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ENTRELER

Número 1 · outubro 2021

Entreler é uma revista digital de acesso livre e gratuito, com


periodicidade anual, que tem como objetivo divulgar estudos e
reflexões sobre a leitura, a escrita e a literacia, em todas as faixas
etárias e nas suas múltiplas dimensões (educativa, literária, social,
antropológica, …) e contextos (formal, informal e não formal), bem
como projetos e atividades de promoção da leitura e formação de
leitores. Dirige-se a mediadores, docentes, formadores, investigadores,
bibliotecários, técnicos e a todos os que partilham o interesse pela
leitura, pela escrita e pelas literacias.

© 2021, Plano Nacional de Leitura 2027


Ficha Técnica
Direção
Teresa Calçada

Edição
Plano Nacional de Leitura 2027

Conselho Editorial
Carlos Vaz Marques, Patrícia Ávila e Elsa Conde

N.º 1 · outubro de 2021 (Anual)

ISSN: 2184-8386

Disponível em:
http://pnl2027.gov.pt/np4/entreler

Os textos assinados são da responsabilidade


dos respetivos autores.

Os conteúdos desta publicação podem ser


reproduzidos ao abrigo da Licença Creative
Commons (CC BY-NC-ND 4.0).
Índice
Editorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4
Teresa Calçada e Elsa Conde
Entrevista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6
Um cânone é uma lista e uma lista é uma escolha
Entrevista de Miguel Real a Miguel Tamen e Eugénio Lisboa
Artigos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 14
Leitores de livros em Portugal. Uma prática cultural em transformação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Miguel Ângelo Lopes, José Soares Neves e Patrícia Ávila
Do livro como objeto à leitura como evento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
Ana Sabino
Práticas de leitura e competências de literacia: resultados e ilações do PIAAC . . . . . . . . . . . . . . 32
Luís Rothes e João Queirós
Histórias em 77 palavras® – método e aplicações futuras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
Margarida Fonseca Santos e Isabel Peixeiro
Leituras – ferramentas de liberdade: da alfabetização à literacia do pensamento . . . . . . . . . . . 51
Anabela de Sousa Azevedo et al.
Projeto Metamorfoses: um desafio para aprender ciência, tecnologia e literatura . . . . . . . . . . . 64
João Dias e Adelina Machado
“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”: ciberliteratura
e educação ambiental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
Diogo Marques e Ana Gago
Leitura(s) em grupo. Um estudo de caso sobre práticas de leitura online . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
Rita Duarte, Jorge Vieira e José Soares Neves
Da materialidade do livro à memória coletiva e à projeção no futuro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Ana do Canto, Anabela Teixeira, Catarina Leal e Teresa Saborida
Ler + o Holocausto. História, memória e representações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112
Jorge Brandão Carvalho
Orientações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124
A Ler . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126
Como Ler Literatura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127
Terry Eagleton
Ler o Mundo: experiências de transmissão cultural na actualidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
Michèle Petit
O Infinito num Junco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
Irene Vallejo
Suspense ou a Arte da Ficção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135
Patricia Highsmith
Histórias de Livros Perdidos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
Giorgio van Straten
O Vício dos Livros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
Afonso Cruz
Guia Experimental para a Leitura em Voz Alta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140
Bru Junça, Elsa Serra, Guilherme d’Oliveira Martins et al.
O que vem a ser isto? A história de um objeto surpreendente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142
Rita Canas Mendes
Editorial
Encontramo-nos inseridos num novo ambiente em
que a velocidade, a instantaneidade, a flexibilidade,
a mobilidade, a experimentação e a mudança são
algumas das marcas não só das práticas de literacia
na Web, mas também das práticas sociais e
culturais da nossa vida.
José Afonso Furtado

A revista Entreler apresenta-se com o propósito e a vontade de trazer à


reflexão e ao debate ensinamentos e apreensões produzidos na área do livro
e da leitura, da escrita e das literacias. Promover um contraditório de ideias e
práticas que fomente conhecimento qualificado é vital ao desenvolvimento de
uma cultura leitora, garantindo a construção e a adaptação a novas ecologias
da leitura, com as condicionantes próprias da sua longuíssima história. Uma
história de compreensão e reinvenção permanentes da palavra, fundadora do
ser pensante que somos, bem civilizacional que não se pode perder e de que não
desejamos desistir. A palavra, qualquer que seja a sua forma e representação, é
um lugar por excelência do humano, o lugar da sua imortalidade.

Tratar o conceito evolutivo de leitura construtor não-passivo, livre e autónomo,


– filosófico, antropológico, económico, a posse de um trabalhado sentido crítico
linguístico, sociológico e literário – em e funcional, para defesa de si próprio e
toda a sua complexidade, numa perspetiva do outro. Só com habilidades acrescidas
crítica e analítica, é uma exigência o leitor, hoje multimodal, será capaz
conceptual. Num tempo de coexistências de ler, de forma integrada, textos que
improváveis – múltiplos ecrãs, utilizam sistemas semióticos, individuais
plataformas, livros em papel e ebooks, ou combinados, que lhe permitem, pelo
redes sociais, influenciadores, algoritmos, recurso a tecnologias várias, um maior e
inteligência artificial, entretenimentos melhor olhar, livre e crítico.
aditivos, leitores multimodais, literacias As relações que os homens foram
múltiplas e transliteracias,…–, ler é resistir estabelecendo com os livros e as
à liquefação do mundo, um imperativo metamorfoses sofridas pelo ato da leitura,
ético e de sabedoria. com incidência no aparecimento da
É com escritores, pensadores, Internet e do hipertexto, e as consequentes
investigadores, autores e analistas, mas mudanças comportamentais evidenciam
igualmente com leitores, que se constroem as novas formas de literacia consolidadas.
os textos convocados para o exercício Refletir sobre esta relação existente
intemporal da leitura e da escrita, numa entre linguagens, comunicações e
miríade de linguagens que constituem cibercultura é a forma de colaborar na
o nosso corpo social, marcado por novas criação de sentidos e significados para
formas de comunicação, acesso e uso a leitura, a escrita e as literacias hoje,
de informações em rede, abundantes, que pode e deve ser acolhida pela revista
imediatas e obscuras, sobrando ao Entreler, enquanto lugar de debate e
ser pensante, enquanto sujeito leitor, pensamento.

4 ENTRELER
Editorial

Porque na leitura está implicado o que no âmbito do desenvolvimento de


escreve e o que lê, relação de mais do que estratégias de educação ambiental; e
uma subjetividade, ela é uma experiência explora-se a prevalência das práticas de
humana total, uma verdadeira facilitadora leitura em grupo nos ambientes online,
da leitura do mundo. usando meios e assumindo formas muito
Os artigos escolhidos para esta edição distintos dos dos clubes de leitura que
surpreenderam os próprios organizadores precederam o advento da Internet, com
da revista pelo seu elevado número, que passaram a conviver. Por fim, no
grande variedade e superior qualidade. domínio dedicado à Memória, escreve-
Distribuímo-los, para facilidade de se sobre os livros que a edificam. Num
leitura, por quatro domínios: Estudos, contexto de profusa edição de obras sobre
Práticas, Digital e Memória. Do primeiro, o Holocausto, será fundamental conhecer
fazem parte três artigos que nos levam à a natureza dos títulos publicados se
tomada de consciência da importância queremos compreender o modo como
que é devida à materialidade do livro no se vai construindo a sua memória, feita
ato de ler, reificando o livro e a leitura atualmente de numerosas e múltiplas
mais como um evento do que como um leituras. É também uma incursão pelas
objeto; ao conhecimento sobre as práticas obras literárias do património bibliográfico
de leitura de livros em Portugal e o da Escola Secundária de Camões que nos
perfil dos leitores de livros, desvendando é proposta pela sua Biblioteca Histórica,
alguns dos hipotéticos sinais da mudança num processo ativo de apropriação e de
social e cultural que atravessam a valorização das suas referências culturais
sociedade portuguesa; à compreensão por toda a comunidade educativa.
dos fundamentos e das estratégias que Numa altura em que tanto se tem
norteiam a promoção da leitura e o discutido a relevância e a autoridade
desenvolvimento de competências de dos cânones literários, o n.o 1 da Entreler
literacia junto da população adulta, oferece, ainda, aos seus leitores, uma
com destaque para a importância do estimulante entrevista conduzida por
envolvimento dos adultos em práticas Miguel Real a Eugénio Lisboa e Miguel
de leitura autênticas e significativas. No Tamen, a propósito dos seus livros,
domínio das Práticas, ficamos a par do respetivamente, Vamos Ler! Um Cânone
sentido de projetos e atividades como para o Leitor Relutante, editado pela
o Histórias em 77 Palavras, desafios de Guerra e Paz, e O Cânone, escrito em
escrita cujo impacto na progressão dos coautoria com António Feijó e João
alunos se pretende avaliar; o percurso de Figueiredo e editado pela Tinta da China.
capacitação dos adultos enquanto leitores, Finalmente, apresenta-se ainda um
que ocorre diariamente no Centro de conjunto de propostas A Ler, dedicadas
Educação, Formação e Certificação da aos temas do livro, da leitura e da escrita,
SCML, aliando a didática à promoção dos que esperamos venham a inspirar outras
hábitos de leitura; e o Metamorfoses, um tantas leituras.
projeto que associa a ciência e a tecnologia Terminamos com uma palavra de
com a leitura e a escrita, promovendo a agradecimento: não só aos autores e
literacia científica e literária dos jovens a todos quantos contribuíram para a
do ensino secundário. No domínio do publicação deste número da revista, mas
Digital, debatem-se possíveis aplicações da também aos leitores que nos (entre)leem.
ciberliteratura, usando a literatura digital
como ferramenta inovadora e experimental Teresa Calçada e Elsa Conde

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Um cânone é uma lista e uma lista é uma escolha
Entrevista de Miguel Real a Miguel Tamen e Eugénio Lisboa

Miguel Real (MR)— O cânone literário é consensualmente visto como um


estabilizador do campo da literatura, um referenciador, não um conceito
absoluto. E saíram recentemente dois livros sobre o cânone: um com o
título O Cânone, da autoria de três professores da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, António M. Feijó, João R. Figueiredo e Miguel Tamen,
aqui presente; o outro, mais individual, mais pessoal, é do Professor Eugénio
Lisboa, que dispensa apresentações e também está aqui connosco, tem como
título Vamos Ler e apresenta uma lista final de 35 autores.
São dois livros especiais. O primeiro é um cânone muito desenvolvido do
ponto de vista explicativo de cada autor. É profundamente iconoclasta,
porque não só desrespeita a tradição do cânone em Portugal, desde o do
Mendes dos Remédios, o do Fidelino Figueiredo, Teófilo Braga, passando
por vários até chegar ao atual cânone, do Carlos Reis, mas desrespeita
ironicamente – tem um olhar irónico fundamental. Porque, ao mesmo tempo
que desrespeita, instaura um novo cânone. É isto que é a iconoclastia, pelo
menos, não encontrei outra palavra mais adequada.

Miguel Real (MR)— Isto é verdade, um cânone é uma lista e uma lista é uma
Professor Miguel Tamen? Não só que escolha. Não existe alguém (nem nós nem
contesta o cânone antigo, consensual, ninguém) dotado do poder normativo
aquele que vem do Estado Novo, que suficiente para, pelo simples facto de
depois a Maria Alzira Seixo, o Eduardo publicar uma lista de nomes, ou de ensaios
Prado Coelho e a Eduarda Dionísio de sobre autores, como é o caso de ambos,
certo modo expuseram, a seguir ao 25 de conseguir transformar completamente as
Abril – publicando aquele livro famoso, perceções que as pessoas têm.
com textos de autores portugueses para MR— O Professor explica, no último
ler na escola primária e no liceu -, mas que texto, exatamente sobre o cânone, que
há também uma intenção de instaurar, de é uma lista prospetiva e é uma lista que
facto, um novo cânone, que não só rivalize, também tem a ver com o passado. E o
mas sobretudo conteste os cânones Professor António Feijó, no primeiro texto
antigos? sobre o cânone, também desmistifica,
Miguel Tamen (MT)— Muito obrigado. dessacraliza o conceito de cânone. De
Devo dizer, em primeiro lugar, que tenho qualquer maneira, é impossível quem
muito gosto em estar aqui e falar destas nasce hoje e daqui a vinte anos entra na
coisas, que claramente nos interessam Universidade não se debater com este
aos três. Mas a resposta à sua pergunta livro e não considerar este o cânone dos
é “Não”. Não nos passou pela cabeça seus pais (dos seus pais intelectuais,
instaurar cânone nenhum. Nós temos digamos assim).
um entendimento minimal, e até certo MT— Sabe, é uma lista que tem muitos
ponto empírico, da noção de cânone. nomes em comum com a esmagadora
E nisso somos muito parecidos com o maioria das listas parecidas. No fundo, a
Professor Eugénio Lisboa. Quer dizer: sua perceção de iconoclastia tem só a ver

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Entrevista de Miguel Real a Miguel Tamen e Eugénio Lisboa

com uma coisa, é com o século XX depois isca. E uma boa história, bem contada. O
de Fernando Pessoa. De resto, não há Domingos Monteiro é fabuloso, porque
nenhuma escolha muito especial. tem coisas do sobrenatural, tem coisas
MR— Desculpe eu insistir. Mas há opções. do mais realista, tem coisas de um
Por exemplo, os três organizadores regionalismo moderado, tem 12 volumes,
do livro fazem o cânone de literatura ainda por cima. É o equivalente, em
homossexual, que nunca tinha sido feito. Portugal, por exemplo, a um Somerset
Fazem o cânone de literatura feminista Maugham no mundo anglo-saxónico
– que, aliás, está extremamente bem – que é um esplêndido iniciador para
feito, pela Professora Ana M. Koblucka. pessoas que não estão habituadas a ler.
No seio do livro, aparece um verbete que Foi a escolha que fiz. É preciso ver o
é “Portugal”, que é visto de uma maneira seguinte, que é exatamente o que se passa
empírica, utilizando a sua palavra, e com os autores d’O Cânone. Chamou-lhe
original. Desde o Castelo Branco Chaves um cânone iconoclasta. Curiosamente,
que não se fazia isso. Quer dizer, como é posso dizer-lhe que, tirando talvez dois
que os de fora nos veem? Considera um nomes – e não era para tirar esses, era
pouco que há um complexo entre os que porque talvez me parecessem melhor
estão aqui e que são vistos pelos que outros –, eu adiro completamente a esta
estão de fora e que recebem o olhar do escolha. Parece-me que até é uma escolha
outro como se fosse uma verdade quase bastante consensual. Não tenho objeção
absoluta, digamos assim. absolutamente nenhuma. Uma das
Porquê Portugal? que tenho pode parecer um bocadinho
MT— Porque todas as discussões sobre atrevida: o rei Dom Duarte. Eu pergunto:
estas coisas aparecem muitas vezes ligadas quem é que hoje lê o rei Dom Duarte?
a discussões sobre aquilo que constitui um MR— Saiu uma nova edição.
país, ou sobre a identidade nacional. E, EL— Eu sei, mas isso não quer dizer que
muitas vezes, é uma certa ideia de Portugal seja lido…
que permite derivar num certo tipo de MR— Pelo menos, o editor espera vender…
listas. Pense no livro da 3.a classe, para não MT— Se me posso meter na conversa,
irmos mais longe. Há uma relação entre aí há uma diferença de intenção entre
os autores incluídos nessa seleta, a maior o seu livro e o nosso que pode explicar
parte dos quais só recordamos hoje como isso. Como estava a dizer, a propósito do
nomes de ruas (se é que nos recordamos de Domingos Monteiro, um dos propósitos
todo), e uma ideia muito particular sobre que teve parece-me que foi levar pessoas
o que é um país – para onde vai, de onde que nunca tinham lido um livro a ler. Essa
vem, quem são os protagonistas. não foi a nossa preocupação.
MR— Uma identidade cultural, não EL— O que eu às vezes me pergunto em
é? Vou dirigir-me agora ao Professor relação a certos nomes estabelecidos é se,
Eugénio Lisboa. Professor, eu tenho uma com outra situação social (por exemplo,
provocação para lhe fazer: porque é que caso Dom Duarte não tivesse sido rei), os
pôs na sua lista o Domingos Monteiro? textos deles teriam sobrevivido até hoje. É
Eugénio Lisboa (EL)— Porque é um a pergunta que faço. Eu tenho as minhas
fabuloso contista. As pessoas nunca se dúvidas. E não devemos ter medo de
devem esquecer, quando estão a falar questionar. Conta-se que o Lope de Vega,
deste cânone, que é um cânone para no leito de morte, mandou chamar não
aliciar leitores não treinados. E os leitores um padre, mas um médico. Porque dizia
não treinados aliciam-se com uma boa ele: “Tenho uma confissão terrível a fazer;

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Entrevista de Miguel Real a Miguel Tamen e Eugénio Lisboa

depois de fazer essa confissão, não tenho eu gosto muito. E os ingleses resolveram
cara para olhar para ninguém. De maneira pôr uma pessoa a ir ao palco contar uma
que preciso de saber se tenho muito tempo parte da História de Portugal para se
de vida ou se tenho pouco; se tiver pouco, perceber a peça. Eu disse: “Não estou de
faço a confissão.” Chamou o médico, o acordo! O Garrett, na peça, dá informação
médico examinou-o com muito cuidado suficiente para não se precisar de mais
e, no fim, disse-lhe: “Se o senhor quer nada”. Porque, se não o tivesse feito, não
realmente fazer uma confissão, é melhor tinha sido competente como dramaturgo.
fazê-la depressa, porque a sua vida está por Portanto, às vezes, nós somos um
um fio.” E o Lope de Vega declarou: bocadinho paternalistas: “O autor, coitado,
“O que eu tenho a confessar é horrível! É não soube… Deixa-me cá ajudá-lo.” Um
que eu acho o Dante tão chato!”. [Risos] grande autor não precisa disso!
MR— É o que o Professor diz do Joyce. MR— Posso fazer outra provocação?
EL— Do Joyce, que eu acho uma chatice EL— Pode, pode.
completa! MR— Porquê Fialho e Teixeira Gomes e
MR— É totalmente chato! As 30 primeiras não Raul Brandão?
páginas… EL— A minha resposta é muito simples:
EL— Mas o número de autores, de nome, esta não pretende ser a escolha, é uma
que depois do meu ato de coragem escolha. Porque eu podia perfeitamente
me ajudaram! O Borges, a Virginia ter escolhido o Raul Brandão, que
Woolf achavam o Joyce absolutamente admiro imensamente. Aliás, eu fiz para
intragável! mim próprio uma lista para uma outra
MR— Estavam no mesmo tempo. Não “escolha de livros para o leitor relutante”
estou a desculpar o Joyce, é realmente e encontrei uns 30 ou 40 nomes que
chato e é preciso uma certa atitude podiam perfeitamente servir.
de espírito para o ler, mas é preciso MR— Tive a sensação de que seria essa a
saber história também. E a história resposta.
é extremamente importante para a EL— E para O Cânone a mesma coisa.
literatura, no sentido em que há um Vocês certamente deixaram de fora gente
estofo. E, nesse sentido, era preciso que podia perfeitamente entrar.
perceber como é que a literatura estava MT— Nós oscilámos entre uma versão
nessa altura, no princípio do século XX, mais maximal e uma versão ainda mais
o que é que ele fez… minimal. E foi um motivo de grandes
EL— Para isso, dava uma resposta: discussões entre nós ao longo do tempo.
quando se diz “Para gostar deste livro, é Acabámos por conseguir uma versão inter-
preciso saber-se história”, por exemplo, média, relativamente comprimida, porque
eu digo “Então é porque o autor não quanto mais expandíssemos, mais se iriam
foi competente”, porque deve dar ao parecer as entradas com entradas de dicio-
leitor a informação suficiente e o mais nário ou verbetes de enciclopédia, que não
discretamente possível para ele já não era aquilo que nós queríamos fazer.
precisar disso. Se não o fizer, é porque não EL— Respondendo ainda à pergunta:
está a ser competente. o Raul Brandão é um enormíssimo
MR— Penso que ele dá, é o estilo dele… escritor mas, para o meu fim, ele é um
EL— Uma ocasião, em Londres, quando escritor a que eu chamo “um bocadinho
eu estava lá como conselheiro cultural, desarrumado”, como o é, por exemplo, o
encenámos o Frei Luís de Sousa, do Dostoyévski. Para este leitor, não sei se
Almeida Garrett, que é uma obra de que seria a melhor isca de início.

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Entrevista de Miguel Real a Miguel Tamen e Eugénio Lisboa

MR— Professor Miguel Tamen, porque é MR— Sim, não há nenhuma grande
que o Cânone ficou “amputado” da idade poetisa romântica. Aliás é dito aqui…
Média? Não é assim? Fernão Lopes, Dom MT— E, se calhar, não há nenhum grande
Duarte… poeta romântico.
MT— Lírica Medieval, há um ensaio sobre MR— É dito aqui, já não me lembro por
Lírica Medieval. quem, exatamente isso: a grande poetisa
MR— Eu fiquei nos Cancioneiros… romântica, que não houve, talvez tenha
MT— Há um ensaio sobre Lírica Medieval, sido a Florbela Espanca.
do João Dionísio. E, no fundo, nós, a MT— Claro. Uma espécie de romântica
propósito de certos tópicos, fizemos um atrasada, 100 anos depois…
bocadinho de batota, que foi encomendar MR— No sentido da iconoclastia… A
ou fazer ensaios sobre períodos, sobre Florbela Espanca também faz parte.
Lírica Medieval, sobre Renascimento, Ela estava fora do cânone, era lida
sobre Barroco, essencialmente. Sobretudo popularmente, aqui e no Brasil, mas
sobre períodos mais remotos. Mas, no estava fora do cânone até à década de 90,
fundo, por exemplo, pensando no cânone quando o Joaquim Manuel Magalhães fez
de poesia lírica medieval, o número de aquele pequeno ensaio que agora aparece
autores é muito grande; se calhar nenhum em todas as obras dela. E agora está n’O
autor considerado individualmente Cânone. Eu fiquei imensamente contente
poderia ser tratado como autor no por ver a Florbela Espanca ali, ao lado de
sentido moderno do termo. E aqui há um outros grandes poetas.
contraste enorme, por exemplo, entre MT— O caso da Florbela Espanca é um
o que se passa na poesia francesa, ou caso muito interessante, porque é um
na poesia italiana, ou mesmo na poesia caso de divergência de perceção entre as
inglesa da mesma altura, e o que se passa pessoas que escrevem sobre literatura e as
na poesia portuguesa. Eu não sei se Dom pessoas que compram livros de versos. Tal
Dinis era um grande escritor. Queria saber como há poetas que se diz que são poetas
mais, não tenho evidência suficiente. dos poetas, a Florbela Espanca não é uma
MR— O “verde pinho” entrou na memória poeta dos poetas.
popular. EL— Mas a Florbela, por outro lado,
MT— E há cantigas maravilhosas do Airas compreende-se que anteriormente
Nunes, mas são poucas. não fizesse parte do cânone, talvez por
MR— Por outro lado, fizeram o Barroco, preconceito social. A sua vida pessoal,
o Renascimento, mas não fizeram o a conceção do amor, um amor muito
Romantismo… narcisista (ela gosta muito de si própria)
MT— Porque aí há um fenómeno que, para aquela época, era capaz de ser
interessante de perspetiva histórica e de um bocado atrevidote…
paralaxe, se é que posso usar a metáfora: MR— Não era capaz, era mesmo. De tal
é que quanto mais próximo de uma maneira que a Virgínia Vitorino na mesma
certa perceção contemporânea, por um época publicou Os Namorados e teve 12
lado, mais difícil é fazer escolhas, e por edições em 10 anos, enquanto ela teve só
outro lado, mais tentados somos nós a uma edição.
individualizar nomes. Porque os nomes MT— Mas, em relação à Florbela Espanca,
estão mais próximos de nós. Para além de há uma coisa interessante – uma espécie
que, se calhar, Romantismo é um exagero de teste semiempírico que se pode fazer
quando se descreve literatura portuguesa ou imaginar fazer – e que tem a ver com
dessa altura. a dicção particular da Florbela Espanca.

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Entrevista de Miguel Real a Miguel Tamen e Eugénio Lisboa

À vista desarmada, a Florbela Espanca é MT— Mas o Herberto Hélder é óbvio que
muito parecida com a Virgínia Vitorino e não era a isca ideal. Aquelas metáforas
com as senhoras que escreviam na altura, dele, a aproximação do inaproximável,
a maior parte delas esquecidas. que é uma das características daquele
MR— Agora o contrário da Florbela para-surrealismo… É evidente que não
Espanca. Professor Eugénio Lisboa, ia converter ninguém com o Herberto
porque é que tirou toda a poesia de 61 do Hélder. Admiro-o imenso, acho que é um
seu cânone? Nem Maria Teresa Horta, nem dos nossos grandes poetas, mas não para
Fiama Hasse Pais Brandão… este fim.
EL— Precisamente pela razão da MR— Fiquei muito feliz por ter posto o
acessibilidade. A poesia de 61 não é, na Sílvio Lima.
minha opinião, a mais indicada para EL— O Sílvio Lima, eu admiro-o imenso.
um leitor que não lê. A poesia, de uma O Ensaio sobre a Essência do Ensaio é um
maneira geral, já não é aquilo por onde grande livro.
as pessoas gostam de começar. E a poesia MR— E incluiu o António Sérgio, o
de 61, com aquela falta de nexos lógicos, Oliveira Martins e o Antero, As Causas da
etc… Eu também não recomendaria aos Decadência dos Povos Peninsulares. Isso
ingleses, para começarem, um T.S. Elliot, é do cânone.
independentemente da grandeza dele EL— Não é que eu ache que o Antero,
como poeta, não é? Portanto, a razão nesse texto, tenha esgotado as causas
foi apenas essa. Não houve preconceito da decadência dos povos peninsulares.
pessoal contra isso. Mas é um grande texto de meditação.
MR— Eu fiquei admiradíssimo quando E, para mim, é um modelo de prosa de
não vi ninguém, absolutamente… A Maria ideias. Porque todos os grandes filósofos,
Teresa Horta… sejam eles alemães, ingleses, espanhóis,
EL— Eu gosto imenso da Maria Teresa têm uma característica: a grande clareza
Horta. de ideias e a transparência da escrita.
MR— Ela tem imensos versos populares. E Aliás, eu costumo citar muitas vezes o
romances, também. Mas também não pôs Wittgenstein, que dizia que, quando
o Ruy Belo. É um dos melhores poetas do uma ideia não se consegue exprimir com
século XX. grande simplicidade e transparência, é
EL— O Ruy Belo podia perfeitamente pôr, porque talvez ainda não esteja madura
sim. Não é completamente easy going, para ser expressa. E o Antero, nisso, é um
mas tem condições de acessibilidade e grande exemplo na nossa literatura.
de sedução suficientes. Uma ocasião, um MR— Ele não era propriamente inovador,
aluno em Lourenço Marques, na aula de nas Causas… O Alexandre Herculano
Ciências Geográficas, queria embatucar tinha-o dito já, também, o Agostinho
um professor (um professor com uma Macedo, mas numa outra visão.
certa pompa) e perguntou-lhe: “Professor, EL— O Oliveira Martins, o Portugal
porque é que, na posição relativa dos Contemporâneo e a História de Portugal, eu
astros do sistema solar, nunca há uma acho que são livros fundamentais para nós
posição em que o Sol fique entre a Terra e percebermos quem somos.
a Lua?”. E ele respondeu: “Olhe, menino, MR— Sem dúvida. Para voltarmos ao livro
além do mais, porque não cabe.” [Risos] Eu O Cânone, a que eu chamei “iconoclasta”,
diria que o Ruy Belo não coube aqui. registei que um livro é iconoclasta quando
MR— Eu já não ia fazer a pergunta altera a nossa visão do passado e não
seguinte, que era sobre o Herberto Hélder. respeita a tradição memorialística da

10 ENTRELER
Entrevista de Miguel Real a Miguel Tamen e Eugénio Lisboa

sociedade. Por falar em memória, um dos MT— Como reação à ideia de que
verbetes de que mais gostei foi aquele precisamos de uma teoria geral de
que é sobre memória, sobre memórias, do Portugal para falar de literatura
Rui Ramos. portuguesa. Felizmente não precisamos.
MT— É um ensaio sobre uma tradição Uma teoria geral sobre um país é como
de memorialismo, não apenas literário, aquelas ajudas nas provas de ciclismo,
também histórico, autobiográfico, de quando membros do público empurram
modo geral. os ciclistas para a frente. Não vale a pena.
MR— Eu acho que ele esgota o tema. Com MR— Mas tem sido sempre assim.
o número de páginas que tem, esgota o MT— Eu sei. Mas é uma tradição infeliz.
tema. Devia dar um ensaio de cento e tal MR— Pelo menos, desde o Teófilo Braga.
páginas, digamos assim… O Professor EL— Eu sei.
acha, então, que este vosso livro não MR— Com o Mendes dos Remédios era
altera a visão da literatura? o nacionalismo – era a época do Salazar.
MT— Não nos compete a nós dizer se Depois vieram o Óscar Lopes e o António
altera ou se não altera. José Saraiva…
MR— Eu acho que altera bastante. MT— E o Eduardo Lourenço.
MT— Houve uma coisa que nós quisemos MR— É uma pergunta que eu tenho para
fazer, mas não tem necessariamente a ver fazer. Na Crítica, não incluiu Eduardo
com alterar visão nenhuma. Quisemos Lourenço.
que todos os ensaios fossem ensaios com MT— Posso-lhe dizer uma coisa
um argumento, com uma tese. É, no francamente?
fundo, como se tivéssemos encomendado MR— Diga, diga.
a pessoas – e, desde logo, a nós próprios – MT— Não é um grande crítico. Tem um
redações com o tema “Quais são as razões grande livro: Pessoa Revisitado.
que eu tenho para estimar particularmente MR— Sabe que foi o único livro que ele fez
este autor?”. E, portanto, desse ponto de por inteiro?
vista, quando passamos ao domínio do MT— Sei. E nota-se.
argumento, quando já não estamos a EL— Também concordo consigo. Eu não
falar do que nos passa pela alma ou do vejo o Eduardo Lourenço como um grande
que sentimos entre a segunda e a terceira ensaísta, de maneira nenhuma.
costela, quando somos obrigados a dar MR— Eu sei. Eu li o artigo que escreveu no
razões para as nossas preferências, estamos Jornal de Letras quando ele morreu.
pelo menos a dizer que não pensamos estas EL— Aquilo foi um bocadinho para criar
coisas por acaso. Agora, não sabemos o uma divergência. Quando um autor
que vai acontecer às cabeças das pessoas. É morre, não se lhe faz uma homenagem,
provável que não aconteça muito. faz-se-lhe um balanço. É o que eu vejo
MR— Seria verdade se eu dissesse que fazer nos obituários, por exemplo, do New
este Cânone pressupõe uma identidade, York Times. Faz-se um balanço: diz-se o
mas não a explicita? Uma identidade de bom e o menos bom. E aquilo diminui
Portugal. culturalmente o nosso meio intelectual.
MT— Não, não, não. Nós não temos MR— Mas o Professor Miguel Tamen
nenhuma teoria da identidade na manga. reduziu a Crítica Literária praticamente ao
MR— Os textos – neste caso, até do Gaspar Simões e ao Eduardo Prado Coelho.
Professor (o texto sobre Portugal) – MT— Mas aí o propósito foi um
são bastante empíricos, baseados na bocadinho diferente, foi tentar fazer
identidade… um pouco como o Plutarco fez em Vidas

ENTRELER 11
Entrevista de Miguel Real a Miguel Tamen e Eugénio Lisboa

Paralelas (não sei aqui quem é o grego e livro Esteiros do Soeiro Pereira Gomes é
quem é o romano). Eram dois críticos do um livro admirável sobre a adolescência.
século XX que foram muito influentes no Impressionou-me imenso.
seu tempo, de maneiras completamente MR— Há um outro também muito bom,
diferentes, que não gostavam um do outro que é do José Marmelo e Silva, mas é
e que duraram muito tempo. Isto são pouco conhecido.
simplesmente constatações de factos. EL— O Marmelo e Silva, eu gosto imenso
MR— Mas acaba de uma maneira muito dele.
bela. Não porque eles quisessem, mas MR— O que ambos não puseram na
porque as condições se alteraram. lista foi o Alves Redol, nem o Manuel da
MT— Não quero fazer sociologia da Fonseca.
política ou história da política, mas Prado EL— Ah, o Manuel da Fonseca! Volto à
Coelho foi um crítico cuja vantagem minha, não coube! Faria perfeitamente
comparativa – se é que posso usar o termo parte, não há incompatibilidade nenhuma
– tinha a ver com o facto de ele ter tido entre a minha lista e o Manuel da Fonseca.
acesso a livros a que quase mais ninguém Não coube.
tinha acesso. De repente, quando se MR— E o Alves Redol.
liberalizou o comércio externo e muitas EL— Eu acho a Aldeia Nova um livro
pessoas passaram a ter acesso a esses livros, admirável. E a poesia dele.
lá se foi a vantagem comparativa. MR— A poesia um pouco singela da Rosa
MR— Senhor Professor Eugénio Lisboa, dos Ventos, que é o primeiro livro dele. E os
sabe que fiquei admirado por ter incluído contos…
os Esteiros? EL— E a poesia do Manuel da Fonseca,
MT— Ah, mas eu li os Esteiros quando curiosamente, tem a admiração dos
era adolescente, quando era aluno do indivíduos mais inesperados. Por exemplo,
liceu, e li-o com deslumbramento. Eu quem pense na poesia do Alberto Lacerda
nunca fiz crítica ideológica. Não me não pensa na poesia do Manuel da
interessa nada saber se o indivíduo é da Fonseca. No entanto, o Alberto Lacerda
esquerda, da direita ou do centro. E o admirava profundamente a poesia dele.

12 ENTRELER
Entrevista de Miguel Real a Miguel Tamen e Eugénio Lisboa

MR— Qual é a explicação para não e aquilo eram historietas que eu escrevia
aparecerem n’O Cânone os grandes do para os meus sobrinhos, para os entreter”.
neorrealismo, Professor Miguel Tamen? E o Thomas Mann disse: “Aqui está como
São ultrapassados? Têm um contexto uma literatura despretensiosa pode
social diferente? realmente ser uma literatura atraente,
MT— As nossas conversas não foram uma literatura que desempenha o seu
conversas sobre quem está e quem não papel.” E acrescentou: “A partir daí, eu
está, quem fica e quem não fica. Houve tive sempre cuidado em nunca separar
consensos de que não houve necessidade a chamada alta literatura da baixa
de falar e houve divergências que foi literatura, porque isso não existe.” O
preciso clarificar. Eu não me lembro de Miguel Sousa Tavares, veja: eu quero
nenhuma discussão sobre neorrealismo. iscar leitores que até agora não tenham
O Carlos de Oliveira é um caso diferente, sido leitores; o Miguel Sousa Tavares é
é um candidato ao título de “O poeta obviamente apelativo, porque ele vendeu
italiano que não tivemos”, mas não não sei quantas edições do Equador.
pertence a essa história. É diferente. Eu próprio, que sou um leitor treinado,
MR— Bom, vamos terminar. Espero que li aquele livro, que achei empolgante.
não tenha provocado demasiado com Portanto, se acho que é uma boa isca,
as minhas perguntas. São perguntas porque é que não há de aparecer?
legítimas de quem lê um e outro, e fica com MR— E porque não o José Rodrigues dos
dúvidas. Santos?
EL— Eu admirei-me não foi das perguntas EL— Esse menos… Esse, acho que é um
que fez, foi das perguntas que não fez! Dan Brown à moda portuguesa. Eu gosto
Vou-lhe dizer uma: não me perguntou imenso de thrillers e leio imensos thrillers,
porque é que eu incluí o Miguel Sousa mas dos bons…
Tavares… MR— Terminamos, então. Obrigado aos
MR— Achei que era demasiado dois.
provocador…
EL— Essa é a pergunta que mais me têm
feito.
MR— E a Rosa Lobato Faria também. Já
agora, porquê?
EL— Eu procuro nunca ter o preconceito
da grande literatura e da pequena
literatura, da alta literatura e da baixa
literatura. Há, aliás, um ensaio admirável
escrito pelo Thomas Mann…Quando ele
foi a Estocolmo receber o prémio Nobel,
em 1929, ficou sentado ao lado da Selma
Lagerloff, que era a escritora sueca que
tinha recebido também o prémio Nobel há
muitos anos (ela foi logo das primeiras). E
disse-lhe que tinha muito gosto em estar
ali sentado ao seu lado, porque gostava
muito dos seus livros. E ela disse-lhe, com
grande humildade: “Ah, sabe, eu não tinha
filhos, nunca me casei, tinha sobrinhos,

ENTRELER 13
ARTIGOS

Leitores de livros em Portugal. Uma prática cultural em


transformação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15
Miguel Ângelo Lopes, José Soares Neves e Patrícia Ávila
Do livro como objeto à leitura como evento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26
Ana Sabino
Práticas de leitura e competências de literacia:
resultados e ilações do PIAAC . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32
Luís Rothes e João Queirós
Histórias em 77 palavras® – método e aplicações futuras . . . . . . . . 43
Margarida Fonseca Santos e Isabel Peixeiro
Leituras – ferramentas de liberdade: da alfabetização
à literacia do pensamento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
Anabela de Sousa Azevedo et al.
Projeto Metamorfoses: um desafio para aprender ciência,
tecnologia e literatura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64
João Dias e Adelina Machado
“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”:
ciberliteratura e educação ambiental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73
Diogo Marques e Ana Gago
Leitura(s) em grupo. Um estudo de caso sobre práticas
de leitura online . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89
Rita Duarte, Jorge Vieira e José Soares Neves
Da materialidade do livro à memória coletiva e à projeção
no futuro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Ana do Canto, Anabela Teixeira, Catarina Leal e Teresa Saborida
Ler + o Holocausto. História, memória e representações . . . . . . . . 112
Jorge Brandão Carvalho

14 ENTRELER
ESTUDOS
Leitores de livros em Portugal. Uma prática
cultural em transformação
Book readers in Portugal. A cultural practice in
transformation
Miguel Ângelo Lopes, José Soares Neves e Patrícia Ávila

RESUMO PALAVRAS-CHAVE
Este artigo apresenta novos contributos para sociologia da leitura, leitura de livros,
compreender a evolução recente das práticas práticas de leitura, perfis de leitores
de leitura, em particular da leitura de livros,
em Portugal. KEYWORDS
Perspetiva-se a leitura de livros como uma sociology of reading, book reading,
atividade realizada em tempos de lazer e reading practices, reader profiles
procura-se, através de uma análise diacrónica,
atualizar o conhecimento sobre as práticas de
leitura de livros em Portugal e sobre o perfil INTRODUÇÃO
sociodemográfico e socioprofissional dos
leitores de livros. Nas sociedades atuais, o lugar do livro e a
A estratégia metodológica seguida é sua importância social têm de ser entendi-
quantitativa, incidindo em dados sobre dos num quadro em que se multiplicam os
leitura de livros contidos em inquéritos suportes ou meios que possibilitam a circula-
internacionais à população. Conclui-se que ção da informação escrita e se generalizam e
os níveis de leitura vêm diminuindo, em fragmentam as práticas de leitura (Furtado,
particular entre os mais jovens e entre os 2000, 2012). Com efeito, vivemos numa épo-
mais qualificados em termos escolares e ca em que o texto escrito circula de uma for-
socioprofissionais. ma sem precedentes – seja em suportes como
livros, jornais e revistas, seja em pequenos
ABSTRACT textos (nas legendas na televisão, no cinema,
Taking reading as a cultural practice as a nas redes sociais, em documentos e formulá-
core concept, i.e, taking reading as a leisure rios, bulas de medicamentos, publicidade em
activity, a diachronic analysis is then carried forma de folhetos ou cartazes, entre outros)
out to update the knowledge about book reading – e o recurso à leitura é significativamente
practices in Portugal and the socio-demographic maior por necessidade de decifrar e interpre-
and socio-professional profile of book readers. tar essa informação (Ávila, 2008; Benavente
The methodological strategy followed is et al., 1996; Costa, 2003).
quantitative, focusing on data on book reading As evoluções tecnológicas dos últimos 20
contained in international population surveys. anos, nomeadamente ao nível das tecnolo-
We conclude that reading levels have been gias digitais, não diminuem a importância da
decreasing, particularly among the youngest leitura. Na chamada sociedade em rede, onde
and most qualified in educational and socio- tanto o acesso à Internet, ao computador, ao
professional terms. tablet, e principalmente ao smartphone, como
a utilização das redes sociais online têm vindo
a crescer (Cardoso et al., 2015), a “leitura sur-

ENTRELER 15
Leitores de livros em Portugal. Uma prática cultural em transformação

ge como sendo cada vez mais necessária em como uma prática social – desde a relação
diversos contextos, mas, ao mesmo tempo, que se estabelece entre o leitor e o autor,
fragmenta-se e dispersa-se, passando a estar passando pela partilha (física e digital) de
ancorada em múltiplos suportes” (Ávila, material escrito entre indivíduos, até à
2008, p. 72). Com o inegável avanço e presen- discussão de opiniões em clubes de livro
ça crescente de formatos de leitura inscritos presenciais ou em plataformas digitais
em dispositivos digitais, incluindo livros, as como a Goodreads (Sedo, 2011) – e não
sociedades atuais caracterizam-se pela coe- tanto como uma atividade individual (Ba-
xistência de uma multiplicidade de suportes ron, 2015, pp. 113–130).
disponíveis para a leitura. Assim, embora as Também numa perspetiva sociológica,
tecnologias digitais assumam uma impor- vários autores abordam a leitura como
tância cada vez maior, na vida social contem- prática cultural (Coulangeon, 2005, pp.
porânea estão presentes diferentes meios de 3–4), ou seja, enfatizam a leitura como
comunicação e diferentes suportes, impressos atividade realizada em tempo de lazer,
e digitais, através dos quais a leitura se desen- por prazer, fruição intelectual, distinta da
volve (Ávila, 2008, pp. 73–74). leitura efetuada por obrigações profissio-
Apesar disso, investigar o lugar do livro nais ou escolares (Donnat, 2009; Griswold
e a evolução social das práticas de leitura et al., 2005, 2011; Neves, 2015).
neste suporte não deixou de ser relevante
sociologicamente. Como têm, afinal, evoluí- 1.1. Leitores e perfis de leitores. Os
do as práticas de leitura de livros neste con- inquéritos sociológicos sobre leitura
texto? Sabendo-se que nas sociedades atuais As “sociologias da leitura” nascem no
os livros coexistem com uma multiplicidade começo do século passado, sendo que o
de outros suportes que convocam a leitura, desenvolvimento dos inquéritos sociológi-
e que as práticas de comunicação, de entre- cos sobre leitura está “intimamente ligado
tenimento, de lazer e de acesso ao conheci- à história política e social do século, às
mento propiciadas pelos dispositivos digi- suas crises e às suas esperanças” (Poulain,
tais assumem uma importância cada vez 2004, p. 17). Quer em termos geográficos,
maior, qual o lugar do livro e da leitura de quer em número, a expansão destes inqué-
livros? O objetivo do presente artigo[1] é con- ritos ocorre ao longo do século XX (Neves,
tribuir para a reflexão sociológica sobre este 2011, pp. 67–69; Poulain, 2004), embora
tema recorrendo a uma fonte secundária de a noção de leitura como lazer tenha parti-
dados – o Inquérito à Educação e Formação cular incidência, neste tipo de inquéritos,
de Adultos (IEFA) –, a partir da qual é pos- após a Segunda Guerra Mundial (Poulain,
sível analisar a incidência das práticas de 2004, p. 23).
leitura de livros em Portugal em 2007, 2011 Portugal tem também já alguma tradição
e 2016, dando conta da evolução registada em estudos extensivos que abordam, direta
quanto aos contingentes de leitores e quan- ou indiretamente, as práticas de leitura.
to aos respetivos perfis sociais. Promovidos por diferentes entidades,
tendo, ou não, as práticas de leitura como
objeto de estudo principal, abrangendo
1. A LEITURA DE LIVROS COMO toda a população ou direcionados apenas
PRÁTICA CULTURAL para determinados segmentos da mesma,
os estudos sobre práticas de leitura têm tido
A leitura de livros ocupa um lugar cen- alguma expressão na investigação socioló-
tral na sociologia da leitura (Neves, 2011, gica, principalmente após a transição para a
p. 25) e tem vindo a ser conceptualizada democracia e até 2007 (Neves, 2015c).

16 ENTRELER
Leitores de livros em Portugal. Uma prática cultural em transformação

Interessa sobretudo fazer aqui referên- Que perfis eram esses, ou, dito de outro
cia aos três grandes inquéritos sociológicos modo, que características sociodemográ-
sobre leitura que até hoje se realizaram ficas foram reveladas nesses estudos sobre
em Portugal. O primeiro desses inquéritos, os portugueses maiores de 15 anos leitores
Hábitos de Leitura em Portugal: Inquérito de livros? Que eram maioritariamente do
Sociológico – realizado em 1988 (Freitas & sexo feminino, mais jovens (com destaque
Santos, 1991, 1992b, 1992a) –, teve como para os estudantes), com níveis de esco-
objetivo “fornecer elementos sobre as prá- laridade e rendimentos mais elevados, e
ticas de leitura em Portugal”, respondendo que residiam maioritariamente em áreas
a perguntas como: “quem lê? O que lê? urbanas metropolitanas (Neves, 2015a,
Com que frequência? Que livros e quantos 2015b; Santos et al., 2007). Em termos da
livros se possuem? Quem compra e quan- estrutura socioprofissional[2], constatou-se
tos livros se compra? Onde se realiza o uma sobrerrepresentação na categoria dos
aprovisionamento de livros? Qual o lugar Profissionais Técnicos e de Enquadra-
da leitura entre escolhas culturais?” (Frei- mento, quer na leitura de livros, quer nas
tas & Santos, 1991, p. 67). Em 1995 foi práticas culturais em geral (Neves, 2015a,
realizado o segundo inquérito sociológico, p. 74, 2015c, p. 131).
Hábitos de Leitura: Um Inquérito à População Não existindo desde 2007 um inquérito
Portuguesa, que teve como finalidade “ca- que incida especificamente sobre a leitura
racterizar e analisar os hábitos de leitura de livros em Portugal, pretende-se com
dos portugueses” (Freitas et al., 1997, p. este artigo colmatar algumas lacunas so-
17). O último inquérito sociológico sobre bre a evolução dos contingentes de leitores
leitura realizado em Portugal decorreu em e dos seus perfis sociais desde essa altura.
2006/2007 (Santos, Neves, Lima, & Car-
valho, 2007). Algumas das questões que
orientaram este estudo foram: “quem lê, o 2. METODOLOGIA
que lê, onde lê, porque lê (ou não), qual o
lugar da leitura no conjunto das práticas Neste estudo, recorremos a dados recolhi-
culturais?” (Santos et al., 2007, p. 7), sendo dos no âmbito do Inquérito à Educação e
de destacar a análise comparativa com os Formação de Adultos (IEFA)[3] de 2007, 2011
inquéritos de 1988 e 1995. e 2016[4], o qual corresponde à edição na-
Os resultados desses inquéritos mos- cional do Adult Education Survey (AES), um
traram que se assistiu, até 2007, ao cres- inquérito europeu coordenado pelo Euros-
cimento do número dos leitores de livros, tat, que em Portugal é conduzido pelo INE.
em grande parte devido ao aumento de Foram analisadas as duas perguntas sobre
pequenos leitores (Santos et al., 2007, pp. leitura de livros presentes nas três edições.
47-51), e que se manteve alguma regula- Uma delas sobre a presença, ou não, da
ridade no que se refere aos perfis sociais. prática de leitura de livros como atividade
Embora existissem diferenças, muitas de lazer no último ano (“Nos últimos 12
delas assinaláveis, entre Portugal e os meses leu algum livro como atividade de
países da União Europeia no que concer- lazer?”, com resposta Sim/Não), e, no caso
ne a condições sociais, situação económi- de resposta afirmativa, uma outra pergun-
co-financeira e práticas culturais (só para ta sobre o número de livros lidos, a qual
nomear algumas), os perfis dos portugue- teve uma formulação ligeiramente dife-
ses leitores de livros assemelhavam-se rente em 2007 (“Nos últimos 12 meses, em
aos perfis dos seus congéneres europeus média, quantos livros leu como atividade
(Neves, 2015b). de lazer?”, com as categorias de resposta

ENTRELER 17
Leitores de livros em Portugal. Uma prática cultural em transformação

“1 a 3 livros”, “4 a 7 livros”, “8 a 12 livros”,


“mais do que 12 livros”) e em 2011 e 2016
(“Leu menos de 5 livros, entre 5 e 10 livros
ou mais de 10 livros?”, com as categorias de
resposta “menos de 5 livros”, “entre 5 e 10
livros”, “mais de 10 livros”).

3. RESULTADOS

3.1. Evolução da leitura de livros em


Portugal
Os resultados indicam que, em Portugal,
a percentagem da população, com idade
entre os 18 e os 64 anos[5], que afirma ler
livros em contexto de lazer se situa, nos
três anos analisados, sempre abaixo dos
50% e apresenta uma tendência de ligeiro
decréscimo ao longo desse período. Mais
precisamente, desce de 44%, em 2007, para
Quadro 1: Leitores de livros em Portugal segundo o
40%, em 2016 (Figura 1). sexo, a idade, a escolaridade, a condição perante o
trabalho e a categoria socioprofissional em 2007,
2011 e 2016 (% de leitores em cada categoria)
(Fontes: IEFA 2007, 2011 e 2016. Elaboração própria)
Notas: (i) % respostas “sim” à pergunta: “Nos últimos
12 meses leu algum livro como atividade de lazer?”
(ii) Qui-quadrado estatisticamente significativo para
todos os cruzamentos (p<0,001).

menos 7% de leitores entre 2007 e 2016,


face a menos 2% de leitoras. Em 2016, pelo
menos metade das mulheres inquiridas
Figura 1: Leitores de livros em Portugal afirma ler livros, enquanto os homens
– 2007 a 2016 (%). são já menos de um terço. A diferença
(Fontes: IEFA 2007, 2011 e 2016. Elaboração própria) percentual entre leitoras e leitores tem
Nota: % respostas “sim” à pergunta: “Nos últimos 12 vindo a aumentar: em 2007 é de 17
meses leu algum livro como atividade de lazer?”
pontos percentuais (p.p.), aumenta para
20 p.p. em 2011 e para 22 p.p. em 2016.
Além do peso global dos leitores de Confirma-se, assim, a conhecida clivagem
livros na população, é possível também da prática de leitura de livros em lazer a
conhecer o seu perfil social e o modo como favor das mulheres nos países ocidentais
evoluiu entre 2007 e 2016 (Quadro 1). (Neves, 2011, pp. 56-58) e verifica-se que a
Um primeiro elemento a destacar é que, mesma tem vindo a acentuar-se (Figura 2).
no período em análise, a percentagem de Relativamente à idade, a posição entre os
leitoras é sempre superior à de leitores, vários escalões etários mantém-se em todo
observando-se ainda que, entre estes, o período, observando-se que, à medida
a descida verificada é mais acentuada: que aumenta a idade, desce a percentagem

18 ENTRELER
Leitores de livros em Portugal. Uma prática cultural em transformação

grau de escolaridade, entre os quais as


percentagens permanecem muito baixas,
subindo muito ligeiramente de 5% em 2007
para perto de 6% em 2016 (Figura 3).

Figura 2: Diferença entre a % de leitores de livros em


2016 e em 2007, por sexo e idade
(Fontes: IEFA 2007 e 2016. Elaboração própria)

Figura 3: Diferença entre a % de leitores de livros, em


dos que leem livros. Mas se isso é verdade, 2016 e em 2007, por escolaridade, condição perante
e confirma tendências já encontradas o trabalho e categoria socioprofissional
em investigações anteriores (Santos et (Fontes: IEFA 2007 e 2016. Elaboração própria)
al., 2007, p. 53), é igualmente notório o
crescente distanciamento dos mais jovens Colocando o foco no cruzamento
relativamente à leitura de livros por da leitura de livros com a condição
prazer. Com efeito, constatamos que as perante o trabalho e com a categoria
percentagens descem mais acentuadamente socioprofissional[6], verificamos que
nestes grupos ao longo do período em o panorama geral é, uma vez mais, de
análise. Por exemplo, no escalão etário 18- descida acentuada nas categorias em que
24 anos, a descida entre 2007 e 2016 é de os contingentes de leitores são, por norma,
10 p.p. (de 54% para 44%), mas no escalão mais elevados, como os estudantes e os
dos mais velhos (55-64 anos) verifica-se Profissionais Técnicos e de Enquadramento
uma evolução positiva, ainda que muito (PTE), ou seja, entre as categoriais com
pequena, de 34% para 35%. capital escolar mais elevado.
Quanto à escolaridade, também se Assim, quanto à condição perante o
confirma a conhecida associação com trabalho, destaca-se a descida de 20 p.p.
a leitura de livros, agora de sentido nos estudantes (a mais acentuada entre
positivo: quanto mais elevado é o grau de as categorias desta variável), continuando
escolaridade, maior é a percentagem de estes, ainda assim, a ser o contingente com
leitores de livros por prazer (Neves, 2015b, maior percentagem de leitores de livros,
p. 120). Mas também aqui se verifica que a e o único acima dos 50% nos três anos
diminuição que ocorre entre 2007 e 2016 registados (74% em 2007, 61% em 2011 e
não é transversal, sendo particularmente 54% em 2016).
acentuada entre os que mais leem, ou No que à categoria socioprofissional
seja, entre os mais qualificados, sobretudo diz respeito, apenas os Trabalhadores
entre os que têm o ensino secundário, mas Independentes (TI) não descem,
também nos que têm ensino superior, destacando-se o facto de os PTE baixarem
registando estas duas categoriais as maiores 18 p.p., de 79% para 61%. Ainda
quebras no período em análise. A única assim, em 2016 é a única categoria
exceção na tendência de descida situa-se nos socioprofissional em que os leitores
indivíduos que não concluíram nenhum de livros ainda são a maioria, quando

ENTRELER 19
Leitores de livros em Portugal. Uma prática cultural em transformação

em 2007 esta situação se estendia Este é um panorama que atravessa as


também aos Empresários, Dirigentes várias categorias sociais consideradas,
e Profissionais Liberais (EDL) e aos embora sejam identificáveis algumas
Empregados Executantes (EE). diferenças (Quadro 2).
Em síntese, estes resultados mostram
que – embora permaneçam bem vincadas
as principais características sociais que
distinguem os leitores de livros – estão a
ocorrer importantes alterações, assistindo-
se a uma diminuição das diferenças sociais
por via de uma aproximação “por baixo”,
ou seja, por via da perda de leitores onde
estes têm maior peso e não por um ganho
de leitores onde estes eram, e continuam a
ser, menos presentes.

