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Copyright © 2020

Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam


quais forem os meios empregados, sem a autorização prévia, por escrito, da
Editora Épos.

Esta é uma obra acadêmica.

Diretor Editorial: Natalia Curupana


Organizadores: Ana Luíza Poyaes, Andréia Queila Santos Gomury,
Émili Feitosa de F. Olenchuk, Felipe Vieira Valentim, Maria Inês Freitas
de Amorim, Jéssica Julliana Godim, Jhonatan Rodrigues Peixoto da Silva,
Monique Pereira da Silva, Nayara Helenn Carvalho dos Santos, Thayane
Verçosa da Silva, Thiago Wallace Rodrigues dos Santos Lopes.

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa


somente para o Brasil adquiridos pela
EDITORA ÉPOS.
Rua Vitorino Fracaro, 27 - Colombo, PR - 83412710
que se reserva a propriedade literária deste livro.

contatoeposeditora@gmail.com
www.eposeditora.com.br

CATALOGAÇÃO DA PUBLICAÇÃO
(ficha catalográfica feita pela Editora)

Vários Autores (nomes em seus respectivos artigos).

Marielles: Somos Muitos, Somos Resistência - Anais do IX Seminário


dos Alunos da Pós-graduação em Letras da UERJ / Vários Autores - Volu-
me 2- 1º ed. - Colombo: Editora Épos, 2020.

ISBN: 978-65-87732-00-8
1.Literatura Brasileira. 2. Marielles. 3. Letras.
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Sumário
Apresentação...................................................................................................................... 09

GÊNEROS: UM OLHAR CONTEMPORÂNEO SOBRE A MULHER


NORDESTINA E O ROTEIRO COMO LITERATURA EM O CÉU DE
SUELY, DE KARIM AÏNOUZ
Ketiley Pessanha de Gouvêa..............................................................................10

FEMINISMO E REDES SOCIAIS NO ENSINO/APRENDIZAGEM DE


INGLÊS EM CONTEXTO INFOPOBRE
Layse Henriques da Costa Kitagawa.................................................................21

A CONCORDÂNCIA VERBAL DE PRIMEIRA PESSOA DO PLURAL


NA VARIEDADE URBANA DO RIO DE JANEIRO: UMA ANÁLISE
VARIACIONISTA
Larissa de Souza Monteiro................................................................................34

A ASCENSÃO DO MERCADO EDITORIAL E O RECRUDESCIMENTO


DE ALGUNS GÊNEROS LITERÁRIOS, NO BRASIL DO SÉCULO XIX
Letícia Arêdes Corrêa.......................................................................................43

ENTRE ARMAS E LETRAS: CONFLITOS, IDENTIDADE E RESIS-


TÊNCIA EM “NO FUNDO DO CANTO” (2007) DE ODETE SEMEDO
E “UMA CASA E DUAS VACAS” (2000), DE JOÃO APARÍCIO
Luís Carlos Alves Melo....................................................................................58

TRÂNSITOS ENTRE POESIA E CANÇÃO: PETER DOHERTY


REMEDIA EMILY DICKINSON
Marcela Santos Brigida.....................................................................................73

OUTRO OLHAR SOBRE O BRASIL: A AMBIVALÊNCIA DO MITO


DO PARAÍSO RACIAL BRASILEIRO
Marcella Mesquita Granatiere..........................................................................82

MIGRATION, DISPLACEMENT AND (NON)BELONGING IN KI-


RAN DESAI’S THE INHERITANCE OF LOSS
Marcelli Claudinni Teixeira Cardoso................................................................89
5
PASSA NA PRAÇA E FEIRA DE POESIA: POESIA E POLÍTICA NA
REDEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRA
Marcelo José Ribeiro Vieira..............................................................................97

EXPERIÊNCIA DE PESQUISA-AÇÃO SOBRE PRECONCEITO


LINGUÍSTICO COM JOVENS DA REDE CUCA, DE FORTALEZA-CE
Maria Hermínia Vieira...................................................................................113

ENTRE SILÊNCIOS E PROTAGONISMOS: A LITERATURA COMO


ESPAÇO PARA SE (RE)PENSAR A HISTÓRIA DA
ESCRAVIDÃO NO BRASIL
Maria Inês Freitas de Amorim........................................................................124

OS EMBATES POLÍTICOS E LITERÁRIOS EM TORNO DA PUBLICA-


ÇÃO DE LIVRO DE UMA SOGRA, DE ALUÍSIO AZEVEDO NA IM-
PRENSA OITOCENTISTA: ECOS DA DUALIDADE CONFLITANTE
ENTRE “ESCRITOR CONSAGRADO” E “ESCRITOR PERIGOSO”
Marina Pozes Pereira Santos...........................................................................136

O CORPO FEMININO: DESEJO & VIOLAÇÃO NA CANTIGA


TROVADORESCA O ANEL DO MEU AMIGO (B920, V507)
Monique Pereira da Silva................................................................................152

NETHERFIELD PARK IS LET AT LAST”: REPRESENTATIONS OF


THE ENGLISH COUNTRY HOUSE IN JANE AUSTEN
Natália Batista Benetti....................................................................................159

SER MÃE É ENLOUQUECER NO PARAÍSO: CONSIDERAÇÕES SO-


BRE A MATERNIDADE EM A DOIDA DO CANDAL,
DE CAMILO CASTELO BRANCO
Nayara Helenn Carvalho dos Santos..............................................................173

A FAZENDA AFRICANA E A MULHER ISAK DINESEN


Pamela Mendes..............................................................................................181

FORMAÇÃO LEITORA DOS PROFESSORES DE FRANCÊS NO


CONTEXTO DA PRÁTICA DE ENSINO
Patricia Ana Wechsler.....................................................................................193
6
MEMÓRIA E RESISTÊNCIA – A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO
SÉCULO XVII NAS LETRAS
Patrícia Bastos................................................................................................206

AS MULHERES E A RUA – UMA ANÁLISE DE FLANANDO POR


LONDRES DE VIRGINIA WOOLF
Patricia Azevedo Costinhas da Silva................................................................218

CONCEPTUALIZAÇÃO DE NOMES PARA A VULVA: INTERFACES


ENTRE GÊNERO, TABU E PRECONCEITO
Patrícia Oliveira de Freitas..............................................................................227

O DESTINO DA LITERATURA: LIMA BARRETO,


UM ESCRITOR MILITANTE
Patrícia Roque Teixeira das Chagas Rosa.......................................................236

UTILIZANDO A MÚSICA UPTOWN FUNK NO ENSINO DE


LÍNGUA INGLESA: UMA ABORDAGEM INTERCULTURAL
Paulo Roberto Parq Alves Pedreira.................................................................246

TRÂNSITO, TERRITÓRIO E FALA: SOBRE CORPOS E POESIA


Samanta Samira Nogueira Rodrigues.............................................................258

O USO DA EXPRESSÃO FAKE NEWS EM MÍDIAS DIGITAIS


BRASILEIRAS: UM ESTUDO BASEADO EM CORPUS
Sonja H. Voitovitch........................................................................................267

ENTRE A “IDEIA NOVA” E OS “VAGOS IDEAIS”: CARVALHO


JÚNIOR, CRÍTICO LITERÁRIO
Thales Sant’Ana Ferreira Mendes....................................................................282

POÉTICAS DO SILÊNCIAMENTO: CORPOS FEMININOS NA OBRA


O LEGADO DA PERDA, DE KIRAN DESAI
Thallita Fernandes..........................................................................................295

TEXTO E COTEXTO: A IMPORTÂNCIA DA LEITURA DE TODAS


AS PARCELAS PRESENTES NO TEXTO VERBO-VISUAL
Thatiana Muylaert S. Menezes.......................................................................306

“HÁ DE TER GRAÇA NO FIM, QUANDO COMPREENDEREM QUE


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O LIVRO NÃO PRESTA PARA NADA”: PARA UMA ANÁLISE DA
IMAGEM DO ESCRITOR NA CORRESPONDÊNCIA
DE GRACILIANO RAMOS
Thayane Verçosa............................................................................................321

A LEITURA NA ERA DA INTERNET: A INFLUÊNCIA DA REDE


DIGITAL NA PRODUÇÃO TEXTUAL E NA LEITURA
Thiago Wallace Rodrigues dos Santos Lopes..................................................334

ESPADACHINS SOBRE A REDE– TENSÕES ENTRE A CRÍTICA E A


LITERATURA EM OS DETETIVES SELVAGENS
Vitor Felix do Vale.........................................................................................348

O FILHO ETERNO: UMA ANÁLISE DOS ELEMENTOS AUTOFIC-


CIONAIS NO ROMANCE DE CRISTÓVÃO TEZZA
E SUA ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA
Walter Cruz Caminha....................................................................................356
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Apresentação
O Seminário dos Alunos da Pós-Graduação em Letras da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro é um evento anual organizado por e para es-
tudantes com o objetivo de divulgar e compartilhar a produção discente da
Pós-Graduação em Letras da UERJ e demais universidades do Brasil, sendo
um evento organizado por e para alunos. Em 2018, o evento chegou a sua 9ª
edição e se realizou entre os dias 26 e 29 de novembro, no Instituto de Letras
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, no Campus do Maracanã.
O IX SAPUERJ assumiu “Marielles” como temática (pluralização, de
forma a acentuar que somos muitos) e apresentou trabalhos que trouxe-
ram reflexões acerca das relações entre Línguas, Literaturas e Sociedade,
destacando-se o poder de transgredir, transfigurar, nomear, imaginar, res-
significar e criar mundos através de linguagens.
Resistir” tem sido a palavra de ordem em tempos tão bicudos que silen-
ciam, calam e atravancam os caminhos: “vocês passarão, eu passarinho”-
acentua Quintana. Desta forma, o legado político deixado por Marielle
Franco nos serviu de base para propor um conjunto de vozes que seguem
perseverando pela democracia, inclusão e fim das desigualdades. A univer-
sidade pública, desta forma, se confirma como espaço para proposição de
debates que tenham por escopo a luta contra as injustiças e a valoração do
ensino público (e popular) em seus diferentes segmentos.
Nossas discussões perpassaram a Análise do Discurso; Poesia; Música; Ci-
nema; Literatura e Feminismo; Discurso e Identidade; Gênero e sexualidade;
Teorias para o ensino e a aprendizagem de línguas; Conceição Evaristo; Gra-
ciliano Ramos; Idade Média; Renascimento; Narrativas identitárias: políticas,
desvios e marcas corporais; Vertentes insólitas na Literatura; Magistério, en-
sino e pesquisa; Violência; Transdisciplinaridades; Novas tecnologias em sala
de aula; Lexicografia; Práticas Políticas e (Re)existência; Direitos Humanos;
Peformances artísticas e a luta de Marielle Franco.

Comissão Organizadora do
IX Seminário dos Alunos da Pós-graduação em Letras da UERJ
Marielles: somos muitos, somos resistência.
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GÊNEROS: UM OLHAR CONTEMPORÂNEO SOBRE A
MULHER NORDESTINA E O ROTEIRO COMO LITERATURA
EM O CÉU DE SUELY, DE KARIM AÏNOUZ

Ketiley Pessanha de Gouvêa


UERJ - FFP/PPLIN

Resumo: A palavra gênero, presente em discussões da contemporaneida-


de, tem trazido reflexões sobre a necessidade de afastamento de um sistema
conservador que não avança na transformação social do qual sempre fez
parte, e, por esta razão, se posicionava hegemônico analisando, individual-
mente, os papéis de “homem” e “mulher”, por exemplo. (TIBURI, 2018). A
mobilidade associada à liberdade, e seus múltiplos sentidos, constrói a per-
sonagem feminina, nordestina e contemporânea que tende a romper os li-
mites morais e castradores sociais (FOUCAULT, 1998), e repensa, também,
a ideias do passado nas questões de gênero. Espera-se compreender os efeitos
de sentido deste trabalho que observa o roteiro em ambiente literário e a
personagem feminina à luz de suas possibilidades de ser em Hermila/Suely.

Palavras-chave: O Céu de Suely. Karim Aïnouz. Personagem Feminina.


Roteiro. Intermidialidades.

Introdução
A obra O céu de Suely foi selecionada, dentre tantos outros, por trazer em
seu enredo a representação da personagem feminina, nordestina, e pelo diá-
logo instigante sobre corpo, sobre ser corpo de muitas formas, outras possi-
bilidades de ser, e pelo fazer cinematográfico das sensações, algo tão latente
na contemporaneidade.
Como um breve recorte dos estudos em desenvolvimento no programa
de mestrado, entendemos a importância e a complexidade ainda atrelada aos
estudos sobre o Nordeste e seus elementos literários. Por meio de pesquisa
de caráter explicativo, com base em análises e articulações das correntes teó-
ricas, e documental-bibliográfica, pois partimos tanto dos estudos desenvol-
vidos com base em materiais audiovisuais, quanto aos pressupostos teóricos
de análise literária.
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Caminhando por uma outra ótica de estudos que pensam a literatura do
Nordeste sob a ótica Graciliana, desenvolvida até então, conhecemos o dire-
tor cearense Karim Aïnouz, que dispensa apresentações, uma vez que seus
filmes Madame Satã, O Abismo Prateado, Viajo porque preciso/volto porque
te amo, entre tantos outros, falam por si.

Aïnouz e o céu de Suely


Aïnouz é um diretor nordestino que estudou arquitetura na UNB, e cul-
tiva um grande laço com os traços, as formas, além de criar seus filmes em
espaços e cenários familiares, que lhe trazem afeto, e de onde pode falar com
propriedade. Trabalha o viés diaspórico, sem entrar nos aspectos teóricos do
vocábulo, sob um outro olhar, de uma outra perspectiva, pois o movimento
migratório nordestino sempre ocorreu com certa frequência, como sabe-
mos, através da figura masculina, típico vaqueiro-sertanejo, que vai para as
grandes metrópoles e deixa para trás mulher e filhos.
Em 2000, Karim Aïnouz assinou um curta-metragem, Rifa-Me, que
serviria de embrião a O Céu de Suely, lançado seis anos mais tarde. Neste,
os atores emprestam seus próprios nomes às personagens que interpretam
(Hermila é a atriz Hermila Guedes na vida real) e isto diz muito sobre o fil-
me, fato que demonstra a preocupação do diretor em buscar um registro de
atuação distante da representação estilizada e próximo de uma naturalidade
construída. Mas esta construção deve, de preferência, permanecer invisível
aos olhos dos espectadores, de modo a fazê-los “esquecer” de que estão assis-
tindo a atores que interpretam.
Em o céu de Suely, o enredo é outro. Não há o retrato de um Brasil pito-
resco, mas de um Brasil do dia a dia. Fala sobre uma jovem de 21 anos, cha-
mada Hermila, e que posteriormente se autodenomina Suely, (uma vez que
Hermila a leva para um lugar de fala mãe-neta-sobrinha que se tem conheci-
mento, e Suely seria então a sua versão desprendida, autônoma). Essa jovem
de 21 anos regressa de São Paulo para Iguatu, sua cidade-natal localizada no
Ceará, com o pequeno Mateuzinho, seu filho de colo, e com esperanças de
seu parceiro, o Mateus, também regresse.
No entanto, a volta do rapaz não acontece, e ainda que a moça tenha mo-
tivos que a façam ficar, como a possibilidade de retomar um amor com o
antigo namorado, ou voltar a morar com a avó e a tia, aumentando o seu clã
familiar, criando ali o seu filho, ainda assim, Hermila, personagem da atriz
12
Hermila Guedes, representa uma personagem feminina em constante mi-
gração e deslocamento, fazendo com que o espectador perceba que o lugar
que ela chama de seu é o seu próprio corpo; ele é seu habitat.
É necessário reforçar a ideia de que os objetos de estudos manuseados so-
bre o céu de Suely são roteiro e filme, tendo em vista que o roteiro se trata
de um primeiro trabalho, algo confeccionado primeiro, cronologicamente,
que mantém o nome das personagens diferentes daqueles escolhidos para o
cinema: Suely é Suely do começo ao fim no roteiro, já no filme, a persona-
gem se chama Hermila, permitindo que o público suponha que o “Suely”,
utilizado no título, seja o nome dado por ela no momento em que tem a
relação sexual em troca do dinheiro resultado da rifa de seu corpo.
Segundo Figueiredo (2010), na contemporaneidade, literatura e cinema
mantêm-se próximos, ademais, em decorrência dos deslocamentos operados
pela tecnologia digital múltipla, atingindo as especificidades de cada lingua-
gem utilizada, abalando a estabilidade dos suportes tradicionais, promoven-
do o intercâmbio de recursos entre mídias variadas, e, por conseguinte, di-
minuindo as distâncias entre os campos artísticos.
A diversidade tecnológica presente na contemporaneidade, combinada à efe-
meridade própria de seu tempo, empresta às relações de sentido um caráter in-
terpretativo distintito e inovador. Cada vez mais, leitores-espectadores apuram
seus olhares para encontrarem nas mídias o empirismo existente fora delas.

Porque é diante de um aparelho que a esmagadora maioria dos citadinos precisa alie-
nar-se de sua humanidade, nos balcões e nas fábricas, durante o dia de trabalho. À
noite, as mesmas massas enchem o cinemas para assistirem à vingança que o intérprete
executa em nome delas, na medida em que o ator não somente afirma diante do apa-
relho sua humanidade (ou o que parece como tal aos olhos dos espectadores), como
coloca esse aparelho a serviço de seu próprio triunfo (BENJAMIN, 1985, p.179).

O cinema é capaz de veicular com mais rapidez o que também encontra-


mos na literatura: um trabalho coletivo visto como um agente transforma-
dor, motor de uma grande mudança na função social da arte, sendo que o
trabalho do ator é causar proximidade entre as massas.
Entre a palavra e a imagem, literatura e cinema, os diálogos intermidiais
fortalecem-se: atraem as massas para tal capitalismo cultural, “enchendo os
cinemas e vingando-se através dos intérpretes das cenas”. Diálogo intermi-
dial também é isso; é possibilidade de proximidade entre as mídias que se
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suplementam em nome de multiplas esferas de sentido interpretativo. São
também os espectadores os novos construtores do enredo, dos finais de epi-
sódios ou temporadas inteiras, e são eles capazes de promover a intertextuali-
dade entre temas, elementos narrativos, mídias distintas, entre outros.

O roteiro
De modo bastante breve, tangenciaremos também o gênero roteiro e suas
funções e atuações na literatura, de modo que com a abertura e múltiplos
diálogos propostos pela contemporaneidade, ele possa ser lido de outras
formas que não apenas um manual de orientação para as cenas e falas das
personagens.
É bem verdade que este olhar veio após a publicação do roteiro de o céu
de Suely pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Entende-se que o
mesmo não ocupa o lugar de um romance ou de uma obra adaptada, mas
conquista o seu lugar, seu lugar de roteiro publicado. E cabe dizer que, en-
contramos sim as rubricas e todas as linguagens técnicas de um roteiro, mas
é possível encontrar certa prosa e arte no texto escrito.
É perfeitamente compreensível que a discussão sobre roteiro e literatura
ou mesmo roteiro em literatura seja densa o bastante, requeira muitas lei-
turas, discussões e considerações, e talvez não nos dê respostas significativas
àquilo que procuramos, no entanto, sob o aparato dos estudos de Literatura
comparada, e das considerações feitas pela professora Vera Follain, em sua
obra “Narrativas migrantes: literatura, roteiro e cinema” (2010), por exem-
plo, como através da seguinte citação:

Na direção oposta do movimento de “transposição” da literatura para a tela, o cine-


ma, como já se observou, vem buscando cada vez mais o espaço do livro, ou melhor,
o mercado editorial vem apostando no filão das publicações derivadas de filmes.
Não se trata de livros de teoria ou crítica de cinema, nem da publicação de roteiros
de filmes que não foram realizados, que funcionariam como registro de uma memó-
ria que não deve ser perdida. Além do aumento do número de roteiros editados e li-
vro, há as publicações de histórias de realização de filmes, isto é, de relatos das etapas
de elaboração de uma obra cinematográfica concluída, assim como obras híbridas
nas quais se reúne material variado como fotos, entrevistas, depoimentos, críticas, e,
às vezes, o próprio roteiro. (...) Por outro lado, a publicação de roteiros tem levado
profissionais de cinema a defender a ideia de que estes constituem um novo gênero
narrativo, capaz de despertar o interesse do leitor comum, não especializado. (...). A
valorização do roteiro como texto, com um valor em si e não apenas como uma fer-
ramenta útil que se abandona após a realização do filme, coloca em pauta questões
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relativas à autoria da obra cinematográfica e do próprio livro em que se publica o
roteiro (FIGUEIREDO, 2010, p.39-40).

Confirmamos, por meio dessa citação, que existe um olhar de mais valo-
rização sobre o roteiro, de modo que ele não seja apenas uma ferramenta a
ser abandonada após a realização do filme. É possível encontrar leitores inte-
ressados por este tipo de texto, a fim de que estejam mais próximos, inclusi-
ve, da arte cinematográfica. Porém, como já dissemos, esta é uma discussão
bastante densa, e o que queremos aqui é apenas trazer um olhar, uma ideia
de que há caminhos que podem ser percorridos no que se diz respeito aos
estudos do roteiro por um viés mais literário, digamos.

A(s) personagem(s) feminina(s)


É indispensável o olhar sobre o feminino representado na obra. A mulher
cearense na contemporaneidade, ainda que vista com um olhar sexualizado
e ou subalternizado pela figura masculina, sobretudo, tem mostrado incli-
nações para conquistar seu espaço, e oportunidades de fala, sempre negli-
genciados a ela.
Através de Hermila/Suely, vemos alguém que se propõe a não abaixar a ca-
beça às dificuldades (pobreza, relacionamentos frustrados, fama de prostituta,
etc), e com ousadia, tem a ideia de sortear seu próprio corpo por uma única
noite, intitulada “uma noite no paraíso”, a fim de conseguir o dinheiro neces-
sário para ir a novos lugares, lugares o mais distantes possível, para recomeçar
com liberdade onde não a conheçam, onde não haja presente ou passado.

SUELY – “15 reais e você concorre... se ganhar passa a noite toda comigo. Já vendi
um monte, mas a chance é boa. (pausa). Faço tudo o que você quiser. Vale a pena,
viu... e não sou garota de programa, não. Sou moça de família, sabe?” Sérgio olha
para o corpo dela, impressionado com tudo. SÉRGIO – “Olhe... puta aqui dentro
não pode, não, menina.” SUELY - (dura) “Já falei que não sou puta!” (AÏNOUZ,
2008, p. 93-94).

Com o reforço da citação, observamos a força com que se defende e se im-


põe frente aos desaforos e discursos machistas. Hermila é frequentemente
contestada e agredida por boa parte dos habitantes, incluindo outras mulhe-
res, condicionadas àquela vida, reproduzem os discursos que ouvem. No en-
tanto, ela não se submete aos lampejos da sociedade patriarcal e leva adiante
o seu plano de rifar-se por uma noite.
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Ao mencionarmos Hermila e Suely, distintamente, trazemos à discussão
a possibilidade plural do ser dentro da narrativa de Aïnouz, no entanto, são
indissociáveis, uma vez que a força de uma é da outra; os anseios de liberdade
de uma são da outra; assim como a coragem, a determinação e tantos outros
substantivos que a(s) categoriza(m).
A liberdade que Suely proporciona a Hermila é um dos traços de seu pro-
cesso de desligamento e desconexão com seu ambiente natal, porque mais
importante para ela que chegar, é partir. Ao fim da trama confirmamos esse
dado, uma vez que ela consegue o dinheiro para deixar novamente o Ceará,
através de uma noite de amor sem prazer, no mais, pouco lhe importa, pois
até o presente momento ela tem feito aquilo que se propôs, usa o corpo
como quer, e demonstra a busca por sua autonomia a cada detalhe.
Michel Foucault, por meio de seus compêndios sobre histórias da sexuali-
dade, nos mostra o trajeto de amplas discussões. Segundo ele, os gregos eram
povos que mantinham atos sexuais entre adultos livres do sexo masculino,
seja pelo ato de relacionar-se, seja pelo ato da instrução, pois não haviam re-
cebido a herança cultural de interdições sexuais em nome de potência divina
ou contratos de fidelidade matrimoniais.
Confrontados por práticas morais e éticas de civilizações mais ricas, ini-
ciou-se um estabelecimento coercitivo da ética sexual, sobretudo às classes
mais desfavorecidas, escravos e mulheres. Num curso mais evolutivo, ques-
tões como virgindade, conduta matrimonial, fidelidade entre cônjuges, en-
tre outros, ganhavam forma e peso dentro da sociedade patriarcal que, de
certo modo, estende-se à contemporaneidade.
As práticas sexuais estiveram cada vez mais categorizadas, veladas e intri-
gantes. O sexo ocorria entre cônjuges nos moldes do casamento, cuja finali-
dade seria a da procriação, pós-intervenção divina e social; entre homens e
mulheres que se prostituíam, sobretudo para o seu sustento; entre amantes
e pessoas do mesmo sexo, sendo estas formas as mais secretas, haja vista a
sociedade condenatória vigente.
Havendo, portanto, outros tipos e casos de ocorrência sexual, levantamos
aqueles como evidentes, pois eles nos incitam à reflexão sobre algo ainda
bastante discutido: o fato de o sexo não ser visto como algo permitido e que
poderia conduzir à satisfação dos envolvidos. A prática sexual que acontece
fora das categorias mencionadas parágrafo acima o ilegitimam, tornando-o
perigoso e subversivo. Logo, aos que o cometem fora de sua situação de uso
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esperada, são lançados olhares e pareceres tortuosos.
No mundo empírico, é possível ver que mesmo com avanços e militâncias,
a classe feminina ainda peleja para conquistar seu espaço e local de fala. É
ainda impedido a ela o direito de fazer do seu corpo aquilo que bem queira,
sem que seja difamada e pormenorizada. A mulher caminha e avança com
alguma dificuldade na sociedade, porque há sempre obstáculos a serem des-
viados, revistos, repensados, vez ou outra, desistidos.
Na ficção, a mulher é representada pela personagem feminina, que procura
lhe ser fidedigna em muitos aspectos. Ao revisitarmos Freud e o complexo de
Édipo, em que há angústia no fato de a mulher não apresentar o pênis, sinôni-
mo de virilidade e poder masculinos, vemos sua afeição pela figura de seu pai,
a busca por encontrar nele aquilo que lhe falta, e neste átimo, tal percepção
pode ser encontrada em inúmeros grupos de representações femininas.

(...) o Édipo da menina se esboça em suas sofreguidões orais, fortemente acompa-


nhadas de pulsões genitais: trata-se do desejo de tomar à mãe o pênis paterno. Em
resumo o Édipo feminino não sucede ao complexo de castração, como quer Freud,
se bem que a menina cobice o pênis e odeie a mãe que recusa entregá-lo, assim como
bem o viu desta vez o papá Freud: mas o que a menina me parece desejar antes de
tudo é a incorporação do pênis paterno como um modo de satisfação oral, mais do
que a posse de um pênis que tenha valor de atributo viril (FREUD Apud KRISTE-
VA, 2002, p.144).

Com o tempo, vê-se que o pênis, no universo feminino, lhe serve como
figura de aprazimento. Como o seio materno antes levado à boca para suprir
a necessidade imediata, a genitália masculina passa a ser busca constante para
outros fins, então sexuais e incessantes. Com esse anseio fisiológico pulsante,
a mulher se sente no direito de satisfazê-lo, assim como a figura masculina o
faz sem muito esforço, no entanto, à ela são impostas barreiras da virgindade
e castidade, fidelidade ao cônjuge, práticas apenas para a procriação e dentro
do matrimônio, e um sem-fim de limitações citadas anteriormente.
Dissemos que na ficção, a personagem feminina representa a figura da
mulher empírica, e em nosso objeto de estudos, o filme de Karim Aïnouz, a
personagem tem de enfrentar críticas e comentários de seus semelhantes por
usar seu corpo como rifa de um ato sexual para conseguir o dinheiro neces-
sário à sua partida de Iguatu.
Rifar-se se torna algo incomum, no entanto, o que está por detrás é a objetivi-
dade de lutar com as armas que tem a curto prazo, para alcançar determinado fim.
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SUELY – Tia...
IVONETE – Fala.
SUELY – Vou me rifar, tia.
IVONETE – (sem entender) O que é?
Suely está séria.
SUELY - Vou rifar minha xxxxxx e ficar rica... comprar uma casa pra morar com
meu filho.
Ivonete olha para Suely, incrédula. Suely desvia o olhar para o vazio. Pensa.
SUELY – Perdi a paciência, tia. Quero dinheiro, e agora.
IVONETE – (preocupada) Isso é ideia de puta, Suely...
SUELY (calam – seca) Quero ser puta não, tia. Quero ser coisa nenhuma.
(AÏNOUZ, roteiro, 2007, p.78-79).

O tomo anterior foi retirado do roteiro publicado onde a personagem se


chama Suely do início ao fim, não havendo uma ruptura com o nome para
então se dar às aventuras do corpo. Há o registro de uma mulher decidida,
tão maior em pensamentos, tão mais à frente que as demais do vilarejo que
não cabe nele. É alguém que não quer rótulos, estigmas ou pertencer a algo.
A personagem é alguém que quer ir além dos estereótipos sempre estabele-
cidos pela sociedade.
Nesta nota, trazemos à memória uma breve reflexão sobre as discussões
sobre gênero, sempre tão em voga na contemporaneidade. É pertinente ao
trabalho, pois estamos lidando com uma personagem feminina, mulher,
que se quer diferente dos moldes patriarcais.

“Gênero” é um termo usado para analisar os papéis “masculino” e “feminino” que


se tornaram hegemônicos. A aparência de homem e mulher está profundamente
ligada a regras de comportamento. Somos controlados social e domesticamente des-
de que fomos “generificados”, como afirma Judith Butler. Isso quer dizer que so-
mos construídos no tempo e nossa sexualidade é altamente plástica como é a nossa
alimentação, a nossa corporeidade, a nossa espiritualidade, a nossa imagem, a nossa
linguagem, a sociedade em que vivemos, e, por isso, mesmo pode ser modificada em
muitos sentidos (TIBURI, 2018, p. 28-29).

O ser gênero feminino em Hermila é ser totalmente livre para fazer tudo
aquilo que todos os gêneros são capazes de fazer, sem se pormenorizar, sem
precisar passar por julgamentos como passou em seu próprio seio familiar,
quando avó e tia condicionaram o uso de seu próprio corpo à práticas de
prostituição, uma vez que enxergam a prostituição como algo baixo e vulgar.
A discussão é ampla, toca no Feminismo, assunto bastante amplo para o instante, no
entanto, ao falarmos de nossa personagem, falamos da mulher que se desafia e questiona.
18
O interstício entre Hermila e Suely é movido pela força do capital. O que de fato
quer Suely? Ao rifar-se ‘como uma noite no paraíso’, atenua a possibilidade de pros-
tituição, um eufemismo que lhe confere um certo pudor, por isso a identidade du-
pla: Hermila é mãe, neta, sobrinha, o polo das identidades sociais valoradas na escala
da família; Suely é sua face reinventada no capitalismo da biopolítica. Diz que não
é puta. ‘pois puta trepa com todo mundo e eu só trepo com um cara’. E emenda:
‘não quero ser puta. Não quero ser coisa nenhuma’. Assim, sem saber o que quer
ser, mas sabendo que quer ir e por que meios pode voltar à estrada, Suely transita no
entre lugar que se torna Iguatu (BRANDÃO, 2008, p.96).

A pergunta feita, “o que quer Suely?”, por meio da citação anterior, nos
faz pensar a respeito da construção de sua resposta, que mais facilmente de-
veria ser feito através de negativas, uma vez que o que se tem é aquilo que ela
não quer.
Suely não quer continuar em Iguatu levando a vida da qual fugira um dia;
tampouco quer retornar para São Paulo, local que representa o seu fracasso.
Suely, outrossim, não quer ser prostituta, pois deseja ter seu corpo e desejos
livres para serem de quem ela quiser, e, certo modo, ser prostituta também é
criar raízes, ainda que seja a um modo de vida.
Em tempo, Suely não quer mais um ‘Matheus’ em sua vida, por isso rejei-
ta o antigo namorado que lhe passa a ideia de vida modesta nos moldes de
uma família tradicional, com marido, mulher, filhos e todo um ciclo que se
repete. Suely não quer nenhum desses caminhos. Ela quer algum que a leve
para mais longe.
Partindo do pressuposto de que a identidade se desenvolve durante o pro-
cesso de formação do indivíduo, a personagem em estudo, Hermila/Suely,
apresenta em seu ser volátil constantes mudanças. Estabelecemos referência
às relações entre gênero e identidade, porque o gênero é a nossa identidade
primeira, é aquilo que atribui existência significável para os sujeitos, qua-
lificando-os para a vida no interior da inteligibilidade cultural (BUTLER,
2003, p.102-118).
Dentre variados personagens que subsistem nos mais diversificados ro-
mances que se fixam no imaginário dos leitores, temos a marcante presença
da personagem feminina, que nos leva a refletir sobre os diferentes lugares e
eixos temáticos os quais ocupa.
Ao longo dos anos de criação literária, a mulher no romance preencheu
dois possíveis eixos principais de leitura bem demarcados ao longo do tem-
po, estabelecidos e encontrados nas mais variadas e consagradas obras. São
19
eles: o eixo das musas e mulheres próximas do ideal, do amor inatingível,
encontradas nas literaturas clássicas, no Romantismo, entre cancioneiros,
sonetos e infindáveis obras de exaltação da mulher enquanto ser de adora-
ção, próximo ao divino; e o eixo feminino alcançável, presentificado na pros-
tituição, na vida extraconjugal, feitiçarias, e outros.
Pouco a pouco, arriscamos dizer que a personagem feminina, certo modo,
integralizou-se ao grupo das minorias do romance, tanto quanto aos negros,
aos pobres, aos de diferentes crenças, ou seja, faz parte de todos aqueles que
têm suas vozes silenciadas, e esta preocupação se acha de algum modo regis-
trada claramente em obras de anos e séculos anteriores, todavia na contem-
poraneidade há ainda muito o que se dizer e refletir a respeito.

Considerações Finais
É por observar a personagem feminina, seus desdobramentos ao longo
do tempo e espaço, acompanhar o seu processo evolutivo, por, justamente,
estar vinculada à representações do real cada vez mais complexas, bem como
seu processo de recepção e ou (idem)tificação, ver-se semelhante em algum
aspecto, com seu público-leitor-espectador.
Encontramos Hermila para análise e observações de estudos propostos, à
luz da contemporaneidade, e demais aspectos pesquisados, discutidos e de-
senvolvidos ao longo do vigente curso, vinculado ao programa de Mestrado,
e, de algum modo, percebemos que o encontro foi mútuo e a identificação
legítima. Somos Hermila. Somos Suely.

Referência Bibliográfica
AÏNOUZ, Karim; BRAGANÇA, Felipe; ZACHARIAS, Maurício.O céu de Suely (roteiro). São
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TIBURI, Marcia. Feminismo em comum: para todas, todes e todos. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 2018.
21
FEMINISMO E REDES SOCIAIS NO ENSINO/APRENDIZA-
GEM DE INGLÊS EM CONTEXTO INFOPOBRE

Layse Henriques da Costa Kitagawa1


UERJ

Resumo: Este trabalho tem como objetivo propor através da Linguística


Aplicada Crítica (PENNYCOOK, 2001) um projeto de mestrado que visa
o empoderamento feminino em escola da rede pública na educação básica
em aulas de língua inglesa. O feminismo será estudado através de uma Web-
Quest (CARDOSO, 2010), seguido de análise e intervenção em publicações
encontradas em redes sociais que manifestam visão misógina, pondo em
prática o conceito de interatividade (SILVA, 2002). O resultado esperado é
uma libertação de oprimidos e opressores, que muitas vezes não se percebem
como tal (FREIRE, 2018).

Palavras-chave: Feminismo. Interatividade. Ensino básico.

Introdução
Em minha carreira como professora de língua inglesa da rede pública mu-
nicipal de Duque de Caxias no segundo distrito, foi possível perceber uma
frequente evasão de alunas do segundo segmento do nível fundamental, por
variados motivos: desde gravidez, até mesmo por terem assumido um com-
promisso sério (tendo em mente que o público atendido tem uma média
de idade de 16 anos). Outra situação muito alarmante é o alto índice de
violência contra a mulher na Baixada Fluminense e a naturalidade com que
discentes encaram essa realidade, tendo em vista caso relatado por alunas da
escola, que alegaram já terem sofrido esse tipo de agressão ainda na adoles-
cência. Esse crime é recorrente no município em questão já que esse ocupou
o terceiro lugar em recebimento de denúncias de violência contra a mulher
do estado do Rio de Janeiro, conforme aponta pesquisa feita pela Diretoria
de Análise de Políticas Públicas da FGV entre 2006 e 2017.
1
Especialização no Programa de Pós-graduação em Letras, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Área de atuação: Linguística
Aplicada ao Ensino de Inglês como Língua Estrangeira
22
Além disso, com o advento das Redes Sociais, são frequentes as postagens
de alunos de ambos os sexos em que se observa uma visão sexista acerca do
papel da mulher na sociedade. Tal paradigma despertou o meu interesse em
desenvolver este projeto a fim de alcançar uma libertação tanto dos opri-
midos quanto dos opressores (FREIRE, 2018) através dessa ferramenta,
porém com um fim educativo e gerador de mudanças. Pensando no meio
utilizados pelos discentes para expor opiniões e voz, a Web 2.0, percebi a
urgência dessa geração em se expressar de uma maneira interativa, saindo
de um estágio passivo de receptores de informação para o de co-autores de
informação e conhecimento (SILVA, 2002). Para executar trabalhos com
interatividade em Redes sociais, será disponibilizado pela direção da escola
um único computador com acesso à Internet, pois a sala de informática en-
contra-se interditada por falta de manutenção nos aparelhos, todos inope-
rantes, o que caracteriza um contexto infopobre (idem), além dos aparelhos
celulares com acesso à Internet dos alunos que os possuam.
Ao longo deste projeto busca-se discutir o feminismo nas aulas de lín-
gua inglesa, utilizando tecnologia, a partir de uma WebQuest (CARDOSO,
2010) em que serão estudadas autoras, cientistas, ativistas, figuras políticas
feministas, que dêem aos alunos uma visão mais empoderada do papel da
mulher na sociedade atual, mostrando caminhos, que para alguns poderiam
parecer impossíveis. Não poderia deixar de ser lembrada a vereadora Mariel-
le Franco, cuja história será estudada e refletida, por se tratar de uma mulher
de um contexto social próximo ao de muitos alunos, que alcançou reconhe-
cimento por suas lutas, apesar de ter sido silenciada por exercer seu trabalho.
Numa outra etapa, será dada voz aos alunos para que se manifestem so-
bre o tema tendo como ponto de vista suas próprias redes sociais, buscando
memes, vídeos, textos que tragam traços de uma visão misógina, para que
mostrem seus pontos de vista, agora com uma visão de mulher empoderada.
Ao criarem uma espécie de réplica aos textos encontrados, serão exercitadas
a leitura crítica do mundo (PENNYCOOK, 2001) e a Interatividade (SIL-
VA, 2002). Tais objetivos, porém, demandariam de autorização do Comitê
de Ética, inviabilizando essas etapas na especialização, motivo pela qual o
trabalho será terminado futuramente.
As questões de pesquisa, até o momento da apresentação deste trabalho
no SAPUERJ 2018, são:
1.De que maneira desenvolver uma Webquest que trabalhe efetivamente o feminismo?
23
2.Como fazer adaptações para utilizar tecnologias em contexto infopobre?
3.Como utilizar redes sociais para promover o multiletramento crítico?

Linguística aplicada crítica


A abordagem crítica da Linguística Aplicada (PENNYCOOK, 2001) foi
escolhida para nortear este trabalho por seu compromisso com a transfor-
mação da sociedade. Para alcançar esse objetivo, o autor pontua o desafio de
relacionar conceitos de lingüística aplicada a um nível mais amplo de inter-
pretação da realidade. Torna-se, então, necessário fazer um mapeamento das
micro e macro relações, como maneira de

[E]ntender uma relação entre conceitos de sociedade, ideologia, capitalismo global,


colonialismo, educação, gênero, racismo, sexualidade, classe e enunciação em sala de
aula, traduções, conversas, gêneros, aquisição de segunda língua, textos midiáticos.
(PENNYCOOK, 2001, p.5).2

Dessa forma, linguistas podem vislumbrar fenômenos sociais a partir de


um prisma mais amplo, gerando maior compreensão, e mecanismos de in-
tervenção na realidade local em que se insere a comunidade escolar de inte-
resse. Não basta interpretar dados de uma pesquisa a respeito da incidência
de casos de violência contra mulher no estado do Rio de Janeiro, ou acumu-
lar conhecimento sobre a temática do feminismo isoladamente, pois as vi-
vências no mundo globalizado, permeado de interações em diversas mídias,
exigem uma complexidade de interpretações de mundo que não pode ser
ignorada no ambiente escolar.
Outro domínio da Linguística Aplicada Crítica importante para este
trabalho é o da práxis, definida por Simon (1992, apud PENNYCOOK,
2001, p.3) como uma “contínua integração reflexiva de pensamento, desejo
e ação”. Não basta teorizar e descrever apenas ou mencionar a necessidade
de determinada ação a ser tomada por outrem. Por esse motivo as ativida-
des que estão em desenvolvimento para serem postas em prática durante o
mestrado, em que os discentes farão uso de suas redes sociais para criticar
misoginia, serão abertas, e partirão da percepção dos alunos, para que eles
possam agir como sujeitos autônomos e críticos.

Feminismo
Na célebre afirmação de Simone de Beauvoir “não se nasce mulher, torna-
2
Tradução minha para: “understanding a relation between concepts of society, ideology, global capitalism, colonialism, education, gender,
racism, sexuality, class, and second language acquisition, media texts.”
24
-se mulher”, corrobora-se essa noção de que há uma posição social ideologi-
camente fabricada para cada gênero.

O ‘masculino’ e o ‘feminino’ são criações culturais e, como tal, são comportamen-


tos apreendidos através do processo de socialização que condiciona diferentemente
os sexos para cumprirem funções sociais específicas e diversas. Aprendemos a ser ho-
mens e mulheres e aceitar como naturais relações de poder entre os sexos (ALVES;
PINTANGUY, P 55, 1991).

Para vencer esse paradigma incutido na práxis social é de estrema importância


fazer com que as pessoas consigam enxergar-se imersas nessas amarras. Segundo
Alves e Pitanguy (1991), tais imposição ideológicas, como a divisão desigual de
tarefas domésticas, brincadeiras “naturalmente” separadas para cada sexo são en-
sinadas desde muito cedo pela família, escola, mídia, religião e devem ser perce-
bidas e combatidas pelos movimentos feministas. É necessário atentar para essas
ações corriqueiras, que, na verdade são imbuídas de preconceito:

Ensine a ela que “papéis de gêner” são totalmente absurdos. Nunca lhe diga para
fazer ou deixar de fazer alguma coisa “porque você é menina”. “Porque você é me-
nina” nunca é razão para nada. Jamais. Lembro que me diziam quando era criança
para “varrer direito, como uma menina”. O que significava que varrer tinha a ver
com ser mulher. Eu preferiria que tivessem dito apenas para “varrer direito, pois
assim vai limpar melhor o chão”. E preferiria que tivessem dito a mesma coisa para
os meus irmãos (ADICHIE, 2017, p. 21).

As obras Para educar crianças feministas – um manifesto, e Sejamos todos


feministas ambos de Chimamanda Ngozi Adichie (2015, 2017), escritora
nigeriana proeminente na atualidade, foram leituras preliminares que moti-
varam o desejo de incluir esse assunto nas aulas de inglês na referida escola.
Por conter uma linguagem acessível e engajamento em trazer à luz questões
do cotidiano sob uma perspectiva feminista, reconheci uma oportunidade
de tocar no assunto de uma maneira mais próxima do que os discentes fazem
em seu tempo livre, diferindo-se, assim, das leituras mandatórias dos livros
didáticos. Serão fontes desta pesquisa, além de excertos de textos impressos,
partes de entrevistas dadas pela autora em programas de TV na língua-alvo,
e também notícias de outros autores, principalmente de sites e jornais inter-
nacionais, incluindo reportagem a respeito de Marielle Franco, vereadora
negra, carioca, moradora de comunidade, que engloba várias bandeiras de
luta, tão digna de memória e estudo para este público-alvo.
25
Interatividade
Segundo Silva (2002), a evolução da tecnologia mudou parâmetros da so-
ciedade trazendo à tona o conceito de interatividade, que iria delinear no
passar dos anos uma nova forma de agir socialmente. Se antes a educação
estava acostumada com uma interatividade de grau zero, assumindo alunos
como receptores de informações, num estilo de ensino sem espaço para in-
teração ou dar voz aos alunos; esse modelo, porém, perdeu espaço a partir
do acesso à Internet e à Web 2.0, democratizadas atualmente, urgindo para a
necessidade de uma mudança de postura de professores, que devem buscar
fornecer condições para que suas salas de aula sejam interativas:
ambiente em que o professor interrompe a tradição do falar/ditar, deixando de
identificar-se com o contador de histórias, e adota uma postura semelhante a do de-
signer de software interativo. Ele constrói um conjunto de territórios a serem explo-
rados pelos alunos e disponibiliza co-autoria e múltiplas conexões, permitindo que
o aluno também faça por si mesmo. (SILVA, 2002, p. 23).

Essa visão de sala de aula combina com o perfil não só de aluno, mas de
indivíduo da atualidade. Porém, a referida interatividade conseguida através
de ferramentas tecnológicas, não é ainda acessível a todos os alunos e contex-
tos escolares. Os locais ou indivíduos que não dispõe de computadores, ce-
lulares, Internet, que estão alheios a todas essas possibilidades de interação,
são denominados Infopobres pelo autor.
Outros conceitos importantes apresentados por Silva (2002) que se rela-
cionam com o trabalho são a Co-autoria, Antiarte e Hibridação. A partir da
primeira, o espectador rompe com sua lógica passiva, assumindo diferentes
papéis: autor, produtor, um Co-autor. Antiarte, desenvolvida por Hélio Oi-
ticica, carrega consigo uma ideia de obra em construção, que demanda uma
interferência coletiva, sem distinção de sujeitos, fundindo criador, fruidor
e espectador. Os parangolés por ele criados eram um exemplo dessas obras
abertas, que permitiam aos espectadores interpretar suas performances li-
vremente. Hibridação é o resultado da soma dessas duas noções. A ação de
co-criar através de uma antiarte faz com que esses três itens: obra, autor e
espectador não ocupem papéis bem delimitados, atingindo um nível de in-
tercâmbio constante. Essa é a possibilidade gerada a partir da interatividade.
Propor novos papéis aos sujeitos, para que possam exercitar criatividade e
produzir ao final algo pessoal, significativo e verdadeiro.
26
Conceitos freireanos
Ao criticar a educação bancária, em que os professores são aqueles que
depositam conhecimento nas mentes de seus alunos, que devem memorizá-
-los passivamente sem qualquer reflexão ou voz, surge a noção de educação
problematizadora. Essa forma de pensar a pedagogia, “faz, assim, um esforço
permanente através do qual homens vão percebendo, criticamente, como
estão sendo no mundo com que e em que se acham” (idem, 2018, p.100).
Através desse espaço em que é possível dialogar, refletir sobre si mesmo e
suas ações no mundo, é aberta uma possibilidade de realizar uma “grande
tarefa humanista e histórica dos oprimidos – libertar-se a si e aos opressores.
(idem, 2018, p.41)”. O autor explica que, muitas vezes, o opressor não se
percebe como tal e, através de uma prática educativa permeada por amor
e diálogo, é possível resgatar até mesmo esses indivíduos. Não é incomum
perceber que alunos expostos a violência doméstica por vezes reproduzem
com colegas o comportamento que tanto repudiam e reprovam, quando a
vítima é uma familiar ou pessoa de seu convívio.
Outro ponto que destaco é que, para Freire, o educador não é a única
fonte de saber numa sala de aula, pelo contrário, a “Educação autêntica [...],
não se faz de A para B ou de A sobre B, mas de A com B, mediatizados pelo
mundo. (idem, 2018, p. 116)“. Tal afirmação faz muito sentido na atualida-
de, especialmente num momento em que alunos dispõem de grandes volu-
mes de informação com facilidade, podendo conhecer vários aspectos desse
mundo cujas fronteiras têm se tornado bem menores através da Internet.
Cabe ao educador fazer com que os educandos percebam suas experiências
e conhecimento como relevantes, estimulando-os a se permitir um “pensar
autêntico [...]. Sua ação deve estar infundida da profunda crença nos ho-
mens. Crença no seu poder criador. (idem, 2018, p. 86)”. Assim, os atores
envolvidos nesta pesquisa, irão ter a oportunidade de criar juntos, para al-
cançar um trabalho final coletivo e autêntico.

Webquest
Para embasar discussões a respeito do tema do empoderamento feminino
com os alunos, será utilizada a metodologia da WebQuest, semelhante aos
projetos escolares, porém sendo executada na Internet, de maneira que os
professores direcionam sua organização e fontes de pesquisa a serem con-
sultadas para se completar uma tarefa (CARDOSO, 2010). Será um modo
27
de utilizar tecnologia no ensino, promovendo, em alguns casos, letramento
digital para os que ainda não tiveram acesso.
Essa ferramenta em geral possui uma estrutura formada pelos seguintes
componentes: introdução, tarefa, processo, recurso, avaliação, conclusão e
créditos. Na introdução, uma espécie de convite ao trabalho, busca-se enga-
jar os alunos com uma breve e interessante contextualização da proposta e
assunto a ser desenvolvido. A tarefa lista as ações que deverão ser executadas
no trabalho. Recurso é uma lista de links que os alunos podem consultar
para executar o trabalho. Na avaliação, estão presentes os critérios que serão
analisados para se chegar a uma conclusão dos resultados finais obtidos em
conjunto com a observação do trabalho desenvolvido no processo. A conclu-
são traz um resumo dos objetivos do trabalho, além de sugerir outros pontos
interessantes a serem estudados numa pesquisa futura. Os créditos contêm
informações sobre o público alvo, data em que foi aplicada e quaisquer ou-
tras informações que ajudem outros professores a decidirem usar esta Web-
quest (CARDOSO, 2010).
Segundo o MEC (BRASIL, 2015), esta ferramenta tem como objetivos
educacionais modernizar a maneira de fazer educação, fornecer acesso a in-
formações autênticas e atuais, além de trazer ganhos nas habilidades cogniti-
vas, por se tratar de uma aprendizagem significativa, baseada em cooperação.
Em site oficial do ministério3, encontra-se uma lista de benefícios auferidos
por aqueles que dela se utilizam:

1. Favorece as habilidades do conhecer (o aprender a aprender)


2. Oportuniza para que os professores de forma concreta se vejam como autores da sua
obra e atuem como tal. (acessar, entender e transformar)
3. Favorece o trabalho de autoria dos professores.
4. Incentiva a criatividade dos professores e dos alunos que realizarão investigações
com criatividade.
5. Favorece o compartilhamento dos saberes pedagógicos, pois é uma ferramenta aber-
ta de cooperação e intercâmbio docente de acesso livre e gratuito (BRASIL, 2015).

A partir da utilização da Webquest desenvolvida neste trabalho, os alunos


acessarão links sobre o feminismo, mulheres que desempenharam papéis
importantes na história do Brasil e do mundo para em seguida montar pôs-
teres, memes, gravar vídeos expondo suas opiniões, contribuições para sua
realidade local e inspirações a respeito do papel da mulher na atualidade.

3
http://webeduc.mec.gov.br/webquest/index.php
28
Metodologia da pesquisa
O método de pesquisa a ser utilizado é o qualitativo, pois oferece um
olhar voltado às questões sociais encontradas nas relações humanas (MI-
NAYO, 2002, p. 23). Será também considerado o modelo de Pesquisa-a-
ção, pois o objetivo de pesquisas sob essa perspectiva é instrumental, pois
se deseja utilizá-la como ferramenta para forjar uma mudança, seja ela al-
cançada no curso da ação, ou no futuro, pois “não se trata apenas de resol-
ver um problema imediato e sim desenvolver a consciência da coletividade
nos planos político e cultural a respeito dos problemas importantes que
enfrenta, mesmo quando não se vêem soluções a curto prazo” (THIOL-
LENT, 2011, p. 25).
Os aspectos principais deste tipo de abordagem giram em torno da sua na-
tureza plural, investigativa e da busca de conhecimento partindo da situação
que a gerou. São característicos a interação entre pesquisador e participantes
originando uma ordem de prioridade de problemas a serem discutidos; o
objeto da pesquisa, em oposição às pesquisas tradicionais, não são pessoas
observadas, mas uma situação social problemática e complexa; empenho em
resolver a questão, ou ao menos esclarecer as problemáticas encontradas; e,
por fim, não se esperar uma sucessão de ações apenas, que pode levar a ati-
vismo, mas gerar ganho de conhecimento e melhora no nível de consciência
dos envolvidos (THIOLLENT, 2011, pp. 22 e 23).

Resultados
Pelo fato deste trabalho ser parte de um projeto a concluir-se no curso
de mestrado, entre 2019 e 2020, e pela necessidade de submeter etapas da
pesquisa à apreciação do comitê de ética, o resultado obtido através desta
pesquisa é a elaboração da WebQuest, ferramenta digital a ser utilizada com
meus alunos de sétimo a nono ano em escola municipal do segundo distrito
de Duque de Caxias. A partir dos passos nela orientados, os alunos escolhe-
rão a que grupo vão pertencer, de acordo com suas preferências pessoais e
que pesquisa irão desenvolver.
Abaixo serão expostas as páginas criadas. A primeira, o slide título, tem
como objetivo engajar os alunos, motivando-os a refletir sobre o tema. Foi
escolhida a língua inglesa para palavras de ordem frequentemente usadas ao
discutir o feminismo.
29
Figura 1 - Slide título

Nas etapas seguintes, em que me dirijo aos alunos com orientações a serem
executadas de maneira assíncrona, optei pela língua materna para que não seja
imposto um filtro afetivo que os desestimule a seguir no projeto. A introdu-
ção visa chamar atenção, funcionando como um convite ao projeto.
Figura 2 - Introdução

Na tarefa são descritas as ações que deverão ser tomadas pelos alunos. O
processo 1 solicita uma tomada de decisão a respeito de que tema o aluno de-
seja estudar para que sejam formados grupos temáticos, que nortearão a reali-
zação dos trabalhos.
Figura 3 - Tarefa (Processo 1)
30
No processo 2, são descritas as ações que deverão ser feitas após a separa-
ção dos alunos em grupos. A partir das perguntas deverão ser criados traba-
lhos a serem postados em redes sociais (memes), ou expostos no ambiente
escolar (cartazes). Como o contexto é infopobre, julguei importante man-
ter a possibilidade de fazer trabalhos em suportes diferentes, para que não
houvesse prejuízo para os que não possuem acesso à Internet e celulares ou
computadores em casa.
Figura 4 - Tarefa (Processo 2)

A seguir, serão listados alguns links previamente escolhidos, que fornece-


rão algumas informações para iniciar os estudos a respeito do tema. Como
há três grupos, a etapa de recursos foi separada, em A, B e C. Esse rol de sites
constitui uma fonte de pesquisa inicial, visto que os alunos terão a liberdade
de incluir outras fontes que eles mesmos venham a encontrar.
Para o grupo A, foram selecionados um trecho de entrevista da escritora
Chimamanda Ngozi Adichie, um resumo do manifesto sobre como educar
meninos e meninas feministas, também de sua autoria, além de uma matéria
sobre o ator Sir Patrick Stewart, que figura entre personalidades que apóiam
o feminismo. Todos os textos selecionados são autênticos e em língua inglesa.
Figura 5 - Tarefa (Recurso - Grupo A)
31
Para o grupo B, foram escolhidos uma matéria a respeito de Marielle Fran-
co, um vídeo sobre Tarsila do Amaral, uma página com a história de Maria
Quitéria e um blog com biografias curtas de cinco mulheres feministas bra-
sileiras da atualidade em sites estrangeiros.
Figura 6 - Tarefa (Recurso - Grupo B)

O último grupo terá como sugestões o vídeo da entrevista de Emma Wat-


son e Malala, uma matéria a respeito de Frida Khalo e um vídeo com biogra-
fia curta da autora Maya Angelou, exemplificando a obra e legado de femi-
nistas que atuaram fora do Brasil.
Figura 7 - Tarefa (Recurso - Grupo C)

A etapa da seguinte visa estabelecer que critérios serão utilizados para fa-
zer a avaliação da participação dos discentes envolvidos no trabalho. Foram
feitas perguntas ao final da página para estimular os alunos a refletir sobre a
atuação nos trabalhos.
Figura 8 - Avaliação
32
Nas conclusões, são detalhados o objetivo que se esperava do projeto e são
feitas perguntas que visam alcançar um feedback dos aprendentes sobre o
conteúdo e a utilização da Webquest.
Figura 9 - Conclusões

Por último, os créditos descrevem o público alvo, a autoria, local e ano de


aplicação do trabalho. Esta etapa é importante para que, caso haja interesse
no uso desta Webquest por outros docentes, tenham detalhadas informa-
ções importantes para verificar a viabilidade ou necessidade de alguma adap-
tação no caso de se tratar de ambiente de trabalho ou públicos diversos.
Figura 10 - Créditos

Conclusão
Almeja-se com esta pesquisa alcançar um nível mais profundo de compre-
ensão de mundo dos alunos envolvidos, bem como travar uma luta contra as
amarras impostas social e politicamente às meninas, que em breve se tornarão
mulheres, cidadãs. O trabalho final dependerá muito da sensibilidade e pers-
picácia dos discentes envolvidos, pois o grosso será trazido por eles, porém não
me eximo da responsabilidade como participante da pesquisa em trazer con-
tribuições e apontamentos, com o cuidado de não me impor aos pontos de
vista dos alunos, que estarão em posição de destaque neste trabalho.
33
Espero alcançar o engajamento de meus alunos e alunas com esta pesquisa
para que o resultado ultrapasse os muros da escola, para que a vizinhança,
pais, familiares, amigos envolvidos possam vislumbrar mudanças num futu-
ro próximo. Com sorte, novos rumos poderão ser almejados e trilhados por
essa comunidade escolar. Sigo na torcida e na luta!

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34
A CONCORDÂNCIA VERBAL DE PRIMEIRA
PESSOA DO PLURAL NA VARIEDADE URBANA DO RIO DE
JANEIRO: UMA ANÁLISE VARIACIONISTA

Larissa de Souza Monteiro4


UERJ
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo principal descrever a
expressão de primeira pessoa do plural com nós e com a gente e os respectivos
padrões de concordância na variedade urbana da cidade do Rio de Janeiro.
Para isso, observa-se o comportamento das ocorrências de verbos relacio-
nados com os sujeitos de primeira pessoa plural no Banco de dados Con-
cordância (www.corporaport.letras.ufrj.br), partindo dos preceitos teórico-
-metodológicos da Teoria da Variação e Mudança (WEINREICH; LABOV;
HERZOG, 1968).

Palavras-chave: Concordância verbal, Primeira pessoa do plural, Socio-


linguística, Português do Brasil.

Concordância verbal: delimitação do tema


A concordância verbal constitui um tema de grande interesse na linguística
brasileira, pois os diferentes padrões de aquisição/aprendizagem do quadro
pronominal e da morfologia verbal passam por constantes e profundas mu-
danças. A alternância pronominal e a não marcação morfológica de pluralida-
de da primeira pessoa do plural (P4) são de grande valor para a Sociolinguísti-
ca, visto que, muitas vezes, permitem que os falantes diferenciem socialmente
aqueles que realizam a marcação padrão de pluralidade – como em nós vamos
e a gente vai – daqueles que não a realizam – nós vai e a gente vamos.
Investigações anteriores (RUBIO, 2012; VIEIRA, BRANDÃO, 2014) su-
gerem que, no Português do Brasil (PB), os pronomes nós e a gente assumiriam
tendências diferentes em relação às do Português Europeu (PE). No que se re-
fere à forma nós, no PB, haveria forte realização da concordância padrão (nós
cantamos) em variedades urbanas e presença expressiva da concordância não
padrão em variedades populares, sobretudo rurais, enquanto no PE, haveria
4
Graduanda de Licenciatura em Letras: Português – Espanhol pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
E-mail: larissamontsouza@gmail.com.
35
realização categórica. Quanto à forma a gente, o PB urbano preferiria a realiza-
ção do verbo na terceira pessoa do singular (P3 – a gente vai), enquanto o PE
teria maior variação entre singular e plural (a gente cantamos / a gente canta).
Embora haja estudos do tema no Português do Brasil realizados por di-
versos autores (por ex., OMENA, 1986, 1996, 2003; MACHADO, 1995;
VIANNA, 2011), a maioria das pesquisas com amostras do RJ se volta para
a observação e descrição da alternância pronominal, diferentemente do pre-
sente trabalho, que possui como objetivo central descrever e analisar quan-
titativamente e qualitativamente a concordância verbal de primeira pessoa
do plural em uma variedade urbana do Rio de Janeiro, na cidade de Nova
Iguaçu, com base nos pressupostos da Teoria da Variação e Mudança.
Em vista disso, interessa-se em verificar as formas alternantes com ou sem
marcação padrão de pluralidade e analisar se o fenômeno na variedade em
questão é variável, semicategórico ou categórico, contribuindo, assim, com
a descrição do quadro pronominal do PB e com a análise comparativa entre
diferentes estudos relacionados à concordância verbal de P4 no Português.

Aspectos teórico-metodológicos: Teoria da Variação e Mudança


A presente pesquisa desenvolve-se a partir do aporte da Teoria da Variação
e Mudança (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 1968; LABOV, 1972,
2003), que permite verificar e compreender os fatores linguísticos e extralin-
guísticos que influenciam na realização de uma regra linguística. Convém re-
tomar, aqui, os tipos de regras linguísticas propostos por Labov (2003), ba-
seados no perfil e na frequência de uso de cada forma alternante: de acordo
com o autor, uma regra categórica é sempre aplicada, pois se manifesta por
meio de somente uma variante na língua; a regra semicategórica diz respeito
a uma alternância de variantes que ocorre poucas vezes no uso da língua, mas
que pode ser reportada, constituindo uma frequência de uso entre 95-99%; já
a regra variável possui frequência de uso das formas alternantes entre 5-95%.
Neste trabalho, assume-se uma perspectiva de vínculo entre a análise
quantitativa e a qualitativa para, a partir de então, apontar o status do obje-
to analisado na variedade urbana carioca. Em favor da junção de ambos os
tipos de análise, argumentam Vieira e Brandão (2014):

Assume-se, assim, que afirmar que uma língua/variedade admite, por opção grama-
tical, uma dada estrutura não implica necessariamente o registro categórico dessa
estrutura, como se sabe, nem tampouco se pressupõe um comportamento efeti-
36
vamente variável. Há que se verificar quantitativa – um número restrito de dados
– e qualitativamente – contextos específicos em termos estruturais – a especializa-
ção dos usos para se determinar o parâmetro gramatical de certa língua/variedade
(VIEIRA; BRANDÃO, 2014, p. 86).

Assim, obtém-se uma visão mais ampla do fenômeno da concordância


verbal de P4 no português falado em áreas urbanas do Rio de Janeiro.

As variáveis controladas
A variável dependente, a ser matematicamente investigada, é composta
por duas formas alternantes: com ou sem o traço morfológico de marcação
de pluralidade (nós cantamos / nós canta / a gente canta / a gente cantamos), o
que permite que os falantes acentuem, através da língua, as diferenças entre
as classes sociais existentes no país.
Foram controladas variáveis de naturezas linguística e extralinguística, a
fim de observar os fatores que influenciam a não marcação padrão da pri-
meira pessoa do plural. A pesquisa foi desenvolvida com o corpus Concor-
dância (www.corporaport.letras.ufrj.br), organizado pelo Projeto Estudo
comparado dos padrões de concordância em variedades africanas, brasileiras
e europeias do Português. O banco de dados está socialmente estratificado e,
para este trabalho, conforme dito anteriormente, foi focalizada a cidade de
Nova Iguaçu, no estado do Rio de Janeiro. Os falantes são distribuídos por:
sexo/gênero (homem e mulher); faixa etária (A: 18-35 anos, B: 36-55 anos
e C: 56 anos em diante); e escolaridade (1: ensino fundamental, 2: ensino
médio e 3: ensino superior).
As variáveis linguísticas, por sua vez, estão relacionadas com os pronomes e
as formas verbais: explicitude do sujeito (se o sujeito da oração está expresso ou
não-expresso); paralelismo formal (para a qual se leva em consideração que as
marcas morfológicas usadas em contextos anteriores influenciam nas marcas
que se seguem); saliência fônica (maiores níveis de saliência fônica influenciam o
uso do traço morfológico de primeira pessoa do plural – mos), posição do sujeito
(anteposto ou posposto); tempos e modos verbais; distância entre o referente e
o verbo (em quantas sílabas o referente está separado da forma verbal). Por fim,
foram também controlados os informantes, com o objetivo de perceber se al-
gum deles produz maior marcação de concordância não-padrão do que outros.
A análise das variáveis e o comportamento do fenômeno em questão fo-
ram realizados com base no tratamento estatístico provido pelo pacote de
37
programas Goldvarb-X e a partir de uma análise qualitativa, em que se leva
em consideração o contexto linguístico de cada ocorrência.

Análise dos resultados: a expressão de primeira pessoa plural


e a concordância verbal na variedade carioca do PB
Neste trabalho, para a observação da explicitude do sujeito, foram consi-
derados verbos em P3 ou P4 com o sujeito expresso em nós (1 e 2), a gente
(3 e 4) e sujeito composto (5) e, também, com o sujeito não-expresso (6 e 7).

1. a minha mãe ela aprendeu a assinar o nome dela porque nós ensinamos pra ela assinar o
nome dela... (NIGA2M)

2. eu também não tenho escolaridade oitava série não é estudo assim... eu acho que você vê as pes-
soas falando... pô tá nós quatro aqui... ai ele tá observando ele viu que você falou tres reais (NIGB1M)

3. a biblioteca tá em reforma também então ela tá toda desmontada a gente tem uma biblioteca
que é aqui em cima (NIGA1H)

4. o estado dele ainda tá dentro dele aquelas palavra do jeito que a pessoa falar entendeu como:
Pernambuco ou como a gente vimos lá na reunião (NIGC2H)

5. eu e ele éramos tidos como os maneQUINS do/das lojas... (NIGB1H)

6. os ensinamentos dentro de casa mesmo ... a ... mas estamos evoluindo ... acho que daqui a
alguns anos ... se Deus quiser ... eu sou muito otimista ... nós vamos melhorar (NIGA3H)

7. meus amigos assim ... a gente xinga mas se diverte ... (NIGA3H)

Assim, será possível observar se as tendências apontadas por Omena


(2003) se confirmam. A partir de um corpus do Projeto Censo/RJ, a autora
atesta que a forma inovadora a gente está gradualmente suplantando a for-
ma conservadora nós, constituindo uma mudança em curso.
No presente estudo, de um total de 862 ocorrências, foram constatados 510
dados com a forma inovadora a gente, como se vê na tabela e no gráfico a seguir:
38

Assim, é possível constatar, em conformidade com o que observa Omena


(2003), que o pronome a gente vem tomando o espaço do pronome nós na
fala urbana carioca. A esse respeito, Duarte (1995) verifica que o PB vem
se tornando uma língua [+pro-drop], ou seja, que tem preferido o preen-
chimento do sujeito, devido às mudanças que o quadro pronominal vem
sofrendo ao longo dos anos. Essa característica também fica atestada na
presente pesquisa, visto que houve 189 ocorrências de sujeito não-expresso,
constituindo 21,92% dos dados de explicitude do sujeito.
No que se refere ao estudo específico da concordância verbal, excluíram-
-se, nas próximas etapas da análise, os dados com o sujeito não-expresso, pois
não seria possível afirmar com certeza qual a referência desse sintagma, e os
dados de sujeito composto, já que a pesquisa se volta para o estudo da con-
cordância verbal com os pronomes a gente e nós.
Prosseguindo com a análise, foram constatados 673 dados de sujeitos nós
ou a gente + verbo em P3 ou P4. Dentre esses, 669 foram de concordância
padrão e apenas 4, de concordância não-padrão – respectivamente, 99,4%
de concordância padrão e 0,6% de concordância não-padrão, como se obser-
va no gráfico abaixo.
39
Cabe destacar, aqui, as poucas ocorrências de concordância não-padrão e
ressaltar as características desses dados:
1. quando a gente vamos ao shopping eles insistem para que a gente vá...os meus filhos não
têm vergonha da gente... (NIGB1H)

2. o estado dele ainda tá dentro dele aquelas palavra do jeito que a pessoa falar entendeu
como: Pernambuco ou como a gente vimos lá na reunião (NIGC2H)

3. uma sorte ou qualquer coisa ou um conhecimento né porque a gente sempre tivemos


um conhecimento com médico então qualquer coisa... a gente liga pra essa pessoa... (NIGC2H)

4. eu também não tenho escolaridade oitava série não é estudo assim... eu acho que você vê
as pessoas falando... pô tá nós quatro aqui... ai ele tá observando ele viu que você falou três
reais (NIGB1M)

Os enunciados (1) e (2) foram produzidos por informantes homens


que pertencem às faixas etárias B e C e possuem o nível fundamental e o
nível médio, respectivamente. Esses enunciados não possuem nenhuma
particularidade, uma vez que o sujeito da oração está anteposto e próxi-
mo ao verbo. Em (3), enunciado produzido pelo mesmo informante do
enunciado (2), observa-se que o sujeito está a duas sílabas de distância
da forma verbal. Por último, no enunciado (4), produzido por uma in-
formante da faixa etária B e que possui o nível fundamental, o sujeito
“nós” está posposto ao verbo “tá”, o que favorece a não marcação da
concordância padrão.
Desse modo, constatam-se, nesse corpus, 4 estratégias diferentes para a
concordância verbal de primeira pessoa do plural: a) nós + P4; (b) nós + P3;
(c) a gente + P4; (d) a gente + P3.Observou-se preferência expressiva pelos
usos nós + P4 (nós cantamos) e a gente + P3 (a gente canta).

Análise Contrastiva da concordância verbal no PE e no PB


À continuação, propõe-se uma breve abordagem contrastiva entre pes-
quisas de concordância verbal de P4 no PB e no PE, a fim de contribuir com
a descrição do fenômeno em diferentes variedades do Português. A partir
dos trabalhos de Rubio (2012) – PE e PB – e de Vianna (2011) – PB – e da
presente pesquisa, observa-se que o fenômeno da concordância verbal de
primeira pessoa do plural se comporta de maneiras distintas no PE e no PB,
como se vê na tabela a seguir:
40

Como pode ser observado em Rubio (2012), a variedade europeia na amos-


tra de Lisboa não possui ocorrências de nós + P4, isto é, não há nenhum dado
de concordância não-padrão, sendo, assim, a aplicação da concordância uma
regra categórica. Já com o pronome a gente, há combinações tanto de P4 quan-
to de P3, compondo uma regra variável. O PB na Amostra Interior Paulista,
por sua vez, tem um comportamento diferente do verificado na Amostra Lis-
boa. Em relação ao pronome nós, embora as porcentagens demonstrem que
o fenômeno pareça variável, diferentemente dos outros trabalhos de PB aqui
expostos, é preciso analisar os contextos das ocorrências, a fim de verificar se os
dados são de determinado grupo social ou se possuem o mesmo tipo de estru-
tura, por exemplo. No que se refere à concordância com o pronome a gente,
também se constata um fenômeno variável, abordando uma análise somente
quantitativa da Amostra Interior Paulista.
Quanto ao trabalho de Vianna (2011), observa-se que a autora utiliza en-
trevistas do mesmo banco de dados da presente pesquisa, porém quando
ainda não estava completo; no material analisado pela autora, não foram
registrados dados de nós + P3. Com o pronome a gente, há, preferencial-
mente, combinações com o verbo em P3, tendo, somente, 1% de ocorrências
deste pronome com o verbo em P4.
Nesta pesquisa, com a análise completa do corpus no que se refere à Amostra
Nova Iguaçu, foram encontrados poucos dados de nós + P3 e a gente + P4, como
exposto anteriormente. Assim, analisando quantitativamente e qualitativamen-
te, pode-se dizer que o fenômeno é semicategórico na Amostra Nova Iguaçu.
41
Sistematização e debate dos resultados
Ao longo da investigação, foi possível verificar que a concordância padrão
de P4 na variedade urbana do Rio de Janeiro demonstra alta produtividade
(99,4%) e tem o status de regra semicategórica, havendo apenas 1 dado do
tipo nós canta e 3 do tipo a gente cantamos.
É importante destacar que os poucos dados de concordância não padrão
foram realizados por falantes com média escolaridade em área urbana do
RJ. A descrição desse fenômeno na fala desses indivíduos se aproxima do
descrito na fala de indivíduos com curso superior. Portanto, é importante
conhecer e pensar no perfil sociocultural dos três informantes que produ-
ziram a concordância não-padrão, com o objetivo de verificar se há alguma
especificidade na formação escolar desses indivíduos ou na área onde vivem.
No tocante à análise contrastiva, esta permitiu a verificação de que, em rela-
ção à concordância verbal com o pronome nós, o PB apresenta uma regra se-
micategórica em variedades urbanas e variável em variedades rurais, enquanto
o PE manifesta comportamento de regra categórica. Já com o pronome a gen-
te, há variação na variedade europeia, enquanto no PB, o fenômeno quase não
apresenta variação, tendo registrado comportamento praticamente categórico
em variedades urbanas e levemente variável em variedades rurais.
De modo geral, a análise dos dados do presente trabalho permitiu traçar
considerações acerca do comportamento contemporâneo de dados brasilei-
ros, contribuindo, ainda, com os estudos contrastivos da alternância prono-
minal e da concordância verbal em variedades do Português. Nesse sentido,
fica clara a necessidade de aprofundamento da descrição de dados quanto ao
perfil das variedades brasileiras, se mais urbanas ou mais rurais. Os resultados
sugerem que os padrões de concordância verificados em áreas rurais ou em al-
gumas realidades urbanas supostamente periféricas configuram casos de regra
variável, diferentemente do descrito para as variedades urbanas em geral, sem
registros de efetiva variação. Faz-se necessária, assim, a análise da concordância
de primeira pessoa do plural nessas áreas para que se abram e se fomentem
discussões acerca do que realmente pode ser considerado urbano nos estudos
linguísticos do PB em grandes metrópoles como o Rio de Janeiro.

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42
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43
A ASCENSÃO DO MERCADO EDITORIAL E O RECRUDES-
CIMENTO DE ALGUNS GÊNEROS LITERÁRIOS,
NO BRASIL DO SÉCULO XIX.

Letícia Arêdes Corrêa


UERJ

Resumo: Este artigo visa a trazer a lume o processo de ascensão do merca-


do editorial brasileiro, as influências europeias e os fatores determinantes que
culminaram para a popularização do mercado livreiro. Nessa perspectiva, o
presente artigo tem por finalidade recrudescer o aparecimento de novos gêne-
ros literários, como os romances de sensação e romance para homens e analisar
os principais impactos que eles repercutiram, na sociedade daquela época; e
analisa, ainda, como eles não se tornaram obsoletos e continuam instigantes
até a modernidade.

Palavras-chave: mercado editorial. Romance de sensação. Romance para


homens. Naturalismo.

Introdução
Em 1808, com a chegada da família real portuguesa ao Brasil, uma série de
transformações começara a acontecer. Dom João VI, amante da literatura,
inaugura a Impressão régia, pondo fim a um decreto de trezentos anos que
retardou a evolução do mercado editorial brasileiro, que impedia qualquer
tipo de impressão no país. Mais tarde, Dom Pedro II incentivara alguns edi-
tores a expandirem seus produtos, a exemplos de Paula Brito, que inaugurou
sua Imperial Tipografia, e o livreiro David Corazzi, principal responsável por
estabelecer a importação de edições portuguesas no país, estreitando a aliança
cultural luso-brasileira.
Segundo o jornalista e escritor Ubiratan Machado, as comunicações por na-
vio com a Europa são regularizadas e ampliadas. Passávamos a receber, com
algumas semanas de atraso, as últimas novidades portuguesas e, o que mais
nos interessava, francesas: livros de poemas, jornais, revistas e figurinos. An-
tes dessa conexão com a Europa, a expansão do mercado editorial brasileiro
44
representava, ainda, uma parcela muito pequena. Dessa forma, apenas uma
fração da sociedade com o poder aquisitivo elevado detinha o alcance das pu-
blicações. A diminuição dos preços dos livros, a linguagem menos rebuscada
e a tradução de alguns clássicos foram algumas estratégias dos negociantes da
época para venderem ao povo aquilo que até então era reservado à elite brasi-
leira, superando as fronteiras econômicas e sociais.
Devido ao progresso do mercado editorial, principalmente no âmbito das
grandes metrópoles, como Rio de Janeiro e São Paulo, alguns gêneros literá-
rios ganharam destaque naquela época, mas de maneira muito canhestra: a
literatura licenciosa. Munida de uma linguagem mais realista, trazia a lume
temas pouquíssimos divulgados para a sociedade, como o aborto, o sexo fora
do casamento, a traição, a pornografia homoerótica e o anticlericalismo.
Devido ao conteúdo possuir alguns temas considerados interditos, havia
uma certa restrição ao público leitor. Inicialmente, apenas os homens po-
deriam ter acesso àqueles tipos de conteúdos e a disposição destes nas pra-
teleiras das livrarias era distribuída de maneira estratégica, a fim de que não
ficassem expostos ao universo de todos os leitores.

Não era segredo para ninguém que a expressão “leitura (ou livros) para homens”
designava a leitura pornográfica. Alarmado, o padre português Sena Freitas descre-
via a presença de tais obras no Brasil como uma epidemia estrangeira. Para ele, a
disseminação do livro pornográfico europeu era uma face sombria da modernidade
industrial, do avanço da imprensa, da liberdade e das técnicas no “grande” século
XIX (ABREU, 2016, p. 337).

A escritora e antropóloga Alessandra El Far, por estar imersa nesse exten-


so e diversificado universo das publicações populares, analisa, em especial,
duas categorias de romance, que tiveram enorme sucesso em finais do século
XIX: os chamados “romances de sensação” e os “romances para homens”.
O objetivo principal deste trabalho visa, portanto, a identificar a ascen-
dência do mercado editorial brasileiro e do amplo acesso aos livros, pelas
diversas camadas sociais, no final do século XIX, apesar dos entraves sócio-
-econômicos, como o analfabetismo, e do alto preço que o mercado oferecia.
Nessa perspectiva, o objetivo do trabalho visa, ainda, a reconhecer o apareci-
mento de novos gêneros literários, como os romances para homens e roman-
ces de sensação e analisar os principais impactos causados por esses novos
gêneros na sociedade e como eles não se tornaram obsoletos e permanecem
instigantes até os dias de hoje.
45
A ascensão do mercado editorial brasileiro
O século XIX foi palco de intensas transformações no Brasil, sobretudo
com a chegada das inovações tecnológicas de impressão. O mercado editorial
aberto e a presença de um público leitor representativo contribuíram para
que diversos livreiros estimulassem a compra e venda de livros, permitindo
que a circulação de exemplares no país crescesse vertiginosamente.
O índice de leitores alfabetizados no período republicano era cada vez maior,
devido ao número de imigrantes que chegava ao Brasil, na grande maioria por-
tugueses, à procura de emprego. Desse modo, os leitores, os editores e as livra-
rias, formaram os lados perfeitos de um triângulo escaleno, cuja solidificação
representou um modelo de ascensão do mercado editorial brasileiro.
Outros fatores determinantes contribuíram para o crescimento do públi-
co leitor: a redução dos altos custos das edições e a venda de livros usados.
Em 1870, na Livraria do Povo, um romance que custasse em torno de 100 a
2 mil réis poderia ser facilmente encontrado em circulação, sem que perdes-
se a essência do seu conteúdo. Entretanto, algumas variações de valores eram
ajustadas, conforme a quantidade de páginas, o tipo da folha, o tamanho do
livro ou pelo formato da encadernação.
No começo da década de 1880, os editores, ainda com um capital tímido, entraram
em cena. Além de publicarem livros a baixos custos, esses negociantes procuravam
também oferecer enredos inéditos e de fácil leitura, capazes de entreter o público he-
terogêneo e diversificado da grande cidade, que não tardou a receber a denominação
de “povo” (BRAGANÇA e ABREU, 2016, p. 94).

O processo de popularização do livro ganhou ainda mais adeptos, sobre-


tudo com os gêneros literários que ganharam destaque. Os “Romances de
sensação” e os “Romances para homens” representavam a combinação do
rompimento de tabus, por trazerem a lume temas que a sociedade mais con-
servadora considerava uma afronta aos bons costumes.

O termo “sensação” era usado de modo recorrente naquele século. Na vida real,
toda situação inesperada, assustadora, impetuosa, capaz de causar arrepios e surpre-
sa recebia tal conotação. Na literatura, essa expressão servia para avisar o leitor do
que estava por vir: dramas emocionantes, conflituosos, repletos de mortes violentas,
crimes horripilantes e acontecimentos imprevisíveis (EL FAR, 2004, p.14).

Os “Romances para homens” foram restritos ao segmento masculino,


por conterem em seus enredos descrições de cenas de sexo, libertinagem,
46
prostituição e adultério. Antes de iniciar a narrativa, alguns escritores acon-
selhavam aos leitores que reforçassem os botões da calça, para evitarem a
descompostura. Acreditava-se que as mulheres, ao fazerem uso da leitura
pornográfica poderiam ser influenciáveis pela ficção e virem a cometer al-
gum tipo de ação, movidas pela narrativa.
No Brasil do século XIX, não existia nenhuma lei específica que pudesse
reprimir os negociantes com a compra e venda desses gêneros literários. Mas
se por um lado os romances pornográficos eram considerados proibidos, por
outro lado, crescia vertiginosamente a curiosidade dos leitores em descobrir
que tipo de literatura era aquela, que se fosse feito um balanço hídrico dos
líquidos corporais resultantes de suas volúpias, enquanto liam, daria para
pontuar todos os pingos dos is dos romances.

Esses negociantes queriam vender ao “povo” aquilo que até então havia sido reservado
a grupos específicos. Em vez de delimitar, segmentar, restringir, tinham o propósito
de estabelecer um comércio capaz de ampliar, extrapolar, superar as fronteiras econô-
micas e sociais. Foi exatamente isso que fez o jovem editor Pedro da Silva Quaresma,
que abriu no fim da década de 1870 sua Livraria do Povo. Além de vender livros usa-
dos e algumas raridades bibliográficas, editou inúmeros romances, livros de trovas e
cantigas e até mesmo os chamados “romances para homens”, de teor picante e proibi-
dos às moças de boa família (BRAGANÇA e ABREU, 2016, p. 95).

Outra estratégia importante que contribuiu para a difusão das obras foi a
linguagem menos rebuscada, com títulos aprazíveis que despertavam sensa-
ções aos leitores. Nos catálogos das prateleiras, os títulos eram os mais varia-
dos possíveis: Médico do povo, Trovador do povo, Mistérios do povo, Cozinhei-
ro popular. Vale ressaltar que a expressão “o povo” se repetia diversas vezes,
com o objetivo de inserir as camadas populares dentro desse universo da
leitura, de que antes apenas as elites burguesas faziam parte.
Diante de anúncios empolgantes, os editores publicavam: “tudo de
bom e barato no Treme Terra e terror dos careiros”5 - “todos sabem: vivos!
mortos! espectros! que só na Livraria do Povo se encontram livros bara-
tíssimos” e “até os cadáveres se levantam para aproveitar as pechinchas à
venda na Livraria do Povo”6- Se por um lado o anúncio da Gazeta do Povo
afirmava que “até os cadáveres se levantavam”, existia uma metáfora implí-
cita, mas por outro lado, era verossímil que pelo menos algum membro
em específico dos leitores mais vivos poderia se levantar, diante da leitu-
ra pornográfica. Por essas razões, mesmo com algum tipo de dificuldade
5
Gazeta de Notícias, Rio de janeiro, 12 mar. 1883.
6
Gazeta de Notícias, Rio de janeiro, 4 set 1882.
47
financeira encontrada por alguns escritores, eles não hesitaram esforços
para disseminar essa pandemia erótica:

Alguns romancistas naturalistas viraram produtores de folhetins e aumentavam em


larga escala a produção destes, conforme o público alvo explorava seu conteúdo.
Aluízio de Azevedo, segundo Valentim Magalhães, foi um dos primeiros escritores
que ganhava o pão exclusivamente à custa de sua pena, mas vale a sua ressalva, de
que era apenas o pão, pois as letras no Brasil ainda não pagavam os custos da man-
teiga (BOSI, 2015, p. 199).

Devido ao aumento do número das livrarias, a sua localidade era um fa-


tor distintivo que sugeria a predileção do leitor. Por exemplo, um compra-
dor que entrasse na Livraria Garnier ou na Laemmert, saberia que poderia
encontrar edições com acabamento mais requintado, de autores europeus
e brasileiros, aclamados pela crítica literária. Caso esse mesmo comprador
estivesse procurando uma edição com um preço mais econômico, ele não
ficaria sem o seu produto: poderia encontrar na Rua Uruguaiana ou na rua
de São José com uma encadernação menos customizada, tipo de folha e
tamanhos diferenciados, mas que não deixaria de expor, principalmente, os
conteúdos pornográficos com qualidade.

A pornografia e o Naturalismo
A ficção naturalista e a pornografia tinham como alicerce o cientificismo,
que valorizava o corpo como uma de suas principais ferramentas de estudo.
Segundo Vartanian (1977), a noção materialista de natureza encorajava di-
retamente o erótico. Em conseqüência, vinculava-se a crença de que o sexo,
assim como o funcionamento do aparelho reprodutor, era algo humana-
mente natural e de que era indispensável a tentativa de sufocá-lo em nome
de preceitos religiosos ou sociais.
O principal objetivo dos romances naturalistas ou pornográficos não era
apenas colocar em evidência a figura do corpo feminino no centro da narrativa
erótica; e sim tratar de assuntos velados para a sociedade burguesa e patriarcal
da época, como a masturbação, a prostituição feminina, a traição, o aborto, o
homossexualismo, os pecados cometidos pela Igreja e o sexo fora do casamento.

No Brasil, como veremos a seguir, a voga e a popularidade da escola literária do


naturalismo foram decisivas para essa produção nascente. Vira e mexe, os jornais
cariocas notificavam o nome de algum romance que ao abusar das descrições rela-
tivas ao instinto sexual do ser humano via-se transferido para o arsenal de publica-
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ções proibidas às mulheres. Apesar das insistentes defesas feitas por alguns autores,
- que colocavam até mesmo subtítulos científicos e explicativos para se livrarem da
classificação de “para homens” – muitas histórias, na visão de editores e críticos,
pertenciam à estante de livros pornográficos por explicitarem o contorno dos cor-
pos, as cenas de sedução e sexo, bem como os diálogos que enfatizavam os prazeres
desfrutados pelas personagens (EL FAR, 2004, p.193).

A prosa naturalista brasileira recebeu influências do escritor português


Eça de Queirós, com as obras O crime do padre Amaro e O primo Basílio,
, ambas publicadas na década de 1870. Aluízio de Azevedo encabeça o Na-
turalismo brasileiro com a obra O mulato, publicada em 1881 e, mais tarde,
com O cortiço; e abre caminho para que outros romances, como A Carne
(1888), de Júlio Ribeiro, O bom-crioulo (1895), de Adolfo Caminha, ambos,
inclusive, guardados no baú de Mário, personagem do romance O aborto,
em que o estudante de farmácia escondia às sete chaves seus livros libertinos.
O baú desse personagem confundia-se com a sua relíquia de tesouros,
ora com uma caixa de Pandora, pois ali dentro, estavam escondidos outros
grandes nomes da libertinagem, como Alfredo Gallis e Émile Zola, ambos
vanguardistas da Escola naturalista, que serviram de inspiração para a perso-
nagem Maricota, que às escondidas da mãe, leu toda a coleção de livros do
primo, mergulhando e voltando à superfície desse mar de ondas perturba-
doras da devassidão.
Apesar da ascensão do mercado editorial brasileiro facilitar a adesão dos
leitores aos novos gêneros literários, nem todo o público foi conquistado por
ela. O padre português Sena de Freitas, que nessa época morava no Brasil, as-
sim como muitos outros membro tradicionais da sociedade, consideravam
que tanto o romance naturalista quanto a literatura pornográfica deveriam
ser classificados como um caso de polícia, por tratarem de temas libertinos.
Na França, Gustave Flaubert sofreu dura intimação sob o poder legislativo
de seu país, devido à publicação de Madame Bovahy, em 1857, acusado de
ferir a moralidade burguesa da época, por abordar temas como o adultério.
Em Portugal, o escritor Alfredo Galis, entre os anos de 1901 e 1904, também
denunciava em seus romances os hábitos obscenos da população de Lisboa,
mas, para driblar as autoridades, utilizava-se de inúmeros heterônimos.
E se a censura religiosa rotulava os naturalistas como pecadores em po-
tencial, com um bilhete marcado diretamente para o inferno, Figueiredo
Pimentel, autor de O aborto, faria pelo menos uma breve passagem pelo
purgatório, pois em sua longa produção de mais de trinta obras, escreveu
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também livros para crianças, como História da baratinha, História da avo-
zinha, Teatrinho infantil, entre outras.

Os romances pornográficos entram em cena


O escritor Julio Ribeiro, em 1888, publica seu romance A carne, que traz
à luz polêmicas como divórcio, sexo, nudez e o papel independente que a
mulher pode assumir no seio da sociedade. Por essas razões, no ano de sua
publicação, muitas jovens foram proibidas de lerem a obra, devido ao con-
teúdo polêmico, mas encontravam, ainda assim, uma forma de lê-la secre-
tamente. Respeitando o arquétipo do Naturalismo, Júlio Ribeiro descreve
muito bem os detalhes do romance, especifica o tempo cronológico e conca-
tena o ambiente às cenas.
A carne retrata a história de Lenita, uma jovem com educação refinada, que
perdera os pais ainda muito cedo, e deixava a cidade para morar na fazenda de
um amigo da família, o Coronel Barbosa. A vida na fazenda parecia muito pa-
cata para a jovem, até a chegada do filho de seu tutor, um homem versado em
outras línguas e cosmopolita: esses foram alguns dos combustíveis necessários
para iniciarem uma amizade que logo evoluiu para uma paixão.
O autor conseguiu reunir elementos que tornavam a protagonista do
romance uma mulher atemporal para aquele século. O fato de Lenita ser
uma mulher intelectual e independente incomodava a sociedade: algumas
atitudes como sua habilidade para a caça, por exemplo, assemelhavam-se aos
traços de atitudes masculinas.
Foi então que o Coronel Barbosa chegou a duvidar se Lenita não era um
homem. A jovem não se importava com o fato de adentrar nas matas, em
meio a animais perigosos e sabia manejar armas com destreza. Todo esse pro-
tocolo abstrato que a sociedade daquela época estabelecia como costumes
e que apenas os homens poderiam realizar, não afastava o desejo de Lenita
praticar em igualdade: ela não se importava nem mesmo com juramentos ou
preceitos de fidelidade ao seu possível cônjuge. E todas essas características
não fizeram da jovem a antagonista do romance.
“Teria amantes, por que não? Que lhe importava a ela as murmurações, os diz-
-que-diz da sociedade brasileira, hipócrita e maldizente. Era moça, sensual, rica –
gozava. Escandalizavam-se, pois que se escandalizassem”. (RIBEIRO, 1999, p. 2).
Uma das primeiras evidências em que Lenita demonstra a sua libido, é
quando a moça observa detalhadamente os contornos dos músculos de um
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escravo enquanto estava sendo açoitado. A anatomia masculina excitava-lhe
até mesmo quando se tratava de objetos: uma simples estátua de bronze em
que os raios de luz refletiam os músculos da réplica de um Gladiador Bor-
ghese, com seus tendões retesados e com sua robustez, era suficiente para
despertar o interesse da jovem. E não demorou muito tempo para que seus
olhos fitassem além da estátua e passassem a fitar também os contornos de
um amigo por quem ela demonstrava grande estima.
Manuel Barbosa, filho do tutor de Lenita, era um homem maduro, que
passava horas em seu quarto lendo, e apesar de partir para longas viagens, os
momentos em que os dois estavam juntos, saíam para caçar, dividiam con-
fidências, conversavam sobre autores de suas preferências; e o que chamava
principalmente a atenção de Lenita era o fato de Manoel ter conhecido a
Europa, pois a jovem ainda não conhecia outros continentes. Durante o dia,
a convivência entre ambos poderia até disfarçar as sensações que os dois nu-
triam um pelo outro. Mas durante a noite, ambos dormindo sob o teto da
mesma casa, suas emoções não conseguiam ser contidas e os dois acabavam
cedendo aos prazeres da carne.

“Ergueu-se e, descalça, em camisa, inconsciente, louca, abriu a porta, atravessou a


sala, abriu a outra porta, saiu na ante-sala, enfiou pelo corredor, parou junto à porta
do quarto de Barbosa, a escutar. E nada ouvia. Dentro, fora, dominava um silên-
cio profundo, quebrado apenas pelas pulsações violentas do seu próprio coração.
Encostou o ouvido à fechadura, nada. O seu ombro fez uma ligeira pressão sobre
a folha da porta, e esta cedeu, entreabriu-se, chiando ligeiramente. Uma lufada de
ar quente, atrás de um aroma de charuto havano, veio afagar-lhe o rosto, os seios, o
busto quase desnudo no decote grande da camisa. Lenita perdeu completamente a
cabeça, entrou: em bicos de pés, sem fazer rumor, escorregando, deslizando, como
um fantasma, abeirou-se da cama de Barbosa (RIBEIRO, 1999, p. 26).

É na madrugada, movida por essa força centrípeta de sua libido, que Leni-
ta parte, voluntariamente “em bicos de pés”, para o quarto de Manuel Bar-
bosa, abre a porta e aproxima-se de sua cama. Encurva-se próximo ao corpo
sonolento do homem, mas o braço pelo qual ela se escorava falseou, deixan-
do-a ser percebida. Manuel ficou perplexo com a presença de Lenita, pois
não contava com a atitude espontânea da jovem de estar ali, em seu quarto,
livremente, àquela hora da noite.
O comportamento da protagonista deixou muitos críticos desacreditarem
na possibilidade de existir uma jovem de vinte e dois anos, com esse perfil e
personalidade na realidade daquele século. Consideravam improvável que
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uma moça com a classe social de Lenita pudesse assumir atitudes tão inde-
pendentes, sem pensar que antes poderiam denegrir a sua moral.

Veríssimo lista o inverossímil: uma moça culta e rica toma a iniciativa de ir ao quar-
to de um homem casado para ter relações sexuais. Comporta-se desse modo como
uma “mucama desbriada de fazenda”. No quarto, Lenita faz algo inacreditável:
“sujeita-se” aos caprichos do homem. Na sociedade que Veríssimo frequentava, as
mulheres de respeito resistiam aos caprichos do homem. Talvez ele fosse sincero
quando revela que o único sexo que conhecia entre pessoas de distinção era o sexo
contido, exilado do corpo e do prazer. Na literatura, o sexo das classes dominantes
seria mais bem representado pelas lacunas ou pontos de exclamação dos romances
de Machado de Assis. O sexo de Lenita, pensa Veríssimo, era como aquele praticado
nas senzalas (MENDES, 2016, p. 31).

Lenita praticava, pela lascívia e autonomia de seu desejo, os prazeres da


carne, correspondendo aos beijos e carícias de Manuel que ardiam-lhe a epi-
derme. Barbosa ainda estava descrente de que a fatalidade do tempo poderia
lhe proporcionar essa dádiva de Lenita poder estar apaixonada por ele. En-
tretanto, a fidelidade de Barbosa com a jovem não era mantida com a mesma
proporção. Certa manhã, Lenita descobrira, nos pertences de seu amado,
um bilhete com declarações amorosas a três possíveis mulheres. Desconfiada
da traição de Manuel e grávida dele de três meses, ela mais uma vez transgri-
de qualquer costume: abandona o traidor e casa-se com outro pretendente.
“A narrativa trazia uma protagonista em flagrantes manifestações de dese-
jo sexual, cenas de sadismo, ninfomania, perversões, nudez, encontros da he-
roína com um homem mais velho, casado, entregas dos amantes sem meios
tons; sexo, enfim”. (BULHÕES, 2003, p.28).
Lenita, portanto, torna-se a espinha dorsal de A Carne: movida pela força
dionisíaca em alcançar o seu próprio prazer, rompe com os tabus e preconcei-
tos da sua época e explora os meandros da sexualidade feminina. Considerada
uma heroína do naturalismo brasileiro, Lenita imerge na irreverência de eleger
os seus desejos como primordiais, desconsiderando todo tipo de paradigma.
Agarrando-se f irme à cintura do Naturalismo, o escritor e jornalis-
ta Figueiredo Pimentel lançou em 1893 o seu romance O Aborto, um
sucesso de vendas no ano de publicação, que ora é apresentado como
naturalista, ora como realista, nos principais jornais de circulação da
época. Com a Data vênia, coloca em pauta o artigo 200, que trata do
antigo Código Criminal do Império, que repudia os crimes de infanti-
cídio, no Brasil.
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Publicado primeiramente em folhetim, o romance narra a história de Ma-
ricota, uma jovem de dezessete anos, cuja família encontra-se com dificulda-
des financeiras, devido ao enfraquecimento do comércio de seu pai, em Rio
Bonito, no Rio de Janeiro. Visando à prosperidade dos negócios, a família
muda-se para Niteroi, onde pretende refazer e aumentar a freguesia.
Maricota, assim como a personagem Lenita, era uma moça com atitudes e
personalidade avançadas para a sua época: lia romances naturalistas france-
ses, pensava em ser uma mulher independente, sobretudo financeiramente,
era realista e possuía uma sexualidade muitíssimo acentuada.

Supostamente verídico, o caso era narrado com uma franqueza inaudita no romance
brasileiro. O folhetim causou tanto escândalo que o Província do Rio se viu obrigado
a interromper a publicação antes do final da história. Houve cancelamentos de assina-
turas e a redação foi inundada de cartas de reclamação. Só em 1893 Figueiredo Pimen-
tel lograria publicar a obra completa em formato de livro, com o título sensasionalista
de O aborto, pela livraria do Povo, do Rio de Janeiro (PIMENTEL, 2015, p.10).

O romance de Figueiredo Pimentel repercutiu em tamanho impacto tanto


para alguns leitores como para alguns críticos da época, pela razão de reunir
em uma única obra elementos característicos do romance de sensação e do ro-
mance para homens. A narrativa fazia referências explícitas à urina, à menstru-
ação, ao sexo e ao aborto. E apesar de quase não ser publicada, obteve sucesso
imediato, devido à irreverência e autenticidade de seus personagens.
O enredo ganha clímax quando Mário, primo de Maricota, ingressa na
Faculdade de Farmácia, e seu tio o convida para morar junto à família, de-
vido ao endereço ser próximo da Instituição de ensino. A jovem, que ainda
freqüentava a Escola Normal, passou a ter uma nova companhia quando
chegava em casa: a presença do primo passou a alegrar-lhe e a inspirar pensa-
mentos libidinosos e mais tarde foram evoluindo para uma paixão.

O diabo era a prima. Não confiava muito em si próprio e achava que seria perigosa
a permanência de ambos na mesma casa. Evidentemente ela o amava, fazendo tudo
para lhe agradar. O fogo ao pé da pólvora faz explosão. Era o diabo, era! Mas saberia
conter-se (PIMENTEL, 2015, p. 54).

Mário sentia de perto a tentação que era em manter-se longe de sua prima
e resistiu por algum tempo aos encantos dela. O jovem demorava a chegar
a Niteroi, jantando em casa dos colegas, contando que Maricota já estivesse
dormindo. Quando chegava, no entanto, encontrava-a na sala de jantar, com
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os cotovelos sobre a mesa e com algum livro qualquer aberto, simulando leitura.
Alguns dias da semana, Mário ensinava-lhe as lições de casa e durante os
encontros, Maricota aproveitava entre um intervalo e outro para seduzir o
primo. Quando falava, para perguntar acerca de alguma dúvida, direciona-
va-lhe o olhar com meiguice e suavizava o tom de voz, além de reclinar a
cabeça para um dos lados, aproximando-se dele. Ela perguntava como tinha
sido o seu dia, o que tinha aprendido nas aulas de botânica e prolongava a
conversa mesmo após a lição. A essa altura, o jovem encontrava-se em um
conflito entre sua razão, que o impelia de cometer qualquer desatino, e com
sua emoção, que o dizia para agarrá-la ali mesmo e despi-la por completo.
Mas naquele momento, pelo menos, a vitoriosa na disputa em sua consciên-
cia foi a razão e cada um foi em direção aos seus quartos.

