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Edição
Plano Nacional de Leitura 2027
Conselho Editorial
Carlos Vaz Marques, Patrícia Ávila e Elsa Conde
ISSN: 2184-8386
Disponível em:
http://pnl2027.gov.pt/np4/entreler
4 ENTRELER
Editorial
ENTRELER 5
Um cânone é uma lista e uma lista é uma escolha
Entrevista de Miguel Real a Miguel Tamen e Eugénio Lisboa
Miguel Real (MR)— Isto é verdade, um cânone é uma lista e uma lista é uma
Professor Miguel Tamen? Não só que escolha. Não existe alguém (nem nós nem
contesta o cânone antigo, consensual, ninguém) dotado do poder normativo
aquele que vem do Estado Novo, que suficiente para, pelo simples facto de
depois a Maria Alzira Seixo, o Eduardo publicar uma lista de nomes, ou de ensaios
Prado Coelho e a Eduarda Dionísio de sobre autores, como é o caso de ambos,
certo modo expuseram, a seguir ao 25 de conseguir transformar completamente as
Abril – publicando aquele livro famoso, perceções que as pessoas têm.
com textos de autores portugueses para MR— O Professor explica, no último
ler na escola primária e no liceu -, mas que texto, exatamente sobre o cânone, que
há também uma intenção de instaurar, de é uma lista prospetiva e é uma lista que
facto, um novo cânone, que não só rivalize, também tem a ver com o passado. E o
mas sobretudo conteste os cânones Professor António Feijó, no primeiro texto
antigos? sobre o cânone, também desmistifica,
Miguel Tamen (MT)— Muito obrigado. dessacraliza o conceito de cânone. De
Devo dizer, em primeiro lugar, que tenho qualquer maneira, é impossível quem
muito gosto em estar aqui e falar destas nasce hoje e daqui a vinte anos entra na
coisas, que claramente nos interessam Universidade não se debater com este
aos três. Mas a resposta à sua pergunta livro e não considerar este o cânone dos
é “Não”. Não nos passou pela cabeça seus pais (dos seus pais intelectuais,
instaurar cânone nenhum. Nós temos digamos assim).
um entendimento minimal, e até certo MT— Sabe, é uma lista que tem muitos
ponto empírico, da noção de cânone. nomes em comum com a esmagadora
E nisso somos muito parecidos com o maioria das listas parecidas. No fundo, a
Professor Eugénio Lisboa. Quer dizer: sua perceção de iconoclastia tem só a ver
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Entrevista de Miguel Real a Miguel Tamen e Eugénio Lisboa
com uma coisa, é com o século XX depois isca. E uma boa história, bem contada. O
de Fernando Pessoa. De resto, não há Domingos Monteiro é fabuloso, porque
nenhuma escolha muito especial. tem coisas do sobrenatural, tem coisas
MR— Desculpe eu insistir. Mas há opções. do mais realista, tem coisas de um
Por exemplo, os três organizadores regionalismo moderado, tem 12 volumes,
do livro fazem o cânone de literatura ainda por cima. É o equivalente, em
homossexual, que nunca tinha sido feito. Portugal, por exemplo, a um Somerset
Fazem o cânone de literatura feminista Maugham no mundo anglo-saxónico
– que, aliás, está extremamente bem – que é um esplêndido iniciador para
feito, pela Professora Ana M. Koblucka. pessoas que não estão habituadas a ler.
No seio do livro, aparece um verbete que Foi a escolha que fiz. É preciso ver o
é “Portugal”, que é visto de uma maneira seguinte, que é exatamente o que se passa
empírica, utilizando a sua palavra, e com os autores d’O Cânone. Chamou-lhe
original. Desde o Castelo Branco Chaves um cânone iconoclasta. Curiosamente,
que não se fazia isso. Quer dizer, como é posso dizer-lhe que, tirando talvez dois
que os de fora nos veem? Considera um nomes – e não era para tirar esses, era
pouco que há um complexo entre os que porque talvez me parecessem melhor
estão aqui e que são vistos pelos que outros –, eu adiro completamente a esta
estão de fora e que recebem o olhar do escolha. Parece-me que até é uma escolha
outro como se fosse uma verdade quase bastante consensual. Não tenho objeção
absoluta, digamos assim. absolutamente nenhuma. Uma das
Porquê Portugal? que tenho pode parecer um bocadinho
MT— Porque todas as discussões sobre atrevida: o rei Dom Duarte. Eu pergunto:
estas coisas aparecem muitas vezes ligadas quem é que hoje lê o rei Dom Duarte?
a discussões sobre aquilo que constitui um MR— Saiu uma nova edição.
país, ou sobre a identidade nacional. E, EL— Eu sei, mas isso não quer dizer que
muitas vezes, é uma certa ideia de Portugal seja lido…
que permite derivar num certo tipo de MR— Pelo menos, o editor espera vender…
listas. Pense no livro da 3.a classe, para não MT— Se me posso meter na conversa,
irmos mais longe. Há uma relação entre aí há uma diferença de intenção entre
os autores incluídos nessa seleta, a maior o seu livro e o nosso que pode explicar
parte dos quais só recordamos hoje como isso. Como estava a dizer, a propósito do
nomes de ruas (se é que nos recordamos de Domingos Monteiro, um dos propósitos
todo), e uma ideia muito particular sobre que teve parece-me que foi levar pessoas
o que é um país – para onde vai, de onde que nunca tinham lido um livro a ler. Essa
vem, quem são os protagonistas. não foi a nossa preocupação.
MR— Uma identidade cultural, não EL— O que eu às vezes me pergunto em
é? Vou dirigir-me agora ao Professor relação a certos nomes estabelecidos é se,
Eugénio Lisboa. Professor, eu tenho uma com outra situação social (por exemplo,
provocação para lhe fazer: porque é que caso Dom Duarte não tivesse sido rei), os
pôs na sua lista o Domingos Monteiro? textos deles teriam sobrevivido até hoje. É
Eugénio Lisboa (EL)— Porque é um a pergunta que faço. Eu tenho as minhas
fabuloso contista. As pessoas nunca se dúvidas. E não devemos ter medo de
devem esquecer, quando estão a falar questionar. Conta-se que o Lope de Vega,
deste cânone, que é um cânone para no leito de morte, mandou chamar não
aliciar leitores não treinados. E os leitores um padre, mas um médico. Porque dizia
não treinados aliciam-se com uma boa ele: “Tenho uma confissão terrível a fazer;
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Entrevista de Miguel Real a Miguel Tamen e Eugénio Lisboa
depois de fazer essa confissão, não tenho eu gosto muito. E os ingleses resolveram
cara para olhar para ninguém. De maneira pôr uma pessoa a ir ao palco contar uma
que preciso de saber se tenho muito tempo parte da História de Portugal para se
de vida ou se tenho pouco; se tiver pouco, perceber a peça. Eu disse: “Não estou de
faço a confissão.” Chamou o médico, o acordo! O Garrett, na peça, dá informação
médico examinou-o com muito cuidado suficiente para não se precisar de mais
e, no fim, disse-lhe: “Se o senhor quer nada”. Porque, se não o tivesse feito, não
realmente fazer uma confissão, é melhor tinha sido competente como dramaturgo.
fazê-la depressa, porque a sua vida está por Portanto, às vezes, nós somos um
um fio.” E o Lope de Vega declarou: bocadinho paternalistas: “O autor, coitado,
“O que eu tenho a confessar é horrível! É não soube… Deixa-me cá ajudá-lo.” Um
que eu acho o Dante tão chato!”. [Risos] grande autor não precisa disso!
MR— É o que o Professor diz do Joyce. MR— Posso fazer outra provocação?
EL— Do Joyce, que eu acho uma chatice EL— Pode, pode.
completa! MR— Porquê Fialho e Teixeira Gomes e
MR— É totalmente chato! As 30 primeiras não Raul Brandão?
páginas… EL— A minha resposta é muito simples:
EL— Mas o número de autores, de nome, esta não pretende ser a escolha, é uma
que depois do meu ato de coragem escolha. Porque eu podia perfeitamente
me ajudaram! O Borges, a Virginia ter escolhido o Raul Brandão, que
Woolf achavam o Joyce absolutamente admiro imensamente. Aliás, eu fiz para
intragável! mim próprio uma lista para uma outra
MR— Estavam no mesmo tempo. Não “escolha de livros para o leitor relutante”
estou a desculpar o Joyce, é realmente e encontrei uns 30 ou 40 nomes que
chato e é preciso uma certa atitude podiam perfeitamente servir.
de espírito para o ler, mas é preciso MR— Tive a sensação de que seria essa a
saber história também. E a história resposta.
é extremamente importante para a EL— E para O Cânone a mesma coisa.
literatura, no sentido em que há um Vocês certamente deixaram de fora gente
estofo. E, nesse sentido, era preciso que podia perfeitamente entrar.
perceber como é que a literatura estava MT— Nós oscilámos entre uma versão
nessa altura, no princípio do século XX, mais maximal e uma versão ainda mais
o que é que ele fez… minimal. E foi um motivo de grandes
EL— Para isso, dava uma resposta: discussões entre nós ao longo do tempo.
quando se diz “Para gostar deste livro, é Acabámos por conseguir uma versão inter-
preciso saber-se história”, por exemplo, média, relativamente comprimida, porque
eu digo “Então é porque o autor não quanto mais expandíssemos, mais se iriam
foi competente”, porque deve dar ao parecer as entradas com entradas de dicio-
leitor a informação suficiente e o mais nário ou verbetes de enciclopédia, que não
discretamente possível para ele já não era aquilo que nós queríamos fazer.
precisar disso. Se não o fizer, é porque não EL— Respondendo ainda à pergunta:
está a ser competente. o Raul Brandão é um enormíssimo
MR— Penso que ele dá, é o estilo dele… escritor mas, para o meu fim, ele é um
EL— Uma ocasião, em Londres, quando escritor a que eu chamo “um bocadinho
eu estava lá como conselheiro cultural, desarrumado”, como o é, por exemplo, o
encenámos o Frei Luís de Sousa, do Dostoyévski. Para este leitor, não sei se
Almeida Garrett, que é uma obra de que seria a melhor isca de início.
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Entrevista de Miguel Real a Miguel Tamen e Eugénio Lisboa
MR— Professor Miguel Tamen, porque é MR— Sim, não há nenhuma grande
que o Cânone ficou “amputado” da idade poetisa romântica. Aliás é dito aqui…
Média? Não é assim? Fernão Lopes, Dom MT— E, se calhar, não há nenhum grande
Duarte… poeta romântico.
MT— Lírica Medieval, há um ensaio sobre MR— É dito aqui, já não me lembro por
Lírica Medieval. quem, exatamente isso: a grande poetisa
MR— Eu fiquei nos Cancioneiros… romântica, que não houve, talvez tenha
MT— Há um ensaio sobre Lírica Medieval, sido a Florbela Espanca.
do João Dionísio. E, no fundo, nós, a MT— Claro. Uma espécie de romântica
propósito de certos tópicos, fizemos um atrasada, 100 anos depois…
bocadinho de batota, que foi encomendar MR— No sentido da iconoclastia… A
ou fazer ensaios sobre períodos, sobre Florbela Espanca também faz parte.
Lírica Medieval, sobre Renascimento, Ela estava fora do cânone, era lida
sobre Barroco, essencialmente. Sobretudo popularmente, aqui e no Brasil, mas
sobre períodos mais remotos. Mas, no estava fora do cânone até à década de 90,
fundo, por exemplo, pensando no cânone quando o Joaquim Manuel Magalhães fez
de poesia lírica medieval, o número de aquele pequeno ensaio que agora aparece
autores é muito grande; se calhar nenhum em todas as obras dela. E agora está n’O
autor considerado individualmente Cânone. Eu fiquei imensamente contente
poderia ser tratado como autor no por ver a Florbela Espanca ali, ao lado de
sentido moderno do termo. E aqui há um outros grandes poetas.
contraste enorme, por exemplo, entre MT— O caso da Florbela Espanca é um
o que se passa na poesia francesa, ou caso muito interessante, porque é um
na poesia italiana, ou mesmo na poesia caso de divergência de perceção entre as
inglesa da mesma altura, e o que se passa pessoas que escrevem sobre literatura e as
na poesia portuguesa. Eu não sei se Dom pessoas que compram livros de versos. Tal
Dinis era um grande escritor. Queria saber como há poetas que se diz que são poetas
mais, não tenho evidência suficiente. dos poetas, a Florbela Espanca não é uma
MR— O “verde pinho” entrou na memória poeta dos poetas.
popular. EL— Mas a Florbela, por outro lado,
MT— E há cantigas maravilhosas do Airas compreende-se que anteriormente
Nunes, mas são poucas. não fizesse parte do cânone, talvez por
MR— Por outro lado, fizeram o Barroco, preconceito social. A sua vida pessoal,
o Renascimento, mas não fizeram o a conceção do amor, um amor muito
Romantismo… narcisista (ela gosta muito de si própria)
MT— Porque aí há um fenómeno que, para aquela época, era capaz de ser
interessante de perspetiva histórica e de um bocado atrevidote…
paralaxe, se é que posso usar a metáfora: MR— Não era capaz, era mesmo. De tal
é que quanto mais próximo de uma maneira que a Virgínia Vitorino na mesma
certa perceção contemporânea, por um época publicou Os Namorados e teve 12
lado, mais difícil é fazer escolhas, e por edições em 10 anos, enquanto ela teve só
outro lado, mais tentados somos nós a uma edição.
individualizar nomes. Porque os nomes MT— Mas, em relação à Florbela Espanca,
estão mais próximos de nós. Para além de há uma coisa interessante – uma espécie
que, se calhar, Romantismo é um exagero de teste semiempírico que se pode fazer
quando se descreve literatura portuguesa ou imaginar fazer – e que tem a ver com
dessa altura. a dicção particular da Florbela Espanca.
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Entrevista de Miguel Real a Miguel Tamen e Eugénio Lisboa
À vista desarmada, a Florbela Espanca é MT— Mas o Herberto Hélder é óbvio que
muito parecida com a Virgínia Vitorino e não era a isca ideal. Aquelas metáforas
com as senhoras que escreviam na altura, dele, a aproximação do inaproximável,
a maior parte delas esquecidas. que é uma das características daquele
MR— Agora o contrário da Florbela para-surrealismo… É evidente que não
Espanca. Professor Eugénio Lisboa, ia converter ninguém com o Herberto
porque é que tirou toda a poesia de 61 do Hélder. Admiro-o imenso, acho que é um
seu cânone? Nem Maria Teresa Horta, nem dos nossos grandes poetas, mas não para
Fiama Hasse Pais Brandão… este fim.