3.2. Tipos de leitores de livros em


Portugal
Tendo em conta apenas o ano de 2016,
analisa-se agora o perfil social dos leitores
segundo uma tipologia de leitores, obtida
a partir do número de livros lidos, e
abrangendo a população com idades dos
18 aos 69 anos.
Como seria de esperar, considerando os
vários tipos de leitores, as percentagens
Quadro 2: Tipologia de leitores de livros segundo o
diminuem regularmente à medida que sexo, a idade, a escolaridade, a condição perante o
aumenta o número de livros lidos. O trabalho e a categoria socioprofissional – 2016.
tipo mais “exigente”, leitores de 10 ou (Fonte: IEFA 2016; Elaboração própria)
mais livros, representa, em 2016, pouco Notas: (i) Número de livros lidos nos últimos 12 meses
mais de 4% dos inquiridos. A maioria dos (ii) Qui-quadrado estatisticamente significativo para
inquiridos ou não leem, ou são pequenos todos os cruzamentos (p<0,001).

leitores (61% e 27%, respetivamente)


(Figura 4). A análise do perfil social dos vários
tipos de leitores evidencia, em primeiro
lugar, que entre as mulheres os tipos de
leitura mais intensa, embora minoritários,
atingem percentagens um pouco mais
elevadas do que entre os homens.
Em termos etários, observa-se que a
percentagem dos que declaram não ter
lido livros aumenta regularmente com a
idade e, por sua vez, os pequenos leitores
têm mais expressão entre os mais jovens.
Figura 4: Tipologia de leitores de livros (2016) Já os médios e grandes leitores têm uma
(Fonte: IEFA 2016. Elaboração própria) presença muito pouco expressiva em todos
os grupos etários.

20 ENTRELER
Leitores de livros em Portugal. Uma prática cultural em transformação

Relativamente ao grau de escolaridade, escolaridade, de modo a explorar se a


as diferenças são particularmente combinação das categorias destas duas
acentuadas nos tipos mais exigentes variáveis permite detetar variações
em quantidade de livros lidos, os quais, específicas na leitura de livros como
embora continuem a ser transversalmente atividade de lazer ao longo da vida
minoritários, atingem nos indivíduos com (Figura 5).
ensino superior os valores mais elevados
entre as várias categorias analisadas (27%
leem pelo menos 5 livros).
Quanto à condição perante o trabalho,
os estudantes destacam-se por terem
o menor contingente entre os que não
leram nenhum livro e por registarem a
percentagem mais elevada de pequenos
leitores, mas não se diferenciam nos
restantes tipos. Aliás, a percentagem de
médios e grandes leitores apresenta, uma Figura 5: Número de livros lidos (média) por idade e
vez mais, variações muito pequenas, escolaridade (2016)
oscilando entre os 4,3% e os 7,7%. (Fonte: IEFA 2016. Elaboração própria)
Os PTE são a única categoria Nota: Valores médios do indicador “número de livros
socioprofissional em que a maioria lidos no último ano”.

dos inquiridos lê por motivo de lazer,


destacando-se das restantes em qualquer Desde logo constatamos, uma vez
um dos três tipos de leitores. Entre os mais e como esperado, que a leitura de
EDL, embora prevaleçam os não leitores, livros é tão mais elevada quanto maior
as percentagens nos leitores de mais livros a escolaridade, algo que é transversal
aproximam-se das registadas entre os PTE. a todos os escalões etários. Ao mesmo
tempo, porém, surge algo que os dados
3.3. O decréscimo das práticas de apresentados até aqui não mostravam:
leitura em Portugal. Um olhar cruzado o número de livros surge com uma
entre fatores geracionais e recursos relação direta com a idade, mas apenas
educacionais nos indivíduos com ensino secundário e
Os resultados até aqui apresentados superior e, entre estes, somente a partir
permitem retratar o perfil social dos dos 45 anos. Entre os menos escolarizados,
leitores de livros em Portugal e também o número de livros lido é sempre muito
a evidente diminuição dos leitores, baixo, em média ligeiramente superior a
observada sobretudo entre os mais um, e sem alterações relevantes nos vários
escolarizados. Por existirem indícios escalões etários.
de uma importante mudança social em De salientar ainda que, entre os mais
curso (até há pouco tempo a chave para jovens, as diferenças no número de
o aumento dos leitores parecia garantida livros lido por escolaridade são bastante
com o alargamento da escolaridade da menos acentuadas do que entre os
população), procurou-se aprofundar a mais velhos. Considerando os níveis de
relação entre o número de livros lidos escolaridade que leem mais e menos no
(apurado agora a partir do número primeiro escalão etário (superior e básico,
médio de livros lido no último ano), respetivamente), a distância ou diferença
a idade (categorias etárias) e o grau de entre elas é de 1,4 livros, a favor dos mais

ENTRELER 21
Leitores de livros em Portugal. Uma prática cultural em transformação

escolarizados. Fazendo o mesmo cálculo decréscimo acentua-se nos homens, nos


para os inquiridos mais velhos (65-69 mais jovens (em particular nos estudantes)
anos), a distância aumenta para 5,3 livros, e, sobretudo, nos mais escolarizados.
em média. Ou seja, entre as gerações mais Esta evolução negativa dos níveis de
novas, as diferenças no número médio leitura de livros verifica-se também entre
de livros lido por grau de escolaridade a população que exerce uma atividade
são claramente inferiores ao verificado profissional. O maior decréscimo ocorre
entre as mais velhas, o que se deve ao no contingente dos Profissionais Técnicos
facto de os jovens com ensino secundário e de Enquadramento (PTE), logo seguido
e superior lerem acentuadamente menos pelo contingente dos EE (Empregados
do que os mais velhos com a mesma Executantes), justamente as duas
escolaridade. É por essa via que se alcança categorias que apresentavam em 2007 as
a já referida diminuição das desigualdades maiores percentagens de leitores de livros
face à leitura, a qual, percebe-se agora, (Santos et al., 2007, p. 74).
decorre sobretudo das reduzidas práticas Apesar do declínio verificado na
de leitura dos mais jovens, mantendo-se leitura de livros nos últimos anos, o
essas desigualdades muito evidentes nas perfil social predominante dos leitores de
categorias etárias mais elevadas. livros em Portugal é análogo ao perfil de
Ficam assim evidenciadas não só as que a literatura sociológica nos dá conta
conhecidas e amplamente retratadas (Griswold, 2008; Neves, 2015a): mais
clivagens nas práticas de leitura associadas feminino do que masculino, mais jovem,
ao capital escolar, mas também outras mais escolarizado (com destaque para os
dimensões que com ele se cruzam e que estudantes), e entre os que exercem uma
podem contribuir para compreender as atividade profissional, destacam-se os PTE.
transformações em curso neste domínio. São resultados próximos dos verificados
A idade surge como um elemento em países como Espanha (Villarroya, 2010,
que introduz maior complexidade à p. 200) e França (Donnat, 2009, 2011).
interpretação da distribuição social desta Dado que a escolaridade é determinante
prática cultural, podendo refletir quer no que à leitura de livros diz respeito,
efeitos de geração (que nos podem levar e uma vez que temos assistido, nas
a concluir que há idades mais propensas últimas décadas, em Portugal, a uma
à prática da leitura do que outras), quer melhoria significativa dos indicadores
sinais de uma mudança social profunda relativos à escolaridade da população
em curso, que afeta, para já, sobretudo as (embora, no contexto dos países europeus,
gerações mais novas. Portugal mantenha uma posição
bastante desfavorável (OECD, 2019)),
qual a explicação para um tão acentuado
CONCLUSÕES decréscimo, em particular entre os mais
escolarizados?
A pesquisa realizada permitiu concluir O impacto da crise financeira e
que a leitura de livros como atividade de económica que ocorreu durante o
lazer, durante o período de 2007 a 2016, período em análise poderá ser uma das
evidencia a inversão da tendência de explicações para a especificidade da
crescimento até aí verificada em Portugal tendência registada no país (Neves, 2015b,
(Santos et al., 2007, p. 74), passando a p. 38), no entanto, outros fatores devem
ser de decréscimo. Sendo transversal ser equacionados. Embora a resposta à
às categorias sociais analisadas, este questão colocada não possa ser encerrada

22 ENTRELER
Leitores de livros em Portugal. Uma prática cultural em transformação

com este estudo, a análise realizada [4] As amostras dos inquéritos IEFA 2007,
permitiu reunir alguns elementos de apoio 2011 e 2013 são de 11.289, 14.189 e
à reflexão. Foi possível evidenciar que o 14.211 indivíduos, respetivamente, sendo
decréscimo verificado na leitura de livros o universo constituído pela população
entre a população mais escolarizada é residente em território nacional
mais proeminente nos mais jovens do que (Continente e Regiões Autónomas), com
nos mais velhos, o que é sociologicamente idades compreendidas entre 18 e 64 anos
muito relevante. De facto, é entre os (IEFA, 2007), e com idades compreendidas
mais jovens que os níveis de leitura entre 18 e 69 anos (IEFA 2011 e 2016)
se apresentam hoje particularmente (INE, 2009, 2013, 2017).
baixos, mesmo quando a escolaridade é [5] Para permitir a comparabilidade entre as
elevada. Os resultados mostram, assim, três edições do IEFA, foram considerados
uma grande proximidade nos níveis de os indivíduos com idades entre os 18 e os
leitura dos jovens com escolaridades 64 anos.
diferentes, os quais são transversalmente [6] Os dados relativos a este indicador dizem
baixos, apesar de permanecerem visíveis apenas respeito aos inquiridos que exercem
os efeitos do capital escolar. A questão uma atividade profissional (em 2007, n
que se coloca, e que importa continuar válido = 7741; 2011, n válido = 7795; 2016,
a acompanhar e a aprofundar noutras n válido = 8755).
investigações, é a de saber se as evidentes
diferenças registadas entre os vários
coortes geracionais refletem práticas REFERÊNCIAS
culturais diferenciadas ao longo do ciclo
de vida (o que significaria que aqueles Ávila, P. (2008). A Literacia dos Adultos.
que são jovens hoje passariam a ler mais Competências-Chave na Sociedade do
quando fossem mais velhos, sobretudo os Conhecimento. Celta Editora.
mais escolarizados), ou se, pelo contrário, Baron, N. S. (2015). Words Onscreen. Oxford
estamos perante sinais de uma profunda University Press.
mudança social que se manifesta, para já, Benavente, A. (coordenadora), Rosa, A.,
sobretudo entre as gerações mais novas. Costa, A. F. da, & Ávila, P. (1996). A
Literacia em Portugal: Resultados de
Notas uma Pesquisa Extensiva e Monográfica.
[1] Este artigo retoma parcialmente a Fundação Calouste Gulbenkian.
dissertação de mestrado em Sociologia Cardoso, G., Costa, A. F. da, Coelho, A. R., &
intitulada Leitura de livros em Portugal e na Pereira, A. (2015). A sociedade em rede
Europa. Tendências recentes numa perspetiva em Portugal: uma década de transição.
comparada (Lopes, 2019). Almedina.
[2] A categoria socioprofissional foi construída de Costa, A. F. da. (2003). Competências
acordo com a Tipologia ACM, a qual resulta para a sociedade educativa: questões
do cruzamento da profissão com a situação na teóricas e resultados de investigação.
profissão (Costa, 2008, pp. 227–228; Costa et In AA.VV. (Ed.), Cruzamento de Saberes
al., 2007; Costa & Mauritti, 2018). Aprendizagens Sustentáveis (pp. 179–
[3] O IEFA é um inquérito à população sobre 206). Fundação Calouste Gulbenkian.
educação e formação de adultos, que Costa, A. F. da. (2008). Sociedade de bairro.
inclui um conjunto de questões sobre Dinâmicas Sociais da Identidade Cultural.
“participação em atividades culturais e Celta Editora (2.ª Edição).
sociais” (INE, 2007, pp. 3–4).

ENTRELER 23
Leitores de livros em Portugal. Uma prática cultural em transformação

Costa, A. F. da, Machado, F. L., & Almeida, J. Griswold, W. (2008). Regionalism and the
F. de. (2007). Classes sociais e recursos reading class. The University of Chicago
educativos: uma análise transnacional. Press.
In A. F. da Costa, F. L. Machado, & P. Ávila Griswold, W., McDonnell, T., & Wright,
(Eds.), Portugal no Contexto Europeu, N. (2005). Reading and the Reading
vol. II: Sociedade do Conhecimento (pp. Class in the Twenty-First Century.
5–20). Celta Editora. Annual Review of Sociology, 31(1),
Costa, A. F. da, & Mauritti, R. (2018). Classes 127–141. https://doi.org/10.1146/annurev.
sociais e interseções de desigualdades: soc.31.041304.122312
Portugal e a Europa. In R. M. do Carmo Griswold, W., Naffziger, E., & Lenaghan,
(Ed.), Desigualdades Sociais. Portugal e a M. (2011). Readers as audiences. In V.
Europa (p. 109‑130). Mundos Sociais. Nightingale (Ed.), The Handbook of Media
Coulangeon, P. (2005). Sociologie des Audiences (pp. 19–40). Wiley-Blackwell.
Pratiques Culturelles. La Découverte. INE. (2007). Inquérito à Educação e
Donnat, O. (2009). Pratiques Culturelles Formação de Adultos-IEFA. Documento
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2008. La Découverte/Ministère de la Estatística, I.P.
Culture et de la Communication. INE. (2009). Aprendizagem ao Longo da
Donnat, O. (2011). Lecture, livre et Vida – Inquérito à Educação e Formação
littérature. Évolution 1973-2008. In de Adultos 2007. INE-Instituto Nacional
C. Evans (Ed.), Lectures et Lecteurs de Estatística, I.P.
à L’heure d’Internet. Livre, Presse, INE. (2013). Aprendizagem ao longo da vida
Bibliothèques (pp. 27–40). Cercle de la – Inquérito à Educação e Formação de
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Freitas, E. de, Casanova, J. L., & Alves, Estatística, I.P.
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Freitas, E. de, & Santos, M. de L. L. dos. INE-Instituto Nacional de Estatística, I.P.
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Sociologia, Problemas e Práticas, 10, 67–89. Portugal e na Europa. Tendências
Freitas, E. de, & Santos, M. de L. L. dos. recentes numa perspetiva comparada
(1992a). Hábitos de Leitura em Portugal: [Dissertação de Mestrado em Sociologia,
Inquérito Sociológico. Publicações Dom Iscte-Instituto Universitário de Lisboa].
Quixote. http://hdl.handle.net/10071/19482
Freitas, E. de, & Santos, M. de L. L. dos. Neves, J. S. (2011). Práticas de Leitura
(1992b). Leituras e leitores II. Reflexões da População Portuguesa no Início
finais em torno dos resultados de um do Século XXI [Tese de Doutoramento
inquérito. Sociologia, Problemas e em Sociologia da Comunicação, da
Práticas, 11, 79–97. Cultura e da Educação, Iscte-Instituto
Furtado, J. A. (2000). Os Livros e as Universitário de Lisboa]. http://hdl.
Leituras. Novas Ecologias da Informação. handle.net/10071/6696
Livros e Leituras. Neves, J. S. (2015a). Cultura de leitura e
Furtado, J. A. (2012). Uma Cultura da classe leitora em Portugal. Sociologia,
Informação para o Universo Digital. Problemas e Práticas, 78, 67–86. https://
Fundação Francisco Manuel dos Santos. doi.org/10.7458/SPP2015784043

24 ENTRELER
Leitores de livros em Portugal. Uma prática cultural em transformação

Neves, J. S. (2015b). Práticas culturais meus passatempos preferidos. A relação


e desigualdades na Europa. In R. M. dos jovens com a leitura em Portugal”.
do Carmo & A. F. da Costa (Eds.), Colabora no Observatório Português de
Desigualdades em Questão: Análises Atividades Culturais (OPAC) desde a sua
e Problemáticas (pp. 31–41). Mundos criação, em dezembro de 2018.
Sociais.
Neves, J. S. (2015c). Práticas de leitura em José Soares Neves é doutorado em
Portugal. In G. Cardoso (Ed.), O Livro, o Sociologia da Comunicação, da Cultura e
Leitor e a Leitura Digital (pp. 113–149). da Educação (Iscte-Instituto Universitário
Fundação Calouste Gulbenkian. de Lisboa). É investigador integrado e
OECD. (2019). Education at a Glance 2019: subdiretor do Centro de Investigação
OECD Indicators. OECD Publishing. e Estudos de Sociologia (CIES-Iscte) e
Poulain, M. (2004). Entre preocupaciones professor no Departamento de Sociologia/
sociales e investigación científica: el Escola de Sociologia e Políticas Públicas
desarrollo de sociologías de la lectura en do Iscte-Instituto Universitário de
Francia en el siglo XX. In B. Lahire (Ed.), Lisboa. Foi investigador permanente e
Sociologia de la lectura. Del consumo coordenador de projetos do Observatório
cultural a las formas de la experiencia das Atividades Culturais (OAC) durante a
literaria (pp. 17–57). Editorial Gedisa. sua existência (1996 a 2013) e Presidente
Santos, M. de L. L. dos (coord.), Neves, J. do Grupo de Trabalho sobre Estatísticas
S., Lima, M. J., & Carvalho, M. (2007). da Cultura (GTEC) do Conselho Superior
A leitura em Portugal. Gabinete de de Estatística (2006 a 2010). É diretor do
Estatística e Planeamento da Educação Observatório Português das Atividades
(GEPE). Culturais (OPAC) desde a criação, em
Sedo, D. R. (2011). Reading Communities dezembro de 2018.
from Salons to Cyberspace. Palgrave
Macmillan. Patrícia Ávila Doutoramento e mestrado
Villarroya, A. A. (2010). Cultura mediada, em Sociologia. Professora Associada
diversidade e estratificação social: para no Departamento de Métodos de
uma sociologia das práticas culturais Pesquisa Social da Escola de Sociologia
em Espanha. In M. de L. L. dos Santos & e Políticas Públicas do Iscte-Instituto
J. M. Pais (Eds.), Novos Trilhos Culturais. Universitário de Lisboa. Investigadora
Práticas e Políticas (pp. 191–215). Integrada no CIES-Iscte. Atualmente
Imprensa de Ciências Sociais. é diretora do Doutoramento em
Sociologia (CIES-ISCTE) e coordenadora
do Grupo de Investigação “Sociedade
NOTA CURRICULAR DOS AUTORES do Conhecimento, Competências e
Comunicação” do CIES-ISCTE. Tem
Miguel Ângelo Lopes concluiu o mestrado participado em vários projetos de
em Sociologia em 2019, no ISCTE-Instituto investigação sobre diferentes temáticas,
Universitário de Lisboa, com a dissertação com particular destaque para literacia
Leitura de livros em Portugal e na Europa. e leitura, competências, educação
Tendências recentes numa perspetiva de adultos, ciência e sociedade, e
comparada. É, neste momento, metodologias de investigação em ciências
doutorando em Sociologia, também no sociais. É autora de vários artigos e livros.
Iscte-Instituto Universitário de Lisboa,
com o projeto de tese “Ler não é dos

ENTRELER 25
ARTIGOS

ESTUDOS
Do livro como objeto à leitura como evento
From the book as an object to reading as an event
Ana Sabino

RESUMO occurrence character of the reading experience


O desenvolvimento do meio digital enquanto became more evident. Several literary studies
suporte de leitura permite, retroativamente, already required the presence and action of
observar como certas características que são the reader, as well as other agents, for the text
agora evidentes e indissociáveis do meio to exist. But perhaps the act performed by
digital estavam já presentes, ainda que o seu the reader has not yet been given importance.
reconhecimento estivesse ainda latente, no Moreover: the object was not given due
códice. Depois de a teoria crítica se debruçar importance, which functions both as a closed box
sobre os novos meios e suportes de escrita e and as a key to open it, in this act of reading; it
leitura, o carácter transitório e de ocorrência not only contains the text but also what allows
da experiência de leitura tornou-se mais the reader to decode it. This article intends, in
evidente. Vários estudos literários exigiam já addition to underlining the importance of the
a presença e a ação do leitor, assim como de act of reading as a constituent factor of the
outros agentes, para que o texto existisse. Mas book, to show the role of the book’s materiality
talvez não se tenha dado ainda a importância in this action: while it is necessarily the reader
devida ao ato que o leitor efetua. Mais ainda: who activates a book, producing reading,
não foi dada a devida importância ao objeto, the book itself brings with it a set of formal
que funciona tanto como caixa fechada characteristics, which conform to various reading
como como chave para a abrir, nesse ato protocols, which I call «instructions for reading».
de leitura; ele não só contém o texto, mas
também aquilo que permite que o leitor o PALAVRAS-CHAVE
descodifique. Este artigo pretende, além de leitura, livro, convenções gráficas,
sublinhar a importância do ato de leitura tipografia, materialidade do livro
como fator constitutivo do livro, dar a ver o
papel da materialidade do livro nessa ação: KEYWORDS
se é necessariamente o leitor quem ativa um reading, book, graphic conventions,
livro, produzindo leitura, o próprio livro typography, materiality of the book
traz consigo um conjunto de características
formais, que respondem a vários protocolos de
leitura, às quais chamo «instruções de leitura». INTRODUÇÃO

ABSTRACT O desenvolvimento do meio digital


The development of the digital medium as a enquanto suporte de leitura permite,
reading medium allows, retroactively, to observe retroativamente[1], observar como certas
how certain characteristics that are now evident características que são agora evidentes e
and inseparable from the digital medium were indissociáveis do meio digital estavam já
already present, even though their recognition presentes, ainda que em estado de latência,
was still latent, in the codex. Once critical ou melhor dizendo, num estado em que o
theory focused on the new means and media seu reconhecimento estava ainda latente,
of writing and reading, the transitory and no livro impresso.

26 ENTRELER
Do livro como objeto à leitura como evento

Especificamente, depois de a teoria com esta forma de entender o livro e a


crítica se debruçar sobre os novos meios leitura mais como evento do que como
e suportes de escrita e leitura, o carácter objeto. Tentarei referir também quais
transitório e de ocorrência da experiência as implicações que essa mudança de
de leitura tornou-se mais evidente. paradigma tem para o objeto: longe de
Quando Katherine Hayles, em 2006, lhe retirar importância, mostra-nos,
escreve «The Time of Digital Poetry: pelo contrário, que ele tem um papel
From Object to Event», sublinha essa fundamental nessa espécie de orquestração,
característica da poesia digital, que, no no sentido de direção, do ato de leitura.
entanto, podemos remeter igualmente
para o livro em papel: também neste, a
poesia que lá está inscrita é ativada pela 1. ENTRE O LIVRO IMPRESSO E O
leitura e tem um valor singular de cada LIVRO VIRTUAL
vez que é lida. Depois de ler poemas que,
objetivamente, se reescrevem em cada No seu ensaio «Modelling Functionality:
instância de leitura, podemos reivindicar from Codex to e-Book» (2009a), Johanna
essa característica no livro em formato Drucker observa os sinais gráficos de
códice, relembrando o quanto a leitura é navegação de um texto e sua representação
uma experiência subjetiva. em ambos os formatos, impresso e digital,
Vários estudos literários exigiam já a sempre evidenciando que esses sinais
presença e a ação do leitor, assim como de gráficos não são apenas visuais; têm um
outros agentes, para que o texto existisse. lado utilitário (ajudam-nos a navegar
Falo, não só, mas como pontos seminais dentro de um texto) e um lado semântico
dessa discussão, dos incontornáveis (ajudam-nos a interpretar certos aspetos
«A morte do autor», de Barthes (1987 do texto).
[1967]), e O que é um autor?, de Foucault We may find headers a delightful feature on a
(2006 [1969]). Mas talvez não se tenha page, chapter breaks and subheads convenient
dado ainda a importância devida ao ato for our reading in reference materials, but rarely
que o leitor efetua em cada leitura. Mais do we step back and recognize them as coded
ainda: não foi dada a devida importância instructions for use. [...] The familiarity of
ao objeto, que funciona tanto como conventions causes them to become invisible, and
caixa fechada como como chave para obscures their origin within activity. (Drucker,
a abrir, nesse ato de leitura; ele não só 2009a: 172, ênfase meu)
contém o texto, mas também aquilo Esta conceptualização que aqui
que permite que o leitor o descodifique. apresento deve muito ao trabalho de
Este artigo pretende, além de sublinhar Drucker, que sublinha nesta proposição
a importância do ato de leitura como o quanto estas convenções são
fator constitutivo do livro, dar a ver o negligenciadas. O que me estimulou para
papel da materialidade do livro nessa a escrita de um longo argumento em
ação. Se é necessariamente o leitor quem forma de tese de doutoramento[3] foi o
ativa um livro, produzindo leitura, o desvelar destas convenções subestimadas,
próprio livro traz consigo um conjunto em objetos que nos são tão familiares que
de características formais, que respondem deixámos de os ver completamente, em
a vários protocolos de leitura, aos quais toda a sua profundidade. A nossa leitura
chamo «instruções de leitura».[2] habitual apenas usa estas convenções;
Em seguida apresento alguns dos a minha intenção é a de as identificar e
paradigmas conceptuais relacionados enfrentar, no sentido de «olhar de frente».

ENTRELER 27
Do livro como objeto à leitura como evento

Esse estudo segue ainda, em parte, outra entre si tanto novas condições de leitura
sequência de sugestões para reflexão que a quanto novas formas de as utilizar. O
autora deixa no mesmo ensaio: enfoque é dado à ação; o objeto serve para
(1) start by analyzing how a book works o despoletar. Mas isto não significa que
rather than describing what we think it is; o objeto encerra em si mesmo o sentido
(2) describe the program that arises from a — significa, sim, que ele cria as condições
book’s formal structures; (3) discard the idea para que a leitura aconteça e o leitor crie
of iconic metaphors of book structure in favor um sentido:
of understanding the way these forms serve Thus we have to understand texts, images,
as constrained parameters for performance. etc. as events, not entities. In their literal and
(Drucker, 2009a: 170, ênfase meu) physical construction, they express conditions
Essa procura de tudo o que, no formato and a field of forces [...]. The material existence
códice, é programático, é fundamental serves as a provocation, set of clues and cues for a
para que se possa efetuar uma justa performance of the text. (Drucker, 2009b: 13–4,
transição para o livro eletrónico. É, ênfase meu)
não só, mas também, essa necessidade Sublinho, portanto, a partir de Drucker,
de transição para novos formatos que a questão da atuação; da leitura como
nos força a dispensar ao livro as suas ação que é despoletada pela materialidade
características incidentais e a concentrar- do texto. Na materialidade do texto —
nos na sua capacidade nuclear: a de dar na sua instanciação particular, presente
a ler. Ou seja, tentar alcançar «a ideia de perante nós — poderemos encontrar este
livro enquanto espaço performativo para a conjunto de pistas e indicações, presentes
produção de leitura» (Drucker, 2009a: 169, em cada um dos elementos visuais e
em tradução livre[4]). materiais, gráficos e tipográficos, de um
Drucker prossegue a sua argumentação livro. Esses vários elementos não têm
no sentido da leitura enquanto atuação um sentido fixo, eles encontram o seu
num outro ensaio: «Entity to Event: sentido e a sua função na interação com
From Literal, Mechanistic Materiality o leitor. É no momento do encontro
to Probabilistic Materiality», no qual entre o trabalho do designer ou tipógrafo
define o que se pode entender por leitura que os instalou, seguindo convenções
probabilística: «A probabilistic reading estabelecidas por séculos desse ofício, e
suggests that any text or image (or o trabalho do leitor que os descodifica,
other aesthetic object — church, theater munido da experiência de leitura
production, musical piece) is performed informada por séculos dessa prática, que
when it is read, looked at, experienced.» se verificam estas «instruções de leitura».
(Drucker, 2009b: 13). Esta experiência
individual de leitura, em que o leitor
aciona o objeto e lhe dá sentido, por sua 2. PARA ALÉM DO PARATEXTO
vez, contribui para a formação, no leitor, de
comportamentos e hábitos de leitura, num A obra Seuils (1987), de Gérard Genette,
funcionamento que se autoalimenta e, ao fornece-nos um elenco de elementos
mesmo tempo, garante a sua perpetuação paratextuais que assistem na leitura
e a sua capacidade de adaptação a novos de um texto, como títulos, prefácios,
ambientes e a novas instruções de leitura notas, índices ou textos de contracapa.
que nos possam ser apresentadas. Estas Foi este autor, aliás, quem cunhou o
experiências individuais são partilhadas termo paratexto; o prefixo para sendo
pela comunidade leitora, que vai trocando usado no sentido de estar ao lado, ou

28 ENTRELER
Do livro como objeto à leitura como evento

em volta, envolvendo o texto. O termo de formatos e modos de leitura, é entender


é utilizado para nomear os textos o mecanismo que faz com que o livro
que rodeiam um texto principal e o seja um instrumento útil de partilha de
qualificam: o apresentam, o completam, informação; desmontá-lo, observar cada
ou o esclarecem. Neste seu livro, o autor uma das suas peças e entender o seu
faz uma listagem exaustiva de todos os funcionamento, como se, de facto, como
paratextos que podemos encontrar num B. P. Nichol e Steve McCaffery sugerem,
livro impresso. No entanto, essa listagem de uma máquina se tratasse. Quando estes
não observa o lado não linguístico desses autores escreveram o ensaio «The book as
elementos. Quando escreve, por exemplo, machine», enunciaram nesse título aquela
sobre títulos, esclarece quais as suas que poderia ser outra forma de descrever a
funções, os seus remetentes e os seus premissa inicial deste artigo:
destinatários. A forma como estrutura a By machine we mean the book’s capacity and
obra demonstra bem a sua intenção de method for storing information by arresting,
descrever as partes que compõem um livro in the relatively immutable form of the printed
a partir da sua função ao nível editorial. word, the flow of the speech conveying that
Muito haveria a dizer também sobre a information. The book’s mechanism is activated
forma como se compõe tipograficamente when the reader picks it up, opens the covers
cada um destes elementos — e bastante and starts reading it. (McCaffery & Nichol,
foi já dito, sob outra perspetiva, por 2000 [1992]: 18)
vários designers ou tipógrafos, dos quais Neste seu texto, no entanto, os autores,
destaco Robert Bringhurst e a sua obra com o propósito de evidenciar o carácter
The Elements of Typographic Style (2004). performativo do livro, mostram-nos uma
Mas mais ainda, há muito o que dizer extensa lista de livros extraordinários —
sobre a influência desse tratamento no sentido de fora da ordem quotidiana
tipográfico no sentido do texto, ou e habitual. Do meu ponto de vista, no
seja, como estas duas abordagens se entanto, a procura desse funcionamento
interligam. A maneira como um texto pode e deve voltar-se precisamente para
se nos apresenta é, sem dúvida, um fator o habitual e quotidiano, identificando o
que influencia a nossa leitura. Genette conceito de livro enquanto mecanismo
explicita na sua introdução que, quando mesmo, e sobretudo, em livros comuns.
fala em apresentação, quer englobar os Este ponto é importante, pois ainda
dois sentidos do termo: o sentido que subsiste a ideia de que livros com uma
usamos mais comummente, mas também forma diferente da habitual foram feitos
um sentido forte, que quer dizer «tornar para serem vistos além de lidos, enquanto
presente». Essa clarificação deve também livros comuns seriam transparentes,
ser feita aqui: quando falo de apresentação permitindo-nos aceder ao seu conteúdo
do livro, ou da palavra escrita, refiro-me sem se interporem de forma alguma.
sobretudo à maneira como um texto se
torna possível e presente perante os nossos
sentidos e a nossa perceção. 4. O LIVRO TRANSPARENTE

Essa ideia de transparência é justificada


3. O LIVRO ENQUANTO MÁQUINA historicamente, do ponto de vista da
tipografia e do design. Esse, de facto, foi o
Aquilo que considero especialmente princípio orientador de várias gerações
relevante, neste momento de redefinição de designers de livros, como se pode

ENTRELER 29
Do livro como objeto à leitura como evento

observar na seguinte citação, retirada da E este conjunto forma um campo de


introdução a um estudo sobre a psicologia probabilidades de interpretação. É
da composição tipográfica, em 1959: importante sublinhar que um tipo de
Apart from limited editions printed for the letra, ou qualquer outra opção gráfica
pleasure of bibliophiles and collectors, the book de paginação, não tem um significado
is ‘a machine to think with’, as professor I. A. fechado e perene — ele significa algo
Richards defined it in his Principles of Literary na relação com os outros elementos da
Criticism (1924). The task of the artist, página, com as convenções estabelecidas,
therefore, is to assist and not impede the passage com os hábitos de leitura, e faz tudo isto
of the author’s thought to the perceptions and no momento da sua leitura, que é sempre
apprehensions of the thinking reader. (Stanley um evento irrepetível nas suas condições
Morison em Burt, 1959: xvii) particulares. Amanhã, assim como dentro
Beatrice Warde imortalizou esta ideia de cinquenta anos, será diferente. E esta
de transparência no conhecido ensaio forma de pensar o livro, ou qualquer
«The Crystal Goblet, or Printing Should outro meio de leitura, enquanto objeto
be Invisible» (Warde, 2015 [1930]: 47–54), que suporta e produz eventos e ações, é
um texto que ainda hoje é uma referência essencial para nos adaptarmos aos desafios
essencial na tipografia e no design e usufruirmos das possibilidades que os
editorial. Não pretendo aqui refutar esta meios digitais de escrita e leitura nos
visão da tipografia como um meio que é apresentam.
totalmente transparente — mas apenas
clarificá-la. Concordo que o objetivo Notas
de transparência e conforto de leitura [1] Para um estudo dirigido a esta retroação,
é absolutamente louvável e defensável leia-se Processos de retroação digital
na prática de um designer. No entanto, na página impressa. Intensificação e
pretendo também demonstrar que em transformação da experiência do livro, tese
cada passo a apresentação gráfica do texto de doutoramento de Sandra Bettencourt,
nos interpela, necessariamente, tenha Universidade de Coimbra, 2018.
ela intenção de nos bloquear ou facilitar [2] Esse é também o título da tese de
o acesso ao texto. Não existe um tipo de doutoramento Instruções de leitura.
letra neutro, um formato neutro, um Um estudo sobre convenções gráficas
papel neutro. Todos esses elementos têm de apresentação da palavra escrita, que
algo para nos dizer. entreguei e defendi na Universidade de
Da mesma maneira, esses elementos Coimbra em 2020. Faço aqui a menção
não falam sozinhos: não dizem por si explícita a essa tese uma vez que este
mesmos, isoladamente. Não têm um artigo se limita a apresentar algumas bases
significado fixo, mas sim um potencial conceptuais que servem de premissas
de significação que se constrói na relação para aquilo que expando e exemplifico
entre os vários elementos que os rodeiam na referida tese, disponível em http://hdl.
e na sua relação com o leitor. O tipo handle.net/10316/92415.
de letra oferece as suas características [3] Referida na nota anterior.
visuais, a sua história de vida, o propósito [4] No original: «the idea of the book as a
com que foi desenhado. O leitor entra performative space for the production of
com a sua própria história de leituras, reading» (Drucker, 2009a: 169).
com as convenções que aprendeu até
esse momento, com as suas expectativas
perante esse ato de leitura em particular.

30 ENTRELER
Do livro como objeto à leitura como evento

AGRADECIMENTOS McCaffery, Steve & Nichol, B.P. (2000).


Book as Machine [1973]. In Jerome
Agradeço aos Professores Doutores Manuel Rothenberg and Steven Clay, eds. A Book
Portela e João Bicker, orientadores da tese of the Book, 18–24. Granary Books.
de doutoramento aqui mencionada, na qual Sabino, Ana (2020). Instruções de leitura.
este artigo se baseia. Um estudo sobre convenções gráficas de
apresentação da palavra escrita [tese de
doutoramento]. Universidade de Coimbra.
FINANCIAMENTO http://hdl.handle.net/10316/92415.
Warde, Beatrice (2015) A Taça de cristal, ou
A tese de doutoramento Instruções de porque a tipografia deve ser invisível. In
leitura. Um estudo sobre convenções Teoria do Design Gráfico, 47–54.
gráficas de apresentação da palavra escrita
foi financiada por uma bolsa da Fundação
para a Ciência e Tecnologia (referência NOTA CURRICULAR DOS AUTORES
PD/BD/105704), tendo como instituição
de acolhimento o Centro de Literatura Ana Sabino é doutorada em Materialidades
Portuguesa da Faculdade de Letras da da Literatura pela Faculdade de Letras
Universidade de Coimbra. da Universidade de Coimbra, onde é
investigadora. Definindo o seu percurso
de forma pluridisciplinar, é também
REFERÊNCIAS licenciada em Design de Comunicação
pela Faculdade de Belas Artes da
Barthes, Roland (1987) O Rumor da Língua. Universidade de Lisboa e mestre em
Edições 70. Teoria da Literatura pela Faculdade
Bringhurst, Robert (2004). The Elements de Letras da Universidade de Lisboa.
of Typographic Style (3.ª ed). Hartley & Atualmente, dá aulas de Tipografia na
Marks. Escola Superior de Artes Aplicadas, no
Burt, Cyril (1959). A Psychological Study of Instituto Politécnico de Castelo Branco.
Typography. Cambridge University Press.
Drucker, Johanna (2009a) Modeling
Functionality: From Codex to e-Book.
SpecLab: Digital Aesthetics and Projects
in Speculative Computing, 165–74.
University of Chicago Press.
Drucker, Johanna (2009b). Entity to Event:
From Literal, Mechanistic Materiality to
Probabilistic Materiality. Parallax 15 (4):
7–17.
Foucault, Michel (2006). O Que é um Autor?
(6.ª ed). Vega.
Genette, Gérard (1987). Seuils. Éditions du
Seuil.
Hayles, N. Katherine (2006). The Time of
Digital Poetry: From Object to Event. In
New Media Poetics: Contexts, Technotexts,
and Theories, 181–210. MIT Press.

ENTRELER 31
ARTIGOS

ESTUDOS
Práticas de leitura e competências de literacia:
resultados e ilações do PIAAC
Reading practices and literacy competencies: results
and conclusions from PIAAC
Luís Rothes e João Queirós

RESUMO ABSTRACT
O Programa Internacional para a Avaliação The Programme for the International Assess-
das Competências dos Adultos (Programme ment of Adult Competencies (PIAAC) is a
for the International Assessment of Adult multicycle programme of assessment and analy-
Competencies, PIAAC) é um programa sis of adult skills developed by the Organisation
internacional multiciclo de avaliação das for Economic Co-operation and Development
competências dos adultos promovido (OECD). It is currently the most comprehensive
pela Organização para a Cooperação e study on adult skills, allowing for an in-depth
Desenvolvimento Económico (OCDE). É analysis on adults’ proficiency in key informa-
o estudo internacional mais abrangente tion-processing skills – literacy, numeracy and
sobre as competências dos adultos e permite problem solving –, and the gathering of infor-
analisar em profundidade o modo como mation on how adults use their skills at home,
estes são capazes de mobilizar, na sua vida at work, and in the wider community. This
quotidiana, os conhecimentos e as capacidades paper presents some results of PIAAC’s Cycle
que adquiriram ao longo da vida, em três 1 on reading practices at home, at work, and in
domínios distintos: literacia, numeracia e other social settings, and aims at discussing the
resolução de problemas, nomeadamente em relations between literacy proficiency and the
ambientes tecnologicamente desafiantes. use of literacy skills by adults. Considering the
Neste artigo, serão apresentados e discutidos expected participation of Portugal in PIAAC’s
alguns resultados obtidos no 1.o Ciclo do Cycle 2, this paper will also explore the main
PIAAC sobre práticas de leitura em contexto aspects of the Programme’s literacy and reading
laboral e social e, mais em geral, sobre posse components conceptual framework and reflect
e uso de competências de literacia pelos on the opportunities the appropriation and use
adultos participantes. Tendo em conta a of this conceptual framework, and of PIAAC’s
participação prevista de Portugal no 2.o Ciclo results, by adult educators and trainers can bring
deste Programa, o artigo explorará ainda to the building and structuring of new strategies
o quadro concetual que guia a avaliação and methodologies aiming at the promotion of
das competências de literacia neste novo reading practices and the development of litera-
andamento do estudo e procurará refletir cy skills among adults.
sobre as oportunidades que a apropriação deste
quadro concetual e dos resultados do PIAAC PALAVRAS-CHAVE
pode suscitar em matéria de fundamentação leitura, literacia, competências dos
e organização das estratégias e das práticas de adultos, PIAAC, Portugal
promoção da leitura e de desenvolvimento
de competências de literacia concebidas e KEYWORDS
dinamizadas por profissionais do campo reading, literacy, adult competencies,
alargado da educação e formação de adultos. PIAAC, Portugal

32 ENTRELER
Práticas de leitura e competências de literacia: resultados e ilações do PIAAC

O PROGRAMA INTERNACIONAL PARA Para garantir a harmonização dos


A AVALIAÇÃO DAS COMPETÊNCIAS processos de recolha de dados entre
DOS ADULTOS países com populações, estruturas sociais
e económicas, culturas, idiomas, níveis
O Programa Internacional para a educativos e experiências de vida muito
Avaliação das Competências dos Adultos diversas, Portugal, como todos os outros
(Programme for the International países participantes, segue as diretrizes
Assessment of Adult Competencies, de garantia de qualidade estabelecidas
PIAAC) é um programa internacional pelo consórcio da OCDE, que se orientam
multiciclo de avaliação das competências por padrões exigentes para o desenho da
dos adultos promovido pela Organização pesquisa, a implementação da avaliação e
para a Cooperação e Desenvolvimento o tratamento e divulgação dos resultados.
Económico (OCDE) e desenvolvido por um O questionário organiza-se em
consórcio internacional e por entidades dois módulos principais: o primeiro
nacionais de pesquisa social. A sua de caracterização do inquirido
concretização revela o empenho crescente, (Background Questionnaire), o segundo
quer dos governos, quer de muitas outras de avaliação direta de competências
forças e interesses sociais, na avaliação (Direct Assessment). No Background
das competências dos adultos, para que Questionnaire, interrogam-se dimensões
seja possível monitorizar o modo como relativas a: caracterização demográfica
estes estão preparados para utilizar, e socioeconómica dos respondentes;
na sua vida quotidiana e em contextos trajetória e participação educativa e
diversos, os conhecimentos e aptidões formativa; condição perante o trabalho
que adquiriram ao longo da vida. Esta atual e história laboral; trabalho/
avaliação é reconhecida como essencial profissão atual (ou último trabalho); uso
para que se promova a qualificação dos de competências de literacia, numeracia
recursos humanos, a equidade no acesso e e TIC no contexto laboral; uso de
participação nos mercados de trabalho e a competências de literacia, numeracia e
participação educativa, cívica e cultural. TIC na vida pessoal; ambiente e condições
O Inquérito às Competências dos de trabalho; efeitos da posse e uso de
Adultos, que constitui a atividade central competências na vida profissional e
do PIAAC, é o inquérito internacional rendimentos; outros efeitos da posse e
mais abrangente e detalhado sobre uso de competências fora do mercado
competências dos adultos. A sua de trabalho; competências sociais e
concretização em Portugal exige a emocionais. O Direct Assessment visa
realização, no conjunto do território aferir, através de uma avaliação direta
nacional, de até 1.800 entrevistas autoadministrada, as competências
completas no domicílio a adultos entre dos entrevistados associadas a tarefas
os 16 e os 65 anos, na fase de pilotagem quotidianas em três áreas distintas:
(Field Trial), e de 5.000 entrevistas literacia, numeracia e resolução
completas no domicílio a adultos entre de problemas, designadamente em
os 16 e os 65 anos, na fase principal do ambientes tecnologicamente desafiantes
inquérito (Main Study). As entrevistas, com (adaptive problem solving).
duração prevista entre 90 e 120 minutos, A OCDE lançou o 1.o Ciclo deste
são realizadas preferencialmente com Programa em 2007, o qual contou com
recurso a tablets (CAPI, Computer-Assisted a participação de 38 países, ao longo de
Personal Interviewing). três rondas: 24 países na primeira ronda,

ENTRELER 33
Práticas de leitura e competências de literacia: resultados e ilações do PIAAC

em 2011-12, nove países na segunda disponibilizados “ficheiros de utilização


ronda, em 2014-15, e seis países na pública”, que têm proporcionado
terceira ronda, em 2017-18, incluindo oportunidades investigativas e analíticas
neste caso nova participação dos EUA, muito importantes; delas tem resultado
que haviam participado já na primeira uma produção cada vez mais significativa
ronda. Portugal, enquanto Estado- de textos da autoria de investigadores e
membro daquela organização, também equipas de investigação das mais diversas
foi convidado a participar neste 1.o Ciclo nacionalidades (cf. Maehler, Jakowatz,
do Programa. O essencial do trabalho & Konradt, 2021). O mesmo acontecerá
de preparação desta exigente operação seguramente com os resultados obtidos
chegou a ser realizado (Ávila et al., 2011), no quadro do 2.o Ciclo do PIAAC, que se
mas o país abandonou o estudo por prevê que sejam disponibilizados entre
decisão do XIX governo constitucional. 2023 e 2024 e que incluirão nessa altura,
Mais recentemente, através do como se espera, dados relativos a Portugal.
despacho n.o 3651-A/2019, de 1 de abril,
o XXI governo constitucional considerou
essencial a participação portuguesa 1. A AVALIAÇÃO DAS COMPETÊNCIAS
no 2.o Ciclo do PIAAC, tendo criado DE LITERACIA NO PIAAC
um Grupo de Projeto encarregado de
coordenar o trabalho em Portugal. Os Para o domínio da literacia, como para
seus coordenadores foram designados os outros domínios avaliados através
pelo despacho n.o 4340/2019, de 26 da componente do Direct Assessment do
de abril. O suporte administrativo e Inquérito às Competências dos Adultos,
financeiro necessário ao desenvolvimento foi construído um quadro que clarifica
da atividade deste Grupo de Projeto e fundamenta a definição de literacia,
é assegurado pela ANQEP – Agência permitindo estabelecer o modo como esta
Nacional para a Qualificação e o Ensino deve ser avaliada: o leque de competências
Profissional, IP. É um processo de trabalho a serem avaliadas, os tipos de itens a serem
que se previa que estivesse concluído usados, bem como as áreas de conteúdo,
no final de 2023, mas cujo cronograma contextos e situações de vida dos adultos
inicial foi ajustado, em virtude dos efeitos que requerem tais competências.
da pandemia da COVID-19. O adiamento A proficiência dos adultos em cada um
da conclusão do trabalho do Grupo dos três domínios avaliados é assumida
de Projeto para o final de 2024 foi já como um contínuo e medida em escalas;
estabelecido no despacho n.o 2215/2021, de acordo com os resultados que obtêm
de 1 de março, que estabeleceu igualmente nos testes, os participantes no estudo são
a constituição de uma Comissão Nacional posicionados ao longo de escalas de 500
de Acompanhamento do PIAAC em pontos, representando pontuações baixas
Portugal. níveis de proficiência baixos (capacidade
Os resultados do Inquérito às para concretizar tarefas de complexidade
Competências dos Adultos realizado limitada) e pontuações altas níveis de
no âmbito do 1.o Ciclo do PIAAC proficiência altos (capacidade para realizar
foram já disponibilizados aos países tarefas diferenciadas e complexas). Para
participantes e divulgados através de ajudar a interpretar as pontuações, a escala
diversas publicações editadas pela OCDE é dividida em níveis de proficiência.
(OECD, 2013a; 2013b; 2013c; 2016; Existem seis níveis de literacia e de
2019a; 2019b). Entretanto, foram também numeracia (de “Abaixo do Nível 1” – o

34 ENTRELER
Práticas de leitura e competências de literacia: resultados e ilações do PIAAC

mais baixo – até ao “Nível 5” – o mais alto) incluindo aqueles que estão nos níveis
e quatro na resolução de problemas (de mais baixos de literacia; a gama de
“Abaixo do Nível 1” – o mais baixo – até ao textos a serem considerados deve ser
“Nível 3” – o mais alto). mais ampla do que a mobilizada nas
A construção do processo de avaliação avaliações anteriores, incluindo os textos
das competências de literacia partiu, frequentemente identificados como textos
por parte do PIAAC, da identificação eletrónicos; e o tipo de comportamento de
das tarefas de leitura e de escrita com literacia medido deve ir além do simples
que as pessoas estão confrontadas uso de texto para um propósito imediato,
no atual quadro informacional e de modo a permitir uma compreensão
comunicacional. A estrutura adotada, mais profunda da competência de
ainda que expandindo a definição de literacia. Em terceiro lugar, a definição
compreensão de leitura, baseou-se em procurou permitir uma ligação com as
definições anteriores de compreensão avaliações IALS e ALL, favorecendo a
de textos, especialmente as do Inquérito análise das tendências verificadas ao
Internacional à Literacia dos Adultos longo do tempo. Finalmente, sublinha-se
(International Adult Literacy Survey, IALS), que a avaliação cognitiva, por si só, não
concretizado entre 1994 e 1998, e do é suficiente para compreender a situação
Inquérito sobre Literacia de Adultos e em termos de literacia numa determinada
Competências para a Vida (Adult Literacy sociedade, sendo importante apreciar
and Life Skills Survey, ALL), realizado entre também o envolvimento dos indivíduos
2003 e 2006. em práticas de leitura e escrita (PIAAC
No PIAAC, a literacia é entendida como Literacy Expert Group, 2009).
a capacidade da pessoa adulta para aceder, A avaliação das competências de
compreender, avaliar e refletir sobre literacia dos adultos no PIAAC envolve,
textos escritos, para poder, desta forma, portanto, diferentes tipos de texto. Eles
cumprir os seus objetivos, desenvolver distinguem-se, desde logo, pelo meio
os seus conhecimentos e potencial e que utilizam (impresso ou digital). Com
participar na sociedade (OECD, 2021). efeito, até há pouco tempo, a maioria das
Para se chegar a esta definição, leituras realizadas pelos adultos tinham
consideraram-se quatro pontos de como suporte material impresso em papel.
partida essenciais. Um primeiro afirma Atualmente, contudo, os adultos precisam
que a definição deve ser descritiva e não cada vez mais de aceder e de usar o texto
normativa. Com efeito, muitas definições que é exibido numa tela de qualquer tipo,
de literacia estabelecem um estado ideal seja de um computador, de um tablet, de
ou uma meta para a ação de promoção um smartphone ou de um qualquer outro
da literacia. Pelo contrário, o constructo suporte eletrónico.
subjacente ao PIAAC reconhece que os Ao incluir estes textos digitais, a
indivíduos variam na sua capacidade de avaliação passa a considerar novos tipos
obter sucesso na gama diversa de tarefas de textos e conteúdos. Embora haja textos
de literacia que enfrentam na sociedade semelhantes àqueles em formato papel,
contemporânea – a qual deve, por isso, ser eles são muito menos comuns nessa
avaliada. Há, em segundo lugar, a adoção forma. Algumas dessas novas combinações
de uma conceção ampla de literacia, de forma/conteúdo incluem textos
alicerçada nos seguintes pressupostos: interativos, como interações em secções
a avaliação destas competências básicas de comentários de blogs ou em threads de
deve considerar todos os adultos, resposta de e-mail, textos múltiplos, sejam

ENTRELER 35
Práticas de leitura e competências de literacia: resultados e ilações do PIAAC

exibidos ao mesmo tempo num ecrã ou cognitivas normalmente utilizadas pelos


ligados por meio de hipertexto, e, ainda, leitores ao lidarem com textos escritos:
textos expansíveis, onde um resumo pode i) aceder, que envolve identificar um
ser ligado a informações mais detalhadas texto relevante e localizar informações
se o utilizador o desejar. num determinado texto. Esta operação
Em termos de conteúdos, os textos pode ser relativamente simples, quando
utilizados na avaliação do PIAAC são a informação procurada é facilmente
caracterizados pelo seu tipo, pelo seu identificável, mas pode ser também
formato, pela sua organização e pela uma operação complexa, quando
fonte mobilizada (OECD, 2021). Em requer raciocínio inferencial e uma
relação ao tipo de texto, podemos compreensão de estratégias retóricas;
encontrar descrições, narrativas, ii) compreender, que envolve entender
exposições, argumentações, instruções as relações entre as diferentes partes de
e transações. Já quanto à sua forma, os um texto, para construir significado e
textos utilizados podem ser: contínuos retirar inferências do texto como um
(ou em prosa), compostos por frases todo; e iii) avaliar, exigindo que o leitor
organizadas em parágrafos; não contínuos relacione as informações do texto com
(ou documentos), que são organizados outras informações, conhecimentos e
em formato matricial ou em torno de experiências, por exemplo, para avaliar a
recursos gráficos, podendo incluir listas relevância ou credibilidade de um texto.
simples e complexas, documentos gráficos O leitor precisa, com efeito, de avaliar
(por exemplo, gráficos, diagramas), todas as informações lidas em termos de
documentos de localização (por exemplo, precisão, confiabilidade e oportunidade.
mapas) e documentos para preenchimento Esta avaliação é particularmente
(por exemplo, formulários); e mistos, importante na leitura de material
envolvendo combinações de elementos disponível online, já que, neste caso,
contínuos e não contínuos (por exemplo, as fontes das informações são mais
um artigo de jornal ou uma página variadas, havendo desde fontes confiáveis
da web que inclui texto e gráficos). Os até publicações com autenticidade
textos caracterizam-se também pela sua desconhecida ou incerta, sendo aí muito
organização, ou seja, pela quantidade de mais fácil distribuir os textos digitais
informação, a densidade do conteúdo de forma ampla e anónima. Além de
e os dispositivos de acesso. Finalmente, fazerem julgamentos sobre a veracidade e
caracterizam-se pela respetiva fonte, a confiabilidade do conteúdo, os leitores
que pode ser um texto único ou textos precisam constantemente de avaliar se o
múltiplos, com a justaposição ou ligação de texto é apropriado para a tarefa em que
elementos gerados de forma independente, estão envolvidos, determinando se ele
como um e-mail, que contém um registo fornecerá as informações de que precisam.
de diferentes mensagens trocadas durante Os textos selecionados para a avaliação
um período de tempo, ou uma postagem da literacia no PIAAC consideram
de blog, que contém um texto inicial e igualmente quatro diferentes contextos
uma sequência de textos relacionados em que a leitura se concretiza (OECD,
consistindo em comentários em resposta 2021). Estes contextos condicionam os
ao texto inicial e comentários em resposta tipos de texto encontrados, a natureza do
a outros comentários. seu conteúdo, a motivação dos adultos
Por outro lado, o PIAAC considera na para os ler e a maneira como os textos são
sua avaliação as seguintes três estratégias por eles interpretados.