Estava quase adormecido, quando despertou de repente, ouvindo bulha na sala de


jantar contígua, assim como se alguém, tateando pelo escuro, esbarrasse em algum
móvel. Esperou quieto, de barriga para o ar, com as pálpebras meio cerradas, respi-
rando regularmente, fingindo que dormia, pronto a levantar-se se fossem ladrões.
Depois nada mais ouviu. Conjeturou que deveria ter sido o tio, saindo para beber
água nos moringues que deixavam sobre a mesa, ou então um gato saltando sobre
alguma cadeira. Ia novamente virar-se de bruços, quando ouviu ranger a porta do
quarto, impelida docemente, e aparecer a prima (PIMENTEL, 2015, p. 66).

Maricota e Lenita possuíam características em comum no tocante à per-


sonalidade uma da outra, no sentido de não se incomodarem com o valor
da opinião de terceiros e sim com a própria liberdade de pensamento. Mas,
além disso, ambas compartilhavam também algumas atitudes: assim como
Lenita, a prima de Mário seguiu em bicos de pés até o quarto de seu amante
para passarem a noite juntos. Vestida apenas com uma camisola de linho
rendada na gola, Mário sentiu-se estonteado com a beleza de Maricota.
E foi apoiando-se serenamente com a mão direita no colchão, que Ma-
ricota inclinou-se, deixando aparecer seus seios túrgidos e deu um beijo na
testa de Mário. Essa foi a centelha de que ambos precisavam para iniciar uma
espécie de combustão inerte que havia comedida dentro deles.

Mário nada pensou. Desvairado, alucinado, louco, agarrou-a pela cintura, arremes-
sou-a brutalmente sobre a cama, forçou-lhe as pernas resistentes, separando-as, e,
deitado por cima, beijando-a, mordendo-a, enterrando-lhe a língua na boca até qua-
se a garganta, abraçando-a com frenesi, num longo e estreitado aperto, gozou-a uma
vez... duas vezes... três vezes... (PIMENTEL, 2015, p. 67).
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Os lençóis sujos de sangue denunciavam o que teria acontecido naquela
noite: era a primeira vez que Maricota tinha relações sexuais. Depois que
todo o clima de voluptuosidade acabara, Mário quase não dormiu a noite
toda. Pensou em como seu tio ficaria descontente em saber que ele se apro-
veitou de sua hospitalidade para dormir com Maricota e talvez por isso, te-
riam que se casar. Pensou também que o casamento poderia interromper os
planos dele em sair da cidade para inaugurar a sua própria Farmácia. Entre
todos os pensamentos que teve, imaginou também a hipótese de Maricota
precisar fazer um aborto, caso ela engravidasse logo na primeira relação.
Ao contrário de Mário, sua prima estava despreocupada e orgulhava-se
de ter perdido a virgindade com o primo. Maricota já arquitetava que a se-
gunda ou a terceira vez poderia ser ainda melhor do que a primeira, visto
que não sangraria tanto. Ela não sentia vergonha dele, como ele passou a
sentir dela e evitava-a. A jovem era um exemplo de figura feminina realmen-
te atemporal. Certa manhã, remexendo nos livros de Mário, ela encontrara
alguns romances em uma espécie de baú. Dentro dele, havia O homem, de
Aluízio de Azevedo; O crime do padre Amaro; de Eça de Queirós; Esposa e
virgem, de Belot; Nana, de Emílio Zola; as Volúpias; de Rabelais e vários
outros. Em pouco tempo, ela leu todos os exemplares escondida de sua mãe
e passou a tomar gosto por aqueles gêneros pornográficos.

Como no resto do mundo, a palavra pornografia, no Rio de Janeiro de finais dos sécu-
lo XIX, adquiriu sentido mais amplo, não se restringindo somente aos fatos ou temas
relacionados à prostituição. No cotidiano da cidade, ela era utilizada para qualificar
encontros ou cenas amorosas que feriam o decoro público. Em nosso mercado edi-
torial, de modo específico, ela foi emprestada às histórias que davam vez a sequências
intermináveis de fornicações e cópulas como também a todo e qualquer enredo que
apresentasse em seu texto descrições corporais pouco sutis, namoros proibidos, men-
ções de relações adúlteras ou prazeres que deveriam, em nome dos bons costumes, ter
sido reprimidos ou mesmo interrompidos (EL FAR, 2004, p.194).

Maricota, sensual como era, ambicionando uma vida de luxo, e visando a


um futuro ao lado de seu primo, arquitetou um plano: seduziria alguns ho-
mens influentes na cidade, a fim de que mais tarde, ela pudesse dar-lhes um
golpe. Em seguida, ela extrair-lhes-ia toda a sua fortuna e mais tarde, junto
com seu primo construiriam uma Farmácia, a fim de que Mário exercesse sua
profissão e viveriam às custas do infortúnio de outros. A primeira vítima seria
o Dr. Leopoldo Cordeiro, um advogado que tratava de negócios da família.
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O plano de Maricota inicia com sucesso: ela conquista o Dr. Leopoldo,
que se oferece para lhe ensinar as lições, em substituição a Mário, pois o pri-
mo preenchia o tempo com um novo emprego. Leopoldo declara seu amor
à jovem e alegando estar apaixonado desde a primeira vez em que a viu, pro-
metendo-a que assim que sua esposa falecer ele casar-se-ia com Maricota.
Ela, por outro lado, se faz de difícil e de moça virgem, e cede à proposta de
Leopoldo, que a leva para morar em uma casa próximo à Farmácia onde Má-
rio trabalhava. Assim que o Doutor saía, Mario aproveitava para fazer uma
visita íntima a sua prima. E essa rotina perdurou por alguns meses, até que
Maricota não contava com um fator que colocaria seus planos em ruínas,
após sentir alguns sinais e sintomas que lhe deixaram preocupada.
Então, uma ideia terrível perpassou-lhe. Podia estar grávida. Ergueu-se outra vez e,
tremendo, arrebatadamente, correu para o banheiro. Em frente ao espelho, trin-
cando os dentes, a respiração ofegante, arfando, com as narinas dilatadas, despiu-se
arrebentando os cós das saias, os colchetes dos botões, os cordões do espartilho.
Inclinou a cabeça e, olhando para o umbigo, viu-se com a barriga grande, dura, arre-
dondada (PIMENTEL, 2015, p. 128).

Depois de tanto envolvimento, a paixão dos primos gerou um fruto. Mari-


cota lembrara que sua menstruação estava atrasada por três meses e associou
os episódios de náuseas, vômitos, enxaquecas, que poderiam estar ligados à
gravidez. A jovem ficou assustada com essa possibilidade e pediu para que
um vizinho chamasse às pressas o farmacêutico. Assim que Mário chegou a
seu quarto, Maricota estava chorando copiosamente e disse-lhe que aconte-
cera uma desgraça: estava grávida. Sentado nas bordas da cama e roendo as
unhas, Mário ouvia a prima em silêncio.
O casal de primos via-se diante de um conflito em que o passar dos meses
acabariam expondo o que ambos temiam, pois a jovem não tinha relações
com o Doutor Leopoldo, excluindo-o da paternidade. No entanto, Marico-
ta procurou uma solução: pediu para que Mário lhe preparasse uma bebera-
gem abortiva, ou qualquer outro remédio caseiro que fizesse expelir o feto.
O primo aceita a proposta e sai para preparar o cozimento de Sabina, uma
espécie de arbusto com propriedades abortivas.

Maricota bebeu-a com grande repugnância. Minutos depois, veio forte vontade de
vomitar e fê-lo, sujando a cama, a pele de onça, todo o chão. Uma empregada foi
chamar o farmacêutico, que correu para o chalé. Achou a prima ainda a vomitar.
Com o esforço que fez, sobreveio-lhe uma hemorragia abundante.
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“- Mário! Eu morro!”, bradou, sentindo o sangue correr em catadupa, molhando-
-lhe as coxas, ensopando-lhe as roupas do leito.
“- Sossega, Maricota, não é nada”, asseverou o moço. “É isso mesmo o que quere-
mos” (PIMENTEL, 2015, p. 129).

Após a ingestão da beberagem, o efeito colateral provocado foi assustador: a


hemorragia não cessava. Maricota expelia uma grande posta de sangue negro,
coalhado e fétido. Assim que Leopoldo chegara a casa e vira Maricota naquele
estado, foi chamar um médico. Enquanto o doutor Maia entra no quarto para
examiná-la, Leopoldo se atirava em uma cadeira, sem coragem de entrar. Após
uma avaliação profícua, a experiência clínica do doutor já antecipou o que po-
deria estar acontecendo. Em pouco tempo, Maia constata que se tratava de um
aborto e que possivelmente Maricota não resistiria. Dirigiu-se à Farmácia em
busca de anti-hemorrágicos, mas antes disso, contou a notícia ao Leopoldo,
que aguardava do lado de fora do quarto impacientemente.

Leopoldo Cordeiro recuou. De pronto compreendeu tudo. Viu-se bigodeado pela


moça, que ele julgava virgem, explorado pelo farmacêutico, que a gozava todos os dias.
Teve consciência do papel de paio que fizera até então.
Ergueu lepidamente o corpo e investiu como um touro furioso para o quarto, com ten-
sões de estrangulá-la – ela, amante do primo, sovada por todo o mundo, menos por ele.
“- Miserável!”
Quando chegou, Maricota, deitada numa poça de sangue, suspensa a camisa, ar-
reganhadas as pernas, pálida, muito pálida, virou os olhos amortecidos e expirou.
(PIMENTEL, 2015, p. 132).

O plano de Maricota para extorquir a fortuna de Leopoldo para cons-


truir ao lado de Mário um negócio em outra cidade não saiu como ela havia
pretendido. A jovem não pretendera evoluir o curso de sua gestação e, por
vontade própria, sugerira um abortivo que retirou além da vida da criança,
retirara também a vida e os sonhos dela mesma.

Referência Bibliográfica
MENDES, Leonardo. Livros para homens: sucessos pornográficos no Brasil no final do século XIX. Ca-
dernos do IL, Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, n 53, p. 173-191, 2016.

ABREU, Márcia. Romances em movimento. A circulação transatlântica dos impressos. Campi-


nas: Editora Unicamp, 2016.

El FAR, Alessandra. Páginas de Sensação: Literatura popular e pornográfica no Rio de Janeiro


(1870-1924). São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
57
PIMENTEL, Figueiredo. O aborto. Organização Leonardo Mendes, Pedro Paulo Garcia Ferrei-
ra Catharina. – 1 ed.- Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira – 50. Ed. – São Paulo: Cultrix, 2015.

RIBEIRO, Júlio. A Carne. São Paulo: Martin Claret, 1999.

MENDES, Leonardo. Júlio Ribeiro, O Naturalismo e a dessacralização da Literatura. Pensares


em Revista, São Gonçalo - Rio de janeiro n. 4, pág. 26 – 42, jan./jul. 2014.

BULHÕES, Marcelo. Leituras do desejo: O erotismo no Romance Naturalista brasileiro – São


Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003.
58
ENTRE ARMAS E LETRAS: CONFLITOS, IDENTIDADE E RESISTÊN-
CIA EM “NO FUNDO DO CANTO” (2007) DE ODETE SEMEDO E
“UMA CASA E DUAS VACAS” (2000), DE JOÃO APARÍCIO

Luís Carlos Alves Melo


UERJ - CAPES7

Resumo: Esse artigo busca refletir sobre a narrativa literária do conflito en-
quanto mecanismo de fortalecimento de uma literatura de memória e resis-
tência, analisando como essa narrativa se desenvolve nas obras “No fundo do
canto” (2007) da guineense Odete Semedo e “Uma casa e duas vacas” (2000)
do timorense João Aparício, uma vez que essas obras poéticas estão balizadas
em um contexto de conflitos intensos na Guiné-Bissau e no Timor-Leste. A
obra de Semedo por tratar dos conflitos intensos ocorridos no período de
1998/1999, os quais deixaram amargas lembranças para o povo guineense; a
obra de João Aparício por inserir-se no bojo das consultas populares para deci-
dir se o país tornar-se-ia independente ou integrado à Indonésia. Os conflitos
descritos literariamente na Guiné-Bissau e no Timor-Leste são significantes
para entendermos a dinâmica de produção de uma literatura de resistência, as-
sim como para evidenciar uma obra que busca recontar a história das guerras,
golpes e abalos nacionais, para negociar uma identidade nacional, bem como
a ressignificação da nação.

Palavras-chave: Odete Semedo. João Aparício. Conflito. Identidade. Resistência.

No caminho das armas: palavras iniciais


As dominações coloniais representaram problema na elaboração das iden-
tidades nacionais dos países vítimas do processo de colonização tal como
Guiné-Bissau e Timor-Leste, seja porque atropelaram as culturas e costu-
mes locais, sufocando as formações identitárias existentes, seja porque cria-
ram uma conotação negativa e estereotipada sobre essas culturas, ao tentar
incorporar os costumes europeus. Para reverter esse quadro negativo, pro-
duziu-se no bojo das revoluções e lutas pela independência uma consciência
nacional, baseada na forja identitária coletiva. Essas criações foram necessá-
7
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código
de Financiamento 001
59
rias para que surgisse um ambiente de sentimento nacional e uma exaltação
cultual como forma de resistência.
A obra de Odete Semedo, No fundo do canto (2007) é das mais represen-
tativas sobre o contexto histórico, social, político e cultural da Guiné-Bissau.
A autora exprime a partir de seus versos as agruras do povo guineense, a
partir de representações do conflito interno do país no ano de 1998, consi-
derado um dos mais significativos dessa conflituosa situação que o país vive.
A guerra referida trouxe muitas amarguras para o seio do Estado guineense,
colocou muitos cidadãos em situação de diáspora forçada, bem como mui-
tas mortes. Semedo recorre à memória para retratar os infelizes momentos
vividos no país, para reclamar a “nação” dos guineenses, para construir uma
narrativa em prol da unidade nacional. É importante registrar que o Esta-
do-nação Guiné-Bissau tem várias nações, o que em parte explica o motivo
pelo qual se verificam múltiplas lutas. Lutas que buscam legitimar um senti-
mento de nação particular, ideologicamente formulado.
De igual maneira, “Uma casa e duas vacas” (2000), do escritor timorense
João Aparício retrata o mesmo sentimento destacado por Semedo, durante
o processo de consulta popular para decidir se o país seguiria livre e indepen-
dente ou se seria integrado à Indonésia. Embora o título revele uma história
anedótica, em essência o que está em voga nos versos do escritor são as atro-
cidades sofridas pelo país, resultado dos conflitos que deixaram aproxima-
damente 200.000 mortos, desde 1975. O autor faz uso de sua literatura para
refletir a identidade de uma nação, recuperando passagens históricas a partir
do exercício da memória, o que em última instancia atua na formulação de
uma unidade nacional. A narrativa utilizada por Odete Semedo e por João
Aparício resgatam uma literatura de reconto do conflito, da reflexão da guer-
ra, da forja, elaboração e negociação das identidades.

As letras são também armas...


No Fundo do Canto (2007), da guineense Odete Semedo, configura-se
como uma das mais representativas composições contemporâneas sobre a
temática da narrativa literária com conflito e da resistência poética. Isso por-
que na assinatura de seus poemas transparecem traços de sua própria iden-
tidade, o que dá a sua obra um tom intimista e engajado. Semedo cumpre
difícil papel em sua composição ao materializar-se já nos primeiros versos
como a grande mensageira do apocalipse, o próprio tcholonadur, que anun-
60
cia em sua poesia o princípio de uma história que está prestes a mudar toda
a vida na nação guineense.
No fundo do canto traz à tona os traumas, medos e tristezas decorrentes da
guerra que colocou muitos cidadãos em situação de diáspora forçada, bem
como ocasionou muitas mortes. O conflito ao qual a autora faz referência
deu-se a partir da insatisfação popular, recorrente no país, que já haviam
ocorrido várias crises políticas nas Guiné-Bissau, gerando posteriormente
uma rebelião militar contra o presidente da República. Durante onze meses
ou trezentos e trinta e três dias e trinta e três horas, conforme recorrente-
mente reproduz Semedo, os guineenses viram-se em tempos de brutalidade
e exceção, com militares senegaleses em Bissau, o que obrigou os obrigou
a se deslocarem para o interior, buscando fugir do epicentro dos conflitos.
(CAMPATO Jr., 2012, p. 208). Após esse momento trágico da história do
país, a relativa paz conquistada experimentou abalos constantes, por contur-
bações político-sociais e nunca alcançou a plenitude.
Dialogando com seu próprio tempo, Odete Semedo apresenta poetica-
mente uma história que ainda sendo contada e que, ao que nos parece, está
longe de ver seu fim chegar. Ao proceder de tal maneira, Semedo faz “ecoar
um canto sui generis que recupera, a seu modo, vivências individuais e co-
letivas que vão muito além do momento traumático da guerra”. (AUGEL,
2007 p. 48). O resgate da memória retrata os infelizes momentos vividos por
todos no país, para reclamar a “nação” dos guineenses, para construir uma
narrativa em prol da unidade nacional. Sua poesia, entretanto, não é apenas
um reconto do passado, de uma memória ou lembrança; é também, e acima
de tudo uma indagação do futuro.
O livro possui cerca de 78 poemas, divididos em quatro segmentos: “No
fundo no fundo”, “A história dos trezentos e trinta e três dias e trinta e três
horas”, “Concílio dos Irans” e “Os embrulhos”, sendo essa última parte di-
vidida em três outros segmentos: primeiro embrulho, segundo embrulho e
terceiro embrulho. A primeira parte ou prelúdio apresenta 27 poemas nos
quais a autora apresenta os preliminares de um conflito que estava por vir,
um adiantar do “prenúncio dos trezentos e trinta e três dias”. (SEMEDO,
2007). Esses poemas são o “prenúncio” de uma história que está prestes a
ver seu curso mudar. Na segunda parte, estão dispostos 17 poemas que con-
tam a história de uma “guerra” que se instalou no país entre 1998-1999. Os
poemas revelam os momentos vividos pelo sujeito poético diante do con-
61
flito armado, assim como seu espanto, tristeza, desnorteio diante das des-
graças que assolaram seu país. Na seção terceira, são 8 os poemas dispostos.
Os irans referem-se a todas as entidades místicas e divinas que circundam
a Guiné-Bissau, protegendo-a. Logo, os poemas desse segmento são um
evocar das múltiplas forças divinas, visando à salvação da nação da “catás-
trofe iminente. (AUGEL, 2007b p. 191). Essa seção é muito representativa
das inúmeras identidades étnicas que estão distribuídas por toda a Guiné-
-Bissau. Por fim, a última parte, intitulada Os embrulhos - dividida em três
segmentos: primeiro embrulho, segundo embrulho e terceiro embrulho, é
composta de 26 poemas, em português e em crioulo. Lembranças, tempo,
identidades e esperança são alguns dos temas que percorrem toda essa seção,
levando o leitor a uma viagem histórica mergulhada em recordações amargas
de um povo que sonha viver em paz. Para Augel, “o processo de recordação,
de reflexão, de testemunho, de desnudamento do passado (e do presente) e
de ridicularização ultrapassa largamente os registros que envolvem apenas
revivências”. (AUGEL, 2007b, p. 194).
Os versos de Semedo revelam uma tendência muito comum da escrita en-
gajada, proeminente de uma literatura militante, isto é, o rememorar como
forma de denúncia e sua narração como mecanismo de resistência. Ao se
colocar como um tcholonadur, Semedo acaba por se tornar uma ponte entre
os acontecimentos e o público leitor, dando-lhes ciência das agruras que as-
sombram seu coração. Além disso, enquanto poeta ela “traduz para a poesia
a dor coletiva de seu povo”. (AUGEL, 2007, p. 190). Ao fazer isso, convi-
da-nos a conhecer a intimidade de sua nação, e percorrer os caminhos do
calvário guineense, descobrindo as chagas abertas pelos conflitos internos.
Convida-nos a pacientemente adentrarmos sua “casa” e a ouvirmos atenta-
mente a “história [que] não é curta”. (SEMEDO, 2007, p. 22).
Outro aspecto importante da poesia de Odete Semedo, imanente em to-
das as literaturas de países colonizados, não poderia ser outro senão a cons-
tante contestação acerca da apatia do povo frente aos recorrentes movimen-
tos de opressão que estão assolando a nação. Busca-se a todo instante uma
desconstrução do discurso eurocêntrico patriarcal, revelando ao guineense
que os grilhões, que outrora os mantiveram presos às grades coloniais, hoje
precisam ser combatidos diariamente para que não voltem a escravizar o
país. Dessa forma o que se nota é uma preocupação por parte dos poetas em
traduzir o eterno narrar nacional em mecanismo de resistência. Assim, os
62
poemas de No fundo do canto “inserem-se exemplarmente no grupo de obras
que escrevem e narram a nação, no sentido apresentado por Homi Bhabha,
isto é, a partir de indagações e da procura de vínculos de pertinência que
possam explicar a nação para além dos contornos políticos do Estado”. (AU-
GEL, 2007, p. 326).
Se os traços ontológicos revelam a priori uma produção intrinsicamente
abarcada de interrogações sobre os conflitos, morte, opressão, identidade;
no momento em que busca guarida nos valores tradicionais através dos mi-
tos e das crenças, “essa poesia assume também uma função social, incursio-
nando pelos subterrâneos da fundamentação da nacionalidade”8.
No fundo do canto (2007) é uma produção poética que versa sobre um dos
maiores conflitos internos da Guiné-Bissau: a guerra civil de 1998-1999, com
a qual o eu poético encontra-se às voltas, resultando em uma escrita que põe
a nu as experiências traumáticas oriundas da guerra. Ao misturar traços de
uma literatura confessional e de testemunho, onde se ensaia um certo rigor
poético com a necessidade de se criar uma poesia engajada, Semedo apresenta
uma obra que traduz a agonia e a tristeza presas nas entranhas de um povo que
experimentou as amarguras dos “trezentos e trinta e três dias”. (SEMEDO,
2007). Disso, produz-se uma obra que agrega um emaranhado de temas, dos
mais relevantes, dentre os quais vem a lume a crise identitária, fruto dos con-
flitos na pátria, circunscrita em identidades culturais que não possuem “uma
origem fixa à qual podemos fazer um retorno final e absoluto”.
O teu mensageiro, composição que inaugura as páginas de No fundo do
canto, pavimenta o percurso que o sujeito poético irá trilhar ao longo de
toda obra, revelando sua essência e apresentando duas características fun-
damentais em relação a sua identidade: os traços da oralidade advindos de
tradições culturais e traços da língua falada, seja a materna (kriol) seja a ofi-
cial (português). A guisa de exemplo, vejamos alguns trechos desse poema:

Não te afastes
aproxima-te de mim
traz a tua esteira e senta-te

(........................................)

Não me subestimes
aproxima-te de mim
não olhes estas lágrimas
8
AUGEL, 2007, p. 328
63
descendo pelo meu rosto
nem desdenhes as minhas palavras
por esta minha voz trêmula
de velhice impertinente
Aproxima-te de mim
não te afastes
vem ...
senta-te que a história não é curta.

As estrofes selecionadas revelam o primeiro desses traços: a tradição oral


presente na Guiné-Bissau. Note-se no poema o uso de verbos no imperativo
- “senta-te”, “aproxima-te” - que marcam o início de uma história que está
prestes a ser contada, o que vai ao encontro da necessidade de relatar algo.
Como observa Campato Jr., nesse processo “percebemos a figuração do ato
de relatar oralmente histórias, experiências de alcance universal e atemporal,
mas que se tinge de cores locais”. (CAMPATO Jr., 2012, p. 209). Em espe-
cial, a penúltima estrofe aponta para o caráter milenar da oralidade, dado
que o sujeito poético se apresenta como uma figura ancestral, de idade avan-
çada. Por sinal, isso nos leva à segunda característica dessa poesia: a identida-
de linguística, fator presente nas literaturas africanas de modo geral.
Segundo Ana Mafalda Leite, estudiosa das literaturas africanas de língua
portuguesa, dado o caráter da colonização sofrida, “a relação com as tradi-
ções orais e com a oratura, começam por manifestar-se exatamente pelas dife-
rentes “falas” com que os escritores africanos se assenhorearam da ‘língua’”.
(LEITE, 2012, p. 33). Desta forma, o tom, que chega a ser quase heroico
no decorrer dessa composição poética, dialoga diretamente com o público,
através das particularidades do pertencimento linguístico, no qual a língua
comum entre o poeta e leitor mantém uma relação de identidade nacional.
Em A lembrança, poema que integra a terceira parte de No fundo do canto
(2007), Semedo parece trilhar por entre os descaminhos de sua intranqui-
la memória para recontar um pouco dos dias de dor que assombraram a
Guiné-Bissau por trezentos e trinta e três dias. Há um percurso sendo reali-
zado pela poesia que ao se “desembrulhar” a si mesma, enxerga o fundo do
canto no qual o país foi posto e do qual somente pela via da esperança do
povo guineense poderia um dia sair. Esse é, pelo menos, o desejo que se tem
no seio da nação.

O vaticínio sempre apontara


embrulhos não faltariam
64
e em cada um
nada seria surpresa
apenas recordação
do predito
e depois porfiado
Aberto o primeiro embrulho
será o encontro com o desalento:
onde está Estin?
sucumbiu durante a guerra!
Onde estão os filhos da nossa moransa?
pereceram, atingidos por estilhaços
Choro em todas as moransas
Mar de gente... floresta intensa
povo prostrado
difícil a travessia de lalas
bolanhas e rios
bombas e obuses traspassando
a carne humana impotente
Bens desaparecidos
gente em pânico
famílias inteiras perecem
a construção
perdida entre bombas

(SEMEDO, 2007 p. 115)

Dessa forma, para Augel (2007), o que se tem não é um compromisso li-
teral da história a ser contada, mas fragmentos das memórias mais dolorosas
daqueles dias. Há, portanto, uma poeta que aspirou toda poeira levantada
do chão da luta, misturadas com as cinzas dos escombros de seu chão-pátria,
aromatizadas pelo cheiro da morte espalhado no ar, e que agora, quer ex-
purgar toda secreção purulenta que se fez acumular em seus pensamentos.
Sendo assim, seu norte não busca eco na precisão da história oficial, mas um
retrato fidedigno “de uma paisagem de pesadelo, uma busca de um novo
‘chão’ depois do dilúvio” (AUGEL, 2007 p.198).
No fundo do canto (2007) de Odete Semedo, traz à tona os traumas, me-
dos e tristezas decorrentes de uma guerra que assolou a Guiné-Bissau de 7
de junho de 1998 a 7 de maio do ano seguinte. Este conflito deu-se a partir
da insatisfação popular, algo recorrente no país, que já havia produzido vá-
rias crises políticas nas Guiné-Bissau, gerando posteriormente uma rebelião
militar contra o presidente da República. Durante onze meses ou trezentos
e trinta e três dias, conforme recorrentemente reproduz Semedo, viram-se
65
tempos de brutalidade e exceção, com forças militares estrangeiras em Bis-
sau, tendo a população se deslocado para o interior, buscando fugir do epi-
centro dos conflitos. Após esse momento trágico da história do país, o qual
as mais variadas literaturas do país consideram como um dos mais graves
registrados pela história, a relativa paz conquistada tem experimentado aba-
los constantes, seja por conturbações políticas ou sociais; nunca fora recupe-
rada plenamente e o país vive desestabilizado. Dialogando com seu próprio
tempo, Odete Semedo apresenta poeticamente uma história que ainda sen-
do contada e que, ao que nos parece, está longe de ver seu fim chegar. Sua
poesia não é apenas um reconto do passado, de uma memória ou lembrança;
é também e acima de tudo uma indagação do futuro.

***
Das obras que lidam com a questão dos conflitos pelos quais o Timor-Leste
passou, o anedótico Uma casa e duas vacas (2000) parece-me representar na con-
temporaneidade um inusitado manifesto em forma de poesia que busca apontar
entre rimas e versos os desatinos praticados contra a pátria-mãe Timor, fazendo
eco junto aos prestigiosos trabalhos de figuras de destaque como Fernado Sylvan,
Luís da Costa, João Barreto, Borja da Costa, Luís Cardoso, Xanana Gusmão, Rui
Cinatti e tantos outras importantes figuras da resistência pelas armas e pelas letras.
É a poesia que talha no levantar da poeira do chão dos dias de amarga tristeza e dor,
escritas com as lágrimas da agonia e a esperança de dias de glória. São os versos de
um Timor que se quer livre e que livre há de ser pelas mãos da resistência.
Do prelúdio poético experimentado em Versos do Oprimido aos relatos memo-
rialísticos registrados em Uma casa e duas vacas (2000), João Aparício nos revela
as vis atrocidades desencadeadas no contexto da clausura colonial; em Timor, so-
bretudo, aos dias de agonia do povo durante anos de conflitos que deixaram cen-
tenas de milhares de mortos, um genocídio que se prolongou de 1975 a 2001. A
sua construção poética se deu durante o processo de consulta do povo timorense
em relação a independência ou a integração definitiva do país à Indonésia, lidos
durante programa de rádio “Timor, Sol Nascente”. O referendo foi realizado em
1999, oito anos após o conhecido Massacre de Santa Cruz que deixou centenas de
jovens mortos, feridos e desaparecidos; e que abriu os olhos do mundo para o que
estava acontecendo no país. Um olhar piedoso e ao mesmo tempo míope que se
bem calibrado poderia ter amenizado as chagas purulentas que feriram de morte
aquelas gentes.
66
O título é fruto de uma narração anedótica de um telespectador que con-
tou ter sido persuadido por militares indonésios a voltar em favor da integra-
ção do Timor-Leste à Indonésia, tendo como paga uma casa e duas vacas9.
Esse é o mote que vai, ao longo de toda a sua obra, delineando os contornos
de sua crítica e de seu inconformismo com a situação de sua país. Não à toa
questões como traição, fidelidade e honra são elementos recorrentes duran-
te toda a construção deste livro. Aparício compõe sua poética recorrendo
à memória, resgatando as trágicas passagens registradas na história do país,
e transbordando sua ira, seu desassossego, sua decepção e sua preocupação
com o futuro de sua pátria. Ao utilizar a literatura de reconto, o autor busca
refletir sobre a guerra, sobre os conflitos do país, e trazer ao centro das re-
flexões o caráter nacional, elementos importantes para a forja, elaboração e
negociação das identidades.
O livreto de 42 páginas, em tons pastel-acinzentados, editado pela Ca-
minho da Poesia, com tiragem de apenas 600 exemplares, não é daquelas
obras que nos enchem os olhos pela garbosidade de suas ilustrações, mas é o
retrato da falta de recursos editoriais e da tristeza que está a ser contada em
cada novo poema de seu interior. Não se deve julgar um livro pela capa antes
de se conhecer seu conteúdo; há capas que contam mais histórias do que
nossos olhos canônico-ocidentais podem imaginar. Assim o é Uma casa e
duas vacas. Com 16 poemas divididos por entre as páginas do livro, escritos
entre 6 de maio e 5 de junho de 1999 no Parque das Nações em Portugal10, a
obra conta ainda com uma seção de agradecimentos, notas explicativas acer-
ca de alguns acontecimentos importantes e um glossário que ajuda ao leitor
a compreender alguns termos em tétum utilizados pelo autor ao longo de
sua escrita. Nunca é demasiado lembrar que em países colonizados em que
há a incidência de um pluralismo linguístico tribal, os poetas se veem diante
do dilema de escrever em sua língua ancestral e sua língua colonial, o culmi-
na numa escrita poética bilíngue cujas repercussões se estendem por toda a
contemporaneidade (CAMPATO Jr., 2016).
A obra se insere no que se convencionou chamar de literatura diaspóri-
ca, ou seja, a literatura produzida por timorenses que vivem fora do país,
mas também integra a categoria das chamadas literaturas engajadas, a saber
aquelas produzidas por autores que descrevem a história das lutas de seu
país através das armas e das letras, ou seja, os poetas que escrevem são os
mesmos que ajudaram a construir a história através da luta armada. (BAR-
9
APARÍCIO, 2000 p. 7.
10
APARÍCIO, 2000 p. 41
67
BOSA, 2013; CAMPATO Jr., 2016). Nesse quadro sistemático, embora
opte pelo rechaço de um categorismo cartesiano que busca um forçoso en-
quadramento ocidentalizado das literaturas de África e Ásia, entendo ser
pertinente situá-los através de seu próprio movimento dentro da literatura e
da história, ou seja, dentro do espectro da resistência. Assim, sem embargo
do reconhecimento dos profundos e importantes aportes teóricos já produ-
zidos no campo dessa matéria, a opção que me parece mais adequada é a de
literatura na/da resistência.
De todo modo, como assevera Campato Jr (2016):

É viável ler Uma casa e duas vacas como dilatado poema do modo narrativo cons-
tituído de carias pequenas peças que, por sua vez, também, podem ser examinadas
isoladamente, cada uma tendo o próprio título. É um exemplo, semelhante a muitos
que temos visto, de como o discurso literário e o discurso histórico irmanam-se,
eventualmente, para a ponderação sobre a identificação de uma nação, para recupe-
rar a sua história e exercitar-lhe a memória11.

O poema A casa e as vacas (2000 p. 12-13), traz à tona a reflexão sobre as-
pectos significantes acerca da identidade timorense e a tentativa de corrom-
pe-la. Do poema que em parte dá nome ao livro, extraímos a casa ou úma
como objeto simbólico em Timor Leste: a casa, objeto concreto, enquanto
moeda de troca e corrupção, e, a casa, como fórmula abstrata de conspurca-
ção das identidades nacionais. Esses dois signos estão umbilicalmente inter-
ligados uma vez que é justamente a utilização da casa para corromper que
desencadeia o processo de conspurcação da identidade nacional. Isso por-
que a casa timorense é um objeto sagrado e carrega em si todo o simbolismo
da nação, ancestralidade e das identidades dos timorenses.
Acerca dessas considerações, as duas primeiras estrofes ilustram com rique-
za de detalhes esse processo de corrupção das identidades nacionais e conspur-
cação da úma lulic. Note-se, nas primeiras linhas do poema há um claro apon-
tamento à venda da alma em troca de uma casa e duas vacas, senão vejamos:

Tu, que eras da casa sagrada,


Vendeste tua alma ao monstro,
À troca de casa e vacas.

Só por isso
Voltaste as costas à nossa casa,
Correndo atrás de outra
11
CAMPATO Jr., 2016 p. 390 – o grifo é meu.
68
Que se nutre de mortes humanas e
Despejando bostas na morada de Deus?
...............................................................
Porventura a alma é vendível?12

É importante relembrar a razão pela qual o poeta utiliza essa construção


metafórica da casa e das vacas para ilustrar o processo de corrupção da alma.
Como já fora ressaltado ao início dessa seção, durante o processo decisó-
rio de consulta popular realizado em 1999, por meio de um plebiscito no
Timor Leste, no qual seria decidido se o país se tornaria independente da
Indonésia, as forças militares e os chefes das milícias pró-integração ofere-
ciam como recompensa uma casa e duas vacas para aqueles que traíssem seus
pares e votassem a favor da integração do país. É por essa razão que ao iniciar
o poema o autor relata a corrupção da identidade individual nacional em
relação à coletiva do sujeito que vendeu sua própria alma e traiu seus com-
patriotas em troca do prêmio oferecido.
A casa, nesse sentido, assume em primeira instância o papel de objeto
concreto e físico, uma moeda de troca, como forma de corromper àqueles
que violassem a úma lúlic, aqui considera-se casa sagrada como sinônimo de
Timor-Leste, em prol da integração ao país violador de toda uma ancestrali-
dade milenar. Em segunda instância, a casa é também elemento de violação
e corrupção identitária já que o indivíduo traidor abdica de sua identidade
nacional coletiva para se beneficiar de uma promessa que mesmo não tendo
a segurança de seu cumprimento o leva a agir contra si, seu povo e, conse-
quentemente, seu chão-pátria.
O questionamento feito por Aparício ao longo do poema mostra toda a
decepção com esse indivíduo que se sujeita a trair sua nação em prol de seu
benefício próprio. O poeta dá a entender, inclusive, o prazer provisório que
tal recompensa pode trazer para a vida desse sujeito corrompido ou que se
pretende deixar corromper. Tal como o ópio, a casa e as vacas são uma corti-
na de fumaça para o aprisionamento de uma nação que quer se fazer livre e
que espera que seus moradores lhe abram as portas e janelas para a liberdade.

É isso a casa que vais habitar?


São essas as vacas que esperas?
Que homem és?
Ou que herói vamos nos proclamar?

12
APARÍCIO, 2000 p. 12
69
Quando a promessa
Vácua e fatal, tiver chegado,
Prepara-te para chorar tua desgraça.
.............................................................
Como essa promessa é o ópio!
............................................................
............................................................
Olha! A casa é morta, roxa e fria,
Lá vêm as duas vacas,
Estrangeiras entre os rouxinóis,
Magras e sem leite13.

Ao final do poema, o poeta demonstra toda a podridão envolvida em ob-


jetos de corrução ao se referir a casa como “morta”, “fria” e “roxa”. Tal como
um cadáver, essa casa objeto de corrupção e de conspurcação das identidades
nacionais não tem chances de trazer prosperidade alguma para aquele que
lhe pertença, pois, sendo objeto de ganância, enganação e corrupção, ela será
sempre uma mancha irremovível e que dificilmente lhe trará frutos futuros.
A própria referência às vacas “estrangeiras entre os rouxinóis, magras e sem
leite”, é simbólica para representar toda a enganação que há por trás dessa
oferta espúria e imoral que não prosperou diante de um povo que à revelia,
pelo sangue e pela dor, decidiram ser livres.
Importa registrar que no caso de Uma casa e duas vacas (2000), João Apa-
rício recorre à memória de um dos processos mais sangrentos que envolve a
história do Timor-Leste: o referendo de consulta da independência do país.
O episódio marcou a trajetória do país como em nenhum outro país de lín-
gua portuguesa, pois culminou na dizimação de metade da população do
país. Aqui a memória é utilizada para reforçar a nação enquanto forma de
liberdade, mas também para recontar uma história que embora tenha ficado
em um passado não tão distante, não pode empoeirar nas prateleiras do es-
quecimento. Em outras palavras, como lê-se nas páginas de Uma casa e duas
vacas (2000 p. 28-29), a literatura memorialística é antes de mais nada um
espaço para o conhecimento da verdade aos olhos do poeta que a escreve.
Assim, escreve Aparício (2000):

(...)
Então, escrevi esta poesia
Só para ficar na memória
Após feita, sepultei-a no chão que durmo,
Para que pudesse ser lida pelas gerações
13
APARÍCIO, 2000 p. 13
70
E conhecessem a história verdadeira
(...)

Sendo a história que se conta através do retrato mnemônico literário um


produto de uma vivência partilhada com outras gentes e culturas, umas ve-
zes imposta outras vezes livre, a verdade é que as memórias são cruzadas,
são enriquecidas também pela diversidade do outro. Nesse sentido, é muito
interessante como a memória, na sua vertente coletiva, consegue ao mesmo
tempo distanciar-nos e aproximar-nos do outro, aqui visto a partir do foco
reverso como o não timorense. Se por um lado a memória coletiva pode
reforçar a identidade nacional, através do rememorar, por outro serve de ga-
tilho para conclamar o povo a resistir.

Uma palavra final...


Os conflitos internos observados na Guiné-Bissau e no Timor-Leste são
marcas da fronteirização imperialista que passou por cima de costumes, etnias
e cultuas locais. Mesmo após a Revolução de 1974 levou certo tempo para que
as ex-colônias se libertassem das marcas e fantasmas coloniais e conquistassem
a independência. O caso do Timor-Leste é ainda mais peculiar porque foi to-
mado por forças indonésias que inauguraram um novo período de coloniza-
ção no país. Nesse sentido, tanto Odete Semedo quanto João Aparício veicu-
lam em sua poesia um canto sui generis de postura crítica sobre os tempos de
obscurantismo que assolaram os seus chãos-pátrias, rememorando a história
como forma de problematizar a questão nacional, reelaborando e renegocian-
do as identidades de cada uma das populações em questão.
A escrita de ambos, em muitos momentos, revela traços intimistas como
meio de deixar evidente uma leitura factual, descrevendo os dramas sofridos
pela nação através dos conflitos, das guerras colonial, de independência, ci-
vis; como meio de fortalecer uma literatura de resistência que mediante uma
unidade nacional, evite que os fantasmas do passado possam continuar a
assombras suas nações futuro. É o recontar para rememorar. O rememorar
para resistir. O resistir para sobreviver enquanto povo e enquanto literatura.
Nas páginas iniciais de No fundo do canto (2007), Odete Semedo adota
tom profético para apresentar ao leitor uma visão antecipada dos aconteci-
mentos que marcaram a memória de sua gente: o prenúncio de uma guerra
civil inimaginável numa nação que fora construída na dor e que pela dor
resolveu lutar. Os trezentos e trinta e três dias, como a poeta fez questão de
71
demarcar poeticamente, representaram um duro golpe para a Guiné-Bissau.
O país que havia recém-acabado de se livrar das garras do colonialismo e vi-
nha aos poucos tentando fortalecer suas instituições via-se agora diante dos es-
combros. Bissau estava arruinada pelos conflitos e revivia os mesmos traumas
de outrora. Conforme se registra, há relatos no país de que as forças militares
senegalesas promoveram verdadeiro terror entre a população a partir de atos
de agressões, tortura, incêndios das casas e toda sorte de maldades contra civis
desarmados (AUGEL, 2007 p. 69). Estima-se que aproximadamente 100 000
pessoas tenham abandonado suas casas em fuga, seja para as regiões do interior
do país, seja para fora do país, em particular Portugal. Assim, em pouco menos
de 1 ano a paisagem da cidade mudou e cada vez mais os escombros tomaram
conta de Bissau que “quedou em parte abandonada e destruída”, restando
apenas fome e moléstias em seu interior (AUGEL, 2007 p. 69).
Nas páginas de Uma casa e duas vacas (2000) é possível experimentar
um lampejo dos dias de angustia que assombrou Timor. A história do Ti-
mor-Leste possui passagens que se não tivessem sido registradas pela histó-
ria e pela literatura, dir-se-ia inimaginável. É inacreditável que a gananciosa
necessidade de exploração dos recursos naturais, notadamente o petróleo,
tenha feito com que a comunidade internacional, de maneira geral, fechas-
se os olhos para todas as atrocidades que ocorriam no território timorense.
Parece difícil imaginar que algo assim tenha acontecido, mas aconteceu e os
escritos históricos e literários guardaram cada gota de sofrimento daquele
povo. Há marcas deixadas na terra-mãe que por mais que o tempo passe
ficarão gravadas na memória e em cada pedaço de chão onde se derramou o
sangue e as lágrimas do povo cuja desejo foi querer ser livre, e que por essa
ousadia sofreu.... Durante todo o processo que resultou na independência
de Timor, a resistência timorense se manteve firme e resiliente. Por mais que
a dor provocasse um sentimento de desesperança momentâneo, o povo ja-
mais esmoreceu. Ser independente não era apenas um sonho, era, afinal de
contas, uma meta a ser alcançada. Resistir é vencer... Pátria ou Morte... A
luta continua... são frases de ordem que por mais que o tempo passe serão
sempre a marca de um povo que decidiu seguir em frente e ser livre, não
sem esquecer os 200 000 irmãos ceifados pelo genocídio que tentou matar o
Timor... este resistiu!
Por tudo o que viveram, na Guiné-Bissau e em Timor-Leste o carpir é
eterno, as lembranças são feridas incuradas e incuráveis, a dor é imanente ao
72
fazer literário. Não é por outra razão que estando a transitar por entre as ar-
mas e as letras tanto Odete Semedo quanto João Aparício se utilizam das le-
tras como arma de rememoração das dores vividas através de rimas e versos,
e, sobretudo, como barreira de resistência contra os fantasmas do passado
que de tempos em tempos voltam a assombrar aquelas paragens.

Referência Bibliográfica
APARÍCIO, João. Uma casa e duas vacas. Lisboa: Caminho, 2000.

AUGEL, Moema Parente. O desafio do escombro: nação, identidades e pós-colonialismo na litera-


tura da Guiné-Bissau. Rio de Janeiro: Garamond, 2007.

BARBOSA, Damares. Roteiro da Literatura de Timor-Leste em Língua Portuguesa. Universi-


dade de São Paulo (USP). Tese – Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa. São
Paulo, 2013. 153f.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.

CAMPATO Jr. João Adalberto. A poesia da Guiné-Bissau: história e crítica. São Paulo: Arte
& Ciência, 2012.

________. Manual de Literaturas de Língua Portuguesa: Portugal, Brasil, África Lusófona e


Timor-Leste. 1. ed. Curitiba/ Rio de Janeiro: CRV, 2016.

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GARMES, Helder (org.). Oriente, engenho e arte: imprensa e literaturas de língua portuguesa
em Goa, Macau e Timor-Leste. São Paulo: Alameda, 2004.

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MARCOS, Artur. Timor Timorense: com suas línguas, literaturas, lusofonia. Lisboa: Colibri, 1995.

LEITE, Ana Mafalda. Oralidades & Escritas Pós-Coloniais: Estudos Sobre Literaturas Africanas.
Niterói: Eduerj, 2012.

SEMEDO, Odete Costa. No fundo do canto. Belo Horizonte: Nandyala, 2007.


73
TRÂNSITOS ENTRE POESIA E CANÇÃO: PETER DOHERTY
REMEDIA EMILY DICKINSON

Marcela Santos Brigida14


UERJ

Resumo: O presente artigo almeja abordar convergências entre poesia e


canção a partir de um estudo comparativo entre um poema de Emily Di-
ckinson e uma canção de Peter Doherty, escritor e compositor inglês con-
temporâneo declaradamente influenciado pela obra da poeta de Amherst.
Observamos um diálogo que toma forma por meio do fenômeno da reme-
diação – tal como estabelecido por Walter Moser em “As relações entre as
artes. Por uma arqueologia da intermidialidade” (2006) – da poesia pela
canção. Propomos assim uma leitura cerrada e comparativa das obras em
questão a fim de interpretar como Doherty leu a obra de Dickinson e como
poesia e canção surgem como artes afins neste contexto particular.

Palavras-chave: Poesia. Canção. Emily Dickinson. Peter Doherty.

A partir da década de 1950, a obra de Emily Dickinson parece ter in-


fluenciado e inspirado compositores com frequência. Tal influência se ma-
terializou em diversos níveis. Enquanto os temas e imagens de Dickinson
irrompem em citações, alusões e paráfrases, o ritmo e a musicalidade do
verso dickinsoniano também propiciam que poemas sejam musicados em
sua integralidade. Carla Bruni, por exemplo, lançou em 2007 o álbum No
Promises, no qual todas as canções são poemas de autores anglófonos musi-
cados pela artista franco-italiana. Três das faixas são adaptações de poemas
de Dickinson. Em 2017, o brasileiro Cid Campos percorreu um caminho
parecido em seu álbum Emily, trabalhando com traduções dos poemas da
autora realizadas por Augusto de Campos. Aaron Copland (1900-1990)
compôs em 1950 um ciclo de 12 canções baseadas em poemas de Dickin-
son intitulado Twelve Poems of Emily Dickinson. O ciclo foi composto para
uma soprano acompanhada por um pianista. Mais tarde, o compositor or-
14
Mestranda em Literaturas de Língua Inglesa na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e autora do blog Emily Dickinson Brasil. O
presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de
Financiamento 001.
74
questrou oito dessas composições. A releitura mais recente dessa versão para
orquestra ganhou vida em 2018 na voz da soprano Lisa Delan, que lançou
o álbum A Certain Slant of Light. Delan canta Emily Dickinson acompa-
nhada pela Orchestre Philharmonique de Marseille conduzida por Lawren-
ce Foster. John Adams também trabalhou com poemas de Dickinson na
composição da sua sinfonia coral Harmonium (1981). Na biografia Lives
Like Loaded Guns: Emily Dickinson and Her Family’s Feuds (2010), Lyndall
Gordon fala sobre a musicalidade inerente à obra de Dickinson e aponta
que a síncope característica da linguagem da poeta pode ser interessante tan-
to para o jazz – e aqui podemos citar o álbum de 2017 da saxofonista Jane
Ira Bloom, Wild Lines: Improvising Emily Dickinson –, quanto para artistas
da música pop. Ela cita o compositor Peter Doherty, que atua como uma
espécie de interlocutor de Dickinson e forte expoente da influência múlti-
pla que a poeta exerce no território musical. De fato, Doherty cita versos da
poeta de Amherst em duas de suas canções. Uma fotografia dela aparece no
videoclipe de uma terceira. Com o intuito de expandir a citação puramente
ilustrativa do nome de Peter Doherty na obra de Gordon, o presente artigo
objetiva estabelecer alguns traços dickinsonianos que se revelam na obra do
compositor e poeta inglês. Assim, objetiva-se contribuir não apenas para os
estudos dickinsonianos no Brasil, mas também para uma inserção de Peter
Doherty nos estudos contemporâneos da remediação, como veremos.
Em artigo publicado no The Guardian em 2002, Valentine Cunningham
procura responder à questão de como Emily Dickinson se tornou “a queri-
dinha dos compositores modernos” e conclui que é a “rica musicalidade da
sua abordagem a preocupações modernas. Isso a torna maravilhosamente
adaptável para música de todos os gêneros”15. Enquanto a sua “nudez, escas-
sez e variedade rítmica a tornam especialmente atraente para modernistas,
minimalistas e atonalistas musicais”, o jornalista informa que, “já foram fei-
tos madrigais, rags, e até sub-wagnerianismos em seu nome” (Cunningham:
2002). Cunningham aponta, ainda, que ao longo da sua obra poética, Di-
ckinson apresenta a sua experiência de composição como sendo predomi-
nantemente musical e nos lembra da forte influência da hinódia no contexto
da Nova Inglaterra calvinista do século XIX. Embora a repercussão da estru-
tura do hino na obra da poeta já tenha sido abundantemente explorada pela
crítica dickinsoniana, não podemos deixar de nos reportar a esta questão
em um trabalho que pretende discutir a influência que a poeta exerce sobre
15
Todas as traduções de textos anglófonos são nossas.
75
a música contemporânea. O ritmo e a métrica dos poemas de Dickinson
surgem como uma releitura deste modelo. Nesse sentido, propomos aqui a
existência de uma melodia subjacente à poesia dickinsoniana. O que alme-
jamos discutir é até onde essa musicalidade é inerente ao gênero da poesia
lírica que Dickinson explorou com maestria ao longo da sua obra e onde
pode se revelar uma certa afinidade musical de Dickinson na composição de
seus versos. Assim, nos alinhamos a Cristanne Miller na sua interpretação da
obra da Poeta de Amherst como sendo predominantemente aural:

O canto na escola e na igreja era predominantemente dedicado a hinos e, embora


a influência de hinos na prosódia de Dickinson talvez tenha sido exagerada, não
há dúvida que a hinódia afetou a afinação do seu ouvido para ritmos e rimas. As
palavras dos seus próprios poemas oferecem amplas evidências pragmáticas de que a
estética de Dickinson era fortemente, se não fundamentalmente, aural. Tal estética
era amparada por múltiplos aspectos da cultura estadunidense (2004, p. 207).

Tomando a performance como elemento integrante da arte poética


tal como postulado por Paul Zumthor em Performance, recepção, leitu-
ra (1990) e pensando a poesia de Dickinson no contexto cultural da sua
escritura como uma arte predominantemente aural, nos voltamos à críti-
ca dickinsoniana para elaborar um breve panorama da estrutura rítmica e
métrica de poemas da autora. Ao abordar as particularidades da prosódia
dickinsoniana em “Uncommon Measures: Emily Dickinson’s Subversive
Prosody” (2001), Christine Ross refaz o caminho percorrido pelos estudos
da prosódia da poesia anglófona apontando que:

Não é surpreendente, dadas as raízes clássicas da crítica europeia, que a prosódia em


inglês tenha se desenvolvido por meio da teoria greco-romana baseada nos ritmos
do grego e do latim. Esta tradição foi recodificada em 1959 pelo ensaio seminal de
W. K. Wimsatt e Monroe C. Beardsley, “The Concept of Meter.” Wimsatt e Beards-
ley desenvolveram o conceito de “tensão métrica” entre “accent” e “stress,” métrica
e ritmo, que organiza a análise que Lindberg-Seyersted faz de Dickinson” (p. 71).

Ross vai se opor à aplicação de tal entendimento sobre o estudo da poe-


sia de Dickinson, apontando que a noção da tensão métrica advém de uma
abordagem que se baseia em uma proposição teórica do século XX à qual
Dickinson não apenas não teve acesso, como entraria em choque com a ideia
que seu mundo fazia de poesia. Sendo assim, sua obra poética seria fundada
justamente sobre uma fusão de accent e stress, utilizando os ritmos do in-
76
glês coloquial como modelo. A pesquisadora credita ainda a tradição hínica
como fonte de padrões gerais para estrofes. Ross atribuirá à educação formal
de Dickinson a fundação para a criação de uma métrica “singularmente ex-
pressiva, baseada no pé Latino-Inglês” (p. 73). Surge ao ver da crítica como
crucial, portanto, o estudo exaustivo da sonoridade dos poemas de Dickin-
son, vez que Ross identifica uma função metacrítica na métrica criada e
empregada pela poeta, elemento capaz de “subverter as presunções sobre a
língua herdadas por ela” (Ross, 2001, p. 72).
É nesse trânsito crítico que nomes luminares dos estudos dickinsonia-
nos, como a supracitada Ross e Cristanne Miller, ressaltam a característica
predominantemente aural da poesia estadunidense do século XIX. Miller
recorre a fontes que fazem menção à performance poética executada pela
própria Dickinson. São listadas menções à prática da leitura em voz alta em
cartas assinadas por Dickinson, o fato de a poeta ter participado de clubes de
leitura quando jovem, além do olhar crítico da mesma ao apontar em corres-
pondências com Fanny e Loo Norcross que muitos “leitores notavelmente
ruins” frequentavam este tipo de encontro (L199)16.
Em casa, Dickinson lia em voz alta cartas recebidas para o resto da família. Por fim,

os próprios poemas de Dickinson recebiam alguma performance oral entre a família e


círculos da comunidade também. Conforme Hart e Smith documentam, Sue ao me-
nos ocasionalmente lia os poemas de Dickinson para amigos. Mais significativamente,
Martha Ackmann encontrou evidências de que a própria Dickinson, ao menos oca-
sionalmente, “dizia” seus poemas para a família: a prima Anna Norcross Swett men-
cionou ter ouvido Dickinson “falando poesia,” e Louisa Norcross relata que Dickin-
son lia seus poemas para ela enquanto trabalhava na despensa (Miller, 2004, p. 219).

Identificamos assim na influência da hinódia na estrutura de poemas e


na percepção que a comunidade e a própria Dickinson faziam da poesia al-
guns pontos de contato que podem sinalizar características que favoreceram
a frequente remediação de poemas de Dickinson no território da canção a
partir da década de 1950. É importante notar que tal momento histórico
foi caracterizado por uma atenção renovada na obra da poeta com a publi-
cação de The Poems of Emily Dickinson por Thomas H. Johnson em 1955,
primeira edição da poesia completa da artista sem edições, padronizações ou
alterações consideráveis em relação aos manuscritos.
Em um salto histórico para o contemporâneo, nas pegadas da virada so-
nora das recepções críticas e artísticas da obra de Emily Dickinson, podemos
16
Seguimos o formato de citação aceito para a produção acadêmica dickinsoniana segundo a Emily Dickinson International Society. A nume-
ração dos poemas reproduz a apresentada na edição de R. W. Franklin (Fr). Cartas são citadas seguindo a numeração da edição de Thomas
Johnson (L).
77
pensar como o poeta, cantor e compositor inglês Peter Doherty, nascido em
1979, leu e escreveu com Dickinson, recebendo a obra da poeta como uma
ferramenta composicional. Doherty frequentemente estabelece um diálogo
com a tradição literária anglófona em suas letras de música. Em sua relação
com a obra de Dickinson, pudemos observar duas instâncias de um diálogo
que toma forma por meio do fenômeno da remediação da poesia pela can-
ção tal como estabelecido por Walter Moser em As relações entre as artes. Por
uma arqueologia da intermidialidade (2006). Ao abordar a tradição da re-
lação entre as artes, Moser explica que se serve de tal expressão para se referir
ao “conjunto das interações possíveis entre as artes que a tradição ocidental
percebe como distintas e diferenciadas, em especial pintura, música, dança,
escultura, literatura e arquitetura” (p. 43). O crítico aponta ainda que a in-
teração pode ocorrer em vários níveis, na produção, na obra em si e até nos
processos de recepção.
O efeito da remediação da obra de Dickinson pela canção de Doherty nos
permite pensar a contemporaneidade dos temas da poeta e as potencialida-
des das suas estruturas, questão cuja relevância foi intensivamente sublinha-
da por Cristanne Miller. No nível semântico e discursivo, os versos citados
e parafraseados por Doherty em suas canções soam harmônicos tanto em
relação ao corpo das letras de música quanto à melodia que necessariamen-
te demarcará sua performance. Moser propõe uma estética da obra como
“processo de criação contínua” onde divisões tradicionais entre performan-
ce e obra e os papeis de criador e intérprete “apagam-se em uma implosão
categorial que afirma a energética do ato de criar e sua transmissão iniciática
aos receptores da arte” (2006, p. 52). Assim, vemos a canção de Doherty
como veículo que atua para evidenciar e efetivar a potencialidade musical da
poesia de Dickinson. A canção atua enquanto meio para performar a poesia
e reafirmar em uma nova obra resultante da leitura do poema de partida os
aspectos em que ambas formas de arte se interpolam.
Tendo estabelecido alguns aspectos da estrutura do verso dickinsonia-
no, é interessante pensar a maneira como Doherty trabalha os poemas de
Dickinson em sua própria linguagem no século XXI. Há duas instancias
principais onde o diálogo entre Dickinson e Doherty se estabelece por meio
da remediação. No entanto, no escopo desta comunicação, focalizaremos a
relação entre a canção “Arcady”, lançada por Doherty em 2009 no primeiro
álbum solo do artista, Grace/Wastelands e o “There is a morn by men un-
78
seen” (Fr13), listado como um dos poemas da fase inicial de Dickinson. O
poema segue a estrutura hínica do common particular meter, sendo organi-
zado em quatro sextetos. O esquema de rimas das três primeiras estrofes é re-
gular: rimas emparelhadas para o dístico que inicia o sexteto (AA) enquanto
o quarteto apresenta rimas interpoladas (BCCB). Também é regular o pa-
drão de métrica e ritmo ao longo das três primeiras estrofes. Dois versos em
tetrâmetro iâmbico são seguidos por um terceiro em trímetro iâmbico. O
efeito gerado é que os dois versos externos da rima interpolada são também
um pé iâmbico mais breves que os demais. Na estrofe que encerra o poema,
Dickinson rompe em parte com a regularidade da estrutura que estabeleceu.
Ao iniciar o segundo verso do sexteto com a palavra people, a poeta inter-
rompe a regularidade iâmbica, introduzindo o único troqueu do poema.
Além disso, o quarteto final apresenta apenas a rima interna (AABCCD),
uma rara abdicação de Dickinson à regularidade das rimas.
Doherty adere à estrutura da balada dickinsoniana em “Arcady” e torna
possível uma leitura contemporânea do poema de Dickinson ao dar nome ao
paraíso por ela descrito no poema “There is a morn by men unseen” (Fr13).
Podemos pensar Doherty e Dickinson como estilhaços de uma mesma tra-
dição no sentido colocado por T. S. Eliot em “Tradição e talento individu-
al” (1919) não apenas porque o artista inglês dialoga e se estabelece como
um leitor competente da obra poética de Dickinson, mas porque ambas as
obras, cada qual em seu contexto, oscilam entre canção e poesia, o que faz
desse entre-lugar um terreno criativo fértil para remediações.
O poema “There is a morn by men unseen” (Fr13) é uma das obras da poeta
que apresentam uma variação dos padrões da forma hínica. O padrão 4-4-3-
4-4-3 rege o poema. Os versos da poeta frequentemente surgem como tríme-
tros ou tetrâmetros, característica que, segundo Miller, pode contribuir para a
percepção da musicalidade a eles subjacente, vez que “poesia metrificada com
versos mais curtos do que o pentâmetro tendem a apresentar um ritmo predo-
minantemente métrico, não sintático, uma dominância tipicamente sublinha-
da por rimas e unidades de estrofes regulares” (2007, p. 397).
Os quatro versos finais apresentam o pleito entusiasmado do eu-lírico
para habitar no paraíso descrito ao longo do poema e compartilhar de todas
as maravilhas desfrutadas pelas donzelas (maids) que protagonizam as cenas
delineadas nos sextetos. Em tradução livre: “Peço a cada Manhã de Maio /
Espero teus sinos distantes e fantásticos — / Anunciando-me em outros
79
vales / Até o amanhecer distinto!”. Ao citar o poema de Dickinson em sua
canção, Doherty deu nome à utopia por ela delineada: Arcady. A busca pela
Arcádia como uma espécie de ideal poético esteve presente na carreira do ar-
tista desde a sua juventude, como podemos observar na primeira entrevista
concedida por ele. Nela, a Arcádia é apontada como um espaço mental de
liberdade e criatividade (Oldham, 2010, p. 18).
Parece-nos aqui que ao descrever verbal e poeticamente sua visão da Ar-
cádia, Doherty percebeu que o poema de Dickinson não apenas lhe ofe-
recia as imagens de uma utopia muito afim à sua, mas que a musicalidade
do poema lírico pode ter influenciado a composição da melodia criada pelo
compositor. Embora Doherty tenha afirmado que seu processo de compor
canções é distinto daquele empregado para escrever poesia, percebemos que
ao se apropriar do paraíso de Dickinson e nomeá-lo na sua canção, Doherty
parece trabalhar com a poeta enquanto compositor que reconhece o apelo
aural do seu poema. “There is a morn by men unseen —”, verso que intro-
duz o local que será descrito ao longo do poema, surge em Doherty como
“In Arcady, your life trips along”. Os versos “Never saw I such a scene / Such
maids upon such a molten green” (6-7) de Doherty ecoam tanto “Ne’er saw
I such a wondrous scene — / Ne’er such a ring on such a green —” (13-14)
quanto o segundo verso do poema, “Whose maids upon remoter green”. O
“Seraphic May” (3) de Dickinson se transforma nos “Seraphic pipes” (3) da
Arcádia de Doherty. Desta forma, parece-nos curioso que o compositor não
tenha mencionado Dickinson em suas entrevistas sobre a canção na ocasião
do lançamento do álbum Grace / Wastelands.
Ao remediar a poesia na canção, Doherty nos possibilita uma leitura
nova de poemas de Dickinson sem necessariamente reivindicar uma posi-
ção de herdeiro do legado da poeta. No caso de “Arcady”, especificamente,
o seu diálogo com a obra dela parece se dar numa esfera que nos convida
a identificar a instância de intertextualidade. Mesmo aqueles não cientes
da citação experienciam a relação de Doherty com a tradição na própria
estrutura da sua linguagem, para além das entrevistas onde anunciou sua
admiração pela poeta. Emily Dickinson se impõe como precursora tão
significativa para aqueles que desejam empreender uma leitura séria de
Doherty porque marcas dickinsonianas se impõem não apenas em cita-
ções diretas e alusões, mas nas próprias escolhas que vão compor a estrutu-
ra rítmica empregada pelo compositor.
80
Doherty exibe um modo dickinsoniano de construção que tem princípio
no convite a ser Ninguém do poema 260. Quando Doherty transformou
em canção a utopia que sempre declarou reger sua visão sobre a arte e um
ideal a perseguir, foi à materialidade do poema de Dickinson que ele recor-
reu para ilustrar em versos a Arcádia. Ao longo do desenvolvimento deste
projeto de pesquisa já nos deparamos e vamos nos deparar com tantas outras
instâncias igualmente férteis e dignas de estudo dedicado. Por ora, encerra-
mos com a certeza de que os esforços nos estudos de Dickinson no século
XXI devem ser não no sentido de circunscrever uma poeta no limiar, mas
de apreender as formas múltiplas pelas quais sua poesia impactou e impacta
a contemporaneidade.

Referência Bibliográfica
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MILLER, Cristanne. In: POLLAK, Vivian R. (Ed.). A Historical Guide to Emily Dickinson.
Nova York: Oxford University Press, 2004. p. 201-234

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LHOLZ, M. (Ed.) A Companion to Emily Dickinson. Malden: John Wiley & Sons, 2007. p. 391-414.

OLDHAM, James. “We’re about establishing the Arcadian dream” – reprinted from NME
08/06/02. In: FULLERTON, James (Ed.). NME ICONS – SPECIAL COLLECTORS’ MA-
GAZINE – The Libertines. Londres: IPC Media. 2010. p. 6-10.
81
RAAB, Joseph. The metapoetic element in Dickinson. In: MILLER, Cristanne; HAGENBÜ-
CHLE, Roland; GRABHER, Gudrun M. (Ed.) The Emily Dickinson Handbook, 1998. p. 273-95.

ROSS, Christine. Uncommon Measures: Emily Dickinson’s Subversive Prosody. In: The Emily
Dickinson Journal, v. 10, n. 1, 2001. p. 70-98.

ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. Tradução de Jerusa Pires Pereira e Suely Fe-
nerich. São Paulo: Cosac Naify, 2007. (1990)
82
OUTRO OLHAR SOBRE O BRASIL: A AMBIVALÊNCIA DO MITO
DO PARAÍSO RACIAL BRASILEIRO

Marcella Mesquita Granatiere


PUC - RIO

Esse problema da imagem não tem origem na ignorância,


Como às vezes somos levados a pensar.
Pelo menos não apenas na ignorância,
e nem mesmo principalmente na ignorância.

Chinua Achebe

Resumo: Esse artigo tem como objetivo analisar a ambivalência do mito


do paraíso racial brasileiro como um instrumento do racismo. Tendo como
base o livro: Brasil um pais do futuro, de Stefan Zweig, 1941. O texto, celebra
a suposta hegemonia étnica brasileira. Stefan Zweig se apropria do símbolo
do paraíso racial brasileiro, sua intenção é homenagear o Brasil, ser contrário
ao senso comum, mas em vez disso, acaba por endossá-lo.

Palavras-chaves: Mito racial. Racismo. Estereótipo. Stefan Zweig.

Introdução
Stefan Zweig escritor, dramaturgo, biógrafo, pacifista austríaco de origem
judaica. Considerado um dos escritores mais lido da literatura alemã. Visita
o Brasil em 1936, se encanta com a hospitalidade e a cordialidade do brasi-
leiro. Após essa experiência, decide escrever um livro sobre o “paraíso racial
brasileiro”. O livro é: Brasil um país do futuro.
Em tempos difíceis onde o retrocesso assume o controle da cena política
e social brasileira, a frase: Brasil, um país do futuro. Leva a uma pergunta:
Que futuro? O olhar de cada brasileiro, cada imigrante residente remete a
uma resposta ao mesmo tempo plural e pessoal. Derivada de sua experiência
cotidiana, do seu lugar de falar (gênero, classe, etnia).
A “pátria mãe gentil” revela-se para uma parcela considerável da popula-
ção brasileira, madrasta. A História oficial contada nos livros escolares apaga
83
lutas e personagens. Políticas segregacionistas, racistas são difundidas como
ações positivas em prol da unidade nacional. A História única prevalece nas
salas de aulas, nas campanhas dos governos republicanos, tendo em Getúlio
Vargas um grande aliado.
O governo varguista sedimenta a ambivalência dos mitos do paraíso racial
brasileiro, do Brasil para todos os brasileiros, da nação hegemônica, através
da apropriação da cultura oral, como o samba. A estatal rádio nacional é
o instrumento principal de divulgação das ideias de identidade nacional.
Também propagadas no exterior. O que pode ser lido como o uso de um
“sistema de representação, um regime de verdade, que estruturalmente se
parece ao realismo” como apontado por Bhabha (2012).
Na contra mão das políticas de valorização da cultural nacional, do trabalha-
dor, há o endurecimento das políticas de imigração, a politica de branqueamento
da população brasileira, assim como reformas na educação com forte tendência
eugênica. A modernização da capital republicana, que contou com a abertura da
Avenida Presidente Vargas, aumentou o recorte geográfico da exclusão social dos
negros, mestiços e pobres no Rio de Janeiro. O que nos remete à afirmação de
Fanon (2015) o mundo colonizado é um mundo cortado em dois.
Nesse contexto contraditório, Stefan Zweig escreve seu livro: Brasil, um
país do futuro, 1941. Zweig viajou pelo país na intenção de conhecer de per-
to as múltiplas realidades, personagens do cotidiano brasileiro. Seu olhar de
europeu cosmopolita, pacifista o acompanha nessa jornada de novas desco-
bertas. As paisagens naturais, o cotidiano dos cidadãos brasileiros, a História
oficial são descritos com entusiasmo.

A Utopia Zweiguiana
Na introdução de seu livro, a raça é apresentada ao leitor como um fator
relevante da narrativa. Uma lente de aumento orienta Zweig quanto a essa
questão, a politica nazista alemã centrada na soberania da raça puramente
ariana, e as implicações de tal política na segunda grande guerra. A dicoto-
mia “raça pura x mestiçagem” é debatida ao longo do livro. A comparação
entre a Alemanha nazista e o Brasil paraíso racial, produz um discurso criti-
co de raça como politica de Estado. “País doente” x “País do futuro”:

Enquanto, no nosso velho mundo, prevalece a loucura de se querer criar pessoas de “raça pura”,
[...], a nação brasileira se baseia há séculos unicamente no princípio da mistura livre e sem en-
traves, a total equiparação entre negros e brancos, morenos e amarelos (ZWEIG, 2006, p.18).
84
A ambivalência da raça enquanto signo vai sendo desenhado junto com as
paisagens e a História ocidental do novo mundo. Onde o controle prolonga-
do do velho mundo, o europeu, encontra-se fortemente marcado na língua
nacional, na cultura, na mestiçagem. Esta última considerada por Zweig con-
sequência positiva, eficaz para a construção de uma nação civilizada e pacifica.
A linguagem positivista do papel central do homem europeu na constru-
ção da nação brasileira, na obra de Zweig, continua através da reverência aos
intelectuais, religiosos e lideres militar como: Manuel da Nóbrega, José de
Anchieta, Mauricio de Nassau, Luís de Camões, D. Pedro II.
O recorte feito por Zweig destaca o dom pacifista do país do futuro. O
suposto sucesso politico da unificação territorial e integração das raças no
Brasil de Zweig tem sua explicação no passado histórico. O olhar atual do
passado, o dia de ontem refletido no presente. O tempo anacrônico que
tem como objetivo um projeto de futuro e o Brasil como modelo. Por
sua riqueza natural, dimensão territorial, mas, acima de tudo pela suposta
convivência pacífica entre as etnias que compõem o povo brasileiro. Zweig
observa (2006):

Quantas raças encontramos nas ruas: o senegalês negro de roupa rasgada e o euro-
peu de terno bem-talhado , os índios com seu olhar grave e cabelos pretos e lisos,
e, no meio disso, centenas e milhares de matrizes, as mesclas de todos os povos e
nações[...] (ZWEIG, p. 179, 2006).

Essa imagem, amplamente aceitada a nível internacional e divulgada a ní-


vel nacional pelo DIP (Departamento de Impressa e Propaganda), do Brasil
para os brasileiros, do povo gentil é um balsamo e também um instrumento
de crítica ao regime nazista para o apátrida, o pacifista, Zweig. A ambivalên-
cia do signo raça aponta para duas vertentes na narrativa de Brasil, um país
do futuro. Como defendido por Hall (2014): “Raça funciona como uma
linguagem. E os significantes se referem a sistemas e conceitos da classifica-
ção de uma cultura, a suas práticas de produção de sentido”.
A primeira, Brasil x Alemanha. O significante de raça reflete a dicotomia
mestiçagem x pureza. O ideal de sociedade no futuro personificado pelas
relações inter-raciais livre de preconceitos e a violência baseada na religião e/
ou cor da pele. Opõem-se a sociedade do presente, intolerante, violenta, ra-
cista. “Como a sociedade olha para todos aqueles contra quem discrimina”
(ARENDT, 1943, p.327).
85
A segunda, Brasis x Brasil. O cenário futurista sofre intervenções do pas-
sado, mesmo se o ontem é enaltecido na narrativa Zweiguiana, rastros são
encontrados ao longo da viagem literária ao analisarmos os silêncios em sua
narrativa. Escravidão, monopólio, genocídio do povo indígena, apropria-
ção, violência. Esse fio condutor silenciado na História oficial, não é exibido
por Zweig, fazendo-se presente no silêncio, na ausência.
Mesmo se o Brasil de Zweig valoriza a “ausência” de atitudes e leis clara-
mente racistas, argumento justificado no texto pela convivência pacifica en-
tre negros e brancos nas ruas de cidades como Rio e Salvador, a construção
dessa imagem é atravessada, ao longo do texto, pela valorização do europeu
enquanto força aglutinadora na “criação” da cultura, da identidade brasi-
leira. Pois, segundo ele, os elementos que compõem a cultura brasileira do
século XX chegaram por mar. Aqui nada tinha.
Expressões como: começar do zero, nada tinha aqui, civilizar os selvagens,
verdadeiro início da nação brasileira reitera o protagonismo europeu na
“criação” da cultura e identidade brasileira. O signo raça europeia figura no
texto de modo ambíguo. Hora seguindo seu destino de civilizador, Brasil,
hora corrompido pelo nacionalismo exacerbado, pela “loucura” da pureza
da raça, Alemanha.
Já o negro, parte integrante do duo Brasis x Brasil, é apresentado no inicio
do livro, como “marfim negro”, “matéria prima”, “braços humanos”. No pós-
-abolição é descrito como analfabeto, debilitado pelo trabalho escravo, toda-
via, cordial, gentil. Aqui o olhar da História única atravessa o signo raça, a am-
bivalência parece na negação do preconceito racial como pratica de segregação.
Segundo Adichie (2008): “Não se tem dúvidas de que somos todos igual-
mente humanos, mas o curso da História tornou possível para algumas pes-
soas questionar a humanidades de outras”. A construção do paraíso racial
brasileiro zweiguiano tende a expor a contradição contida no próprio mito.
Pois, os argumentos usados para valorizar a aparente harmonia racial apon-
tam para uma estrutura social segregacionista.
A narrativa humanista cria uma imagem positiva da realidade sociopolíti-
ca brasileira. Entretanto, as múltiplas camadas do mito do paraíso racial vão
sendo reveladas. A cada cidade, a cada deslumbre, a cada descrição do povo
há a ambivalência da raça brasileira. O livro de viagem, sem pretensão poli-
tica, escrito por um autor notoriamente contrário a militância, sem men-
cionar atritos, lutas, conflitos armados, apenas descrevendo poeticamente
86
o Brasil, realça uma face pertinente da raça, a face política. Como explicado
em algumas passagens: “[...] como conseguir em nosso mundo uma convi-
vência pacífica entre as pessoas apesar da diversidade de raças, classes, cores,
religiões e convicções?” (ZWEIG, 2006, p.17).
Na utopia Zweiguiana a temática racial é feita através de uma fala aberta.
Pontuando os paradoxos da raça branca no continente do passado, Europa.
Com as possibilidades e desafios da mestiçagem do país do futuro, Brasil.
Esse discurso carrega uma subdivisão, as discursões indenitárias brasileiras
da primeira metade do século XX. Como o brasileiro se via? Qual imagem
de população brasileira era desejada e/ou rejeitada no contexto sociopolítico
da época? Para Munanga (2008):

A pluralidade racial nascida do processo colonial representava, na cabeça dessa elite,


uma ameaça e um grande obstáculo no caminho da construção de uma nação que
se pensava branca: daí por que raça tornou-se o eixo do grande debate nacional que
se travava a partir do fim do século XIX e que repercutiu até o meado do século XX
(MUNANGA, 2008, p. 48)

O tema da hegemonia étnica era discursão entre intelectuais brasileiros há


bastante tempo quando o livro: Brasil, um país do futuro foi lançado. Políti-
cas sociais implantadas pelo governo federal ao longo da história republica-
na, como: incentivo a imigração europeia, o branqueamento da população,
suporte as pesquisas médicas voltadas para higienização, melhoramento da
genética do brasileiro. O olhar do Outro aqui indica o país do futuro sem
marcas do passado. A elite política brasileira também tem a sua utopia, o seu
projeto de Brasil.
Essa idealização do Brasil pelos seus lideres políticos se encontra no dis-
curso zweiguiano, no duo Brasis x Brasil. Essa segunda ponta, ao contrário
da primeira, tem voz, poder de decisão, controle, nome. Ainda assim, gentil,
cordial. As políticas sociais pensadas pelo Estado Novo são apontadas ao
longo da utopia zweiguiana. Como colocado nesse trecho: “[...] e mesmo
nos nossos dias, em 1939, o governo se viu obrigado a fundar uma comissão
para extinguir definitivamente o analfabetismo” (ZWEIG, 20006, p. 144).
O governo Vargas, por si só uma ambivalência. Um ditador que admirava
os princípios fascistas tem na formação inicial do seu governo políticos liga-
dos ao partido integralista brasileiro, membros da sociedade civil em prol da
realização de projetos sociopolíticos eugênicos. Entretanto, alia- se aos Es-
87
tados Unidos na segunda guerra mundial, sua máquina publicitária (DIP)
centra o discurso na nação unificada, no paraíso racial brasileiro. Torna-se o
pai do povo.
As múltiplas imagens sobre uma nação hegemônica, um único projeto
de identidade nacional atravessam o livro de viagem. Causando um choque
entre o utópico e o real no campo discursivo do controverso país do futuro.
O contraste enquanto arte estabelece um retrato da capital, Rio de Janeiro,
no qual o passado e o futuro são enaltecidos na natureza, na arquitetura,
na diversidade étnica. Esta observada no passeio pelo centro, pelas favelas e
celebrada em cada impressão descrita sobre a população brasileira:

Tudo se mistura, e, com variedade das fisionomias, a rua se torna um quadro em


constante mutação. Quanta arte, a de poder dissolver as tensões sem destruir os
contrastes! De manter a diversidade sem querer ordená-la e organizá-la à força!
(ZWEIG, 2006, p.179).

Cada detalhe do dia a dia da população carioca simboliza a harmonia, as


tensões, a convivência, a coexistência pacifica na geopolítica da cidade: os
bairros / as favelas, as avenidas modernas / as ruas do Rio antigo. O espaço
público da cidade como cenário da dissolução das tensões mantendo a di-
versidade arquitetônica e cultural. As múltiplas camadas da capital junto
as suas inúmeras matrizes de cores da população tornam o Rio de Janeiro
atraente para Zweig.
A poética descrição da cidade do Rio evidencia questões incomodas para
a intelectualidade brasileira da época. “Interessada na formulação de uma
teoria do tipo étnico brasileiro, ou seja, na questão da definição enquanto
povo” (MUNANGA, 2008, p. 49). A mestiçagem na literatura brasileira
era ora defendida como símbolo da identidade brasileira, ora vista como um
problema de saúde pública.
Portanto, literatura tem um papel relevante na construção do mito do
paraíso racial brasileiro. Tanto para população Brasileira quanto para socie-
dade internacional. O discurso por vezes subjetivo, desvelando nos costu-
mes, nos casamentos inter-raciais, na apropriação das culturas, a imagem da
sociedade mestiça, original, pacifica.
A cristalização deste imaginário dificulta o diálogo crítico sobre questões
indenitárias no Brasil. Tornam invisíveis as etnias não brancas, legítima as
políticas segregacionistas do Estado, idealiza a colonização. Como no caso
88
do Brasil Zweiguiano o paraíso racial tem uma ordem natural, subentendida,
aceitada. Os atritos, os choques não acontecem, todos conhecem o seu lugar.

O olhar atual do passado


O titulo dado ao livro: Brasil, um país do futuro tornou-se um emblema
da cultura brasileira. A temática racial abordada pelo autor segue atual. A
utopia Zweiguiana ainda ocupa o imaginário da classe media branca. O sen-
so comum reitera a crença de um país etnicamente democrático. Entretanto,
o Brasil transcrito por Stefan Zweig em seu livro de viagem parece cada vez
mais distante.
Por fim, A viagem proposta pelo apátrida Stefan Zweig carrega os parado-
xos dos múltiplos Brasis. Não dá respostas. Causa estranhamento. Suscita a
reflexão sobre o projeto político de raça brasileiro, pensado pela elite inte-
lectual republicana. Afirma olhar do Outro. O futuro do Brasil refletido no
passado da Europa. Que passado? Que futuro?

Referência Bibliográfica
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HALL, S. Raça, o significante flutuante. Revista zcultural, Tradução: Liv Sovik e Katia Santos.
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MUNANGA, K. Resistindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade ne-


gra. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

ZWEIG, S. Brasil: um país do futuro. Tradução: Kristina Michahelles. Porto Alegre, Ed: L&PM,
2006.
89
MIGRATION, DISPLACEMENT AND (NON)BELONGING IN
KIRAN DESAI’S THE INHERITANCE OF LOSS

Marcelli Claudinni Teixeira Cardoso17


UERJ

Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar as representações


da migração e do deslocamento, assim como o sentimento de (não) perten-
cimento no romance The Inheritance of Loss [O legado da perda] (2006), da
autora indiana Kiran Desai. O estudo concentra-se na personagem Biju, um
jovem imigrante indiano que se desloca para os Estados Unidos, como tra-
balhador ilegal, em busca de melhores oportunidades de vida. Para tal estu-
do, utilizamos como base teórica os estudos de Avtar Brah (1996), Anh Hua
(2005), Susan Stanford Friedman (2007), Nikos Papastergiadis (2000), San-
dra Regina Goulart Almeida (2015) e Silviano Santiago (2004), entre outros.

Palavras-chave: Migração. Deslocamento. Não pertencimento. Kiran


Desai. The Inheritance of Loss.

Introduction
Kiran Desai is a contemporary Indian writer whose novels have been ac-
claimed by critics and scholars. Daughter of Indian novelist Anita Desai, she
was brought up in India and England. She later moved to the United States
with her family. Kiran Desai’s work gained recognition for the first time in
the 90s when Salman Rushdie mentioned an excerpt from her first novel in
the anthology Mirrorwork: Fifty Years of Indian Writing (1947-1997). She is
the author of two novels: Hullabaloo in the Guava Orchard (1998) and The
Inheritance of Loss (2006). Desai became the youngest woman to win the Man
Booker Prize (2006) for The Inheritance of Loss. In addition, the novel also
won the National Book Critics Circle Fiction Award in that same year.
Desai’s The Inheritance of Loss portrays the lives of Indian characters that
belong to different generations and backgrounds. However, they express a
strong sense of displacement inside and outside their own community. The
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ, na especialidade Literaturas de Língua Inglesa. Especialista em Docência
17

do Ensino Básico pelo Colégio Pedro II (2017). Graduada em Letras – Inglês/ Literaturas pela UERJ (2016).
90
story opens in 1986 and alternates mostly between Kalimpong, in the state
of West Bengal, north-eastern India, near the Himalayas, and the busy res-
taurants of New York, US. Among the main characters, there is Biju. He is a
young man who leaves India in order to work as a waiter or cook in New York
and provide his father with better living conditions in the future. Therefore,
this paper aims to analyze the representation of migration, displacement and
(non)belonging that unfold and develop throughout Desai’s The Inheritance
of Loss with a special focus on Biju’s character.

Migration, Diaspora and Displacement


Avtar Brah, in Cartographies of Diaspora (1996), identifies that at the heart
of the notion of diaspora is the image of a journey. However, not every jour-
ney can be understood as diaspora, because diasporas are not the same as casu-
al travel. Brah questions the socio-economic, political, and cultural conditions
that mark the trajectories of these journeys (BRAH, 1996, p. 179).
Furthermore, the scholar emphasizes that the problematic of ‘home’ and
belonging is integral to the diasporic condition, but how it is manifested
is specific to the history of each particular diaspora. Moreover, Avtar Brah
underlines that not all diasporas inscribe homing desire through a wish to
return to a place of ‘origin’ (BRAH, 1996, p. 189).
Anh Hua, in “Diaspora and Cultural Memory”, stresses that “diasporic
identities and communities are not fixed, rigid, or homogeneous, but are ins-
tead fluid, always changing, and heterogeneous” (HUA, 2005, p. 193). She
explains that those living in the diaspora have a double perspective: “they
acknowledge an earlier existence elsewhere and have a critical relationship
with the cultural politics of their present home - all embedded within the
experience of displacement” (HUA, 2005, p. 195).
While discussing migration, in a chapter entitled “Migrations, Diaspo-
ras, and Borders”, Susan Stanford Friedman draws attention to the fact that
migrations and diasporas are not new as they have shaped human cultures
since immemorial times (FRIEDMAN, 2007, p. 260). Her point is that in
the contemporary phase of globalization, the degrees of interconnectedness
have been intensified by the technologies of travel, information and media
along with massive movements of people as refugees and migrants. Hence,
as migration involves multiples moves from place to place, it blurs the boun-
daries between home and elsewhere (FRIEDMAN, 2007, p. 261).
91
Friedman supports that migration is “a history of dislocation and relo-
cation, displacement and emplacement, losing homes and making new
homes, living in a limbo between worlds and adapting over time to new
ways, being changed by and also changing the culture of the adopted land”
(FRIEDMAN, 2007, p. 264). Therefore, the scholar agrees that the feeling
of displacement can be a result of the dislocations involved in migration.
Nikos Papastergiadis, in The Turbulence of Migration (2000), discusses
the turbulence of modern migration and how it affects the way we unders-
tand our sense of belonging in the world (PAPASTERGIADIS, 2000, p. 2).
According to Papastergiadis “the metaphor of the journey, the figure of the
stranger and the experience of displacement have been at the centre of many
of the cultural representations of modernity” (PAPASTERGIADIS, 2000,
p. 10-11). The critic notes that the dynamics of displacement is intrinsic to
migration and modernity (PAPASTERGIADIS, 2000, p. 12).
In Personal and National Destinies in Independent India: A Study of Se-
lected Indian English Novels (2016), Rositta Valiyamattam observes that old
settlers in the region of Kalimpong struggle to maintain colonial lifestyles.
Moreover, the novel documents “the backwardness of the region, absen-
ce of basic infrastructure and inefficient, corrupt police and bureaucracy.
[…] Frustrated unemployed youth are forced to take up arms or emigrate”
(VALIYAMATTAM, 2016, p. 92). This is the case of Biju. Before leaving,
in the US embassy, Biju observes how Indians are humiliated just in order
to obtain a visa. He receives a fifteen-day visa for New York and faces many
difficulties as an illegal immigrant during the time he spends there. He re-
presents poor third world immigrants

as the economic crisis of the 1980s leads millions to queuing up before Western
embassies, cringing in their black skin and adoring the white-skinned officers who
would decide their destiny. Illegal immigrants are dismissed after extracting cheap
labour and lead a fugitive life. Many cannot escape and for those who do, it is too
late to salvage a lost lifetime (VALIYAMATTAM, 2016, p. 97).

In Cartografias Contemporâneas: Espaço, Corpo, Escrita, Sandra Almeida


highlights Appadurai’s (1996 apud ALMEIDA, 2015, p. 172) conceptions
that displaced and transient populations, such as tourists, immigrants, refu-
gees, exiles and laborers constitute ethnoscapes. In this mutable world, uncer-
tainties related to questions of identity result in fear and anger directed to
92
the other, who is powerless, but is still seen as a threat (ALMEIDA, 2015,
p.172-173). Therefore, it is possible to understand that this group formed
by illegal immigrants represents an ethnoscape. They are explored by bosses
and chased by authorities, but at the same time this group is seen as a mena-
ce, because they symbolize the Other.
In the article “Reclamation of Inheritance: Biju’s Homecoming in Ki-
ran Desai’s The Inheritance of Loss”, Narendra Khandait argues that Desai
depicts different sides of the American dream. She first projects America as
the most preferred destination for the jobless youth from the Third World
countries. However, it “could be seen as an acknowledgment of America’s
success in selling its dream to the world and, on the other, could also be a
critique on American policy of exploiting the poor countries for cheap la-
bour” (KHANDAIT, 2008, p. 174).
Moreover, Sandra Almeida highlights that transient individuals from Third
World countries are seduced by the promise of achieving better life conditions if
they migrate to a First World nation. However, their hopes are defeated as they
face exploitation instead of a hospitable reception (ALMEIDA, 2015, p.175).
In O cosmopolitismo do pobre (2004), Silviano Santiago contributes to the
discussion as he explains that the destitute people in the world are attracted
to the post-modern metropolis for economic reasons. There, living in poor
neighborhoods and working as cheap labor force, those poor immigrants
experience a future in which they do not participate properly, only as dis-
qualified manual workers (SANTIAGO, 2004, p. 51).
Both Sandra Regina Goulart Almeida (2015) and Silviano Santiago (2004)
discuss the uncomfortable position that the destitute occupy, as they are not
wanted by the nationals, but their labor sustain the lifestyle of an elite (AL-
MEIDA, 2015, p. 174). In The Inheritance of Loss, Desai portrays how poor
immigrants work as the basis of many establishments in the metropolis:

Biju at the Baby Bistro.


Above, the restaurant was French, but below in the kitchen it was Mexican and
Indian. And, when a Paki was hired, it was Mexican, Indian, Pakistani.
________
Biju at Le Colonial for the authentic colonial experience. On top, rich colonial, and
down below, poor native. Colombian, Tunisian, Ecuadorian, Gambian.
________
On to the Stars and Stripes Diner. All American flag on top, all Guatemalan flag
below. Plus one Indian flag when Biju arrived (DESAI, 2006, p. 21).
93
It is observed that Biju changes from one job to another frequently as he
has no papers or legal identity in the US. Additionally, in Desai’s novel, im-
migrants are extremely exploited by their bosses, stand long working jour-
neys and prejudice:

Good-bye, Baby Bistro. “Use the time off to take a bath,” said the owner. He had
been kind enough to hire Biju although he found him smelly (DESAI, 2006, p. 23).

Biju had started his second year in America at Pinocchio’s Italian Restaurant, stir-
ring vats of spluttering Bolognese, as over a speaker an opera singer sang of love and
murder, revenge and heartbreak. ‘He smells,’ said the owner’s wife. ‘I think I’m
allergic to his hair oil.’ She had hoped for men from the poorer parts of Europe—
Bulgarians perhaps, or Czechoslovakians. At least they might have something in
common with them like religion and skin color, grandfathers who ate cured sausa-
ges and looked like them, too, but they weren’t coming in numbers great enough or
they weren’t coming desperate enough, she wasn’t sure. . . . (DESAI, 2006, p. 55).

Kiran Desai also depicts the poor basements where immigrants share a
precarious communal accommodation in New York:

When he returned home to the basement of a building at the bottom of Harlem, he


fell straight into sleep. The building belonged to an invisible management company
that listed its address as One and a Quarter Street and owned tenements all over the
neighborhood, the superintendent supplementing his income by illegally renting
out basement quarters by the week, by the month, and even by the day, to fellow
illegals (DESAI, 2006, p.59).

Almeida also mentions the contrast between classes as immigrants are su-
pposed to both live, work and sleep in basements. However, they do not
have access to the superior cosmopolitan world as citizens, but as servants
(ALMEIDA, 2015, p. 174). Thus, the metropolis depicted by Desai is based
on exclusion and inequality.
Biju is an example of a displaced individual, because he longs for home and
feels out of place, he misses his father and culture. However, he avoids making
complaints to his father, as he understands that his father’s hopes are depen-
dent on him alone. Meanwhile, the cook, Biju’s father, back in India, praises
the son and boasts about him in the village. According to Almeida, both fa-
ther and son are displaced and marginalized because they are considered su-
baltern individuals wherever they go. For instance, in India, they suffer social
exclusion, while Biju is exploited in New York (ALMEIDA, 2015, p. 178).
94
As Hua, Friedman and Papastergiadis accentuate, displacement is a possi-
ble result of the dislocations present in migration. Thus, there is a constant
feeling of displacement and loss in the accounts about Biju while living in
New York:

Biju put a padding of newspapers down his shirt—leftover copies from kind Mr. Iype
the newsagent—and sometimes he took the scallion pancakes and inserted them be-
low the paper, inspired by the memory of an uncle who used to go out to the fields in
winter with his lunchtime parathas down his vest. But even this did not seem to help,
and once, on his bicycle, he began to weep from the cold, and the weeping unpicked a
deeper vein of grief—such a terrible groan issued from between the whimpers that he
was shocked his sadness was so profound (DESAI, 2006, p. 51).

As he has no relatives in the city, the young man also suffers because his
fellow immigrants disappear suddenly and he cannot maintain strong con-
nections with them:

Biju knew he probably wouldn’t see him again. This was what happened, he had
learned by now. You lived intensely with others, only to have them disappear over-
night, since the shadow class was condemned to movement. The men left for other
jobs, towns, got deported, returned home, changed names. Sometimes someone
came popping around a corner again, or on the subway, then they vanished again.
Adresses, phone numbers did not hold. The emptiness Biju felt returned to him
over and over, until eventually he made sure not to let friendships sink deep anymo-
re (DESAI, 2006, p. 102).

In the novel, Biju is afraid he might even lose his affection for his own
father as a result of displacement and time abroad, because he may become
used to absence:

If he continued his life in New York, he might never see his pitaji again. It happened
all the time; ten years passed, fifteen, the telegram arrived, or the phone call, the pa-
rent was gone and the child was too late. Or they returned and found they’d missed
the entire last quarter of a lifetime, their parents like photograph negatives. And
there were worse tragedies. After the initial excitement was over, it often became
obvious that the love was gone; for affection was only a habit after all, and people,
they forgot, or they became accustomed to its absence (DESAI, 2006, p. 233).

Through Biju’s journey, Kiran Desai portrays the contradictions and


difficulties poor exploited immigrants have to face. There is a meaningful
passage when Biju finds an insect in a sack of basmati rice, an expensive pro-
duct that poor Indians could not buy in their home country. In New York,
95
he could have access to this item, while it was not accessible in his place of
origin, where the product was produced:
While Saeed was collecting shoes, Biju had been cultivating self-pity. Looking at a
dead insect in the sack of basmati that had come all the way from Dehra Dun, he
almost wept in sorrow and marvel at its journey, which was tenderness for his own
journey. In India almost nobody would be able to afford this rice, and you had to
travel around the world to be able to eat such things where they were cheap enough
that you could gobble them down without being rich; and when you got home to
the place where they grew, you couldn’t afford them anymore. “Stay there as long
as you can,” the cook had said. “Stay there. Make money. Don’t come back here”
(DESAI, 2006, p.191).

Therefore, the novel depicts the precarious accommodations and work at-
mosphere, together with the displacement and prejudice that these poor im-
migrants have to face in order to live and work in the post-modern metropolis.
Thus, Biju’s journey in America represents how migration, displacement
and nonbelonging are intertwined in Kiran Desai’s novel. The character fe-
els displaced and understands that he does not fit in that metropolis. There
is a certain desire to come home, because he does not adapt to this different
culture. Sandra Almeida points out that only by leaving his Indian tradi-
tions and assimilating the host country ideas, Biju would be able to survive
and try to be successful in America.
The metropolis illustrated by Kiran Desai is based on exclusion and ine-
quality. In Kiran Desai’s novel, we observe a very negative angle on how ille-
gal immigrants live and work in the United States. Also, for many of them,
not only their stay in the host country, but also the return to home is trou-
bled and distant from an idealization. There is a physical as well as an emo-
tional displacement as these populations cannot adapt to the host culture.

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dge Scholars Publishing, 2016.
97
PASSA NA PRAÇA E FEIRA DE POESIA: POESIA E POLÍTICA NA
REDEMOCRATIZAÇÃO BRASILEIRA

Marcelo José Ribeiro Vieira18


UERJ

Resumo: Este trabalho analisa o papel da poesia carioca dentro do pro-


cesso que ficou conhecido como a “redemocratização brasileira” dos anos
1980. Mais especificamente, procuramos focalizar dois movimentos poéti-
cos de rua: a “Feira de poesia independente”, que atuava no maior centro
de debates políticos no Rio de Janeiro da época (e de hoje) – a Cinelândia,
e o “Passa na praça que a poesia te abraça” evento itinerante que rodava por
várias praças cariocas semanalmente. Com isso, não só serviram como ins-
trumentos úteis na volta da democracia no Brasil, como também puderam
promover a popularização e a desmistificação (despedestalização) do poeta e
de seus fazeres artísticos.

Palavras-chave: poesia. Política. Redemocratização. Popularização. Despedestalização.

Introdução
Este trabalho estruturou-se a partir da análise textual e da reconstituição
histórica e crítica do papel da poesia carioca dentro do processo que ficou co-
mumente conhecido como a “redemocratização brasileira” dos anos 1980.
Nossas análises se apoiam em uma visão panorâmica da atuação de cole-
tivos poéticos cariocas dos anos 80. Em especial, os que promoviam even-
tos poético-artísticos nas ruas ou em quaisquer outros ambientes abertos
ao grande público. E esses movimentos serviram como instrumentos úteis
ao processo de retomada da democracia no Brasil, depois de uma longa dita-
dura de 21 anos. Além disso, também puderam promover, em larga escala, a
popularização e a desmistificação (despedestalização) do poeta e de seu fazer
artístico: a própria poesia.
A partir do contato com poetas de gerações anteriores à minha (comecei a
atuar no meio poético carioca a partir de 2007), tomei conhecimento de várias
18
Mestrando em Literatura brasileira, UERJ, Rio de Janeiro-RJ; Especializado em Literatura brasileira - UERJ, RJ. E-mail: polem.rio@gmail.
com. Este trabalho foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes) Código de
financiamento 001.
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histórias sobre alguns grupos que movimentaram a mesma cena artística, só
que durante os anos 80 do século passado. A partir de tantos relatos, acabei
por construir uma das hipóteses centrais que passo a defender a partir deste
trabalho, a de que o surgimento e o crescimento dos movimentos coletivos de
apresentação pública de poesia estão intimamente ligados, de modo indissoci-
ável, ao vasto processo de redemocratização da sociedade brasileira do final dos
anos 1970 e do decorrer da década de 1980.
Percebo nitidamente que este trabalho de pesquisa vem contribuir de forma
original para uma compreensão bem maior da importância e das características
peculiares à década aqui tratada, visto que, além de ser escasso o registro dos fa-
tos pertinentes à vida literária carioca desse momento específico, a maioria dos
(poucos) críticos, que se propõem a fazer leituras sobre este período, insiste em
vê-lo apenas como um mero período de transição da Geração 70 – mais conhe-
cidos como “poetas marginais” – para a poesia da década de 90. Fora isso, tam-
bém teimam em eleger o poeta preparado, culto, conhecedor das técnicas como
a cara da década oitentista. Indo na contramão desse pensamento, meus estudos
aqui sintetizados mostram um painel que vai muito além disso e revelam, por
exemplo, que os saraus dos anos 1990 e 2000 só puderam se constituir como
tais devido a diversas reminiscências do tal período tido por muitos como sendo
sem valor, como sendo uma mera fase de transição, sendo intitulada injustamen-
te de “a década perdida”. Contrariando essa visão, meus estudos se propõem a
mostrar que, além de muito rica em termos literários e de atividades artísticas,
essa época foi revolucionária e definidora de muitos padrões de pensamento e de
certos modus operandi que até hoje vigoram no meio literário carioca.
Apesar do elevado número de poetas, grupos e movimentos que sacudiram
a vida literária oitentista, ficou nítido para nós que os eventos poéticos ocor-
ridos em lugares públicos, muito mais que aqueles realizados em ambiente
fechados, conseguiram desenvolver táticas e técnicas que não só foram impor-
tantes artisticamente, mas, de igual forma, politicamente. Percebemos tam-
bém que dois, dentre todos esses movimentos artísticos, conseguiram marcar
bastante os corações e mentes dos poetas e do público em geral, são eles: o
Passa na praça que a poesia te abraça e a Feira de Poesia Independente. O Passa
na praça que a poesia te abraça foi criado, produzido e coordenado pelo grupo
Poça d’água, oriundo da Zona Norte carioca. Já a Feira de Poesia Independente
era um sarau político-poético que conseguia aglutinar poetas das mais diversas
regiões do Rio de Janeiro.
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Ambos os eventos realizavam-se nas ruas e misturavam poesia, música,
artes plásticas e teatro com manifestações políticas. Porém, o Passa na praça
era um sarau itinerante, que rodava por todas as praças do Rio de Janeiro,
aos domingos. Já a Feira de Poesia acontecia todas as sextas-feiras, só que
fixa, sempre ali no palco político da Cinelândia, praça muito conhecida do
centro do Rio de Janeiro. Estes dois grupos e seus respectivos movimentos
artísticos realizavam aquilo que, ao que parece, era uma tendência levada
adiante por vários outros poetas e coletivos poéticos da época: a mistura en-
tre o fazer poético (escrito, falado e/ou performatizado) e o fazer político.