EL— Precisamente pela razão da MR— Fiquei muito feliz por ter posto o
acessibilidade. A poesia de 61 não é, na Sílvio Lima.
minha opinião, a mais indicada para EL— O Sílvio Lima, eu admiro-o imenso.
um leitor que não lê. A poesia, de uma O Ensaio sobre a Essência do Ensaio é um
maneira geral, já não é aquilo por onde grande livro.
as pessoas gostam de começar. E a poesia MR— E incluiu o António Sérgio, o
de 61, com aquela falta de nexos lógicos, Oliveira Martins e o Antero, As Causas da
etc… Eu também não recomendaria aos Decadência dos Povos Peninsulares. Isso
ingleses, para começarem, um T.S. Elliot, é do cânone.
independentemente da grandeza dele EL— Não é que eu ache que o Antero,
como poeta, não é? Portanto, a razão nesse texto, tenha esgotado as causas
foi apenas essa. Não houve preconceito da decadência dos povos peninsulares.
pessoal contra isso. Mas é um grande texto de meditação.
MR— Eu fiquei admiradíssimo quando E, para mim, é um modelo de prosa de
não vi ninguém, absolutamente… A Maria ideias. Porque todos os grandes filósofos,
Teresa Horta… sejam eles alemães, ingleses, espanhóis,
EL— Eu gosto imenso da Maria Teresa têm uma característica: a grande clareza
Horta. de ideias e a transparência da escrita.
MR— Ela tem imensos versos populares. E Aliás, eu costumo citar muitas vezes o
romances, também. Mas também não pôs Wittgenstein, que dizia que, quando
o Ruy Belo. É um dos melhores poetas do uma ideia não se consegue exprimir com
século XX. grande simplicidade e transparência, é
EL— O Ruy Belo podia perfeitamente pôr, porque talvez ainda não esteja madura
sim. Não é completamente easy going, para ser expressa. E o Antero, nisso, é um
mas tem condições de acessibilidade e grande exemplo na nossa literatura.
de sedução suficientes. Uma ocasião, um MR— Ele não era propriamente inovador,
aluno em Lourenço Marques, na aula de nas Causas… O Alexandre Herculano
Ciências Geográficas, queria embatucar tinha-o dito já, também, o Agostinho
um professor (um professor com uma Macedo, mas numa outra visão.
certa pompa) e perguntou-lhe: “Professor, EL— O Oliveira Martins, o Portugal
porque é que, na posição relativa dos Contemporâneo e a História de Portugal, eu
astros do sistema solar, nunca há uma acho que são livros fundamentais para nós
posição em que o Sol fique entre a Terra e percebermos quem somos.
a Lua?”. E ele respondeu: “Olhe, menino, MR— Sem dúvida. Para voltarmos ao livro
além do mais, porque não cabe.” [Risos] Eu O Cânone, a que eu chamei “iconoclasta”,
diria que o Ruy Belo não coube aqui. registei que um livro é iconoclasta quando
MR— Eu já não ia fazer a pergunta altera a nossa visão do passado e não
seguinte, que era sobre o Herberto Hélder. respeita a tradição memorialística da
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Entrevista de Miguel Real a Miguel Tamen e Eugénio Lisboa
sociedade. Por falar em memória, um dos MT— Como reação à ideia de que
verbetes de que mais gostei foi aquele precisamos de uma teoria geral de
que é sobre memória, sobre memórias, do Portugal para falar de literatura
Rui Ramos. portuguesa. Felizmente não precisamos.
MT— É um ensaio sobre uma tradição Uma teoria geral sobre um país é como
de memorialismo, não apenas literário, aquelas ajudas nas provas de ciclismo,
também histórico, autobiográfico, de quando membros do público empurram
modo geral. os ciclistas para a frente. Não vale a pena.
MR— Eu acho que ele esgota o tema. Com MR— Mas tem sido sempre assim.
o número de páginas que tem, esgota o MT— Eu sei. Mas é uma tradição infeliz.
tema. Devia dar um ensaio de cento e tal MR— Pelo menos, desde o Teófilo Braga.
páginas, digamos assim… O Professor EL— Eu sei.
acha, então, que este vosso livro não MR— Com o Mendes dos Remédios era
altera a visão da literatura? o nacionalismo – era a época do Salazar.
MT— Não nos compete a nós dizer se Depois vieram o Óscar Lopes e o António
altera ou se não altera. José Saraiva…
MR— Eu acho que altera bastante. MT— E o Eduardo Lourenço.
MT— Houve uma coisa que nós quisemos MR— É uma pergunta que eu tenho para
fazer, mas não tem necessariamente a ver fazer. Na Crítica, não incluiu Eduardo
com alterar visão nenhuma. Quisemos Lourenço.
que todos os ensaios fossem ensaios com MT— Posso-lhe dizer uma coisa
um argumento, com uma tese. É, no francamente?
fundo, como se tivéssemos encomendado MR— Diga, diga.
a pessoas – e, desde logo, a nós próprios – MT— Não é um grande crítico. Tem um
redações com o tema “Quais são as razões grande livro: Pessoa Revisitado.
que eu tenho para estimar particularmente MR— Sabe que foi o único livro que ele fez
este autor?”. E, portanto, desse ponto de por inteiro?
vista, quando passamos ao domínio do MT— Sei. E nota-se.
argumento, quando já não estamos a EL— Também concordo consigo. Eu não
falar do que nos passa pela alma ou do vejo o Eduardo Lourenço como um grande
que sentimos entre a segunda e a terceira ensaísta, de maneira nenhuma.
costela, quando somos obrigados a dar MR— Eu sei. Eu li o artigo que escreveu no
razões para as nossas preferências, estamos Jornal de Letras quando ele morreu.
pelo menos a dizer que não pensamos estas EL— Aquilo foi um bocadinho para criar
coisas por acaso. Agora, não sabemos o uma divergência. Quando um autor
que vai acontecer às cabeças das pessoas. É morre, não se lhe faz uma homenagem,
provável que não aconteça muito. faz-se-lhe um balanço. É o que eu vejo
MR— Seria verdade se eu dissesse que fazer nos obituários, por exemplo, do New
este Cânone pressupõe uma identidade, York Times. Faz-se um balanço: diz-se o
mas não a explicita? Uma identidade de bom e o menos bom. E aquilo diminui
Portugal. culturalmente o nosso meio intelectual.
MT— Não, não, não. Nós não temos MR— Mas o Professor Miguel Tamen
nenhuma teoria da identidade na manga. reduziu a Crítica Literária praticamente ao
MR— Os textos – neste caso, até do Gaspar Simões e ao Eduardo Prado Coelho.
Professor (o texto sobre Portugal) – MT— Mas aí o propósito foi um
são bastante empíricos, baseados na bocadinho diferente, foi tentar fazer
identidade… um pouco como o Plutarco fez em Vidas
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Entrevista de Miguel Real a Miguel Tamen e Eugénio Lisboa
Paralelas (não sei aqui quem é o grego e livro Esteiros do Soeiro Pereira Gomes é
quem é o romano). Eram dois críticos do um livro admirável sobre a adolescência.
século XX que foram muito influentes no Impressionou-me imenso.
seu tempo, de maneiras completamente MR— Há um outro também muito bom,
diferentes, que não gostavam um do outro que é do José Marmelo e Silva, mas é
e que duraram muito tempo. Isto são pouco conhecido.
simplesmente constatações de factos. EL— O Marmelo e Silva, eu gosto imenso
MR— Mas acaba de uma maneira muito dele.
bela. Não porque eles quisessem, mas MR— O que ambos não puseram na
porque as condições se alteraram. lista foi o Alves Redol, nem o Manuel da
MT— Não quero fazer sociologia da Fonseca.
política ou história da política, mas Prado EL— Ah, o Manuel da Fonseca! Volto à
Coelho foi um crítico cuja vantagem minha, não coube! Faria perfeitamente
comparativa – se é que posso usar o termo parte, não há incompatibilidade nenhuma
– tinha a ver com o facto de ele ter tido entre a minha lista e o Manuel da Fonseca.
acesso a livros a que quase mais ninguém Não coube.
tinha acesso. De repente, quando se MR— E o Alves Redol.
liberalizou o comércio externo e muitas EL— Eu acho a Aldeia Nova um livro
pessoas passaram a ter acesso a esses livros, admirável. E a poesia dele.
lá se foi a vantagem comparativa. MR— A poesia um pouco singela da Rosa
MR— Senhor Professor Eugénio Lisboa, dos Ventos, que é o primeiro livro dele. E os
sabe que fiquei admirado por ter incluído contos…
os Esteiros? EL— E a poesia do Manuel da Fonseca,
MT— Ah, mas eu li os Esteiros quando curiosamente, tem a admiração dos
era adolescente, quando era aluno do indivíduos mais inesperados. Por exemplo,
liceu, e li-o com deslumbramento. Eu quem pense na poesia do Alberto Lacerda
nunca fiz crítica ideológica. Não me não pensa na poesia do Manuel da
interessa nada saber se o indivíduo é da Fonseca. No entanto, o Alberto Lacerda
esquerda, da direita ou do centro. E o admirava profundamente a poesia dele.
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Entrevista de Miguel Real a Miguel Tamen e Eugénio Lisboa
MR— Qual é a explicação para não e aquilo eram historietas que eu escrevia
aparecerem n’O Cânone os grandes do para os meus sobrinhos, para os entreter”.
neorrealismo, Professor Miguel Tamen? E o Thomas Mann disse: “Aqui está como
São ultrapassados? Têm um contexto uma literatura despretensiosa pode
social diferente? realmente ser uma literatura atraente,
MT— As nossas conversas não foram uma literatura que desempenha o seu
conversas sobre quem está e quem não papel.” E acrescentou: “A partir daí, eu
está, quem fica e quem não fica. Houve tive sempre cuidado em nunca separar
consensos de que não houve necessidade a chamada alta literatura da baixa
de falar e houve divergências que foi literatura, porque isso não existe.” O
preciso clarificar. Eu não me lembro de Miguel Sousa Tavares, veja: eu quero
nenhuma discussão sobre neorrealismo. iscar leitores que até agora não tenham
O Carlos de Oliveira é um caso diferente, sido leitores; o Miguel Sousa Tavares é
é um candidato ao título de “O poeta obviamente apelativo, porque ele vendeu
italiano que não tivemos”, mas não não sei quantas edições do Equador.
pertence a essa história. É diferente. Eu próprio, que sou um leitor treinado,
MR— Bom, vamos terminar. Espero que li aquele livro, que achei empolgante.
não tenha provocado demasiado com Portanto, se acho que é uma boa isca,
as minhas perguntas. São perguntas porque é que não há de aparecer?
legítimas de quem lê um e outro, e fica com MR— E porque não o José Rodrigues dos
dúvidas. Santos?
EL— Eu admirei-me não foi das perguntas EL— Esse menos… Esse, acho que é um
que fez, foi das perguntas que não fez! Dan Brown à moda portuguesa. Eu gosto
Vou-lhe dizer uma: não me perguntou imenso de thrillers e leio imensos thrillers,
porque é que eu incluí o Miguel Sousa mas dos bons…
Tavares… MR— Terminamos, então. Obrigado aos
MR— Achei que era demasiado dois.
provocador…
EL— Essa é a pergunta que mais me têm
feito.
MR— E a Rosa Lobato Faria também. Já
agora, porquê?
EL— Eu procuro nunca ter o preconceito
da grande literatura e da pequena
literatura, da alta literatura e da baixa
literatura. Há, aliás, um ensaio admirável
escrito pelo Thomas Mann…Quando ele
foi a Estocolmo receber o prémio Nobel,
em 1929, ficou sentado ao lado da Selma
Lagerloff, que era a escritora sueca que
tinha recebido também o prémio Nobel há
muitos anos (ela foi logo das primeiras). E
disse-lhe que tinha muito gosto em estar
ali sentado ao seu lado, porque gostava
muito dos seus livros. E ela disse-lhe, com
grande humildade: “Ah, sabe, eu não tinha
filhos, nunca me casei, tinha sobrinhos,
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ARTIGOS
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ESTUDOS
Leitores de livros em Portugal. Uma prática
cultural em transformação
Book readers in Portugal. A cultural practice in
transformation
Miguel Ângelo Lopes, José Soares Neves e Patrícia Ávila
RESUMO PALAVRAS-CHAVE
Este artigo apresenta novos contributos para sociologia da leitura, leitura de livros,
compreender a evolução recente das práticas práticas de leitura, perfis de leitores
de leitura, em particular da leitura de livros,
em Portugal. KEYWORDS
Perspetiva-se a leitura de livros como uma sociology of reading, book reading,
atividade realizada em tempos de lazer e reading practices, reader profiles
procura-se, através de uma análise diacrónica,
atualizar o conhecimento sobre as práticas de
leitura de livros em Portugal e sobre o perfil INTRODUÇÃO
sociodemográfico e socioprofissional dos
leitores de livros. Nas sociedades atuais, o lugar do livro e a
A estratégia metodológica seguida é sua importância social têm de ser entendi-
quantitativa, incidindo em dados sobre dos num quadro em que se multiplicam os
leitura de livros contidos em inquéritos suportes ou meios que possibilitam a circula-
internacionais à população. Conclui-se que ção da informação escrita e se generalizam e
os níveis de leitura vêm diminuindo, em fragmentam as práticas de leitura (Furtado,
particular entre os mais jovens e entre os 2000, 2012). Com efeito, vivemos numa épo-
mais qualificados em termos escolares e ca em que o texto escrito circula de uma for-
socioprofissionais. ma sem precedentes – seja em suportes como
livros, jornais e revistas, seja em pequenos
ABSTRACT textos (nas legendas na televisão, no cinema,
Taking reading as a cultural practice as a nas redes sociais, em documentos e formulá-
core concept, i.e, taking reading as a leisure rios, bulas de medicamentos, publicidade em
activity, a diachronic analysis is then carried forma de folhetos ou cartazes, entre outros)
out to update the knowledge about book reading – e o recurso à leitura é significativamente
practices in Portugal and the socio-demographic maior por necessidade de decifrar e interpre-
and socio-professional profile of book readers. tar essa informação (Ávila, 2008; Benavente
The methodological strategy followed is et al., 1996; Costa, 2003).
quantitative, focusing on data on book reading As evoluções tecnológicas dos últimos 20
contained in international population surveys. anos, nomeadamente ao nível das tecnolo-
We conclude that reading levels have been gias digitais, não diminuem a importância da
decreasing, particularly among the youngest leitura. Na chamada sociedade em rede, onde
and most qualified in educational and socio- tanto o acesso à Internet, ao computador, ao
professional terms. tablet, e principalmente ao smartphone, como
a utilização das redes sociais online têm vindo
a crescer (Cardoso et al., 2015), a “leitura sur-
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Leitores de livros em Portugal. Uma prática cultural em transformação
ge como sendo cada vez mais necessária em como uma prática social – desde a relação
diversos contextos, mas, ao mesmo tempo, que se estabelece entre o leitor e o autor,
fragmenta-se e dispersa-se, passando a estar passando pela partilha (física e digital) de
ancorada em múltiplos suportes” (Ávila, material escrito entre indivíduos, até à
2008, p. 72). Com o inegável avanço e presen- discussão de opiniões em clubes de livro
ça crescente de formatos de leitura inscritos presenciais ou em plataformas digitais
em dispositivos digitais, incluindo livros, as como a Goodreads (Sedo, 2011) – e não
sociedades atuais caracterizam-se pela coe- tanto como uma atividade individual (Ba-
xistência de uma multiplicidade de suportes ron, 2015, pp. 113–130).