36 ENTRELER
Práticas de leitura e competências de literacia: resultados e ilações do PIAAC

Há, desde logo, textos relacionados com disponíveis revelam que o modo como
o trabalho, os quais incluem materiais estes se envolvem com as práticas de
que discutem aspetos como sejam a leitura apresenta, como se sublinhará em
procura de emprego, os salários e outros seguida, correlação importante com os
benefícios e a experiência laboral. Os níveis de proficiência demonstrados.
materiais que dizem respeito à área
pessoal referem-se a um segundo contexto
considerado no PIAAC e incluem textos 2. COMPETÊNCIAS DE LITERACIA
relativos ao lar e à família (por exemplo, E PRÁTICAS DE LEITURA NO PIAAC
relações interpessoais, finanças pessoais, – RESULTADOS DO 1.º CICLO DO
habitação, seguros); saúde e segurança PROGRAMA
(por exemplo, drogas e álcool, prevenção
e tratamento de doenças, segurança 2.1. Proficiência em literacia
e prevenção de acidentes, primeiros No 1.o Ciclo do PIAAC, a proficiência
socorros e emergências, estilo de vida); média dos adultos respondentes
economia do consumidor (bancos, correspondeu, no domínio da literacia,
poupança, publicidade, preços); e lazer e no conjunto dos países da OCDE, a 266
recreação (viagens, atividades recreativas). pontos. Este valor, medido numa escala de
São mobilizados igualmente textos 500 pontos, ficou quatro pontos acima da
relacionados com a vida comunitária, proficiência média registada no domínio
incluindo-se, neste contexto, materiais da numeracia (OECD, 2019a; cf. também
que tratam de serviços públicos, governo, Rothes & Queirós, 2020). Os scores médios
grupos e atividades na comunidade. de literacia nos países da OCDE variaram
Finalmente, há também materiais entre os 296 pontos observados no Japão
relacionados com a educação e formação, e os 220 pontos registados no Chile. No
abrangendo textos que se referem a conjunto dos 38 países participantes
oportunidades de aprendizagem para os nas três rondas do 1.o Ciclo do PIAAC,
adultos. os resultados médios mais baixos foram
O uso social destas competências de obtidos no Equador e no Peru (196
literacia é, pois, muito diverso. Muitos pontos), países que, porém, não fazem
adultos parecem ler textos apenas quando formalmente parte da OCDE. No sul da
alguma tarefa assim o exige, enquanto Europa, Grécia, com 254 pontos, Espanha,
outros também leem pelo prazer que com 252 pontos, e Itália, com 250 pontos,
a leitura lhes traz ou motivados por apresentaram desempenhos em literacia
interesses mais gerais, como seja a abaixo da média dos países-membros
aprendizagem ao longo da vida, grande daquela organização, correspondendo
parte dela autodirigida e informal. também aos países com mais baixos scores
Alguns adultos leem apenas o que outras médios de literacia no conjunto dos países
pessoas ou entidades – empregadores, da União Europeia que integraram o
governos – tornam necessário, enquanto estudo (OECD, 2019a, p. 23).
outros leem por sua própria iniciativa. A maioria dos adultos participantes
Os adultos diferem, portanto, no grau no 1.o Ciclo do PIAAC apresentou um
de envolvimento com o texto e no desempenho em literacia situado num
papel que a leitura desempenha nas patamar abaixo ou, quando muito,
suas vidas. É, por isso, essencial avançar num patamar próximo da média geral
na compreensão dos respetivos níveis observada: 54,1% dos respondentes
de literacia, tanto mais que os estudos apresentaram resultados até ao “Nível 2”

ENTRELER 37
Práticas de leitura e competências de literacia: resultados e ilações do PIAAC

de proficiência (inferiores a 275 pontos). desafiantes do ponto de vista do uso e


A variabilidade dos resultados revelou-se desenvolvimento de competências de
elevada quer entre países participantes, literacia, mas a relação entre nível de
quer entre respondentes de um mesmo instrução e proficiência é complexa,
país: em média, nos países da OCDE, como comprovam os desempenhos muito
consideradas as três rondas do 1.o Ciclo díspares nos testes de literacia verificados
deste estudo, o hiato entre os 25% menos entre adultos com o mesmo número de
proficientes e os 25% mais proficientes anos de escolaridade, quer no interior de
foi, no domínio da literacia, de 61 pontos um mesmo país, quer sobretudo entre
(OECD, 2019a, pp. 45-47). países (OECD, 2019a, pp. 66-68).
Diferentes características sociodemo- No que concerne à idade, os resultados
gráficas dos adultos encontram tradução do 1.o Ciclo do PIAAC revelaram um
em diferentes níveis de proficiência: impacto na proficiência em literacia
tipicamente, a proficiência, nos diferentes favorável aos adultos mais jovens. Na
domínios avaliados no PIAAC, está inti- maioria dos países, os scores médios mais
mamente associada ao nível de escolarida- elevados nos testes de literacia foram
de, à idade e ao background socioeconómi- alcançados pelos respondentes com
co dos respondentes e apenas ligeiramente idades compreendidas entre os 25 e os
associada ao respetivo género. 34 anos; já os scores médios mais baixos
Tal como seria expectável, em todos foram obtidos pelos adultos entre os 55
os países participantes no estudo foi e os 65 anos. Em alguns países, os níveis
possível verificar uma relação forte entre mais elevados de proficiência em literacia
o nível de escolaridade dos adultos e a foram alcançados pelos inquiridos com
sua proficiência em literacia: entre os menos de 25 anos – muitos dos quais
inquiridos com idades compreendidas frequentadores do sistema de ensino à
entre os 25 e os 65 anos (isto é, indivíduos data de realização do inquérito –, mas as
que, regra geral, completaram já as diferenças face ao grupo etário seguinte
suas trajetórias académicas iniciais), revelaram-se, nesses casos, reduzidas.
a proficiência em literacia revelou-se O diferencial de proficiência em literacia
sempre mais elevada entre os detentores de acordo com a idade dos inquiridos
de instrução de nível superior e sempre revela-se estatisticamente significativo
mais baixa entre os que detinham nível mesmo quando são descontados os
de escolaridade inferior à instrução efeitos de propriedades como o nível de
secundária. Descontados os efeitos de escolaridade (em média bastante mais
outros fatores, a proficiência em literacia elevado entre os adultos mais jovens): a
dos detentores de estudos de nível superior amplitude do diferencial de desempenho
atingiu, de acordo com os resultados entre adultos mais jovens e adultos mais
agregados do conjunto dos países da velhos é, neste caso, reduzida para metade,
OCDE, valores médios situados cerca mas persiste ainda assim uma diferença
de 50 pontos acima dos valores médios estatisticamente significativa de 15 pontos,
observados no grupo dos inquiridos com em favor dos primeiros, nos scores médios
escolaridade inferior ao nível secundário. de proficiência em literacia, quando se
Com efeito, trajetórias académicas consideram os resultados agregados obtidos
mais longas tendem a favorecer o para o conjunto dos países da OCDE.
desenvolvimento de níveis de proficiência Este dado sugere uma associação entre
mais robustos e a providenciar o acesso envelhecimento e erosão da proficiência,
a quadros profissionais e de vida mais mas o facto de, em alguns países, a diferença

38 ENTRELER
Práticas de leitura e competências de literacia: resultados e ilações do PIAAC

de performance entre grupos etários não ser homens, que tendem a providenciar mais
estatisticamente significativa, ou ser até frequentemente a estes últimos contextos
favorável aos adultos mais velhos, revela favoráveis ao uso de competências de
que outros efeitos de coorte podem ser literacia e, portanto, à manutenção ou
observados – como os que decorram, por desenvolvimento dos respetivos níveis de
exemplo, de alterações na qualidade dos proficiência (OECD, 2019a, pp. 76-79).
sistemas de ensino ao longo do tempo
(OECD, 2019a, pp. 74-75; cf. também 2.2. Proficiência em literacia e
Barrett & Riddell, 2016). práticas de leitura dos adultos
Os resultados do 1.o Ciclo do PIAAC Além da associação observável entre
evidenciaram ainda a importância níveis de proficiência e determinadas
do background socioeconómico na características sociodemográficas,
determinação dos desempenhos dos os resultados do 1.o Ciclo do PIAAC
adultos. Usando o nível de escolaridade evidenciaram também a correlação
dos pais como proxy do background positiva entre os scores de literacia
socioeconómico dos respondentes, o que observados e os níveis de engajamento
os resultados do PIAAC revelaram foi que em práticas de literacia reportados
os adultos com pelo menos um progenitor pelos respondentes. Na generalidade
com escolaridade de nível superior dos países participantes no estudo, a
obtiveram, em média, mais 41 pontos na níveis de proficiência mais elevados está
escala de proficiência em literacia do que associada uma participação também ela
os adultos com progenitores sem o ensino mais consistente em práticas de leitura
secundário completo, facto não alheio (e escrita) na vida quotidiana. No mesmo
ao papel do background socioeconómico sentido, os indivíduos com mais baixos
na conformação das características índices de proficiência em literacia
diretamente associáveis à proficiência, apresentam níveis de uso de competências
mormente por via da reprodução sistematicamente abaixo dos da população
intergeracional da participação e do (in) em geral, havendo muitos que nunca leem
sucesso escolares (OECD, 2019a, pp. 81-82). ou escrevem no dia a dia, seja no contexto
Quanto ao género, os resultados do laboral, seja fora dele (OECD, 2013b; 2016).
1.o Ciclo do PIAAC não evidenciaram No grupo dos inquiridos com
senão ligeiras diferenças entre proficiência em literacia situada no “Nível
as performances dos homens e as 1” ou “Abaixo do Nível 1”, a percentagem
performances das mulheres. Na maioria dos que nunca liam no trabalho ascendia,
dos países, descontados os efeitos de de acordo com os resultados do 1.o Ciclo
outras características dos inquiridos, as do PIAAC, a 15,5%, face a apenas 5,2% no
diferenças de proficiência em literacia conjunto dos respondentes. A ausência
entre homens e mulheres são mínimas de práticas de leitura fora do trabalho
e surgem desprovidas de significância era, por seu turno, apanágio de 4,8% dos
estatística: se aparecem mais pronunciadas inquiridos com proficiência em literacia
em certos grupos, como no caso dos situada no “Nível 1” ou “Abaixo do Nível
respondentes mais velhos, esse facto 1”, valor que descia para 1,3% no conjunto
deve-se ao nível de escolaridade médio dos respondentes. Adicionalmente, os
mais elevado que detêm os homens desse indivíduos que declaravam ler mais no
segmento etário e às formas diferentes trabalho eram também aqueles que mais
de inserção e participação no mercado liam fora do contexto laboral (Grotlüschen
de trabalho observáveis entre mulheres e et al., 2016, pp. 40-42).

ENTRELER 39
Práticas de leitura e competências de literacia: resultados e ilações do PIAAC

Proficiência e uso estão, pois, adultos com menor proficiência em


amplamente associados e tendem a literacia e prolonga-se para lá do domínio
reforçar-se mutuamente. A intensidade do ganho económico. De acordo com
desta associação varia de país para país os resultados do 1.o Ciclo do PIAAC, e
– e é possível encontrar, num mesmo controladas outras variáveis, como o nível
contexto nacional, quer indivíduos de escolaridade, a idade ou a proficiência,
com elevada proficiência em literacia o uso das competências, em especial a
que apenas marginalmente se engajam participação em práticas de leitura fora
em práticas de leitura e escrita, quer do trabalho, está também associado a
indivíduos com baixa proficiência que, diversos resultados sociais favoráveis,
contudo, fazem uso das suas competências correspondendo práticas mais intensas de
com bastante regularidade –, mas o que leitura a índices mais robustos de confiança,
é mais comum é que os adultos mais adesão a práticas de voluntariado,
proficientes se engajem mais em práticas capacidade percebida de influência política
de literacia, dentro e fora do contexto e saúde reportada (Grotlüschen et al., 2016,
laboral, facto que tende a contribuir para a pp. 49-53; cf. também Lane & Conlon,
manutenção, ou mesmo melhoria, da sua 2016; Costa et al., 2014).
performance ao longo do tempo. Pode falar-
se, neste sentido, da indispensabilidade
do uso da competência para a respetiva CONCLUSÃO
preservação e melhoria (“use it or lose
it”) ou, se se preferir, de um “círculo Os resultados do PIAAC fornecem, sem
virtuoso” entre (maior) proficiência, dúvida, indicações relevantes para o
(maior) engajamento em práticas de aperfeiçoamento do desenho e modos
literacia e (maior) possibilidade de de operacionalização das políticas e
mobilizar adequadamente velhas e programas de educação básica e de
novas competências (OECD, 2016, pp. promoção da literacia dirigidos às pessoas
102-103; cf. também Grotlüschen et al., adultas. Além de oferecerem suporte
2016; Desjardins, 2019; Reder, Gauly, & empírico à delimitação rigorosa dos
Lechner, 2020). grupos sociais que, em cada contexto
A implicação em práticas de nacional, devem ser envolvidos
leitura, escrita e numeracia parece prioritariamente nas ações a desenvolver
igualmente influir na obtenção de neste domínio, os resultados do PIAAC
melhores resultados económicos e não evidenciam a implicação decisiva do
económicos e, enfim, no reforço do bem- uso das competências na respetiva
estar individual e coletivo. Em geral, manutenção e desenvolvimento, bem
considerando um qualquer nível de como na produção de efeitos económicos
escolaridade e patamar de proficiência, e sociais favoráveis ao reforço do bem-
quanto mais os indivíduos se envolvem estar individual e coletivo. Este último
nestas atividades cognitivas (no trabalho ponto sublinha a indispensabilidade
ou fora dele), mais elevadas tendem a ser da adoção de estratégias de treino e
as suas remunerações. promoção da literacia assentes na provisão
Esta associação, que não deve ser de oportunidades de engajamento efetivo
confundida com “causalidade” (os nexos e reiterado em práticas de leitura, escrita
causais são multifatoriais e, portanto, de e numeracia que reproduzam desafios
muito difícil circunscrição e aferição), quotidianos das pessoas envolvidas, nos –
revela-se especialmente forte entre os e fora dos – respetivos contextos laborais.

40 ENTRELER
Práticas de leitura e competências de literacia: resultados e ilações do PIAAC

Especialmente importante será, de leitura dinamizadas nos contextos


acordo com os resultados do PIAAC, o formativos terão maior hipótese de
engajamento em práticas de leitura, que serem prosseguidas para lá dos respetivos
se verifica ser o preditor mais forte da espaços e tempos e assegurarão, enfim,
preservação e crescimento da proficiência maiores probabilidades de retenção,
em literacia (quando em comparação desenvolvimento e transferência a longo
com os efeitos do engajamento nas prazo das competências desse modo
demais atividades cognitivas avaliadas no exercitadas.
estudo). Em virtude do efeito mediador da
mudança nos hábitos de leitura suscitada
pela participação em programas de REFERÊNCIAS
promoção da literacia, é de esperar ganhos
de proficiência entre os participantes, Ávila, P., Costa, A. F., Ramos, P., Botelho,
mas estes não serão observáveis senão M. C., Mauritti, R., & Rodrigues, E. (2011).
nos médio e longo prazos. Neste sentido Programa Internacional para a Avaliação
– e este é um ensinamento adicional do das Competências dos Adultos (PIAAC) –
PIAAC –, as próprias lógicas de avaliação Relatório de Atividades 2010. CIES/ISCTE.
deste tipo de programas não podem ser Barrett, G., & Riddell, W. C. (2016). Ageing
centradas exclusivamente no processo e and Literacy Skill: Evidence from IALS,
nos resultados imediatos, devendo antes ALL and PIAAC. OECD Education
ser diferidas no tempo (Reder, Gauly, & Working Papers, 145, 1-47. https://dx.doi.
Lechner, 2020, pp. 271-272). org/10.1787/5jlphd2twps1-en
O conceito de “literacia-em-uso” Costa, P. et al. (2014). Education, adult skills
adotado pelo PIAAC, cuja validade and social outcomes: Empirical evidence
empírica os resultados do estudo atestam, from the Survey on Adult Skills (PIAAC
fundamenta a adoção de um planeamento 2013). Publications Office of the European
e de uma organização curricular das Union.
iniciativas de promoção da literacia Desjardins, R. (2019). Revisiting the
dirigidas a pessoas adultas baseada no Determinants of Literacy Proficiency: A
primado da prática e na mobilização Lifelong-Lifewide Learning Perspective.
de materiais, ferramentas, atividades e Recuperado em abril de 2021 de
tarefas extraídas da “vida real”. Trata-se https://static1.squarespace.com/
de garantir que os contextos formativos static/51bb74b8e4b0139570ddf020/
refletem o modo como as competências t/5dd814b4f6489a1d4d9
dos adultos são quotidianamente bf678/1574442164794/2019_
usadas fora deles – o que impõe que os Desjardins_Determinants_Literacy.pdf
textos selecionados, lidos e trabalhados Grotlüschen, A., et al. (2016). Adults
ofereçam oportunidades de aprendizagem with low proficiency in literacy or
com significado efetivo para as pessoas, numeracy. OECD Education Working
visando tarefas concretas relativas Papers, 131, 1-151. https://dx.doi.
a áreas de interesse ou contextos de org/10.1787/5jm0v44bnmnx-en
vida autênticos, cobrindo as diferentes Lane, M., & Conlon, G. (2016). The impact
estratégias cognitivas mobilizáveis e of literacy, numeracy and computer
assegurando a inclusão de diferentes skills on earnings and employment
conteúdos, meios e formatos (Trawick, outcomes. OECD Education Working
2019). Ao espelharem a vida quotidiana Papers, 129, 1-44. https://doi.
das pessoas adultas, as atividades de org/10.1787/5jm2cv4t4gzs-en

ENTRELER 41
Práticas de leitura e competências de literacia: resultados e ilações do PIAAC

Maehler, D. B., Jakowatz, S., & Konradt, I. Rothes, L., & Queirós, J. (2020). O Programa
(2021). PIAAC Bibliography – 2008-2020. Internacional para a Avaliação das
GESIS Papers, 2021/06. https://doi. Competências dos Adultos (PIAAC)
org/10.21241/ssoar.72521 e a promoção das competências de
OECD (2013a). Skilled for Life? Key Findings numeracia da população portuguesa.
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Publishing. Trawick, A. (2019). The PIAAC Literacy
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OECD Publishing. http://dx.doi. NOTA CURRICULAR DOS AUTORES
org/10.1787/9789264204027-en
OECD (2016). Skills Matter: Further Luís Rothes é Professor Coordenador
Results from the Survey of Adult da Escola Superior de Educação do
Skills. OECD Publishing. http://dx.doi. Politécnico do Porto (ESE-P.PORTO) e
org/10.1787/9789264258051-en Investigador Integrado do inED – Centro
OECD (2019a). Skills Matter: Additional de Investigação & Inovação em Educação
Results from the Survey of Adult da ESE-P.PORTO. Presentemente,
Skills. OECD Publishing. https://doi. desempenha funções como Coordenador
org/10.1787/1f029d8f-en Nacional do Programa Internacional
OECD (2019b). The Survey of Adult Skills: para a Avaliação das Competências dos
Reader’s Companion (Third Edition). Adultos (PIAAC).
OECD Publishing. https://doi.org/10.1787/ João Queirós é Professor Adjunto da
f70238c7-en Escola Superior de Educação do
OECD (2021). The Assessment Frameworks Politécnico do Porto (ESE-P.PORTO) e
for Cycle 2 of the Programme for the Investigador Integrado do Instituto de
International Assessment of Adult Sociologia da Universidade do Porto
Competencies. OECD Publishing. https:// (IS-UP). Presentemente, desempenha
doi.org/10.1787/4bc2342d-en funções como Subcoordenador Nacional
PIAAC Literacy Expert Group (2009). do Programa Internacional para a
Literacy: A Conceptual Framework. OECD Avaliação das Competências dos Adultos
Education Working Papers, 34. https:// (PIAAC).
dx.doi.org/10.1787/220348414075
Reder, S., Gauly, B., & Lechner, C. (2020).
Practice makes perfect: Practice
engagement theory and the development
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Education, 66, 267-288. https://doi.
org/10.1007/s11159-020-09830-5

42 ENTRELER
ARTIGOS

PRÁTICAS
Histórias em 77 palavras® – método e aplicações
futuras
77-word stories® – methodology and future
applications
Margarida Fonseca Santos e Isabel Peixeiro

RESUMO no processo de escrita através da metacognição


O projeto Histórias em 77 palavras lança – o pensamento sobre a escrita –, bem como a
regularmente, desde 2011, desafios de escrita autonomia na produção de textos.
com o intuito de estimular a produção de tex-
tos e a metacognição na escrita. Tendo como ABSTRACT
objetivo trabalhar o processo, visa a evolução The 77-word stories project regularly creates
da escrita através da revisão e reescrita, assim writing challenges to stimulate text production.
como a descoberta de caminhos originais de Focused on the process, it aims at the evolution
produção de texto. A metodologia consiste na of writing through its refinement and the
transformação da escrita num jogo, de forma discovery of individual paths of text production.
a atingir a concentração descontraída neces- The applied methodology transforms writing
sária para evoluir. into a game, reaching the relaxed concentrated
Dos textos recebidos ao longo destes state essential to improvement.
10 anos, organizados e arquivados The texts received over the last 10 years,
cronologicamente e por aluno, é possível were organized and archived chronologically
perceber como o número de participantes per student, allowing us to see that the number
tem aumentado, havendo professores a enviar of participants has increased, with teachers
regularmente textos dos seus alunos. Se se regularly sending texts from their students.
adicionar a experiência presencial em turmas Furthermore, in writing workshops, the in-class
onde se dinamizam oficinas de escrita, experience shows a growing enthusiasm and
percebe-se um entusiasmo e autoconfiança self-confidence in solving these challenges.
crescentes na resolução dos desafios. We now aim to understand the impact of
Pretende-se, agora, chegar mais longe, para writing challenges in student’s progression,
compreender o impacto da escrita baseada not only in relation to spelling, grammar
nos desafios na progressão dos alunos, não and syntax, but also in terms of originality
só relativamente à ortografia, gramática e and creativity, and use of figurative and
sintaxe, mas, sobretudo, também quanto à metaphorical meaning. This article addresses the
originalidade e criatividade dos textos, e uso premises and parameters to be taken into account
do sentido figurado ou metafórico. O presente in a future research approach to the application
artigo aborda as premissas e os parâmetros of these writing challenges that will allow a
a ter em conta numa abordagem futura de concrete and systematic assessment, inserted in
investigação da aplicação destes desafios de the most recent and comprehensive project, RE-
escrita, que permitirão uma avaliação concreta WORD-IT – Playing seriously with the words.
e sistemática, inserida no mais recente e This project aims to return to the student the
abrangente projeto RE-WORD-IT – Brincar a enthusiasm and curiosity in the writing process
sério com as palavras. Este projeto pretende through metacognition – thinking about writing
devolver ao aluno o entusiasmo e a curiosidade –, as well as autonomy in text production.

ENTRELER 43
Histórias em 77 palavras® – método e aplicações futuras

PALAVRAS-CHAVE abrangido um total de sete locais distintos


desafios de escrita, criatividade, reescrita, no país. Contudo, a existência desta página
metacognição permitiu e ainda permite a utilização dos
mesmos materiais aos professores que
KEYWORDS não tenham frequentado a formação. Ali
writing challenges, creativity, re-writing, eram sugeridos desafios para cada mês,
metacognition com objetivos pedagógicos distintos, e
encontrava-se explicada a filosofia e o
modo de pôr em prática esta dinâmica
HISTÓRIAS EM 77 PALAVRAS: DA de escrita baseada nos desafios. A página
TEORIA À PRÁTICA continua ativa, embora não estejam a
ser adicionados novos documentos de
O blogue Histórias em 77 palavras nasceu apoio. Esta decisão prende-se com o facto
como consequência do trabalho da de permitir, a cada novo professor que
sua autora (Margarida Fonseca Santos) consulte a página, seguir as estratégias
enquanto formadora e professora de anteriormente lançadas de forma
Escrita Criativa. Prefere chamar-lhes cronológica, ficando depois autónomo
«desafios de escrita», para se distanciar para continuar a utilizar o material do
de cursos que defendem receitas para a blogue livremente, pois acredita-se que
escrita, visto não ser esse o objetivo deste um professor motivado para propor um
trabalho. No blogue, o objetivo é motivar determinado desafio será mais bem-
para a escrita, entendida como uma parte sucedido do que aquele que apenas segue
da vida de qualquer um. São lançados instruções.
desafios a cada dez dias, permitindo Pretende-se, igualmente, esclarecer os
uma atividade regular e diversificada aos professores acerca do funcionamento do
participantes que permanecem ligados bloqueio cerebral e o efeito motivador
ao blogue ao longo do tempo. O blogue do jogo na prática letiva (Goleman &
Histórias em 77 Palavras constitui, Senge, 2014). Cada vez mais se torna
então, uma base de dados de exercícios necessário saber fazer face ao bloqueio de
variados. Com participantes de idades pensamentos que ocorre em sala de aula
compreendidas entre os 6 e os 101 anos, nos momentos de stresse, entender esse
a chegada de textos por dia varia entre os mecanismo e aprender a antecipá-lo de
três e as várias dezenas, dependendo da forma a impedir que avance para níveis
chegada ou não de textos oriundos das mais intensos (Fonseca Santos, 2015;
escolas. Os desafios permitem trabalhar a Goleman, 2016).
escrita, e as participações das escolas são Os desafios propostos no blogue são
enviadas por professores que utilizam os de dois tipos: de desbloqueio – entre os
desafios nas suas aulas ou nas oficinas de quais se inserem aqueles com limitações
escrita criativa, embora por vezes sejam os ou imposições de letras e/ou de palavras
próprios alunos a enviar os seus textos. – e de construção de texto – uns partindo
Para apoiar e motivar os professores de frases ou citações de autores, outros
que ao blogue aderem, foi construída e de ideias ou imagens. Os desafios de
alimentada, durante um certo período, desbloqueio servem para levar os alunos a
uma página de apoio aos professores entrarem em modo de jogo – uma forma
(77palavras.margaridafs.net). Esta surgiu descontraída de atingir elevados níveis de
na sequência de ações de formação concentração, motivação e prazer, e que
lançadas a convite do PNL2027, tendo se consegue através de constrangimentos

44 ENTRELER
Histórias em 77 palavras® – método e aplicações futuras

de vários géneros (Fonseca Santos, 2015). a escrita e a leitura. Podem também


Podem existir letras proibidas, letras partir de imagens, de fotografias ou de
ou palavras obrigatórias que pontuam ilustrações, de ideias ou de contextos.
o texto. O objetivo destes exercícios vai Aconselha-se aos participantes que, ao
para além da concentração descontraída, trabalhar com estes desafios, não contem
pois eles levam cada aluno a procurar palavras enquanto escrevem. O melhor
caminhos alternativos aos que utiliza processo advirá de escrever mais do que
habitualmente ao escrever, já que terá de o pedido para depois melhorar o texto,
contornar os constrangimentos (Fonseca cortando os excessos. Consideramos
Santos, 2019). O trabalho regular através que o trabalho de reescrita é uma parte
destes desbloqueios pretende dotar os integrante do gosto pela escrita, e ao
alunos de cada vez mais caminhos de qual nem sempre se dedica o tempo
escrita e soluções sintáticas não usadas necessário. Nesta fase de melhoramento,
habitualmente. Pretende-se igualmente pretende-se chegar à edição consciente
provocar um alargamento do vocabulário do texto: são suprimidas as palavras
– seja pela proibição de palavras ou letras, repetidas que não servem o ritmo da
seja pela consciência do ritmo do texto, narrativa; são eliminadas as palavras
com cadências obrigatórias (Fonseca usadas sem necessidade, sendo um bom
Santos, 2019). São exemplos deste tipo exemplo disto a repetição escusada de
de desafios: o reconto de uma história preposições ou pronomes possessivos;
conhecida com uma letra a menos (o que são clarificadas frases, tornando-as mais
pode levar inclusivamente a substituir simples ou suprimindo-as, decidindo que
personagens e cenários); a utilização do o seu conteúdo será subentendido. Neste
abecedário na ordem certa dentro do trabalho de revisão do texto, espera-se
texto (sendo obrigatório o uso de letras que o aluno se aproxime mais do gosto
específicas no início de palavras, que não pela leitura, estimulando-se a curiosidade
poderão estar distanciadas por mais de em observar, para lá daquilo que narra o
três palavras livres até à próxima palavra livro, a forma como o autor o escreveu.
de letra obrigatória); e a construção do Neste segundo tipo de desafios incluem-
texto seguindo palavras obrigatórias, se, igualmente, os desafios propostos por
com ou sem sequência definida (Fonseca entidades dedicadas à escrita e à leitura,
Santos, 2019). A reação dos alunos vai como é o caso do PNL2027 e da Rede de
da perplexidade inicial, achando o Bibliotecas Escolares.
desafio quase impossível, à vontade de
atingir o objetivo, o que, fazendo uso da
metacognição, potencia a aprendizagem 1. UMA PRIMEIRA ABORDAGEM
do valor da motivação intrínseca e o
prazer do trabalho realizado. Os textos recebidos que respeitem as
O segundo tipo de desafios pretende regras de cada desafio são publicados
expandir a consciência da construção de no blogue, fazendo referência ao aluno
textos sem imposições que impliquem (apenas o nome próprio), à cidade e, se
alterações de palavras. Podem surgir for o caso, ao professor da turma e à
temas pouco comuns, como o Natal de escola. São igualmente recebidos textos
uma aranha ou um homem intermitente, espontâneos de crianças e jovens em
como podem igualmente ser sugeridas idade escolar, como já foi referido, e
frases retiradas de livros de prosa ou de adultos, na sua maioria, pessoas já
poesia, consolidando a ligação entre reformadas. No caso dos textos enviados

ENTRELER 45
Histórias em 77 palavras® – método e aplicações futuras

pelos professores das escolas, estes advêm evolução e aprendizagem, bem como um
da utilização dos desafios nas aulas de uso mais consciente da criatividade. Isso
Português, como ferramenta para trabalho implica que, como iremos detalhar mais à
para casa e, igualmente, como atividade frente, se faça uma revisão do texto apenas
nos clubes e bibliotecas escolares. No caso pelo seu autor, propondo as autoras que a
de outras disciplinas (e.g. em Biologia revisão aconteça num momento diferente.
ou História), os textos em 77 palavras Esta conclusão surge depois de
surgem como resumos da matéria dada, escolhido o objeto de observação: uma
obrigando a sintetizar conhecimentos, professora e os seus alunos, e os textos
separando os mais importantes de cada recebidos entre 2017 e 2021, quando
módulo dos acessórios, revendo, nesse os alunos frequentavam os 5.º, 6.º e
trabalho, a matéria aprendida. Estes 7.º anos do Ensino Básico. Uma das
exercícios, estima-se, obrigam a manter características observáveis de imediato
o foco de atenção na qualidade do texto, nesta professora, Maria Cristina Félix,
especificamente no «como se explica lecionando na EB 23 Dr. Costa Matos,
ao escrever», não se limitando por isso em Gaia, é a sua paixão pela leitura e pela
a aceitar uma primeira versão pouco escrita. O envolvimento da professora no
trabalhada (Fonseca Santos, 2019). processo, pois muitas vezes envia também
Pretendia-se lançar um olhar sobre o seu texto, faz com que o trabalho seja
estas participações de modo a averiguar mais leve e divertido para os alunos,
qual o impacto na capacidade e motivação o que é, na nossa interpretação, muito
para a escrita dos grupos que trabalham de interessante e louvável. Nestas turmas,
forma sistemática com estes desafios. partindo do material de apoio da página
Os resultados são arquivados por escola, para as escolas, foram propostos aos
professor e turma, e depois por aluno, alunos os desafios de cada mês, e cada
individual e cronologicamente. Contudo, um escolheu os que gostaria de utilizar.
aqui surge um dos problemas que se revela Importa salientar que a motivação destas
impeditivo de uma observação objetiva turmas levou a que propusessem ao
dos resultados: os textos são enviados já blogue o desafio n.º 200, onde se falaria
sem erros ortográficos e/ou gramaticais, do centenário do Teatro Nacional de
tendo, portanto, sido modificados pelos São João, no Porto, instituição que os
alunos, com a supervisão dos respetivos alunos visitaram, tendo assistido a vários
professores, com o intuito de serem espetáculos. Esta interação direta com o
publicados no blogue. Em alguns, poucos, blogue sugere uma motivação clara para
casos, é notória a intervenção do professor, utilizar estes desafios de escrita.
ficando os textos com similitudes entre si Foram, nesta primeira abordagem,
numa determinada turma, o que, na nossa escolhidos 24 alunos de várias turmas,
opinião, não aconteceria se os textos não sendo o critério usado o facto de terem
fossem corrigidos. enviado para o blogue entre 4 e 10 textos,
Assim, nasceu a primeira decisão num total de 7 turmas diferentes, num
quanto à forma de investigar o impacto universo de centenas de alunos, tendo, na
dos desafios na escrita destes alunos: sua esmagadora maioria, enviado apenas
para que se possa avaliar, futuramente, 1, 2 ou 3 textos.
os resultados, os textos deverão ser Partiu-se então para a análise do
analisados sem qualquer correção por trabalho destes 24 alunos, num total
parte do professor, podendo-se assim de 144 textos, pretendendo-se aplicar
observar fragilidades, pontos fortes, alguns parâmetros como: a originalidade

46 ENTRELER
Histórias em 77 palavras® – método e aplicações futuras

e criatividade na abordagem dos temas, a evoluindo, em alguns textos seguintes,


correção do produto final, o bom uso da para ideias mais complexas. Porém,
ortografia e sintaxe, e ainda a utilização de quando os textos são observados ao longo
imagens metafóricas nos textos (Fonseca do tempo, as oscilações de qualidade
Santos, 2019). Depois de retirados os não permitem afirmar que houve um
elementos que dizem respeito à ortografia crescimento sequenciado, sugerindo
e à gramática, já corrigidos antes de serem que, como é observado nos workshops
enviados para observação, chegou-se à com estes desafios, nem todos reagem
conclusão de que, no que diz respeito à da mesma forma a um determinado
presença de metáforas nos textos, estas desafio ou tema. Por outro lado, visto os
são predominantemente comparações e desafios serem diferentes de aluno para
personificações. Segundo Ruiz & Vieira aluno, observaram-se, em alguns casos,
(2017), a compreensão das metáforas tendências para escolher um ou outro
pelas crianças é mais eficaz quando tipo de desafio. É, por isso, necessário
estas se referem a aspetos físicos ou estabelecer uma cadência na produção
quando envolvem comparações, estando de textos, bem como a inclusão de vários
relacionadas com o que a criança conhece tipos de desafios, para que se possam
e o seu estádio de desenvolvimento analisar, em cada aluno, parâmetros como:
cognitivo. a) a variação da sintaxe; b) a originalidade
De seguida, foram aplicados novos das ideias; c) a coerência do texto em
parâmetros, que pretendiam medir a 77 palavras; d) a existência de imagens
originalidade na execução dos vários metafóricas; e, por último, e) a existência
tipos de desafio, a variedade apresentada de texto subentendido. Para que tudo isto
na construção frásica e a utilização de possa ser avaliado através do impacto, em
elementos como a personificação nos metacognição, do texto, consideramos que
textos. Também aqui, os resultados seria importante que a revisão e reescrita
conseguidos não permitem aferir se há dos textos ocorresse num dia diferente da
evolução ao longo do tempo, podendo sua primeira execução, dando tempo ao
apenas registar-se um ponto que nos distanciamento e, assim, chegando a uma
parece interessante: quando vistos à forma mais objetiva de revisão do texto.
luz da diversidade sintática, os textos
têm, na sua esmagadora maioria, uma
grande multiplicidade de propostas, o 2. O PASSO SEGUINTE
que, talvez num estudo futuro, nos leve
a poder demonstrar aquilo que sentimos Acreditamos que a parte mais importante
na prática nos nossos workshops, ou seja, do trabalho está no processo, na
que os desafios atuam como motores construção e reconstrução do texto,
para a variedade na construção das frases, trazendo, espera-se, mais prazer à escrita.
elevando o interesse dos textos. Segundo Barbeiro, o texto, entendido
Dedicámo-nos, então, a observar a como produto, não nasce sem o processo
evolução de alunos com necessidades de escrita. Depois da investigação, o
educativas especiais, alguns com apoio autor conclui que a reescrita leva a uma
escolar, outros sem qualquer apoio. O que recriação do texto e que a ativação do jogo
mais nos surpreendeu foi a constatação desencadeia a criatividade. Barbeiro refere
subjetiva de como os desafios foram ainda que a descoberta da linguagem no
levados a cabo, partindo, nos primeiros processo de escrita, levando, por exemplo,
textos, de frases simples e ideias comuns, à expressividade, deverá mobilizar a

ENTRELER 47
Histórias em 77 palavras® – método e aplicações futuras

dimensão afetiva, o que terá levado os os alunos produzem; (4) desenvolvem


sujeitos do estudo, quando inquiridos rotinas como a escrita colaborativa entre
sobre as razões para escrever bem, a porem pares, promovendo assim a interação
em lugar de relevo «gostar de escrever» entre alunos; (5) estabelecem altas mas
(Barbeiro, 1999). realistas expectativas para os seus alunos
Pereira (2000) refere que o ensino da e encorajam-nos a ir mais longe nos seus
escrita deve incluir a revisão. Esta deverá esforços e resultados; (6) adaptam os
ser distanciada do momento de produção exercícios e instruções para que estes se
do texto e auxiliada por listas ou grelhas alinhem com os interesses dos alunos;
de correção (Allal et al., 2004). Assim, será (7) mantêm os alunos envolvidos em
importante não só promover atividades atividades com significado, discutindo
de escrita, mas também fomentar nos ideias para os seus trabalhos (por oposição
alunos o gosto pela análise e revisão dos a outras menos significantes, como
textos, desenvolvendo competências completar uma ficha); (8) encorajam os
metalinguísticas que poderão depois ser alunos a agir de forma autorregulada,
utilizadas noutras situações de produção permitindo que descubram as soluções
de texto (Pereira et al., 2009). por si (por exemplo, dando pistas para a
Por outro lado, consideramos que a correta ortografia de uma palavra, em vez
escrita leva à leitura, o que emerge de um de a soletrarem para que o aluno a escreva)
estudo de Graham et al. (2015), onde se (Graham et al., 2015).
demonstra que, ao proporcionar-se mais Ao observar a dinâmica e vivência do
tempo para a escrita, há um aumento trabalho das Histórias em 77 Palavras,
de 14% da compreensão leitora. Ainda propusemo-nos alargar os seus objetivos,
segundo Graham et al. (2015), a prática para que este passasse a envolver mais
de 45 minutos semanais de escrita altera componentes. Além do trabalho da escrita,
positivamente a capacidade de escrita, pretendemos incluir: a mediação e o
além da destreza na leitura, sendo por isso trabalho de motivação para a leitura; a
desejável que esta prática seja realizada utilização da audição interior, ou imagética
sistematicamente. musical, por outras palavras, a «capacidade
No mesmo estudo, Graham observou de imaginar sons quando eles não estão
que os professores excecionais de literacia presentes» (Ruiz & Vieira, 2017), ouvindo
investem na criação de ambientes na mente as frases que irão ser lidas ou que
favoráveis e cativantes para o trabalho devem ser memorizadas; o treino mental,
sobre a escrita. Destacam-se, assim, as fazendo face ao bloqueio por medo e,
atividades dos professores que permitem além disso, o treino da atenção, memória
o florescimento da escrita em sala de e consolidação de conhecimentos; e,
aula: (1) criam ambientes positivos que por último, a metacognição aplicada
encorajam o trabalho árduo, promovem a a todas as áreas anteriores, ou seja, o
crença dos alunos de que estão a aprender pensamento sobre as estratégias de cada
escrevendo e atribuem sucesso aos seus um para aprender e produzir materiais,
esforços; (2) dão visibilidade à escrita dos o pensamento sobre a escrita e a leitura,
alunos, partilhando os textos entre pares, e o pensamento sobre quais as melhores
exibindo os trabalhos nas paredes da sala, formas de estudar, memorizar e usar a
e publicando-os em livros, antologias atenção, de forma individual. Recuperando
ou outros suportes; (3) fomentam um algumas das preocupações emergentes
ambiente estimulante, mostrando o seu da atualidade, salienta-se o ensino e a
entusiasmo e gosto em ler os textos que prática continuada da metacognição – a

48 ENTRELER
Histórias em 77 palavras® – método e aplicações futuras

capacidade de pensar sobre o pensamento, RE-WORD-IT – Brincar a sério com as


a aprendizagem, a construção de textos, palavras permite testemunhar não só um
etc. Podendo ser apreendida por crianças empenho real na resolução dos desafios
desde o pré-escolar, pretende-se que traga propostos, como uma autoconfiança e
aos alunos uma autonomia crescente, autonomia crescentes. Acreditamos, por
tomando eles, desta forma, conta do seu isso, que é importante avaliar de forma
próprio percurso de aprendizagem (Wilson científica o impacto que tem a escrita
& Conyers, 2016). baseada nos desafios na progressão dos
Assim nasceu o projeto RE-WORD- alunos. Sugere-se que, de futuro, sejam
IT – Brincar a sério com as palavras, no tidas em conta as seguintes premissas:
qual as Histórias em 77 Palavras estão a) os alunos deverão fazer dois desafios
agora inseridas. Foi criado com o objetivo por mês, num total de 4 a 6 por período;
de dar resposta a estas necessidades e b) esses desafios deverão ser escolhidos de
propõe a abordagem diversificada da forma a assegurar que, em cada mês, é
leitura e da escrita, feita através de jogos executado um com constrangimentos
de palavras e de pensamentos; promove a (letras impostas ou proibidas, palavras
capacidade de gerar ideias, contornando o impostas, em sequência ou não) e outro
bloqueio da escrita e fomentando o acesso de construção de texto (partindo de
descontraído a recordações, associações ideias, frases, imagens, dando mais
de ideias e abordagens mais criativas. Este liberdade ao uso da criatividade);
trabalho decorre em aulas presenciais em c) estes dois tipos de desafios deverão
turmas ou pequenos grupos de alunos, ser submetidos a avaliação em dois
tendo sido feito à distância durante a grupos separados, visto terem objetivos
pandemia. Este projeto engloba ainda diferentes;
formação de professores, educadores, d) para o grupo de alunos em estudo, os
animadores e pais interessados em novas desafios serão os mesmos, respeitando a
formas de ensinar a leitura e a escrita. ordem sugerida;
Esta visão alargada permite um e) os desafios deverão ser recolhidos e
trabalho de observação dos resultados, analisados sem qualquer tipo de edição
trabalhando em diferentes turmas e por parte do professor que os envia, para
contextos escolares, que vão da infância que se possa aferir o grau de proficiência
à idade adulta, e observando turmas, por linguística, bem como a presença de
definição, heterogéneas. É neste trabalho sentido figurado ou metafórico;
de proximidade e acompanhamento da f) deverão ser aplicados inquéritos
evolução dos alunos que analisaremos as no início e no final do ano letivo,
nossas ações e o seu impacto no indivíduo observando as motivações para a
no futuro. escrita e para a leitura antes e depois do
trabalho proposto pelo estudo;
g) os desafios deverão ser organizados
3. IDEIAS PARA O FUTURO e numerados sem a identificação do
aluno, para se permitir uma observação
As Histórias em 77 palavras têm visto menos subjetiva dos textos;
o número de participações a aumentar h) a grelha de avaliação dos textos deverá
juntamente com o entusiasmo neste tipo permitir uma descrição minuciosa do
de trabalho. A experiência presencial e percurso de cada aluno;
em sessões à distância onde são colocados i) se possível, será valioso avaliar os textos
em prática os pressupostos do projeto de toda uma turma.

ENTRELER 49
Histórias em 77 palavras® – método e aplicações futuras

Com a consciência de que a escrita e Wilson, D. & Conyers, M. (2016). Teaching


a leitura andam de mãos dadas, e serão students to drive their brains. Teachers
também a base de todas as outras áreas do College Press.
conhecimento e da vida em geral, seria
interessante avaliar também o impacto da
aplicação do projeto RE-WORD-IT não só NOTA CURRICULAR DOS AUTORES
no interesse e nas capacidades envolvidas
na escrita e na leitura, mas também na Margarida Fonseca Santos foi professora
motivação, autoconfiança, capacidade de Pedagogia e Formação Musical no
de autorregulação e de autonomia na ensino artístico. É escritora, com muitos
aprendizagem em geral. livros publicados, a maioria na área
infantojuvenil, estando uma grande
parte incluída no Catálogo do Plano
REFERÊNCIAS Nacional de Leitura (PNL2027). Dinamiza
oficinas de escrita, sendo responsável
Allal, L., Chanquoy, L. & Largy, P. (2004). pelo blogue Histórias em 77 Palavras.
Revision: cognitive and institutional Dos seus títulos destacam-se De Nome,
processes. Springer. doi: 10.1007/978-94- Esperança (romance, 2011), Altamente
007-1048-1 (treino mental, 2005) e a coleção A
Barbeiro, L.F. (1999). Os alunos e a Escolha é Minha (juvenil). Integra o
expressão escrita. Fundação Calouste Projeto Re-Word-It – Brincar a Sério com
Gulbenkian. as Palavras, onde se trabalha a escrita,
Fonseca Santos, M. (2015). Altamente. a leitura, a atenção e a metacognição.
Edicare. Publicou Razões para Escrever e, em
Fonseca Santos, M. (2019). Razões para co-autoria, os dois livros Razões para
Escrever. Nós na Linha. Ler, de histórias metafóricas.
Goleman, D. & Senge, P. (2014). The triple Isabel Peixeiro integra a equipa Re-
focus – A new approach to education. Word-It, onde atua como mediadora
More than Sound. e formadora de leitura e escrita para
Graham, S., Harris, K. R. & Santagelo, T. crianças, jovens e adultos. Doutorada
(2015). Research-based writing practices em Bioquímica e Genética Molecular e
and the common core: meta-analysis and certificada em Inteligência Emocional
meta-synthesis. The Elementary School e Social, colabora no desenvolvimento
Journal, 115 (4), pp. 498-522. de materiais didáticos para estimular a
Pereira, L. (2000). Escrever em português: motivação e o envolvimento dos alunos
didácticas e práticas. Edições ASA. na aprendizagem. Dedica-se ainda à
Pereira, L., Cardoso, I. & Graça, L. (2009). curadoria de livros infantojuvenis no
For a definition of the teaching/learning Kit Literário e é coautora dos livros
of writing in L1: Research and action. L1 de metáforas Razões para Ler, 1 e 2,
– Educational studies in Language and incluídos no Catálogo do Plano Nacional
Literature, 9(4), pp. 87-123. de Leitura (PNL2027).
Ruiz, J. & Vieira, M. (2017). Cantem como
se estivessem num prado verde, com ar
fresco no rosto... – Imagética e metáfora
na pedagogia coral infantil. Revista E-Psi,
7 (Suplm.1), 3- 17. http://hdl.handle.
net/1822/52332

50 ENTRELER
ARTIGOS

PRÁTICAS
Leituras – ferramentas de liberdade: da
alfabetização à literacia do pensamento
Readings – tools of freedom: from literacy to literacy
of thought
Anabela de Sousa Azevedo et al.

RESUMO É deste entrecruzar de competências e


No Centro de Educação, Formação e desafios que se vão tecendo caminhos, onde
Certificação (CEFC) da Santa Casa da as artes, a ciência e as emoções convergem
Misericórdia de Lisboa (SCML) existem para (re)escrever novas histórias de vida.
diferentes percursos formativos para
adultos dos 18 aos 64 anos. Os diferentes ABSTRACT
percursos desde a Alfabetização até aos In the Centro de Educação, Formação e
Cursos Tecnológicos de dupla certificação Certificação (CEFC) of Santa Casa da
são assentes em pilares fundamentais que Misericórdia de Lisboa (SCML) there are
respeitam as histórias individuais de cada different training offers for adults aged between
formando. A diversidade é o paradigma 18 and 64 years old. The different formation
de base, onde o potencial de cada um não journey from Literacy to Academic and
se esgota num rótulo fechado e onde a Professional Courses are based on fundamental
dignidade é restaurada. Num universo tão principles that respect the individual life stories
diversificado de experiências de vida, saberes of each trainee. Diversity is the basic paradigm
e expectativas, a equipa educativa do CEFC where the potential of each one doesn´t
focaliza a sua metodologia de trabalho na culminate in a closed-end and where individual
necessária diferenciação pedagógica que dignity is restored. In such a diversity of life
os múltiplos grupos em formação exigem, experiences, knowledge and expectations,
promovendo simultaneamente projetos the CEFC educational team focuses its work
comuns, rentabilizando as diferenças e methodology on a pedagogical differentiation
singularidades dos seus participantes. A that the multiple groups in training require,
qualidade da intervenção realizada não se as well as promoting common projects,
pauta por decretos de inclusão e procura capitalizing the differences and singularities of
conhecer, com rigor, o ponto de partida de its participants. The quality of the intervention
cada formando, delineando posteriormente, is not related to statements of inclusion and gets
e em conjunto, um percurso com sentido que to know, with accuracy, the initial position of
promova as competências essenciais para each trainee to build up, together, a meaningful
viver em sociedade. Este artigo pretende ser journey that reinforces the essential skills to
uma viagem pelos caminhos de liberdade live in society. This article aims to be a journey
dos formandos através de diferentes leituras. through the trails of freedom of trainees through
Desde as ferramentas iniciais (ler, escrever e different readings. From the initial tools
contar) até à partilha de reflexões, descrevem- (reading, writing and counting numbers) to
se práticas diárias num percurso comum sharing reflections, daily practices are described
de capacitação de leitores. Formadores e in a common journey of training readers.
formandos recriam ferramentas e organizam Trainers and trainees reinvent strategies and
projetos promotores do sentido de cidadania. organize projects that promote the awareness

ENTRELER 51
Leituras – ferramentas de liberdade: da alfabetização à literacia do pensamento

of citizenship. It is from this intertwining of do CEFC. Na planificação e organização


competences and challenges that paths are being das respostas formativas, assegura que
woven; arts, science and emotions converge to a cada curso tem subjacente um desenho
(re)creation of new life stories. curricular flexível centrado no adulto e
nas suas experiências de vida, pois “os
PALAVRAS-CHAVE adultos aprendem quando são capazes de
adultos, liberdade, leitura, literacia, reorganizar e enriquecer o que já sabem”
diversidade (Dominicé, 1990). Garante também uma
organização a partir do cruzamento entre
KEYWORDS as várias áreas que o compõem, visto que
adults, freedom, reading, literacy, “o domínio de competências específicas de
diversity cada uma delas enriquece e possibilita a
aquisição de outras” (Alonso et al., 2002).
Além destes pontos-chave na organização
INTRODUÇÃO curricular, a equipa do CEFC integra um
conjunto de metodologias fundamentais
O Centro de Educação, Formação e como a educação pela arte e pela cultura,
Certificação da Santa Casa da Misericórdia a planificação participada de atividades
de Lisboa (CEFC-SCML) destina-se a integradoras e a codocência que, em
apoiar e a motivar para a aprendizagem conjunto, permitem alcançar a necessária
ao longo da vida jovens e adultos que diferenciação pedagógica. Desta forma,
se encontram em situação de risco/ garante-se o respeito pelo ritmo e pelos
exclusão social, bem como todos processos de aprendizagem individuais,
aqueles que pretendem aumentar as o acesso a novos níveis de literacia e a
suas qualificações académicas. Para liberdade para viver plenamente em
o efeito, disponibiliza um serviço de sociedade.
acolhimento, orientação e formação Os baixos níveis de literacia
focado em proporcionar uma resposta predominantes nos grupos sociais mais
formativa que permita a promoção desfavorecidos (Ávila, 2008; Rothes,
da literacia e o desenvolvimento das 2019) e a emergência da promoção de
competências escolares, técnicas, pessoais hábitos de leitura junto da população
e sociais necessárias à obtenção de uma adulta norteiam a forma como a equipa
qualificação escolar e profissional. A fim do CEFC planifica a sua intervenção junto
de concretizar os seus objetivos, no polo de dos públicos em formação. Assim, nasceu
adultos, o CEFC atua desde a alfabetização um projeto alargado de promoção de
até ao nível secundário, disponibilizando hábitos de leitura e escrita que pretende
modalidades de formação que englobam promover a aproximação do adulto
cursos de Educação e Formação de Adultos ao livro físico, virtual ou audiolivro,
(EFA), Formações Modulares e outras a obras literárias contemporâneas e
ofertas formativas que não conferem clássicas; aproximar o adulto do prazer
qualificação. de ler e escrever; envolvê-lo na educação
A equipa pedagógica, constituída por literária e na educação para a escrita,
gestores de formação, assistentes sociais, dada a importância de proporcionar
psicólogos e formadores, atua de acordo leituras e escritas variadas que permitam
com as orientações metodológicas para desenvolver a criatividade, a expressão
a Educação e Formação de Adultos e de oral, a reflexão, a autonomia e uma
acordo com o modelo de intervenção cidadania mais competente.

