analista. Nesta monografia, utiliza-se o último sistema pois
há o conceito de empréstimo linguístico de um termo determinado, mas
não se sabe a priori os padrões formados por ele, portanto a abordagem teó-
rica adotada é bottom up.
101 rão os órgãos de controle que irão combater as chamadas “fake news”, como
ficaram conhecidos os conteúdos falsos,
102 primeira decisão em o tribunal para combater as chamadas “fake news” envol-
vendo pré-candidatos em a disputa de
103 escolas e universidades), além de o combate a as chamadas fake newse a os gru-
pos anti-vacinas. # “ Precisamos pensar
232 ados os mais suscetíveis de acreditar em notícias falsas (fake news). Os algorit-
mos permitiram determinar em que
233 r medidas de combate a a disseminação de notícias falsas (fake news) em as
redes sociais. A entrevista foi adiada por
235 # Ele deu grande atenção a o tema de as notícias falsas (fake news), participan-
do de diversos eventos para debater- lo
267 berdade de expressão # O combate a as notícias falsas ou ‘fake news’ foi escolhi-
do como uma de as prioridades de o
216 ritérios gerais que indultem vários presos. # Portanto, é fake news o papo de
que Haddad vai indultar Lula. Não pode e
217 46 Informar Vídeo para mostrar câncer de Jair Bolsonaro é Fake News # Crédi-
to: ReproduçãoVídeo que circula como
218 tilha notícias sobre o tema. “ Mas é fácil saber quando é fake news. “ # A outra
passageira, a estudante Bianca Sousa, d
Referência Bibliográfica
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nal of Economic Perspectives, American Economic Association, vol. 31(2), 2017. 211-236 p.
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82
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281
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teristics of Fake News and its Historical Development. International Journal of Legal Information
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282
ENTRE A “IDEIA NOVA” E OS “VAGOS IDEAIS”:
CARVALHO JÚNIOR, CRÍTICO LITERÁRIO
O raciocínio se aplica à literatura: uma vez que ela tem feição “fatalmente deter-
minada pelo meio social” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 3), reflete, portanto,
tal meio de origem e as ideias próprias a ele. Se nessa inter-relação com o meio a
literatura evolui junto, a ponto de “cada época, cada civilização te[r] uma literatu-
ra” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 4), é inevitável que certos estilos e formas
literários se tornem antiquados: eis o pecado de Racine e Corneille, que buscaram
adaptar a tragédia grega em pleno século XVII. Paul et Virginie (1788), de Saint-
-Pierre, Atala (1801) e René (1802), de Chateaubriand, seriam romances impos-
síveis em meados do século XIX, sobretudo no que tange à evolução da figura da
mulher. Afinal, “a civilização moderna, cultivando o espírito da mulher”, reconhe-
ce “a necessidade de arrancá-la da treva e da ignorância a que tinha sido condenada
pelos preconceitos do passado” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 147); seriam,
agora, inexequíveis aquelas heroínas idealizadas e lacrimosas. Por outro lado, os ro-
mances de George Sand, defensora dos “princípios da grande escola socialista”, e
de Balzac, que “lançou as bases do realismo” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p.
148), “acompanha[m] as evoluções do tempo”, dando expressão às mudanças e
revoluções sociais que ocorrem em seus respectivos meios.
Carvalho Júnior, na esteira de Taine, pensa, portanto, em um vínculo en-
tre a sociedade e sua produção artística: esta seria produto de seu meio e
284
assimilaria e transmitiria seus problemas, filosofias, fatos etc. Tais coisas são
leis, e leis inquebrantáveis e inevitáveis, assim como a evolução: “a marcha
da humanidade, impelida pelas leis fatais do progresso, é lenta e gradativa”
(CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 167). Há aí, porém, uma teleologia pou-
co demarcada em Taine, já que Carvalho Júnior entende as sucessões de lite-
raturas (aqui, algo próximo a “estilos literários”) como uma constante apri-
moramento em direção a um estágio mais elevado, que aniquila o sentido da
existência das literaturas anteriores. Não é difícil imaginar qual era, para ele,
a fase superior da literatura brasileira.
No entanto, ao contrário dos românticos, e mesmo de um Sílvio Romero
e um Araripe Júnior, Carvalho Júnior não raciocina propriamente em ter-
mos de uma singularidade da literatura brasileira. “Nós somos os herdeiros
desse mísero patrimônio [de Portugal], em que pese a todos os otimistas que
sustentam a existência de uma literatura nacional”, diz, em “A morgadinha
de Val-For”, para arrematar: “O nosso teatro é o teatro português” (CAR-
VALHO JÚNIOR, 1879, p. 152). Quando procura embasamento para suas
asserções, são, majoritariamente, os autores franceses e ingleses que cita.
Ainda assim, a ideia de uma tradição brasileira (ou luso-brasileira) não é
algo que rejeite. No “Prefácio”, por exemplo, assinala sua “boa vontade” em
seu “trabalho em prol das letras pátrias” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p.
9). Em “Fervet opus”, alega que todas as nações têm “uma legião sagrada,
a quem são confiadas as gloriosas tradições da pátria” (CARVALHO JÚ-
NIOR, 1879, p. 137), isto é, a mocidade acadêmica e culta. A equação pro-
posta é que evolução literária-intelectual pressupõe tradição. Nesse sentido,
o autor enaltece alguns dos poetas imortalizados pela historiografia literária
brasileira, justamente aqueles reputados como participantes de uma “tradi-
ção”: Álvares de Azevedo, “a luminosa cabeça”, Fagundes Varela, “o sabiá
brasileu”, Castro Alves, “o peregrino do ideal” (CARVALHO JÚNIOR,
1879, p. 137-8); em contrapartida, também menciona nomes hoje desco-
nhecidos: “Martim Cabral, a palavra mugida, Oliveira Belo, o orador inspi-
rado” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 138).
Claro que, dentro da lógica positivista em que raciocina, tais homens de
letras constituíram apenas um passo em uma escala progressiva da literatu-
ra. Não foi a partir do nada que obraram, assim como não o fariam seus
herdeiros. Afinal, “quando o caráter nacional e as circunstâncias envolven-
tes operam, não o fazem sobre uma tabula rasa, mas sobre uma superfície,
285
onde já se fizeram marcas” (TAINE, 2011 [1863], p. 537). É à mocidade que
é delegada, então, a incumbência de continuar o legado desse “passado que
morreu” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 138), a esses jovens que deba-
tem “[...] todos os princípios da filosofia, da arte, da religião, do direito, da
ciência enfim” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 140). Nada mais adequa-
do, portanto, chamar ao período uma “renascença” – que, coincidentemen-
te, será também a expressão de Afrânio Coutinho (1974) para nomear os
mesmos decênios de 1870-1890.
A ideia de uma “renascença” é retomada em outros momentos, chegando
a trespassar a concepção de Carvalho Júnior de literatura. Se esta seria re-
flexo das ideias de seu meio (ou da sociedade que a produz), a literatura da
segunda metade do século XIX deveria ter, por natureza, feição científica,
positivista, democrática. Afinal, no século XIX, época de um fervilhar in-
telectual, “os problemas políticos, sociais, morais, religiosos, científicos são
geralmente investigados e a sua solução é a preocupação constante dos es-
píritos” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 4). Se para Taine (2011, p. 543)
a “utilidade” da literatura era ser um documento para se “registrar senti-
mentos” e representar “a maneira de ser de toda uma nação e de todo um
século”, para Carvalho Júnior (1879, p. 5), ela “apresenta um não sei quê de
científico, de positivo, de prático, de utilitário, enfim”.
Não por acaso, “difusão dos conhecimentos pelas massas” será frase repe-
tida e glosada por ele em seus escritos. Tão característica seria essa feição do
século XIX, que a literatura que nele fosse produzida, caso não a traduzis-
se “fatalmente”, “mentiria ao seu meio” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p.
149). E uma vez que o meio se constitui de “ideias práticas e utilitárias”, de
uma popularização do saber, de uma “sede inextinguível de verdade” (CAR-
VALHO JÚNIOR, 1879, p. 149), o romance e o drama (gêneros aborda-
dos, respectivamente, em “O romance” e no “Prefácio”) se imbuem, forço-
samente, de um caráter didático, e até “socialista”: aquele é “o mais poderoso
veículo de educação do povo” (CARVALHO JUNIOR, 1879, p. 146), e
este, “uma escola” (CARVALHO JUNIOR, 1879, p. 6), de que Dumas fi-
lho é o exemplo máximo. A função da literatura seria, ao fim, expor as verda-
des científicas de seu tempo às multidões, unindo o útil ao agradável.
Aqui, drama e romance se diferenciam. O primeiro tem maior apelo emo-
cional – seu “ensino proveitoso [...] propaga-se de um modo fácil e deleitável”
(CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 5) – e maior popularidade: “dirige-se uni-
286
versalmente às multidões”, que “escutam, sentem e aprendem” (CARVALHO
JUNIOR, 1879, p. 5). O romance, por outro lado, por estar presente nos mais
variados ambientes – “manuseiam-no o proletário e a cocote” (CARVALHO
JUNIOR, 1879, p. 149) –, tem maior poder democrático e revolucionário,
além de maior adaptabilidade ao meio; nele, o leitor encontra “um reflexo de
seus próprios pensamentos” (CARVALHO JUNIOR, 1879, p. 149-150).
Com o drama, a verdade é recebida de modo mais sensorial e veemente; com o
romance, mais duradoura e refletidamente.
Que “verdade” seria esta que a literatura transmite? Carvalho Júnior (1879,
p. 5) equaciona que o “[...] belo funde-se na verdade”; “verdade” parece cor-
responder ao mundo material. Tanto que, em seguida, endossa a indispensável
fidelidade ao real, que é contraposto ao “ideal”: “Os tipos, os caracteres devem
ser fiéis. O drama tem por objetivo a vida real”. E, como um naturalista bra-
sileiro avant la lettre (estamos em 1877), argumenta: “O espetáculo do vício
não é imoral; quando muito é repugnante; o que é imoral é a sua impunida-
de”, utilizando, para tanto, a metáfora científica do médico, que, “para extir-
par os cancros, precisa vê-los” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 6).
Vale recordar que seria o mesmo argumento de alguns escritores pós-ro-
mânticos contra as alegações de indecência, ou de pornografia, em suas obras;
ou seja, a ideia de intenção didática do Realismo-Naturalismo, tão perpetua-
da pela historiografia literária dos séculos XIX e XX (MENDES, 2018). Car-
valho Júnior não apenas compartilhou uma sina semelhante (houve quem
chamasse de imoral “Parisina” e os versos de “Hespérides”), como foi cons-
tantemente reputado escritor realista. Sílvio Romero (1954 [1888], p. 1.806),
por exemplo, notou seu “realismo mais cru”; para Machado de Assis (1879, p.