disponíveis para a leitura. Assim, embora as Também numa perspetiva sociológica,
tecnologias digitais assumam uma impor- vários autores abordam a leitura como
tância cada vez maior, na vida social contem- prática cultural (Coulangeon, 2005, pp.
porânea estão presentes diferentes meios de 3–4), ou seja, enfatizam a leitura como
comunicação e diferentes suportes, impressos atividade realizada em tempo de lazer,
e digitais, através dos quais a leitura se desen- por prazer, fruição intelectual, distinta da
volve (Ávila, 2008, pp. 73–74). leitura efetuada por obrigações profissio-
Apesar disso, investigar o lugar do livro nais ou escolares (Donnat, 2009; Griswold
e a evolução social das práticas de leitura et al., 2005, 2011; Neves, 2015).
neste suporte não deixou de ser relevante
sociologicamente. Como têm, afinal, evoluí- 1.1. Leitores e perfis de leitores. Os
do as práticas de leitura de livros neste con- inquéritos sociológicos sobre leitura
texto? Sabendo-se que nas sociedades atuais As “sociologias da leitura” nascem no
os livros coexistem com uma multiplicidade começo do século passado, sendo que o
de outros suportes que convocam a leitura, desenvolvimento dos inquéritos sociológi-
e que as práticas de comunicação, de entre- cos sobre leitura está “intimamente ligado
tenimento, de lazer e de acesso ao conheci- à história política e social do século, às
mento propiciadas pelos dispositivos digi- suas crises e às suas esperanças” (Poulain,
tais assumem uma importância cada vez 2004, p. 17). Quer em termos geográficos,
maior, qual o lugar do livro e da leitura de quer em número, a expansão destes inqué-
livros? O objetivo do presente artigo[1] é con- ritos ocorre ao longo do século XX (Neves,
tribuir para a reflexão sociológica sobre este 2011, pp. 67–69; Poulain, 2004), embora
tema recorrendo a uma fonte secundária de a noção de leitura como lazer tenha parti-
dados – o Inquérito à Educação e Formação cular incidência, neste tipo de inquéritos,
de Adultos (IEFA) –, a partir da qual é pos- após a Segunda Guerra Mundial (Poulain,
sível analisar a incidência das práticas de 2004, p. 23).
leitura de livros em Portugal em 2007, 2011 Portugal tem também já alguma tradição
e 2016, dando conta da evolução registada em estudos extensivos que abordam, direta
quanto aos contingentes de leitores e quan- ou indiretamente, as práticas de leitura.
to aos respetivos perfis sociais. Promovidos por diferentes entidades,
tendo, ou não, as práticas de leitura como
objeto de estudo principal, abrangendo
1. A LEITURA DE LIVROS COMO toda a população ou direcionados apenas
PRÁTICA CULTURAL para determinados segmentos da mesma,
os estudos sobre práticas de leitura têm tido
A leitura de livros ocupa um lugar cen- alguma expressão na investigação socioló-
tral na sociologia da leitura (Neves, 2011, gica, principalmente após a transição para a
p. 25) e tem vindo a ser conceptualizada democracia e até 2007 (Neves, 2015c).
16 ENTRELER
Leitores de livros em Portugal. Uma prática cultural em transformação
Interessa sobretudo fazer aqui referên- Que perfis eram esses, ou, dito de outro
cia aos três grandes inquéritos sociológicos modo, que características sociodemográ-
sobre leitura que até hoje se realizaram ficas foram reveladas nesses estudos sobre
em Portugal. O primeiro desses inquéritos, os portugueses maiores de 15 anos leitores
Hábitos de Leitura em Portugal: Inquérito de livros? Que eram maioritariamente do
Sociológico – realizado em 1988 (Freitas & sexo feminino, mais jovens (com destaque
Santos, 1991, 1992b, 1992a) –, teve como para os estudantes), com níveis de esco-
objetivo “fornecer elementos sobre as prá- laridade e rendimentos mais elevados, e
ticas de leitura em Portugal”, respondendo que residiam maioritariamente em áreas
a perguntas como: “quem lê? O que lê? urbanas metropolitanas (Neves, 2015a,
Com que frequência? Que livros e quantos 2015b; Santos et al., 2007). Em termos da
livros se possuem? Quem compra e quan- estrutura socioprofissional[2], constatou-se
tos livros se compra? Onde se realiza o uma sobrerrepresentação na categoria dos
aprovisionamento de livros? Qual o lugar Profissionais Técnicos e de Enquadra-
da leitura entre escolhas culturais?” (Frei- mento, quer na leitura de livros, quer nas
tas & Santos, 1991, p. 67). Em 1995 foi práticas culturais em geral (Neves, 2015a,
realizado o segundo inquérito sociológico, p. 74, 2015c, p. 131).
Hábitos de Leitura: Um Inquérito à População Não existindo desde 2007 um inquérito
Portuguesa, que teve como finalidade “ca- que incida especificamente sobre a leitura
racterizar e analisar os hábitos de leitura de livros em Portugal, pretende-se com
dos portugueses” (Freitas et al., 1997, p. este artigo colmatar algumas lacunas so-
17). O último inquérito sociológico sobre bre a evolução dos contingentes de leitores
leitura realizado em Portugal decorreu em e dos seus perfis sociais desde essa altura.
2006/2007 (Santos, Neves, Lima, & Car-
valho, 2007). Algumas das questões que
orientaram este estudo foram: “quem lê, o 2. METODOLOGIA
que lê, onde lê, porque lê (ou não), qual o
lugar da leitura no conjunto das práticas Neste estudo, recorremos a dados recolhi-
culturais?” (Santos et al., 2007, p. 7), sendo dos no âmbito do Inquérito à Educação e
de destacar a análise comparativa com os Formação de Adultos (IEFA)[3] de 2007, 2011
inquéritos de 1988 e 1995. e 2016[4], o qual corresponde à edição na-
Os resultados desses inquéritos mos- cional do Adult Education Survey (AES), um
traram que se assistiu, até 2007, ao cres- inquérito europeu coordenado pelo Euros-
cimento do número dos leitores de livros, tat, que em Portugal é conduzido pelo INE.
em grande parte devido ao aumento de Foram analisadas as duas perguntas sobre
pequenos leitores (Santos et al., 2007, pp. leitura de livros presentes nas três edições.
47-51), e que se manteve alguma regula- Uma delas sobre a presença, ou não, da
ridade no que se refere aos perfis sociais. prática de leitura de livros como atividade
Embora existissem diferenças, muitas de lazer no último ano (“Nos últimos 12
delas assinaláveis, entre Portugal e os meses leu algum livro como atividade de
países da União Europeia no que concer- lazer?”, com resposta Sim/Não), e, no caso
ne a condições sociais, situação económi- de resposta afirmativa, uma outra pergun-
co-financeira e práticas culturais (só para ta sobre o número de livros lidos, a qual
nomear algumas), os perfis dos portugue- teve uma formulação ligeiramente dife-
ses leitores de livros assemelhavam-se rente em 2007 (“Nos últimos 12 meses, em
aos perfis dos seus congéneres europeus média, quantos livros leu como atividade
(Neves, 2015b). de lazer?”, com as categorias de resposta
ENTRELER 17
Leitores de livros em Portugal. Uma prática cultural em transformação
3. RESULTADOS
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Leitores de livros em Portugal. Uma prática cultural em transformação
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Leitores de livros em Portugal. Uma prática cultural em transformação
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Leitores de livros em Portugal. Uma prática cultural em transformação
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Leitores de livros em Portugal. Uma prática cultural em transformação
com este estudo, a análise realizada [4] As amostras dos inquéritos IEFA 2007,
permitiu reunir alguns elementos de apoio 2011 e 2013 são de 11.289, 14.189 e
à reflexão. Foi possível evidenciar que o 14.211 indivíduos, respetivamente, sendo
decréscimo verificado na leitura de livros o universo constituído pela população
entre a população mais escolarizada é residente em território nacional
mais proeminente nos mais jovens do que (Continente e Regiões Autónomas), com
nos mais velhos, o que é sociologicamente idades compreendidas entre 18 e 64 anos
muito relevante. De facto, é entre os (IEFA, 2007), e com idades compreendidas
mais jovens que os níveis de leitura entre 18 e 69 anos (IEFA 2011 e 2016)
se apresentam hoje particularmente (INE, 2009, 2013, 2017).
baixos, mesmo quando a escolaridade é [5] Para permitir a comparabilidade entre as
elevada. Os resultados mostram, assim, três edições do IEFA, foram considerados
uma grande proximidade nos níveis de os indivíduos com idades entre os 18 e os
leitura dos jovens com escolaridades 64 anos.
diferentes, os quais são transversalmente [6] Os dados relativos a este indicador dizem
baixos, apesar de permanecerem visíveis apenas respeito aos inquiridos que exercem
os efeitos do capital escolar. A questão uma atividade profissional (em 2007, n
que se coloca, e que importa continuar válido = 7741; 2011, n válido = 7795; 2016,
a acompanhar e a aprofundar noutras n válido = 8755).
investigações, é a de saber se as evidentes
diferenças registadas entre os vários
coortes geracionais refletem práticas REFERÊNCIAS
culturais diferenciadas ao longo do ciclo
de vida (o que significaria que aqueles Ávila, P. (2008). A Literacia dos Adultos.
que são jovens hoje passariam a ler mais Competências-Chave na Sociedade do
quando fossem mais velhos, sobretudo os Conhecimento. Celta Editora.
mais escolarizados), ou se, pelo contrário, Baron, N. S. (2015). Words Onscreen. Oxford
estamos perante sinais de uma profunda University Press.
mudança social que se manifesta, para já, Benavente, A. (coordenadora), Rosa, A.,
sobretudo entre as gerações mais novas. Costa, A. F. da, & Ávila, P. (1996). A
Literacia em Portugal: Resultados de
Notas uma Pesquisa Extensiva e Monográfica.
[1] Este artigo retoma parcialmente a Fundação Calouste Gulbenkian.
dissertação de mestrado em Sociologia Cardoso, G., Costa, A. F. da, Coelho, A. R., &
intitulada Leitura de livros em Portugal e na Pereira, A. (2015). A sociedade em rede
Europa. Tendências recentes numa perspetiva em Portugal: uma década de transição.
comparada (Lopes, 2019). Almedina.
[2] A categoria socioprofissional foi construída de Costa, A. F. da. (2003). Competências
acordo com a Tipologia ACM, a qual resulta para a sociedade educativa: questões
do cruzamento da profissão com a situação na teóricas e resultados de investigação.
profissão (Costa, 2008, pp. 227–228; Costa et In AA.VV. (Ed.), Cruzamento de Saberes
al., 2007; Costa & Mauritti, 2018). Aprendizagens Sustentáveis (pp. 179–
[3] O IEFA é um inquérito à população sobre 206). Fundação Calouste Gulbenkian.
educação e formação de adultos, que Costa, A. F. da. (2008). Sociedade de bairro.
inclui um conjunto de questões sobre Dinâmicas Sociais da Identidade Cultural.
“participação em atividades culturais e Celta Editora (2.ª Edição).
sociais” (INE, 2007, pp. 3–4).
ENTRELER 23
Leitores de livros em Portugal. Uma prática cultural em transformação
Costa, A. F. da, Machado, F. L., & Almeida, J. Griswold, W. (2008). Regionalism and the
F. de. (2007). Classes sociais e recursos reading class. The University of Chicago
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24 ENTRELER
Leitores de livros em Portugal. Uma prática cultural em transformação
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ARTIGOS
ESTUDOS
Do livro como objeto à leitura como evento
From the book as an object to reading as an event
Ana Sabino
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Do livro como objeto à leitura como evento
ENTRELER 27
Do livro como objeto à leitura como evento
Esse estudo segue ainda, em parte, outra entre si tanto novas condições de leitura
sequência de sugestões para reflexão que a quanto novas formas de as utilizar. O
autora deixa no mesmo ensaio: enfoque é dado à ação; o objeto serve para
(1) start by analyzing how a book works o despoletar. Mas isto não significa que
rather than describing what we think it is; o objeto encerra em si mesmo o sentido
(2) describe the program that arises from a — significa, sim, que ele cria as condições
book’s formal structures; (3) discard the idea para que a leitura aconteça e o leitor crie
of iconic metaphors of book structure in favor um sentido:
of understanding the way these forms serve Thus we have to understand texts, images,
as constrained parameters for performance. etc. as events, not entities. In their literal and
(Drucker, 2009a: 170, ênfase meu) physical construction, they express conditions
Essa procura de tudo o que, no formato and a field of forces [...]. The material existence
códice, é programático, é fundamental serves as a provocation, set of clues and cues for a
para que se possa efetuar uma justa performance of the text. (Drucker, 2009b: 13–4,
transição para o livro eletrónico. É, ênfase meu)
não só, mas também, essa necessidade Sublinho, portanto, a partir de Drucker,
de transição para novos formatos que a questão da atuação; da leitura como
nos força a dispensar ao livro as suas ação que é despoletada pela materialidade
características incidentais e a concentrar- do texto. Na materialidade do texto —
nos na sua capacidade nuclear: a de dar na sua instanciação particular, presente
a ler. Ou seja, tentar alcançar «a ideia de perante nós — poderemos encontrar este
livro enquanto espaço performativo para a conjunto de pistas e indicações, presentes
produção de leitura» (Drucker, 2009a: 169, em cada um dos elementos visuais e
em tradução livre[4]). materiais, gráficos e tipográficos, de um
Drucker prossegue a sua argumentação livro. Esses vários elementos não têm
no sentido da leitura enquanto atuação um sentido fixo, eles encontram o seu
num outro ensaio: «Entity to Event: sentido e a sua função na interação com
From Literal, Mechanistic Materiality o leitor. É no momento do encontro
to Probabilistic Materiality», no qual entre o trabalho do designer ou tipógrafo
define o que se pode entender por leitura que os instalou, seguindo convenções
probabilística: «A probabilistic reading estabelecidas por séculos desse ofício, e
suggests that any text or image (or o trabalho do leitor que os descodifica,
other aesthetic object — church, theater munido da experiência de leitura
production, musical piece) is performed informada por séculos dessa prática, que
when it is read, looked at, experienced.» se verificam estas «instruções de leitura».