Polifônica e multifacetada: a poesia plural dos anos 80


Se mesmo sob os olhares ferrenhos e vigilantes do regime militar, as artes,
principalmente as de esquerda, não esmoreceram nem deixaram de ser produ-
zidas e de circular, com a aproximação dos anos 80, o processo de difusão das
obras foi intensificando-se gradativamente. Quanto mais a ditadura recuava -
com o ressurgimento dos movimentos sociais e com os limiares da redemocra-
tização - mais e mais a poesia e as outras artes ganhavam espaços significativos
dentro da sociedade brasileira.
Não será à toa que Carlos Alberto Messeder, em seu ensaio “O novo ne-
twork poético 80 no Rio de Janeiro”, irá estabelecer um relacionamento dire-
to entre o processo de redemocratização brasileira e a proliferação de múltiplos
grupos, movimentos e eventos poéticos no Rio de Janeiro:

Rio de Janeiro. Anos 80. Segunda metade da década. No ar, depois de muitos ca-
minhos e descaminhos, um certo clima de esperança mesclada com uma dose talvez
excessiva de euforia. E a poesia, mais uma vez sintonizada com seu tempo, vive o que
parece ser um novo boom. Pelo menos é o que se diz; na imprensa, nos bate-papos
de bar e, como não podia deixar de ser, na praia (MESSEDER, 1993, p.53).

Percebe-se claramente que esse boom poético traz consigo um painel plural na
forma dos mais variados tipos de artistas, textos, atuações e performances. Plural
também se mostra a própria arte poética que, pós-modernamente, irá se mani-
festar das mais diversas maneiras possíveis, indo desde as formas fixas mais tradi-
cionais, tais como a trova e o soneto - agora ressignificados - até os experimenta-
lismos, que continuam, mesmo distante dos períodos vanguardistas, a ocorrer.
Carlos Alberto Messeder confirma o que acabou por se configurar como
um consenso na crítica desta época: o imenso pluralismo acabou tornando-
100
-se não só a característica-mor do grupo de poetas desse período, mas tam-
bém um forte traço da própria produção poética dos anos 80:

Houve, com essa mudança de década, uma mescla, uma fusão maior de persona-
gens, de projetos e de diferentes dicções poéticas. Noto atualmente, uma certa con-
vivência pacífica de diferenças e mesmo um entrelaçamento. Isso me parece uma
novidade – e de peso (MESSENDER, 1993, p.56).

Não é de se estranhar que tamanha diversificação tenha surgido e atingido


elevados níveis justamente durante o momento da redemocratização brasi-
leira. Depois de tortuosos e longos 21 anos de ditadura, era mais que natural
e compreensível aparecer essa intensa fome por novidades, por horizontes
outros e vastos. Isso não só no âmbito social e político, mas também nas
áreas cultural e artística.
Não foi coincidência, portanto, que, em outubro de 1985, durante
o Encontro Nacional de Poesia do Circo Voador, que reuniu poetas não só
do Rio mas também de vários outros estados brasileiros, tenha sido lido o
Manifesto Supernovas, lançado por Jorge Salomão e Antônio Cícero, no-
mes importantes no cenário poético-musical dos anos 80, no eixo Rio-São
Paulo. Logo este manifesto foi amplamente divulgado, com sua publicação
simultânea nos jornais Pasquim, do Brasil, O Globo e Folha de São Paulo. A
ordem do dia, pois, era só uma: mudar. Buscava-se as supernovas, as super-
novidades. Era preciso produzir, fazer, criar, mais uma vez, o novo tal como
decreta o próprio manifesto:

Poesia é fazer, produzir. Produzir não é reproduzir prosaicamente o que já existe.


Por isso, nenhuma outra época da História e nenhuma outra sociedade jamais foi
tão rica de possibilidades criativas quanto esta, MOSAICAL, que exalta o tempo,
a transformação e as diferenças, e NÃO a identidade estilística, NÃO à ditadura
do passado(...). Nos 80, poesia, ciência e vida come together (CÍCERO, 1985, p.2).

Poesia e vida deveriam, pois, a partir de então, caminhar definitivamente


juntas e o novo cenário político, que emergiu com a década de 80, chegava,
como se vê, prometendo diversas mudanças, principalmente por esse perío-
do ter nascido sob novos signos, como os da anistia, da reorganização parti-
dária e da queda do AI-5. Neste momento, cresciam as mobilizações popu-
lares nas ruas, novas e velhas palavras de ordem mesclavam-se e passavam a
circular mais livremente e diversas novas ideias surgiam.
101
Foi dentro desses novos contextos sociais e políticos que acabou surgindo
uma espécie de polifonia, que os críticos tanto observam na literatura pro-
duzida neste momento. Essa mescla de gritos clamando por rumos novos,
esse alarido de diversas fomes, que ansiavam por novas trilhas, também se
mostra nas múltiplas vozes e rostos que apareceram nas artes dos anos 80,
principalmente na poesia brasileira. Wilberth Salgueiro nos coloca bem o
pensamento que domina a crítica literária desse período:

A poesia brasileira dos anos 1980 em diante é um vasto caldeirão de sopa para qual-
quer paladar, com ingredientes os mais díspares, quer pensando em temas, recursos,
regiões, credos, escolas. Formas e formatos, ou mesmo a partir de uma historiografia
comparatista (SALGUEIRO, 2013, p.18).

Ricardo Vieira Lima (2010), no prefácio que fez para a antologia “Roteiro da
poesia brasileira – Anos 80” (para a qual ele mesmo selecionou os poemas), se
refere a essa época como a inauguradora de uma (saudável) polifonia de vozes e
chega a nomear os poetas desse mesmo período de pluralistas.
No entanto, por outro lado, mesmo admitindo a pluralidade artística da cena,
a maioria dos críticos irá eleger o poeta culto, bem preparado intelectual e tec-
nicamente, como o representante maior deste momento plural. Assim sendo,
a mesma crítica irá definir essa época como sendo aquela em que a profissiona-
lização e o apuro técnico deixaram a escrita relaxada e instantânea dos poetas
da geração 70 para trás, distante das novas propostas artísticas. É preciso aqui,
neste ponto da discussão, registrar a minha posição contrária a essa visão que
tem dominado a crítica até os dias atuais. Afirmo, através dessa minha pesquisa,
que nem o poeta predominante na década de 80 é o poeta preparado, técnico
e culto, nem os anos 80 são apenas e simplesmente um momento de transição,
sem grandes destaques, como também costuma afirmar a maioria dos críticos.
Opondo-me a isso, penso que este período não só foi de extrema importância,
como até, em vários aspectos, se mostrou revolucionário e modificador de de-
terminadas estruturas que, a posteriori, possibilitaram a formação de vários ele-
mentos presentes nas cenas artísticas dos anos 90 e 2000.
Porém, segundo a crítica especializada nesse período, a escrita relaxada, ins-
tantânea, marginal, transgressora - que tão marcadamente caracterizou a
produção da geração 70 - vai aos poucos perdendo a sua força para uma ideia
de poesia muito mais elaborada, mais universal, menos panfletária. Ricardo
Vieira Lima afirma que:
102
(...)os novos poetas do período trabalhavam em silêncio. O binômio “arte/vida” não
era mais suficiente para justificar toda uma produção cultural. Era preciso preparar-
-se intelectualmente, ler os melhores autores, estudar as técnicas do verso, traduzir
poesia, tudo isso, às vezes, antes mesmo de estrear em livro (LIMA, 2010, p.10).

Heloísa Buarque de Hollanda chega até mesmo a ignorar os anos 80,


como se eles pouco representassem, ou não fizessem diferença no panorama
cultural seguinte, privilegiando o poeta dos anos 90:

O poeta 90, nesse quadro, move-se com segurança. É a vez do poeta letrado que vai
investir, sobretudo na recuperação do prestígio e da expertise, no trabalho formal e
técnico, com a literatura. Seu perfil é o de um profissional culto, que preza a crítica,
tem formação superior e atua, com desenvoltura, no jornalismo e no ensaio acadê-
mico marcando assim uma diferença com a geração anterior, a marginal, antiesta-
blishment por convicção (HOLLANDA, 2000, p.193).

Percebe-se, neste trecho do artigo de Heloísa, que ela descreve o perfil do


poeta dos anos 90 e afirma que esse artista marca bem uma diferença entre a
geração dele e a anterior, que, no entender dela, seria a geração 70, a da poe-
sia marginal. Mas e os poetas dos anos 80? Sequer são mencionados. Como
vemos em alguns textos dela, ela se insere no grupo dos que consideram os
anos 80 apenas como uma fase de transição.
João Adalberto Campato Junior, em seu ensaio chamado “Poesia contempo-
rânea brasileira: algumas breves reflexões”, também irá afirmar que a poesia que:

Tal década é menos marginal, menos experimental, valendo-se muito do contato


com poetas estrangeiros, e, portanto, da intertextualidade. É uma poesia, que em
suas manifestações mais bem conseguidas, apresenta grande apuro formal, mesmo
que composições líricas de incontestável qualidade estética persistam. Como quer
que seja, cada vez mais hipertrofia o espaço para aquelas modalidades de composi-
ção que poderiam ser denominadas de intuitivas; Em suma: é a poesia do trabalho,
do apuro técnico, da transpiração (CAMPATO JR, 2011, p.2).

Wilberth Salgueiro (2013) irá referendar essa tendência à sobrevaloriza-


ção do poeta superpreparado: “Nesse panorama, confirma-se a especializa-
ção e “tribalização” dos praticantes de poesia: quem escreve são professores
(mestres e doutores), tradutores, críticos, editores, universitários. Não há
mais lugar para amadores. (Grifo nosso)”. O mesmo Wilberth (Idem, p.19)
irá reforçar ainda mais tal visão: “com a normalização democrática dos anos
80, a poesia, como apontou Flora Süssekind com precisão em Literatura e
vida literária (1985), se transforma: “Agora eu sou profissional.”
103
Embora haja um grande empenho da crítica em eleger o poeta culto,
erudito, bem preparado como aquele que será o representante maior dos
anos 80 na literatura brasileira, mais uma vez reafirmo, através desta minha
pesquisa, que igualmente será elemento fundamental, nesta mesma época,
uma outra espécie de poeta: aquele com uma poesia menos apurada, de
técnica pouca ou nenhuma, detentor de uma escrita oral e oralizada. Vale
destacar também que há, fortemente visível, neste tipo de artista, uma cada
vez maior busca pelo aperfeiçoamento, sim, mas de suas performances, da te-
atralização dos poemas, seus ou de outros autores. Serão anos marcados pela
forte reflexão sobre o poder, a força e a importância da linguagem, seja ela
escrita, lida ou performatizada, esteja ela nos livros e/ou na voz e no corpo
do poeta.

A poesia em shows, recitais, em recintos ou na rua, as performances,


os grandes públicos, a arte coletiva, a profissionalização e o aumento
da produção e venda de obras independentes: despedestalização e po-
pularização da poesia nos anos 80
Além do caráter plural e polifônico e das heranças (de poetas e movimen-
tos precedentes) verificados na poesia dos anos 80, percebe-se claramente,
bem ao contrário do que diz a maioria dos que escrevem sobre essa época
- que a veem como um simples momento de transição para os anos 90 -, o
florescimento de vários elementos novos no cenário da vida literária e, prin-
cipalmente, da escrita poética carioca (e também nacional). Carlos Alberto
Messeder é um dos poucos críticos que conseguem enxergar, nesta década,
um brilho todo especial e sinaliza nesta direção quando afirma:

É claro que há continuidades(...), há nomes que continuam, há esquemas de edição


que vieram se desenvolvendo desde a década passada e assim por diante. Mas, acima
de tudo, há uma postura e um tom que são radicalmente diferentes, há novos luga-
res que são os “epicentros” deste boom 80 (vide os lançamentos, as performances e as
diversas atividades que dão corpo a esse momento poético), o visual das publicações
mudou bastante (e numa direção determinada), o espaço nas editoras consagradas é
outro e, principalmente, nota-se uma outra combinação e outros arranjos entre os
poetas que, me parece, seriam impensáveis nos 70 (MESSEDER, 1993, p.55-56).

A performance será um desses elementos novos que irá ganhar, de fato,


progressivamente, uma enorme importância e um amplo desenvolvimento
durante a década de 80. Ela acabou por tornar-se uma fotografia exata das
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multiplicidades desse momento. De acordo com Ricardo Aleixo, poeta, ar-
tista sonoro e visual, performador e ensaísta, a performance é um:

(...)tipo de obra artística híbrida, ou intermídia, que, tendo origem na transposi-


ção da palavra escrita para os âmbitos vocal e corporal, tanto abre-se para o diálogo
criativo com outros sistemas semióticos (o vídeo, a dança, o teatro, a radioarte etc.)
quanto atualiza e tensiona procedimentos técnico-formais consolidados pela tradi-
ção, como a declamação, a recitação, o jogral, a “leitura branca”, o canto popular e
muitos outros.19

As performances traziam consigo mesclados vários elementos que eram tí-


picos daquele momento, e certamente é aí que reside a explicação para que ela
tenha ganho tamanho alcance e aceitação. A polifonia, o cruzamento de lin-
guagens várias, o momento mosaical (adjetivo empregado por Jorge Salomão,
no Manifesto Supernovas, de 85), a retirada da poesia de dentro do livro para
vir cá fora, para ganhar vida, pediam realmente por uma forma de expressão
tal como era/é a performance. Veja o que o próprio Jorge Salomão diz sobre os
aspectos renovadores que a performance traz para a poesia dos 80:

(...) é uma fusão entre várias formas de linguagem... É um quebra-cabeça; e exige


o conhecimento e o domínio de várias linguagens que se incorporam... as várias
linguagens utilizadas “perturbam” o conjunto, é uma reinvenção. É uma coisa mais
especializada que a artimanha, por exemplo, e sem aquela informalidade... é uma
coisa ultra elaborada. (...) É nesse sentido que se pode falar de um verdadeiro “estilo
performático” que está no ar, um estilo que tem por base o cruzamento sistemático
de linguagens – seja da poesia com o teatro, da poesia com a música, com o vídeo ou
com as artes plásticas e assim por diante – na produção de uma reinvenção.20

Douglas Carrara, poeta de destaque e importante participante tanto da “Feira


de Poesia” quanto do “Passa na praça”, afirma que aqueles foram os anos em que
uma novidade tinha surgido na poesia brasileira: “a teatralidade e o espetáculo.
Como proposta nova e inovadora que teve inevitavelmente que buscar os cami-
nhos marginais e pouco explorados para poder se realizar enquanto proposta”.21
Douglas chegou a elaborar e lançar um manifesto intitulado “Manifesto Ver-
balista Nhenga Soca”, no qual irá defender a grande importância que a poesia
falada deveria adquirir na vida de um poeta que se quer completo. “Nhenga” e
“Soca” são palavras de origem indígena e querem dizer, respectivamente, “fala”
e “vida”. Segundo o próprio Douglas explica nesse seu texto: “falar com vontade
de viver”. Vejamos algumas das proposições desse manifesto:
19
ALEIXO, Ricardo. Em busca de uma poética da performance. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/em-busca-de-uma-
-poetica-da-performance/>. Acesso em: 11 set. 2017.
20
CÍCERO, Antônio & SALOMÃO, Jorge. Manifesto Supernovas. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 out. 1985. Caderno B, p.2.
21
CARRARA, Douglas. Poesias ao sabor do vento. Disponível em: <http:// www.varaldepoesia.com.br>. Acesso em: 9 ago. 2017.
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- os poetas não somente escrevem, mas também falam. (...)
- os poetas falam (nhenga) como folhas novas que se abrem para a vida (soca).
- falar com vontade de viver.
- somos verbalistas.
- não queremos o silêncio das páginas fechadas de um livro.
- queremos falar para as grandes multidões.
- mas recusamos o recital tradicional.
- o discurso burguês. empostado. afetado. artificial. a sessão solene.
- somos a espontaneidade do quotidiano.
- somos o coloquial e a gíria criativa das pessoas.
- a poesia falada é democrática. (...)
- a poesia apenas escrita ou até mesmo editada em forma de livro, torna-se elitista.
- o livro, entretanto, continua sendo necessário e imprescindível para registrar as
conquistas culturais da humanidade.
- para a poesia, entretanto, o livro não é suficiente e quase sempre é um túmulo. (...)
- portanto a verdadeira cultura poética nacional e acessível às grandes massas agora
se faz com a língua insinuante dos poetas verbalistas. (...)22

Na verdade, a poesia declamada e a performance não eram, nem de longe,


elementos novos, originais. Castro Alves e os antigos saraus do século XIX
podem servir de exemplos outros de pessoa e de situações em que se utilizava
destes expedientes. Porém, na década de 80, vemos a performance atingir
patamares novos em termos de técnicas, filosofia e aperfeiçoamento que a
elevaram a níveis de sofisticação e arte jamais vistos. A partir dos anos 80, a
performance se espalha, se diversifica e se firma mais e mais como uma marca
fundamental neste cenário poético dos anos 80. Carlos Alberto Messeder
(1993, p.53) vai mais longe ainda e categoricamente afirma que esta será a
década da “profusão de performances – palavra que entrou definitivamente
para o vocabulário da época.” Tamanha foi a sua importância e seu desenvol-
vimento que a fez chegar até os dias de hoje, possuindo ainda forte prestígio
no meio poético carioca e nacional.
Ainda sobre essa grande valorização da performance, Douglas Carrara
afirmou, também, por diversas vezes, que o objetivo central daqueles poetas
dos anos 80 era justamente esse:
deslocar o poema do livro para o espetáculo e que era necessário cons-
truir o espetáculo a partir do foco ator/poeta e não mais exclusivamente
do poeta/escritor.23 Mas, se os anos 80 ficaram bastante marcados pelas
performances, também fato é que ficaram carimbados como os anos em
que os poetas conseguiram ter plateias cada vez maiores para assistir a essas
suas teatralizações poéticas.
22
CARRARA, Douglas. Manifesto Verbalista Nhenga Soca. Disponível em: <http://www.recantodasletras.com.br/teorialitera-
ria/2120819>. Acesso em: 13 jul. 2017.
23
CARRARA, Douglas. Poesias ao sabor do vento. Disponível em: <http:// www.varaldepoesia.com.br>. Acesso em: 9 ago. 2017.
106
Com a chegada dos anos 80, devido à volta do povo às praças e à possibi-
lidade das pessoas novamente se agruparem, surgiu um outro fator novo no
cenário poético: a popularização da poesia. O próprio manifesto “Nhenga
soca”, citado aqui antes, mostra nitidamente uma postura antielitista, um
querer levar a poesia para as grandes multidões, ou seja, todo um esforço
em prol da popularização do poeta e da poesia, esta última sempre vista
por muitos, preconceituosamente, como prática exótica, de poucos para
poucos, arte elitista, apartada e feita por seres excêntricos ou nefelibatas. O
grande esforço de Douglas Carrara e de tantos outros poetas deste mesmo
período foi justamente esse: levar a poesia para onde o povo estava, não só
como ferramenta para reflexão e conscientização política, mas também para
acabar com as errôneas noções de que a poesia era feita por algum gênio da
raça – ou por algum grupo restrito de mentes privilegiadas - para a fruição
de poucos que possam compreender tais discursos artísticos.
É nítido, então, que ocorre, neste momento, o que eu passo a chamar con-
ceitualmente de despedestalização da poesia e do próprio poeta. O que a po-
esia dos anos 80 queria era justamente desmistificar a enganosa opinião de
que a poesia era/é propriedade e monopólio de uma elite. Desmistificação
é um termo empregado aqui como sinônimo da atitude de destruir a falsa
noção que dimensiona a poesia como sendo mística/misteriosa, hermética
e isolada em uma torre de marfim. Por outro lado, desmistificar também,
para eles, era um ato de desnudar, desfazer uma postura intelectual de supe-
rioridade em relação à cultura popular, e de revelar outros de seus aspectos
pouco valorizados pelos críticos e pela própria academia universitária. Des-
pedestalizar é o que queriam esses poetas, ou seja, tirar a poesia e os poetas
de um pretenso pedestal, de uma distância criada entre a arte, os artistas e o
público em geral. E essa se tornaria a principal bandeira erguida tanto pela
“Feira de Poesia” quanto pelo “Passa na praça”.
Dentro desse processo de despedestalização, os poetas desmistificadores
buscavam colocar nítido para as plateias que qualquer um também poderia
se expressar, escrever e bradar os seus versos, principalmente em praças pú-
blicas. No jornal O Dia, do dia 29 de julho de 1992, em seu caderno dedica-
do à cultura, fica bem claro que o maior interesse dos poetas performáticos,
verbalistas, naquele momento, era despedestalizar e popularizar a poesia:

(...)grupos da Zona Sul à Zona Norte promovem saraus em que o importante é


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soltar o verbo. (...) o grupo Poça d’água, de teatro e poesia da Abolição, comemora
oito anos de trabalho com mais de 200 apresentações do projeto “Passa na praça
que a poesia te abraça”. “Nossa proposta é popularizar a poesia, tirar dela o rótulo
de elitista e fechada”, defende Sérgio Alves, de 32 anos, um dos quatro membros
do grupo.24

Essa intenção fica ainda muito mais clara no jornal O Globo, do dia 11 de
outubro de 1989, que assim fala sobre o grupo Poça d’água e seu, já bastante
conhecido na época, movimento de rua:

Para os integrantes do grupo Poça d’água, a poesia sempre será bem aceita quando
for apresentada de maneira acessível. Com uma proposta diferente de trabalho, o
grupo começou a atuar em 1984, encabeçando o projeto “Passa na praça que a poe-
sia te abraça”. Essa proposta, que levava textos teatralizados para as praças públicas,
contou com a colaboração de Douglas Carrara e Francisco Igreja. Segundo João Ba-
tista Alves, um dos componentes do grupo, o objetivo principal era desmistificar a
poesia, “afastando a imagem estática, monótona e cansativa, e apresentando-a como
uma coisa viva, com cara, corpo e roupa”.25

Por outro lado, além de popularizar e desmistificar os poetas e a própria


poesia, estes poetas verbalistas dos anos 80 traziam consigo a vontade de
multiplicar não só o público consumidor de poesia, mas também o número
de poetas que, ao vê-los, claro, iriam se deixar influenciar e seguir seus passos.
Isso não era difícil de ocorrer, pelo contrário, se tornava até fácil visto que
os eventos da “Feira de Poesia” e do “Passa na praça” usavam as performances
e a grande criatividade dos textos e dos improvisos feitos como armas para
seduzir e envolver seu público.
Seduzir o público, captar a sua atenção e motivar suas interações com os
artistas, dependiam, na visão de Flávio Nascimento, um dos criadores da
“Feira de Poesia”, também de lançar mão do maior número possível de es-
tratégias artísticas. Segundo ele:

A partir do poema, é criada uma situação cênica, rítmica, gestual. É a busca de uma
Poesia Teatral, envolvente, participante e, ao mesmo tempo, lúdica e crítica, emo-
cional e política. (...) A recitação do poema é cada vez mais coletiva. (...) Já não é
suficiente a fala individual do poeta. Cresce a participação popular. (...) O público
não é um assistente passivo do que ouve e vê. O povo é fonte – ponto de partida e
chegada – da criação (NASCIMENTO, 2003, p.65)

Tudo isso reforça ainda mais nossa tese de que um processo nítido de po-
pularização da poesia se tornou um fato bastante relevante e novo na poesia
24
GONÇALVES, Zalmir. Poesia volta à moda e tem novas tribos. O Dia, Rio de Janeiro, 29 jul.1992. Caderno O Dia D, p.1.
25
ALFREDO, J. Poesia, a cada dia mais viva, movimenta a área do Méier. O Globo, Rio de Janeiro, 11 out.1989. Caderno especial Méier, p.2.
108
brasileira, a partir da década de 1980.
Não será à toa, portanto, que nesse panorama irá ocorrer um crescimento
bastante significativo não só das plateias mas também do número de poetas,
associações, academias e saraus, desembocando, nos dias atuais, na consta-
tação de que há, só no Rio de Janeiro, os mais diversos saraus em atividade
e um número de poetas que há muito já passou a casa do milhar. Segun-
do o site Blocos Online, de Leila Míccolis, no Brasil todo, este número deve
chegar, atualmente, a por volta de dez mil poetas. Segundo ela me confir-
mou em entrevista: “Blocos disponibiliza apenas dez mil poetas, mas, com
o advento da Internet, calculo que haja mais de cinquenta mil, certamente.
Nunca consegui terminar de fazer esta pesquisa, porque a cada dia conheço
de 50 a 100 poetas a mais.” (informação verbal)26
Esse processo de popularização da poesia intensificado na década de 80
trazia consigo, como uma de suas consequências, o aumento cada vez maior
do público que ia assistir a esses poetas. Só para citar exemplos disso, no
início dos anos 80, o trio de poetas Os Camaleões, com Claufe Rodrigues,
Pedro Bial e Luiz Petry, abriam shows de bandas roqueiras tais como Biquíni
Cavadão e Ultraje a Rigor, que arrastavam multidões em suas apresentações.
O grupo Mymba Kuera, que entre seus membros incluía os poetas Dalmo
Saraiva e Sady Bianchin, foi outro que, durante o evento Rio ECO-92, che-
gou a se apresentar para um público de vinte mil pessoas. A Gang pornô,
coletivo poético encabeçado por Cairo Trindade e Eduardo Kac, durante
essa mesma época, chegou a fazer a abertura de um show do roqueiro inglês
Sting, ex-integrante do grupo The Police. Essa espécie de status e de sucesso
alcançados pela poesia e pelos poetas dos anos 80, é bom destacar aqui, não
conseguiria repetir tamanhas amplitudes nas décadas seguintes.
Essa popularização da arte poética e o crescimento cada vez maior
das plateias desses tais shows poéticos terão também como consequência o
aumento significativo das casas e espaços interessados em abrigar os artistas e
esse público numeroso. A poesia, agora, de forma também nunca antes vista,
passava a ser capaz de dar lucros às casas que podiam abrigá-la. Sendo assim,
não será somente a performance que irá se expandir, desenvolver e dominar a
cena poética e a própria época, proliferam-se também os lugares que abriga-
rão saraus, eventos, manifestações e/ou happenings, transformando-se, no
Rio de Janeiro, em verdadeiros núcleos aglutinadores desses agitos. Exem-
plos disso, temos os bares Avatar e Botanic, no Jardim Botânico, o Mistura
26
MÍCCOLIS, Leila. Entrevista concedida a mim. Rio de Janeiro, 6 set.2017.
109
Fina, local mais habituado à música, porém, neste instante, de portas aber-
tas para a poesia, a CEU (Casa do Estudante Universitário), que servia não
só para realizar saraus (como o “Balcão Poético”), mas também como abrigo
e moradia para vários poetas sem teto e sem recursos para sobrevivência,
o Circo Voador (que misturava tribos e artes diferentes, principalmente, a
música, o teatro, a dança e a poesia), e as praias cariocas, onde vários eventos
foram realizados, talvez o mais famoso deles o “Top Less literário”, passeata
nudista ocorrida no posto 9 da praia de Ipanema, em março de 1980, pro-
movida pelos poetas da chamada poesia pornô.
Será também a partir desse contato dos artistas com essas plateias (nume-
rosas), que um fato irá surgir no cenário da poesia brasileira: a arte produ-
zida e pensada coletivamente, que podemos abreviar para arte coletiva. O
público do “Passa na praça”, por exemplo, tinha total liberdade para aden-
trar os esquetes e mudar falas e enredos pré-estabelecidos pelo grupo. João
Batista Alves confirma essa arte coletivizada, em entrevista que deu ao Jor-
nal O Globo, em 1986: “A improvisação está sempre presente em nossas
apresentações. Estamos o tempo todo estimulando a participação popular
e a partir de algumas dessas intervenções surgiram muitas das ideias para os
esquetes que mostramos.”27 Na “Feira da Poesia”, Flávio Nascimento, com
seu inseparável pandeiro, convidava poetas e público em geral a entrarem na
roda e dizer versinhos, compondo um grande poema, de improviso, como se
este fosse não ter fim. Por vezes, em determinados eventos poéticos, uma ou-
tra maneira de se compor coletivamente se dava na realização de um poemão
escrito por todos. Funcionava assim: a folha de papel ia rodando de mão
em mão e cada um colocava um verso e, ao fim, tinha-se um enorme poema
que era lido por um poeta escolhido dentre todos ali presentes. Formava-se,
então, uma única obra feita de misturas, em que cada um contribuía demo-
craticamente com ideias e versos.
Essa produção artística grupal dos anos 80 não se percebe tão somente na
construção de poemas e artes coletivas, mas é visível também em uma busca
por cada vez mais associações entre poetas. Heloísa Buarque salienta bem isso:

A poesia independente prolifera. Seu traço principal: a produção em grupo. São


os poetas de comunidade, de associações de bairro, de organizações, de periferia.
Seu objetivo mais explícito: uma poesia popular, para ser lida e ouvida. O tipo de
publicação mais recorrente: antologias. Trajetória semelhante vem conhecendo a
imprensa alternativa hoje, basicamente associada a organizações e partidos. Tanto a
27
SAMUEL, W. Poça d’água: nas praças, a poesia popular. O Globo, Rio de Janeiro, 9 set.1986. Segundo Caderno. p.24.
110
poesia independente quanto a pequena imprensa de agora evidenciam um projeto
distinto das artimanhas e propostas originais da poesia marginal.28

Outro resultado desse tal boom poético dos anos 80, dessa proliferação
de poetas, de grupos artísticos, de recitais (nessa época, não costumavam
ser chamados de “saraus”) e de lugares para apresentações foi o surgimento
também de algo bem diferente do que havia acontecido nos anos 70: uma
espécie de processo de maior profissionalização dos artistas. Vejamos o que
nos diz Carlos Alberto Messeder (1993, p.62):

Uma profissionalização do poeta viria a se acentuar logo no começo dos 80, bem
como anunciava o início de uma entrada mais sistemática (e já agora valorizada
positivamente) de um certo número dos “marginais/alternativos/independentes”
dos 70 no circuito das editoras comerciais. (...) Uma relação mais enfatizada, mais
marcada com o dinheiro, a qual se expressava, por exemplo, na busca de uma re-
muneração para o poeta nos recitais, na cobrança de ingressos ou couvert artístico,
num aumento crescente do custo de produção e mesmo do preço dos livros e assim
por diante. Ao longo dos 80, essa face do processo de profissionalização vai sendo
crescentemente enfatizada.

A profissionalização, como se vê, atingiu o espetáculo poético: não só as


performances buscavam cada vez mais um maior aperfeiçoamento técnico,
visual, plástico, mas o próprio recital, como já dito aqui anteriormente, feito
em casas fechadas, buscava se profissionalizar, através da cobrança de couvert,
de entradas, de pagamentos de cachês aos poetas e outras formas de maior
organização. Mas essa busca por uma maior profissionalização não parava
somente nos campos da performance e dos recitais, ela também avançava
para o âmbito de uma melhor sistematização e distribuição da produção
dos artistas chamados independentes. E essa será também outra inovação
da poesia dos anos 80: a organização mais criteriosa da produção e da edição
alternativas, não participantes do circuito das grandes editoras. Um bom
exemplo disso é a formação das pequenas editoras independentes, tais como
a Editora Trote (de Leila Míccolis e Tanussi Cardoso), criada no Rio de Ja-
neiro em 1981, e a Banca Nacional de Literatura Independente (de Douglas
Carrara e Jania Cordeiro), surgida em janeiro de 1983, cujo objetivo prin-
cipal era divulgar e vender as obras dos escritores e editores independentes
brasileiros que não tinham acesso ao circuito oficial de distribuição de li-
vros. Segundo Carlos Alberto Messeder (1993, p.65):

28
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Depois do Poemão. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13 set.1980. Caderno B, p.3.
111
Esta organização mais sistemática do alternativo, juntamente com a tática da coedi-
ção (quando autor e editora se complementam) são tentativas de “negociar” com
os limites de absorção e com as regras do mundo das editoras comerciais ao mesmo
tempo que expressam os sinais dos novos tempos

Essa nova organização na distribuição das obras literárias alternativas per-


mitiu que, para muito além da limitada atuação de venda individual, feita
no corpo a corpo autor-leitor, muito praticada pelos poetas marginais da
década de 70, agora se pudesse expandir o número de leitores que, a par-
tir de então, tanto poderiam ser leitores locais quanto até mesmo de outras
cidades e Estados brasileiros, o que facilitava muito também o processo de
popularização e democratização das obras. Mas essa profissionalização não
se deu apenas na busca por maiores e melhores caminhos de distribuição do
material artístico, veremos surgir também, nesse momento, um maior capri-
cho nas próprias produções artísticas, com a melhoria da qualidade do ma-
terial de que eram feitos os livros, a melhor qualidade do papel, da tinta etc.
Que a década de 80 brasileira produziu um gigantesco frisson ao redor da
poesia e dos poetas, ao que parece, diante de tudo que até aqui já foi exposto,
não deixa mais quaisquer dúvidas. E fica mais claro ainda quando vemos a
poesia tendo presença constante nos principais jornais da época. E essa pode
ser considerada mais uma marca da década: pela primeira vez, em inúmeras
ocasiões, os principais jornais registravam os vários acontecimentos poéticos
ocorridos na cidade.
A poesia dos anos 80 - além de plural, multifacetada, polifônica -, alçou um
nível de popularidade até então nunca visto. Através da atuação dos eventos
de rua – dentre alguns, o “Passa na praça” e a “Feira da Poesia” -, dos shows
poéticos com públicos sempre em constante crescimento, do exercício da
arte coletiva, da profissionalização e do aumento da produção, publicação e
distribuição/venda de obras de escritores independentes (num circuito pro-
fissionalizado, mas ainda à margem das grandes editoras) e das performances
cada vez mais caprichadas, a poesia conseguiu ferramentas facilitadoras para
a sua popularização, desmistificação e expansão na década de 80.

Referência Bibliográfica
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Rio de Janeiro: Ribroarte, 1986.

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112
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anos 70 aos 90). Espírito Santo: CCHN publicações, 2002.

______. Notícia da atual poesia brasileira – dos anos 1980 em diante. O eixo e a roda, v. 22, n.
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SOUZA E SILVA, Antonio de Pádua de. Movimento Poetas na Praça: uma poética de ruptura e
resistência. São Paulo: PUC, 2008.
113
EXPERIÊNCIA DE PESQUISA-AÇÃO SOBRE PRECONCEITO LIN-
GUÍSTICO COM JOVENS DA REDE CUCA, DE FORTALEZA-CE

Maria Hermínia Vieira29


UERJ

Resumo: Este artigo busca apresentar o trabalho, ainda em andamento,


de uma tese de Doutorado que parte de duas problemáticas que se entrela-
çam e desembocam em um objetivo-síntese: fazer com que o debate sobre o
combate ao preconceito linguístico extrapole os muros da universidade. O
muro imaginário que separa a universidade da sociedade é a primeira dessas
duas problemáticas: a divulgação científica falha, ou seja, a dificuldade que
a universidade encontra para divulgar suas pesquisas para a sociedade. A se-
gunda problemática é o preconceito linguístico existente na sociedade, que
acontece quando a variedade linguística de um falante é discriminada por
outro falante do mesmo idioma ou quando um indivíduo sofre preconceito
pela forma como se expressa linguisticamente.

Palavras-chave: Sociolinguística. Preconceito linguístico. Divulgação científica.

Introdução
O presente trabalho, ainda em andamento, aponta para um olhar sobre
a favela do ponto de vista linguístico, considerando seus jovens moradores
como atores conscientes de sua realidade e aptos a oferecerem uma contri-
buição academicamente relevante em discussões acerca de temas como va-
riedade linguística e preconceito linguístico. Esse direcionamento parte do
entendimento de que os estudos linguísticos e, mais especificamente, socio-
linguísticos, existentes já apresentam arcabouço suficiente para que se tenha
um amplo conhecimento sobre as línguas como um todo e para que se des-
façam quaisquer preconceitos de cunho linguístico. Cientes disso, os ganhos
que a Sociolinguística trouxe para os estudos linguísticos, bem como seus ar-
gumentos científicos para que caiam por terra os preconceitos linguísticos,
são o mote temático deste trabalho em desenvolvimento, que pretende, a
29
Contato: maria.herminia@gmail.com
114
partir de uma metodologia que parte de uma pesquisa-ação e, possivelmente,
desemboca em uma ecologia de saberes, aproximar a língua de seus falantes,
com o intuito de discutir estratégias divulgação do combate ao preconceito
linguístico. Para tanto, iniciaremos o trabalho com uma pesquisa-ação na
qual faremos oficinas com jovens da Rede Cuca, situada em Fortaleza (CE),
uma rede de proteção social e de oportunidades formada por três Centros
Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte (Cucas), sobre os seguintes
temas: 1) Língua e opressão; 2) Língua e identidade; 3) Erros, normas e pre-
conceito linguístico; e 4) Preconceito linguístico ou social? O encaixe social
do preconceito linguístico. O segundo momento desse processo será pro-
por a elaboração e o desenvolvimento de estratégias de divulgação dos temas
discutidos. Alternativa ao padrão de pesquisa tradicional, a pesquisa-ação é
um tipo específico de investigação-ação que busca agregar à teoria um viés
prático, dando voz a atores sociais envolvidos em problemas que devem ser
conjuntamente identificados, discutidos e solucionados (TRIPP, 2005). Os
problemas a serem trabalhados também devem ser selecionados pelos parti-
cipantes, a partir de um diagnóstico da situação no qual todos os envolvidos
tenham voz e vez. Acreditamos que o terceiro momento de nossa pesquisa
será feito a partir de uma proposta de ecologia de saberes30, proposta defen-
dida por Souza Santos (2011), que alinha um representante da universidade
e um representante popular com notório saber para, juntos, construírem
o conhecimento. Nessa parte da pesquisa, é possível que agentes externos
sejam recrutados para a viabilização dessas propostas. Por exemplo, caso as
estratégias girem em torno dos próprios pilares do Hip Hop, é possível que
professores ou praticantes de cada um desses pilares sejam convidados. O
momento seguinte da pesquisa seria o de aplicação dessa(s) estratégia(s) co-
letivamente pensada e, por fim, teríamos um momento de avaliação, no qual
os resultados dessa(s) prática(s) seriam avaliados, considerando seu alcance e
sua aplicabilidade em sala de aula ou sua ampliação para estratégias de divul-
gação desses assuntos para a sociedade. Possivelmente, a atuação com esses
jovens irá oferecer à pesquisa e à universidade estratégias concretas e eficien-
tes de combate ao preconceito linguístico e, em contrapartida, oferecerá a
esses indivíduos uma carga de conhecimento que os subsidiem na atuação
política de luta contra o preconceito e em favor da inclusão social.
Neste artigo, limitar-mo-emos a um esboço da pesquisa que pretendemos
empreender, apresentando um projeto que contempla a parte central de nos-
30
Neste artigo, não nos aprofundaremos sobre a ecologia de saberes por não sabermos se essa será uma opção escolhida pelos jovens com os
quais trabalhamos, uma vez que, conforme a pesquisa-ação, todas as decisões devem ser tomadas em conjunto com os participantes.
115
so referencial teórico, ou seja, a Sociolinguística; a metodologia que adota-
remos, intitulada pesquisa-ação; e o grupo ao qual pertencem os jovens com
quem trabalharemos: a Rede Cuca. Todo o desenvolvimento desta pesquisa
será descrito em nossa tese, que se encontra em fase de desenvolvimento.

Referencial Teórico
Nosso trabalho, tal qual o propomos, não encontraria espaço de realização
até a década de 1960. Até então, estudos que tomassem a fala como escopo e a
entendessem como objeto passível de sistematização não encontravam suporte
nos teóricos da época. Em 1961, quando o americano Willian Labov iniciou-se
na Linguística, o então estudante decidiu pesquisar a língua “tal como usada na
vida diária por membros da ordem social” (LABOV, 2008) e esbarrou em um
programa linguístico ainda limitado por barreiras ideológicas que abnegavam o
estudo empírico da mudança linguística e da estrutura interna da variação.
Revisando a literatura sobre o tema, Labov descobriu, e elencou, algumas
dessas “barreiras ideológicas” para o estudo da língua na vida cotidiana, tais
como o princípio estrutural saussuriano que apartou os estudos sincrônicos
dos diacrônicos, ou as observações que davam conta de que a mudança sonora
não podia, a priori, ser observada diretamente. “Bloomfield defendia a regula-
ridade da mudança sonora contra a evidência irregular do presente declaran-
do (1933, p. 364) que quaisquer flutuações que pudéssemos observar seriam
apenas casos de empréstimo dialetal” (LABOV, 2008, p. 14) e Hockett con-
siderou a mudança fonológica lenta demais para ser observada e a mudança
estrutural muito rápida, afastando, assim, de acordo com Labov, o estudo da
mudança linguística do programa da época. Para o autor, a variação livre seria,
possivelmente, a restrição mais importante, uma vez que, para Bloomfield, al-
guns enunciados eram o mesmo, não tendo, portanto, necessidade de serem
estudados. Dessa forma, a estrutura interna da variação, juntamente com as
pesquisas de mudança em andamento, também foi relegada.
Em contrapartida ao que vinha sendo feito até então, principalmente pe-
los gerativistas, Labov insistiu em incluir nos estudos linguísticos os aspec-
tos sociais e trouxe para a academia aquilo que aprendera fora dela:

Uma década de trabalho fora da universidade como químico industrial tinha me


convencido de que o mundo cotidiano era rebelde, mas consistentemente rebelde,
desconcertante no início, mas recompensador em longo prazo para aqueles que se
apegavam a seu caráter racional. (LABOV, 2008, p. 13).
116
O que o americano percebeu, e levou para a universidade, foi que a vida
cotidiana, apesar de aparentemente desconexa, deve ser estudada e pode ser sis-
tematizada. Levando isso para seu trabalho como linguista, também defendeu
a possibilidade de sistematização da variação existente na língua falada.
Assim, Labov desconsiderou tais barreiras e encontrou apoio intelectual
em Uriel Weinreich, professor cuja resistência era uníssona a sua, e que foi
responsável por orientá-lo em sua dissertação de Mestrado e tese de Douto-
rado, respectivamente os trabalhos sobre Martha’s Vineyard31 e sobre Nova
York32, que serviriam de base para as demais pesquisas que buscam apreender
dados do mundo secular, como a nossa. Também na Columbia University,
Labov conhecera Marvin Herzog, com quem, a pedido de Weinreich, escre-
veria, em 1968, um ensaio sobre os Fundamentos empíricos para uma teoria
da mudança linguística (WEINREICH, HERZOG, LABOV, 2006). O
ensaio foi incorporado ao trabalho sobre Martha’s Vineyard e também ao
estudo sobre Nova York. A “desobediência” de Labov, a intuição à frente de
seu tempo de Weinreich e o empenho de Herzog no estudo da dialetologia
plantaram as bases para todos os estudos subsequentes acerca da variação e
da mudança linguística e para o nascimento da Sociolinguística, teoria que
estuda esses fenômenos.
O termo Sociolinguística foi fixado em 1964, em um congresso realizado na
Universidade da Califórnia, em Los Angeles, organizado por William Bright,
e surgiu com a proposta de denominar uma subárea da Linguística capaz de
correlacionar aspectos linguísticos e sociais. Labov, tido como iniciador desse
modelo, não foi o primeiro a trabalhar a relação entre língua e sociedade. Aliás,
essa relação, de tão inseparável, chega a tornar o termo redundante, motivo
que fez o próprio Labov relutar bastante em aceitá-lo: “Por vários anos, resisti
ao termo sociolinguística, já que ele implica que pode haver uma teoria ou prá-
tica linguística bem sucedida que não é social.” (LABOV, 2008, p. 13).
Essa difícil dissociação também dificulta a delimitação sobre quem teria
sido o primeiro a trabalhar com a Sociolinguística. Sobre essa questão, Ta-
rallo (2007, p. 7) afirma que “[...] podem ser chamados de sociolinguistas
todos aqueles que entendem por língua um veículo de comunicação, de in-
formação e de expressão entre os indivíduos da espécie humana”. E arremata
dizendo que, nesses termos, Ferdinand de Saussure seria um sociolinguista.

31
Publicado inicialmente em Word, 19: 273-309 (1963). Uma versão abreviada foi apresentada no 37o Encontro Anual da Sociedade Ameri-
cana de Luinguística em nova York, em 29 de dezembro de 1962. Usamos a tradução brasileira, cuja referência é: LABOV, William; tradução
Marcos Bagno; Martha Maria Pereira Scherre e Caroline Rodrigues Cardoso. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
32
LABOV, W. The Social Stratification of English in New York Cite. Washington, D.C.: Center for Appilied Linguistics, 1996. Usamos a
tradução brasileira, cuja referência é: LABOV, William; tradução Marcos Bagno; Martha Maria Pereira Scherre e Caroline Rodrigues Cardo-
so. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
117
A Sociolinguística tem como objeto de estudo o vernáculo, ou seja, a língua
em uso. Sendo assim, é de seu interesse observar, descrever e analisar a língua
em seu contexto social. Para tanto, é tomado como ponto de partida uma co-
munidade de fala, que, no dizer de Labov (2008, p. 188) “[...] não pode ser
concebida como um grupo de falantes que usam todos as mesmas formas; ela
é mais bem definida como um grupo que compartilha as mesmas normas a
respeito da língua”. Toda comunidade de fala é caracterizada por diferentes
modos de falar, intitulados variedades linguísticas. Por sua vez, ao conjunto
dessas variedades dá-se o nome de repertório verbal. As variedades linguísticas
mostram que nenhuma língua é homogênea e a Sociolinguística encara a he-
terogeneidade linguística não como um problema, mas como uma qualidade
constitutiva do fenômeno linguístico (ALKMIM, 2008, p. 33).
No dizer de Weinreich, Labov e Herzog (2006):

Os fatos da heterogeneidade, até agora, não se harmonizaram bem com a aborda-


gem estrutural da língua. [...] se uma língua tem de ser estruturada, a fim de fun-
cionar eficientemente, como é que as pessoas continuam a falar enquanto a língua
muda, isto é, enquanto passa por períodos de menor sistematicidade. [...] Esta pare-
ce ser a questão fundamental com que a teoria da mudança linguística tem de lidar.
A solução, argumentaremos, se encontra no rompimento da identificação de estru-
turalidade [structuredness] com homogeneidade. [...] Um dos corolários de nossa
abordagem é que numa língua que serve a uma comunidade complexa (i.e., real), a
ausência de heterogeneidade estruturada é que seria disfuncional. (WEINREICH;
LABOV; HERZOG, 2006, p. 35-36).

Esse modelo de “heterogeneidade ordenada”, ou seja, de entendimento


de que a fala é heterogênea, mas que essa heterogeneidade não é caótica,
mas ordenada, pertence a um arcabouço de estudos linguísticos e, mais
especificamente, sociolinguísticos, que é suficiente para que se tenha um
amplo conhecimento sobre as línguas como um todo e para que se desfa-
çam preconceitos de cunho linguístico. Apesar disso, parece haver um fos-
so entre o conhecimento produzido acerca, por exemplo, de diversidade
linguística e os ensinamentos que efetivamente chegam à escola e à socie-
dade. Existem, pelo menos, duas possíveis explicações para essa disparida-
de: a primeira delas é que a universidade não é um espaço homogêneo, mas
sim de disputa de ideias (e de poder!), de modo que não há consenso sobre
o que se deve ensinar em sala de aula e de que forma. A outra explicação é
que parece haver, mesmo entre os que defendem a língua como um instru-
mento de pluralidade, uma dificuldade estratégica sobre como ensinar os
118
temas pertinentes à Sociolinguística em sala de aula e sobre como divulgar
massivamente essas questões.
Ciente disso, buscaremos trabalhar com os jovens da Rede Cuca questões
relacionadas ao preconceito linguístico e discutir de que forma essa discus-
são pode ser expandida para a escola e para a sociedade. O retorno à escola
dar-se-á a partir do resultado das oficinas oferecidas aos jovens. Ou seja, se
o trabalho feito gerar uma conscientização capaz de motivar esses jovens a
replicarem o que aprenderem, é provável que as estratégias usadas para tal
fim possa ser repetidas em sala de aula. Por sua vez, a contrapartida à socie-
dade será conjuntamente oferecida por nós e pelos jovens da Rede Cuca,
que será apresentada a seguir, para que se possa entender porque esse grupo
fora escolhido.

A Rede Cuca
A Rede Cuca nasceu de uma demanda popular, solicitada por meio do
Orçamento Participativo da prefeitura, para atender às principais necessida-
des da juventude de Fortaleza e da Região Metropolitana, sendo atualmen-
te considerada pela Prefeitura Municipal de Fortaleza a principal Política
Pública de Juventude do Município. A Rede Cuca, de acordo com o site
da Prefeitura de Fortaleza, “é uma rede de proteção social e oportunidades
formada por três Centros Urbanos de Cultura, Arte, Ciência e Esporte
(Cucas)”, localizados nos bairros Barra do Ceará, Mondubim e Jangurussu.
Esses Centros Urbanos são mantidos pela Prefeitura de Fortaleza, por meio
da Coordenadoria Especial de Políticas Públicas de Juventude, e geridos
pelo Instituto Cuca, uma Organização Social (O.S.)33 vinculada e financia-
da pela Prefeitura de Fortaleza e pelo Banco Interamericano de Desenvolvi-
mento (BID).
A rede atende prioritariamente jovens de 15 a 29 anos e tem como obje-
tivo promover a garantia de direitos humanos por meio da descentralização
das atividades que se concentram nos bairros mais abastados da cidade. Com
esse intuito, são oferecidos “cursos, práticas esportivas, difusão cultural, for-
mações e produções na área de comunicação e atividades que fortalecem o
protagonismo juvenil”, além de “eventos estratégicos, festivais, mostras, ex-
posições e programação permanente de shows, espetáculos e cinema”.
33
Organizações sociais (OSs) são instituições pertencentes ao terceiro setor, termo sociológico que abrange organizações de iniciativa privada
sem fins lucrativos, de direito privado e que prestam serviço de caráter público. Também pertencem a este setor as Organizações Não Gover-
namentais (ONGs), entidades filantrópicas em geral, Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), dentre outros. Cabe
pontuar que o primeiro setor contempla o poder público e o segundo, o setor privado. O terceiro setor, como definido, tem caráter misto,
sendo formado por entidades privadas, mas sem fins lucrativos, e ligadas ao poder público em quaisquer dos níveis de governo (municipal,
estadual ou federal).
119
Um breve panorama populacional de Fortaleza é necessário para que se
entenda o contexto social que levou à criação da Rede Cuca. Atualmente,
30% dos 2.571.896 habitantes que compõem a população total do Municí-
pio de Fortaleza são jovens. A maior parte dessa considerável fatia populacio-
nal de quase 800.000 habitantes está concentrada nas áreas com o Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) mais baixo. O mapa a seguir representa a
distribuição por IDH dos 119 bairros de Fortaleza, sendo os 28 bairros pin-
tados de vermelho os que possuem IDH mais baixo e os seis pintados de azul
os que apresentam IDH mais alto, seguindo a gradação exposta na legenda:

O IDH mede renda, expectativa de vida e escolaridade da população. A


ilustração acima mostra que Fortaleza é uma cidade bastante desigual, para
sermos mais precisos, a segunda cidade mais desigual do Brasil, atrás apenas
de Goiânia e, ao lado desta e de Belo Horizonte e Curitiba, uma das mais desi-
guais do mundo, ficando as cidades brasileiras atrás apenas de sete cidades do
Sul da África, segundo o ranking mundial do relatório da agência das Nações
Unidas para assentamentos humanos (ONU Habitat) divulgado em 2010.
Em Fortaleza, os bairros com a maior concentração de jovens são também
os com menor IDH. O bairro com mais jovens é o Mondubim, com 19.695
habitantes dessa faixa etária, seguido do bairro Barra do Ceará, com 18.251
jovens. Com o intuito de diminuir as disparidades decorrentes dessa desi-
gualdade baseada na renda das famílias, que está intimamente relacionada
a problemas como a violência urbana, os Cucas se concentram, estrategica-
mente, nas regiões de menor IDH. O Cuca da Barra do Ceará (Regional I)
foi o primeiro a ser inaugurado, em 2009, sucedido pelos Cucas Mondubim
(Regional V) e Jangurussu (Regional IV), ambos inaugurados em 2014. A
120
previsão é que mais três Cucas sejam criados até 2020, nos bairros Pici, José
Walter e Vicente Pizon, formando, geograficamente, um arco que “abraça a
cidade” e mantendo o critério dos bairros com IDH mais baixo.
Mais de 1.500.000 atendimentos já foram realizados pela Rede Cuca desde
2009. Atualmente, são oferecidas, em média, 5.000 vagas por mês, somando
os três Centros. Essas vagas estão distribuídas, de forma macro, em nove áre-
as de formação – fotografia; audiovisual; informática; Libras; Inglês; teatro;
música e dança –, em mais de vinte modalidades esportivas – incluindo bas-
quete; futebol de Areia; handebol; voleibol; futsal; natação; nado sincroni-
zado; triathlon; jiu Jitsu; karatê; capoeira; MMA; judô; vôlei de praia; beach
hand; surf; muay thai; pilates; treinamento funcional; massagem; esportiva
e polo aquático –, além dos projetos de comunicação popular “Conexões
Periféricas”, “Repórter Cuca” e “Espaço Juventude”, com os quais trabalha-
remos. A metodologia que usaremos para o desenvolvimento deste trabalho
é a pesquisa-ação, sobre a qual falaremos a seguir.

Pesquisa-ação
Recorremos a Tripp (2005) para dizer que se atribui a Lewin (1946) a
primeira menção ao termo pesquisa-ação em uma publicação, embora haja
versões concorrentes, dentre as quais a de que o termo já havia sido usado
em 1913 (Altrichter, Gestettner, 1992), na Alemanha, ou por John Collier
antes e durante a Segunda Guerra Mundial, ideia sustentada por Deshler
e Ewart (1995) e Cooke (s.d.). O autor também afirma que, considerando
que a investigação da própria prática com o objetivo de melhorá-la sempre
existiu, há registros de experiências que se assemelham à pesquisa-ação, mas
sem receber esse nome, como em Buckingham (1926)34 ou John Dewey
(1933)35, o que nos leva a crer que provavelmente não encontraremos um
marco inquestionável para o surgimento desse método. Após o registro de
Lewin (1946), o termo passou a designar quatro tipos distintos de pesquisa
– pesquisa-diagnóstico, pesquisa participante, pesquisa empírica e pesquisa
experimental (CHEIN; COOK; HARDING (1948) apud TRIPP (2005))
– e, desde então, tem se dividido em diferentes tipos nas mais diversas áreas,
tais como administração (Collier), desenvolvimento comunitário (Lewin,
1946), mudança organizacional (Lippitt, Watson; Westley, 1958), ensino
(Corey, 1949, 1953), agricultura (Fals-Borda, 1985, 1991) e, até, mais recen-
temente, em negócios bancários, saúde e geração de tecnologia, por meio do
34
SELENER (1997) apud TRIPP (2005).
35
ROGERS (2002) apud TRIPP (2005).
121
Banco Mundial e outros (Hart; Bond, 1997). (TRIPP, 2005).
Em uma tentativa de definição, podemos identificar a pesquisa-ação como
um tipo específico de investigação-ação, um termo guarda-chuva que con-
templa qualquer processo que siga um ciclo no qual haja um planejamento
para melhoria da prática, seguido da ação para concretizar o que foi planeja-
do, sucedido do monitoramento e descrição dos resultados alcançados por
meio da prática realizada e, por fim, da avaliação dos resultados obtidos a
partir da ação, que, por sua vez, servirá de mote para um novo planejamento,
que suscitará uma nova ação a ser monitorada, descrita e posteriormente
avaliada e assim sucessivamente, sempre no sentido de uma ação que busca
aprimorar a prática.
Thiollent (2011, p. 14) também aproxima a pesquisa-ação da pesquisa
participativa – ao mesmo tempo em que reforça que se trata de propostas
diferentes – por ambas buscarem dar, tanto aos pesquisadores quanto aos
participantes da pesquisa, meios eficientes de respostas a problemas reais vi-
venciados por estes, oferecendo diretrizes de ações transformadoras a situa-
ções nas quais os procedimentos convencionais não têm contribuído a con-
tento. Nesse sentido, é imprescindível pontuarmos que, na pesquisa-ação,
os grupos pesquisados são também participantes e possuem vez e voz ativa
em toda a pesquisa, desde o estabelecimento de prioridades a partir de um
diagnóstico da situação na qual estão envolvidos, passando pela execução da
ação, até a sua avaliação. Nas palavras de Thiollent (2011, p. 20):

A pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e reali-
zada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo
e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou problema
estão envolvidos de modo cooperativo e participativo. (Thiollent, 2005, p. 14).

Tal definição delimita, à priori, o alcance da pesquisa-ação, que abrange


uma faixa intermediária capaz de contemplar grupos, instituições e coletivi-
dades de pequeno ou médio porte, ou seja, não trabalha com psicologia in-
dividual tampouco tem um enfoque macrossocial. Também por isso, nesse
método, os aspectos psicológicos das “relações interpessoais” são preteridos,
ao passo que aspectos sociopolíticos são privilegiados. A popularização da
pesquisa-ação fez com diversas ações orientadas para a prática fossem assim
denominadas, o que esvazia o sentido dessa nomenclatura. Justamente por
isso, Thiollent (2011, p. 21) adverte que:
122
Uma pesquisa só pode ser qualificada de pesquisa-ação quando houver realmente
uma ação por parte das pessoas ou grupos implicados no problema sob observação.
Além disso, é preciso que a ação seja uma ação não trivial, o que quer dizer uma ação
problemática merecendo investigação para ser elaborada e conduzida. (THIOL-
LENT, 2005, p. 21).

Essa investigação exige, por um lado, a precisa identificação da ação, de


seus agentes, objetivos e obstáculos, e, por outro, a necessidade de um co-
nhecimento a ser produzido a partir das demandas da ação ou dos atores da
situação. (THIOLLENT, 2005, p. 22). Desse modo, são considerados “ob-
jetivos da pesquisa”, que buscam “aumentar o conhecimento dos pesqui-
sadores e o conhecimento ou o ‘nível de consciência’ das pessoas e grupos
considerados” (THIOLLENT, 2005, p. 23), e “objetivos de ação”, de natu-
reza prática, que objetivam “tornar mais evidente aos olhos dos interessados
a natureza e a complexidade dos problemas considerados” (THIOLLENT,
2005, p. 25). O pesquisador que se propõe a trabalhar com a pesquisa-ação
deve atuar na realidade dos fatos observados, desempenhando “um papel
ativo no equacionamento dos problemas encontrados, no acompanha-
mento e na avaliação das ações desencadeadas em função dos problemas”,
ou seja, agindo na concepção, no desenrolar e avaliação da ação planejada,
sem, contudo, “substituir a atividade própria dos grupos e suas iniciativas”
(THIOLLENT, 2005, p. 21).
Cientes disso, após a realização das oficinas, para que a pesquisa tenha
prosseguimento, é necessário que os jovens da Rede Cuca reconheçam e
entendam o preconceito linguístico como um problema que deve ser so-
cialmente combatido. Do contrário, trabalharemos em outras questões
apontadas como relevantes, pois o diagnóstico que norteará a terceira etapa
do trabalho será feito em conjunto com os jovens. Retomando ao primeiro
momento, realizaremos quatro oficinas com jovens da Rede Cuca, abordan-
do os temas a seguir: 1) Língua e opressão; 2) Língua e identidade; 3) Erros,
normas e preconceito linguístico; e 4) Preconceito linguístico ou social? O
encaixe social do preconceito linguístico. Em seguida, em um momento de
avaliação das oficinas, elaboraremos um diagnóstico acerca do que pode/
precisa ser feito a partir do que foi discutido. Caso o entendimento dos jo-
vens seja o de que o preconceito linguístico deve ser combatido, um plano
de ação será elaborado e realizado com essa finalidade de divulgação dessas
problemáticas para a sociedade.
123
Considerações finais
Este trabalho em desenvolvimento tem o fito de dizer o óbvio: o precon-
ceito linguístico não deveria existir. Evidentemente, o mesmo vale para o
racismo, o machismo, a homofobia, a xenofobia e tantas outras formas de
opressão, mas esta é uma pesquisa sobre questões linguísticas. Como o pre-
conceito não acontece a ermo, ou seja, como são necessárias pessoas para
praticá-lo, precisamos “personificar” o que foi dito anteriormente: as pesso-
as precisam parar de oprimir linguisticamente as outras. Simples assim, sem
nenhuma necessidade de argumentação científica! Nenhuma pessoa deve
sofrer preconceito pela sua cor, sexo/gênero, orientação sexual, origem ou
pelo modo como fala. Caso as pessoas entendessem quão primário é esse
entendimento e simplesmente parassem de oprimir, este trabalho não preci-
saria existir. Mas os analistas do discurso têm razão, “língua é poder”, e, por
isso, este trabalho, assim como tantos outros nessa linha, se faz necessário,
para que possamos desconstruir, à luz da História e da Ciência, tantos dos
preconceitos linguísticos que são proferidos a partir de discursos ignorantes
e raivosos.

Referência Bibliográfica
ALKMIM, Tânia. Sociolinguística (Parte I). MUSSALIN, Fernanda; BENTES, Anna Christi-
na (Org.). Introdução à linguística: domínios e fronteiras. v. 1. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2008, p.
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LABOV, William; tradução Marcos Bagno; Martha Maria Pereira Scherre e Caroline Rodrigues
Cardoso. Padrões sociolinguísticos. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A Universidade no Século XIX: para uma reforma democráti-
ca e emancipatória da Universidade. 3ª ed. São Paulo: Cortez, 2011. (Coleção questões da nossa
época, V. 11).

TARALLO, Fernando. A pesquisa Sociolinguística. 8 Ed. São Paulo: Ática, 2007.

TRIPP, David. Pesquisa-ação: uma introdução metodológica. São Paulo: Educação e Pesquisa, v.
31, n. 3, p. 443-466, set./dez. 2005.

THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. 18 Ed. São Paulo: Cortez, 2011.

WEINREICH, Uriel; LABOV, William; HERZOG, Marvin I.; tradução Marcos Bagno. Fun-
damentos empíricos para uma teoria da mudança linguística. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.
124
ENTRE SILÊNCIOS E PROTAGONISMOS: A LITERATURA COMO
ESPAÇO PARA SE (RE)PENSAR A HISTÓRIA DA
ESCRAVIDÃO NO BRASIL

Maria Inês Freitas de Amorim36


UERJ

Resumo: O romance histórico-policial O crime do cais do Valongo, de


Eliana Alves Cruz, publicado em 2018, narra a investigação de um assassi-
nato de um barão a partir de duas perspectivas: um boêmio mestiço e uma
escravizada moçambicana. O presente trabalho busca evidenciar as vozes
narrativas do romance, apresentando as perspectivas de cada uma delas so-
bre a importância da construção da memória como forma de resistência e
luta pela liberdade.

Palavras-chave: Literatura Brasileira Contemporânea. Metaficção histo-


riográfica. Escravidão. O Crime do Cais do Valongo.

“É possível sepultar para sempre passado tão tenebroso?”


(Eliana Alves Cruz)

Foi pelo Cais do Valongo que grande parte dos escravizados africanos che-
garam à cidade do Rio de Janeiro durante o período em que ocorria intenso
tráfico de pessoas no país. No local estavam situados armazéns onde os “pre-
tos novos”, como eram conhecidos os escravizados recém-chegados ao Bra-
sil, eram alocados e onde aguardavam serem comprados. Também na região,
conhecida como Pequena África, havia o Cemitério dos Pretos Novos, local
onde eram enterrados aqueles que morriam nos navios negreiros durante a
travessia do Atlântico ou já em solo brasileiro, mas antes de serem vendidos.
Além disso, havia o Lazareto dos escravos, uma espécie de hospital onde eram
tratadas as enfermidades dos escravizados.
Em 1843, o Valongo é reformado e passa a se chamar Cais da Imperatriz,
uma vez que de local de chegada e negociação de escravizados africanos, vira-
ria o cais por onde aportaria Teresa Cristina Bourbon-Duas Sicílias, aquela
que era noiva do imperador Dom Pedro II e futura imperatriz brasileira.
36
Doutoranda em Literatura Brasileira, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Teoria da Literatura e Literatura Compa-
rada, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Licenciada em Letras, pela Universidade Federal Fluminense e Bacharel em Comunica-
ção Social – Jornalismo, pela Universidade Federal de Viçosa. Email: mariainesfamorim@gmail.com
125
Com a mudança de nome e com a reforma há também o apagamento
do que aquele local representava para a história do Brasil, sendo relegado
ao esquecimento, se tornando em vestígios do passado escravista. Durante
mais de um século o local passou a ser apenas um espaço na região central da
capital fluminense. Entretanto, em 2011, com as obras do que viria a ser cha-
mado Porto Maravilha, projeto que tinha como objetivo revitalizar a zona
portuária carioca, foram encontrados vários restos materiais do que havia
sido aquela região e o que ela representava para a história do país.
Devido a uma forte mobilização da sociedade civil, sobretudo de entida-
des ligadas a movimentos negros, foi impedido que o local fosse destruído
e hoje, a região é tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artísti-
co Nacional (IPHAN). Assim, o sítio arqueológico do Cais do Valongo foi
preservado e pode ser visitado (SOARES, 2018, p. 419).
Pensar no Cais do Valongo como espaço de construção de narrativas so-
bre o passado brasileiro, sobretudo sobre a história da escravidão, é funda-
mental para que haja uma profunda reflexão sobre o presente e as intrinca-
das amarras excludentes nas quais ainda estão alicerçadas as relações sociais
brasileiras. Mais do que um espaço físico, a região da Pequena África ilustra
um pouco sobre o que significa a escravidão no Brasil: uma tentativa de apa-
gamento, mas que encontra resistências para que essa história seja contada.

A escravidão que atuou, durante cerca de quatro séculos, a África à América, mos-
trou-se especialmente perversa porque seus efeitos se prolongaram nos descenden-
tes dos que lhe sofreram a violência. Se em quase todas as sociedades se discrimina e
socialmente se exclui, humilha ou rebaixa quem tem antepassado escravo, este podia
em muitas delas – em Roma, por exemplo, ou em Axante, ou no Mali – conseguir
esconder sua origem, porque cativo e homem livre não diferenciam na aparência.
No caso americano, isso não era possível, porque escravo era sinônimo de negro
(COSTA E SILVA, 2018, p.14).

A importância do Cais do Valongo como um espaço de construção de


conhecimentos sobre o passado brasileiro também é encontrado a partir
do romance O Crime do Cais do Valongo da escritora Eliana Alves Cruz.
A autora situa sua narrativa na região e apresenta uma reconstrução histó-
rica do início do século XIX, destacando, a partir da poética da ficcionali-
dade, como seria o cotidiano, como interagiam as diversas camadas sociais
que compunham a sociedade da época, baseada em relações escravistas. A
obra narra como seriam tratados os escravizados que aportaram no Brasil,
126
representando suas vozes, seus pensamentos, destacando quais seriam seus
medos, inseguranças, tristezas e revoltas.
Eliana Alves Cruz nasceu na cidade do Rio de Janeiro, é jornalista e, além
do romance O Crime do Cais do Valongo é autora de Água de Barrela, ven-
cedor do concurso de romances da Fundação Cultural Palmares/ MINC,
além de ser autora na coletânea Cadernos Negros 39 (poesias) e 40 (con-
tos) do Quilomboje Literatura. Em entrevista concedida a Raphael Montes
no programa Trilha de Letras da TV Brasil, exibido em 25 de setembro de
2018, a autora afirma que o motivo que escolheu escrever sobre o local foi a
pouca informação sobre a sua história:

Cais do Valongo é a grande porta de entrada de grande parte dos escravizados das
Américas. Não por menos foi escolhido como patrimônio histórico da humanida-
de. De todos os escravizados trazidos para as Américas, mais de um milhão pisa-
ram por suas pedras e a gente não sabe nada sobre essa história. Ou muito pouco
(CRUZ, 2018).

Na entrevista, a autora também explica a divisão da cidade idealizada pelo


Marquês do Lavradio: foi passado todo o complexo escravagista para a área
do Cais do Valongo, que era considerada isolada, para que o restante da po-
pulação da cidade, sobretudo a corte, não visse aquele “espetáculo dantes-
co”. Ela ressalta sobre a importância simbólica da Pedra do Sal, que mais que
separar geograficamente a cidade, separava a sociedade. A partir dessa divi-
são, ela resolveu desenvolver a narrativa: “Temos sequelas muito graves do
que foi feito. A gente evita olhar. A gente evita encarar. Então, esse romance
é uma ficção, obviamente, mas está na hora da gente trazer para a nossa lite-
ratura as nossas histórias” (CRUZ, 2018).
Eliana Alves Cruz, como autora negra, enfatiza a importância de que os
espaços sejam ocupados para que a história dos povos silenciados seja escri-
ta. Mais do que uma obra de ficção, a autora busca registar e apresentar um
pedaço da história esquecida. As obras das autoras negras contemporâneas
têm um papel de destacada relevância no cenário literário no combate ao
racismo e ao sexismo. Salgueiro (2004, 119-20) ressalta

As escritoras afro-brasileiras, a partir de sua História dentro de sua luta, retratam a


razão e o coração da mulher negra brasileira e se estabelecem com o tempo como re-
ferência obrigatória no panorama da literatura contemporânea de seu país. Sempre
combativas contra a discriminação, as escritoras afro-americanas e afro-brasileiras
adotam específicas e diferentes estratégias de ação em sua luta. No entanto, com re-
127
correntes pontos em comum: em trajetórias próprias, porém céleres e sólidas, que as
consolidam e se desdobram no cenário literário, ao, por exemplo, forçar uma rediscus-
são do cânon, com a utilização da arte da palavra – uma contribuição definitiva para
a literatura universal, para o movimento feminista e para a luta dos direitos humanos.

Em Crime do Cais do Valongo, Eliana Alves Cruz encontrou no romance


policial histórico uma alternativa para contar a sua história de resistência.
Publicado em 2018 pela editora Malê, a obra narra a busca por desvendar
a morte de Bernardo Lourenço Viana, rico comerciante branco, Barão de
Mata Cavalos, encontrado assassinado na rua, com sinais de mutilação. Os
acontecimentos são narrados a partir de duas perspectivas: Nuno Alcântara
Moutinho e Muana Lómuè. Nuno é um mestiço, filho de um português
branco e uma mãe também mestiça. Segundo o narrador: “Sou um pardo,
um mulato e fui criado ali, largado, solto entre os livros e pelas ruas fazendo
pequenos serviços para a família do livreiro” (CRUZ, 2018, p.35). Já Muana
é uma escravizada moçambicana, que além de fornecer informações sobre a
morte de seu senhor, o barão assassinado, conta sua própria história de vida,
de mulher livre em África até ser trazida para o Brasil.
A cada voz narrativa são apresentadas informações sobre o meio em que os
personagens vivem. Sobre como sua posição na sociedade determina como é
possível viver, e como suas ações são resultados das vivências impostas. Nos
trechos do romance narrados por Nuno há humor, há a trajetória de um
boêmio que vê na morte de Bernardo uma oportunidade de suas dívidas se-
rem esquecidas e ele conseguir abrir sua taverna-livraria, a Mazomba. Já nas
partes narradas por Muana se identifica a dor daqueles que foram separados
de suas famílias, que tiveram sua liberdade aniquilada pela escravidão. Há a
dor pelas violências sofridas e pelos afetos separados, pela liberdade perdida
e pelo impedimento de se expressar e ser quem se é. Muana era uma escravi-
zada alfabetizada, mas escondia de todos que sabia ler e escrever. Para ela, ter
esses conhecimentos era uma forma de se proteger: “ninguém pode jamais
descobrir que eu leio os avisos que ele [Bernardo Viana] coloca na Gazeta e
também as cartas que me manda pôr no correio. Não é bisbilhotice, como
pode alguém dizer, mas proteção” (Ibid., p.19). Para a personagem, ler os
anúncios ajudaria a achar seu amado Umpulla ou descobrir se ela ou algum
dos escravizados da casa estava sendo posto a venda.
Ser escravizado representa ser visto como um objeto, como uma mercado-
ria. O ser humano é esvaziado de subjetividade. Para Mbembe (2018, p.27),
128
ser escravo significa uma tripla perda: “perda de um ‘lar’, perda de direitos
sobre seu corpo e perda do estatuto político. Essa tripla perda equivale a
uma dominação absoluta, uma alienação de nascença e uma morte social
(que é expulsão fora da humanidade)”. Dessa forma, ao escolher a voz de
uma mulher escravizada para contar a sua história, Eliana Alves Cruz pro-
porciona ao leitor acompanhar toda uma trajetória de uma mulher que luta
para que sua humanidade seja preservada.
A história de vida de Muana é apresentada a partir de seus manuscritos,
resultados de conversas com o inglês John Toole, abolicionista que pedira
para que ela contasse sua história de vida para ajudar nas campanhas aboli-
cionistas. Para a personagem, “faz-me bem falar. Estava farta de esquecer”
(CRUZ, 2018, p, 82). Relembrar, contar a sua trajetória de vida fez com que
a personagem reafirmasse sua identidade, encontrasse seus antepassados, re-
lembrando que um dia já fora livre. A medida em que contava sua história,
lembrava de mais fatos: “Engraçado como a memória falha e à medida que
vamos escrevendo ela vai surgindo, como ossos que estão soterrados em cova
rasa e são descobertos pela chuva” (Ibid, p,68).
O ato de relembrar evidencia o aspecto fragmentado, criativo e dinâmico
da construção da memória. O exercício de lembrar é um processo ativo e
necessário para que os fatos ganhem vida e não sejam silenciados. Lembrar,
dessa forma, é um ato de resistência. Segundo Erll (2005, p. 125-126)

To sum up, media of memory construct versions of a past reality. The materiality
of the medium is every bit as much involved in these constructions as is the social
dimension: The producers and recipients of a medium of memory actively perform
the work of construction – both in the decision as to which phenomena will be
ascribed the qualities of memory media, as well as in the encoding and decoding of
that which is (to be) remembered. Media and their users create and shape memory,
and they always do so in very specific cultural and historical contexts. Whether and
which versions of past events, persons, values or concepts of identity are construc-
ted through a medium of memory depends to no small extent on the conditions
prevailing within that memory culture.

No romance, há a expressão daquele que precisa reconstruir sua memória


a partir da junção de fragmentos. Ao relembrar sobre sua história de vida,
sobre seu passado e sobre quem era quando era livre há expressão da resis-
tência do escravizado, daquele que tem sua história, suas crenças, seu nome
apagado e alterado por aqueles que julgam ser “senhores”. Há uma resig-
nificação sobre quem se é, e sua trajetória passa a ganhar a importância de
129
ser registrada e lembrada. Se por um lado há o registro da História Oficial,
marcado pela narrativa eurocêntrica hegemônica, a Literatura é um espa-
ço importante de representação da história daqueles que foram silenciados,
preenchendo lacunas de narrativas que, muitas vezes, foram perdidas pelo
tempo ou apagadas.
A Literatura, portanto, pode atuar como uma possibilidade de pensar o
como seriam essas narrativas dos escravizados, assumindo um papel impor-
tante na mudança de perspectiva na construção da memória. Segundo Erll
(2011, p.155): “Literary works can also change perceptions of reality and in
the end – through the readers actions, which can be influenced by literary
models – also cultural practice and thereby reality itself”. A autora defen-
de que o deslocamento do protagonismo na representação literária de fatos
históricos e de personagens subalternizados pela narrativa hegemônica pro-
vocam nos leitores uma mudança de perspectiva, o que contribuiu para que
o grupo social oprimido historicamente seja olhado de outra forma: mais
igualitária e menos opressiva.
Pensar a construção da história a partir da voz do subalternizado é uma
forma de entender que o passado não é uma constante linear e universal,
mas que é composto por muitas vozes que atuam de forma divergente a par-
tir de relações de poder. Não é possível se pensar a escravidão do Brasil, por
exemplo, a partir de apenas uma linha de raciocínio e uma cronologia. Para
Santos (2010, p.39): “a negação de uma parte da humanidade é sacrificial, na
medida em que constitui a condição para outra parte da humanidade se afir-
mar como universal”. Entender a voz do outro, aprender a partir do passado
do outro é necessário para a concepção mais ampla do passado.
O apagamento da narrativa do “outro” é uma forma de violência para fir-
mar relações de poder. Há um desprezo pelo conhecimento do outro, como
descreve a narradora Muana em uma passagem do romance:

Não nos acreditam e por isso nos fazem sofrer e sofrem também. Muitos povos
sabem que desde que o mundo é mundo como combater muitos males, mas vocês
pensam que apenas vocês sabem das coisas, que apenas vocês são donos da ciência e
só pensam em ganhar muito dinheiro, nem que para isso precisem matar e morrer
(CRUZ, 2018, p.136).

Deslegitimar a voz do outro é um dos mecanismos que justificam o proces-


so da escravidão. Ao encarar o “outro” como um ser inferior, sem humanidade
130
há base para aniquilar sua existência, como se o processo de desumanização
de um determinado povo fosse aceita e, até mesmo, desejável. Assim, a partir
dessa justificativa, a escravidão foi aceitável e mais de 36 mil navios negreiros
aportaram em terras brasileiras trazendo africanos escravizados.
O romance apresenta uma escravizada de Moçambique, evidenciando o
aspecto múltiplo dos diversos povos africanos que aportaram no Brasil. Não
há uma homogenização do que seja África, mas apresenta a riqueza cultural
do continente. Muana é da região do monte Namuli, e para o seu povo “(…)
todos nós descendemos de uma Grande Mãe que habita as montanhas do
Namuli. Uma Deusa! O nome dela -, da Grande Mãe Macua -, é ‘Nipele’”
(CRUZ, 2018, p.46). Assim como apresenta outras identidades culturais:
“Rebollos, Casanges, Monjollos, Benguelas, Fulas, Iorubas ou patrícios de
Moçambique” (Ibid, p.16).
Também há o relato dos traços da religião islâmica tanto em Moçambi-
que como no Brasil, apresentando essa identidade religiosa. Após a fuga de
sua família de Namuli para Quelimane, o pai de Muana se converte ao islã
e obriga toda a família a seguir a religião. Dessa forma, a autora apresenta
a diversidade de cultos e identidades culturais de África, destacando que a
tentativa de tornar o continente como uma grande massa homogênea de
povos não civilizados é mais uma falácia eurocêntrica.
A imposição religiosa por parte dos Europeus também era uma expres-
são da violência do dominador sobre o dominado. Em passagem do livro
que ilustra a opressão pela imposição da religião é narrada pela personagem
Muana, que descreve como foi a sua recepção e de Umpulla um mosteiro
católico, onde ambos buscavam abrigo após a mãe de Muana ter sido conde-
nada a morte por ter sido considerada feiticeira:

Trabalharíamos naquele mosteiro em troca de abrigo. (…) Uma vez nesse novo lugar,
nos demos conta de que não seríamos hóspedes e sim escravos que deveria conhecer
o verdadeiro Deus… mais um. O trabalho era bem duro e mesclado com orações
intermináveis. Nossa alma pagã precisava ser domada (CRUZ, 2018, p.119-20).

Em diversos momentos da narrativa são apresentadas referências à morte,


em como há dor por não se poder realizar os rituais sagrados para a sepultura
dos mortos. Para Muana a morte não existe, “Apenas vamos viver em outro
lugar, junto aos ancestrais, mas para isso precisamos de sepultura digna ou
continuaremos vagando aqui, onde não é mais a nossa morada, assombran-
131
do os vivos e o mundo” (Ibid, p.138). Mais do que uma captura em vida,
para os escravizados a tormenta do cativeiro não terminava nem com a mor-
te, uma vez que, por não serem enterrados em solo sagrado e por não terem
sido realizados seus ritos de passagem, estão fadados a vagar eternamente.
Romper com o sistema de crenças de um povo ao impor outro comple-
tamente diferente, descaracterizando seus ritos e tradições é, conforme já
mencionado, uma expressão de violência. Sobre a ação de dominação de um
povo em relação aos demais, Mbembe (2018, p.38) afirma que: “a ‘ocupação
colonial’ em si era uma questão de apreensão, demarcação e afirmação do
controle físico e geográfico – inscrever sobre o terreno um novo conjunto
de relações sociais e espaciais”. Ações para dominação e reconfiguração do
espaço geográfico e de suas populações. Apagamentos daquilo que não era
interessante para o dominador para a inscrição, por meio da força, de algo
mais “relevante”.

Esses imaginários deram sentido à instituição de direitos diferentes, para diferentes


categorias de pessoas, para fins diferentes no interior de um mesmo espaço; em resu-
mo, o exercício da soberania. O espaço era, portanto, a matéria-prima da soberania
e da violência que ela carregava consigo. Soberania significa ocupação, e ocupação
significa relegar o colonizado a uma terceira zona, entre o estatuto de sujeito e ob-
jeto (Ibid, p.39).

No romance, Muana descreve a presença dos brancos (akuya) como o fim


da liberdade e em como a população era vista como mercadoria:

Meu pai sabia que os Macuas-Lómuès estavam exprimidos e acuados. Hoje eu sei que
todos estavam caçando. Caravanas e mais caravanas de homens akuya (brancos), e
também vários macuas do litoral entravam cada vez mais a fundo no território atrás
de gente, que também era um tesouro tão ou mais valioso quanto os enormes dentes
de elefantes, o cobre ou o ouro. E nós, os agricultores do interior, os filhos das monta-
nhas, éramos as presas mais apetitosas e lucrativas. Roubava nossa gente, nossa força,
nosso sangue… Eram morcegos sugadores (CRUZ, 2018, p.50-1).

A dominação tinha como objetivo o apagamento dos traços identitários


para a configuração de corpos para o trabalho. Corpos negros eram violen-
tados, entretanto, os corpos das mulheres negras sofriam uma dupla forma
de violência: por serem consideradas propriedades, mas também pelo fato de
serem mulheres. Ao longo da História do Brasil, a mulher negra assumiu uma
imagem de hipersexualização, como escreve Gilberto Freyre (2005, p.515) em
132
Casa Grande & Senzala: “O clima, não, mas a presença de negras e mulatas
pareceu-lhe uma excitação ao pecado, difícil de resistir-se no Brasil”. A natura-
lização da exploração de mulheres negras é recorrente nas narrativas.
Sobre a forma de tratamento que as escravas recebiam, Angela Davis
(2016, p.19) afirma que:

(...) as mulheres também sofriam de forma diferente, porque eram vítimas de abuso
sexual e outros maus-tratos bárbaros que só poderiam ser infligidos a elas. A postura
dos senhores em relação às escravas era regida pela conveniência: quando era lucra-
tivo explorá-las como se fossem homens, eram vistas como desprovidas de gênero;
mas, quando podiam ser exploradas, punidas e reprimidas de modos cabíveis apenas
às mulheres, elas eram reduzidas exclusivamente à sua condição de fêmeas.

Nos corpos das mulheres escravizadas havia outra forma de posse e vio-
lência: o estupro. Angela Davis (Ibid, p.20) também afirma que “O estupro,
na verdade, era uma expressão ostensiva do domínio econômico do proprie-
tário e do controle do feitor sobre as mulheres negras na condição de traba-
lhadoras”. Além dos castigos que afligiam ambos os sexos, a violência sexual
assume, assim, outra marca de dominação. No romance, há uma passagem
em que descreve o primeiro estupro sofrido pela personagem Roza, uma das
escravizadas que tinham Bernardo Viana como senhor:

(….) até o dia em que sangrou pela primeira vez, aos 10 anos e o senhor Bernardo
espichou o olho para ela. Uma tarde dona Ignácia saiu em uma visita a uma irmã e o
senhor pegou a menina à força. Ela me olhava em desespero enquanto era arrastada
pelas escadas (CRUZ, 2018, p.63)

Ao longo da narrativa são evidenciados os constantes estupros sofridos


pela personagem e como o corpo da mulher escravizada era visto como
mero objeto, sem autonomia. Ao mesmo tempo, é apresentada a força da
resistência, em como a personagem se apropria do seu espaço na cozinha
para desenvolver sua liberdade, seja ao expressar seu talento ao cozinhar, seja
ao inserir substâncias na comida que contribuíam para que ela conseguisse
o que queria: sejam soníferos, sejam venenos. Ao manipular os alimentos,
Roza demonstra que não é um mero objeto sexual para o “senhor”, mas um
ser dotado de sentimentos, força criativa e vontades.
Com as narrativas de Muana é possível acompanhar a representação da
voz daqueles que foram escravizados. Já com a leitura das partes narradas
pelo personagem Nuno é possível perceber o despertar daquele que ao en-
133
trar em contato com a realidade da escravidão se sensibiliza e muda a forma
de pensar, como expressa na passagem:

Nunca experimentei não possuir a mim mesmo. Eu, egocêntrico Nuno Alcântara
Moutinho, sabia o que eram os olhares tortos, os risos às costas, as ofensas atiradas
em rosto e oportunidades perdidas, mas não fazia ideia do que poderia ser ter que
dar as costas a outro alguém incluso para ir até o urinol aliviar-se. Não me passava
pela cabeça o que deveria ser ter que sair todos os dias, com chuva, sol, tempestade
ou lama; doente, são, com dores ou não; alegre, triste ou profundamente desencan-
tado do mundo para vender e ter que entregar quase a totalidade dos meus ganhos
a outrem que não saiu da cadeira de balanço de sua sala. Também não saberia dizer
o que é se ‘dado de presente’, como Tereza o fora por ocasião do casamento de sua
senhora (Ibid, p.183).

Nuno, ao dialogar e conviver com escravizados, assim como desenvolver uma


relação afetiva com Tereza, uma escravizada que juntava dinheiro como “escrava
de ganho” para comprar sua alforria, percebe a realidade que estas pessoas viven-
ciavam, sente o que é ser tratado como mercadoria e não ter liberdade.
O racismo é outro elemento que passa a ser percebido por Nuno, que fica
evidente quando ele revela ouvir constantemente pelas ruas do Rio de Janei-
ro: “Es quase branco, és livre e belo. Casa-se com uma boa senhorinha bran-
ca e limparás teu sangue! Branquearás tua descendência! Crie juízo!” (Ibid,
p.171). Em um primeiro momento, o personagem não percebe problema
nessa afirmativa, mas com o desenvolver da narrativa e com a expressão seu
amadurecimento, ele começa a entender a opressão por trás dessas palavras.
Ao final da narrativa, há reflexões de Nuno sobre a escravidão, sobre a
chegada de milhares de homens, mulheres e as várias crianças que aporta-
ram no Brasil arrancadas de suas terras. Dentre as conclusões que apresenta,
há a constatação de que a escravidão é o verdadeiro crime: “Este sim foi o
verdadeiro crime do cais do Valongo. Levarão algumas eras para que seja
pago” (Ibid, p.195). Ao final do livro, há um diálogo com o leitor, no qual o
narrador transmite a missão: “Já é tarde para mim. Deixo para vocês a tarefa
de não esquecer” (Ibid, p.196).
Pensar sobre a história da escravidão no Brasil é pensar num passado que
permanece, que ainda encontra reflexos, como afirma Alberto da Costa e
Silva no Prefácio do Dicionário da Escravidão e Liberdade:
Não se estuda o escravismo sem emoção e sem um sentimento de vergonha e remor-
so. Embora a escravidão seja quase tão antiga quanto o homem na história e esteja
134
presente no desenrolar de quase todas as culturas, é com extrema dificuldade que
conseguimos estudá-la como algo que ficou no passado e lhe pertence completa-
mente” (COSTA E SILVA, 2018, p.14)

Contar uma história pouco contada, mas sobretudo, apresentar a pers-


pectiva, mesmo que ficcional, para aqueles que sempre foram silenciados
é importante faceta do romance O Crime do Cais do Valongo. Mais do que
apresentar uma obra de ficção, o romance instiga para que os vestígios do
passado do Brasil possam ser refletidos. Ao conferir protagonismo na recons-
trução da narrativa histórica brasileira, Eliana Alves Cruz abre um caminho
para que se possa pensar sobre o passado de opressão, entender as estruturas
que permanecem no presente, mas que seja possível resistir e construir um
futuro mais livre de opressões e silenciamos, no qual todos possam ser livres
para serem protagonistas das próprias histórias.

Referência Bibliográfica
COSTA E SILVA, Alberto. Prefácio: Escravidão e Liberdade. In: SCHWAECZ, Lilia M.; GO-
MES, Flávio (Orgs). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia
das Letras. p.13-19

CRUZ, Eliana Alves. O crime do Cais do Valongo. Rio de Janeiro: Malê, 2018.

______. Romance histórico-policial. 2018. (26m03s). Disponível em: <https://www.youtube.


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FREYRE, Gilberto. Casa-grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da
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MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Trad.
Renata Santini. São Paulo: n-1 edições, 2018.

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vas: Estados Unidos e Brasil. Rio de Janeiro: Caetés, 2004.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma
ecologia de saberes. In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENEZES, Maria Paula (Orgs). Episte-
mologias do sul. São Paulo: Cortez, 2010. p.32-83
135
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Valongo. In: SCHWAECZ, Lilia M.; GOMES, Flávio
(Orgs). Dicionário da escravidão e liberdade: 50 textos críticos. São Paulo: Companhia das Letras.
p.419-425.
136
OS EMBATES POLÍTICOS E LITERÁRIOS EM TORNO DA PUBLI-
CAÇÃO DE LIVRO DE UMA SOGRA, DE ALUÍSIO AZEVEDO NA
IMPRENSA OITOCENTISTA: ECOS DA DUALIDADE CONFLITANTE
ENTRE “ESCRITOR CONSAGRADO” E “ESCRITOR PERIGOSO”

Marina Pozes Pereira Santos37


UERJ

Resumo: No presente ensaio, pretende-se fazer uma análise dos embates


políticos e literários em torno da publicação do romance Livro de uma so-
gra (1895), de Aluísio Azevedo (1857-1913), entendendo-os como ecos de
uma dualidade conflitante entre “escritor consagrado” e “escritor perigoso”.
Leituras que corporificaram as formas contraditórias com que a imprensa
fluminense recebeu as configurações narrativas antipatriarcais presentes no
romance, como a autonomia feminina, o sexo livre e fora do casamento e o
divórcio. Causas que colocavam em crise a autoridade patriarcal, para quem
a mulher figurava como submissa e inferior ao homem, educada para o casa-
mento e para a maternidade.

Palavras-chave: Naturalismo. Historiografia tradicional. Sexualidade.


Divórcio. Emancipação feminina.