382), ele “[...] era o representante genuíno de uma poesia sensual, a que, por
inadvertência, se chamou e ainda se chama realismo”. Porém, ao focar na de-
terminação do meio, era especificamente do Naturalismo que se aproximava.
É o meio que prepondera, da tríade taineana, como “ordem de causas” da
literatura, “que nada mais é do que um reflexo da sua economia” (CARVA-
LHO JÚNIOR, 1879, p. 4) (aliás, asserção que, indo um pouco além de seu
mestre, já tangencia ao socialismo, como então se dizia). A inevitabilidade do
meio é tão grande que chega a afirmar: “É bem natural que, se o autor de
Dom Juan escrevesse hoje esse poema, tivesse o mesmo intuito que eu tive
escrevendo este drama” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 6, grifo nosso) – e
por intuito se entenda “estudar”, “determinar causas” “deduzir ilações”, enfim,
287
dar-lhe “o cunho realista” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 3). Noutras pa-
lavras, posto no meio social da segunda metade do Oitocentos, muito prova-
velmente Byron se tornaria escritor realista e de método semelhante.
Já raça é termo de que se vale apenas em “A morgadinha de Val-Flor”, men-
cionando, em citação indireta de Schlegel, a “mesma raça” e “mesma civili-
zação” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 151) de Portugal e Espanha que
resultaram em teatros tão diferentes. No folhetim “Aspásia”, no rastro de Ma-
dame de Staël (2011 [1800], p. 81) e suas “literaturas do norte e do meio-dia”,
contrasta o nascido “sob um céu de fogo”, cujos “afetos de [...] alma têm [...]
a impetuosidade de [...] rios caudalosos”, cujo amor “é ardente e luxurioso”
(CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 112-3); e aqueles dos “gelos do norte, que
têm a alma de neve e o coração envolto num sudário de brumas”, cujo amor
“é uma adoração, imaculada e pura” (CARVALHO JUNIOR, 1879, p. 113).
Perceba-se que as referências são românticas e, apesar dessas “linhas de cunho
determinista” (AMARAL, 1996, p. 87), aludem menos às “disposições ina-
tas e hereditárias” (TAINE, 2011, p. 535) de uma suposta raça do que a uma
noção abrangente de “povo”; não têm, portanto, a pesada carga cientificista
que ganharam em Capistrano de Abreu ou em Sílvio Romero, mais afeitos a
Comte, Buckle e Spencer.
Em meio ao determinismo, ao fatalismo, e ao evolucionismo, outras ideias,
de dicção mais romântica, e até clássica, dão as caras. No mesmo prefácio,
Taine e Aristóteles convivem desembaraçadamente. À certa altura, Carvalho
Júnior reconhece a dificuldade, e mesmo o prejuízo que daí pode surgir, de
conciliar a cientificidade e o “raciocínio rigoroso” que busca a verdade com a
produção artística. Então procura solução no clássico: “nesse gênero de pro-
dução [o drama] a forma é quase tudo” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p.
7), sendo mister manter “as três unidades do teatro grego, recomendadas por
Aristóteles” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 7). (O vocabulário, ao final,
será sobre “ordonnance”, “urdimento das cenas” e “estrutura material”.) Mas,
em seguida, fundamentando-se em Schlegel, reavalia o argumento (a unidade
de ação seria a verdadeiramente necessária) e comenta a possibilidade de har-
monizar tais unidades com a “liberdade da inspiração poética” (CARVALHO
JÚNIOR, 1879, p. 8).
Após as referências a Aristóteles e Schlegel, é a vez do contemporâneo
Dumas filho, em quem se apoia para justificar seu ponto de vista (que talvez
ele próprio julgasse destoante): no escritor francês, os “[...] preceitos clássi-
288
cos se acham consignados, o que dá um relevo apuradíssimo ao seu teatro”
(CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 8). Ao término, deixa sua homenagem
ao Realismo (Dumas filho e Girardin) e a Byron, de cujo poema tirou o
enredo de “Parisina”. Taine, Aristóteles, Schlegel e Dumas filho: um nada
homogêneo referencial teórico.
Pela profusão de ideias dessemelhantes que conjugou, Carvalho Júnior
parece de fato ter sido, conforme Candido (2006) sugere a propósito de sua
poesia, um autor de transição.
– e, por outro lado, pode-se pensar que justamente por serem trabalhadas
num nível mais superficial e abrangente é que as ideias advogadas por Car-
valho Júnior são possíveis, pois são tratadas de forma a não se anularem, mas
antes intentando-se extrair-lhes a “verdade”.
Eis os instrumentos de análise de Carvalho Júnior; resta saber com quais
deles construiu sua crítica literária.
Considerações Finais
Um dos membros mais participantes de sua geração, Carvalho Júnior foi,
como ela, fervoroso defensor da abolição da escravatura, da proclamação da
república e de todo o aparato cientificista e positivista que animava os jo-
vens de então. Porém, bebia também em fontes românticas, dando razão
a Machado de Assis (1879, p. 374), para quem alguns dos poetas da “nova
geração” ainda cheiravam ao “puro leite romântico”.
86
Noticiario. Publicador Maranhense, Maranhão, ano XXXVI, n. 242, p. 2, 21 de outubro de 1877.
87
Correspondencia do Apostolo. O apostolo, Rio de Janeiro, ano XII, n. 63, p. 3, 2 de junho de 1878.
293
Sua concepção de literatura, entrelaçada a seus posicionamentos políti-
cos, estava baseada num ideal positivista: defendia um vínculo estreito entre
sociedade e produção artística e sua constante evolução. A diferença é que
a “lei fatal do progresso”, que afetaria literatura e política, diferentemente
da de Taine, teria preponderância do meio, pouca do momento e nenhuma
da raça. Isso acabou sendo mais adequado a seu posicionamento contra os
preconceitos relacionados à mulher e à intolerância religiosa, afastando-o de
certos determinismos.
Mas se a bibliografia positivista e de estirpe semelhante perfazem muitas
das ideias de Carvalho Júnior, seu método crítico não chegou a ser o de um
Taine ou o de um Sainte-Beuve; se muito, o de um Hennequin ou o de um
Lanson, autores que provavelmente não leu. Nele, não há espaço para o bio-
grafismo (exceto, talvez, a insinuação apontada em Ardentias), para ques-
tionários sobre a vida e os hábitos dos autores, ou para a determinação da
influência do meio e da raça na obra.
Assim, sua crítica se construiu entre a “Ideia Nova” e os “vagos ideais” (a
expressão do poema “Profissão de fé” para se referir ao Romantismo): por
um lado, procurou seguir achados realistas; por outro, não chegou a verda-
deiramente abandonar a herança romântica – como pretendia a maioria dos
poetas realistas –, ou mesmo a deixar de lado certos preceitos clássicos, re-
correndo a nomes díspares como Staël, Schlegel, Dumas filho e Aristóteles.
Referência bibliográfica
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Thallita Fernandes88
UERJ
A indiana Kiran Desai possui uma gama de estratégias literárias para re-
presentar deslocamentos geográficos e psicológicos em suas obras. Em O
legado da perda (2007), a autora trabalha com a temática das jornadas e
busca nos antepassados uma forma de descrever experiências coloniais, bem
como a transição de um império europeu para um outro, estadunidense,
para assim demonstrar diferentes modos de se perceber o mundo, as novas
dinâmicas de colonização e as desigualdades de poder. Para tanto, ela utiliza
personagens migrantes, os quais tendem a possuir visão estereoscópica por
transitarem no espaço privilegiado da terceira margem, ou seja, habitarem
no entre-lugar de distintas nações e possuírem aparatos para avaliar as enor-
mes diferenças entre elas.
O romance aponta para as perdas e silenciamentos de diversos sujeitos subal-
ternos, mas especificamente para as mulheres, as quais sofrem maior quantidade
de abusos e têm seus corpos minados pelas estratégias de poder e dominação
cultural e financeira. Desta forma, o trabalho visou analisar não apenas o lado
negativo da história dessas mulheres, mas buscou compreender o que os silên-
cios e as narrativas contadas por homens têm a dizer não apenas sobre a nação
indiana no período pós-colonial, mas a respeito da sociedade como um todo.
88
Licenciada em Letras pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), mestre em Crítica da Cultura pela Universidade Federal de São
João del-Rei (UFSJ), doutoranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
296
Neste sentido, foram ressaltadas as estratégias de representação dessas perso-
nagens não como menores no tecido literário, mas como corpos de luta e resis-
tência, que são fundamentais para compreender as novas dinâmicas do corpo
feminino contemporâneo. É importante frisar que a maioria das mulheres es-
tão mortas e possuem vidas reduzidas aos termos de esposos e empregados das
casas onde elas vivem.
Busca-se, portanto, dar sentido às vozes e vidas negadas a elas. O roman-
ce revela passagens de confinamento, violências físicas e epistêmicas e o fim
derradeiro das mesmas, legado pela posteridade. O estatuto da subalternida-
de feminina, no livro, pode ser considerado um exemplo da interação entre a
consciência pós-colonial e a sensibilidade feminista, na medida que evidencia
a (suposta) superioridade masculina e a dominância da política colonial como
forças que podem obliterar uma mulher da chance de fazer uma vida para si
mesma. Tal posição, neste caso, pode ser lida como uma reação amarga frente
ao fracasso em encontrar seu lugar no mundo.
Este reconhecimento do próprio desamparo pode ser interpretado como a
força motriz que as impulsiona a rejeitar qualquer forma de pertença, resultan-
do em uma firme determinação de tornar-se a sua única família e comunidade.
Por esta razão, a fim de adquirir o seu verdadeiro significado, o desejo dessas
personagens de subverter ordens estabelecidas e de partir de Kalimpong, um
dos locais onde o romance se situa, deve ser lido em conjunto com a admissão
de amor auto- resoluto de cada uma delas.
O legado da perda (2007) não apenas narra trajetórias fluidas de sujeitos
deslocados, como também se inscreve em um terceiro espaço de difícil ra-
cionalização. O título por si só evoca um valor descentrado. A perda é um
resultado que não se afilia ao campo dos desejos, uma vez que evoca uma
ausência ou falta que geram sentimentos de saudade, luto, abandono e es-
gotamento e, consequentemente, afligem os sujeitos nos níveis psicológicos
mais profundos. Para Carraro (2013:70), o conceito está geralmente associa-
do à escassez, deficiência e privação, mas em uma leitura (pós) colonial, pode
assumir o sentido da desapropriação e negação.
Pensar em um romance pós-colonial, neste sentido, implica considerar
que a empresa colonial se apropriou ilegitimamente de terras e recursos ma-
teriais e humanos em torno do globo. Milhões de nativos foram oprimidos
por este sistema, cujo abuso resultou em deslocamentos geográficos força-
dos, privações materiais, alienação e aniquilação cultural. A colonização foi
297
uma experiência devastadora de desapropriação coletiva, estimulada tanto
pela ganância e ufanismo quanto pela supremacia cultural da Europa.