52 ENTRELER
Leituras – ferramentas de liberdade: da alfabetização à literacia do pensamento

Com este artigo, pretende-se efetuar um permitem também uma continuidade e


trajeto pelo CEFC, pelas salas de formação um paralelismo, mais completo, com os
de diferentes módulos, turmas e níveis e momentos de aprendizagem formal da
apresentar as práticas formativas que se leitura e da escrita.
desenvolvem em torno do livro, da leitura As evidências das aprendizagens que
e da escrita e que representam a dialética advêm desta atividade são enriquecidas
entre a didática e a promoção destes no diálogo com a vida quotidiana e
hábitos. refletem-se nas sessões subsequentes. As
leituras são levadas para casa, partilhadas
com as famílias e devolvidas com maior
1. O INÍCIO DA LIBERDADE: profundidade, diferentes argumentos
ALFABETIZAÇÃO E B1 e novas interpretações. Os momentos
seguintes são desenhados a partir das
No percurso Alfabetizar e Integrar e palavras lidas e das palavras criadas.
no curso EFA B1 (4.º ano), o livro e a As experiências de leitura desenvolvidas
leitura marcam presença na Hora do por estes formandos ecoam pelo CEFC
Conto, uma das práticas mais apreciadas através de exposições (V. Figura 1) e sessões
pelos formandos. Neste contexto, a obra de leituras partilhadas com outras turmas.
literária surge pela voz das formadoras, de
contadoras de histórias e mediadoras de
leitura, por vezes, apenas com o objetivo
de promover o prazer de ouvir ler,
outras vezes, como ponto de partida para
exercícios de carácter agregador das várias
áreas que compõem os currículos dos
cursos: Cidadania e Empregabilidade (CE),
Tecnologias da Informação e Comunicação
(TIC), Matemática para a Vida (MV) e
Linguagem e Comunicação (LC).
As obras selecionadas para esta
atividade são, maioritariamente, livros-
Figura 1: Trabalhos realizados pelos formandos de
álbum, porque dispõem de um conjunto Alfabetizar e Integrar e B1
de elementos essenciais para trabalhar
com estes públicos, tais como a imagem
(ilustrações apelativas e complementares); É no desenvolvimento de atividades
o texto simples; as temáticas transversais como estas que reside a forte convicção de
e significativas; e a possibilidade de que é possível realizar sonhos. Os sonhos e
espelhar um espaço que pode ser de todos, esperanças da maior parte destes adultos,
independentemente do ponto de partida de que se materializam em conseguir ler o
cada formando e do seu perfil linguístico. nome de uma rua, conseguir escrever e ler
Foram exploradas várias obras, entre uma lista de supermercado, ler o percurso
elas, os livros Oficina de Corações, de de um autocarro. O analfabetismo é uma
Arturo Abad, e O Coração e a Garrafa, de prisão. Um sentimento que tem de ser
Oliver Jeffers. A leitura e a dinamização de várias vezes desconstruído porque é fácil os
atividades práticas promoveram diálogos formandos sentirem que não são capazes.
e a análise crítica sobre as questões Saber ler e escrever é inegavelmente uma
que o texto suscitou. Estas atividades ferramenta de liberdade.

ENTRELER 53
Leituras – ferramentas de liberdade: da alfabetização à literacia do pensamento

Dar liberdade e autonomia a Letria. Após a leitura e a discussão da obra,


adultos que ainda fazem parte de uma o formando assume-se como personagem
percentagem elevada de analfabetos e constrói a sua própria reflexão escrita a
que herdámos de um tempo longo partir da frase: “Se eu fosse um livro…”.
é um caminho que envolve tempo e Neste ponto introduzem-se outras
persistência. É essencial, acima de tudo, técnicas essenciais ao desenvolvimento
uma equipa com o mesmo foco e uma da criatividade, privilegiando-se as
atitude construtiva, reconhecendo expressões artísticas para a construção
cada indivíduo como singular, de páginas de apresentação. No final,
com a sua história, fragilidades e sintetizam-se as características de todos
comprometimentos. O respeito por cada e estas páginas reúnem-se, criando uma
perfil implica um plano e um trabalho identidade de grupo (V. Figura 2).
individualizado.

2. A EXPRESSÃO DA LIBERDADE –
CURSOS DE NÍVEL B2 E B3

Nos cursos de nível Básico (6.º e 9.º ano),


escolares e tecnológicos, o objetivo de
promover hábitos de leitura e escrita
encontra espaço e tempo nos vários
módulos que compõem os currículos.
No módulo transversal Aprender com
Autonomia (AA), o gestor de formação
assume o papel de mediador. Espera-
se, ao assumir esta função, que crie
sinergias entre as várias componentes
do curso, na perspetiva holística que
caracteriza o modelo pedagógico dos
cursos. E também que promova uma
metodologia participativa de trabalho
que garanta a escuta ativa, a promoção
da confiança e da empatia, a orientação
do processo formativo, a reflexão e a
consciencialização do formando e o
necessário feedback sobre a progressão na
formação (Canelas, 2008).
Figura 2: Exposição das páginas de apresentação no
A gestão/mediação de formação placar “O que estamos a ler”
sai reforçada quando se funde com a
mediação de leitura, pois, em conjunto,
disponibilizam técnicas e recursos que A abordagem da perceção é essencial
promovem o questionamento sistemático, para que os formandos identifiquem e
o pensamento crítico e a reflexão. compreendam a pluralidade de pontos
Como instrumento de dinâmicas de de vista sobre o mesmo assunto. Neste
apresentação recorre-se ao livro-álbum Se sentido, aplicam-se exercícios de análise de
eu fosse um livro, de André Letria e Jorge imagens, seguidos do debate reflexivo sobre

54 ENTRELER
Leituras – ferramentas de liberdade: da alfabetização à literacia do pensamento

a possibilidade de um mesmo elemento constitui uma estratégia de encontro


suscitar diversas interpretações, e introduz- com os livros e os autores. Regularmente,
se a obra Todos eles Viram um Gato, de promovem-se momentos de partilha de
Brendan Wenzel. Este texto abre diversos textos selecionados pelos formandos e
caminhos e permite ao mediador fazer a pelos formadores de forma que cada um
ponte para o tema Aprender a Aprender possa apresentar a sua interpretação do
e conduzir o adulto num processo de mundo e dos textos literários. Estimular
autoconhecimento. A exploração da obra o gosto pela leitura implica respeitar
pode desembocar na construção de uma “o direito de ler não importa o quê”
janela de Johari (Ingham e Loft). Quando o preconizado por Daniel Pennac (1999)
grupo o permite, também se pode recorrer na obra Como um romance. O Círculo da
ao livro Um, nenhum, cem mil, de Luigi Leitura define-se precisamente como
Pirandello, que explora em profundidade o espaço de liberdade para escolher
este tema. a obra, independentemente do valor
A obra Histórias para contar consigo, literário. De liberdade também para a
de Margarida Fonseca Santos e Rita abandonar e trocar, pois é importante
Vilela, e a obra de Jorge Bucay Deixa-me que o formando constate e sinta que é
que te conte são instrumentos valiosos protagonista da formação e que as suas
na mediação de conflitos pessoais e expetativas e interesses são tidos em
interpessoais e na orientação da gestão conta. O papel do formador consiste
de emoções. Contribuem para refletir e em disponibilizar referências literárias
reforçar a autoconfiança, identificar as (socorrendo-se de instrumentos físicos
resistências à aprendizagem e ultrapassá- ou digitais, como listas de livros ou o
las, compreender as necessidades que catálogo do Plano Nacional de Leitura)
cada pessoa tem de se transformar a cada que inquietem o pensamento, que
momento da sua vida. Estes livros são desassosseguem e façam com que o
muito requisitados pelos formandos para formando chegue ao Círculo da Leitura
leitura autónoma. com mais perguntas do que respostas.
As obras referidas, sempre que se A troca de experiências interpretativas,
justifica, são trabalhadas a partir da também interdisciplinares, estimulam a
perspetiva de outras áreas curriculares, aprendizagem e o gosto pela leitura.
como, por exemplo, LC. Neste módulo, Outra área curricular rica em atividades
a presença do livro, da leitura e da em torno do livro é a de CE. Esta assenta
escrita é obviamente incontornável. O em referenciais organizados em torno
trabalho em torno da compreensão leitora de disciplinas com impacto na resolução
operacionaliza-se a partir de exercícios dos principais problemas da experiência
como: antecipar o conteúdo da obra humana. Trabalhar temas de Política e
através do título e/ou imagens, pesquisar Economia, Saúde ou Ambiente exige uma
o significado de palavras para enriquecer fundamentação científica, por forma a
o vocabulário; durante a leitura, analisar promover o efetivo desenvolvimento de
as categorias da narrativa, resumir, redigir competências e, consequentemente, levar
textos de opinião, associar imagens a a uma mudança de atitudes. Nesta área,
texto, pesquisar a biografia dos autores, a leitura e a escrita contribuem para o
dramatizar leituras em sala, selecionando desenvolvimento da literacia científica,
excertos importantes, entre outros. que permite esbater mitos e preconceitos
A promoção de hábitos de leitura e desenvolver a capacidade de agir em
alicerça-se no Círculo da Leitura, que situações dos diferentes contextos de

ENTRELER 55
Leituras – ferramentas de liberdade: da alfabetização à literacia do pensamento

vida. A análise de livros científicos entreajudam para resolver problemas em


e publicações igualmente credíveis e conjunto» (Rodrigues, 2009). No âmbito
rigorosas confere o devido enquadramento das comemorações do Ano Europeu do
histórico e social aos temas explorados Património Cultural, a equipa pedagó-
com os formandos. Em termos práticos, gica do curso EFA B3 de Manicura/Pe-
por exemplo, a compreensão da Roda dos dicura, em conjunto com os formandos,
Alimentos ou da Dieta Mediterrânica e planificou uma atividade designada “O
o domínio de noções básicas de Biologia, Património nas Nossas Mãos”, cujo desa-
Física e Química tornam possível uma fio final consistia em apresentar o tema
melhor leitura dos rótulos dos alimentos, numa exposição que incluísse trabalhos de
provocando a reflexão, a mudança de nail art inspirados nos elementos gráficos
mentalidades e comportamentos. do passado histórico e artístico do nosso
O livro recentemente editado Gosto, país (V. Figura 3). Para a concretização
Logo Existo – redes sociais, jornalismo e um deste projeto, nos diferentes módulos (de
estranho vírus chamado fake news, de Isabel formação de base e tecnológicos), os for-
Meira e Bernardo P. Carvalho, mostra mandos foram impelidos a pesquisar, a
que a preocupação com a literacia e a ler e a tratar dados de temas do âmbito
educação para os media é uma emergência da História da Arte, da Matemática e da
nas sociedades atuais. No âmbito dos Sociologia. Complementarmente, foram
temas abordados em cidadania, esta organizadas visitas à Igreja e Museu de São
obra tem-se revelado um excelente Roque, à Coleção CCB – O Modernismo
instrumento de trabalho, pois confronta o (1900-1960), e um passeio para recolha
formando com as suas práticas, provoca o fotográfica pelas ruas da Baixa Pombalina,
questionamento sobre a realidade digital e do Campo das Cebolas ao Largo da Miseri-
potencia o espírito crítico. córdia, para descobrir na Lisboa do século
Nos cursos EFA, «as metodologias de XXI o passado multicultural. Neste proces-
formação desenvolvem-se numa lógica so, as práticas de leitura (interpretação e
de “atividades integradoras”, que convo- compreensão) assumem um papel predo-
cam competências e saberes de múltiplas minante pelo seu carácter instrumental e
dimensões, que se interseccionam (sic) e transversal a todas as áreas curriculares.

Figura 3: Exposição dos trabalhos de nail art – “O Património nas Nossas Mãos”

56 ENTRELER
Leituras – ferramentas de liberdade: da alfabetização à literacia do pensamento

3. A LIBERDADE DE REESCREVER A A outra prática consiste na apresentação


SUA HISTÓRIA – NÍVEL SECUNDÁRIO regular de livros significativos para o
formador, com temáticas do interesse dos
No nível secundário, a escrita, a leitura e formandos, ou seja, procura-se apresentar
a literatura assumem um papel central na o livro partindo da relação afetiva que
gestão dos referenciais, principalmente se estabeleceu com o mesmo enquanto
de Cultura, Língua e Comunicação objeto e texto. Sempre que os formandos
(CLC). O trabalho de diagnóstico sobre se mostram interessados no livro
competências de leitura e escrita é o ponto apresentado, este é disponibilizado para
de partida para a planificação partilhada leitura autónoma. Posteriormente, são
das atividades a desenvolver, quer as estes leitores que dinamizam sessões de
restritas ao módulo quer as atividades motivação para o grupo.
integradoras. Desta forma, introduz-se Nas sessões de CLC, além do prazer da
uma dinâmica de entrevistas em pares leitura, também se procura estimular o
sustentada num guião de questões pré- prazer da escrita, desmitificando a ideia
definidas que, além da apresentação de que esta é espontânea e automática
ao grande grupo, através de uma breve quando, como refere Irene Fonseca (1994),
incursão pelas experiências de vida, “todos conhecemos por experiência
pretende recolher dados sobre os hábitos própria (e mesmo os mais treinados)
de leitura e escrita e iniciar um processo quanto é difícil escrever”. O ponto de
de reflexão sobre os bloqueios, as partida é um exercício colaborativo
fragilidades e também as potencialidades de composição textual, que conta com
que cada um apresenta. Um ponto a participação de todos (inclusive do
de partida para aprender a pensar e, formador enquanto modelo). Esta
posteriormente, atingir a metacognição oficina, organizada de acordo com as
necessária no que concerne à compreensão fases do processo de escrita, planificação,
e à dimensão metalinguística (Azevedo, textualização e revisão (Azevedo, 2000),
2000). As informações recolhidas e pretende propiciar o ambiente adequado
debatidas são essenciais para o início para que o formando se sinta confiante
do processo de sensibilização para os na realização do exercício e para que haja
benefícios da leitura e da escrita. troca de experiências, de formas de pensar
Com o intuito de promover a relação e de questionamentos.
dos formandos com a leitura e permitir A partir dos primeiros exercícios
o contacto com diferentes obras, criam- textuais, desenvolve-se uma dinâmica
se momentos que têm como finalidade que consiste em preparar um diário
apenas a fruição, o ler por prazer. Assim, multimodal, inspirado nos diários gráficos
o livro insinua-se na sala através de duas de Eduardo Salavisa (V. Figura 4). A
práticas. A primeira consiste na leitura atividade decorre em articulação com
de pequenos textos literários em voz alta os módulos tecnológicos de animação e
por parte do formador no início de cada expressão. Neste contexto, introduzem-se
sessão, atividade que paulatinamente se as técnicas de colagem e os movimentos
vai alargando aos formandos; quando artísticos do início do século XX, com
estes se sentem confiantes, promovem- referência a Pablo Picasso, Georges Braque
se práticas de leitura em voz alta a duas e Matisse. O diário reveste-se de liberdade
vozes, em grupo, cantadas, sussurradas, de escrita e ilustração sobre as temáticas
gritadas, para que possam exercitar a do curso e estabelece um diálogo com
entoação, o ritmo, a polifonia dos textos. as leituras efetuadas e a prática dos

ENTRELER 57
Leituras – ferramentas de liberdade: da alfabetização à literacia do pensamento

diferentes géneros textuais. Consiste numa o formando da sua zona de conforto e


viagem pelo curso que, no final, se revela estimulando-o a apresentar soluções
um documento tradutor da evolução do inovadoras para as situações-problema
processo de escrita de cada um. com que é confrontado. Recentemente,
no âmbito de uma atividade integradora,
os formandos foram desafiados a
recontar e recriar as suas experiências
formativas desenvolvidas numa
visita à exposição “O Mar É a Nossa
Terra”, numa história infantojuvenil,
convocando os conhecimentos culturais,
literários e artísticos para interpretar as
aprendizagens realizadas (V. Figura 5). De
facto, através destes exercícios, o reforço
das competências de literacia alia-se ao
desenvolvimento de outras competências
essenciais, como a criatividade, o
pensamento crítico e a resolução
de problemas, contribuindo para a
preparação da integração dos formandos
no mercado de trabalho e na sociedade.

Figura 4: Exemplos de Diários

Em regime de codocência, surgem as


oficinas de escrita criativa, orientadas
por escritoras, mediadoras de leitura e
contadoras de histórias referenciadas
pela equipa do PNL2027. Nestas
sessões colocam-se diversos desafios,
Figura 5: Livros construídos pelas formandas do
sempre em consonância com os curso de Técnico(a) de Ação Educativa a partir da
interesses dos formandos e os temas interpretação da exposição “O Mar É a Nossa Terra”
em desenvolvimento. As mediadoras/
escritoras promovem a escrita de
diferentes géneros textuais com recurso No curso de Técnico(a) de Ação
a diversas técnicas e criam o ambiente Educativa (TAE), as histórias
propício para gerar uma relação afetiva infantojuvenis constituem o tronco
com a escrita. Os textos produzidos são comum de várias áreas de competência-
sempre partilhados, lidos em voz alta. A chave, e o inglês alia-se a este propósito,
inclusão destas oficinas nos currículos para capacitar indivíduos em ferramentas
dos cursos reforça e inova as estratégias linguísticas, abrindo portas à integração
pedagógicas de promoção de escrita já em diferentes contextos. A expressão
existentes, contribuindo para retirar artística, como metodologia subjacente

58 ENTRELER
Leituras – ferramentas de liberdade: da alfabetização à literacia do pensamento

ao ensino da língua inglesa, estimula a público. Pensar mais profundamente


aprendizagem, potenciando as diversas como sentimos cada livro vai capacitando
formas de comunicação. Destaca-se, como estes formandos para serem leitores
exemplo, a criação de uma short story a com espírito crítico, capazes de fazerem
partir de pinturas em acrílico. A atividade escolhas e de as fundamentarem. No
foi desencadeada a partir do visionamento entanto, esta consciência crítica tem a
do filme Big Eyes de Tim Burton e, sua génese também na “experiência de
posteriormente, da leitura da biografia da vida e de relação com os outros” (Ornelas,
pintora americana Margaret Keane. Os 2008) e constitui um caminho que vão
formandos exprimiram as suas emoções desbravando, usando as ferramentas
em telas, organizaram uma sequência adquiridas ao longo do seu percurso
e criaram uma narrativa em inglês e de formação e que são fruto não só do
português. O trabalho foi apresentado entrecruzar das diferentes áreas de
a toda a comunidade do CEFC, através conteúdo curricular, mas também de
da organização de uma exposição diferentes interações pessoais.
das pinturas e dos textos com vários O exercício da leitura provoca os
“adereços” (folhas secas, areia, conchas inevitáveis encontros com o passado e
e sons) que ajudaram a transportar os com as memórias da infância. Ao longo
visitantes numa viagem através dos do curso, os módulos tecnológicos vão
sentidos (V. Figura 6). reforçando a importância de cada fase

Figura 6: Exposição Once upon a time

Enquanto profissionais, os técnicos de de desenvolvimento das crianças e da


ação educativa têm o compromisso de importância do papel do adulto neste
serem também mediadores da leitura, processo de crescimento e consolidação de
contribuindo a formação para a sua competências. E mais uma vez, também
futura prática pedagógica. Assim, criam- enquanto educadores, o passado volta,
se oportunidades de contacto com os lembrando imperfeições, inseguranças,
livros, revelando diferentes autores e mas também superação e conquistas.
formas de escrita, valorizando cada passo São muitas vezes as histórias com que se
neste percurso, também, de formação cruzam que lhes permitem reescreverem
pessoal. E para que futuramente possam a sua própria história, entenderem o seu
apresentar às crianças livros adequados a percurso e, corajosamente, assumirem
cada faixa etária e com qualidade, importa escrever novos capítulos da sua vida.
confrontá-los com exemplos menos bons, Contar histórias, mesmo em
nos quais se escondem mensagens pouco contexto de sala, possibilita treinar o
éticas ou onde o texto e a imagem não manuseamento do livro, corrigir a dicção,
se articulam ou, ainda, onde o conteúdo desenvolver a consciência fonológica e
e a forma não convergem para o mesmo aperfeiçoar a comunicação com os outros.

ENTRELER 59
Leituras – ferramentas de liberdade: da alfabetização à literacia do pensamento

A dinâmica vocal torna a história mais


viva e a capacidade de transmitir emoções
cresce à medida que a autoconfiança
lhes reforça o gosto de fazer viajar os
seus ouvintes nesta vivência comum de
partilhar leituras.

4. A LIBERDADE DE PARTILHAR –
PROJETO EXPERIÊNCIAS DE LEITURA
E ESCRITA

As atividades apresentadas são pequenos


retratos do trabalho que se realiza
no CEFC em torno da didática e da
promoção de hábitos de leitura e escrita
que integram um trabalho maior. O
projeto Experiências de Leitura e Escrita
surge como um elemento agregador
de toda a comunidade educativa,
convidando formandos e colaboradores
Figura 7: Árvore da Leitura
a encontrarem-se como escritores
e leitores e a descobrirem o prazer
proporcionado por estas atividades. Neste No atual contexto pandémico,
sentido, a utilização do livro-álbum, um este projeto ficou condicionado pela
instrumento transversal de respostas impossibilidade de interagirmos entre
múltiplas, constitui uma estratégia salas. Focados na urgência de dar
pedagógica adequada a diferentes turmas, continuidade a este trabalho, recriámos
desde a alfabetização ao nível secundário, novas formas de partilha, reforçando
bem como a todos os colaboradores. a ideia de que haverá sempre Leituras
Cada adulto, de acordo com o seu que nos Ligam. Este foi o mote com
conhecimento do mundo, tem a liberdade que “viajámos” pelo CEFC, de sala em
de interpretar e enriquecer a leitura com sala, levando, num saco de pano (com o
os seus contributos. logótipo e a frase da nossa convicção), o
Como foi descrito, cada turma integra livro Eu Espero de Davide Cali e Serge
um conjunto de práticas regulares em Bloch, que aborda os diferentes momentos
torno do livro e da escrita. Pretende- e emoções que se experimentam ao
se que cada uma parta do seu projeto e longo da vida. O valor metafórico do “fio
se encontre com os projetos de outras da vida” presente no livro mobilizou
turmas, numa interação integrada os formandos a manifestarem os seus
em torno da literatura e da escrita. Os desejos e expectativas, escrevendo o que
formandos são convidados a partilhar os cada um espera e inspirando também
seus trabalhos a partir de atividades como a participação de toda a comunidade
O que estamos a ler, Árvore da Leitura educativa (V. Figura 8). A vivência desta
(V. Figura 7), exposições temáticas e dinâmica causou impacto na comunicação
comemoração de dias alusivos à leitura e interna da comunidade, onde cada um se
à escrita. sentiu parte integrante e significativa e, tal

60 ENTRELER
Leituras – ferramentas de liberdade: da alfabetização à literacia do pensamento

como refere Ornelas, (2008), desenvolveu explorarem novos livros e reconhecem


um maior sentimento de pertença. A ter influência na mobilização de práticas
mobilização de formandos, formadores, de leitura junto de familiares e amigos.
técnicos e demais colaboradores Liderar dinâmicas de motivação para
constituiu um processo colaborativo a leitura implica transmitir o gosto de
em que se reforçaram sentimentos de folhear livros e de descobrir as palavras
identidade coletiva e, simultaneamente, que se escondem entre as diversas
respeito e compreensão pela diversidade. ilustrações, mas centra-se sobretudo no
modelo de leitor que somos. Também em
relação à escrita se observa uma evolução
na confiança com que produzem os seus
textos, revelando uma maior organização
de pensamento através da expressão
de aprendizagens, ideias, sentimentos
e reflexões sobre as experiências
vividas. Este é um percurso conjunto de
formadores e formandos, tal como diz
Margarida Fonseca Santos num dos seus
contos, “fazendo da esperança de cada um
a nossa prioridade”.
A elevação dos níveis de literacia
contribui para o desenvolvimento da
consciência crítica dos formandos, o
que lhes permite analisar o mundo,
constatar a existência de várias escolhas
possíveis e redefinir o futuro de acordo
Figura 8: Materiais da dinâmica “Leituras que nos
Ligam”
com as suas preferências. Considera-se
que as estratégias participativas adotadas
pelos formadores contribuem para o
processo de empowerment através do qual
CONCLUSÃO os formandos assumem o controlo das
suas próprias vidas (Rappaport,1987).
Este percurso através das diferentes Este conceito relaciona competências
práticas desenvolvidas no CEFC devolve individuais e sociais, permitindo
o eco das mudanças operadas nas estabelecer objetivos e definir as
vidas dos formandos pela observação estratégias para os alcançar, numa
de comportamentos que evidenciam dinâmica de liberdade.
a aquisição e o desenvolvimento de O processo de escrita deste artigo
competências de leitura e escrita. revelou-se um importante exercício
Observa-se a crescente habilidade com de reflexão e análise para a equipa
que manuseiam o livro, mostrando-o, pedagógica, abrindo caminho à
contando histórias e desencadeando reformulação permanente que a formação
emoções, ao mesmo tempo que de adultos exige. Esta estratégia de
reconhecem os autores que lhes foram reflexão-em-ação revelou-se fundamental
apresentados e relacionam obras e para criar um sistema de comunicação
diferentes formas literárias. Os formandos mais aberto, facilitando a partilha e
revelam um interesse emergente em rentabilizando os recursos específicos

ENTRELER 61
Leituras – ferramentas de liberdade: da alfabetização à literacia do pensamento

de cada participante. As vantagens NOTA CURRICULAR DOS AUTORES


desta metodologia relacionam-se com a
possibilidade de implementar mudanças Anabela de Sousa Azevedo é licenciada
no contexto real – que é, simultaneamente, em Línguas e Literaturas Modernas pela
o nosso objeto de estudo – e com o Faculdade de Letras da Universidade
processo de melhoria contínua. do Porto, pós-graduada em Ensino da
Língua e Literatura Portuguesas – UTAD,
Mestre em Ciências da Educação –
REFERÊNCIAS Área de Especialização – Formação de
Adultos pela Faculdade de Psicologia e
Alonso, L., Imaginário, L., Magalhães, Ciências da Educação da Universidade
J., Barros, G., Castro, J.M., Osório, de Lisboa. Possui experiência profissional
A., Sequeira, F. (2002). Educação e como docente de Português de ensino
formação de adultos: Referencial de básico e secundário. É funcionária da
competências-chave (2.ª edição). ANEFA. Santa Casa da Misericórdia de Lisboa
Ávila, P. (2009). A Literacia dos adultos: desde 2005. Desempenha funções
Competências-chave na sociedade do de formadora de Cultura, Língua e
conhecimento. Celta. Comunicação, de gestora/mediadora
Azevedo, F. (2000). Ensinar e aprender a de formação e dinamiza atividades do
escrever através e para além do erro. projeto Experiências de Leitura e Escrita
Porto Editora. no CEFC.
Canelas, A.M. (2008) Cursos de educação e Carla Flores Clara, licenciada em
formação de nível básico. Aprender com Desenvolvimento Comunitário pelo
Autonomia (2.ª edição). Agência Nacional ISPA – Instituto Universitário de Ciências
para a Qualificação, I.P. Psicológicas, Sociais e da Vida. Formada
Dominicé, P. (1990). L’histoire de vie comme pela Escola Superior de Educadores de
processus de formation. L’Harmattan. Infância Maria Ulrich, desenvolveu a
Fonseca, I. (1994). Gramática e pragmática. sua experiência profissional enquanto
Estudos de linguística geral e de Educadora de Infância em diversos
linguística aplicada ao ensino do estabelecimentos da Santa Casa
português. Porto Editora. da Misericórdia de Lisboa, e como
Ornelas, J. (2008). Psicologia comunitária. coordenadora pedagógica no Centro de
Fim de Século. promoção social da PRODAC. Atualmente
Pennac, D. (1999). Como um romance (11.ª é formadora no CEFC, onde ministra
edição). Edições Asa. módulos tecnológicos do curso de
Rodrigues, S.P. (2009). Guia de Técnico de Ação Educativa e colabora no
operacionalização de cursos de projeto Experiências de Leitura e Escrita.
educação e formação de adultos. Carlos Bruno Alves é licenciado em
Agência Nacional para a Qualificação, I.P. Filosofia e pós-graduado no Ramo de
Rappaport, J. (1987). Terms of Formação Educacional pela Faculdade
empowerment/Exemplars of prevention: de Ciências Sociais e Humanas da
toward a theory of community Psychology. Universidade Nova de Lisboa; pós-
American Journal of Community graduado em Promoção da Ação Social e
Psychology: 15 (2), pp.121-148. Saúde pela Escola Superior de Saúde de
Rothes, L., Moreira, A.I., Queirós, J. (2019). Alcoitão. Possui experiência profissional
Plano nacional de literacia de adultos. como docente de Filosofia, Psicologia e
Relatório de pesquisa. inED-ESSE-P.Porto. Área de Integração no ensino secundário.

62 ENTRELER
Leituras – ferramentas de liberdade: da alfabetização à literacia do pensamento

É Técnico Superior na Santa Casa da Sónia Jerónimo Camões Tavares é


Misericórdia de Lisboa desde 2008, onde licenciada em Línguas e Literaturas
desempenha funções de formador de Modernas, variante de Estudos
Cidadania e Empregabilidade, Cidadania e Portugueses e Ingleses, com
Profissionalidade, Expressões Artísticas, profissionalização no ramo Educacional –
História do Design e do Mobiliário. Possui Universidade do Algarve – Faculdade de
formação e experiência como músico, Ciências Sociais e Humanas. Trabalhou
bem como em Ilustração e Design como professora do 3.º ciclo do ensino
Gráfico. básico/secundário e lecionou português
Fátima Cristina Teixeira Mota é a estrangeiros. É Formadora no Centro
licenciada em Ensino de Português, pela de Educação, Formação e Certificação da
Universidade do Minho, em Braga. Possui Santa Casa da Misericórdia de Lisboa nos
experiência profissional como gestora/ cursos EFA, bem como em Processos de
mediadora sociopessoal de formação na Reconhecimento, Validação e Certificação
Pastoral dos Ciganos; como formadora de Competências. Possui o Curso
de Leitura e Escrita, Linguagem e Avançado de Aplicações Pedagógicas
Comunicação e Cultura, Língua e e Institucionais da Arte-Terapia (Nível
Comunicação em cursos de Educação I), integrando técnicas artísticas no
e Formação de Adultos, bem como em processo de ensino-aprendizagem
Processos de Reconhecimento, Validação (pedagogia através da arte).
e Certificação de Competências.
Atualmente, é professora do 3.º ciclo
do ensino básico e secundário no
Agrupamento de Escolas de Benfica
e formadora externa no Centro de
Educação, Formação e Certificação da
Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Maria Joana Soares de Almeida é
licenciada em Educação Básica –
Professora de 1.º ciclo – pela Escola
Superior de Educação de Setúbal; pós-
graduada em Necessidades Educativas
Especiais no domínio Cognitivo e Motor
pelo ISCE; pós-graduada em Técnicas
e Metodologias Ativas e Expressivas
– Arte Educadora – ISLA; Mestre em
Desenvolvimento e Perturbações da
Linguagem pela Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas e Escola Superior
de Saúde de Setúbal. Atualmente
desempenha funções como Professora
de Educação Especial e Formadora na
área de Leitura e Escrita no Curso de
Alfabetização e nos Módulos sobre as
Necessidades Educativas Especiais no
Curso Técnicas de Ação Educativa no
CEFC.

ENTRELER 63
ARTIGOS

PRÁTICAS
Projeto Metamorfoses: um desafio para aprender
ciência, tecnologia e literatura
Metamorphosis project: a challenge to learn Science,
Technology and Literature
João Dias e Adelina Machado

RESUMO ABSTRACT
‘Metamorfoses’ é um projeto-piloto que tem o Metamorphoses is a pilot project created with
objetivo de proporcionar aos jovens do ensino the purpose to provide secondary students with
secundário uma experiência educativa envol- an educational experience involving science and
vendo a ciência e as humanidades de forma humanities in an integrated manner. Students are
integrada. Os estudantes são desafiados a cons- challenged to build a bionic prototype that has
truir um protótipo biónico que seja utilizado to be used by one of the protagonists of a science
por um dos protagonistas de um conto de ficção fiction story of their own. The main protagonist
científica da sua autoria. O protagonista pode may even be the bionic prototype itself.
inclusivamente ser o próprio protótipo biónico. This project was launched in 2019 by
Este projeto foi lançado em 2019 pela Ciência Viva through ESERO Portugal, an
Ciência Viva através do ESERO Portugal, educational program of the European Space
um programa educativo da Agência Espacial Agency and Ciência Viva, and by the National
Europeia e da Ciência Viva, e pelo Plano Reading Plan 2017-2027 (PNL2027), in
Nacional de Leitura 2017-2027 (PNL2027), partnership with the Science Communication
em parceria com o Gabinete de Comunicação Office of the Champalimaud Foundation.
de Ciência da Fundação Champalimaud. Metamorphoses is an innovative initiative in
‘Metamorfoses’ é uma iniciativa inovadora no the Portuguese educational landscape, in that it
panorama educativo português, na medida em associates science and technology with reading
que associa ciência e tecnologia com leitura e and writing, promoting interdisciplinarity and
escrita, promovendo a interdisciplinaridade e scientific literacy in schools.
a literacia científica nas escolas. The project debuted in the 2019-20 school
O projeto estreou-se no ano letivo de year and 5 of the 10 finalist teams, despite the
2019/2020 e 5 das 10 equipas finalistas, difficulties imposed by the pandemic, managed
apesar das dificuldades impostas pela to finish their work. Their bionic prototypes
pandemia, conseguiram terminar os seus and science fiction tales are shown here, on the
trabalhos, disponíveis na página oficial do official page of PNL2027. The second edition
PNL2027. A segunda edição do projeto, of the project, referring to the 2020/2021
referente ao ano letivo 2020/2021 teve a school year, had the initial participation of 11
participação inicial de 11 equipas. Os 8 teams. The 8 finalist projects can be found here,
projetos finalistas podem ser consultados on the official page of PNL2027.
igualmente na página oficial do PNL2027. In this article we will present the
Neste artigo apresentaremos os pressupostos assumptions on which this project is based
em que assenta o projeto e a forma como on and how the students and teachers have
alunos e professores têm correspondido a este responded to this challenge, including some
desafio, incluindo alguns depoimentos de testimonials from the participants in the first
participantes nas primeiras edições. two editions.

64 ENTRELER
Projeto Metamorfoses: um desafio para aprender ciência, tecnologia e literatura

PALAVRAS-CHAVE específica, que visa proporcionar formação


metamorfoses, projeto escolar, literacia científica consistente no domínio do
científica, literatura, ciência e tecnologia respetivo curso.
Apesar de os cursos de Ciências e
KEYWORDS Tecnologias e de Línguas e Humanidades
metamorphosis, school project, scientific terem um tronco comum, grande parte
literacy, literature, science and technology dos alunos não valorizam devidamente
as disciplinas que não fazem parte da
sua formação específica. O caso típico
INTRODUÇÃO acontece com a disciplina de Matemática
B nos cursos de Línguas e Humanidades,
O projeto ‘Metamorfoses’ nasceu da em que muitas vezes esta disciplina é
necessidade de lançar um desafio desvalorizada em relação a outras, como,
inovador aos estudantes portugueses, por exemplo, o Português. Já nos cursos
aliando a Ciência e a Tecnologia à de Ciências e Tecnologias, o Português e
Literatura de uma forma aliciante. A a Filosofia são consideradas disciplinas
importância de criar uma iniciativa ‘menores’, embora sejam disciplinas
deste género foi identificada pelo fundamentais na construção do discurso e
Plano Nacional de Leitura 2017-2027 do pensamento.
(PNL2027), que desafiou a Ciência Viva a Felizmente, a recente homologação do
imaginar um projeto educativo com estas Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade
características. A conceção do projeto Obrigatória (Despacho n.º 6478/2017)
teve por base uma análise cuidada do parece indicar que se está deliberadamente
panorama atual do sistema educativo a trilhar um caminho que permite
português, das metodologias de ensino e conferir ao ensino secundário uma
das áreas curriculares das Humanidades e identidade que poderá ser reconhecida
da Ciência e Tecnologia. Seguem-se umas socialmente como o fim da escolaridade
breves linhas sobre os pressupostos de base formal, permitindo esbater as divisórias
na criação do projeto. organizacionais e pedagógicas das vias que
o constituem. O documento estabelece
“um perfil que todos possam partilhar
PRESSUPOSTOS e que incentive e cultive a qualidade”
(Martins, 2017, p. 1)[2], sendo uma
A. Sistema educativo português referência essencial na operacionalização
Os cursos científico-humanísticos[1] do projeto de Autonomia e Flexibilidade
constituem uma oferta educativa Curricular (Despacho n.º 5908/2017). A
vocacionada para o prosseguimento sua implementação foi iniciada no ano
de estudos de nível superior e estão letivo de 2017/2018, e tem gerado grandes
divididos em: Ciências e Tecnologias; expectativas de alunos, professores e
Ciências Socioeconómicas; Línguas e famílias.
Humanidades; Artes Visuais. Cada um
destes cursos encontra-se, por sua vez, B. Humanidades ou Ciência e
dividido em duas partes: componente de Tecnologia?
formação geral, comum aos quatro cursos, Se refletirmos sobre o mundo atual
que visa contribuir para a construção e procurarmos soluções para os
da identidade pessoal, social e cultural seus problemas, temos de mudar a
dos jovens; componente de formação nossa maneira de pensar e passar de

ENTRELER 65
Projeto Metamorfoses: um desafio para aprender ciência, tecnologia e literatura

um paradigma simples (mecânico, disciplinas permitem alargar o campo


reducionista e linear) para um paradigma de investigação e a interligação entre
mais complexo (dinâmico, aberto e as Humanidades e as Ciências. Esse
interdisciplinar). alargamento verifica-se no caso das áreas
A Ciência tem revelado múltiplos das Humanidades Digitais (envolvendo
sucessos nas últimas décadas, as Ciências Sociais e Humanas, as
especialmente nas áreas que têm um Ciências de Computação e as Ciências
impacto económico mais imediato, o que da Informação e Documentação), as
é particularmente relevante na conjuntura Ciências Cognitivas, as Neurociências e as
recente de crises económicas e financeiras. Biotecnologias.
As Humanidades não passaram, A ficção científica, por exemplo,
no entanto, a ser menos importantes, pode ser trazida para o contexto mais
trazendo-nos a perspetiva da história, alargado da educação para convidar
da cultura, das artes e permitindo a uma reflexão sobre a sociedade e
compreender melhor e agir sobre a possíveis futuros imagináveis, com as
sociedade em que vivemos. respetivas implicações sociais e éticas.
Da mesma forma, a ficção científica pode
C. Sobre a Educação ser abordada nas atividades educativas
A Educação tem como um dos seus das Ciências com um sentido motivador,
objetivos principais a contribuição para a mas também como uma forma de
construção da identidade pessoal, social convidar a uma reflexão sobre questões
e cultural dos jovens. As Humanidades significativas acerca da sociedade e
são a base imprescindível para a do seu futuro. Ainda a propósito do
sua formação integral, a par de uma papel da ficção científica na educação
preparação científica que contribua para científica, citamos John Brunner (1971)[4]
um pensamento científico crítico. quando afirma que “A ficção científica
Entre os teóricos que refletiram deve ser claramente entendida, não é
sobre este tema, destaca-se Bertrand ficção sobre a ciência. É sobre pessoas,
Russell (1872/1970), que desenvolveu como toda a ficção – embora, neste caso
uma conceção humanista da educação, específico, [os protagonistas] possam
segundo a qual esta envolve um conjunto muito bem não ser humanos –, que se
complexo de capacidades, talentos e beneficiam ou são afetadas pelo impacto
atitudes que, em conjunto, delineiam uma da mudança tecnológica.” (Brunner,
educação que tem aspetos intelectuais e 1971, p. 389).
morais. No seu volume Educação para um
mundo difícil (1961)[3], Bertrand Russell
chama-nos a atenção para o facto de um O NASCIMENTO DE ‘METAMORFOSES’
ensino exclusivamente científico ser
incompleto, como se nos quisesse alertar No início de 2019, a Ciência Viva e
para a necessidade de complementarmos o PNL2027 criaram um projeto para
o ensino das Ciências com o estímulo promover a interdisciplinaridade entre
para a procura da sabedoria – “aquele as áreas das Humanidades e da Ciência
conhecimento que, caso possa ser e Tecnologia nas escolas. Foi criado um
transmitido, pode apenas sê-lo através do desafio, dirigido aos alunos e professores
lado cultural da educação”. do ensino secundário, que consistiu na
De facto, as combinações entre as criação de um protótipo biónico que
metodologias de ensino de diferentes servisse de pretexto para a escrita de um

66 ENTRELER
Projeto Metamorfoses: um desafio para aprender ciência, tecnologia e literatura

conto de ficção científica. O protagonista humanística. Por fim, a divulgação e


da história seria o próprio membro promoção do projeto pelas escolas, a
biónico ou o ser que o utiliza. A ideia interligação das áreas curriculares e toda
da substituição de parte do corpo de um a logística envolvida na organização do
ser vivo por um componente eletrónico projeto ficaram a cargo do ESERO PT.
pressupõe que este tenha sido sujeito a
uma transformação, ou a uma mudança
de forma. A combinação invulgar do AS DUAS PRIMEIRAS EDIÇÕES
Português e da Literatura com a Ciência e
a Tecnologia, do ponto de vista curricular, Em ambas as edições as equipas eram
implica também a adaptação a uma formadas por grupos de 4 a 6 alunos,
nova realidade. Foram estas razões que cujo trabalho foi supervisionado por
nos fizeram dar a este projeto o nome dois docentes, das áreas de Ciência
‘Metamorfoses’. e Tecnologia e de Humanidades. Os
Na Ciência Viva, o projeto foi trabalhos dos projetos finalistas foram
integrado no plano de atividades do apresentados sob a forma de um vídeo e
ESERO Portugal (ESERO PT), programa de um documento de texto com o conto
educativo que resulta de uma parceria final. Ambos foram avaliados por um
com a Agência Espacial Europeia (ESA). júri constituído por elementos indicados
Este programa utiliza o Espaço como pelo PNL2027, pelo Ciência Viva e pela
contexto inspirador para a aprendizagem Fundação Champalimaud (FC). Foram
das Ciências, das Tecnologias e da escolhidos 10 vencedores, de acordo com
Matemática, para promover o interesse os seguintes critérios:
dos alunos nestas disciplinas e os • Execução técnica do objeto biónico
incentivar a seguir carreiras científicas e (40%) – Funcionalidades e execução;
de engenharia. No nosso país, o ESERO • Valor literário do conto (40%) – Correta
PT é um ponto de referência para os utilização da língua portuguesa e
professores do ensino básico e secundário, originalidade do texto;
ao facilitar a abordagem de temas • Produto final (20%) – Harmonia e
do Espaço na sala de aula, através da unidade do conjunto (objeto e texto).
disponibilização de recursos educativos, As equipas foram incentivadas desde o
ações e cursos de formação. início a procurarem parcerias com outras
O ESERO PT/Ciência Viva tornou-se, instituições em busca de patrocínios,
assim, no parceiro ideal do PNL2027 consultoria científica ou apoio para a
para assumir a organização conjunta do aquisição de materiais.
projeto ‘Metamorfoses’. O Gabinete de
Comunicação de Ciência da Fundação Edição-piloto em 2019/2020
Champalimaud foi posteriormente A edição-piloto do projeto foi coordenada
convidado a estabelecer uma parceria pelo ESERO PT, por intermédio
para a realização deste desafio. Os da professora Adelina Machado,
investigadores da Fundação assumiram Coordenadora Educativa, e por Ana
o papel de consultores, formadores e júri Alves, Assistente de Projetos; por Cristina
relativamente à componente científico- Sarmento, responsável pelo projeto de
tecnológica do projeto. Por sua vez, o leitura Ler + Ciência, do PNL2027; e
PNL2027 ficou encarregue de divulgar, por Catarina Ramos, Coordenadora da
apoiar, formar e avaliar o trabalho das Assessoria de Comunicação Científica da
equipas participantes na sua componente Fundação Champalimaud (FC).

ENTRELER 67
Projeto Metamorfoses: um desafio para aprender ciência, tecnologia e literatura

Foi criado um workshop para os Segunda edição em 2020/2021


professores, em regime presencial, com Na segunda edição, concorreram 11
a duração de um dia. O workshop era de equipas. O workshop para os professores
carácter obrigatório para os participantes foi realizado através de uma plataforma
no concurso, embora fosse aberto a online, dada a situação da pandemia que
todos os professores que se inscrevessem se vivia no nosso país nessa altura. Como
previamente. Incluiu uma formação é habitual, contou com uma componente
científica e tecnológica, a cargo da FC, científico-tecnológica, com a presença de
e um curso intensivo de Literatura de vários neurocientistas, engenheiros e um
Ficção Científica, a cargo do PNL2027. biólogo marinho.
A primeira parte do workshop Desta vez, os professores foram
contou, assim, com a participação de convidados a fazer uma breve
vários investigadores e engenheiros apresentação do trabalho das suas equipas
da FC, que deram a oportunidade e explicaram como os objetos biónicos
aos professores de alargarem os seus seriam enquadrados nos respetivos
conhecimentos em várias áreas distintas, contos de ficção científica. A equipa do
como as Neurociências e a Engenharia PNL pronunciou-se sobre as narrativas
Computacional. propostas pelas equipas e os investigadores
A segunda parte do workshop ficou a presentes deram-lhes feedback científico-
cargo do PNL, através da participação de tecnológico sobre o andamento da
Nuno Camarneiro (escritor e engenheiro construção dos seus objetos biónicos.
físico), que dinamizou a atividade ‘Como A edição do ano letivo 2020-2021
se escreve um conto de ficção científica’. terminou com a seleção de oito equipas.
Os projetos finais das equipas que Dada a qualidade dos vários projetos, a
participaram na edição-piloto do organização decidiu que todas teriam
‘Metamorfoses’ foram entregues à Ciência igual destaque. Assim, todas as equipas
Viva, ao PNL e à FC para apreciação e foram convidadas a apresentar os seus
avaliação. trabalhos no Encontro de Ciência 2021,
Inscreveram-se 12 equipas, de entre quer presencialmente, quer sob a forma
quais foram selecionadas 10 finalistas. de um vídeo.
Entretanto, surgiu a pandemia de SARS- Os trabalhos finais deste ano letivo
CoV-2, responsável pela COVID-19. Os estão disponíveis na página oficial do
problemas provocados por esta situação e Ler+ Ciência, no portal do PNL2027, e na
a difícil adaptação das escolas a esta nova página do ESERO Portugal.
realidade levou a que apenas cinco equipas É de realçar o grande empenho, a
conseguissem levar a cabo a sua missão. criatividade e a originalidade das equipas
Os seus trabalhos finais encontram-se participantes, demonstrados através dos
expostos na página do Ler+ Ciência, no trabalhos propostos, como, por exemplo:
portal do PNL2027. uma mão biónica que toca um piano
Os jovens participantes deram largas cujas teclas são sensores construídos
à sua imaginação e criaram contos sobre com material reciclável; um animal
olhos biónicos que ajudam invisuais a biónico com a missão de medir a poluição
detetar incêndios ou superfícies quentes, do ar no seu habitat; ou uma abelha
dedos biónicos que permitem dar apoio biónica capaz de detetar as condições
a doentes, uma mão biónica supersónica atmosféricas ideais para informar as suas
que facilita o trabalho de uma mulher companheiras da colmeia da melhor
polícia, entre outros (V. Figura 1). altura para recolherem o pólen.

68 ENTRELER
Projeto Metamorfoses: um desafio para aprender ciência, tecnologia e literatura

Figura 1: Alguns dos trabalhos desenvolvidos pelas equipas: um implante subcutâneo, óculos biónicos,
um dedo e uma mão biónicos e a dramatização de um dos contos.

ENTRELER 69
Projeto Metamorfoses: um desafio para aprender ciência, tecnologia e literatura

CONCLUSÃO de aluno-aluno, aluno-professor foram


referidas como uma das mais-valias do
Inquirimos vários professores e alunos que projeto.
participaram neste projeto e recolhemos De um modo geral, todos os docentes
as suas respostas. Procurámos desta forma se sentiram aliciados pelo desafio de
perceber como foram as suas experiências, construir um protótipo biónico, sobretudo
em que medida o projeto ajudou os por se tratar de um trabalho complexo,
docentes a ensinar estas áreas curriculares que exigiu a aquisição de novas bases
e a motivar os alunos para procurarem técnicas, com as quais nunca antes tinham
saber mais sobre estes assuntos. lidado.
Até agora, no total, tivemos 23 equipas Já os alunos destacaram a satisfação de
a participar no projeto, inclusive uma terem aprendido a superar as dificuldades
professora que participou nas duas encontradas com a ajuda do trabalho
edições. No entanto, há que realçar que de equipa, principalmente no que diz
houve vários professores a orientar respeito à eletrónica e à exploração da
mais do que uma equipa na edição- programação do objeto biónico. Todos
piloto, embora este projeto seja de difícil eles gostaram da experiência de aprender
execução e, como tal, exija muitos dias de técnicas de escrita ficcionada e criativa
dedicação e envolva áreas disciplinares e de descobrir que os conhecimentos
muito distintas. Além disso, a missão das adquiridos em disciplinas tão diferentes
equipas foi dificultada por ter decorrido como o Português e a Física se podiam
num ano em que a pandemia impediu conjugar para proporcionar resultados tão
que os alunos se pudessem reunir interessantes e até divertidos.
presencialmente para trabalharem em No que diz respeito às dificuldades
equipa. encontradas, quase todas as equipas
Voltámos a recolher muitos referiram que o maior problema foi, de
testemunhos positivos e até entusiastas facto, lidar com as contingências impostas
por parte de professores e alunos. Alguns pelo contexto de pandemia em que
dos participantes na primeira edição vivemos, sobretudo na parte científica e
aconselharam este projeto a outros tecnológica do projeto.
colegas, que esperam inscrever-se em Destacamos o testemunho de uma
futuras edições. professora de Educação Especial, que
Consideramos que o projeto alcançou escreveu o seguinte: “[esta atividade]
uma população escolar muito abrangente, despertou em nós uma consciência
dado que recebemos participações de acrescida de intervenção social uma
vários distritos diferentes do País, de vez que contactámos mais de perto
Norte a Sul, incluindo o Interior e Ilhas. com colegas ‘especiais’ que, pelas suas
A importância da multidisciplinaridade especificidades, nos levaram a refletir
do ‘Metamorfoses’, que permite sobre a importância da compreensão
desenvolver novas competências e da aceitação dos outros.” Dada a
científicas e literárias, foi destacada por especificidade dos seus alunos, foi
um grande número de professores. Além inclusive dramatizado o conto de ficção
de referirem que esta foi uma excelente por eles criado.
forma de promoverem os conteúdos Entre as equipas que concorreram,
programáticos das disciplinas que alguns alunos referem que a sua
lecionam, também o desenvolvimento das participação no projeto tem potenciado
competências transversais e das relações a cooperação entre alunos e professores e

70 ENTRELER
Projeto Metamorfoses: um desafio para aprender ciência, tecnologia e literatura

entre a escola e outras instituições, além Estas razões levam o ESERO PT/Ciência
de lhes permitir descobrir alguns talentos Viva, o PNL2027 e a FC a considerar que o
escondidos. projeto, iniciado como um piloto, deve ter
Outro professor conta-nos que ele e continuidade. Que venha a 3.ª edição do
os seus colegas “consideraram o projeto projeto ‘Metamorfoses’!
inédito e muito desafiante, ao convocar
duas áreas do saber muito distintas” Referências
e reconhecem que esta experiência [1] Decreto-Lei n.º 139/2012, de 6 de julho.
está a ser “enriquecedora em vários Diário da República, 1.ª série – N.º 129, artigo
domínios, tais como a expressão escrita, a 38.º. Disponível em: http://www.dge.mec.pt/
sensibilidade estética, o espírito crítico, o cursos-cientifico-humanisticos
relacionamento interpessoal, a resolução [2] Martins, G. et al. (2016). Perfil dos Alunos
de problemas, a procura de soluções à Saída da Escolaridade Obrigatória.
tecnológicas, etc.” Ministério da Educação/Direção-Geral
A professora que participou nas duas da Educação (DGE). Homologado pelo
edições do concurso considera que Despacho n.º 6478/2017, de 21 de julho.
“temos de pensar um bocadinho mais Disponível em: http://comum.rcaap.pt/
além do ensino tradicional, pois é isso bitstream/10400.26/22377/1/perfil_dos_
que será exigido aos nossos alunos no alunos.pdf
futuro.” Afirma que foi por essa razão [3] Russel, B. (1961). Education for a Difficult
que se interessou por este projeto. Refere- Worl. In Fact and Fiction. George Allen
se a ‘Metamorfoses’ como “um projeto & Unwin Ltd. Disponível em: http://
exigente, pelo facto de tirar os alunos do www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/hfe/
tradicional ensino livresco. Aqui não há cadernos/futuro/educ%20%20mundo%20
um manual, temos de ir ultrapassando dificil.pdf
os obstáculos. Daí que seja também só [4] Brunner, J. (1971). The educational
por si um projeto desafiante, pois cada relevance of science fiction. Physics
obstáculo conduz a um novo desafio.” Education, 6(6), pp 389-391. Nota: A citação
Recorda ainda que os seus alunos nunca em questão é referenciada em português no
tinham trabalhado com sensores Arduíno, artigo: Piassi, L. (2015). A ficção científica
porque o Clube de Informática da sua como elemento de problematização na
escola estava ainda a dar os primeiros educação em ciências. Ciência & Educação.
passos na altura. Foi graças à persistência Disponível em: https://www.researchgate.
e dedicação da equipa que os obstáculos net/publication/282468291_A_
foram todos superados. Acrescenta ainda: ficcao_cientifica_como_elemento_de_
“Foi um trabalho gratificante como problematizacao_na_educacao_em_
professora, pois também cresci ao dar ciencias
mais um passo naquilo que acredito ser o
futuro da escola. Por parte dos alunos, foi
bastante interessante ver a motivação para AGRADECIMENTOS
ultrapassar cada etapa e a expectativa do
produto final.” Os Autores querem agradecer aos
Terminamos com mais uma partilha professores e aos alunos que participaram
de uma professora: “Este foi, sem dúvida, no projeto ‘Metamorfoses’ e que aceitaram
um projeto gratificante, que nos permitiu o nosso convite para nos dar o seu
alargar os nossos horizontes e adquirir testemunho sobre a experiência que
novos conhecimentos para a vida.” viveram:

ENTRELER 71
Projeto Metamorfoses: um desafio para aprender ciência, tecnologia e literatura

Equipa Mónica, a Mão Supersónica (edição- NOTA CURRICULAR DOS AUTORES


piloto)
Escola: Escola Secundária Quinta das João Emanuel Guerreiro dos Santos
Palmeiras, Covilhã Pinto Dias tem mestrado em
Docentes: Albertina Leitão (Física), Alice Astronomia e Astrofísica, pela Faculdade
Carrilho (Biologia), Sónia Pimparel (TIC) e de Ciências da Universidade de
Pedro Pimparel (Português) Lisboa. Tem experiência profissional
Alunos (11.º e 12.º ano): Francisca Valezim, como investigador em Astrofísica
João Resende, José Mariano, Mariana Extragalática, tendo trabalhado no
Pinheiro, Mariana Morais, Mariana Pedro e Observatório Astrofísico de Arcetri, em
Ricardo Justino Itália, e realizado diversas observações
Equipa VitaMoimenta (segunda edição) de galáxias distantes no infravermelho
Escola: Agrupamento de Escolas de no Observatório de La Silla, no Chile.
Moimenta da Beira Entre 2011 e 2017, trabalhou como
Docentes: Ana Santos (Português), Paulo planetarista e comunicador de Ciência
Sanches (Física), Eduardo Ribeiro (Área no Museu Nacional de História Natural
Tecnológica) e da Ciência, em Lisboa. Realizou várias
Alunos (12.º ano): André Santos, Bárbara sessões interativas e dramatizadas neste
Ribeiro, Filipe Tavares, Hugo Rodrigues, museu, onde interpretou figuras famosas
Maria Soares, Pedro Carvalho da Ciência. Trabalha na Ciência Viva
Equipa Armilla BeiraX (segunda edição) desde outubro de 2017, tendo integrado
Escola: Agrupamento de Escolas de a equipa do programa educativo ESERO
Moimenta da Beira Portugal, uma parceria da Agência
Docentes: Maria Loureiro (Português), Paulo Espacial Europeia com a Ciência Viva.
Sanches (Física), Eduardo João Ribeiro Assumiu as funções de coordenador do
(Área Tecnológica) ESERO Portugal em 2019. Além disso,
Alunos (12.º ano): Francisco Mesquita, João também é ator, improvisador e professor
Matos, João Santos, Leandro Carvalho, de Teatro de Improviso na Escola de
Marta Domingues, Pedro Salgueiro, Pedro Atores da ACT, em Lisboa.
Mendes Maria Adelina da Silva Machado é ex-
Equipa X-Glasses (edição-piloto) professora de Física. Licenciou-se em
Escola: Escola Básica e Secundária da Ensino da Física pela Universidade de
Povoação, S. Miguel, Açores Lisboa em 1978. É também pós-graduada
Docentes: Nídia Fidalgo (Física) e Graça na área de Desenvolvimento e Educação,
Ferreira (Português) pela Universidade NOVA de Lisboa, e tem
Alunos (12.º ano): Beatriz Ferreira, Lucas participado em vários cursos de verão
Junípero, Éric Carreiro, Bruno Oliveira, para educadores na ESA e da NASA.
Miguel Furtado Como professora, colaborou em projetos
Equipa Hope (segunda edição) escolares com a Ciência Viva desde
Escola: Escola Básica e Secundária da 1998. Foi Coordenadora Pedagógica do
Povoação, S. Miguel, Açores Centro Ciência Viva da Amadora de 2005
Docentes: Nídia Fidalgo (Física) e Graça a 2010. Foi Diretora Executiva do Centro
Ferreira (Português) Ciência Viva de Sintra de 2011 a 2014. É
Alunos (12.º ano): Raquel Resende, Sara atualmente Consultora de Educação para
Barbosa, Matilde Leite e Sabrina Furtado o Espaço na Ciência Viva e é também
Coordenadora de Educação do ESERO
Portugal.