No presente ensaio, pretende-se fazer uma análise dos embates políticos


e literários em torno da publicação do romance Livro de uma sogra (1895),
de Aluísio Azevedo (1857-1913). Entendem-se como embates políticos e li-
terários as diferentes leituras, por vezes contraditórias, do romance no seu
primeiro momento de circulação, considerando-as como ecos de uma duali-
dade conflitante entre “escritor consagrado” e “escritor perigoso” associada
ao autor maranhense. Dessa forma, essas leituras corporificaram as formas
contraditórias com que a imprensa fluminense recebeu as configurações
narrativas antipatriarcais presentes no Livro de uma sogra.
Essa proposta leva em consideração a hipótese de que o naturalismo no
Brasil, no seu primeiro momento de circulação, nas décadas de 1880 e 1890,
abraçou as causas antipatriarcais em pauta no contexto político-social do pe-
ríodo, caracterizado pela transição da Monarquia para a República, como a
37
Doutoranda em Literatura Comparada (UERJ). Contato: mar_pozes@yahoo.com.br
137
autonomia feminina, o sexo livre e fora do casamento, o aborto e o divórcio.
Causas que colocavam em crise a autoridade patriarcal, para quem a mulher
figurava como submissa e inferior ao homem, educada para o casamento e
para a maternidade, sob a óptica da moral cristã que via a atividade sexual
apenas como meio para a procriação.
Contrapondo-se a esta visão patriarcal, apoiada pelos princípios morais
da época e compartilhada pela historiografia tradicional como uma agenda
apoiada pelo romance naturalista, consideram-se como configurações nar-
rativas antipatriarcais as ações, as atitudes e os pensamentos das personagens
femininas nos romances naturalistas que se opuseram às convenções da so-
ciedade patriarcal, tais como submissão aos pais e aos maridos, sexo somen-
te no âmbito do casamento e a realização plena da maternidade. Contudo,
estas ações e atitudes das personagens femininas foram recebidas de formas
contraditórias na imprensa da época, dividindo opiniões entre grupos di-
versos que tanto apoiavam os impulsos de autonomia das protagonistas dos
romances como se opuseram a essas configurações, vendo nelas perigos e
ameaças aos bons costumes do período.
No ano de 1895, Aluísio Azevedo publicou no Rio de Janeiro o seu últi-
mo romance Livro de uma sogra, pela livraria Moderna, do editor Domingos
Magalhães, uma obra que escandalizou a imprensa e a sociedade do início
da Belle Époque com a audácia de suas propostas sobre o problema do amor
no casamento, rendendo-lhe críticas e acusações de imoralidades. Nele, d.
Olímpia, a sogra do romance, após longos anos de fastio conjugal, que re-
sultaram na dissolução de seu próprio casamento, concebe uma inusitada
filosofia acerca do matrimônio e a registra sob a forma de um manuscrito
(Cf. AZEVEDO, 2001). Uma espécie de tratado filosófico que serviu como
base para a sua tarefa de evitar à filha Palmira os infortúnios da vida conjugal,
assegurando-lhe a felicidade que ela própria não conhecera nos longos anos
de matrimônio.
Para isto, Olímpia desenvolve uma teoria a respeito da vitalidade do de-
sejo sexual, de modo a preservar a sexualidade dentro do casamento, eixo
que conduz a uma análise implacável do matrimônio monogâmico e in-
dissolúvel. Ao tomar esta atitude, Olímpia se opõe aos discursos médicos
e religiosos do período que, segundo Mary Del Priore (2016), restringia o
prazer sexual às cortesãs, mulheres perdidas, responsáveis pelo sexo criativo e
prazeroso, oposto àquele comedido que se fazia em casa, votado à procriação
138
(DEL PRIORE, 2016). Assim, nas palavras da pesquisadora, “prazer e casa-
mento não podiam conviver nesse universo de convenções e repressões que
se chamava a boa sociedade” (DEL PRIORE, 2016, p. 276).
Neste contexto, a vida sexual da mulher se tornava um verdadeiro sacrifício,
uma vez que o homem pouco se importava com o prazer sexual feminino,
usando a posição mais recomendada para a procriação e restringindo a brevi-
dade das relações sexuais às teorias de economia do sêmen masculino. Logo,
a tradição religiosa e os discursos médicos acentuavam a divisão de papéis: o
marido tinha necessidades sexuais e a mulher se submetia ao papel de repro-
dutora (Cf. DEL PRIORE, 2016). O romance em nenhum momento nega
o instinto maternal da mulher. Contudo, por outro lado, defende o prazer
sexual feminino no casamento, valorizado desde à sua iniciação na lua de mel,
vista como um momento de prova para a mulher. Portanto, uma prática sexu-
al contrária aquela imposta pela medicina que procurava evitar excessos sob o
risco de as mulheres sofrerem acusações de “histérica” ou de “ninfomaníaca”.
A partir disso, Olímpia se viu diante do desafio de preservar a monogamia
e manter “acesa a chama da paixão” e do amor carnal entre os cônjuges, sem
se descuidar das leis da moral e da sociedade. Neste ponto, entrou em ação o
seu plano de recriar o dia a dia do casamento, cuja teoria se fundamentava na
extinção da convivência contínua dos cônjuges e da ideia de posse definitiva.
Para a sogra, o entusiasmo sexual não resiste à convivência constante, a ideia
de posse permanente dos parceiros diminui ou acaba com o desejo e as sepa-
rações temporárias ajudam a reavivar a relação. Deste modo, ela sustenta que
o amor carnal só sobrevive à falta física do parceiro, se dispondo a perturbar
a frequência dos encontros íntimos de Palmira e Leandro, desde o namoro,
a lua de mel até a vida de casados.
Assim, propõe-se para a filha Palmira um manuscrito do casamento, que
disserta sobre os males e as vicissitudes da vida conjugal. Nele, coloca-se em
questão temas referentes à autonomia feminina, como o direito à escolha do
marido, o prazer sexual e a felicidade conjugal, além da possibilidade de di-
vórcio quando a relação já não satisfizesse as suas necessidades. No entanto,
essas propostas dividiram opiniões na imprensa da época entre os críticos e
os homens de letras que apoiavam a audácia de suas propostas e os que as
rejeitavam de forma veemente. Essas opiniões podem ser encontradas em
diferentes periódicos da época e demonstram os diversos modos de apro-
priações do romance no seu primeiro momento de circulação.
139
Por meio dos pressupostos teóricos da história do livro e da leitura do his-
toriador francês Roger Chartier (1990), pretende-se analisar esses diferentes
discursos sobre a obra de Aluísio que constituíram as práticas culturais dos
homens de letras e do público na imprensa fluminense. Assim, através da re-
constituição das experiências literárias registradas em diversos artigos, notas
e resenhas de fontes primárias, almeja-se compreender as convenções que de-
limitaram os seus processos de apropriação e de disseminação da sua leitura,
uma vez que, conforme a história do livro e da leitura, os textos literários não
existem sem o regime de interdependência das relações sociais (CF. CHAR-
TIER, 1990). Portanto, seguir-se-á as noções de apropriação do historiador
francês, entendendo que a identificação e a diferenciação entre as leituras do
público e da crítica literária apontam que as recepções não são universais e
que devem ser consideradas as especificidades dos diferentes leitores.
De forma, adotando o método de Chartier, identificar-se-á as antigas lei-
turas da obra de Azevedo a partir dos seus esparsos vestígios nos periódicos
fluminenses O Paiz, Gazeta de Notícias, A Cigarra, A Notícia e a Revista
Brazileira: jornal de sciencias, lettras e artes publicados na década de 1890,
reportando-os à pluralidade das competências, das expectativas e das dispo-
sições dos seus leitores e considerando que “as práticas contrastantes devem
ser entendidas como concorrências, que as suas diferenças são organizadas
pelas estratégias de distinção ou de imitação e que os empregos diversos dos
mesmos bens culturais se enraízam nas disposições do habitus de cada gru-
po” (CHARTIER, 1990, p. 137). Em outras palavras, há uma tensão central
nas práticas de leituras que leva ao fato de uma obra se entendida, apreciada
e utilizada de modos tão diversos desde sua primeira publicação, rompen-
do-se “com a antiga ideia que dotava os textos e as obras de um sentido in-
trínseco, absoluto e único – o qual a crítica tinha obrigação de identificar”
(CHARTIER, 1990: 27), dirigindo-se para as práticas que, pluralmente,
contraditoriamente, dão significado à leitura.
Dessa forma, identificam-se dois modos de leitura do romance no seu pri-
meiro momento de circulação: os opositores às propostas de Olímpia e os
apoiadores das suas ideais. No primeiro grupo, encontram-se os críticos José
Veríssimo (1857-1916), Garcia Redondo (1854-1916) e Machado de Assis
(1839-1908). Para eles, as propostas de Olímpia eram irrealizáveis e cheias de
perigosos na prática. Na visão deste grupo, Aluísio Azevedo era considerado
um escritor perigoso por romper com a visão tradicional do naturalismo
140
que deveria ensinar as mulheres a casarem e a procriarem, em consonância
com o discurso científico e médico sobre o feminino no final dos oitocentos
(Cf. SANTANA, 2007). Logo, dava-se ênfase a crença de que a literatura te-
ria o poder de “educar” e “criar hábitos”, influenciando no comportamento
dos indivíduos, sobretudo no das mulheres.
Crítico da primeira edição do romance na Revista Brasileira, Veríssimo
destacou, no seu artigo A questão do casamento, as estratégias irrealizáveis da
proposta de Olímpia. Na sua opinião, o problema do amor no casamento
não é resolvido na obra, visto que, nos moldes da sogra, o casamento seria
uma instituição reservada aos ricos que pudessem viajar para a Europa ou
aos Estados Unidos, como Leandro, e assim manterem-se eventualmente
distantes de seus cônjuges (Cf. Veríssimo, 121, p. 1895). Ele ainda ironica-
mente supôs que, na ausência de uma sogra rica, a sociedade deveria criar
repartições competentes para separar os casais de tempos em tempos em
nome do amor e da felicidade dos pares. Portanto, uma clara demonstração
de repulsa à viabilidade da proposta de Olímpia.
Já para Machado de Assis, como numa das críticas que publica semanalmente
na coluna A Semana da Gazeta de Notícias, as propostas do plano conjugal do
romance também traziam em si os riscos de um adultério transatlântico, uma
vez que “D. Olympia, querendo evitar que a filha perdesse o marido pelo cos-
tume do matrimonio, arrisca-se a fazer-lh’o perder pela intervenção de um amor
novo e transatlantico” (ASSIS, 1895, p. 1). Posição também compartilhada com
o crítico Garcia Redondo numa das séries de resenhas que escrevia semanalmen-
te para O Paiz sobre os livros novos publicados na capital do Rio de Janeiro.
Nesta resenha do dia 7 de outubro de 1895, Redondo falou mais espe-
cificamente sobre os romances Livro de uma sogra, de Aluísio Azevedo, e
Miragem, de Coelho Netto, comprometendo-se a abordar o Rei Fantasma,
de Coelho Netto, na semana seguinte. Para ele, o romance de Azevedo tinha
um estilo de uma obra de arte, devido às páginas de elegantes verdades e à
observação conscienciosa e exata de alguns aspectos da vida humana. Toda-
via, o crítico discordava da doutrina da obra por julgá-la falsa, cujas teorias
enganadoras e aparentemente verdadeiras arrastavam e seduziam o leitor.
Reconhecia a sogra infeliz e ciosa da felicidade da filha como um tipo origi-
nal e extraordinário, mesmo que fosse um dos piores. Ela era apontada como
uma personagem imprevidente, feroz e imprudente, até mesmo comparada
como o Cérbero, ser da mitologia grega que guardava às entradas do inferno.
141
Ao recorrer a esta personagem paradigmática, na perspectiva de Redon-
do, “Aluizio pretendia dar solução ao problema da eterna felicidade dos côn-
juges por meio de uma série de combinações estratégicas irrealizáveis e cheias
de perigo na prática” (REDONDO, 1895, p. 1). Tal solução visava a evitar
a filha Palmira os desgostos inevitáveis do casamento por meio de um plano
que “consiste em ter a filha separada do marido, que faz longas viagens todas
vezes que a mulher concebe e isto para aguçar nos dois o desejo de se ajun-
tarem, dando-lhes a ilusão de um eterno noivado” (REDONDO, 1895, p.
1). Ao seu ver, a falsidade dessa solução e a instabilidade do seu plano foram
apontadas com grande precisão por Machado de Assis na crônica da Gazeta
de Notícias, citada acima. Como se observa nesta crônica, Machado advertia
sobre o risco de Palmira perde o marido não pelo costume do casamento,
mas pela intervenção de um amor novo e transatlântico. Já Garcia Redondo
vai além desta suposição, ressaltando os riscos de um duplo adultério:

Como se percebe, a nota de Redondo reforça o risco de uma traição con-


jugal, agora não mais só pelo marido que viajaria para exterior e que poderia
se envolver em um amor novo e transatlântico. A esposa, aqui sozinha por
conta da viagem do marido, também estaria suscetível aos encantos de um
novo enlace amoroso. Dessa forma, o plano idealizado por Olímpia, aqui
comparada com o Cérbero , o monstruoso cão guardião do reino dos mor-
tos na mitologia grega, conhecido como o cão de Hades, tem tudo para dar
errado. Assim como Cérbero nas portas do inferno aguardando a entrada
dos mortos, Olímpia estaria à entrada do matrimônio esperando as vítimas
do seu plano infernal, segundo a nota. Já Machado de Assis e Garcia Redon-
do, ao desvendarem os males do plano, se igualariam a Hércules e a Orfeu,
142
seres da mitologia que dominaram e subjugaram Cérbero38. O primeiro, em
um dos seus doze trabalhos; o segundo, adormecendo-o ao som da sua lira,
na busca por Eurídice no reino dos mortos.
Mais adiante, ainda na mesma resenha, Garcia Redondo apontava os pe-
rigos da leitura do Livro de uma sogra para a imaginação de um adolescente
e de uma adolescente: “Eu não darei a ler este livro a minha filha, porque
vejo nelle perigos para a imaginação de um adolescente, e ainda mais para
a de uma adolescente” (REDONDO, 1895, p. 1). Portanto, uma censura
à leitura do romance pelas mulheres, sugerindo que o livro foi visto como
uma obra imoral no seu período de publicação. Um julgamento que retoma
a faceta de Aluísio Azevedo como “escritor perigoso”.
Este caráter de imoralidade também incluía a sua leitura por mulheres
casadas, como se verifica na seguinte nota:

Nesta nota, observa-se uma explícita censura à leitura do romance, pois,


ao perguntar sobre a leitura da obra ao marido, que exigia a leitura somente
de livros morais, a mulher obteve a resposta de que só poderia lê-lo com “os
olhos fechados”. Em outras palavras, ela não deveria ler. A partir disso, a
nota se constitui mais uma evidência de que a obra foi vista como uma leitu-
ra imoral e censurada às mulheres.
As interdições de leituras às mulheres eram comuns no período, como
ressalta Alessandra El Far (2004) com a categoria “romances para homens”,
criada pelos editores para vender obras pornografias vetadas ao público fe-
minino (Cf. EL FAR, 2004). Uma proibição que não se baseava nos códi-
gos da lei e sim nos pressupostos morais vigentes, em função dos possíveis
efeitos perniciosos sobre o caráter das senhoras de boa família. Contudo, a
38
De acordo com o verbete do Dicionário da mitologia grega e romana, de Pierre Grimal (1997), “Cérbero é o <cão do Hades>, um dos mons-
tros que guardavam o reino dos Mortos: impedia que os vivos lá entrassem e, sobretudo, que alguém de lá saísse. A imagem mais corrente
que dele se dava era a seguinte: três cabeças de cão, cauda formada por uma serpente e, no dorso, uma multidão de cabeças de serpente levan-
tadas. Também se afirma que tinha cinquenta ou, até cem cabeças. Estava acorrentado diante da porta do Inferno e aterrorizava as almas no
momento em que lá entravam. Um dos trabalhos impostos por Euristeu a Herácles foi mandá-lo aos Infernos buscar Cérbero, para o trazer
para cima da Terra. (...) Herácles lutou com ele só a força dos seus braços, quase o sufocou e dominou-o. Depois, levou-o a Euristeu, que teve
tanto medo que lhe ordenou que o devolvesse à sua procedência. Cérbero foi, depois disso, encantado por Orfeu” (GRIMAL, 1997, p. 83).
143
rubrica não impedia a sua apropriação pelas mulheres, visto que a sua inter-
dição “nem sempre se mostrava eficaz, graças ao apurado espírito capitalista
dos livreiros e à curiosidade das mulheres, que poderiam se apoderar de tais
enredos em qualquer livraria da cidade depois de driblar os olhos vigilantes
dos pais e maridos” (EF FAR, 2004, p. 184-185).
Ainda de acordo com El Far, tais impedimentos tinham por base os su-
postos efeitos perigosos dos romances na personalidade feminina devido ao
mau exemplo das protagonistas da ficção que, muitas vezes, em atitudes ou
pensamentos, transgrediam as regras e as convenções sociais (Cf. EL FAR,
2004). Por isso, as mulheres não deveriam ter acesso a narrativas que pudes-
sem fazê-las sonhar com afetividades e emoções distantes da sua realidade.
No caso específico do Livro de uma sogra, as moças de família não poderiam
ter acesso a uma obra que as fizessem vislumbrar um modelo de casamento
diverso do proposto pelas convenções sociais.
Para o leitor atual, pode, por vezes, parecer estranha a aproximação do ro-
mance de Aluísio Azevedo com as obras pornográficas do período, igualmente
censuradas às mulheres. No entanto, no final dos oitocentos, a própria ideia de
divórcio, presente na obra, era tida como pornográfica (Cf. SANTOS, 2018).
Além disso, a mulher que pensasse e agisse de forma contrária às convenções
vigentes, como a dona Olímpia, eram vistas como prostitutas (Cf. SANTOS,
2018). Essa aproximação com a experiência de leitura das obras pornográficas
ainda relembra as circunstâncias de publicação d’ O Homem (1887), romance
anterior do autor. Como destaca Cleyciara Camello (2018), naquela época
Aluísio já fora visto como “um escritor perigoso para a sociedade”, renden-
do-lhe a acusação de ter influenciado Júlio Ribeiro (1845-1890) a escrever A
Carne (1888) – romance que escandalizou a sociedade por sua materialidade
“pornográfica” (GARCIA-CAMELLO, 2018, p. 13).
Naquele período, O Homem era considerado uma leitura perigosa por
testemunhar os sonhos eróticos da protagonista Magdá e, assim, romper
com a visão tradicional do romance naturalista como aquele que instruía
as mulheres a casarem e a procriarem, de acordo com o discurso científico e
médico do período. Uma obra que criticava o histerismo como consequên-
cia da cruel interdição do sexo à mulher, em virtude das convenções sociais
impostas pela sociedade que a impediam de viver plenamente a sua sexuali-
dade fora do casamento39.
39
De acordo com Mary Del Priore (2016), os discursos médicos do período viam as mulheres que sentiam desejo ou prazer sexual como
anormais (CF. DEL PRIORE, 2016). Tais teorias, que perseguiam as “histéricas”, as “ninfomaníacas” e os “masturbadores”, faziam com os
tratados médicos fossem vistos como pornografia, uma vez que “debruçados sobre a sexualidade alheia, examinando-a em detalhes, os médi-
cos, por sua vez, terminam por transformar seus tratados sobre a matéria, no melhor da literatura pornográfica do período (DEL PRIORE,
2016: 413).
144
Já o Livro de uma sogra teria sido apropriado como perigoso por propor, na
visão dos articulistas contrários à proposta de Olímpia, um modelo de casa-
mento econômica e socialmente inviável, além de ser suscetível à infidelidade
conjugal, aspectos contestados pelos críticos que apoiavam a obra. Portanto,
duas obras que rompiam com a manutenção do status quo no final do século e
que igualmente sugeriam uma revisão do papel da mulher na sociedade.
Já no segundo grupo, têm-se os literatos Olavo Bilac (1865-1918), Arthur
Azevedo (1855-1908) e Valentim Magalhães (1859-1903), voltados para a face
de escritor consagrado do autor, reconhecido pela qualidade literária de suas
obras. Arthur Azevedo, numa crítica publicada em O Paiz, no dia 24 de se-
tembro de 1895, destacava a existência de uma rede de apoio ao literato e sua
obra, a qual incluía a publicação de artigos de diferentes críticos na imprensa:
Caldas Vianna (1862-1931), no Jornal do Commercio; Valentim Magalhães
(1859-1903), n’ A Notícia; e Olavo Bilac (1865-1918), n’ A Cigarra. Nas pa-
lavras de Arthur, a partir destes artigos, juntamente com o ruído que se fazia
na imprensa em torno do romance, provável referência às críticas contrárias,
“posso dizer publicamente que o novo romance de Aluizio Azevedo é um
acontecimento litterario, sem receiar que atribuam o meu juízo aos laços de
sangue que me ligam ao illustre escritor” (AZEVEDO, 1895, p. 1).
Para Arthur, Aluísio, com esta obra, tornou-se um profundo analista de
almas e senhor de incomparáveis recursos da língua. Com relação à temática
do romance, o irmão garantia que a obra, provavelmente inspirada na figu-
ra da sua mãe Emília Amália, constituíra-se “um libello terrível contra os
nossos costumes conjugaes” (AZEVEDO, 1895, p. 1). Portanto, uma obra
contrária às convenções matrimonias em voga na época e que ressaltava as
contradições da relação conjugal. Neste sentido, o julgamento de Arthur
tinha por base duas motivações: a figura da própria mãe Emília Amália Pin-
to de Magalhães (1791-1851), uma mulher separada do primeiro marido e
impedida pelas leis e convenções da época de adquirir segundas nupciais, e
as lutas pela legalização do divórcio no final do século XIX (Cf. SANTOS,
2018). Por essas razões, considera-se “que o livro estava ligado aos debates
a favor do divórcio no período. Aluísio e seu grupo apoiavam a ideia (que
fracassou) e o Livro de uma sogra pode ser lido como um livro de combate”
(SANTOS, 2018, p. 3227).
Por conseguinte, conforme Valentim Magalhães asseverava na coluna Se-
mana Litteraria, publicada n’ A Notícia, no dia 23 de setembro de 1895, o
145
romance destacava que o casamento, segundo as convenções do momento, cor-
respondia ao próprio “túmulo do amor”, cujas causas estariam no fato de que:

o amor pouco tempo sobrevive à posse no estado matrimonial, porque este, facili-
tando-o completamente, traz a saciedade, e estabelecendo uma comunhão absoluta
de hábitos, gostos, necessidades, fraquezas, defeitos, pela convivência quotidiana,
tira completamente ao amor a idealidade e o encanto que lhe são essenciais (MA-
GALHÃES, 1895, p. 1) .

A partir disso, tinha-se por objetivo impedir que “as galés do matrimônio,
como dizia Balzac, matassem o amor” (MAGALHÃES, 1895, p. 1). Para
isso, entrou em ação a personagem paradigmática da sogra que, “tendo casa-
do por amor, não fora feliz no casamento, resolve evitar igual desgraça para a
sua filha” (MAGALHÃES, 1895, p. 1), pondo em ação um plano que “con-
sistia em impedir a coabitação completa da filha e do genro, sobretudo em
certas épocas e durante os períodos gestatórios, para conservar entre eles o
conjunto de encantos e ilusões que constituíam o amor” (MAGALHÃES,
1895, p. 1).
Como se percebe, Valentim Magalhães, membro do grupo de Aluísio,
intelectual empenhado na valorização dos méritos literários das obras do
maranhense, compartilhava dos mesmos ideais de Olímpia ao justificar o
seu plano de separações momentâneas dos cônjuges. Uma medida que vi-
sava a dificultar o desgaste do amor no casamento, uma vez que a posse, a
saciedade e a convivência cotidiana tiravam-lhe por completo a idealidade e
o encanto essenciais.
Em seguida, Valentim também falou sobre a impraticabilidade dos planos
de Olímpia, como ressaltou Veríssimo na sua crítica, o que, contudo, não
tirava a validade das suas ideias:

Não quero contestar a eficácia do sistema; unicamente obtempero a sua impratica-


bilidade. No caso e nas circunstâncias supostas pelo romancista, ele não é imprati-
cável; mas isso é uma exceção. Quando não se tem sogra rica e astutamente filósofa,
como se há de ter duas casas – uma para o marido e outra para a mulher – e fazer
viagens à Europa e aos Estados Unidos, quando a cara metade acusa os primeiros
sintomas da gravidez, para não a ver inchar como um balão? Note-se que eu aceito
e aplaudo quase todas as ideias e conceitos deste livro. Ele revela uma observação e
uma intuição da verdade realmente espantosas. Apenas entendendo que o autor
resolveu o problema porque o caso do seu romance é muito especial, muito fora do
comum (MAGALHÃES, 1895, p. 1).
146
Na linha da validade das questões do problema do amor no casamento
levadas pelo romance, aqui ressaltadas pelo crítico, Valentim convidou Alu-
ísio para um encontro particular, onde eles pudessem discutir livremente
sobre a obra. Um romance inconveniente e impróprio para a discussão em
público devido às convenções e aos preconceitos da sociedade da época.

O diabo do assumpto é demasiado escabroso para se discutir em publico, não por-


que seja immoral, mas porque vivemos no meio de um formigueiro de convenções
e preconceitos, de uma vida feita de mentira e hypocrisia, em que se tem o direito
de pensar o que se quizer, com a condição de só dizer o que a sociedade julga con-
veniente. Por isso, meu caro Aluisio, convido-te a jantar commigo em certo restau-
rante da rua Direita, onde sei fazer-me servir menos mal: entre a sopa e o queijo de-
bateremos livremente esta interessantissima questão (MAGALHÃES, 1895, p. 1).

Dessa forma, Valentim demonstrava a validade do romance por tratar de


um tema contrário às convenções e aos preconceitos da época, o que jus-
tificava a hipocrisia daqueles que condenavam o romance, de acordo com
a nota. Por último, ele ainda assegurou na mesma nota que a obra, a qual
poderia se intitular “O paradoxo sobre o casamento”, “amassou” as contra-
dições do enlace conjugal com muitas verdades: “Disse um critico do Livro
de uma sogra que ele poderia chamar-se “O paradoxo sobre o casamento”.
Talvez; mas com a condição de se reconhecer que esse paradoxo foi amassado
com muitas verdades.” (MAGALHÃES, 1895, p. 1). Verdades estas que tor-
naram o romance inconveniente e impróprio para a discussão em público
devido às convenções e aos preconceitos da sociedade vigente.
Na linha deste grupo, o romance ainda foi ressaltado como uma obra que
redimiria as sogras, constantemente caluniadas pelos genros, rendendo a
Aluísio Azevedo a aclamação como o redentor das sogras, uma vez que ele as
libertaria do seu estigma perverso, conforme afirma Olavo Bilac numa nota
de propaganda dias antes da publicação da obra. Nesta nota, assinada com o
pseudônimo Fantasio e publicada na revista A Cigarra, em 19 de setembro
de 1895, o literato, por meio de uma paródia aos versículos 13 e 16 do Gê-
nesis, retomou à origem do ódio às sogras. De acordo com a resenha, a má
fama das sogras se originou de Eva, a primeira mulher, devido à ingestão do
fruto proibido:

Creio que a tradição bíblica do pecado original foi alterada depois de Moisés. Um
amigo meu, versado em ciências ocultas, profundo conhecedor de todos os misté-
rios da Cabala, discípulo de Elifas Lévi e Papus, homem que confabula com o além-
147
-túmulo, e que, como Swedenborg sabe o que se passa no seio de Júpiter, afirma-me
que os versículos 13 e 16 do Gênesis estão errados. Segundo esse investigador de coi-
sas complicadas, o verdadeiro texto é este: “13. E o Senhor disse para a mulher: por
que foi que te arriscaste a ter uma filha? E ela respondeu: A serpente me enganou, e
eu comi o fruto. – 16. E o Senhor Deus disse para a mulher: Eu multiplicarei os teus
trabalhos e os teus partos. Tu em dor parirás filhos e filhas, estarás sob o poder de
teu marido, e ele te dominará. E, para que sejas castigada, teus filhos e filhas casarão,
e terás genros e noras. E serás sogra!” Esse foi o castigo da mulher. E assim se explica
o ódio que todo o mundo tem às sogras, e o pavor que elas incutem aos homens que
procuram matrimônio, e a perseguição que lhes movem os anedotistas, e o frecha-
mento de rimas venenosas com que a têm martirizado todos os poetas satíricos da
criação (BILAC, 1895, p. 1).

Contudo, o castigo das sogras não seria eterno, pois, Aluísio, o seu redentor,
as salvaria de tal condenação, visto que “não há maldição perpétua. O tempo
apaga tudo. Era justo que as sogras tivessem um redentor. Tiveram-no. [...]
Esse homem, que nasceu em São Luís do Maranhão, recebeu na pia batismal
o nome de Aluísio Azevedo” (BILAC, 1895, p. 1). Ele teve o seu destino pre-
destinado por quatro fadas. A primeira profetizou-lhe a beleza, a segunda lhe
ofertou o talento com as artes plásticas, enquanto a terceira prometeu a habili-
dade com a palavra escrita. Por fim, a última fada, a própria Eva, a primeira so-
gra, brindou-lhe com a tarefa de, como escritor, redimir as sogras caluniadas:
“E como escritor, redimirá as sogras! Para confusão dos genros, reabilitará as
sogras caluniadas, em um livro singular e piedoso, que será posto à venda na
heroica e leal cidade de S. Sebastião, na terceira semana do mês nono do ano de
mil oitocentos e noventa e cinco!” (BILAC, 1895, p. 3).
Em consequência disso, Eva, a causadora da má fama das sogras, se redimi-
ria de sua própria culpa. E o autor, clamado como o redentor das sogras, ao
final da nota, as libertaria do seu estigma perverso. Esta redenção das sogras
é ressaltada posteriormente numa nota policial sobre o espancamento de
uma sogra pelo próprio genro. Conforme o parecer policial do incidente, o
genro, preso por espancar a sogra, não teria cometido tal delito caso tivesse
lido o romance:
148
Como o parecer sugere, Olímpia teria conseguido a redenção das sogras,
visto que José Bernardo Machado não teria espancado a sua sogra se tives-
se lido o seu manuscrito. Uma nota que reforçava o valor da sua tarefa e
confirmava o reconhecimento de Aluísio Azevedo como o redentor das so-
gras, costumeiramente caluniadas pelos genros. Portanto, a nota reafirmava
o sentido da obra como redentora das sogras, como Olavo Bilac propusera
na propaganda do romance, indicando que Aluísio teria, de fato, redimido
e empoderado as sogras.
Dessa forma, o articulista igualmente se opõe à comparação de Olímpia
com o Cérbero acima. Para ele, a sogra não é um ser monstruoso e idealiza-
dor de um plano infernal. Destarte, renega-se a faceta perigosa do autor ao
mesmo tempo que se reforça a face de “escritor consagrado”, defendida na
imprensa por Arthur Azevedo, Olavo Bilac e Valentim Magalhães. Tal jul-
gamento condiz com o reconhecimento do papel de Olímpia por Palmira e
Leandro no final do romance. Apenas os articulistas contrários às ideias do
romance não reconheceram a sua contribuição para a felicidade conjugal do
casal por não compartilharem com os mesmos valores, princípios e ideias de
Aluísio e do seu grupo de amigos.
O embate destes dois grupos demonstra uma luta entre críticos e escrito-
res distintos em torno de uma disputa de concorrência dos sentidos simbóli-
cos do Livro de uma sogra, de Aluísio Azevedo. De um lado, tem-se o grupo
a favor da obra, representado pelos críticos que leram o romance como um
libelo contra os costumes conjugais da época. Já pelo outro, vê-se o grupo
contrário à obra, constituído pelos críticos que condenaram a sua leitura
como imoral e perigosa.
Uma discussão que evidencia a apropriação do Livro de uma sogra como
perigoso por propor, na visão dos articulistas contrários à proposta de Olím-
pia, um modelo de casamento econômica e socialmente inviável, além de
ser suscetível à infidelidade conjugal, aspectos contestados pelos críticos que
apoiavam a obra. Por outro lado, o romance rompe com a manutenção do
status quo no final do século e igualmente sugere uma revisão do papel da
mulher na sociedade, o que justifica o embate ferrenho entre os dois grupos
na imprensa fluminense do final dos oitocentos.
Todavia, a historiografia literária tradicional nos demonstra qual grupo
saiu vencedor dessa batalha quando consultamos os manuais da crítica lite-
rária, notadamente representados por Alfredo Bosi (1972) e Lúcia Miguel
149
Pereira (1988). Em ambos, há citações breves ao romance, as quais o classifi-
cam como romance ilegível e livro falso, cuja temática conduz a conclusão de
que o casamento leva as mulheres ao desequilíbrio (Cf. PEREIRA, 1988).
Enquanto para Bosi, descendo-se a casos fisiológicos, descreve-se episódios
de desvios melodramáticos ou distorções psicológicas grosseiras (Cf. BOSI,
1972). Isso dentro de uma abordagem que vê a mulher autônoma, dona do
seu corpo e do seu destino, como “histéricas”, “neuróticas” e “proscritas”
pela sociedade. Essa posição, portanto, indica o apagamento das leituras dos
críticos a favor da obra, as quais são essenciais para o seu entendimento no
seu momento de produção.
Destarte, analisou-se o romance Livro de uma sogra a partir do seu primeiro
momento de circulação, adotando como metodologia de pesquisa os pressu-
postos teóricos da história do livro e da leitura de Roger Chartier (1988). Jul-
ga-se, juntamente com o pesquisador francês, que para cada época e para cada
meio, as modalidades partilhadas do ler colocam no centro da sua interroga-
ção os processos pelos quais, face a um texto, é historicamente produzido um
sentido e diferenciadamente construída uma significação (Cf. CHARTIER,
1988). A partir desses procedimentos, almeja-se resgatar o romance do esque-
cimento e contribuir para a sua compreensão, a qual tem sido objeto de des-
crédito e desconhecimento pela Historiografia tradicional.
A pesquisa teve por fundamento demonstrar, por meio das fontes pri-
márias consultadas, que o Livro de uma sogra foi visto como uma obra que
escandalizou as regras e as convenções do final dos oitocentos por diversos
motivos. Primeiramente, era um romance que contestava as convenções do
casamento, dando autonomia para que a sua sogra paradigmática construís-
se um modelo de relacionamento conjugal de acordo as suas próprias expe-
riências matrimoniais. Tal posicionamento também lhe rendeu críticas de
leitura imoral e perigosa, vetada às mulheres, por trazer em si os riscos de
uma infidelidade conjugal.
Por outro lado, o romance igualmente questionava as hipocrisias e os pre-
conceitos da época, dando voz aos impulsos de autonomia e emancipação da
mulher no período e inserindo-se nos debates pela legalização do divórcio.
Portanto, uma obra extraordinária que precisa de um estudo mais profun-
dado, abrangendo as diversas possibilidades de análise, as quais vão além dos
ecos da dualidade conflitante entre “escritor perigoso” e “escritor consagra-
do”. Estudos que englobem o feminismo na obra, suas relações com a luta
150
pelo divórcio ou mesmo a comparação com outras obras do período que, do
mesmo modo, abordem tais temáticas.

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151
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pdf>. Acesso em: 20 de set. de 2018.
152
O CORPO FEMININO: DESEJO & VIOLAÇÃO NA CANTIGA
TROVADORESCA O ANEL DO MEU AMIGO (B920, V507)

Monique Pereira da Silva


UERJ - Instituto de Letras

Resumo: Nosso estudo propõe a análise de algumas entre as diversas for-


mas de violência sexual e moral efetivadas pela violação do corpo feminino,
na Idade Média, por meio de representações literárias presentes nas cantigas
trovadorescas galego-portuguesas. Para esse trabalho, analisaremos a cantiga
O anel do meu amigo (B920, V507), de Pero Gonçalves Portocarrero. A can-
tiga é construída num ambiente pastoril, onde a donzela está aflita porque
perdeu o seu anel precioso. Símbolo da união matrimonial e da fidelidade,
o objeto é o elemento propício para a dupla interpretação, o anel pode ser a
representação da virgindade da dama, como o mimetismo do ato de enfiar o
dedo num anel, subentende-se ao mesmo tempo, “o significado primitivo da
aliança” (MACEDO; RECKERT, 1996, p.100), ou a perda de sua virginda-
de, a condição de honra de extrema importância às damas e à família, para o
casamento na Idade Média. Assim, propomos um estudo que tente desvelar
a modulação do discurso de poder do homem sobre o corpo feminino.

Palavras- chave: cantiga trovadoresca; mulher e violação.

Exploraremos a forma e o modo como as representações literárias expõem


a violência sexual e a moral empreendidas na maculação do corpo da mulher,
pois, desde muito tempo, o corpo das mulheres sempre é tratado como um
território em disputa, sendo considerado sob a custódia dos homens (pai, ma-
rido, irmão e filhos), o que poderá ser notado ao decorrer de nossa investiga-
ção. Assim, buscamos contribuir para a conscientização sobre o papel e a ima-
gem da mulher na sociedade, possibilitando uma aproximação crítica entre a
Idade Média e nossos dias, rompendo com esse olhar de diferença sexual.
Como afirma Maria do Amparo Maleval, 1995, p.82: “somente no século
XII a condição feminina começa a ganhar espaço nos textos – por coinci-
153
dência, o século em que Portugal firmaria a sua independência”; outro fato
interessante é que esse fenômeno ocorre na literatura profana ou literatura
de “evasão”, mas que “mantém estreitos vínculos com a verdade factual. Daí
ser aceita, mesmo com ressalva, como fonte da Nova historiografia”, fatos
que nos auxiliam a compreender um pouco mais sobre a vida das mulheres
e os costumes nesse tempo.
Todo o exercício de ser mulher está dentro dos domínios do espaço da
casa, onde ela está submetida a seu esposo, seu pai, ou na ausência desses,
aos seus filhos homens. Por esse motivo, podemos supor que esses relatos
em forma de contradiscurso, nesse momento não conseguiram sobreviver.
Pensamos também q poucas eram alfabetizadas. Sabemos que a manipula-
ção ideológica velou e ainda faz esse trabalho de alienação na sociedade, en-
cobrindo e marginalizando muitas mulheres, mas isso nos mostra o quanto
é importante estudar e apontar com bases históricas essa alienação, para um
trabalho de transformação de pensamento em prol da solidariedade humana
e da justiça com as oprimidas.
As cantigas trovadorescas galego-portuguesas são parte da grande produ-
ção literária medieval associada aos reinos de Leão, Galiza, Portugal e Cas-
tela, datando de entre o século XII a meados do século XIV. Compostos e
divulgados por meio da oralidade, foram compilados em três grandes can-
cioneiros: o Cancioneiro da Ajuda (CA), o Cancioneiro da Vaticana (CV) e
o Cancioneiro da Biblioteca Nacional (CBN), ao lado das Cantigas de Santa
Maria de Afonso X (CSM), dessa forma, a poesia galego-portuguesa é um
marco relevante na Idade Média Europeia.
O discurso nas cantigas ora amoroso, ora satírico, acaba por evidenciar
o poder masculino sobre o corpo feminino, seja de forma mais simbólica
ou mais explícita, através de efeitos metafóricos relacionados ao erotismo, à
violação e ao escárnio. É o espaço para a arte da possibilidade, por conta das
atividades de labor de seus autores ao construí-las, com uma certa obrigação
de relacionar o seu tema com o seu contexto, para a recepção calorosa, já que
as intenções do poeta que compõe e da voz de quem recita ou canta pode
impor ao seu público múltiplos sentidos.

1.1 O anel do meu amigo (B920)


A cantiga de amigo de Portocarreiro O anel do meu amigo é expressa por
um ‘‘eu’’ feminino: trata-se de uma jovem que fala sobre sua relação com o
154
amigo ou o namorado; tem esquema estrófico e rimático de paralelismo e com
o uso de refrão. Como é típico das cantigas de amigo, evoca motivos de fundo
universal da poesia primitiva, de forças elementares da alma ou das necessida-
des humanas, ou certas situações tópicas de valor quase mágico, como os ritos
pagãos e o simbolismo dos animais e dos elementos da natureza.
Filho de Gonçalo Viegas de Portocarreiro, o Alferião – um nobre e cava-
leiro medieval do Reino de Portugal e senhor feudal, e de Sancha Perez da
Veiga, segundo consta nos livros de linhagens, com bens nos antigos parti-
dos judiciais de Penafiel, Santa Cruz, Canaveses e Paiva –, o trovador por-
tuguês desenvolveu sua atividade poética no século XIII e provavelmente
viveu no Reino de Castela; foi “mui bom cavaleiro” e morreu “sem semel”
(PIZZARRO, 1999, p. 923). Sua família participou de grandes aconteci-
mentos da corte:

Lembremos, por exemplo, o rapto da mulher de Sancho II, Mecia Lopez de Haro,
levada por Reimon Gonçalvez, tio do nosso autor, ou a obtenção da bula de deposi-
ção de Sancho II por parte de outro tio seu, Johan Viegas de Portocarreiro. Outra das
características a serem salientadas sobre a sua família é a sua grande relação não só com
a corte régia portuguesa, mas também com a castelã; assim como Pero Eanes de Por-
tocarreiro, primo de nosso trovador, aparece com Afonso III em 1251; Fernan Eanes,
irmão do anterior, aparece como notário procurador do rei Afonso X, enquanto ain-
da servia o rei português Alfonso III; Gonçal’Eanes, irmão dos dois anteriores, aparece
beneficiado no Repartimiento de Sevilha40 (BREA, 1996, p.855, Tradução nossa).

Observemos a cantiga de Pero Gonçalves Portocarreiro:

O anel do meu amigo


perdi-o sô lo verde pino
e chor’eu bela.

O anel do meu amado


perdi-o sô lo verde ramo
e chor’eu bela.

Perdi-o sô lo verde pino,


por en chor’eu, dona virgo,
e chor’eu bela.

Perdi-o sô lo verde ramo,


155
por en chor’eu, dona d’algo,
e chor’eu bela (RECKERT, 1996, p. 99).

A cantiga é construída num ambiente pastoril, como evidenciam os vocá-


bulos verde pino e verde ramo; ali, a donzela está aflita (chor’eu bela) porque
perdeu o seu anel precioso. Símbolo da união matrimonial e da fidelidade,
o objeto é o elemento propício para a dupla interpretação. O anel pode ser
a representação da virgindade da dama, resgatando o ato mimético de enfiar
o dedo num anel; ao mesmo tempo, remete ao “ significado primitivo da
aliança” (MACEDO; RECKERT, 1996, p. 100).
A mulher aparece desesperada porque não é mais virgem: a jovem está so-
zinha e num lugar propício para os encontros eróticos, evidente em perdi-o
sô lo verde pino/ (...) perdi-o sô lo verde ramo. Os símbolos pino e ramo po-
dem ser lidos como a imagem do falo do seu amado, por conta dessa escolha
vocabular e pelo motivo de adoração pelos povos antigos como um símbolo
da fecundidade da natureza.
Sabemos que, em Roma, o noivado precedia o casamento e era uma prá-
tica bastante comum. Assumindo o compromisso recíproco, os “noivos
com o consentimento dos pais” e na presença de familiares e amigos que
serviam como testemunhas, concretizavam o cerimonial com o noivo en-
tregando presentes de valor à noiva, como o anel simbólico, que podia ser
“um aro de ferro circundado de ouro ou um círculo de ouro semelhante à
nossa aliança”, que a noiva deveria colocá-lo no dedo anelar41. Então, toda
a voluntariedade recíproca e pública dos noivos fundamentava a cerimônia,
mas também estava associado à “realidade jurídica do casamento romano”
(CARCOPINO, 1990, p. 104). Todo esse cerimonial romano, com algu-
mas alterações, vai perdurar nos casamentos de hoje.
Por volta do século XI é que o casamento se torna um ato sacramental e
o papel do amor nessa união sagrada é mínimo. A monogamia é obrigatória
por lei e com o pretexto de evitar uniões consanguíneas, a Igreja estende ao
sétimo grau a interdição por incesto (até o Concílio de Latrão, em 1215).
Assim, a maioria dos casamentos aristocráticos já consumados corriam o ris-
co de condenação, por causa do parentesco próximo entre os cônjuges.
Vale ressaltar a importância dos interesses político-religiosos acerca da for-
tuna e do poder, o que gerava divergências a respeito do amor e do casamen-
to. Os valores clericais de castidade e a desconfiança com relação à mulher,

No qual hoje costumamos usar a aliança, devido ao nervo finíssimo que se encontra nesse dedo e que chega a se unir ao coração (CARCO-
41

PINO, 1990, p. 104).


156
ao sexo e ao prazer foram os transmissores que impulsionaram o estabeleci-
mento de uma “santidade social” fundada em critérios misóginos, que estão
presentes na atualidade.
Toda a cena é construída a partir da tensão sobre a perda do objeto precio-
so, que pode ser lido como a sua virgindade. Em desalento, a mulher acaba se
intitulando como dona, embora compreendamos que este título seja apenas
para as mulheres casadas, o que ela ainda não é. Consequentemente, na ter-
ceira estrofe ela chora como a dona virgo, enquanto na última estrofe, sofre
como uma dona d’algo, ou seja, uma fidalga, alguém de uma linhagem mais
abastada. A cantiga serve como exemplo da vulnerabilidade das mulheres
nos espaços públicos; assim como ela, sua virgindade é tratada como um
objeto que pode ser perdido ou roubado e que pertencerá a um amigo, ou
seja, um homem.
Talvez seja possível ler a situação da mulher na cantiga a partir de valores
presentes ainda atualmente. A personagem sofre o cerceamento de suas es-
colhas, da mesma forma como algumas pessoas ainda pensam que existem
mulheres para o casamento e outras para a realização sexual, mesmo sem o
seu consentimento. Além do mais, ainda hoje cabe à mulher ser recatada e
não oferecer-se demais ao enamorado, porque este pode cansar-se dela pela
facilidade. Lembremos do que afirmava André, o Capelão:

A mim pareceis bem importuno querendo obter com tanta pressa os favores do
amor. Pois, ainda que vossos méritos pessoais vos tornem infinitamente dignos de
todas as honras, não vos cabe exigir que vos seja concedida, de pronto, tal dádiva.
Uma mulher que tem alguma virtude não deve ceder depressa demais aos desejos
de um enamorado, pois, caso se entregue afoitamente, despertará o desprezo dele e
depreciará o amor que ele por tanto tempo desejou; ao passo que se contemporizar,
purificará os sentimentos que ele nutre por ela, se forem fingidos, e os livrará de
tudo que possa destruí-lo. A mulher deve, pois, descobrir as virtudes de seu pre-
tendente a partir de numerosas provas e assegurar-se de sua fidelidade (CAPELÃO,
2000, p. 179-180).

Sobre a fidalga da cantiga que perdeu a sua virgindade e provavelmente


foi abandonada pelo seu amado, Capelão nos ajuda a compreender os “de-
feitos” da personagem feminina, retomando toda uma tradição antifeminis-
ta, que foi desenvolvida de modo particular entre os eclesiásticos, porque
a mulher é a responsabilizada pela expulsão do Paraíso, “sendo criadora de
um Mundo sujeito ao tempo destruidor. Como o ouro (corpo da terra) que
seduz o avarento, o corpo da mulher é o meio de tentação usado pelo diabo
157
para chamar a si o homem luxurioso” (MALEVAL, 1995, p. 78), o que re-
vela toda uma culpabilização da mulher na cultura judaico-cristã, iniciadas
por Eva, no Paraíso.

As mulheres, aliás, não são apenas avaras por natureza, mas também são curiosas e
falam mal das outras mulheres; são vorazes, escravas do próprio ventre, volúveis, in-
constantes no que falam, desobedientes, rebeldes às proibições; são maculadas pelo
pecado do orgulho e cobiçam a vanglória; são mentirosas, dissolutas, tagarelas, não
respeitam segredos; são luxuriosas ao extremo, dadas a todos os vícios e não têm
afeição verdadeira pelos homens (CAPELÃO, 2000, p. 213).

Para concluir, chamamos atenção para como esse olhar sexista sobre o cor-
po feminino reproduzia o discurso dominante; podemos observar, ainda, o
quanto atualmente se mantém essa ordem de dominação, já perceptível no
contexto trovadoresco.
Ao observarmos o trato com a mulher ao longo dos tempos, podemos
tentar compreender o modo e o motivo da hostilidade contra a liberdade
feminina, que quer na Idade Média, quer em nossos dias, a mulher vai as-
sumindo sua sexualidade e seu lugar na sociedade, tentando abrir caminhos
que estejam livres de preconceitos, motivos pelos quais causam muito medo
na sociedade patriarcal. Concordamos que mesmo com todas as lutas e con-
quistas, ainda não conseguimos a plenitude de igualdade perante os homens
na sociedade. Para tanto, nosso estudo pretende observar como se dava a
construção da violência contra a mulher na sociedade medieval, mesmo que
no seu formato embrionário, dando luz à literatura em exemplos como as
cantigas trovadorescas galego- portuguesas e os poemas dos Carmina Bu-
rana, em prol do desenvolvimento de consciência crítica para o poder da
conscientização.

Referências Bibliográficas
BREA, M. (Org.). Lírica profana galego-portuguesa. Vol. II. Santiago de Compostela: Centro de
Investigacións Lingüísticas e Literárias Ramón Piñero da Xunta de Galicia, 1996.

CAPELÃO, André. Tratado do Amor Cortês (c. 1165). São Paulo: Martins Fontes, 2000.

CARCOPINO, Jérôme. Roma no apogeu do Império. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

DIAS, Aida Fernanda. História Crítica da Literatura Portuguesa. Vol.1 Idade Média. Portugal:
Editorial Verbo, 1998.
158
LOPES, Graça Videira; FERREIRA, Manuel Pedro et al. Cantigas Medievais Galego Portugue-
sas [base de dados online]. 2011. Lisboa: Instituto de Estudos Medievais, FCSH/NOVA. Disponí-
vel em: <http://cantigas.fcsh.unl.pt/. > Acesso em: 20 nov. 2017.

MACEDO, Helder; STEPHEN, Reckert. Do cancioneiro de amigo. 3.ed. Lisboa: Assírio & Al-
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MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Rastros de Eva no Imaginário Ibérico. Santiago de


Compostela: Edicións Laiovento, 1995.

PIZARRO, José Augusto (1999), Linhagens medievais portuguesas: genealogias e estratégias


1279-1325, vol. II, Porto, Centro de Estudos de Genealogia, Heráldica e História da Família da
Universidade Moderna, p. 923.
159
NETHERFIELD PARK IS LET AT LAST”: REPRESENTATIONS OF THE
ENGLISH COUNTRY HOUSE IN JANE AUSTEN

Natália Batista Benetti41


UERJ

Resumo: O seguinte artigo propõe uma investigação acerca do papel da


grande mansão senhorial inglesa em quatro romances de Jane Austen: Orgu-
lho e Preconceito (1813), Mansfield Park (1814), Razão e Sensibilidade (1811)
e Persuasão (1817). Levando em consideração a importância dessa proprie-
dade rural colossal na literatura britânica do início do século XIX, e acima de
tudo na ficção austeniana, este trabalho visa examinar a forma como essa casa
é retratada nos referidos romances. Além disso, pretende-se também analisar
como a descrição dessas grandes propriedades tem contribuído para conferir
aos romances de Jane Austen o status de comédias de costumes, e analisar
como a grande mansão senhorial inglesa funciona como uma expressão de po-
der cultural, político e socioeconômico na obra da autora.

Palavras-chave: literatura novecentista. ficção inglesa. mansão senhorial.

The family of Dashwood had been long settled in Sussex. Their estate was large, and
their residence was at Norland Park, in the centre of their property, where for many
generations they had lived in so respectable a manner as to engage the general good
opinion of their surrounding acquaintance.
Jane Austen, Sense and Sensibility

Much has been discussed that as an “enduring symbol of England, the


country house and its surrounding landscape have been instrumental to the
promulgation of heritage culture” (GUEDON-DECONCINI, 2008, p. 3).
Ever since its prominence in the late seventeenth century to its downfall in
the twentieth century, the English country house has been associated with
a sense of Englishness, and thus nationhood, for it has become a quintes-
sential symbol of English tradition, since it is the point in which part of
the most intrinsic of English customs have been originated, developed and

42
Doutoranda em Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2018), com pesquisa majoritariamente
voltada para a Literatura Inglesa oitocentista e novecentista. Contato: natalia_benetti@yahoo.com.br
160
perpetuated. To corroborate that, we may bring to light the words of Henry
James, as he suggested in his travel memoir English Hours that:
Of all the great things that the English have invented and made part of the credit
of the national character, the most perfect, the most characteristic, the only one
they have mastered completely in all its details, so that it becomes a compendious
illustration of their social genius and their manners, is the well-appointed, well-ad-
ministered, well-filled country house (JAMES, 2011, p. 154).

As it is known, the modern novel arises as a new literary genre in the ei-
ghteenth century and it presents an inescapably domestic character since it
is mostly directed to the emergent bourgeoisie. Therefore, this new literary
form has middle-class families and their everyday life as their central subject.
Based on that, it has been argued that “from the beginning the house and the
novel are interconnected, for the eighteenth-century (...) was also the great
age of the English house” (TRISTRAM apud MEZEI; BRIGANTI, 2002,
p. 838) and because the novel “is invincibly domestic, it can tell us much
about the space we live in” (2002, p. 838). As a matter of fact, the concept of
house is rather common in novels of manners such as Austen’s novels, for
that matter. In fact, Jane Austen herself led an utterly domestic existence for
she spent most of her life at home, and in general her stories may be conside-
red household stories. To reiterate that, James Edward Austen-Leigh affirms
in A Memoir of Jane Austen that “the first twenty-five years, more than half
of the brief life of Jane Austen, were spent in the parsonage of Steventon”
(AUSTEN-LEIGH, 1882, p. 18), the house where the writer resided until
she moved to Bath in 1801, at the age of twenty-six. Apart from that, her
nephew Austen-Leigh also points out that Austen “lived in entire seclusion
from the literary world” (p. 108) and anything she wrote was a “genuine
home-made article.”
However, what is a country house? The authors of a book entitled Crea-
ting Paradise: the building of the English country house 1660-1880 have re-
marked: “A large, old house with numerous outbuildings, surrounded by
gardens and park, the main residence, at least historically, of a sizeable landed
estate – a statement of exclusiveness and authority, of expense and status”
(MACKLEY; WILSON, 2000, p. 5). When we analyse Austen’s works, we
may have the impression that all of the aforementioned elements regarding
the grand English estate lie in the core of her narrative, for it is possible to
notice that the manor house, and more specifically, property, plays a key role
161
in her stories. An adjacent cottage, a drawing room with a pianoforte, gar-
dens, sometimes a parish and even small woods, a library, countless rooms,
balls and dinner parties are an inherent part of the small universe delineated
in each one of her books. That is due to the fact that, in Austen, properties
represent “a direct preoccupation with estates incomes and social position,
which are seen as indispensable elements of all the relationships that are pro-
jected and formed” (WILLIAMS, 1995, p. 236-237).
It is common fact that Jane Austen has been granted the status of canoni-
cal writer throughout the last two hundred centuries; hence a lot has already
been discussed concerning her novels, and as much as her stories have been
adapted and readapted, especially in the present day, the huge variety of the-
mes that pervade her oeuvre have been subject of the investigation of several
critics and scholars worldwide. Apart from the unfinished books, an episto-
lary novella and the Juvenilia, which comprises her early works, the author
wrote six complete novels, and the ones selected as the primary sources to
this study have been regarded by Harold Bloom as Austen’s “four canonical
novels” (BLOOM, 1994, p. 263). Curiously enough, in spite of that, with
the exception of the countless articles and theoretical texts on the relevance
of property, landscape and the picturesque in Austen’s oeuvre, not much
has been specifically written on her representations of the English country
house and its importance along her works. Hence, it seems necessary to fur-
ther examine the referred subject in order to achieve the aim proposed in
this paper.
Curiously, the English manor has not only been recently depicted in no-
vels but also in a great deal of films and even television shows such as Down-
ton Abbey43, a period drama which has been highly acclaimed not only in
the United Kingdom but worldwide and has become one the most watched
TV series of the world. Besides, it is relevant to mention that a vast number
of tourists from all around the globe tend to include the visit to those grand
properties in their tours of Great Britain. In fact, English newspaper the
Guardian has recently explored the importance of the great English estates
in an issue entitled “The country house and the English novel”44. Throu-
ghout his text, journalist Blake Morrison remarks that the grand country
houses are such a national literary obsession as he mentions iconic novels
like Brideshead Revisited (1945), Howards End (1910), Wuthering Heights
(1847), amongst others, in which the house is the central theme. He goes on
43
English TV show broadcast from 2010 to 2015, whose central theme is the country state of Downton, set in Yorkshire, and the relationship
between its dwellers, servants and the house in the years that precede its decline. For further information: http://www.itv.com/downtona-
bbey. Last accessed on 25/08/2017.
44
Available at: https://www.theguardian.com/books/2011/jun/11/country-house-novels-blake-morrison. Accessed on 25/08/2017.
162
affirming that much to his surprise, novels with an “English country house
setting are among the most acclaimed written in recent years”, such as Ian
McEwan’s Atonement (2001) and Sarah Waters’s The Little Stranger (2009).
Still, the subject of the English country house is often portrayed in news-
papers, books, academic papers and also, it is important to stress that a lot
of British universities these days have offered several courses on the English
manor house in their international summer schools, especially after the
Downton Abbey boom. In 2017, for example, the University of Leeds offered
a summer course named “The English Country House: A Social History”45,
and in 2018, the University of Oxford will be offering short courses such as
“Upstairs, Downstairs in the English Country House”46, “House and Gar-
den: the Victorian Invention of the Ideal Home” and “Country Houses”,
amongst others.
When the novel comes out as a new literary form, it appears as a popular
genre for it is mostly consumed by the middle classes, hence its constant
depiction of families and common life. Jane Austen, one of the first female
English novelists, was born in 1775. Daughter of a rector, the writer was
usually surrounded by her family and her neighbours, who comprised the
Austens’s social circle. Since she lived at a time when the church and the
landed aristocracy were closely connected, the writer grew up amongst the
gentry, even though she did not really belong to them, and it is these rural
gentry that are always portrayed in her novels. Indeed, from the end of the
eighteenth century to the turn of the nineteenth, England was to suffer a
massive transition from a rural society to an industrial one. Nevertheless,
the young writer was born and inhabited a part of the country that was still
essentially rural.
As Welsh scholar Raymond Williams affirms in The Country and the City,
the eighteenth century was an era of rural society (WILLIAMS, 2011, p.
183, my translation). Still in regards to that, Williams points out that “the
true history of rural England has always revolved around land ownership
and the social and work relations resulting from it” (p. 104, my translation).
According to him, in seventeenth-century literature, poetry in particular, it
was already possible to perceive the depiction of the social issues which were
derived from important factors such as the common fields, the peasantry
and the rural gentry. However, it is in the novel that, in the late seventeenth
and early eighteenth centuries, these issues are most developed, especially in
Available at: https://www.leeds.ac.uk/downloads/download/62/the_english_country_house_a_social_history. Accessed on 10/09/2017.
45

46
Available at: https://www.conted.ox.ac.uk/courses/upstairs-downstairs-in-the-english-country-house?code=O17I111JDR. Accessed on
10/09/2017.
163
the works of Daniel Defoe, Samuel Richardson and Henry Fielding,
for instance.
The critic Terry Eagleton has mentioned that the late eighteenth and early
nineteenth centuries represented an “epoch of dramatic social and political
upheaval” characterised by revolutions “in France and North America, the
Napoleonic conquests, the massive expansion of empire, Britain’s domi-
nance of the seas, the prosperity reaped from the slave trade, the rise of the
European nation-state” (EAGLETON, 2005, p. 95), amongst others. Des-
pite that, lots of changes were happening in the countryside as well.
To comprehend the relevance of the country house in Austen’s novels,
it is important to get a brief glimpse of its origins and the socio-historical
period in which it is most prominent. Based on that, G.E. Mingay suggests
that still in the Middle Ages, lowland England already presented a few esta-
blished communities with their manor houses and “hierarchy of manorial
officials, farmers and cottagers” (MINGAY, 2002, p. 24). It is common fact
that large tracts of land have, since then, always been in the hands of tho-
se who occupy the top of the pyramid of rural society, the kind of society
upheld by Jane Austen.
As it has been claimed in the book English Social History, ever “since the
Restoration there had been a rapidly increasing movement to accumulate
land in large compact estate” and “the magnates of the realm (...) owned a
much larger (...) acreage of England in 1760” (TREVELYAN, 1948, p. 380,
381). These magnates were, in fact, the great landowners who end up profi-
ting the most with the transformations that the English countryside would
undergo, and above all, with the agricultural revolution. Still according to
Trevelyan, in the period ranging between 1760 and 1820, private Acts of
Parliament were passed imposing the enclosure of the common fields and
the consequent improvement of the land, which only contributed to conso-
lidate the power of the rural aristocracy.
Even though Jane Austen lived at a moment when England was going
through several different changes not only inside but also outside the coun-
try, she did not really approach the state of affairs of her time in her narrati-
ves. For, as it has been mentioned before, the social history of the families of
English landowners has “a central and structural function in Jane Austen’s
novels” (WILLIAMS, 2011, p. 191). In light of that, it is relevant to stress
the reason for the selection of the four books which comprise the primary
164
sources to this study. As it has been mentioned, Austen wrote six complete
novels, including Emma and Northanger Abbey.
In spite of that, the four titles previously mentioned have been chosen
because it is precisely in the core of each one of these four novels that the
theme of the English country house plays a key role in bringing up, in diffe-
rent ways, very strong social issues, such as: entail and the male inheritance
of family estates (to the detriment of women); the acquisition of those large
properties by the nouveaux riches (which outlines the emergence of new
social mobility); the exploitation of the slave plantations characteristic of
the British Empire serving as a means of funding for those wonder hou-
ses, and the impending removal of noble households from their traditional
country houses, amongst other things. Jane Austen was born at the end of
the eighteenth-century and her major concern was to explore the everyday
life of a rural bourgeoisie that was deeply guided by moral values. In fact,
her novels depict “the social history of the landed families at that time in
England” (WILLIAMS, 1995, p. 233). Although some of her works were
written at the end of the 18th century, most part of her oeuvre only gets to
be published at the beginning of the nineteenth century.
In great part of pre-Victorian and Victorian novels, the country house
represents the landed gentry, that is to say, the aristocracy that was still pro-
minent at the turn and beginning of the century and which, along with the
referred estates, starts to decline in the pre-war period. This fact may be best
corroborated by Eagleton as he affirms that:

In the eighteenth century, a few hundred families owned a quarter of the cultivated
land of England. (...) Throughout the eighteenth century, the gentry had been a
superbly self-confident class, one whose political dominance over English society as
a whole went largely unquestioned. As Austen is writing, it is about to confront a
formidable rival in the form of the urban middle class, which is being ushered over
the historical horizon by the industrial revolution. But this is largely in the future;
and even when industrial capitalism has arrived on the scene, the landed gentry will
come to strike an historic bargain with it. They will continue to exercise political
and cultural power themselves, even if, as the nineteenth century wears on, they will
find themselves governing increasingly in the name of their middle-class inferiors
(EAGLETON, 2005, p. 115).

Furthermore, the great majority of the respectable and luxurious houses


in Austen’s time have names, which can be clearly seen in her stories: in Pri-
de and Prejudice, she mentions Pemberley, above all others; in Sense and Sen-
165
sibility, one of the great houses is called Norland Park; in Persuasion, Kellynch
Hall; and curiously enough, in Mansfield Park, the name of the house which
is the main setting to the story coincides with the title of the book.
At the very beginning of Sense and Sensibility, the author exposes us to the
tough reality women had to face when it came to the family estate. Since ac-
cording to the customs of the time, it was men who could essentially inherit
a house, when their father dies, Elinor, Marianne and Margaret Dashwood
see themselves destitute and obliged to see their wealthy half-brother install
himself in their long-established home of Norland. It is perhaps Sense and
Sensibility, one of the narratives in which it is possible to perceive a rather
strong sort of attachment between the household (the Dashwood sisters and
widow) and the manor house. After their sister-in-law claims her position as
mistress of Norland, in Sussex, the Dashwood girls are forced to bid farewell
to the place where they had been born and grown up in:

Many were the tears shed by them in their last adieus to a place so much beloved.
‘Dear, dear Norland! said Marianne, (...) ‘when shall I cease to regret you? – when
learn to feel a home elsewhere? – O happy house! Could you know what I suffer in
now viewing you from this spot, from whence perhaps I may view you no more!
(AUSTEN, 1994, p. 25).

As it can be seen, departing from their house was rather painful to the
these four women for - regardless of the fact that they were moving to a
cottage, hence a far smaller house, and their lifestyle was going to be utterly
changed – to the Dashwood girls, Norland was not only considered a most
beloved home, but it also represented their “first universe, a real cosmos in
every sense of the word” (BACHELARD, 1994, p.4).
In Pride and Prejudice, Mrs Bennet feared for her daughters for, similarly
to the situation of the Dashwood sisters in Sense and Sensibility, they could
not inherit the house they lived in, since its legal heir was but a distant cou-
sin. Due to this fact, it is possible to notice along the story the sheer distress
of a mother and her urge to marry her daughters off, as a means to secure
them a safe future, for they had an entailed estate and their father was not
rich. It is not by chance though that in the very first page of Pride and Pre-
judice, Mrs Bennet marvels at the splendid news that Netherfield Hall, the
great mansion in the rural village nearby, has been hired by the Bingleys, a
family of nouveaux riches from the north of England. Besides approaching
166
the connection between property, in the form of manor houses, and a good
marriage (that is, as far as it concerns social status and income), the novel
also brings to light, in a subtle way, some of the economic changes of the
late eighteenth and early nineteenth centuries: the emergent bourgeoisie re-
presented by the Bingleys in contrast to the landed aristocracy - which was
to lose its strength only a few decades later - represented by Mr Darcy. To
corroborate that, it has been argued that:

We are introduced to Netherfield Park in the very first lines, as Mrs Bennet informs
her bored husband that ‘Netherfield Park is let at last’ by the rich young man Mr
Bingley. Netherfield Park is significant not so much for the description of the house
and grounds as for the circumstances surrounding it. We learn that Mr Bingley has
rented Netherfield because he does not have an estate of his own, not for lack of
money but because his father’s fortune had been made in trade and he was not a
member of the landed elite (PAGE, 2013, p. 100).

Still concerning the landed aristocracy that was to decline prior to the
war period, the opening of Persuasion presents the readers with Sir Walter
Elliot, a vain lord that was utterly proud of his baronetcy. Nonetheless, the
nobleman undergoes financial difficulties, and feels compelled to rent his
grand estate to a man of inferior rank. At first, his lawyer’s suggestion to
let the property strikes at the very heart of Sir Walter’s being, which can be
perceived in the following excerpt:

There was only a small part of his estate that Sir Walter could dispose of; (...) He had
condescended to mortgage as far as he had the power, but he would never condescend
to sell. No; he would never disgrace his name so far. The Kellynch estate should be
transmitted whole and entire, as he had received it (AUSTEN, 1994, p. 8).

In the story, the hierarchy characteristic of such a stratified social system


could not be any more evident, since the great country house of Kellynch
Hall alludes to a part of English society that was starting to crumble. Since
the man who hires Sir Walter Elliot’s house is an admiral who had made a
fortune in the Navy, what is at stake in the novel is the consequence of men
who curiously do not belong to the landowning classes, or even the great
aristocratic classes for that matter, but who pursued a career and managed
to rise to a higher position. As it has been argued, the Navy officers in Per-
suasion constitute the “active, hard-working and prosperous pseudo-gentry
rank (...), a class of people who work for their living and know how to live
167
within their means”, as opposed to Sir Walter Elliot (COPELAND, 2011,
p. 139). Ironically enough, admiral Croft, a mere seafarer from Sir Walter’s
point of view, ends up renting his way into a grand country house that re-
presents a fading nobility.
In Mansfield Park, the protagonist Fanny Price is given the chance to quit
her impoverished family home at the age of ten to be brought up with her
aunt and cousins in Mansfield, whose grandeur at first astonished her and
whose maintenance was provided by her uncle’s slave plantation in the West
Indies. One of the several issues connected with the country house of Mans-
field in the narrative is the sense of place this great property imparts to Fan-
ny. At first, the manor represents the unknown, a world where she clearly
does not belong to and where she is somehow put in segregation, for as one
of her aunts suggests:

I suppose, sister, you will put the child in the little white attic, near the old nurse-
ries. It will be much the best place for her, so near Miss Lee, and not far from the
girls, and close by the housemaids, who could either of them help to dress her, (...)
for I suppose you would not think it fair to expect Ellis to wait on her as well as the
others. Indeed, I do not see that you could possibly place her anywhere else (AUS-
TEN, 1994, p. 8).

Fanny is placed in a cold attic near the servants, which reinforces the idea
that the great country estate, most of the time, plays a key role in the main-
tenance of class division, which, in the novel, will only change when, at the
end of the story, the penniless heroine becomes its mistress. Regarding that,
Edward Said asserts that as “the conclusions of the novel confirm and highli-
ght an underlying hierarchy of family, property, nation, there is also a very
strong spatial hereness imparted to the hierarchy” (SAID, 1994, p. 79, italics
in the original). Another striking theme that Austen evokes in the narrative
is that of the British Empire, which is slightly alluded to due to the fact that
Sir Thomas Bertram, Fanny’s uncle and the owner of Mansfield Park, pos-
sesses a slave plantation in the West Indies. It is this very colonial estate in
Antigua that provides the sustenance of the family at Mansfield.
As it may be perceived, in each one of the aforementioned stories, the
country house functions as a leading factor. Because the Austenian world is
the world of the rural gentry, it is impossible to dissociate the landowning
class from land and vice-versa. However, as it has been suggested, in Austen,
land “is more a monetary abstraction than an expanse of soil” (EAGLE-
168
TON, 2005, p. 115). Land is seen as property, for it “had long been a com-
modity, and it is certainly that in Austen’s fiction. She has a notably quick
eye for the size and value of an estate, along with the likely social status of
its proprietor” (2005, p. 115). Given that the country house was the main
statement of this kind of rural order, whose society is deeply concerned with
rules and moral values, it can only be of utmost importance in Austen’s
novels. In fact, human behaviour and social conduct are possibly the main
themes pervading her oeuvre, where characters are judged and led to change
so that they can fit well into the society that is being depicted in the narrati-
ves. Still regarding that, it has been suggested that it is “precisely because the
rural gentry had long been a ‘modern’ as well as a ‘traditional’ class, involved
in rent, capital and property (...) that the moral rot had set in” (2005, p.
115). Hence, to reiterate what Raymond Williams has claimed, and which
has been previously mentioned in this paper, most of the relationships and
attachments formed in the stories revolve around the large country estates.
The manor houses of Austen’s time are, indeed, reminiscent of the power
houses present in medieval England, which may be corroborated by what
critic Mark Girouard asserts in Life in the English Country House when he
affirms that “for many centuries the ownership of land was not just the main
but the only sure basis of power” (GIROUARD, 1980, p.2). In the eighte-
enth-century, most of these houses are passed on from generation to gene-
ration, and a great part of its proprietors possesses titles, such as the title of
a duke, an earl, a baronet, amongst others, which accounts for Sir Walter
Elliot’s baronetcy and the fact that his estate was passed over the generations
of his venerable family, for example.
Also, these baronial houses were built with the money coming from rents
- for as it is known, great landowners were by no means farmers - from tra-
de, from services at the government, and also from the exploitation in the
colonies of the East and West Indies. These landlords had a sense of duty
towards their servants and the community, like what may be observed in
Pride and Prejudice, when Mr Darcy’s housekeeper affirms he was a great
master. When it comes to the maintenance of the English country house
being provided by the slave plantations of the British Empire, Edward Said
claims that in Mansfield Park: “Jane Austen sees the legitimacy of Sir Tho-
mas Bertram’s overseas properties as a natural extension of the calm, the
order, the beauties of Mansfield Park, one central estate validating the eco-
169
nomically supportive role of the peripheral other” (SAID, 1994, p. 79).
Daniel Pool asserts that the “overriding concern of the great landed fami-
lies who dominated English life was to maintain their influence and affluen-
ce down through the years by transmitting their enormous landed estates
intact, generation after generation, to their descendants” (POOL, 1993, p.
90). According to him, estates could be transmitted through the right of
primogeniture and through entail. The former immediately granted the
property to the eldest son, and the latter meant that “sufficient restrictions
were put on what could be done to the estate by that eldest son” (1993, p.
90, italics in the original). Given that, it is possible to infer that a woman
could not really inherit an estate, for if “she remained single the line could
die out and if she married the estate would pass in possession to someone
outside the family” (p. 90).
Raymond Williams (2011, p. 191,192) remarks that in Austen’s novels,
much of what happens comes from the unexpected, that is to say, a great
deal of her characters are left to the mercy of good luck, especially when it
comes to a process of general change and the possibility of social mobility,
which was affecting the landowning families of the time. Based on that, the
country estate is also a key element in the social mobility which is enabled
by attachments such as the marriages of Marianne Dashwood to Colonel
Brandon in Sense and Sensibility, and Fanny Price to Edmund Bertram in
Mansfield Park. Concerning that, we may infer that Marianne Dashwood’s
marrying into the estate of Delaford and Fanny into Mansfield shows that
“Austen is not against mobility within the class system” (EAGLETON,
2005, p.117) for as Eagleton points out, in these narratives, the “danger lies
at the moral and cultural level, not at the material one” (p. 117). Also, it is
important to stress that “it was on their culture, in the broad sense of values,
standards, ideals and a fine quality of living, that the landowning classes had
relied for so much of their authority” (2005, p. 117).
In a recent video published by the School of English at the University
of Sheffield47, British scholar Lauren Nixon comments on the role of the
country house in Austen and states that “country houses in Jane Austen
are very important because what she is writing about is a very domestic spa-
ce, and what she is interested in is the domestic life that takes place within
the country house” (2015). Apart from that, Nixon also argues that “the
country house is the expression of the person who resides within it, who
47
Available at: https://www.youtube.com/watch?v=OoezZeya8f4. Accessed on: 08/10/2017.
170
presides over it, and who runs it (IDEM)”. In fact, with the portrayal of the
households, which was so very dear to 18th-century novels, there comes also
the portrayal of the house as a private sphere, a restricted area that may tell
so much about the lives of its dwellers that the descriptions of the place and
its inhabitants merge into one another. Curiously enough, still regarding
Pride and Prejudice, the grand country property of Pemberley, for instan-
ce, is so inexorably linked to its owner, Mr Darcy, that we may affirm Pem-
berley is Darcy and Darcy is Pemberley. That may be best reiterated by the
words of professor Witold Rybczynski, who affirms that the “appearance
of the internal world of the individual, of the self, and of the family” finds
in the house that is being inhabited “a setting for an emerging interior life”
(RYBCZYNSKI, 1986, 35, 36).
Despite Austen’s association of the country house with the personality of
its owner in each one of her stories, it is also possible to notice descriptions
of the house per se, that is, descriptions of the house in its physical structure.
Austen often mentions elements such as the park, the gardens, the library,
the drawing rooms, amongst others, besides providing the reader with an
idea of the size and grandiosity of these large estates, and the kind of enter-
tainment the inhabitants of these houses have. In relation to the importance
of the grounds and the picturesque, it has been affirmed that gardens and
houses “play a variety of coded roles in the English novel” (DUCKWOR-
TH apud PAGE, 2013, p. 97) and in Austen’s narratives, it is possible to see
the “development of the main characters by the ways they respond to the
houses, estates and grounds that they encounter” (PAGE, 2013, p. 97). That
brings to light the fact that, in Pride and Prejudice, it is only when Elizabeth
Bennet sees Pemberley that the heroine changes her mistaken impression of
him, for “Pemberley teaches Elizabeth how to read Darcy” (2013, p. 105).
More than two hundred years after writing what is considered the fiction
of drawing rooms, a great deal of scholar and readers from all over the world
still turn to Austen’s stories and contribute to consolidate her status as one
of the dearest and most acclaimed English writers. With this constant and
never-ending revisiting of Austen’s works, and with the ongoing television
and film adaptations of her stories, more and more people tend to take in-
terest in and analyse some of the many elements present in them. In light of
that, it is possible to note that the country houses are one of them, for the
more readers and spectators see their representations, the more interested
171
they seem to be in visiting these power estates in real life. Also, in spite of the
decay of those large country houses after the Industrial Revolution, espe-
cially because of the prominence of the cities, it is still a key theme to many
novels in the twentieth century. As it has been pointed out, the persistence
of the country-house novel is due to the fact that:

Rural England became old-fashioned (...) from the late eighteenth century onwards.
Nevertheless, a great part of the rural past, of its feelings and its literature, was as-
sociated with the rural experience, and a great deal of its premises regarding welfare
remained and even strengthened in such a way that, in the twentieth century, there
is almost an imbalance between the importance of the current rural economy and
the importance of the rural ideas (WILLIAMS, 2011, p. 407, my translation).

Based on that, it is not outrageous that in the twenty-first century, these


houses still arouse strong curiosity in a lot of people worldwide, as could be
perceived in the Downton Abbey boom, for “even when the customs have
gone, the houses remain” (GIROUARD, 1980, p.8).

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173
SER MÃE É ENLOUQUECER NO PARAÍSO: CONSIDERAÇÕES
SOBRE A MATERNIDADE EM A DOIDA DO CANDAL,
DE CAMILO CASTELO BRANCO

Nayara Helenn Carvalho dos Santos


UERJ

Resumo: As mães têm papel importante nos romances de Camilo Castelo


Branco. Em A Doida do Candal, o autor relaciona a condição materna com a
insanidade da protagonista. No século XIX, a maternidade fazia parte da missão
feminina. As esposas deveriam cumprir essa obrigação. Além de gerenciar o lar,
as mulheres também precisavam se tornar mães para serem melhores aceitas na
sociedade patriarcal da época. Através da personagem Maria de Nazaré, Camilo
Castelo Branco mostra alguns problemas enfrentados por mulheres as quais ti-
nham que lidar com questões maternas atreladas à liberdade feminina.

Palavras-chave: Maternidade. Mulheres. Personagens.

A família é a unidade primária da vida privada no século XIX. Tomamo-la


como objeto de análise da vida social e afetiva. As mulheres casadas e, sobre-
tudo, as mães eram excluídas do papel de indivíduos autônomos na socie-
dade, sendo responsabilidade dos maridos protegê-las. “A dominação mas-
culina tem sido permanente, atravessando os séculos segundo modalidades
e formas variáveis conforme as épocas e os espaços” (VAQUINHAS, 2011,
p.36). O casamento era a condição feminina esperada pela nobreza e pela
burguesia como único destino naquela época. A dona de casa dependia do
esposo: financeiramente, são impossibilitadas de tomar conta das próprias
finanças; juridicamente, não tinham direitos; simbolicamente, perdiam seu
sobrenome; sexualmente, deveriam cumprir seus deveres conjugais incluin-
do o da reprodução. As mães marcam sua função na família e seu lugar so-
cial, pois o cargo materno era um pilar da sociedade. Segundo Perrot, “A
maternidade é um momento e um estado, muito além do nascimento, pois
dura toda a vida da mulher” (PERROT, 2007, p. 69), por isso, a identidade
individual feminina se perde quando o papel da mãe entra em cena.
174
Nos dias de hoje, as esposas ainda são cobradas a assumirem o papel ma-
terno. A maternidade aparece como um trabalho exclusivamente feminino
por causa da condição biológica das mulheres, dessa forma, o chamado da
natureza feminina contribui para potencializar uma sociedade patriarcal.
Esse discurso se utiliza da natureza e da biologia para legitimar um pensa-
mento machista e conservador que limita, ou ao menos impõe, as mulheres
ao trabalho reprodutor. No século XIX, a burguesia estipulou o que era
esperado para cada um. Michelle Perrot diz que “cada sexo tem sua função,
seus papéis, suas tarefas, seus espaços” (PERROT, 2017, p.187), assim, o ca-
samento burguês precedido da maternidade eram a chave da opressão sobre
as mulheres, estigmatizando aquelas que não desejavam seguir esse caminho.
Pretendemos analisar novamente a personagem Maria de Nazaré, do ro-
mance A Doida do Candal de Camilo Castelo Branco, publicado em 1867,
agora sob a perspectiva.da maternidade: concentrando a atenção e análise na
forma com que a figura materna aparece na obra.
Maria de Nazaré, protagonista do romance, teve um destino infeliz. Ela
foi julgada pela opinião pública por suas escolhas. Além dos julgamentos
sociais, a personagem sofria, por ter internalizado os valores patriarcais que
faziam parte do século XIX. A prática de internalizar esses valores sociais
impostos gera uma problemática que ainda temos enfrentado hoje em dia.
Por amor, a moça decidiu sair de perto da sua família para morar em uma
casinha no Candal, longe da cidade e com o mínimo de conforto possível.
Nazaré ficou desamparada com a morte de seu companheiro Marcos Peixo-
to, pois, para os moldes sociais da época, ela era considerada esposa ilegítima.
A moça ficou sem condição financeira para cuidar de seu filho. Além disso,
por causa do desespero em ter que confrontar a realidade naquele momen-
to, enlouqueceu. Alienada, a pobre já não reconhecia seu filho, estava inca-
pacitada de cuidar do menino, e seu papel de mãe durou apenas enquanto
Marcos ainda estava vivo.
No oitocentos, os escândalos deveriam ser evitados. As mulheres que as-
sumissem filhos frutos de uma união ilegítima, as mães solo, as que eram
amantes, ou as que foram abandonadas por seus maridos, estavam todas
sujeitas à condenação moral. As solteiras que tinham sua reputação man-
chada, dificilmente conseguiam se casar. Afinal, os homens não aceitariam
se unir com mulheres que a sociedade considerava indignas, além de ficarem
mal vistos socialmente ao assumirem filhos que fossem deles. No caso da
175
personagem analisada, seu filho não foi assumido por diferenças sociais que
existiam entre as famílias. No entanto, as moças não deveriam viver sozinhas
naquela época. Elas dependiam da proteção do pai ou do esposo. Em casos
de degradação moral, como seria o destino dessas mulheres? Em alguns ca-
sos, sobretudo no final do século XVIII e início do XIX, período no qual
Camilo Castelo Branco ambienta a maioria de seus romances, quando não
havia mais a proteção da familiar, a vida religiosa era uma alternativa possí-
vel e muitas mulheres terminavam seus dias em conventos. Havia também
aquelas que escolhiam deixar suas famílias para viver em um relacionamento
ilegítimo. Seus parceiros não podiam assumi-las de fato, ora porque já eram
casados com outra, ora porque havia diferença de classe social entre eles,
como é o caso da personagem Maria de Nazaré.
A moça, filha de comerciantes e mãe do pequeno Álvaro, não era rica. Ela
pertencia à baixa burguesia e havia sido ensinada em casa. Maria de Naza-
ré pertencia a outro escalão, não era bem educada e também não era culta.
Apesar de sua família ter uma condição mediana de vida, o que importava
para as pessoas era o fato de Nazaré ser amante e não esposa, então, ela não
era respeitada na comunidade onde vivia. Seu companheiro, Marcos Freire,
era de família rica e conhecida. Além disso, o narrador o descreve como um
rapaz que não era ateu, mas que também não seguia as imposições e regras
da igreja católica:

Era o dono do melhor palácio e mais antigos apelidos da fidalguia portuense. Ga-
lhardo e valente. Pouco menos de ilustrado. Religioso bastantemente para crer em
Deus. Propenso a duvidar da religião dos mártires de toda a fé, e duvidar da ciência
insolente e brutal de Voltaire. (ADC, p. 21)

Percebe-se, portanto, a ironia de Camilo quando ele se refere à religiosida-


de do fidalgo. Há uma problemática no fato de Marcos ter feito de Nazaré
sua amante e nunca ter se casado com ela formalmente. O casamento na
igreja era muito importante para oficializar uma relação e para que a socie-
dade aceitasse uma união, já que a opinião pública esteve atuante ao longo
dos séculos. Marcos “não desprezava os ditames da religião de Jesus” (ADC,
p.23), mas também não desprezava “os liames sociais constituintes e regula-
dores da família” (ADC, p.23). Ou seja, era inevitável que ele desobedecesse
a uma das duas regras impostas. Ele poderia desobedecer a seu pai e realizar
o matrimônio com Nazaré, seguindo as regras da igreja; ou ele desobedecia à
176
igreja e se unia sem casamento à moça desconsiderando a proibição de se ca-
sar com uma mulher de classe social mais baixa, como impôs seu pai. Então,
o matrimônio nunca aconteceu, já que seu pai não aceitava a moça como
nora, bem como não aceitava ter um neto filho de uma moça de classe mais
baixa e trabalhadora, sem prestígio social algum.
O pequeno Álvaro era fruto de uma união jamais permitida, mas era ama-
do pelos pais. Nazaré o criava na casinha campestre do Candal. Era naquele
lugar que ela se sentia plena em sua função social, mesmo que não oficial “ali
estava como esquecida de si e absorta naquele gozo de esposa” (ADC, p.22).
Longe da sua família, “Os sonhos de Maria não tinham implantado mais
adiante a baliza da felicidade” (ADC, p.22). As pessoas sabiam do destino da
moça que assumiu o papel de amante, por isso consideravam-na como mais
uma das perdidas. As pessoas comentavam sobre ela. Isso acontecia porque
“na sociedade portuguesa de então os papeis ligados ao sexo encontravam-se
bem definidos e constantemente afirmados e justificados do ponto de vista
doutrinário” (LEAL, 1992, p.83). Dessa forma, as pessoas transmitiam es-
ses valores de uma geração a outra. Todavia, apesar de sua fama, pela forma
romantizada com que ela entendia a felicidade, a moça estava satisfeita com
suas condições naquele momento. Ela estava feliz em ser mãe. Pouco impor-
tava a condenação moral desde que ela tivesse o amparo de Marcos Freire e
seu filho nos braços.

O filho era o aroma de uma flor sem viço e já esmaiada. O filho era todo o amor,
toda a esperança, a vida em que todo o coração dele pulsava. A ebridade de tanto
amor provinha do néctar: pouco importava a urna. Maria era como o despojo da
crisálida. A formosura, a graça, as cores do céu, resplandeciam na borboleta. Pobres
mães! (ADC, p.62).

Percebe-se a importância que Camilo Castelo Branco atribui para as mães


em sua obra. Ele consegue demonstrar e descrever a tragicidade do papel
materno quando a identidade da mulher é descartada. Naquele momento,
Nazaré era mãe, apenas. Ela estava destinada a assumir essa nova identidade
e passar seus dias em função do filho, e só. Seu companheiro também a via
dessa forma, afinal, seu amor por ela foi diminuindo com o passar dos anos
(se ele a amou algum dia), e o filho era o responsável pela união do casal.
Como diz, sabiamente, o narrador camiliano: “o costume acabou o mara-
vilhoso da coisa” (ADC, p.112). O fidalgo chega a considerar a morte de
177
Nazaré como algo oportuno para que ele saia daquele relacionamento sem
ter que deixá-la por vontade própria e sem constrangimentos. No entanto,
ele não sofreria com sua morte, mas temia que o filho sofresse:

Marcos podia sem confranger-se-lhe a alma pensar na orfandade materna, imaginar


seu filho sem mãe. Aterrava-o esta imagem, mas a dor grande procedia de fantasiar
o filho sem os afagos da mãe; não era a mãe morta que lhe alanceava a alma. A car-
pida não era ela: era o filho sem o amparo acariciativo da extremosa criatura. Pobres
mulheres! (ADC, p.63).

É interessante entender a importância das frases que finalizam as duas cita-


ções anteriores. Essas citações, que aparecem uma seguida da outra, terminam
da seguinte forma: “pobres mães!” e “pobres mulheres!”. Essa marca de fala
do narrador nos ajuda a entender a distinção entre ser mãe e ser mulher a qual
Camilo faz questão de expor na sua obra. Seu filho, bem como seu amor por
Marcos, era tudo o que importava para Nazaré porque a criança foi tudo o
que restou daquele relacionamento. O pequeno Álvaro simbolizava o amor
que Marcos não sentia mais. Existe a possível interpretação de que Maria de
Nazaré sofria pelas dificuldades de ser mãe solo, sem dinheiro e estigmatizada
naquela cruel sociedade, mas que ainda assim, amava seu filho. Entretanto,
não se pode desconsiderar que existe, de igual forma, a possibilidade daquela
mulher não desejar mais o papel materno porque o filho não significava mais
nada sem seu amado por perto. De que adiantava ser mãe agora? No entanto,
no século XIX, as mulheres não podiam recusar a maternidade. As mães ti-
nham um papel crucial: o de elevar/continuar a família e regenerar a sociedade
através da boa criação dos filhos. A maternidade era a missão da mulher. Para
cumprir sua missão - seu dever materno - a mãe de Nazaré vai buscar a “fugi-
tiva e desonestada” (ADC, p. 98) quando a moça perde sua sanidade mental.
Mesmo com todos os julgamentos sociais que sua filha sofria, Rosa Fernandes
“que nunca mais houvesse diretas notícias de sua filha” (ADC, p.98) se faz
presente, busca a moça e a leva embora do Candal.

Assim que a notícia da trágica morte do sedutor da filha chegou a sua casa, saiu logo
a velha a caminho do Candal, E, ao anoitecer daquele dia, a mãe, cheia de graça e
misericórdia do Senhor, foi buscar uma carruagem a filha e o neto, recolhidos em
casa das compassivas senhoras, que acudiram aos gritos da demente (ADC, p. 99).

Maria de Nazaré acaba internada em um hospital para loucos e perma-


nece sob a vigilância cruel de médicos e enfermeiras. Onde sua mãe podia
178
visitá-la duas vezes por dia e esperavam que ela retomasse o juízo.
Conclui-se, portanto, que pais e mães são tratados de modo diferente pelo
narrador. Amar o filho, era para Nazaré, amar o homem. Marcos por sua
vez, ama o filho independente da mãe como se ele não precisasse dela. Es-
quecidos estavam a beleza, a sexualidade, as vontades e as opiniões daquela
moça. Aquela mulher estava à margem da dignidade ao ponto de ser grata
ao amante por ele lhe conceder algo que ainda a preenchesse: o filho. “Tanto
amor provinha do néctar” – o esperma de Marcos, a participação dele em
gerar o filho; “pouco importava a urna” – seu ventre, ela própria.

E que lhe fazia isto a ela, se o não entendia? A criancinha acrescia-lhe em carícias a
ternura que Marcos lhe não dava. A parte do coração que podia doer-se do vácuo e
encher-se de lágrimas estava cheia de amor do filho. Por um amor que a fatalidade
lhe ia levando – o amor humano – dava-lhe outro a Providência – o amor do anjo
(ADC, p.62).

Era a tristeza da mulher compensada pela nobreza de ser mãe, sobretudo,


mãe do filho de seu amado.

Celestial compensação! Quantas desgraçadinhas, quantas perdidas porque não fo-


ram mães! As crianças distendem suas asas por sobre o cairel das voragens. O per-
fume que trazem de Deus desinfecciona o ar corrompido pelo vício. Descerram
arcanos não conhecidos de bem-querer. Almas canceradas no incêndio do novo
amor, depuram-nas. Realibilitam, dando valor, préstimo e sublimidade à mulher
que todo mundo despreza, e ainda àquelas que, desvinculada do mundo, se despre-
zavam. Como que à volta do seio que se abre em fontes de vida se forma uma atmos-
fera pura. Lá do peito adentro renova-se o que quer que seja de segunda virgindade.
Assim mesmo, triste dela! (ADC, p. 62/63)

A ironia camiliana quase passa por despercebida quando lemos essas palavras e
acreditamos na maternidade como tabua de salvação / “reabilitação” (nas palavras
do autor) para o destino desgraçado daquelas que estavam marcadas socialmente
como perdidas. Não há como “desinfecciona-las”. Além disso, é necessário prestar
máxima atenção no léxico utilizado pelo autor e considerar os desfechos da histó-
ria. Maria de Nazaré levou uma vida miserável até chegar o dia em que as condições
para criar seu próprio filho fossem nulas. A personagem não tinha “valor”, “prés-
timo” ou “sublimidade”, apesar de essas características, escolhidas por Camilo,
fazerem parte do ideal materno que levaria as mulheres ao Paraíso pelas asas dos
filhos-anjos celestiais Por isso, “triste dela!”, que continua sendo a que o mundo
despreza e despreza-se a si mesma por ter internalizado essa dominação masculina.
179
Até o presente momento, Maria de Nazaré deixa de ser mulher para ser
mãe. Esse afastamento entre os papeis acontece como se ambos fossem dis-
tintos. Mas logo quando enlouquece, ela perde o posto materno e se torna
incapaz de criar o pequeno Álvaro. Além da problemática sobre materni-
dade, a moça sofre uma série de violências causadas pela opressão social. As
pessoas falavam dela: apontavam-na como desobediente e um mal exemplo
para as outras raparigas. Por isso, foi afastada de sua família para viver isolada
em uma casinha no Candal com muitas limitações. A sociedade não a acei-
tava por ser uma esposa ilegítima. O pai de Marcos Freire também rejeitava
seu neto por não ter sido gerado por uma fidalga. Todas essas questões con-
tribuíram para que Nazaré perdesse a sanidade bem como a identidade ao
final de história, e se tornasse “A doida de Candal”.
Nazaré foi considerada louca, mas na verdade essa loucura estava relacio-
nada à situação trágica das mulheres dessa época. Ter engravidado de um
homem sem ter sido, de fato, casada; ter se afastado de sua família em nome
de um amor proibido, contribuiu para esse escape à realidade que a manteria
como mãe pobre e abandonada. No oitocentos, elas estavam destinadas, na
maioria das vezes, ao casamento e à reprodução. Apesar de Camilo Castelo
Branco criar personagens altivas e atuantes, não há como fugir da realidade
opressora que fazia parte do século XIX. A maternidade negada contribuiu
fortemente para a loucura da personagem. Alda Lentina, analisando algu-
mas obras camilianas, percebe que “A medida que essas personagens se en-
contram enclausuradas no papel de esposa e depois no de mãe, os sintomas
psicossomáticos parecem agravar-se” (LENTINA, 2014, p. 29). As mulhe-
res por serem consideradas, inicialmente, como moralmente perfeitas são
tidas como loucas se, por ventura, recusam-se a assumir os modelos de vida
que lhe são impostos. Maria de Nazaré estava passando por um momento de
desequilíbrio quando não reconhece mais seu filho. Aparentemente, Álvaro
era seu bem mais precioso, ainda assim, ela acabou seus dias sem reconhecê-
-lo. A condição de mãe só durou enquanto Marcos era vivo, porque depois
de sua morte, a moça ficou fora do seu juízo perfeito e sem condições finan-
ceiras para continuar criando a criança. Em seu caso, a loucura funciona
como sintoma quando, por tristeza e infelicidade, ela se descuida de todos
os papéis femininos que lhe eram atribuídos: a filha, o de esposa e princi-
palmente o de mãe. Está claro que essa não é apenas uma história de amor
conjugal que não deu certo. A trama diz muito, também, sobre o amor ma-
180
terno idealizado e, nesse caso, infeliz. No entanto, admitamos! Sobre amores
felizes, não se conta história.

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181
A FAZENDA AFRICANA E A MULHER ISAK DINESEN

Pamela Mendes48
UERJ - FFP

Resumo: Este artigo centra-se no pseudonimato de Karen Blixen, discu-


tindo a configuração de um novo modelo de feminino, vivenciado pela baro-
nesa dinamarquesa sob o pseudônimo Isak Dinesen na primeira metade do
século XX. Nesse sentido, desenvolvemos uma leitura comparativa acerca
das configurações desse modelo de feminino experienciado por Dinesen, em
contraponto ao modelo de feminino vigente em seu tempo cronológico e,
sobretudo, à cultura africana. Assim, analisaremos tópicos da obra literária
A Fazenda Africana (1937), ligados à descrição memorialística da autora em
relação à cultura local e seu posicionamento diferenciado enquanto mulher
protagonista da própria história de vida.

Palavras-chave: Isak Dinesen. A Fazenda Africana. Gênero.

Introdução
Este trabalho traz à discussão a configuração de um novo modelo de fe-
minino, vivenciado pela baronesa dinamarquesa Karen Blixen (pseudônimo
Isak Dinesen) na primeira metade do século XX. O corpus desta pesquisa é
o romance autobiográfico de Dinesen, A Fazenda Africana (Out of Africa)
(escrito em 1937, por ocasião da estadia da autora no Quênia).
Com caráter mais “etnográfico” do que melodramático, A Fazenda Africana
teve como ponto de partida a vida amorosa infeliz da baronesa européia que se
recusou a assumir o modelo dominante de mulher imposto no mundo colonial,
com perfil submisso e frágil, para se projetar numa nova configuração de mode-
lo de feminino, em uma grande fazenda africana. Tendo se casado com o primo
barão Bror Blixen-Finecke que lhe transmitiu sífilis logo no primeiro ano de casa-
mento, Karen Blixen ficou sozinha à frente da fazenda de café, enquanto o marido
seguiu uma vida ausente da fazenda, em aventuras e safáris com outras mulheres.
48
Graduada em Letras – Português/Literaturas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, na Faculdade de Formação de Professores (UER-
J-FFP); Pós-graduada em Estudos Literários e Mestranda em Estudos Literários pela mesma universidade. Contato: pamelaf22@gmail.com
182
Neste cenário, Karen não só administrou a fazenda e interagiu com os na-
tivos, como também, registrou em seu livro, suas observações em torno das
pessoas com as quais se relacionou, paisagens, animais do território africano
e as histórias nele ouvidas. Desse modo, mais do que uma trama amorosa, a
autora construiu um material autoral de caráter amplamente antropológico.
Dentro deste contexto, este estudo desenvolve uma leitura comparativa,
sem hierarquizações, acerca das configurações de um modelo de feminino
vivenciado pela baronesa Blixen em contraponto ao modelo de feminino
vigente em seu tempo cronológico e, sobretudo, à cultura africana. Nesse
sentido, serão analisados tópicos da obra literária ligados à descrição memo-
rialística da autora em relação à cultura local e seu posicionamento diferen-
ciado enquanto mulher protagonista da própria história de vida.
A partir das reflexões Judith Butler em Regulações de Gênero (2004), ob-
servaremos como os gêneros eram regulados na cultura africana, descrita
através dos relatos sobre mulheres somalis na obra de Dinesen. De acordo
com Butler (2004), existem visões normativas de feminilidade e masculini-
dade, não sendo, o gênero, exatamente o que alguém “é” e nem precisamente
o que alguém “tem”. Segundo a teórica, gênero é, então, o aparato pelo qual
a produção e a normalização do masculino e do feminino se manifestam
junto com as formas intersticiais, hormonais, cromossômicas, físicas e per-
formativas que este gênero assume. Assim, gênero é, também, o mecanismo
pelo qual as noções de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas,
podendo ser o aparato através do qual esses termos podem ser desconstruídos
e desnaturalizados. Nesse viés, destacaremos como as regulações de gênero
sob o padrão comum implícito da normalização eram incorporadas social-
mente em A Fazenda Africana (1937) e como Karen Blixen, “desregulava”
os conceitos vigentes acerca de feminino e masculino, com seu posiciona-
mento como “dona de si”.
Buscando compreender, mesmo que em parte, como se dão as identida-
des, sobretudo femininas, a partir das questões de sexualidade, entrelaçare-
mos à Blixen (1937) e Butler (2004) os estudos de Michel Foucault em A
História da Sexualidade (2017). Sob o pensamento foucaultiano, analisare-
mos como as regulações assumiam forma legal através de operações de poder
e vinculavam-se ao processo de normalização. Nesse circuito, observaremos
como se dão os contratos sociais atuantes na representação dos corpos hie-
rárquica e dicotomicamente.
183
Com as contribuições teóricas de Adrienne Rich no artigo Quando da
morte acordamos: a escrita como re-visão (2017), teceremos algumas obser-
vações acerca do ato desafiador de escrita da baronesa Blixen em um cenário
colonial predominantemente patriarcal.
Por fim, suplementaremos as reflexões acerca da escrita de Karen Blixen
com as contribuições de Gayatri Chakravorty Spivak no artigo Literatura
(1999), comentando brevemente alguns aspectos da relação entre a barone-
sa e os sujeitos nativos, em um rico processo de interação social e cultural.

Entre normas e regulações: Sujeitas


A partir dos relatos de Karen Blixen no capítulo “As mulheres somalis” lo-
calizado na terceira parte do livro A Fazenda Africana (1937), observamos
como os gêneros, em uma prescrição social binária, são experienciados nas
culturas européia e africana, segundo as reflexões de Judith Butler (2004).
Sob esse viés, o esforço deste trabalho não estará em avaliar o passado sob
a ótica de uma teoria que o sucedeu, mas sim, em perceber com auxílio dos
estudos de Butler (2004), como as instâncias reguladores de gênero impuse-
ram e impõem regulações que foram/são incorporadas e vividas pelos sujei-
tos/as em diferentes períodos cronológicos e culturais.
Nos relatos de Blixen sobre as mulheres somalis, notamos que os sujei-
tos aos quais as regulações são impostas não são, simplesmente, submetidos
à força externa de uma regulação (como sob uma instância religiosa, por
exemplo), mas, sobretudo, regulados a partir de introjeções internas. Assim,
as sujeitas somalis submetiam-se às normas e regulações de sua cultura por
livre e espontânea vontade, como percebemos no relato da escritora sobre
uma jovem somali que, na infância, admitia comportamentos socialmente
descritos como masculinos, mas que, ao passar à adolescência, transformou
sua postura:

Quando veio viver conosco, ela estava com onze anos, e sempre escava do círculo
familiar a fim de me seguir por toda a parte. Montava o meu cavalo e carregava a
minha arma, ou então acompanhava os totos quicuius ao açude, erguendo a saia e
correndo descalça pelas margens com uma rede de pesca. [...] Todavia, com o passar
do tempo, e sob a influência das meninas mais crescidas, ela também se transformou
e ficou fascinada e arrebatada pelo próprio processo de mudança. Exatamente como
se um peso tivesse sido amarrado a suas pernas, ela passou a caminhar de maneira
lenta; agora seus olhos permaneciam sempre fixos no chão, seguindo as melhores
tradições, e para ela tornou-se uma questão de honra desaparecer assim que surgia
184
um estranho. Deixou de cortar o cabelo e, quando este alcançou o comprimento
apropriado, as outras jovens o dividiram e o trançaram em pequenos rabos-de-cava-
lo. A noviça submeteu-se com toda seriedade e orgulho a todos os constrangimen-
tos do ritual; notava-se que preferia morrer a faltar com seus deveres em relação a ele
(BLIXEN, 1937, p.198).

Desse modo, podemos observar as sujeitas/os da narrativa de Blixen, tam-


bém, a partir dos estudos de Michel Foucault (2017), percebendo como a
identidade dessas sujeitas/os é construída e suas respectivas condutas são, a
partir da sexualidade, direcionadas.
Segundo Foucault (2017), os modos de subjetivação e objetivação dos su-
jeitos, em atuação interdependente, resultam na transformação do ser em
um sujeito. Em atuação simultânea, os processos de subjetivação e objetiva-
ção vinculam-se à maneira pela qual o sujeito relaciona-se consigo mesmo,
esboçado, por sua vez e, sobretudo, por um conjunto de técnicas, dentre elas,
de poder e do eu, que possibilitam ao sujeito relacionar-se consigo mesmo.
Nesse sentido, voltamos nosso olhar para a força de atuação das chamadas
tecnologias de poder sobre as mulheres em A Fazenda Africana (1937), des-
tacando como se configuravam as identidades dessas mulheres submetidas a
procedimentos e interdições que buscavam objetivá-las.
Sob a força atuante das tecnologias do eu, estas individuas, Blixen e soma-
lis, podiam empregar por si mesmas ou auxiliadas por outras, técnicas sobre
o seu corpo, pensamento e conduta. Nesse viés, entrelaçando o pensamento
de Foucault ao de Judith Butler, evidenciamos que as sujeitas/os relatadas
pela escritora dinamarquesa eram reguladas/os internamente por normas
tantos sociais quanto simbólicas postas nas psiques desde suas origens:

o poder regulador não apenas age sobre um sujeito pré-existente, mas, também,
molda e forma esse sujeito; e (2) tornar-se sujeitada/o a uma regulação significa tor-
nar-se subjetivada/o por ela, ou seja, vir a ser um sujeito precisamente por ser regu-
lada/o. (BUTLER, 2017, p.693)

Assim, notamos que principalmente as sujeitas da obra de Blixen, mas,


também, a própria autora, eram totalmente reguladas ou, parcialmente re-
guladas por normas que operavam dentro de práticas sociais como um pa-
drão implícito de normalização. Portanto, as mulheres somalis descritas na
obra de Karen, experienciavam normas sociais que não eram por elas proble-
matizadas por estarem, estas mesmas normas, internalizadas nestas sujeitas.
Dessa forma, estas mulheres seguiam parâmetros do que aparecia ou não
185
dentro do domínio social, como, na passagem citada, por exemplo, parar de
cortar o cabelo ou passar a caminhar lentamente.
Por conseguinte, tanto as mulheres nativas quanto a escritora dinamarque-
sa encontravam-se inseridas dentro de uma sociedade regida por normas que
faziam com que o campo social fosse inteligível, nos permitindo perceber o
quão eram reguladas as sujeitas somalis em contraponto à sujeita Blixen.
Embora Karen Blixen não correspondesse ao que a sociedade de seu tem-
po considerava “exatamente” feminina – delicada, virginal e praticante de
serviços domésticos, por exemplo - ainda era e percebia as/os demais sujei-
tas/os nos termos de uma regulação binária (masculino X feminino), como
evidenciamos na passagem que segue, dentre outras: “O amor pela mulher
e a feminilidade é uma característica masculina, e o amor pelo homem e a
masculinidade uma característica feminina” (BLIXEN, 1937, p.29). Desse
modo, a partir das experiências relatadas por Blixen (1937) e, também, da
biografia da baronesa, ratificamos a existência e força de atuação de visões
normativas de feminilidade e masculinidade que regulavam as sujeitas/os e
todas as instâncias sociais, como verificamos, também, em outra passagem,
acerca da cultura somali:

A mulher mais velha, a sogra de Farah, era, segundo este, muito conceituada em sua
região por causa da excelente educação que proporcionara às filhas. Ali elas eram o
espelho da elegância e molde da forma virginal. Na verdade, as três jovens davam
prova do mais refinado decoro e dignidade. Nunca conheci damas tão femininas.
Seu recato virginal era acentuado pelo estilo de suas roupas. (BLIXEN, 1937, p.198)

Acerca de tal relato, sob leitura foucaultiana (2017), evidenciamos as su-


jeitas como constituídas através da relação entre as condições de vida ma-
terial, dos signos socialmente edificados e das relações de poder entre os
indivíduos, que, por sua vez, tinham sua sexualidade constituída sob uma
ética que os configurava (ou não) como sujeito/a moral. Ademais, a moral,
entendida como um conjunto de regras, prescrições e códigos de conduta
apresentadas e sugeridas aos indivíduos, engendra externamente e conduz,
estes a, voluntariamente, sentirem-se obrigados a aplicá-las:

[...] Trata-se das mulheres de Farah. Quando este se casou e trouxe sua esposa da
Somalilândia para a fazenda, veio também um pequeno bando animado e gentil
de pombas morenas: a mãe da noiva, sua irmã menor e uma jovem prima que fora
criada pela família. Farah me contou que este era o costume em sua terra. Na So-
malilândia, os casamentos são arranjados pelos parentes mais velhos, que levam em
186
conta a família, a riqueza e a reputação dos jovens; nas melhores famílias, os noivos
só se encontram no dia do casamento. Mas os somalis são um povo cavaleiresco e
zelam pela proteção de suas donzelas. Espera-se que um marido recém casado more
na aldeia de sua mulher durante pelo menos seis meses após o casamento; nesse
período, ela pode ainda desfrutar de sua posição de anfitriã e de pessoa conhecida e
influente. Quando, porém, isto é impossível, as parentas da noiva não hesitam em
acompanhá-la no início de sua vida conjugal, mesmo que tenham de se mudar para
regiões distantes (BLIXEN, 1937, p.197).

Assim, o poder, no sentido foucaultiano, como sendo uma ação sobre ações,
nos aponta a imersão da subjetivação das mulheres somalis e de Karen Blixen
em suas redes. Entretanto, observando a biografia da escritora dinamarquesa,
segundo teorizações de Judith Butler (2004), compreendemos que Blixen se
colocava (inconscientemente ou não) fora de algumas normas reguladoras e
da visão normativa de feminilidade de sua época. De acordo com seus pró-
prios relatos, Dinesen possuía hábitos e comportamentos que estavam mais
em consonância com a visão normativa de masculinidade, como, por exem-
plo, a prática da caça e a administração financeira de seus negócios, dentre ou-
tras tarefas, em início do século XX, incomuns para mulheres:

Eu já havia participado de um safári de caça antes, mas até então nunca ficara sozi-
nha com africanos. (BLIXEN, 1937, p.300)

A situação tornou-se muito difícil na fazenda. Não podíamos saldar nossas dívidas,
e não tínhamos como manter as plantações. [...] Elaborei vários esquemas para a
salvação do negócio. (BLIXEN, 1937, p.363-364)

Administrar uma fazenda é um fardo pesado. Os nativos e europeus que dela de-
pendiam preferiam deixar por minha conta os problemas e as preocupações [...].
(BLIXEN, 1937, p.366-367)

Conforme referido em nossa introdução, compreendemos gênero como


“o aparato pelo qual a produção e a normalização do feminino e do mascu-
lino ocorrem, juntamente com as formas intersticiais hormonais, cromos-
sômicas, psíquicas e performativas que gênero assume” (BUTLER, 2004,
p.695). A partir de tal conceito, evidenciamos que alguns comportamen-
tos e posicionamentos da baronesa Blixen, desmontam o aparato pelo qual
tais termos foram sendo construídos e naturalizados ao longo dos tempos.
Como sujeita mulher que se entendia como gestora de sua própria vida,
numa sociedade que condicionava as mulheres a uma eterna dependência
masculina, Karen Blixen desconfigurou e rompeu com o modelo hegemôni-
187
co, restritivo e regulador de gênero em suas operações de poder e naturaliza-
ção de normas modeladoras (feminino X masculino).
Por esse prisma, ao desconstruir (conscientemente ou não) as práticas so-
ciais e proibições codificadas (gravadas) no inconsciente das/os sujeitas/os
a partir de suas “posições” sociais, Blixen desregulou uma ordem simbólica
que determinava os limites do “feminino” e do “masculino” e do que uma
mulher “deveria/poderia” ou não fazer.
Em relação ao amor pelo primo Hans Blixen e o casamento com o irmão
gêmeo dele, o primo Bror Blixen, evidenciamos como as posições simbólicas
de parentesco foram atravessadas por outro tipo de regulação: a sedimenta-
ção da prática social do casamento como uma “lei universal” da cultura, nos
termos de Lévi-Strauss. Nesse cenário, Karen Blixen transgridiu a proibição
simbólica do incesto e, também, desconfigurou as relações de parentesco,
rompendo a imposição de distanciamento de corpos regulada pela esfera
simbólica (social e intersubjetiva) para, contudo, estar em consonância com
a “lei universal” do casamento.
Nesse aspecto, evidenciamos a força de atuação do que Foucault (2017) de-
nominou dispositivo de aliança. Segundo o filósofo, em todas as sociedades as
relações de sexo deram lugar ao sistema de matrimônio para a fixação e desen-
volvimento de parentescos, transmissão de nomes e bens. Assim, Karen Blixen,
vislumbrando tornar-se a baronesa Karen Dinesen cedeu ao dispositivo mencio-
nado por Foucault (2017), ordenado por uma homeostase do corpo social que
se articulou com a economia na transmissão e circulação de riquezas.
Sendo assim, fica exposto a partir de alguns posicionamentos sociais entre
Karen Blixen e as mulheres somalis que, todas, inconscientemente regula-
das por normas, buscaram inibir atividades específicas e seguir parâmetros
sociais. Contudo, destacamos que embora inconscientemente regulada, a
baronesa Isak (“aquele que ri”) divergiu grandemente das mulheres nativas
com as quais conviveu. Todavia, entre normas e regulações, a sujeita (sujei-
tada a) Isak Dinesen atravessou normas abstratas, condicionou e/ou direcio-
nou sua vida a partir de suas próprias necessidades e demandas contextuais,
rompendo muitas formas de regulação.