Como consequência desta atitude etnocêntrica, a literatura imperial esta-
beleceu, a partir do século XIX, seu próprio cânone, marcado por repetições
de imagens e metáforas que reforçavam sua superioridade frente aos povos
colonizados. A presença do livro torna-se um símbolo de conhecimento e
imperialismo, e geram nos governados uma sensação de admiração e impo-
tência. A incapacidade de reagir é um efeito do deslocamento cultural e re-
sultado da perda da cultura essencial produzida pela colonização. É preciso
deixar claro que esta essência se refere a um estado de autonomia e auto go-
vernança que foi perdido mediante processos de dominação violentos e que,
por causa de sua arbitrariedade quanto aos povos tratados como inferiores,
conseguiram manter as colônias em um estado de sujeição às novas normas.
Dentro dessa perspectiva, a obra de Kiran Desai pode ser lida como uma
prova de que não só é a Europa é seriamente doente, como também conta-
minou as colônias e os seus habitantes, que continuam morrendo lentamen-
te por causa do antigo veneno. A derrota experimentada por esses sujeitos
ainda reflete a subjulgação e a perda de suas dignidades e valores por causa
da negligência e estratégias políticas de apagamento cultural, estritamente
ligadas à obliteração de cultura nativas, principalmente pelo viés da subs-
tituição da linguagem, que, como apontado por Ashcroft et al.(1989), foi
um dos principais aspectos da dominação colonial, uma vez que a cultura
é quase indistinguível da linguagem e a imposição de uma nova língua cria
formas de hierarquia mental e elaboram uma realidade diferente, exacerban-
do a sensação de deslocalização.
Em O legado da perda (2007), a morte é equacionada com a experiência
colonial e é representada por meio das disjunções temporais que cedem às
invasões repentinas do passado. Os personagens do romance são eles mes-
mos vítimas e agentes do colonialismo e as implicações do tempo pregresso
apresentam consequências no presente.
O fenômeno está intimamente associado ao de fechamento de significa-
dos, sua incompreensão e imutabilidade. Desai (2007) retrata a morte como
um dos inevitáveis processos trágicos da existência cotidiana, porém apon-
ta para a questão da necropolítica- conceito cunhado por Mbembe (2008),
para tipificar a forma como as redes de poder se compõem para desclassificar
e aniquilar a outridade, em especial minoritárias. Assim, a romancista es-
298
creve sobre o luto de maneira a sugerir que ele é menos uma fase psicoló-
gica substituível do que uma condição política da existência. Ela descreve
a transição das gerações, eventualmente chamando a atenção para o efeito
alienante da perda.
O óbito aparece como um detalhe insignificante na vida das personagens,
algo que não se percebe de início como trágico, até que se atinja o reconhe-
cimento maduro de sua presença terrível, em especial por causa da subalter-
nidade e da condição do gênero. A autora também apresenta o perecimento
como um catalisador no reconhecimento progressivo de independência,
tendo em vista que, ao abordar distintas gerações de mulheres, mostra a for-
ma lenta e progressiva como certas mudanças socioculturais ocorreram.
Kiran Desai revela a centralidade da figura “mulher’ em seus livros. No
entanto, esta presença constante é experimentada na ausência. Sai é uma
personagem órfã na história. Sua conexão com os pais, mas principalmente
com a mãe, que é aquela que escreve as cartas que serão enviadas para o con-
vento onde ela é aluna interna no início do romance, estabelece uma reci-
procidade dinâmica entre a ideia de abandono e concomitantemente insere
a maternidade no ato de escrita.
Sai, criada em um orfanato após a morte dos pais é obrigada a morar com o
avô e o cozinheiro dele. Ela sente a dor de ter sido rejeitada por sua família e se
esforça para se tornar o sujeito de sua própria história, mas a tarefa é desafia-
dora para uma jovem inexperiente que vive em um mundo deslocado e estran-
geiro, tendo em vista o fato do internato ser o único lugar conhecido por ela e
local de onde a adolescente construiu suas primeiras imagens de mundo. Ela se
percebe cada vez mais alienada e desiludida. O romance falho com Gyan ( seu
professor particular) e o ambiente de colonização e insurgência em torno de si
agravam seu sentimento de impotência e elevam a decisão que ela deve romper
com seu passado, mesmo que os sentimentos intensos da perda e hostilidade
originada por essa separação nunca sejam superados.
O duplo estatuto da subalternidade feminina, no livro, pode ser conside-
rado um exemplo primordial da interação entre a consciência pós-colonial e
sensibilidade feminista, na medida que evidencia a (suposta) superioridade
masculina e a dominância política colonial, como forças que podem oblite-
rar uma mulher da chance de fazer uma vida para si mesma.
A posição ambivalente, neste caso, pode ser lida como uma reação amarga
para o fracasso das inúmeras tentativas em encontrar seu lugar no mundo.
299
Este reconhecimento do próprio desamparo pode ser interpretado como a
força motriz que a impulsiona a rejeitar qualquer forma de pertença, resul-
tando assim em sua firme determinação de ser a sua única família e comu-
nidade. Por esta razão, a fim de adquirir o seu verdadeiro significado, seu
desejo de partir de Kalimpong deve ser lido em conjunto com sua admissão
de amor auto resoluto.
Outra personagem feminina que surge brevemente na trama é a mãe de
Sai. Com a morte de Nimi (avó de Sai), no momento de seu nascimento, ela
é mandada para o Convento Santo Agostinho, onde o juiz a mantém presa
e paga a mensalidade, sem no entanto, nunca tê-la ido visitar. Ela desafia
a sua própria condição e faz sua própria escolha ao conhecer um indiano
igualmente órfão, que estava se preparando para fazer parte do Programa
Espacial associativo entre Índia e União Soviética, eles decidem fugir para a
Rússia, mas ambos são atropelados e falecem. Tal passagem, bem como ou-
tras encontradas na mesma obra apontam a insubmissão como algo inerente
às mulheres, entretanto, ao extrapolar limites e desafiar as redes de poder que
as circundam, sejam patriarcais ou coloniais, elas são exterminadas.
Na literatura e crítica literária, existem múltiplas conexões entre mães e
pátrias e leva à figuração da mãe interpretada como um reflexo colonial. A
perda pode ser lida como uma metáfora do ciclo da colonização, a não per-
tença, o desligamento contínuo com a terra natal. A presença in absentia da
figura da mulher torna-se o sinal da soberania distante do império, sua au-
toridade cega e retórica chauvinista, que espelha a carga de pressão colonial
e refletem as disparidades da relação entre colonizado e pertença, seja dentro
ou fora do local geográfico em que este tenha nascido.
Para Carraro (2013) a morte substitui significativamente a traição: por
um lado, constitui a excelência do engano nominal; por outro, força o autor
a encontrar imagens alternativas para representar o papel dominante do co-
lonizador e a perda de poder resultante do colonizado.
Nota- se que Nimi e a esposa de Pana Lal (cozinheiro do juiz) são apre-
sentadas como figuras menores na novela, assim como eles são menores ou
“subalternos” em suas vidas. Ambas têm suas histórias apresentadas pelas
perspectivas dos esposos e a mãe de Biju. Ela não tem nome e seu trajeto é
descrito em poucas linhas, apenas em uma foto que mostra a família conge-
lada e no momento de sua morte. A personagem não é descrita em nenhum
detalhe, ela não tem rosto e não tem lembranças associadas a ela, a não ser
300
no momento em que o marido a perde. Sua morte é caracterizada por um
acidente, que segundo Pana Lal, é uma situação em que ninguém tem culpa.
Este fator fala muito a respeito da subalternidade como condição que apa-
ga o sujeito e cujas forças que o oprimem estão tão dissolvidas em institui-
ções e modos de governo cuja responsabilidade nunca poderá recair sobre
ninguém (Foucault, 2010), porque as raízes do problema são tão profundas
e complexas, que dificilmente se encontrará um responsável, ou, se puder-
mos imaginar algum, as disparidades entre poderes serão grandes, a ponto
de nunca haver uma punição.
Desai está interessada em discutir temas relacionados com o gênero em
seu romance, mas sua estratégia para ressaltar a posição da mulher se dá por
meio do apagamento e do silenciamento. A estratégia da escritora consiste
em realçar as dificuldades de comunicação entre mundos diferentes e pode
ser interpretado como o que Susan Sontag (1987: 13) denomina como a
“estética do silêncio”, que consiste em uma rede de significações acerca do
que não é dito. Para a filósofa: “A opção pelo silêncio ... confere e acrescenta
força e autoridade ao que foi interrompido- o repúdio torna-se uma nova
fonte de sua vitalidade”.
Assim, ao interromper a trajetória de suas personagens femininas no tex-
to, Desai não apenas traz à tona o espaço lacunar da vida dessas mulheres,
como realça a situação de apagamento a qual elas são submetidas. Além dis-
so, outra estratégia para desmistificar as ideologias patriarcais é desestabilizar
a imagem de masculinidade dos homens que figuram na obra.
Ao retornar da Inglaterra, por exemplo, o juiz percebe que sua bolsa foi re-
mexida e dá falta do pó de arroz que utilizava para dissimular a cor marrom
de sua pele. Ele sabia que indianos não separam seus pertences individual-
mente, tudo pertence ao grupo, mas ele encontra nesse roubo uma oportu-
nidade para abusar de Nimi.
Lone (2008) lembra que Nimi é controlada por homens até o momento
de sua morte. Ela passa a vida “cuidadosamente trancada” (DESAI, 2007:
89) para não se envolver com o fato do pai arranjar prostitutas para os mi-
litares. Além disso, ela é obrigada a se casar logo na infância para aumentar
o status do pai na comunidade. Presa, ela não é capaz de gerenciar a própria
vida. Sua situação não muda depois do casamento, ela só passa das mãos de
uma família para outra. Quando Jemubhai retorna, ele a deixa sozinha por
longos períodos, incapaz de desfrutar de qualquer tipo de liberdade.
301
A recorrência de abusos físicos e mentais que o juiz impõe a ela, faz com
que ela se transforme de uma mulher lindíssima, em uma pessoa deprimida
e repleta de hematomas. Quanto mais calada e indiferente à própria situa-
ção, mas Jemubhai a agride. Ela estava tão acostumada a ficar trancada que:
“... ela ainda era incapaz de contemplar a ideia de caminhar através da porta.
A forma como ela estava aberta para ela para ir e vir- a visão a enchia de soli-
dão” (DESAI, ibid: 171).
Assim, Nimi nunca é capaz de recuperar da humilhação e violência que
sofre em seu casamento em que ocupa os papéis da mulher passiva, pobre e
subordinada do Terceiro Mundo, características tradicionalmente associa-
das com o Oriente. Isso reflete um profundo contraste com as características
típicas do Ocidente que estão relacionados ao poder, masculinidade, inde-
pendência e desenvolvimento.