72 ENTRELER
ARTIGOS

DIGITAL
“As florestas não brotam, não se multiplicam, não
suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental
“Forests do not sprout, do not multiply, do not sigh”:
digital literature and environmental education
Diogo Marques e Ana Gago

RESUMO ABSTRACT
Partindo da exploração do potencial lúdico- Taking from the playful-pedagogical
pedagógico de processos combinatórios e potential of combinatorial and permutational
permutacionais de escrileitura, no presente processes in wreading (writing-reading), in
artigo propomo-nos discutir possíveis this article we propose to discuss possible
aplicações da ciberliteratura no âmbito do applications of digital literature in the
desenvolvimento de estratégias de educação context of the development of environmental
ambiental, dentro e fora do campo de ação education strategies. Through the analysis
institucional. Através da análise do poema of cyberliterary poem Árvore (2018), by
ciberliterário Árvore (2018), da autoria researcher and experimental poet Rui Torres,
do investigador e poeta experimental and its relationship with artivist and hacktivist
Rui Torres, e da sua relação com práticas practices, digital literature is placed in
artivistas e hacktivistas, a ciberliteratura dialogue with issues such as sustainability and
é colocada em diálogo com problemáticas technological obsolescence.
como a sustentabilidade e a obsolescência In addition, as integral parts of an
tecnológica. ecosystem, reference will be made to (post)
Adicionalmente, será feita referência digital artistic-literary creations with
a outros exemplos de criações artístico- an international impact, such as, About
literárias (pós-)digitais, com impacto Trees, by (2015), by Katie Holten,
internacional, enquanto partes integrantes DEFOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOREST
de um mesmo ecossistema, como About (2017), by Joana Moll, and Amazon
Trees (2015), da autoria de Katie Holten, (2019), by Eugenio Tisselli. Also, in order to
DEFOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOREST illustrate the continuity of digital literature in
(2017), da autoria de Joana Moll, e Amazon the broader context of experimental practices,
(2019), de Eugenio Tisselli. De forma a we analyse some of its precursors, such as
ilustrar a continuidade da ciberliteratura no Soneto Ecológico (2005), a public land art
contexto alargado das práticas experimentais installation by Fernando Aguiar.
em Portugal, são ainda convocados alguns dos Putting in dialogue tradition and
seus precursores, como Soneto Ecológico (2005), innovation, several paths of possibility from
instalação de poesia ambiental, da autoria de digital literature are written (and recombined),
Fernando Aguiar. as an artistic-literary manifestation and as an
Colocando em diálogo tradição e inovação, educational, interventional and mobilizing tool.
escrevem-se (e recombinam-se) vários
caminhos de possibilidade a partir de/para PALAVRAS-CHAVE
a literatura digital, enquanto manifestação ciberliteratura, artivismo, hacktivismo,
artístico-literária e enquanto ferramenta educação ambiental, literacia digital
educativa, interventiva e mobilizadora.

ENTRELER 73
“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental

KEYWORDS teria de seguir” (Calvino, 2000, 42). Dez


digital literature, artivism, hacktivism, anos mais tarde (1967), numa conferência
environmental education, digital literacy intitulada “Cibernética e Fantasmas”, o
mesmo Calvino viria a propor uma série de
reflexões sobre a literatura como processo
O primeiro que compreendeu bem tudo aquilo combinatório, que a máquina potencia, à
foi Cosimo. Descobriu que, estando as árvores e luz dos avanços na Cibernética enquanto
plantas assim tão dispersas e inclinadas, podia, “disciplina catalisadora” de relações
passando de um ramo para o outro, deslocar- renovadas entre literatura e matemática
se algumas milhas sem necessidade de descer a (Seiça, 2013, p.109).
terra. Por vezes, uma clareira obrigava-o a fazer Pese embora a distância temporal
desvios muito longos, mas depressa aprendeu entre os dois textos, a personagem de
todos os itinerários possíveis e passou a medir Cosimo parece antecipar a ideia de leitor-
as distâncias, não já segundo os nossos padrões, jogador que, por meio de combinatórias e
mas tendo em mente os traçados distorcidos ramificações, busca e encontra significados
que, caminhando por cima das árvores, teria de inesperados, colocando “em jogo algo
seguir. que noutro plano é levado muito a peito
Italo Calvino, O Barão Trepador pelo autor ou pela sociedade a que ele
pertence” (Calvino, 2003, p. 221). Daí que,
[A] literatura é de facto um jogo combinatório, para Calvino, e no seu entendimento de
que segue as possibilidades implícitas na “máquina literária”, o papel do leitor no
sua matéria-prima, independentemente da desenvolvimento da “força crítica” da
personalidade do poeta, mas é um jogo que literatura possa ser desempenhado num
a certo ponto se encontra investido de um plano próprio e independente em relação
significado inesperado, um significado não “às intenções do autor” (p. 224).
objectivo do nível linguístico em que estamos Talvez por esse motivo, Giulia Pacini
a mover-nos, mas desviado para outro plano, proponha uma leitura de O Barão Trepador
de modo a pôr em jogo algo que noutro plano é que expande a sua categorização enquanto
levado muito a peito pelo autor ou pela sociedade romance filosófico para a de romance
a que ele pertence. (...) A fronteira nem sempre botânico, ou ambiental, e, em certa medida,
está claramente assinalada; neste ponto, eu diria artivista. Nomeadamente, na forma como
que é a atitude da leitura que se torna decisiva; ilustra “a desflorestação ocorrida ao longo
é ao leitor que cabe o papel de fazer que a da costa mediterrânica setentrional da
literatura desenvolva a sua força crítica, e isto Itália”[1], servindo enquanto “resposta
pode-se fazer independentemente das intenções literária aos excessos do desenvolvimento
do autor. urbano que caracterizaram o período
Italo Calvino, “Cibernética e Fantasmas” do pós-guerra” e, simultaneamente,
“reflexão crítica sobre uma história mais
longa da intervenção humana na Riviera
RAÍZES, RIZOMAS italiana”[2] (Pacini, 2014, p. 58; tradução
nossa). Porém, mais do que apontar para
Em O Barão Trepador, romance de Italo evidentes preocupações ecológicas[3], o
Calvino publicado em 1957, Cosimo argumento de Pacini confirma as intuições
descobre e expande um “mundo novo”, transliterárias de Calvino. Isto é, enquanto
“não já segundo os nossos padrões, mas barómetro do seu tempo, revelador de uma
tendo em mente os traçados distorcidos permeabilidade a uma ideia de literatura
que, caminhando por cima das árvores, em tensão e em expansão.

74 ENTRELER
“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental

Vale referir que, em 1959, dois anos Livros Horizonte, Lisboa (Torres; Marques,
depois da publicação de O Barão Trepador, 2020, p. 146). De resto, seria esta trilogia
dar-se-iam as primeiras experiências que viria, em 1996, a incorporar o volume
estocásticas de Theo Lutz. Fortemente A Ciberliteratura (Edições Cosmos), numa
inspirados pela Estética Gerativa de versão atualizada, revista e ampliada das
Max Bense, e produzidos com a ajuda reflexões de Pedro Barbosa no domínio
de um computador ZUSE Z22, os textos da criação literária e computador.
estocásticos de Lutz consistiam, segundo Entendendo-se o computador como
Pedro Barbosa, na “produção aleatória “amplificador” ou “telescópio de
de frases, mediante uma gramática complexidade” (Barbosa, 1996, pp. 63-66),
rudimentar e um pequeno léxico para Pedro Barbosa:
introduzidos no programa”, a partir A Arte computacional dá assim acesso à
de O Castelo, de Franz Kafka (Barbosa, multiplicidade das formas novas em que os
1996, pp. 133-134). Mas também, no numerosos múltiplos são ainda o prolongamento
que diz respeito a experiências pioneiras concreto de um jacto criativo tentacular,
no âmbito da criação literária assistida dispersando-se em árvore: através dos múltiplos
por computador, dois anos mais tarde, teremos então acesso directo à obra, pois eles são
em 1961, pela mão de Nanni Balestrini ainda a própria obra, numa das suas inumeráveis
e com o apoio da IBM, a criação de metamorfoses (p.109; redondo nosso).
poesia combinatória por meio de um Consequentemente, seguindo Barbosa,
Tape Mark 1. É de realçar que, para a “literatura computacional” implica uma
Barbosa, o “método combinatório”, e a “partilha transindividual da autoria”,
sua “exploração integral’’, em toda a sua que se joga, pelo menos, em três níveis: 1)
amplitude, abre “um campo de possíveis” com a máquina, por meio da “criatividade
(pp. 50-53). variacional” que a esta corresponde;
Discípulo de Abraham Moles, em 2) coletivamente, por exemplo, e à
Estrasburgo (que, por sua vez, trabalhou semelhança dos Grupos Oulipo (do
com Max Bense, em Estugarda), qual Calvino fez parte) e ALAMO, “uma
caberia a Pedro Barbosa a execução plêiade de técnicos, teóricos e escritores”
das primeiras experiências literárias (p. 112); e 3) com o leitor, a quem “é
assistidas por computador, em Portugal. oferecida a oportunidade de partilhar
Mais concretamente, entre 1975 e 1976, com o autor a criação da obra”, de forma
a partir do Laboratório de Cálculo mais e menos (inter)ativa, mas sempre
Automático (LACA) da Faculdade de “mediante um diálogo estabelecido
Ciências do Porto[4], e em colaboração através da máquina” (p. 114).
com o Engenheiro Azevedo Machado, Partindo desta aceção de leitor
resultando em “três volumes dedicados ativo, em que o “movimento do leitor
à programação de literatura com base em relação ao texto” se sobrepõe ao
nas linguagens FORTRAN e BASIC”: dois “movimento do texto em relação ao leitor”
volumes iniciais, A literatura cibernética 1. (p. 115), a possibilidade de escrileitura
Autopoemas gerados por computador (1977) e responsabiliza este último, envolvendo-o,
A literatura cibernética 2. Um sintetizador de criando consciencialização[5], tanto pela
narrativas (1980) – curiosamente editados possibilidade de manipulação do próprio
por Cooperativa Árvore, no Porto –, e artefacto ou objeto artístico como, nos
um terceiro volume, de 1988, intitulado casos em que a intervenção não é direta,
Máquinas pensantes. Aforismos gerados pela leitura potencialmente única, e em
por computador, com chancela da editora tempo real, do texto-evento.

ENTRELER 75
“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental

Mais tático do que estratégico (fazendo tempo adiados e desencontrados” (Pereira,


uso da distinção aplicada por Michel de 2019, p.143).
Certeau), Árvore (2018) é um ciberpoema Não obstante, como todo o labirinto,
multimédia que se insere na continuidade Árvore pressupõe uma estrutura, desenho
de um trabalho de investigação-criação ou matriz ordenadora da componente
do poeta, professor e investigador casual, aleatória e eventual, mais
Rui Torres, na utilização de processos concretamente, uma interface que, a partir
combinatórios e permutacionais assistidos da leitura gradual de 9 versos iniciais –
por computador, e sobretudo a partir do 4 dísticos e uma linha final, dispostos
CETIC (Universidade Fernando Pessoa, como ramos de uma árvore –, dará lugar
Porto), Centro de Estudos sobre Texto a uma série de novos e renovados versos
Informático e Ciberliteratura, fundado recombinados entre si. Contudo, sendo
por Pedro Barbosa em 1996. Adotando gradual, manifestando-se letra a letra,
a plagiotropia[6] como poeprática, uma a substituição de um verso por outro
operação que é parte do estilo que o apresenta um ritmo próprio, sem que o
próprio tem vindo a cultivar ao longo leitor possa intervir de forma ativa no
das duas últimas décadas, Árvore processo de escrileitura (ao contrário de
constitui-se enquanto ecossistema outros poemas ciberliterários do autor[8]).
rizomático composto por fragmentos É essa temporalidade que leva Manuel
de poemas outros de outros poetas que, Portela a descrever este tipo de experiência
por sua vez, dão origem a novos poemas textual enquanto “literatura ambiente”,
potencialmente infinitos à escala humana. por comparação com a “ambient music”
Tornado popular por Gilles Deleuze e ou “ambient video” (Portela, 2020, p.179),
Félix Guattari enquanto conceito filosófico com base nos fluxos contínuos e aleatórios
e “imagem do pensamento” aberta a “múl- que a atenção seletiva do leitor discretiza.
tiplos”, no seu contexto original, o rizoma Mas, também, enquanto experimentação,
botânico designa um caule subterrâneo que podendo ser encarada como disrupção dos
cresce de modo contínuo na horizontal e tempos e modos que tendem a caracterizar
que dá origem a brotos laterais e raízes ad- as nossas interações em ambientes
ventícias em determinados intervalos. Po- multimodais digitais, tendencialmente
dendo ler-se adventício como “órgão que se mais rápidas e interativas.
desenvolve num ponto, onde normalmente A este respeito, no contexto da obra com-
se não encontra outro órgão da mesma na- pleta, ou telepoética, de Rui Torres, a palavra
tureza”, como na expressão “raízes adven- disrupção não é inocente, na medida em
tícias”, este adjetivo pode igualmente ser que as suas investigações criativas com fre-
utilizado no sentido de casual, fortuito, isto quência apresentam uma natureza metar-
é, dependente do acaso[7]. Daí que Vinícius reflexiva, quase sempre com o objetivo de
Carvalho Pereira, na leitura atenta que faz amplificar a discussão em torno desse mes-
de Árvore, defina o ciberpoema como “tex- mo meio. Exemplo desse questionamento
to-rizoma”, por oposição a um “texto-raiz”, (característico de uma multiplicidade de
isto é, “de cunho unitarista, autocentrado, obras literárias digitais, a nível global) são
cujos significante e significado estivessem as várias intervenções de Rui Torres que
colados por uma identidade essencialista”, o próprio designa como fakescripts: seja
entendendo-se o “texto-rizoma” como “um exposição de código computacional nas
labirinto de entradas e saídas entrecruzadas paredes de uma galeria, como poema em
em uma multilinearidade complexa, mar- papel[9]; seja colocação de pequenos snippe-
cada por cadeias de significantes a todo o ts, ou partes de código computacional, nos

76 ENTRELER
“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental

Figura 1: Árvore, Rui Torres, variações, captura de Figura 2: Árvore, Rui Torres, variações, captura de
ecrã ecrã
https://telepoesis.net/arvore/arvore.html https://telepoesis.net/arvore/arvore.html

bancos de um jardim público em Ponte de sua oposição a uma ideia de arborescência,


Lima[10]; seja estampagem/impressão dos hierárquica, vertical, linear. Por permitir
referidos snippets em almofadas, enquanto trabalhar numa perspetiva planar e
poema-objeto[11]; seja ainda apropriação transespécies, o rizoma convoca a ideia
poética de um protótipo de smartphone e de redes e sub-redes que, por sua vez,
respetivo código por detrás do seu sistema possibilitam a integração de uma árvore
operativo[12]. numa floresta, ao invés de uma existência
No caso concreto de Árvore, individualizada e descontextualizada.
entendemos que essa disrupção se Recentemente, a ideia de redes globais
materializa por meio de uma determinada de fungos micorrizas – geralmente
ideia de inoperabilidade ou utilização descrita como uma espécie de Internet
disfuncional da interface (Marques, 2018, subterrânea que liga árvores e plantas
p.52), que atua através um processo de umas às outras por meio de raízes, fungos
estranhamento, associado, por um lado, a e bactérias – tem vindo a ganhar cada vez
determinadas convenções de leitura (neste mais relevo na comunidade científica.
caso, literária e/ou poética), por outro, a Igualmente conhecida como wood wide
instruções de operabilidade das máquinas, web, por comparação com a world wide web
incluindo respetivas interfaces e (Marshall, 2019, s.p.), esta “rede global” de
algoritmos. Sendo que, em ambos os casos, árvores e florestas comunicantes expande
o estranhamento, naturalmente ativado a noção de rizoma enquanto possibilidade
pelo que lhe é estranho, senão mesmo filosófica, na medida em que, no contexto
contrário, funciona como operação desta reflexão, pode inclusivamente
quiasmática entre literatura e cibernética: justificar continuidades intertextuais numa
rompendo com convenções de leitura perspetiva transliterária e transdisciplinar.
na utilização das potencialidades do Fazendo uso da figura da floresta
algoritmo, e rompendo com convenções micorrizomática, outra das características
de operabilidade algorítmica por meio de que marca a poesia disruptiva de Rui
uma leitura aparentemente inerte. Torres é a sua inserção numa linha de
continuidade experimentalista (Torres;
Marques, 2020, pp. 145-53), que engloba
CAULES, TRONCOS o Movimento da Poesia Experimental
Portuguesa (Po.Ex), incluindo a releitura
De acordo com Deleuze e Guattari, uma do Barroco que esta preconizou, e que por
das potencialidades do conceito de rizoma sua vez se desdobra numa variante (proto)
enquanto “imagem do pensamento” é a ciberliterária[13]. A este respeito, torna-se

ENTRELER 77
“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental

particularmente relevante a forma como


diferentes gerações da Po.Ex analisaram o
envolvimento crítico do leitor no processo
de descodificação do texto. Por exemplo,
Ana Hatherly, como parte da investigação
histórica que faz da poesia gráfica do
Maneirismo e Barroco portugueses, em
que afirma o carácter educativo dos
referidos textos visuais, no cultivo de
uma determinada poética da dificuldade
que exigia esforço e dedicação do leitor
na mesma medida (Hatherly, 1983, p.
72). Mas também Fernando Aguiar,
pertencente a uma segunda geração de
poetas da Po.Ex., e que, em 1985, falava de
Figura 3: Soneto Ecológico, Fernando Aguiar,
uma necessidade de “participação crítica” instalação
por parte do “fruidor” (Aguiar, 1985, (Agradecemos a Fernando Aguiar a autorização para
p. 164), extensível a todas as espécies reprodução desta imagem.)
http://interact.com.pt/26/soneto-ecologico/
poéticas da “floresta semiótica [em] que
existimos e comunicamos.” (p. 155). Aliás,
na referência direta que Fernando Aguiar Plantado em 2005, num parque
faz às suas performances, não deixa de de Matosinhos, Soneto Ecológico[14] é
ser surpreendente o modo como as suas constituído por 70 árvores, de 10 espécies
reflexões podem ser extrapoladas para o diferentes e possíveis de encontrar no
domínio da literatura computacional: território português, distribuídas de 5 em
Entre o operador poético e o ‘leitor’ existe uma 5 árvores ao longo de 14 filas, e, portanto,
relação empática directa, pela participação representativas da estrutura de um soneto
deste no trabalho daquele, onde o feed-back (duas quadras, dois tercetos, com as rimas
poderá, inclusive, modificar o próprio rumo a ocorrerem por meio de árvores da
do poema, alterando sempre o seu significado. mesma espécie). A propósito deste “soneto
Como a leitura do poema dá-se em simultâneo vivo” que faz uso da própria natureza
com o seu desenrolar, e como a reacção dá-se como meio e matéria-prima, diz-nos
sincronicamente com a leitura, o feed-back Fernando Aguiar:
imediato, passando por vezes, o consumidor a ser Atento desde cedo às questões ecológicas,
também o produtor e vice-versa (pp. 165-66). pretendi escrever um poema, em 1985, que
Como tal, partindo da definição de abordasse a temática do ambiente e da natureza,
“poesia interactiva” proposta por Aguiar, cada vez mais maltratados pelos fogos, pelo
e entendendo-a como transversal a abate desenfreado de árvores, pela destruição
vários registos poéticos, performativos, sistemática do habitat de milhares de animais,
programacionais, não será de espantar condenando à morte e ao desaparecimento, a
encontrarmos o mesmo tipo de prazo, de algumas das espécies. (...) A verdade
preocupações em fazer avançar “a poesia no é que essa não era realmente uma questão
sentido do social” (p. 166), tanto em Árvore, prioritária na altura, atendendo à existência
ciberpoema de Rui Torres, 2018, como de outros problemas mais prementes não só
em Soneto Ecológico, de Fernando Aguiar, em Portugal mas também noutros países e,
instalação de “poesia ambiental” cujas para os políticos, nem sequer era tema que os
primeiras maquetes datam dos anos 1980. preocupasse muito (Aguiar, 2017, s.p.)

78 ENTRELER
“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental

Tratando-se de um testemunho com


data de 2017[15], torna-se particularmente
relevante reforçar que, de acordo com
Aguiar, as primeiras maquetes deste projeto
foram expostas publicamente em 1987
e 1988, respetivamente, no 1.º Festival
Internacional de Poesia Viva, organizado
pelo próprio, no Museu Municipal Dr.
Santos Rocha, Figueira da Foz, e na Galeria
Municipal da Amadora, naquela que foi
considerada a segunda apresentação do
referido festival (Aguiar, 2017, s.p.). Ou
Figura 4: Soneto Ecológico, Fernando Aguiar,
maquete
seja, com uma distância de 20 anos entre
https://po-ex.net/taxonomia/transtextualidades/ projeção e concretização que, de certa
metatextualidades-autografas/fernando-aguiar- forma, acaba por ser um indicador no que
soneto-ecologico-um-projeto-de-poesia-ambiental/
(Agradecemos a Fernando Aguiar a autorização para diz respeito ao nível de consciencialização
reprodução destas imagens.) ambiental na sociedade portuguesa.
Demonstrativa de redes ou ramificações
muito próprias da disrupção experimental a
nível artístico-literário, a leitura de textos-e-
vento como Soneto Ecológico (e Árvore) pode
e deve ir além da sua camada intertextual,
já que a sua natureza transliterária convida
a uma análise dos mesmos enquanto mani-
festações concretas e complexas de práticas
de natureza a(r)tivista. Por conseguinte, a
perspetiva de podermos enquadrar Soneto
Ecológico na senda de movimentos como o
da environmental art, associado à land art ou
earth art – que, sobretudo no Reino Unido
e Estados Unidos, marcaram as décadas de
1960 e 1970, e o trabalho de autores como
Michael Heizer, Nancy Holt, Robert Smith-
son e Richard Long (Kastner; Wallis, 2010)
–, ganha novos contornos.
É essa ideia de rede global que nos
permite, de igual modo, associar a escrita
com árvores, de Fernando Aguiar, com um
outro tipo de criação site specific, o projeto
About Trees, da autoria de Katie Holten,
apresentado, num primeiro momento, no
contexto de exposição coletiva que teve
Figura 5: Soneto Ecológico, Fernando Aguiar, esquema lugar no Centro Paul Klee, em Berna, Suíça
https://po-ex.net/taxonomia/transtextualidades/
metatextualidades-autografas/fernando-aguiar-
(outubro de 2015 a janeiro de 2016), e,
soneto-ecologico-um-projeto-de-poesia-ambiental/ num segundo, desenvolvido na publicação
(Agradecemos a Fernando Aguiar a autorização para que inaugurou a coleção Parapoetics – a
reprodução destas imagens.)
Literature beyond the Human[16].

ENTRELER 79
“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental

“linguagem, a paisagem e a perceção”,


a partir de uma perspetiva de crise, de
representação e de (auto)entendimento do
nosso papel e da nossa responsabilidade
enquanto espécie num ecossistema mais
alargado.

RAMOS, FOLHAS

Dialogando com as obras


anteriormente referidas, em
DEFOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOREST,
de Joana Moll (2016)[19], encontramos eco
da construção de um alfabeto pictórico,
composto por árvores de diferentes
espécies, embora utilizado num outro
Figura 6: About Trees, Katie Holten, capa de livro
https://www.katieholten.com/abouttrees
contexto, como exemplo de net art ou
instalação em rede, e com outro objetivo:
traduzir (transduzir, transcodificar) a
A partir da proposta e desenho de um quantidade de árvores necessárias para
novo alfabeto cujas letras e caracteres absorver o CO2 gerado pelas visitas totais
tomam a forma de diferentes espécies de ao site da Google, a cada segundo que
árvores[17], em About Trees, Holten cria passa[20]. Jogando com convenções de
uma narrativa composta pela apropriação leitura ocidental (linha a linha, da esquerda
e recodificação de textos de vários para a direita, de cima para baixo), o leitor
autores, “celebrando as árvores e o nosso assiste a um fluxo contínuo de formas
entendimento das mesmas, do seu passado arbóreas imateriais que, não podendo ser
e do seu futuro, do seu potencial e da sua manipulado ou travado, à semelhança
ubiquidade” (Holten, s.d; tradução nossa) de Árvore, faz igual uso de uma interface
[18]. Convidando a uma reflexão sobre o propositadamente disfuncional.
Antropoceno, este livro-floresta impele- Dando visibilidade ao que, perante os
nos a considerar a nossa relação com a nossos olhares rápidos e códigos opacos

Figura 7: DEFOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOREST, Joana Moll, captura de ecrã


https://www.janavirgin.com/CO2/DEFOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOREST.html

80 ENTRELER
“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental

da máquina, é, por norma, invisível, Joana Organization uma pausa temporária no


Moll procura criar consciencialização, não que diz respeito à criação de literatura
apenas ecológica, na utilização de tecnolo- eletrónica (Tisselli, 2018, s.p.). Um
gias digitais. Na exploração de uma tensão afastamento sobretudo motivado pelo
entre visibilidade e invisibilidade, que se facto de sentir que, apesar da perspetiva
relaciona também com a forma como de- artística, os autores deste tipo de
terminadas espécies e recursos vão rapida- artefactos, grupo em que o próprio se
mente desaparecendo, joga-se a falácia do inclui, pouco ou nada fazem para travar a
digital enquanto imaterial e intangível. pegada ecológica deixada pela exploração
Em “The Non Thing”, capítulo inte- de recursos necessários para a construção
grante de The Shape of Things (1993), de tecnologias digitais. Não obstante,
Vilém Flusser explora este aparente para- pouco tempo depois, (re)encontramos
doxo introduzido pela tecnologia eletróni- Tisselli num projeto artístico que pretende
ca e digital: apesar do processo de minia- dar “voz aos camponeses”, através da
turização, e até mesmo de imaterialização, criação de uma base de conhecimentos
dos componentes, dos processos de arma- colaborativa envolvendo agricultores
zenamento e geração de imagens eletróni- na Tanzânia, e fazendo uso dos
cas, sendo estas produções culturais eféme- telemóveis como forma de documentar
ras, são contudo (potencialmente) eternas, as suas práticas e observações acerca das
quando transformáveis, a uma escala cada mudanças climáticas, nomeadamente a
vez maior, em informação digital (Flusser, escassez de recursos hídricos[21].
1999, p. 91). Em intervenção mais recente, com
Enquadrada numa perspetiva pós- data de 2019 e intitulada Amazon[22],
humanista, e considerando sobretudo Tisselli rompe com as convenções
a entrada de entidades de inteligência de transparência e usabilidade das
artificial como parte atuante de processos interfaces digitais incluindo o próprio
culturais, a síntese de Flusser aponta, código computacional que as sustém,
no entanto, para algumas das atuais enquanto operação de estranhamento,
problemáticas relacionadas com os com vista a criar consciencialização no
impactos da produção e consumo de que respeita a causas e consequências
tecnologias digitais: do desflorestamento sem precedentes
A mão consome cultura e transforma-a em da floresta amazónica. Nesta obra
resíduos. (...) Este desperdício está a tornar-se ciberliterária, convidado a executar por si
cada vez mais interessante: ramos inteiros do mesmo o código que o artista faz circular
conhecimento, como a ecologia, a arqueologia, a livremente pela web, o leitor terá de
etimologia, a psicanálise, têm vindo a estudar seguir uma série de instruções básicas
este desperdício. (...) A História humana não é, que, fazendo parte da própria poética
portanto, uma linha reta que nos leva da natureza da obra, rompem de igual modo com as
à cultura. É um círculo que liga natureza e referidas convenções. Isto é, integrando
cultura, cultura e desperdício, desperdício e a subjetividade da linguagem poética na
natureza, e por aí adiante. Um círculo vicioso. objetividade da linguagem informativa:
(Flusser, 1999, p. 90; tradução nossa) O código é o vetor que transforma os teus desejos
Com efeito, poderá ter sido essa ideia em dados // o código extrai os desejos do teu
de círculo vicioso que, em 2011, levou corpo, entrega-os à máquina e transporta-os de
o programador-escritor-investigador montante a jusante // o código é o que conecta
Eugenio Tisselli a anunciar perante a o teu tédio ilimitado à tragédia de queimar
comunidade da Electronic Literature florestas (Tisselli, 2019, s.p.).

ENTRELER 81
“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental

cada vez mais analisada também como


parte da solução, sendo exemplificativa
a forma como a virologia e a viroterapia
têm vindo a fazer uso de determinados
vírus no tratamento de doenças de
diferentes tipos, nomeadamente na
área oncológica (Mietzsch; Agbandje-
McKenna, 2017, p.1). De modo similar, tal
como o entendimento complexo de um
vírus pode ser benéfico na sua aplicação
transversal, no que concerne ao impacto
das tecnologias digitais, essa complexidade
pode traduzir-se pela utilização que
Figura 8: Amazon, Eugenio Tisselli, instruções,
captura de ecrã
Bernard Stiegler fez, a partir de Derrida,
https://motorhueso.net/amazon/ do conceito de pharmakon. Sendo um
termo aplicável tanto à investigação como
à criação artística com/sobre essas mesmas
tecnologias, para Rui Torres e Eugenio
Tisselli:
A farmacologia tecnológica é uma questão de
dosagem, uma questão de limiares. Abaixo
de um certo limiar, a tecnologia sara a ferida
da vulnerabilidade humana. Acima desse
limiar, torna-se um fractal incontrolável,
capaz de destruir os nossos corpos e os nossos
ecossistemas, como um cancro fora de controlo.
(Torres; Tisseli, 2020; tradução nossa).

Figura 9: Amazon, Eugenio Tisselli, captura de ecrã FLORES, FRUTOS


https://motorhueso.net/amazon/
De acordo com o Dicionário Priberam
Assim, após copiar o código, colá-lo em linha, a palavra árvore pode signifi-
num editor de texto e salvar o ficheiro car um “vegetal de tronco lenhoso”; uma
como amazon.html, ao abrir o dito fichei- “representação ou esquematização cujas
ro, o leitor ativa no seu ecrã uma floresta ramificações façam lembrar uma árvore,
de caracteres esverdeados que, por sua vez, i.e., um dendrograma”; mas também uma
começam a ser gradualmente substituídos “peça ou elemento de uma máquina que
por números a negro que acabarão por tem montados sobre si outros elemen-
incendiar por completo toda a floresta. tos para a transmissão de potência ou de
Porém, apesar da aparente passividade, é movimento”[23]. Neste ponto, não deixa de
o leitor que ativa essa operação, transfor- ser relevante o facto de a própria definição
mando a leitura numa espécie de voyeu- da palavra árvore poder ser aplicada numa
rismo impotente, que nada pode fazer descrição do ciberpoema homónimo,
contra o algoritmo e algarismo viral. considerando a sua natureza múltipla.
Não deixa, porém, de ser curioso que, na Consequentemente, é essa multiplicida-
atualidade, a própria noção de vírus seja de de análises e de possíveis aplicações

82 ENTRELER
“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental

transliterárias de Árvore que permite a Rui Torres[31] – sinais que surgem, aliás, na
sua conexão com uma série de outras sequência de recentes reformas ao nível
obras e autores. Do pré ao pós-digital, em curricular no que concerne diretamente ao
rede, esta vastidão de vasos comunicantes ensino da língua e literatura portuguesas.
permite a identificação de uma poética A respeito deste último ponto, saliente-
marcadamente artivista que, fazendo uso se a novidade que representou a introdução
de uma tática de disrupção metarreflexiva, da “educação literária” no Programa e
apela à consciencialização, neste caso, am- Metas Curriculares de Português do Ensino
biental, dos potenciais leitores. Estas redes, Básico (Buescu et al., 2015), uma noção que
aqui entendidas como micorrízicas, fazem tem vindo a ser questionada, primeiro,
uso de uma noção expandida de literatura, em 2017, no colóquio que decorreu no
relacionando-a com a promoção de litera- Instituto Superior de Educação e Ciências
cias digitais[24] e, numa perspetiva crítica e (ISEC Lisboa) e na Faculdade de Ciências
autorreflexiva[25], abordando problemáti- Sociais e Humanas da Universidade Nova
cas com impacto tanto ao nível ambiental de Lisboa, e, posteriormente, em atas do
como ao nível da saúde pública, da obso- referido Colóquio publicadas, em 2021,
lescência programada dos meios tecnoló- com o título Contra a Literatura: Programas
gicos às emissões de dióxido de carbono (e Metas) na Escola (IELT, Lisboa). Nesse
resultantes da utilização da Internet. mesmo volume, Joana Meirim refere-se
No caso particular de Árvore, tratando- a uma “educação literária programada”,
se de um ciberpoema inspirado na obra de questionando a introdução de metas de
autores como António Gedeão, António aprendizagem e, sobretudo, de “indicações
Ramos Rosa, Herberto Helder ou Miguel precisas sobre o que é suposto aprender
Torga (entre outros), este é igualmente sobre eles [textos literários]”, por oposição
vetor para o estudo da literatura a um entendimento de literatura enquanto
portuguesa, relendo-a e renovando-a[26]. “espaço em que se analisam e discutem
Desta forma, Árvore é representativa do textos sem urgência, estimulando o sentido
potencial da utilização pedagógica de crítico e autonomia de pensamento dos
obras de literatura digital, no que diz alunos”. Meirim aponta ainda, como
respeito ao ensino da língua e literatura resultado indireto do enfoque em obras
portuguesas[27]. Uma possibilidade que e autores de língua portuguesa, uma
ganha especial relevância num momento certa circunscrição da própria noção de
em que, no contexto nacional, e apesar literatura a uma “perspetiva romântica”,
das várias décadas que nos separam conservacionista, em relação ao
da “aventura ciberliterária” de Pedro “património nacional”, que se reflete nos
Barbosa, a ciberliteratura (ou, grosso “tópicos de conteúdo” que, na sua opinião,
modo, a literatura digital) começa a condicionam a leitura dos textos literários
perfilar-se nos programas oficiais[28]. A e limitam a capacidade da literatura para
esse respeito, 2019 veio a revelar-se um “mostrar que há mais mundos além do
ano particularmente decisivo, com a nosso” (Meirim, 2020, pp.13-17). A reflexão
realização, na Universidade de Coimbra, de Joana Meirim acompanha vários outros
do I Colóquio Internacional Ensino da ensaios que se focam maioritariamente na
Literatura Digital[29], assim como com a utilização das TIC para o ensino da língua
integração nos Recursos em linha do Plano e literatura portuguesas. Não deixamos,
Nacional de Leitura 2027 de um conjunto porém, de notar a delimitação da discussão
de obras literárias digitais em português[30] em torno da utilização das TIC enquanto
e/ou de autores portugueses, incluindo ferramentas de apoio à lecionação,

ENTRELER 83
“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental

ignorando, não só outros tipos de suportes interativos, fazendo uso de estratégias


didáticos digitais interativos, como obras lúdico-pedagógicas, como estímulo
de literatura nestes meios e suportes. Como à (inter)ação consciente do leitor,
consequência, o potencial pedagógico da parecem, portanto, sintetizar muitos dos
literatura digital – nomeadamente, para aspetos desejáveis para a sua utilização
a promoção de reinterpretações críticas farmacológica em contexto escolar. Os
e criativas de outras obras e autores, e, exemplos apresentados nesta reflexão,
especialmente, para a estimulação de além de partilharem de um entendimento
processos de leitura e escrita, na relação alargado de linguagem e, portanto, de
com temas e problemáticas globais, como literatura, aproximando-a de outras
a da educação ambiental – acaba, de igual práticas artísticas, apresentam também
modo, ignorado. um potencial campo de intervenção
Não obstante, o desenvolvimento artivista partilhado: o da educação
de aprendizagens no domínio de ambiental.
“linguagens e textos” está agora, a nível
oficial, indubitavelmente associado à Notas
“utilização proficiente [de] diferentes [1] São múltiplos os exemplos literários que
linguagens e símbolos associados às referem a desflorestação europeia face
línguas (língua materna e línguas a galopantes processos de urbanização,
estrangeiras), à literatura, à música, às como, por exemplo, James Joyce, que, em
artes, às tecnologias, à matemática e 1920, denunciava, em Ulisses, a progressiva
à ciência”, à capacidade de aplicação desflorestação da Irlanda, à semelhança
destas “linguagens de modo adequado de Portugal ou do arquipélago da
aos diferentes contextos de comunicação, Heligolândia.
em ambientes analógico e digital”, e, [2] Para uma descrição pormenorizada do
muito particularmente, à obtenção de processo pioneiro levado a cabo por
“capacidades nucleares de compreensão Ballestrini, cerca de 15 anos antes do termo
e de expressão nas modalidades oral, “Computer Art” surgir pela primeira vez,
escrita, visual e multimodal” (Ministério ver a seguinte publicação, disponível em
da Educação, 2017, p.21). Adicionalmente, http://p-dpa.net/download/almanacco-
reconhecendo a urgência de considerar letterario-bompiani_1962.pdf (Acedido a 6
a “pluralidade de géneros textuais, em de julho de 2021).
contextos que o digital tem vindo a [3] Em verbete da ELMCIP KNOWLEDGE
ampliar”, os Documentos Curriculares BASE dedicado a Herberto Helder, Álvaro
de Referência – Aprendizagens Essenciais Seiça salienta a importância dada em
– Ensino Básico – Português fazem- Portugal à “combinatória computacional
no num entendimento da língua enquanto proposta literária e ao ‘princípio
enquanto “realidade vasta e complexa” e combinatório [como] base linguística
correspondente a um conjunto alargado para a criação poética’”, com a publicação
de “competências que são fundamentais de Electrònicolírica (1964), de Helder,
para a realização pessoal e social de cada “cuja complexa composição processual
um e para o exercício de uma cidadania – após o regresso de Itália de António
consciente e interventiva” (Direção-Geral da Aragão, veículo de vanguarda – foi
Educação, 2018, pp. 1-2; itálico nosso)[32] influenciada, nas palavras do próprio
Obras de ciberliteratura ou literatura autor, pelas experiências combinatórias
digital, que se caracterizam pela promoção com calculadora electrónica de Nanni
de processos de leitura multimodais e Balestrini, na sua série de poemas

84 ENTRELER
“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental

generativos Tape Mark 1 (1961) e Tape [15] Publicado pela primeira vez em Revista
Mark 2 (1962).” (Seiça, 2015, n.p.). Interact, 26, Hortas & Ecos (abril a
[4] https://po-ex.net/taxonomia/ setembro de 2017) e reproduzido, com
materialidades/digitais/azevedo-machado- autorização do autor, no Arquivo Digital
laca/ (Acedido a 13 de maio de 2021). da PO.EX. (https://po-ex.net/taxonomia/
[5] Importa referir que esta ideia de transtextualidades/metatextualidades-
consciencialização difere de outras autografas/fernando-aguiar-soneto-
aceções correntes, nomeadamente, a de ecologico-um-projeto-de-poesia-ambiental/)
responsabilização global promovida [16] https://www.brokendimanche.eu/para-
por discursos em torno da noção de poetics (Acedido a 13 de maio de 2021).
Antropoceno, ou seja, o princípio geral de [17] O alfabeto é composto por tipo de letra
que todo o ser humano, a humanidade, especialmente desenvolvido pela autora
tem os mesmos níveis de responsabilidade para o efeito, apelidado de Walbaum and
no que diz respeito a efeitos da atividade Trees, disponível para download: https://
humana no clima e no funcionamento dos drive.google.com/file/d/0B_wSE8cfX-
ecossistemas da Terra – uma generalização fgWkVMN2p4YXVzcEU/view (Acedido a
que não difere muito daquela que assume 13 de maio de 2021).
que toda a tecnologia digital é ameaça. [18] https://www.katieholten.com/abouttrees
Como refere Paulo Silva Pereira, tais (Acedido a 13 de maio de 2021).
“estratégias de generalização” acabam por [19] http://www.janavirgin.com/CO2/
abafar diferenças de extrema relevância DEFOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOREST
que poderiam inclusive ajudar a apurar _about.html (Acedido a 13 de maio de
determinados níveis de responsabilidade 2021).
no que diz respeito a causas e [20] Caracterizado pelo seu
consequências (Silva Pereira, 2020, s.p.). forte pendor hacktivista,
[6] Termo cunhado por Haroldo de Campos DEFOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOOREST
para definir uma “operação tradutora no comunica com CO2GLE, da mesma autora
sentido de releitura crítica da tradição” (2014), instalação em rede que traduz,
(Campos apud Gomes, 1993, p. 22). em tempo real, a quantidade de CO2
[7] https://dicionario.priberam.org/adventícia produzido por uma simples consulta ao site
(Acedido a 13 de maio de 2021). mais visitado do mundo.
[8] Vd. Húmus Poema Contínuo (https:// [21] Vd. SAUTI YA WAKULIMA: http://
telepoesis.net/humus_js/). sautiyawakulima.net/bagamoyo/about.php
[9] A Fakescript for your faked life, 2016 (https:// (Acedido a 13 de maio de 2021).
www.telepoesis.net/fakescript.html). [22] https://motorhueso.net/amazon/ (Acedido a
[10] Fakescripts for Ponte de Lima, 2016 (https:// 13 de maio de 2021).
www.telepoesis.net/fakescripts) [23] https://dicionario.priberam.org/árvore
[11] Cushioned Fakecripts, 2017 (http://p-dpa.net/ (Acedido a 13 de maio de 2021).
work/fakescripts/) [24] A utilização do termo no plural, em
[12] Fakephone4a(n)droid, 2019 (https:// detrimento da sua reconhecida forma no
telepoesis.net/fakephone/) singular, é aqui feita com base na distinção
[13] Vd. Torres; Baldwin, 2014. entre literacia tecnológica e literacia
[14] https://po-ex.net/taxonomia/ informativa, tal como referida por J. J.
materialidades/tridimensionais/fernando- Marques da Costa e a partir de Sharkey e
aguiar-soneto-ecologico/ (Acedido a 13 de Brandt (Costa, 2011, p. 175).
maio de 2021).

ENTRELER 85
“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental

[25] No Plano para a Educação Digital 2021- O trabalho de investigação da coautora


2027 (2020) da União Europeia, a análise Ana Gago encontra-se em desenvolvimento
crítica de tecnologias digitais é apontada no âmbito de Bolsa de Doutoramento
no conjunto de competências e aptidões (SFRH/BD/148865/2019), com o
digitais básicas, especialmente no que financiamento da Fundação para a Ciência e
concerne a problemáticas de utilização de Tecnologia e União Europeia (FSE), através
dados e de literacia de informação. do Programa Operacional Regional Norte.
[26] Vd. Marques; Gago, 2020. https://impactum
-journals.uc.pt/matlit/article/view/2182-
8830_8-1_5 (Acedido a 13 de maio de 2021). REFERÊNCIAS
[27] Vd. artigo ‘Murais e Literatura: A Criação
Digital em Contexto Educativo”, a partir Aguiar, F. (2017). Soneto Ecológico: Um
do exemplo de projeto de literatura digital Projecto de Poesia Ambiental. Interact:
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“As florestas não brotam, não se multiplicam, não suspiram”: ciberliteratura e educação ambiental

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88 ENTRELER
ARTIGOS

DIGITAL
Leitura(s) em grupo. Um estudo de caso sobre
práticas de leitura online
Group reading. A case study about online reading
practices
Rita Duarte, Jorge Vieira e José Soares Neves

RESUMO clubs preexist the internet (Sedo, 2003; Griswold,


A partir de um estudo feito sobre o uso McDonnell, e Wright, 2005; Radway, 1991).
das redes sociais online (RSO) por leitores Using semi-structured interviews guided by
de livros, este artigo pretende explorar a SNSs to a group of young keen readers, this
prevalência das práticas de leitura em grupo study finds that group reading is a common
no meio digital, contextualizando esta prática practice among participants, and that it takes
com o fenómeno dos clubes de leitura, que several forms, going beyond the “traditional”
precederam o advento da Internet (Sedo, book club. The internet is thus used as a
2003; Griswold, McDonnell e Wright, N., mediating tool to discuss books and reading,
2005; Radway, 1991). through means as diverse as WhatsApp groups,
Através de entrevistas semiestruturadas Discord servers, comments on reading blogs,
mediadas pelas RSO a um grupo de jovens, forums, and ‘shares’ on SNSs.
leitores ávidos, conclui-se que a leitura This study also finds common
em grupo é uma prática comum entre os sociodemographic features between participants
entrevistados, assumindo, no entanto, formas — mainly highly educated, middle class young
que vão além do “clássico” clube de leitura. women — with the features of the reading class as
Desta forma, a Internet é utilizada como presented by Griswold, McDonnell and Wright
ferramenta de mediação para discutir o livro (2005).
através de meios tão diversos como grupos de
WhatsApp, servidores do Discord, caixas de PALAVRAS-CHAVE
comentários em blogues de leitura, fóruns, e classe leitora, redes sociais online, leitura
partilhas nas RSO. digital, clubes de leitura
Traça-se ainda um paralelismo entre as
características sociodemográficas do grupo KEYWORDS
em análise — maioritariamente mulheres, reading class, social networking sites,
jovens, com altos níveis de escolaridade e de e-reading, book clubs
classe média — e as características da classe
leitora, tal como apresentado por Griswold,
McDonnell e Wright (2005). INTRODUÇÃO

ABSTRACT Muitos estudos focam a forma como as


Based on a study about how Social Networking novas tecnologias e as novas configurações
Sites (SNSs) are used by book readers, this de leitura vieram redefinir o que significa
article aims to explore how prevalent group ler e ser um leitor. E, dentro do universo
reading is in the digital world. Context is dos grandes leitores, são comuns as
provided on the relationship with online book práticas coletivas de leitura, como, por
reading and book clubs – considering that book exemplo, o clube de leitura (Sedo, 2003;

ENTRELER 89
Leitura(s) em grupo. Um estudo de caso sobre práticas de leitura online

Griswold, McDonnell e Wright, 2005; mais do que isso, socialmente regulada”


Griswold, Lenaghan e Naffziger 2011; (Neves, 2015: 69), observa-se que esta é uma
Radway, 1991; Long, 1992). prática cujos padrões variam conforme
Neste artigo[1] recorremos a dados a escolaridade, a idade, a profissão ou o
qualitativos recolhidos através de sexo dos leitores (Neves, 2015; Griswold
entrevistas semiestruturadas mediadas et al, 2005, 2011). O acesso a algumas
pelas redes sociais online (RSO) e infraestruturas como, por exemplo, as
exploramos as práticas de leitura em grupo bibliotecas, ou à Internet define igualmente
de um conjunto de leitores ávidos, jovens, e o acesso à leitura (Griswold, McDonnell e
utilizadores assíduos da internet e das RSO. Wright, 2005: 134).
É apresentada inicialmente uma Um exemplo bastante palpável da
contextualização sobre a leitura enquanto leitura enquanto prática social é o
prática social e o clube de leitura, sendo que clube de leitura. Griswold afirma que
este artigo explora também conceitos que “talvez a maior expressão desta forma
são operacionalizados ao longo da análise, de literacia social seja o clube de leitura
como o de classe leitora e de leitor ávido, tal contemporâneo”[3] (Griswold, McDonnell
como foram apresentados por Griswold, e Wright, 2005: 134). Os clubes de
McDonnell e Wright (2005) e Griswold, leitura “constituem uma das maiores
Lenaghan e Naffziger (2011), o primeiro, e comunidades participativas do mundo das
por Signorini (2003), o segundo. artes”[4] (Poole, 2003: 280).
Através dos dados recolhidos Trata-se duma prática cultural estudada
nas entrevistas, é traçado o perfil por autores como Wendy Griswold e
socioprofissional dos participantes deste outros (2005, 2011), Elizabeth Long (1992)
estudo, e em seguida é analisado o modo e Janice Radway (1991). Long afirma que
de relação destes com os clubes de leitura, “a maior parte dos leitores precisa do
e com a Internet enquanto ferramenta apoio que se encontra na conversação com
para a leitura em grupo. outros leitores, de participar num meio
social onde a leitura está ‘no ar’”[5] (Long,
1992: 109).
1. REVISÃO BIBLIOGRÁFICA É uma prática associada às mulheres
já desde os clubes de leitura do séc.
1.1. A leitura enquanto prática social e XIX, sendo que “o trabalho etnográfico
o clube de leitura em torno dos clubes de leitura se foca
Regra geral, associa-se a leitura de livros geralmente nas mulheres”[6] (Griswold,
a uma prática solitária, aquilo a que Long Lenaghan e Naffziger, 2011: 27).
chama de “ideologia do leitor solitário”[2] Como afirma Griswold, “a Internet
(Long 1992: 110). Contudo, a leitura é providencia uma infraestrutura que
uma prática que não só é ensinada, como apoia tanto os clubes de leitura online
também é socialmente mediada (Griswold, como os presenciais” (Griswold, Lenaghan
McDonnell e Wright, 2005: 134; Long, e Naffziger, 2011: 27).[7] De facto, na
1992: 108). Como afirmam Gustavo Internet encontramos inúmeras páginas
Cardoso e Emanuel Cameira, “o ato dedicadas inteiramente à literatura.
solitário de ler possui utilizações sociais e Atualmente temos, por exemplo, a rede
não deve, portanto, ser concebido como um social online (RSO) Goodreads, pertencente
ato neutro” (Cardoso e Cameira, 2014: 238). à Amazon; grupos de Facebook que
A partir desta visão da leitura enquanto funcionam como clubes de leitura; contas
“atividade empiricamente observável e, do Instagram inteiramente dedicadas ao

90 ENTRELER
Leitura(s) em grupo. Um estudo de caso sobre práticas de leitura online

livro (conhecidas como bookstagrams) e uma prevalência de “praticantes culturais


canais do YouTube igualmente dedicados da categoria PTE – profissionais técnicos
à leitura (o denominado booktube). Há e de enquadramento” (Neves, 2015: 74),
também blogues inteiramente dedicados sendo que, no que toca às práticas e gostos
ao livro. Aqui, os leitores trocam culturais, são regra geral “omnívoros”
impressões sobre livros, procuram (Neves, 2015: 74).
sugestões e pesquisam livros dentro dos A classe leitora também é constituída
seus géneros preferidos, escrevem e leem em grande parte por utilizadores precoces
críticas literárias. e frequentes da Internet (Neves, 2015: 73)
– ao contrário da televisão, a Internet não
1.2. A classe leitora e os leitores só não parece ter uma influência negativa
ávidos nos hábitos de leitura dos indivíduos,
No contexto deste estudo, revelam-se então como parece haver uma relação positiva
importantes o conceito de classe leitora, tal (more-more) entre o uso da Internet e a
como introduzido por Griswold, McDonell leitura de livros (Griswold, McDonnell e
e Wright (2005), assim como o de leitores Wright, 2005: 137).
ávidos (Signorini, 2003). É importante referir, contudo, que o
O conceito de classe leitora tenta conceito de ler com regularidade irá variar
caracterizar aquelas pessoas que, dentro consoante a sociedade em questão – e é
dum contexto social no qual a leitura neste momento que nos é útil a definição
desempenha um papel central e é de leitor ávido, tal como proposta por
altamente valorizada, as culturas de leitura, Signorini (2003), que chama a atenção
leem livros com frequência e em contexto para o facto de que “a definição do termo
de lazer (Neves, 2015; Griswold McDonell ‘leitor ávido’ é (…) muito variada. A
e Wright, 2005). diversidade de definições revela como
Ou seja, enquanto é um facto que cada país tende a atribuir uma identidade
vivemos em sociedades onde o ato de particular a esta entidade social e
ler desempenha um papel central para económica”[8], sendo um conceito que
muitas atividades do dia a dia, sendo reflete “o número médio de livros lidos
o próprio prestígio duma profissão em cada país”[9] (Signorini, 2003).
associado à quantidade de leituras que Como se pode então definir um leitor
são necessárias para o seu desempenho ávido no contexto português? Estudos
(Neves, 2015: 70), apenas um “nicho” de sobre os hábitos de leitura dos portugueses
pessoas encara a leitura de livros enquanto deixam algumas pistas: de acordo com
hobbie, não limitando esta prática aos Santos, Neves, Lima e Carvalho (2007: 51),
contextos profissionais e escolares. excluindo os não-leitores, somente 5,4%
Assim sendo, “apesar de uma parte mais dos portugueses que têm hábitos de leitura
alargada da população ser capaz de ler, a são considerados grandes leitores, lendo
diferença fundamental será entre quem mais de 20 livros por ano. Já Signorini
lê como parte do seu trabalho e da sua (2003) indica que, em Portugal, “são
vida quotidiana e quem lê livros com considerados leitores ávidos aqueles que
regularidade” (Neves, 2015: 72). compram mais de 11 livros por ano”[10].
A classe leitora é caracterizada por Perante estes dados (e reconhecendo
ser constituída “por membros altamente a diferença entre ler e comprar livros),
escolarizados e de elevado capital no âmbito deste artigo são considerados
económico” (Cameira e Cardoso, 2014: 8). leitores ávidos aqueles que leem 12 ou mais
A nível profissional, em Portugal, nota-se livros por ano.

