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cadernos

de campo
revista dos alunos de pós-graduação em antropologia social da usp

Edição especial 15 anos [1991-2006]

issn 0104-5679
14 /15
cadernos de
SÃO PAULO v. 15 n. 14 / 15 p. 1-382 JAN.-DEZ./2006
campo
COLABORADORES DESTE NÚMERO Esta revista é indexada pelos:
Ana Lúcia M. C Ferraz, Andréa Osório, André-Kees de Moraes Schouten,
Anna Maria de Castro Andrade, Celso Azzan Jr., Daniel Calazans Pierri, Índice Brasileiro de Ciências Sociais – IUPERJ/RJ
David Ivan R. Fleischer, Edgar Teodoro da Cunha, Eduardo Dullo, Eduardo
Viveiros de Castro, Fabiene Gama, Francirosy Campos Barbosa Ferreira, Ulrichs’s International Periodical Directory
Francisco Simões Paes, Fraya Frehse, Gilmar Rocha, Isabela Oliveira, Ivan Latindex – Sistema Regional de Información em Línea para Revistas
Paolo Fontanari, Jayne Hunger Collevatti, Jessie Sklair, Joana Lins, Julia Cientíicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal
Sauma, Laura Colabella, Leandro Mahalem de Lima, Lílian Sales, Luiz
Alberto Couceiro, Márcio Macedo, Marta Amoroso, Patrícia Osório, Pedro Publicação Anual / Anual publication
Lolli, Piero Leirner, Rose Satiko Hikiji, Stelio Marras, Taniele Cristina Rui,
Ugo Maia Andrade. Solicita-se permuta / Exchange desired

PREPARAÇÃO E REVISÃO DE TEXTO Tiragem: 600 exemplares


Marco Fontanella
Comissão Editorial Cadernos de Campo FINANCIAMENTO PPGAS/USP
PROJETO GRÁFICO ORIGINAL
Ricardo Assis Todos os direitos reservados
Copyright © 2006 by Autores
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Pedro Barros Nenhuma parte deste publicação pode ser reproduzida por qualquer
FOTO DA CAPA
meio, sem a prévia autorização deste órgão.
Fabiene Gama
errata

Na edição nº 13, ano 14, jan-dez/2005, à página 177,

onde se lê: Dewey, Dilthey e Drama: um ensaio em An-


tropologia da Experiência (primeira parte)

leia-se: Dewey, Dilthey e Drama: um ensaio em Antro-


pologia da Experiência

Serviço de Biblioteca e Documentação da Faculdade de Filosoia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

Cadernos de campo : revista dos alunos de pós-graduação em Antropologia Social da USP / [Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosoia, Letras
e Ciências Humanas. Departamento de Antropologia. Programa de Pós-graduação em Antropologia Social]. – Vol. 1, n. 1 (1991)-. -- São Paulo :
Departamento de Antropologia/FFLCH/USP, 1991-[2006].

Anual
Descrição baseada em: Vol. 1, n. 1 (1991) ; título da capa
Última edição consultada: 2005/13
ISSN 0104-5679

1. Antropologia. 2. Antropologia (Teoria e métodos). I. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosoia, Letras e Ciências Humanas. Departa-
mento de Antropologia. Programa de Pós-graduação em Antropologia Social.

21ª. CDD 301.01


sumário
Memória de um professor (em três atos) ..............................................................................13
Celso Azzan Jr

artigos e ensaios.....................................................................................................19
São Tomé das Letras e Lagoa Santa: mineração, turismo e risco ao patrimônio
histórico e natural
david ivan rezende fleischer ...........................................................................................21
Encontros cartografados: relexões sobre encontros entre meninos e educadores de rua
julia frajtag sauma............................................................................................................41
Cantoria de Pé de Parede: a atualização da cantoria nordestina em Brasília
patrícia silva osório..........................................................................................................65
Tatuagem e autonomia: relexões sobre a juventude
andréa osório ...................................................................................................................83
A etnograia como categoria de pensamento na antropologia moderna
gilmar rocha .....................................................................................................................99
Os recursos para ir além e a mecânica do juízo: sobre o consumo de substâncias como
prática cultural jovem nas festas de música eletrônica
ivan paolo de paris fontanari ........................................................................................115
A quarta dimensão no trabalho de Trinh T. Minh-ha: desaios para a antropologia ou
aprendendo a falar perto
jessie sklair......................................................................................................................133
Por sobre os ombros de um viajante: ensaio sobre o movimento, o perspectivismo e o
xamanismo na cosmologia Tupinambá a partir da obra de André hevet
daniel calazans pierri ...................................................................................................145

artes da vida ............................................................................................................167