(Drucker, 2009b: 13). Esta experiência
individual de leitura, em que o leitor
aciona o objeto e lhe dá sentido, por sua 2. PARA ALÉM DO PARATEXTO
vez, contribui para a formação, no leitor, de
comportamentos e hábitos de leitura, num A obra Seuils (1987), de Gérard Genette,
funcionamento que se autoalimenta e, ao fornece-nos um elenco de elementos
mesmo tempo, garante a sua perpetuação paratextuais que assistem na leitura
e a sua capacidade de adaptação a novos de um texto, como títulos, prefácios,
ambientes e a novas instruções de leitura notas, índices ou textos de contracapa.
que nos possam ser apresentadas. Estas Foi este autor, aliás, quem cunhou o
experiências individuais são partilhadas termo paratexto; o prefixo para sendo
pela comunidade leitora, que vai trocando usado no sentido de estar ao lado, ou
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Do livro como objeto à leitura como evento
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Do livro como objeto à leitura como evento
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Do livro como objeto à leitura como evento
ENTRELER 31
ARTIGOS
ESTUDOS
Práticas de leitura e competências de literacia:
resultados e ilações do PIAAC
Reading practices and literacy competencies: results
and conclusions from PIAAC
Luís Rothes e João Queirós
RESUMO ABSTRACT
O Programa Internacional para a Avaliação The Programme for the International Assess-
das Competências dos Adultos (Programme ment of Adult Competencies (PIAAC) is a
for the International Assessment of Adult multicycle programme of assessment and analy-
Competencies, PIAAC) é um programa sis of adult skills developed by the Organisation
internacional multiciclo de avaliação das for Economic Co-operation and Development
competências dos adultos promovido (OECD). It is currently the most comprehensive
pela Organização para a Cooperação e study on adult skills, allowing for an in-depth
Desenvolvimento Económico (OCDE). É analysis on adults’ proficiency in key informa-
o estudo internacional mais abrangente tion-processing skills – literacy, numeracy and
sobre as competências dos adultos e permite problem solving –, and the gathering of infor-
analisar em profundidade o modo como mation on how adults use their skills at home,
estes são capazes de mobilizar, na sua vida at work, and in the wider community. This
quotidiana, os conhecimentos e as capacidades paper presents some results of PIAAC’s Cycle
que adquiriram ao longo da vida, em três 1 on reading practices at home, at work, and in
domínios distintos: literacia, numeracia e other social settings, and aims at discussing the
resolução de problemas, nomeadamente em relations between literacy proficiency and the
ambientes tecnologicamente desafiantes. use of literacy skills by adults. Considering the
Neste artigo, serão apresentados e discutidos expected participation of Portugal in PIAAC’s
alguns resultados obtidos no 1.o Ciclo do Cycle 2, this paper will also explore the main
PIAAC sobre práticas de leitura em contexto aspects of the Programme’s literacy and reading
laboral e social e, mais em geral, sobre posse components conceptual framework and reflect
e uso de competências de literacia pelos on the opportunities the appropriation and use
adultos participantes. Tendo em conta a of this conceptual framework, and of PIAAC’s
participação prevista de Portugal no 2.o Ciclo results, by adult educators and trainers can bring
deste Programa, o artigo explorará ainda to the building and structuring of new strategies
o quadro concetual que guia a avaliação and methodologies aiming at the promotion of
das competências de literacia neste novo reading practices and the development of litera-
andamento do estudo e procurará refletir cy skills among adults.
sobre as oportunidades que a apropriação deste
quadro concetual e dos resultados do PIAAC PALAVRAS-CHAVE
pode suscitar em matéria de fundamentação leitura, literacia, competências dos
e organização das estratégias e das práticas de adultos, PIAAC, Portugal
promoção da leitura e de desenvolvimento
de competências de literacia concebidas e KEYWORDS
dinamizadas por profissionais do campo reading, literacy, adult competencies,
alargado da educação e formação de adultos. PIAAC, Portugal
32 ENTRELER
Práticas de leitura e competências de literacia: resultados e ilações do PIAAC
ENTRELER 33
Práticas de leitura e competências de literacia: resultados e ilações do PIAAC
34 ENTRELER
Práticas de leitura e competências de literacia: resultados e ilações do PIAAC
mais baixo – até ao “Nível 5” – o mais alto) incluindo aqueles que estão nos níveis
e quatro na resolução de problemas (de mais baixos de literacia; a gama de
“Abaixo do Nível 1” – o mais baixo – até ao textos a serem considerados deve ser
“Nível 3” – o mais alto). mais ampla do que a mobilizada nas
A construção do processo de avaliação avaliações anteriores, incluindo os textos
das competências de literacia partiu, frequentemente identificados como textos
por parte do PIAAC, da identificação eletrónicos; e o tipo de comportamento de
das tarefas de leitura e de escrita com literacia medido deve ir além do simples
que as pessoas estão confrontadas uso de texto para um propósito imediato,
no atual quadro informacional e de modo a permitir uma compreensão
comunicacional. A estrutura adotada, mais profunda da competência de
ainda que expandindo a definição de literacia. Em terceiro lugar, a definição
compreensão de leitura, baseou-se em procurou permitir uma ligação com as
definições anteriores de compreensão avaliações IALS e ALL, favorecendo a
de textos, especialmente as do Inquérito análise das tendências verificadas ao
Internacional à Literacia dos Adultos longo do tempo. Finalmente, sublinha-se
(International Adult Literacy Survey, IALS), que a avaliação cognitiva, por si só, não
concretizado entre 1994 e 1998, e do é suficiente para compreender a situação
Inquérito sobre Literacia de Adultos e em termos de literacia numa determinada
Competências para a Vida (Adult Literacy sociedade, sendo importante apreciar
and Life Skills Survey, ALL), realizado entre também o envolvimento dos indivíduos
2003 e 2006. em práticas de leitura e escrita (PIAAC
No PIAAC, a literacia é entendida como Literacy Expert Group, 2009).
a capacidade da pessoa adulta para aceder, A avaliação das competências de
compreender, avaliar e refletir sobre literacia dos adultos no PIAAC envolve,
textos escritos, para poder, desta forma, portanto, diferentes tipos de texto. Eles
cumprir os seus objetivos, desenvolver distinguem-se, desde logo, pelo meio
os seus conhecimentos e potencial e que utilizam (impresso ou digital). Com
participar na sociedade (OECD, 2021). efeito, até há pouco tempo, a maioria das
Para se chegar a esta definição, leituras realizadas pelos adultos tinham
consideraram-se quatro pontos de como suporte material impresso em papel.
partida essenciais. Um primeiro afirma Atualmente, contudo, os adultos precisam
que a definição deve ser descritiva e não cada vez mais de aceder e de usar o texto
normativa. Com efeito, muitas definições que é exibido numa tela de qualquer tipo,
de literacia estabelecem um estado ideal seja de um computador, de um tablet, de
ou uma meta para a ação de promoção um smartphone ou de um qualquer outro
da literacia. Pelo contrário, o constructo suporte eletrónico.
subjacente ao PIAAC reconhece que os Ao incluir estes textos digitais, a
indivíduos variam na sua capacidade de avaliação passa a considerar novos tipos
obter sucesso na gama diversa de tarefas de textos e conteúdos. Embora haja textos
de literacia que enfrentam na sociedade semelhantes àqueles em formato papel,
contemporânea – a qual deve, por isso, ser eles são muito menos comuns nessa
avaliada. Há, em segundo lugar, a adoção forma. Algumas dessas novas combinações
de uma conceção ampla de literacia, de forma/conteúdo incluem textos
alicerçada nos seguintes pressupostos: interativos, como interações em secções
a avaliação destas competências básicas de comentários de blogs ou em threads de
deve considerar todos os adultos, resposta de e-mail, textos múltiplos, sejam
ENTRELER 35
Práticas de leitura e competências de literacia: resultados e ilações do PIAAC
36 ENTRELER
Práticas de leitura e competências de literacia: resultados e ilações do PIAAC
Há, desde logo, textos relacionados com disponíveis revelam que o modo como
o trabalho, os quais incluem materiais estes se envolvem com as práticas de
que discutem aspetos como sejam a leitura apresenta, como se sublinhará em
procura de emprego, os salários e outros seguida, correlação importante com os
benefícios e a experiência laboral. Os níveis de proficiência demonstrados.
materiais que dizem respeito à área
pessoal referem-se a um segundo contexto
considerado no PIAAC e incluem textos 2. COMPETÊNCIAS DE LITERACIA
relativos ao lar e à família (por exemplo, E PRÁTICAS DE LEITURA NO PIAAC
relações interpessoais, finanças pessoais, – RESULTADOS DO 1.º CICLO DO
habitação, seguros); saúde e segurança PROGRAMA
(por exemplo, drogas e álcool, prevenção
e tratamento de doenças, segurança 2.1. Proficiência em literacia
e prevenção de acidentes, primeiros No 1.o Ciclo do PIAAC, a proficiência
socorros e emergências, estilo de vida); média dos adultos respondentes
economia do consumidor (bancos, correspondeu, no domínio da literacia,
poupança, publicidade, preços); e lazer e no conjunto dos países da OCDE, a 266
recreação (viagens, atividades recreativas). pontos. Este valor, medido numa escala de
São mobilizados igualmente textos 500 pontos, ficou quatro pontos acima da
relacionados com a vida comunitária, proficiência média registada no domínio
incluindo-se, neste contexto, materiais da numeracia (OECD, 2019a; cf. também
que tratam de serviços públicos, governo, Rothes & Queirós, 2020). Os scores médios
grupos e atividades na comunidade. de literacia nos países da OCDE variaram
Finalmente, há também materiais entre os 296 pontos observados no Japão
relacionados com a educação e formação, e os 220 pontos registados no Chile. No
abrangendo textos que se referem a conjunto dos 38 países participantes
oportunidades de aprendizagem para os nas três rondas do 1.o Ciclo do PIAAC,
adultos. os resultados médios mais baixos foram
O uso social destas competências de obtidos no Equador e no Peru (196
literacia é, pois, muito diverso. Muitos pontos), países que, porém, não fazem
adultos parecem ler textos apenas quando formalmente parte da OCDE. No sul da
alguma tarefa assim o exige, enquanto Europa, Grécia, com 254 pontos, Espanha,
outros também leem pelo prazer que com 252 pontos, e Itália, com 250 pontos,
a leitura lhes traz ou motivados por apresentaram desempenhos em literacia
interesses mais gerais, como seja a abaixo da média dos países-membros
aprendizagem ao longo da vida, grande daquela organização, correspondendo
parte dela autodirigida e informal. também aos países com mais baixos scores
Alguns adultos leem apenas o que outras médios de literacia no conjunto dos países
pessoas ou entidades – empregadores, da União Europeia que integraram o
governos – tornam necessário, enquanto estudo (OECD, 2019a, p. 23).
outros leem por sua própria iniciativa. A maioria dos adultos participantes
Os adultos diferem, portanto, no grau no 1.o Ciclo do PIAAC apresentou um
de envolvimento com o texto e no desempenho em literacia situado num
papel que a leitura desempenha nas patamar abaixo ou, quando muito,
suas vidas. É, por isso, essencial avançar num patamar próximo da média geral
na compreensão dos respetivos níveis observada: 54,1% dos respondentes
de literacia, tanto mais que os estudos apresentaram resultados até ao “Nível 2”
ENTRELER 37
Práticas de leitura e competências de literacia: resultados e ilações do PIAAC
38 ENTRELER
Práticas de leitura e competências de literacia: resultados e ilações do PIAAC
de performance entre grupos etários não ser homens, que tendem a providenciar mais
estatisticamente significativa, ou ser até frequentemente a estes últimos contextos
favorável aos adultos mais velhos, revela favoráveis ao uso de competências de
que outros efeitos de coorte podem ser literacia e, portanto, à manutenção ou
observados – como os que decorram, por desenvolvimento dos respetivos níveis de
exemplo, de alterações na qualidade dos proficiência (OECD, 2019a, pp. 76-79).
sistemas de ensino ao longo do tempo
(OECD, 2019a, pp. 74-75; cf. também 2.2. Proficiência em literacia e
Barrett & Riddell, 2016). práticas de leitura dos adultos
Os resultados do 1.o Ciclo do PIAAC Além da associação observável entre
evidenciaram ainda a importância níveis de proficiência e determinadas
do background socioeconómico na características sociodemográficas,
determinação dos desempenhos dos os resultados do 1.o Ciclo do PIAAC
adultos. Usando o nível de escolaridade evidenciaram também a correlação
dos pais como proxy do background positiva entre os scores de literacia
socioeconómico dos respondentes, o que observados e os níveis de engajamento
os resultados do PIAAC revelaram foi que em práticas de literacia reportados
os adultos com pelo menos um progenitor pelos respondentes. Na generalidade
com escolaridade de nível superior dos países participantes no estudo, a
obtiveram, em média, mais 41 pontos na níveis de proficiência mais elevados está
escala de proficiência em literacia do que associada uma participação também ela
os adultos com progenitores sem o ensino mais consistente em práticas de leitura
secundário completo, facto não alheio (e escrita) na vida quotidiana. No mesmo
ao papel do background socioeconómico sentido, os indivíduos com mais baixos
na conformação das características índices de proficiência em literacia
diretamente associáveis à proficiência, apresentam níveis de uso de competências
mormente por via da reprodução sistematicamente abaixo dos da população
intergeracional da participação e do (in) em geral, havendo muitos que nunca leem
sucesso escolares (OECD, 2019a, pp. 81-82). ou escrevem no dia a dia, seja no contexto
Quanto ao género, os resultados do laboral, seja fora dele (OECD, 2013b; 2016).
1.o Ciclo do PIAAC não evidenciaram No grupo dos inquiridos com
senão ligeiras diferenças entre proficiência em literacia situada no “Nível
as performances dos homens e as 1” ou “Abaixo do Nível 1”, a percentagem
performances das mulheres. Na maioria dos que nunca liam no trabalho ascendia,
dos países, descontados os efeitos de de acordo com os resultados do 1.o Ciclo
outras características dos inquiridos, as do PIAAC, a 15,5%, face a apenas 5,2% no
diferenças de proficiência em literacia conjunto dos respondentes. A ausência
entre homens e mulheres são mínimas de práticas de leitura fora do trabalho
e surgem desprovidas de significância era, por seu turno, apanágio de 4,8% dos
estatística: se aparecem mais pronunciadas inquiridos com proficiência em literacia
em certos grupos, como no caso dos situada no “Nível 1” ou “Abaixo do Nível
respondentes mais velhos, esse facto 1”, valor que descia para 1,3% no conjunto
deve-se ao nível de escolaridade médio dos respondentes. Adicionalmente, os
mais elevado que detêm os homens desse indivíduos que declaravam ler mais no
segmento etário e às formas diferentes trabalho eram também aqueles que mais
de inserção e participação no mercado liam fora do contexto laboral (Grotlüschen
de trabalho observáveis entre mulheres e et al., 2016, pp. 40-42).