O silêncio de Nimi também tem o que dizer sobre a subversão da perso-
nagem. É um ato de recusa em responder aos estímulos violentos do juiz,
que quer ocidentalizar seus hábitos. O momento em que ela corajosamente
responde com palavras aos maus-tratos do juiz, chamando-o de “estúpido”
(304), Jemubhai a devolve para a família, sob o pretexto de não a matar.
Acontece que, ao recobrar as lembranças, o juiz compreende que mandá-la
de volta, ele se fez responsável pela morte de Nimi, pois, ela não suporta a
vergonha que levou para sua família e, estando grávida, não poderia sequer
cuidar da criança. Na casa de um cunhado, ela também morre “acidental-
mente”, em um caso sem testemunhas (DESAI, ibid: 307).
Sobre isso, Spivak (1996) claramente ilustra a diferença entre o Terceiro
Mundo e o Ocidente. Em uma perspectiva de gênero Sai, em O legado da
perda (2007), parece ser uma jovem mulher forte que confia suas próprias
decisões. Com sua influência ocidentalizada ela cresce educada e favorecida
pelo dinheiro e a posição social de seu avô, com quem sua figura contrasta,
pois em muitas situações ela prova ser a pessoa mais corajosa e capacitada
em Cho Oyu. Já no primeiro capítulo da novela isto é confirmado em uma
cena em que assaltantes invadem a propriedade da família, coagem a todos e
roubam seus bens.
Normalmente, o juiz é a parte dominante e poderoso que toma as decisões
em nome de outros, mas agora ele é forçado a colocar a mesa para os ladrões
e ele é humilhado e mentalmente ferido. Ele não tem poder para mudar a
situação assustadora em que eles se encontram. Nesta cena, o cozinheiro se
302
esconde debaixo da mesa e os ladrões arrastam-no para fora. Assim, os papéis
de gênero são trocados, e Sai parece ser a única com controle da situação. Ao
longo de seus conflitos, Sai parece fiel às suas opiniões, e ela não cede devido
ao amor ou sentimentos românticos.
Sai representa uma mulher forte numa perspectiva do Terceiro Mundo.
Seu estilo de vida ocidentalizado, naturalmente, a torna mais facilmente
adaptada a um cenário pós-colonial. Ela não é influenciada por fortes tradi-
ções religiosas e culturais e como mencionado, ela está presa entre duas tra-
dições diferentes, o Oriente e o Ocidente. Finança e não gênero parece ser o
seu principal desafio e preocupação. Como no caso de Gyan, a educação não
é garantia para a obtenção de um “bom trabalho”. O melhor que Sai pode
esperar é herdar algum dinheiro de seu avô (LONE, 2008). No entanto, ela
não é impedida de sonhar com uma vida independente.
A Subjetividade feminina passa a ser entendida em termos de auto-sacri-
fício, cujo princípio é serventia aos homens (OJWANG, 2013). Neste senti-
do, a avó de Sai retrata a posição feminina colonizada da Índia no início do
século XX. Mulheres eram educadas no espaço privado e dentro das tradi-
ções indianas, pois a “ocidentalização” e esfera pública ameaçavam a desin-
tegração da cultura indiana. Ao tentar ensinar à Nimi o que ele aprendeu da
cultura ocidental, Jemu, sintomaticamente, a humilha e violenta.
Mesmo na morte, Nimi reflete apenas pensamentos e opiniões do marido.
Hooda (2014) associa este fato à presença constante da Grã-Bretanha na
Índia (por trezentos e cinquenta anos), que integrou a identidade da Índia.
Ela relembra que a política de independência indiana foi elaborada por su-
jeitos educados no mundo ocidental e, por isso, o país não pode escapar de
ser visto sempre em relação ao colonizador.
Embora o romance, aos olhos do juiz, se passe entre Kalimpong e os
flashbacks do juiz na Inglaterra e outros lugarejos da Índia, é importante
lembrar que tanto as origens de Jemubhai quanto de Nimi estão ligadas a
Gurajat, uma pequena aldeia muito tradicional, onde seria impossível para
uma mulher escapar da dependência de seu marido e demonstra a preocupa-
ção de Desai em estabelecer uma esfera de desequilíbrio de poderes.
Podemos encontrar alguns sinais em obras que discutem as representa-
ções subalternas. Spivak (1996) por exemplo, investiga a alteridade através
da expressão feminina representada como duplo sentido do outro – primeiro
enquanto sujeito agente e, depois, enquanto representação. Nesta dupla lei-
303
tura ela insiste na descontinuidade entre subjetividade e agência.
A descontinuidade é exemplificada na subjetividade dissimulada do sexo
feminino, cuja “voz” é construída como instrumento, tanto para a autorida-
de masculina indiana ou o patriarcado colonial, ou seja, a mulher enquanto
sujeito, não possui um poder de escolha. Quando a pensadora aborda a
auto-imolação feminina em “Pode o subalterno falar” (1996), ela considera
dois discursos patriarcais: o nativista, que considera a prática uma escolha
da mulher pela morte, utilizando como meio um ritual sagrado; e o colo-
nialista, que institucionaliza a prática como um crime, sob o pretexto de
protegê-las. O problema é que nos dois casos, a escolha da mulher é dissimu-
lada. Nenhuma das alternativas compreende seu livre-arbítrio, pois ambos
os discursos são construídos mediante a agência patriarcal.
A voz atende à demanda da agência hegemônica e não da mulher (funciona
como se a mulher fosse apenas um ventríloquo). As possibilidades das mulhe-
res subalternas de alcançarem ascendência, na verdade diminuiu. Exatamente
por causa da proliferação de representações para falar por ela na sociedade civil
internacional, a mulher subalterna está em um terreno mais restrito hoje do
que ela em um momento anterior à globalização do capital (2010).
Cornell (2010) compreende que o subalterno não pode falar por que não
há espaço de representação em que ele pode se fazer ouvido; mas como re-
sultado, o fracasso da representação em si torna-se uma forma de escuta, um
“por vir”, capaz de dar um novo entendimento para a história da sexualidade
e dos problemas de gênero e até mais além: As assimetrias que a mulher evo-
ca confronta pressupostos básicos sobre o que é humano e sobre os enqua-
dramentos que tem sido feitos à respeito da própria humanidade.
A morte, que é onde se espera que a subalternidade desapareça, pois ela é
vista como a grande niveladora das questões humanas, entretanto, o ensaio
de Spivak (1996) explora uma subalternidade feminina ligada à morte, ou
a morte como condição subalterna de gênero. A morte do subalterno, ou o
subalterno morto, levantam questões acerca da forma como se morre, sobre
o significado da morte e sobre uma comunicação pós-morte.
O silenciamento produz discursos que extrapolam os limites entre vida e
finitude e, apresenta uma condição que possibilita o surgimento da voz fe-
minina subalterna. Apesar disso, tais mensagens são investidas de potencial
desestabilizador, pois mesmo quando elas não podem ser ouvidas, deixam
transparecer um ruído. É imprescindível lembrar que mulheres de corpos
304
sexuados são também, naturalmente, local e objeto de violência. Seja qual
for o potencial transgressivo do corpo, ele será cancelado pela submissão da
mulher à violência e à insistente demanda de um sistema social a ser satis-
feito sobre um ideal de castidade, mesmo no sujeito feminino morto. Além
disso, a morte figura enquanto condição de (im)possibilidade de contar a
própria história.
Por mais que suas vozes não possam ser restauradas, a mediação das teste-
munhas fornece contexto para sua interpretação na narrativa. Seja enquanto
vítima de violência ou de um acidente, as mulheres mortas representadas
no romance são presas às mesmas rígidas normas sexuais patriarcais de sua
sociedade, mesmo que em períodos diferentes e em diferentes classes sociais.
O feminino transforma empatia com mais sucesso em um ato político de
solidariedade e o silêncio é uma estratégia que não pode ser desperdiçada.
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306
TEXTO E COTEXTO: A IMPORTÂNCIA DA LEITURA DE TODAS AS
PARCELAS PRESENTES NO TEXTO VERBO-VISUAL
Palavras iniciais
No atual cenário brasileiro, reconhecer os ideais dos outros é primordial
para que se convirjam ou confluam os laços afetivos, principalmente, quando
se trata de política. O reconhecimento do outro se dá através de inúmeros gê-
neros discursivos, seja ele verbal, visual, seja verbo-visual.
Tendo em vista isso, a utilização dos “novos” dispositivos contribui larga-
mente para a criação e propagação de inúmeros gêneros, caso das charges, his-
tórias em quadrinhos e, sobretudo, os memes, que se fazem presente no dia a
dia de muitos indivíduos. Sendo assim, a presença dos gêneros que circulam
via internet é passada de indivíduo para indivíduo por suas afinidades não só
políticas, como éticas e sociais.
Dessa forma, é fácil notar que se determinado texto não agrada determinada
pessoa, ela dificilmente compartilhará tal texto, salvo o caso em que queira
subverter alguma informação e, para isso, acaba por utilizar o texto como fon-
te satírica e irônica. Pode-se pensar e acreditar que os memes, por exemplo, não
circulam mais nessas esferas midiáticas apenas para agraciar as timelines, mas
89
Aluna de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Letras da Uerj, concentração em Linguística. muylaertthatiana@yahoo.com.br
307
sim para simular e velar posicionamentos políticos que possam ser questiona-
dos por outrem.
Justamente por essa facilidade de criar e recriar os memes é que eles têm sido um
dos gêneros mais utilizados como fonte rápida de ‘ridicularização’ de personalida-
des políticas atualmente. Acredita-se que a população utiliza esse “novo” gênero
como forma de protesto, principalmente, aos acontecimentos políticos do país. É
por meio da “satirização” das personalidades políticas que muitos indivíduos se ex-
pressam. Assim, o gênero meme possibilita uma união entre a comunidade virtual,
que se alia para propagar e gozar de personalidades públicas, seja compartilhando
em suas redes sociais, seja reproduzindo em suas próprias páginas.
Dessa maneira, além de divertir por meio da sátira, os memes possibilitam,
através da utilização das próprias imagens e de recursos linguísticos, a cap-
tação de um público-alvo que reconhece os mesmos elementos sociais por
intermédio das inferências feitas, justamente, porque os leitores comparti-
lham os mesmos conhecimentos de mundo.
[...] chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que que tenha de algum
modo a capacidade de capturar, orientar, interceptar, modelar, controlar e assegurar
os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente,
portanto, as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as confissões, as fábri-
cas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc, cuja conexão com o poder é em certo
sentido evidente, mas também as canetas, a escritura, a literatura, a filosofia, a agri-
cultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e – porque
não – a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos, em que há
milhares e milhares de anos um primata – provavelmente sem dar-se conta das con-
seqüências que se seguiriam – teve a inconsciência de se deixar capturar (sic).