Uma escrita como re-visão


Fazendo uma re-visão dentro da biografia e relatos de Karen Blixen, sob
as reflexões de Adrienne Rich (2017), observamos o caráter inovador em re-
188
lação ao “sagrado cânone cavalheiresco do modelo de feminino” vivenciado
às margens de espaços patriarcais por Blixen em A Fazenda Africana (1937).
A baronesa européia, contemporânea a um século (XX) cujo patriarca-
do (dominação masculina) era predominantemente compreendido como
um modelo original de opressão sobre o qual todos os outros se apoiavam
(econômico, social, cultural, por exemplo), desafiou (inconscientemente ou
não), muitas práticas da supremacia masculina.
Ignorando o fantasma dos julgamentos masculinos, tanto pessoais quanto
profissionais, em uma cultura controlada (majoritariamente) por homens,
Dinesen, em seus relatos e vivências, mostrou sua linguagem, estilo, sensi-
bilidade e contato com seu próprio eu, a despeito de quaisquer prescrições
estilísticas e literárias masculinas.
Tendo vivido em uma sociedade cujo padrão editorial da época era ho-
mens publicarem, Karen Blixen, sob pseudônimo masculino Isak Dinesen,
teve seus escritos lançados e traduzidos em diversas regiões do mundo, sem,
contudo, ter sua identidade feminina ocultada. Segundo Adrienne Rich
(2017) acerca da predominância masculina na literatura:

Nenhum escritor homem escreveu exclusiva ou principalmente para mulheres, ou


considerou a crítica das mulheres ao escolher seus assuntos, seu tema, sua lingua-
gem. Mas, em maior ou menor grau, toda escritora escreve para homens, mesmo
quando [...] deveria estar se dirigindo a mulheres. Se chegamos a um ponto em que
esse equilíbrio pode começar a mudar, em que mulheres podem deixar de ser as-
sombradas não só pela “convenção e propriedade”, mas pelo medo internalizado de
ser e de se dizer, então este é um momento extraordinário para a escritora – e leitora
(RICH, 2017, 86).

Nesse sentido, ratificamos os desafios enfrentados por Blixen em sua escri-


ta despida de receios diante de um universo até então, preponderantemente
masculino. Assim, Isak ou Karen subverteu a lógica editorial da época, pois
embora Isak, ou seja, mascarada sob a face de um homem, todo conteúdo
biográfico da obra de Dinesen foi protagonizado por ela mesma que regis-
trou seus relatos não só para mulheres ou homens, sem medo de ser e de se
dizer mulher e escritora da própria história. Portanto, Blixen negou tudo o
que Rich (2017) chama de “a força masculina das palavras”, na medida em
que construiu, ela própria, sua imagem e identidade que por sua vez des-
constroem a imagem da mulher em livros escritos por homens, sobretudo,
nos séculos passados (virginal, elegante, intelectual e discreta).
189
Em uma sociedade na qual as mulheres de classe média viam a perfeição
doméstica como carreira, Karen cedeu ao poder e normatização social, ca-
sando-se com o primo Bror Blixen para obter o título de baronesa. Contudo,
conduziu seu próprio destino sem auxílio do marido, sempre ausente e, pos-
teriormente, divorciando-se. Sem filhos, com uma doença considerada muito
grave (sífilis) e, ainda, mantendo um conturbado relacionamento afetivo com
amigo Denys, Blixen admitiu uma postura um tanto subversiva ao seu século.
Estabelecendo um novo diálogo com Foucault (2017) quanto ao cuidado
de si, observamos a atividade de escrita dos acontecimentos cotidianos da
baronesa, também, como uma possibilidade de avaliar suas ações, pois nela,
explicitava tanto suas falhas quanto suas virtudes. Sob a teoria de Foucault
(2017), ressaltamos que a escritora recuperava e reativava as regras conhe-
cidas e consideradas como verdades a serem seguidas e, nesse exercício de
meditação, transformava a ação dos indivíduos sobre o mundo e a relação
consigo mesma.
Para Foucault (2017), o modo pelo qual cada um entende a si e o mundo
está relacionado a jogos de verdade que estabelecem os conceitos de falso e
verdadeiro, correto, incorreto, adequado e inadequado, sinalizando o que
pode ser considerado como ética. Nesse viés, podemos perceber como são
constituídos os diferentes modelos de feminino experienciados por Blixen e
as somalis nativas.
Observando as práticas inventivas de si e de relação consigo mesmas, pre-
sentes nos sucessivos episódios da vida cotidiana, desvendamos os jogos e
conjuntos de verdades que permearam, elaboraram ou foram construídas a
partir das mulheres da narrativa de Blixen. Na visão Foucaultiana, a relação
com o outro se faz por meio da escrita, pois é através dela que experiên-
cias pessoais são eternizadas no papel e, posteriormente, difundidas. Sendo
assim, leitura e escrita funcionam como técnicas de si, uma vez que tanto
redator quanto o leitor entram em contato com as prescrições vigentes, que
se tornam verdades as quais balizam as ações e pensamentos de ambos. Isso
implica que os sujeitos objetivam sua conduta diária e suas percepções de
mundo por meio dos exercícios de escrita e leitura.
Transportando estas reflexões para a prática literária de Karen Blixen, no-
tamos que a escritora, ao posicionar-se diante dos regimes de verdades, cons-
tantes na prática de escrita de si, seja catando-os, seja tangenciando-os, utili-
zou escrita e leitura como processo de subjetivação e de re-visão ou re-olhar
190
sobre si e sobre o mundo. Assim, Karen Blixen, baronesa, divorciada, com um
relacionamento afetivo incerto com um amigo, médica por necessidade, escri-
tora e intelectual, experienciou um diferente modelo de feminino que a confi-
gurou uma mulher plural e subversiva ao imaginário de meados do século 20.
Mesmo em uma literatura “apolítica” ou não considerada pela autora ou
críticos literários como feminista, a baronesa Isak subverteu as lógicas do
imaginário literário masculino sobre o feminino, desnudando vivências que
em seu período cronológico (1937), desafiavam o legado e tradição patriar-
cal, social, cultural e, sobretudo literário.

Uma baronesa europeia no Quênia


Com as contribuições de Gayatri Spivak (1999), teço, brevemente, algu-
mas observações acerca do posicionamento de Karen Blixen como escritora,
dentro de um país africano. Embora pertencente à “cultura” dominante (ba-
ronesa, européia, branca e rica), Blixen em sua escrita e vivências não com-
partilhava com autores homens a tendência de criar um incipiente “outro”
(frequentemente feminino) em relação aos nativos com os quais se reporta-
ria como se fossem “o mesmo” sujeito do noroeste europeu.
Vivenciando a literatura européia do início do século XX como inserida
ainda em um contexto imperialista (não superado), compreendido por sua
vez, como uma missão social da Inglaterra que passou a representar a seu
modo a cultura dos colonizados quase sempre subjugada à sua, Blixen cons-
truiu seus relatos sem uma narrativização imperialista da história.
Convivendo e conhecendo a cultura africana local (somali, quicuius, den-
tre outras), os escritos de Karen foram de encontro à uma literatura indi-
vidualista. Embora avessa ao modelo de feminino local (virginal, recatada,
maternal, por exemplo) a autora conheceu e descreveu com respeito e ad-
miração a cultura nativa. Contudo, embora avessa à “sociedade-doméstica-
-via-reprodução-sexual”, como denomina Spivak (1999), a baronesa regis-
trou e ainda conviveu com a atuação da “sociedade-civil-via-missão-social”.
Todavia, Blixen se posicionava como alguém que apresentava a cultura do
colonizador, sem a pretensão de sobrepô-la à nativa:

Perguntei aos padres franceses se poderia levar o grupo de jovens muçulmanas para
conhecer a Missão e, quando assentiram de maneira afável e animada – contentes
com algo que ia romper sua rotina -, certa tarde fomos até lá. Uma a uma as moças
entraram solenemente na fresca igreja. Nunca haviam entrado em um edifício tão
191
imponente. Ao voltarem os olhos para o alto, colocaram as mãos sobre a cabeça de
modo a se proteger caso o teto desmoronasse. Também nunca haviam visto nada
parecido com as estátuas existentes na igreja, com exceção do cartão postal com a
imagem de Cristo (BLIXEN, 1937, p.206)

Nesse sentido, como explica Spivak (1999) sobre as práticas literárias e


editoriais que “subalternizam os nativos”, notamos que Karen seguiu e/ou
construiu um modelo intelectual que compreendeu a pluralidade dos sujei-
tos e, principalmente, das “sujeitas” femininas africanas. Como uma artista
individual que explorou um campo discursivo à sua disposição, Karen mo-
vimentou a estrutura narrativa de A Fazenda Africana (1937) compreen-
dendo e expondo suas experiências como enriquecimento trans e/ou inter-
cultural-histórico.

Quanto a mim, já nas minhas primeiras semanas de África, fui tomada por uma
enorme afeição pelos nativos. Era um sentimento intenso que abarcava todas as ida-
des e ambos os sexos. A descoberta das raças negras foi, para mim, um esplêndido
alargamento de todo o meu mundo. [...] Depois de ter conhecido os nativos, a me-
lodia deles passou a influenciar toda a rotina dos meus dias. (BLIXEN, 1937, p.30)

Assim, a baronesa Dinesen recusou ao que Spivak (1999) denominou como


“encenação colonial simpática e solidária” à situação de negação à troca cultu-
ral entre nativos africanos com o sujeito colonial, dando lugar a experiências
de interação social com os nativos sem encenar ou propor em seus escritos, “a
mentira de uma irmandade global” (SPIVAK, 1999, p.619). Desse modo, os
relatos autobiográficos de Dinesen expõem sem repressão, uma pluralidade de
sujeitos e sujeitas que, em suas singularidades, compõem a verdadeira riqueza
e beleza d’ A Fazenda Africana: a África desnuda e os seus.

Considerações Finais
Diante dos relatos de Karen Blixen em A Fazenda Africana (1937), obser-
vamos como os gêneros foram experienciados nas culturas europeia e africana,
através de uma pluralidade de sujeitas/os em experiências de interação social.
Numa sociedade (neste caso, a africana) de poderes hegemonicamente
masculinos, Blixen foi, sob alguns aspectos, sujeita a algumas regulações in-
trojetadas por processos de naturalização, mas, também, e, sobretudo, mu-
lher que desafiou as normas sociais impostas, rompendo com determinações
comportamentais, compreendendo-se como sujeita de si mesma.
192
Assim, estabelecendo uma convivência interativa entre identidades, cul-
turas e regulações sociais distintas, Karen Blixen construiu sua identidade
de gênero que em um início de século ainda predominantemente patriarcal,
desconfigurou de modo singular o modelo de mulher feminina até então,
preeminente (virginal, elegante, intelectual e/ou discreta).

Referência Bibliográfica
BLIXEN, Karen. A Fazenda Africana. Tradução Cláudio Marcondes. Rio de Janeiro: Editora
Civilização Brasileira, 1987.

BUTLER, Judith. BRANDÃO, Izabel (Org.). “Regulações de Gênero”. In Traduções da Cultu-


ra: Perspectivas Críticas Feministas (1970-2010). Tradução Ana Cecília Acioli Lima. Florianópolis:
EDUFAL, Editora UFSC, 2017.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Tradução Maria Thereza Albuquerque e Gui-


lhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2017. Volumes 1, 2 e 3. 6ª edição.

RICH, Adrienne. BRANDÃO, Izabel (Org.). “Quando da morte acordamos: a escrita como
re-visão”. In Traduções da Cultura: Perspectivas Críticas Feministas (1970-2010). Tradução Susana
Funck. Florianópolis: EDUFAL, Editora UFSC, 2017.

SPIVAK, Gayatri. BRANDÃO, Izabel (Org.). “Literatura”. In Traduções da Cultura: Perspecti-


vas Críticas Feministas (1970-2010). Tradução Regina Almeida e Alcione Silveira. Florianópolis:
EDUFAL, Editora UFSC, 2017.

THURMAN, Judith. A vida de Isak Dinesen (Karen Blixen). Tradução Aulyde Soares Rodri-
gues. Rio de Janeiro: Editora Record, 1982.

Filmografia:
ENTRE DOIS Amores. (Out of Africa). Direção: Sidney Pollack. Roteirização: Kurt Luedtk.
Los Angeles, 1985. (160min), colorido.
193
FORMAÇÃO LEITORA DOS PROFESSORES DE FRANCÊS NO
CONTEXTO DA PRÁTICA DE ENSINO

Patricia Ana Wechsler


UERJ

Resumo: Este estudo apresenta uma proposta de pesquisa de tese em an-


damento com vistas a entender a compreensão leitora ensinada no contexto
da prática de ensino de francês e de que modo à tecnologia é inserida e traba-
lhada neste âmbito. Para tanto, consideramos que a leitura é uma competên-
cia que deve ser ensinada, aprendida, adquirida e aperfeiçoada ao longo da
vida. Como metodologia, propomos um estudo de caso com docente(s) de
prática de ensino de francês de uma universidade pública no estado do Rio
de Janeiro que será organizada em três etapas distintas: uma documental,
uma entrevista semiestruturada e um estudo etnográfico. A abordagem de
análise utilizada será qualitativa.

Palavras-chave: Leitura. Tecnologia. Prática de ensino. Língua francesa.

Introdução/ Justificativa
Por causa da globalização e o uso frequente de diversos recursos tecnoló-
gicos no cotidiano, a comunicação entre nações passa a ser mais constante.
Para que estas interações sejam bem sucedidas é necessário termos em nos-
sa sociedade cidadãos críticos e reflexivos. Neste contexto, a leitura é vista
como um caminho para conseguir tais objetivos, uma vez que ela abre portas
para se alcançar o conhecimento e permite que as pessoas se atualizem. O
acesso à informação é uma das ferramentas mais importantes, pois possibili-
ta a ascensão social, ao mesmo tempo evita a marginalização ou exclusão dos
sujeitos perante a sociedade.
Soma-se o fato de que na maioria das vezes no meio virtual as notícias são
difundidas prioritariamente através da escrita, o que demanda o processo
leitor. Em virtude disto, podemos afirmar que o ato de ler é bastante pre-
sente em diversos momentos de nossas vidas. Contudo, não é concedida a
194
leitura a sua devida importância, uma vez que o Brasil é caracterizado por ser
um país composto por uma população com baixo índice de leitores.
De acordo com a pesquisa intitulada Retratos da Leitura no Brasil (2016),
44% da população brasileira não lê e 30% nunca comprou um livro. Acre-
ditamos que esta falta de fomento ao hábito de leitura ocorre, pois quanto
maior a proporção de indivíduos escolarizados, mais difícil será a sua ma-
nipulação e alienação. Desta forma, não é interessante nem para elite como
tampouco para os governantes, a existência em nossa sociedade de cidadãos
capazes de reivindicar os seus direitos. Consequentemente, esta postura aca-
ba gerando uma educação pública, com uma carência de qualidade de ensi-
no e uma ausência de incentivo à leitura.
No que diz respeito aos resultados obtidos através do Programa Interna-
cional de Avaliação de Estudantes (PISA, na sigla em inglês) realizado em
2016, o Brasil ocupa a 59ª posição quando o assunto é desempenho em lei-
tura. Considerando-se os baixos índices de leitura vigente na população bra-
sileira faz-se necessário investigar mais sobre o ato de ler, no que diz respeito
a averiguar qual conceito de leitura está presente no contexto escolar.
Pautando-nos em nossa experiência, podemos afirmar que comumente
a compreensão leitora no ensino é atrelada à ideia de decodificação. Porém,
para ensinar uma criança a ler não é suficiente apenas apresentar as letras,
fazê-la decorar e a juntar as formas gráficas. Saber decodificar não implica
dizer que os alunos estariam em seguida lendo com eficiência qualquer tex-
to, num simples jogo de decifração. Esta perspectiva está de acordo com
Cuq e Gruco (2017, p. 166) que aponta que “ler não consiste em decodificar
signos ou unidades gráficas, mas sim na construção de um sentido a partir
da formulação de hipóteses de significados, constantemente redefinidas ao
longo do ato de leitura e da exploração do texto”.
Neste estudo, compreendemos o conceito de leitura fundamentando-nos
em uma visão sociointeracional. Baseando-nos em Koch e Elias (2012, p.11),
consideramos a compreensão leitora como “uma atividade interativa altamente
complexa de produção de sentidos, que se realiza evidentemente com base nos
elementos linguísticos da materialidade textual e na sua forma de organização,
mas requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes no interior do evento
comunicativo”. Em virtude do seu caráter essencialmente interativo, a leitura
engloba diferentes fontes de informação em diálogo, associamos, como Vergna-
no-Junger (2009), este modelo à perspectiva multidirecional de leitura.
195
Apoiando-nos em Coracini (2002, p.14), podemos afirmar que “o leitor,
portador de esquemas (mentais) socialmente adquiridos, acionaria os seus
conhecimentos prévios e os confrontaria com os dados do texto, “construin-
do”, assim, o sentido”. Por causa disto, podemos considerar o receptor, em
certa medida, como um coautor do texto.
Diante disso, ressaltamos que não existe uma supremacia nem do texto e
nem do leitor, mas ambos estabelecem uma relação interativa na construção
do sentido durante o ato de ler. Conforme Macedo (2015), a ênfase da lei-
tura sociointeracional é autor-texto-leitor. Em consonância com esta ideia
Koch e Elias (2012, p.11) afirmam que:

O sentido do texto é construído, levando-se em consideração o que está posto na


superfície textual pelo autor e os conhecimentos do leitor que, durante o processo
de leitura, deverá assumir um papel ativo, ou seja, uma atitude que exigirá dele a mo-
bilização de estratégias, tais como seleção antecipação, inferência, verificação, que o
auxiliem na construção do sentido do texto.

O ato de ler demanda do leitor um papel ativo, pois à medida que ele lê o
texto, o receptor deve ter a capacidade de completar as lacunas textuais. O
acionamento do conhecimento prévio é essencial para a compreensão textu-
al, pois se o leitor antes de efetuar a leitura do texto, ele já tiver uma noção
do assunto a ser lido, este fato contribuirá para um melhor entendimento
textual. Além disso, ao se deparar com o texto, o receptor mobiliza diferen-
tes estratégias que o auxiliam na construção do sentido textual.
Tendo em vista que os professores são os profissionais incumbidos pelo
ensino da compreensão leitora na escola, ele é consequentemente responsá-
vel pelos resultados positivos e negativos escolares, o que pressupõe o desem-
penho leitor de seus discípulos. Portanto, cabe refletir sobre a formação do-
cente e as práticas leitoras priorizadas no âmbito do ensino-aprendizagem.
A escola tem sido o locus priorizado para o desenvolvimento da compre-
ensão leitora, já que muitos alunos não possuem o hábito de ler em casa. Em
virtude disto, concerne à instituição escolar incentivar o costume de ler, pois
conforme a proficiência leitora é aprimorada portas são abertas para uma
melhor qualificação profissional, inserção social e o exercício da cidadania.
Para despertar o gosto pela leitura é imprescindível que os docentes leiam.
Quanto mais letrados forem os professores, consequentemente eles terão
mais chances de estarem aptos a formarem alunos letrados.
196
Pautando-nos em Schön (2000), concordamos que o docente tem a ne-
cessidade de refletir sobre o seu trabalho e sempre estar em constante atu-
alização repensando a sua metodologia. Porém, para os professores serem
profissionais que reflitam sobre a sua prática docente é necessário haver uma
mudança qualitativa durante o seu processo de formação. Neste contexto,
a leitura deve ocupar um lugar de relevância e ser vista como um importan-
te instrumento para a formação humana. Consequentemente esta postura
qualitativa descarta o ensino tradicionalista e dá preferência a uma prática
construtivista que compreenda que a reflexão docente é primordial para o
entendimento da realidade.
Por conseguinte, a priorização de um processo educacional pautado pelo
construtivismo contribui para a desmistificação da posição passiva do edu-
cando. Além disto, este modelo de ensino-aprendizagem potencializa o de-
senvolvimento da prática crítico-reflexiva.
Todavia, muitas vezes a realidade de um professor no seu cotidiano exaus-
tivo de trabalho não é a de reflexão. As razões para esta ausência de pensa-
mento reflexivo em seu ofício são diversas, tais como: baixa remuneração,
escassez de recursos e infraestrutura básica, assim como também a falta de
motivação e interesse dos alunos.
Apesar das péssimas condições de trabalho vivenciadas pelos docentes e o
aviltamento de seus salários ainda podemos, afirmar que a educação possibi-
lita as pessoas à ascensão social e tem a finalidade de preparar os indivíduos
para o exercício da cidadania. Considerando o papel fundamental do docen-
te no contexto educacional, a formação de professores é questão central no
que diz respeito ao processo educativo. Concordamos com Esteve (2004)
que enfatiza que a qualidade do ensino depende da qualidade dos professo-
res, isto é, um bom trabalho educacional está associado a uma formação de
excelência do pessoal que nela trabalha.
Cabe ao professor, não apenas ministrar suas aulas, mas sim este profis-
sional precisa ter uma boa formação para se mostrar preparado para adaptar
os seus ensinamentos em função das necessidades dos seus discentes. Além
disto, o docente tem a incumbência de realizar pesquisas, preparação de ma-
terial, planejamento do curso e refletir sobre a reconstrução de sua prática.
Todas estas atividades mencionadas pressupõem um profissional extrema-
mente reflexivo e em constante formação.
Ademais, para que o docente consiga refletir sobre a sua prática pedagó-
197
gica é necessário que ele possua um grande embasamento teórico que lhe
permita este questionamento sobre a metodologia utilizada. Quando isto
não se concretiza, a tendência é o professor ficar acomodado e priorizar ati-
vidades mecânicas que serão respondidas sem que seja necessário, uma refle-
xão aprofundada.
Ainda que existam imposições didáticas e metodológicas das instituições
é conveniente que o professor tenha uma postura decisiva em sala de aula e
esteja preparado para fazer o seu trabalho respeitando a sua perspectiva de
ensino. Porém, esta atitude só é possível quando o docente reflete sobre o
que está ao seu redor, assim como também a sua prática pedagógica.
No que diz respeito à valorização do repertório cultural dos alunos duran-
te o ensino, pautando-nos em Freire (2005), podemos considerar que todo
mundo sabe alguma coisa. Partindo deste princípio, o professor no decorrer
do processo de aprendizagem precisa levar em conta e apreciar o conheci-
mento prévio de seus alunos.
O diálogo deve ser uma condição sine qua non para o ensino. Dessa forma,
o docente deixa de ser o detentor do saber e a construção do conhecimento
se concretiza na interação entre professor e discente. Em consonância com
esta ideia Freire (2005, p. 12) ressalta que:

[...] de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para
a sua produção ou a sua construção. [...] embora diferentes entre si, quem forma se
forma e re-forma ao formar e quem é formado forma-se e forma ao ser formado. É
neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos nem formar
é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso
e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos,
apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do
outro. Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Quem
ensina ensina alguma coisa a alguém.

Nesta perspectiva, o educador e o educando estão em uma relação horizon-


tal e a aprendizagem ocorre através da troca colaborativa entre professor e alu-
no. O discente tem um papel ativo no processo de construção do conhecimen-
to, a produção do conhecimento se concretiza de forma dialética e dinâmica.
O intercâmbio contínuo entre alunos e professores é extremamente rele-
vante e produtivo para o aprendizado, uma vez que os discentes adquirem
confiança e aprendem. Assim como os docentes possuem a oportunidade de
aprimorarem a sua prática pedagógica.
198
Deste modo, o professor é um profissional que deve atualizar-se constan-
temente. Sobre a relevância da formação continuada, Celani (2003) aponta
para a necessidade de um processo longo e ininterrupto, associado com a
prática da sala de aula na qual a transmissão de conhecimento ganha menor
destaque cedendo espaço para o desenvolvimento de um processo reflexivo
que acarretará em mudanças nas crenças e nas práticas.
Corroboramos com este posicionamento, pois a estagnação após a gradu-
ação ou a pós-graduação, pode estimular a reprodução do modelo arcaico
e mecânico. Para que o docente não se torne um profissional acomodado
reprodutor de práticas que priorizem não o entendimento, mas sim a me-
morização, ele deve descartar automatismos e buscar novos conhecimentos.
Em virtude disto, além de reflexivo o docente precisa ser pesquisador, pois à
medida que ele se atualiza o seu trabalho em sala é repensado e reformulado.
O professor que possui consciência das estratégias mobilizadas para alcan-
çar o conhecimento procurado, ele apresentará maiores chances de conquistar
a autonomia, o que é imprescindível para este profissional. Sendo assim, de-
fendemos a ideia de que um professor autônomo estará mais preparado para
exercer a sua atividade docente e possibilitar uma aprendizagem significativa
para os seus alunos. No conceito de autonomia está implícita a ideia de troca,
relação com o outro. De acordo com esta perspectiva o conhecimento será
construído colaborativamente na interação entre professor e discentes.
A construção do conhecimento coletivo favorece a formação de alunos
autônomos, aptos para escolherem seus próprios caminhos. A autonomia
contribui para o desenvolvimento da criticidade, como também para o exer-
cício da cidadania e inserção destes discentes na sociedade.
Isso posto, temos como questões que guiam o nosso trabalho: Que concep-
ções de leitura norteiam a formação de futuros professores na universidade?
Sendo a universidade considerada como instituição formadora de futuros mul-
tiplicadores de leitores, a prática leitora ensinada contribui para o letramento na
era digital dos futuros docentes inseridos na sociedade da informação?
Para respondermos as perguntas propostas neste estudo, traçamos os se-
guintes objetivos:
1. Investigar qual o papel que a leitura ocupa na formação leitora dos fu-
turos professores;
2. Verificar as práticas leitoras privilegiadas durante o processo de aprendi-
zagem dos alunos de prática de ensino;
199
3. Descrever de que maneira a universidade contribui para o letramento
na era digital desses futuros formadores de leitores;
4. Identificar se nas práticas universitárias propostas são consideradas as
bagagens leitoras dos alunos.
Considerando que nossa pesquisa está ainda em andamento, neste arti-
go, apresentamos o primeiro recorte de um estudo mais amplo que tem o
intuito de responder as questões expostas. Selecionamos os conceitos teóri-
cos que subjazem a este estudo, bem como a caracterização da pesquisa nos
tópicos a seguir.

Compreensão leitora
Nesta parte do estudo ressaltamos as diferentes concepções de prática lei-
tora ao longo do tempo e destacamos suas respectivas características. Para
tanto, nos fundamentamos em Moita Lopes (1996), que associa a leitura a
três possíveis modelos: ascendente, descendente e interativo.
Algumas perspectivas de leitura defendem que a atenção se volta sobre o
texto e outras no leitor. No entanto, de acordo com a perspectiva unidirecio-
nal o foco incide em somente um dos elementos no processo de informação.
Esta ideia está em consonância com Vergnano-Junger (2009, p.70), que apon-
ta que “não importa se a ênfase recai sobre o texto ou sobre o leitor, mas sim
que apenas um caminho é escolhido de cada vez”. Desta maneira, ou se con-
sidera que a informação reside no texto, ou que o leitor tem uma participação
ativa e é responsável pela construção do sentido durante a leitura.
Na perspectiva unidirecional, podemos incluir dois modelos de leitura:
o ascendente e o descendente. Primeiramente, temos o modelo ascendente
(bottom-up) que propõe uma leitura decodificadora. O leitor é visto como
passivo e todo significado está atrelado à materialidade linguística textual.
Corroborando com esta ideia em relação a este modelo de leitura, Jeronimo
(2012, p.85) ressalta que “Evidentemente, há leitores que permanecem, ao
longo da sua experiência de vida, realizando apenas uma leitura mecânica e
não conseguem ultrapassar o nível da decodificação”.
No que diz respeito ao modelo descendente (top-down), o foco desloca-
-se da materialidade linguística textual e incide sobre o leitor, que tem uma
participação ativa durante a compreensão textual. É o receptor que atribui
significados ao texto acionando os seus conhecimentos prévios. Pautando-
-nos em Kato (2007), podemos ressaltar que no processamento descendente
200
o leitor apreende as ideias principais do texto, contudo ele lê de modo mais
rápido podendo desta forma fazer adivinhações excessivas.
Em oposição aos modelos unidirecionais, temos a perspectiva multidi-
recional da informação (VERGNANO-JUNGER, 2010), que se realiza
através do processamento ascendente e descendente ocorrendo simultane-
amente, em diálogo e interação. Nessa abordagem, abre-se o leque de possi-
bilidades de interpretações, são levados em conta não somente os elementos
linguísticos, mas também os não linguísticos. Esta concepção está em con-
sonância com o fato de que “ler é também a reconstrução/negociação de
sentidos de imagens e sons (não apenas de materiais verbais)” (VERGNA-
NO-JUNGER, 2010, p.4).
Para complementar o modelo interativo surgiu o modelo sociointeracio-
nal que é a perspectiva leitora com a qual trabalhamos. Esta visão leva em
conta que a interação texto-leitor se concretiza por diversos aspectos con-
textuais que influenciam e contribuem para o siginificado textual. Concor-
dando com este ponto de vista Kleiman (1989, p. 39) ressalta que “a leitura
ocorrerá na relação do locutor com o interlocutor através do texto e na de-
terminação de ambos pelo contexto”.

Letramento na era digital


Pautando-nos em Soares (2003), consideramos que letrar significa mais do
que alfabetizar, pois um indivíduo alfabetizado não necessariamente é letra-
do. Uma pessoa alfabetizada é aquela que sabe ler e escrever. A alfabetização
é o aprendizado das primeiras letras, é o conhecimento do sistema alfabético
e da ortografia, são as práticas iniciais da escrita. O letrado também sabe ler
e escrever, mas, ao mesmo tempo, é capaz de responder adequadamente às
demandas sociais da leitura e da escrita.
Os avanços tecnológicos influenciam mudanças no ato de ler e conse-
quentemente o surgimento de diversas práticas sociais. O contato com os
textos digitais passa a ser mais frequente no cotidiano e acaba originando a
necessidade de um letramento no ambiente digital para saber como usufruir
destes recursos tecnológicos. Neste contexto, temos a presença de suportes
tecnológicos que aumentam as possibilidades de exploração de novas formas
de leitura e contribuem para a ampliação do letramento dos seus usuários.
Para Buckingham (2010) o letramento digital não consiste apenas em sa-
ber utilizar o computador e realizar pesquisas; é preciso saber selecionar e
201
localizar as informações. Além disso, o teórico ressalta que ter habilidades
para recuperar as informações na Internet não é suficiente para ser letrado,
mas sim o leitor necessita estar apto para “avaliar e usar a informação de for-
ma crítica se quiser transformá-la em conhecimento” (BUCKINGHAM,
2010, p. 49).

Caracterização da pesquisa
Para construir as etapas teórico-metodológicas optam-se, como técnicas
investigativas da presente pesquisa, pela análise documental das ementas da
disciplina de prática de ensino de língua francesa, assim como também a
realização de entrevistas semiestruturadas com os docentes desta matéria.
Além disto, observaremos e faremos a transcrição das aulas. Os registros dos
cursos serão feitos através do uso de gravadores dispostos na sala mediante
autorização prévia dos professores responsáveis que administram as disci-
plinas. Conforme demanda a ética de pesquisa apagaremos a identidade de
todos os participantes.
Na primeira etapa metodológica da pesquisa, nos dedicaremos a uma
análise documental das ementas das disciplinas prática de ensino de francês.
Observamos que o fluxograma de letras português-francês é composto por
10 disciplinas de prática eletivas. Porém, para concluir o curso, o aluno pre-
cisa apenas cursar 2 matérias.
Para esta pesquisa dentre as 10 opções de disciplinas, selecionamos como
corpus para análise somente duas. Fizemos este recorte, pois apenas o título
de ambos os cursos estão relacionados com a nossa problemática de estu-
do proposta, o que justifica a nossa escolha. Sendo assim, nos ateremos a
investigar as ementas das disciplinas Produção Material Didático de Com-
preensão Leitora em Francês e Prática de Ensino em Língua Francesa II – O
Uso de Novas Tecnologias. Mapearemos os documentos e utilizaremos os
seguintes critérios norteadores para análise das ementas:
a) Evidenciaremos de que modo à compreensão é mencionada nos documen-
tos e se existe uma preocupação metodológica de como ela deve ser desenvolvida;
b) Observaremos se o aspecto digital é contemplado ou não e caso ele este-
ja presente, averiguaremos em qual contexto a tecnologia é inserida;
c) Verificaremos se nos objetivos e conteúdos propostos nas ementas é
explicitado como se trabalhar a leitura e a tecnologia em sala de aula;
d) Investigaremos se as bibliografias propostas nas ementas estão em con-
202
sonância ou apresentam inconsistência com o conteúdo e os objetivos a se-
rem alcançados.
Partimos do pressuposto de que a leitura é naturalizada, ou seja, não é
mencionada ou quando é citada está atrelada à ideia de uma das quatro ha-
bilidades linguísticas a serem desenvolvidas. Portanto, não existe uma pre-
ocupação metodológica sobre de que maneira trabalhá-la, pois pressupõe
que as pessoas alfabetizadas já são leitoras. Pautando-nos em Leffa (1996),
defendemos que o ato de ler envolve estratégias que precisam ser ensinadas,
e não é possível fazer a leitura de um texto sem uma boa proficiência. Em
consonância com esta ideia Solé (1998) ressalta que é imprescindível um
ensino de estratégias de leitura.
No que concerne à tecnologia, defendemos a ideia de que ela é apenas uti-
lizada como fonte de busca ou receptáculo de material. Partimos do pressu-
posto de que ainda persiste na universidade uma predominância do suporte
impresso durante a aula.
Optamos neste estudo pela realização de entrevistas, pois consideramos
que este instrumento possibilita o acesso ao saber e a visão particulizada de
um determinado grupo. No caso em questão, restringimos-nos aos docentes
de prática de ensino de francês em virtude da problemática de pesquisa a ser
investigada e por ser a nossa área de atuação.
No que diz respeito à estruturação da entrevista, de um modo geral, ela
acontece através de uma série de perguntas dirigidas ao entrevistado relacio-
nadas ao tema estudado. Devido a este caráter de troca interacional entre o
pesquisador e o entrevistado, a entrevista é comparada a um diálogo.
Neste trabalho, a entrevista será realizada nas dependências da faculdade
onde é ministrado o curso da prática de ensino de língua francesa. O dia e
horários serão definidos pelos entrevistados, tendo sido previamente acor-
dada a gravação em áudio com posterior transcrição. Para cada professor en-
trevistado será apresentado um termo de consentimento livre e esclarecido,
deste modo asseguraremos a não identificação dos participantes no material
da pesquisa conforme demanda a ética de estudo com sujeitos.
Primeiramente elaboraremos um roteiro de entrevista que nos servirá
como um elemento facilitador para uma melhor análise do problema e se for
preciso, em seguida, fazermos os ajustes que julgarmos necessários. No en-
tanto, sempre objetivando refletir e responder as perguntas propostas neste
trabalho. Por causa disto, a construção do roteiro priorizará: (a) as informa-
203
ções que serão obtidas ao longo da análise documental, no caso o enfoque
será as ementas da disciplina prática de ensino de francês; (b) os temas da
própria entrevista que estão relacionados com a problemática da pesqui-
sa; (c) levar em conta as hipóteses que temos de como os docentes atuam,
pautando-nos em nossa experiência profissional e em nosso conhecimento
teórico sobre o assunto; (d) o tempo para a concretização deste estudo; (e)
os recursos disponíveis; (f) o modo direto de acesso aos entrevistados, visto
que se estabelecia uma distância geográfica existente entre o entrevistador e
entrevistado que poderia comprometer a qualidade interacional.
Prentendemos articular todos os dados coletados ao longo da entrevista
com a base teórica levantada no decorrer deste estudo. Além disto, iremos
associar as informações obtidas nas entrevistas com as ementas do curso de
prática de ensino de francês, assim como também correlacioná-las às anota-
ções adquiridas durante as observações das aulas. Desta forma, no que diz
respeito à constituição do instrumento, a entrevista, precisou se levar em
conta: (a) os objetivos a serem alcançados; (b) os problemas que foram pro-
postos a ser respondidos; (c) as hipóteses que norteiam o estudo. Somente
depois do levantamento destas informações foi possível (d) estabelecer as
perguntas que nos permitiriam emitir uma opinião a respeito do instrumen-
to e para fazermos a sua adequação no que for necessário.
Com relação à última etapa da pesquisa consiste em um estudo etnográ-
fico, pois o pesquisador realizará in loco a observação e gravará em áudio 5
aulas de 2 tempos de cada professor entrevistado. Sendo que os primeiros
dois dias serão descartados, pois acreditamos que o grupo de alunos não agi-
rá naturalmente em virtude do estranhamento da presença do pesquisador
durante o curso.
Realizaremos uma observação direta não estruturada, uma vez que iremos
registrar em notas de campo, acontecimentos nas aulas que possam vir a
contribuir para a análise dos dados. Optamos por utilizar áudio e não vídeo
em virtude de seu caráter aparentemente menos invasivo, contribuindo des-
ta maneira para a preservação do anonimato dos participantes envolvidos.
Distribuiremos 4 gravadores pela sala com o intuito de captarmos a inte-
ração docente-alunos e alunos-alunos. Evidenciaremos as atividades leitoras
trabalhadas e de que modo à tecnologia é usada em sala. Nesta etapa, temos
como principais objetivos:
a) Descrever de que maneira a leitura é trabalhada neste contexto e qual a
204
sua relevância;
b) Observar de que o modo à tecnologia está presente neste contexto de
ensino-aprendizagem;
c) Comparar as consistências e contradições entre o que está priorizado
nas ementas com o discurso do professor e a prática ministrada.

Conclusão
A leitura e a capacidade de reflexão precisam ser estimuladas ao longo do
processo de aprendizagem. A universidade, da mesma maneira do que a es-
cola deve evitar automatismos e atividades de repetição. No que diz respeito
às práticas leitoras, estas instituições precisam implantar uma metodologia
que favoreça a ativação do conhecimento prévio e que prepare os alunos
para estarem aptos a completarem as lacunas textuais. Com estas condições
durante o processo de ensino, os discentes se apresentarão mais capazes e
prontos para penetrarem neste universo amplo do mundo da leitura.
No entanto, sabemos que apesar de o Doutorado ter a duração de 4 anos,
consideramos um tempo inviável para se realizar uma pesquisa exaustiva
sobre o assunto proposto. Objetivamos com este trabalho abrir caminhos
para que outros estudiosos reflitam sobre a relevância do desenvolvimento
da compreensão leitora na formação docente. Acreditamos que, através do
enriquecimento de estudos sobre o tema, a leitura conquiste cada vez mais
espaço na vida das pessoas.

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206
MEMÓRIA E RESISTÊNCIA – A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO
SÉCULO XVII NAS LETRAS

Patrícia Bastos49
UERJ - CAPES

Resumo: Entendendo resistência enquanto força que se opõe à outra, e por-


tanto como conceito diretamente ligado também ao conhecimento da História
– para resistir é necessário saber ao que se opõe - o presente trabalho tem como
objetivo discutir a importância da pesquisa e do ensino no que diz respeito às
letras Seiscentistas e à sociedade luso - brasileira do século XVII, considerando a
contribuição do período para a revitalização de discussões ainda atuais. Isto pos-
to, esse estudo fará uma inquirição acerca da produção da imagem feminina na
poesia atribuída a Gregório de Matos através de uma perspectiva que reconheça
a relevância do corpo e da anatomia vigente no período aqui abordado.

Palavras chaves: Século XII. Mulheres. Gregório de Matos.

Quando decidi pesquisar a poesia do século XVII através de um recorte que pri-
vilegiasse a construção das personagens femininas em Gregório de Matos já supu-
nha que encontraria não só a chave para algumas questões contemporâneas como
também uma série de indagações que poderiam, ou não, serem solucionadas.
Enquanto pesquisadora e sabendo que a trajetória se dá ao longo do ca-
minho, o que venho percebendo no decorrer desses já quase seis anos de
investigação sobre o tema é que as revelações sobre o período em questão,
no que concerne à gênese de tradições perpetuadas tanto em nível cultural
como social, deveriam não apenas serem conhecidas como serem óbvias. No
entanto, são para grande maioria superficiais ou completamente ocultas. O
que me leva a pensar em como o Barroco e o período colonial vêm sendo
abordados nas escolas e em algumas universidades brasileiras.
Subestimar um período tão vasto e crucial representa a total incapacidade
de uma nação em saber lidar com sua própria memória e cultura, no que me
pergunto a quem serve esse apagamento de nossa origem e substância.
49
Graduada em Português/Literaturas e mestranda em Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
207
Desta forma, um dos aspectos que venho tentando demonstrar é que atra-
vés da poesia luso-brasileira do século XVII é possível encontrar o corpo
feminino já estatizado/vigiado e como, ao longo de mais de 300 anos, conti-
nua sendo objeto de punição e controle.
Conforme nos esclarece Ana Lúcia Machado Oliveira (2003), anatomizar
é examinar até o momento em que se pode, com uma palavra, condensar,
definir. Logo, para uma melhor compreensão desta abordagem é necessário
conhecer a sociedade receptora do discurso em questão, assim como a rela-
ção que há entre o corpo e a carne, o sagrado e o profano. É preciso observar
que a desigualdade também se encarna no corpo e na anatomia, enxergando
a linguagem e as imagens produzidas nas obras Seiscentistas através desse
ponto de vista.
Em “O espelho da alma”, Jean-Jacques Courtine, descreve a fisiognomo-
nia como “a arte de decifrar a linguagem do corpo” (2009, p. 402), que du-
rante os séculos XVI e XVII teve um papel de grande relevância intelectual
e social. Esse eco da fala do corpo irá repercutir ao longo de toda era clássica
através de manuais de retórica e livros de civilidade, que ofereciam “técni-
cas” para o controle de si mesmo e de cuidadosa observação do outro; artes
da conversação que ensinavam o domínio e o comedimento do gesto assim
como o propósito (COURTINE, 2009, p. 402), tudo baseado na impor-
tância de estabelecer o arbítrio do conhecimento físico e natural do corpo e
da alma, para que se pudesse alcançar a moral do homem , assim como suas
paixões, vícios e virtudes (OLIVEIRA, 2011, p. 46).
Cabe ressaltar que o exame meticuloso, a observação dos gestos e signos
que imprimem os movimentos internos dos corpos é esperado em um con-
texto da vida inserida na sociedade de corte, onde as leis da etiqueta ditam o
domínio sobre os comportamentos e as paixões (OLIVEIRA, 2011).
Deste modo, a fisiognomonia reúne sempre um grupo de princípios teó-
ricos que estabelecem uma produção da natureza humana através de signos
oferecidos pelo corpo agregando semelhanças, opondo diferenças e estabe-
lecendo um paradigma favorável a determinadas marcas físicas nas quais o
conteúdo moral é posteriormente anexado (OLIVEIRA, 2011, p. 46).

“ Em uma palavra, entre o reino da alma – caracteres, paixões, tendências, senti-


mentos, emoções, uma natureza psicológica...- e o domínio do corpo – sinais, traços
físicos...O que vem exprimir as metáforas sem idade nas quais se reconhece este
paradigma da expressão humana que atravessa e religa esses domínios fragmentados
208
do saber , e dos quais a fisiognomonia constitui a formulação mais sistemática: nela
o olhar é a “ porta” ou a “ janela” do coração, o rosto o “espelho da alma”, o corpo a
“ voz” ou a “ pintura das paixões” (COURTINE,2009, p.403).

Portanto, segundo Courtine a fisiognomonia “é portadora de uma histó-


ria do olhar sobre o corpo”, (2009, p. 404) produzindo normas e padrões
corporais, promovendo tipos ideais e deixando à margem distorções, defor-
mações e monstruosidades. Courtine (2009) afirma ainda que ela questiona
os limites da imagem humana através das relações da hibridação e da meta-
morfose, dois conceitos fundamentais na sátira que será discutida ao longo
deste texto.

‘Os olhares que a fisiognomonia lança sobre o corpo constroem portanto uma ima-
gem, uma memória, usos do corpo. Essas decifrações da fisiognomonia têm, contu-
do, elas mesmas uma história: ao longo de toda era clássica, as percepções dos sinais
do corpo se deslocam, as sensibilidades à expressão individual se complexificam, a
leitura da aparência humana se transforma” (COURTINE, 2009, p.405)

A importância de uma reflexão mais atenta acerca da expressiva relevância


da fisiognomonia presente entre os séculos XVI e XVII nesta análise con-
sidera o lugar substancial da tematização do corpo nas letras Seiscentistas,
portanto, na solidificação do retrato do corpo feminino presente na poesia
de Gregório de Matos.
Observando as imagens produzidas na construção das personagens na
obra do autor é possível notar um dualismo dividindo as mulheres e crian-
do-lhes duas categorias diferentes, diretamente ligadas ao pensamento do
seu tempo. Sua poesia mostra faces distintas através da lírica amorosa, na
maioria das vezes direcionada às mulheres brancas e nobres - e da sátira licen-
ciosa - poesia de amor obscena, na qual Gregório de Matos destaca o amor
físico através do uso de uma linguagem misógina e mais próxima do grossei-
ro, associado ao material e ao carnal - normalmente direcionado a mulheres
negras e mestiças.
No que diz respeito à lírica amorosa compreendemos que a estruturação
é feita através da configuração de um retrato concentrado na parte supe-
rior do corpo – o que remete à necessidade da não exposição do corpo fe-
minino - onde podemos encontrar uma linguagem sofisticada e traços de
um conceito de amor que não almeja a realização humana: o amor cortês,
inventado durante a Idade Média e que ressignificou a atração física sendo
209
um sentimento convencional e platônico centrado no culto da mulher, tida
como modelo e ideal de beleza petrarquista. A solidificação da imagem no
discurso também é estabelecida através de comparações feitas com a lua, o
sol, as estrelas... enaltecendo nessa mulher o sublime e o espiritual. Pedras,
metais preciosos, e pérolas também são imagens recorrentes; logo, essa sensí-
vel composição mineral contribui para a plasticidade e a construção de me-
táforas bastante convencionais nesse tipo de poema, como podemos ver a
seguir nos fragmentos do soneto escolhido:

Vês esse Sol de luzes coroado,


Em pérolas a Aurora convertida;
Vês a Lua, de estrelas guarnecida;
Vês o Céu, de Planetas adornado?

E ainda no mesmo poema:

Deixa o prado, vem cá minha adorada


Vês de esse mar a esfera cristalina
Em sucessivo aljôfar desatada?
Parece aos olhos ser de prata fina?
Vês tudo isto bem? Pois tudo é nada
À vista do teu rosto, Catarina.

(MATOS, vol. III, s.d. p. 660)

Destaco ainda que o amor cortês aqui referido e presente na lírica amoro-
sa de Gregório de Matos, não inverte as polaridades tradicionais do mascu-
lino e feminino, pois, mesmo sendo colocada em uma espécie de santuário,
a mulher continua sendo obediente à obsessão da virgindade vigente no pe-
ríodo aqui discutido. Segundo Jean Delumeau em “História do medo no
Ocidente”, ele não foi capaz de modificar as estruturas sociais nem mesmo
na Occitanie, sua terra de origem.
Conforme Hansen (2013) a divisão sexual está relacionada a padrões
comportamentais e de caracteres, referentes à natureza feminina e masculina
suposta. Sob essa perspectiva a produção satírica é sempre misógina, repro-
duzindo um olhar baseado em lugares comuns do período aqui abordado
relacionados às mulheres, como vaidade, futilidade e inconstância. A lógica
desse olhar pode ser relacionada à afirmação de Courtine (2009) sobre a fi-
siognomonia referente a sua participação na construção das discriminações
210
sociais e das diferenças sexuais no campo do olhar, o que é possível enxergar
na poesia atribuída a Gregório de Matos no tocante à elaboração da ima-
gem das mulheres negras e mestiças, na medida em que este retrato traduz
não apenas plasticidade mas uma realidade cultural e social engendrada no
século XVII, já que o corpo feminino deveria estar sempre sendo vigiado
e que na hierarquia presente no período em questão, as mulheres escravas
eram ainda mais desprovidas de qualquer direito do que as mulheres bran-
cas abastadas economicamente.
Para um maior aprofundamento na questão da constituição do retrato
feminino elaborado, gostaria de acrescentar a esta análise o conceito Ho-
raciano ut pictura poesis, doutrina que estabelece relação entre linguagem e
pintura. Demonstrando sua influência no que diz respeito à técnica de cria-
ção utilizada no retrato feminino composto na sátira licenciosa produzida
através de um olhar que estabelece vícios e deformidades.
Segundo Ana Lúcia Oliveira, foi através de Horácio, poeta satírico e lati-
no, que o paralelo mencionado “recebeu o seu batismo, sendo cunhado na
bem sucedida fórmula ut pictura poesis” (OLIVEIRA, 2001, p.1). Oliveira
esclarece que resgatando o que na época já representava um lugar comum,
Horácio foi o primeiro a reconhecer o impacto das sensações visuais e com
a finalidade de demonstrar os critérios do decoro poético necessários para
agradar o leitor crítico desenvolveu três comparações: em relação à distância
adequada ( perto/longe), à luz ( obscuridade/ claridade) e em relação ao nú-
mero (uma/ divesas vezes).
O Tratado do Juízo (1625) em que Emmanuel Tesauro aplica a técnica ,
assim como o tratado de Poesia e pintura (1630), de Manuel Pires de Almei-
da, onde encontramos sequências como “ e assim como o pintor imita a na-
tureza, ações e semelhanças de homem ou de qualquer animal, ou parte da
terra ou do mar, assim a pena retrata tudo”, e ainda “ infinitas vezes se unem
a poesia e a pintura em um mesmo sujeito” (MUHANA, 2002, p.73) - e
tantos outros escritos da época, reforçam a grande importância da doutrina
do ut pictura poesis nos períodos renascentista, maneirista e barroco:

“Rensselaer Lee (1982), em seu estudo já clássico acerca do tema em foco, pretende
definir a teoria humanística da pintura, que, baseando-se na releitura horaciana de
Aristóteles, parte da suposição fundamental de que a boa pintura, assim como a
boa poesia, é a imitação ideal da ação humana. Tal teoria está amplamente imbuí-
da da doutrina do ut pictura poesis, de grande fortuna nos períodos renascentista,
211
maneirista e barroco. Assim, um lugar – comum nos tratados sobre arte e poesia
desses períodos é assinalar a estreita relação entre as artes irmãs (...)” (OLIVEIRA,
2001, p.3).

Ao passar por um processo de reciclagem durante o Renascimento, “o


símele horaciano sofreu uma inversão de sentido (...) passando a ser lido da
seguinte maneira: como a poesia, assim é a pintura” (Oliveira, 2001, p.3). A
partir dessa inversão e a partir da relação então definitivamente consolidada
entre pintura e poesia – poesia e pintura é que pretendo demonstrar como a
técnica era aplicada nos poemas atribuídos a Gregório de Matos.
Conforme indica Adolfo Hansen, o que Horácio propõe na comparação
expressa através da partícula ut, que significa “como”, é reconhecer os me-
canismos retóricos que organizam através da imagem os resultados de estilo
da pintura e da poesia, e não afirmar uma igualdade ou identidade entre a
matéria plástica e discursiva (HANSEN, 2014, p.111).
O autor afirma ainda que a sátira e os poemas cômicos lidos sob uma óti-
ca romântica, que despreze o regimental retórico, ficam parecendo esboços
soltos e rascunhos grosseiros, entretanto, lidos como manuscritos do século
XVII - o que eles são - devem ser compreendidos como um processo no
qual foi aplicado pelo autor o preceito horaciano do ut pictura poesis recicla-
do pela forma mentis contrarreformada, assim as imagens são estruturadas
como disegno interno, isto é, desenho interno, relacionado ao signo da von-
tade de Deus. Ou, quando convertidas em matéria verbal, como intuito di-
vino, que orienta o poeta a buscar associações impremeditáveis entre coisas,
conceitos e signos (HANSEN, 2014, p.110).
A esse respeito, importa destacar que o ut pictura poesis é assim “um dos
principais procedimentos técnicos que ordenam a verossimilhança e o de-
coro dos estilos líricos e cômicos dos poemas feitos segundo a concepção
metafísica do desenho interno” (HANSEN, 2014, p.111) :

“Toda pintura e todo poema, ou seja grande, ou medíocre; ou grave, ou humilde,


ou triste, ou alegre consta de três partes. Às suas chama a pintura rascunho, compo-
sição e cor; e a poesia, invenção, disposição e locução: uma e outras são da essência
da pintura e da poesia. Rascunho é a circunscrição que se faz com as linhas ao derre-
dor da obra, a quem os italianos chamam contorno, e alguns modernos, desenho.”
(MUHANA, 2002, p. 93).

A sátira Barroca do século XVII preserva os três critérios horacianos do


ut pictura, sobretudo a comparação clareza/obscuridade; se apresentando na
212
maioria dos casos como uma forma de rascunho rápido dos tipos atacados,
caricatura em que a deformação presente precisa ser lida ou ouvida apenas
uma vez, pois sua concepção caricatural é sintética (não necessitando por-
tanto, de um olhar ou exame mais atento) - ela comunica-se imediatamente.
(HANSEN, 1989, p. 251).
A caricatura é tida pelo destinatário “como conveniente ao tipo baixo que
é atacado” (HANSEN, 2013, p.409), não importando o grau ou a inconve-
niência de sua deformação. E por ser um gênero misto, a sátira pode variar
sua forma; a sátira é hibrida, podendo mesclar diversos elementos, inclusive
elementos baixos:
Vã de aparelho Nariz de preta
Vã de painel, De cócoras posto,
Venha um pincel Que pelo rosto
Retratarei a Chica Anda sempre buscando
E seu besbelho Onde se meta

É pois o caso Boca sacada


Que a arte obriga Com tal largura
Que pinte a espiga Que a dentadura
Da urtiga primeiro Passea por ali desencalmada.
E logo o vaso (MATOS, VOL.III. 2013)
[...]

Nos fragmentos do poema acima, intitulado Anatomia, é possível pen-


sarmos em variadas associações acerca do que vem sendo discutido ao longo
deste artigo : inicialmente a ideia da poesia enquanto um retrato produzido
fica muito clara, onde a palavra besbelho, encontrada na primeira estrofe da
coluna à esquerda está relacionada à vagina assim como a palavra vaso, am-
bas remetendo para o registro das partes baixas do corpo feminino.
Sobre isso Hansen indica que nas configurações satíricas o retrato é cons-
truído através da técnica que consiste em traçar um eixo vertical imaginário,
da cabeça aos pés, dividido em sete partes: incluindo cabeça, rosto, pescoço,
peito, ventre e as partes inferiores do corpo, adicionando os pés e admitindo,
portanto, imagens baixas, deformadas e misturadas, com o que se produz
o monstro. Segundo Hansen, “a técnica corresponde ao ut pictura poesis da
Arte poética de Horácio: pela exageração e deformação das coisas que pre-
enchem as partes e pela mistura delas, produz-se uma indistinção pictórica”
(HANSEN, 2013, p.414). É como se o poeta fizesse um esboço grosseiro da
213
figura criticada, usando um carvão ou uma brocha. Logo, não há minúcias
ou conceituações elaboradas.
Se em um primeiro momento, os registros retratam as partes infe-
riores do corpo feminino, já no outro fragmento demonstrado no poema
acima (coluna à direita), notamos que o poeta introduz nariz e boca, ou seja,
elementos corporais que compõem a face. Vendo por esse ponto de vista,
embora Gregório se aproprie do modelo referido, retrata satiricamente não
apenas as partes baixas como o corpo inteiro. Ao longo do poema o registro
novamente desce, edificando assim uma caricatura (monstruosa) de Chica –
mulher e negra:

Puta canalha,
Torpe e mal feita,
A quem se ajeita
Uma estátua de trapo
Cheia de palha

Vamos ao sundo
De tão mau jeito,
Que é largo, e estreito
Do rosto estreito e largo
Do profundo
[...]

Adiciono a esta leitura que a palavra sundo significa ânus, o que somado à
estrofe anterior: “puta canalha...”, revela a construção violenta do corpo fe-
minino violado e exposto através de uma obscenidade evidente. A sátira uti-
liza portanto a obscenidade para criar imagens deformadas e grotescas, onde
“a obscenidade sexual de estilo sórdido é adequada para descrever partes do
corpo e ações indecentes dos tipos viciosos” (HANSEN, 2013, p. 418):

ANATOMIA HORROROSA QUE FAZ DE UMA NEGRA


CHAMADA MARIA VIEGAS

Dize-me, Maria Viegas


Qual é a causa que te move,
A quereres, que te prove
Todo homem a quem te entregas?
Jamais a ninguém te negas, tendo um
vaso vaganau,
E sobretudo tão mau
Que afirma toda pessoa,
214
Que o fornicou já, que enjoa
Por feder a bacalhau
[...]

Não terás vergonha, puta,


De com tão ruim pentelho
Sobre seres vaso velho,
Tomes capa de enxuta?
És puta tão dissoluta,
Que diz o moço enjoado,
Que já ficou ensinado
E nunca mais te veria.
Porque sempre d´água fria
Há medo o gato escaldado.
[...] ( MATOS, vol.III, s.d., p.571)

O segundo poema utilizado como exemplo também direcionado a uma


mulher negra e com a palavra anatomia também em evidência, mostra a
técnica sendo utilizada com ainda mais precisão, onde o centro do retrato
passa exclusivamente pelos membros inferiores do corpo feminino. Nova-
mente há a presença da palavra vaso relacionada com a genitália da mulher,
valendo ressaltar aqui que a expressão remete também à ideia aristotélica da
mulher enquanto receptáculo, já que para Aristóteles a mulher desempenha
no processo de geração a mesma função que executa durante o ato sexual:
seu sangue menstrual é uma substância passiva enquanto o esperma mascu-
lino é um princípio ativo (FLANDRIN, 1988). Sobre a expressão “feder a
bacalhau”, associada à genitália da mulher, podemos concluir que continua,
infelizmente, sendo utilizada até hoje.
Sobre a exposição das margens do corpo, presente em grande maioria dos
poemas destinados às mulheres negras e mestiças na obra de Gregório de
Matos podemos estabelecer uma relação com o que Courtine (2009) asse-
gura sobre a bestialidade relacionar-se essencialmente com a periferia corpo-
ral. O centro conserva-se humano mas sobre ele é aplicado “uma declinação
bestial: acréscimos, supressões e deformações bestializadas” (COURTINE,
2009, p.500). Traços desse processo podem ser compreendidos na medida
em que a sátira licenciosa de Gregório de Matos, conforme já visto, constrói
um retrato no qual o olhar que o poeta mantém sobre essas mulheres é con-
vertido em uma linguagem misógina que expõe as partes inferiores do corpo
feminino através de metáforas, analogias e imagens grotescas.
Ressalto que o retrato feito no poema anterior evidencia que a malforma-
215
ção da personagem se dá tanto na crueza bizarra com que descreve as partes
de seu corpo quanto na forma como desfigura o seu caráter. O olhar do
poeta imprime no retrato elaborado o não cumprimento de uma exigência
social; um corpo periférico, que vai contra ao modelo ideal de beleza petrar-
quista da época, transcendendo ao normativo.
Chamo atenção também para o fato de que a própria técnica do ut pictu-
ra poesis nos mostra que esse retrato é mais do que um retrato plástico e / ou
discursivo, pois, se na grande maioria das vezes a sátira licenciosa é composta
para mulheres negras e mulatas e se a sátira, se colocando enquanto um esti-
lo vulgo, também está aberta para o distante, tema e público, propondo-se
não como estilo de refinamento mas como uma espécie de esboço “ de uma
situação ou tipo como protótipos” ( HANSEN, 1889, p.251), sendo ime-
diatamente apreendida pelo público (é preciso considerar o caráter oral da
poesia do século XVII), devemos pensar sobretudo, no retrato social que é
construído acerca dessas mulheres em questão e não esquecer, em nenhuma
hipótese, a sociedade em que elas, o público e o “filtro” do decoro estão
inseridos: “A pintura descobre nuas e retrata despidas as pessoas vis e humil-
des para mostrar a arte, mas cobre os nobres com propriedade de vestidos,
segundo sua arte e seu decoro” ( MUHANA, 2002, p.112).
Desta forma, destaco que a consolidação deste retrato serve a uma socie-
dade escravocrata, misógina, patriarcal e controlada pela Igreja, onde o olhar
inquisidor deveria ser consequentemente direcionado com maior atenção
às mulheres, em uma tentativa de controlar a sua natureza e de, através de
uma postura autoritária e misógina, sujeitar o sexo feminino, considerado
“pérfido por definição” (ARAÚJO, 1993, p.190), à avaliação do masculino.
“A deformidade tornou-se um dos sinais mais evidentes do pecado e o
monstro um terrível cúmplice do diabo ou um enviado miraculoso de Deus,
funesto presságio de sua cólera” (COURTINE, 2009, p.489). Por fim, res-
salto o paralelo que existe entre a imagem do monstro associada ao pecado
e ao diabo, com a imagem produzida da mulher ao longo da Idade Média
e Idade Moderna, onde foi identificada como uma perigosa agente de Satã
(DELUMEAU, 2009). Venenosa e enganadora, ela foi acusada de ter intro-
duzido a morte e a desgraça. O Cristianismo incorporou, conforme a tradi-
ção judaica, a figura da Eva, que condenou a humanidade.
Concluo este texto enfatizando a importância de um estudo voltado ao
século XVII e as letras Seiscentistas considerando o início de tradições que
216
ainda hoje são mantidas, como a objetificação das mulheres negras e mesti-
ças, a anatomia física e moral do corpo dessas mulheres e o ensaio de contro-
le no que diz respeito ao feminino.
Apesar de ser preciso manter uma abordagem que seja essencialmente
não anacrônica, o que consiste em conhecer as singularidades do período
em questão, é necessário um olhar crítico na medida em que conhecendo
essas tradições culturais e sociais é possível identifica-las.
Não pretendo com isso imortalizar a memória, mas saber reconhecer para
modificar sempre que for preciso.

Referência Bibliográfica
ARAÚJO, Emanuel. O teatro dos vícios: transgressão e transigência na sociedade urbana colo-
nial. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1993.

COURTINE, Jean- Jacques. O espelho da alma. In: História do corpo: Da renascença às luzes.
vol. I. 3 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

__________. “O corpo inumano”. In: História do corpo: Da renascença às luzes. vol. I. 3 ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

DELUMEAU, Jean. “Os agentes de Satã / A mulher”. In: História do medo no Ocidente. São
Paulo: Companhia das Letras, 2009.

FLANDRIN, Jean Louis. “Homem e mulher no leito conjugal”. In: O sexo e o Ocidente. São
Paulo: Brasiliense, 1988.

HANSEN, João Adolfo. Para que todos entendais: poesia atribuida a Gregório de Matos e Guer-
ra: Letrados, manuscritura, retórica, autoria, obra e público na Bahia dos séculos XVII e XVIII,
vol.5. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

_________. A sátira e o engenho: Gregório de Matos e a Bahía do século XVII. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1989.

_________. Disponível em http://apsa.us/ellipsis/12/hansen.pdf – 2014

MATOS, Gregório de. Obras completas. vol. III. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

________ ._ Obras completas, vol. III . Salvador: Janaína, s.d.

MUHANA, Adma. Poesia e Pintura ou Pintura e Poesia. Tratado Seiscentista de Manuel Pires
de Almeida, tradução do Latim de João Ângelo Oliva Neto, São Paulo: EDUSP, 2002.

OLIVEIRA, Ana. Lucia de. Por quem os signos dobram: uma abordagem das letras jesuíticas.
Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.
217
__________. Ut pictura poesis: do ato de batismo à fortuna do nome. Texto apresentado na 4ª
Semana de Letras Neolatinas, UFRJ, 10-14 Setembro 2001.

__________. “Imagens do corpo e representação retórica das paixões nas letras Seiscentistas:
um breve estudo de caso”. In: Maria Conceição Monteiro; Ana Cristina Chiara; Francisco Vences-
lau dos Santos. (Org.). Escritas do corpo. Rio de Janeiro: Caetés, 2011.
218
AS MULHERES E A RUA – UMA ANÁLISE DE FLANANDO POR
LONDRES DE VIRGINIA WOOLF

Patricia Azevedo Costinhas da Silva50


UERJ

Resumo: O presente artigo tem por intuito teorizar sobre a experiência femi-
nina no espaço urbano, tendo como base aspectos presentes no ensaio Flanando
por Londres de Virginia Woolf. Realizaremos uma breve digressão teórica para
considerar a cidade e suas características primordiais e também discutiremos as
mudanças histórias necessárias para sua constituição na modernidade. Explora-
remos o flâneur enquanto figura narrativa e estabeleceremos uma diferenciação
subversiva do arquétipo original e tradicionalmente masculino com seu possível
equivalente feminino, a flâneuse, para considerar qual o impacto que espaços
urbanos e públicos acarretam às produções narrativas femininas.

Palavras-chave: Espaço; Rua; Mulher; Flâneur; Virginia Woolf.

Introdução
“É assim que começa o espaço: com palavras apenas,
sinais traçados na página branca.51”
(George Perec)

O romancista e ensaísta George Perec desenvolve em seu livro Espèces d’es-


paces um olhar sobre a constituição dos diferentes espaços modernos que
habitamos e os atravessamentos advindos das relações firmadas entre eles e
indivíduos. Além de delimitação espacial, de área material e calculável, en-
tende-se todo espaço principalmente por meio de uma relação mútua de
troca em relação aos que ali transitam: é tal qual uma membrana, abertura,
passagem, partilha. Tal ideia é ecoada quando Ítalo Calvino estabelece que é
o humano aquele a dar forma à cidade.
Tais espaços são produzidos na interação, mas também no relato. Enquan-
to adepto da atividade da criação pela escrita, Perec aponta a forma que tam-
bém é dada aos espaços através da literatura e como as narrativas conferem
50
Graduada pela UERJ em Letras – Inglês e Literaturas de Língua Inglesa. E-mail: patriciacostinhas@gmail.com
51
“This is how space begins, with words only, signs traced on the blank page.” (PEREC, 1997)
219
ao sujeito criações de subjetividade com seu território. Porém, acredito ser
pertinente à discussão acerca dos espaços modernos, a intervenção, ou sua
falta, de indivíduos histórica e sistematicamente desfavorecidos, em especial
as mulheres.
Para efetivamente pensar sobre as questões de identidade e alteridade, es-
pecificamente a feminina, é necessária a consideração do desenvolvimento
histórico dos espaços. Levando em conta as mudanças derivadas do proces-
so de modernização, é clara a concepção de uma experiência cada vez mais
compartilhada do espaço, que encontra seu auge no que hoje se entende
por cidade moderna. Centro de convergências sociais, a cidade é o local de
concentração de vivências urbanas e suas organizações políticas, fundamen-
talmente uma obra de natureza coletiva, tanto em sua concepção quanto em
sua manutenção. Tal característica é primordial e essencial da cidade, resul-
tando na sobreposição de vivências de seus habitantes, no atravessamento
de subjetividades. Ser cidadão de uma metrópole implica obrigatoriamente
em viver a vida pública, comum e coletiva, e consequentemente experienciar
suas tensões.
Não obstante, é inevitável também a constituição política da cidade e de
seus cidadãos e a segmentação social hierárquica resultante. O cenário urba-
no é produto histórico que reflete as relações de poder instauradas (ROL-
NIK, 1995), concluindo-se então que ele é pensado, projetado e mantido
para proveito pleno de indivíduos privilegiados pelas hegemonias vigentes.
Tais segmentações demarcam e limitam a cidade social e arquitetonicamen-
te, limitando o acesso de identidades não hegemônicas ao espaço urbano.
Em um ensaio intitulado Flanando por Londres, publicado em 1930 e
originalmente escrito em 1927, Virginia Woolf relata uma caminhada ao
anoitecer na cidade de Londres. Sob o pretexto da necessidade latente de
comprar um lápis, ela deixa seu lar e, esquecendo-se do porquê de estar va-
gando, se encontra percorrendo reflexões trazidas pela andança na cidade.
Tão simples em essência, o caminhar descompromissado é usado como ar-
tifício para a contemplação dos sentidos acentuados pelo cenário urbano.
Woolf se encontra temporariamente livre ao se apoderar do espaço público,
seus cheiros e cores, seus cantos renegados e seus indivíduos peculiares. É
de notável destaque o fato de Woolf ser uma autora a produzir sobre a ex-
periência feminina na urbanidade moderna. Ao me utilizar de seu ensaio,
pretendo estabelecer um olhar filtrado para a experiência que mulheres es-
220
tabelecem com os espaços, sobretudo através do processo de narrar, e apon-
tar suas diferenciações, explorando as problemáticas acarretadas ao habitar
feminino na cidade.

Rua: a essência da cidade


A fixação de comunidades em uma área delimitada foi passo determinan-
te não só para a sobrevivência do homem, mas também para a sua relação
consigo próprio e com os indivíduos com quem ele compartilha esse espaço.
Antes das mudanças trazidas pela industrialização e pelo advento das prá-
ticas capitalistas como as entendemos hoje, imprescindíveis para moldar o
sujeito contemporâneo, as cidades já apresentavam sua característica pri-
mordial de concentração. Sua imaginação caracterizou um novo modo de
organização ocupacional. Em seu livro intitulado “O que é cidade” (1988),
Raquel Rolnik, atualmente Professora Associada da Faculdade de Arquite-
tura e Urbanismo da USP, utiliza-se da imagem de um imã para descrever a
essência das cidades onde, explica ela, tal qual um imã, os centros urbanos
agem como “um campo magnético que atrai, reúne e concentra os homens”
(ROLNIK, 1995, p. 12).
Entretanto, Rolnik traça uma diferenciação entre os centros da antigui-
dade e as cidades contemporâneas em relação à experiência da urbanidade.
As problemáticas de uma era são impressas na cidade através de construções
arquitetônicas e as cidades antigas não eram exceção. Uma delimitação clara
de pontos de entrada e saída era necessária para a proteção contra possíveis
invasores – característica essa marcante do espaço urbano antigo que não é
mais encontrada nos atuais. A vivência urbana hoje não possui limites físi-
cos (Ibid) e a presença e experiência da urbanidade se tornou onipresente na
medida em que, em detrimento do campo, a cidade se tornou o local predo-
minante de concentração de indivíduos. Não há o lado de fora, sua presen-
ça “devora todo o espaço, transformando em urbana a sociedade como um
todo” (ROLNIK, 1995, p.12).
Tal experiência de urbanidade é fundamentalmente uma obra coletiva
desde sua imaginação, sendo posta em efeito por e para um grupo com o ob-
jetivo da sua perpetuação. Habitar a cidade é experienciar compartilhamen-
to socioespacial e submeter-se à vida coletiva. Em meio à onipresença da ur-
banidade, a ilusão de solidão só é experienciada em meio a barreiras. Porém,
mesmo com os aparentes limites impostos por prédios, paredes ou carros, o
221
indivíduo urbano ainda é compreendido como uma parte fragmentada de
um todo (ROLNIK, 1995). Estar separado fisicamente da multidão urbana
não implica em não pertencer a ela. Em seu ensaio, Virginia Woolf anseia
pela experiência corpórea de coletividade quando escolhe deixar o espaço
recluso do lar e ir às ruas. Seu espaço privado e os objetos e marcas que o
compõem e o individualizam relatam sua história, enquanto as ruas e sua
essência pública, todas as outras. Ela então desaparece em meio à multidão,
abraçada pelo anonimato:

Não somos mais exatamente quem somos. Quando, num bonito fim de tarde, entre
as quatro e as seis horas, colocamos os pés fora de casa, deixamos cair a máscara pela
qual nossos amigos nos conhecem e nos tornamos parte desse vasto exército repu-
blicano de vagabundos anônimos, cuja companhia, após a solidão de nosso quarto,
nos é tão agradável (WOOLF, 2015, p. 24).

O cronista João do Rio (Paulo Barreto, 1881-1921), em seu livro A alma


encantadora das ruas, dá à rua sentido metonímico com a cidade e a caracte-
riza como epítome da sobreposição urbanística – lugar público por excelên-
cia. Ele critica uma definição gramatical de mera passagem, de caminho a ser
percorrido: “A rua era para eles apenas um alinhado de fachadas por onde se
anda nas povoações. Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida
das cidades, a rua tem alma!” (DO RIO, 1908, p. 2). Para o cronista, a rua é
entidade representativa do povo e de seus mais diversos tipos, é “a agasalha-
dora da miséria” e “o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da
arte.” (Ibid). Sua origem atesta a pluralidade urbana, a conurbação social e
suas tensões: “A rua nasce, como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor
humano na argamassa do seu calçamento.” (DO RIO, 1908, p. 2). Ela é es-
paço aberto à inscrição e modificação por intermédio de seus passantes. A
rua contém todos em si. Mais que isso, a atualização ininterrupta é condição
essencial de ser da rua. Sem mudança ela não há, pois necessita ser plural.

O flâneur
Virginia Woolf e João do Rio compartilham essa descrição democrática
da rua. E em ambos os trabalhos, quem descreve a rua em suas andanças
é uma figura de caráter paradoxal, ao mesmo tempo integrante e alheio às
constituições sociais. Uma característica formadora da identidade daqueles
que flanam é o destaque que sua presença dá às disparidades sociais. A seg-
222
mentação desigual da estrutura social, favorecendo uma elite em detrimento
de ‘outros’ é parte integral do entendimento da cidade contemporânea, como
atesta Raquel Rolnik: “Indissociável à existência material da cidade está sua
existência política” (ROLNIK, 1995, p.8). O flâneur usufrui do privilégio
de observação dos outros; os habitantes da margem, das zonas esquecidas e
escondidas. Logo, não surpreende a presença de figuras marginais no ensaio
de Virginia, mulheres, uma anã, cegos, coxos, idosos – como João do Rio já
descrevia, a rua de Virginia agasalha os infelizes, os outros, e ela os captura em
seu olhar. “O outro urbano é o homem ordinário que escapa – resiste e sobre-
vive – no cotidiano, da anestesia pacificadora.” (JACQUES, 2012, p.15). O
flâneur é reinventor da experiência da vida urbana hierarquizada – subversivo
ao vagar em busca da alteridade esterilizada pela urbanização. Sua presença
ratifica as diferenças que constituem a rua e se opõem a um entendimento de
experiência urbana única. “O errante, em suas errâncias pela cidade, se con-
fronta com os vários outros urbanos.” (JACQUES, 2012, p. 22).
Outra parte chave para o entendimento da figura narrativa do flâneur é
seu movimento. Com o advento da modernidade, a rua foi rapidamente
alterada para a incorporação do automóvel como principal meio de deslo-
camento e, dentre outras razões, tais reformas atingiram diretamente a ex-
periência do caminhar e indiretamente a de experenciar a alteridade (JAC-
QUES, 2012). O flâneur surge como crítica ao processo de modernização,
se opondo a esterilização do espaço que ele promove. A modernidade res-
significou a rua como espaço de movimento do capital e o flâneur se insere
justamente em oposição a isso e em afirmação de uma experiência corporal
do ócio. O ensaio de Virginia Woolf ecoa essa relação moderna do indiví-
duo com a cidade e nele o flanar surge como respiro em meio às mudanças
resultantes do processo de urbanização e da nova consciência que o sujeito
traçou com o espaço moderno. Caminhante observador da pluralidade da
vida urbana, ele é figura paradoxal que ao vagar constitui sua existência e a
das histórias que conta.
As narrativas dos que flanam agem para além do movimento espacial, ser-
vindo de crítica ao empobrecimento de transmissão de experiência descrito
por Walter Benjamin em seu ensaio Experiência e Pobreza. Para Benjamin,
a modernidade, o desenvolvimento da técnica e o das práticas capitalistas
resultou na desorientação do sujeito contemporâneo, fragmentando-o nas
esferas pública e privada e empobrecendo a experiência e sua transmissão. O
223
flâneur, por sua vez, se opõe ao empobrecimento ao contemplar os espaços
e os tipos sociais, percorrendo o imaginário do que compõem a cidade. Ao
narrar, o flâneur concebe o espaço percorrendo-o em texto. Não passa des-
percebida a escolha do pretexto de Woolf para flanar: a compra de um lápis,
um uso imagético referencial a atividade narrativa. Paola Berenstein Jacques,
atualmente professora da Faculdade de Arquitetura da Universidade Fede-
ral da Bahia, comenta em seu livro Elogio aos Errantes: “O próprio exercício
de narração já está associado também a uma prática espacial, ao movimen-
to, à viagem ou, ainda, ao andar pela cidade.” (JACQUES, 2012, p. 16-17).
Narrar não só exprime o movimento-contramão do flâneur pelas ruas, mas
o é movimento também.
Nascido do urbano dos meados do século XIX e teorizado por Benjamin
ao deparar-se com sua presença nas obras de Beaudelaire, o flâneur é a per-
sonificação do privilégio de contemplação. Um indivíduo simultaneamente
parte e à parte do espetáculo urbano:

A multidão é seu universo, como o ar é o dos pássaros, como a água, o dos peixes.
Sua paixão e profissão é desposar a multidão. Para o perfeito flâneur, para o obser-
vador apaixonado, é um imenso júbilo fixar residência no numeroso, no ondulante,
no movimento, no fugidio e no infinito. Estar fora de casa, e contudo sentir-se em
casa onde quer que se encontre; ver o mundo, estar no centro do mundo e permane-
cer oculto ao mundo (…) (BEAUDELAIRE apud JACQUES, 2012, p. 40)

Contudo, como apontado por George Perec e Virginia Woolf, a concep-


ção do espaço se dá através do ato de olhar e, embora participante ávido da
percepção da cidade, o flâneur não interage com o que observa: “(...) esta-
mos apenas deslizando suavemente pela superfície” (WOOLF, 2015, p. 25).
Tal movimento visual é expresso por Woolf na utilização do olho como me-
táfora para aquilo que essencialmente resta do flâneur ao despir-se de si an-
tes de vagar: “o que resta é uma ostra central de perceptividade, um enorme
olho” (Ibid). Dentre os sentidos envolvidos no flanar, o olhar é certamente
o de maior destaque, já que captura justamente a qualidade efêmera das vi-
sões e dos encontros na caminhada pela cidade. As impressões são fugazes e
fugidias, como atestou Beaudelaire. É interessante notar o título original do
ensaio de Virginia Woolf: Street Haunting: A London Adventure, onde em
uma tradução do título pode-se entender ‘haunt’ como ‘aparição’ ou ‘as-
sombração’ e ver exposta por Woolf a natureza das observações do flâneur:
marcantes e passageiras visões da rua.
224
A flâneuse invisível e o Anjo do Lar
Ao ler as andanças de Virginia, escritas mais de um século após o surgi-
mento do flâneur de Beaudelaire, não podemos desconsiderar a subversão
do arquétipo original tradicionalmente masculino. Entretanto, diferente-
mente de Beaudelaire e João do Rio, é dada a Woolf, como a todas as mulhe-
res que habitam espaços urbanos, uma marca de reconhecimento, de delimi-
tação de moralidade a qual homens não são submetidos (TAVARES, 2015).
Tal marca direciona os indivíduos urbanos a habitação de espaços dentro
do contexto das esferas modernas benjaminianas: a esfera pública, essencial-
mente masculina, e seu oposto, a esfera privada, o lar, essencialmente femi-
nino. Logo, a presença da mulher na rua como agente, mesmo que de ob-
servação, é vista como transgressiva. Independente da intersecção de demais
marginalidades que não a de gênero, o corpo da mulher que vaga as ruas é
circunscrito de significados engessados pelos construtos patriarcais. Sobra
à mulher a experiência passiva; não olhar, mas ser olhada. Sua presença nas
ruas é de um sujeito alienado ao próprio processo identitário – seu corpo é
delineado de significados por intermédio de outros. Transitar pelo espaço
significa para a figura feminina ser subjugada pela hegemonia patriarcal, pois
é vista como não pertencente àquele local, e não lhe ser concedido o espaço
para criação de subjetividade.
Virginia Woolf trabalhou tal concepção em seu ensaio Profissões para Mu-
lheres e destacou aquilo que encontrou pairando sobre as narrativas de mu-
lheres – uma sombra limitante que ela intitulou ‘Anjo do Lar’:

Vocês, que são de uma geração mais jovem e mais feliz, talvez não tenham ouvido
falar dela – talvez não saibam o que quero dizer com o Anjo do Lar. Vou tentar
resumir. Ela era extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente
altruísta. Excelente nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os
dias. (...) Naqueles dias – os últimos da rainha Vitória – toda casa tinha seu Anjo. E,
quando fui escrever, topei com ela já nas primeiras palavras. (...) Fui para cima dela
e agarrei-a pela garganta. Fiz de tudo para esganá-la. Minha desculpa, se tivesse de
comparecer a um tribunal, seria legítima defesa. Se eu não a matasse, ela é que me
mataria. Arrancaria o coração de minha escrita (WOOLF, 2012, p. 11-13).

A autora descreve o fardo herdado por escritoras devido à negação ou limi-


tação da participação feminina na produção literária ou no espaço público.
Embora sendo parte de outras hegemonias sociais tal qual a racial, fato que
abordarei em trabalhos futuros, Woolf aponta por meio de seu conceito d’O
225
Anjo do Lar o local universal de pertencimento social feminino. Se opor a
ele significa assassinar, esganar, tal concepção de domesticidade – movimen-
to primeiro para a emancipação da narrativa feminina e consequente nasci-
mento de uma caminhante das ruas.
Janet Wolff aponta a impossibilidade de uma versão feminina de flâneur,
uma flâneuse, em seu artigo The Invisible Flâneuse. Segundo ela, por con-
ta da disposição social da modernidade, uma em que não sequer permitia
mulheres de irem desacompanhadas a bares em Londres ou Paris, a divisão
entre esferas pública e privada não permitia à mulher a experiência do flanar
tal qual ao homem. Embora parte da composição urbana, a figura da mulher
que desbrava a rua em narrativas era tipicamente associada a tipos margi-
nais, como as prostitutas (WOLFF, 1985). Entretanto, mais de uma década
depois de Beaudelaire, Virginia alcança nas ruas uma liberdade similar ao
do arquétipo masculino. Parece-me interessante o resgate da figura em um
tipo de experiência moderna tardia onde Woolf atreve-se também a flanar,
mesmo com um atraso de um século. Tal concepção é presente na própria
tradução do ensaio de Woolf: Flanando por Londres – quem flana se não
os flâneurs e flâneuses? É necessário, porém, pontuar que tal possibilidade
não se extende a Woolf por acaso, algo que a própria autora nos aponta em
Profissões para Mulheres:

Foi assim que virei jornalista; e meu trabalho foi recompensado no primeiro dia do
mês seguinte – um dia gloriosíssimo para mim – com uma carta de um editor e um
cheque de uma libra, dez xelins e seis pences. Mas, para lhes mostrar que não mereço
muito ser chamada de profissional, que não conheço muito as lutas e as dificuldades
da vida de uma mulher profissional, devo admitir que, em vez de gastar aquele di-
nheiro com pão e manteiga, aluguel, meias e sapatos ou com a conta do açougueiro,
saí e comprei um gato (…) (WOOLF, 2012, p. 10-11).

Não passava despercebido para a autora o privilégio que era sua subsistên-
cia através da escrita. É nesse atravessamento de identidades, a hegemônica
racial e social e a marginal feminina, que nasce o ensaio aqui trabalhado.

Conclusão
É a natureza transgressiva do movimento de Virginia a razão da produ-
ção do presente trabalho. O movimento espacial exercitado pelo flâneur
era desconhecido no imaginário dos construtos sociais femininos; só foi
possível Virginia vaguar porque antes se opôs a rejeitar a sombra que Anjo
226
do Lar projetava. Desafiando construtos e segmentações sociais, o flâneur
está aquém das estruturas sociais; não as reconhece, tendo o privilégio de
vagar entre espaços. Tal cruzamento de margens para a contemplação foi
tradicionalmente realizado por homens, já que estes não têm/tiveram seu
caminhares restringidos – os perigos presentes nas ruas ou a imposição da
obrigação doméstica não são fatores a serem considerados antes de vagar a
cidade. O ensaio de Woolf entra nesse contexto, mais de um século depois,
ressignificando-o.
Exercitar o pertencimento ao espaço público é subverter a posição tra-
dicionalmente doméstica imposta às mulheres; condição primeira para a
constituição do que deveria ser a experiência urbana feminina. George Perec
descreve a árdua missão de todo indivíduo para a experiência e habitação
plena dos espaços: “O espaço é uma dúvida: Eu tenho que constantemente
marca-lo, designá-lo. Ele não é nunca meu, nunca dado a mim. Eu preciso
conquistá-lo.” (PEREC, 1997, p. 91). Cabe então à flâunese e as outras tan-
tas habitantes do espaço urbano designar as ruas como suas. Conquistá-las,
conjugá-las – marcá-las em feminino.

Referência Bibliográfica
DO RIO, João. A alma encantadora das ruas. H. Garnier, 1908.

JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. EDUFBA, 2012.

PEREC, Georges. Species of spaces and other pieces. Penguin, 1997.

ROLNIK, Raquel. O que é cidade. Brasiliense, 1995.

TAVARES, Rosanna B. INDIFERENÇA À DIFERENÇA: espaços urbanos de resistência na


perspectiva das desigualdades de gênero. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) - UFRJ.
Rio de Janeiro. 2015.

WOLFF, Janet. The invisible flâneuse. Women and the literature of modernity. Theory, Culture
& Society, v. 2, n. 3, p. 37-46, 1985.

WOOLF, Virginia. O sol e o peixe: prosas poéticas. Seleção e tradução Tomaz Tadeu. 1º edição.
Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

________. Profissões para mulheres. L&PM, 2012.


227
CONCEPTUALIZAÇÃO DE NOMES PARA A VULVA: INTERFACES
ENTRE GÊNERO, TABU E PRECONCEITO

Patrícia Oliveira de Freitas52


UERJ

Resumo: Em pesquisa empreendida para mestrado (FREITAS, 2017),


observaram-se os processos cognitivos subjacentes à construção de sentidos
de piadas com emprego de nomenclatura popular para a vulva e ao pênis.
Os dados, analisados fundamentalmente sob o viés da Linguística Cogni-
tiva, demonstraram depreciação nos nomes para a vulva em oposição aos
nomes lisonjeiros atribuídos ao pênis. Dando continuidade a essa pesquisa,
observa-se a conceptualização das designações do órgão sexual feminino sob
a perspectiva feminista da construção de gênero, levando-se em considera-
ção os valores culturais e experienciais subjacentes a tais designações de valor
depreciativo em relação à mulher.

Palavras-chave: Questões de gênero. Integração conceptual. Órgãos se-


xuais. Tabu e preconceito.

Introdução
Neste trabalho, abordam-se os processos cognitivos que subjazem à cons-
trução de significação de piadas com emprego de nomes populares para a
vulva e o pênis. A motivação para o referido estudo sucedeu de listas dispo-
níveis na internet que demonstram habilidade inventiva na atribuição de
nomes aos referidos órgãos. Tais listas expressam um quantitativo de apro-
ximadamente 3.940 designações para o órgão sexual feminino e 930 nome-
ações ao pênis.
Por meio desse corpus inicial foi possível observar as restrições de cunho
moral que impedem a circulação verbal da terminologia anatômica dos ór-
gãos sexuais no meio social. Uma vez que determinadas partes do corpo in-
tegram os tabu sociais, consequentemente, há um reflexo dessas interdições
no âmbito linguístico e na forma como essas áreas censuradas são chamadas.
52
Doutoranda em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: freitasp.letras@gmail.com.
228
Como corolário, defende-se que a integração conceptual (cf. FAUCON-
NIER; TURNER, 2002) é o processo pelo qual os diversos domínios cog-
nitivos são acionados de modo a viabilizar o enfrentamento de tabus pelo
uso do léxico. Isso ocorre tanto na criação de eufemismos para contornar
o significado quanto na consequente aceitação social de vocábulos/objetos
tabuizados.
Dessa forma, conjectura-se que os falantes de língua portuguesa, os quais
adotam uma perspectiva hegemonizante de gênero em caráter predomi-
nantemente patriarcal, miniminzam e contornam os aspectos linguísticos
tabuizados em relação a nomes para órgão sexuais. Isso ocorre por meio de
nomes não anatômicos que despertam a risibilidade dos indivíduos. Entre-
tanto, assim o fazem ratificando a proeminência da figura do homem, es-
pecialmente do órgão sexual masculino, tendo em vista que tais conceitos/
objetos/nomes são minimizados pela supremacia de ordem social, em que a
figura masculina é proeminente.
Isso significa dizer que, embora suavize o ônus provocado pela visão pre-
conceituosa em relação à condição feminina, o reafirma de maneira insólita.
É o caso, por exemplo, da nomenclatura que tipifica a vulva como um reci-
piente/extensão do pênis, expressa em metáforas linguísticas como “aboca-
nha-caralho, abridor de caralho, abrigo-do-meu-pau, babadeira do caralho,
baba-pau, buraco de avestruz (esconde a cabeça), buraco de cobra, buraco de
mandioca”, dentre outros.

Questões de gênero e feminismo:


interfaces com a Linguística Cognitiva
Traçando um movimento oposto ao que, historicamente, a literatura
classifica como gênero, normalmente confundido com o conceito de sexo, o
postulado aqui defendido, em consonância com a proposta feminista, “mar-
ca uma tentativa de avançar das biologizações, que enfatizam as diferenças e
lugares sociais pelos aspectos físicos de macho e fêmea” (SANTOS, 2008, p.
55). Isto é, aprofunda reflexões em torno das representações sociais de “ho-
mem” e “mulher” ao expor uma distribuição desigual de poder.
Apesar do direcionamento social no qual o conceito de gênero se fun-
damenta, não há nenhuma tentativa de negar os aspectos biológicos, uma
vez que o gênero se constitui em um corpo sexuado. Porém, enfatizam-se,
ostensivamente, como as características biológicas são construídas históri-
229
ca e socialmente, observando-se que a prática social tem esses corpos como
alvo primordial. Assim, fundamentar-se na produção acadêmica e política
do movimento feminista é refletir sobre a assimetria nas relações de gênero,
utilizando-se de uma agenda de discussões sobre a conceptualização das so-
breposições de poder às quais a figura feminina se subordina.
Nesse sentido, convém pontuar que a perspectiva feminista não é uma
proposta una, isto é, em vez de refletir uma teoria unificada, ou um processo
analítico consensual, ela reverbera filiações teóricas múltiplas da assimetria
no tratamento de gênero. Porém, em qualquer perspectiva analítica há focos
em comum que consubstanciam os diferentes olhares e respaldam uma con-
cepção geral do movimento, aqui relacionados com o ponto de vista basilar
da Linguística Cognitiva (LC).
Miller e Sholnick (2000) apontam três desses pontos de convergência, que
incidem na visão geral do movimento: primeiro, advoga-se que, assim como
qualquer fenômeno, humanos mantêm relações mútuas, e não completa-
mente particulares, uma vez que os indivíduos estão inseridos em práticas
sociais. Dessa forma, há uma pauta centrada nas relações que se estabelecem
entre os seres, subtraindo as dicotomias tradicionais culturalmente herda-
das. Pares opositivos como razão/imaginação, mente/corpo, interioridade/
exterioridade, estão, de alguma forma, intrincadas. Isto é, “cada termo in-
fluencia e coocorre com seu oposto presumido” (MILLER; SHOLNICK,
2000, p. 5), o que permite afirmar que o mundo psicossocial não deve ser
conceptualizado como algo meramente dicotômico.
Em termos linguísticos, o panorama teórico da Linguística Cogniti-
va mantém uma concepção vertical e holística, de modo que se possa ver
o todo, rejeitando, assim, qualquer abordagem que represente aspectos de
modularidade da mente humana. Em sua pauta, tem-se o compromisso teó-
rico de inclinação à caracterização de princípios gerais que operem em todos
os aspectos da linguagem, apontando um compromisso de generalização.
Assim, os vários aspectos do conhecimento linguístico são investigados a
partir de um conjunto comum de habilidades cognitivas, a partir das quais
as análises são feitas.
Segundo, o conhecimento e as experiências humanas são situadas e parti-
culares, em vez de serem descontextualizadas e universais. A epistemologia
feminista indaga quem fala, por que fala, para quem fala e em qual circuns-
tância fala. Em outras palavras, advoga-se que um ponto de vista não surge
230
“do nada”, mas das experiências relacionadas ao sujeito, incluindo-se seu gê-
nero, etnia, sexualidade, cultura, classe social, círculo familiar etc. Nesse sen-
tido, não é possível falar em objetividade, homogeneidade e universalidade,
pois até mesmo o conhecimento científico está imbricado em um contexto
pessoal e cultural que conduz o investigador a fins específicos – tais como o
desenvolvimento econômico, dominância política, expansão industrial etc.
Dessa forma, categorias únicas, homogêneas e universais podem ser relativi-
zadas (MILLER; SHOLNICK, 2000, p. 5).
Considerando esses fatores, postula-se que o movimento no espaço por
parte dos indivíduos, com base em seu aparato sensório-motor situado so-
cioculturalmente, é o fator crucial no processo de construção do significado.
O interesse da LC, nesse sentido, é o de pleitear a construção do significado
alicerçada na interação existente entre a natureza física do corpo humano e o
meio circundante, dicotomizados no projeto filosófico cartesiano-formalis-
ta. Seguindo um caminho reverso, o movimento rompe com esse dualismo
entre mente e corpo, unindo-os, não dissociando uma entidade da outra.
Assim, a construção do significado está alinhada ao tipo específico de cons-
tituição física encarnada pelos seres e às experiências corpóreas a que esses
seres se submetem.
Terceiro, há o predomínio do androcentrismo institucionalizado o qual
reverbera uma estrutura de poder, de dominação e de interesse próprio que
caracteriza a sociedade. Estudos feministas tendem a observar as relações
sociais que subjazem ao favorecimento proeminente da efígie masculina.
Entre outras esferas coletivas, homens costumam controlar a economia e a
política, além de determinar formas de pensar, falar e conduzir a ciência. Os
valores masculinos são considerados a norma, o parâmetro e a veracidade,
enquanto os demais conceitos são caracterizados como o outro ponto de
vista, o alternativo, a diversidade (MILLER; SHOLNICK, 2000, p. 6).
No panorama teórico da LC, verdade e significado deixam de ser vistos
como intrinsecamente relacionados. Em vez disso, advoga-se a existência de
um sistema conceptual humano (grosso modo, a mente humana) formado
por uma estrutura conceptual (sistema cognitivo que representa e organiza
os conceitos) de natureza experiencial, que é situada, imaginativa e meta-
fórica. O foco da investigação se concentra na natureza do conhecimento
humano (e como o conhecimento é representado na mente), e em como as
formas linguísticas se relacionam com a estrutura conceptual, isto é, com a
231
organização dos conceitos. Não se trata de uma relação direta entre a senten-
ça e aquilo o que ela expressa como verdade. No alcance que se tem do real,
o pensamento e o significado emergem da interação entre aparato sensório-
-motor e meio físico e socioculturalmente situado.

Análise de piada com emprego de nome para a vulva


Com base nos pressupostos teóricos estabelecidos na seção precedente, ana-
lisa-se, neste item, uma piada sob o viés cognitivista da linguagem e em uma
perspectiva feminista da construção social de gênero. Optou-se por uma piada
que acionasse o conhecimento prévio sobre nomes não terminológicos para a
vulva e o pênis. A observação pautou-se nas avaliações de colaboradores reuni-
dos em grupos focais formados por estudantes do primeiro período do curso
de Comunicação Social de uma universidade do Rio de Janeiro.
A partir das interpretações dos contribuintes, elaborou-se uma rede de
integração conceptual da piada selecionada, que foi organizada da seguin-
te forma: utilizaram-se linhas contínuas ligeiramente estreitas para sinalizar
a ligação entre os diversos espaços mentais, formados por círculos, carac-
terizando, assim, o esquema diagramático como uma rede. As linhas mais
espessas foram empregadas para indicar as projeções estabelecidas entre as
contrapartes dos espaços de input. Já as linhas tracejadas marcam as seleções
lançadas para o espaço mescla, propiciando a construção de sentidos das pia-
das. Ressalta-se que se optou pelo uso da palavra em versalete para determi-
nar o nível conceptual da palavra tabuizada.
Tendo isso em vista, passa-se à análise da piada.

Piada “Charadas de português”

Como é conhecida a profissão do médico ginecologista em Portugal?


Espião da casa do caralho53

A piada selecionada configura-se como uma charada que visa à identifica-


ção de como é conhecida a profissão do médico ginecologista em Portugal,
que é ser um “espião da casa do caralho”. Para o entendimento da piada,
o conceptualizador aciona, inicialmente, o MCI organizacional de CON-
SULTAS MÉDICAS no qual atua o médico ginecologista. Como se sabe,
o tratamento direcionado à genitália feminina, incluindo-se sua fisiologia
e suas doenças, é a especialidade do profissional que opera no campo da gi-
53
http://www.osvigaristas.com.br/charadas/portugues/.
232
necologia. Com base nesse conhecimento, ativa-se o cenário preliminar em
que se idealiza um ofício profissional e suas atribuições subjacentes. Esse
enquadre é atenuado por meio da resposta da charada, a qual motiva a mu-
dança de frames, propulsora da nova significação.
Para a composição da rede de integração conceptual da piada, disponibili-
zam-se, no espaço genérico, as entidades concernentes às profissões aludidas
na piada do ginecologista e do espião. Além de evidenciar o ato sexual que
subjaz ao entendimento da piada e a metáfora do pensamento VULVA É
RECEPTÁCULO DO PÊNIS (cf. LAKOFF; TURNER, 1980), que es-
trutura as metáforas linguísticas em que a vulva é vista em termos de objeto
recipiente (nesse caso, do pênis).
A base estável do conhecimento a partir da qual essa ideia se desenvolve
está ligada ao esquema imagético de CONTÊINER, que origina significa-
dos mais abstratos. Por conta dessa experiência sensório-motora, existem
nomes para a vulva como “a casa de todos os pintos, abocanha-caralho, aga-
salhador de croquete, área vip, banco de esperma, caixa dos prazeres” etc.
Todas essas conceptualizações de vulva podem ser consideradas especifica-
ções da metáfora convencional CORPO É OBJETO (CONTÊINER).
Embora se trate de uma piada curta, o processamento da mesclagem en-
volve mapeamentos e projeções complexas e imaginativas que se estabele-
cem em torno de três espaços de entrada abertos de forma dinâmica. Nessa
relação mental, os espaços de input 1 e 2, fundamentados no frame comum
de PROFISSÕES, ativam, respectivamente, o conhecimento dos ofícios do
ginecologista e do espião, evidenciados na narrativa. No input 3, aciona-se o
frame relativo a ATO SEXUAL, apresentando o pênis como “caralho” e a
vagina como “casa do caralho”. A informação abarcada nesse espaço mental
fundamenta-se no conceito internalizado socialmente de que as genitálias
feminina e masculina são objetos restritos por tabus morais e, assim sendo,
suas designações linguísticas são passíveis de serem contornadas por alter-
nativas vocabulares. Dessa forma, o nome atribuído à vagina é concebido
por meio de vinculações de estruturas estabelecidas por ANALOGIA. Em
outras palavras, as experiências corpóreas com recipientes permitem associar
o órgão sexual feminino a um CONTÊINER que, nesse caso, embasa a de-
signação “casa do caralho”, local onde o pênis pode entrar.
No espaço mescla, dispõem-se os elementos que compõem o ápice da
narrativa, contendo a significação nova atingida por meio das projeções de
233
entidades dos espaços de input. Para compor esse espaço, processa-se a rela-
ção vital de DESANALOGIA, comprimida no espaço interior como MU-
DANÇA, em que se converte a noção geral de “espião” para a ideia de um
observador a quem é outorgada permissão para examinar, de forma objetiva,
as características próprias da genitália feminina. Dessa alteração de cenários,
infere-se que o humor surge no acionamento da ideia de que o ginecolo-
gista não é propriamente a pessoa que tem acesso consentido à vulva coti-
dianamente. Ao contrário disso, ele é um espião porque “bisbilhota” o que
“não lhe pertence”. Além disso, por meio da REPRESENTAÇÃO, a vulva
é retratada como a “casa do caralho” ou “a casa do pênis”, conferindo-lhe o
significado de “estância do pênis”, isto é, o local onde o pênis reside.
A figura 1 expõe a rede de integrações conceptuais da piada analisada.