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Práticas de leitura e competências de literacia: resultados e ilações do PIAAC
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Práticas de leitura e competências de literacia: resultados e ilações do PIAAC
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Práticas de leitura e competências de literacia: resultados e ilações do PIAAC
Maehler, D. B., Jakowatz, S., & Konradt, I. Rothes, L., & Queirós, J. (2020). O Programa
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org/10.1787/9789264258051-en Investigador Integrado do inED – Centro
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Results from the Survey of Adult da ESE-P.PORTO. Presentemente,
Skills. OECD Publishing. https://doi. desempenha funções como Coordenador
org/10.1787/1f029d8f-en Nacional do Programa Internacional
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for Cycle 2 of the Programme for the Investigador Integrado do Instituto de
International Assessment of Adult Sociologia da Universidade do Porto
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doi.org/10.1787/4bc2342d-en funções como Subcoordenador Nacional
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org/10.1007/s11159-020-09830-5
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ARTIGOS
PRÁTICAS
Histórias em 77 palavras® – método e aplicações
futuras
77-word stories® – methodology and future
applications
Margarida Fonseca Santos e Isabel Peixeiro
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Histórias em 77 palavras® – método e aplicações futuras
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Histórias em 77 palavras® – método e aplicações futuras
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Histórias em 77 palavras® – método e aplicações futuras
pelos professores das escolas, estes advêm evolução e aprendizagem, bem como um
da utilização dos desafios nas aulas de uso mais consciente da criatividade. Isso
Português, como ferramenta para trabalho implica que, como iremos detalhar mais à
para casa e, igualmente, como atividade frente, se faça uma revisão do texto apenas
nos clubes e bibliotecas escolares. No caso pelo seu autor, propondo as autoras que a
de outras disciplinas (e.g. em Biologia revisão aconteça num momento diferente.
ou História), os textos em 77 palavras Esta conclusão surge depois de
surgem como resumos da matéria dada, escolhido o objeto de observação: uma
obrigando a sintetizar conhecimentos, professora e os seus alunos, e os textos
separando os mais importantes de cada recebidos entre 2017 e 2021, quando
módulo dos acessórios, revendo, nesse os alunos frequentavam os 5.º, 6.º e
trabalho, a matéria aprendida. Estes 7.º anos do Ensino Básico. Uma das
exercícios, estima-se, obrigam a manter características observáveis de imediato
o foco de atenção na qualidade do texto, nesta professora, Maria Cristina Félix,
especificamente no «como se explica lecionando na EB 23 Dr. Costa Matos,
ao escrever», não se limitando por isso em Gaia, é a sua paixão pela leitura e pela
a aceitar uma primeira versão pouco escrita. O envolvimento da professora no
trabalhada (Fonseca Santos, 2019). processo, pois muitas vezes envia também
Pretendia-se lançar um olhar sobre o seu texto, faz com que o trabalho seja
estas participações de modo a averiguar mais leve e divertido para os alunos,
qual o impacto na capacidade e motivação o que é, na nossa interpretação, muito
para a escrita dos grupos que trabalham de interessante e louvável. Nestas turmas,
forma sistemática com estes desafios. partindo do material de apoio da página
Os resultados são arquivados por escola, para as escolas, foram propostos aos
professor e turma, e depois por aluno, alunos os desafios de cada mês, e cada
individual e cronologicamente. Contudo, um escolheu os que gostaria de utilizar.
aqui surge um dos problemas que se revela Importa salientar que a motivação destas
impeditivo de uma observação objetiva turmas levou a que propusessem ao
dos resultados: os textos são enviados já blogue o desafio n.º 200, onde se falaria
sem erros ortográficos e/ou gramaticais, do centenário do Teatro Nacional de
tendo, portanto, sido modificados pelos São João, no Porto, instituição que os
alunos, com a supervisão dos respetivos alunos visitaram, tendo assistido a vários
professores, com o intuito de serem espetáculos. Esta interação direta com o
publicados no blogue. Em alguns, poucos, blogue sugere uma motivação clara para
casos, é notória a intervenção do professor, utilizar estes desafios de escrita.
ficando os textos com similitudes entre si Foram, nesta primeira abordagem,
numa determinada turma, o que, na nossa escolhidos 24 alunos de várias turmas,
opinião, não aconteceria se os textos não sendo o critério usado o facto de terem
fossem corrigidos. enviado para o blogue entre 4 e 10 textos,
Assim, nasceu a primeira decisão num total de 7 turmas diferentes, num
quanto à forma de investigar o impacto universo de centenas de alunos, tendo, na
dos desafios na escrita destes alunos: sua esmagadora maioria, enviado apenas
para que se possa avaliar, futuramente, 1, 2 ou 3 textos.
os resultados, os textos deverão ser Partiu-se então para a análise do
analisados sem qualquer correção por trabalho destes 24 alunos, num total
parte do professor, podendo-se assim de 144 textos, pretendendo-se aplicar
observar fragilidades, pontos fortes, alguns parâmetros como: a originalidade
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Histórias em 77 palavras® – método e aplicações futuras
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Histórias em 77 palavras® – método e aplicações futuras
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ARTIGOS
PRÁTICAS
Leituras – ferramentas de liberdade: da
alfabetização à literacia do pensamento
Readings – tools of freedom: from literacy to literacy
of thought
Anabela de Sousa Azevedo et al.
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Leituras – ferramentas de liberdade: da alfabetização à literacia do pensamento
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Leituras – ferramentas de liberdade: da alfabetização à literacia do pensamento
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2. A EXPRESSÃO DA LIBERDADE –
CURSOS DE NÍVEL B2 E B3
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Leituras – ferramentas de liberdade: da alfabetização à literacia do pensamento
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Leituras – ferramentas de liberdade: da alfabetização à literacia do pensamento
Figura 3: Exposição dos trabalhos de nail art – “O Património nas Nossas Mãos”
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Leituras – ferramentas de liberdade: da alfabetização à literacia do pensamento
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Leituras – ferramentas de liberdade: da alfabetização à literacia do pensamento
4. A LIBERDADE DE PARTILHAR –
PROJETO EXPERIÊNCIAS DE LEITURA
E ESCRITA
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Leituras – ferramentas de liberdade: da alfabetização à literacia do pensamento
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Leituras – ferramentas de liberdade: da alfabetização à literacia do pensamento
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ARTIGOS
PRÁTICAS
Projeto Metamorfoses: um desafio para aprender
ciência, tecnologia e literatura
Metamorphosis project: a challenge to learn Science,
Technology and Literature
João Dias e Adelina Machado
RESUMO ABSTRACT
‘Metamorfoses’ é um projeto-piloto que tem o Metamorphoses is a pilot project created with
objetivo de proporcionar aos jovens do ensino the purpose to provide secondary students with
secundário uma experiência educativa envol- an educational experience involving science and
vendo a ciência e as humanidades de forma humanities in an integrated manner. Students are
integrada. Os estudantes são desafiados a cons- challenged to build a bionic prototype that has
truir um protótipo biónico que seja utilizado to be used by one of the protagonists of a science
por um dos protagonistas de um conto de ficção fiction story of their own. The main protagonist
científica da sua autoria. O protagonista pode may even be the bionic prototype itself.
inclusivamente ser o próprio protótipo biónico. This project was launched in 2019 by
Este projeto foi lançado em 2019 pela Ciência Viva through ESERO Portugal, an
Ciência Viva através do ESERO Portugal, educational program of the European Space
um programa educativo da Agência Espacial Agency and Ciência Viva, and by the National
Europeia e da Ciência Viva, e pelo Plano Reading Plan 2017-2027 (PNL2027), in
Nacional de Leitura 2017-2027 (PNL2027), partnership with the Science Communication
em parceria com o Gabinete de Comunicação Office of the Champalimaud Foundation.
de Ciência da Fundação Champalimaud. Metamorphoses is an innovative initiative in
‘Metamorfoses’ é uma iniciativa inovadora no the Portuguese educational landscape, in that it
panorama educativo português, na medida em associates science and technology with reading
que associa ciência e tecnologia com leitura e and writing, promoting interdisciplinarity and
escrita, promovendo a interdisciplinaridade e scientific literacy in schools.
a literacia científica nas escolas. The project debuted in the 2019-20 school
O projeto estreou-se no ano letivo de year and 5 of the 10 finalist teams, despite the
2019/2020 e 5 das 10 equipas finalistas, difficulties imposed by the pandemic, managed
apesar das dificuldades impostas pela to finish their work. Their bionic prototypes
pandemia, conseguiram terminar os seus and science fiction tales are shown here, on the
trabalhos, disponíveis na página oficial do official page of PNL2027. The second edition
PNL2027. A segunda edição do projeto, of the project, referring to the 2020/2021
referente ao ano letivo 2020/2021 teve a school year, had the initial participation of 11
participação inicial de 11 equipas. Os 8 teams. The 8 finalist projects can be found here,
projetos finalistas podem ser consultados on the official page of PNL2027.
igualmente na página oficial do PNL2027. In this article we will present the
Neste artigo apresentaremos os pressupostos assumptions on which this project is based
em que assenta o projeto e a forma como on and how the students and teachers have
alunos e professores têm correspondido a este responded to this challenge, including some
desafio, incluindo alguns depoimentos de testimonials from the participants in the first
participantes nas primeiras edições. two editions.
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Projeto Metamorfoses: um desafio para aprender ciência, tecnologia e literatura
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Projeto Metamorfoses: um desafio para aprender ciência, tecnologia e literatura
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Projeto Metamorfoses: um desafio para aprender ciência, tecnologia e literatura
Figura 1: Alguns dos trabalhos desenvolvidos pelas equipas: um implante subcutâneo, óculos biónicos,
um dedo e uma mão biónicos e a dramatização de um dos contos.
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Projeto Metamorfoses: um desafio para aprender ciência, tecnologia e literatura
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Projeto Metamorfoses: um desafio para aprender ciência, tecnologia e literatura
entre a escola e outras instituições, além Estas razões levam o ESERO PT/Ciência
de lhes permitir descobrir alguns talentos Viva, o PNL2027 e a FC a considerar que o
escondidos. projeto, iniciado como um piloto, deve ter
Outro professor conta-nos que ele e continuidade. Que venha a 3.ª edição do
os seus colegas “consideraram o projeto projeto ‘Metamorfoses’!
inédito e muito desafiante, ao convocar
duas áreas do saber muito distintas” Referências
e reconhecem que esta experiência [1] Decreto-Lei n.º 139/2012, de 6 de julho.
está a ser “enriquecedora em vários Diário da República, 1.ª série – N.º 129, artigo
domínios, tais como a expressão escrita, a 38.º. Disponível em: http://www.dge.mec.pt/
sensibilidade estética, o espírito crítico, o cursos-cientifico-humanisticos
relacionamento interpessoal, a resolução [2] Martins, G. et al. (2016). Perfil dos Alunos
de problemas, a procura de soluções à Saída da Escolaridade Obrigatória.
tecnológicas, etc.” Ministério da Educação/Direção-Geral
A professora que participou nas duas da Educação (DGE). Homologado pelo
edições do concurso considera que Despacho n.º 6478/2017, de 21 de julho.
“temos de pensar um bocadinho mais Disponível em: http://comum.rcaap.pt/
além do ensino tradicional, pois é isso bitstream/10400.26/22377/1/perfil_dos_
que será exigido aos nossos alunos no alunos.pdf
futuro.” Afirma que foi por essa razão [3] Russel, B. (1961). Education for a Difficult
que se interessou por este projeto. Refere- Worl. In Fact and Fiction. George Allen
se a ‘Metamorfoses’ como “um projeto & Unwin Ltd. Disponível em: http://
exigente, pelo facto de tirar os alunos do www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/
tradicional ensino livresco. Aqui não há cadernos/futuro/educ%20%20mundo%20
um manual, temos de ir ultrapassando dificil.pdf
os obstáculos. Daí que seja também só [4] Brunner, J. (1971). The educational
por si um projeto desafiante, pois cada relevance of science fiction. Physics
obstáculo conduz a um novo desafio.” Education, 6(6), pp 389-391. Nota: A citação
Recorda ainda que os seus alunos nunca em questão é referenciada em português no
tinham trabalhado com sensores Arduíno, artigo: Piassi, L. (2015). A ficção científica
porque o Clube de Informática da sua como elemento de problematização na
escola estava ainda a dar os primeiros educação em ciências. Ciência & Educação.
passos na altura. Foi graças à persistência Disponível em: https://www.researchgate.
e dedicação da equipa que os obstáculos net/publication/282468291_A_
foram todos superados. Acrescenta ainda: ficcao_cientifica_como_elemento_de_
“Foi um trabalho gratificante como problematizacao_na_educacao_em_
professora, pois também cresci ao dar ciencias
mais um passo naquilo que acredito ser o
futuro da escola. Por parte dos alunos, foi
bastante interessante ver a motivação para AGRADECIMENTOS
ultrapassar cada etapa e a expectativa do
produto final.” Os Autores querem agradecer aos
Terminamos com mais uma partilha professores e aos alunos que participaram
de uma professora: “Este foi, sem dúvida, no projeto ‘Metamorfoses’ e que aceitaram
um projeto gratificante, que nos permitiu o nosso convite para nos dar o seu
alargar os nossos horizontes e adquirir testemunho sobre a experiência que
novos conhecimentos para a vida.” viveram:
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Projeto Metamorfoses: um desafio para aprender ciência, tecnologia e literatura
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ARTIGOS
DIGITAL
“As florestas não brotam, não se multiplicam, não
suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental
“Forests do not sprout, do not multiply, do not sigh”:
digital literature and environmental education
Diogo Marques e Ana Gago
RESUMO ABSTRACT
Partindo da exploração do potencial lúdico- Taking from the playful-pedagogical
pedagógico de processos combinatórios e potential of combinatorial and permutational
permutacionais de escrileitura, no presente processes in wreading (writing-reading), in
artigo propomo-nos discutir possíveis this article we propose to discuss possible
aplicações da ciberliteratura no âmbito do applications of digital literature in the
desenvolvimento de estratégias de educação context of the development of environmental
ambiental, dentro e fora do campo de ação education strategies. Through the analysis
institucional. Através da análise do poema of cyberliterary poem Árvore (2018), by
ciberliterário Árvore (2018), da autoria researcher and experimental poet Rui Torres,
do investigador e poeta experimental and its relationship with artivist and hacktivist
Rui Torres, e da sua relação com práticas practices, digital literature is placed in
artivistas e hacktivistas, a ciberliteratura dialogue with issues such as sustainability and
é colocada em diálogo com problemáticas technological obsolescence.
como a sustentabilidade e a obsolescência In addition, as integral parts of an
tecnológica. ecosystem, reference will be made to (post)
Adicionalmente, será feita referência digital artistic-literary creations with
a outros exemplos de criações artístico- an international impact, such as, About
literárias (pós-)digitais, com impacto Trees, by (2015), by Katie Holten,
internacional, enquanto partes integrantes DEFOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOREST
de um mesmo ecossistema, como About (2017), by Joana Moll, and Amazon
Trees (2015), da autoria de Katie Holten, (2019), by Eugenio Tisselli. Also, in order to
DEFOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOREST illustrate the continuity of digital literature in
(2017), da autoria de Joana Moll, e Amazon the broader context of experimental practices,
(2019), de Eugenio Tisselli. De forma a we analyse some of its precursors, such as
ilustrar a continuidade da ciberliteratura no Soneto Ecológico (2005), a public land art
contexto alargado das práticas experimentais installation by Fernando Aguiar.
em Portugal, são ainda convocados alguns dos Putting in dialogue tradition and
seus precursores, como Soneto Ecológico (2005), innovation, several paths of possibility from
instalação de poesia ambiental, da autoria de digital literature are written (and recombined),
Fernando Aguiar. as an artistic-literary manifestation and as an
Colocando em diálogo tradição e inovação, educational, interventional and mobilizing tool.
escrevem-se (e recombinam-se) vários
caminhos de possibilidade a partir de/para PALAVRAS-CHAVE
a literatura digital, enquanto manifestação ciberliteratura, artivismo, hacktivismo,
artístico-literária e enquanto ferramenta educação ambiental, literacia digital
educativa, interventiva e mobilizadora.