[...] uma vez que sou reconhecido por um outro, eu me aproximo deste outro e, ao
mesmo tempo, ganho maior consciência acerca das características e particularidades
de minha identidade, que, por sua vez, também passam a demandar reconhecimen-
to. (CAMPANELLA, 2018, p. 7)
Assim como o texto 1, o texto 2 também é composto por parcela verbal e parcela
visual, por isso pode ser categorizado como uma relação semântica de complemen-
taridade. Na parte verbal, lemos: “Algo de errado não está certo na foto oficial de
Michel Temer. Decifrem...”. E, na parte visual, vemos o ex-presidente com a famo-
sa faixa presidencial, mas seu rosto está, levemente, puxado para os lados.
318
A função do vocabulário utilizado na produção desse sintagma é uma re-
lação lexical paradoxal, consagrada por antônimos como certo versus errado.
Mas notamos que tanto o vocabulário “errado” quanto o sintagma “não está
certo” designam coisas ruins, ou seja, estão na mesma esfera de significação.
Logo, infere-se que tanto a foto como o fato de o Temer ocupar a presidên-
cia eram “coisas” erradas.
Ao interpretar a imagem de Temer com o rosto puxado para o lado, po-
demos inferir que o criador do meme pode ter pensado de duas formas ao
fazer isso com a imagem. Apresentando a similaridade de Temer aos palha-
ços como Carequinha, Bozo, Patati e Patata ou que o ex-presidente se confi-
gurou, no período político, como um vilão para o Brasil, nesse caso, há uma
relação de intertextualidade com o Coringa, vilão do filme Batmam.
A intertextualidade interna, proposta por Maingueneau (2008), faz com
que possamos remeter essa personalidade política a outros vilões do cine-
ma ou a outros palhaços consagrados pela mídia. Dessa forma, percebe-se
que tanto as categorias analíticas, como as relações semânticas propostas por
Santaella (2012) contribuem de forma efetiva para “desmanipular” infor-
mações que parecem ser passadas de forma velada. A relação entre verbal e
visual é inextricável na produção de sentido dos enunciados como os memes.
Algumas considerações
O estudo de “novos” gêneros é substancial para a compreensão desse con-
temporâneo mundo em que habitamos, pois é através dessas esferas comu-
nicativas que há a inter-relação e o diálogo entre a população. Os principais
fatores da utilização da linguagem são a maleabilidade e a possibilidade de
adequação da língua; é por meio da interação que há a evolução social.
O avanço tecnológico e a internet propiciaram o surgimento de diversos
gêneros textuais, que são utilizados como elementos de comunicação e, de
certa forma, contribuem para a tomada de posicionamento político de mui-
tos internautas. Assim como as notícias jornalísticas e as mídias televisivas,
os memes são capazes de subjetivar muitos leitores.
Dessa forma, alguns postulados da teoria de Maigueneau (2008), apre-
sentados de forma suscinta, contribuem para desvelar os posicionamentos
políticos presentes nos enunciados por meio da temática que expressa, bem
como do uso de vocabulários, do estatuto do enunciador e do destinatário,
das relações intertextuais e do modo de coesão que, numa espécie de laço
319
coesivo com os elementos visuais, propõe uma interpretação e compreensão
total do texto. Ainda, as relações semânticas propostas por Santaella (2012)
contribuem para a propagação da importância da leitura de elementos não
verbais que, juntamente aos elementos verbais, confluem ao dito o que pa-
rece estar subentendido.
No atual cenário brasileiro, resolver as questões políticas que se instauram
parece impossível, mas analisar, refletir e criticar os elementos discursivos
presentes em diferentes enunciados é substancial para que possamos come-
çar a compreender este contemporâneo mundo em que habitamos.
Referências Bibliográficas
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321
“HÁ DE TER GRAÇA NO FIM, QUANDO COMPREENDEREM QUE
O LIVRO NÃO PRESTA PARA NADA”: PARA UMA ANÁLISE DA IMA-
GEM DO ESCRITOR NA CORRESPONDÊNCIA
DE GRACILIANO RAMOS91
Thayane Verçosa92
UERJ
Introdução
Quem quiser acompanhar a gênese da obra de Graciliano, seu difícil processo de cria-
ção literária, encontrará, nas cartas e em raros depoimentos ou entrevistas que ele dei-
xou algumas informações preciosas a respeito. Homem contido, de medidas palavras
na literatura e na vida, falou e escreveu muito pouco sobre sua obra, e a muito pouca
gente (MALARD, 2006, p. 204; grifo nosso).
Nem sempre estamos com disposição para escrever coisas amenas. [...]. Eu, minha
querida amiga, tenho andado com alternativas de fecundidade e de estupidez, o que
não é mau de todo. Imagina que os miseráveis traços que tens tido o desgosto de ler
não têm sido inteiramente desagradáveis. Isso não é Arte, é claro, nem mesmo chega
a revelar talento – uma certa habilidade, talvez (Ibid., p. 60; grifos nossos).
Cerca de quinze anos depois das cartas enviadas ao amigo e à irmã, Graci-
liano parece ainda ter a mesma opinião sobre si mesmo, como revela em uma
carta enviada a Heloísa Ramos, sua segunda esposa, em 11 de outubro de
1930: “Agora que estamos em sossego, talvez seja possível trabalhar. Estou
com isto por dentro da cabeça em desgraça. E burro, minha filha, de uma
burrice horrível. Fui hoje escrever uma besteira e não pude” (Ibid., p. 117;
grifos nossos), o que se mantém com o passar do tempo, como mostra a car-
ta também destinada a Heloísa Ramos, no dia 11 de abril de 1937:
É bom não contar com jornal, porque não farei nunca um artigo direito. E os conto-
zinhos que tenho arranjado saem com dificuldade imensa: uma semana de trabalho
às vezes. Não desanimo, mas realmente isto é pau. [...]. Uma coisa me surpreende:
tenho sonhado constantemente com meu pai. Nunca penso nele, na vida que tenho
não me sobra tempo para sentimentalismo. É aqui no duro, arrumando frases com
dificuldade (Ibid., p. 197-198; grifos nossos).
Não vale nada, é uma desgraça. Mas sou obrigado a mandar datilografá-la e hoje
à tarde preciso entregá-la ao Otávio Tarquínio. [...]. Apesar da burrice imensa em
que me acho, tenho de arranjar esta semana umas encomendas. Eu desejava que me
dissessem logo que isto não vale nada, que não me pedissem estes horrores (Ibid., p.
199-200; grifos nossos).
Eu sou um literato horrível, e só dou para isso. Tenho procurado outras profissões. Toli-
ce. Creio que meu pai e minha mãe me fizeram lendo o Alencar, que era o que havia
no tempo deles. O Estado está pegando fogo, o Brasil se esculhamba, o mundo vai
para ume guerra dos mil diabos, muito pior do que a de 1914 – e eu só penso nos
romances que poderão sair dessa fornalha em que vamos entrar. Em 1914-1918
morreram uns dez ou doze milhões de pessoas. Agora morrerá muito mais gente.
Mas pode ser que a mortandade dê assunto para uns dois ou três romances – e tudo
estará muito bem. Por aí vê você que eu sou um monstro ou um idiota. [...].
[...]. Há pouco tempo seu Américo pediu-me para ler uns capítulos do Angústia.
Li, sem entusiasmo, e como ele me dissesse que alguém gostava dos meus livros e
entendia de literatura, passei uma hora convencendo-o de que isto não era possível.
Somos uns animais diferentes dos outros, provavelmente inferiores aos outros, duma
sensibilidade excessiva, duma vaidade imensa que nos afasta dos que não são doentes
como nós. Mesmo os que são doentes, os degenerados que escrevem história fiada, nem
sempre nos inspiram simpatia: é necessário que a doença que nos ataca atinja outros
com igual intensidade para que vejamos nele um irmão e lhe mostremos as nossas
chagas, isto é, os nossos manuscritos, as nossas misérias, que publicamos cauterizadas,
alteradas em conformidade com a técnica [...], hei de fazer sempre romances. Não
dou para outra coisa. Ora aqui há uns dois ou três indivíduos que falam comigo. Aí
não há nenhum. Estou, pois, com vontade de ir para Minas, onde há muitos leprosos.
Talvez encontre outros doentes como eu (Ibid., p. 146-147; grifos nossos).
Terminei ontem um conto horrivelmente chato. O protagonista não tem nome, não
fala, não anda. Está parado num canto de parede e escuta um político também sem
nome. A chateação, que saiu comprida, é para descobrir o que o personagem pensa,
encolhido, calado. A pior amolação deste mundo. Um sujeito disse no Jornal que os
328
romances de hoje são todos muito cacetes e o mais cacete de todos sou eu. Ele tem ra-
zão. O conto que terminei ontem é uma estopada que nenhum leitor normal aguenta
(Ibid., p. 190; grifos nossos).
Estou cansado de fazer coisas incompletas. Vou aguardar o resultado da luta no sul
para depois orientar-me. E enquanto não me oriento, conserto as cercas de S. Ber-
nardo, estiro o arame farpado, substituo os grampos velhos por outros novos e, à noite,
depois do rádio, leio a Gazeta de Costa Brito (Ibid., p. 121; grifo nosso).
Julgo que aqui neste quarto, sozinho, vou ficando safado. Têm-me aparecido ideias
vermelhas. Anteontem abrequei a Germana num canto de parede e sapequei-lhe
um beliscão retorcido na popa da bunda. Não tem importância. Isto passa. Vai sair
uma obra-prima em língua de sertanejo, cheia de termos descabelados. O pior é que de
cada vez que leio aquilo corto um pedaço. Suponho que acabarei cortando tudo (Ibid.,
p. 125; grifo nosso).
Terminei a sua carta às dez horas. Pois daí até o meio-dia, e das quatro da tarde à uma
da madrugada, escrevi com uma rapidez que me espantou. Nunca trabalhei assim,
provavelmente um espírito me segurava a mão. Vou perguntar a d. Luísa. A letra era
minha, embora piorada por causa da pressa, mas é possível que aquilo fosse mesmo
feitiçaria. Ou efeito de aguardente. [...]. Estou em grande atrapalhação para matar
Julião Tavares. Cada vez me convenço mais de que não tenho jeito para assassino.
Ando procurando uma corda, mas, pensando bem, reconheço que é uma estupi-
dez enforcar esse rapaz, que não vale uma corda. Enfim não sei. Estou atrapalhado
(Ibid., p. 152; grifo nosso).