Tendo em vista a diagramação das relações conceptuais da piada, percebe-


-se que, apesar da relação de tabu que subjaz à criação da piada, o humor é
passível de se estabelecer dada a justaposição de estruturas de frames distin-
tos. Nesse sentido, o gatilho para o acionamento do frame relativo a órgão
sexual feminino está no conhecimento sobre a atividade idônea do médico
ginecologista e no seu objeto de atuação, ambos ressignificados. Isto é, a in-
tegração de conceitos, alicerçada na mudança de frames e na reanálise prag-
mática, fundamenta um novo significado na piada, em que o ginecologista
é o alcoviteiro do local por onde (apenas) o pênis pode transitar: a vagina.
234
Considerações Finais
Este estudo apresentou uma análise semântico-cognitiva da conceptuali-
zação de uma piada que promove acesso a nomes populares para os órgãos
sexuais. Para tanto, recorreu-se ao arcabouço teórico da Linguística Cognitiva,
traçando um paralelo com a abordagem feminista da concepção de gênero.
A hipótese preliminar para esta análise pautou-se na ideia de que existe
uma restrição vocabular de cunho moral que impede a circulação de deter-
minados nomes para partes do corpo humano, especificamente das áreas
erógenas, como a vulva e o pênis. Em consequência disso, a terminologia
anatômica de órgãos sexuais passa a ser considerada um tabu linguístico e,
por assim ser, os falantes criam estratégias para contornar a forma linguística
ligada às partes erógenas.
Tendo isso em vista, ratifica-se o entendimento sobre o processamento
da mesclagem conceptual como propulsora de diversos domínios cognitivos
responsáveis por revelar o pensamento criativo para o desvio de tabu linguís-
tico. No caso da piada selecionada para este estudo, reitera-se a necessidade de
se observar tais fenômenos da linguagem, revelados da experiência humana
e das problematizações em torno de práticas de linguísticas quando norma-
tizadas com preconceito inserido. A aceitação dos nomes às partes erógenas
do corpo humano, interditados por tabu, é possível devido às designações
criativas e jocosas propiciadas pela integração conceptual. São nomes que
provocam a risibilidade, embora exponham, ao mesmo tempo, uma socieda-
de patriarcal que minimiza a figura da mulher a uma extensão/receptáculo
do pênis em detrimento da representação dominante do homem.

Referência Bibliográfica
FAUCONNIER, G.; TURNER, M. The way we think: conceptual blending and the mind`s
hidden complexities. New York: Basis Books, 2002.

FREITAS, Patrícia Oliveira de. Mesclagem conceptual na construção de sentido em piadas com
nomes de órgãos sexuais. 2017. 122 f. Dissertação (Mestrado em Linguísticas) - Instituto de Letras,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

LAKOFF, G. JOHNSON, M. Metaphors we live by. Chicago: The University Chicago Press,
1980.

MILLER, Patrícia; SHOLNICK, Ellin. Toward a feminist developmental psychology. New


York: Routledge, 2000.
235
OS VIGARISTAS. Site de conteúdo humorístico. <http://www.osvigaristas.com.br/charadas/
portugues/>. Acesso em: Acesso em: 07/04/2019.

SANTOS, Rita de Cássia. O patriarcado metamórfico e o conceito de gênero. In: II Seminário


Nacional O Feminismo no Brasil, Reflexões Teóricas e Perspectivas e XIV Simpósio Baiano de Pesqui-
sadoras(es) sobre a Mulher e Relações de Gênero, Salvador, 2008.
236
O DESTINO DA LITERATURA: LIMA BARRETO,
UM ESCRITOR MILITANTE.

Patrícia Roque Teixeira das Chagas Rosa54


UERJ

Resumo: O presente trabalho tem como proposta tecer considerações so-


bre o ideal artístico do escritor e intelectual Lima Barreto no contexto da Belle
Époque carioca. Sua militância, enquanto artista, relaciona-se com o papel so-
cial da literatura que visa a mudança da realidade ao redor e a articulação do
significado da existência, estabelecendo, assim, a propagação da solidariedade
humana. A partir disso, as considerações expostas pretendem iluminar um
pouco mais as concepções do escritor sobre a missão da literatura e a necessi-
dade de engajamento do artista na elaboração da obra literária.

Palavras-chave: Lima Barreto. Literatura. Militância. Belle Époque.

A minha atividade excede em cada minuto o instante presente, estende-se ao futuro.


Eu consumo a minha energia sem recear que esse consumo seja uma perda estéril,
imponho-me privações, contando que o futuro as resgatará – e sigo o meu caminho.
Lima Barreto

Por ser um escritor consciente das questões políticas e sociais do seu tem-
po, Lima Barreto buscou captar em sua literatura o curso de pequenos e
grandes eventos ocorridos no Brasil, durante a primeira República, inserin-
do novas formas de pensamento e percepção na estruturação de suas obras.
Observamos no seu acervo ficcional um testemunho particular sobre a
sociedade e suas profundas transformações. Ao captar o fluxo intenso de
acontecimentos, ele esclarece seu interesse em fornecer importantes dados e
circunstâncias inerentes ao seu tempo.
A amplitude de temas sobre o contexto da Belle Époque carioca era uma
forma do escritor de transmitir diretamente aos seus leitores a sua concep-
ção sobre os eventos que ocorriam, estimulando-os a tomar uma posição e a
esboçar uma reação sobre o estímulo dado. Ele se propôs a trazer para suas
54
Mestre na área Estudos de literatura pela Universidade Federal Fluminense. Doutoranda na área de Teoria da literatura e literatura comparada
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
237
obras acontecimentos históricos e sociais que evidenciaram transformações
bastante significativas. O historiador Nicolau Sevcenko aponta para os te-
mas típicos abordados por Lima Barreto:

Movimentos históricos, relações sociais e raciais, transformações sociais, políticas,


econômicas e culturais; ideais sociais, políticos e econômicos; crítica social, moral
e cultural; discussões filosóficas e científicas, referências ao presente imediato, re-
cente e ao futuro próximo; ao cotidiano urbano e suburbano, à política nacional
e internacional, à burocracia, dados biográficos [...] tudo concorre o que de mais
relevante oferecia a realidade de sua época, como se pode perceber (SEVCENKO,
1983, p.162).

Os temas citados por Sevcenko são refletidos de tal forma e enovelados nas
obras que não se pode dissociar ou isolá-los, uma vez que a disposição desses
elementos concorre para “compor um imenso mosaico, rude e turbulento,
que despoja a Belle Époque de seus atavios de opulência e frivolidade” (SEV-
CENKO, 1983, p.162).
De acordo com o teórico, Lima Barreto lutou por um país que construísse
sua autonomia a partir da crítica das condições legadas por seu passado colo-
nial e da compreensão das necessidades de uma sociedade pluriétnica e desi-
gual. Essa atitude reflete o pensamento do artista sobre a adoção da literatura
ligada com a observação direta da realidade, bem como da condição humana
em si, sem deixar de levar em conta os reflexos do passado no presente.
Ao traçarmos um breve panorama sobre a Belle Époque, pode-se dizer que
foi um período marcado de contradições que ressaltaram as condições adver-
sas estabelecidas no cenário da vida urbana ocidental, entre o final do século
XIX e as primeiras décadas do século XX, época de profundas transformações
culturais que se traduziram em novos modos de pensar e viver o quotidiano.
O espírito da Belle Époque tomou conta do Rio de Janeiro, uma cidade
fervilhante que comportava equipamentos dos novos tempos como bondes
elétricos, telefone e máquinas a vapor. Por ser o cartão postal da república, o
Rio de Janeiro adotou o espírito francês, conferindo-lhe aspectos parisien-
ses, para identificar-se com a burguesia europeia e reafirmar sua condição de
superioridade no país, passando por várias reformas urbanas como o alarga-
mento das ruas e a modernização da sua arquitetura, inspirados no modelo
Haussmaniano55. Reformas que não passaram despercebidas pelo olhar crí-
tico de Lima Barreto, sendo reveladas desde a primeira obra, Recordações do
escrivão Isaias Caminha: “Está tudo mudado: abolição, república... Como
55
Modelo urbanístico que tinha como característica construções de Boulevards com contornos definidos por formas geométricas, inspirado na
reforma do prefeito francês Haussmann na cidade de Paris.
238
isso mudou! Então de uns tempos para cá, parece que essa gente está doida,
botam abaixo, demolem casas, levantam outras, tapam umas ruas, abrem
outras...” (BARRETO, 1917, p.54).
O clima estabelecido pelo “mito do progresso” atraiu a empatia dos jo-
vens instruídos procedentes da Escola Politécnica e da Escola Militar. Nes-
te período, havia uma grande expectativa de que a ciência iria promover o
controle das forças naturais, a compreensão do eu e do mundo, o progres-
so moral, a justiça e a felicidade, sendo, então, considerada o novo símbolo
redentor da humanidade. A doutrina positivista, uma das alavancas do
movimento republicano, foi muito difundida, quando Lima Barreto era
jovem, e bastante questionada pelo escritor posteriormente. Em contra-
partida, os reflexos negativos do progresso tecnológico repercutiram no
Rio de Janeiro, onde o rápido crescimento urbano, de acordo com Jane
Santucci, “não veio acompanhado de oportunidade para todos, deixando
uma grande parcela da população à margem, em meio à miséria e vitimada
pelas doenças” (SANTUCCI, 2008, p.39). A cidade era repleta de con-
trastes que podem ser visualizados nos dias atuais. Se de um lado havia
livrarias, redações, a boemia dos cafés e tertúlias literárias frequentadas por
intelectuais e pela elite carioca da época; do outro, havia o mundo peri-
férico dos excluídos composto por ex-escravos, lavadeiras, trabalhadores
informais, desempregados e mendigos.
Diante do movimento cultural contraditório vigente da Belle Époque,
já que não cinde antigo e moderno, mas realiza uma confluência perversa
desses dois elementos, o autor reconhece que sua narrativa não poderia se-
guir os mesmos recursos, estratégias e princípios, por exemplo, de escritores
como Balzac, Flaubert ou Stendhal. Embora considere importante a ideia de
formação como leitor da tradição, nela apoia-se para encontrar uma forma
própria, com elementos coerentes aos movimentos externos, especialmente
considerando os contornos excêntricos da modernidade. Nesse sentido, é
interessante observar que no espaço de representação da narrativa, o escri-
tor estabeleceu uma combinação simultânea de gêneros e estilos para buscar
“nas mais variadas experiências literárias os padrões de que comporia sua
arte, dosando-os com criatividade” (SEVCENKO, 1983, p. 164).
Em seu artigo Amplius!, publicado em 1916, ele justifica, por exemplo, o
processo de experimentação de gêneros literários como forma de captar os
sofrimentos humanos a fim de atingir os mais diversos tipos de leitores:
239
o nosso dever de escritores sinceros e honestos é deixar de lado todas as velhas regras,
toda a disciplina exterior dos gêneros e aproveitar de cada um deles o que puder e
procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças, su-
gerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas grandes a altas
emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar, ligar a huma-
nidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas individuais e
do que elas têm de comum e dependente entre si (BARRETO, 2011, p.58).

Para o autor, sinceridade é o valor primordial de seus ideais estéticos-li-


terários, deixando claro sua intenção de fugir das formas rígidas preconiza-
das pelos gêneros clássicos, ao utilizá-los de forma diversa com o intuito de
expandir sua expressividade e aprimorar sua capacidade criativa. Esse im-
pulso proporciona-lhe flexibilidade e versatilidade para combinar diferentes
elementos estéticos. Com isso, ele vai além da mera repetição de estilos da
tradição.
Mesmo não tendo publicado muitos romances, o autor escolhe este últi-
mo como expressão correspondente ao seu potencial criador, essa escolha
se justifica, em parte, pela elasticidade do romance ao permitir a concentra-
ção de outros gêneros. Encontramos em obras como Recordações do escrivão
Isaías, Triste fim de Policarpo Quaresma e Vida e morte de M. J. Gonzaga
de Sá, a crônica, biografia, memória, tendências líricas, bem como aspectos
documentais. No ato de planejamento de seus romances, era comum ele re-
correr ao seu caderno de recortes, onde destinava colar reportagens de vários
artigos considerados interessantes, além de fazer também anotações sobre
o cotidiano. Os fragmentos e anotações apareceram retocados ao longo de
suas obras, o que evidencia que ele os selecionava e os utilizava como mate-
rial para sua literatura. Observa-se nos retoques e mudanças dessas passagens
uma constante preocupação com a atividade literária, e no percurso do in-
telectual criterioso, destaca-se o processo de escrita que engloba pesquisa,
sensibilidade, observação e análise dos acontecimentos do cotidiano.
No primeiro volume da Revista Floreal, publicada pelo escritor no iní-
cio de sua carreira em 1907, ele criticou os intelectuais do seu tempo, pelo
fato de desprezarem a classe popular mais baixa como matéria-prima de sua
arte: “não acredito que nossos literatos amem o povo, interessem-se pela
sua sorte, achem nele poesia, matéria-prima para suas obras.” (BARRETO,
1907, p.31). Lima Barreto ainda afirmava que muitos artistas e intelectuais
eram uma cópia servil de modelos estrangeiros, marcados pela futilidade e
influenciados por uma literatura burguesa. Dessa forma, ele se recusou a
240
vestir o figurino letrado e se propôs a mostrar as incongruências do mundo
literário da Belle Époque carioca, valendo-se de todos os recursos que tivesse
à mão.
Uma das formas que o escritor encontrou de desafiar os círculos literários
oficiais foi trazer para suas obras personagens de origem popular e a estabele-
cer críticas à elite e seus costumes, representados de modo irônico e satírico.
Dentre os diversos tipos retratados no seu acervo literário, temos os políticos
corruptos, jornalistas manipuladores, os excluídos do subúrbio, como os bê-
bados, loucos, adúlteros, estrangeiros, ex-escravos, boêmios e malandros. A
opção do escritor por uma literatura voltada para representação principal-
mente das classes médias e baixas da população, com universo temático cen-
trado nas práticas de coerção, discriminação e marginalização social, tem por
finalidade mudar a opinião de seus concidadãos e estabelecer o sentimento
de solidariedade e comunhão entre os homens.
Muitos escritores da época de Lima foram bastante influenciados pelo
mito do progresso que os impulsionava a interpretar o país com base nos
preceitos da ordem e do progresso. Carmem Lúcia Negreiros (1997) afirma
que a missão desafiadora que esses artistas tinham se deve à necessidade de
ingressar na civilização social. No entanto, o atraso, a miséria, o aspecto frag-
mentado da modernidade e os insubmissos eram deixados de lado, uma vez
que ameaçam a própria ordem do desenvolvimento. Com isso, muitos artis-
tas assumiram o papel de conduzir a sociedade ao equilíbrio e à ordem do
desenvolvimento e ainda anunciavam “os princípios da eficiência, disciplina
e organização como recursos capazes de domar as forças sociais insubordina-
das e conflitantes, obstáculos à construção de um Estado moderno e buro-
crático.” (FIGUEIREDO, 1997, p.372). No entanto, esse sonho reformista
se esfacelou na medida em que se visava:

tingir de tons uniformes uma realidade multifacetada e criativa; tão criativa que des-
piu a fantasia de ordem e progresso que, com violência, lhe fora imposta e o projeto
histórico arquitetado pelos intelectuais diluiu-se no movediço e assimétrico corpo
social. (FIGUEIREDO, 1997, p. 372)

A esse respeito, o escritor escapa aos pré-requisitos convencionais da jo-


vem República composta por orgulhosos bacharéis, fazendo da sua literatu-
ra um instrumento de contestação. Além disso, o autor põe a descoberto o
ser social, como base de toda consciência, quando questiona as combinações
241
rotineiras que mascaram os conflitos entre indivíduo e sociedade. Temos,
então, uma literatura que é a consciência intranquila desse contexto.
Na missiva direcionada ao jornalista Almáquio Cirne, escrita em 11 de
janeiro de 1920, o escritor menciona a dificuldade encontrada por artistas e
intelectuais que, assim como ele, buscavam driblar os discursos de homoge-
neização cultural:

Todos nós que escrevemos, que queremos realizar uma obra intelectual, seja ela qual
for, sofremos muito quando exercemos uma atividade normal na sociedade. [...]
Não te julgues a única vítima dos duros tempos que atravessamos. O nosso destino
é sofrer nesta ou naquela profissão. O nosso temperamento e o feitio da nossa ati-
vidade intelectual estão sempre em conflito com a sociedade. [...] A insatisfação é a
nossa lei, ainda se fôssemos grandes! (BARRETO, 1956, p.201-202)

Como forma de concretizar sua missão, enquanto escritor e intelectual,


o autor tinha como força motivadora a “insatisfação” que o impulsionava a
reagir aos obstáculos com os quais sua atividade se deparava. Há uma reação
a determinismos e imposições que configuravam o momento. Em resposta a
esse contexto, ele ousou a discutir em suas obras valores da cultura brasileira
por acreditar no poder de transformação da literatura sobre a realidade.
A conferência O destino da literatura (1998) é um texto bastante significati-
vo que sintetiza as concepções de Lima Barreto sobre arte e literatura que nor-
tearam toda sua existência. Pode-se dizer que se trata de seu “testamento literá-
rio”, pois foi escrito um ano antes da sua morte. Ao falar sobre o papel da arte,
sobretudo a missão da literatura e o seu propósito, o escritor cita teóricos que
lhe foram de grande referência, como Ferdinand Brunetière, Marie Guyau e
Hippolyte Taine. Em favor de suas convicções, ele também faz menção a escri-
tores como Rousseau, Voltaire, Flaubert, George Eliot, Dostoiévski, Tolstói e
Eça, que inclusive foram frequentemente citados em seu acervo literário.
Em Recordações do escrivão Isaias Caminha, Isaias confessa que lê os gran-
des romancistas para descobrir o segredo do fazer literário, e o engajamento
da sua obra não é voltado para a “ambição literária”, mas sim para o desejo de
mudar a opinião de seus semelhantes e fazê-los a pensar de outro modo. No
romance, o escritor, por meio do relato de seu protagonista, deixa entrever os
autores que mais ama, procurando neles modelos e formas do fazer literário:

Não nego que para isso tenha procurado modelos e normas. Procurei-os, confesso;
e, agora mesmo ao alcance das mãos tenho os autores que mais amo. Estão ali “O
242
crime e castigo”, de Dostoiévski, um volume dos contos de Voltaire, “A guerra e a
paz”, de Tolstói [...] sob minhas vistas tenho o Taine, o Bouglé, o Ribot e outros
autores de literatura propriamente, ou não. Confesso que os leio, que os estudo,
que procuro nos grandes romancistas o segredo de fazer (BARRETO, 1917, p.81).

Apesar da diferença entre os estilos dos autores citados, Lima Barreto ab-
sorveu pontos em comum como o caráter crítico, desmascarador e compas-
sivo presente nos textos lidos. Em vários outros escritos, como as reminis-
cências pessoais contidas nos artigos, Lima Barreto remete-se com gratidão
a alguns dos escritores citados, pois, segundo ele, lhe deram a sabedoria de
conhecer a si mesmo e com isso entender melhor suas emoções e pensamen-
tos conturbados. Com base nas referências teóricas e literárias, podemos ve-
rificar elementos ideológicos que fizeram parte da sua formação e amadure-
cimento como escritor e intelectual, encontrando nelas um direcionamento
para sua atividade literária.
Em sua conferência, o autor enfatiza o caráter social e o valor universal da
arte, reiterando a sua importância de estar a serviço da humanidade. Para
ele, compete à literatura pregar “o ideal de fraternidade e de justiça entre os
homens e um sincero entendimento entre eles”, e nisso reside, segundo o
romancista, o teor da militância literária, na função de “revelar umas almas
às outras, de restabelecer entre elas uma ligação necessária ao mútuo enten-
dimento dos homens” (BARRETO, 1998, p. 391).
De acordo com o escritor, o destino da literatura não está unicamente em
deleitar-se com o belo, tendo como padrão a beleza plástica grega. A crítica
se volta para a veneração à Grécia exibida pelos seus pares, já que sua posição
se direciona contra a ideia de que a literatura deva ser entretenimento, cheia
de pompas e desligada da realidade circundante, ou seja, uma literatura ar-
tificial. A arte literária possui um papel muito mais diverso e amplo, já que
tem o poder de nos fazer reconhecer e compreender a natureza humana em
si, instaurando, dessa forma, o sentimento de solidariedade:

Mais do que nenhuma outra arte, mais fortemente possuindo essa capacidade de
sugerir em nós o sentimento que agitou o autor ou que ele simplesmente descreve, a
arte literária se apresenta com um verdadeiro poder de contágio que a faz facilmente
passar de simples capricho individual, para traço de união, em força de ligação en-
tre os homens, sendo capaz, portanto, de concorrer para o estabelecimento de uma
harmonia entre eles, orientada para um ideal imenso em que se soldem as almas,
aparentemente mais diferentes, reveladas, porém, por ela, como semelhantes no so-
frimento de serem humanos (BARRETO, 1998, p. 391)
243
Influenciado pela concepção de Tolstoi sobre arte, Lima Barreto entendia
que a missão da arte é se tornar um grande instrumento de comunicação
e ligação entre os homens. Nesse sentido, quanto mais pudéssemos com-
preender o outro, por meio da capacidade que arte tem de se comunicar ao
representar e transmitir sentimentos e ideias, de forma diversa, mais haveria
uma compreensão mútua que acarretaria numa maior ligação entre os ho-
mens e consequentemente sua união.
Movido pelo caráter social da arte, o escritor entendia que para comunicar
suas ideias e compartilhá-las com a humanidade, era fundamental ter inteli-
gência necessária e clareza de pensamento para expressar suas concepções sobre
a sociedade, por meio de uma linguagem acessível, com intuito que as pessoas
em geral tenham acesso ao seu discurso e possam assimilá-lo. Nesse ponto,
R.J. Oakley aponta para dois aspectos ligados à concepção de arte barretiana:

O sentimento barretiano aqui é um desejo ardente de comunicar uma ideia, ou


ideias, à humanidade e pela humanidade. Esta é a primeira necessidade fundamen-
tal sobre a qual se baseia o conceito de arte barretiano. A segunda, mais pessoal, é a
necessidade de uma inteligência considerável (OAKLEY, 2011, p. 5).

A partir das concepções do papel da arte, sobretudo da literatura, pode-


mos observar a característica “militante” atribuída pelo próprio autor a sua
literatura no que se refere à contribuição que a mesma pode dar à sociedade,
no cultivo de valores humanos, propagando-os por meio de sua representa-
ção. A literatura, então, não é apenas um meio de expressão, mas também
um instrumento de comunicação militante. Além disso, outro traço que de-
fine a militância da literatura do escritor é a capacidade dela de suscitar aos
homens o desejo de mudar a realidade ao seu redor, construindo-a de forma
diferente do cotidiano opressor.
Lima Barreto via a necessidade de restaurar a solidariedade humana de
forma crescente e universal, sendo a literatura seu veículo por excelência.
Com efeito, podemos compreender melhor a coerência de linguagem sim-
ples, o caráter militante de sua literatura e seu conteúdo humanitário. O
fundamental era não deixar de, segundo o autor,

pregar, seja como for, o ideal da fraternidade e justiça entre os homens e um sincero
entendimento entre eles. E o destino da literatura é tornar sensível, assimilável, vul-
gar esse grande ideal de poucos a todos, para que ele cumpra ainda uma vez mais a
sua missão quase divina (BARRETO, 1998, p.110).
244
O escritor dedicou-se ir além das injunções particulares e cotidianas para
adentrar nas decisões sobre o destino da humanidade. Pode-se dizer, en-
tão, que a arte, para ele, era um instrumento eficaz na sociedade, “sendo
um canal de comunicação entre os homens, é ao mesmo tempo um veículo
de valores éticos superiores e condicionadora de comportamentos” (SEV-
CENKO, 1983, p.168). Para isso, a literatura foi utilizada como forma de
conhecimento cujo alicerce se encontra na observação direta da realidade
que o circundava.
Portanto, tendo em vista a concepção de Lima Barreto sobre a finalidade
da literatura e sua capacidade de ainda intervir na realidade, observamos a
atuação do intelectual militante no contexto da Belle Époque que planeja
suas obras a fim de quebrar resistências a ideias feitas e a preconceitos incor-
porados pela sociedade. O escritor fez de sua militância, tendo a literatura
como sua principal ferramenta, sua profissão de fé, por cujo ideal sofreu,
lutou e morreu.

Referência Bibliográfica
BARRETO, Afonso Henriques de Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. 2ª ed. Rio de
Janeiro: A. de Azevedo & Costa Editores, 1917.

_______. “Prefácio”. Rio de Janeiro, Floreal, n.1, p. 3-7, outubro 1907.

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_______. “O destino da literatura”. In:_____. Um longo sonho do futuro: diários, cartas, entre-
vistas e confissões dispersas. 2. ed. Rio de Janeiro: Graphia, 1998.

_______. Correspondência, ativa e passiva. Tomos I e II. São Paulo: Brasiliense, 1956.

_______. “Amplius”. In:_____. Contos completos de Lima Barreto. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011, p. 15-53.

FIGUEIREDO, Carmem Lúcia Negreiros de. “Cotidiano de ficção: escrita de vida e morte”.
In: HOUAISS, Antonio; FIGUEIREDO, Carmem Lúcia Negreiros de (org.). Triste fim de Poli-
carpo Quaresma. São Paulo: Allca XX, 1997, p. 275-285.

OAKLEY, R.J. Lima Barreto e o destino da literatura. São Paulo: Unesp, 2011.

SANTUCCI. Jane. Cidade rebelde: as revoltas no Rio de Janeiro no início do século XIX. Rio de
janeiro: Casa das letras, 2008.
245
SEVCENKO, Nicolau. Lima Barreto e a “República dos Bruzundangas”. In: _____. Literatura
como missão. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 161-194.

_____. “Lima Barreto, a consciência sob assédio”. In: HOUAISS, Antonio; FIGUEIREDO,
Carmem Lúcia Negreiros de (org.). Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Allca XX, 1997,
p.318- 350.
246
UTILIZANDO A MÚSICA UPTOWN FUNK NO ENSINO DE
LÍNGUA INGLESA: UMA ABORDAGEM INTERCULTURAL

Paulo Roberto Parq Alves Pedreira56


UERJ

Resumo: O presente trabalho objetiva demonstrar como podemos desen-


volver competência intercultural de forma leve e divertida, por meio de uma
atividade com letra de música produzida e aplicada em grupos de alunos adul-
tos, de nível intermediário a avançado, aprendendo inglês como língua estran-
geira em uma escola de idiomas na cidade do Rio de Janeiro, utilizando a letra
da música Uptown Funk.

Palavras-chave: Ensino de Inglês como Língua Estrangeira. Letras de Mú-


sica. Diversidade.

Introdução
É do saber popular que a música faz parte do ensino de línguas. Letras de
Caetano Veloso, Renato Russo, Chico Buarque e Nando Reis, por exemplo,
aparecem tanto em materiais didáticos de Língua Portuguesa que circulam
pelo país como em exames de vestibular. Da mesma forma, Michael Jackson
e Beatles se apresentam nas salas de aula de Língua Inglesa. Confia-se, portan-
to, em aspectos como o poético, o metafórico, o motivacional e, sobretudo o
de difusora de opiniões apresentado pelas músicas. A música pode, portanto,
ser utilizada como meio para ampliar o conhecimento para questões que vão
além de tópicos linguísticos, especialmente considerando-se que, no ensino de
inglês como língua estrangeira, seu uso é uma prática amplamente difundida
entre professores do idioma, geralmente como atividades extras, buscando la-
pidar a habilidade auditiva e ampliar o vocabulário dos alunos de forma lúdica.
Com o advento da globalização, pessoas oriundas de diferentes culturas pas-
saram a interagir entre si, e a Língua Inglesa acabou se tornando o principal
meio de comunicação nesse cenário, unindo falantes não nativos de diferen-
tes nacionalidades. Sendo assim, para que essa comunicação se dê de forma
56
Discente do curso de Mestrado em Linguística pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
247
efetiva, não basta apenas que as pessoas aprendam a falar em inglês, mas que
compreendam como e com quem falam utilizando o idioma. Para tanto, faz-se
necessário o desenvolvimento da competência intercultural dos indivíduos.
Ser competente pela perspectiva intercultural não se caracteriza somente por
saber se comunicar adequadamente com pessoas de outros países – indivíduos
precisam aprender a se relacionar com pessoas de outros grupos, inseridos em
distintas culturas. Essa diferença pode ser encontrada, por exemplo, dentro de
uma única empresa: o departamento financeiro vive em consonância com um
conjunto de regras, normas e linguagens próprios, ao passo que o departamen-
to jurídico tem seu próprio conjunto, enquanto a TI e o setor de vendas têm
os seus. Todos esses setores e departamentos precisam conviver e se comunicar
da forma mais efetiva possível, consequentemente, fazendo-se necessário o de-
senvolvimento da competência intercultural dos indivíduos.
Podemos também afirmar que pelo contexto de polarização sócio-política
no qual o Brasil está inserido atualmente, pode-se constatar que a intolerância
vem atingindo níveis alarmantes. Nesse sentido, a diversidade cultural precisa
ser defendida e preservada e isso está diretamente ligado ao desenvolvimento
de empatia nas pessoas.
A proposta do presente trabalho é demonstrar como podemos desenvolver
competência intercultural de forma leve e divertida, por meio de uma ativida-
de produzida e aplicada em grupos de alunos adultos, de nível intermediário
a avançado, aprendendo inglês como língua estrangeira, utilizando a letra da
música Uptown Funk.

Por que devemos desenvolver a competência


intercultural em nossas aulas?
Em um artigo intitulado “O ensino de língua estrangeira e a competência
cultural”, Mozillo e Machado (2005), a competência intercultural vai além do
domínio das dimensões linguística e cultural, permitindo a revalorização da
finalidade educativa do ensino de Língua Inglesa. Nesse sentido, ela contribui
para a eliminação de estereótipos sociais; para a luta contra a xenofobia e o
racismo e todo tipo de intolerância; além da criação de respeito para com o ou-
tro e do desenvolvimento de empatia, levando à compreensão entre os povos e
ao enriquecimento mútuo.
O desenvolvimento de tal competência é o objetivo principal da Aborda-
gem Comunicativa Intercultural. Como seu nome sugere, essa abordagem
248
está fortemente pautada nos princípios do ensino comunicativo de línguas e
também denota preocupação com os aspectos culturais envolvidos no processo
de ensino e aprendizagem de línguas adicionais. O desenvolvimento da com-
petência comunicativa intercultural, que se dá pelo desenvolvimento de cinco
componentes, como propõem Byram, Gribkova e Starkey (2002, p.12-13):

• Atitudes interculturais, que podem ser traduzidas como a curiosidade, a aber-


tura e a prontidão para suspender descrenças sobre outras culturas e crenças sobre
sua própria cultura;
• Conhecimentos que o indivíduo possui sobre os grupos sociais e sobre seus
produtos e suas práticas em seu próprio país e no país de seu interlocutor;
• Habilidades de interpretação e de relação, que permitem ao indivíduo inter-
pretar um documento ou um evento de outra cultura e explica-lo e relacioná-lo a
documentos ou eventos de sua própria cultura;
• Habilidades de descoberta e de interação, que consistem em construir novos
conhecimentos sobre uma cultura e sobre práticas culturais, além de ativar conheci-
mentos, atitudes e habilidades dentro dos limites da comunicação e da interação em
tempo real.;
• Consciência crítica cultural, que permite ao indivíduo, com base em critérios
explícitos, avaliar criticamente perspectivas, práticas e produtos em sua própria cul-
tura e em outras culturas e países.

A dimensão intercultural no ensino das línguas estrangeiras visa oferecer


subsídios para que os aprendizes se tornem falantes interculturais ou me-
diadores capazes de se engajar com complexidades e identidades múltiplas,
evitando os estereótipos. Em suma, espera-se que o aprendiz sinta-se à von-
tade para engajar em discussões sobre aspectos de sua cultura e da cultura do
outro de forma crítica e consciente.

Quais são as vantagens em utilizarmos


letras de música no ensino de inglês?
Buscando compreender a utilização de atividades com música no ensino
de inglês, este trabalho encontrou suporte em pesquisas que vêm defenden-
do o uso de letras de música em sala de aula. Nesse contexto, podemos citar
Bértoli-Dutra e Veirano Pinto (2012), Werner (2012), Potter e Lederman
(2013) e Bértoli (2014). Esses autores defendem o papel de letras de músi-
ca como gênero textual passível de todos os tipos de análise linguística. Se-
gundo Bértoli (2014, p.402) “letras de música não podem ser consideradas
apenas por suas características poéticas”, pois letras de música e poesia se di-
ferem “tanto por seu componente sonoro quanto pelas escolhas lexicais que
249
as caracterizam”. Werner (2012, p.19) por sua vez aponta para o fato de que
“a história da música ocidental tem sido, predominantemente, uma história
da música cantada” e que “apesar de letras de música terem sido um gênero
negligenciado como objeto de estudo acadêmico por muito tempo, (...) elas
são objeto digno de atenção”. Potter e Lederman (2013, p.11) afirmam que
a música proporciona uma mudança na rotina de uma sala de aula de língua
estrangeira e que ela expõe os alunos a “um ambiente seguro e não ameaça-
dor de linguagem autêntica”.
Contudo, Bértoli-Dutra e Veirano Pinto (2012, p.46), apontam que, na
maioria dos casos, a música acaba sendo utilizada quase unicamente por seu
caráter motivacional e, além disso, basicamente para proporcionar o desen-
volvimento auditivo do aprendiz. As autoras também afirmam que, geral-
mente, “a música é tocada nos últimos ou primeiros minutos de aula e, via
de regra, seguida de comentários do professor sobre o seu sentido e/ou de
exercícios de preencher espaços em branco (fill in the gaps) com palavras que
estão faltando” (BÉRTOLI-DUTRA e PINTO, 2012, p.46). Dada essa
perspectiva, podemos observar que as atividades com música raramente se-
guem os procedimentos estipulados por algum método de ensino de inglês
e, portanto, indagamos se é possível desenvolvermos diferentes atividades,
que contemplem métodos de ensino de inglês utilizando letras de música.

Uptown Funk
A atividade foi desenvolvida a partir da música Uptown Funk, lançada em
2014 pelo produtor Mark Ronson em parceria com o cantor Bruno Mars. A
música citada foi selecionada por, além do ritmo dançante, apresentar várias re-
ferências culturais dos EUA e tópicos linguísticos como contrações informais.

• Objetivo: trabalhar aspectos linguísticos e culturais da Língua Inglesa, de for-


ma lúdica e divertida.
• Duração da Atividade: 60 minutos.
• Público-alvo: Adultos de nível intermediário a avançado, estudantes em uma
escola de idiomas, com turmas multinível, no Rio de Janeiro.
250
Primeiro Passo: Introdução ao Tema
Nesse momento, Lançamos aos alunos uma série de perguntas, procurando
compreender seu conhecimento prévio sobre o tema, além de introduzi-lo:

• “Vocês sabem o significado da palavra Uptown?”


• “E Downtown? Midtown?”
• “E vocês sabem a diferença entre essas regiões?”
• “Vocês sabiam que em Manhattan a lógica se inverte?”

Caso os alunos não saibam responder, explicamos que é comum que as


cidades nos EUA sejam divididas geograficamente em regiões denominadas
Downtown, Uptown e Midtown, entre outras – sendo a primeira na parte
sul da cidade, a segunda ao norte e a terceira entre ambas. Também explica-
mos que, geralmente, Uptown compõe a parte mais abastada das cidades e
que Downtown seria a parte mais vulnerável economicamente e que, po-
rém, essa lógica se inverte em Manhattan57. Como ilustração, mostramos um
mapa de Manhattan58 para que os aprendizes possam visualizar a localização
de Uptown e Downtown. Também exibimos algumas fotos panorâmicas
de bairros de Uptown para que os alunos possam se acostumar com sua ar-
quitetura, uma vez que esse tópico será abordado no decorrer da atividade.

Segundo Passo: Exibição e Contextualização do Vídeo Clipe


Nesse ponto da aula, exibimos o vídeo clipe de Uptown Funk59 pela pri-
meira vez, porém solicitamos que os alunos não tentem compreender a letra
de início, mas que procurem seguir às seguintes instruções:

• “Assista ao Vídeo Clipe”


• “Preste atenção aos detalhes”
• “Responda: O que os homens estão fazendo no vídeo?”
• “Responda: Qual mensagem eles querem passar?”

O objetivo é fazer com que os alunos utilizem sua capacidade de interpre-


tação de textos visuais, o que pode fazer com que a letra da música seja com-
preendida mais facilmente. Buscamos ainda estabelecer uma conexão entre
os conhecimentos prévios dos estudantes e o conteúdo do vídeo.
Perguntamos “Vocês conseguem pensar em algum momento no qual te-
nham visto essa vizinhança? Ela é familiar para vocês?”, enquanto mostra-
mos a fachada de um prédio em Uptown, e direcionamos o aluno a reme-
57
https://www.teclasap.com.br/downtown-x-uptown-x-midtown/ (acesso em março de 2019).
58
Mapa disponível em http://www.novayorkparabrasileiros.com/bairros-de-nova-york/ (acesso em março de 2019).
59
Vídeo Clipe disponível em https://www.youtube.com/watch?v=OPf0YbXqDm0 (acesso em março de 2019).
251
ter-se à série “Todo Mundo Odeia o Chris” (2005-2009), que se passa nos
anos 80, em Bed-Stuy, no Brooklyn – apesar de não se passar em Manhattan,
a arquitetura e a cultura local podem ser facilmente confundidas com a do
Harlem, localizado em Uptown. Perguntamos também se há alguma produ-
ção atual na qual pode se observar aquela vizinhança, e a série “Luke Cage”
(2016-2018) pode ser citada.

Terceiro Passo: Compreensão Auditiva


Exibimos o vídeo mais uma vez, solicitando que os alunos prestem atenção
à letra. A execução desta atividade dependerá do nível de conhecimento sobre
o idioma apresentado pelos alunos e/ou de seu estilo de aprendizagem – al-
guns alunos preferem o tradicional fill in the blanks, enquanto outros prefe-
rem desafios mais complexos. Podemos utilizar três versões para esse exercício:

• Preencha as lacunas:
“(…)
I’m too hot (hot damn)
Call the _________ and a fireman
I’m too hot (hot damn)
Make a dragon wanna _________, man
I’m too hot (hot damn)
Say my _______, you know who I am
I’m too hot (hot damn)
And my band ‘bout that ___________
Break it down
(…)”

• Circule as alternativas corretas:


“(…)
This hit, that mice/ice cold
Michelle Pfeiffer, that white/bright gold
This one/won, for them hood girls
(…)”

• Anote o máximo de palavras que conseguir compreender!


• Após a correção, partiremos para o próximo passo.

Quarto Passo: Referências Culturais


Nesse momento, fazemos a checagem do conhecimento prévio dos estu-
dantes a respeito das referências culturais contidas na letra da música. Sem-
pre as evidenciando, caso elas não façam parte do repertório dos mesmos.
252
Alguns exemplos são:

• “Michelle Pfeiffer, that white gold”


A letra pode estar apenas exaltando a beleza e o talento da atriz, como
também pode estar se referindo à sua atuação no filme “Mentes Perigosas”
(1995), no qual ela interpreta uma professora de Ensino Médio em uma
escola pertencente a uma comunidade pobre, semelhante às comunidades
de Uptown.

• “Got Chucks on with Saint Laurent”


Esse verso sugere que o autor se caracteriza como alguém com estilo úni-
co, uma vez que Chucks se refere a uma marca popular de calçados nos EUA
e Saint Laurent se refere a grife Yves Saint Laurent.

• “Smoother than a fresh dry skippy”


Fresh Dry Skippy é um drink feito com vodka, cerveja e limonada60.

Quinto Passo: Tópicos Linguísticos


Apresentamos aos alunos a seguinte lista de contrações informais e explo-
ramos seus significados:

Em seguida, perguntamos se os aprendizes conseguem encontrar algu-


ma das contrações listadas na letra da música. Solicitamos também que eles
apontem outras contrações informais presentes na letra, as quais não cons-
tam na lista.
Após, nós fazemos uma breve checagem sobre a compreensão dos estu-
dantes a respeito da letra e perguntamos sobre qual seria a mensagem que o
autor gostaria de transmitir. A resposta é livre.
60
https://www.urbandictionary.com/define.php?term=fresh%20dry%20skippy (acesso em março de 2019)
253
Sexto Passo: Encerramento
Terminamos a atividade perguntando se eles veem alguma semelhança en-
tre o vídeo clipe e a letra da música. Provocamos também uma reflexão sobre
a divisão do espaço urbano na cidade do Rio de Janeiro, questionando se
eles consideram que a divisão dos territórios de Manhattan lembra a divisão
espacial em nossa cidade.

Análise e Resultados
Conforme a atividade aqui desenvolvida foi apresentada e explicitada,
pudemos observar que a mesmas parece apresentar-se alinhada aos cinco
componentes propostos para o desenvolvimento para a competência comu-
nicativa intercultural por Byram, Gribkova e Starkey (2002: 12-13): atitudes
interculturais, conhecimentos, habilidades de interpretação e de relação, ha-
bilidades de descoberta e de interação e consciência crítica cultural.
A partir de uma check list contrastando esses cinco componentes e as eta-
pas da atividade, analisaremos cada componente pertinente para o desen-
volvimento da competência comunicativa intercultural, indicando em qual
parte das atividades determinado componente foi contemplado.

Atitudes interculturais
O primeiro item da check list pode ser encontrado no primeiro passo da
atividade, pois ele suscita nos aprendizes a curiosidade e a abertura para ou-
tras culturas quando questionamos sobre as regiões Downtown e Uptown
e sobre como tal divisão territorial é estabelecida.

Conhecimentos
Na atividade, o segundo item da check list é abordado no segundo passo,
quando buscamos estabelecer uma conexão entre os conhecimentos prévios
dos estudantes sobre aspectos culturais, como a arquitetura da vizinhança,
e o conteúdo do vídeo. Este item também está presente no quarto passo da
mesma atividade, quando exploramos as referências culturais contidas na
letra de Uptown Funk, como, por exemplo, a bebida Fresh Dry Skippy.

Habilidades de interpretação e de relação


Como dito anteriormente, as habilidades de interpretação e de relação
dos alunos se dão quando eles conseguem interpretar um evento ou docu-
254
mento de outra cultura e explicá-lo e relacioná-lo a um evento e documento
de sua própria cultura. Portanto, podemos dizer que o terceiro componente
da check list está sendo contemplado quando perguntamos, no sexto passo
da atividade, se os aspectos culturais abordados nas atividades podem ser
relacionados com suas realidades no Rio de Janeiro e/ou no Brasil. Podemos
citar como exemplo o momento em que questionamos se a divisão territorial
feita em Manhattan se assemelha à divisão territorial estabelecida em nossa.

Habilidades de descoberta e de interação


Este componente se refere à habilidade dos alunos em “construir novos
conhecimentos sobre uma cultura e sobre práticas culturais, e à habilidade
de ativar conhecimentos, atitudes e habilidades dentro dos limites da comu-
nicação e da interação em tempo real.” (OLIVEIRA, 2014, p.186). Nesse
sentido, podemos afirmar que todos os passos das atividades que promovam
input de conhecimentos culturais e que promovam discussão a esse respeito,
podem estar relacionados a esse componente. Na atividade, pudemos en-
contrar o componente em:

• Primeiro Passo, quando explicamos as divisões espaciais nos centros urbanos nos EUA;
• Segundo Passo, quando solicitamos que os alunos elaborem sobre seu conheci-
mento a respeito do tema;
• Quarto Passo, quando discutimos as referências culturais presentes na letra da música;
• Sexto Passo, quando provocamos a reflexão e a discussão sobre as semelhanças e
diferenças entre as divisões territoriais de Manhattan e as do Rio de Janeiro.

Consciência crítica cultural


O quinto componente consiste na capacidade de, com base em critérios
explícitos, avaliar criticamente perspectivas, práticas e produtos em sua pró-
pria cultura e em outras culturas e países (OLIVEIRA, 2014, p.186). Por-
tanto, tal componente está presente no sexto passo da atividade, a partir do
momento que os alunos são orientados a comparar criticamente aspectos
culturais de seu próprio país com os aspectos culturais do país em questão.

Resultados
Este trabalho teve como objetivo principal verificar se atividades desenvol-
vidas como material extra para o ensino de inglês em uma escola de idiomas,
apesar de não terem sido elaboradas à luz de nenhuma teoria metodológica,
poderiam encontrar-se alinhadas a métodos de ensino já estabelecidos te-
255
oreticamente. Levando-se em consideração as propostas comunicativas do
curso em questão, foram pesquisados diversos métodos de ensino que sub-
jazem a essa teoria. Dessa forma, foi feito um estudo comparativo com os
pré-requisitos para a teoria que nos pareceu melhor se associar às atividades.
Como resultado da análise da pesquisa, podemos afirmar que as ativida-
des com letras de música propostas se alinham à abordagem comunicativa
intercultural, pois apresentam todos os componentes necessários para o de-
senvolvimento da competência comunicativa intercultural. A tabela abaixo
resume a análise produzida neste trabalho:

Ser competente pela perspectiva intercultural não se caracteriza somente por


saber se comunicar adequadamente com pessoas de outros países – indivíduos
precisam aprender a se relacionar com pessoas de outros grupos, inseridos em
distintas culturas. Num ambiente de trabalho, como por exemplo, em uma
empresa: o departamento financeiro vive em consonância com um conjunto
de regras, normas e linguagens próprios, ao passo que o departamento jurídico
tem seu próprio conjunto, enquanto a TI e o setor de vendas têm os seus.
Não podemos esquecer que as pessoas também se associam em grupos
alheios ao mundo do trabalho. Pessoas podem desenvolver alinhamentos por
hobbies em comum, por faixa etária, por gênero, por proximidade geográfi-
ca, por identidade religiosa, entre outros. Devemos ter em mente que todos
esses grupos precisam conviver e se comunicar da forma mais efetiva possível,
consequentemente, fazendo-se necessário o desenvolvimento da competência
intercultural dos indivíduos.
256
A atividade Uptown Funk visa promover nos aprendizes uma reflexão
sobre as disparidades entre suas concepções de mundo e as concepções de
mundo de outras comunidades. Quando uma atividade almeja tais objeti-
vos, ela procura contribuir para o desenvolvimento da competência inter-
cultural. Ao compreender que no mundo há distintas culturas e que elas
não se atêm a nacionalidades, um indivíduo compreende que a diversidade
cultural existe e deve ser respeitada. Nesse momento, a competência inter-
cultural é atingida e o desenvolvimento de tal competência está diretamente
ligado ao desenvolvimento da empatia.

Considerações Finais
A análise apresentada neste trabalho demonstrou que as atividades me-
lhor se adequam à abordagem comunicativa intercultural, tendo em vista
que estão em conformidade com todos os cinco componentes necessários
para o desenvolvimento da competência comunicativa intercultural. Toda-
via, isso não significa que as mesmas atividades não apresentem característi-
cas de outros métodos de ensino de língua estrangeira.
Por outro lado, vale ressaltar que nossa proposta não se trata de um pós-
-método, no qual os métodos podem se fundir para melhor atingir as neces-
sidades dos alunos, mas trata-se de uma atividade que foca no conhecimento
intercultural. Dessa forma, esperamos justificar nossa escolha metodológica
em não incluir os requisitos dos outros métodos em nossa check list.
É importante salientar que a atividade foi desenvolvida e aplicada inde-
pendente de teoria ou método. Embora sua receptividade não faça parte do
escopo desta pesquisa, pudemos observar que os alunos conseguiram com-
preender que no mundo há distintas culturas e que elas não se atêm a nacio-
nalidades e que, sendo assim, a diversidade cultural existe e deve ser respeita-
da. É preciso observar também que, como pesquisador, ter uma teoria que
confira respaldo às atividades desenvolvidas mostra que o professor que está
em consonância com a movimentação acadêmica, acaba, ainda que instin-
tivamente, levando em consideração os conhecimentos teóricos adquiridos.
Além, disso, a resposta dos alunos comprova que a abordagem comunicati-
va intercultural pode contribuir para a formação linguística do aluno, uma
vez que o capacita a discutir a cultura do outro e, sobretudo, a sua cultura
na língua do outro, possibilitando também compartilhar criticamente seu
conhecimento regional e ampliar seu conhecimento de mundo. Métodos
257
como esse, associados a fontes motivacionais como músicas, dão voz ao
aprendiz para expressar assuntos do seu próprio interesse e de acordo com
o andamento do mundo, considerando mudanças e variações linguísticas.

Referências Bibliográficas
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corpus. In Letras & Letras v. 30, n2. 2014.

BÉRTOLI-DUTRA, P. Explorando a Lingüística de Corpus e letras de música na produção de


atividades pedagógicas. Dissertação de Mestrado. PUC - São Paulo. 2002.

BÉRTOLI-DUTRA, P.; PINTO, M. V. Música. In: BERBER-SARDINHA, T.; SHEPERD,


T. M.G.; DELEGÁ-LÚCIO, D.; FERREIRA, T. S.. (Org.). Tecnologias e Mídias no ensino de
inglês: o corpus nas receitas. Cotia: Macmillan do Brasil, 2012, v. 1, p. 46-68.

BYRAM, M. et al. Developing intercultural competence in practice. Clevedon. Multilingual


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KUMARAVADIVELU, B. Beyond Methods: macrostrategies for language teaching. Yale Lan-


guage Series. New Haven (USA) & London (UK): Yale University Press. 2003.

MOZILLO, Isabella ; MACHADO, M. G. S. O ensino de língua estrangeira e a competência


cultural. In: IV SENALE (Seminário Nacional sobre Linguagem e Ensino), 2005, Pelotas. Anais em
CD-ROM do IV SENALE : Oralidade e Ensino, Questões e Perspectivas, 2005.

OLIVEIRA, L. A. Métodos de ensino de inglês: teorias, práticas, ideologias. São Paulo: Parábola, 2014.

POTTER, L. E.;LEDERMAN, L. Atividades com música para o ensino de inglês. Barueri: Di-
sal. 2013

WERNER, V. Love is all around: a corpus-based study of pop lyrics. In Corpora 2012 Vol. 7. n 1. 2012.
258
TRÂNSITO, TERRITÓRIO E FALA: SOBRE CORPOS E POESIA

Samanta Samira Nogueira Rodrigues61


UERJ

Resumo: Proponho aqui a leitura de seis poemas da produção brasileira


contemporânea que contestam, a partir do olhar da periferia, algumas das
mais diversas formas de violência que perpassam nosso cotidiano, questio-
nando itinerários pelo viver, no sentido mais amplo da palavra. As vozes que
entram em cena neste trabalho integram a coletânea Seis temas à procura de
um poema, produto da Festa Literária das Periferias (FLUP) do ano de 2017 e
serão apresentadas em diálogo com as ideias de Judith Butler presentes em três
de suas obras: Relatar a si mesmo; Quadros de Guerra; e Corpos em aliança e a
política das ruas, a fim de pensarmos as condições para tais escritas e os gestos
nela contidos.

Palavras-chave: Corpo. Trânsito. Violências. Poesia.

Em um encontro sobre literatura brasileira negra de autoria feminina no


ano de 2018, a professora Simone Ricco62 (SME-RJ / IPN) destacou a im-
portância das narrativas sobre si, enunciadas através de diferentes linguagens e
citou uma fala presente no filme Elekô (Coletivo Mulheres de Pedra, 2016)63:
“vai lá, escreve! Conta pras pessoas!”. Meses antes, a escritora Conceição Eva-
risto, ao falar sobre as dores por vazios como os que nos sucedem ao assassi-
nato da vereadora Marielle Franco, em março de 201864, questionou: “acho
que outras mulheres vão continuar essa caminhada, mas por que a nossa
caminhada tem que ser tão marcada pela dor?”65.
Mais pela tentativa de contribuir para o que está contido nessa pergunta
- as dores das gentes - do que pela busca por respostas, e através do neces-
sário contar enunciado pela professora Simone, proponho a leitura de seis
61
Doutoranda em Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - PGLetras. samanta.samira@yahoo.com.br
62
Simone Ribeiro da Conceição.
63
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EdcguHwyY_Y&t=185s. Acesso em 31 out. 2018.
64
“Marielle Franco, vereadora do PSOL, é assassinada no centro do Rio após evento com ativistas negras”. Disponível em: https://brasil.elpais.com/
brasil/2018/03/15/politica/1521080376_531337.html. Acesso em 26 fev. 2019. Junto com ela, foi assassinado o motorista Anderson Pedro Gomes.
Até a data de envio deste artigo, às vésperas de se completar um ano do crime, ainda não sabemos quem mandou matar Marielle Franco.
65
Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-07/conceicao-evaristo-se-emociona-ao-falar-de-marielle-o-vazio-esta-ai.
Acesso em 02 nov. 2018.
259
poemas da produção brasileira contemporânea que contestam essa forma de
um doído itinerário pelo viver, sendo esse verbo questionado em seu sentido
mais amplo. As escritas compõem a coletânea Seis temas à procura de um
poema, produto da Festa Literária das Periferias (FLUP) realizada no ano de
2017, na cidade do Rio de Janeiro.
O caminhar defendido e reivindicado através das escritas literárias em
questão é por vezes pausado, desviado ou mesmo interrompido diante das
mais diversas formas de violência. Por vezes, as pausas, desvios e interrupções
impostos são - ou se pretendem - subjetivos e se dão diante de sequências de
não ditos, que por sua vez são formados por olhares e gestos lançados por
outrem, como que para dizer que determinado corpo não pertence a dados
espaços, como se fossem um algo fora de seu lugar e até mesmo figurando
como um território sujeito a tais violências.
Essa divisão ultrapassa os limites territoriais e são cotidianamente questiona-
das em notícias de jornal e pautas de políticas públicas, mas, e parafraseando um
verso conhecido pela voz de Chico Buarque66, , há nessa segmentação, dores que
não saem no jornal, por não caberem em discursos estruturalmente objetivos.
Uma breve consulta na internet a partir das palavras-chave “periferia” e
“favela” às notícias da última semana nos dão um panorama de algo tam-
bém presente nas obras aqui estudadas, ao apresentar, já na página inicial
dos resultados, manchetes sobre (i) a espera demorada para consulta no Sis-
tema Único de Saúde (SUS); (ii) a expectativa de vida cuja média é vinte e
três anos mais baixa; (iii) o lançamento de um livro sobre o extermínio de
jovens negros; (iv) atuações necessárias contra a violência obstetrícia cometi-
das em moradoras das favelas; e (v) orquestrada pelo tráfico, a promoção de
criminosos que matam policiais67.
Na contramão da velocidade dos fatos noticiados, no espaço ficcional tal-
vez seja possível dizer, ou traduzir através de imagens, sons e literatura, o que
é acreditado ser indizível, pela subjetividade de cada vivência. Quando esse
gesto é composto pela existência das dores sentidas, provocadas ou percebi-
das por personagens que vivem nas periferias, como no caso aqui estudado,
há um necessário movimento que é defendido pelo autor Mia Couto (2011)
em um texto chamado “Línguas que não sabemos que sabíamos”, o da luta
da palavra para que ela não seja silêncio. (COUTO, 2011, p. 13).
Assim, as reivindicações aqui apresentadas versam sobre o espaço literá-
rio, sobre o trânsito pela cidade e sobre o próprio corpo impedido de seguir
66
Notícia de jornal, de Luis Reis e Haroldo Barbosa
67
Pesquisa realizada através do site de buscas Google, em novembro de 2018.
260
pelas violências muitas vezes abrigadas sob o discurso da guerra ao tráfico de
drogas. Em resposta a isso, acionamos a produção literária de reivindicações
pautadas na não violência, ideia defendida por Judith Butler (2018a), mais
adiante explicitada.
No primeiro poema estudado, a função de expressar e fazer conhecer do-
res é atribuída à literatura e defendida em “Poema #2”, de Jaqueline Ca-
lazans (SALLES e LUDEMIR, 2017, p. 81). Utilizando a metalinguagem
como recurso, a voz enunciativa questiona sua própria escrita, contrapondo
as acreditadas requeridas condições linguísticas para escrever sem fazer “mau
uso das palavras” e a real situação de não ter tido “chance de aprender o uso
correto”, se tomamos como “uso correto” as “palavras colocadas em devi-
dos sujeitos, predicados, concordâncias e tudo o mais”. A saída anunciada é
justamente esse “mau uso”, recurso para falar das aflições e dores das gentes,
das quais, segundo o poema, “coisas que ninguém diz / e nem quer dizer”. A
poesia passa então, das exigências formais anunciadas na primeira estrofe do
poema, ao que a define como uma imagem muito próxima ao real: “Poesia
é viver, é olho no olho, é a dor que arde, é o filho que / chora, é a fome que
bate. Se a poesia nada tem a ver com os / causos da vida, então não sei o que
é poetizar”. (Ibidem, p. 81).
O segundo poema, “Sobre-aviso”, de Viviane Laprovita, também defende
o contar através de versos, mas dedica-se ao anúncio de uma opção de livre
existência e trânsito pelo mundo por parte de alguém que se anuncia “feita
de camadas / De pontos profundos”, para verbos nunca esgotados: viver, so-
nhar e fazer. Todos esses gestos são requeridos como negação ao que deseja
ao sujeito enunciador prender; ao que deseja dele disponibilidade integral;
ao que o ignora; e ao que pretende controlar o que, segundo a voz poética,
há de mais sagrado, sua ancestralidade, refletida em seus versos. (SALLES e
LUDEMIR, 2017, p. 124).
O lugar de enunciação dessa escrita que se auto defende pode ser tam-
bém observado no prólogo de um romance brasileiro publicado há cento
e sessenta anos, a obra Úrsula, de Maria Firmina dos Reis (1822 - 1917):
“Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher
brasileira, de educação acanhada e sem o trato e a conversação dos homens
ilustrados [...] seu cabedal intelectual é quase nulo”. (REIS, 2018, p. 93). A
diferença entre essa escrita da metade do século XIX e as escritas contempo-
râneas em questão é que a primeira parece apresentar um pedido de licença
261
para a obra que se inicia; e as demais, mesmo quando se justificam, valem-se
do espaço poético para se apresentar e criticar conformações sociais exclu-
dentes, capazes de tornar o outro um estrangeiro na própria terra.
Nessa direção, os versos iniciais do terceiro poema aqui apresentado,
“Tela da cidade em movimento”, de Alana Francisca (SALLES e LUDE-
MIR, 2017, p. 18, 19), figuram como uma notícia de jornal: “Jacarés cheios
de lama invadem o asfalto / E causam pânico pela cidade maravilhosa”. Na
sequência, a voz narrativa os apresenta como se fossem produtos de um es-
tudo, se aproximando de um modelo de enunciação que podemos associar
ao de um famoso programa de reportagem exibido às sextas à noite: “Jacarés
adoram banhar-se ao sol / Seu habitat natural é o mangue, o lamaçal / mas
gostam de se aventurar por novas praias / O que não é bem visto e temido”
por outra espécie apresentada no poema, os “banhistas cidadãos-de-bem”
das parais da zona sul da dita cidade maravilhosa. Seguem então descrições
sobre os hábitos dos “Jacarés”, como sua coloração “marrom escura” e seus
lugares adequados, sempre devendo ser limitados ao “seu habitat natural”
e ao Piscinão de Ramos68, ambos distantes da “rota do ouro”, referência ao
corte social que marca as zonas norte e sul da cidade.
E segue: “Há quem pense que os jacarés / Não devem conviver com seres
/ De outras espécies”. A distância marcada pela narrativa em terceira pessoa
nos remete a outra composição, aqui acionada para diálogo com o poema de
Alana Francisca, por também apresentar a figura desse outro que causa aos
distantes “cidadãos-de-bem” tanto temor ao chegar em suas praias. Falamos,
pois, da canção “As Caravanas”, composta por Chico Buarque (2017). Di-
ferente do narrador presente na tela desenhada pela poeta Alana Francisca,
a distância marcada nessa canção não é pelo observado e estudado para a re-
portagem que figura em seu poema, mas pelo que é ouvido dizer pela figura
que o narrador chama de “gente ordeira e virtuosa”, por seu construído ima-
ginário demonizador sobre os “estranhos / Suburbanos”. Mas ainda assim,
temos a figura desse outro. Vejamos essas marcas:

Diz que malocam seus facões e adagas


Em sungas estufadas e calções disformes
É, diz que eles têm picas enormes
E seus sacos são granadas
Lá das quebradas da Maré
Com negros torsos nus deixam em polvorosa

Localizado na Maré, bairro da zona norte da cidade do Rio de Janeiro e cujo nome oficial é Parque Ambiental da Praia de Ramos Carlos de
68

Oliveira Dicró, em homenagem ao já falecido cantor Dicró, conhecido também por cantar a canção “Praia de Ramos”.
262
A gente ordeira e virtuosa que apela
Pra polícia despachar de volta
O populacho pra favela
Ou pra Benguela, ou pra Guiné

O narrador da canção, diante dos ouvidos clamores de “Tem que bater,


tem que matar” esses estranhos, considera estar louco, por não ser possível -
ou não dever ser possível - haver gentes tão insanas, nem esse desenho feito
sobre as caravanas. Nos versos de Alana Francisca, o medo em relação aos
jacarés, “Mesmo de boca fechada e parados” fundamenta-se em suas bocas,
em seus dentes e em seu poder de destruição da “zona de conforto / De
qualquer outro animal”. Movimentos que conduzem, nas estrofes finais do
poema, à fala, falha - e aqui podemos pensar nas mais diversas questões que
a fazem falhar, desde a impossibilidade de compor sequências linguísticas tal
como apresentadas no primeiro poema estudado, até as falhas de comunica-
ção que impedem que suas vozes sejam ouvidas, sem intermediações - mas
que “Afronta e ataca / Quando quer se defender.”. Assim, diferente do co-
tidiano “diz que” representado pela canção de Chico Buarque, a observação
dos noticiados jacarés de Alana Francisca aponta para suas vozes como ele-
mento de falar sobre si, através da poesia.
O outro poema que compõe nossa leitura, intitulado “Distopia” é tam-
bém de Alana Francisca e se encontra com uma questão levantada por Butler
(2018a) em Quadros de guerra, ao questionar que há um lado, simbolizado no
poema por uma porta, em que um sujeito é deixado viver e outro lado, no qual
um sujeito é deixado morrer. Esse é um “corpo-sombra / Tosco / Sem rosto”,
estilhaçado e violado, carregado por outro corpo tosco, mas em posição de
soberania, representada no poema por uma bomba “Que explode / Corpo e
liberdade / De quem do outro lado da porta se esconde”. E questiona: “A por-
ta / Esconde ou garante / Integridade / À gente de toda parte?”. Isso tudo se
dá justamente onde termina o arco-íris, mais uma vez marcando o fim de um
território e o início de outro. (SALLES e LUDEMIR, 2017, p. 20).
Em todos esses casos, a poesia abriga discursos que se contrapõem a qual-
quer tentativa de romantização das misérias vividas e noticiadas. Em “Meri-
tocracia da periferia”, os versos de Indianara Carvalho dos Santos (SALLES
e LUDEMIR, 2017, p. 217), desenham essas mesmas histórias, sempre ig-
noradas, mas conhecidas pelas rasas notícias de jornal. Em resposta ao usual
discurso de “vencer na vida”69, compõem o espaço do poema elementos que
69
Há uma interessante reflexão feita pela escritora Conceição Evaristo sobre o perigo de tal discurso, relatando e ressaltando que sua história é, em
relação às das demais de mulheres negras vindas das periferias, uma exceção. Entrevista disponível em: https://www.geledes.org.br/conceicao-eva-
risto-garante-que-sua-historia-e-uma-excecao-regra-em-um-pais-marcado-pelo-racismo-estrutural/. Acesso em 10 mar. 2019.
263
dificultam ou impedem o necessário deslocamento para tal objetivo. O pri-
meiro é o desemprego, acompanhado da maternidade e do ter que trabalhar,
mas também ter que cuidar da criança ainda pequena. Seguimos então por
um itinerário de ruas não asfaltadas, esburacadas pelas chuvas que fazem
chorar pais, filhos e “todo mundo que não tem um pingo de vontade de
estar vivo / Nessa pobreza mal disfarçada”. E anuncia:

Parece até piada, mas me contam em tom de poesia


Romantizam a batalha e é herói quem deu a volta por cima
Exemplo de vida, quem não conseguiria?
Um em milhares, é mais fácil ganhar na loteria
Que ver um pobre de periferia
Depois de tanto tapa na cara, tanta hipocrisia
Conseguir chegar aonde o filho do rico chegou
E que nem me falem das dificuldades que o pobre enfrentou

É como se o poema abrisse um livro para cada uma das histórias que são
romantizadas sobre a pobreza e construídas sobre quem “venceu na vida”,
cenário distante da realidade de quem trabalha como vendedor ambulante
que é parado pela polícia quando chega mais tarde em casa “Porque tem cara
de ladrão”, suspeito, assim, de estar com drogas na mochila ou, como acres-
centa a poeta, uma reação de quem enxerga um futuro diferente do que lhes
é imposto, tendo então nessa mochila “Um lápis, um caderno com versos,
um coleta à prova de balas e uma armadura / Pra se proteger de tanta luta”.
Os outros obstáculos desenhados nesse poema incluem o ter que se es-
conder das balas achadas e perdidas, ordenadas por “Ladrão, polícia, milí-
cia”, que atingiram o amigo “Dado como bandido enquanto fazia mais um
bico para ajudar a família”. E isso pode acontecer com qualquer pessoa que
more na periferia, que nunca fica na memória coletiva e compõe histórias
que se repetem a cada verso, abafadas como qualquer outro grito nascido no
lado mais frágil da cidade. (SALLES e LUDEMIR, 2017, p. 217).
O texto “A reivindicação da não violência”, que compõe o livro Quadros
de guerra, (BUTLER, 2018a, p. 233) nos ajudam a elucidar a discussão aqui
proposta ao ser possível percebermos as escritas literárias como uma possível
forma para reivindicar espaços tomados pelas violências contra o trânsito
pelo viver. Para Butler, esse gesto carece de sua negação como um “fato so-
cial normal”, aproximando-as então, de algo presente em nossa formação.
No último poema apresentado neste trabalho, essa formação é iniciada
264
pela infância, cujo fundo sonoro é o “PAPUM, o barulho do pipoco” de
alguém que daqui a pouco morre “e vira estatística para ser mostrada pro
povo”. O poema “Olho pelos seus olhos”, de Beatriz Souza (SALLES e LU-
DEMIR, 2017, p. 229), conjuga o espaço também apresentado pelos demais
poemas, mas a partir de apenas dois sentidos, o olhar e o ouvir.
E da infância seguem as violências que formam o sujeito que se apresenta
no poema: “Me empresta o lápis cor da pele? / O da cor da minha pele”; o
escutar a briga dos vizinhos; o ser visto nas lojas de roupas das madames que
sentem medo de um outro que “só estava admirando a blusinha e se per-
guntando o / porquê de o segurança já estar atrás de você”. Os batimentos
acelerados de uma moça que sobe no ônibus são ouvidos e associados aos
barulhos das “correntes do passado que trazem o racismo como tradição”,
ao final do poema sabemos o que era aquele PAPUM:

Era seu irmão que tinha tantos sonhos e agora tá morto


Te vi perguntando pra Deus quando iríamos usar os cinco
sentidos humanos
Porque eu vejo, eu ouço
Só precisamos de dois sentidos para sermos mais humanos.
(SOUZA. In: SALLES e LUDEMIR, 2017, p. 229).

Todos esses relatos presentes no espaço poético compõem uma forma de


contar, de questionar dores e de reivindicar espaços, como apresentado nos
períodos que iniciam este trabalho. Há um sujeito que mesmo em condições
de precariedade consegue relatar a sim mesmo, gesto que depende de ele-
mentos que possibilitem o exercício dos sentidos tal como defendidos nos
supracitados versos finais do poema de Beatriz Souza.
Para Butler (2017), fazer um relato sobre si pode ser algo que até se inicia
pelo sujeito, mas por não sermos isolados de nossa existência, a nossa tempo-
ralidade social e as condições nos quais nos tornamos um “eu”, são insepa-
ráveis e nos torna um “território social”, impossibilitando, assim, um relato
tão somente sobre si, mas sobre o mundo que o conforma, direcionando
para a “história de uma relação - ou conjunto de relações - para com um
conjunto de normas [...]”. (BUTLER, 2017, p. 18). O que é então acionado
para um relato sobre si não pertence somente a quem o fará, pois suas com-
posições têm “caráter social e estabelecem normas sociais, um domínio de
falta de liberdade e de substituibilidade em que nossas histórias ‘singulares’
são contadas”. (Ibidem, p. 33).
265
Esse sujeito, relatado pelo outro ou relatado por si, como nos poemas aqui
estudados, se encontra com o outro e se encontra com o leitor da obra pela
formação, mais ou menos próxima, por vivência ou por alcance de um dis-
curso, com a violência. A consciência disso pode simbolizar questionamen-
tos e lutas por algo que a autora em questão defende como a já anunciada
“possibilidade da não violência”. (BUTLER, 2018a, p. 235, 241).
Há, em resposta a tais cenários, um movimento que é apresentado por
Butler como o desafio da reivindicação da não violência, algo que surge
como um discurso em forma de apelo diante da condição violável dos sujei-
tos. (BUTLER, 2018a, p. 250). A esses entendimentos, unimos o estudo de
Spivak (2010), no qual a autora trata da inauguração de um sujeito a partir
da crítica a um sujeito soberano70 e aponta para a necessidade de conheci-
mento desse outro na sociedade. Ambos os movimentos anunciados pelas
autoras estão vinculados aos meios que cada personagem dispõe para perce-
ber suas condições, para reivindicá-las e para tornar seus questionamentos
discursos, para só então conseguir contemplar o que é defendido pela auto-
ra, a necessária impossibilidade de aceitar a violência como um “fato social
normal”. (BUTLER, 2018a, p. 235).
No campo dos direitos que nos constituem como sujeitos sociais, Butler
(2018b) ressalta a estrutural impossibilidade de todas as pessoas serem con-
templadas por direitos que, por sua vez são apenas formalmente garantidos
a todos, e inquire: (i) “de quem são as vidas que importam?” e (ii) “de quem
são as vidas que não importam como vidas, não são reconhecidas como viví-
veis ou contam apenas ambiguamente como vivas?”. Essa estrutura, ineren-
te à biopolítica especificada pela autora como “os poderes que organizam a
vida”, inclui autoridades tanto governamentais, inclusive em ações de aban-
dono como nos territórios representados nos poemas, quanto a autoridades
não governamentais. Em ambos os casos, tratamos da exposição de determi-
nadas vidas à condição de precariedade. (BUTLER, 2018b, p. 216).
Para a autora, reconhecer a violência não garante políticas de não violências.
Junto a isso, há que se reconhecer a extrema dificuldade de, diante de situações
de dores, sermos receptivos ao que o outro nos reivindica como condições
para uma “vida vivível”. (BUTLER, 2018a, p. 250). As questões levantadas
pelos poemas concentram as condições para que a voz das minorias, aqui re-
presentadas pelas periferias, seja reverberada; e o trânsito sempre incômodo de
corpos numa sociedade extremamente dividida entre periferia e asfalto.
70
Para tal crítica, a autora fundamentou seus estudos a partir das ideias presentes no texto intitulado “Os intelectuais e o poder: conversa entre
Michael Foucault e Gilles Deleuze”, que compõe o livro Language, Counter-Memory, Practice: Selected Essays and Interviews. p. 205 - 217.
266
O lugar de fronteira aqui evidenciado tem sido percebido e percorrido
por quem o escreve. O trânsito tal como desenhado no texto de introdução,
forja uma figura que está lá e lá, talvez estrangeira desses dois lugares.

Referência Bibliográfica
BUTLER, Judith. relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Tradução de Rogério Bettoni. 1.
ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017.

________. A reivindicação da não violência. In: Quadros de guerra: quando a vida é passível de
luto? Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha. 4. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2018a. p. 233 - 259

________. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de as-
sembleia. Tradução de Fernanda Siqueira Miguens. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2018b.

COUTO, Mia. Línguas que não sabemos que sabíamos. In: E se Obama fosse africano?: e outras
intervenções. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 11 - 24.

HOLLANDA, Chico Buarque. As Caravanas. In: Caravanas. [CD] Rio de Janeiro: Biscoito
Fino, 2017. CD.

SALLES, Ecio; LUDEMIR, Julio. (Org.). Seis temas à procura de um poema. 1. ed. Rio de Ja-
neiro: Mórula, 2017.

SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart
Almeida, Marcos Pereira Feitosa e André pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

REIS, Luís; BARBOSA, Haroldo. Notícia de jornal. In: Chico Buarque e Maria Bethânia ao
vivo. [CD]. São Paulo: Philips/Polygram, 1975.

REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. Porto Alegre: Zouk, 2018.


267
O USO DA EXPRESSÃO FAKE NEWS EM MÍDIAS DIGITAIS BRASI-
LEIRAS: UM ESTUDO BASEADO EM CORPUS

Sonja H. Voitovitch
UERJ - SME-RJ

Resumo: A pesquisa, de cunho lexical, adota os preceitos metodológicos


da Linguística de Corpus para analisar empiricamente o uso da expressão
fake news por mídias digitais brasileiras no período entre 2016 e 2018. Ade-
mais, utiliza uma abordagem bottom up que se desenvolve a partir das ob-
servações dos dados pela linguista visto que não dispõe de sistema analítico
como ponto de partida. No entanto, baseia-se de forma ampla no conceito
de empréstimo linguístico.

Palavras-chave: fake news; linguística de corpus; empréstimo

Introdução
Este artigo tem como objetivo apresentar uma pesquisa sobre o fenômeno
chamado de empréstimo lexical. O estudo enfoca a inserção de uma expressão
inglesa na língua portuguesa em uso e suas possíveis transformações ao longo
de um tempo. O foco da pesquisa é a expressão fake news em textos veiculados
em mídias digitais brasileiras no período entre 2016 e 2018. Este estudo está
no âmbito da Linguística Aplicada aos Estudos Lexicais, focando mais espe-
cificamente nos empréstimos linguísticos. Utiliza-se a Linguística de Corpus
como metodologia para a extração e análise da expressão e seus ‘colocados’ vis-
to que a Linguística de Corpus pode investigar a linguagem em uso de forma
sistemática e abrangente

Justificativa
Ao longo dos dois últimos anos, nota-se um aumento considerável no uso
da expressão inglesa fake news em diversos meios de comunicação. Há pales-
tras sobre como combater a propagação das famosas fake news em escolas e
universidades71, workshops72 e cursos online73 ensinando como identificá-las.
71
http://www.tre-sp.jus.br/imprensa/noticias-tre-sp/2018/Junho/ministro-do-tse-faz-palestra-sobre-fake-news-para-alunos-do-curso-de-espe-
cializacao-em-direito-eleitoral
72
https://www.espm.br/educacao_continuada/fake-news-como-desmontar-fraudes-nas-redes/
73
https://vazafalsiane.com/
268
Há, ainda, estudos na área de Psicologia (Tsipursky & Votta, 2018) sobre o
tema, focando nas necessidades humanas de espalhar notícias inverídicas. Por
outro lado, área de Tecnologia (Fletcher et al., 2018) estuda os algoritmos de
propagação das mesmas notícias.
Na área da Linguística Aplicada na interface do inglês e da língua por-
tuguesa, não há, até a presente data, evidência de estudos formais sobre o
assunto. Considera-se, portanto, que a adoção da expressão inglesa em tela
pela língua portuguesa em um passado recente, e as diversas formas que a
expressão assume no português constituem um tema atual e pertinente para
um estudo linguístico de cunho lexical. Dessa forma, as intercorrências do
uso do termo fake news e sua ‘viralização’ despertam interesse investigativo,
no âmbito linguístico.
Notícias falsas e boatos sempre existiram. Entretanto, o termo fake news
ganhou destaque ao ser amplamente utilizado por um dos candidatos à elei-
ção presidencial americana em 2016 para designar as críticas que a mídia
veiculava sobre sua pessoa. No mesmo ano, o uso do termo também foi
intensificado ao se circularem notícias falsas, que afetaram o resultado do
referendo sobre a saída do Reino Unido da União Europeia. Em 2017, a po-
pularização do termo foi tamanha que atingiu status de “a palavra do ano”
pela editora britânica Collins74, ganhando inclusão em seus dicionários.
Durante as eleições de 2018 no Brasil, o uso da expressão fake news atingiu
um pico considerável do mesmo modo que a produção e circulação de notí-
cias falsas tornaram-se rotineiras em mídias digitais. Um conhecido conglome-
rado de telecomunicações lançou uma seção chamada “Fato ou Fake”75, que se
propôs a checar conteúdos suspeitos, através de seus veículos de informações.
O que seriam fake news? De acordo com o dicionário Collins (op. cit),
fake news significa “informações falsas e/ou notícias sensacionalistas apre-
sentadas e publicadas como fato que se espalham pela internet”. Apesar de
as estratégias de desinformação e as publicações de notícias falsas não serem
algo recente, a digitalização das notícias e sua ampla divulgação através da
internet mudou a tradicional definição do que seriam notícias.
Aparentemente, a resposta à questão ‘o que seriam fake news?’ ainda não
foi respondida visto que as fake news vêm sendo estudadas em diversas áreas
como Direito (Watson, 2018) e Comunicação (Tandoc Jr. et al, 2018). Já
no campo linguístico, um estudo como este, sobre o uso do termo em tela,
faz-se pertinente uma vez que a expressão inglesa e o seu uso em português
74
HarperCollins Publishers LLC é uma das maiores editoras do mundo, estando no chamado “Big Five”, grupo das cinco maiores editoras de
língua inglesa. Sediada em Nova Iorque, a companhia é subsidiária da News Corp. https://www.bbc.com/portuguese/internacional-41843695
75
https://oglobo.globo.com/fato-ou-fake/o-globo-lanca-fato-ou-fake-para-checagem-de-conteudo-suspeito-22930724
269
não são devidamente explorados em razão de a área só ter averiguado, até o
momento, estratégias em como detectar as notícias falsas (Jankowski, 2018).

Problematização
O objetivo geral desta pesquisa é investigar variações léxico-gramaticais
da expressão em língua inglesa fake news em textos midiáticos brasileiros,
durante um período de 2 anos, através dos preceitos e metodologia da Lin-
guística de Corpus, tendo como guia o conceito de “empréstimo linguísti-
co”. Para tal, e considerando um corpus de língua portuguesa, têm-se como
objetivo responder às seguintes perguntas:

4. Qual a frequência de uso da expressão fake news entre os anos de 2016 até 2018?
5. Quais palavras estão associadas a fake news no seu entorno?
6. É possível identificar alguma variação no sentido da expressão através de um estu-
do dos colocados da expressão?

Para responder às perguntas de pesquisa, a monografia se estrutura em cinco se-


ções a saber: esta introdução contendo a justificativa ao tópico e a problematização
do estudo, arcabouço teórico em que é explicitado o conceito de empréstimo, me-
todologia contendo descrição do corpus de análise e métodos adotados, descrição e
análise dos dados, conclusão e encaminhamentos para pesquisas futuras.

Arcabouço teórico
Esta seção começa com um aprofundamento teórico sobre os conceitos
de estrangeirismo e de empréstimo lexical, necessários uma vez que a pes-
quisa analisa uma expressão em língua inglesa utilizada no português. Ainda
nesta parte, uma ampliação da definição da expressão fake news é estudada
para melhor responder aos questionamentos iniciais.

Empréstimos Linguísticos e Estrangeirismos


A língua pode ser considerada um organismo vivo pois adapta-se de acor-
do com a necessidade da sociedade, assumindo características muitas vezes
imperceptíveis aos próprios falantes dessa língua. A expressão a ser estudada
na presente pesquisa ilustra a capacidade da língua em se adaptar ao contex-
to de situação atual.
O termo em língua inglesa fake news, que é alvo deste estudo, vem sendo
utilizado em países que não possuem inglês como língua materna, sendo o
270
Brasil um deles. Esse emprego de palavras e/ou expressões advindas de outro
idioma em uma língua é denominado estrangeirismo. De acordo com Car-
valho (2009, p. 35), este fenômeno pode ser definido como a utilização de
itens léxico-gramaticais, expressões ou frases por um idioma que não seja o
originário do termo. Além desta definição, Valadares (2014, p.111) explica
que estrangeirismo pode ser entendido como

palavras, efetivamente, oriundas de outro sistema linguístico, tomadas por emprés-


timo para suprir alguma necessidade conceitual, de ordem tecnológica, ou para a
expressão de elementos socioculturais, referentes às trocas de ordem linguístico-cul-
tural entre comunidades falantes de idiomas diversos.

Já Matras (2009, pp. 134) acrescenta que no inventário dos itens que uma
língua toma emprestado da outra, os substantivos ocupam posição de desta-
que, porque são palavras de conteúdo, representando o inventário mais di-
ferenciado de rótulos para conceitos, práticas, artefatos, produtos e agentes.
Atualmente, com o avanço do uso das mídias digitais, os estrangeirismos,
especialmente os substantivos, fazem parte da comunicação rotineira dos
brasileiros. As pessoas fazem meetings para darem feedback a respeito do bu-
dget; freelancers aceitam jobs por preços mais acessíveis; mamães fazem en-
saios newborn; e milhares de brasileiros utilizam a #tbt76 sem ao menos terem
noção do significado da expressão na língua de origem.
Quando uma sociedade faz uso de estrangeirismos os adaptando ao idio-
ma, isto é denominado empréstimo linguístico. O empréstimo de elemen-
tos estrangeiros é um fenômeno que atinge praticamente todas as línguas.
No português, Alves (1988, p. 2) aponta exemplos de palavras que diversas
pessoas desacreditariam descender de origem estrangeira, como é o caso de
linhagem (francês), guerrilha (espanhol), entre outras. No entanto, ao de-
talhar o fenômeno do empréstimo linguístico, é significativo salientar que,
de acordo com Bloomfield (1933 apud Carvalho, 2009, p.47) “deve ficar
bem clara a distinção entre empréstimo e estrangeirismo (...) o empréstimo
é o estrangeirismo adaptado de várias formas”. Por exemplo, temos a palavra
fetish que veio da palavra feitiço (português).
O estrangeirismo caracteriza-se, então, como termo ou expressão sentidos
como estranhos à língua portuguesa. E, somente poderá se tornar emprésti-
mo quando não for mais considerado incomum ao sistema linguístico ainda
que preserve a grafia de sua língua originária O estudo empírico da expressão
76
A expressão throwback thursday e o uso da #tbt é uma tendência de publicação entre os usuários de redes sociais como Instagram e Facebook. A
proposta da hashtag é publicar fotos antigas às quintas-feiras, sendo imagens que remetem a sentimentos nostálgicos e de saudades.
271
inglesa fake news com base nos conceitos apontados acima, possibilita ana-
lisar um estágio de aquisição de um empréstimo, verificando seu emprego
em textos midiáticos em português e as teorias apontadas nesta seção. No
entanto, uma detalhada definição do termo estrangeiro faz-se necessária, tal
definição será apontada adiante.

Fake news
Como visto na seção introdutória do presente estudo, a expressão fake news
foi considerada em 2017 pela editora Collins (op. cit) como a palavra do ano
por conta do intenso uso no ano de 2016. Entretanto, para caracterizar o que
são fake news, faz-se necessário a explanação do que são news, ou melhor, as
notícias. Em termos gerais, subentende-se que as notícias são consideradas
um formato de divulgação de um acontecimento por meios jornalísticos, que
têm o intuito de fornecer informações precisas e confiáveis à população. As
notícias são a matéria-prima do jornalismo, normalmente reconhecidas como
eventos relevantes que merecem publicação em uma mídia.
De acordo com Alsina (2009, p.185), “a notícia é uma representação so-
cial da realidade cotidiana produzida institucionalmente e que se manifesta
na construção de um mundo possível.” Podemos observar outras definições
de notícia em Erbolato (1979, p. 49), o qual constata que

Notícia é o relato de um fato recentemente ocorrido, que interessa aos leitores. – No-
tícia é o relato de um acontecimento publicado por um jornal, com a esperança de,
divulgando-o, obter proveito. – Notícia é tudo quanto os leitores querem conhecer
sobre um fato. – Qualquer coisa que muitas pessoas queiram ler é notícia, sempre que
seja apresentada dentro dos cânones do bom gosto e das leis da imprensa.

Quando o autor explana acima que [a notícia deve ser] “apresentada den-
tro (...) das leis da imprensa” compreende-se que tais leis percorrem os cam-
pos da verdade e ética. Porém, o que se observa na mídia e, principalmente,
nas redes sociais é um aumento significativo de notícias falsas.
A notícia pode ser falsa por conta de um erro ou falha em sua construção,
sendo assim, produzida em caráter acidental. Contudo, fake news não são
resultado de erros ou falhas, são cirurgicamente planejadas com o intuito
de confundir, enganar ou manipular o usuário. Para Gelfert (2018, p. 108),
fake news são a apresentação deliberada de alegações (tipicamente) falsas ou
enganosas em formato de notícias (MINHA TRADUÇÃO)77, nas quais
77
Fake news is the deliberate presentation of (typically) false or misleading claims as news, where the claims are misleading by design.
272
tais alegações são projetadas com o intuito de enganar, corromper, induzir
ao erro, ludibriar, iludir ou mistificar o usuário.
Apesar de as fake news não serem algo recente, visto que a propagação
de desinformação e boatos sempre existiu no meio jornalístico. Fake news,
portanto, não quer dizer informação falsa, mas desinformação ou boato vei-
culados em plataformas digitais, o que faz com que se espalhem com rapi-
dez. Além disso, de acordo com Allcott & Gentskow (2017, p. 212) fake
news “... são como sinais distorcidos não correlacionados com a verdade (...)
tornando mais difícil para os leitores inferirem a verdadeira situação de seu
mundo.” (MINHA TRADUÇÃO)78.
O presente estudo tem natureza empírica, lida com dados reais e faz
uma análise da expressão utilizando um corpus de textos verdadeiros
para extração e análise do termo e melhor compreensão das variações
de suas co-ocorrências. Trabalhar com um corpus compilado para um
estudo e usar um programa concordanciador são tópicos discutidos na
próxima seção.

Metodologia e corpus da análise


Esta seção tem o intuito de esclarecer os preceitos metodológicos do pre-
sente estudo. Portanto, faz- se necessário uma apresentação, ainda que breve,
acerca da Linguística de Corpus, bem como maiores detalhes sobre o corpus
analisado e as ferramentas utilizadas para extração, coleta e análise dos dados.
Tais informações estão elucidadas nas seções subsequentes.

Metodologia
A presente pesquisa possui caráter empírico e probabilístico uma vez que
é desenvolvida a partir da Linguística de Corpus, que é fundamentada na
análise de dados linguísticos autênticos, processados por um computador.
A metodologia possibilita que se trabalhe com uma larga escala de informa-
ções ou textos digitalizados e, através de ferramentas apropriadas, é possível
extrair-se padrões, ocorrências e frequências do termo pesquisado. Após a
coleta de dados no corpus, estes são interpretados pelo linguista. No caso
desta monografia, analisamos as ocorrências da expressão inglesa fake news,
empréstimo lexical à língua portuguesa no âmbito digital, e possíveis coloca-
dos com base nos resultados apresentados pela ferramenta.

78
We conceptualize fake news as distorted signals uncorrelated with the truth. (…)—for example, by making it more difficult for voters to infer
the true state of the world
273
Linguística de Corpus
A Linguística de Corpus faz uso de uma abordagem empirista, distinta da
abordagem racionalista, do ponto de vista linguístico, e tem como foco cen-
tral a noção de linguagem enquanto sistema probabilístico. Berber Sardinha
(2004, p.30) explica que essa característica da linguagem permite ao analista
examinar amostras da língua em uso, não sendo preciso examinar todas as
instâncias de um mesmo fenômeno para se ter ideia de sua distribuição e
escopo dentro da língua.
Berber Sardinha (op.cit.) explica ainda que um dos preceitos da Linguísti-
ca de Corpus é ocupar-se da coleta e da exploração de corpora, ou conjuntos
de dados linguísticos textuais coletados criteriosamente, com o propósito de
servirem para a pesquisa de uma língua ou variedade linguística. O corpus
deve ser constituído de dados autênticos, legíveis por computador e repre-
sentativos de uma língua ou variedade da língua a qual se deseja estudar.
A Linguística de Corpus está estreitamente ligada ao uso de programas
computacionais, visto que os corpora usados na análise são dados digitais
ou digitalizados. Logo, o computador desempenha um papel crucial para
os estudos na área. As ferramentas computacionais são geralmente utiliza-
das para compilação, organização e extração de informações no corpus e para
observação e interpretação de dados, fornecendo novas perspectivas para
a análise linguística. Tais ferramentas permitem apresentar resultados lin-
guísticos de pesquisa na forma de linhas de concordância, que consistem no
item léxico-gramatical buscado aparecendo no centro de cada linha, inserida
em seu contexto, que pode ser exposto em diversos tamanhos.
Os dados que aparecem nas linhas de concordância possibilitam que o
analista observe se há padrões de uso, ou seja, se há preferência por determi-
nadas construções. O analista também pode ver a posição que a expressão
ocupa na oração em termos gramaticais. Em outras palavras, ao descobrir
padrões lexicais, pode-se também olhar padrões gramaticais. A aplicação dos
preceitos e métodos da Linguística de Corpus no presente trabalho é essen-
cial para a investigação da expressão em inglês fake news nos textos midiáti-
cos selecionados em português.

Corpus da Análise
Visando responder às perguntas da pesquisa elencadas na introdução so-
bre o uso da expressão em língua inglesa fake news utiliza-se um corpus com-
274
posto por textos veiculados em mídias digitais brasileiras entre os anos de
2016 e 2018.
O ano de 2016 foi selecionado como marco inicial da análise visto que
diversos meios de comunicação brasileiros fizeram uso da expressão durante
a eleição presidencial nos Estados Unidos e, também, durante o referendo
sobre o Brexit no Reino Unido.
A inclusão do ano de 2018 é justificada porque no Brasil, pois tal ano
foi caracterizado pelas eleições presidenciais e pela propagação do uso da
expressão inglesa fake news nas mídias brasileiras. Assim sendo, a pesquisa
considera este ano relevante para a representação da linha final para a coleta
dos dados.
A origem, filtragem e extração do corpus foram feitas a partir de O corpus
do português79 a ser detalhado mais adiante. O uso dos filtros de pesqui-
sa desse corpus possibilitou que a pesquisa englobasse o período temporal
selecionado, se restringisse aos textos em português do Brasil e garantisse
que as ocorrências da expressão fossem visualizadas, bem como sua origem.
Quanto à ferramenta de tratamento dos dados após extraídos de O corpus
do português, utilizou-se a ferramenta Wordsmith 6.080.

O corpus do português
Com o intuito de realizar a pesquisa do termo, um banco de dados acopla-
do a uma ferramenta de busca fez-se necessário para a busca e filtragem dos
dados, ou corpus. Neste trabalho, uma das ferramentas utilizadas é o site O
corpus do português.
Os corpora que fazem parte de O corpus do português possuem vários
sub-corpora contendo pelo menos 1.1 bilhão de palavras, extraídas de textos
em português europeu e brasileiro. No entanto, a presente pesquisa utiliza
as ocorrências da expressão fake news entre os anos de 2016 e 2018 em mí-
dias brasileiras uma vez que o dispositivo possui filtros que possibilitam o
corte temporal e geográfico de uso da expressão. Pode-se também procurar
por associações de palavras dentro de uma distância de até dez palavras. O
recurso também permite que se compare a frequência e a distribuição de
palavras, frases e construções gramaticais entre textos.
A interface do corpus do português é semelhante às interfaces fornecidas
pelos mecanismos de pesquisa padrão. Ao inserir uma palavra ou frase, po-
79
Corpus de textos em português, compilado e mantido pelos pesquisadores Mark Davies e Michael J. Ferreira, com suporte financeiro prove-
niente do U.S.National Endowment for the Humanities, escolhida por conter um grande número de publicações. https://www.corpusdopor-
tugues.org/
80
O programa foi desenvolvido pelo linguista britânico Mike Scott na Universidade de Liverpool e lançado como versão 1.0 em 1996. Sua versão
6.0 pode ser baixada gratuitamente a partir de https://lexically.net/wordsmith/version6/index.html
275
de-se escolher opções nos menus fornecidos e, em seguida, buscar as ocor-
rências digitadas no campo de busca.
O subcorpus usado nesta pesquisa foi criado a partir de um filtro deno-
minado NOW81 (2012 – até o mês passado). Tal filtro restringe a pesquisa
de palavras em ocorrências linguísticas iniciadas a partir no ano de 2012 até
o presente momento, possibilitando assim, uma análise atual e genuína da
língua pesquisada.

Wordsmith 6.0
A fim de que a análise fosse feita de maneira efetiva, um conjunto de
programas foi usado para auxiliar no tratamento dos dados. Tal software
é denominado Wordsmith 6.0 e consiste em um pacote de ferramentas de-
senvolvido principalmente para linguistas, em particular para o trabalho no
campo da linguística de corpus. O programa é composto por uma coleção de
módulos que são utilizados para pesquisar padrões em um idioma. Os prin-
cipais programas do software incluem três módulos: WordList, Keyword e
Concord. O último módulo é o aplicado nesta monografia.
De acordo com Berber Sardinha (2004, p. 104) o Concord é usado para
criar concordâncias ou listagens das ocorrências de um item específico acom-
panhado do texto ao seu redor. A ferramenta lista todas as ocorrências de um
item em um texto já definido anteriormente. Este último programa permite a
extração de ‘colocados’, que são palavras parceiras constantes do item buscado.
O WordSmith 6.0 é um programa para a pesquisa baseada na metodologia de
Linguística de Corpus e contribuiu assim, para esta análise no referido campo.
A pesquisa em Linguística de Corpus, segundo Tognini-Bonelli (2001,
p.65) tem dois pontos de entrada nos dados. Um dos pontos é de cima para
baixo (top-down) – isto se dá quando o analista sobrepõe aos dados algum
sistema de categorias analíticas. O outro ponto de entrada, que é bottom up,
não tem sistema analítico como ponto de partida e o desenvolve a partir das
observações do analista. Nesta monografia, utiliza-se o último sistema pois
há o conceito de empréstimo linguístico de um termo determinado, mas
não se sabe a priori os padrões formados por ele, portanto a abordagem teó-
rica adotada é bottom up.

Descrição e análise dos dados


Com o intuito de responder às perguntas iniciais da pesquisa, empregan-
81
News on the Web: O Corpus do Português NOW (Notícias na Web) contém aprox.1.2 bilhões de palavras de jornais e revistas online desde
2012 até à atualidade
276
do a abordagem bottom up esclarecida na última seção, uma primeira busca
do termo fake news foi executada no site O corpus do português utilizando
o filtro NOW.. Com isso, em dado momento, pode-se detectar o número de
ocorrências da expressão citada em mídias digitais por semestre. Do mesmo
modo, a visualização do número de ocorrências do termo pesquisado entre
2012 e 2019 também se faz presente, atingindo um total de 7.951 ocorrên-
cias da expressão.
Entretanto, esta monografia se limita a analisar a linha temporal entre 2016
e 2018, como proposto na seção introdutória, totalizando assim 7.581 (100%)
ocorrências do termo em destaque nos textos em português do Brasil e Euro-
peu. Através deste número, percebe-se que o termo fake news foi timidamen-
te utilizado no ano de 2016, só 7 ocorrências (ou 0,09%), porém, começou a
ganhar um impulso no ano de 2017 atingindo a marca de 1.177 ocorrências
(ou 15,52%). No entanto, foi no ano de 2018 que a explosão de uso do termo
atingiu seu maior índice, marcando 6.397 ocorrências (ou 84,38%).
Utilizando este mesmo número de ocorrências (7.581), uma segunda pes-
quisa no mesmo banco de dados se fez necessária, uma busca restringindo
as ocorrências do termo fake news por países falantes do português como
ilustra a próxima figura. Sendo assim, atingiu-se um número de 6.213 ocor-
rências da expressão fake news em mídias digitais brasileiras no período que
compreende entre 2016 e 2018.
Do total de ocorrências da expressão nos anos de 2016 e 2018, fez-se um
apanhado de 5% (309 ocorrências) do total de dados coletados (6.213 ocor-
rências). As ocorrências contidas nesses 5% são aleatórias e respeitam os
quesitos já mencionados como o corte temporal e geográfico do banco de
dados. Esse recorte de 309 ocorrências foi selecionado para ser manipulado
no Wordsmith 6.0 e analisado em seu contexto original.

Análise dos dados


A análise dos dados foi executada em dois passos. O primeiro foi a extra-
ção dos clusters ou padrões mais frequentes. O segundo passo foi feito atra-
vés da extração de linhas de concordância, como explicado abaixo.
A primeira entrada nos dados foi realizada através da extração dos cha-
mado chunks ou clusters de quatro itens. Clusters são conjuntos de itens re-
petidos que formam padrões podendo indicar sobre o que é o corpus ou
como o corpus é escrito. Os chunks de 4 palavras predominantes nas linhas de
277
concordância, foram destacados em padrões. Primeiro, nota-se a tendência
de reconhecer que fake news são assim ‘chamadas’. Segundo, ainda se faz
necessário fornecer os sinônimos de fake news (ora precedendo a palavra, ora
vindo depois dela), explicitando seu sentido.
Ainda sobre os padrões formados por fake news, observa-se que os chunks
em destaque sugerem que a expressão estudada tem conotação negativa no
português ao associar-se aos colocados combate e disseminação. Mais que
isso, os colocados usuais de combater em português são combater o mal, a
dengue, o câncer, sugerindo que fake news é usada como sinônimo de uma
doença. O outro colocado da expressão, ou seja, disseminar, é usado como
disseminar o ódio, a discórdia, dentre outros que possuem juízo de valor
negativo. Disseminar fake news, desta forma, pode ser percebido como a dis-
seminação de ódio e discórdia.
O segundo ponto de entrada foi examinar as 309 linhas de concordância
compiladas uma a uma. Essas linhas foram ordenadas no software a partir da
primeira palavra à esquerda. Após uma análise dessas ocorrências já ordenadas
(ver Anexo com todas as ocorrências) alguns fatos podem ser destacados abaixo.

Fake news é expressão singular ou plural em português?


Inicialmente, observa-se que o termo fake news em 21 casos ocorre precedido de
artigo definido ou indefinido no singular, ora a fake news ora uma fake news. No
entanto, o uso do artigo definido (a fake news) é predominante em 16 ocorrências.

14 opiniões, de essas informações, a partir de o debate de a fake news é muito peri-


goso. Se eu trazer uma crítica a um
15 crime e poderia pegar de dois a oito anos de prisão. # A fake news contra Polya-
na trouxe uma série de problemas. A que circulou em a internet ter se mostrado ser
mais uma “ fake news “ (notícia falsa), a imprensa paraense confirma que CRÉ-
DITO: DIVULGAÇÃO # Tem circulado em a internet uma fake news de que o
Poder Judiciário teria autoriza

Além disso, em 83 exemplos a expressão é precedida de artigo no plural,


as fake news. Em número menor, mas ainda assim, pertinente para a pesqui-
sa, o termo é tratado como substantivo incontável, em 3 ocorrências (e.g. a
construção de muita fake news)

18 idade direcionada se tornaria um inimigo pior de o que as fake news. Imagino


que uma semana marcada por o escândalo
19 encontram respaldo em a tal liberdade de expressão. # As fake news vão em o
278
mesmo sentido. # Na concepção. TSE demonstra preocupação com a proliferação
de as fake news e a fiscalização de a campanha digital vira um
21 e que consiste em um esforço coletivo para combater as “ fake news “ através de
checagens de as notícias entre si antes

Fake news ainda precisa de alguma explicação/tradução?


Com a análise dos dados, nota-se também que há necessidade de colocar fake
news com um qualificativo as chamadas, orientando o leitor a ler a palavra e en-
tender o conceito como novo. Foram listados 12 exemplos desse tipo de ocorrência
– vale ressaltar que nesta situação fake news são qualificadas sempre como plural.