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“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental
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“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental
Vale referir que, em 1959, dois anos Livros Horizonte, Lisboa (Torres; Marques,
depois da publicação de O Barão Trepador, 2020, p. 146). De resto, seria esta trilogia
dar-se-iam as primeiras experiências que viria, em 1996, a incorporar o volume
estocásticas de Theo Lutz. Fortemente A Ciberliteratura (Edições Cosmos), numa
inspirados pela Estética Gerativa de versão atualizada, revista e ampliada das
Max Bense, e produzidos com a ajuda reflexões de Pedro Barbosa no domínio
de um computador ZUSE Z22, os textos da criação literária e computador.
estocásticos de Lutz consistiam, segundo Entendendo-se o computador como
Pedro Barbosa, na “produção aleatória “amplificador” ou “telescópio de
de frases, mediante uma gramática complexidade” (Barbosa, 1996, pp. 63-66),
rudimentar e um pequeno léxico para Pedro Barbosa:
introduzidos no programa”, a partir A Arte computacional dá assim acesso à
de O Castelo, de Franz Kafka (Barbosa, multiplicidade das formas novas em que os
1996, pp. 133-134). Mas também, no numerosos múltiplos são ainda o prolongamento
que diz respeito a experiências pioneiras concreto de um jacto criativo tentacular,
no âmbito da criação literária assistida dispersando-se em árvore: através dos múltiplos
por computador, dois anos mais tarde, teremos então acesso directo à obra, pois eles são
em 1961, pela mão de Nanni Balestrini ainda a própria obra, numa das suas inumeráveis
e com o apoio da IBM, a criação de metamorfoses (p.109; redondo nosso).
poesia combinatória por meio de um Consequentemente, seguindo Barbosa,
Tape Mark 1. É de realçar que, para a “literatura computacional” implica uma
Barbosa, o “método combinatório”, e a “partilha transindividual da autoria”,
sua “exploração integral’’, em toda a sua que se joga, pelo menos, em três níveis: 1)
amplitude, abre “um campo de possíveis” com a máquina, por meio da “criatividade
(pp. 50-53). variacional” que a esta corresponde;
Discípulo de Abraham Moles, em 2) coletivamente, por exemplo, e à
Estrasburgo (que, por sua vez, trabalhou semelhança dos Grupos Oulipo (do
com Max Bense, em Estugarda), qual Calvino fez parte) e ALAMO, “uma
caberia a Pedro Barbosa a execução plêiade de técnicos, teóricos e escritores”
das primeiras experiências literárias (p. 112); e 3) com o leitor, a quem “é
assistidas por computador, em Portugal. oferecida a oportunidade de partilhar
Mais concretamente, entre 1975 e 1976, com o autor a criação da obra”, de forma
a partir do Laboratório de Cálculo mais e menos (inter)ativa, mas sempre
Automático (LACA) da Faculdade de “mediante um diálogo estabelecido
Ciências do Porto[4], e em colaboração através da máquina” (p. 114).
com o Engenheiro Azevedo Machado, Partindo desta aceção de leitor
resultando em “três volumes dedicados ativo, em que o “movimento do leitor
à programação de literatura com base em relação ao texto” se sobrepõe ao
nas linguagens FORTRAN e BASIC”: dois “movimento do texto em relação ao leitor”
volumes iniciais, A literatura cibernética 1. (p. 115), a possibilidade de escrileitura
Autopoemas gerados por computador (1977) e responsabiliza este último, envolvendo-o,
A literatura cibernética 2. Um sintetizador de criando consciencialização[5], tanto pela
narrativas (1980) – curiosamente editados possibilidade de manipulação do próprio
por Cooperativa Árvore, no Porto –, e artefacto ou objeto artístico como, nos
um terceiro volume, de 1988, intitulado casos em que a intervenção não é direta,
Máquinas pensantes. Aforismos gerados pela leitura potencialmente única, e em
por computador, com chancela da editora tempo real, do texto-evento.
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“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental
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“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental
Figura 1: Árvore, Rui Torres, variações, captura de Figura 2: Árvore, Rui Torres, variações, captura de
ecrã ecrã
https://telepoesis.net/arvore/arvore.html https://telepoesis.net/arvore/arvore.html
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RAMOS, FOLHAS
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transliterárias de Árvore que permite a Rui Torres[31] – sinais que surgem, aliás, na
sua conexão com uma série de outras sequência de recentes reformas ao nível
obras e autores. Do pré ao pós-digital, em curricular no que concerne diretamente ao
rede, esta vastidão de vasos comunicantes ensino da língua e literatura portuguesas.
permite a identificação de uma poética A respeito deste último ponto, saliente-
marcadamente artivista que, fazendo uso se a novidade que representou a introdução
de uma tática de disrupção metarreflexiva, da “educação literária” no Programa e
apela à consciencialização, neste caso, am- Metas Curriculares de Português do Ensino
biental, dos potenciais leitores. Estas redes, Básico (Buescu et al., 2015), uma noção que
aqui entendidas como micorrízicas, fazem tem vindo a ser questionada, primeiro,
uso de uma noção expandida de literatura, em 2017, no colóquio que decorreu no
relacionando-a com a promoção de litera- Instituto Superior de Educação e Ciências
cias digitais[24] e, numa perspetiva crítica e (ISEC Lisboa) e na Faculdade de Ciências
autorreflexiva[25], abordando problemáti- Sociais e Humanas da Universidade Nova
cas com impacto tanto ao nível ambiental de Lisboa, e, posteriormente, em atas do
como ao nível da saúde pública, da obso- referido Colóquio publicadas, em 2021,
lescência programada dos meios tecnoló- com o título Contra a Literatura: Programas
gicos às emissões de dióxido de carbono (e Metas) na Escola (IELT, Lisboa). Nesse
resultantes da utilização da Internet. mesmo volume, Joana Meirim refere-se
No caso particular de Árvore, tratando- a uma “educação literária programada”,
se de um ciberpoema inspirado na obra de questionando a introdução de metas de
autores como António Gedeão, António aprendizagem e, sobretudo, de “indicações
Ramos Rosa, Herberto Helder ou Miguel precisas sobre o que é suposto aprender
Torga (entre outros), este é igualmente sobre eles [textos literários]”, por oposição
vetor para o estudo da literatura a um entendimento de literatura enquanto
portuguesa, relendo-a e renovando-a[26]. “espaço em que se analisam e discutem
Desta forma, Árvore é representativa do textos sem urgência, estimulando o sentido
potencial da utilização pedagógica de crítico e autonomia de pensamento dos
obras de literatura digital, no que diz alunos”. Meirim aponta ainda, como
respeito ao ensino da língua e literatura resultado indireto do enfoque em obras
portuguesas[27]. Uma possibilidade que e autores de língua portuguesa, uma
ganha especial relevância num momento certa circunscrição da própria noção de
em que, no contexto nacional, e apesar literatura a uma “perspetiva romântica”,
das várias décadas que nos separam conservacionista, em relação ao
da “aventura ciberliterária” de Pedro “património nacional”, que se reflete nos
Barbosa, a ciberliteratura (ou, grosso “tópicos de conteúdo” que, na sua opinião,
modo, a literatura digital) começa a condicionam a leitura dos textos literários
perfilar-se nos programas oficiais[28]. A e limitam a capacidade da literatura para
esse respeito, 2019 veio a revelar-se um “mostrar que há mais mundos além do
ano particularmente decisivo, com a nosso” (Meirim, 2020, pp.13-17). A reflexão
realização, na Universidade de Coimbra, de Joana Meirim acompanha vários outros
do I Colóquio Internacional Ensino da ensaios que se focam maioritariamente na
Literatura Digital[29], assim como com a utilização das TIC para o ensino da língua
integração nos Recursos em linha do Plano e literatura portuguesas. Não deixamos,
Nacional de Leitura 2027 de um conjunto porém, de notar a delimitação da discussão
de obras literárias digitais em português[30] em torno da utilização das TIC enquanto
e/ou de autores portugueses, incluindo ferramentas de apoio à lecionação,
ENTRELER 83
“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental
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“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental
generativos Tape Mark 1 (1961) e Tape [15] Publicado pela primeira vez em Revista
Mark 2 (1962).” (Seiça, 2015, n.p.). Interact, 26, Hortas & Ecos (abril a
[4] https://po-ex.net/taxonomia/ setembro de 2017) e reproduzido, com
materialidades/digitais/azevedo-machado- autorização do autor, no Arquivo Digital
laca/ (Acedido a 13 de maio de 2021). da PO.EX. (https://po-ex.net/taxonomia/
[5] Importa referir que esta ideia de transtextualidades/metatextualidades-
consciencialização difere de outras autografas/fernando-aguiar-soneto-
aceções correntes, nomeadamente, a de ecologico-um-projeto-de-poesia-ambiental/)
responsabilização global promovida [16] https://www.brokendimanche.eu/para-
por discursos em torno da noção de poetics (Acedido a 13 de maio de 2021).
Antropoceno, ou seja, o princípio geral de [17] O alfabeto é composto por tipo de letra
que todo o ser humano, a humanidade, especialmente desenvolvido pela autora
tem os mesmos níveis de responsabilidade para o efeito, apelidado de Walbaum and
no que diz respeito a efeitos da atividade Trees, disponível para download: https://
humana no clima e no funcionamento dos drive.google.com/file/d/0B_wSE8cfX-
ecossistemas da Terra – uma generalização fgWkVMN2p4YXVzcEU/view (Acedido a
que não difere muito daquela que assume 13 de maio de 2021).
que toda a tecnologia digital é ameaça. [18] https://www.katieholten.com/abouttrees
Como refere Paulo Silva Pereira, tais (Acedido a 13 de maio de 2021).
“estratégias de generalização” acabam por [19] http://www.janavirgin.com/CO2/
abafar diferenças de extrema relevância DEFOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOREST
que poderiam inclusive ajudar a apurar _about.html (Acedido a 13 de maio de
determinados níveis de responsabilidade 2021).
no que diz respeito a causas e [20] Caracterizado pelo seu
consequências (Silva Pereira, 2020, s.p.). forte pendor hacktivista,
[6] Termo cunhado por Haroldo de Campos DEFOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOREST
para definir uma “operação tradutora no comunica com CO2GLE, da mesma autora
sentido de releitura crítica da tradição” (2014), instalação em rede que traduz,
(Campos apud Gomes, 1993, p. 22). em tempo real, a quantidade de CO2
[7] https://dicionario.priberam.org/adventícia produzido por uma simples consulta ao site
(Acedido a 13 de maio de 2021). mais visitado do mundo.
[8] Vd. Húmus Poema Contínuo (https:// [21] Vd. SAUTI YA WAKULIMA: http://
telepoesis.net/humus_js/). sautiyawakulima.net/bagamoyo/about.php
[9] A Fakescript for your faked life, 2016 (https:// (Acedido a 13 de maio de 2021).
www.telepoesis.net/fakescript.html). [22] https://motorhueso.net/amazon/ (Acedido a
[10] Fakescripts for Ponte de Lima, 2016 (https:// 13 de maio de 2021).
www.telepoesis.net/fakescripts) [23] https://dicionario.priberam.org/árvore
[11] Cushioned Fakecripts, 2017 (http://p-dpa.net/ (Acedido a 13 de maio de 2021).
work/fakescripts/) [24] A utilização do termo no plural, em
[12] Fakephone4a(n)droid, 2019 (https:// detrimento da sua reconhecida forma no
telepoesis.net/fakephone/) singular, é aqui feita com base na distinção
[13] Vd. Torres; Baldwin, 2014. entre literacia tecnológica e literacia
[14] https://po-ex.net/taxonomia/ informativa, tal como referida por J. J.
materialidades/tridimensionais/fernando- Marques da Costa e a partir de Sharkey e
aguiar-soneto-ecologico/ (Acedido a 13 de Brandt (Costa, 2011, p. 175).
maio de 2021).
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“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental
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ARTIGOS
DIGITAL
Leitura(s) em grupo. Um estudo de caso sobre
práticas de leitura online
Group reading. A case study about online reading
practices
Rita Duarte, Jorge Vieira e José Soares Neves
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Leitura(s) em grupo. Um estudo de caso sobre práticas de leitura online
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ARTIGOS
MEMÓRIA
Da materialidade do livro à memória coletiva
e à projeção no futuro
From the book’s materiality to collective memory
and a view for the future
Ana do Canto, Anabela Teixeira, Catarina Leal e Teresa Saborida
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Da materialidade do livro à memória coletiva e à projeção no futuro
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Da materialidade do livro à memória coletiva e à projeção no futuro
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Da materialidade do livro à memória coletiva e à projeção no futuro
Figura 8: Leitura integral de Os Lusíadas, pela comunidade da Escola Secundária de Camões. Desenhos do
professor Filipe Duarte
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Da materialidade do livro à memória coletiva e à projeção no futuro
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CONCLUSÃO
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Da materialidade do livro à memória coletiva e à projeção no futuro
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ARTIGOS
MEMÓRIA
Ler + o Holocausto. História, memória
e representações
Reading the Holocaust. History, memory
and representations
Jorge Brandão Carvalho
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Ler + o Holocausto. História, memória e representações
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rapaz e o rapaz que seguiu o pai, as irmãs, entre história e ficção e os limites, e
as gémeas, a bailarina, o farmacêutico, o até a admissibilidade, da representação
voluntário, a bibliotecária, o fotógrafo, o do Holocausto. Ao longo destes mais
tatuador, o carteiro, a última testemunha, de setenta e cinco anos, a história do
o sabotador, o mágico e ainda a orquestra, Holocausto foi sendo construída em
o violino, a sonata, as cartas perdidas, o paralelo com diferentes formas de
último caminho e tantos outros títulos representação, de ficção, poesia, teatro,
que chamam a atenção e o interesse do memórias literárias, cinema e séries de
consumidor leitor. televisão ou obras de arte.