ENTRELER 91
Leitura(s) em grupo. Um estudo de caso sobre práticas de leitura online

2. METODOLOGIA obrigaram a uma mudança de planos,


tendo-se decidido fazer as entrevistas
Para este artigo foi adotada uma metodo- remotamente, recorrendo à partilha de
logia qualitativa, com recurso à entrevista ecrã. A situação epidemiológica também
semiestruturada mediada pelas RSO. poderá ter tido alguma influência nos
Foram entrevistadas um total de 15 próprios resultados: afinal, tratava-se
pessoas, entre 13 de julho e 9 de setembro de uma altura durante a qual eventos
de 2020, através da plataforma Zoom, presenciais eram desaconselhados pelas
recorrendo a áudio, vídeo (de ambas as autoridades de saúde, pelo que o meio
partes) e partilha de ecrã. Durante cada online se tornou o meio de eleição para
sessão, os entrevistados foram convidados partilhar e debater leituras.
a partilhar o ecrã do seu computador, A abordagem metodológica adotada é
tablet ou smartphone, percorrendo as baseada no scroll back method, de Robards e
aplicações e RSO que utilizam para Lincoln (2017; 2019), tendo sido proposto
criar e partilhar conteúdo, conversar, ou aos entrevistados que percorressem a sua
consultar informação sobre literatura, timeline do Facebook ao longo da entrevista,
enquanto lhes eram colocadas questões timeline esta que assume uma dimensão
sobre o seu percurso enquanto leitores, autobiográfica. A metodologia usada neste
hábitos de leitura, modos de relação trabalho tem também como referência
com as RSO dedicadas à leitura e, por o trabalho de Justine Gangneux (2019),
fim, perguntas relativas à caracterização que deu uso aos registos de atividade e
socioprofissional. histórico do Facebook dos participantes
Os entrevistados foram encontrados como estímulo à conversação durante
através do método “bola de neve” as entrevistas, de modo a compreender
(Bryman, 2004: 100). Inicialmente “os significados que os jovens adultos
foram entrevistadas três pessoas, às atribuem às redes sociais online, o seu
quais foi explicado o perfil que se engajamento diário com estas plataformas,
procurava: indivíduos ativos nas RSO e em particular as suas perceções sobre
e que as utilizem para consultar e/ a ‘vigilância entre pares’ (…) nestas
ou partilhar conteúdo sobre leitura de plataformas” (Gangneux, 2019: 6)[11].
livros em contexto de lazer. A partir daí, Tal como proposto por Robards e
e recorrendo ao método “bola de neve”, Lincoln (2017; 2019), os participantes
todos os entrevistados foram convidados deste estudo assumem a posição de
a sugerir outros utilizadores que se coinvestigadores, o que lhes permite a
encaixassem neste perfil. liberdade de explorar a sua própria
É importante assinalar o contexto utilização das RSO, podendo assim refletir
idiossincrático em que ocorreram as e dar significado às suas próprias práticas
entrevistas, durante a pandemia do e interações.
Covid-19, o que teve uma influência É um método que também tem a
nas técnicas de entrevista adotadas vantagem de estimular a memória dos
– inicialmente, pretendia-se realizar participantes (Robards e Lincoln, 2019: 2),
entrevistas presenciais com recurso a podendo igualmente servir para “quebrar
um tablet, durante a qual o entrevistado o gelo” entre entrevistador e entrevistado
seria convidado a entrar nas suas RSO (Robards e Lincoln, 2019: 3).
preferidas para pronunciar-se sobre livros. Outra vantagem prende-se com a
Contudo, as medidas de distanciamento privacidade e o consentimento informado:
físico ditadas a partir de março de 2020 assumir o papel de coinvestigadores

92 ENTRELER
Leitura(s) em grupo. Um estudo de caso sobre práticas de leitura online

proporciona ao entrevistado um maior mulheres e apenas 1 homem. A faixa etária


grau de atividade e de escolha do que dos participantes compreende-se entre os
pretende partilhar (Robards e Lincoln, 21 e os 38 anos, sendo que a maioria está
2019: 3), sendo que, tanto no formulário situada entre os 25 e os 30 anos.
de consentimento informado como na No que toca à escolaridade, todos os
introdução à entrevista, foi dito aos participantes completaram o ensino
participantes que estes poderiam eleger o superior – mais concretamente, 6
que queriam, ou não, partilhar, podendo dos entrevistados são licenciados e 9
interromper e retomar a partilha de ecrã completaram o mestrado ou a licenciatura
sempre que quisessem. pré-Bolonha, havendo mais diversidade
O guião da entrevista foi dividido em em relação à escolaridade dos pais ou
três temáticas – hábitos de leitura de tutores, que varia desde o ensino básico
livros, modos de relação com as RSO e, por até ao doutoramento.
fim, a caracterização socioprofissional. A maioria dos participantes enquadra-
-se nos profissionais técnicos e de enqua-
dramento (PTE), havendo também alguns
3. ANÁLISE DOS RESULTADOS profissionais que aqui se encaixariam na
categoria EDL. Dentro deste conjunto de
Uma vez transcritas as entrevistas, foi entrevistados, apenas uma se situa na cate-
mobilizada uma leitura flutuante dos goria dos empregados executantes.
dados recolhidos, na qual foram realizadas Quanto aos seus hábitos de leitura – em
anotações particulares, desembocando num particular no que toca ao número de livros
exercício de sistematização, enquadrado lidos em contexto de lazer no último ano
pela moldura teórica de referência. –, todos eles podem ser categorizados
Como já foi mencionado, um desses como leitores ávidos.
pontos-chave foi a questão da leitura A homogeneidade do universo da
em grupo, amplamente mencionada análise pode explicar-se, em parte, pela
pelos entrevistados, que será de seguida adoção do método “bola de neve”, contudo
analisada mais ao pormenor. a variedade de opiniões, reflexões, percur-
sos e modos de uso permitiu uma relativa
3.1. Caracterização “diversificação interna” (Guerra, 2006: 41)
dos entrevistados dentro deste universo, sendo que apenas
De acordo com a caracterização se começou a chegar ao ponto de saturação
socioprofissional, foi possível tipificar teórica por volta das 15 entrevistas.
o conjunto dos entrevistados por sexo, É importante também notar que as
idade, grau de escolaridade mais elevado características sociodemográficas deste
concluído, escolaridade dos pais ou grupo de entrevistados coincidem em
tutores, assim como pela tipologia ACM muitos aspetos com as referidas por
de operacionalização da classe social, Griswold, McDonnel e Wright (2005)
resultante do cruzamento da variável sobre a classe leitora, sendo que Sedo
situação na profissão com a variável (2003) aponta no seu estudo sobre clubes
profissão (Costa e Mauritti, 2018: 12). de leitura virtuais que as características
Um dos principais pontos a destacar dos membros destes clubes “coincidem
no grupo de entrevistados é a sua grande regra geral com os critérios demográficos
homogeneidade no que toca ao sexo, sobre os leitores tal como delineados por
sendo que, dentro dum conjunto de 15 Griswold, McDonnel e Wright (2005)”[12]
participantes, foram entrevistadas 14 (Sedo, 2003: 72).

ENTRELER 93
Leitura(s) em grupo. Um estudo de caso sobre práticas de leitura online

3.2. Clubes de leitura – do presencial [Telma, 29 anos, gestora de redes sociais]


ao online O clube de leitura presencial também
Wendy Griswold, McDonnell e Wright tem uma presença significativa, sendo
afirmam que “as pessoas leem em grupos, que, por exemplo, Luísa fundou o
e mesmo a leitura individual resulta da seu próprio grupo, um clube que
pertença a coletivos”[13] (2005: 132). conta também com um grupo do
Este estudo aborda a leitura em WhatsApp onde os membros conversam
grupo neste contexto mais generalizado, frequentemente sobre livros.
ou seja, a leitura em grupo enquanto Temos também o exemplo de Filipa,
fenómeno que vai além do clube de que já passou por vários clubes de leitura
leitura presencial, que tem lugar sempre presenciais:
que existe uma troca de impressões, O primeiro clube de leitura a que eu fui foi o da
uma busca de sugestões de leitura, um Sónia Morais Santos, autora do blog “Cocó na
sentido comunitário em torno do livro Fralda” (...) a partir daí comecei a notar mais à
que, segundo os entrevistados, existe minha volta que havia outros clubes. Houve uma
tanto no clube do livro como na secção de altura, em 2018 ou 2019, em que cheguei a ir
comentários de um blogue ou página do a quatro clubes de leitura. (...) Aqueles a que eu
Instagram sobre leitura. cheguei a ir eram físicos, entretanto adaptaram-
Sara, por exemplo, utiliza várias se (...) e acho que migraram todos facilmente
aplicações para falar sobre livros: para o online.
Tenho um grupo de amigas no WhatsApp (...) [Filipa, 25 anos, professora de português como
acho que somos 5. E nós partilhamos muito o língua estrangeira e formadora de escrita e
que andamos a ler, porque antigamente fazíamos comunicação]
parte dum clube de leitura, mas, entretanto, O clube de leitura assume também
como tivemos alguns dissabores com a dona da um importante papel de sociabilidade –
livraria, deixámos de lá ir, mas fazíamos parte um papel já estudado por autoras como
de um grupo, então às vezes temos sugestões de Radway (1991). Mónica, por exemplo,
coisas para ler, e vamos apontando. Ou então (...) comentou o seguinte:
pessoal que conversa comigo nas redes sociais, Em [...] 2015 abriu a Confraria Vermelha,
por exemplo, tenho um chat do Discord, temos a Livraria de Mulheres, em que se formou
mesmo lá um canal que é clube de leitura, e às um clube de leitura, foi o meu primeiro clube
vezes o pessoal vai sugerindo coisas, e eu vou de leitura, e a partir daí não só fiz amigas
apontando. (...) Nós (...) os habituais, somos cerca relacionadas com livros, mas houve muitos livros
de 20 (...). Por exemplo, há pessoal que estuda, sei que eu nunca na vida conheceria. Estas autoras –
lá, história da arte, ou pessoal que está muito no e são autoras muitas vezes africanas, brasileiras,
universo da fantasia e que vai sugerindo coisas, há asiáticas (...) e mesmo portugueses (...) eu não
pessoas que gostam mais de romance, ou literatura lia muita literatura portuguesa, e a Confraria
Inglesa do séc. XIX (...), e vão pondo. Vermelha abriu-me muito a isso. (...) Além disso,
[Sara, 29 anos, assistente editorial] quando me mudei para o UK, uma das formas
Já Telma criou um grupo de leitura que encontrei para fazer amigos foi em clubes de
virtual: leitura. (...) Eu quase que digo que a maior parte
(...) eu criei uma coisa chamada “Uma Dúzia de dos meus amigos – e é engraçado que a leitura
Livros”, e é uma espécie de clube do livro e de é um hobbie que se liga muito a introvertidos
desafio de leitura (...) e basicamente o que tens – [...] para aí 50% dos meus amigos vieram de
é, em vez de ser um livro por mês e toda a gente alguma forma através de livros. Seja em clubes
lê o mesmo livro, tens um tema por mês, e cada de leitura, seja na Universidade. (...)
pessoa escolhe um livro dentro desse tema. [Mónica, 30 anos, analista de dados]

94 ENTRELER
Leitura(s) em grupo. Um estudo de caso sobre práticas de leitura online

E Inês refere: nesta escolha, como foi referido pelas


Depois de ter o canal, depois de ter o blog, é que entrevistadas Mónica e Susana.
comecei a sentir uma ligação [a outros leitores]. Há livros que eu não conhecia se não visse muita
Antes da Internet sentia-me um bocadinho ‘a gente a lê-los, ou se não se falasse deles. Sem
estranha’, porque gostava de ler e gostava de ler dúvida, eu acho que as redes sociais são aquilo
fantasia. Eu durante anos achei que era a única que nós fazemos delas, e não o contrário. Sem
pessoa que lia fantasia. E quando descobri o dúvida as redes sociais impactam.
[blog] Estante de Livros aquilo era um mundo, [Mónica, 30 anos, analista de dados]
porque havia muita gente no fórum que adorava [A autora do] Estante de Livros, basicamente,
fantasia. fazia parte do grupo de bloggers com quem eu
[Inês, 38 anos, técnica de planeamento na área me dava e, ainda hoje em dia, eu sei que em
da construção] termos de opinião de livros, se usarmos o sistema
Esta partilha de significados, interpreta- de classificação de cinco estrelas, eu vario uma
ções e ideias sobre o livro não se limita, no estrela em relação a ela. Portanto, quando quero
entanto, às modalidades mencionadas aci- comprar livros de que tenho a certeza que vou
ma, as quais, desde o chat até aos encontros gostar, vou às cinco estrelas dela e compro-os.
do clube do livro, constituem sobretudo [Susana, 32 anos, gestora de conteúdo numa
“rodas de conversa” sobre a leitura. loja online]
Os participantes deste estudo são Durante o curso das entrevistas, no ve-
na sua maioria membros altamente rão de 2020, a questão do racismo e o mo-
participativos das suas comunidades vimento Black Lives Matter nos Estados
online: não só consomem conteúdo como Unidos dominavam a esfera pública, e foi
também o criam. São autores de blogues um tema recorrentemente mencionado:
de leitura e de contas no Instagram Tenho ultimamente tentado uma coisa que tenho
sobre livros, gerem comunidades online, visto muito em contas dos Estados Unidos, que é:
participam e criam podcasts dedicados eles incentivam a leitura de livros por autores de
inteiramente ao livro e têm o seu cor (...), e a olhar para as nossas estantes e fazer
próprio canal do YouTube também aquele exercício de perceber quantos livros eu
sobre a temática. Estas utilizações tenho só escritos por mulheres, por homens, por
frequentemente sobrepõem-se, sendo que pessoas de cor, leitura LGBT. Tenho feito mais
os participantes usam quase todos mais do esse exercício ultimamente, e mudado os meus
que uma RSO para falar sobre leitura. hábitos de leitura.
Temos, por exemplo, Filipa, que [Eva, 27 anos, médica veterinária]
tem um blogue de leitura, uma conta Mostrando-te as páginas [de Instagram] de
de Instagram onde partilha as suas alguns clubes de leitura internacionais que eu
leituras atuais, e que também regista consulto (...) Uma coisa que notei muito nos
as suas leituras e escreve críticas no clubes de leitura é que todos eles estiveram
Goodreads. Ou Inês, também utilizadora muito em cima do Black Lives Matter, todos
do Goodreads, que escreve igualmente eles falaram sobre isso, todos eles entrevistaram
críticas no seu blogue e canal do YouTube. escritores africanos, escritores americanos... foi
Os debates presentes nas RSO mesmo muito interessante perceber como isto
influenciam nitidamente as escolhas de se tornou um acontecimento mediático também
leitura dos participantes. As sugestões das para os clubes de leitura, e fez com que nas redes
editoras, os livros debatidos nos clubes sociais partilhassem mais literatura africana,
de leitura ou mencionados em podcasts, mais literatura americana, mais autores negros, e
ou partilhados no Whatsapp ou no isto é mesmo muito giro.
Discord, têm um peso bastante relevante [Luísa, 32 anos, redatora publicitária]

ENTRELER 95
Leitura(s) em grupo. Um estudo de caso sobre práticas de leitura online

Isto não só demonstra o interesse pela relevantes: a leitura enquanto prática


atualidade – a classe leitora é também social mediada pelo online.
consumidora de notícias (Neves, 2015: 72) Esta dimensão social da leitura
–, mas vem também novamente desafiar revelou-se não só nos processos de
a “ideologia do leitor solitário” que socialização dos entrevistados –
Elizabeth Long (1992) critica. afinal, todos eles têm características
É igualmente de destacar a presença das sociodemográficas próximas às apontadas
editoras, tanto nos clubes de leitura como por Griswold, McDonnel e Wright (2005),
através de parcerias com os utilizadores e por Griswold, Lenaghan e Naffziger
mais ativos e com mais seguidores. É, (2011), sobre a classe leitora –, mas
aliás, um aspeto importante, levando também na forma como utilizam tanto
mesmo a algumas críticas por parte dos os clubes de leitura presenciais como
entrevistados, como é o caso de Inês: a Internet enquanto ferramenta para
Infelizmente é uma coisa que eu vejo, não só partilhar ideias, sugerir livros e procurar
com os blogues, mas também com o BookTube novas leituras. E, tal como com a classe
e com o Instagram (...) a sensação que me dá é leitora, todos os participantes deste
que há muita gente que cria para receber livros estudo são leitores ávidos, lendo mais de
das editoras (...) não deve ser esse o principal 12 livros por ano.
objetivo. Não digo que com o tempo não possam Observa-se também um paralelismo
conseguir, eu também recebo livros de editoras entre este universo da análise e aquilo
(...) mas noto que as pessoas criam e, passados que Radway constatou sobre os clubes de
2 ou 3 meses, a sensação que dá é que a pessoa leitura presenciais, que são constituídos
criou só para receber. E a sensação que dá é que maioritariamente por mulheres de
só leem o que receberam. (...) Porque isso também classe média, com uma forte presença
se nota ao longo do tempo, porque são pessoas das editoras e uma igualmente relevante
que criam e depois desistem. A pessoa deve criar componente de sociabilidade.
por causa disso, porque tem gosto em partilhar. A articulação entre editoras e clubes
[Inês, 38 anos, técnica de planeamento na área de leitura, como foi referido, é observada
da construção] desde antes da expansão do clube de
Mesmo quando a leitura é feita a sós – e leitura para a Internet (Radway, 1991). As
frequentemente o é, pelo menos no que editoras parecem encontrar na Internet
toca aos participantes deste estudo –, a e no cariz altamente participativo do
Internet, os círculos de amigos, os clubes uso das RSO por parte deste universo da
de leitura e a crítica literária, seja esta análise uma oportunidade de divulgação
produzida pelos media ou pelos próprios do seu trabalho.
leitores, numa lógica de produsage (Toffler, Este artigo pretende deixar algumas
1980), têm uma nítida influência nos pistas para estudos futuros sobre a leitura
hábitos de leitura. enquanto prática social, propondo que
esta, sobretudo através da Internet, assume
contornos multifacetados que vão muito
CONCLUSÃO além do clube de leitura “tradicional”, o
qual, no entanto, não parece ter perdido
A partir dos dados recolhidos num estudo relevância, sendo a Internet mais uma
sobre a forma como os leitores ávidos ferramenta para a sua proliferação e não
utilizam as RSO enquanto ferramenta um substituto.
para a leitura, este artigo focou-se naquele
que acabou por ser um dos aspetos mais

96 ENTRELER
Leitura(s) em grupo. Um estudo de caso sobre práticas de leitura online

Notas [12] Tradução livre de “generally match the


[1] Este artigo retoma parcialmente a demographic criteria of readers outlined
dissertação de mestrado em Comunicação, by Griswold, McDonnell e Wright” (Sedo,
Cultura e Tecnologias da Informação 2003).
intitulada Leitura e internet: o uso das redes [13] Tradução livre de “People read in groups,
sociais online pelos leitores (Duarte, 2020). and even individual reading is the result
[2] Tradução livre de “ideology of the solitary of collective memberships” (Griswold et al,
reader” (Long, 1992). 2005).
[3] Tradução livre de “Perhaps the ultimate
expression of this form of social literacy
is the contemporary book club or reading REFERÊNCIAS
group” (Griswold et al, 2005).
[4] Tradução livre de “constitute one of the Bryman, A. (2004). Social Research
largest bodies of community participation Methods (2ª Ed.). Oxford University Press.
in the arts” (Poole, 2003). Cameira, E., e Cardoso, G. (2014). A
[5] Tradução livre de “Most readers need the sociologia da leitura e o (novo) paradigma
support of talk with other readers, the digital: uma relação a explorar. In G.
participation in a social milieu in which Cardoso, O Livro, o Leitor e a Leitura
books are ‘in the air’” (Long, 1992). Digital (pp. 4-25). Gulbenkian.
[6] Tradução livre de “ethnographic work on Costa, A. F., e Mauritti, R. (2018). Classes
book clubs generally focuses on groups of sociais e interseções de desigualdades:
women readers”. (Griswold, McDonnell e Portugal e a Europa. In R. M. Carmo, J.
Wright, 2011). Sebastião, J. Azevedo, S. C. Martins & A. F.
[7] Tradução livre de “The internet provides Costa, Desigualdades Sociais: Portugal e
an infrastructure to support both online a Europa (pp. 109-129). Mundos Sociais.
and face to face reading groups” (Griswold Duarte, R. (2020). Leitura e internet: o
et al., 2011). uso das redes sociais online pelos
[8] Tradução livre de “the definition of the leitores. (Dissertação de Mestrado em
term keen reader is also very varied. This Cultura, Comunicação e Tecnologias da
variety of definitions reveals how each Informação). ISCTE-IUL. Disponível em
nation tends to attribute a particular http://hdl.handle.net/10071/20980
identity to this social and economic Gangneux, J. (2019). Rethinking social
figure in the context of the hierarchies of media for qualitative research: The use
importance of the entire set of readers” of Facebook Activity Logs and Search
(Signorini, 2003). History in interview settings. Sociological
[9] Tradução livre de “the average number Review. 1-16.
of books read in each nation” (Signorini, Guerra, I. C. (2006). Pesquisa Qualitativa e
2003). Análise de Conteúdo: Sentidos e formas
[10] Tradução livre de “Keen readers were de uso. Princípia.
judged to be those buying more than 11 Griswold, W., McDonnell, T., e Wright, N.
books a year” (Signorini, 2003). (2005). Reading and The Reading Class in
[11] Tradução livre de “the meanings that the Twenty First Century. Annual Review
young adults ascribed to social media, their of Sociology. 31. 127-141.
everyday engagement with the platforms Griswold, W., Lenaghan, E., e Naffziger, M.
and in particular their perceptions of peer (2011). Readers as Audiences. In
monitoring and profile checking practices Nightingale, V. Handbook of Media
on these platforms” (Gangneux, 2019). Audiences (pp. 17-40). Blackwell.

ENTRELER 97
Leitura(s) em grupo. Um estudo de caso sobre práticas de leitura online

Long, E. (1992). Textual Interpretation as NOTA CURRICULAR DOS AUTORES


Collective Action. Discourse. 14 (3). 104-
130. Rita Duarte é licenciada em Sociologia pelo
Neves, J. S. (2015). Cultura de Leitura e Iscte-Instituto Universitário de Lisboa
Classe Leitora em Portugal. Sociologia. e mestre em Comunicação, Cultura e
Problemas e Práticas. 78. 67-86. Tecnologias da Informação pela mesma
Poole, M. (2003). The women’s chapter: universidade. Tem como principais áreas
women’s reading groups in Victoria. de investigação a cultura e os novos
Feminist Media Studies. 3(3), 263-281. media.
Radway, J. A. (1991). Reading the Romance: Jorge Vieira é atualmente Professor
Women, Patriarchy, and Popular Auxiliar no Iscte-Instituto Universitário
Literature. University of North Carolina de Lisboa e subdiretor do Mestrado em
Press. Comunicação, Cultura e Tecnologias de
Robards, B., e Lincoln, S. (2017). Uncovering Informação. É doutorado em Sociologia
longitudinal life narratives: scrolling e, além da docência, desenvolve
back on Facebook. Qualitative Research. investigação no Centro de Investigação
17(6). 715-730. Disponível em https://doi. e Estudos de Sociologia (CIES-Iscte) e no
org/10.1177/1468794117700707 OberCom-Observatório da Comunicação
Robards, B., e Lincoln, S. (2019). Social enquanto investigador integrado. Media e
Media Scroll Back Method. In P. Atkinson, cultura, e a forma como se interligam, são
S. Delamont, A. Cernat, J. Sakshaug, & as suas principais áreas de interesse.
R. Williams, SAGE Research Methods José Soares Neves é doutorado
Foundations. SAGE Publications. Obtido em Sociologia da Comunicação,
a 12 de novembro de 2019 de http:// da Cultura e da Educação (Iscte–
methods.sagepub.com/Foundations/ Instituto Universitário de Lisboa). É
social-media-scroll-back-method investigador integrado e subdiretor do
Santos, M. D., Neves, J. S., Lima, M. J., Centro de Investigação e Estudos de
e Carvalho, M. (2007). A Leitura em Sociologia (CIES-Iscte) e professor no
Portugal. GEPE. Departamento de Sociologia/Escola
Sedo, D. R. (2003). Readers in Reading de Sociologia e Políticas Públicas do
Groups: An Online Survey of Face- Iscte. Foi investigador permanente e
to-Face and Virtual Book Clubs. coordenador de projetos do Observatório
Convergence, 98(1). 66–90. das Atividades Culturais (OAC) durante a
Signorini, A. (2003). The images of the sua existência (1996 a 2013) e Presidente
keen reader in European research. do Grupo de Trabalho sobre Estatísticas
Obtido de Permanent European Reading da Cultura (GTEC) do Conselho Superior
Watch, a 20 de fevereiro de 2020: http:// de Estatística (2006 a 2010). É diretor do
www.grinzane.net/Osservatorio2003/ Observatório Português das Atividades
Osservatorio2003_ENG.html Culturais (OPAC) desde a criação em
Toffler, A. (1980). The Third Wave. William dezembro de 2018.
Morrow and Company.

98 ENTRELER
ARTIGOS

MEMÓRIA
Da materialidade do livro à memória coletiva
e à projeção no futuro
From the book’s materiality to collective memory
and a view for the future
Ana do Canto, Anabela Teixeira, Catarina Leal e Teresa Saborida

RESUMO história e cultura, e também valorizar o diá-


A Escola Secundária de Camões encontra- logo intergeracional.
se em obras profundas de requalificação
desenvolvidas pela Parque Escolar, EPE. ABSTRACT
Este é um tempo de oportunidade para se Escola Secundária de Camões is undergoing a
transformar este ‘museu’ da escola num novo large-scale renovation work by Parque Escolar,
conceito: o MUESC, um espaço museológico EPE. This is the right time to turn the school
aberto ao público geral, inserido numa ‘museum’ into a new concept: MUESC, which
instituição de ensino dinâmica, atuante de is a museological space open to the general pub-
cultura, ligada ao desenvolvimento passado, lic, belonging to a highly dynamic educational
presente e futuro da sociedade. institution that is tightly connected to its past but
O MUESC tem como objetivos não só a always looking ahead.
conservação e apresentação do espólio da MUESC’s main aims lie not only on the con-
Escola, como a montagem – a par de módulos servation and presentation of school assets but also
museológicos de índole histórica – de exibições on the assembly – with museological modules of a
literárias, científicas e artísticas de natureza historical nature – of olding of literary, scientific,
participativa e interativa e o envolvimento and artistic exhibitions of participatory and in-
da comunidade escolar nas diferentes fases teractive nature. Furthermore, it aims at involving
de todo o processo (desde a elaboração e the school community in the whole process (draw-
montagem à divulgação e acompanhamento). ing, assembling, dissemination and monitoring).
O espólio da Biblioteca contempla obras The Library assets comprise reference works
de referência que percorrem vários séculos, dating from centuries ago, which are symbols of
símbolos da cultura portuguesa e da história the Portuguese culture and world history. They are
universal. Constitui ainda um recurso a key resource for the understanding and knowl-
fundamental para a melhor compreensão edge of the school’s material and immaterial herit-
e conhecimento do património material e age, teaching practices, ideas and the human mind.
imaterial da escola, das práticas pedagógicas, One of the main goals of this project is to
das ideias e da mente humana. involve the community, especially the students, in
É um dos objetivos deste projeto envolver a a process of surveying the oldest reference works,
comunidade e, principalmente, os alunos, num which will allow them to consider multiple aspects
processo de levantamento das obras mais an- related to their materiality: anatomy, format,
tigas que permita atender a múltiplos aspetos layout, among others.
relacionados com a sua materialidade: anato- The idea is to value books in their materiality,
mia, formato, layout, suportes, entre outros. ontogeny and phylogeny, to stimulate an incur-
Pretende-se valorizar o livro na sua mate- sion into literary works that play a key role in
rialidade, ontogenia e filogenia, estimular a our history and culture and also to value intergen-
incursão a obras literárias marcantes da nossa erational dialogue.

ENTRELER 99
Da materialidade do livro à memória coletiva e à projeção no futuro

PALAVRAS-CHAVE Lisboa, da autoria do arquiteto Ventura


MUESC, livros, biblioteca, património, Terra, promovido pelo Estado no âmbito
memória de uma política de fomento do ensino
secundário.
KEYWORDS Atualmente, é a Parque Escolar EPE,
MUESC, books, library, heritage, memory empresa pública criada pelo Ministério
da Educação[3], que planeia, programa
e fiscaliza o processo de recuperação e
INTRODUÇÃO modernização de escolas.
Na nossa Escola, a intervenção da
As instituições de ensino geram Parque Escolar EPE iniciou-se em 2019,
património. A ação educativa materializa- com uma obra projetada pelo gabinete
se em objetos, livros e manuscritos que são do arquiteto João Falcão de Campos.
acumulados e intensamente utilizados em A reabilitação de uma zona das caves
salas de aula, laboratórios, bibliotecas e (sul) está a ser executada de modo a
demais espaços. albergar o ‘Museu’[4] – um espaço de
A essência dos fragmentos patrimoniais exposição de longa duração, com zona
diz respeito ao passado, mas é nos de reserva visitável e arquivo, estando
tempos modernos que ela se manifesta, se também a ser equacionados espaços que
legitima e se incorpora nas instituições. se ajustem a exposições temporárias.
O património nasce efetivamente do Estas novas condições impulsionaram
presente. É neste que pode ser objeto o desenvolvimento e a concretização de
de observação, estudo, manipulação, estratégias para a consolidação de um
acumulação ou, simplesmente, objeto de novo conceito: o MUESC – Museu da
conservação. O património também pode Escola Secundária de Camões Mariano
ser visto como recurso pedagógico, atração Gago. Aqui pretende-se estudar,
turística, aparelho ideológico ou político. sistematizar, conservar e musealizar o
Neste texto focar-nos-emos no patrimó- espólio da Escola através de um projeto
nio da Escola Secundária de Camões, em participado, colaborativo e inclusivo da
particular nos livros da sua Biblioteca comunidade, de profissionais de várias
Histórica, como é o caso do Rimas varias áreas científicas, que abranja vários
de Luís Camões, publicado em 1685. setores e parcerias e que cruze memórias
de várias gerações. Pretende-se um
museu aberto a todos os que o queiram
1. UM ESPAÇO VIVO AO SERVIÇO DA visitar, inserido numa escola viva, que
CULTURA E DA CIDADANIA contemple módulos museológicos de
índole histórica, de exibições literárias,
É uma ilusão pensar que as memórias nos científicas e artísticas que contribuam
ajudam a resolver os problemas do presente. para uma melhor compreensão das ideias,
Mas, sem elas, não há existência humana que teorias e fenómenos, numa perspetiva
tenha sentido. Por vezes, é grande a tentação de transdisciplinar.
amnésia. Para contrariá-la, impõe-se o esforço de Tal como ilustrado na Figura 1, as
pensar a história, de nos pensarmos na história. Coleções, o Arquivo e a Biblioteca são
(António Nóvoa, 2003)[1] elementos cruciais para o desenvolvimento
deste projeto. A criação do MUESC implica
O Liceu Camões, construído entre 1908 e o desenvolvimento de múltiplas tarefas,
1909, foi o primeiro ‘liceu moderno’[2] de necessárias ao estabelecimento de uma

100 ENTRELER
Da materialidade do livro à memória coletiva e à projeção no futuro

política de gestão comum a todo o acervo contexto da sua fundação, possuem


que garanta os requisitos compatíveis com também elementos que, pela sua
a candidatura à credenciação deste projeto, importância e singularidade, se constituem
de acordo com a Lei-Quadro dos Museus itens musealizáveis. É disso exemplo o
Portugueses, Lei n.º 47/2004 de 19 de agos- que se apresenta ao longo deste texto,
to. A organização e execução destas múl- em particular na parte 3 – ‘objeto do
tiplas ações só será possível num contexto mês #3’: a tridimensionalidade do livro
que possibilite uma abordagem multifato- na era do digital. Assim, o património
rial e transdisciplinar, assente na materia- documental e bibliográfico tem um duplo
lidade das diferentes coleções, no suporte valor: enquanto património em si mesmo
documental e bibliográfico e respetivo e enquanto informação associada às
programa de comunicação e divulgação. coleções, objetos, ideias, pessoas e tradições.
Ao longo de mais de cem anos, o acervo
bibliográfico desta Escola acumulou
cerca de 26 000 registos, entre doações e
aquisições, que abrangem todas as classes
da CDU (Classificação Universal Decimal).
Muitas destas obras assumem estatuto
de Livro Antigo e ainda publicações
periódicas relevantes.
Desde 2010 tem sido feito um
trabalho de divulgação deste espólio
através de sessões destinadas a todas as
turmas do 10.º ano. Nestas sessões fala-
se da história do livro e mostram-se
vários exemplares. A reação é sempre
de surpresa e admiração. As capas, as
cores, os caracteres, o cheiro, o tamanho
Figura 1: Estrutura do MUESC – Museu da Escola e especialmente a idade do livro são
Secundária de Camões Mariano Gago os elementos que fazem sempre surgir
questões relacionadas com a origem
A documentação relacionada com as de certos livros na escola (se foram
coleções está dispersa por várias séries adquiridos ou doados), o preço, entre
em que se integram documentos, como outras. Ainda não temos respostas para
correspondência (recebida ou enviada) muitas das perguntas que colocam,
ou copiadores, inventários, traslado mas a partir daquele momento os
de recibos e faturas, atas dos órgãos alunos percebem que há uma diferença
que foram constituindo as estruturas substancial entre o acervo da Biblioteca
das escolas, livros de registos, entre Escolar, de livre acesso e com livros
outros. Esta documentação é um recurso atuais relacionados com os currículos em
fundamental para a investigação, ensino vigor, e o da Biblioteca Histórica, com
e cultura, necessário à valorização do os livros “fechados à chave”. O próprio
património da escola, do conhecimento espaço desta coleção é imponente, com
da sua história, sob a forma de exposições, a sua estanteria de carvalho, portas de
roteiros e atividades educativas. galinheiro em ferro (de dois metros de
O Arquivo e a Biblioteca da Escola altura) e de acesso condicionado, o móvel
Secundária de Camões, atendendo ao de arquivo das fichas catalográficas, os

ENTRELER 101
Da materialidade do livro à memória coletiva e à projeção no futuro

bustos. Além desta representação material, A história da Biblioteca do Liceu


os cheiros dos livros e madeiras compõem Camões está, assim, intimamente ligada à
uma parte da história do Lyceu de Camões história desta Escola, por onde passaram
que a comunidade escolar valoriza como vários vultos da literatura, das ciências e
sendo um património a preservar. Esta das artes. Este espólio apresenta obras de
solenidade do espaço contrasta com referência, símbolos da cultura (i)material
a ambiência descontraída que resulta e história universais.
da utilização frequente do piano por
muitos alunos, que aproveitam para tocar
composições de vários estilos e épocas. 2. O ‘OBJETO DO MÊS’: ELEMENTO
AGREGADOR DE CONHECIMENTO, DA
MEMÓRIA E DA COMUNIDADE

O potencial expositivo do património da


Escola Secundária de Camões é enorme
e possibilita múltiplas abordagens. Este
potencial pode e deve ser explorado
dentro da própria escola e com os alunos.
Neste sentido, no ano letivo de 2020/2021,
foi iniciada a atividade ‘objeto do mês’,
Figura 2: Fotografia retirada de um artigo de A que tem como objetivo realizar pequenos
Revista Expresso de 2 de novembro de 2013
ensaios de planeamento, investigação,
interpretação, produção e instalação de
As obras de requalificação em curso uma narrativa sobre peças das diferentes
reafirmaram a urgência de se completar coleções do espólio da escola e, assim,
o inventário da Biblioteca. A perspetiva dar início a uma atividade museológica
do embalamento despoletou várias que se pretende interdisciplinar e
ações centradas nos livros da Biblioteca intergeracional.
Histórica. Os alunos do Curso Profissional O ‘objeto do mês’ pretende incentivar
de Técnico de Fotografia, no âmbito a partilha e a valorização do acervo
de Cidadania e Desenvolvimento, da Escola e sensibilizar para a sua
concretizaram o projeto “Registo história através da divulgação de um
Camoniano”, que reúne um conjunto de folheto digital, disponibilizado na
fotografias resultantes de abordagens página da Internet da instituição, e de
técnicas, históricas e artísticas. Este suportes físicos destinados a exposições
projeto é um importante contributo para a temporárias visitáveis em diferentes
valorização e divulgação deste acervo. espaços. Assim, a partir da experiência e
do contacto direto com os bens materiais
e imateriais, esta atividade apresenta-
se vocacionada para desempenhar uma
ação cultural, tanto no âmbito do ensino
formal quanto do informal, envolvendo a
comunidade educativa nos seus diferentes
processos de apropriação e valorização do
Património (I)Material da Escola.
Figura 3: Exemplo de fotografias do projeto “Registo
Camoniano”, aqui com o livro Fenis Renascida ou Obras
O primeiro em destaque foi o
Poéticas dos Melhores Engenhos Portugueses (1718) microscópico ótico composto (M.O.C.)

102 ENTRELER
Da materialidade do livro à memória coletiva e à projeção no futuro

Reichert, fabricado em Viena entre 1908


e 1911, da Coleção da Biologia. A partir
deste instrumento científico, foi possível
construir-se uma narrativa intitulada
“Uma viagem ao mundo invisível”. A
sua utilização pelos alunos da Escola
foi recorrente ao longo de mais de um
século, sendo um objeto bem presente na
memória de todos.
Nas escolas, os testemunhos do seu
manuseamento ficaram registados
em múltiplas fontes primárias, como
fotografias, livros de ponto, relatórios de
professores, atas e cadernos. A referência a
atividades com este instrumento também
tem sido feita nos manuais escolares e em
textos legislativos, sendo a sua valorização
como recurso educativo frequente
desde a fundação dos primeiros liceus
portugueses. Figura 4: Ícone do ‘objeto do Mês #1’
Assim, para a construção do ‘objeto do
mês #1’ foram consultados: inventários,
catálogos, documentação da contabilidade,
relatórios de professores, em particular
o do professor Luís de Oliveira Maia
referente à sua docência no Liceu de
Camões[5] (1952), e o manual escolar[6] de
que este professor foi coautor nessa época,
vários sites e fóruns de especialistas em
instrumentos científicos.
Atendendo à atual situação pandémica,
tem-se assistido a uma valorização do
papel da ciência na sociedade. Esta
narrativa corroborou a importância do Figura 5: Manual escolar A Terra e a Vida, Elementos
avanço da ciência e tecnologia associado de Ciências Geográfico-Naturais, de Luís de Oliveira
Maia
à utilização deste instrumento científico
e do seu impacto nas áreas da medicina,
incluindo a vacinação, e da produção O segundo ‘objeto do mês’, a régua
alimentar. de cálculo, projetou-nos para uma
Esta iniciativa contou com a colabo- dimensão mais ampla. Em “Fomos
ração de vários professores e alunos (do à Lua com as réguas de cálculo…”
curso de Ciências e Tecnologias e do curso utilizaram-se fontes como livros da NASA,
Profissional de Técnico de Fotografia) e compêndios escolares e correspondência
permitiu também a realização de uma ati- disponível no Arquivo Histórico sobre o
vidade prática, enquadrada no domínio da “Projeto de modernização do ensino da
reprodução e manipulação da fertilidade, Matemática no 3.º ciclo liceal”, lançado
do 12.º ano de Biologia. em 1963/1964[7]. Foram realizadas

ENTRELER 103
Da materialidade do livro à memória coletiva e à projeção no futuro

experiências em algumas turmas e matemático que dirigiu as referidas


distribuídos textos e réguas de cálculo aos experiências nas escolas portuguesas.
alunos e professores das turmas-piloto. Com este objeto pouco conhecido,
São desta década a maioria dos exemplares pretendeu-se chamar a atenção para a
de réguas de cálculo que se encontram sua importância antes do aparecimento
atualmente nos espólios de algumas (na década de 1970) das, agora vulgares,
escolas, de que é exemplo a régua que calculadoras eletrónicas de bolso. A régua
esteve em destaque no ‘objeto do mês #2’. de cálculo foi utilizada por estudantes e
profissionais de todo o mundo e ajudou
a resolver problemas extremamente
complexos, inclusive a ida do Homem à
Lua, como testemunhou Norman Chaffee,
que trabalhou no sistema de propulsão das
naves Apolo.
Esta atividade permitiu ainda a explora-
ção do conceito de logaritmo e suas pro-
priedades em aulas de um curso de Educa-
ção e Formação de Adultos, e contou com a
participação de vários elementos da comu-
nidade (professores, alunos e familiares).
O acesso ao acervo da Biblioteca foi
muito importante para a documentação e
enriquecimento da narrativa construída
acerca destes dois objetos históricos. Muito
particularmente o manual escolar, “na
medida em que simboliza uma construção
cultural, estrutura o ato do conhecimento,
materializa a relação pedagógica e
configura o campo epistémico-pedagógico
Figura 6: Ícone do ‘objeto do mês #2’
da cultura escolar” (Magalhães, 2006, p.8).

3. ‘OBJETO DO MÊS #3’: A


TRIDIMENSIONALIDADE DO LIVRO NA
ERA DO DIGITAL

No ano letivo 2019/2020, apesar das


dificuldades inerentes ao confinamento
decorrente da pandemia, a comunidade
Figura 7: Manuais escolares de Matemática da
escolar homenageou o patrono da escola,
década de 1960 através da leitura integral de Os Lusíadas,
que se encontra disponível no canal do
No folheto de divulgação acrescentou- Youtube TVCamões (Escola Secundária de
se uma fotografia de um evento realizado Camões – YouTube). Este projeto contou
na Escola, no âmbito das Comemorações com a participação de muitas dezenas de
do centenário do nascimento de alunos, pais e encarregados de educação,
José Sebastião e Silva (1914-1972)[8], professores e outros convidados.

104 ENTRELER
Da materialidade do livro à memória coletiva e à projeção no futuro

Figura 8: Leitura integral de Os Lusíadas, pela comunidade da Escola Secundária de Camões. Desenhos do
professor Filipe Duarte

Na sequência dessa iniciativa Fazendo um breve estudo da


agregadora, decidiu-se eleger mais uma vez “anatomia” deste livro, e selecionando
Luís de Camões e a sua obra como elemento apenas alguns elementos, destacam-
crucial da nossa cultura, através da escolha se as características seguintes. As suas
para terceiro ‘objeto do mês’ do livro da dimensões são 21,3 x 30,3 x 6 cm, [XLVI
Biblioteca Histórica da escola Rimas varias p] 339 p. A capa e contracapa é em pele
de Luis de Camoens Principe de Los Poetas gravada com baixo relevo, e na lombada
Heroycos e Lyricos de Espana; comentadas encontra-se gravado o título e no sopé
por Manuel de Faria Y Sousa, Cavallero de la “Bibliotheca do Lyceu de Camõ[es]”. As
Ordem de Christo (Tomos I e II). duas folhas de guarda são marmoreadas a
Esta escolha reforça, mais uma vez, um ocre, bordeaux e preto.
elemento central da matriz do MUESC, Na folha de rosto, ou frontispício,
que é o envolvimento de temáticas de encontramos composição tipográfica
abordagem curricular com os objetos do centrada com composição rítmica entre
espólio da escola, promovendo junto dos caracteres maiúsculos, minúsculos e
diferentes elementos da comunidade itálicos em diferentes tamanhos. Nela se
aprendizagens formais e informais. Neste apresenta um carimbo, o da Biblioteca da
caso, sendo Camões um autor indicado Escola, e a indicação de uma localização
no currículo da disciplina de Português, do livro, escrita a azul “E 8, P 2”. Contém
no domínio de Educação Literária: na primeira parte a dedicatória, aprovação
interpretar textos literários portugueses de de censores da Inquisição, advertências
diferentes autores e géneros, produzidos (utilização de abreviaturas e outras
entre os séculos XII e XVI. informações importantes destinadas aos
De 1685, esta edição de Rimas varias, leitores), prólogo, “vida del poeta”, “juizio
impressa na Oficina de Theotonio Damafo destas rimas, discurso acerca de los versos
de Mello, impressor da Casa Real, tem de que constam”.
todas as páginas em excelente estado de No início de cada capítulo, os cabeçalhos
conservação, embora a capa e a lombada contêm xilogravuras de floreio cujo dese-
estejam danificadas. Tem indicado que o nho de linha preta sobre fundo branco são
conjunto de obras que integra foi oferecido recursos gráficos estilizados ao gosto por-
a D. João da Silva, Marquês de Gouveia, tuguês da época. As capitulares surgem, por
que foi presidente do Desembargo do Paço, vezes, com motivos botânicos ou aparecem
Mordomo Maior da Casa Real. simplesmente com tamanho maior.

ENTRELER 105
Da materialidade do livro à memória coletiva e à projeção no futuro

O texto corrido é composto em século XX. A análise do 1.º Livro Entradas


duas colunas, utilizando dois tipos de (Tombo) Biblioteca – 1909 a 1947 permitiu
caracteres tipográficos, o itálico para verificar que este Rimas varias existe na
a lírica camoniana e o romano para o Biblioteca desde a fundação da Escola
texto de análise/ comentário, ambos (1909), estando registado com o número
com ligaduras tipográficas. À época, os de inventário 235. No entanto, não foi
caracteres romanos humanistas com a ainda possível esclarecer se foi adquirido
influência francesa de Claude Garamond ou doado, uma vez que as nove primeiras
tinham formas arredondadas, eixo páginas do referido livro de registos se
humanista pouco acentuado, traços perderam, sendo a primeira referência da
modulados, ligeiro contraste entre décima página indicada com o número
variações de espessura, serifas acentuadas de inventário 381, lançada em 1909. A
e a altura de x pequena. O conjunto de dificuldade de conhecer a proveniência
glifos representa uma relação harmoniosa do Rimas varias tem suscitado a incursão
da influência dos alfabetos maiúsculos a documentação cada vez mais diversa,
lapidares romanos com a minúscula consulta dificultada pelo facto de uma
carolíngia. Ainda acresce, neste exemplar, parte da documentação do Arquivo
a letra itálica, cuja invenção é atribuída a Histórico ter sido destruída por um
Ludovico Arrighi. incêndio que decorreu em 2005.
Ainda assim, foi possível analisar o
livro de registos das requisições efetuadas
por professores do Liceu, entre 1925 e
1949. Durante este período, a requisição
de Rimas varias nunca foi registada, o
que abre campo à hipótese de se tratar
de um livro muito reservado e valioso.
Esta hipótese é corroborada por Joaquim
de Carvalho, segundo o texto de José
V. de Pina Martins[9], que afirmou que
“esta edição é muito estimada, e mesmo
notável. Dela foi mandado um exemplar à
Exposição de Paris, em 1867”.
Figura 9: Fotografias da capa e lombada do livro
Rimas varias, tiradas pelas alunas do curso
Muitas das questões que têm surgido
Profissional de Técnico de Fotografia Bruna César e ao longo do estudo que se está a fazer,
Rafaela Vaz no âmbito desta investigação para
o ‘objeto do mês #3’, só podem ser
O estudo do terceiro ‘objeto do mês’ enquadradas tendo em atenção um
começou com a consulta de várias fontes plano mais abrangente e complexo que
na busca de elementos que pudessem considere a história do nosso país. Por
enquadrar a sua chegada à escola. Para exemplo, as medidas tomadas por José
o efeito, deu-se início à exploração Xavier Mouzinho da Silveira e pelo
de documentação sobre a Biblioteca. ministro Silva Carvalho do governo
Consultaram-se os anuários e, no Arquivo liberal, da década de 30 do século XIX[10],
Histórico, os livros de tombo e de registo e a Reforma do Ensino Liceal de Passos
de requisições, notas avulsas existentes Manuel, na qual se defende que os estudos
junto a estes livros e os copiadores de secundários deveriam dar ao cidadão
correspondência das primeiras décadas do uma ampla cultura geral. Esta visão

106 ENTRELER
Da materialidade do livro à memória coletiva e à projeção no futuro

acompanhou a construção e dotação de Escola, gera um campo fértil para uma


muitos dos liceus históricos portugueses. abordagem transdisciplinar e fomentadora
A este propósito e relativamente às de reflexão e conhecimento. Esta
Bibliotecas, António Ferrão refere, em complexidade estimulou uma interação
1920: muito particular com alguns alunos.
Como se sabe, todos os liceus teem as suas Uma das preocupações que
bibliotecas privativas mais ou menos bem sortidas. acompanharam a elaboração do ‘objeto
Ao passo que algumas delas teem os seus recheios do mês #3’ foi conhecer o modo como
constituidos, principalmente, por obras dos séculos os alunos percecionavam este Livro
XVII e XVIII, de teologia, história e literatura, Antigo e colocar o enfoque na partilha de
- restos das livrarias conventuais, outras estão conhecimentos, ideias e produtos. Nesse
muito regularmente providas de obras modernas sentido, foram feitas entrevistas (gravações
de sciências da natureza, geografia, história, áudio associadas à ficha de inventário)
literatura e filosofia. Entre estas é legitimo salientar a dois alunos que têm acompanhado
as bibliotecas dos novos liceus de Lisboa: Passos ativamente o projeto MUESC.
Manuel, Pedro Nunes, e Camões. (Ferrão, 1920, Para Bruna César, “tocar num livro e
p. 241 apud Estudante, 2013, p. 72) saber que foi escrito e editado há tanto
Rimas varias de Luis de Camoens Principe tempo, há mais de 400 anos, foi uma
de Los Poetas Heroycos e Lyricos de Espana; experiência incrível.” Fotografar o livro,
comentadas por Manuel de Faria Y Sousa nos seus detalhes, permitiu-lhe apreender
suscita interesses muito diversificados um conjunto de pormenores que de outra
que se prendem com a personalidade forma seriam inatingíveis. Para a Bruna
controversa de Manuel Faria e Sousa, também foi importante perceber melhor
as condicionantes relacionadas com o a história e evolução do livro enquanto
período filipino, com o conteúdo da obra objeto: “consegui ver a evolução do que
e a possível adulteração de muitos dos era antes e o que é agora – os materiais
textos compilados, de acordo com a análise da capa, a tipografia das letras e as
de Carolina Michaëlis de Vasconcelos, imagens.” Poder ver a obra Rimas varias
António José Saraiva e Óscar Lopes, entre sem ser através das grades do armário da
outros. No entanto, os comentários que biblioteca foi para ela uma experiência
acompanham a obra de Manuel Faria e muito gratificante.
Sousa também recebem elogios e apelam João Richart realçou o facto de o papel
a uma compreensão mais ampla do seu ser mais rígido do que o dos livros atuais,
enquadramento histórico. A este propósito, ficou surpreendido com a saturação da cor
Joaquim Costa cita Jorge de Sena: que, atendendo à idade do livro, “esperava
[...] poderíamos até afirmar que sob muitos que fosse mais esbatida, que não se ia
aspectos, os comentários de Faria e Sousa são ver bem”; afinal, “as letras eram legíveis
mais relevantes hoje do que o eram quando ele os e percetíveis e havia um cuidado com a
publicou, porque nos colocam em contacto com estética que já não se verifica hoje em dia”.
uma multidão de referências que se perderam da Apreciou também a riqueza dos detalhes
memória culta e dormem o seu sono na vastidão e da iconografia, embora tenha registado
das bibliotecas e arquivos deste mundo. múltiplas diferenças na caligrafia e
(Costa, 2012, p.8) ortografia. Salientou ainda que o livro ia
Esta complexidade de itens de análise, muito além das rimas: “é um livro feito
onde confluem temas da história e para pesquisa e para o entendimento, com
literatura portuguesas, além de aspetos listagem de siglas e acrónimos” e tornando
relacionados com a própria história da próximo um tempo tão distante, em

ENTRELER 107
Da materialidade do livro à memória coletiva e à projeção no futuro

que a Inquisição exercia a sua atividade uma abordagem sobre a evolução do


censória. Sentiu necessidade de voltar a objeto livro, através da comparação entre
ver o livro para absorver melhor o seu esta e edições atuais. Além disso, permite
conteúdo e sublinhou a importância do que os alunos percecionem elementos da
contacto físico para percecionar melhor sua materialidade e organização como:
uma realidade “que nos parece distante”. elementos extratextuais (anatomia do
Quando confrontado com as dúvidas que livro), pré-textuais, textuais e pós-textuais.
a obra suscita, considerou que isso ainda A consulta das diversas fontes permitiu-
estimula mais atenção e apreço por esta: nos encontrar elementos explicativos
“a dúvida é enriquecedora... é o método sobre a origem de outros Livros Antigos.
de Descartes. Os pontos de reflexão Por exemplo, ao consultar o livro de
nunca vêm de afirmações, vêm sempre tombo, descobriu-se que a obra Ásia
de dúvidas porque, quando chegamos Chronica do Felicissimo Rey Dom Emanuel
ao certo, ao fim da estrada, já lá estamos da Gloriosa Memória foi doada à escola
e podemos tirar conclusões. Mas uma em 1938, por Luís de Albuquerque de
conclusão é diferente de uma reflexão ou Sousa Lara, pai e encarregado de educação
de uma questão, na dúvida a inquietação é do aluno n.º 12 do 6.º 1.ª, António Luís
como um motor para que se procure mais, Cisneiros Ferreira de Albuquerque Sousa
para que se pesquise mais, para que se Lara, conjuntamente com mais de 20
absorva mais”. livros. Pelo que foi possível observar, as
doações por encarregados de educação de
alunos eram frequentes. Este livro, assim
como centenas de livros deste acervo, são
dos séculos XVI, XVII, XVIII e XIX, sendo
representativos da literatura, história,
ciência e artes deste largo período.