Alto da Serra
fabiene de m. v. gama ......................................................................................................169

entrevista ..................................................................................................................175
Entrevista com Márcio Goldman e Eduardo Viveiros de Castro
aristóteles barcelos neto, danilo ramos, maíra santi bühler,
renato sztutman, stelio marras e valéria macedo ......................................................177

traduções ..................................................................................................................191
Etnograia e história na Amazônia, por Peter Gow
marta rosa amoroso ........................................................................................................193
Da Etnograia à História: “Introdução” e “Conclusão” de Of Mixed Blood: Kinship
and History in Peruvian Amazônia
peter gow .......................................................................................................................................197
Dilemas do reconhecimento: apresentação ao artigo de Nancy Fraser
heloisa buarque de almeida ..........................................................................................227
Da redistribuição ao reconhecimento? Dilemas da justiça numa era “pós-socialista”
nancy fraser ....................................................................................................................231 contents
resenhas ....................................................................................................................241
Memory of a profesor (in three acts) ....................................................................................13
MOUTINHO, Laura. Razão, “cor” e desejo
Celso Azzan Jr
márcio macedo ................................................................................................................243
COHN, Clarice. Antropologia da criança articles and essays ................................................................................................19
eduardo dullo ................................................................................................................247 São Tomé das Letras and Lagoa Santa: mining, tourism, and threats to
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé the historical and natural heritage
luiz alberto couceiro ....................................................................................................250 david ivan rezende fleischer ...........................................................................................21
ZARIAS, Alexandre. Negócio Público e Interesses Privados Cartographic meetings: relections on meeting between boys and street educators
taniele cristina rui ........................................................................................................254 julia frajtag sauma............................................................................................................41
MÍGUEZ, Daniel; SEMÁN, Pablo (orgs.). Entre santos, cumbias y piquetes Cantoria de Pé de Parede: updating the Northeastern singing in Brasilia
laura colabella ..............................................................................................................257 patrícia silva osório..........................................................................................................65
BROWN, Michael F. Who Owns Native Culture? Tattoos and autonomy: relections about youth
joana de freitas lins .......................................................................................................263 andréa osório ...................................................................................................................83
HIKIJI, Rose Satiko Gitirana. A Música e o Risco he ethnography as category of thought in modern anthropology
francirosy campos barbosa ferreira .............................................................................267 gilmar rocha .....................................................................................................................99
Resources to go beyond and judgment mechanic: on the comsuption of illegal substances
informe........................................................................................................................271 as a cultural action by the youth in electronic music parties
ivan paolo de paris fontanari ........................................................................................115
Comunidades quilombolas e a garantia dos direitos territoriais: as ações da Comissão
Pró-Índio de São Paulo he fourth dimension in the work of Trinh T. Minh-ha: challenges for the
anthropology or learning to talk close
especial 15 anos ...................................................................................................277 jessie sklair......................................................................................................................133
Notas sobre a apropriação de uma etnograia: o caso da Polícia Militar de São Paulo Over the shoulders of a traveler: essay on movement, perspective and shamanism
piero de camargo leirner ..............................................................................................279 in Tupinambá cosmology from a André hevet’s work
daniel calazans pierri ...................................................................................................145
O vídeo e o encontro etnográico
ana lúcia marques camargo ferraz, edgar teodoro da cunha, rose satiko hikiji ....287
arts of life..................................................................................................................167
Potencialidades de uma etnograia das ruas do passado
fraya frehse .....................................................................................................................299 Alto da Serra
fabiene de m. v. gama ......................................................................................................169
A loresta de cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos
eduardo viveiros de castro ...........................................................................................319
interview ....................................................................................................................175
Como terminar uma tese de sociologia: pequeno diálogo entre um aluno e seu professor
(um tanto socrático) Interview with Márcio Goldman and Eduardo Viveiros de Castro
aristóteles barcelos neto, danilo ramos, maíra santi bühler,
bruno latour .......................................................................................................................... 339 renato sztutman, stelio marras e valéria macedo ......................................................177
Como não terminar uma tese: pequeno diálogo entre o estudante e seus colegas (after hours)
stelio marras ...................................................................................................................353 translations ..............................................................................................................191
Etnography and history in Amazonia, by Peter Gow
comissões editoriais ...........................................................................................371 marta rosa amoroso ........................................................................................................193
From etnography to history: “Introduction” and “Conclusion” from Of Mixed Blood:
nominata de pareceristas ................................................................................372
Kinship and History in Peruvian Amazônia
peter gow .......................................................................................................................................197
números anteriores..............................................................................................373
Recognizing dilemmas: presentation to the article by Nancy Fraser
heloisa buarque de almeida ..........................................................................................227
instruções para colaboradores .....................................................................381
From redistribution to recognizing? Dilemmas of justice in a “post-socialist” era
nancy fraser ....................................................................................................................231