Expôs uma criatura simples, que lava roupa e faz renda, com as complicações inte-
riores de uma menina habituada aos romances e ao colégio. As caboclas de nossa
terra são meio selvagens, quase inteiramente selvagens. Como pode você adivinhar
o que se passa na alma delas? Você não bate bilros nem lava roupa. Só conseguimos
deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso,
não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos. Só podemos expor o
que somos. E você não é Mariana, não é da classe dela. Fique na sua classe, apresen-
te-se como é, nua, sem ocultar nada. Arte é isso. A técnica é necessária, é claro. Mas
se lhe faltar técnica, seja ao menos sincera. Diga o que é, mostre o que é. Você tem ex-
periência e está na idade de começar. A literatura é uma horrível profissão, em que só
podemos principiar tarde; indispensável muita observação. Precocidade em literatura
é impossível: isto não é música, não temos gênios de dez anos. Você teve um colégio,
trabalhou, observou, deve ter se amolado em excesso. Por que não se fixa aí? Não
tenta um livro sério, onde ponha as suas ilusões e os seus desenganos? Em Mariana,
você mostrou umas coisinhas suas. Mas – repito – você não é Mariana. E – com o
perdão da palavra – essas mijadas curtas não adiantam. Revele-se toda. A sua perso-
nagem deve ser você mesma (Ibid., p. 213; grifos nossos).
Você me pediu há tempo que escrevesse umas coisas regionais. Lembra-se? Fiz isso,
mas afastei-me da literatura que nos apresenta, sem nenhuma vergonha, matutos
inverossímeis. Os nossos matutos nunca foram observados convenientemente. Os que
aparecem em romances pensam como gente da cidade e falam difícil, apenas defor-
mando as palavras, suprimindo os ss, os ll e os rr finais. Com esse recurso infantil, cer-
tos escritores brasileiros se julgam sagazes. Acho que os tipos que lhe mando são verda-
deiros. Procurei vê-los por dentro e evitei os diálogos tolos e fáceis, que dão engulhos. Os
meus matutos são calados e pensam pouco. Mas sempre devem ter algum pensamento,
e é isto que me interessa. Não gastei com eles as metáforas ruins que o Nordeste infe-
lizmente produz com abundância. Também não descrevi o pôr-do-sol, a madrugada,
a cheia e o incêndio, coisas obrigatórias, como você sabe (Id., 2008, p. 63; grifo nosso).
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Fernando da Rocha Peres. Salvador: EDUFBA, 2008.
334
A LEITURA NA ERA DA INTERNET: A INFLUÊNCIA DA REDE DIGI-
TAL NA PRODUÇÃO TEXTUAL E NA LEITURA
Resumo: O presente artigo visa apresentar alguns dos efeitos que a inter-
net desenvolve sob a produção de textos e da leitura, para que pudéssemos
entender um pouco mais acerca do desenvolvimento linguístico presentes
nos textos que são produzidos no contexto da rede mundial de computado-
res. Começamos tratando do texto na sociedade e da importância do seu tra-
tamento em questões relacionadas à estrutura e sistematizações. Expomos
algumas teorias acerca dos gêneros textuais, recorrendo aos estudos bakh-
tinianos e de autores que retomaram os estudos do autor. Apresentamos
questões relacionadas à leitura e apontamos as transformações que a produ-
ção textual e a leitura vêm sofrendo no meio digital. Apresentamos a nossas
considerações finais.
Palavras iniciais
O presente artigo visa apresentar, por meio de uma revisão teórica, alguns
dos efeitos que a internet desenvolve sobre a produção de textos e da leitura,
para que pudéssemos entender um pouco mais acerca do desenvolvimento
linguístico presentes nos textos produzidos no contexto da rede mundial de
computadores. Para tal foi preciso apontar algumas pesquisas que se desen-
volvem em torno de tais assuntos para depois apresentarmos algumas dessas
inovações presentes nesses assuntos.
Começamos tratando do texto na sociedade e da importância de pesquisas
relacionadas às questões de estrutura e sistematizações. Buscamos abordar a
teoria em torno dos estudos textuais a partir da visão sociointerativa, que versa
o texto como um objeto de interação social. Para tal, recorremos aos estudos
de alguns autores que dissertam acerca deste elemento partindo dessa aborda-
93
Mestrando em letras – Língua Portuguesa, licenciado em Letras – Português/Literaturas (UFRRJ) e membro do grupo de pesquisa Estudos
Linguísticos, Multiletramentos e Ensino de Português (EMELP).
335
gem, bem como tentamos demonstrar como os textos se desenvolvem dentro
de gêneros textuais específicos.
Em seguida, expomos algumas teorias acerca dos gêneros textuais e, para
isso, recorremos aos estudos bakhtinianos e de autores que retomaram os estu-
dos do autor. Assim, abordamos os gêneros a partir de uma visão sociodiscur-
siva, buscando apresentar a importância deles para a linguística textual e para
pensar a importância dos textos em gêneros. Procuramos, também, demons-
trar como o contexto digital tem influenciado as evoluções dos gêneros discur-
sivos. Usamos, aqui, gêneros textuais e gêneros discursivos como sinônimos.
Posteriormente, apresentamos questões relacionadas à leitura, mostrando
como ela é uma importante atividade de interação social e de transmissão de
cultura. Para isso buscamos nos apoiar em pesquisas que assumem a leitura a
partir da visão sociointerativa, bem com questões ligadas à compreensão no
ato de ler, além de reconhecê-la como uma atividade de produção de sentidos.
Expomos, também, as ideias das consequências que a leitura carrega e como
elas influenciam na interação social que se dá por meio da leitura.
Prosseguindo, tratamos da leitura na internet, onde buscamos apontar as
transformações que a produção textual e a leitura vêm sofrendo no meio digital
e demonstrar como elas têm-se modificado sob essa influência. Assim, focamos
a nossa exposição em expor tais evoluções, bem como abordar os conceitos de
hipertexto e hiperleitura. Para além disso apontamos com se desenvolveram e
como eles utilizados na rede, apontando a importância que vêm apresentando
para inovações nos estudos linguísticos, principalmente no tratamento da lin-
guística textual. Por fim, colocamos nossas considerações finais e apontamentos
em relação ao desenvolvimento do artigo e de pesquisas futuras.
O texto
O texto está presente na maior parte das formas de comunicação humana,
é, pois, a partir dele que desenvolvemos nossos pensamentos, diálogos e di-
versas atividades de interações comunicativas, principalmente aquelas desen-
volvidas por meio da escrita. Compreendemos com isso que “o texto resulta
de um tipo específico de atividade” (KOCH, 2018, p. 11), assim, o texto é a
materialização da atividade verbal que se dá em uma determinada situação e
visa produzir resultados (KOCH, 2018; KOCH, 2015a). Koch (2018) ainda
afirma que a escola vygotsykyniana, a psicologia e a psicolinguística soviética;
entende que o texto é um “complexo conjunto de processos postos em ação
336
para consecução de determinado resultado” (KOCH, 2018, p. 11).
Podemos perceber então que, segundo essa visão, texto é a pratica da ação
verbal de maneira a produzir resultados no interlocutor, por meio da comu-
nicação oral ou pela comunicação escrita. O que nos leva a compreender que
o texto não é um simples conglomerado de palavras juntos, mas uma força
verbal que atua na comunicação social e tem o propósito de afetar, de alguma
maneira, o interlocutor que está lendo ou ouvindo o texto; pode ser compre-
endido como algo concreto ligado a produção verbal. Corroborando essa vi-
são, Val e Vieira (2005, p. 37) afirmam que o texto é entendido como
um texto deve conter coerência de sentido, pois não podemos apenas disponibilizar
algumas frases sem conectá-las adequadamente umas às outras. Ao utilizarmos os
conectivos adequados estaremos interligando as orações e diminuiremos o risco de
comprometer a ideia central do texto.
Porque se essa ideia central que o texto carrega for comprometida, estare-
mos fugindo ao resultado que se pretende, no momento da produção, ou
seja, ao produzir um texto que tenha algum tipo de quebra, o locutor pode
levar o interlocutor a um entendimento diferente daquele pretendido. As-
sim, o resultado pretendido não seria atingido, o que pode levar a uma que-
bra na comunicação. Nessa perspectiva, Koch (2018, p. 12-3) afirma que as
atividades humanas têm aspectos que lhes são fundamentais:
a. existência de uma necessidade/interesse;
b. estabelecimento de uma finalidade;
c. estabelecimento de um plano de atividade, formado por ações individuais;
d. realização de operações específicas para cada ação, de conformidade
com o plano prefixado;
e. dependência constante da situação em que se leva a cabo a atividade,
tanto para planificação das ações e a possível modificação do processo
no decurso da atividade (troca das ações previstas por outras, de acor-
do com mudanças produzidas na situação).
Como entendemos a produção textual como uma atividade humana,
compreendemos que esses aspectos são também fundamentais, pois traçam
um caminho para que o locutor possa chegar ao resultado final pretendido.
Por fim, consideramos que “texto é uma forma de comunicação coerente
dotada de sentido (que está ligada aos implícitos e pressupostos) e que pos-
sui um objetivo” (SANTOS; SILVA, 2012, p. 1086). A partir dessa visão,
observamos que são textos o conto, o romance, a carta, a conversa, a música,
entre outros, mas também o são o e-mail, o post do facebook, o chat, a con-
versa do whatsapp, e outros que surgem no meio digital e que se propagam
pela internet, pensados e produzidos em gêneros textuais ditos específicos,
como veremos adiante.
338
Antes de prosseguirmos, é importante mencionar que há ainda os textos
não verbais, aqueles elaborados apenas a partir da imagem, como as charges,
os gestos, as figuras, os gráficos, entre outros. Também existem os chamados
textos multimodais, aqueles produzidos por meio da hibridação do texto
verbal com o não verbal, dos quais podemos citar publicidades e alguns dos
chamados memes. Aqui, porém, nos dedicaremos aos textos verbais.
Gêneros textuais
Os gêneros discursivos vêm sendo estudados há muito tempo. Situa-se
o início das discussões acerca dos gêneros “na Grécia Antiga com Platão e
Aristóteles”, porém, elas eram destinadas apenas à reflexão sobre gêneros po-
éticos e retóricos. Essas reflexões iniciaram-se com o intuito de pensar qual
seria a maneira “mais adequada para formar homens com certa natureza fi-
losófica” (ROJO; BARBOSA, 2015, p. 35).
A primeira divisão de gêneros que conhecemos é apresentada por Platão
(428-348 a. C.), na República – livros II e III –, na qual ele descreve três
gêneros literários, sendo eles o épico, o lírico e o dramático. Mais tarde, na
Poética, Aristóteles (384-322 a. C) delimita uma lista de gêneros, colocando
entre eles a epopeia e o poema trágico. Já na sua Retórica, Aristóteles vai
dividir também os gêneros da retórica em deliberativo, judiciário e epidíti-
co, mas o autor dá mais enfoque aos gêneros literários ou poéticos (ROJO;
BARBOSA, 2015).