Assistimos mesmo, há alguns meses, Esta multiplicidade de registos
a uma rara polémica nos nossos meios testemunhais, historiográficos e ficcionais
literários. Seguindo o pendor do mercado, tem sido fundamental na construção da
José Rodrigues dos Santos, um dos memória do Holocausto. Para começar,
autores portugueses com maior sucesso tenhamos em linha de conta a existência
de vendas, percebeu onde estava o filão de uma prolixa literatura que documenta
e, de uma assentada, lançou não um, as atrocidades perpetradas pelos nazis
mas dois livros sobre o tema: O mágico de e a sua magnitude. Os testemunhos
Auschwitz (Santos, 2020a) e O Manuscrito são múltiplos e ricos, permitindo
de Birkenau (Santos, 2020b), anunciados compreender a diversidade de situações
como reveladores da Shoá como nunca de sofrimento das vítimas. Durante muito
antes fora mostrada. As obras deram tempo foram subvalorizados na produção
lugar a uma interessante controvérsia historiográfica, mas são particularmente
entre o autor, a historiadora Irene relevantes para compreender a
Flunser Pimentel[2] e o escritor João Pinto heterogeneidade de situações vividas
Coelho[3], entre outros, em que foram por diferentes pessoas, em diferentes
esgrimidos argumentos não apenas sobre contextos, momentos e lugares.
o rigor histórico dos livros, mas também O conhecimento histórico evoluiu
acerca da natureza e características das enormemente ao longo dos anos, desde o
representações do Holocausto, um debate final da guerra. Durante muito tempo, o
recente em Portugal, mas com longa olhar dos historiadores esteve enquadrado
tradição noutros países e contextos. em duas grandes correntes historiográficas.
O interesse pelos livros ou filmes Por um lado, uma visão intencionalista,
relacionados com a Shoá segue uma resultante em parte dos julgamentos do
tendência procedente dos Estados final da guerra, que defendia a ideia de
Unidos e que se tem alastrado que o Holocausto, na sua origem, teve um
internacionalmente. Resulta, em boa plano arquitetado pelos nazis antes de
medida, de um fenómeno de apropriação chegarem ao poder e que Hitler, figura
do tema pela cultura popular, estimulada central neste projeto, e o seu círculo de
pelos muitos livros publicados, mas poder se inscrevem numa genealogia de
sobretudo pelos filmes de Hollywood líderes autoritários alemães, com ideias
e séries de televisão, que alcançaram antissemitas, que tiveram como corolário o
públicos mais vastos. Em vários casos, nazismo e a solução final para os judeus. O
estas obras foram acompanhadas de Holocausto teria sido, assim, um processo
polémicas, sobretudo entre especialistas, minuciosamente planificado e organizado
mas que, por vezes, extravasaram para e que teria resultado de uma decisão
a opinião pública, ganhando contornos tomada pela cúpula do regime nazi,
mediáticos. O debate questiona a fronteira encabeçada por Adolf Hitler.
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filho, os judeus são retratados como ratos memória coletiva contra o esquecimento
e os alemães como gatos, numa linguagem natural que a dor e, tantas vezes, a culpa
imagética próxima das fábulas, num impunham.
registo cru e até cáustico do horror do Obviamente que a natureza destes
Holocausto. testemunhos evolui à medida que o
No entanto, muitas foram as vozes que próprio conceito de Holocausto se vai
se fizeram ouvir e ler, desde os primeiros formando e vai mediando não só a
tempos, por vezes mesmo antes de a historiografia, mas a própria memória dos
guerra acabar. Chil Rajchman (Rajchman, sobreviventes. As obras de Primo Levi,
2009), um dos raros sobreviventes de por exemplo, que têm um forte cunho
Treblinka, fugitivo na revolta de agosto memorial, são exemplo disso. Assim Foi
de 1943, registou logo de seguida os dez Auschwitz (Levi, 2015, pp. 17-49), por
meses passados naquele campo de morte. exemplo, reproduz o relatório que, na
Começa dizendo: primavera de 1945, os soviéticos lhe
Os vagões tristes transportam-me para este lugar. pediram e que redigiu com o seu amigo
Vêm de toda a parte: de leste e de oeste, do norte e sobrevivente, o médico Leonardo de
do sul. De dia como de noite, em todas as estações: Benedetti. É um depoimento despojado,
Primavera, Verão, Outono, Inverno. Os comboios descritivo e mais linear do que os
chegam lá sem percalços, incessantemente, e seguintes, mesmo em relação a Se isto
Treblinka prospera a cada dia que passa. Quantos é um homem, publicado pela primeira
mais chegam, mais Treblinka consegue absorver. vez em 1947. O próprio Levi refletirá
(Rajchman, 2009, p. 21) mais tarde sobre isto quando escreve
E termina proclamando: que “(...) a fractura que existe, e que se
Sim, sobrevivi e sou livre, mas para quê? Muitas vai alargando de ano para ano, entre as
vezes faço a mim próprio esta pergunta. Para contar coisas como eram “lá” e as coisas como são
o assassínio de milhões de vítimas inocentes, para representadas pela imaginação corrente,
dar testemunho do sangue inocente, derramado alimentada por livros, filmes e mitos
por esses assassinos. Sim, sobrevivi para dar imprecisos” (Levi, 2008, p. 157).
testemunho desse grande matadouro: Treblinka. Com o passar do tempo, houve uma
Esta ideia do testemunho como forma tendência para uniformizar a memória
de recuperar o significado depois de tudo do Holocausto, esquecendo a riqueza e
o que tinham passado é um propósito for- a particularidade que cada depoimento
tíssimo para a maior parte das memórias encerra. Existem, entre nós, alguns
dos sobreviventes. É uma ideia bem vin- testemunhos de sobreviventes não
cada no “nunca mais esquecerei”[7] de Elie judeus, como é o caso de Robert Antelme
Wiesel (Wiesel, 2003) ou no “repeti-as aos (Antelme, 2003) e Charlotte Delbo.
vossos filhos”[8] de Primo Levi (Levi, 2014), Escritora francesa, presa pela polícia
dois sobreviventes que viveram o inferno nacional e entregue à Gestapo, enviada
dos campos de morte e que não desistiram, para Auschwitz, Charlotte Delbo vai,
no resto das suas vidas, de falar, de escre- vinte anos depois, começar a recuperar
ver, de alertar, colocando a luta contra o a memória de sobrevivente. No final
esquecimento, a proteção da memória do de 2018, passando quase despercebida,
Holocausto, como um imperativo ético. surgiu pela primeira vez em Portugal uma
Para aqueles que tinham sobrevivido edição do extraordinário livro Auschwitz e
não era fácil enfrentar o passado e os depois (Delbo, 2018). A edição é composta
seus fantasmas, encontrando significado por três textos: Nenhum de nós há de voltar
e conforto, procurando construir uma (1965), Um conhecimento inútil (1970) e
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Ler + o Holocausto. História, memória e representações
Medida dos nossos dias (1971), num registo A magnitude da devastação que o
impressionista no primeiro texto, com Holocausto significou pôs em causa os
pequenas cenas, retratos, poemas e contos alicerces da nossa civilização, sendo que
no segundo e com um assento mais se chegou a questionar a possibilidade
reflexivo no último. de encontrar formas de representação do
A produção historiográfica, durante que se tinha passado. O filósofo alemão
muitos anos, desconsiderou estes da Escola de Frankfurt Theodor Adorno
testemunhos, valorizando sobretudo (Adorno, 2003) proclamou, em 1949, que
documentos administrativos e escrever um poema depois de Auschwitz
institucionais, normalmente produzidos era bárbaro e que isso corroía também o
pelos perpetradores. Muitos historiadores conhecimento das razões pelas quais seria
consideram que as memórias são fontes impossível escrever poemas. No fundo,
condicionadas quer pelo tempo, que questiona a possibilidade de representar a
provoca esquecimento e confunde maldade, o horrível, através de expressões
circunstâncias, lugares e momentos, quer supremas de beleza, nas artes, na poesia ou
pela influência que a memória coletiva noutras formas literárias. Mesmo que esta
e o próprio conhecimento histórico tem ideia seja relativizada, ela não deixou de
nos sobreviventes. Saul Friedländer marcar o pensamento sobre o tema.
(Friedländer, Reflexões sobre o Nazismo, A verdade é que as representações do
2017, p. 76) salienta que Raul Hilberg, um Holocausto se confundem tantas e tantas
autor incontornável do Holocausto com vezes com os testemunhos memoriais,
a sua obra A destruição dos judeus (Hilberg, e a literatura criativa, seja sob a forma
2005), recusava, por isso, qualquer de poesia, ficção ou memória literária,
utilização de memórias ou mesmo de começou a emergir desde os primeiros
diários. O próprio Saul Friedländer, momentos do pós-guerra. Exemplo disso
que usou diários na sua obra principal foi a publicação, logo no início de 1946,
(Friedländer, 1998) (Friedländer, 2008), de uma obra intitulada Nós estivemos em
concorda com as reservas relativamente Auschwitz (Borowski, 2000). Tratava-se de
às memórias por considerar que o tempo um conjunto de escritos de três autores
coloca condicionamentos inultrapassáveis. polacos que se identificavam com os
No limite, pode-se pôr em causa a seus nomes e com os seus números de
autenticidade destes testemunhos com prisioneiros em Auschwitz: 6643 Janusz
argumentos reforçados, com situações Nel Siedlecki, 75817 Krystyn Olszewski
como a que aconteceu no caso de e 119198 Tadeusz Borowski. Embora
Binjamin Wilkomirski. Em 1995 publica surgida como obra coletiva, o contributo
um livro (Wilkomirski, 1998) resgatando fundamental é, reconhecidamente, o
a sua infância durante os anos do de Tadeusz Borowski, poeta e escritor
Holocausto. Veio a comprovar-se depois não judeu, o único, aliás, que vai manter
que o livro, que teve traduções em várias atividade literária até à sua morte, por
línguas e ganhou importantes prémios em suicídio, em 1951. O registo escrito,
diferentes países, se baseava numa falsa feito muito pouco tempo depois dos
identidade do autor e da história de vida acontecimentos, tem ao mesmo tempo
que relatava. O caso reacendeu o debate um carácter memorial e documental
acerca do valor dos testemunhos como – bem notório no glossário – sobre
fonte válida para a história da Shoá, sendo diversos aspetos de Auschwitz e da
também utilizado como argumento por sua evolução ao longo dos anos. Mas,
parte de negacionistas do Holocausto. particularmente nos textos de Borowski
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quadros, gráficos, desenhos, … – devem ser
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identificados com numeração árabe contínua e ser
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5. ABSTRACT: Arial 11, maiúsculas, negrito,
Cada ficheiro é nomeado com o número que indica
alinhamento à esquerda. Texto do resumo em
a ordem pela qual as imagens surgem no artigo. No
inglês: Arial 10, não negrito – máx. 250 palavras,
corpo do texto deve constar, em cada um dos locais
alinhamento à esquerda, espaçamento 1,5.
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6. PALAVRAS-CHAVE: Arial 11, maiúsculas, negrito,
respetiva legenda.
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também comentador político, não se diz o texto a chave com que podemos abrir
pode construir a pólis sem uma sólida ao entendimento dos leitores comuns, e
consciência dos textos que a fecundam. mesmo especializados, obras como o Rei
Se o ensaísta, diz, teve a preocupação Lear, ou os contos de Oscar Wilde, a poesia
de «apetrechar» o leitor comum de de Milton ou a prosa de Proust.
ferramentas básicas que o possam ajudar Analisando excertos de diversos
a entrar na literatura, certo é que, como clássicos da literatura, Eagleton oferece-
se pode ler em quase todos os capítulos nos o laboratório da análise (só há
(Capítulo 1 – «Aberturas»; Capítulo 2 – interpretação depois de uma análise
«Personagem»; Capítulo 3 – «Narrativa»; aturada das estruturas retóricas de um
Capítulo 4 – «Interpretação»; Capítulo texto, lembra Óscar Lopes), isto é, o
5 – «Valor»), esse apetrechamento vem método através do qual um professor ou
escorado de uma visão política do um aluno, um estudioso da literatura ou
literário, já que as gerações de leitores um simples curioso, podem ser também
com menos de 35 anos estão hoje reféns agentes da obra.
duma ideologia do entretenimento Analisando, por exemplo, o estilo
mais “negando”, responsável pelo lugar de Henry James, que na fase tardia foi
marginal que o livro e a literatura ocupam acusado de ser barroco e rebuscado,
no campo simbólico da cultura. Eagleton transcreve um parágrafo que fez
Partindo duma diatribe (um diálogo história (retirado de As Asas da Pomba),
imaginário entre estudantes de literatura defendendo que o estilo de James nada
acerca de O Monte dos Vendavais, no tem que ver com o estilo do consagrado
qual se discutiriam as personagens e Dan Brown. Diz o teórico e ensaísta: «Tal
o seu carácter, mas sem que os jovens como muita escrita modernista, a prosa de
leitores compreendessem como Emily James recusa-se a não dar luta. Constitui
Bronte teria construído retoricamente um desafio para uma cultura de consumo
o enredo), Eagleton pode defender que imediato. Os leitores são forçados a um
a literatura, por definição, é o lugar da árduo trabalho de decifração.» (p.169).
ambiguidade e da metáfora. São essas Sabendo que a literatura é um fazer de
as características que dificultam, hoje, o linguagem, seria desejável que os leitores
acesso e a compreensão de muitos alunos, se sentissem «atraídos para as voltas e
que se confrontam com obras nas quais reviravoltas da sintaxe, numa luta para
a retoricidade é a marca de água deste ou descortinar o que o autor quer dizer.»
daquele poema, deste ou daquele romance. Há um apelo constante, como vemos
Um dos grandes méritos deste ensaio pelos trechos escolhidos, a que o leitor
é, pois, o de propor o regresso a uma entenda por que razão a literatura é
leitura atenta às estruturas gramaticais importante. E ela é importante porque
da linguagem literária. Eagleton refere- pode seduzir e educar. Um exemplo dessa
se a uma leitura vigilante, em que cada sedução educativa é o Ulisses de Joyce,
leitor saberá ver que o texto literário, obra que termina com uma frase sem
para ser fruído e compreendido, exige pontuação, a qual se estende por cerca de
que quem lê esteja atento «ao tom, à 60 páginas. Sessenta páginas de demanda
atmosfera, à cadência, ao género, à sintaxe, do sentido, esse o repto do mestre
à gramática, à consistência, ao ritmo, irlandês. Proust, outro exemplo maior
à estrutura narrativa, à pontuação», a do fazer linguagem, tem uma sintaxe
tudo quanto chamamos forma. Por isso labiríntica, permanentemente infiltrada
Eagleton observa, e bem, que não é o que de justaposições, prolepses e analepses.