reviews .......................................................................................................................241
MOUTINHO, Laura. Razão, “cor” e desejo
márcio macedo ................................................................................................................243
editorial
COHN, Clarice. Antropologia da criança
eduardo dullo ................................................................................................................247
PARÉS, Luis Nicolau. A formação do Candomblé
luiz alberto couceiro ....................................................................................................250
ZARIAS, Alexandre. Negócio Público e Interesses Privados
taniele cristina rui ........................................................................................................254
MÍGUEZ, Daniel; SEMÁN, Pablo (Eds.). Entre santos, cumbias y piquetes
laura colabella ..............................................................................................................257
É com muita satisfação que apresentamos edição o leitor que acompanha a Cadernos de
BROWN, Michael F. Who Owns Native Culture? ao leitor este número duplo, em comemoração Campo notará pequenas alterações, ainda que
joana de freitas lins .......................................................................................................263
aos 15 anos da revista Cadernos de Campo. signiicativas, especialmente na disposição grá-
HIKIJI, Rose Satiko Gitirana. A Música e o Risco A presente edição consolida o projeto edito- ica de alguns elementos textuais e encontrará
francirosy campos barbosa ferreira .............................................................................267 rial que vem sendo construído há alguns anos. a sua disposição novas instruções sobre como
Publicação planejada com o intuito de “criar submeter sua colaboração.
information ...............................................................................................................271 um espaço de discussão intelectual e integra- Convidamos o leitor a celebrar conosco o
Quilombolas communities and the garanty of territorial rights: actions by the Comissão ção acadêmica” (Editorial, nº 1), a Cadernos de début da revista, acompanhando os diversos
Pró-Índio de São Paulo Campo mantém sua vocação, trazendo contri- diálogos que as contribuições aqui publicadas
buições sobre diferentes temas, produzidas por nos propõem.
15th anniversary special ....................................................................................277 pesquisadores de diversas instituições do país e Nesta edição comemorativa, trazemos um
Notes about an appropriation: how São Paulo’s Police Force viewed a Brazilian do exterior. caderno especial com textos inéditos e enco-
Army’s ethnography Ao longo destes anos, as modiicações efetu- mendados a alguns ex-editores, hoje proissio-
piero de camargo leirner ..............................................................................................279 adas na revista visaram, sobretudo, a adequação nais atuantes em diversas instituições de ensino
he video and the ethnographic encounter aos padrões nacionais de edição de publicações, e pesquisa do país. Nossa idéia era prestar ho-
ana lúcia marques camargo ferraz, edgar teodoro da cunha, rose satiko hikiji ....287 como, por exemplo, às orientações do sistema menagem àqueles que já estiveram em nossa
Potentialities of an ethnography of streets of the past Qualis, instrumento de avaliação de periódicos posição e trabalharam para que esta revista fosse
fraya frehse .....................................................................................................................299 da CAPES. O resultado do esforço coletivo em publicada durante tanto tempo. Certamente
he crystal forest: on the ontology of Amazonian spirits atender aos critérios propostos nestas diretrizes não seria possível contar com a colaboração de
eduardo viveiros de castro ...........................................................................................319 traduz-se na boa conceituação na última ava- todos os ex-editores (no inal deste volume há
How to inish a Sociology thesis: small dialog between a student and his teacher liação trienal, quando obtivemos a classiicação uma lista que traz o nome de todos), mas dei-
(somehow socratic) Nacional C (na avaliação anterior, a revista re- xamos representados aqui, de alguma maneira,
bruno latour .......................................................................................................................... 339 cebeu a classiicação Local A). 15 anos de debates, trocas e escolhas editoriais
Nesta edição, damos continuidade ao aten- e acadêmicas.
How not to inish a thesis: small dialog between a student and his colleagues (after hours)
stelio marras ...................................................................................................................353 dimento destes parâmetros, pois mais do que a Os artigos da seção especial trazem como