Durante muito tempo, somente esses gêneros foram trabalhados, apresen-
tados e estudados na escola. Diversos autores fizeram inúmeras retomadas da
classificação feita pelos filósofos gregos, tratando, com especial valor, os gê-
neros artísticos, sem fazer nenhuma menção às diversas formas de manifesta-
ção da língua, ou seja, desconsiderando as outras esferas sociocomunicativas
em que a língua se manifesta (RODRIGUES, 2005; MARCUSCHI, 2010;
BAKHTIN, 2011; ROJO; BARBOSA, 2015; KOCH, 2015b).
Somente na década de 1960, com os estudos de Bakhtin, junto ao seu acla-
mado círculo, os gêneros do discurso de outros domínios discursivos, que não
o retórico e o literário, começaram a ser estudados como gêneros do discur-
so e a ganhar visibilidade. Tal fato contribuiu de maneira significativa para o
desenvolvimento dos estudos no campo dos gêneros (MARCUSCHI, 2010;
BAKHTIN, 2011; ROJO & BARBOSA, 2015; KOCH, 2015b; FIORIN,
2016). Como lemos em Rodrigues (2005, p. 162, grifo nosso):
339
a presença da noção geral dos gêneros do discurso encontra-se em muitos dos traba-
lhos do círculo de Bakhtin: a defesa do romance como gênero literário; os gêneros
intercalados como uma das formas composicionais de introdução e organização dos
plurilinguísmos no romance; a abordagem do romance polifônico em Dotoiévski;
o papel e o lugar dos gêneros nos estudos marxistas da linguagem; os gêneros como
uma das forças sociais de estratificação da língua (uma das forças centrífugas); e o
alargamento da noção de gêneros para todas as práticas de linguagem e não
só as do domínio da poética e da retórica.
Podemos dizer, então, que sempre houve, nos estudos bakhtinianos, uma
grande preocupação com o desenvolvimento de uma teoria que estudasse
os gêneros em todas as esferas de comunicação humana, mesmo sem deixar
explícita tal denominação. O autor amplia o escopo da lista dos possíveis
gêneros, pois, ao abranger os diversos domínios discursivos, novos gêneros
vêm à tona, “[...] o Círculo de Bakhtin estende o conceito de “gênero” –
ainda hesitando em nomeá-lo como tal – a todas as produções discursivas
humanas e não somente ao campo da arte literária ou da oratória pública.
[...]” (ROJO & BARBOSA, 2015, p. 40).
Com o avanço dos estudos dos gêneros no âmbito dos estudos da lingua-
gem, muitas abordagens se dedicaram ao tema. Conforme Meurer et alii
(2005), as teorias sobre os gêneros podem ser reunidas em três grupos de abor-
dagens: as sociossemióticas, as sociorretóricas e as sociodiscursivas, cada uma
delas apresentando especificidades e seguindo determinadas linhas teóricas.
As abordagens sociodiscursivas são aquelas, nas quais “são apresentadas
e discutidas as posições de Bakhtin, Bronckart e Maingueneau, que incor-
poram à própria reflexão aportes da análise do discurso, da teoria do texto
e das teorias enunciativas” (MEURER et. all., 2005, p. 09). Os gêneros são
tratados com sinônimo de ação social, uma prática social da ação humana,
que se materializa linguisticamente em formas concretas de realização.
Optamos por utilizar a abordagem sociodiscursiva interacional, fun-
damentada na proposta bakhtiniana e desenvolvida no Brasil por autores
como Marcuschi e Koch, dentro do escopo da linguística textual. Pois, tal
como enuncia Bakhtin (2011, p. 261-262):
Vê-se, com isso, que os gêneros discursivos mudam junto com a socieda-
de, ou seja, eles se diversificam ao passo que a sociedade se desenvolve. O
que nos leva à afirmação de Rojo sobre a movimentação dos gêneros nas
respectivas esferas, na qual ela diz que “o fluxo discursivo dessas esferas cris-
taliza historicamente um conjunto de gêneros mais apropriados a esses lu-
gares e relações, viabilizando regularidades nas práticas socias da linguagem”
(ROJO, 2005 p. 197).
Assim, vivemos um momento propício para o surgimento e desenvolvi-
mento de novos gêneros, pois o contexto hipermidiático proporciona um
terreno fértil para o florescimento de novas esferas comunicativas. Desse
modo, para definir os gêneros textuais precisamos ter em mente que estes
não se caracterizam por estruturas estáticas e definidas (MARCUSCHI,
2010 p. 30).
Entendemos então, que o surgimento e a definição de um determinado
gênero textual são influenciados pelo contexto sociocomunicativo em que
o falante se encontra, o que torna os gêneros uma ferramenta maleável, que
341
pode passar por mudanças de acordo com a época, a idade, o grupo social e
a necessidade de ser mais formal ou não. Como exemplo dessa relativa esta-
bilidade dos gêneros textuais, podemos citar a carta, que passou por diver-
sas transformações, participando de diferentes esferas, originando o e-mail,
considerado, enquanto gênero, seu descendente direto.
Por outro lado, também, a depender do domínio discursivo, teremos gêne-
ros com pouca ou nenhuma maleabilidade, isto é, baixo fator de mutabilidade.
Com relação a gênero, optamos pela proposta de Bakhtin, revista por Marcus-
chi. Enquanto o primeiro tratou dos gêneros discursivos, o segundo vai utilizar a
terminologia gêneros textuais, consoante ao que adotamos neste trabalho.
Assim, Bakhtin classifica os gêneros do discurso em primários e secundá-
rios, estes os que pertencem aos domínios discursivos mais cristalizados da
língua, como o domínio jurídico e o literário, e aqueles os que integram os
gêneros dos domínios mais pessoais, como o familiar e o interpessoal. Bakh-
tin ainda afirma que os gêneros secundários podem acarretar alguns gêneros
primários, como a conversa e a carta. Além disso, o autor apresenta o prin-
cípio da responsividade, no qual formula a tese de que cada gênero gera no
leitor uma intenção de resposta. Alguns gêneros apresentam esse princípio
em maior e outros em menor grau. (MARCUSCHI, 2010; BAKHTIN,
2011; ROJO; BARBOSA, 2015; FIORIN, 2016).
Dessa forma, por contribuírem para ordenação e para a estabilização da co-
municação diária (MARCUSCHI, 2010), os gêneros tornam-se importantes
para os estudos da linguagem. Também fazem parte do dia a dia de cada ser
humano, pois é por meio de enunciados, orais ou escritos, que o emprego da
língua efetua-se, sendo estes concretos e únicos (BAKHTIN, 2011). Enten-
demos que “[...] cada enunciado particular é individual, mas cada campo de
utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os
quais denominamos gêneros do discurso.” (BAKHTIN, 2011, p. 262).
Nesse sentido, conhecer as estruturas de um dado gênero não é como do-
minar as regras gramaticais, pois nestas ocorre um processo de cristalização
que pode levar muito anos para mudar, enquanto naquele há uma tendên-
cia à mudança intrínseca a sua estrutura, que ocorre de forma muito rápida.
Em consonância a isso, Rodrigues (2005, p. 168) afirma que
o estilo do gênero diz respeito ao uso típico dos recursos lexicais, fraseológicos e gramati-
cais da língua. O estilo de um enunciado particular pode ser mais bem compreendido ao
se considerar a sua natureza genérica. Os estilos individuais, bem como os de língua, são
342
estilos de gêneros. Todo enunciado, por ser individual, pode absorver um estilo particu-
lar, mas nem todos os gêneros são capazes de absorvê-lo da mesma maneira.
Leitura
A Leitura, assim como o texto, está presente no cotidiano da nossa so-
ciedade, passamos o dia produzindo e lendo textos. Muitas vezes, porém,
não compreendemos o que é a leitura ou o ato de ler, pois “a leitura é uma
atividade complexa, plural, que se desenvolve em várias direções” (JOUVE,
2002, p. 17). Além disso, ela é uma atividade de compreensão e isso “exige
habilidade, interação e trabalho” (MARCUSCHI, 2008, p. 230), entretan-
to, muitas vezes deixamos informações passarem pela nossa leitura, sem que
tenham uma compreensão bem sucedida. Dessa maneira, compreendemos,
como citamos anteriormente com Jouve (2002 p. 17, grifos nosso), que
Palavras finais
Consideramos que o texto é um dos maiores objetos de interação. É por
meio dele que estabelecemos nossas interações sociais. Assim, os estudos acer-
ca das características, funcionalidades e consequências do texto torna-se de
grande importância para a comunidade e para os demais estudiosos. Por isso,
acreditamos que pesquisas em torno das estruturas textuais e de suas aplica-
ções nos estudos da linguística textual e na sociedade são muito relevantes.
Em relação aos gêneros textuais, temos observado uma grande quantida-
de de estudos em torno do assunto, porém ainda é um campo de estudo
oportuno, pois, como afirma Bakhtin (2011) e retoma Marcuschi (2008;
2007; 2005), estão em constante evolução, pois mudam com a sociedade.
Assim, os gêneros discursivos são de grande importância, pois, como acom-
panham o desenvolvimento da sociedade, tornam-se parte relevante dela por
constituírem instrumentos da comunicação humana.
A leitura é uma atividade de interação que caminha lado a lado com o
texto, pois este ganha novos sentidos por meio daquela. Assim, ela se torna
essencial por causa das variações que pode apresentar, por conta da situa-
cionalidade do leitor. Dessa maneira, merece mais estudos e pesquisas mais
aprofundadas acerca das suas implicações e das variações e mudanças pelas
quais vem passando com a evolução da sociedade.
Quanto às questões relacionadas ao hipertexto e hiperleitura, há ainda mui-
to o que se pesquisam, pois as inovações tecnológicas e o desenvolvimento dos
gêneros textuais digitais influenciaram e influenciam no desenvolvimento des-
ses conceitos de produção textual e de leitura. Ainda temos muito que estudar
em relação a tais assuntos, pois eles apresentam uma evolução que se deu a
partir da flexibilização das estruturas textuais trazidas pela internet.
Por fim, o objetivo deste artigo foi tratar das relações aqui citadas e apon-
tar as inovações que a era da internet vem trazendo ao texto e à leitura, em
busca de demonstrar uma parte das sistematizações que já se estabeleceram
em trono desses temas, principalmente os relacionados ao hipertexto e à hi-
346
perleitura. Desse modo, apresentamos alguns aportes teóricos. Considera-
mos que há ainda uma linha pesquisa desenvolvendo-se a partir do estudo
das produções textuais da internet e da leitura digital.