CONCLUSÃO

São muitos os desafios que se impõem


aos cidadãos do século XXI. Contudo, não
se pode esquecer o passado e o legado
extraordinário dos nossos antepassados,
de gerações que cuidaram de um vasto
património material e imaterial. Este
Figura 10: Mancha gráfica da página 193 do livro património é fundamental para o
Rimas varias conhecimento que se ensina e que se
gera diariamente nas mais diversas áreas
O ‘objeto do mês #3’ permitiu também científicas, artísticas e das humanidades,
a preparação de uma sessão destinada aos bem como para a história da escola e
alunos do 10.º ano, no âmbito do estudo para a memória da sua identidade. No
da lírica de Camões. Esta sessão dedicada entanto, a importância deste património
a Rimas varias agrega aspetos relacionados é bastante mais abrangente, sobretudo
com o já mencionado contexto histórico se considerado no seu todo. Inclui
da obra, a sua edição e o seu conteúdo. Por edifícios, coleções e objetos cuja qualidade,
outro lado, esta edição de 1685 possibilita quantidade, singularidade e coerência

108 ENTRELER
Da materialidade do livro à memória coletiva e à projeção no futuro

científicas e artísticas o projetam para vetor de produção de conhecimento o


um nível nacional e internacional. Numa património cultural da Escola Secundária
instituição de ensino com uma longa de Camões.
história, as tensões entre o passado e o Preservar e disponibilizar de forma
futuro são inevitáveis. Por um lado, o integrada este património, apesar de todos
passado é fonte de orgulho, prestígio, o desejarmos, coloca muitos desafios.
legitimidade e identidade. Por outro, o A Escola está ciente desses desafios e,
compromisso da escola com a sociedade sem esmorecer perante os obstáculos,
está no futuro, tendo de se reconfigurar reafirma a necessidade de se avançar
de modo a responder às exigências dos para esta etapa com a comunidade
novos tempos, caracterizados pelo rápido escolar e com o apoio de unidades de
avanço do conhecimento, da criação, da investigação, universidades, museus e
tecnologia e da inovação. Este aparente outras instituições. Será um trabalho
paradoxo, se, por um lado, confere longo e difícil, mas necessário para se
significados e especificidades próprias às alcançar o objetivo de criar o MUESC –
coleções históricas e ao património gerado Museu da Escola Secundária de Camões
pela escola, também lhes traz um grande Mariano Gago. Devolver à comunidade o
desafio, que transcende largamente o património da Escola é um dever perante
âmbito da instituição, o de contribuir para todos os que preservaram este acervo ao
uma maior visibilidade da cultura e do longo de mais de um século. Só assim será
património e para o reconhecimento da sua possível contar esta nossa história, que é a
importância e do seu caráter transversal história de todos nós.
em todos os setores da sociedade.
Neste contexto, a Escola Secundária Notas
de Camões tem vindo a assumir um [1] Nota de apresentação, p. 13, em Nóvoa, A.
papel inovador no panorama do ensino & Santa-Clara, A.T. (Coords.) (2003). “Liceus
em Portugal. Propõe-se, especialmente de Portugal” Histórias, Arquivos, Memórias.
aos alunos, um exercício de cidadania Edições Asa.
e participação social que lhes permitirá [2] Marco na arquitetura escolar, centrado
conhecer melhor para melhor valorizar na conceção de um edifício destinado
o património da sua Escola. A partir ao ensino secundário, com condições
de um edifício ou de um espaço, de um adequadas às exigências pedagógicas e
objeto ou de um conjunto de objetos higiénicas (cf. Silva, 2000, pp. 188-220).
(livros, manuscritos, fotografias, mapas, [3] Ministério da Educação, Decreto-Lei n.º
pinturas, esculturas, peças associadas a 41/2007, 21 de fevereiro.
uma celebração ou a um testemunho, [4] Na fundação do Liceu Camões, o museu
espécimes de história natural, teve lugar de destaque, na nave central.
instrumentos científicos, entre outros Mais tarde passou para o primeiro piso do
a ponderar – as opções são múltiplas), pátio sul. Com a necessidade de se criarem
podem ser realizados estudos que sirvam mais salas de aula, foi desmantelado na
de base para o desenvolvimento de um década de 80 e o seu espólio espalhado por
programa cultural integrado. Assim, diversos espaços. Grande parte dos objetos
a partir da experiência e do contacto foi concentrado no espaço num núcleo
direto com os bens materiais e imateriais, museológico, situado na zona da antiga
propõe-se a participação num processo Escola António Arroio, onde permaneceu
ativo de apropriação e de valorização das até ao início da execução das obras pela
suas referências culturais, tendo como Parque Escolar, em 2019.

ENTRELER 109
Da materialidade do livro à memória coletiva e à projeção no futuro

[5] Relatório do professor Luís de Oliveira REFERÊNCIAS


Maia referente à sua docência no Liceu
Camões (1952). Arquivo da Secretária-Geral Costa, J. (2012). Manuel de Faria e Sousa
da Educação e da Ciência PT/MESG/AAC/ Cidadão do mundo e das letras ao
IEL/001/0013/00723. serviço de Portugal. Centro de estudos
[6] A Terra e a Vida, Elementos de Ciências do românico e do território, 1.ª edição.
Geográfico-Naturais. Coautoria de J. Estevão Estudante, A. B. de O. (2013). Biblioteca
e Luís de Oliveira Maia. Lisboa (1953). do Liceu de Faro (1836-1948) entre a
Escola de Camões, Biblioteca 52 EST. história do liceu e os manuais escolares
[7] Proposta de reforma dos programas e de ciências do seu fundo documental.
métodos de ensino desta disciplina nos Dissertação apresentada à Universidade
últimos dois anos do ensino liceal. do Algarve para cumprimento dos
[8] No ano letivo de 2014/2015, a Escola requisitos necessários à obtenção
Secundária de Camões associou-se do grau de Mestre em Ciências
às comemorações do centenário do Documentais.
nascimento do matemático José Sebastião Heitlinger, P. (2006). Tipografia, Origens,
e Silva (1914-1972), organizadas pela formas e uso das letras. Dinalivro.
Universidade de Lisboa (sítio da Internet Magalhães, J. (2006). O mural do tempo:
http://jss100.campus.ciencias.ulisboa.pt/) manuais escolares em Portugal. Edições
[9] Texto de José V. de Pina Martins divulgado Colibri e Instituto da Educação da
no sítio Camoniana – Joaquim de Carvalho, Universidade de Lisboa.
vida e obra. Nóvoa, A. & Santa-Clara, A.T. (Coords.)
[10] Luís Espinha da Silveira, em A venda dos (2003). “Liceus de Portugal” Histórias,
bens nacionais (1834-43): uma primeira Arquivos, Memórias. Edições Asa.
abordagem, Análise Social, vol. XVI (61-62), Silva, C.M.M. (2000). Escolas belas ou
1980-l.º-2.º, 87-11, explora a iniciativa de Espaços sãos? Uma análise histórica
venda de bens nacionais, após a revolução sobre a Arquitetura escolar portuguesa
de 1820, em 1834, que atingiu os bens da (1860-1920). Dissertação de Mestrado
Igreja, da família real e parte dos da Coroa. em Ciências da Educação apresentada à
Faculdade de Psicologia e de Ciências da
Educação da Universidade de Lisboa.
AGRADECIMENTOS Sousa, M. F. (1695). Rimas varias de Luis
de Camoens Principe de Los Poetas
O presente artigo só foi possível graças Heroycos e Lyricos de Espana, Tomos I e II.
à colaboração dos alunos Bruna César, Camoniana – Joaquim de Carvalho,
João Richart e à turma 12.º M do Curso vida e obra, disponível em: http://
Profissional de Técnico de Fotografia, www.joaquimdecarvalho.org/artigos/
da Escola Secundária de Camões. artigo/103-Camoniana/pag-4
Agradecemos também as indicações e a
ajuda de Ângela Lopes, Francisco Pereira,
Hugo Cunha, João Jaime Pires, João
R. Figueiredo, Lídia Teixeira, Maria João
Mogarro e Marta Lourenço.

110 ENTRELER
Da materialidade do livro à memória coletiva e à projeção no futuro

NOTA CURRICULAR DOS AUTORES Catarina Leal é professora de Biologia e


Geologia e adjunta do diretor da Escola
Ana do Canto é professora de Artes Visuais, Secundária de Camões. Licenciada em
leciona atualmente na Escola Secundária Ensino da Biologia e Geologia (variante
de Camões, onde coordena o Projeto Biologia), pela Faculdade Ciências da
Máquina do Mundo – Experimentar Universidade de Lisboa. Mestre em
Design e participa no Erasmus+ EDU4U. Ciências da Educação, História da
Licenciada em Design de Comunicação Educação, pela Faculdade de Psicologia e
pela Faculdade de Belas-Artes da de Ciências da Educação da Universidade
Universidade de Lisboa (1994). Pós- de Lisboa. Foi investigadora dos projetos,
graduada em Teorias da Arte pela financiados pela FCT, Literacia Científico-
mesma Faculdade (2002). Foi professora Tecnológica e Opinião Pública: o Caso dos
Cooperante em Ensino das Artes Visuais Consumidores dos Museus de Ciência
da Faculdade de Belas-Artes (2011- (CICTSUL) e Educação e Património
2013). Coordenou o Projeto OVO (Oficina Cultural: escolas, objetos e práticas
Visual Ortónima) na Escola D. Filipa de (IEULisboa).
Lencastre (2009-2013). Integra, desde Teresa Saborida é professora bibliotecária
2018, a Equipa de Educação Artística da da Escola Secundária de Camões desde
Direção-Geral da Educação. 2009 e professora de Português. É
Anabela Teixeira é professora de licenciada em Línguas e Literaturas
Matemática, a lecionar na Escola Modernas, variante Português – Francês,
Secundária de Camões, e curadora pela FCSH da Universidade Nova de
do MUHNAC – Museu Nacional de Lisboa. Frequentou o Mestrado de
História Natural e da Ciência. Mestre Ciências Documentais na Universidade
em Matemática pela FCT- UCoimbra Lusófona na parte curricular e
(2004). Realizou o Curso de Formação seminário (grandes temas na área da
Avançada no âmbito do programa biblioteconomia).
de Doutoramento em Educação,
especialização em História da Educação
no IE-ULisboa (2009), a desenvolver a
sua tese sobre a vida e obra do Professor
José Sebastião e Silva (1914-1972). Tem
colaborado em vários projetos na área da
História da Matemática e do seu ensino,
do Património científico e cultural,
Matemática recreativa e Educação
Matemática; como investigadora,
nos seguintes: Memória da SPM
(FCG143170/2016), Roteiros da inovação
pedagógica: Escolas e experiências
de referência em Portugal no século
XX (PTDC/MHC-CED/0893/2014)
e Educação e Património Cultural:
escolas, objetos e práticas (PTDC/CPE-
CED/102205/2008).

ENTRELER 111
ARTIGOS

MEMÓRIA
Ler + o Holocausto. História, memória
e representações
Reading the Holocaust. History, memory
and representations
Jorge Brandão Carvalho

RESUMO da natureza das edições disponibilizadas ao


Ao longo dos últimos anos temos assistido, público leitor permite compreender de que
em Portugal, à multiplicação de edições modo se tem construído a memória coletiva
centradas na temática do Holocausto. Esta sobre o Holocausto, percebendo de que forma
tendência, relativamente recente no nosso as representações literárias são importantes
país, aconteceu há mais tempo noutros países na formação dessa memória.
em que esta questão está mais presente na
memória coletiva e resultou, em boa medida, ABSTRACT
de um processo de apropriação do tema In Portugal, over the last few years, we have been
pela cultura popular. As edições sucedem- observing the increase of publications on the
se não apenas no plano da historiografia subject of the Holocaust. This trend, recent in our
como das representações, nomeadamente country, has occurred much earlier in various other
ao nível de diferentes expressões literárias: countries where the subject is deeply rooted in the
testemunhos, memórias, diários, romances, collective memory of its peoples and resulted in its
muitos deles reclamando basear-se em embracing by popular culture. These publications
factos reais. Este fenómeno, se é positivo have followed one another not only in terms of
no que resulta de maior notoriedade, historiography, but also in terms of different literary
conhecimento e compreensão sobre aquilo languages such as testimonies, memories, diaries,
que se passou, representa também um risco novels, many of them claiming to be based on real
de banalização do tema, de abordagens facts. This phenomenon, though positive in the
simplistas, de imprecisões e mesmo de way that it results in greater notoriety, knowledge
referências e interpretações erróneas, and understanding of the circumstances of the
mais graves quando chegam a públicos Holocaust, similarly presents a risk of trivialization
que não têm conhecimentos suficientes of the subject, of simplistic approaches, inaccuracies
para contextualizar as alusões históricas e and even mistakes and misinterpretations; this is
distinguir entre ficção e realidade. even graver if such publications grasp audiences who
Num tempo em que temos presenciado o do not own actual background knowledge to properly
ressurgir de novas formas de autoritarismo, set the historical allusions and thus distinguish
o recrudescimento de ocorrências de carácter between fiction from reality.
racista, de manifestações de antissemitismo As we are witnessing today the resurrection
e crimes de ódio, potenciados pela of new forms of authoritarianism, the upsurge of
desinformação, pelas falsas notícias e pela racist incidents, anti-Semitism and hate crimes,
superficialidade e efemeridade das redes boosted by misinformation, fake news and the
sociais, é importante conhecer e compreender shallowness and brevity of social media, it is
o que foi o Holocausto como forma de imperative to acknowledge the Holocaust as a way
prevenção destes fenómenos, impedindo que to avert these phenomena, preventing anything
algo semelhante se repita. O conhecimento similar from happening again.

112 ENTRELER
Ler + o Holocausto. História, memória e representações

Knowledge of the nature of such publications fuga de centenas de milhar e, o que é


made available to the readers allows the muitas vezes esquecido, a destruição
understanding of how collective memories of the de uma vibrante cultura milenar, com
Holocaust have been constructed, and emphasize língua própria, o ídiche, com expressões
how these literary representations are important in diversas no plano artístico, literário e
the establishment of Holocaust recollections. religioso e com raízes profundas em
muitas comunidades europeias de onde
PALAVRAS-CHAVE foram originárias figuras de destaque
holocausto, livro, leitura, história, memória – Marx, Freud, Kafka, Proust, Einstein,
Mendelssohn, entre muitos outros –
KEYWORDS que marcaram indelevelmente a nossa
holocaust, book, reading, history, memory sociedade e cultura[1]. A violência nazi
não foi orientada exclusivamente contra
os judeus, e outros grupos – roma e
Ao longo dos últimos anos temos assistido, sinti, homossexuais, Testemunhas de
em Portugal, à multiplicação de edições Jeová, deficientes, adversários políticos
centradas na temática do Holocausto ou (comunistas, sociais-democratas e
da Shoá, como, por influência francesa, outros), polacos russos e nacionais de
começa a ser designado entre nós o tantos outros países – foram também
processo de perseguição e morte de 6 alvos particularmente atingidos pelas
milhões de judeus europeus, cometido práticas de perseguição e aniquilamento
pelo regime nazi da Alemanha e seus decorrentes da ideologia racista nazi.
colaboradores, entre 1933 e 1945. O fenómeno de erupção, no panorama
Tendo-se assinalado, no último ano, 75 editorial português, de livros sobre a
anos do fim da II Guerra Mundial e da Shoá revela um crescente interesse dos
libertação dos campos de concentração leitores no tema e coloca novos desafios
e morte instalados por toda a Europa aos mediadores de leitura. Basta fazer uma
pelos nazis, as publicações proliferaram pesquisa nos catálogos ou uma ronda pelas
com diferentes registos, demonstrando livrarias para constatarmos a dimensão do
um correspondente interesse do público fenómeno e, mesmo nos escaparates dos
leitor. Esta crescente curiosidade pela hipermercados, estes livros são colocados
matéria vem na linha do que já vinha a em destaque como qualquer outro produto
ocorrer, há mais tempo, noutros países, de consumo. Num mercado livreiro de
nomeadamente nos Estados Unidos e pequena dimensão como o português, não
nos países da Europa onde este tema é deixa de ser extraordinária a quantidade
historicamente mais sensível. de títulos publicados e, particularmente,
O Holocausto constitui um momento o sucesso de alguns. A obra O tatuador de
fundamental da História mundial: pelo Auschwitz (Morris, 2018), da neozelandesa
seu carácter genocidário, pelo número Heather Morris, teve várias edições e
de vítimas que provocou e pela natureza milhares de livros vendidos, tendo-se
destas, pelo propósito e pela natureza mantido semanas consecutivas nos tops
do processo de eliminação que foi de livros mais procurados, à semelhança
implementado, tornou-se, enquanto de outros países, onde vendeu mais de 4
tragédia sem paralelo, num acontecimento milhões de cópias. Auschwitz parece ser a
referencial da contemporaneidade. palavra mágica para garantir um sucesso
O genocídio nazi provocou a morte editorial: só de memória, registo obras
de dois terços dos judeus europeus, a que ali colocam os bebés, a rapariga, o

ENTRELER 113
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rapaz e o rapaz que seguiu o pai, as irmãs, entre história e ficção e os limites, e
as gémeas, a bailarina, o farmacêutico, o até a admissibilidade, da representação
voluntário, a bibliotecária, o fotógrafo, o do Holocausto. Ao longo destes mais
tatuador, o carteiro, a última testemunha, de setenta e cinco anos, a história do
o sabotador, o mágico e ainda a orquestra, Holocausto foi sendo construída em
o violino, a sonata, as cartas perdidas, o paralelo com diferentes formas de
último caminho e tantos outros títulos representação, de ficção, poesia, teatro,
que chamam a atenção e o interesse do memórias literárias, cinema e séries de
consumidor leitor. televisão ou obras de arte.
Assistimos mesmo, há alguns meses, Esta multiplicidade de registos
a uma rara polémica nos nossos meios testemunhais, historiográficos e ficcionais
literários. Seguindo o pendor do mercado, tem sido fundamental na construção da
José Rodrigues dos Santos, um dos memória do Holocausto. Para começar,
autores portugueses com maior sucesso tenhamos em linha de conta a existência
de vendas, percebeu onde estava o filão de uma prolixa literatura que documenta
e, de uma assentada, lançou não um, as atrocidades perpetradas pelos nazis
mas dois livros sobre o tema: O mágico de e a sua magnitude. Os testemunhos
Auschwitz (Santos, 2020a) e O Manuscrito são múltiplos e ricos, permitindo
de Birkenau (Santos, 2020b), anunciados compreender a diversidade de situações
como reveladores da Shoá como nunca de sofrimento das vítimas. Durante muito
antes fora mostrada. As obras deram tempo foram subvalorizados na produção
lugar a uma interessante controvérsia historiográfica, mas são particularmente
entre o autor, a historiadora Irene relevantes para compreender a
Flunser Pimentel[2] e o escritor João Pinto heterogeneidade de situações vividas
Coelho[3], entre outros, em que foram por diferentes pessoas, em diferentes
esgrimidos argumentos não apenas sobre contextos, momentos e lugares.
o rigor histórico dos livros, mas também O conhecimento histórico evoluiu
acerca da natureza e características das enormemente ao longo dos anos, desde o
representações do Holocausto, um debate final da guerra. Durante muito tempo, o
recente em Portugal, mas com longa olhar dos historiadores esteve enquadrado
tradição noutros países e contextos. em duas grandes correntes historiográficas.
O interesse pelos livros ou filmes Por um lado, uma visão intencionalista,
relacionados com a Shoá segue uma resultante em parte dos julgamentos do
tendência procedente dos Estados final da guerra, que defendia a ideia de
Unidos e que se tem alastrado que o Holocausto, na sua origem, teve um
internacionalmente. Resulta, em boa plano arquitetado pelos nazis antes de
medida, de um fenómeno de apropriação chegarem ao poder e que Hitler, figura
do tema pela cultura popular, estimulada central neste projeto, e o seu círculo de
pelos muitos livros publicados, mas poder se inscrevem numa genealogia de
sobretudo pelos filmes de Hollywood líderes autoritários alemães, com ideias
e séries de televisão, que alcançaram antissemitas, que tiveram como corolário o
públicos mais vastos. Em vários casos, nazismo e a solução final para os judeus. O
estas obras foram acompanhadas de Holocausto teria sido, assim, um processo
polémicas, sobretudo entre especialistas, minuciosamente planificado e organizado
mas que, por vezes, extravasaram para e que teria resultado de uma decisão
a opinião pública, ganhando contornos tomada pela cúpula do regime nazi,
mediáticos. O debate questiona a fronteira encabeçada por Adolf Hitler.

114 ENTRELER
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Posteriormente, a esta perspetiva foi intelectual dos historiadores, como


contraposta uma visão funcionalista, que aconteceu recentemente na Polónia[5].
olha para a política criminosa do nazismo A diversidade de testemunhos que hoje
não como um programa previamente estão ao nosso dispor para leitura são
planificado, mas enquanto algo que surgiu indispensáveis para compor a memória
face às circunstâncias e à competição e a história da Shoá. Em primeiro lugar,
interna entre os hierarcas do partido e a os escritos durante os anos de guerra,
burocracia do estado nazi, produzindo por pessoas que viviam em diferentes
uma radicalização cumulativa do sistema locais da Europa, em contextos sociais e
que, por sua vez, levou a consequências económicos diversos e que passaram de
que ninguém previra. forma desigual por esta experiência de
O historiador norte-americano terror, que as conduziu, em muitos casos,
Daniel Goldhagen, no seu livro Os à morte. Há depois uma multiplicidade de
carrascos voluntários de Hitler (1999), foi registos estabelecidos por sobreviventes
mais longe e defendeu que uma parte depois de a guerra ter terminado, alguns
substancial dos civis alemães apoiaram a logo após os acontecimentos e outros
perseguição e eliminação dos judeus ou, bastante mais tarde. Por fim, têm surgido
no mínimo, foram indiferentes ao seu registos elaborados por descendentes ou
destino. Estas teorias retiram Hitler da estudiosos do tema que organizam, em
centralidade do debate sobre o nazismo diferentes formatos, os testemunhos de
e o Holocausto. Ian Kershaw, o seu mais sobreviventes, naquilo que poderemos
conhecido biógrafo, chama a atenção designar como uma pós-memória.
para o facto de esta visão do Führer como De entre os primeiros, alguns revelam
líder todo-poderoso, controlando tudo e a particularidade de terem sido efetuados
todos, ser, em grande parte, herdeira da com o propósito de testemunhar e
propaganda que o regime criou sobre a perpetuar – antecipando o destino – a
sua figura e que é dele a responsabilidade memória do sofrimento vivido pelas
moral decorrente da sua “autoridade vítimas e pelas comunidades judias.
carismática” (Kershaw, 2015, pp. 33-45). O exemplo paradigmático destes
As duas perspetivas, que durante muito testemunhos é o registo organizado,
tempo se antagonizaram (Friedländer, no gueto de Varsóvia, por Emmanuel
Reflexões sobre o Nazismo, 2017), estão Ringelblum, a partir de 1940. Sob a
hoje mais diluídas, aproximando-se em forma de cartas, apontamentos e notas,
diversas matérias[4]. Nos últimos anos, Ringelblum, ele próprio um historiador,
milhares de estudos têm sido publicados foi redigindo um verdadeiro diário com
por todo o mundo e novas linhas de informações diversas sobre a vida no
investigação têm surgido. A queda dos gueto, mas também registos das notícias
regimes comunistas no leste da Europa que ia recebendo de outros locais.
permitiu novos olhares sobre os arquivos, Paralelamente, organizou uma rede
os testemunhos e a história dos judeus nos secreta – Oneg Shabat[6]– que recolhia
territórios onde residia o maior número depoimentos, cartazes, diários e outros
de vítimas da Shoá. Isto não significa documentos testemunhando o terrível
que muitas questões não continuem a quotidiano do gueto. Estes materiais
necessitar de respostas e que estas não foram enterrados dentro de latas de
sejam, por sua vez, motivo de novas leite e, encontrados parcialmente depois
problematizações, de novas polémicas e da guerra, cumpriram o seu propósito,
também de novas ameaças à liberdade sendo claro que Ringelblum e os seus

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colaboradores estavam perfeitamente judeus da Holanda ocupada, mas também


conscientes da importância da arriscada a sua reflexão intelectual, o seu despertar
missão que se propunham. Desta forma, espiritual e a aproximação ao Cristianismo:
temos de olhar para estes e outros registos O viver e o morrer, o sofrimento e a alegria, as
como uma forma de resistência àquilo que bolhas nos meus pés gastos e o jasmim atrás do
estavam a viver. Em junho de 1942, tendo quintal, as perseguições, as incontáveis violências
tido conhecimento que a BBC noticiara o gratuitas, tudo e tudo em mim é como se fosse
que se passava com os judeus polacos sob uma forte unidade, e eu aceito tudo como uma
domínio nazi e alertado para todo o seu unidade e começo a entender cada vez melhor,
sofrimento, Ringelblum regista: espontaneamente para mim, sem que ainda consiga
A nossa equipa cumpriu uma grande missão explicar a alguém, como é que as coisas são.
histórica. Conseguiu alarmar o Mundo sobre (Hillesum, 2009a, p. 217)
a nossa sorte, e salvou possivelmente centenas Estes textos, ao acompanharem as
de milhares de judeus polacos do extermínio. considerações e o quotidiano dos autores,
(Naturalmente, só o futuro próximo poderá aproximam-nos do seu percurso singular,
dizer se este último ponto é verdadeiro). Ignoro mas permitem-nos também compreender
quem sobreviverá na nossa equipa, quem será o que muitos outros pensariam e
julgado digno de trabalhar com os materiais que sentiriam. Hélène Berr, uma jovem
reunimos, mas pelo menos uma coisa é clara para parisiense, nascida numa abastada família
nós: os nossos sofrimentos e trabalhos, a nossa judia, que morreu em Bergen-Belsen, em
fé, apesar do terror constante, não foram inúteis. 1945, deixou-nos um dos depoimentos
(Ringelblum, 1964, pp. 317-318) mais pungentes do que era o dia a dia de
Outros depoimentos foram uma jovem de 20 anos, a idade de todos
concretizados durante estes anos os sonhos, e da forma como evoluiu o seu
de perseguição, condicionamento e estado de espírito entre 1942 e 1944. E, se
confinamento dos judeus europeus, nas primeiras entradas encontramos uma
sobretudo no leste do continente. Os mais jovem alegre e privilegiada, que reparte o
comuns assumiram a forma de cartas e seu tempo entre a Sorbonne e o Quartier
diários, de que o de Anne Frank (Frank, Latin, entre família e amigos, aos poucos
1982) é o mais conhecido, tendo sido vemos como vai ganhando consciência
durante muito tempo a obra emblemática da sua condição de judia. O momento
do Holocausto. Hoje, são já muitas as da obrigação de uso da estrela amarela,
edições com estes textos que resistiram às em junho de 1942, que considera uma
contingências da guerra e que constituem, infâmia, é impressivo:
ao mesmo tempo, poderosas histórias de Mas se soubessem a crucificação que representa
vida, relevantes fontes históricas, e, em para mim. Sofri, lá, nesse pátio da Sorbonne
vários casos, valiosas obras literárias ou cheio de sol, no meio de todos os meus camaradas.
filosóficas. O singular e sensível Diário Pareceu-me que de repente deixara de ser eu própria,
(1941-1943) (Hillesum, 2009a) de Etty que tudo estava mudado, que me tinha tornado
Hillesum, uma judia holandesa deportada estrangeira, como se estivesse em pleno num
e morta em Auschwitz, em 1943, é, pesadelo. Via à minha volta vultos conhecidos, mas
deste ponto de vista, exemplar. De uma sentia a pena e o assombro em todos. Era como se
estudiosa de Rilke, Tolstói, Dostoiévski tivesse uma marca de ferro em brasa na testa. (Berr,
e do pensamento de Santo Agostinho, o 2008, p. 50)
diário – tal como as suas Cartas (Hillesum, Outros diários permitem-nos olhares
2009b) – é um documento notável, que cruzados sobre o que se passou na Europa
acompanha não apenas a situação dos daqueles anos: Mary Berg (Berg, 2015), no

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gueto de Varsóvia, favorecida, apesar de Victor Klemperer (Klemperer, 1999),


tudo, pelo seu estatuto económico e por professor universitário em Dresden,
ter mãe americana, conseguiu escapar da judeu alemão assimilado e convertido ao
morte, indo, por Lisboa, para os Estados protestantismo, que detalha em milhares
Unidos; o breve diário de Rutka (Laskier, de entradas o contexto político e social da
2007), uma adolescente de 14 anos que, Alemanha nazi e o quotidiano dos judeus
durante alguns meses do início de 1943, alemães perseguidos até à morte, de que
descreve o seu quotidiano no gueto de escapou milagrosamente.
Bedzin, antes de ser enviada para a morte Compreensivelmente, são raros os
em Auschwitz; o recentemente editado testemunhos feitos nos campos de
diário de Renia (Spiegel, 2021), uma concentração e morte, uma vez que a
rapariga de 15 anos residente em Przemysl, vigilância era apertada e as condições
no leste da Polónia, e que, em janeiro de para escrever eram difíceis, a começar
1939, começa a registar os seus estados pela falta de material para escrita. Há
de espírito, os seus amores e esperanças vários exemplos de verdadeiros milagres
adolescentes, a sua poesia, mas também que constituem exceções, mas, tirando o
o quotidiano cada vez mais difícil, com caso de Therezinstadt, na maior parte das
o início da guerra, a ocupação soviética situações o que restou foram pequenos e
e a chegada dos alemães, em 1941, que a dispersos registos de vária ordem.
conduzirá à morte um ano depois. Situação bem diferente ocorre
A maior parte destes diários, que têm com as memórias, ou seja, com os
em comum o facto de serem redigidos por depoimentos escritos em fase posterior
raparigas ou jovens mulheres, trazem- aos acontecimentos e situações narradas.
nos uma forte proximidade emocional Os textos memoriais são, desse ponto
que acompanha os acontecimentos de vista, muito reveladores, na medida
descritos, sem a mediação do tempo que em que resultam da forma como os seus
testemunhos posteriores apresentam. autores encaram o sofrimento passado
Trata-se de uma opção editorial, uma e procuram afastar os traumatismos
vez que existem importantes registos e a dor provocados. Muitas vítimas só
feitos por homens, nunca publicados em muitos anos mais tarde conseguiram
Portugal: o de Chaim Kaplan (Kaplan, revelar os seus sofrimentos e, em alguns
1999), diretor de uma escola hebraica casos, a verdade só foi descoberta após
de Varsóvia e que, de 1933 até agosto a sua morte e divulgada pela geração
de 1942, antes de ser enviado para posterior. A extraordinária novela
Treblinka, onde é assassinado, manteve gráfica Maus (Ratos), de Art Spiegelman
um pormenorizado registo com reflexões (Spiegelman, 2014), é um retrato exemplar
sobre o destino dos judeus, sendo um dos da forma como pode ser doloroso,
mais significativos, também, enquanto para um sobrevivente, o processo de
exemplo de testemunho de resistência; recuperação da memória. Na obra de
Adam Czerniakow, o presidente do banda desenhada, mas que também é
Conselho Judaico do gueto de Varsóvia, biografia, autobiografia, história e ficção,
deixou um circunstanciado diário o autor cruza em dois tempos: o passado,
(Czerniakow, 1999) registando muitos narrando a vida do pai na Polónia
aspetos institucionais e muitos dos ocupada, e o presente, em que se encontra
terríveis dilemas com que se confrontou com o pai para obter dele o relato de
e que o levaram ao suicídio em 23 de uma época que procurara esquecer. Nesta
julho de 1942; o grandioso diário de história magistralmente contada pelo

ENTRELER 117
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filho, os judeus são retratados como ratos memória coletiva contra o esquecimento
e os alemães como gatos, numa linguagem natural que a dor e, tantas vezes, a culpa
imagética próxima das fábulas, num impunham.
registo cru e até cáustico do horror do Obviamente que a natureza destes
Holocausto. testemunhos evolui à medida que o
No entanto, muitas foram as vozes que próprio conceito de Holocausto se vai
se fizeram ouvir e ler, desde os primeiros formando e vai mediando não só a
tempos, por vezes mesmo antes de a historiografia, mas a própria memória dos
guerra acabar. Chil Rajchman (Rajchman, sobreviventes. As obras de Primo Levi,
2009), um dos raros sobreviventes de por exemplo, que têm um forte cunho
Treblinka, fugitivo na revolta de agosto memorial, são exemplo disso. Assim Foi
de 1943, registou logo de seguida os dez Auschwitz (Levi, 2015, pp. 17-49), por
meses passados naquele campo de morte. exemplo, reproduz o relatório que, na
Começa dizendo: primavera de 1945, os soviéticos lhe
Os vagões tristes transportam-me para este lugar. pediram e que redigiu com o seu amigo
Vêm de toda a parte: de leste e de oeste, do norte e sobrevivente, o médico Leonardo de
do sul. De dia como de noite, em todas as estações: Benedetti. É um depoimento despojado,
Primavera, Verão, Outono, Inverno. Os comboios descritivo e mais linear do que os
chegam lá sem percalços, incessantemente, e seguintes, mesmo em relação a Se isto
Treblinka prospera a cada dia que passa. Quantos é um homem, publicado pela primeira
mais chegam, mais Treblinka consegue absorver. vez em 1947. O próprio Levi refletirá
(Rajchman, 2009, p. 21) mais tarde sobre isto quando escreve
E termina proclamando: que “(...) a fractura que existe, e que se
Sim, sobrevivi e sou livre, mas para quê? Muitas vai alargando de ano para ano, entre as
vezes faço a mim próprio esta pergunta. Para contar coisas como eram “lá” e as coisas como são
o assassínio de milhões de vítimas inocentes, para representadas pela imaginação corrente,
dar testemunho do sangue inocente, derramado alimentada por livros, filmes e mitos
por esses assassinos. Sim, sobrevivi para dar imprecisos” (Levi, 2008, p. 157).
testemunho desse grande matadouro: Treblinka. Com o passar do tempo, houve uma
Esta ideia do testemunho como forma tendência para uniformizar a memória
de recuperar o significado depois de tudo do Holocausto, esquecendo a riqueza e
o que tinham passado é um propósito for- a particularidade que cada depoimento
tíssimo para a maior parte das memórias encerra. Existem, entre nós, alguns
dos sobreviventes. É uma ideia bem vin- testemunhos de sobreviventes não
cada no “nunca mais esquecerei”[7] de Elie judeus, como é o caso de Robert Antelme
Wiesel (Wiesel, 2003) ou no “repeti-as aos (Antelme, 2003) e Charlotte Delbo.
vossos filhos”[8] de Primo Levi (Levi, 2014), Escritora francesa, presa pela polícia
dois sobreviventes que viveram o inferno nacional e entregue à Gestapo, enviada
dos campos de morte e que não desistiram, para Auschwitz, Charlotte Delbo vai,
no resto das suas vidas, de falar, de escre- vinte anos depois, começar a recuperar
ver, de alertar, colocando a luta contra o a memória de sobrevivente. No final
esquecimento, a proteção da memória do de 2018, passando quase despercebida,
Holocausto, como um imperativo ético. surgiu pela primeira vez em Portugal uma
Para aqueles que tinham sobrevivido edição do extraordinário livro Auschwitz e
não era fácil enfrentar o passado e os depois (Delbo, 2018). A edição é composta
seus fantasmas, encontrando significado por três textos: Nenhum de nós há de voltar
e conforto, procurando construir uma (1965), Um conhecimento inútil (1970) e

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Medida dos nossos dias (1971), num registo A magnitude da devastação que o
impressionista no primeiro texto, com Holocausto significou pôs em causa os
pequenas cenas, retratos, poemas e contos alicerces da nossa civilização, sendo que
no segundo e com um assento mais se chegou a questionar a possibilidade
reflexivo no último. de encontrar formas de representação do
A produção historiográfica, durante que se tinha passado. O filósofo alemão
muitos anos, desconsiderou estes da Escola de Frankfurt Theodor Adorno
testemunhos, valorizando sobretudo (Adorno, 2003) proclamou, em 1949, que
documentos administrativos e escrever um poema depois de Auschwitz
institucionais, normalmente produzidos era bárbaro e que isso corroía também o
pelos perpetradores. Muitos historiadores conhecimento das razões pelas quais seria
consideram que as memórias são fontes impossível escrever poemas. No fundo,
condicionadas quer pelo tempo, que questiona a possibilidade de representar a
provoca esquecimento e confunde maldade, o horrível, através de expressões
circunstâncias, lugares e momentos, quer supremas de beleza, nas artes, na poesia ou
pela influência que a memória coletiva noutras formas literárias. Mesmo que esta
e o próprio conhecimento histórico tem ideia seja relativizada, ela não deixou de
nos sobreviventes. Saul Friedländer marcar o pensamento sobre o tema.
(Friedländer, Reflexões sobre o Nazismo, A verdade é que as representações do
2017, p. 76) salienta que Raul Hilberg, um Holocausto se confundem tantas e tantas
autor incontornável do Holocausto com vezes com os testemunhos memoriais,
a sua obra A destruição dos judeus (Hilberg, e a literatura criativa, seja sob a forma
2005), recusava, por isso, qualquer de poesia, ficção ou memória literária,
utilização de memórias ou mesmo de começou a emergir desde os primeiros
diários. O próprio Saul Friedländer, momentos do pós-guerra. Exemplo disso
que usou diários na sua obra principal foi a publicação, logo no início de 1946,
(Friedländer, 1998) (Friedländer, 2008), de uma obra intitulada Nós estivemos em
concorda com as reservas relativamente Auschwitz (Borowski, 2000). Tratava-se de
às memórias por considerar que o tempo um conjunto de escritos de três autores
coloca condicionamentos inultrapassáveis. polacos que se identificavam com os
No limite, pode-se pôr em causa a seus nomes e com os seus números de
autenticidade destes testemunhos com prisioneiros em Auschwitz: 6643 Janusz
argumentos reforçados, com situações Nel Siedlecki, 75817 Krystyn Olszewski
como a que aconteceu no caso de e 119198 Tadeusz Borowski. Embora
Binjamin Wilkomirski. Em 1995 publica surgida como obra coletiva, o contributo
um livro (Wilkomirski, 1998) resgatando fundamental é, reconhecidamente, o
a sua infância durante os anos do de Tadeusz Borowski, poeta e escritor
Holocausto. Veio a comprovar-se depois não judeu, o único, aliás, que vai manter
que o livro, que teve traduções em várias atividade literária até à sua morte, por
línguas e ganhou importantes prémios em suicídio, em 1951. O registo escrito,
diferentes países, se baseava numa falsa feito muito pouco tempo depois dos
identidade do autor e da história de vida acontecimentos, tem ao mesmo tempo
que relatava. O caso reacendeu o debate um carácter memorial e documental
acerca do valor dos testemunhos como – bem notório no glossário – sobre
fonte válida para a história da Shoá, sendo diversos aspetos de Auschwitz e da
também utilizado como argumento por sua evolução ao longo dos anos. Mas,
parte de negacionistas do Holocausto. particularmente nos textos de Borowski

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(que incompreensivelmente nunca foi de contextualizar a imaginação com o


editado em Portugal), é patente não conhecimento histórico.
apenas uma distinta linguagem literária, • O Último Justo, de André Schwarz-
mas uma ironia de alguém que procura Bart (Schwarz-Bart, 1960), uma das
recuperar psicologicamente depois do obras alegóricas mais expressivas
trauma vivido, numa demanda filosófica sobre o Holocausto, evoca a história
sobre o campo. Entre os textos está o de uma família judia no quadro de
conto “Por aqui para o Gás, Senhoras uma tradição talmudista. Ernie Lévy,
e Senhores”, que vai ser republicado o último dos justos, é deportado para
posteriormente com outros de Borowski, Drancy e para Auschwitz, onde é morto
e que condensa a experiência moralmente num forno crematório.
entorpecedora de alguém que vive um • Ver: Amor, de David Grossman
quotidiano de terror e de indiferença na (Grossman, 2014), uma obra densa,
luta pela sobrevivência. imaginativa e envolvente, que
Recentemente, a profusão de títulos representa exemplarmente o olhar do
sobre o tema, abusando do nome autor sobre o Holocausto, colocando em
Auschwitz, dificulta a seleção das obras várias situações e personagens aquilo
mais interessantes, quer do ponto de vista que ele próprio tinha presenciado na
memorial, quer do ponto de vista literário sua infância e juventude numa família
e ficcional. Aliás, a ténue fronteira de sobreviventes.
entre realidade e imaginação dificulta, • A zona de interesse, de Martin Amis
muitas vezes, a classificação destas obras (Amis, 2015), um romance com uma
que se apresentam “baseadas em factos história num cenário perturbador
reais”. Esta poderá ser considerada uma de horror, com um olhar corrosivo
linha distintiva da que é já denominada sobre a realidade cruel dos campos
como “literatura do Holocausto”, uma de concentração, cruzando o olhar de
ficção histórica que acompanha de vítimas e perpetradores.
perto acontecimentos reais, integrando • As Benevolentes, de Jonathan Littell
situações e diálogos imaginários, criando (Littell, 2007), uma longa narrativa com
uma narrativa mais ou menos credível as memórias ficcionadas de um oficial
e um enredo apelativo para os leitores. nazi que participara ativamente em
À medida que os últimos sobreviventes diferentes momentos do Holocausto,
vão desaparecendo, o testemunho é, cada revivendo-os de forma crua,
vez mais, expresso por outras vozes, de desumanizada e sem arrependimento,
segunda e terceira geração, e em que a num enredo encadeado num conjunto
marca da autenticidade se torna mais de quadros históricos.
difícil de distinguir. • Trieste, de Dasa Drndic (Drndic,
Sendo impossível fazer uma 2019), uma obra que relata a história
referência exaustiva a muitos dos títulos de uma judia italiana, que, no final
editados em Portugal, opto por registar da vida, reconstrói a sua memória
uma lista de 10 livros que, além dos na busca de um filho nascido no
anteriormente referenciados, merecem, final da guerra, fruto de uma relação
na minha opinião, ser propostos para com um oficial das SS, e que lhe foi
uma leitura. Na sua diversidade, provam roubado pelas autoridades nazis
que a ficção é uma opção válida para no âmbito do programa de pureza
consolidar a memória do Holocausto, não racial Lebensborn. Escrito de uma
dispensando, no entanto, a necessidade forma muito estimulante, cheio de

120 ENTRELER
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intertextualidades, com recurso a inteira, viajando pelas alturas. Parecia


muitos documentos históricos que uma borboleta aflorando um vinhedo
se cruzam harmoniosamente com a prateado” (Ozick, 1993, p. 20).
narrativa ficcional e que garantem o Vivemos tempos complexos. Tempos
rigor histórico da obra. em que presenciamos, um pouco por todo
• Austerlitz, de W.G. Sebald (Sebald, o lado, a afirmação de novos modelos
2012), um belo romance ao estilo de populismo e a erosão dos sistemas
do autor, com longos parágrafos, democráticos, o ressurgir de novas formas
uso de imagens e fotografias, num de autoritarismo, o recrudescimento
percurso pela memória e identidade de fenómenos de xenofobia e racismo,
do protagonista, mas também da manifestações de antissemitismo e crimes
Europa, marcada pelo Holocausto, aqui de ódio, potenciados pela desinformação
representado por Theresienstadt. e manipulação dos meios de comunicação
• Sem destino, de Imre Kertész e pela superficialidade e efemeridade das
(Kertész, 2003), narra a história redes sociais, que propagam as notícias
de um adolescente de Budapeste e falsas e as teorias da conspiração. Neste
da sua experiência nos campos de contexto, a educação sobre o Holocausto
concentração. Negando o carácter é absolutamente indispensável e a leitura
autobiográfico da história, o livro não constitui um eixo fundamental deste
deixa de ser marcado pela experiência desígnio, não apenas para evocar ou
de Kertész, mas também pela sua homenagear as vítimas, mas, sobretudo,
ironia. para analisar e compreender o contexto
• Talvez Esther, de Katja Petrowskaja histórico de um processo que desafiou, aos
(Petrowskaja, 2015), uma viagem limites, os comportamentos e os valores
pela história e memória da família humanos e que questionou, radicalmente,
durante o Holocausto, mas que é os valores democráticos e o respeito pelos
uma itinerância pela história e pela mais elementares direitos humanos. O
identidade da Europa, passando pela conhecimento e a compreensão do que foi
Rússia, Ucrânia, onde a autora nasceu, o Holocausto é um imperativo moral na
Polónia e Alemanha, onde agora vive. formação das gerações mais jovens, para
• O imperador das mentiras, de Steve impedir que seja esquecido e que algo de
Sem-Sandberg (Sem-Sandberg, 2012), semelhante se possa repetir. As linhas
que coloca o controverso Mordechai cruzadas com que se tece a construção
Rumkowski, chefe do Judenrat do gueto da memória do Holocausto são feitas
de Lodz, como protagonista do relato de múltiplas leituras, dos diários às
de violência, sofrimento e luta pela memórias, da poesia à ficção, do teatro ao
sobrevivência que ali ocorria. ensaio.
• O Xaile, de Cynthia Ozick (Ozick, 1993), A leitura sobre o Holocausto deve ser
um pequeno conto reconhecido pela o ponto de partida para a construção
sua qualidade literária e em que, numa de uma memória sobre um passado
linguagem dura mas poética, a autora que não podemos deixar que se repita e
coloca na voz da mãe de uma bebé, para a formação de uma cidadania mais
Magda, o relato dos últimos momentos, consciente, crítica e solidária.
antes de esta ser atirada contra o arame
farpado eletrificado por um guarda do
campo: “De um momento para o outro
Magda corria flutuando pelo ar. Magda,

ENTRELER 121
Ler + o Holocausto. História, memória e representações

Notas Nunca mais esquecerei este silêncio nocturno que


[1] A este propósito foi editada recentemente me privou, para a eternidade, do desejo de viver.
em Portugal uma obra muito interessante Nunca mais esquecerei estes momentos que
intitulada Génio e Ansiedade – Como os judeus assassinaram o meu Deus e a minha alma, e os
mudaram o mundo (Lebrecht, 2021). meus sonhos, que tomaram a aparência de um
[2] Esta historiadora lançou, no passado ano, deserto.
uma excelente obra de síntese sobre este Nunca mais esquecerei isto, mesmo que tenha
tema: Holocausto (Pimentel, 2020). sido condenado a viver tanto tempo quanto o
[3] João Pinto Coelho é o mais sólido escritor próprio Deus.
português de obras de ficção sobre o Nunca mais.
Holocausto: Perguntem a Sarah Gross (Wiesel, 2003, p. 42)
(Coelho, 2015), Os loucos da Rua Mazur [8] Recomendo-vos estas palavras.
(Coelho, 2017), que foi Prémio Leya 2017, e Esculpi-as no vosso coração
Um tempo a fingir (Coelho, 2020). Estando em casa andando pela rua,
[4] O ponto culminante deste debate aconteceu Ao deitar-vos e ao levantar-vos;
no final dos anos 80 do século passado, Repeti-as aos vossos filhos.
com discussões sobre o revisionismo e a Ou então que desmorone a vossa casa,
visão sobre o Holocausto, resultando, em Que a doença vos entreve,
boa parte, numa emancipação dos estudos Que os vossos filhos vos virem a cara.
sobre a Shoá, no quadro da historiografia (Levi, 2014, p. 7)
do Nazismo.
[5] Veja-se o que aconteceu recentemente
neste país em que um tribunal condenou REFERÊNCIAS
os historiadores Barbara Engelking,
Diretora do Centro Polaco de Investigação Adorno, T. (2003). Can One Live After
do Holocausto, e Jan Grabowski, da Auschwitz?: A Philosophical Reader.
Universidade de Otava, no Canadá, Stanford University Press.
por desrespeito a uma lei que penaliza Amis, M. (2015). A Zona de interesse.
referências à cumplicidade de polacos no Quetzal.
Holocausto (Público, 9.2.2021, disponível Antelme, R. (2003). A espécie humana.
em https://www.publico.pt/2021/02/09/ Ulisseia.
mundo/noticia/tribunal-polaco-condena- Berg, M. (2015). O Diário de Mary Berg.
historiadores-investigacao-cumplicidade- Vogais.
holocausto-1949982 Berr, H. (2008). Diário. Dom Quixote.
[6] Que se pode traduzir como Celebração ou Borowski, T. (2000). We were in Auschwitz.
festa do Shabbat, o Sábado, dia sagrado para Welcome Rain Publishers.
os judeus. Coelho, J. P. (2015). Perguntem a Sarah
[7] Nunca mais esquecerei esta noite, a primeira Gross. Dom Quixote.
noite no campo, que fez da minha vida uma noite Coelho, J. P. (2017). Os loucos da Rua
longa e sete vezes aferrolhada. Mazur. Dom Quixote.
Nunca mais esquecerei aquele fumo. Coelho, J. P. (2020). Um tempo a fingir. Dom
Nunca mais esquecerei as pequeninas caras Quixote.
das crianças cujos corpos eu tinha visto Czerniakow, A. (1999). The Warsaw Diary Of
transformarem-se em espirais sob um azul mudo. Adam Czerniakow: Prelude To Doom. Ivan
Nunca mais esquecerei estas chamas que R. Dee Publishing.
consumiram para sempre a minha Fé. Delbo, C. (2018). Auschwitz e depois. BCF
Editores.

122 ENTRELER
Ler + o Holocausto. História, memória e representações

Drndic, D. (2019). Trieste. Sextante Editora. Petrowskaja, K. (2015). Talvez Esther.


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Livros do Brasil. Pimentel, I. F. (2020). Holocausto. Temas e
Friedländer, S. (1998). Nazi Germany Debates/Círculo de Leitores.
and the Jews: Volume 1: The Years of Rajchman, C. (2009). Sou o último judeu.
Persecution 1933-1939. Harper Perennial. Teorema.
Friedländer, S. (2008). Nazi Germany Ringelblum, E. (1964). Crónica do Ghetto de
and the Jews, 1939-1945: The Years of Varsóvia. Livraria Morais Editora.
Extermination. Harper Perennial. Santos, J. R. (2020a). O mágico de
Friedländer, S. (2017). Reflexões sobre o Auschwitz. Gradiva.
Nazismo. Sextante Editora. Santos, J. R. (2020b). O manuscrito de
Goldhagen, D. (1999). Os carrascos Birkenau. Gradiva.
voluntários de Hitler. Editorial Notícias. Schwarz-Bart, A. (1960). O Último Justo.
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judíos europeos. Ediciones Akal. mentiras. Dom Quixote.
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Assírio & Alvim. Wiesel, E. (2003). Noite. Texto Editora.
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Kertész, I. (2003). Sem destino. Presença. NOTA CURRICULAR DOS AUTORES
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Klemperer 1933-1945. Companhia das Jorge Brandão Carvalho Professor
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Laskier, R. (2007). O diário de Rutka. Escolas de Amares. Licenciatura em
Sextante Editora. História e Ciências Sociais, Universidade
Lebrecht, N. (2021). Génio e Ansiedade do Minho. Mestrado em História,
– Como os judeus mudaram o mundo. Universidade do Minho. Pós-Graduação
Bertrand. em Ciências da Informação, Universidade
Levi, P. (2008). Os Que Sucumbem e os Que Aberta. Curso de Estudos sobre o
Se Salvam. Editorial Teorema. Holocausto, Yad Vashem, Jerusalém,
Levi, P. (2014). Se isto é um homem. Dom Israel. Formador de professores nas
Quixote. áreas da História (particularmente do
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Littell, J. (2007). As benevolentes. Dom projetos apoiados pela RBE, PNL2027,
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Ozick, C. (1993). O Xaile. Dom Quixote. em formações sobre o Holocausto em
Portugal e no estrangeiro.

ENTRELER 123
Orientações
Os artigos podem integrar reflexões teóricas, resultados de estudos científicos, descrição de projetos,
relatos de práticas, ou outros.
Os textos devem ser escritos em português ou traduzidos para português, mediante autorização e
indicação da fonte original da publicação.
São critérios de apreciação dos artigos: adequação aos objetivos da revista; relevância do tema;
caráter inovador da abordagem; rigor, coesão e clareza do discurso; correção linguística;
qualidade da tradução, se aplicável.