padronização segundo o molde da agência de eixo comum um tema de grande recorrência
editorial committees ...........................................................................................371 fomento à pesquisa, o referido instrumento nos na revista: as possibilidades e os imponderáveis
deu balizas importantes para nosso aprimora- oferecidos pela prática da etnograia. Assim, Pie-
list of appraisers ...................................................................................................372 mento editorial. E procuramos avançar, aten- ro Leirner nos brinda com um ensaio sobre o
dendo igualmente as orientações da Associação modo como sua etnograia sobre o Exército bra-
previous editions ...................................................................................................373 Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) para sileiro foi apropriada pela Polícia Militar de São
publicações periódicas. Por esta razão, nesta Paulo, fazendo dela uma espécie de “manual de
instructions to collaborators ..........................................................................381
cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006
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instruções” para certos valores a serem defendi- Outros artigos publicados nesse volume da propositalmente fundidas e as intervenções dos se direito constitucional encontra, nesta revista,
dos pela corporação. Rose Satiko Hikiji, Edgar Cadernos de Campo apresentam descrições etno- entrevistadores não compõem o corpo do texto, um espaço para divulgação junto à comunida-
Teodoro da Cunha e Ana Lúcia Ferraz reletem gráicas densas que revelam aspectos, dinâmi- organizado por palavras-chave que estruturam de acadêmica.
sobre as práticas de utilização do vídeo na pes- cas e sentidos à primeira vista inusitados. Um o argumento. Há um esforço nesse formato A luta por reconhecimento e por direitos
quisa etnográica, trazendo, para isso, elemen- exemplo é dado por David Ivan Fleischer, que, para a experimentação de uma multiplicidade por qual passam as comunidades de quilombo
tos de suas experiências com oicinas de vídeo partindo da etnograia, faz uma análise compa- autoral, ainada com as relexões teóricas e me- encontra no artigo de Nancy Fraser a busca por
efetuadas com jovens estudantes de música em rativa entre São Tomé das Letras e Lagoa Santa, todológicas que animam a entrevista. uma teorização crítica, que pese tanto as polí-
um projeto social, índios Bororo e trabalhadores em Minas Gerais, visando entender como, em Aproveitando os caminhos e os formatos ticas culturais da diferença quanto as políticas
em autogestão. Fraya Frehse, por sua vez, dis- cada uma dessas cidades, o turismo, a minera- que a wiki Abaeté nos trouxe, publicamos um sociais da igualdade. A autora traz ainda uma
cute o rendimento da etnograia para o estudo ção e as iniciativas de preservação de patrimô- artigo de Eduardo Viveiros de Castro, que se grande contribuição para Antropologia ao pro-
antropológico de temáticas históricas – no seu nios culturais se interrelacionam. Já Patricia encontra “pendurado” na rede. O texto traz a blematizar o conceito de cultura presente em
caso, ruas centrais de São Paulo na passagem do Osório etnografa uma instituição que recria a discussão sobre cosmologia e xamanismo na algumas “políticas de reconhecimento”.
século XIX ao XX. experiência identitária do migrante nordestino Amazônia, apontando para algumas especii- A multiplicidade de abordagens também
As questões levantadas por estes autores eco- em Brasília, acionada por meio da estética, da cidades dos modelos de percepção e conheci- está presente na seção “Resenhas”. A edição
am nas colaborações recebidas. Jessie Sklair, por fala, da idéia de tradição, das representações, da mento das culturas ameríndias, a partir de uma conta com sete avaliações críticas de livros re-
exemplo, apresenta uma relexão sobre os de- refeição compartilhada, em um contexto dinâ- narrativa do pensador e líder político yanoma- centemente lançados no Brasil e no exterior.
saios que o trabalho da cineasta e teórica pós- mico de modernização e de poesia popular. mi, Davi Kopenawa. Nossa alegria, porém, só não é completa em
colonial feminista Trinh T. Minh-ha traz para a Andrea Osório e Ivan Fontanari retratam Um dos inspiradores da Abaeté, Bruno virtude de duas importantes perdas ocorridas
antropologia visual e para o projeto antropológi- faces de um público jovem em diferentes es- Latour, autor do termo antropologia simétrica, em 2006, durante a preparação desta edição.
co; Daniel Pierri, ao interpretar aspectos da cos- tados do Brasil. Ela pesquisa dois estúdios da também integra a edição de aniversário da re- A primeira delas, a de Roberto Cardoso de
mologia tupinambá a partir de mitos transcritos tatuagem do Rio de Janeiro e defende como vista, com a publicação da tradução de seu texto Oliveira. Professor Titular da UNICAMP e