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ISBN: 978-989-54340-5-3
Edição: outubro de 2020
Editor: Kalandraka (Faktoria K de Livros)
N.º de páginas: 239
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ficção – sem, no entanto, o transformar pois “as suas antenas invisíveis estão à
num manual de instruções. O que faz espreita das mesmas vibrações no ar”…
é sugerir “linhas de abordagem a um E a criação é motivada pelo tédio
livro”, partilhar reflexões baseadas na sua que sente em relação à realidade, pela
experiência como escritora, por exemplo, monotonia da rotina e dos objetos que a
de O talentoso Mr. Ripley, O Desconhecido rodeiam. Por isso, sublinha a importância
do Norte Expresso ou A Cela de Vidro. da “surpresa” e da “reviravolta inesperada”
Até porque, adianta a autora no prefácio, (como uma resposta ao tédio).
“Na escrita não há qualquer segredo para Como nasce, então, uma história de
o sucesso além da individualidade, a que suspense? As experiências emocionais
também podemos chamar personalidade.” de quem escreve, mas também as
É, no entanto, a “omnipresente experiências de outros, bem como
possibilidade de fracasso” que torna “a as palavras de outros, são a fonte de
escrita uma profissão viva e empolgante”. inspiração. Tudo é passível de dar origem
Os obstáculos, as pausas, as angústias, a uma ideia inicial – uma “semente” – e
as dificuldades, os fracassos fazem esta, a uma história. Muitas vezes, são
parte do processo, ou melhor, são o seu ocorrências insólitas e coincidências que
motor – e, como tal, merecem atenção a conduzem à escrita, são acontecimentos
ao longo do livro. Também a rejeição de inesperados e menores que a inspiram.
um manuscrito pelas editoras – “cerca E se a história é de suspense, “a
de vinte vezes e não apenas duas ou possibilidade de ação violenta, e até
três” – é partilhada como sendo natural, mesmo a morte, está sempre por perto”.
ultrapassável após um breve período de A ameaça de perigo e violência física
luto. ou perigo e violência física efetivos são
Tratando-se de um livro dirigido a o ingrediente essencial de uma história
“candidatos a escritores”, são também de suspense e “oferecem entretenimento
abordadas abertamente a questão da de modo vivo e, geralmente, superficial.
insegurança financeira (“É avisado um Dessas histórias não se esperam
escritor ter outra atividade que lhe pensamentos profundos ou longas
permita ganhar algum dinheiro, até passagens sem ação.” No entanto,
ter publicado livros suficientes que lhe isso não impede que esses elementos
garantam um rendimento constante.”) existam, se enquadrados numa “história
e preocupações de índole comercial, essencialmente viva”.
chegando a autora mesmo a sugerir, em O protagonista assassino dessas
alguns casos, a adequação do texto às histórias é, para Patricia Highsmith,
características do mercado. o “criminoso simpático”, a quem são
Na sua descrição do processo criativo, atribuídas todas as qualidades possíveis,
Patricia Highsmith fala, tal como como, por exemplo, “generosidade,
muitos outros escritores, da necessidade bondade para com algumas pessoas,
de isolamento: “em geral, o plano da gosto pela pintura, pela música ou pela
interação social não é o plano da criação, culinária.” O contraste das qualidades
não é o plano em que as ideias criativas com os seus traços criminosos ou
pairam. É difícil estarmos atentos ao nosso homicidas é um dos fatores de interesse da
inconsciente, ou recetivos a ele, quando personagem.
estamos com um grupo de pessoas”. Mas o leitor encontra em Suspense
Quando escreve, também não gosta de ou a Arte da Ficção outras reflexões, por
discutir o seu trabalho com outros autores, exemplo, sobre pontos de vista, diálogos,
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fascínio quase infantil por aquilo que A mala pertence à primeira mulher de
escapa, o que o motiva a empreender uma Hemingway e contém os primeiros ensaios
“volta ao mundo em oito volumes, ao narrativos do futuro Nobel da Literatura.
invés de oitenta dias”, ou seja, a encetar A história é contada em Paris é uma festa,
uma busca, para, depois, nos contar a romance publicado após a sua morte e
sua história em oito capítulos. Como um que, ironicamente, “nasce de uma série
detetive, van Straten viaja no espaço e de apontamentos que Hemingway tinha
no tempo, interrogando, vasculhando abandonado […] dentro de duas maletas,
lugares, papéis e memórias, seguindo no final dos anos 30, no Hotel Ritz de
pistas em busca de livros perdidos, Paris, cuja posse recuperou em novembro
livros que agora só existem nas histórias de 1956, precisamente porque o diretor
que deles se contam. Afinal, “os livros daquele hotel lhe indicou a sua presença”.
perdidos têm algo que os outros não Estas são histórias – algumas
possuem: deixam-nos, a nós, não leitores, trágicas – de oito livros queimados,
a possibilidade de imaginá-los, de contá- rasgados, roubados, ou simplesmente
los, de reinventá-los.” desaparecidos... Para sempre. Se a
Cada livro perdido tem a sua história. esperança de encontrar algum deles é
O autor inicia a obra com o testemunho mínima, subsiste, no entanto, por vezes, a
de uma vivência pessoal, em sua casa, hipótese de alguém, algum dia, algures…
em Florença, falando de um livro que E hoje em dia, será fácil perder um
leu, com grande emoção, das novas livro? Devido à quantidade de suportes em
palavras descobertas, de “uma linguagem que atualmente pode ser gravado, parece
maravilhosamente enxuta”, das palavras quase impossível que um livro desapareça
de um amigo e de um mestre que tanto irremediavelmente, sem deixar rasto. E o
admirava (Romano Bilenchi). Uma sabor das palavras será o mesmo? O que
leitura inesquecível. Uma bela história dirão todos os que amam o livro enquanto
de amor. Daqui, “viaja” para Londres; objeto? Paradoxalmente, no entanto, “em
após um percurso circular, durante o certos casos, a imaterialidade é tão frágil
qual passa por vários países (França, como o velho papel”… O que continua
Polónia, Rússia, Canadá e Espanha), volta a deixar aberto o caminho àqueles que,
a Londres – tal como Phileas Fogg – para como Giorgio van Straten, perseguem “o
contar o desaparecimento do oitavo livro, risco de uma impossibilidade”. • Equipa do
Double Exposure, de Sylvia Plath. Ernest PNL2027
Hemingway, George Byron, Nikolai Gógol,
Malcolm Lowry, Bruno Schulz e Walter
Benjamin são os outros autores dos livros
perdidos que protagonizam as histórias
contadas neste volume.
Acontecimentos fortuitos estão, muitas
vezes, na origem do desaparecimento
dos manuscritos. Uma das histórias, a
de Ernest Hemingway, leva-nos a Paris
e ao ano de 1922. Uma mulher, uma
mala, uma estação de comboios, uma
corrida para ir comprar uma garrafinha
de água e, no regresso… A mala já não
está na rede porta-bagagens do comboio.
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começavam a ter existência fora de mim, tinham palavras, “ser económico e significante
autêntica vida.” nos gestos”, respeitar o ritmo (fazer bem
Daniel Pennac, Como um Romance as pausas e os silêncios, e interpretar
bem as interjeições), é bem certo que
Ler é bom! Muito bom! Dá-nos também supõe saber escutar. Na vida, em
liberdade e poder. momentos melancólicos, de doença ou
Ler em voz alta é fonte de prazer! outros, há palavras que ecoam em nós e
Dá vida às palavras, amplia-lhes o nos transformam. A Biblioterapia tem
sentido. como objetivo “fazer companhia e aliviar
Em silêncio, a pares ou em voz alta são sentimentos de solidão, levantar o ânimo
algumas das formas possíveis de ler. […] combater a tristeza […], estimular a
Não importa como se lê, o que importa memória e a imaginação de quem ouve e
é ler, ler bem, com fluência, com gosto fazê-lo viajar sem sair do lugar, conversar
e entusiasmo. A leitura em voz alta no seguimento da leitura e ajudar a passar
requer treino, implica falar “quer em o tempo.”
tom solene, quer em tom intimista, Quem ouve lê noutro formato!
quer em tom declarativo, entre O ouvinte é simultaneamente leitor.
outros, permite dar vida nova ao texto A escuta amplia a descoberta de autores,
escrito, ou melhor, libertar a vida que palavras, textos e livros.
as mesmas palavras transportam.” O Guia Experimental para a Leitura em
Voz Alta é simultaneamente um guia e
Historicamente, a leitura em voz alta um convite. Um guia, pois ajuda-nos a
está intimamente relacionada “com o melhorar a técnica de ler em voz alta,
surgimento da escrita há mais de cinco mil através de muitas sugestões e propostas
anos em regiões como a Mesopotâmia ou de exercícios, e orienta-nos na descoberta
o Egipto”. Muitos dos textos produzidos de novas rotas que nos conduzem aos
”destinavam-se a ser lidos em voz alta”, benefícios da leitura em voz alta. Neste
durante o período romano. Nas escolas, guia, somos conduzidos pela voz de
aprendia-se a ler e a escrever praticando alguns dos mais reconhecidos poetas,
a leitura em voz alta de textos antigos, atores, mediadores de leitura, contadores
desta forma valorizando a acessibilidade de histórias e mestres da palavra dita.
aos livros que começavam a encher Mas também com eles aprendemos a
as estantes das bibliotecas. No espaço importância do escutar. E é um convite,
público (barbearias, tabacarias, cafés, entre pois desafia-nos a “entrar no jogo da
outros), ler em voz alta “assumia-se como leitura partilhada, enquanto percorre,
elemento de coesão social”. Se, por um em voo picado, uma breve história da
lado, nos salões literários e filosóficos eram literatura portuguesa”, a refletir sobre
promovidas as tertúlias e as declamações a importância de ler em voz alta e,
de poesia, por outro lado, esta forma finalmente, a escutar vozes magníficas
de ler permitia “o acesso aos conteúdos e deslumbrantes palavras. Para sermos
dos textos escritos por segmentos largos encantados pela(s) voz(es)!
das comunidades não alfabetizados”, a O Guia Experimental para a Leitura em
“transmissão do património de saber Voz Alta resulta de uma feliz parceria
humano, transversal a todas as culturas”. entre a Câmara Municipal da Sertã,
A democratização da leitura era efetiva! organizadora da Maratona de Leitura,
Ler também é ouvir. Se ler em voz alta com a editora BOCA, em prol da leitura
pressupõe ler devagar, articular bem as em voz alta e numa delicada e sentida
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Muitos de nós entendem o livro como um inspiradores. “O livreiro está a par das
objeto tocável, transportável, criativo e tendências do mundo editorial, das
plástico. Nós temos, lemos e oferecemos notícias da atualidade e dos gostos dos
livros. Gostamos de conversar sobre leitores, para poder aconselhá-los da
livros, participamos em clubes de leitura melhor forma. A maioria das livrarias
e refletimos sobre os benefícios de ler. comercializa livros novos, mas há também
Afinal, que objetos são estes? “Como se alfarrabistas, que vendem livros antigos e
fabricam? E quem os faz? A Imprensa em segunda mão.” A livraria é o melhor
Nacional, a mais antiga editora do país – lugar para se comprar livros, apesar de eles
fundada em 1768 —, vai revelar-te todos os se encontrarem à venda noutros locais.
segredos”, promete este magnífico livro aos Enquanto a biblioteca, “em vez de vender
leitores mais jovens. Mas dirige-se a todos livros […], empresta-os gratuitamente a
os que gostam de livros e querem conhecer qualquer pessoa.” As bibliotecas são espaços
a sua história, bem como todos os aspetos democráticos, garantem a acessibilidade à
da sua criação, e saber mais sobre edição, informação e ao conhecimento, apostam
revisão, encadernação e distribuição. Para na mediação leitora e na “divulgação do
se conceber um livro, para que o objeto prazer da leitura.”
seja verdadeiramente atraente, dever- Preciso, claro e esclarecedor, o texto
se-á compreender o papel desempenhado avança sempre num diálogo harmonioso
pelos designers editoriais, já que são eles com as ilustrações, que ampliam a
que “desenvolvem uma organização sua compreensão. Antes de terminar,
gráfica para os conteúdos, dependendo nas últimas páginas, é apresentado
da natureza da obra e do público a que se um conjunto de palavras para o leitor
destina.” descobrir e lhes saborear o significado,
O livro, enquanto objeto surpreendente, como, por exemplo, arte-final, errata,
intemporal, encantatório e sensível, fólio e incunábulos. O livro faz-se
de múltiplos significados e formatos, acompanhar de uma capa desdobrável,
expressa-se em diferentes tipologias: “de que apresenta ao leitor os vários
bolso; livros de artistas; livros miniatura; profissionais necessários para fazer nascer
livros gigantes; livros em formato de um livro: “todos têm funções muito
concertina; livros panorâmicos; livros importantes, embora alguns tenham mais
pop-up; audiolivros; livros eletrónicos; protagonismo e outros estejam mais nos
e até livros em formatos invulgares; […] «bastidores»”. São precisas muitas mãos,
livros literários; científicos; de receitas, de vontades, entusiasmo e profissionalismo
instruções; escolares; só com ilustrações ou para criar um livro.
só com fotografias; só com texto; com texto O que vem a ser isto? A história de um
e ilustrações; dicionários; almanaques objeto surpreendente apresenta-nos os
[…]. Há livros de um autor apenas e livros vários intervenientes na criação do livro,
com vários autores. Há até livros de não esquecendo nem os autores nem os
autores desconhecidos.” Acrescentaríamos leitores, pois afinal é por causa deles que
que há livros pensados e concebidos os livros são criados. “Os leitores estão
para informar, divulgar e saciar a nossa na ponta final desta grande cadeia, mas,
curiosidade, como é o caso deste. de certo modo, são eles que estão na sua
Após um longo caminho, os livros origem. Os autores transmitem ideias
chegam aos leitores quer pelas bibliotecas aos leitores pelos livros, uma espécie de
quer pelas livrarias. As livrarias comunicação silenciosa através do espaço
tradicionais são espaços acolhedores e e do tempo. […] A leitura […] também
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