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348
ESPADACHINS SOBRE A REDE– TENSÕES ENTRE A CRÍTICA E A
LITERATURA EM OS DETETIVES SELVAGENS
Durante um segundo de lucidez, tive a certeza de que havíamos ficado loucos. Mas a
esse segundo de lucidez se antepôs um supersegundo de superlucidez (se me permi-
tem a expressão), em que pensei que aquela cena fosse o resultado lógico de nossas
vidas absurdas (BOLAÑO, 1998, p. 495).
Iñaki atacou seu antagonista, este atacou Iñaki, entendi que poderiam continuar assim
horas a fio, até as espadas lhes pesarem nas mãos [...] Iñaki e seu contendor continuaram
vou pegar você, vou pegar você, como duas crianças bobas (BOLAÑO, 1998, p. 495-496).
Referência Bibliográfica
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356
O FILHO ETERNO: UMA ANÁLISE DOS ELEMENTOS
AUTOFICCIONAIS NO ROMANCE DE CRISTÓVÃO TEZZA E
SUA ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA
Introdução
O premiado romance O filho eterno (2007), de Cristóvão Tezza, traz como
tema a chegada de um filho com síndrome de Down em uma família que se vê
surpresa meio às poucas informações sobre a trissomia do cromossomo 21 nos
anos 1980. Entretanto, a história não trata da síndrome em si e seus desdobra-
mentos na vida da criança, mas do amadurecimento de um pai que não estava
preparado para lidar com um filho diferente do que havia idealizado duran-
te a gestação. Os elementos autobiográficos encontrados no romance foram
exaustivamente confirmados, questionados e problematizados pelo próprio
autor em suas declarações sobre a publicação, o que leva a uma reflexão sobre a
complexa relação entre criador e obra: seria O filho eterno (2007) um acerto de
contas de Tezza com seu passado?
Através dos estudos e conceitos de biografia, autobiografia, narrador e auto-
ficção, o objetivo deste trabalho é analisar elementos autobiográficos na obra
95
Mestre e doutorando em Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGL/UERJ). Contato: waltercami-
nha@gmail.com
357
e discutir o que leva o romance ser catalogado como tal e não como autobio-
grafia ou texto não-ficcional. A leitura de críticos e teóricos como Philippe
Lejeune, Eurídice Figueiredo, Roland Barthes, Ana Amélia Coelho Pace, Ka-
ren Ferreira-Meyers, Leonor Arfuch e Anna Faedrich contribui para o enten-
dimento do que é autoficção e das nuances que diferenciam este romance de
outras obras.
Inicialmente, discutiremos as noções de autoficção resgatando afirmações
de teóricos que, em reflexões convergentes e divergentes sobre o tema, per-
mitem um melhor entendimento do conceito de autoficção para uma abor-
dagem prática a seguir. Desta maneira, prosseguiremos para a segunda parte,
onde será possível mergulhar no universo introspectivo narrado em O filho
eterno (2007) e investigar os elementos que indicam a autoficcionalização no
romance, as características da vida de Cristóvão Tezza em sua obra e os deta-
lhes que tornam o livro um romance e não uma biografia.
Tendo em vista que este trabalho visa entender o posicionamento de O fi-
lho eterno (2007) na literatura brasileira contemporânea como autoficção, será
essencial para a pesquisa levantar dados biográficos de Cristóvão Tezza, assim
como buscar suas declarações, postagens, e entrevistas para traçar paralelos
entre autor e narrador da obra. Por ser um escritor contemporâneo e de con-
siderável presença em canais de comunicação como seu site, revistas, vídeos e
outros, é possível coletar diversos dados revelados pelo próprio Tezza, o que
facilita a identificação de coincidências e diferenças entre sua vida pessoal e a
vida do narrador criado pelo mesmo em O filho eterno (2007).
Em geral, o leitor cria expectativas sobre o tipo de texto que lerá. Essas pressuposi-
ções guiarão sua leitura; o leitor irá corrigi-las caso o texto as contrarie; na cabeça do
leitor, as conclusões podem ser não, isto não é um texto não-ficcional, ou não, isto não
é uma autobiografia, etc. Para classificar o gênero de um texto, o mesmo é preciso ser
lido fazendo pressuposições sobre suas características genéricas, que serão revisadas
ao longo da leitura. Essas expectativas só podem ser criadas e então confirmadas
ou desfeitas caso o leitor conheça os elementos intra-, extra- e paratextuais de um
gênero e, como um detetive ou caçador, busque por esses indícios. (FERREIRA-
-MEYERS apud SHANDS et al, 201598, grifo nosso)
Eu tava me preparando, de certa forma, pra levar pau da crítica, achei que ia ser
soterrado. E na verdade não, foi um livro muito bem recebido literariamente, inclu-
sive, que era o temor que eu tinha, que o livro não fosse lido como ele de fato é: um
registro ficcional sobre dados biográficos meus.
Cristóvão Tezza
Recusa. Recusar: ele não olha para a cama, não olha nem para os médicos – sente
uma vergonha medonha de seu filho e prevê a vertigem do inferno em cada minuto
subsequente de sua vida. Ninguém está preparado para um primeiro filho, ele tenta
pensar, defensivo, ainda mais um filho assim, algo que ele simplesmente não conse-
gue transformar em filho. (TEZZA, 2007, p.25-26)
Vou citar só uma cena engraçada: quando eu escrevi, depois que o livro terminou,
eu li um capítulo pra minha mulher, Beth, e é aquele em que ele sai à calçada do hos-
pital, a criança acabou de nascer, ele não sabe que a criança tem problema, ele vai li-
gar na calçada num orelhão pra avisar a família. O capítulo era todo complicado, ele
desce, vai lá no guichê, compra uma ficha, naquele tempo que tinha ficha... tem um
orelhão com o fio pendurado (...) ele vai no outro, que não tava depredado, como
em qualquer cidade do Brasil tava sempre depredado, ele vai lá no outro e telefona.
E aí minha mulher disse assim “mas você avisou a família do telefone que tava do
lado da cama, pegou o telefone e ligou” (risos). Eu não me lembrava de nada disso,
não é relevante, mas todo aquele momento, aquele capítulo, ele é todo ficcional. Ele
é uma construção romanesca pra dar consistência ao personagem. (TEZZA, 2015)
Considerações finais
Através das leituras de diferentes teóricos sobre a autoficção, é possível
100
Disponível em: http://www.cristovaotezza.com.br/p_biografia.htm . Acesso em: 25 de julho de 2017.
365
olhar para O filho eterno (2007), declarado como romance em sua ficha cata-
lográfica, por uma perspectiva diferente. Como Cristóvão Tezza alerta, seu
livro deve ser lido como um “registro ficcional” sobre dados biográficos dele,
o que leva o leitor a adotar o pacto autoficcional como chave de leitura, e
não o pacto autobiográfico pensado inicialmente por Lejeune.
A escolha de um narrador em terceira pessoa, ao invés do tradicional narra-
dor em primeira pessoa das escritas de si, demonstra o distanciamento que Te-
zza buscou entre as figuras do autor e do narrador. Além disso, Tezza também
optou por não identificar nominalmente o protagonista como Cristóvão, o
que seria comum em romances autobiográficos. A falta de coincidência nomi-
nal também acentua o afastamento entre autor e narrador/personagem.
O exemplo dado por Tezza da primeira parte do livro, após o nascimen-
to do personagem Felipe, reforça o caráter romanesco dado pelo autor a O
filho eterno (2007), demonstrando que o fazer literário se apropria de um
dado autobiográfico e o transforma em um registro ficcional. Os biografe-
mas, coincidências entre a vida do autor e dados da obra, mais facilmente
percebidos com a midiatização mencionada por Arfuch, tornam-se chaves
de leitura para obras autoficcionais.
Deste modo, é possível concluir que O filho eterno (2007), apesar de sua
catalogação oficial, faz parte do complexo gênero da autoficção, meio às ca-
racterísticas discutidas no início deste trabalho e às evidências das entrevistas
de Tezza e trechos de sua obra confrontados em seguida.
Referência bibliográfica
ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: mapa do território. In: ______. O espaço biográfico: di-
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08 de maio de 2017. Entrevista concedida ao site Saraiva Conteúdo. O trecho usado, que compre-
ende os minutos 3’31” a 4’44”, está transcrito no Apêndice A.
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[27 de agosto de 2015]. Vídeo, 38’58”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bZGp-
1j4dsgE. Acesso em: 08 de maio de 2017. Entrevista concedida a Jerônimo Teixeira e Carlos Graieb. O
trecho usado, que compreende os minutos 34’58” a 37’10”, está transcrito no Apêndice B.
APÊNDICE B - Por que isso é ficção? Uma conversa com Cristovão Tezza
Jerônimo Teixeira: A matéria-prima de O filho eterno é biográfica. O que faz daquele livro um
romance? O que diferencia aquilo de um livro de memórias? Por que a gente o coloca na prateleira
do romance e não na prateleira de livros de memórias?
Cristóvão Tezza: porque ali... primeiro que o narrador mente muito (risos).
JT: Mas memorialistas podem mentir também, não tem como saber (risos).
CT: Eu coloco a questão da pressuposição romanesca, ela toma conta do livro já na segunda pá-
gina. Eu deixei, por exemplo... eu não tenho nenhuma preocupação naquele livro com a sequência,
com os fatos reais, a sequência natural. Vou citar só uma cena engraçada: quando eu escrevi, depois
que o livro terminou, eu li um capítulo pra minha mulher, Beth, e é aquele em que ele sai à calçada
367
do hospital, a criança acabou de nascer, ele não sabe que a criança tem problema, ele vai ligar na
calçada num orelhão pra avisar a família. O capítulo era todo complicado, ele desce, vai lá no gui-
chê, compra uma ficha, naquele tempo que tinha ficha... tem um orelhão com o fio pendurado...
JT: tem gerações de ouvintes aqui que não tem a menor idéia do que você tá falando (risos).
CT: (risos) era um telefone que você botava a ficha pra falar, et cetera, e tem um que tem um
fio pendurado, ele vai no outro, que não tava depredado, como em qualquer cidade do Brasil tava
sempre depredado, ele vai lá no outro e telefona. E aí minha mulher disse assim “mas você avisou a
família do telefone que tava do lado da cama, pegou o telefone e ligou” (risos). Eu não me lembrava
de nada disso, não é relevante, mas todo aquele momento, aquele capítulo, ele é todo ficcional. Ele é
uma construção romanesca pra dar consistência ao personagem. Ele vai lembrar da juventude dele,
aquele fio pendurado lá tem sentido - a questão da comunicação -, que eu nem tinha pensado nisso,
foi um crítico que observou isso aí. É uma cena chocante, você chega e aquele fio pendurado não tá
ali por acaso. É a intuição narrativa.
CT: Exatamente, do ponto de vista da experiência sim. Eu passei a pensar o livro não mais na mi-
nha questão biográfica, mas na questão da unidade interna romanesca do livro. Tanto que sempre
que fui reler algum trecho eu dizia “eu não sou esse monstro aqui” (risos).
368