I. Normas de Submissão de Artigos 9. (Corpo do artigo): máx. 5000 palavras, Arial 11, não
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1. Língua do artigo: português. As citações que
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não estejam escritas em português devem ser
na Introdução/Conclusão.
traduzidas e a sua versão original colocada em
10. AGRADECIMENTO(S): Se aplicável. Arial 11,
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2. Envio por email do texto e, separadamente, das
imagens, de acordo com as Normas de Publicação
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de Artigos. à esquerda.
3. Identificação do(s) autor(es), respetivas filiações 11. FINANCIAMENTO: Se aplicável. Arial 11, maiúsculas,
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autor(es), relativa aos direitos de autor (v. Minuta). 12. REFERÊNCIAS: Arial 11, maiúsculas, negrito,
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II. Normas de Publicação de Artigos esquerda. Cf. norma APA (7.ª ed.)
A. Formato do Texto e Convenções Tipográficas 13. NOTAS: Título – Arial 11, maiúsculas, negrito,
O artigo deve ser enviado em Word. alinhamento à esquerda. No final do artigo, com
numeração árabe, sem parênteses, Arial 9, não
1. Título do artigo: Arial 11, negrito, centrado, máx.
negrito, espaçamento 1,5.
12 palavras, apenas letra maiúscula em início de
palavra. Citações: até 40 palavras, em texto corrido, entre
aspas (“”); com mais de 40 palavras, entalhadas e
2. Título do artigo em inglês: Arial 11, negrito, centrado,
transcritas sem aspas, não itálico, em Arial 10.
apenas letra maiúscula em início de palavra.
3. Nome(s) do(s) autor(es): Arial 11, não negrito, Estrangeirismos: escritos em itálico.
centrado B. Material Gráfico e Elementos Visuais
4. RESUMO: Arial 11, maiúsculas, negrito, alinhamento
Os elementos não textuais – fotografias, mapas,
à esquerda. Texto do resumo: Arial 10, não negrito
quadros, gráficos, desenhos, … – devem ser
– máx. 250 palavras, alinhamento à esquerda,
identificados com numeração árabe contínua e ser
espaçamento 1,5.
enviados separadamente, em ficheiros JPEG ou PNG.
5. ABSTRACT: Arial 11, maiúsculas, negrito,
Cada ficheiro é nomeado com o número que indica
alinhamento à esquerda. Texto do resumo em
a ordem pela qual as imagens surgem no artigo. No
inglês: Arial 10, não negrito – máx. 250 palavras,
corpo do texto deve constar, em cada um dos locais
alinhamento à esquerda, espaçamento 1,5.
adequados, o número referente ao elemento visual e a
6. PALAVRAS-CHAVE: Arial 11, maiúsculas, negrito,
respetiva legenda.
alinhamento à esquerda. Entre 3 e 5 palavras-
chave: Arial 10, não negrito, alinhamento à III. Direitos autorais
esquerda, letra minúscula, separadas por vírgula. Os trabalhos publicados pela Entreler são licenciados
7. KEYWORDS: Título - Arial 11, maiúsculas, negrito, com uma Licença Creative Commons 4.0 CC-BY-NC-SA.
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esquerda, letra minúscula, separadas por vírgula. serem reconhecidos e citados como tal.
8. NOTA CURRICULAR DO(S) AUTOR(ES): Arial 11,
maiúsculas, negrito, alinhamento à esquerda. Texto
da nota curricular: Arial 10, não negrito, máx. 100
palavras, alinhamento à esquerda, espaçamento
1,5. [Nota: Incluir a filiação institucional.]

124 ENTRELER
A LER

Como Ler Literatura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 127


Terry Eagleton
Ler o Mundo: experiências de transmissão cultural
na actualidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
Michèle Petit
O Infinito num Junco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133
Irene Vallejo
Suspense ou a Arte da Ficção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135
Patricia Highsmith
Histórias de Livros Perdidos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
Giorgio van Straten
O Vício dos Livros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139
Afonso Cruz
Guia Experimental para a Leitura em Voz Alta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140
Bru Junça, Elsa Serra, Guilherme d’Oliveira Martins et al.
O que vem a ser isto? A história de um objeto surpreendente . . . 142
Rita Canas Mendes

126 ENTRELER
A LER

de ritual; e isso porque ler literatura, ler o


Como Ler Literatura que é complexo, significa ultrapassagem
Terry Eagleton e transgressão dos lugares-comuns e/ou
dos preconceitos. Em rigor, ler literatura
implica convocar uma imaginação
concentrada, porquanto ler poesia ou
romance, teatro ou outras textualidades é
ir contra o ruído do mundo e obedecer ao
silêncio, construir um lugar onde ler é já
alguém debruçar-se sobre o objecto lido.
Reflectir, porque o corpo flecte sobre o
livro e o livro reflecte. Diz Farrell: to speak
of the literary text as a ritual space is to
give more internationalist account of a text’s
power, through seeing the writer as offering
a controlled sequence of verbal experiences
[…] (Farrell, 2004:113).
De facto, a literatura é produção de
universos verbais, universos de linguagem
e, especialmente no campo da educação
ISBN: 978-972-44-2485-9 – e da educação literária, sobretudo! –,
Edição: junho de 2021 importaria que as práticas pedagógicas e a
Editor: Edições 70 didáctica da leitura tivessem como alfa e
N.º de páginas: 272 ómega essa esquecida lógica textocêntrica,
essencial a toda a aprendizagem das
línguas. Seja à luz da estrutura dos géneros
Uma primeira impressão que nos literários, seja à luz de conteúdos mítico-
fica após a leitura deste livro de simbólicos, ler literatura é sempre arriscar
Terry Eagleton, um dos precursores em novas formas de leitura desse espaço
dos Cultural Studies, é que, apesar do interdito.
da inflação dessa área nova das Terry Eagleton tem como público-
ciências sociais e humanas, a qual alvo quer os alunos, quer os professores,
secundarizou mesmo o texto literário e esclarece os termos em que este volume
em benefício de pós-modernas se estrutura e as razões que o levaram a
superstições, teóricos como Eagleton ter de intervir. Por um lado, pretende-se
parecem reconhecer que os estudos que seja um «guia para principiantes», ao
literários devem concentrar-se mesmo tempo que deverá ser um livro
naquilo que é a essência da arte útil para quem está envolvido nos estudos
literária, a sua linguagem. literários «ou para quem simplesmente
gosta de ler poemas, peças e romances
Frank Farrell, num clássico da teoria nos seus tempos livres.» (p.11). Por outro
literária anglo-americana, Why does lado, este é um guia com ideias sobre
literature matter (Cornell University obras literárias e autores especificamente
Press, 2004), considerava que o espaço considerados (quase sempre de língua
literário, em última instância, é um inglesa). Guia de ideias, este Como
espaço ritualístico, na medida em que ler Ler Literatura justifica-se plenamente
literatura é iniciar um rito e uma espécie porque, segundo a visão de Eagleton,

ENTRELER 127
A LER

também comentador político, não se diz o texto a chave com que podemos abrir
pode construir a pólis sem uma sólida ao entendimento dos leitores comuns, e
consciência dos textos que a fecundam. mesmo especializados, obras como o Rei
Se o ensaísta, diz, teve a preocupação Lear, ou os contos de Oscar Wilde, a poesia
de «apetrechar» o leitor comum de de Milton ou a prosa de Proust.
ferramentas básicas que o possam ajudar Analisando excertos de diversos
a entrar na literatura, certo é que, como clássicos da literatura, Eagleton oferece-
se pode ler em quase todos os capítulos nos o laboratório da análise (só há
(Capítulo 1 – «Aberturas»; Capítulo 2 – interpretação depois de uma análise
«Personagem»; Capítulo 3 – «Narrativa»; aturada das estruturas retóricas de um
Capítulo 4 – «Interpretação»; Capítulo texto, lembra Óscar Lopes), isto é, o
5 – «Valor»), esse apetrechamento vem método através do qual um professor ou
escorado de uma visão política do um aluno, um estudioso da literatura ou
literário, já que as gerações de leitores um simples curioso, podem ser também
com menos de 35 anos estão hoje reféns agentes da obra.
duma ideologia do entretenimento Analisando, por exemplo, o estilo
mais “negando”, responsável pelo lugar de Henry James, que na fase tardia foi
marginal que o livro e a literatura ocupam acusado de ser barroco e rebuscado,
no campo simbólico da cultura. Eagleton transcreve um parágrafo que fez
Partindo duma diatribe (um diálogo história (retirado de As Asas da Pomba),
imaginário entre estudantes de literatura defendendo que o estilo de James nada
acerca de O Monte dos Vendavais, no tem que ver com o estilo do consagrado
qual se discutiriam as personagens e Dan Brown. Diz o teórico e ensaísta: «Tal
o seu carácter, mas sem que os jovens como muita escrita modernista, a prosa de
leitores compreendessem como Emily James recusa-se a não dar luta. Constitui
Bronte teria construído retoricamente um desafio para uma cultura de consumo
o enredo), Eagleton pode defender que imediato. Os leitores são forçados a um
a literatura, por definição, é o lugar da árduo trabalho de decifração.» (p.169).
ambiguidade e da metáfora. São essas Sabendo que a literatura é um fazer de
as características que dificultam, hoje, o linguagem, seria desejável que os leitores
acesso e a compreensão de muitos alunos, se sentissem «atraídos para as voltas e
que se confrontam com obras nas quais reviravoltas da sintaxe, numa luta para
a retoricidade é a marca de água deste ou descortinar o que o autor quer dizer.»
daquele poema, deste ou daquele romance. Há um apelo constante, como vemos
Um dos grandes méritos deste ensaio pelos trechos escolhidos, a que o leitor
é, pois, o de propor o regresso a uma entenda por que razão a literatura é
leitura atenta às estruturas gramaticais importante. E ela é importante porque
da linguagem literária. Eagleton refere- pode seduzir e educar. Um exemplo dessa
se a uma leitura vigilante, em que cada sedução educativa é o Ulisses de Joyce,
leitor saberá ver que o texto literário, obra que termina com uma frase sem
para ser fruído e compreendido, exige pontuação, a qual se estende por cerca de
que quem lê esteja atento «ao tom, à 60 páginas. Sessenta páginas de demanda
atmosfera, à cadência, ao género, à sintaxe, do sentido, esse o repto do mestre
à gramática, à consistência, ao ritmo, irlandês. Proust, outro exemplo maior
à estrutura narrativa, à pontuação», a do fazer linguagem, tem uma sintaxe
tudo quanto chamamos forma. Por isso labiríntica, permanentemente infiltrada
Eagleton observa, e bem, que não é o que de justaposições, prolepses e analepses.

128 ENTRELER
A LER

E o mesmo com Defoe, Dickens, Conan a um contexto. Defendendo-se de


Doyle, escritores que cultivaram, em indesculpáveis anacronismos (os The
maior ou menor medida, o estilo duplo, a Smiths não poderiam jamais ser ouvidos
ambiguidade, que Eagleton opõe à pobreza por uma personagem que actuasse numa
dos bestsellers. ficção cujo tempo fosse o século XVII),
Noutro passo, o autor não se exime, a relevância de um romance, de uma
pedagogicamente, a diferenciar a peça de teatro ou de um poema está na
estética realista da modernista, por capacidade de fazer transitar quem lê do
exemplo, observando que nas obras seu tempo para outros tempos, do seu
realistas há que preservar o princípio da espaço para outros espaços. Interpretar
realidade, evitando aquilo que nas obras é, assim, depois de uma análise da
modernistas virá a ser um valor ancilar: retórica do texto, ser capaz de não
a possibilidade de o enunciado literário inventar o que uma obra não diz, mas ser,
se fundar numa linguagem revoltada simultaneamente, capaz de conceber uma
(que se rebela, voltando-se contra si e a si dada obra como obra aberta, operativa,
regressando). produtora de imaginação.
Está em causa defender essa fascinante Em última análise, tendo em conta
ilegibilidade do literário. Caso modelar a intenção educativa deste ensaio que,
da escrita realista em processo de em boa hora, as Edições 70 trazem a
transformação é o Tristram Shandy, cujo lume, direi que, como professor e leitor
registo autobiográfico se desmonta à preocupado com o esmagamento da
nossa frente, quebrando, a pouco e pouco, fantasia e da capacidade imaginante em
princípios de verosimilhança. Personagens contexto educativo, este livro de Terry
deixadas para trás, pedaços inacabados Eagleton assume algumas teses bem
de prosa, eis uma obra que obriga a que antigas e que só uma pós-modernidade
a personagem, ao escrever, tenha de o amnésica e virtual julga serem teses
continuar a fazer para comprovar que o desfasadas do nosso tempo.
que escreve não é ficção. Escrever para Em Portugal, as teses diversas sobre a
contar o que se escreveu exige continuar a premente presença da literatura no ensino
escrever à medida que se vai continuando e sobre a emergência da literatura como
a viver. Nisso assenta a lógica dessa disciplina axial para a formação integral
obra-prima. Mas a literariedade de um dos cidadãos têm nos ensaios de Jacinto do
romance, de uma peça de teatro, de um Prado Coelho («A Educação do Sentimento
poema, prendem-se com um aspecto Poético», 1944), David Mourão-Ferreira
especialmente relevante – e apontado (vide Palavra Magia Corpo, 1991), Eduardo
no capítulo dedicado à interpretação Prado Coelho («Ensinar Literatura»,
–, a saber: a condição não-contextual, in A Letra Litoral), Maria Alzira Seixo
ou não-parafraseável da obra literária. (vide «Literatura e Ensino», in Presente e
Simplificando: uma das condições de Futuro – A Urgência da Literatura, 2014),
possibilidade da literatura é não estar Manuel Gusmão (Uma Razão Dialógica –
qualquer texto literário dependente de um A literatura, a sua experiência do humano
contexto. e a sua teoria, 2011), Paula Morão (ver
Ao tecer a obra, o autor, se escreve texto introdutório ao volume O Secreto e
imerso numa dada época, com seus o Real – ensaios sobre literatura portuguesa,
valores, costumes, cultura e referentes, Campo das Letras, 2011) e Vítor Aguiar
nem por isso tem de, obrigatoriamente, e Silva («A Lógica textocêntrica nas aulas
dar conta do contexto, ou estar preso de português», in As Humanidades, Os

ENTRELER 129
A LER

Estudos Culturais e o Ensino da Literatura,


Almedina, 2010) exemplos maiores de Ler o Mundo:
compromisso político e visão estratégica experiências de
da literatura. Fito que se pressente no transmissão cultural
ensaio de Eagleton. na actualidade
Duas teses são, neste conspecto, Michèle Petit
absolutamente inescapáveis e fazem
coincidir o pensamento do teórico anglo-
americano com os ensaístas portugueses
atrás indicados: 1.a – a obra literária
não é (ao contrário da moda hodierna
do romance soi disant «histórico») relato
histórico, é reinvenção da história,
abertura do ângulo de visão, reescrita
para fazer imaginar e pensar; 2.a – no
ensino das línguas, o valor delas reside
nos grandes textos, na compreensão das
potencialidades criadoras que a polissemia
promove. • António Carlos Cortez

Nota: O autor deste texto escreve de acordo com


a grafia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990.

ISBN: 978-989-54340-5-3
Edição: outubro de 2020
Editor: Kalandraka (Faktoria K de Livros)
N.º de páginas: 239

Michèle Petit é antropóloga e tem-


se dedicado, há várias décadas, à
investigação sobre a leitura e as suas
práticas em diversos contextos,
sendo amplamente reconhecida
internacionalmente pelos seus
estudos, sobretudo aqueles mais
ligados aos “espaços de crise”, que
incluem conflitos de diferentes tipos,
mas também migrações e exílios,
além de profundos problemas sociais.
Ao longo dos anos, a sua intervenção
pública em vários eventos confirmou
que se trata de uma das vozes mais
empenhadas na promoção da reflexão
sobre o relevo da leitura (e de outras
práticas culturais) na sociedade,
destacando-se pela forma como

130 ENTRELER
A LER

consegue divulgar junto do público mediadores formais, como é o caso dos


em geral, para além dos especialistas, bibliotecários, professores e educadores,
um conjunto de ideias e exemplos de e informais, onde se incluem os pais e
boas práticas de leitura, capazes de a família, não desapontando nenhum
motivarem a ação de mediadores e de deles. Esta sugestão de que a leitura deste
poderem ser amplamente replicados. livro não se reduz, de forma estrita, ao
domínio académico ou profissional é
Autora de vários livros sobre o tema da reforçada pela própria materialidade
leitura, da sua promoção e benefícios, do volume, em termos de formato e
como é o caso de, por exemplo, Éloge de dimensões, tornando-o também apetecível
la lecture (2002) e L’art de lire ou Comment visualmente, até por causa da ilustração
résister à l’adversité (2008), Michèle Petit da capa. Aliás, a única nota dissonante do
regressa mais uma vez ao tema em Ler o volume em questão é a incompreensível
mundo, obra que, desta vez, foi finalmente opção por não seguir o acordo ortográfico
traduzida e editada em Portugal graças em vigor, sobretudo tendo em conta os
à Editorial Kalandraka, na chancela destinatários preferenciais do livro.
Faktoria K de Livros. Trata-se de um Organizado em sete capítulos, a que
volume particularmente relevante, não se juntam um prólogo e um epílogo, o
só pelo grande interesse e atualidade livro percorre alguns dos temas centrais
dos vários temas abordados, mas pela relacionados com a leitura e os seus
forma como a autora consegue articular benefícios, quer em termos da construção
a dimensão teórica, apoiada em leituras pessoal do indivíduo, em múltiplos níveis,
e referências relevantes, devidamente quer da sua relação com os outros e com
identificadas nas notas finais, com a o mundo, inscrevendo-o num espaço e
prática, enumerando uma profusão permitindo-lhe a sua reorganização. Mas
de exemplos concretos distintos, também aborda a relação da leitura com
realizados em diferentes contextos, um outras artes, a questão da sua transmissão,
pouco por todo o mundo, num registo os seus agentes e os contextos onde ocorre,
particularmente apelativo e sensível, com relevo para a família, a escola e as
quase literário também, capaz de prender bibliotecas, sem esquecer os múltiplos
os leitores à sua reflexão. Essa dimensão desafios que enfrentam. Os capítulos,
“ilustrativa”, que inclui, além de exemplos apesar de organizados em torno de temas
de boas práticas de leitura, excertos de específicos, não são estanques e dialogam
obras literárias e de biografias de leitores, entre si, regressando aos mesmos
mas também experiências de vida da exemplos ou reforçando algumas ideias
própria autora e de algumas pessoas anteriormente apresentadas, quase como
próximas, é particularmente relevante, uma conversa, num registo muito distante
uma vez que imprime um cunho pessoal da secura e aridez de muitos textos
ao discurso, entrecortando-o com académicos ou científicos. A opção por
pequenas histórias, tornando-o mais transformar as referências bibliográficas
significativo e permitindo a identificação em notas finais colabora na leitura
dos leitores com o relato. mais fluida do texto, deixando ao leitor
Nessa medida, o livro resulta num especializado a tarefa de as consultar, se
objeto destinado a um amplo público tiver esse interesse.
de leitores, incluindo especialistas e A autora retoma, neste volume,
investigadores em questões de leitura algumas das reflexões e intervenções
e da sua promoção, mas também públicas que tem vindo a fazer nos

ENTRELER 131
A LER

últimos anos sobre a leitura, em particular em diferentes contextos geográficos,


na América Latina, de onde recolhe sociais e culturais, com indivíduos de
muitos exemplos de diferentes países, várias idades, mais do que modelos ou
discutindo algumas das declinações mais “receitas” a aplicar, funcionam sobretudo
prementes e atuais do tema da leitura e da como inspiração ou motivação, reforçando
sua promoção, com relevo para os desafios a crença do leitor do livro de Petit de que
colocados pelo digital e por uma sociedade é, ainda hoje, possível fazer a diferença
e cultura dominadas pela rentabilidade na vida das pessoas através da leitura,
imediata e utilidade visível dos seus porque a literatura e a arte têm um papel
produtos e manifestações. Não surpreende, relevante na construção de cada indivíduo
nessa medida, que Michèle Petit apresente e, em consequência, da própria sociedade.
as suas reflexões como uma espécie de Nesta medida, talvez se possa afirmar
contracorrente em relação a esse discurso que os leitores de Ler o Mundo serão
dominante, mas também em relação ao sobretudo aqueles que, de alguma forma,
pessimismo e desânimo sobre a perda de já se interessam pelo tema da leitura
relevo da leitura, da literatura e das artes e, por isso, estarão à partida cientes
em geral no contexto atual. Na realidade, a das virtualidades, não necessitando de
autora constrói um verdadeiro manifesto ser convencidos pela argumentação
sobre a necessidade de continuar a da autora. Contudo, pelas dificuldades
valorizar a leitura (e a arte), não só que enfrentam, alguns a trabalhar em
enumerando aquilo que a investigação contextos claramente desfavorecidos e
tem evidenciado sobre todas as suas em condições desafiadoras, os mediadores
vantagens e mais-valias, mas exibindo de leitura poderão encontrar neste livro
exemplos concretos que as ilustram, a inspiração necessária para fortalecer as
dando conta das transformações ocorridas suas convicções, devidamente ancoradas
nos indivíduos e na própria sociedade por na investigação, e orientar as suas práticas,
ação dessa aproximação à leitura e à arte. tendo em vista uma necessária e urgente
E o seu elogio, que constitui a chave cada vez maior aproximação à literatura e
de leitura do livro, não resulta apenas da a todas as formas de arte. • Ana Margarida
enumeração de um conjunto de princípios Ramos
teóricos sobre os quais tem assentado
a investigação, mas da constatação,
através dos vários exemplos evocados,
de que é possível, nos dias de hoje, em
todos os contextos, mas sobretudo nos
mais frágeis e carentes, promover, com
resultados positivos, práticas continuadas
de aproximação à leitura, à literatura (oral
e escrita) e às artes desde a infância. A
variedade e diversidade dos exemplos que
vão sendo convocados por Michèle Petit
só surpreenderá os menos familiarizados
com o seu trabalho de campo, que a
levou a percorrer inúmeros países e a
conhecer muitas realidades, algumas
particularmente adversas. Ainda assim,
esses exemplos de boas práticas, ocorridas

132 ENTRELER
A LER

documentada, Irene Vallejo transporta-


O Infinito num Junco nos numa aventura que percorre todos os
Irene Vallejo lugares por onde circulam ideias, primeiro
memorizadas e espalhadas pelo ar,
depois, porque a memória é curta, escritas
em livros. Foi esta relação apaixonada
com as palavras que mobilizou ao
longo dos séculos a ação protetora de
reis, imperadores, plebeus, contadores
de histórias, estudantes, aventureiros,
escribas, monges, freiras, professores,
bibliotecários, escritores, tradutores,
filósofos, escravos, mães, livreiros –
personagens a quem se dá voz neste relato,
fiéis depositárias das ideias e palavras do
nosso passado, mais ou menos remoto.
Na primeira parte da obra, materializa-
se a ideia da criação de uma biblioteca
universal que reúne as obras mais
importantes, num “esforço para unir
ISBN: 978-972-25-4037-7 os pedaços dispersos do Universo” (47).
Edição: outubro de 2020 Ao longo dos vinte e cinco capítulos, a
Editor: Bertrand Editora invenção do alfabeto, que transformou
N.º de páginas: 456 “a memória, a linguagem, o ato criador,
a maneira de organizar o pensamento,
a nossa relação com a autoridade, com o
Este é o livro que tem como propósito saber e com o passado” (95), e a invenção
o conhecimento sobre o próprio do livro apresentam-se como uma vitória
objeto, sobre as palavras que nele sobre o tempo de vida das ideias, pois
são registadas para sempre, mas, “o ato de escrever prolongava a vida
sobretudo, sobre as pessoas que lhe da memória, impedia que o passado se
deram vida, que o leram com paixão dissolvesse para sempre” (96), permitindo
e o perpetuaram até aos nossos dias. a preservação de identidades. A leitura
Este é o livro que revela a Humanidade era, na antiguidade, um “ritual que
e nos faz acreditar que há vínculos implica gestos, posições, objetos, espaços,
que nos unem muito mais fortes do materiais, movimentos, modulações de luz
que as geografias que nos afastam. (…), circunstâncias que rodeiam o íntimo
cerimonial de entrar num livro” (56) e
Esta narrativa começa no tempo em de interpretar as palavras escritas umas
que ainda era possível, pelo menos pelo atrás das outras sem separações ou sinais
sonho megalómano de um rei, reunir de pontuação. O aparecimento da escola
numa só biblioteca todos os livros do e dos “primeiros lugares coletivos para a
mundo. É em Alexandria que conhecemos aprendizagem”, o modo como a Paideia se
a biblioteca cuja lenda chegou até nós transformou “para alguns na única tarefa
pelos juncos de papiro que cresciam nas à qual vale a pena dedicar-se na vida”
margens do Nilo. Num discurso emotivo (145), as primeiras livrarias ambulantes
que não esconde, porém, a história real e que angariaram leitores por prazer, as

ENTRELER 133
A LER

bibliotecas que invadiram o mundo e em “urdidura de palavras, ideias, mitos e


cujas prateleiras “aguardam juntos livros livros” unia todas as raças que constituíam
escritos em países inimigos, até em guerra o império romano, onde “mosaicos,
uns com os outros” (156) e as “centenas de banquetes, estátuas, rituais, frontões,
milhares de bibliotecários que trabalham baixos-relevos, lendas de triunfo e de dor,
em todo o mundo [e] alimentam o nosso fábulas, comédias e tragédias modelavam
vício das palavras”(153), otimizando – com ar, pedra e papiro – aquela
sistemas de classificação “eficazes para identidade romana ampliada até limites
se orientarem entre aquela informação inimagináveis [e constituía] o primeiro
que começava a transbordar por todos os relato comum europeu” (392). Depois,
diques da memória” (247), são dinâmicas sobrevieram tempos difíceis para os livros
que contrastam com o poder destruidor do e para as pessoas, com o desmoronar do
fogo e das cheias, das traças e da humidade império como um castelo de cartas. Neste
do clima ou a vontade de alguns tiranos compromisso com a história que Vallejo
que tornaram a sobrevivência do livro nos apresenta, os seres humanos venceram
até aos nossos dias um autêntico milagre. a batalha da destruição e do caos graças
Nenhuma herança é mais valiosa do que à cooperação que se gerou em torno
a do exemplo, e a nós, leitores, Vallejo deste artefacto – o livro -, aprimorado
desafia-nos a continuarmos a dar forma às incansavelmente. Em todas as suas formas,
nossas ideias fundamentais “em diálogo em todos os materiais tentados, em todas
com os livros onde os clássicos falam” as suas experiências de uso, devemos aos
(398). Porque é assim que o que amamos nossos antepassados “a sobrevivência das
se salvará. melhores ideias fabricadas pela espécie
Na segunda parte, ao longo de dezanove humana” (399). Herdámos os melhores
capítulos, viaja-se pela extraordinária rede e os piores relatos de todas as épocas e
de estradas que permitiu a movimentação são esses os que relemos neste livro e que
de bens e pessoas como nunca antes fora lançam na memória imagens da nossa
experimentado, ainda que “sem o orvalho cultura permeada de luz e de sombra.
da poesia, dos relatos e dos símbolos” Este livro em papel desvenda-nos
(260); estes, reproduziram-nos os romanos também um leitor global que lê por
do modelo grego, um paradoxo que o prazer e que procura o saber. Essa procura
poeta Horácio contou afirmando que “a contínua de conhecimento capacita-o
Grécia, a conquistada, tinha invadido o para o exercício de uma leitura mais
seu feroz vencedor” (262). Foi também perspicaz da literatura e do mundo,
Horácio quem revelou “o fim do e é assim que vai construindo a sua
monopólio aristocrático sobre os livros”, identidade e a sua história, sem fronteiras
que deu início a um novo ciclo no acesso à geográficas. Afinal, sempre fomos leitores
leitura – o leitor anónimo; novos leitores e ávidos de aventura e de sonho: fomos
novos formatos de livro conviviam com os ginetes enviados à procura de livros raros
anteriores enquanto eram copiados para o pelo rei do Egipto, assim como somos
novo formato mais perdurável no tempo. bibliotecárias a cavalo transportando
Bibliotecas públicas e privadas, escritores, mundos imaginários a adultos e crianças
fãs, censura, cânone e comunidades de do Kentucky.
leitores foram conceitos contemporâneos Como salienta Vallejo no epílogo,
de todo o império romano e ainda ajudam somos os únicos animais que fabulam,
a “entender o passado como uma força que afugentam os medos com histórias e
que modela o presente” (377). Uma que, pela partilha, construímos ligações

134 ENTRELER
A LER

e deixamos de ser estranhos uns para os


outros. Tal como é documentado, graças Suspense ou a Arte
ao livro e ao vasto espaço de encontro e da Ficção
partilha de saberes que proporcionou, Patricia Highsmith
uma rede anónima de pessoas – ricas ou
pobres, homens ou mulheres – salvou
da destruição narrativas e pensamentos
partilhados ao longo dos séculos. Este
livro é, também por isso, um elogio à
paixão pela leitura e à resiliência humana
que dela resulta, o que lhe acrescenta um
valor tão oportuno quanto provocador.
Oportuno porque valoriza a humanidade
que existe em cada um de nós,
levianamente desconsiderada; provocador
porque nos incita a caminhar para um
futuro global que desvenda o seu rosto
humano. É, pois, a esperança que também
sobrevive neste relato. O grito das crianças
do Kentucky “Traz-me um livro para ler”
(404) parece anunciar mais ideias a unir-
nos no futuro. • Isabel Ramos ISBN: 978-989-564-285-4
Edição: março de 2021
Editor: Cavalo de Ferro
N.º de páginas: 144

A obra de Patricia Highsmith


Suspense ou a Arte da Ficção foi
publicada pela primeira vez em 1966.
Esgotada há muito nas livrarias
nacionais, foi em março de 2021 – ano
em que se comemora o centenário do
nascimento da escritora – objeto de
reedição em português, numa nova
e melhorada tradução (Rita Canas
Mendes).

Famosa pelo grande sucesso dos seus


thrillers psicológicos, Highsmith (Texas,
1921 – Locarno, 1995) é tida como uma
das escritoras modernas mais influentes
e celebradas, tendo vários dos seus livros
sido adaptados ao cinema.
Neste ensaio, a autora mostra as
mãos e os fios que sustentam o suspense
e se escondem por trás da escrita de

ENTRELER 135
A LER

ficção – sem, no entanto, o transformar pois “as suas antenas invisíveis estão à
num manual de instruções. O que faz espreita das mesmas vibrações no ar”…
é sugerir “linhas de abordagem a um E a criação é motivada pelo tédio
livro”, partilhar reflexões baseadas na sua que sente em relação à realidade, pela
experiência como escritora, por exemplo, monotonia da rotina e dos objetos que a
de O talentoso Mr. Ripley, O Desconhecido rodeiam. Por isso, sublinha a importância
do Norte Expresso ou A Cela de Vidro. da “surpresa” e da “reviravolta inesperada”
Até porque, adianta a autora no prefácio, (como uma resposta ao tédio).
“Na escrita não há qualquer segredo para Como nasce, então, uma história de
o sucesso além da individualidade, a que suspense? As experiências emocionais
também podemos chamar personalidade.” de quem escreve, mas também as
É, no entanto, a “omnipresente experiências de outros, bem como
possibilidade de fracasso” que torna “a as palavras de outros, são a fonte de
escrita uma profissão viva e empolgante”. inspiração. Tudo é passível de dar origem
Os obstáculos, as pausas, as angústias, a uma ideia inicial – uma “semente” – e
as dificuldades, os fracassos fazem esta, a uma história. Muitas vezes, são
parte do processo, ou melhor, são o seu ocorrências insólitas e coincidências que
motor – e, como tal, merecem atenção a conduzem à escrita, são acontecimentos
ao longo do livro. Também a rejeição de inesperados e menores que a inspiram.
um manuscrito pelas editoras – “cerca E se a história é de suspense, “a
de vinte vezes e não apenas duas ou possibilidade de ação violenta, e até
três” – é partilhada como sendo natural, mesmo a morte, está sempre por perto”.
ultrapassável após um breve período de A ameaça de perigo e violência física
luto. ou perigo e violência física efetivos são
Tratando-se de um livro dirigido a o ingrediente essencial de uma história
“candidatos a escritores”, são também de suspense e “oferecem entretenimento
abordadas abertamente a questão da de modo vivo e, geralmente, superficial.
insegurança financeira (“É avisado um Dessas histórias não se esperam
escritor ter outra atividade que lhe pensamentos profundos ou longas
permita ganhar algum dinheiro, até passagens sem ação.” No entanto,
ter publicado livros suficientes que lhe isso não impede que esses elementos
garantam um rendimento constante.”) existam, se enquadrados numa “história
e preocupações de índole comercial, essencialmente viva”.
chegando a autora mesmo a sugerir, em O protagonista assassino dessas
alguns casos, a adequação do texto às histórias é, para Patricia Highsmith,
características do mercado. o “criminoso simpático”, a quem são
Na sua descrição do processo criativo, atribuídas todas as qualidades possíveis,
Patricia Highsmith fala, tal como como, por exemplo, “generosidade,
muitos outros escritores, da necessidade bondade para com algumas pessoas,
de isolamento: “em geral, o plano da gosto pela pintura, pela música ou pela
interação social não é o plano da criação, culinária.” O contraste das qualidades
não é o plano em que as ideias criativas com os seus traços criminosos ou
pairam. É difícil estarmos atentos ao nosso homicidas é um dos fatores de interesse da
inconsciente, ou recetivos a ele, quando personagem.
estamos com um grupo de pessoas”. Mas o leitor encontra em Suspense
Quando escreve, também não gosta de ou a Arte da Ficção outras reflexões, por
discutir o seu trabalho com outros autores, exemplo, sobre pontos de vista, diálogos,

136 ENTRELER
A LER

espaço, ação, sempre apoiadas em


exemplos da vasta obra da autora. Desde a Histórias de Livros
semente da ideia inicial até ao momento Perdidos
do “consumo” do livro, são percorridos os Giorgio van Straten
caminhos do desenvolvimento da ideia,
do delinear do enredo, das várias versões
e das revisões, que envolvem esforço
intelectual, motivação e convicção, mas
não excluem o divertimento, o elemento
lúdico: “Talvez as únicas alturas em que
não me divirto sejam quando tenho
dificuldade em cumprir um prazo rígido.”
Os aspetos abordados ao longo do
ensaio são, no final, aplicados à obra
A Cela de Vidro, com a qual a escritora
confessa ter tido mais dificuldade do que o
habitual. Descreve, então, a sua inspiração,
as dificuldades em reunir material para o
pano de fundo, as contrariedades com os
editores, uma rejeição, a aceitação no final
e… o filme homónimo.
Muito do que se diz neste ensaio não ISBN: 978-989-8864-46-8
se aplica apenas à chamada escrita de Edição: outubro de 2018
suspense, de livros policiais ou thrillers, mas, Editor: Elsinore
e tal como o subtítulo o sugere desde o N.º de páginas: 144
início, à arte da ficção em geral. O suspense
não é uma categoria, é um elemento que
pode estar presente em toda a ficção. Giorgio van Straten escreveu um
E o que Patricia Highsmith faz com pequeno ensaio intitulado Histórias
verdadeira mestria é manter suspenso o de Livros Perdidos. Um livro pequeno,
espírito do leitor, que espera, em tensão, mas intenso. Reflexivo. Curioso.
algo que vai – ou não – acontecer. • Equipa Fascinante, para quem se interessa
do PNL2027 pela história do livro e da leitura. Cada
capítulo, uma história de um livro
perdido. Não falamos de livros que se
perdem e que rapidamente poderão
ser recuperados pela aquisição de
outro exemplar, pelo contrário, são
livros “que existiram e que, agora,
não existem”. Há muitas razões para
que um livro fique perdido: porque
o manuscrito se perdeu, porque o
autor o destruiu, por lealdade, morte,
separação, censura, entre outras.

Mas qual o interesse de escrever um livro


sobre livros perdidos? O autor sente um

ENTRELER 137
A LER

fascínio quase infantil por aquilo que A mala pertence à primeira mulher de
escapa, o que o motiva a empreender uma Hemingway e contém os primeiros ensaios
“volta ao mundo em oito volumes, ao narrativos do futuro Nobel da Literatura.
invés de oitenta dias”, ou seja, a encetar A história é contada em Paris é uma festa,
uma busca, para, depois, nos contar a romance publicado após a sua morte e
sua história em oito capítulos. Como um que, ironicamente, “nasce de uma série
detetive, van Straten viaja no espaço e de apontamentos que Hemingway tinha
no tempo, interrogando, vasculhando abandonado […] dentro de duas maletas,
lugares, papéis e memórias, seguindo no final dos anos 30, no Hotel Ritz de
pistas em busca de livros perdidos, Paris, cuja posse recuperou em novembro
livros que agora só existem nas histórias de 1956, precisamente porque o diretor
que deles se contam. Afinal, “os livros daquele hotel lhe indicou a sua presença”.
perdidos têm algo que os outros não Estas são histórias – algumas
possuem: deixam-nos, a nós, não leitores, trágicas – de oito livros queimados,
a possibilidade de imaginá-los, de contá- rasgados, roubados, ou simplesmente
los, de reinventá-los.” desaparecidos... Para sempre. Se a
Cada livro perdido tem a sua história. esperança de encontrar algum deles é
O autor inicia a obra com o testemunho mínima, subsiste, no entanto, por vezes, a
de uma vivência pessoal, em sua casa, hipótese de alguém, algum dia, algures…
em Florença, falando de um livro que E hoje em dia, será fácil perder um
leu, com grande emoção, das novas livro? Devido à quantidade de suportes em
palavras descobertas, de “uma linguagem que atualmente pode ser gravado, parece
maravilhosamente enxuta”, das palavras quase impossível que um livro desapareça
de um amigo e de um mestre que tanto irremediavelmente, sem deixar rasto. E o
admirava (Romano Bilenchi). Uma sabor das palavras será o mesmo? O que
leitura inesquecível. Uma bela história dirão todos os que amam o livro enquanto
de amor. Daqui, “viaja” para Londres; objeto? Paradoxalmente, no entanto, “em
após um percurso circular, durante o certos casos, a imaterialidade é tão frágil
qual passa por vários países (França, como o velho papel”… O que continua
Polónia, Rússia, Canadá e Espanha), volta a deixar aberto o caminho àqueles que,
a Londres – tal como Phileas Fogg – para como Giorgio van Straten, perseguem “o
contar o desaparecimento do oitavo livro, risco de uma impossibilidade”. • Equipa do
Double Exposure, de Sylvia Plath. Ernest PNL2027
Hemingway, George Byron, Nikolai Gógol,
Malcolm Lowry, Bruno Schulz e Walter
Benjamin são os outros autores dos livros
perdidos que protagonizam as histórias
contadas neste volume.
Acontecimentos fortuitos estão, muitas
vezes, na origem do desaparecimento
dos manuscritos. Uma das histórias, a
de Ernest Hemingway, leva-nos a Paris
e ao ano de 1922. Uma mulher, uma
mala, uma estação de comboios, uma
corrida para ir comprar uma garrafinha
de água e, no regresso… A mala já não
está na rede porta-bagagens do comboio.

138 ENTRELER
A LER

Bibliotecas. “Na biblioteca do faraó


O Vício dos Livros Ramsés II estava escrito por cima da porta
Afonso Cruz de entrada: «Casa para terapia da alma». É
o mais antigo mote bibliotecário”.
Mais do que um terapeuta, hoje, o
bibliotecário é um curador. A curadoria
permite cuidar e simultaneamente fazer
uniões, abrir novas possibilidades ao
diálogo com diferentes gentes, tempos e
espaços. O bibliotecário, enquanto curador,
oferece ao leitor a experiência incrível
de viver múltiplas vidas, aventuras e
desventuras. Ao longo do livro, Afonso
Cruz refere diferentes bibliotecas, as que
se perderam, as que são ao ar livre, como
a da Rua Al-Mutanabbi, em Bagdade, as
bibliotecas enquanto “autobiografias”
dos seus donos, recordando uma ideia
de Borges, ou as bibliotecas que existem
dentro de cada um de nós, reveladas no
ISBN: 978-989-784-197-2 adágio africano “Quando morre um velho,
Edição: abril de 2021 desaparece uma biblioteca”.
Editor: Companhia das Letras Entre livros e estantes, entre a ordem
N.º de páginas: 128 e o caos, há sempre o acaso, o fortúnio
de (re)encontrar um livro, tal como o
autor encontrou A Brincadeira e A Louca
“Qualquer leitor apaixonado encontra um momento da Casa, ou como um jovem jornalista
entre trabalhos e tarefas para abrir um livro, colombiano encontrou O Pintor debaixo
caminha enquanto lê, lê nos transportes, lê enquanto do Lava-Loiças.
almoça, lê na casa de banho, lê antes de dormir.” Leitura(s). Ler um livro é ato único,
individual e, muitas vezes, solitário, mas
O Vício dos Livros reúne cerca de simultaneamente é “um diálogo entre
trinta textos sobre a leitura e o autor e leitor e […], se não houver um
amor aos livros, mas também sobre abalo qualquer naquele que lê, então
curiosidades literárias, reflexões e tudo terá sido em vão.” A leitura é um
memórias pessoais. Por vezes num ato transformador, revigorante e com
tom autobiográfico e confessional, dá reflexo na vida coletiva, na forma como
ao leitor a liberdade de pular de texto pensamos e agimos. Novas descobertas
em texto, vagueando por diferentes linguísticas, mapas mentais readaptados,
geografias, livros, escritores e sensibilidades aguçadas são algumas
leitores. A paixão pelos livros, o mudanças que a leitura provoca em nós,
prazer de ler é transversal a todos os enquanto ávidos leitores. Afinal, “os livros
textos, não esquecendo a referência que lemos construíram-nos, constroem-
a esses espaços incríveis que são as nos, construir-nos-ão.”
bibliotecas, ao poder da leitura, entre O autor deste livro socorre-se da
outras matérias afins. obra de Elias Canetti A Consciência das
Palavras para sublinhar a importância

ENTRELER 139
A LER

da transformação que advém da leitura,


neste caso, a transformação poética como Guia Experimental para
a “única e verdadeira via de acesso a outro a Leitura em Voz Alta
ser humano.” Bru Junça, Elsa Serra, Guilherme
Nem todas as pessoas se relacionam d’Oliveira Martins et al.
com os livros e com a leitura da mesma
forma. Se para uns o vício dos livros é
paixão, entusiasmo, exaltação, para outros
não há lugar para tal vício, pois o tempo
escasseia.
Tempo. Os livros são pacientes.
Resignados à espera, ao momento em que
o leitor decide lê-los. O livro pede atenção
total e exclusiva. É necessário tempo para
ler e reler. Respirar. Pensar. Usufruir
da experiência incrível que é ler. Quem
verdadeiramente sente prazer na leitura
luta contra o tempo, procurando todos os
momentos disponíveis para ler, de modo a
saciar o vício, pois sabe que a “leitura é um
processo lento e muitas vezes ciumento,
possessivo. (…) outras atividades não têm
tantos ciúmes e permitem-nos realizar ISBN: 978-989-8421-60-9
várias ao mesmo tempo (cantarolar, Edição: junho de 2021
dançar, pensar e cozinhar, por exemplo, Editor: BOCA
podem coabitar na mesma pessoa e no N.º de páginas: 96
mesmo espaço e tempo). Muitas vezes,
ler exige silêncio e recolhimento”, uma
espécie de oração, segundo Christian “(…) de onde vem esse teu gosto pela leitura em voz alta?
Bobin, mas também de libertação. Ela responde:
Liberdade. Afonso Cruz partilha o — Da Escola.
encontro com uma escritora, famosa no Feliz por ouvir alguém reconhecer algum mérito à
mundo árabe, que lhe confessa “Comecei escola, exclamo satisfeito:
a ler e libertei-me”, após ter posto fim a — Ah! Estás a ver?
uma década de casamento. Haverá alguém Ela diz-me:
mais livre do que um leitor? Só a leitura — De modo nenhum. Na escola proibiam-nos que
possibilita o encontro com a verdadeira lêssemos em voz alta. O credo da época era da
essência da liberdade: sonhar sozinho sem leitura silenciosa. Directamente da vista ao cérebro.
nunca estar só, escolher entre múltiplas Transição instantânea, rapidez, eficácia. E de dez
possibilidades, salvar as histórias que se em dez linhas, um teste de compreensão. Desde o
estragam, sufocar de prazer ou sofrer até começo, era a religião da análise e do comentário.
enlouquecer, avançar ou recuar no tempo, Muitos miúdos ficavam aterrorizados, e ainda
vacilar entre a ficção, o ensaio ou a poesia. estávamos no princípio! Se queres saber, todas as
Ser livre de escolher e ser escolhido. minhas respostas eram correctas, mas mal chegava a
O Vício dos Livros é uma ode aos leitores casa relia tudo em voz alta.
e um belíssimo livro para quem não pode — Para quê?
viver sem livros. • Equipa do PNL2027 — Para me maravilhar. As palavras pronunciadas

140 ENTRELER
A LER

começavam a ter existência fora de mim, tinham palavras, “ser económico e significante
autêntica vida.” nos gestos”, respeitar o ritmo (fazer bem
Daniel Pennac, Como um Romance as pausas e os silêncios, e interpretar
bem as interjeições), é bem certo que
Ler é bom! Muito bom! Dá-nos também supõe saber escutar. Na vida, em
liberdade e poder. momentos melancólicos, de doença ou
Ler em voz alta é fonte de prazer! outros, há palavras que ecoam em nós e
Dá vida às palavras, amplia-lhes o nos transformam. A Biblioterapia tem
sentido. como objetivo “fazer companhia e aliviar
Em silêncio, a pares ou em voz alta são sentimentos de solidão, levantar o ânimo
algumas das formas possíveis de ler. […] combater a tristeza […], estimular a
Não importa como se lê, o que importa memória e a imaginação de quem ouve e
é ler, ler bem, com fluência, com gosto fazê-lo viajar sem sair do lugar, conversar
e entusiasmo. A leitura em voz alta no seguimento da leitura e ajudar a passar
requer treino, implica falar “quer em o tempo.”
tom solene, quer em tom intimista, Quem ouve lê noutro formato!
quer em tom declarativo, entre O ouvinte é simultaneamente leitor.
outros, permite dar vida nova ao texto A escuta amplia a descoberta de autores,
escrito, ou melhor, libertar a vida que palavras, textos e livros.
as mesmas palavras transportam.” O Guia Experimental para a Leitura em
Voz Alta é simultaneamente um guia e
Historicamente, a leitura em voz alta um convite. Um guia, pois ajuda-nos a
está intimamente relacionada “com o melhorar a técnica de ler em voz alta,
surgimento da escrita há mais de cinco mil através de muitas sugestões e propostas
anos em regiões como a Mesopotâmia ou de exercícios, e orienta-nos na descoberta
o Egipto”. Muitos dos textos produzidos de novas rotas que nos conduzem aos
”destinavam-se a ser lidos em voz alta”, benefícios da leitura em voz alta. Neste
durante o período romano. Nas escolas, guia, somos conduzidos pela voz de
aprendia-se a ler e a escrever praticando alguns dos mais reconhecidos poetas,
a leitura em voz alta de textos antigos, atores, mediadores de leitura, contadores
desta forma valorizando a acessibilidade de histórias e mestres da palavra dita.
aos livros que começavam a encher Mas também com eles aprendemos a
as estantes das bibliotecas. No espaço importância do escutar. E é um convite,
público (barbearias, tabacarias, cafés, entre pois desafia-nos a “entrar no jogo da
outros), ler em voz alta “assumia-se como leitura partilhada, enquanto percorre,
elemento de coesão social”. Se, por um em voo picado, uma breve história da
lado, nos salões literários e filosóficos eram literatura portuguesa”, a refletir sobre
promovidas as tertúlias e as declamações a importância de ler em voz alta e,
de poesia, por outro lado, esta forma finalmente, a escutar vozes magníficas
de ler permitia “o acesso aos conteúdos e deslumbrantes palavras. Para sermos
dos textos escritos por segmentos largos encantados pela(s) voz(es)!
das comunidades não alfabetizados”, a O Guia Experimental para a Leitura em
“transmissão do património de saber Voz Alta resulta de uma feliz parceria
humano, transversal a todas as culturas”. entre a Câmara Municipal da Sertã,
A democratização da leitura era efetiva! organizadora da Maratona de Leitura,
Ler também é ouvir. Se ler em voz alta com a editora BOCA, em prol da leitura
pressupõe ler devagar, articular bem as em voz alta e numa delicada e sentida

ENTRELER 141
A LER

homenagem à língua portuguesa. Este


magnífico livro faz-se acompanhar por O que vem a ser isto? A
um CD. Fica o convite para escutarem as história de um objeto
belíssimas palavras de Alberto Pimenta, surpreendente
Ana Sofia Paiva, Andante (Cristina Paiva Rita Canas Mendes
e Fernando Ladeira), António Poppe,
Bru Junça, Cristina Taquelim, Elsa Serra,
Fernando Assis Pacheco, Fernando
Alves, Filipa Leal, Jorge Serafim, José Rui
Martins, Luís Caetano, Luís Miguel Cintra,
Maria do Céu Guerra, Mário Guerra,
Miguel-Manso, Miguel Real, Raquel Lima,
Rodolfo Castro, Sandra Barão Nobre e
tantos outros. Obrigado a todos! • Equipa
do PNL2027

Ilustradores: Nádia e Tiago Albuquerque


ISBN: 978-972-27-2506-4
Edição: junho de 2021
Editor: Imprensa Nacional e Museu Casa da Moeda e
Pato Lógico Edições
N.º de páginas: 65

“O que vem a ser isto?! Mas como assim?


Isto é um livro.
Isto é, eu sou um livro.
Tenho uma capa, folhas, tenho texto
e umas bonitas ilustrações (modéstia à parte).
É isso um livro, não é?”

O que é um livro? A palavra latina que


dá origem a livro, liber (libru-), refere
a entrecasca de algumas árvores, na
qual se escrevia. Atualmente, enten-
de-se que um livro é um conjunto de
folhas de papel escritas ou impressas,
que, uma vez encadernadas, formam
um volume. No mínimo, um livro deve
conter pelo menos cinquenta folhas,
caso contrário é um folheto.

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A LER

Muitos de nós entendem o livro como um inspiradores. “O livreiro está a par das
objeto tocável, transportável, criativo e tendências do mundo editorial, das
plástico. Nós temos, lemos e oferecemos notícias da atualidade e dos gostos dos
livros. Gostamos de conversar sobre leitores, para poder aconselhá-los da
livros, participamos em clubes de leitura melhor forma. A maioria das livrarias
e refletimos sobre os benefícios de ler. comercializa livros novos, mas há também
Afinal, que objetos são estes? “Como se alfarrabistas, que vendem livros antigos e
fabricam? E quem os faz? A Imprensa em segunda mão.” A livraria é o melhor
Nacional, a mais antiga editora do país – lugar para se comprar livros, apesar de eles
fundada em 1768 —, vai revelar-te todos os se encontrarem à venda noutros locais.
segredos”, promete este magnífico livro aos Enquanto a biblioteca, “em vez de vender
leitores mais jovens. Mas dirige-se a todos livros […], empresta-os gratuitamente a
os que gostam de livros e querem conhecer qualquer pessoa.” As bibliotecas são espaços
a sua história, bem como todos os aspetos democráticos, garantem a acessibilidade à
da sua criação, e saber mais sobre edição, informação e ao conhecimento, apostam
revisão, encadernação e distribuição. Para na mediação leitora e na “divulgação do
se conceber um livro, para que o objeto prazer da leitura.”
seja verdadeiramente atraente, dever- Preciso, claro e esclarecedor, o texto
se-á compreender o papel desempenhado avança sempre num diálogo harmonioso
pelos designers editoriais, já que são eles com as ilustrações, que ampliam a
que “desenvolvem uma organização sua compreensão. Antes de terminar,
gráfica para os conteúdos, dependendo nas últimas páginas, é apresentado
da natureza da obra e do público a que se um conjunto de palavras para o leitor
destina.” descobrir e lhes saborear o significado,
O livro, enquanto objeto surpreendente, como, por exemplo, arte-final, errata,
intemporal, encantatório e sensível, fólio e incunábulos. O livro faz-se
de múltiplos significados e formatos, acompanhar de uma capa desdobrável,
expressa-se em diferentes tipologias: “de que apresenta ao leitor os vários
bolso; livros de artistas; livros miniatura; profissionais necessários para fazer nascer
livros gigantes; livros em formato de um livro: “todos têm funções muito
concertina; livros panorâmicos; livros importantes, embora alguns tenham mais
pop-up; audiolivros; livros eletrónicos; protagonismo e outros estejam mais nos
e até livros em formatos invulgares; […] «bastidores»”. São precisas muitas mãos,
livros literários; científicos; de receitas, de vontades, entusiasmo e profissionalismo
instruções; escolares; só com ilustrações ou para criar um livro.
só com fotografias; só com texto; com texto O que vem a ser isto? A história de um
e ilustrações; dicionários; almanaques objeto surpreendente apresenta-nos os
[…]. Há livros de um autor apenas e livros vários intervenientes na criação do livro,
com vários autores. Há até livros de não esquecendo nem os autores nem os
autores desconhecidos.” Acrescentaríamos leitores, pois afinal é por causa deles que
que há livros pensados e concebidos os livros são criados. “Os leitores estão
para informar, divulgar e saciar a nossa na ponta final desta grande cadeia, mas,
curiosidade, como é o caso deste. de certo modo, são eles que estão na sua
Após um longo caminho, os livros origem. Os autores transmitem ideias
chegam aos leitores quer pelas bibliotecas aos leitores pelos livros, uma espécie de
quer pelas livrarias. As livrarias comunicação silenciosa através do espaço
tradicionais são espaços acolhedores e e do tempo. […] A leitura […] também

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A LER

é uma grande viagem. Os livros são


portas por onde entramos para explorar
novos mundos”, mas não só. Aguçamos a
curiosidade, ampliamos conhecimentos,
melhoramos a comunicação, excitamos a
imaginação e a criatividade e … ansiamos
pela ociosidade, porque o leitor necessita
de tempo. Tempo para ler, voltar a ler e
dar a ler.
Recordando as palavras do Poeta:
“Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!”

Ou talvez faça mais sentido afirmar: “Ai


que prazer ter um livro para ler e … lê-lo!”.
• Equipa do PNL2027

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