101 rão os órgãos de controle que irão combater as chamadas “fake news”, como
ficaram conhecidos os conteúdos falsos,
102 primeira decisão em o tribunal para combater as chamadas “fake news” envol-
vendo pré-candidatos em a disputa de
103 escolas e universidades), além de o combate a as chamadas fake newse a os gru-
pos anti-vacinas. # “ Precisamos pensar

Ao executar a verificação das linhas de concordância, é possível perceber


que as mídias digitais brasileiras utilizam diversas maneiras para traduzir a
expressão fake news - possivelmente pela novidade do léxico para alguns lei-
tores. Através dessa checagem, pode-se destacar 9 exemplos que colocam a
expressão fake news entre parênteses, e sua tradução (notícias falsas) fora
dos parênteses. Há, ainda, ocorrências onde os parênteses são substituídos
por ou, como no exemplo: As notícias falsas ou “Fake News”.

232 ados os mais suscetíveis de acreditar em notícias falsas (fake news). Os algorit-
mos permitiram determinar em que
233 r medidas de combate a a disseminação de notícias falsas (fake news) em as
redes sociais. A entrevista foi adiada por
235 # Ele deu grande atenção a o tema de as notícias falsas (fake news), participan-
do de diversos eventos para debater- lo
267 berdade de expressão # O combate a as notícias falsas ou ‘fake news’ foi escolhi-
do como uma de as prioridades de o

Fake news é substantivo masculino ou feminino?


Mais um aspecto relevante para o estudo é a questão da representação do
gênero da expressão investigada no português, uma vez que fake news, em
inglês, não possui gênero definido. Constata-se que o gênero predominante
utilizado para representar a expressão fake news nos dados analisados é o
feminino, no entanto, há 3 ocorrências do termo na forma masculina
279
Fake news usado como adjetivo predicativo
Percebe-se o uso do termo como adjetivo em algumas ocorrências, como
no exemplo a seguir: Vídeo para mostrar câncer de Jair Bolsonaro é Fake
News, onde o termo destacado tem função de predicativo do sujeito atri-
buindo característica ao sujeito da oração.

216 ritérios gerais que indultem vários presos. # Portanto, é fake news o papo de
que Haddad vai indultar Lula. Não pode e
217 46 Informar Vídeo para mostrar câncer de Jair Bolsonaro é Fake News # Crédi-
to: ReproduçãoVídeo que circula como
218 tilha notícias sobre o tema. “ Mas é fácil saber quando é fake news. “ # A outra
passageira, a estudante Bianca Sousa, d

A partir da análise de uma amostra de 5 por cento de ocorrências da ex-


pressão fake news em português, verifica-se, portanto, que o termo analisa-
do em relação ao empréstimo linguístico ainda está passando por mudanças
com relação a seu entorno. O episódio será discutido abaixo nas conclusões.

Conclusão e encaminhamentos futuros


Nesta pesquisa foi investigado o uso do termo fake news no português,
especificamente por mídias digitais brasileiras. Percebe-se que entre 2016 e
2018, o último ano obteve os maiores índices de incidências da expressão
destacada, representando mais de 84% das ocorrências no período. A pro-
babilidade do intenso uso de fake news em 2018 ter relação com as eleições
presidenciais que ocorreram no país neste ano é concebível. Um futuro es-
tudo da frequência da expressão fake news no português após 2018 torna-se
instigante posto que serviria para explorar a fixação do termo, como um em-
préstimo, em nosso idioma.
Pode-se, ainda, concluir que fake news apesar de não possuir gênero em
sua língua original é representado tanto no gênero masculino quanto no gê-
nero feminino no português. No entanto, o uso da expressão no feminino é
predominante nos dados analisados. Isto pode acontecer devido a sua tradu-
ção no português notícias falsas ser do gênero feminino e, em muitos casos
a tradução estar acompanhando o termo fake news, como foi visto nas linhas
de concordância analisadas. Contudo, vale sugerir um estudo posterior de
colocados das duas expressões - fake news x notícias falsas, para melhor averi-
guação da hipótese de equivalência das expressões uma vez que palavras de-
pendem de alguns colocados em comum para serem consideradas similares.
280
Cabe ressaltar também que a maioria dos usos de fake news nos dados foi
feita no plural. O uso do termo no singular não foi descartado, as ocorrências
no singular só não foram tão expressivas quanto as do plural, caracterizando
assim fake news majoritariamente como um termo plural. Uma probabilida-
de admissível é que os usuários do português associam o -s final de news ao
plural em português, que em muitos casos é formado pela adição de um -s
ao final de palavras, tornando assim a predominância das ocorrências neste
número. Vale ressaltar que, apesar disso, a expressão em inglês é singular:
fake news is now seen as one of the greatest threats to democracy82.
Finalmente, pode-se notar que a língua portuguesa vem admitindo a ex-
pressão fake news neste momento. Esta admissão poderia ser caracterizada
como um primeiro estágio de implementação do empréstimo. No entanto,
a literatura expõe que empréstimo linguístico ocorre quando há inserção de
novas tecnologias ou quando a língua carece de termos para explicitar um
conceito. Visto que o termo analisado não é advindo de novas tecnologias,
possivelmente a tradução de fake news em português (notícias falsas) pode
não corresponder ao conceito intrínseco da expressão inglesa.
Como encaminhamentos da presente pesquisa de especialização, vemos
que seria interessante modificar o corpus, tanto em termos de tamanho (che-
cando mais exemplos e vendo quais veículos jornalísticos usam que tipo de
padrões) como em termos de origem, analisando dados oriundos não das
seções escritas por jornalistas, mas sim das seções de comentários escritos
pelos leitores.

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82
Retirado de: https://www.telegraph.co.uk/technology/0/fake-news-exactly-has-really-had-influence/
281
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282
ENTRE A “IDEIA NOVA” E OS “VAGOS IDEAIS”:
CARVALHO JÚNIOR, CRÍTICO LITERÁRIO

Thales Sant’Ana Ferreira Mendes83


UERJ

Resumo: Neste artigo, expõem-se as ideias principais que norteiam a pro-


dução crítica de Carvalho Júnior, a partir do material reunido na obra póstu-
ma Parisina (1879). Alinhada a seus posicionamentos políticos, a concepção
de literatura de Carvalho Júnior se baseava num ideal positivista, afirmando
um vínculo estreito entre sociedade e produção artística, em que esta seria pro-
duto do meio e, juntamente com ele, evoluiria. Porém, a “lei fatal” do progres-
so, que afetaria literatura e política, diferentemente da de Taine, teria maior
influência do meio, pouca do momento e nenhuma da raça.

Palavras-chave: Francisco Antônio de Carvalho Júnior. Crítica literária.


Realismo. Século XIX.

Literatura e a Ideia Nova


No espaço que dedica a Carvalho Júnior, Massaud Moisés (2016, p. 174),
observando o descompasso entre os escritos críticos de Carvalho Júnior e o
erotismo de sua poesia, notava: “[...] parecia mais inclinado à poesia de fei-
ção política ou para o jornalismo de ideias”. Como outros homens de letras
da mesma geração, Carvalho Júnior foi, com efeito, um homem da política,
tendo exercido, por exemplo, o cargo de juiz municipal e colaborado em peri-
ódicos como A Republica (SP) e A Reforma (RJ)84.
Republicano liberal e abolicionista, seus posicionamentos políticos perpas-
sam toda sua produção em prosa. Aliás, considerados em conjunto, os escritos
de Carvalho Júnior sobre literatura se inserem em um continuum, em que se
pode partir dos de menor teor político àqueles cuja articulação é totalmente
política (talvez “A liberdade de cultos”). Tanto é assim que Amaral (1996, p.
69) fala de “[...] sete escritos críticos”, e não quatro escritos críticos e três vá-
rios, conforme a divisão original de Arthur Barreiros, organizador do volume
Licenciado em Letras Português/Inglês pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Mestrando em Literatura Brasileira pela
83

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).


Mantivemos a grafia original dos nomes dos periódicos, mas a transcrição de seu conteúdo sofreu atualização.
84
283
póstumo Parisina (1879), que reúne toda a produção de Carvalho Júnior.
Entusiasta das correntes em vigor nessa “época do ‘materialismo’”, que “as-
sume ideologicamente as cores do evolucionismo darwinista, do liberalismo
humanitário, do antiespiritualismo positivista” (STEGAGNO-PICCHIO,
2004, p. 251), Carvalho Júnior expõe em sua obra as premissas de um inte-
lectual provavelmente treinado nas teorias de Comte, Taine, Buckle, Darwin
e Spencer. Em seu “Prefácio” a Parisina e no ensaio “O romance”, parte do
princípio de que o meio social evolui e passa por etapas que vão superando
umas às outras, num processo de aprimoramento contínuo de ideias, sistemas
econômicos, políticos etc. Com isso, as etapas anteriores se tornariam inviáveis
e destituídas de uma “razão de ser”; injustificável seria o repeti-las:

A escravidão foi um benefício, se a confrontarmos com o uso de matar os prisionei-


ros de guerra; o feudalismo justifica-se porque deve-se-lhe a origem das nacionali-
dades; o absolutismo foi um progresso porque aboliu as oligarquias; mas nenhuma
dessas instituições pode ser aceita e pode vigorar no século XIX. (CARVALHO
JÚNIOR, 1879, p. 3).

O raciocínio se aplica à literatura: uma vez que ela tem feição “fatalmente deter-
minada pelo meio social” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 3), reflete, portanto,
tal meio de origem e as ideias próprias a ele. Se nessa inter-relação com o meio a
literatura evolui junto, a ponto de “cada época, cada civilização te[r] uma literatu-
ra” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 4), é inevitável que certos estilos e formas
literários se tornem antiquados: eis o pecado de Racine e Corneille, que buscaram
adaptar a tragédia grega em pleno século XVII. Paul et Virginie (1788), de Saint-
-Pierre, Atala (1801) e René (1802), de Chateaubriand, seriam romances impos-
síveis em meados do século XIX, sobretudo no que tange à evolução da figura da
mulher. Afinal, “a civilização moderna, cultivando o espírito da mulher”, reconhe-
ce “a necessidade de arrancá-la da treva e da ignorância a que tinha sido condenada
pelos preconceitos do passado” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 147); seriam,
agora, inexequíveis aquelas heroínas idealizadas e lacrimosas. Por outro lado, os ro-
mances de George Sand, defensora dos “princípios da grande escola socialista”, e
de Balzac, que “lançou as bases do realismo” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p.
148), “acompanha[m] as evoluções do tempo”, dando expressão às mudanças e
revoluções sociais que ocorrem em seus respectivos meios.
Carvalho Júnior, na esteira de Taine, pensa, portanto, em um vínculo en-
tre a sociedade e sua produção artística: esta seria produto de seu meio e
284
assimilaria e transmitiria seus problemas, filosofias, fatos etc. Tais coisas são
leis, e leis inquebrantáveis e inevitáveis, assim como a evolução: “a marcha
da humanidade, impelida pelas leis fatais do progresso, é lenta e gradativa”
(CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 167). Há aí, porém, uma teleologia pou-
co demarcada em Taine, já que Carvalho Júnior entende as sucessões de lite-
raturas (aqui, algo próximo a “estilos literários”) como uma constante apri-
moramento em direção a um estágio mais elevado, que aniquila o sentido da
existência das literaturas anteriores. Não é difícil imaginar qual era, para ele,
a fase superior da literatura brasileira.
No entanto, ao contrário dos românticos, e mesmo de um Sílvio Romero
e um Araripe Júnior, Carvalho Júnior não raciocina propriamente em ter-
mos de uma singularidade da literatura brasileira. “Nós somos os herdeiros
desse mísero patrimônio [de Portugal], em que pese a todos os otimistas que
sustentam a existência de uma literatura nacional”, diz, em “A morgadinha
de Val-For”, para arrematar: “O nosso teatro é o teatro português” (CAR-
VALHO JÚNIOR, 1879, p. 152). Quando procura embasamento para suas
asserções, são, majoritariamente, os autores franceses e ingleses que cita.
Ainda assim, a ideia de uma tradição brasileira (ou luso-brasileira) não é
algo que rejeite. No “Prefácio”, por exemplo, assinala sua “boa vontade” em
seu “trabalho em prol das letras pátrias” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p.
9). Em “Fervet opus”, alega que todas as nações têm “uma legião sagrada,
a quem são confiadas as gloriosas tradições da pátria” (CARVALHO JÚ-
NIOR, 1879, p. 137), isto é, a mocidade acadêmica e culta. A equação pro-
posta é que evolução literária-intelectual pressupõe tradição. Nesse sentido,
o autor enaltece alguns dos poetas imortalizados pela historiografia literária
brasileira, justamente aqueles reputados como participantes de uma “tradi-
ção”: Álvares de Azevedo, “a luminosa cabeça”, Fagundes Varela, “o sabiá
brasileu”, Castro Alves, “o peregrino do ideal” (CARVALHO JÚNIOR,
1879, p. 137-8); em contrapartida, também menciona nomes hoje desco-
nhecidos: “Martim Cabral, a palavra mugida, Oliveira Belo, o orador inspi-
rado” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 138).
Claro que, dentro da lógica positivista em que raciocina, tais homens de
letras constituíram apenas um passo em uma escala progressiva da literatu-
ra. Não foi a partir do nada que obraram, assim como não o fariam seus
herdeiros. Afinal, “quando o caráter nacional e as circunstâncias envolven-
tes operam, não o fazem sobre uma tabula rasa, mas sobre uma superfície,
285
onde já se fizeram marcas” (TAINE, 2011 [1863], p. 537). É à mocidade que
é delegada, então, a incumbência de continuar o legado desse “passado que
morreu” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 138), a esses jovens que deba-
tem “[...] todos os princípios da filosofia, da arte, da religião, do direito, da
ciência enfim” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 140). Nada mais adequa-
do, portanto, chamar ao período uma “renascença” – que, coincidentemen-
te, será também a expressão de Afrânio Coutinho (1974) para nomear os
mesmos decênios de 1870-1890.
A ideia de uma “renascença” é retomada em outros momentos, chegando
a trespassar a concepção de Carvalho Júnior de literatura. Se esta seria re-
flexo das ideias de seu meio (ou da sociedade que a produz), a literatura da
segunda metade do século XIX deveria ter, por natureza, feição científica,
positivista, democrática. Afinal, no século XIX, época de um fervilhar in-
telectual, “os problemas políticos, sociais, morais, religiosos, científicos são
geralmente investigados e a sua solução é a preocupação constante dos es-
píritos” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 4). Se para Taine (2011, p. 543)
a “utilidade” da literatura era ser um documento para se “registrar senti-
mentos” e representar “a maneira de ser de toda uma nação e de todo um
século”, para Carvalho Júnior (1879, p. 5), ela “apresenta um não sei quê de
científico, de positivo, de prático, de utilitário, enfim”.
Não por acaso, “difusão dos conhecimentos pelas massas” será frase repe-
tida e glosada por ele em seus escritos. Tão característica seria essa feição do
século XIX, que a literatura que nele fosse produzida, caso não a traduzis-
se “fatalmente”, “mentiria ao seu meio” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p.
149). E uma vez que o meio se constitui de “ideias práticas e utilitárias”, de
uma popularização do saber, de uma “sede inextinguível de verdade” (CAR-
VALHO JÚNIOR, 1879, p. 149), o romance e o drama (gêneros aborda-
dos, respectivamente, em “O romance” e no “Prefácio”) se imbuem, forço-
samente, de um caráter didático, e até “socialista”: aquele é “o mais poderoso
veículo de educação do povo” (CARVALHO JUNIOR, 1879, p. 146), e
este, “uma escola” (CARVALHO JUNIOR, 1879, p. 6), de que Dumas fi-
lho é o exemplo máximo. A função da literatura seria, ao fim, expor as verda-
des científicas de seu tempo às multidões, unindo o útil ao agradável.
Aqui, drama e romance se diferenciam. O primeiro tem maior apelo emo-
cional – seu “ensino proveitoso [...] propaga-se de um modo fácil e deleitável”
(CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 5) – e maior popularidade: “dirige-se uni-
286
versalmente às multidões”, que “escutam, sentem e aprendem” (CARVALHO
JUNIOR, 1879, p. 5). O romance, por outro lado, por estar presente nos mais
variados ambientes – “manuseiam-no o proletário e a cocote” (CARVALHO
JUNIOR, 1879, p. 149) –, tem maior poder democrático e revolucionário,
além de maior adaptabilidade ao meio; nele, o leitor encontra “um reflexo de
seus próprios pensamentos” (CARVALHO JUNIOR, 1879, p. 149-150).
Com o drama, a verdade é recebida de modo mais sensorial e veemente; com o
romance, mais duradoura e refletidamente.
Que “verdade” seria esta que a literatura transmite? Carvalho Júnior (1879,
p. 5) equaciona que o “[...] belo funde-se na verdade”; “verdade” parece cor-
responder ao mundo material. Tanto que, em seguida, endossa a indispensável
fidelidade ao real, que é contraposto ao “ideal”: “Os tipos, os caracteres devem
ser fiéis. O drama tem por objetivo a vida real”. E, como um naturalista bra-
sileiro avant la lettre (estamos em 1877), argumenta: “O espetáculo do vício
não é imoral; quando muito é repugnante; o que é imoral é a sua impunida-
de”, utilizando, para tanto, a metáfora científica do médico, que, “para extir-
par os cancros, precisa vê-los” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 6).
Vale recordar que seria o mesmo argumento de alguns escritores pós-ro-
mânticos contra as alegações de indecência, ou de pornografia, em suas obras;
ou seja, a ideia de intenção didática do Realismo-Naturalismo, tão perpetua-
da pela historiografia literária dos séculos XIX e XX (MENDES, 2018). Car-
valho Júnior não apenas compartilhou uma sina semelhante (houve quem
chamasse de imoral “Parisina” e os versos de “Hespérides”), como foi cons-
tantemente reputado escritor realista. Sílvio Romero (1954 [1888], p. 1.806),
por exemplo, notou seu “realismo mais cru”; para Machado de Assis (1879, p.
382), ele “[...] era o representante genuíno de uma poesia sensual, a que, por
inadvertência, se chamou e ainda se chama realismo”. Porém, ao focar na de-
terminação do meio, era especificamente do Naturalismo que se aproximava.
É o meio que prepondera, da tríade taineana, como “ordem de causas” da
literatura, “que nada mais é do que um reflexo da sua economia” (CARVA-
LHO JÚNIOR, 1879, p. 4) (aliás, asserção que, indo um pouco além de seu
mestre, já tangencia ao socialismo, como então se dizia). A inevitabilidade do
meio é tão grande que chega a afirmar: “É bem natural que, se o autor de
Dom Juan escrevesse hoje esse poema, tivesse o mesmo intuito que eu tive
escrevendo este drama” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 6, grifo nosso) – e
por intuito se entenda “estudar”, “determinar causas” “deduzir ilações”, enfim,
287
dar-lhe “o cunho realista” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 3). Noutras pa-
lavras, posto no meio social da segunda metade do Oitocentos, muito prova-
velmente Byron se tornaria escritor realista e de método semelhante.
Já raça é termo de que se vale apenas em “A morgadinha de Val-Flor”, men-
cionando, em citação indireta de Schlegel, a “mesma raça” e “mesma civili-
zação” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 151) de Portugal e Espanha que
resultaram em teatros tão diferentes. No folhetim “Aspásia”, no rastro de Ma-
dame de Staël (2011 [1800], p. 81) e suas “literaturas do norte e do meio-dia”,
contrasta o nascido “sob um céu de fogo”, cujos “afetos de [...] alma têm [...]
a impetuosidade de [...] rios caudalosos”, cujo amor “é ardente e luxurioso”
(CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 112-3); e aqueles dos “gelos do norte, que
têm a alma de neve e o coração envolto num sudário de brumas”, cujo amor
“é uma adoração, imaculada e pura” (CARVALHO JUNIOR, 1879, p. 113).
Perceba-se que as referências são românticas e, apesar dessas “linhas de cunho
determinista” (AMARAL, 1996, p. 87), aludem menos às “disposições ina-
tas e hereditárias” (TAINE, 2011, p. 535) de uma suposta raça do que a uma
noção abrangente de “povo”; não têm, portanto, a pesada carga cientificista
que ganharam em Capistrano de Abreu ou em Sílvio Romero, mais afeitos a
Comte, Buckle e Spencer.
Em meio ao determinismo, ao fatalismo, e ao evolucionismo, outras ideias,
de dicção mais romântica, e até clássica, dão as caras. No mesmo prefácio,
Taine e Aristóteles convivem desembaraçadamente. À certa altura, Carvalho
Júnior reconhece a dificuldade, e mesmo o prejuízo que daí pode surgir, de
conciliar a cientificidade e o “raciocínio rigoroso” que busca a verdade com a
produção artística. Então procura solução no clássico: “nesse gênero de pro-
dução [o drama] a forma é quase tudo” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p.
7), sendo mister manter “as três unidades do teatro grego, recomendadas por
Aristóteles” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 7). (O vocabulário, ao final,
será sobre “ordonnance”, “urdimento das cenas” e “estrutura material”.) Mas,
em seguida, fundamentando-se em Schlegel, reavalia o argumento (a unidade
de ação seria a verdadeiramente necessária) e comenta a possibilidade de har-
monizar tais unidades com a “liberdade da inspiração poética” (CARVALHO
JÚNIOR, 1879, p. 8).
Após as referências a Aristóteles e Schlegel, é a vez do contemporâneo
Dumas filho, em quem se apoia para justificar seu ponto de vista (que talvez
ele próprio julgasse destoante): no escritor francês, os “[...] preceitos clássi-
288
cos se acham consignados, o que dá um relevo apuradíssimo ao seu teatro”
(CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 8). Ao término, deixa sua homenagem
ao Realismo (Dumas filho e Girardin) e a Byron, de cujo poema tirou o
enredo de “Parisina”. Taine, Aristóteles, Schlegel e Dumas filho: um nada
homogêneo referencial teórico.
Pela profusão de ideias dessemelhantes que conjugou, Carvalho Júnior
parece de fato ter sido, conforme Candido (2006) sugere a propósito de sua
poesia, um autor de transição.

A autonomia e a originalidade românticas de uma obra, a delimitação clássica da


“criação” pela phýsis ou o determinismo naturalista do meio e da raça sobre o sujei-
to, implicações que acabam entrando em jogo ao se adotar esta ou aquela perspec-
tiva filosófica e literária, não são estendidas em seus escritos a ponto de se tornarem
conflitantes entre si. (MENDES, T., 2018, p. 141).

– e, por outro lado, pode-se pensar que justamente por serem trabalhadas
num nível mais superficial e abrangente é que as ideias advogadas por Car-
valho Júnior são possíveis, pois são tratadas de forma a não se anularem, mas
antes intentando-se extrair-lhes a “verdade”.
Eis os instrumentos de análise de Carvalho Júnior; resta saber com quais
deles construiu sua crítica literária.

O método crítico de carvalho Júnior


Parisina reúne quatro críticas dedicadas a obras literárias, todas homôni-
mas das obras que abordam, isto é, os dramas “A estátua de carne” (do italia-
no Theobaldo Ciconi), “A morgadinha de Val-Flor” (do português Pinheiro
Chagas), e “O marido da douda” (do gaúcho Carlos Ferreira), todos, a julgar
por suas repercussões nos periódicos, famosos na época. Há, ainda, a análise
do livro de poemas “Ardentias”, de Castro Rebelo Júnior.
“A estátua de carne” tem um estilo próprio, se comparado ao das outras
críticas. Carvalho Júnior se vale de certo impressionismo descritivo ao suma-
rizar o enredo, aliás algo romântico. Certo dia, o conde Paulo de Santa Rosa,
que gasta a fortuna com jogos, bebidas e mulheres, se apaixona por uma
costureira pobre, Maria, para quem omite sua posição. Ela, doente e desgas-
tada pelo trabalho, logo morre. Tempos depois, num baile, o conde conhece
Noêmia, cuja compleição é idêntica à da falecida; porém, “[...] sua moral é
o prazer; a crápula e a devassidão” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 126).
289
Admirado com a ressurreição da imagem da amada, o conde se entrega a ela,
para logo desprezá-la. Ela, então, antes de morrer, se “redime”.
Após a sinopse das qualidades morais das personagens, vêm as impres-
sões da peça em si. Entre os encômios às interpretações dos atores, Carvalho
Júnior (1879, p. 128) destaca a da artista Ismênia, que foi “[...] fielmente
executada segundo as leis da arte e da ciência”. “Arte”, cremos, tem aqui ecos
helênicos, significando “técnica”, correlacionada a um saber específico. Ape-
sar do uso da palavra “ciência”, o ideal ainda não parece ser cientificista, pois,
adiante, Carvalho Júnior (1879, p. 129, grifo nosso) ressalta: “tudo, abso-
lutamente tudo, a grande atriz exprimiu mais do que com arte e correção,
com inspiração, que não é resultado do estudo, mas privilégio do gênio”. O
inatismo do gênio supera, assim, a ciência ou a técnica cultivada.
Eugênio de Magalhães, como conde de Santa Rosa, “[...] soube inter-
pretá-lo com toda a verdade” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 129). A
atuação teria sido, aliás, suficientemente perfeita para corrigir a criação de
Ciconi: “lutando com as incoerências e sutilezas daquele aborto da imagi-
nação do escritor italiano, [o sr. Magalhães] soube contudo torná-lo veros-
símil” (CARVALHO JUNIOR, 1879, p. 129). Isto é, sendo a peça não tão
bem composta e inapta para alcançar a verossimilhança, foi necessário que
o gênio do ator, no virtuosismo de sua performance, emendasse o mito do
autor. Ao cabo do ensaio, Carvalho Júnior (1879, p. 130) exalta justamente
o trabalho dos atores, os quais dariam “corpo e realidade” às “personagens
imaginárias sonhadas pelos poetas no remanso dos gabinetes”.
A preocupação com a execução só é reiterada em “A morgadinha de Val-
-Flor”, ao recriminar “a falta de movimento, de virilidade nas expressões”
da obra, que “[...] cansa, mortifica o espectador” (CARVALHO JÚNIOR,
1879, p. 155-6), embora isto se deva, para ele, mais à pena do autor do que
à atuação em si. A crítica à verossimilhança, todavia, permanece. A peça de
Pinheiro Chagas é acoimada de ser “pouco original na concepção, falsa nos
caracteres e imperfeita na estrutura” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p.
152). “Pouco original” porque, diz, o projeto da peça e de seus caracteres
foi tomado de The Lady of Lyons (1838), do inglês Edward Bulwer-Lytton,
e não de O romance dum rapaz pobre, do francês Octave Feuillet, como se
pensava então, segundo testemunha Barreiros (1879, p. XIV).
O começo do ensaio defende a existência de tradições literárias dramáticas
na França, Espanha e Alemanha e assinala a falta de uma em Portugal, que
290
“[...] estava predestinado para a esterilidade” (CARVALHO JÚNIOR, 1879,
p. 151); mas seu desenvolvimento se dá sob um lema de se “procurar sempre a
verossimilhança e a necessidade” (ARISTÓTELES, 1984, p. 254). Como que
se fundamentando na Poética (sobretudo a parte XV), Carvalho Júnior julga
incoerentes os caracteres de Luiz Fernandes e Leonor: ele, por suas ações e pensa-
mentos que não se harmonizam; ela, por sua constituição intelectual, anacrôni-
ca para uma mulher do século XVIII: “incompatibilizou-a com os tempos que
a viram nascer, com os costumes de sua época” (CARVALHO JÚNIOR, 1879,
p. 154). Ele sofre “um fim bem ridículo” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p.
154), ela é “uma criatura ideal” que “nem existe hoje”; ambos são inverossímeis,
“esplêndidos croquis” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 154).
A morte de Luiz Fernandes, comparada ao seu modelo, padeceria, ain-
da, de dois problemas em sua composição. Primeiro, seria incoerente com o
mito e os caracteres, já que o final de Bulwer-Lytton é “mais compatível com
a nobreza dos sentimentos e com o critério do personagem” (CARVALHO
JÚNIOR, 1879, p. 153); em segundo, seria incoerente externamente, pois o
desenlace do escritor inglês é “mais moral”, “mais exemplar e mais proveito-
so para a sociedade” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 153). Sem contar o
erro acidental (em termos aristotélicos) de Pinheiro Chagas por ter falseado
o cenário português setecentista; e, ainda, seu estilo excessivo e fastidioso,
prejudicial à unidade de ação. “Situações há”, recomenda Carvalho Júnior
(1879, p. 155), “em que as falas devem ser concisas, lacônicas, incisivas, para
produzir o efeito dramático” – descritivo e prescritivo, como o mestre grego.
Mas o exemplo ideal é, outra vez, Dumas filho.
Essa convergência de orientações estético-filosóficas diversas que observa-
mos em suas ideias sobre literatura parecem ganhar maior expressividade em
sua crítica. Nesse sentido, é curioso o caso de “Ardentias (Carta ao amigo
Castro Rebelo Júnior)”. Rebelo Júnior, sabe-se, pertenceu à mesma geração
do autor, época da “Batalha do Parnaso”, da “poesia científica” de Martins
Júnior e quejandos e, sobretudo, época de embate (ou, muitas vezes, amál-
gama) entre os resíduos românticos e a “Ideia Nova” – a ponto de Stegagno-
-Picchio (2004) chamá-la de “realismo romântico”.
O Rebelo Júnior analisado por Carvalho Júnior é, todavia, bem român-
tico. Românticas são também as notas que este traça de “Ardentias”, iden-
tificando os modelos do amigo (Lamartine, Hugo, Musset, Varela e Cas-
tro Alves) e seu “fogo da imaginação” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p.
291
158). Sestros da escola permeiam suas descrições, como quando ele exalta,
em defesa das acusações de excesso contra Rebelo Júnior, a (livre) imagina-
ção, “dote essencial a todo poeta” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 159), e a
fantasia, que “corre livremente o mundo da ideia – o infinito” (CARVALHO
JÚNIOR, 1879, p. 159). Carvalho Júnior (1879, p. 157) também menciona
seus versos “cheios de mimo e de encantos, possantes inspirações”, e a ideali-
zação da mulher como um anjo em alguns dos poemas. Há até espaço para a
correlação da obra com os sentimentos de seu criador – “as tuas Ardentias [...]
são como que pedaços da tua alma de moço” (CARVALHO JÚNIOR, 1879,
p. 159) —, bem como para a incompreensibilidade do artista pela crítica.
Nesse clima romântico, destacam-se o senso algo parnasiano de Carvalho
Júnior (1879, p. 158) ao admirar a “facilidade do metro” do amigo e notar:
“não encontrei um verso sensivelmente duro. És irrepreensível na forma”; e,
ainda, o fato de não deixar passar que um poema de Rebelo Júnior, similar a
outro de Vacquerie, tenha “o defeito de não ser original” (CARVALHO JÚ-
NIOR, 1879, p. 158), e que certas composições, embora de alguma beleza,
contenham “imagens que não são perfeitamente originais” (CARVALHO
JÚNIOR, 1879, p. 159).
A necessidade de adequação da literatura às ideias de seu tempo e a fatali-
dade da evolução (a lógica da superação) esposadas por Carvalho Júnior tal-
vez expliquem sua quase obsessão pela “originalidade” das obras que analisa,
muito embora isso também possa ser interpretado à luz das noções român-
ticas de criação e individualidade da obra85. Um dos motivos de elogio de
Carvalho Júnior (1879, p. 163) a “O marido da douda (fragmento)” deve-se
justamente por ser “[...] uma peça original”.
É neste escrito que, juntamente com “A morgadinha...”, Carvalho Júnior
nos apresenta uma crítica mais bem organizada. “O marido da douda” lança
mão de um repertório mais positivista do que o das outras críticas: retorna
à ideia de uma literatura brasileira em formação, rumo a uma caracterização
própria, de modo que a peça represente um “[...] esforço individual em prol
das letras pátrias”, o que, aliás, já seria oportuno ainda que ela “[...] não tivesse
nenhuma valia intrínseca” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 163). Além dis-
so, não deixa dúvidas quanto à filiação literária da peça: é “vazada nos moldes
do teatro moderníssimo” (CARVALHO JÚNIOR, 1879, p. 162) – o que,
segundo o “Prefácio” e “O romance”, só pode se referir ao Realismo. E, como
um romance naturalista, o drama ainda orbitaria ao redor de uma tese.
85
Barreiros (1879, p. IX) pôs à prova a “Parisina” de Carvalho Júnior, salientando que originalidade é o que “toda a composição deve ter de
primário”.
292
De acordo com um articulista do Publicador Maranhense, “a tese esco-
lhida [...] é que a mulher muitas vezes desvaria-se e cai, por culpa de errada
educação que recebeu e que deixou desenvolverem-se n’alma os germens do
mal, e, por consequência, ao esposo ultrajado não cabe o direito de matar a
adúltera”86. Outra vez o didatismo realista-naturalista; e outra vez, não fal-
tou quem a ele se opusesse: para um redator d’O Apostolo, sua “urdidura é
imoral” e o “valor moral do drama [...] é nenhum”87.
Ao menos no que restou da crítica, Carvalho Júnior chega a defender não
a tese em si, mas o direito de se valer de uma em um drama. Pois se no “Pre-
fácio” havia uma reserva ao cientificismo na literatura, aqui há mesmo uma
defesa. Em face do comentário de um crítico de que “[...] a tese era mais
assunto de uma dissertação de medicina legal do que de um drama” (CAR-
VALHO JÚNIOR, 1879, p. 163), o autor de “Parisina”, sincronizado com
“O romance” e o “Prefácio”, rebate: “As teses psicológicas tem tanto o direi-
to de ser discutidas no teatro, como as sociais, morais e quaisquer outras”
(CARVALHO JÚNIOR, 1869, p. 163).
O que Carvalho Júnior pensava sobre a tese se extraviou. No último pará-
grafo de “O marido da douda”, evidencia a recorrência do tema do adultério
na literatura; haveria diversas causas, consequências e soluções para tal, como
as já lançadas por Dumas Filho. Ele mesmo teria desenvolvido algumas delas
em “Parisina”. “A seu modo, enviesado pelo pensamento de sua época, posi-
cionou-se nos escritos em prosa a favor da liberação da mulher quanto a cer-
tos preconceitos sociais e em prol de maior participação dela na sociedade”
(MENDES, T., 2018, p. 146). Logo, é possível que sua opinião não fosse a
mesma do Publicador Maranhense. Lembre-se que, em “Parisina”, a figura
de Alexandre, o marido traído, pode ser satírica e propositalmente caricata
(BARREIROS, 1879). Afinal, Davina, a adúltera, que expressa com fran-
queza as razões de sua infidelidade, termina a peça livre e viva.

Considerações Finais
Um dos membros mais participantes de sua geração, Carvalho Júnior foi,
como ela, fervoroso defensor da abolição da escravatura, da proclamação da
república e de todo o aparato cientificista e positivista que animava os jo-
vens de então. Porém, bebia também em fontes românticas, dando razão
a Machado de Assis (1879, p. 374), para quem alguns dos poetas da “nova
geração” ainda cheiravam ao “puro leite romântico”.
86
Noticiario. Publicador Maranhense, Maranhão, ano XXXVI, n. 242, p. 2, 21 de outubro de 1877.
87
Correspondencia do Apostolo. O apostolo, Rio de Janeiro, ano XII, n. 63, p. 3, 2 de junho de 1878.
293
Sua concepção de literatura, entrelaçada a seus posicionamentos políti-
cos, estava baseada num ideal positivista: defendia um vínculo estreito entre
sociedade e produção artística e sua constante evolução. A diferença é que
a “lei fatal do progresso”, que afetaria literatura e política, diferentemente
da de Taine, teria preponderância do meio, pouca do momento e nenhuma
da raça. Isso acabou sendo mais adequado a seu posicionamento contra os
preconceitos relacionados à mulher e à intolerância religiosa, afastando-o de
certos determinismos.
Mas se a bibliografia positivista e de estirpe semelhante perfazem muitas
das ideias de Carvalho Júnior, seu método crítico não chegou a ser o de um
Taine ou o de um Sainte-Beuve; se muito, o de um Hennequin ou o de um
Lanson, autores que provavelmente não leu. Nele, não há espaço para o bio-
grafismo (exceto, talvez, a insinuação apontada em Ardentias), para ques-
tionários sobre a vida e os hábitos dos autores, ou para a determinação da
influência do meio e da raça na obra.
Assim, sua crítica se construiu entre a “Ideia Nova” e os “vagos ideais” (a
expressão do poema “Profissão de fé” para se referir ao Romantismo): por
um lado, procurou seguir achados realistas; por outro, não chegou a verda-
deiramente abandonar a herança romântica – como pretendia a maioria dos
poetas realistas –, ou mesmo a deixar de lado certos preceitos clássicos, re-
correndo a nomes díspares como Staël, Schlegel, Dumas filho e Aristóteles.

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295
POÉTICAS DO SILÊNCIAMENTO: CORPOS FEMININOS
NA OBRA O LEGADO DA PERDA, DE KIRAN DESAI

Thallita Fernandes88
UERJ

Resumo: O romance O Legado da Perda (2007) equaciona o silenciamen-


to como uma forma de insubmissão a um poder colonial e patriarcal. Neste
sentido, será realizada uma leitura sobre as violências físicas e epistêmicas sofri-
das pelas personagens femininas da obra, bem como as estratégias que a autora
Kiran Desai lança mão para representar as formas de insubmissão dos corpos
das mulheres na referida obra.

Palavras- chave: Subalternidade. Feminismo. Subversão. Decolonialidade.

A indiana Kiran Desai possui uma gama de estratégias literárias para re-
presentar deslocamentos geográficos e psicológicos em suas obras. Em O
legado da perda (2007), a autora trabalha com a temática das jornadas e
busca nos antepassados uma forma de descrever experiências coloniais, bem
como a transição de um império europeu para um outro, estadunidense,
para assim demonstrar diferentes modos de se perceber o mundo, as novas
dinâmicas de colonização e as desigualdades de poder. Para tanto, ela utiliza
personagens migrantes, os quais tendem a possuir visão estereoscópica por
transitarem no espaço privilegiado da terceira margem, ou seja, habitarem
no entre-lugar de distintas nações e possuírem aparatos para avaliar as enor-
mes diferenças entre elas.
O romance aponta para as perdas e silenciamentos de diversos sujeitos subal-
ternos, mas especificamente para as mulheres, as quais sofrem maior quantidade
de abusos e têm seus corpos minados pelas estratégias de poder e dominação
cultural e financeira. Desta forma, o trabalho visou analisar não apenas o lado
negativo da história dessas mulheres, mas buscou compreender o que os silên-
cios e as narrativas contadas por homens têm a dizer não apenas sobre a nação
indiana no período pós-colonial, mas a respeito da sociedade como um todo.
88
Licenciada em Letras pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), mestre em Crítica da Cultura pela Universidade Federal de São
João del-Rei (UFSJ), doutoranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
296
Neste sentido, foram ressaltadas as estratégias de representação dessas perso-
nagens não como menores no tecido literário, mas como corpos de luta e resis-
tência, que são fundamentais para compreender as novas dinâmicas do corpo
feminino contemporâneo. É importante frisar que a maioria das mulheres es-
tão mortas e possuem vidas reduzidas aos termos de esposos e empregados das
casas onde elas vivem.
Busca-se, portanto, dar sentido às vozes e vidas negadas a elas. O roman-
ce revela passagens de confinamento, violências físicas e epistêmicas e o fim
derradeiro das mesmas, legado pela posteridade. O estatuto da subalternida-
de feminina, no livro, pode ser considerado um exemplo da interação entre a
consciência pós-colonial e a sensibilidade feminista, na medida que evidencia
a (suposta) superioridade masculina e a dominância da política colonial como
forças que podem obliterar uma mulher da chance de fazer uma vida para si
mesma. Tal posição, neste caso, pode ser lida como uma reação amarga frente
ao fracasso em encontrar seu lugar no mundo.
Este reconhecimento do próprio desamparo pode ser interpretado como a
força motriz que as impulsiona a rejeitar qualquer forma de pertença, resultan-
do em uma firme determinação de tornar-se a sua única família e comunidade.
Por esta razão, a fim de adquirir o seu verdadeiro significado, o desejo dessas
personagens de subverter ordens estabelecidas e de partir de Kalimpong, um
dos locais onde o romance se situa, deve ser lido em conjunto com a admissão
de amor auto- resoluto de cada uma delas.
O legado da perda (2007) não apenas narra trajetórias fluidas de sujeitos
deslocados, como também se inscreve em um terceiro espaço de difícil ra-
cionalização. O título por si só evoca um valor descentrado. A perda é um
resultado que não se afilia ao campo dos desejos, uma vez que evoca uma
ausência ou falta que geram sentimentos de saudade, luto, abandono e es-
gotamento e, consequentemente, afligem os sujeitos nos níveis psicológicos
mais profundos. Para Carraro (2013:70), o conceito está geralmente associa-
do à escassez, deficiência e privação, mas em uma leitura (pós) colonial, pode
assumir o sentido da desapropriação e negação.
Pensar em um romance pós-colonial, neste sentido, implica considerar
que a empresa colonial se apropriou ilegitimamente de terras e recursos ma-
teriais e humanos em torno do globo. Milhões de nativos foram oprimidos
por este sistema, cujo abuso resultou em deslocamentos geográficos força-
dos, privações materiais, alienação e aniquilação cultural. A colonização foi
297
uma experiência devastadora de desapropriação coletiva, estimulada tanto
pela ganância e ufanismo quanto pela supremacia cultural da Europa.
Como consequência desta atitude etnocêntrica, a literatura imperial esta-
beleceu, a partir do século XIX, seu próprio cânone, marcado por repetições
de imagens e metáforas que reforçavam sua superioridade frente aos povos
colonizados. A presença do livro torna-se um símbolo de conhecimento e
imperialismo, e geram nos governados uma sensação de admiração e impo-
tência. A incapacidade de reagir é um efeito do deslocamento cultural e re-
sultado da perda da cultura essencial produzida pela colonização. É preciso
deixar claro que esta essência se refere a um estado de autonomia e auto go-
vernança que foi perdido mediante processos de dominação violentos e que,
por causa de sua arbitrariedade quanto aos povos tratados como inferiores,
conseguiram manter as colônias em um estado de sujeição às novas normas.
Dentro dessa perspectiva, a obra de Kiran Desai pode ser lida como uma
prova de que não só é a Europa é seriamente doente, como também conta-
minou as colônias e os seus habitantes, que continuam morrendo lentamen-
te por causa do antigo veneno. A derrota experimentada por esses sujeitos
ainda reflete a subjulgação e a perda de suas dignidades e valores por causa
da negligência e estratégias políticas de apagamento cultural, estritamente
ligadas à obliteração de cultura nativas, principalmente pelo viés da subs-
tituição da linguagem, que, como apontado por Ashcroft et al.(1989), foi
um dos principais aspectos da dominação colonial, uma vez que a cultura
é quase indistinguível da linguagem e a imposição de uma nova língua cria
formas de hierarquia mental e elaboram uma realidade diferente, exacerban-
do a sensação de deslocalização.
Em O legado da perda (2007), a morte é equacionada com a experiência
colonial e é representada por meio das disjunções temporais que cedem às
invasões repentinas do passado. Os personagens do romance são eles mes-
mos vítimas e agentes do colonialismo e as implicações do tempo pregresso
apresentam consequências no presente.
O fenômeno está intimamente associado ao de fechamento de significa-
dos, sua incompreensão e imutabilidade. Desai (2007) retrata a morte como
um dos inevitáveis processos trágicos da existência cotidiana, porém apon-
ta para a questão da necropolítica- conceito cunhado por Mbembe (2008),
para tipificar a forma como as redes de poder se compõem para desclassificar
e aniquilar a outridade, em especial minoritárias. Assim, a romancista es-
298
creve sobre o luto de maneira a sugerir que ele é menos uma fase psicoló-
gica substituível do que uma condição política da existência. Ela descreve
a transição das gerações, eventualmente chamando a atenção para o efeito
alienante da perda.
O óbito aparece como um detalhe insignificante na vida das personagens,
algo que não se percebe de início como trágico, até que se atinja o reconhe-
cimento maduro de sua presença terrível, em especial por causa da subalter-
nidade e da condição do gênero. A autora também apresenta o perecimento
como um catalisador no reconhecimento progressivo de independência,
tendo em vista que, ao abordar distintas gerações de mulheres, mostra a for-
ma lenta e progressiva como certas mudanças socioculturais ocorreram.
Kiran Desai revela a centralidade da figura “mulher’ em seus livros. No
entanto, esta presença constante é experimentada na ausência. Sai é uma
personagem órfã na história. Sua conexão com os pais, mas principalmente
com a mãe, que é aquela que escreve as cartas que serão enviadas para o con-
vento onde ela é aluna interna no início do romance, estabelece uma reci-
procidade dinâmica entre a ideia de abandono e concomitantemente insere
a maternidade no ato de escrita.
Sai, criada em um orfanato após a morte dos pais é obrigada a morar com o
avô e o cozinheiro dele. Ela sente a dor de ter sido rejeitada por sua família e se
esforça para se tornar o sujeito de sua própria história, mas a tarefa é desafia-
dora para uma jovem inexperiente que vive em um mundo deslocado e estran-
geiro, tendo em vista o fato do internato ser o único lugar conhecido por ela e
local de onde a adolescente construiu suas primeiras imagens de mundo. Ela se
percebe cada vez mais alienada e desiludida. O romance falho com Gyan ( seu
professor particular) e o ambiente de colonização e insurgência em torno de si
agravam seu sentimento de impotência e elevam a decisão que ela deve romper
com seu passado, mesmo que os sentimentos intensos da perda e hostilidade
originada por essa separação nunca sejam superados.
O duplo estatuto da subalternidade feminina, no livro, pode ser conside-
rado um exemplo primordial da interação entre a consciência pós-colonial e
sensibilidade feminista, na medida que evidencia a (suposta) superioridade
masculina e a dominância política colonial, como forças que podem oblite-
rar uma mulher da chance de fazer uma vida para si mesma.
A posição ambivalente, neste caso, pode ser lida como uma reação amarga
para o fracasso das inúmeras tentativas em encontrar seu lugar no mundo.
299
Este reconhecimento do próprio desamparo pode ser interpretado como a
força motriz que a impulsiona a rejeitar qualquer forma de pertença, resul-
tando assim em sua firme determinação de ser a sua única família e comu-
nidade. Por esta razão, a fim de adquirir o seu verdadeiro significado, seu
desejo de partir de Kalimpong deve ser lido em conjunto com sua admissão
de amor auto resoluto.
Outra personagem feminina que surge brevemente na trama é a mãe de
Sai. Com a morte de Nimi (avó de Sai), no momento de seu nascimento, ela
é mandada para o Convento Santo Agostinho, onde o juiz a mantém presa
e paga a mensalidade, sem no entanto, nunca tê-la ido visitar. Ela desafia
a sua própria condição e faz sua própria escolha ao conhecer um indiano
igualmente órfão, que estava se preparando para fazer parte do Programa
Espacial associativo entre Índia e União Soviética, eles decidem fugir para a
Rússia, mas ambos são atropelados e falecem. Tal passagem, bem como ou-
tras encontradas na mesma obra apontam a insubmissão como algo inerente
às mulheres, entretanto, ao extrapolar limites e desafiar as redes de poder que
as circundam, sejam patriarcais ou coloniais, elas são exterminadas.
Na literatura e crítica literária, existem múltiplas conexões entre mães e
pátrias e leva à figuração da mãe interpretada como um reflexo colonial. A
perda pode ser lida como uma metáfora do ciclo da colonização, a não per-
tença, o desligamento contínuo com a terra natal. A presença in absentia da
figura da mulher torna-se o sinal da soberania distante do império, sua au-
toridade cega e retórica chauvinista, que espelha a carga de pressão colonial
e refletem as disparidades da relação entre colonizado e pertença, seja dentro
ou fora do local geográfico em que este tenha nascido.
Para Carraro (2013) a morte substitui significativamente a traição: por
um lado, constitui a excelência do engano nominal; por outro, força o autor
a encontrar imagens alternativas para representar o papel dominante do co-
lonizador e a perda de poder resultante do colonizado.
Nota- se que Nimi e a esposa de Pana Lal (cozinheiro do juiz) são apre-
sentadas como figuras menores na novela, assim como eles são menores ou
“subalternos” em suas vidas. Ambas têm suas histórias apresentadas pelas
perspectivas dos esposos e a mãe de Biju. Ela não tem nome e seu trajeto é
descrito em poucas linhas, apenas em uma foto que mostra a família conge-
lada e no momento de sua morte. A personagem não é descrita em nenhum
detalhe, ela não tem rosto e não tem lembranças associadas a ela, a não ser
300
no momento em que o marido a perde. Sua morte é caracterizada por um
acidente, que segundo Pana Lal, é uma situação em que ninguém tem culpa.
Este fator fala muito a respeito da subalternidade como condição que apa-
ga o sujeito e cujas forças que o oprimem estão tão dissolvidas em institui-
ções e modos de governo cuja responsabilidade nunca poderá recair sobre
ninguém (Foucault, 2010), porque as raízes do problema são tão profundas
e complexas, que dificilmente se encontrará um responsável, ou, se puder-
mos imaginar algum, as disparidades entre poderes serão grandes, a ponto
de nunca haver uma punição.
Desai está interessada em discutir temas relacionados com o gênero em
seu romance, mas sua estratégia para ressaltar a posição da mulher se dá por
meio do apagamento e do silenciamento. A estratégia da escritora consiste
em realçar as dificuldades de comunicação entre mundos diferentes e pode
ser interpretado como o que Susan Sontag (1987: 13) denomina como a
“estética do silêncio”, que consiste em uma rede de significações acerca do
que não é dito. Para a filósofa: “A opção pelo silêncio ... confere e acrescenta
força e autoridade ao que foi interrompido- o repúdio torna-se uma nova
fonte de sua vitalidade”.
Assim, ao interromper a trajetória de suas personagens femininas no tex-
to, Desai não apenas traz à tona o espaço lacunar da vida dessas mulheres,
como realça a situação de apagamento a qual elas são submetidas. Além dis-
so, outra estratégia para desmistificar as ideologias patriarcais é desestabilizar
a imagem de masculinidade dos homens que figuram na obra.
Ao retornar da Inglaterra, por exemplo, o juiz percebe que sua bolsa foi re-
mexida e dá falta do pó de arroz que utilizava para dissimular a cor marrom
de sua pele. Ele sabia que indianos não separam seus pertences individual-
mente, tudo pertence ao grupo, mas ele encontra nesse roubo uma oportu-
nidade para abusar de Nimi.
Lone (2008) lembra que Nimi é controlada por homens até o momento
de sua morte. Ela passa a vida “cuidadosamente trancada” (DESAI, 2007:
89) para não se envolver com o fato do pai arranjar prostitutas para os mi-
litares. Além disso, ela é obrigada a se casar logo na infância para aumentar
o status do pai na comunidade. Presa, ela não é capaz de gerenciar a própria
vida. Sua situação não muda depois do casamento, ela só passa das mãos de
uma família para outra. Quando Jemubhai retorna, ele a deixa sozinha por
longos períodos, incapaz de desfrutar de qualquer tipo de liberdade.
301
A recorrência de abusos físicos e mentais que o juiz impõe a ela, faz com
que ela se transforme de uma mulher lindíssima, em uma pessoa deprimida
e repleta de hematomas. Quanto mais calada e indiferente à própria situa-
ção, mas Jemubhai a agride. Ela estava tão acostumada a ficar trancada que:
“... ela ainda era incapaz de contemplar a ideia de caminhar através da porta.
A forma como ela estava aberta para ela para ir e vir- a visão a enchia de soli-
dão” (DESAI, ibid: 171).
Assim, Nimi nunca é capaz de recuperar da humilhação e violência que
sofre em seu casamento em que ocupa os papéis da mulher passiva, pobre e
subordinada do Terceiro Mundo, características tradicionalmente associa-
das com o Oriente. Isso reflete um profundo contraste com as características
típicas do Ocidente que estão relacionados ao poder, masculinidade, inde-
pendência e desenvolvimento.
O silêncio de Nimi também tem o que dizer sobre a subversão da perso-
nagem. É um ato de recusa em responder aos estímulos violentos do juiz,
que quer ocidentalizar seus hábitos. O momento em que ela corajosamente
responde com palavras aos maus-tratos do juiz, chamando-o de “estúpido”
(304), Jemubhai a devolve para a família, sob o pretexto de não a matar.
Acontece que, ao recobrar as lembranças, o juiz compreende que mandá-la
de volta, ele se fez responsável pela morte de Nimi, pois, ela não suporta a
vergonha que levou para sua família e, estando grávida, não poderia sequer
cuidar da criança. Na casa de um cunhado, ela também morre “acidental-
mente”, em um caso sem testemunhas (DESAI, ibid: 307).
Sobre isso, Spivak (1996) claramente ilustra a diferença entre o Terceiro
Mundo e o Ocidente. Em uma perspectiva de gênero Sai, em O legado da
perda (2007), parece ser uma jovem mulher forte que confia suas próprias
decisões. Com sua influência ocidentalizada ela cresce educada e favorecida
pelo dinheiro e a posição social de seu avô, com quem sua figura contrasta,
pois em muitas situações ela prova ser a pessoa mais corajosa e capacitada
em Cho Oyu. Já no primeiro capítulo da novela isto é confirmado em uma
cena em que assaltantes invadem a propriedade da família, coagem a todos e
roubam seus bens.
Normalmente, o juiz é a parte dominante e poderoso que toma as decisões
em nome de outros, mas agora ele é forçado a colocar a mesa para os ladrões
e ele é humilhado e mentalmente ferido. Ele não tem poder para mudar a
situação assustadora em que eles se encontram. Nesta cena, o cozinheiro se
302
esconde debaixo da mesa e os ladrões arrastam-no para fora. Assim, os papéis
de gênero são trocados, e Sai parece ser a única com controle da situação. Ao
longo de seus conflitos, Sai parece fiel às suas opiniões, e ela não cede devido
ao amor ou sentimentos românticos.
Sai representa uma mulher forte numa perspectiva do Terceiro Mundo.
Seu estilo de vida ocidentalizado, naturalmente, a torna mais facilmente
adaptada a um cenário pós-colonial. Ela não é influenciada por fortes tradi-
ções religiosas e culturais e como mencionado, ela está presa entre duas tra-
dições diferentes, o Oriente e o Ocidente. Finança e não gênero parece ser o
seu principal desafio e preocupação. Como no caso de Gyan, a educação não
é garantia para a obtenção de um “bom trabalho”. O melhor que Sai pode
esperar é herdar algum dinheiro de seu avô (LONE, 2008). No entanto, ela
não é impedida de sonhar com uma vida independente.
A Subjetividade feminina passa a ser entendida em termos de auto-sacri-
fício, cujo princípio é serventia aos homens (OJWANG, 2013). Neste senti-
do, a avó de Sai retrata a posição feminina colonizada da Índia no início do
século XX. Mulheres eram educadas no espaço privado e dentro das tradi-
ções indianas, pois a “ocidentalização” e esfera pública ameaçavam a desin-
tegração da cultura indiana. Ao tentar ensinar à Nimi o que ele aprendeu da
cultura ocidental, Jemu, sintomaticamente, a humilha e violenta.
Mesmo na morte, Nimi reflete apenas pensamentos e opiniões do marido.
Hooda (2014) associa este fato à presença constante da Grã-Bretanha na
Índia (por trezentos e cinquenta anos), que integrou a identidade da Índia.
Ela relembra que a política de independência indiana foi elaborada por su-
jeitos educados no mundo ocidental e, por isso, o país não pode escapar de
ser visto sempre em relação ao colonizador.
Embora o romance, aos olhos do juiz, se passe entre Kalimpong e os
flashbacks do juiz na Inglaterra e outros lugarejos da Índia, é importante
lembrar que tanto as origens de Jemubhai quanto de Nimi estão ligadas a
Gurajat, uma pequena aldeia muito tradicional, onde seria impossível para
uma mulher escapar da dependência de seu marido e demonstra a preocupa-
ção de Desai em estabelecer uma esfera de desequilíbrio de poderes.
Podemos encontrar alguns sinais em obras que discutem as representa-
ções subalternas. Spivak (1996) por exemplo, investiga a alteridade através
da expressão feminina representada como duplo sentido do outro – primeiro
enquanto sujeito agente e, depois, enquanto representação. Nesta dupla lei-
303
tura ela insiste na descontinuidade entre subjetividade e agência.
A descontinuidade é exemplificada na subjetividade dissimulada do sexo
feminino, cuja “voz” é construída como instrumento, tanto para a autorida-
de masculina indiana ou o patriarcado colonial, ou seja, a mulher enquanto
sujeito, não possui um poder de escolha. Quando a pensadora aborda a
auto-imolação feminina em “Pode o subalterno falar” (1996), ela considera
dois discursos patriarcais: o nativista, que considera a prática uma escolha
da mulher pela morte, utilizando como meio um ritual sagrado; e o colo-
nialista, que institucionaliza a prática como um crime, sob o pretexto de
protegê-las. O problema é que nos dois casos, a escolha da mulher é dissimu-
lada. Nenhuma das alternativas compreende seu livre-arbítrio, pois ambos
os discursos são construídos mediante a agência patriarcal.
A voz atende à demanda da agência hegemônica e não da mulher (funciona
como se a mulher fosse apenas um ventríloquo). As possibilidades das mulhe-
res subalternas de alcançarem ascendência, na verdade diminuiu. Exatamente
por causa da proliferação de representações para falar por ela na sociedade civil
internacional, a mulher subalterna está em um terreno mais restrito hoje do
que ela em um momento anterior à globalização do capital (2010).
Cornell (2010) compreende que o subalterno não pode falar por que não
há espaço de representação em que ele pode se fazer ouvido; mas como re-
sultado, o fracasso da representação em si torna-se uma forma de escuta, um
“por vir”, capaz de dar um novo entendimento para a história da sexualidade
e dos problemas de gênero e até mais além: As assimetrias que a mulher evo-
ca confronta pressupostos básicos sobre o que é humano e sobre os enqua-
dramentos que tem sido feitos à respeito da própria humanidade.
A morte, que é onde se espera que a subalternidade desapareça, pois ela é
vista como a grande niveladora das questões humanas, entretanto, o ensaio
de Spivak (1996) explora uma subalternidade feminina ligada à morte, ou
a morte como condição subalterna de gênero. A morte do subalterno, ou o
subalterno morto, levantam questões acerca da forma como se morre, sobre
o significado da morte e sobre uma comunicação pós-morte.
O silenciamento produz discursos que extrapolam os limites entre vida e
finitude e, apresenta uma condição que possibilita o surgimento da voz fe-
minina subalterna. Apesar disso, tais mensagens são investidas de potencial
desestabilizador, pois mesmo quando elas não podem ser ouvidas, deixam
transparecer um ruído. É imprescindível lembrar que mulheres de corpos
304
sexuados são também, naturalmente, local e objeto de violência. Seja qual
for o potencial transgressivo do corpo, ele será cancelado pela submissão da
mulher à violência e à insistente demanda de um sistema social a ser satis-
feito sobre um ideal de castidade, mesmo no sujeito feminino morto. Além
disso, a morte figura enquanto condição de (im)possibilidade de contar a
própria história.
Por mais que suas vozes não possam ser restauradas, a mediação das teste-
munhas fornece contexto para sua interpretação na narrativa. Seja enquanto
vítima de violência ou de um acidente, as mulheres mortas representadas
no romance são presas às mesmas rígidas normas sexuais patriarcais de sua
sociedade, mesmo que em períodos diferentes e em diferentes classes sociais.
O feminino transforma empatia com mais sucesso em um ato político de
solidariedade e o silêncio é uma estratégia que não pode ser desperdiçada.

Referência Bibliográfica
ASHCROFT, B.; GRIFFITHS, G.; TIFFIN, H. The empire writes back: Theory and practice in
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Rosa Vera y Raúl Hernández Asensio.ed. - Sociología y política. Buenos Aires: Siglo XXI, 2008.

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DESAI, K. O legado da perda; tradução de José Rubens Siqueira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

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HOODA, A. “Could Fulfillment Ever Be Felt as Deeply as Loss?”: A Postcolonial Examination


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LONE, S. M. Race, gender and class in The inheritance of loss and Brick Lane: a comparative
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305
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OJWANG, D. Reading migration and culture: the world of East African Indian Literature.
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SONTAG, S. A vontade radical: estilos; tradução João Roberto Martins Filho. São Paulo: Com-
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SPIVAK, G. C. Subaltern studies: Deconstructing historiography (1985). The Spivak Reader: Se-
lected Works of Gayatri Chakravorty Spivak, p. 203-36, 1996.
306
TEXTO E COTEXTO: A IMPORTÂNCIA DA LEITURA DE TODAS AS
PARCELAS PRESENTES NO TEXTO VERBO-VISUAL

Thatiana Muylaert S. Menezes89


UERJ

Resumo: Com a exacerbação no uso da internet, a utilização dos memes


como forma de protesto aos acontecimentos políticos no país é constante. As
categorias analíticas (MAINGUENEAU, 2008) previstas, tanto no verbal
quanto no visual, trabalham de forma complementar (SANTAELLA, 2012),
trazendo ao dito interpretações impregnadas no bojo do interdiscurso. Par-
tindo de um corpus representativo, a pesquisa pretende mostrar como se dá a
relação palavra e imagem que (re)subjetivam os leitores desse gênero.

Palavras-chave: Discurso. Verbo-visualidade. Semântica Global. Meme.

Palavras iniciais
No atual cenário brasileiro, reconhecer os ideais dos outros é primordial
para que se convirjam ou confluam os laços afetivos, principalmente, quando
se trata de política. O reconhecimento do outro se dá através de inúmeros gê-
neros discursivos, seja ele verbal, visual, seja verbo-visual.
Tendo em vista isso, a utilização dos “novos” dispositivos contribui larga-
mente para a criação e propagação de inúmeros gêneros, caso das charges, his-
tórias em quadrinhos e, sobretudo, os memes, que se fazem presente no dia a
dia de muitos indivíduos. Sendo assim, a presença dos gêneros que circulam
via internet é passada de indivíduo para indivíduo por suas afinidades não só
políticas, como éticas e sociais.
Dessa forma, é fácil notar que se determinado texto não agrada determinada
pessoa, ela dificilmente compartilhará tal texto, salvo o caso em que queira
subverter alguma informação e, para isso, acaba por utilizar o texto como fon-
te satírica e irônica. Pode-se pensar e acreditar que os memes, por exemplo, não
circulam mais nessas esferas midiáticas apenas para agraciar as timelines, mas
89
Aluna de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Letras da Uerj, concentração em Linguística. muylaertthatiana@yahoo.com.br
307
sim para simular e velar posicionamentos políticos que possam ser questiona-
dos por outrem.
Justamente por essa facilidade de criar e recriar os memes é que eles têm sido um
dos gêneros mais utilizados como fonte rápida de ‘ridicularização’ de personalida-
des políticas atualmente. Acredita-se que a população utiliza esse “novo” gênero
como forma de protesto, principalmente, aos acontecimentos políticos do país. É
por meio da “satirização” das personalidades políticas que muitos indivíduos se ex-
pressam. Assim, o gênero meme possibilita uma união entre a comunidade virtual,
que se alia para propagar e gozar de personalidades públicas, seja compartilhando
em suas redes sociais, seja reproduzindo em suas próprias páginas.
Dessa maneira, além de divertir por meio da sátira, os memes possibilitam,
através da utilização das próprias imagens e de recursos linguísticos, a cap-
tação de um público-alvo que reconhece os mesmos elementos sociais por
intermédio das inferências feitas, justamente, porque os leitores comparti-
lham os mesmos conhecimentos de mundo.

O dispositivo como forma de reconhecimento


Grosso modo, considerar-se-á um dispositivo como um elemento de co-
municação capaz de tecer as redes sociais entre as pessoas. Elemento que
“cega” e prende a capacidade de subjetivação de muitos indivíduos, deixan-
do-os sem poder se (re)subjetivar e acreditando, efetivamente, como axio-
mático aquilo que o dispositivo traz. Dessarte, Agamben (2005, p. 5) diz:

[...] chamarei literalmente de dispositivo qualquer coisa que que tenha de algum
modo a capacidade de capturar, orientar, interceptar, modelar, controlar e assegurar
os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente,
portanto, as prisões, os manicômios, o panóptico, as escolas, as confissões, as fábri-
cas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc, cuja conexão com o poder é em certo
sentido evidente, mas também as canetas, a escritura, a literatura, a filosofia, a agri-
cultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e – porque
não – a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos, em que há
milhares e milhares de anos um primata – provavelmente sem dar-se conta das con-
seqüências que se seguiriam – teve a inconsciência de se deixar capturar (sic).

Com isso, concebe-se a internet como um dos dispositivos mais manipu-


ladores da atualidade, capaz de interferir nos posicionamentos e até em pes-
quisas pessoais de muitos indivíduos. É por meio da utilização desse disposi-
tivo, presente em outros dispositivos como os computadores e os celulares,
que a propagação exacerbada dos memes aconteceram e acontecem.
308
Os compartilhamentos e curtidas são dispositivos criados para que as plataformas de
redes sociais consigam melhor entender e prever os gostos e hábitos de consumo do
indivíduo e, com isso, otimizar a oferta de produtos a ele (CARAH; ANGUS, 2018).
Não é difícil concluir, portanto, que parte considerável das práticas de sociabilidade
que estabelecemos na contemporaneidade é dependente ou mesmo decorrente de al-
goritmos opacos que têm como meta central a potencialização de reações e relações
afetivas dos sujeitos, como forma de gerar maior lucro para as empresas que os criaram
(CHRISTL; SPIEKERMAN, 2016). (CAMPANELLA, 2018, p. 12)

Assim, Campanella (2018) afirma ainda que a subjetividade é constituída


por dois lados: a comunicação e o conhecimento. Os dispositivos midiáticos
permeiam a vida dos indivíduos e permitem que possam fazer escolhas para
que o indivíduo se reconheça no outro. Isso só é possível por meio da comu-
nicação existente e da dependência do autoconhecimento desse indivíduo,
já que ele se reconhece no outro. “A falha no reconhecimento não é simples-
mente atrelada ao desprezo ou desvalorização de um outrem, ela é a própria
negação do “status de parceiro pleno [deste outrem] na interação social e
o que impede sua participação como um igual na vida social”” (FRASER,
2000, p.113 apud CAMPANELLA, 2018, p. 5).
Quando o reconhecimento de fato ocorre, há um compartilhamento acele-
rado de discursos gerados virtualmente, mas que, rapidamente, viram discur-
sos que circulam nas rodas reais de amigos, já que, na interação face a face, há
a retomada dos assuntos propagados por meios desses dispositivos. Pode-se di-
zer que essas mídias, sejam elas televisivas ou não, colaboram de forma positiva
e/ou negativa na formação da subjetividade dos indivíduos, tendo em vista
que permitem que o sujeito possa se reconhecer por meio dessa subjetividade.

[...] uma vez que sou reconhecido por um outro, eu me aproximo deste outro e, ao
mesmo tempo, ganho maior consciência acerca das características e particularidades
de minha identidade, que, por sua vez, também passam a demandar reconhecimen-
to. (CAMPANELLA, 2018, p. 7)

Sendo assim, acredita-se que, desde os primórdios, os indivíduos são ca-


pazes de se relacionarem por meio daquilo com o qual possuem afinidade,
ou seja, relacionam-se por acreditarem nas mesmas condutas, nos mesmos
gostos, na mesma visão ética e social. Logo, estreitam relações com aqueles
que agem da mesma forma, constituindo uma espécie de bolha social. “(...)
a condição de ser objeto é fundamental para que o indivíduo tome consci-
ência de si mesmo” (CAMPANELLA, 2018, p. 7).
309
Dessa forma, a bolha social seria considerada como as inter-relações entre
os sujeitos comunicantes que pensam e se comportam de forma semelhan-
te, fazendo com que aquele que pensa distinto não se encaixe ou não possa
fazer parte desse contexto social. Os integrantes que participam da mesma
esfera comunicativa tendem a proferir, por meio de interdiscursos, discursos
ditos pela grande massa que ‘direciona’ o raciocínio seguido por esses indiví-
duos. Sobottka (2015, p. 23-24) afirma que Honneth pretende demonstrar
que o tipo de reconhecimento

[...] característico das sociedades tradicionais é aquele ancorado na concepção de


status: em sociedades desse tipo, um sujeito só consegue obter reconhecimento ju-
rídico quando ele é reconhecido como membro ativo da comunidade e apenas em
função da posição que ele ocupa nesta sociedade.

A sociedade brasileira é norteada por esse tipo de reconhecimento, tendo em


vista que o “estar” é mais valorativo que o “ser”. Por isso, o avanço da globali-
zação e a era tecnológica propiciaram o surgimento de grandes bolhas virtuais,
com o auxílio dos chamados ‘algoritmos90’ , que são capazes de fazer escolhas
virtuais pelos usuários dos dispositivos. Sendo assim, o surgimento da internet
contribuiu para que as inter-relações passassem a ocorrer de forma latente, si-
mulando as relações éticas estabelecidas por esses indivíduos. Entretanto, para
Campanella (2018), a população utiliza as redes sociais com o intuito de cons-
truir uma identidade no meio do mundo da mídia, ou seja, ao compartilhar
memes com determinado posicionamento político, por exemplo, o usuário
estaria construindo sua figura pública por meio dessas mídias.
Assim, os algoritmos são uma espécie de conexão e ligação de dados pela
rede que faz com que só se possa ver e reconhecer aquilo que essas ‘máqui-
nas’ acreditam ser do interesse dos usuários. Por isso, muitas vezes, ao acessar
à internet, a população acaba se deparando com algumas informações já soli-
citadas por elas, mesmo que no atual momento não necessitem mais dessas
informações. Jesus e Brito (2009, p. 133) vão dizer que os algoritmos são “(...)
uma sequência lógica de passos que visa atingir um objetivo bem definido”.

Na computação, algoritmo é uma entidade fundamental, que está na base de pra-


ticamente todas suas práticas (GOFFEY, 2008). Se entendermos algoritmos como
um conjunto de instruções que fazem um computador realizar determinada tarefa,
é possível afirmar que “Sem o algoritmo, não poderia haver computação” (GOF-
FEY, 2008, p. 16). Portanto, esse conceito formal de algoritmo é uma ideia abstra-
90
De percepções pessoais sobre os usos das plataformas digitais até a cobertura jornalística sobre eleições presidenciais, algoritmos têm ocupa-
do a posição de sujeito nesses enunciados (ZIEWITZ, 2015), demonstrando a presença de processos computacionais nas práticas cotidianas.
(ARAUJO, 2018, s/p.)
310
ta por trás de praticamente todos os programas de computador que conhecemos
(SKIENA, 2008). Ao mesmo tempo, nos mecanismos ditos algorítmicos com que
interagimos diariamente, algoritmos são apenas parte desses processos, mas nunca o
todo (DOURISH, 2016). (ARAUJO, 2018, s/p)

Com isso, percebe-se que a forma de reconhecimento passa a se diferen-


ciar de um reconhecimento que existia antes da era tecnológica, já que as
pessoas reconheciam às outras de forma real e, no atual cenário, passam a
fazê-lo por meio das escolhas algorítmicas que ocorrem na vida virtual. Mas,
ainda assim, as escolhas iniciais para um reconhecimento parte do integrante
que utiliza esses dispositivos com acesso à internet. “Apesar de possuírem
implicações sociais e políticas bastante diferentes, ambas as estruturas de re-
conhecimentos compartilham elementos comuns em seus sistemas morais,
que permitem o indivíduo se perceber como membro útil da sociedade”
(CAMPANELLA, 2018, p. 2).
Por isso, é possível dizer que o reconhecimento é uma relação identitária, as
pessoas se identificam e se relacionam. Sendo assim, o reconhecimento só é capaz
de acontecer através da linguagem, por meio das relações dialógicas que estabele-
cemos. Dessa forma, pode-se dizer que o reconhecimento é a presença do outro
em seus próprios discursos, levando em consideração as relações interdiscursivas
presentes na linguagem que há impregnada no bojo da sociedade.
Como visto, a necessidade do reconhecimento, ligado ao status social, faz
com que a sociedade passe a utilizar as redes sociais para dar lugar a novas
formas de se reconhecer, como é o caso do gênero meme, que utiliza da imi-
tação e satirização para polarizar as relações sociais de forma virtual “coman-
dada” por muitos algoritmos.

Meme: um aliado criativo


Os gêneros discursivos estão presentes em todas as situações de comuni-
cação, é por meio deles que os indivíduos se manifestam e se comunicam,
permitindo a interação através de enunciados orais, escritos ou visuais. De
acordo com Bakhtin (2011), os gêneros podem ser caracterizados por seu
conteúdo temático, estilo e a construção composicional que são indissolú-
veis e determinados pelas esferas discursivas.
O autor afirma que os gêneros podem ser divididos por meio da dicoto-
mia primário versus secundário, em que o primeiro é tratado como simples e
o segundo como complexo. Simples porque são construídos nas condições
311
discursivas imediatas, complexos porque aparecem em condições de conví-
vio cultural mais complexo.
Deste modo, o gênero em questão, meme, é um gênero originado das rela-
ções de comunicação entre os indivíduos que utilizam a tecnologia e as redes
sociais para interagir. Esse gênero é composto, normalmente, por uma parte
verbal e uma parte visual, em que a leitura de ambas as parcelas é elementar
para trazer significado e sentido em sua interpretação. “(...) os memes da in-
ternet são unidades de cultura popular, artefatos simbólicos multimodais,
que circulam, são imitados e transformados por usuários dos ambientes vir-
tuais, criando uma experiência cultural compartilhada” (SHIFMAN, 2003
apud PORTO, 2018, p. 109).
Deve-se, portanto, considerar o meme não apenas como uma imitação de
forma, estilo ou conteúdo, mas também como um elemento que faz circular
culturas e crenças em comum. Outra característica marcante dos memes é a
capacidade de reconhecimento, já que os indivíduos podem se reconhecer
em diversos memes ao ler determinada frase ou imagem.
Porto (2018) afirma que, para Shifman (2003), a leitura dos memes deve ser
feita em três dimensões que podem ser imitadas: conteúdo, forma e a posição.
O conteúdo seria ideias e ideologias presentes na profundidade textual, perce-
bida por meio das inferências. A forma se relaciona à utilização de elementos
icônicos, plásticos ou físicos, ou seja, sua organização superficial. Já a posição
está relacionada à maneira com que o leitor(a) produz significados por meio tan-
to da forma, como do conteúdo, ou seja, está relacionado à Semântica Global
(Maingueneau 2008) que todo texto pode traduzir por meio de seu Simulacro.
Do grego, a palavra mimese, de acordo com Bechara (2009), significa imi-
tação de outra pessoa, pode-se relacionar ao que Charaudeau e Mainguene-
au (2014, p. 255) dissertam acerca do conceito de mímica, “[...] qualquer
movimento [...] que sobrevém no decorrer de uma interação”. Logo, para
Souza (2014, p. 157), “Memes são compreendidos como palavras, imagens,
fotos, bordões, desenhos, ideias, fragmentos de ideias [...] é tudo que se mul-
tiplica a partir da cópia/imitação”. Assim,

Em uma pesquisa no site de busca Google os resultados a palavra-chave “meme”


remontam ao termo cunhado em 1976, por Richard Dawkins, no livro “O gene
Egoísta”. Etimologicamente, “meme” vem do grego “mimema” e significa “imita-
ção/algo que é imitado”. O termo foi cunhado em inglês por Dawkins, pensando na
semelhança com as palavras “gene” e “memória”. (SOUZA, 2014, p. 159)
312
Por meio deste breve resumo acerca do meme, conclui-se que é um gênero
atual que está presente no cotidiano dos brasileiros como forma de expres-
são e denúncia a respeito da situação política e social vivenciada pela popu-
lação. Sua criação é voltada à simulação por meio de expressões linguísticas e
não linguísticas capazes de suscitar diferentes emoções, a depender do leitor.

A ‘semanticidade’ discursiva por meio do


linguístico e do não linguístico
Todos os discursos são materializados por meio do uso da linguagem, é ela
que proporciona a pluralidade de significados a depender o contexto situa-
cional da enunciação. Dessa forma, é fácil compreender que, num texto, a
utilização de elementos linguísticos é fundamental na produção de uma Se-
mântica Global, ou seja, o todo interpretativo que se compreende enquanto
leitor do discurso.
Logo, para Maingueneau (2008), não há apenas um elemento que seja su-
ficiente para a produção de significado, mas sim uma relação entre diferentes
elementos que são capazes de se relacionarem para projetar um ponto de vista
enunciativo, ou até mesmo, defender tal visão de mundo. Além da interdis-
cursividade, fator crucial para que um discurso seja discurso, há outras cate-
gorias que propiciam uma análise de diferentes discursos, permitindo que se
revele alguns questionamentos que ficam imbricados por um Simulacro.
Para o autor, essas categorias não são únicas, exclusivas ou modelos a se-
rem seguidos sem flexibilidade, pelo contrário, Maingueneau (2008) mostra
que, por meio de alguns elementos linguísticos, é possível perceber a inten-
cionalidade discursiva presente no próprio texto, ou seja, a presença do Ou-
tro no Mesmo.
A começar, ele apresenta a importância da intertextualidade, relações le-
gítimas que se estabelecem entre os textos que, para o autor, se difere de
intertexto, ou seja, o discurso citado efetivamente de um texto em outro tex-
to. Ademais, Maingueneau (2008) afirma que as relações intertextuais que
acontecem na memória discursiva de um indivíduo poder-se-ia considerar
como uma intertextualidade interna. Já as relações que são passíveis de reco-
nhecimento com outros campos discursivos seriam classificadas como uma
intertextualidade externa.
Outra categoria, apontada por Maingueneau (2008), se refere ao vocabu-
lário ou ao código linguageiro, para ele, não é pertinente falar acerca de um
313
léxico ou outro, mas sim das diferentes possibilidades de sentidos apresen-
tadas por um único léxico, por exemplo, a depender do contexto em que
foi utilizado. Ou a diferentes léxicos que podem ditar uma mesma situação.
Dessa forma, as palavras são utilizadas para favorecer um discurso em si.
O tema para Maingueneau (2008) é algo delicado de dissertar, tendo em
vista que envolve a mesma necessidade contextual do vocabulário. Às vezes,
um texto abarca diversos temas e foca apenas em um, dependendo do dire-
cionamento discursivo dele. “O sistema de restrições de cada discurso deve
poder explicar essas divergências significativas, sendo que um tema desen-
volvido por um só discurso estará logicamente em estrita conformidade com
ele” (MAINGUENEAU, 2008, p. 83).
O estatuto do enunciador e do destinatário está relacionado à legitimida-
de tanto da instância de produção quanto da instância de recepção. Ou seja,
a subjetividade do texto poderá se dar a depender da competência discursiva
dessas esferas.
A enunciação é pretendida por meio de uma dêixis enunciativa espacio-
temporal, não se tratando especificamente das datas e locais efetivos que se
produzem os textos, mas sim ao momento e ao ambiente que se referem os
discursos. “Essa dêixis, em sua dupla modalidade espacial e temporal, define
de fato uma instância de enunciação legítima, delimita a cena e a cronologia
que o discurso constrói para autorizar sua própria enunciação” (MAIN-
GUENEAU, 2008, p. 89).
O discurso, para Maingueneau (2008), é uma maneira de se colocar diante
da sociedade, por isso, ele é demarcado pelo estatuto do enunciador ou pela
projeção de um ethos. Assim, é mostrado apenas o lado que o enunciador
deseja que o destinatário reconheça ou conheça. Nem sempre o ethos discur-
sivo é o ethos existente.
“O ethos discursivo é coextensivo a toda enunciação: o destinatário é ne-
cessariamente levado a construir uma representação do locutor, que este úl-
timo tenta controlar, mais ou menos conscientemente e de maneira bastante
variável, segundo os gêneros de discurso” (MAINGUENEAU, 2010, p. 79).

A instância subjetiva que emerge da enunciação implica uma “voz”, associada a um


“corpo enunciante” especificado sócio-historicamente: uma maneira de circular,
uma disciplina tácita do corpo que o destinatário constrói apoiando-se num con-
junto difuso de estereótipos, avaliados positiva ou negativamente. O discurso, atra-
vés da leitura ou da audição, faz com que o destinatário partilhe certo movimento
314
do corpo, em um processo de “incorporação” que implica certo “mundo ético”,
associado a comportamentos estereotípicos. Assim, o “conteúdo” do enunciado
suscita adesão por meio de uma maneira de dizer que é também uma maneira de
ser. (MAINGUENEAU, 2010, p. 80)

Além dessas categorias, Maingueneau (2008) vai apresentar o modo de


coesão, elemento responsável pela tessitura discursiva, aquilo que traz ao
discurso a metáfora do “laço” coesivo, produzindo sentido através das rela-
ções anafóricas e catafóricas que se estabelecem na interdiscursividade, tra-
zendo esse encadeamento progressivo à enunciação. Ou seja, a motivação da
escolha lexical dá-se no decorrer do próprio discurso, dando preferência ao
que tornará seu discurso mais coeso e coerente.
Desse modo, compreende-se que o dizer no espaço discursivo vai além da
utilização inofensiva das palavras, mas há uma intencionalidade no dizer mar-
cada não só por uma escolha vocabular, como também pelo modo de como
dizer, o/os tema/as a serem tratados, a intertextualidade capaz de fazer o desti-
natário refletir sobre a enunciação e também a restrição da dêixis enunciativa.
Por meio dessas categorias, o significado global dos discursos apresentados
oral, verbal ou visualmente podem dialogar através do Simulacro que se faz
perceber na junção de todos ou alguns elementos expostos anteriormente.
Sendo assim, a ideia de “simular” é justamente fazer com que as ideias reais e
pretendidas fiquem subtendidas discursivamente, precisando de um “esforço”
mental para desvendar, na cenografia apresentada, o real desejo do enunciado.
Ainda, é importante perceber que os elementos semióticos também podem
conceber diferentes formações discursivas e de diferentes formas. Logo, é pos-
sível notar denúncias sociais também em pinturas e textos que contemplem
linguístico e não linguístico, por exemplo. As categorias da Semântica global
apresentada são predominantes no campo lexical, mas não exclusivo dele; ten-
do em vista que há diversos textos que comunicam de várias maneiras.
Além de tudo, a intersemiose percebida entre os elementos icônicos pro-
porcionam uma captação mais veloz em detrimento de elementos não semi-
óticos, já que, tratando-se de elementos visuais, grande parte dos indivíduos
destinatários são capturados, em princípio, pelo que veem, para depois bus-
car uma profundidade discursiva por meio do que irão ler.
Dessa forma, não cabe chamar de textos apenas aqueles discursos com-
postos por elementos linguísticos, mas também aqueles que projetam uma
discursividade e que correspondam a uma prática discursiva. Ainda, consi-
315
derar-se-á leitor não mais aqueles que leem letras e palavras, mas sim os capazes
de se subjetivar à medida em que compreendem o direcionamento comunica-
tivo de tal informação. Ou seja, ler as cores dos semáforos, por exemplo, impli-
ca um conhecimento discursivo que restringe as opções de tráfego.
Em Leitura de Imagens: Como Eu Ensino, Lúcia Santaella (2012) apre-
senta quatro categorias semânticas para que se possa analisar textos que sur-
gem num mesmo suporte. Para a autora, essas categorias podem acontecer
sob os princípios da dominância, da redundância, da complementaridade
ou da discrepância (ou contradição). Sendo assim, a dominância transcorre
por meio da superioridade informativa do visual em detrimento do verbal,
como acontece nas pinturas. A relação de redundância ocorre quando há a
presença de um texto visual apenas para reforçar a temática presente em um
enunciado verbal ou representar situações presentes no enredo de uma nar-
rativa, como podemos observar em textos utilizados para atividades de leitu-
ra e interpretação em livros didáticos de língua portuguesa, já que podemos
encontrar o mesmo texto em outros suportes sem a imagem/ilustração que
foi alocada próximo a ele. A relação de complementaridade é aquela em que
há a necessidade de se efetuar a leitura de ambas as parcelas de forma simul-
tânea, ou seja, tanto o verbal quanto o visual são efetivamente importantes
para sua leitura, como no caso das HQs, tirinhas, livros ilustrados, memes
etc. Por último, a relação de discrepância ou contradição, em que a parcela
verbal nada tem a ver com a parcela visual - parece que as informações foram
alocadas de forma equivocada.
Sendo assim, por que não atribuir essa maleabilidade linguística aos ele-
mentos não linguísticos que são alocados como destaque em diferentes si-
tuações? As atividades de interpretação e compreensão de texto dos livros
didáticos de língua portuguesa, por exemplo, ao apresentarem ilustrações
e imagens que caracterizam fragmentos do texto ou sua temática, de certo,
funcionam como destacabilidade, e contribuem para que o discente possa
memorizar aquilo que foi considerado relevante pela parte destacada.
A utilização de imagens e ilustrações no cotidiano de todos os indivíduos
não é nova, mas a valorização da discursividade presentes em elementos não
linguísticos, de certa forma, é. Por isso, estudar, refletir e criticar acerca da
discursividade presente nesses elementos faz-se necessário, tendo em vista
que a era midiática propicia a propagação de diferentes gêneros que utilizam
as imagens como elementos de captação destacáveis.
316
Caminhando pelos memes
A utilização de memes como forma de protesto aos acontecimentos polí-
ticos do país é constante. Tendo em vista isso, o corpus qualitativo para aná-
lise será composto por dois memes retirados da internet com a finalidade de
mostrar como se dá discursivamente os enunciados verbo-visuais que tra-
zem jocosidade às redes sociais.

O meme apresentado anteriormente é composto em sua parcela verbal


pela expressão “A foto oficial do Temer ficou ótima”, e na parcela visual, po-
demos notar o corpo do ex-presidente com a sua mão no lugar de seu rosto.
Assim, para que possamos compreender e interpretar esse jogo discursivo é
necessário que se leiam ambas as parcelas do texto.
Esse meme foi criado após a ocupação do Temer ao cargo de Presidente
da República em meados de 2016, já que sua foto oficial com a famosa faixa
presidencial pareceu estar com uma quantidade excessiva de photoshop. Por
isso, os internautas aproveitaram o momento para a criação exacerbada de
memes debochando dele, tendo em vista que, grande parte da população
brasileira, estava em desacordo com sua posse.
De certo, o meme, além de trazer graça às timelines, também aponta mui-
tas críticas a diferentes questões sociais, já que, ao afirmar no meme apre-
sentado anteriormente, por exemplo, que a foto do Temer ficou ótima, há,
claramente, uma ironia por parte do enunciador, pois, ao lermos o texto
visual, percebemos sua mão em um lugar inesperado. É essa relação semân-
tica de complementaridade, apontada por Santaella (2012), de que se trata,
também, o modo de coesão apresentado por Maingueneau (2008) em suas
categorias analíticas. Assim, esse enunciado só possui sentido completo pela
leitura e retomada tanto dos elementos verbais quanto do elemento visual.
Ademais, como propósito, o vocabulário “ótimo” foi utilizado, justamen-
317
te, para ridicularizar o então presidente, tendo em vista que a utilização da
metonímia visual permite a interpretação da sátira prevista. Também fica
clara a temática presente no enunciado: a política num âmbito mais geral,
e a falta de conteúdo nas falas do ex-presidente, enfatizada pela alocação de
sua mão no lugar de seu rosto. Provavelmente, fazendo alusão a ditos popu-
lares como: “converse com a minha mão”; ou enfatizando a insignificância
das falas de Temer. Ainda ridicularizando o fato de que em seus discursos,
estava sempre gesticulando com as mãos.
O estatuto do enunciador e do destinatário é legitimado por um contrato
virtual feito pelos usuários a partir do momento em que curte, comenta ou
compartilha tal informação. Assim, ao passar para frente tal enunciado, o
internauta acaba por se reconhecer naquela informação, dessa forma, esse
gênero propicia também o reconhecimento entre os navegadores. O modo
de enunciação é marcado pela relação intersemiótica do texto. Observemos
mais um exemplo:

Assim como o texto 1, o texto 2 também é composto por parcela verbal e parcela
visual, por isso pode ser categorizado como uma relação semântica de complemen-
taridade. Na parte verbal, lemos: “Algo de errado não está certo na foto oficial de
Michel Temer. Decifrem...”. E, na parte visual, vemos o ex-presidente com a famo-
sa faixa presidencial, mas seu rosto está, levemente, puxado para os lados.
318
A função do vocabulário utilizado na produção desse sintagma é uma re-
lação lexical paradoxal, consagrada por antônimos como certo versus errado.
Mas notamos que tanto o vocabulário “errado” quanto o sintagma “não está
certo” designam coisas ruins, ou seja, estão na mesma esfera de significação.
Logo, infere-se que tanto a foto como o fato de o Temer ocupar a presidên-
cia eram “coisas” erradas.
Ao interpretar a imagem de Temer com o rosto puxado para o lado, po-
demos inferir que o criador do meme pode ter pensado de duas formas ao
fazer isso com a imagem. Apresentando a similaridade de Temer aos palha-
ços como Carequinha, Bozo, Patati e Patata ou que o ex-presidente se confi-
gurou, no período político, como um vilão para o Brasil, nesse caso, há uma
relação de intertextualidade com o Coringa, vilão do filme Batmam.
A intertextualidade interna, proposta por Maingueneau (2008), faz com
que possamos remeter essa personalidade política a outros vilões do cine-
ma ou a outros palhaços consagrados pela mídia. Dessa forma, percebe-se
que tanto as categorias analíticas, como as relações semânticas propostas por
Santaella (2012) contribuem de forma efetiva para “desmanipular” infor-
mações que parecem ser passadas de forma velada. A relação entre verbal e
visual é inextricável na produção de sentido dos enunciados como os memes.

Algumas considerações
O estudo de “novos” gêneros é substancial para a compreensão desse con-
temporâneo mundo em que habitamos, pois é através dessas esferas comu-
nicativas que há a inter-relação e o diálogo entre a população. Os principais
fatores da utilização da linguagem são a maleabilidade e a possibilidade de
adequação da língua; é por meio da interação que há a evolução social.
O avanço tecnológico e a internet propiciaram o surgimento de diversos
gêneros textuais, que são utilizados como elementos de comunicação e, de
certa forma, contribuem para a tomada de posicionamento político de mui-
tos internautas. Assim como as notícias jornalísticas e as mídias televisivas,
os memes são capazes de subjetivar muitos leitores.
Dessa forma, alguns postulados da teoria de Maigueneau (2008), apre-
sentados de forma suscinta, contribuem para desvelar os posicionamentos
políticos presentes nos enunciados por meio da temática que expressa, bem
como do uso de vocabulários, do estatuto do enunciador e do destinatário,
das relações intertextuais e do modo de coesão que, numa espécie de laço
319
coesivo com os elementos visuais, propõe uma interpretação e compreensão
total do texto. Ainda, as relações semânticas propostas por Santaella (2012)
contribuem para a propagação da importância da leitura de elementos não
verbais que, juntamente aos elementos verbais, confluem ao dito o que pa-
rece estar subentendido.
No atual cenário brasileiro, resolver as questões políticas que se instauram
parece impossível, mas analisar, refletir e criticar os elementos discursivos
presentes em diferentes enunciados é substancial para que possamos come-
çar a compreender este contemporâneo mundo em que habitamos.

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321
“HÁ DE TER GRAÇA NO FIM, QUANDO COMPREENDEREM QUE
O LIVRO NÃO PRESTA PARA NADA”: PARA UMA ANÁLISE DA IMA-
GEM DO ESCRITOR NA CORRESPONDÊNCIA
DE GRACILIANO RAMOS91

Thayane Verçosa92
UERJ

Resumo: Tomando como ponto de partida o texto “Graciliano: das pérolas


às críticas” (2006), no qual Letícia Malard faz uma série de considerações acer-
ca do processo de composição de Graciliano Ramos a partir da leitura de suas
cartas, o presente artigo busca fazer um levantamento inicial, à luz de Pageaux,
de inúmeros elementos que compõem a imagem do escritor e o imaginário da
escrita nas correspondências do autor. Para isso, duas coletâneas epistolares
– Cartas: Graciliano Ramos (1981) e Cartas inéditas de Graciliano Ramos a
seus tradutores argentinos Benjamín de Garay e Raúl Navarro (2008) – são
brevemente lidas e analisadas.

Palavras-chave: Graciliano Ramos; cartas; imagem do escritor; imaginário


da escrita.

Introdução

Quem quiser acompanhar a gênese da obra de Graciliano, seu difícil processo de cria-
ção literária, encontrará, nas cartas e em raros depoimentos ou entrevistas que ele dei-
xou algumas informações preciosas a respeito. Homem contido, de medidas palavras
na literatura e na vida, falou e escreveu muito pouco sobre sua obra, e a muito pouca
gente (MALARD, 2006, p. 204; grifo nosso).

O trecho em epígrafe foi retirado do texto “Graciliano: das pérolas às crí-


ticas”, capítulo do livro Literatura e dissidência política (2006), de Letícia
Malard. Nele, a autora se propõe a analisar a produção epistolar de Gracilia-
no Ramos, bem como alguns depoimentos de pessoas que conviveram com
ele, a fim de mostrar, em diferentes exemplos, o modo como o mencionado
escritor concebia o seu processo de composição. Existem duas obras que re-
únem as cartas do autor: Cartas: Graciliano Ramos (1981) e Cartas inéditas
91
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de
Financiamento 001.
92
Mestranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada no Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ, com bolsa da CAPES.
Contato: thayanevercosa@hotmail.com
322
de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos Benjamín de Garay e Raúl
Navarro (2008) Enquanto a primeira traz correspondências destinadas ao
melhor amigo, aos pais, aos irmãos, à esposa, aos filhos, etc., que cobrem o
intervalo de 1910 até 1952, a segunda, como o próprio título adianta, traz
cartas do autor de S. Bernardo a seus tradutores argentinos.
O objeto do texto de Malard é a primeira das mencionadas coletâneas,
uma vez que a segunda ainda não havia sido publicada quando seu livro
saiu, em 2006. Ao analisar e destacar passagens relevantes de algumas cartas,
a autora assevera que:

Ao afirmar que a poesia/literatura tem de pautar-se pela verossimilhança, refletir o


real, Graciliano adiantava, aos vinte e um anos, sua posição diante da própria cria-
ção literária, com a publicação do romance Caetés, vinte anos depois. Para o escritor,
a experiência vivida, a realidade que o cerca, a socialização do homem em seu con-
texto histórico-geográfico, o Nordeste serão sempre a matéria-prima da sua obra.
Caetés é a reconstrução literária de Palmeira dos Índios, assim como S. Bernardo o é
da Maniçoba, ou do sítio de seu Paulo Honório conforme diz em Infância. Angús-
tia reconstrói fragmentos de Maceió. Vidas secas e Insônia são flashes, lembranças a
recuperar vivências em passado remoto ou próximo. Já nas crônicas-artigos de Li-
nhas tortas, há 13 textos datados de 1915 e escritos para o periódico Paraíba do Sul.
Neles, a influência e o clima cultural da capital da república de princípios do século
XX estão evidenciados (Ibid., p. 201).

A autora argumenta que, desde muito jovem, Graciliano já tinha consci-


ência de inúmeros elementos que viriam a fazer parte de sua produção lite-
rária, “a experiência vivida, a realidade que o cerca, a socialização do homem
em seu contexto histórico-geográfico, o Nordeste” (Ibid., p. 201), bem como
estabelece a relação entre as obras, posteriormente escritas, e as cidades em
que o autor viveu, reforçando o próprio argumento de que a produção do
autor se pauta pela experiência vivida. A partir da leitura das cartas ela tam-
bém percebe traços da sua escrita literária: “[d]elineia-se principalmente o
futuro escritor que já treinava o manejo da ironia e da secura na linguagem,
para aparecer no palco da literatura com seu primeiro livro somente na idade
madura, aos quarenta e um anos” (Ibid., p. 202).
Malard assegura, portanto, que as cartas são um meio de acompanhar a
gênese das obras do autor, bem como um canal através do qual a opinião
dele diante dos próprios escritos aparece:

A análise dessas cartas revela um Graciliano oscilante entre amargo pessimismo e


extrema euforia em relação a seu processo criador e à avaliação da própria obra [...].
323
Dizer que eram decorrentes apenas do seu bom ou mau humor, do pessimismo ou
da modéstia, é simplificar demais a questão. Dizer, também, que ele era severo con-
sigo mesmo quando se embriagava, não dá conta do âmago da questão.
As opiniões elogiosas impregnam-se do contexto da Revolução de 1930, diminuin-
do ironicamente o significado desta [...].
As opiniões antielogiosas do tipo “o livro não presta” vão aparecer num contexto
que envolve submeter o romance à avaliação alheia, expondo o autor a críticas que
ele mesmo, por temperamento, pretende antecipar: do editor, dos leitores conter-
râneos seus, da esposa e dos propagadores da publicação remetida ao Rio, a granel
(Ibid., p. 205-206; grifo nosso).

A síntese de algumas questões exploradas pela autora evidencia diferentes


aspectos e características da escrita literária de Graciliano Ramos, resgata-
dos e analisados a partir da correspondência do autor. Consideramos, assim,
que tais elementos são essenciais para que pensemos na constituição da ima-
gem do escritor a partir de sua produção epistolar, com base nos conceitos
de imagem “A imagem [...] é um conjunto de ideias recolhidas no âmbito
de um processo de literarização, mas também de socialização” e de imagi-
nário “A imagem conduz a cruzamentos problemáticos, nos quais aparece
como elemento revelador, particularmente esclarecedor do funcionamento
de uma sociedade em sua ideologia, seu sistema literário [...] e em seu imagi-
nário” (PAGEAUX, 2011, p. 110) de Daniel-Henri Pageaux.
Como, para Pageaux, a imagem “em um texto é primeiramente um con-
junto de palavras, um léxico para dizer o Outro”, convém, portanto, “identi-
ficar o campo lexical, as possíveis isotopias, os processos de comparação que
são espécies de equivalentes ou de aproximações [...], ser atento à adjetiva-
ção, expressão elementar do julgamento de valor e de hierarquização” (Ibid.,
p. 122). Assim, “como [o] primeiro nível de estudo, primeiro e fundamental
[é] a palavra, e definimos uma primeira configuração da imagem (textual)
e do imaginário como sendo aquele do léxico, que solicita levantamentos
lexicais, identificação de campos semânticos, recomposição de possíveis iso-
topias” (Ibid., p. 115), para que realizemos uma breve análise da imagem
graciliânica do escritor, o qual, por sua vez, revela um determinado imaginá-
rio da escrita, nas seguintes seções rastrearemos os elementos que tratam do
processo de composição nas cartas de Graciliano Ramos.

“É aqui no duro, arrumando frases com dificuldade”


(Graciliano Ramos, 1937)
324
Em suas correspondências, Graciliano frequentemente fala sobre seu pro-
cesso de escrita, algo que não se restringe à produção de seus livros, como
percebemos em uma carta enviada a J. Pinto Mota Lima Filho, grande ami-
go, em 8 de fevereiro de 1914: “Faz quase duas semanas que não faço nada
– nunca estive tão burro. Coisa alguma pode deter meu pensamento diante
da tira de papel” (RAMOS, 1982, p. 23; grifo nosso). Em outra carta, datada
de 10 de julho de 1915, enviada a Leonor Ramos, sua irmã, ele diz:

Nem sempre estamos com disposição para escrever coisas amenas. [...]. Eu, minha
querida amiga, tenho andado com alternativas de fecundidade e de estupidez, o que
não é mau de todo. Imagina que os miseráveis traços que tens tido o desgosto de ler
não têm sido inteiramente desagradáveis. Isso não é Arte, é claro, nem mesmo chega
a revelar talento – uma certa habilidade, talvez (Ibid., p. 60; grifos nossos).

Cerca de quinze anos depois das cartas enviadas ao amigo e à irmã, Graci-
liano parece ainda ter a mesma opinião sobre si mesmo, como revela em uma
carta enviada a Heloísa Ramos, sua segunda esposa, em 11 de outubro de
1930: “Agora que estamos em sossego, talvez seja possível trabalhar. Estou
com isto por dentro da cabeça em desgraça. E burro, minha filha, de uma
burrice horrível. Fui hoje escrever uma besteira e não pude” (Ibid., p. 117;
grifos nossos), o que se mantém com o passar do tempo, como mostra a car-
ta também destinada a Heloísa Ramos, no dia 11 de abril de 1937:

É bom não contar com jornal, porque não farei nunca um artigo direito. E os conto-
zinhos que tenho arranjado saem com dificuldade imensa: uma semana de trabalho
às vezes. Não desanimo, mas realmente isto é pau. [...]. Uma coisa me surpreende:
tenho sonhado constantemente com meu pai. Nunca penso nele, na vida que tenho
não me sobra tempo para sentimentalismo. É aqui no duro, arrumando frases com
dificuldade (Ibid., p. 197-198; grifos nossos).

As passagens selecionadas de quatro cartas tão cronologicamente distan-


tes, de 1914 a 1937, evidenciam a recorrente concepção da produção como
um trabalho árduo. A frequente adjetivação de “burro” (Ibid., p. 23; 117), o
ato de chamar sua escrita de “miseráveis traços” (Ibid., p. 60), que despertam
desgosto no leitor, ou a garantia de que não tem tempo para sentimentalis-
mo uma vez que a vida é levada “no duro, arrumando frases com dificulda-
de” (Ibid., p. 198) apontam para a concepção do fazer literário como um
trabalho de muita dureza, uma vez que o autor não trata sua produção escri-
ta como fruto de inspiração, ou como produto natural de seu talento; pelo
325
contrário, ele diversas vezes ressalta e enfatiza a sua suposta falta de talento
e a consequente dificuldade inerente ao ato de escrever, o que resultaria nas
obras majoritariamente qualificadas de modo negativo por ele mesmo.
Na carta do dia 26 de setembro de 1930, à Heloísa Ramos, ao tratar de um
livro que estava escrevendo, ele diz:
Fiz um capítulo de vinte e cinco folhas e mandei uma carta ao Rômulo. Peça aos
santos que esta encrenca termine daqui para novembro. E peça também que não me
apareçam outros orçamentos e artigos de jornal [...]. Há de ter graça no fim, quando
compreenderem que o livro não presta para nada (Ibid., p. 111; grifos nossos).

Em 4 de outubro do mesmo ano, também para Heloísa, ele assegura: “À


noite, se o Aloísio consentir, vou mexer num capítulo, a ver se mando logo
para o Rio aquela encrenca” (Ibid., p. 115; grifo nosso). Em 7 de maio de
1937, à mesma remetente, ele confessa:

Não vale nada, é uma desgraça. Mas sou obrigado a mandar datilografá-la e hoje
à tarde preciso entregá-la ao Otávio Tarquínio. [...]. Apesar da burrice imensa em
que me acho, tenho de arranjar esta semana umas encomendas. Eu desejava que me
dissessem logo que isto não vale nada, que não me pedissem estes horrores (Ibid., p.
199-200; grifos nossos).

Ao tratar sua produção como “encrenca” (Ibid., p, 115), desgraça” (Ibid.,


p. 199), como algo que “não vale nada” (Ibid., p. 199; 200) e que “não presta
para nada” (Ibid., p. 111), opiniões combinadas com a recorrência – como
já mostrado – de se adjetivar como burro e com a garantia de que o ato
de escrever é uma tarefa feita “no duro, arrumando as frases com dificul-
dade” (Ibid., p. 198), a imagem do escritor que vai se construindo é a de
alguém que não concebe o fazer literário como algo natural, como um meio
de expressão da subjetividade, nem como uma necessidade de exposição de
si mesmo; pelo contrário, a imagem de escritor que vai surgindo é a de al-
guém que encara o fazer literário como produto de um trabalho árduo. Em
nenhum momento, Graciliano atribui à escrita a finalidade de expressão da
subjetividade, nem concebe o processo como resultado de uma criatividade
insaciável, nem como algo movido por influências artísticas; o ato de escre-
ver é um trabalho árduo e duro, sem nenhum tipo de idealização, motivado,
na maioria esmagadora das vezes, pela necessidade financeira.
Assim, com tais elementos, a imagem do escritor que vai se desenhando é,
em larga medida, construída a partir de um movimento de rebaixamento das
326
próprias obras e da capacidade produtiva, de modo que a autodepreciação
é um dos pilares de construção de tal imagem. Além dos elementos depre-
ciativos já mostrados, em uma carta enviada à Heloísa, no dia 3 de abril de
1935, Graciliano afirma:

Eu sou um literato horrível, e só dou para isso. Tenho procurado outras profissões. Toli-
ce. Creio que meu pai e minha mãe me fizeram lendo o Alencar, que era o que havia
no tempo deles. O Estado está pegando fogo, o Brasil se esculhamba, o mundo vai
para ume guerra dos mil diabos, muito pior do que a de 1914 – e eu só penso nos
romances que poderão sair dessa fornalha em que vamos entrar. Em 1914-1918
morreram uns dez ou doze milhões de pessoas. Agora morrerá muito mais gente.
Mas pode ser que a mortandade dê assunto para uns dois ou três romances – e tudo
estará muito bem. Por aí vê você que eu sou um monstro ou um idiota. [...].
[...]. Há pouco tempo seu Américo pediu-me para ler uns capítulos do Angústia.
Li, sem entusiasmo, e como ele me dissesse que alguém gostava dos meus livros e
entendia de literatura, passei uma hora convencendo-o de que isto não era possível.
Somos uns animais diferentes dos outros, provavelmente inferiores aos outros, duma
sensibilidade excessiva, duma vaidade imensa que nos afasta dos que não são doentes
como nós. Mesmo os que são doentes, os degenerados que escrevem história fiada, nem
sempre nos inspiram simpatia: é necessário que a doença que nos ataca atinja outros
com igual intensidade para que vejamos nele um irmão e lhe mostremos as nossas
chagas, isto é, os nossos manuscritos, as nossas misérias, que publicamos cauterizadas,
alteradas em conformidade com a técnica [...], hei de fazer sempre romances. Não
dou para outra coisa. Ora aqui há uns dois ou três indivíduos que falam comigo. Aí
não há nenhum. Estou, pois, com vontade de ir para Minas, onde há muitos leprosos.
Talvez encontre outros doentes como eu (Ibid., p. 146-147; grifos nossos).

Em uma só carta, Graciliano se considera um “literato horrível” (Ibid.,


p. 146), e garante que “só dou para isso” (Ibid., p. 146), mesmo que ve-
nha procurando outras profissões. Pouco depois, mais do que se considerar
como um fracassado na literatura, ele estende sua visada a todos os literatos,
deixando de tratar apenas de si mesmo, e afirma que eles são “uns animais
diferentes dos outros”, “duma sensibilidade excessiva, duma vaidade imensa
que nos afasta dos que não são doentes como nós” (Ibid., p. 147). Além de
colocar os literatos na categoria de animais, Graciliano afirma: “é necessário
que a doença que nos ataca atinja outros com igual intensidade para que
vejamos nele um irmão” (Ibid., p. 147), de modo que eles vão sendo carac-
terizados como animais e como doentes. Contudo, ao mesmo tempo em
que afirma que os literatos são vítimas de uma doença, são “leprosos”, e as
produções escritas são “chagas”, o que aponta para a ideia de que eles são
vítimas de algo independente da vontade deles e que os ataca, Graciliano
327
também garante que os manuscritos são “as nossas misérias, que publica-
mos cauterizadas, alteradas em conformidade com a técnica” (Ibid., p. 147),
evidenciando a valorização da técnica. Ao falar que os literatos são vítimas
de uma doença, a escrita é tratada como um mal natural e inevitável, porém,
ao falar que as chagas são alteradas em conformidade com a técnica, ou seja,
ao garantir que as feridas não são expostas diretamente, mas, tratadas, caute-
rizadas e melhoradas para virem a público, controlando e tratando esse mal,
muito mais do que não idealizar o fazer literário ou atribuí-lo à inspiração,
uma vez que este é uma patologia, compreendida somente pelos também
doentes, o que se evidencia é a concepção do fazer literário como produto
de técnica, como um trabalho.
Não é surpreendente que um autor que se refira a suas obras como “en-
crenca”, “chagas”, etc., e que se chame de “burro”, de “idiota”, de “literato
horrível”, além de outros recursos utilizados para autodepreciação, reaja a
notórios elogios, como conta à sua esposa, em uma carta enviada no dia 14
de fevereiro de 1937, do seguinte modo:

Quinta-feira tive na Avenida uma prova do exagero e da insinceridade dos paulistas.


Oswald de Andrade afirmou-me que Angústia havia abafado a banca [...] e que ago-
ra era um trabalho sério escrever no Brasil. Para não fazer coisa que se assemelhasse
àquilo, não valia a pena escrever. Comparou o troço com obras grandes da Europa e dos
Estados Unidos. Quis saber a minha maneira de trabalhar e perguntou quantos anos
tinha gasto para fazer o livrinho. Enfim uma série de conversas que, se fossem levadas
a sério, me encheriam de vaidade. Não foram nem encheram, graças a Deus, mas é
possível que o romance não seja mal recebido em S. Paulo (Ibid., p. 174; grifos nossos).

Diante de tal comentário feito por Oswald de Andrade, mesmo reconhe-


cendo a magnitude e a importância do elogio recebido, ao invés de se enva-
idecer, Graciliano não acredita no autor de Memórias sentimentais de João
Miramar, atribuindo a opinião deste ao “exagero e [à] insinceridade dos
paulistas”, deixando claro que não crê no que foi dito. Algo também refor-
çado pelo modo como se refere à sua obra ao contar o episódio: “troço” e
“livrinho”. Quando se vê diante de uma crítica negativa, como na descrita na
carta do dia 14 de março de 1937, para Heloísa, Graciliano diz:

Terminei ontem um conto horrivelmente chato. O protagonista não tem nome, não
fala, não anda. Está parado num canto de parede e escuta um político também sem
nome. A chateação, que saiu comprida, é para descobrir o que o personagem pensa,
encolhido, calado. A pior amolação deste mundo. Um sujeito disse no Jornal que os
328
romances de hoje são todos muito cacetes e o mais cacete de todos sou eu. Ele tem ra-
zão. O conto que terminei ontem é uma estopada que nenhum leitor normal aguenta
(Ibid., p. 190; grifos nossos).

Diferentemente da postura adotada diante do comentário positivo de


Oswald de Andrade, cuja reação é discordar do que foi dito, a crítica negati-
va só vem à tona por que o autor, ao comentar seu novo conto, em alguma
medida, já adianta o conteúdo do comentário, concordando completamen-
te com ele, sem tentativa de discordância; Graciliano apoia totalmente o juí-
zo negativo emitido sobre ele. Tal postura apenas reforça os recursos usados
pelo autor de Vidas secas para caracterizar as suas produções e para se referir
a si mesmo, ou à categoria dos literatos, de modo depreciativo.

“Vamos ver se é possível concluir agora esta porcaria.


[...]. Sairá uma obra notável” (Graciliano Ramos, 1935)
Para além da retórica da autodepreciação e do automenosprezo, nas corres-
pondências do autor de S. Bernardo também se destaca o modo como ele vai
relatando o processo de composição das suas obras, algo evidente em uma sé-
rie de cartas, como na do dia 20 de agosto de 1932, enviada à Heloísa Ramos:

Estou cansado de fazer coisas incompletas. Vou aguardar o resultado da luta no sul
para depois orientar-me. E enquanto não me oriento, conserto as cercas de S. Ber-
nardo, estiro o arame farpado, substituo os grampos velhos por outros novos e, à noite,
depois do rádio, leio a Gazeta de Costa Brito (Ibid., p. 121; grifo nosso).

Semelhante à passagem supracitada, sobre o conserto das cercas de S. Ber-


nardo como algo a ser feito manualmente por ele, é a da carta de 15 de se-
tembro de 1932, uma vez mais para Heloísa:

Julgo que aqui neste quarto, sozinho, vou ficando safado. Têm-me aparecido ideias
vermelhas. Anteontem abrequei a Germana num canto de parede e sapequei-lhe
um beliscão retorcido na popa da bunda. Não tem importância. Isto passa. Vai sair
uma obra-prima em língua de sertanejo, cheia de termos descabelados. O pior é que de
cada vez que leio aquilo corto um pedaço. Suponho que acabarei cortando tudo (Ibid.,
p. 125; grifo nosso).

Além do caráter cômico de sua suposta relação com a personagem citada,


Graciliano também fala da linguagem que está sendo utilizada na obra, e
dos cortes que vem realizando nela. Nesse sentido, é muito curioso o modo
como a afirmação de que “vai sair uma obra-prima em língua de sertanejo,
329
cheia de termos descabelados” (Ibid., p. 125) vem acompanhada da garantia
de que “cada vez que leio aquilo corto um pedaço” (Ibid., p. 125), ou seja,
em um espaço muito curto, Graciliano parece ter uma opinião oscilante so-
bre a obra, uma vez que ora tem uma visão positiva, ora mostra insatisfação
com o material que está produzindo. Na carta do dia 22 de março de 1935,
também para Heloísa, ele diz:

Em seguida retomarei o trabalho interrompido há cinco meses. Julgo que continu-


arei o Angústia, que a Rachel acha excelente, aquela bandida. Chegou a convencer-
-me de que eu devia continuar a história abandonada. Escrevi ontem duas folhas,
tenho prontas 95. Vamos ver se é possível concluir agora esta porcaria. [...]. No quintal
procurarei escrever a continuação do romance, que se passa num fundo de quintal,
como v. sabe. Sairá uma obra notável. [...]. É necessário que termine o meu roman-
ce, literatura menos besta que a outra, a política. Vou atirar-me a ele daqui a pouco,
quando acordar. [...]. Vou dormir. E, às seis horas, quando acordar, conversarei com
a Marina e com Luís da Silva, excelentes criaturas, na opinião da Rachel e de Zéauto
(Ibid., p. 140-141; grifos nossos).

Além de se destacar o modo como Graciliano Ramos novamente trata


suas personagens como criaturas existentes, “conversarei com a Marina e
com Luís da Silva” (Ibid., p. 141), uma vez mais percebemos as oscilações de
opinião do autor diante da sua obra. Com um intervalo de dois períodos, o
autor de Memórias do cárcere chama a sua obra de “esta porcaria” e garante
que “sairá uma obra notável” (Ibid., p. 141). Ainda à Heloísa, em 1935, ele
também narra:

Terminei a sua carta às dez horas. Pois daí até o meio-dia, e das quatro da tarde à uma
da madrugada, escrevi com uma rapidez que me espantou. Nunca trabalhei assim,
provavelmente um espírito me segurava a mão. Vou perguntar a d. Luísa. A letra era
minha, embora piorada por causa da pressa, mas é possível que aquilo fosse mesmo
feitiçaria. Ou efeito de aguardente. [...]. Estou em grande atrapalhação para matar
Julião Tavares. Cada vez me convenço mais de que não tenho jeito para assassino.
Ando procurando uma corda, mas, pensando bem, reconheço que é uma estupi-
dez enforcar esse rapaz, que não vale uma corda. Enfim não sei. Estou atrapalhado
(Ibid., p. 152; grifo nosso).

Na passagem acima, ao contar da rapidez para produzir partes do livro –


algo que não parece ser rotineiro, pois, como diversas passagens já revelaram,
para Graciliano a escrita é um processo difícil, duro –, o autor atribui tal
feito à feitiçaria ou à aguardente. Ademais, novamente a personagem é tra-
tada como uma pessoa existente, no momento em que Graciliano confessa a
330
dificuldade para compor a sua morte. Tanto a atrapalhação diante do assassi-
nato de Julião Tavares, quanto a atribuição de uma escrita rápida à feitiçaria
ou à aguardente transparecem o senso crítico de Graciliano face aos seus
textos, como se ele não tivesse capacidade de produzir rapidamente ou não
conseguisse planejar o assassinato de uma personagem. Tais elementos, uma
vez mais, reforçam a retórica do automenosprezo e da autodepreciação, que
aparecem combinados, contudo, com alguns momentos de euforia diante
do que está produzindo.

“Só conseguimos deitar no papel os nossos


sentimentos, a nossa vida” (Graciliano Ramos, 1949)
Além dos elementos já destacados, em algumas cartas, Graciliano Ramos
dá dicas e instruções sobre o processo de feitura de romance, como na carta
destinada a Marili Ramos, sua irmã, no dia 23 de novembro de 1949:

Expôs uma criatura simples, que lava roupa e faz renda, com as complicações inte-
riores de uma menina habituada aos romances e ao colégio. As caboclas de nossa
terra são meio selvagens, quase inteiramente selvagens. Como pode você adivinhar
o que se passa na alma delas? Você não bate bilros nem lava roupa. Só conseguimos
deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso,
não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos. Só podemos expor o
que somos. E você não é Mariana, não é da classe dela. Fique na sua classe, apresen-
te-se como é, nua, sem ocultar nada. Arte é isso. A técnica é necessária, é claro. Mas
se lhe faltar técnica, seja ao menos sincera. Diga o que é, mostre o que é. Você tem ex-
periência e está na idade de começar. A literatura é uma horrível profissão, em que só
podemos principiar tarde; indispensável muita observação. Precocidade em literatura
é impossível: isto não é música, não temos gênios de dez anos. Você teve um colégio,
trabalhou, observou, deve ter se amolado em excesso. Por que não se fixa aí? Não
tenta um livro sério, onde ponha as suas ilusões e os seus desenganos? Em Mariana,
você mostrou umas coisinhas suas. Mas – repito – você não é Mariana. E – com o
perdão da palavra – essas mijadas curtas não adiantam. Revele-se toda. A sua perso-
nagem deve ser você mesma (Ibid., p. 213; grifos nossos).

Ao enfatizar a relevância da vivência na composição literária, Graciliano


desenha um projeto literário marcado pela experiência, no qual só seria pos-
sível falar sobre aquilo que se viveu ou se observou, de modo que “as nossas
personagens são pedaços de nós mesmos” (Ibid., p. 213). Ademais, ele tam-
bém afirma: “a técnica é necessária, é claro. Mas se lhe faltar técnica, seja ao
menos sincera” (Ibid., p. 213), de modo que a sinceridade, o relato da expe-
riência é mais relevante do que a própria técnica, reforçado pela garantia de
331
que “Só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida.
Arte é sangue, é carne. Além disso, não há nada” (Ibid., p. 213).
Tais garantias parecem evidenciar uma concepção acerca do fazer literário na
qual a experiência é o elemento mais relevante da produção, superando, inclu-
sive, a técnica. Contudo, em uma carta enviada a um de seus tradutores argen-
tinos, Benjamín de Garay, no dia 18 de novembro de 1937, Graciliano afirma:

Você me pediu há tempo que escrevesse umas coisas regionais. Lembra-se? Fiz isso,
mas afastei-me da literatura que nos apresenta, sem nenhuma vergonha, matutos
inverossímeis. Os nossos matutos nunca foram observados convenientemente. Os que
aparecem em romances pensam como gente da cidade e falam difícil, apenas defor-
mando as palavras, suprimindo os ss, os ll e os rr finais. Com esse recurso infantil, cer-
tos escritores brasileiros se julgam sagazes. Acho que os tipos que lhe mando são verda-
deiros. Procurei vê-los por dentro e evitei os diálogos tolos e fáceis, que dão engulhos. Os
meus matutos são calados e pensam pouco. Mas sempre devem ter algum pensamento,
e é isto que me interessa. Não gastei com eles as metáforas ruins que o Nordeste infe-
lizmente produz com abundância. Também não descrevi o pôr-do-sol, a madrugada,
a cheia e o incêndio, coisas obrigatórias, como você sabe (Id., 2008, p. 63; grifo nosso).

Contrastando a carta enviada ao tradutor com a destinada à irmã, al-


gumas diferenças se evidenciam. Enquanto para ela, Graciliano enfatiza a
relevância da sinceridade e da experiência na produção de uma obra, como
se elas se bastassem a si mesmas, na carta destinada ao tradutor, o autor
de Vidas secas revela um amplo conhecimento da literatura regionalista
produzida, apontando diversos aspectos equivocados comuns nas obras:
“Os que aparecem em romances pensam como gente da cidade e falam
difícil, apenas deformando as palavras, suprimindo os ss, os ll e os rr finais.
Com esse recurso infantil, certos escritores brasileiros se julgam sagazes”
(Ibid., p. 63; grifo nosso) e afirma: “Acho que os tipos que lhe mando são
verdadeiros” (Ibid., p. 63). Assim, mais do que ser capaz de criticar o que
comumente se produz, Graciliano se coloca como alguém que se afasta de
tal tradição e produz os matutos verdadeiros, ou seja, o mesmo autor que
chama sua obra de “porcaria” (Id., 1982, p. 141), que afirma que é “burro”
(Ibid., p. 23; 117), e que garante à irmã que a experiência é mais relevante
do que a técnica na produção de uma obra, ao conversar com seu tradutor
critica o que vem sendo feito e se coloca como alguém que sabe e domina
tão bem a técnica da escrita, que, além de reconhecer o problema, se dis-
tancia de tal tradição.
332
Conclusão
Diante das breves análises de passagens de algumas cartas, buscamos mos-
trar como diferentes aspectos acerca das composições literárias aparecem nas
epístolas de Graciliano Ramos, a fim de tentar levantar, brevemente, aspec-
tos que configuram a imagem do escritor e consequente imaginário da es-
crita nelas. Além do modo curioso para se referir às personagens das obras
que está escrevendo, como pessoas de verdade, se destacam também as dicas
dadas à irmã sobre a importância da experiência para a composição das obras
literárias, e o comentário crítico destinado ao seu tradutor, Benjamín de Ga-
ray, acerca da literatura feita sobre o nordeste e do modo como se distancia
dela. Além disso, também se destaca a recorrência de adjetivos e passagens
que menosprezam a sua produção, que convivem com (mais raros) momen-
tos em que o autor manifesta empolgação ou otimismo diante do que está
produzindo, revelando uma oscilação de opinião sobre a sua produção lite-
rária, ora tratada como “porcaria” (Ibid., p. 141), ora como “obra notável”
(Ibid., p. 141).
Diante do exposto, a partir da breve análise apresentada, percebemos que
as cartas de Graciliano Ramos evidenciam alguns aspectos acerca da sua pro-
dução literária, que, em uma leitura imagológica, constituem uma determi-
nada imagem do escritor e um consequente imaginário da escrita. Em uma
leitura inicial, como a que realizamos, o que mais se destaca é a recorrência
da concepção de suas obras como elementos inferiores, e o menosprezo de
sua capacidade literária. Nesse sentido, a imagem do escritor inicial que pa-
rece se construir é a de alguém que passa por longos e duros processos de
escrita, uma vez que tem muita consciência da sua composição, e que nunca
trata suas produções como frutos da inspiração. No entanto, o presente arti-
go é fruto de uma pesquisa inicial, que busca mapear os elementos das cartas
e os significados deles para esmiuçar a imagem do escritor e o imaginário da
escrita que surgem a partir delas. Assim, o conteúdo aqui analisado será re-
tomado em outras apresentações com o intuito de amadurecer e consolidar
os elementos mencionados.

Referência bibliográfica
MALARD, Letícia. Graciliano: das pérolas às críticas. In: ______. Literatura e dissidência polí-
tica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. p. 197-219.

PAGEAUX, Daniel-Henri. Elementos para uma teoria literária: imagologia, imaginário, polis-
333
sistema. Trad. de Katia A. F. de Camargo. In:______. Musas na encruzilhada: ensaios de literatura
comparada. Frederico Westphalen (RS)/São Paulo/Santa Maria(RS): EdURI/Hucitec/ EdUFSM,
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RAMOS, Graciliano. Cartas: Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Record, 1982.

______. Cartas inéditas de Graciliano Ramos a seus tradutores argentinos Benjamín de Garay
e Raúl Navarro. Introdução, ensaios e notas de Pedro Moacir Maia; organização e apresentação:
Fernando da Rocha Peres. Salvador: EDUFBA, 2008.
334
A LEITURA NA ERA DA INTERNET: A INFLUÊNCIA DA REDE DIGI-
TAL NA PRODUÇÃO TEXTUAL E NA LEITURA

Thiago Wallace Rodrigues dos Santos LOPES93


PPGL / UERJ / CAPES

Resumo: O presente artigo visa apresentar alguns dos efeitos que a inter-
net desenvolve sob a produção de textos e da leitura, para que pudéssemos
entender um pouco mais acerca do desenvolvimento linguístico presentes
nos textos que são produzidos no contexto da rede mundial de computado-
res. Começamos tratando do texto na sociedade e da importância do seu tra-
tamento em questões relacionadas à estrutura e sistematizações. Expomos
algumas teorias acerca dos gêneros textuais, recorrendo aos estudos bakh-
tinianos e de autores que retomaram os estudos do autor. Apresentamos
questões relacionadas à leitura e apontamos as transformações que a produ-
ção textual e a leitura vêm sofrendo no meio digital. Apresentamos a nossas
considerações finais.

Palavras-chaves: Texto. Leitura. Hipertexto. Hiperleitura. Gêneros textuais.

Palavras iniciais
O presente artigo visa apresentar, por meio de uma revisão teórica, alguns
dos efeitos que a internet desenvolve sobre a produção de textos e da leitura,
para que pudéssemos entender um pouco mais acerca do desenvolvimento
linguístico presentes nos textos produzidos no contexto da rede mundial de
computadores. Para tal foi preciso apontar algumas pesquisas que se desen-
volvem em torno de tais assuntos para depois apresentarmos algumas dessas
inovações presentes nesses assuntos.
Começamos tratando do texto na sociedade e da importância de pesquisas
relacionadas às questões de estrutura e sistematizações. Buscamos abordar a
teoria em torno dos estudos textuais a partir da visão sociointerativa, que versa
o texto como um objeto de interação social. Para tal, recorremos aos estudos
de alguns autores que dissertam acerca deste elemento partindo dessa aborda-
93
Mestrando em letras – Língua Portuguesa, licenciado em Letras – Português/Literaturas (UFRRJ) e membro do grupo de pesquisa Estudos
Linguísticos, Multiletramentos e Ensino de Português (EMELP).
335
gem, bem como tentamos demonstrar como os textos se desenvolvem dentro
de gêneros textuais específicos.
Em seguida, expomos algumas teorias acerca dos gêneros textuais e, para
isso, recorremos aos estudos bakhtinianos e de autores que retomaram os estu-
dos do autor. Assim, abordamos os gêneros a partir de uma visão sociodiscur-
siva, buscando apresentar a importância deles para a linguística textual e para
pensar a importância dos textos em gêneros. Procuramos, também, demons-
trar como o contexto digital tem influenciado as evoluções dos gêneros discur-
sivos. Usamos, aqui, gêneros textuais e gêneros discursivos como sinônimos.
Posteriormente, apresentamos questões relacionadas à leitura, mostrando
como ela é uma importante atividade de interação social e de transmissão de
cultura. Para isso buscamos nos apoiar em pesquisas que assumem a leitura a
partir da visão sociointerativa, bem com questões ligadas à compreensão no
ato de ler, além de reconhecê-la como uma atividade de produção de sentidos.
Expomos, também, as ideias das consequências que a leitura carrega e como
elas influenciam na interação social que se dá por meio da leitura.
Prosseguindo, tratamos da leitura na internet, onde buscamos apontar as
transformações que a produção textual e a leitura vêm sofrendo no meio digital
e demonstrar como elas têm-se modificado sob essa influência. Assim, focamos
a nossa exposição em expor tais evoluções, bem como abordar os conceitos de
hipertexto e hiperleitura. Para além disso apontamos com se desenvolveram e
como eles utilizados na rede, apontando a importância que vêm apresentando
para inovações nos estudos linguísticos, principalmente no tratamento da lin-
guística textual. Por fim, colocamos nossas considerações finais e apontamentos
em relação ao desenvolvimento do artigo e de pesquisas futuras.

O texto
O texto está presente na maior parte das formas de comunicação humana,
é, pois, a partir dele que desenvolvemos nossos pensamentos, diálogos e di-
versas atividades de interações comunicativas, principalmente aquelas desen-
volvidas por meio da escrita. Compreendemos com isso que “o texto resulta
de um tipo específico de atividade” (KOCH, 2018, p. 11), assim, o texto é a
materialização da atividade verbal que se dá em uma determinada situação e
visa produzir resultados (KOCH, 2018; KOCH, 2015a). Koch (2018) ainda
afirma que a escola vygotsykyniana, a psicologia e a psicolinguística soviética;
entende que o texto é um “complexo conjunto de processos postos em ação
336
para consecução de determinado resultado” (KOCH, 2018, p. 11).
Podemos perceber então que, segundo essa visão, texto é a pratica da ação
verbal de maneira a produzir resultados no interlocutor, por meio da comu-
nicação oral ou pela comunicação escrita. O que nos leva a compreender que
o texto não é um simples conglomerado de palavras juntos, mas uma força
verbal que atua na comunicação social e tem o propósito de afetar, de alguma
maneira, o interlocutor que está lendo ou ouvindo o texto; pode ser compre-
endido como algo concreto ligado a produção verbal. Corroborando essa vi-
são, Val e Vieira (2005, p. 37) afirmam que o texto é entendido como

produto linguístico da atividade interacional de que os sujeitos participam, estando


o seu significado não na soma dos sentidos emitidos pelas palavras que o compõem,
nem no conjunto de enunciados que o constituem, mas na articulação dos elemen-
tos e características que o formam, uma vez que ele é resultado das condições em
que foi produzido.

Partindo dessa compreensão de texto, faz-se preciso que o interlocutor


seja capaz de identificar a articulação dos elementos do texto, suas caracterís-
ticas e as condições em que foi produzido, para que se possa compreendê-lo.
Percebemos que isso se dá porque as atividades e ações de comunicação hu-
mana acontecem dentro de processos sociais, o que nos leva a considerar a
linguagem como atividade que se determina pelos fatores sociais.
Entendemos com isso que “em situações diferentes de interação linguís-
tica [sic], um mesmo texto pode produzir sentidos diferentes” (VAL; VIEI-
RA, 2005, p. 37), pois, a depender da situação em que ele acontece, o texto
pode apresentar significações e resultados diferenciados, por isso “devemos
levar em consideração não só o indivíduo que produziu determinado tex-
to, mas também o ambiente em que ele está inserido” (SANTOS; SILVA,
2012, p. 1086), porque haverá, no resultado final do texto, grande influência
desses fatores.
Dessa maneira, quando o locutor se utiliza da “pergunta ‘você quer sair da
sala?’” (VAL; VIEIRA, 2005, p. 37) pode apresentar-se de diversas formas
em relação à situação em que é colocada, isto é, “feita na sala de aula, por
um professor irritado, a um aluno bagunceiro, é um ato de expulsão” (VAL;
VIEIRA, 2005, p. 37), porém “a mesma pergunta, feita por um marido à
esposa grávida, numa sala cheia de gente, enfumaçada e barulhenta, pode ser
um gesto de carinho e atenção” (VAL; VIEIRA, 2005, p. 37).
337
O texto é, sob essa perspectiva interacional, um instrumento que as socie-
dades humanas utilizam para estabelecer a comunicação e que pode mudar
por conta do contexto em que ele é produzido ou lido. Por isso, Santos e
Silva (2012, p. 1086) afirmam que

um texto deve conter coerência de sentido, pois não podemos apenas disponibilizar
algumas frases sem conectá-las adequadamente umas às outras. Ao utilizarmos os
conectivos adequados estaremos interligando as orações e diminuiremos o risco de
comprometer a ideia central do texto.

Porque se essa ideia central que o texto carrega for comprometida, estare-
mos fugindo ao resultado que se pretende, no momento da produção, ou
seja, ao produzir um texto que tenha algum tipo de quebra, o locutor pode
levar o interlocutor a um entendimento diferente daquele pretendido. As-
sim, o resultado pretendido não seria atingido, o que pode levar a uma que-
bra na comunicação. Nessa perspectiva, Koch (2018, p. 12-3) afirma que as
atividades humanas têm aspectos que lhes são fundamentais:
a. existência de uma necessidade/interesse;
b. estabelecimento de uma finalidade;
c. estabelecimento de um plano de atividade, formado por ações individuais;
d. realização de operações específicas para cada ação, de conformidade
com o plano prefixado;
e. dependência constante da situação em que se leva a cabo a atividade,
tanto para planificação das ações e a possível modificação do processo
no decurso da atividade (troca das ações previstas por outras, de acor-
do com mudanças produzidas na situação).
Como entendemos a produção textual como uma atividade humana,
compreendemos que esses aspectos são também fundamentais, pois traçam
um caminho para que o locutor possa chegar ao resultado final pretendido.
Por fim, consideramos que “texto é uma forma de comunicação coerente
dotada de sentido (que está ligada aos implícitos e pressupostos) e que pos-
sui um objetivo” (SANTOS; SILVA, 2012, p. 1086). A partir dessa visão,
observamos que são textos o conto, o romance, a carta, a conversa, a música,
entre outros, mas também o são o e-mail, o post do facebook, o chat, a con-
versa do whatsapp, e outros que surgem no meio digital e que se propagam
pela internet, pensados e produzidos em gêneros textuais ditos específicos,
como veremos adiante.
338
Antes de prosseguirmos, é importante mencionar que há ainda os textos
não verbais, aqueles elaborados apenas a partir da imagem, como as charges,
os gestos, as figuras, os gráficos, entre outros. Também existem os chamados
textos multimodais, aqueles produzidos por meio da hibridação do texto
verbal com o não verbal, dos quais podemos citar publicidades e alguns dos
chamados memes. Aqui, porém, nos dedicaremos aos textos verbais.

Gêneros textuais
Os gêneros discursivos vêm sendo estudados há muito tempo. Situa-se
o início das discussões acerca dos gêneros “na Grécia Antiga com Platão e
Aristóteles”, porém, elas eram destinadas apenas à reflexão sobre gêneros po-
éticos e retóricos. Essas reflexões iniciaram-se com o intuito de pensar qual
seria a maneira “mais adequada para formar homens com certa natureza fi-
losófica” (ROJO; BARBOSA, 2015, p. 35).
A primeira divisão de gêneros que conhecemos é apresentada por Platão
(428-348 a. C.), na República – livros II e III –, na qual ele descreve três
gêneros literários, sendo eles o épico, o lírico e o dramático. Mais tarde, na
Poética, Aristóteles (384-322 a. C) delimita uma lista de gêneros, colocando
entre eles a epopeia e o poema trágico. Já na sua Retórica, Aristóteles vai
dividir também os gêneros da retórica em deliberativo, judiciário e epidíti-
co, mas o autor dá mais enfoque aos gêneros literários ou poéticos (ROJO;
BARBOSA, 2015).
Durante muito tempo, somente esses gêneros foram trabalhados, apresen-
tados e estudados na escola. Diversos autores fizeram inúmeras retomadas da
classificação feita pelos filósofos gregos, tratando, com especial valor, os gê-
neros artísticos, sem fazer nenhuma menção às diversas formas de manifesta-
ção da língua, ou seja, desconsiderando as outras esferas sociocomunicativas
em que a língua se manifesta (RODRIGUES, 2005; MARCUSCHI, 2010;
BAKHTIN, 2011; ROJO; BARBOSA, 2015; KOCH, 2015b).
Somente na década de 1960, com os estudos de Bakhtin, junto ao seu acla-
mado círculo, os gêneros do discurso de outros domínios discursivos, que não
o retórico e o literário, começaram a ser estudados como gêneros do discur-
so e a ganhar visibilidade. Tal fato contribuiu de maneira significativa para o
desenvolvimento dos estudos no campo dos gêneros (MARCUSCHI, 2010;
BAKHTIN, 2011; ROJO & BARBOSA, 2015; KOCH, 2015b; FIORIN,
2016). Como lemos em Rodrigues (2005, p. 162, grifo nosso):
339
a presença da noção geral dos gêneros do discurso encontra-se em muitos dos traba-
lhos do círculo de Bakhtin: a defesa do romance como gênero literário; os gêneros
intercalados como uma das formas composicionais de introdução e organização dos
plurilinguísmos no romance; a abordagem do romance polifônico em Dotoiévski;
o papel e o lugar dos gêneros nos estudos marxistas da linguagem; os gêneros como
uma das forças sociais de estratificação da língua (uma das forças centrífugas); e o
alargamento da noção de gêneros para todas as práticas de linguagem e não
só as do domínio da poética e da retórica.

Podemos dizer, então, que sempre houve, nos estudos bakhtinianos, uma
grande preocupação com o desenvolvimento de uma teoria que estudasse
os gêneros em todas as esferas de comunicação humana, mesmo sem deixar
explícita tal denominação. O autor amplia o escopo da lista dos possíveis
gêneros, pois, ao abranger os diversos domínios discursivos, novos gêneros
vêm à tona, “[...] o Círculo de Bakhtin estende o conceito de “gênero” –
ainda hesitando em nomeá-lo como tal – a todas as produções discursivas
humanas e não somente ao campo da arte literária ou da oratória pública.
[...]” (ROJO & BARBOSA, 2015, p. 40).
Com o avanço dos estudos dos gêneros no âmbito dos estudos da lingua-
gem, muitas abordagens se dedicaram ao tema. Conforme Meurer et alii
(2005), as teorias sobre os gêneros podem ser reunidas em três grupos de abor-
dagens: as sociossemióticas, as sociorretóricas e as sociodiscursivas, cada uma
delas apresentando especificidades e seguindo determinadas linhas teóricas.
As abordagens sociodiscursivas são aquelas, nas quais “são apresentadas
e discutidas as posições de Bakhtin, Bronckart e Maingueneau, que incor-
poram à própria reflexão aportes da análise do discurso, da teoria do texto
e das teorias enunciativas” (MEURER et. all., 2005, p. 09). Os gêneros são
tratados com sinônimo de ação social, uma prática social da ação humana,
que se materializa linguisticamente em formas concretas de realização.
Optamos por utilizar a abordagem sociodiscursiva interacional, fun-
damentada na proposta bakhtiniana e desenvolvida no Brasil por autores
como Marcuschi e Koch, dentro do escopo da linguística textual. Pois, tal
como enuncia Bakhtin (2011, p. 261-262):

[...] o emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) con-


cretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade
humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e finalidades de cada
referido campo não só por conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja,
pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de
340
tudo, por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo
temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados
no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um
determinado campo da comunicação. [...]

Nesse sentido, os gêneros textuais estão presentes em todas as interações


sociais desenvolvidas pelo ser humano, e, por este motivo, fazem parte do dia
a dia das pessoas. De acordo com Marcuschi (2010, p. 19), “os gêneros não
são instrumentos estanques e enrijecedores da ação criativa. Caracterizam-se
como eventos textuais altamente maleáveis dinâmicos e plásticos”. Eles são
maleáveis, sofrem modificações a partir da necessidade comunicacional dos
usuários de uma língua, numa dada esfera comunicativa. Podemos observar
gêneros se transformando e dando origem a outros, o que torna cada vez
mais longa a lista de gêneros conhecidos. E seu número é ilimitado. Vale
notar que os novos gêneros mantêm similaridades com os gêneros que lhes
deram origem. Com isso, Marcuschi (2010 p. 20) afirma que

hoje, em plena fase da denominada cultura eletrônica, com o telefone, o gravador, o


rádio, a TV e, particularmente o computador pessoal e sua aplicação mais notável, a
internet, presenciamos uma explosão de novos gêneros e novas formas de comuni-
cação, tanto na oralidade como na escrita.

Vê-se, com isso, que os gêneros discursivos mudam junto com a socieda-
de, ou seja, eles se diversificam ao passo que a sociedade se desenvolve. O
que nos leva à afirmação de Rojo sobre a movimentação dos gêneros nas
respectivas esferas, na qual ela diz que “o fluxo discursivo dessas esferas cris-
taliza historicamente um conjunto de gêneros mais apropriados a esses lu-
gares e relações, viabilizando regularidades nas práticas socias da linguagem”
(ROJO, 2005 p. 197).
Assim, vivemos um momento propício para o surgimento e desenvolvi-
mento de novos gêneros, pois o contexto hipermidiático proporciona um
terreno fértil para o florescimento de novas esferas comunicativas. Desse
modo, para definir os gêneros textuais precisamos ter em mente que estes
não se caracterizam por estruturas estáticas e definidas (MARCUSCHI,
2010 p. 30).
Entendemos então, que o surgimento e a definição de um determinado
gênero textual são influenciados pelo contexto sociocomunicativo em que
o falante se encontra, o que torna os gêneros uma ferramenta maleável, que
341
pode passar por mudanças de acordo com a época, a idade, o grupo social e
a necessidade de ser mais formal ou não. Como exemplo dessa relativa esta-
bilidade dos gêneros textuais, podemos citar a carta, que passou por diver-
sas transformações, participando de diferentes esferas, originando o e-mail,
considerado, enquanto gênero, seu descendente direto.
Por outro lado, também, a depender do domínio discursivo, teremos gêne-
ros com pouca ou nenhuma maleabilidade, isto é, baixo fator de mutabilidade.
Com relação a gênero, optamos pela proposta de Bakhtin, revista por Marcus-
chi. Enquanto o primeiro tratou dos gêneros discursivos, o segundo vai utilizar a
terminologia gêneros textuais, consoante ao que adotamos neste trabalho.
Assim, Bakhtin classifica os gêneros do discurso em primários e secundá-
rios, estes os que pertencem aos domínios discursivos mais cristalizados da
língua, como o domínio jurídico e o literário, e aqueles os que integram os
gêneros dos domínios mais pessoais, como o familiar e o interpessoal. Bakh-
tin ainda afirma que os gêneros secundários podem acarretar alguns gêneros
primários, como a conversa e a carta. Além disso, o autor apresenta o prin-
cípio da responsividade, no qual formula a tese de que cada gênero gera no
leitor uma intenção de resposta. Alguns gêneros apresentam esse princípio
em maior e outros em menor grau. (MARCUSCHI, 2010; BAKHTIN,
2011; ROJO; BARBOSA, 2015; FIORIN, 2016).
Dessa forma, por contribuírem para ordenação e para a estabilização da co-
municação diária (MARCUSCHI, 2010), os gêneros tornam-se importantes
para os estudos da linguagem. Também fazem parte do dia a dia de cada ser
humano, pois é por meio de enunciados, orais ou escritos, que o emprego da
língua efetua-se, sendo estes concretos e únicos (BAKHTIN, 2011). Enten-
demos que “[...] cada enunciado particular é individual, mas cada campo de
utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os
quais denominamos gêneros do discurso.” (BAKHTIN, 2011, p. 262).
Nesse sentido, conhecer as estruturas de um dado gênero não é como do-
minar as regras gramaticais, pois nestas ocorre um processo de cristalização
que pode levar muito anos para mudar, enquanto naquele há uma tendên-
cia à mudança intrínseca a sua estrutura, que ocorre de forma muito rápida.
Em consonância a isso, Rodrigues (2005, p. 168) afirma que

o estilo do gênero diz respeito ao uso típico dos recursos lexicais, fraseológicos e gramati-
cais da língua. O estilo de um enunciado particular pode ser mais bem compreendido ao
se considerar a sua natureza genérica. Os estilos individuais, bem como os de língua, são
342
estilos de gêneros. Todo enunciado, por ser individual, pode absorver um estilo particu-
lar, mas nem todos os gêneros são capazes de absorvê-lo da mesma maneira.

A era da internet trouxe uma diversidade de mudanças aos gêneros textu-


ais, implicando também nos hábitos de leitura das pessoas. Por isso, faz-se
importante tratar da leitura e das mudanças que as inovações do século XXI
lhe trouxeram.

Leitura
A Leitura, assim como o texto, está presente no cotidiano da nossa so-
ciedade, passamos o dia produzindo e lendo textos. Muitas vezes, porém,
não compreendemos o que é a leitura ou o ato de ler, pois “a leitura é uma
atividade complexa, plural, que se desenvolve em várias direções” (JOUVE,
2002, p. 17). Além disso, ela é uma atividade de compreensão e isso “exige
habilidade, interação e trabalho” (MARCUSCHI, 2008, p. 230), entretan-
to, muitas vezes deixamos informações passarem pela nossa leitura, sem que
tenham uma compreensão bem sucedida. Dessa maneira, compreendemos,
como citamos anteriormente com Jouve (2002 p. 17, grifos nosso), que

a leitura é, pois, uma atividade interativa altamente complexa de produção de


sentidos, que se realiza evidentemente com base nos elementos linguísticos presen-
tes na superfície textual e na sua forma de organização, mas requer mobilização de
um vasto conjunto de saberes no interior do evento comunicativo.

Assim, a leitura, da mesma forma que o texto, é permeada pelo contexto


em que o leitor está inserido, isto é, ela leva em conta as experiências e os
conhecimentos que o leitor carrega consigo e é influenciada pela situação
constante no momento de recepção. Para além disso, a atividade leitora vai
além do conhecimento do código linguístico, pois, segundo afirma Koch
(2015b), “[...] o texto não é simples produto da codificação de um emissor a
ser decodificado por um receptor passivo” (p. 11).
A leitura ganha sentido a partir da interação que acontece entre autor e
leitor, a qual se dá por meio do texto. Dentro desta perspectiva, Guedes e
Souza (2001) afirmam que “ler é produzir sentindo” e que “ensinar a ler é
contextualizar textos” (p. 135). A leitura, então, é um momento de inte-
ração que demanda a decodificação do código linguístico somada à intera-
ção social. Nas palavras de Marcuschi (2008), “[...] leitura deve ter assim
uma influência bastante clara sobre os processos de compreensão que não
343
se dão, a não ser contra esse pano de fundo sociointerativo” (p. 232-3).
Ela é, portanto, uma atividade social, mas também “[...] um ato concre-
to, observável, que recorre a faculdades definidas do ser humano” (JOUVE,
2002, p. 17), a leitura ainda depende que o aparelho visual esteja em bom
funcionamento, bem como as funções cerebrais. Desse ponto de vista a lei-
tura, além de ser uma atividade de interação social, é uma ação de percepção,
entende-se com isso que essa é uma atividade “com várias facetas” (JOUVE,
2002, p. 17) e todas elas se interligam no processo de compreensão, porém
Smith (1991, p. 199) afirma que “às vezes, a palavra ‘leitura’ implica compre-
ensão, e às vezes não”.
A leitura, então, leva o indivíduo a entrar em um processo de produção de
sentidos, que vai encaminhá-lo para o resultado final pretendido pelo texto.
Ela pode ser tomada como uma forma de transmissão cultural e também de
propagação do conhecimento, pois “a aquisição da leitura é fundamental
para o progresso de uma cultura” (MENDES; BRUNONI, 2015, p. 15),
visto que é por meio dela que podemos entrar em contato com diversas his-
tórias e conhecimentos do passado e que é por meio dos textos, lidos por
outras pessoas, que podemos transmitir aquilo produzimos hoje.
Ler é, desse ponto de vista, uma atividade de interação social que se dá
a partir da representação que o indivíduo constrói a partir dos elementos
do texto e do conhecimento de mundo que o leitor possui. Por isso a lei-
tura nunca se dá sem um motivo específico, isto é, “a leitura nunca é uma
atividade abstrata, sem finalidade [...]” (SMITH, 1991, p. 198). Assim, as
finalidades e as consequências que os leitores colocam sob o ato de ler são
inerentes a sua leitura.
Entendemos com isso que “a leitura é mais do que somente uma experi-
ência agradável, interessante e informativa. Tem consequências, algumas das
quais são consequências típicas de qualquer tipo de experiência que possamos
ter. Outras, são unicamente particulares à leitura” (SMITH, 1991, p. 211).

A leitura na era da internet: o hipertexto


A produção textual e a leitura vêm sofrendo diversas mudanças devido à
popularização da internet e das mudanças que ela traz ao mundo moderno.
Vemos, com isso, que a internet modifica a forma como a sociedade escreve e
lê. Isso se dá porque a rede digital ampliou o espaço e de interação social e di-
minuiu o tempo da comunicação à distância. Esse processo acontece porque
344
devido à internet “a maior parte da vida social foi mediatizada, de tal modo
que, para um número significativo de estudantes, o contato interpessoal
ocorre por via de computador e celular” (CADEMARTORI, 2012, p. 121).
Motivo esse que levou à inovações na forma de se produzir, propagar e
ler textos. Por essa mesma razão, Cadermatori (2012) afirma que “[...] para
promover a leitura, mais efetivo é atuar com algum conhecimento da forma
de sociedade em que vivemos [...]” (p. 121). O que nos leva a acreditar que
é necessário que nos adaptemos a essa nova forma de produção de leitura e
que criemos novas estratégias para incentivá-la a leitura dentro e fora da sala
de aula, pois, “[...] em nossa época, toda prática cultural ocorre no marco da
sociedade de consumidores [...]” (CADEMARTORI, 2012, p. 122).
É nesse contexto do mundo digital que surgem os hipertextos, ou seja,
textos produzidos na rede digital e fogem à leitura linear e buscam trabalhar
com a ideia de associações. Eles são, desse ponto de vista, um composto,
fluido e reconfigurável, de textos ordenados de acordo com o modo que o
leitor escolhe desenvolver a sua leitura (RISSI, 2009; FERNANDES, 2009;
FACHINETTO, 2005). Neles há palavras que aparecem ressaltadas e essas
“exercem a função de botões que conectam a outras fontes” (RISSI, 2009, p.
28), isto é, elas servem de ponto de partida para outros blocos textuais.
Ainda tratando da definição de hipertexto, Fachinetto (2005, p. 3), em
concordância com o já vimos expondo, afirma que esse termo “designa um
processo de escrita/leitura não linear e não hierarquizada e que permite o
acesso ilimitado a outros textos de forma instantânea”. Assim, o hipertexto
constitui-se como uma forma de base para alguns sites como o Wikipédia
e alguns blogs que servem para escrita literária. A escrita não linear acaba por
gerar uma leitura da mesma forma, o que faz com que o leitor se torne um
co-autor do texto, pois segue a sua própria linearidade do texto.
Assim, a leitura digital passa a desenvolver um novo espaço de interação
social, também chamado de hiperleitura. Isso se dá porque “a leitura de hi-
pertextos apresenta novas exigências não encontradas no meio impresso,
reclamando um novo tipo de letramento, o chamado letramento digital”
(FERNANDES, 2009, p. 42). A popularização da leitura e a propagação do
conhecimento ganham uma nova perspectiva, pois elas necessitam de uma
nova moldura para se desenvolverem no meio digital.
Dessa maneira, o conceito de hiperleitura se faz necessário, pois “a impli-
cação mais contundente para o processo em questão é a liberdade de escolha
345
possibilitada pela não-linearidade do hipertexto” (FERNANDES, 2009, p.
42). É por isso que a leitura toma novas proporções no meio digital de inte-
ração social, possíveis por causa da materialidade textual do hipertexto, de-
mandando maiores estudos acerca das suas funcionalidades, consequências
e possibilidades.

Palavras finais
Consideramos que o texto é um dos maiores objetos de interação. É por
meio dele que estabelecemos nossas interações sociais. Assim, os estudos acer-
ca das características, funcionalidades e consequências do texto torna-se de
grande importância para a comunidade e para os demais estudiosos. Por isso,
acreditamos que pesquisas em torno das estruturas textuais e de suas aplica-
ções nos estudos da linguística textual e na sociedade são muito relevantes.
Em relação aos gêneros textuais, temos observado uma grande quantida-
de de estudos em torno do assunto, porém ainda é um campo de estudo
oportuno, pois, como afirma Bakhtin (2011) e retoma Marcuschi (2008;
2007; 2005), estão em constante evolução, pois mudam com a sociedade.
Assim, os gêneros discursivos são de grande importância, pois, como acom-
panham o desenvolvimento da sociedade, tornam-se parte relevante dela por
constituírem instrumentos da comunicação humana.
A leitura é uma atividade de interação que caminha lado a lado com o
texto, pois este ganha novos sentidos por meio daquela. Assim, ela se torna
essencial por causa das variações que pode apresentar, por conta da situa-
cionalidade do leitor. Dessa maneira, merece mais estudos e pesquisas mais
aprofundadas acerca das suas implicações e das variações e mudanças pelas
quais vem passando com a evolução da sociedade.
Quanto às questões relacionadas ao hipertexto e hiperleitura, há ainda mui-
to o que se pesquisam, pois as inovações tecnológicas e o desenvolvimento dos
gêneros textuais digitais influenciaram e influenciam no desenvolvimento des-
ses conceitos de produção textual e de leitura. Ainda temos muito que estudar
em relação a tais assuntos, pois eles apresentam uma evolução que se deu a
partir da flexibilização das estruturas textuais trazidas pela internet.
Por fim, o objetivo deste artigo foi tratar das relações aqui citadas e apon-
tar as inovações que a era da internet vem trazendo ao texto e à leitura, em
busca de demonstrar uma parte das sistematizações que já se estabeleceram
em trono desses temas, principalmente os relacionados ao hipertexto e à hi-
346
perleitura. Desse modo, apresentamos alguns aportes teóricos. Considera-
mos que há ainda uma linha pesquisa desenvolvendo-se a partir do estudo
das produções textuais da internet e da leitura digital.

Referência Bibliográfica
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348
ESPADACHINS SOBRE A REDE– TENSÕES ENTRE A CRÍTICA E A
LITERATURA EM OS DETETIVES SELVAGENS

Vitor Felix do Vale94


UERJ

Resumo: A relação de tensão entre a crítica e a literatura, construída na


obra de Roberto Bolaño, aparece como uma das problemáticas de Os detetives
selvagens, romance construído a partir de múltiplas vozes narrativas. Assim,
este artigo objetiva explorar essa relação conflituosa entre a crítica e a litera-
tura a partir do diálogo com o crítico e filósofo francês Jacques Rancière, que
apresenta em sua obra elucidações para entendermos que a crítica e literatura
são, hoje, instâncias que estão inseridas em uma política que se sobrepõe a
qualquer tensão que haja entre as duas.

Palavras-chave: literatura – crítica – tensão – tempo – Roberto Bolaño

A extensa obra do autor Roberto Bolaño (1953-2003) aborda uma série de


temas que investigam parte do pensamento político e social da América Latina
literariamente, sobretudo o que permeou o século XX. Para isso, são frequen-
tes em suas obras temas relacionados aos movimentos políticos e a literatura
escrita ao longo do século passado, principalmente a partir do chamado Boom
Latino-americano. Um dos vieses de escrita do romancista é a exposição de
suas ideias sobre a crítica literária no andamento de suas obras de ficção. O pre-
sente trabalho tem por objetivo explorar justamente a tensão existente entre a
crítica literária e a literatura presente nas cenas de um dos romances mais lidos
do autor: Os detetives selvagens, publicado pela primeira vez em 1998.
O livro preparado pelo autor apresenta uma configuração de três partes: 1)
Mexicanos perdidos no México (1975); 2) Os detetives selvagens (1976-1996);
3) Os desertos de Sonora (1976). A primeira e terceira partes funcionam como
um diário, escrito pelo personagem Juan García Madero, a segunda – e mais
extensa – parte do livro é a reunião de dezenas de relatos de diferentes narrado-
res. Nas entradas de número 22 e 23, que aqui chamarei de capítulos, surgem
94
Mestrando em Teoria da Literatura e Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Contato: vitorfelix.vale@
gmail.com
349
relatos interessantes sobre a relação conflituosa que a literatura mantém com a
crítica e esta com os escritores.
No capítulo 22, os narradores de cada relato apresentam a sequência de
ações que desenham a ideia que Arturo Belano (personagem principal, jun-
to com Ulisses Lima) põe em prática, ao saber que o crítico Iñaki Echevarne
havia publicado uma crítica negativa sobre o último livro de um escritor res-
peitado no universo do romance, Aurelio Baca. Temendo a reprimenda ao
seu próprio livro, que ainda seria publicado, Arturo entra em contato com
um amigo próximo e uma mulher, que parece ser sua ex-companheira, para
assistirem algo, que se encaminha para uma narrativa de final trágico.
O medo da crítica negativa que leva Arturo Belano a desafiar o crítico Eche-
varne se mostra como atitude extrema da tensão existente na obra de Bolaño
entre a crítica e a literatura. Neste episódio, o autor insere a crítica como opo-
nente da literatura, como entidade que necessariamente se postula de maneira
oposta ao trabalho de escritores de literatura. Duas forças em disputa que se
chocam a todo instante, promovendo disputas sobre seus valores: de um lado
a crítica, a fazer seu papel de avaliação de obras literárias de “alto” ou “baixo”
valor, relegando a um lugar considerado menor dentro da literatura para as
obras e os escritores que não se enquadrem no padrão e no gosto do crítico; e
do outro lado o autor, que no caso de Arturo Belano se vê obrigado a provar
seu valor em uma disputa física, escolhendo como forma de duelo a luta de
espadas contra Iñaki Echevarne, a fim de evitar que o crítico saciasse sua “von-
tade de se desforrar em alguém”, o que para o crítico não passaria de “uma
questão de se exercitar os músculos, Arturo disse.” (BOLAÑO, 1998, p. 488).
Uma característica interessante do romance surge no fato de Arturo Belano
e Ulisses Lima, figuras protagonistas da história, nunca terem relatos próprios,
posto que suas vozes sempre aparecem através do relato de terceiros. Assim, o
leitor fica responsável por organizar toda a memória e identidade dos poetas a
partir da polifonia que compõe a base do romance. Isso nos leva a um ponto
diretamente conflitante em relação ao trecho analisado, pois, nas vozes de Su-
sana Puig, Guillem Piña e Jaume Planells – narradores do capítulo 22 – fica
latente a dúvida em relação às afirmações sobre os comportamentos de Arturo
Belano, suas ações e a forma como esses narradores artificiaram para que che-
gassem até nós, leitores.
A problemática da verdade permeia todo o romance, sendo a dúvida uma
questão cara a essa narrativa de Bolaño, visto que são muitos os pontos de vis-
350
tas, as informações circulantes e os tempos sobrepostos. A tensão fica evidente
não apenas nos momentos em que a crítica e a literatura se enfrentam como
iguais, cada uma com seus artifícios criativos, mas na própria condução dos
relatos a uma reunião de vozes que compõem a trajetória de Arturo Belano
e Ulisses Lima. Não existe apenas um fio que conduz a narrativa, porque são
várias as portas de entrada para o romance, uma metáfora mais adequada para
abordar essa reunião de relatos que não passa pelas vozes pessoais dos prota-
gonistas seria, portanto, uma rede, entrelaçada e atravessada pelas várias vozes.
Para Bolaño, a tensão entre a crítica literária e a literatura se desenha em
Os detetives selvagens à primeira vista como uma tensão de vida ou morte
do escritor ou do crítico. E é o próprio Arturo Belano, chileno que voltou
ao Chile para defender o governo de Salvador Allende, aquele que irá propor
um duelo de espadas contra Iñaki Echevarne. Belano optou por defender a
si mesmo e a seu livro até as últimas consequências como forma de resistir à
onda arrasadora que seria a crítica negativa de um reconhecido crítico literário
ao seu trabalho. O escritor escolhe a luta corporal como forma de defesa de sua
recente obra; empenha a própria vida na ideia de manter sua literatura firme e
intocada por essa crítica que, imaginava ele, estava por vir.
Depois de escolherem seus padrinhos de duelo, escritor e crítico estabelecem
local e hora para a disputa. No dia e hora marcados, todos se apresentam no
lugar acordado: uma praia deserta que no verão se transforma em uma praia
de nudismo. A situação é estranha e o local, inusitado, posto que uma praia
de nudismo parece um local adverso à violência, já que serve para a prática da
liberdade dos corpos ao seu natural. A cena, contudo, empolga porque não é
óbvia, pois cabe dentro de uma obra de ficção e por isso é possível pensá-la fora
do cenário fictício; crítico e escritor transferindo seus ofícios, que antes dispu-
tavam entre si no campo das publicações, para o lugar da defesa extremada de
seus trabalhos e suas opiniões fisicamente, através da força bruta.
Crítico e escritor decidem se enfrentar no romance, na tentativa de valida-
rem seus trabalhos em uma disputa de honra por suas vidas e suas carreiras, um
dos pontos altos da obra de Bolaño que aparece no fluxo das muitas narrativas
que compõem o livro. Assim, Arturo Belano e Iñaki Echevarne direcionam
seus trabalhos para a fomentação das tensões entre a crítica e a literatura que
marcaram a década de 1970, época em que se inscreve o relato. Isso evidencia
o caráter crítico que a própria obra de Bolaño guarda: uma literatura que, na
categoria de obra de arte, expõe seu valor estético e crítico ao mesmo tempo.
351
No ensaio Em que tempo vivemos?, publicado em 2011 na revista Serrote, o
filósofo Jacques Rancière define a ficção da seguinte forma:

Uma ficção não é um conto imaginário. É a construção de um conjunto de relações


entre uma percepção e outra percepção, entre coisas que se consideram perceptíveis
e o sentido que pode ser dado a elas (RANCIÈRE, 2011, p.203).

A cena que aparece no romance de Bolaño se inscreve justamente no lugar


da instabilidade, é uma cena pensada pelo autor para nos colocar no âmbito
do que é perceptível dessa cena. Autor e crítico disputando a sua validade,
enquanto que os leitores passam a disputar a ideia que Bolaño estabelece
nesse romance acerca da crítica literária. A cena se inscreve no lugar do pen-
samento que Bolaño tinha sobre a crítica da época em que se insere a cena,
os anos 1970, onde o trabalho do crítico era o de definir o que tem valor
literário e o que não tem. Dá-se aí a tensão entre a crítica e a literatura que se
digladiam sobre a rede instável de vozes que compõem a narrativa.
Pensar escritor e crítico se debelando como dois espadachins e criar uma
expectativa de fim para um dos dois é expor uma ideia de crítica que, quan-
do negativa, retira as chances de que um autor seja bem-sucedido em outros
trabalhos, no futuro. Há por trás dessa cena uma reflexão profunda que Bo-
laño estabelece sobre a relação dos ofícios das duas partes: se por um lado a
crítica funcionava como validadora da literatura, o papel dos escritores esta-
va limitado a se submeter a essas críticas ou enfrentá-las com a própria vida,
para usar a metáfora do romance.

Durante um segundo de lucidez, tive a certeza de que havíamos ficado loucos. Mas a
esse segundo de lucidez se antepôs um supersegundo de superlucidez (se me permi-
tem a expressão), em que pensei que aquela cena fosse o resultado lógico de nossas
vidas absurdas (BOLAÑO, 1998, p. 495).

Entretanto, toda a tensão, conduzida pelos narradores dos relatos até o


fim do ato se quebra, no momento do duelo:

Iñaki atacou seu antagonista, este atacou Iñaki, entendi que poderiam continuar assim
horas a fio, até as espadas lhes pesarem nas mãos [...] Iñaki e seu contendor continuaram
vou pegar você, vou pegar você, como duas crianças bobas (BOLAÑO, 1998, p. 495-496).

Bolaño conduz as relações entre a crítica e a literatura para o campo da


ficção, criando uma brecha que se abre para um novo viés de leitura dessa
352
relação. Crítica e literatura se atravessam e criam um novo contato dentro da
ficção, e que só é possível nesta, porque é o campo da literatura. Para o autor,
o papel da crítica não é apenas o de avaliar a qualidade e o caráter literário das
obras de escritores, mas o de participar também na construção da própria
obra literária. A tensão que se constrói sobre essa relação e que permeia todo
o capítulo 22 se desfaz na última frase, quando crítico e escritor são descritos
por Jaume Planells, como duas crianças bobas. O que importa, portanto,
não é como termina a batalha entre os dois, mas estabelecer que a partir
dessa cena Bolaño atribui à crítica o papel de construir junto com o escritor
a ficção sobre o autor e sua obra.
Quanto à qualidade do que se escreve, Bolaño nos deixou suas impressões
sobre o assunto em seu famoso Discurso de Caracas, proferido na ocasião
em que recebeu o Prémio Rómulo Gallegos por seu romance Los detevtices
salvages, Bolaño (2004) define que uma escrita de qualidade “sempre foi:
saber meter a cabeça no escuro, saber saltar ao vazio, saber que a literatura
basicamente é um ofício perigoso” (tradução minha).
Um momento curioso aparece depois da finalização do duelo entre Iñaki
Echervarne e Arturo Belano; o relato que abre o capítulo 23 e acontece qua-
se inteiramente durante a Feira do Livro de Madri, que no romance aparece
no período de julho 1994. Nessa sequência de relatos, diversos personagens,
a maioria escritores, falam de sua relação com a crítica, a literatura e os leito-
res; Echevarne é o primeiro deles.
A ideia que Echevarne conclui sobre a Crítica, com “C” maiúsculo, é de
que esta é menor que a Obra, com “O” maiúsculo. Leitores e a Crítica acom-
panham a Obra por momentos, mas ela é uma instância solitária que se so-
brepõe e que resiste a ambos, apesar do tempo, até que ela morra. Uma ideia
de que a crítica tal qual a conhecemos é um instante na vida da obra, apesar
de toda a tensão estabelecida entre as duas, a princípio. Essa visão da crítica
se confronta com a própria atuação do personagem Iãnki Echevarne na cena
anterior, quando batalhava com um escritor. O próprio Echevarne reconhe-
ce que a Obra sobrevive por um tempo mais longo que o crítico ou o escritor
possam delimitar, confrontando, assim os valores da crítica literária de sua
época. Nas palavras de Rancière, “nosso mundo não funciona de acordo
com um processo homogêneo de presentificação e aceleração, mas segundo
uma regulação de convergência e da divergência de tempos” (RANCIÈRE,
2011, p. 211).
353
O capítulo 23 se desenvolve a partir da apresentação os relatos dos escrito-
res que, apesar de estarem na famosa Feira do Livro de Madri, relatam ape-
nas a série de seus fracassos ou “truques” que impulsionaram seu sucesso.
Aurelio Baca, que aparece após Iñaki Echevarne, que lhe fizera uma crítica
feroz no passadao, reconhece os limites de sua coragem; Pere Ordóñez, conta
sobre como os jovens escritores, que antes eram revolucionários e renuncia-
vam posições sociais, hoje buscam se estabelecer socialmente por meio de
seus trabalhos; Julio Martínez Morales expõe a maneira pela qual os escri-
tores foram se transformando em mentirosos, em “gatos castrados”, sem a
selvageria necessária; Pablo del Valle narra como um escritor que nega o que
verdadeiramente vivia e acolhe uma postura de falsidade em prol do próprio
sucesso, vive atormentado pelos fantasmas que construiu; Marco Antonio
Palacios expõe conselhos de como adular outros escritores a fim de ser aceito
em seus círculos; Hernando García León conta sobre o destino de ser um
escritor que produz a partir de inspiriações; Pelayo Barrendoáin, um escritor
depressivo, sem sucesso, que fala de sua passagem pela Feira e o encontro
com seus leitores, igualmente atormentados.
Todo esse diagnóstico do fracasso de grande parte de uma geração de es-
critores, essa narrativa do fim, que sustenta o capítulo é provocada por uma
ficção, no conceito de Rancière, que não cabe apenas dentro da obra de Bo-
laño, mas é exterior a ele. A política mundial atual, que é uma intensificação
daquela que a América Latina, em específico, viu emergir após a sucessão
das ditaduras, a mesma que o autor da obra viveu nos anos da década de
1990 tem reflexo direto na obra. E se pensarmos que a obra de Bolaño se
preocupa em abordar de forma literária as questões que, a princípio, estão
fora da literatura, o pessimismo generalizado nos leva diretamente ao que
Rancière entende como “a grande narrativa”.
A grande narrativa do fim, segundo o filósofo, seria a que domina o nosso tem-
po, que é a abertura cada vez mais expansiva às ideias neoliberais, não apenas na
política, mas em todos os campos sociais. Essa narrativa transformou o nosso tem-
po, entendido até então como uma coexistência de tempos e espaços, no tempo
global, que é homogêneo e linear. Assim, não há espaço para as pequenas narra-
tivas no tempo global e a saída para o domínio da grande narrativa do fim são as
pequenas narrativas, ainda por descobrir nas bordas desse grande domínio.
Ao expor esse diagnóstico do irremediável fim da autonomia do escritor de
literatura, dos críticos e da própria literatura, a obra de Bolaño nos convida
354
a refletir sobre o papel dos agentes que atuam na produção e na divulgação
da literatura em tempos de pessimismo. Nos anos 1990, quando termina de
escrever Os detetives selvagens, o trabalho do crítico não se configura mais
por avaliar as obras, de modo a criar figuras de autores que valham a pena ser
lidos ou não, tampouco o trabalho dos escritores consiste em provar aos crí-
ticos seu valor e seu caráter literários. A obra de ficção de Bolaño se alinha ao
discurso do que há de perverso na política mundial: estão em cena os autores
fracassados, o mercado que passa a absorver as obras como meros produtos e
a literatura que já não é capaz de acionar o caráter revoltado/revolucionário
das pessoas. É um diagnóstico cru e cruel do tempo em que passamos a viver.
O caráter de coletivo presente na multiplicidade de vozes que compõe a
série de relatos se apresenta no fato da escolha narrativa que o autor fez para
a obra. Traçar literariamente certo diagnóstico de um tempo, como plano
de fundo da obra, não poderia ser tarefa de uma voz narrativa única. Assim,
os personagens têm diferentes nacionalidades, diferentes idades, profissões
e falam a partir de anos diferentes. A experiência desse tempo se dá em cole-
tivo, como são vivenciadas a história e os tempos nas sociedades. A esse fato,
Clarisse Lyra acertadamente expõe em seu ensaio ‘Los detectives salvages’,
sua promessa de sentido:

Neste romance, só é possível falar de experiência através do relato de terceiras pesso-


as, aquelas que detêm a primeira pessoa no romance, nossos narradores [...]. Então
é através do outro, e apenas através do outro, que a experiência pode se constituir
nesse romance (LYRA, 2016, p.142).

A eficácia da obra de Bolaño se verifica na destreza narrativa de seu autor,


ao administrar uma série de vozes que compõe esse diagnóstico do tempo
em que vivemos, mas também porque une dois valores fundamentais para a
eficácia de uma obra de arte, para Rancière. O valor político aparece em Os
detetives selvagens porque o efeito estético é eficaz na obra, e isso acontece
porque o que verificamos na leitura do romance que a obra executa é uma
espécie de “enunciação coletiva que redesenha o espaço das coisas comuns”
(RANCIÈRE, 2014, p. 60).
Portanto, a experiência histórica, a crítica literária e a própria literatura se
apresentam no romance como instâncias coletivas, porque são compostas
de diversas vozes e estas constroem umas às outras, na medida em que os
relatos se desencadeiam. O trabalho do leitor, portanto, se quiser entender
355
amplamente a obra, será o de colocar-se como um construtor dos sentidos
da obra, desta vez, fora de sua rede instável de narrativas (já que a obra está
terminada), mas disputando sentidos com outros leitores/críticos, como um
espadachim, ou não – acreditando no que Bolaño traduz nas palavras de
um de seus narradores: a consciência de que a obra permanece para além do
autor, do crítico e de seus leitores.

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RANCIÈRE, Jacques. Espectador emancipado, O. Trad. Ivone C. Benedetti – São Paulo: Mar-
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356
O FILHO ETERNO: UMA ANÁLISE DOS ELEMENTOS
AUTOFICCIONAIS NO ROMANCE DE CRISTÓVÃO TEZZA E
SUA ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA

Walter Cruz Caminha95


UERJ

Resumo: Os elementos autobiográficos encontrados em O filho eterno


(2007), de Cristóvão Tezza, foram exaustivamente confirmados, questionados
e problematizados pelo próprio autor em suas declarações sobre a publicação,
levando a uma reflexão sobre a complexa relação entre criador e obra: seria o
romance um acerto de contas de Tezza com seu passado? O objetivo deste tra-
balho é analisar elementos autobiográficos em O filho eterno (2007) e discutir
o que leva o romance a ser catalogado como tal e não como autobiografia ou
texto não-ficcional. A leitura de críticos e teóricos do campo das escritas de si
contribui para o entendimento do que é autoficção e das nuances que diferen-
ciam este romance de outras obras contemporâneas.

Palavras-chave: Autoficção. Escritas de si. Literatura brasileira.

Introdução
O premiado romance O filho eterno (2007), de Cristóvão Tezza, traz como
tema a chegada de um filho com síndrome de Down em uma família que se vê
surpresa meio às poucas informações sobre a trissomia do cromossomo 21 nos
anos 1980. Entretanto, a história não trata da síndrome em si e seus desdobra-
mentos na vida da criança, mas do amadurecimento de um pai que não estava
preparado para lidar com um filho diferente do que havia idealizado duran-
te a gestação. Os elementos autobiográficos encontrados no romance foram
exaustivamente confirmados, questionados e problematizados pelo próprio
autor em suas declarações sobre a publicação, o que leva a uma reflexão sobre a
complexa relação entre criador e obra: seria O filho eterno (2007) um acerto de
contas de Tezza com seu passado?
Através dos estudos e conceitos de biografia, autobiografia, narrador e auto-
ficção, o objetivo deste trabalho é analisar elementos autobiográficos na obra
95
Mestre e doutorando em Literaturas de Língua Inglesa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGL/UERJ). Contato: waltercami-
nha@gmail.com
357
e discutir o que leva o romance ser catalogado como tal e não como autobio-
grafia ou texto não-ficcional. A leitura de críticos e teóricos como Philippe
Lejeune, Eurídice Figueiredo, Roland Barthes, Ana Amélia Coelho Pace, Ka-
ren Ferreira-Meyers, Leonor Arfuch e Anna Faedrich contribui para o enten-
dimento do que é autoficção e das nuances que diferenciam este romance de
outras obras.
Inicialmente, discutiremos as noções de autoficção resgatando afirmações
de teóricos que, em reflexões convergentes e divergentes sobre o tema, per-
mitem um melhor entendimento do conceito de autoficção para uma abor-
dagem prática a seguir. Desta maneira, prosseguiremos para a segunda parte,
onde será possível mergulhar no universo introspectivo narrado em O filho
eterno (2007) e investigar os elementos que indicam a autoficcionalização no
romance, as características da vida de Cristóvão Tezza em sua obra e os deta-
lhes que tornam o livro um romance e não uma biografia.
Tendo em vista que este trabalho visa entender o posicionamento de O fi-
lho eterno (2007) na literatura brasileira contemporânea como autoficção, será
essencial para a pesquisa levantar dados biográficos de Cristóvão Tezza, assim
como buscar suas declarações, postagens, e entrevistas para traçar paralelos
entre autor e narrador da obra. Por ser um escritor contemporâneo e de con-
siderável presença em canais de comunicação como seu site, revistas, vídeos e
outros, é possível coletar diversos dados revelados pelo próprio Tezza, o que
facilita a identificação de coincidências e diferenças entre sua vida pessoal e a
vida do narrador criado pelo mesmo em O filho eterno (2007).

A autoficção no campo das escritas de si


O debate sobre autoficção é extenso e envolve diversos temas, gêneros tex-
tuais e conceitos como biografia e autobiografia, a morte e o retorno do autor,
espaço e pacto biográficos, e outros. Não há uma definição única, fechada e
indiscutível de autoficção, principalmente por ser um conceito abrangente e
cuja ocorrência contemporânea em diversas escritas impede sua cristalização.
Assim, através de uma abordagem de múltiplas perspectivas é possível delinear
o conceito sem delimita-lo, montando um panorama da autoficção por meio
de diferentes concepções.
Iniciaremos a explanação do termo resgatando o capítulo “Da obra ao tex-
to” de Roland Barthes. No livro O rumor da língua (1988), ao falar da figura
do autor, Barthes afirma que o autor romancista retorna ao seu texto como
358
convidado, inscrevendo-se como uma das personagens, e que “sua vida não é
mais a origem de suas fábulas, mas uma fábula concorrente com a obra” (BAR-
THES, 1988, p.76). Do ponto de vista da autoficção, a romantização de dados
biográficos do próprio autor é a chave para a criação da obra, possibilitando
que o privado se torne público, passando pela lapidação do fazer literário.
Ao criar uma obra autoficcional, o escritor dá forma a histórias paralelas à
sua própria história, todas – incluindo sua história supostamente real, aquela
que é exibida nos meios de comunicação – moldadas de acordo com o efeito a
ser produzido no leitor.
Somando à nossa apreciação do termo “autoficção”, mencionamos o cria-
dor deste neologismo que denomina o gênero, o francês Serge Doubrovsky.
Em 1977, Doubrovsky lançava o romance Fils (1977) e incluía na capa da
edição uma descrição do que significava o novo termo para definir o gênero
textual do livro em questão:

Autobiografia? Não, esse é um privilégio reservado aos importantes desse mundo,


ao fim de suas vidas, e em belo estilo. Ficção, de acontecimentos e fatos estritamente
reais; se se quiser, autoficção, por ter confiado a linguagem de uma aventura à aven-
tura da linguagem, fora da sabedoria e fora da sintaxe do romance, tradicional ou
novo. Encontro, fios de palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias, escrita de
antes ou de depois da literatura, concreta, como se diz em música. Ou ainda: auto-
fricção, pacientemente onanista, que espera agora compartilhar seu prazer. (DOU-
BROVSKY, 1977, apud FAEDRICH, 2014, p.20)

O neologismo foi criado por Doubrovsky como um desafio à publicação


de Lejeune sobre autobiografia dois anos antes. Philippe Lejeune definiu em
Le Pacte Autobiographique (1975) que uma autobiografia tem como princi-
pal característica a identificação nominal entre autor, narrador e persona-
gem, celebrando um contrato entre escritor e leitor que garantiria a veracida-
de da obra. Assim, Lejeune chama este conceito de “pacto autobiográfico”.
Ao despir seu romance do rótulo de autobiografia, Doubrovsky se vê livre
de cumprir o pacto autobiográfico de Lejeune – que responsabiliza o autor
pela verdade a ser trazida no texto autobiográfico – e abre a possiblidade do
uso do elemento autobiográfico no campo romanesco. O rompimento de
Doubrovsky com o pacto de Lejeune permite que o autor escreva sobre si
mesmo sem comprometer-se necessariamente com o gênero da autobiogra-
fia, indicando na capa de Fils (1977) que o livro é uma “autoficção” com a
intenção de preparar o leitor para o que será lido no livro.
359
Ao resumir o posicionamento de Lejeune, que incentivou Doubrovsky a
cunhar o termo “autoficção”, contrapondo-o com o conceito apresentado
em Fils (1977), Karen Ferreira-Meyers conclui que:

Enquanto a autobiografia tradicional busca descrever uma personalidade que de


fato existiu da maneira mais realista e eficaz possível, a autoficção ficcionaliza uma
personagem da vida real. Este é o ponto de vista pragmático sobre autoficção le-
vantado por Doubrovsky em 1977. (FERREIRA-MEYERS apud SHANDS et al,
201596)

Tendo em vista que a autoficção não cumpre um pacto autobiográfico, co-


meça-se a discutir um pacto autoficcional. De acordo com a escritora e teórica
Chloé Delaume, enquanto o pacto autobiográfico tradicional envolve a sinceri-
dade do autor e a simpatia do leitor, o pacto autoficcional isenta o autor da mes-
ma sinceridade (apud SHANDS et al, 2015). Segundo Delaume, a “autoficção
envolve um pacto extremamente especial entre autor e leitor. O autor compro-
mete-se a uma ação: mentir para o leitor” (apud SHANDS et al, 201597), o que
diferencia claramente este pacto daquele teorizado por Lejeune.
Distinguir a autoficção como um gênero diferente da autobiografia, ainda
que como um gênero amplo e de complexa definição, é uma ferramenta valiosa
para o escritor ao introduzir a obra aos seus leitores e refinar o efeito esperado na
leitura de um livro. Sobre as expectativas de um gênero textual que são criadas
pelo leitor, Ferreira-Meyers diz:

Em geral, o leitor cria expectativas sobre o tipo de texto que lerá. Essas pressuposi-
ções guiarão sua leitura; o leitor irá corrigi-las caso o texto as contrarie; na cabeça do
leitor, as conclusões podem ser não, isto não é um texto não-ficcional, ou não, isto não
é uma autobiografia, etc. Para classificar o gênero de um texto, o mesmo é preciso ser
lido fazendo pressuposições sobre suas características genéricas, que serão revisadas
ao longo da leitura. Essas expectativas só podem ser criadas e então confirmadas
ou desfeitas caso o leitor conheça os elementos intra-, extra- e paratextuais de um
gênero e, como um detetive ou caçador, busque por esses indícios. (FERREIRA-
-MEYERS apud SHANDS et al, 201598, grifo nosso)

Através de elementos como a coincidência nominal entre autor, narrador


e personagem; conteúdo, forma, temática, título e outros, o leitor pode pres-
96
Tradução nossa. No original: “Whereas traditional autobiography tries to describe a character which really existed in the most realistic and
effective way possible, autofiction fictionalizes a character which really lived. That is the pragmatic point of view regarding autofiction raised by
Doubrovsky in 1977.” (SHANDS et al, 2015, p.205).
97
Tradução nossa. No original: “autofiction involves an extremely special pact between author and reader. The author is committed to one thing:
to lie to the reader.” (SHANDS et al, 2015, p.210).
98
Tradução nossa. No original: “In general, the reader makes an assumption about the type of text while reading. This hypothesis guides the rea-
ding; the reader will correct it if the text contradicts the assumption; in the reader’s mind the following thoughts might be: no, this is not a non-
-fiction text, no, it is not an autobiography, etc. To classify a work, it must be read by making assumptions about its generic affiliation and then
revising these assumptions as it is read. These assumptions can only be verified and then accepted or rejected when the reader knows the intra-,
extra- and paratextual clues of a particular genre and is, as a detective or hunter on the lookout for these indices.” (SHANDS et al, 2015, p.206)
360
supor que uma obra seja autoficcional e confirmar sua expectativa ao longo
de sua leitura. Entretanto, algumas destas características podem divergir do
que é esperado sem necessariamente fazer com que o texto seja autobiográfi-
co ou um romance tradicional. Por esse motivo, é tão tênue a linha divisória
entre gêneros textuais que estão em constante tangenciamento e sobreposi-
ção, como a autobiografia, autoficção e romance autobiográfico.
A partir das conclusões apresentadas acima, oriundas de reflexões de Ro-
land Barthes, Philippe Lejeune, Serge Doubrovsky, Karen Ferreira-Meyers e
Chloé Delaume, podemos entender o conceito de autoficção para trabalha-lo
no romance O filho eterno (2007), de Cristóvão Tezza, observando elementos
que o aproximam de uma autoficção e o diferenciam de uma autobiografia.

O romance O filho eterno como obra de autoficção

Eu tava me preparando, de certa forma, pra levar pau da crítica, achei que ia ser
soterrado. E na verdade não, foi um livro muito bem recebido literariamente, inclu-
sive, que era o temor que eu tinha, que o livro não fosse lido como ele de fato é: um
registro ficcional sobre dados biográficos meus.
Cristóvão Tezza

Adotamos aqui a nomenclatura romance para referência ao livro de Tezza a


ser analisado devido à descrição na ficha catalográfica do mesmo. Apesar disso,
o autor indica O filho eterno (2007) como o único livro em que ele trabalha
com sua biografia, o que nos leva a estuda-lo como uma obra de autoficção.
Cristóvão Tezza nasceu em Lages, interior de Santa Catarina, em 1952.
Aos sete anos perdeu o pai e, dois anos depois, mudou-se para Curitiba, cida-
de que é cenário e elemento essencial a vários de seus livros. Em 1971, entrou
para a Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante (EFOMM-RJ),
mas desligou-se meses depois. Em 1974, tornou-se aluno de Letras na Uni-
versidade de Coimbra, mas acabou passando um ano perambulando pela
Europa pois, devido a Revolução dos Cravos, a universidade estava fechada.
Este período na Europa é mencionado em O filho eterno (2007), conforme
abordaremos na análise. Todos os dados apresentados sobre a vida do autor
neste trecho estão disponíveis no site do mesmo.99
O livro O filho eterno foi lançado em 2007 e é o décimo primeiro romance
publicado por Cristóvão Tezza. A obra conta a história de um jovem escritor
tornando-se pai de um bebê que, para surpresa da família, nasce com Sín-
99
Disponível em: http://www.cristovaotezza.com.br/p_biografia.htm . Acesso em: 25 de julho de 2017.
361
drome de Down em uma época em que pouco se sabia sobre a trissomia do
cromossomo 21, por vezes chamada de “mongolismo” no livro. O romance
mostra o ponto de vista do pai, desde a idealização do filho, passando pelo
nascimento, a descoberta da síndrome e a aceitação, demonstrando a raiva
e negação que a precedem. O filho eterno (2007), no ano seguinte à sua pu-
blicação, recebeu os prêmios Jabuti de melhor romance, Bravo! de melhor
obra, Portugal-Telecom de Literatura em Língua Portuguesa (1° lugar) e
Prêmio São Paulo de Literatura de melhor livro do ano.
Uma das características aclamada pela crítica em relação a O filho eterno
(2007) é a sua linguagem crua e brutal perante uma situação delicada como
a vinda de um bebê com Síndrome de Down:

Recusa. Recusar: ele não olha para a cama, não olha nem para os médicos – sente
uma vergonha medonha de seu filho e prevê a vertigem do inferno em cada minuto
subsequente de sua vida. Ninguém está preparado para um primeiro filho, ele tenta
pensar, defensivo, ainda mais um filho assim, algo que ele simplesmente não conse-
gue transformar em filho. (TEZZA, 2007, p.25-26)

Em 2016, foi lançada a adaptação cinematográfica homônima do roman-


ce, dirigida por Paulo Machline e estrelado por Marcos Veras como Rober-
to, pai de Felipe, e Débora Falabella como Cláudia, mãe do menino com
Síndrome de Down. O filme desloca o nascimento de Felipe – filho de Tezza
e personagem de O filho eterno (2007), ambos nascidos em 1980 – em dois
anos, para traçar um paralelo entre as Copas do Mundo de 1982 e 1994 e o
desenvolvimento da criança. No início do filme, o nascimento do menino
ocorre durante o jogo em que a Seleção Brasileira é eliminada da Copa do
Mundo de 1982. Ao final da história adaptada, Roberto parece ter amadu-
recido e aceitado plenamente seu filho com Down, ao passo em que assistem
juntos a final da Copa de 1994 e festejam o tetracampeonato da Seleção Bra-
sileira. Algumas outras diferenças relevantes entre o romance e sua adapta-
ção serão apontadas ao longo desta análise, em especial as diferenças que se
referem a dados biográficos de Tezza.
Um elemento importante do romance de Cristóvão Tezza em questão é
o uso do narrador em terceira pessoa, o que não é comum nas escritas de si,
como ressaltado por Eurídice Figueiredo ao resgatar o trabalho de Michel
Butor sobre o uso de pronomes pessoais no campo romanesco. Butor afir-
ma que “o narrador não só é a máscara sob a qual se esconde o autor como
362
o ponto de vista que o leitor vai usar em sua fruição, no prazer de ler” (FI-
GUEIREDO, 2013, p.41). Optando por não usar o narrador em primeira
pessoa, Tezza esclarece em entrevista ao site Saraiva Conteúdo que O filho
eterno (2007):

...confessionalmente, é até mais distante, é um livro em terceira pessoa, que foi a


grande chave técnica do livro pra mim, que daí eu não me envolvi. Essa terceira
pessoa me deu uma liberdade imensa pra lidar com o narrador. E eu trabalho es-
cancaradamente com dados biográficos meus: eu tenho um filho com síndrome de
Down e esse é o tema central do livro. (TEZZA, 2009)

Segundo Tezza, optar por um narrador em terceira pessoa foi essencial


para que ele, como autor de um romance repleto de dados autobiográficos,
pudesse manter uma distância segura da história e não torna-la uma auto-
biografia. Já na adaptação cinematográfica, a opção foi de usar o narrador
em primeira pessoa, possivelmente para evidenciar a introspecção do per-
sonagem e seu amadurecimento ao longo da narrativa. Além disso, o filme
ganha um tom de memória mas, apesar do romance de Tezza ter dados au-
tobiográficos, sua adaptação não foi divulgada como uma história baseada
em fatos reais ou uma biografia.
Outra evidência do distanciamento promovido por Tezza entre autor, nar-
rador e personagem é a ausência de um nome para o protagonista de sua histó-
ria e a esposa dele. Apesar de Felipe, filho de Cristóvão Tezza, e Felipe, criança
do romance, compartilharem o nome, Tezza optou por não nomear os pais do
menino. O autor poderia ter nomeado o pai e a mãe em O filho eterno (2007)
com outros nomes que não Cristóvão e Beth – Sua esposa –, o que representa-
ria uma ruptura explícita com o pacto autobiográfico de Lejeune. Entretanto,
aumentar este distanciamento não foi uma escolha de Tezza, o que contribui
para o tom confessional da obra. A opção de não nomeá-los fica evidente ao
passo que o narrador sempre se refere ao protagonista como “pai”, “ele” e “pai
do Felipe”, nunca por Cristóvão ou qualquer outro nome.
O pacto autobiográfico é uma peça-chave na diferenciação entre autobio-
grafia e romance tradicional, como conclui Ana Amélia Coelho Pace em sua
publicação sobre o pacto autobiográfico na revista eletrônica Darandina,
da Universidade Federal de Juiz de Fora:

(...) a oposição entre autobiografia e romance apresenta mais dificuldades. Os proce-


dimentos narrativos da ficção e do relato autobiográfico se assemelham, se copiam,
363
transitam entre um gênero e outro. Numa análise estritamente interna, não haveria dife-
rença entre uma autobiografia e um romance autobiográfico. (COELHO PACE, 2013)

Assim, pode-se concluir que a autobiografia também está sujeita às esco-


lhas do autor, que seleciona, expõe, omite e escreve os detalhes de sua vida
de acordo com o efeito a ser criado para o leitor. O biografado não dispõe
do mesmo controle quando se trata de uma biografia não-autorizada, já que
não tem a oportunidade de moldar a narrativa ou colaborar com o biógrafo.
Entretanto, a explicação de Tezza para o fato de que O filho eterno (2007)
é catalogado como romance – e não memória ou outro gênero – é bem mais
simples e não envolve o conceito de Lejeune. Pelo contrário, retoma o pacto
autoficcional como comentado por Chloé Delaume na seção anterior: na au-
toficção, o autor compromete-se a mentir. Em entrevista ao Clube do Livro,
da revista Veja, Tezza é perguntado por que O filho eterno (2007) fica na pra-
teleira de romances e não na prateleira de memórias. De maneira humorada,
o autor responde “primeiro que o narrador mente muito” e exemplifica o
fazer literário que foi aplicado ao escrever o início do livro:

Vou citar só uma cena engraçada: quando eu escrevi, depois que o livro terminou,
eu li um capítulo pra minha mulher, Beth, e é aquele em que ele sai à calçada do hos-
pital, a criança acabou de nascer, ele não sabe que a criança tem problema, ele vai li-
gar na calçada num orelhão pra avisar a família. O capítulo era todo complicado, ele
desce, vai lá no guichê, compra uma ficha, naquele tempo que tinha ficha... tem um
orelhão com o fio pendurado (...) ele vai no outro, que não tava depredado, como
em qualquer cidade do Brasil tava sempre depredado, ele vai lá no outro e telefona.
E aí minha mulher disse assim “mas você avisou a família do telefone que tava do
lado da cama, pegou o telefone e ligou” (risos). Eu não me lembrava de nada disso,
não é relevante, mas todo aquele momento, aquele capítulo, ele é todo ficcional. Ele
é uma construção romanesca pra dar consistência ao personagem. (TEZZA, 2015)

Assistindo ou lendo as entrevistas do autor, é possível notar que Cristó-


vão Tezza faz uso dos canais de comunicação para esclarecer a posição de sua
obra como romance na literatura e confirmar ou negar possíveis questiona-
mentos sobre a veracidade dos fatos que se desenrolam no livro. A influência
da mídia e da crítica na construção do pacto autobiográfico – ou no caso
de uma autoficção, pacto autoficcional – é um tema previamente abordado
pelas teóricas Eurídice Figueiredo e Leonor Arfuch.
O avanço irrefreável da midiatização do autor contemporâneo foi mencio-
nado por Leonor Arfuch em O espaço biográfico (2010) como promotor de
364
uma “reconfiguração da subjetividade contemporânea” (ARFUCH, 2010,
p.37). A teórica defende que essa tendência de superposição do público so-
bre o privado “excede todo o limite de visibilidade” (idem). Essa crescente
proximidade entre autor e leitor desvincula a exclusividade que tem a crítica
de investigar e identificar as possíveis inspirações usadas na criação da obra.
Eurídice Figueiredo reforça a ideia sobre esta nova proximidade ao afirmar
que os leitores percebem o caráter autobiográfico de um romance devido ao
maior acesso à informação promovido nos últimos anos (FIGUEIREDO,
2013). Assim, os leitores desempenham um papel semelhante ao “esquadri-
nhamento da crítica” (idem, p. 42), buscando dados reais que teriam servido
de inspiração para um romance. Tais dados funcionam como chave de lei-
tura para o reconhecimento dos traços autobiográficos inseridos pelo autor
em sua obra.
É perceptível nas entrevistas de Cristóvão Tezza que ele mesmo entrega es-
sas chaves de leitura ao aproveitar os espaços de fala que são concedidos a ele
para confirmar ou desmistificar interpretações sobre O filho eterno (2007). A
biografia do autor em seu site, por exemplo, já indica algumas coincidências
entre Tezza e seu protagonista, como o período em que atuou como pro-
fessor universitário, a faculdade de Letras e a experiência no teatro quando
jovem. No romance, o personagem principal se recorda do período que pas-
sou morando na Europa:

Em 1975 estava na Alemanha como imigrante ilegal. Pediu dinheiro emprestado


para a passagem de trem Coimbra-Frankfurt e desembarcou na Hauptbahnhof
com algumas moedas no bolso, um endereço num papel e o esboço de um mapa das
ruas. (TEZZA, 2007, p.81)

Já na biografia de Cristóvão Tezza em seu site, há a informação de que


“em dezembro de 1974, foi a Portugal estudar Letras na Universidade de
Coimbra, (...) mas como a universidade estava fechada pela Revolução dos
Cravos, passou um ano perambulando pela Europa”100. Estas coincidências,
chamadas de “biografemas” por Barthes (apud FIGUEIREDO, 2013), são
os traços autobiográficos cuidadosamente selecionados pelo autor ao escre-
ver uma narrativa de cunho autobiográfico.

Considerações finais
Através das leituras de diferentes teóricos sobre a autoficção, é possível
100
Disponível em: http://www.cristovaotezza.com.br/p_biografia.htm . Acesso em: 25 de julho de 2017.
365
olhar para O filho eterno (2007), declarado como romance em sua ficha cata-
lográfica, por uma perspectiva diferente. Como Cristóvão Tezza alerta, seu
livro deve ser lido como um “registro ficcional” sobre dados biográficos dele,
o que leva o leitor a adotar o pacto autoficcional como chave de leitura, e
não o pacto autobiográfico pensado inicialmente por Lejeune.
A escolha de um narrador em terceira pessoa, ao invés do tradicional narra-
dor em primeira pessoa das escritas de si, demonstra o distanciamento que Te-
zza buscou entre as figuras do autor e do narrador. Além disso, Tezza também
optou por não identificar nominalmente o protagonista como Cristóvão, o
que seria comum em romances autobiográficos. A falta de coincidência nomi-
nal também acentua o afastamento entre autor e narrador/personagem.
O exemplo dado por Tezza da primeira parte do livro, após o nascimen-
to do personagem Felipe, reforça o caráter romanesco dado pelo autor a O
filho eterno (2007), demonstrando que o fazer literário se apropria de um
dado autobiográfico e o transforma em um registro ficcional. Os biografe-
mas, coincidências entre a vida do autor e dados da obra, mais facilmente
percebidos com a midiatização mencionada por Arfuch, tornam-se chaves
de leitura para obras autoficcionais.
Deste modo, é possível concluir que O filho eterno (2007), apesar de sua
catalogação oficial, faz parte do complexo gênero da autoficção, meio às ca-
racterísticas discutidas no início deste trabalho e às evidências das entrevistas
de Tezza e trechos de sua obra confrontados em seguida.

Referência bibliográfica
ARFUCH, Leonor. O espaço biográfico: mapa do território. In: ______. O espaço biográfico: di-
lemas da subjetividade contemporânea. Trad. Paloma Vidal. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010, p. 35-82.

BARTHES, Roland. A morte do autor; Da obra ao texto. In: ______. O rumor da língua. São
Paulo/Campinas: Brasiliense/Ed. da Unicamp, 1988. p. 65-78.

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France’. Darandina Revisteletrônica. Juiz de Fora, vol. 6, n. 1, 2013. Disponível em: < http://www.
ufjf.br/darandina/files/2013/08/artigo_ana-amelia.pdf>. Acesso em: 07 de maio de 2017.

FAEDRICH, Anna Martins. Autoficções: do conceito teórico à prática na literatura brasileira


contemporânea. 2014. 251f. Tese (Doutorado em Teoria da Literatura) – Faculdade de Letras, PU-
CRS, Porto Alegre, 2014.

FERREIRA-MEYERS, Karen. Autobiography and Autofiction: No Need to Fight for a Place


in the Limelight, There is Space Enough for Both of these Concepts. In: SHANDS, Kerstin W. et
366
al (Org.). Writing the self: Essays on Autobiography and Autofiction. Elanders: Suécia, 2015.

FIGUEIREDO, Eurídice. Formas e variações autobiográficas. A autoficção. In: ______. Mu-


lheres ao espelho: autobiografia, ficção, autoficção. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013, p. 13-74.

TEZZA, Cristóvão. Entrevista com Cristóvão Tezza: depoimento (trecho). [21 de julho de 2009].
Vídeo, 6’38”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Oi8O8V2hLKY. Acesso em:
08 de maio de 2017. Entrevista concedida ao site Saraiva Conteúdo. O trecho usado, que compre-
ende os minutos 3’31” a 4’44”, está transcrito no Apêndice A.

______. O filho eterno. 9ª ed [2010], E-book. Rio de Janeiro: Record, 2007.

TEZZA, Cristóvão. Por que isso é ficção? Uma conversa com Cristovão Tezza: entrevista (trecho).
[27 de agosto de 2015]. Vídeo, 38’58”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=bZGp-
1j4dsgE. Acesso em: 08 de maio de 2017. Entrevista concedida a Jerônimo Teixeira e Carlos Graieb. O
trecho usado, que compreende os minutos 34’58” a 37’10”, está transcrito no Apêndice B.

APÊNDICE A - Entrevista com Cristóvão Tezza: depoimento (trecho)


“O filho eterno, realmente, ele foi um estouro. Eu sabia que era um livro que ia ter algum impac-
to pelo tema, mas eu tava me preparando, de certa forma, pra levar pau da crítica, achei que ia ser
soterrado. E na verdade não, foi um livro muito bem recebido literariamente, inclusive, que era o
temor que eu tinha, que o livro não fosse lido como ele de fato é: um registro ficcional sobre dados
biográficos meus. Eu digo que eu sou um escritor confessional. O único livro em que eu trabalhei
biografia é esse. Ele, confessionalmente, é até mais distante, é um livro em terceira pessoa, que foi a
grande chave técnica do livro pra mim, que daí eu não me envolvi. Essa terceira pessoa me deu uma
liberdade imensa pra lidar com o narrador. E eu trabalho escancaradamente com dados biográficos
meus: eu tenho um filho com síndrome de Down e esse é o tema central do livro. Eu sempre digo
que o texto sabe mais do que eu. Esse por exemplo, esse livro, O filho eterno, me ensinou isso aí.
Eu tava com uma visão muito limitada dele (...) até que eu percebi que eu escrevi um livro muito
maior do que eu. Ele tem coisas ali que são a minha história que escreveu, não foi propriamente
aquele sujeito naquele momento que tava dizendo opiniões ou colocando uma visão de mundo. E
isso pra mim é maturidade literária.”

APÊNDICE B - Por que isso é ficção? Uma conversa com Cristovão Tezza
Jerônimo Teixeira: A matéria-prima de O filho eterno é biográfica. O que faz daquele livro um
romance? O que diferencia aquilo de um livro de memórias? Por que a gente o coloca na prateleira
do romance e não na prateleira de livros de memórias?

Cristóvão Tezza: porque ali... primeiro que o narrador mente muito (risos).

JT: Mas memorialistas podem mentir também, não tem como saber (risos).

CT: Eu coloco a questão da pressuposição romanesca, ela toma conta do livro já na segunda pá-
gina. Eu deixei, por exemplo... eu não tenho nenhuma preocupação naquele livro com a sequência,
com os fatos reais, a sequência natural. Vou citar só uma cena engraçada: quando eu escrevi, depois
que o livro terminou, eu li um capítulo pra minha mulher, Beth, e é aquele em que ele sai à calçada
367
do hospital, a criança acabou de nascer, ele não sabe que a criança tem problema, ele vai ligar na
calçada num orelhão pra avisar a família. O capítulo era todo complicado, ele desce, vai lá no gui-
chê, compra uma ficha, naquele tempo que tinha ficha... tem um orelhão com o fio pendurado...

JT: tem gerações de ouvintes aqui que não tem a menor idéia do que você tá falando (risos).

CT: (risos) era um telefone que você botava a ficha pra falar, et cetera, e tem um que tem um
fio pendurado, ele vai no outro, que não tava depredado, como em qualquer cidade do Brasil tava
sempre depredado, ele vai lá no outro e telefona. E aí minha mulher disse assim “mas você avisou a
família do telefone que tava do lado da cama, pegou o telefone e ligou” (risos). Eu não me lembrava
de nada disso, não é relevante, mas todo aquele momento, aquele capítulo, ele é todo ficcional. Ele é
uma construção romanesca pra dar consistência ao personagem. Ele vai lembrar da juventude dele,
aquele fio pendurado lá tem sentido - a questão da comunicação -, que eu nem tinha pensado nisso,
foi um crítico que observou isso aí. É uma cena chocante, você chega e aquele fio pendurado não tá
ali por acaso. É a intuição narrativa.

Carlos Graieb: Mas é verdadeiro do ponto de vista da sua experiência...

CT: Exatamente, do ponto de vista da experiência sim. Eu passei a pensar o livro não mais na mi-
nha questão biográfica, mas na questão da unidade interna romanesca do livro. Tanto que sempre
que fui reler algum trecho eu dizia “eu não sou esse monstro aqui” (risos).
368

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