nos relatos do viajante francês André hevet, este desenho sobre a pele pode ser entendido “A prologue in form of a dialog between a Stu- professor visitante em inúmeras instituições de
também oferece uma relexão bastante ainada como uma rebelião contra instâncias controla- dent and his (somewhat) Socratic Professor”, ensino nacionais e internacionais, Cardoso de
com aquela proposta por Frehse, a respeito da doras e como uma marca social de “posse de texto que inspirou Stelio Marras a prosseguir Oliveira ofereceu importante contribuição para
“perspectiva etnográica”. Aliás, a combinação si”. Ivan Fontanari nos conta detalhes da cena o diálogo e as discussões teórico-metodológicas o desenvolvimento da Antropologia brasileira.
em dose certa da etnograia, entendida propria- eletrônica de Porto Alegre, analisando os múlti- do renomado e, por vezes controverso, autor. Marcou presença entre os editores da Cadernos
mente como o fazer antropológico, e da histó- plos signiicados existentes no consumo que os Se redes e etnograias entoaram esta edição de Campo em 1996, por meio de uma gentil
ria, compreendida em termos nativos a partir da jovens fazem de substâncias conhecidas como de Cadernos de Campo até aqui, vale mencionar entrevista (publicada na edição nº 5/6). Nela,
memória do parentesco é um dos motes do livro “psicoativas”. a presença de um tema importante, que vem discorreu sobre o início da carreira, sobre auto-
de Peter Gow, Of Mixed Blood, cuja tradução da Pela primeira vez, a Cadernos de Campo pu- ganhando destaque em noticiários, dissertações res como Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro
introdução e conclusão é aqui publicada. blica uma entrevista realizada por colaborado- e debates públicos: a questão quilombola. O e os estudos sobre etnicidade, entre outros as-
O ensaio de Gilmar Rocha adensa a discus- res externos. Foram entrevistados os professores ensaio fotográico “Alto da Serra”, de Fabiene suntos. Celso Azzan Jr. recorda a convivência
são sobre o estatuto da etnograia e suas im- Eduardo Viveiros de Castro e Marcio Goldman Gama, traz espaços, rostos e memórias de uma com o mestre, no texto “Memória de um pro-
plicações para a Antropologia, construindo um e o mote da conversa foi a Rede Abaeté de antro- comunidade quilombola do município de Rio fessor (em três atos)”.
texto de análise fortemente epistemológica. A pologia simétrica, quais os objetivos, inspirações Claro/RJ. Na seção “Informe” trazemos uma Outra perda signiicativa foi a de Cliford
relexividade etnográica ganha relevo e a obra e novidades que a rede propõe a antropólogos síntese das últimas ações da Comissão Pró- Geertz. Professor emérito do Instituto de Estu-
de Marcel Mauss é tomada como um exemplo e demais interessados. Inluenciados pela Rede Índio de São Paulo, organização não-gover- dos Avançados da Universidade de Princenton,
dileto. O tema da representação etnográica é Abaeté que, em termos gerais, consiste numa namental que atua junto à causa quilombola o antropólogo cuja obra hoje é considerada
encontrado também no artigo de Julia Sauma, rede de associações que explora inovadoras co- desde 1988, quando os então chamados gru- leitura obrigatória em diversos cursos de ciên-
a partir de seu trabalho de campo com meninos nexões para a produção de uma antropologia pos remanescentes de quilombos adquiriram cias humanas, esteve presente nas edições de
e educadores de rua. Nele, a autora faz uso de simétrica, tendo no wiki o seu método, a entre- o direito à propriedade coletiva de suas terras. Cadernos de Campo de diferentes modos, como
perspectivas teórico-metodológicas que ques- vista é apresentada de maneira pouco usual. As O trabalho que a Comissão Pró-Índio de São membro de nosso Conselho Editorial ou susci-
tionam e re-situam a “verdade” etnográica. falas de ambos os entrevistados encontram-se Paulo vem efetuando na luta pela garantia des- tando temas de ensaios e debates teóricos. Além

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 9-12, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 9-12, 2006
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dos diversos artigos inspirados pelas relexões Fernandes (FFLCH/USP), representadas por Memória de um Professor (em três atos)
geertzianas, a revista também publicou contri- sua diretora técnica, Sonia Marisa Luchetti,
buições que tiveram por objeto ensaios do au- pelo apoio na tarefa de adequação às normas
CELSO AZZAN JR.
tor. Em nosso segundo número, por exemplo, da ABNT; e à Leonilda (Nilda) Pais, da Edito-
apresentamos a resenha de El antropólogo como ra Humanitas, pela parceria da distribuição da
autor, edição espanhola de Works and Lives: he revista nas feiras de livros ocorridas em 2006.
Anthropologist as Author, de 1988. O primei- Aos professores e pesquisadores de diferentes Lembro-me bem. Eu estava em minha casa; professor e orientador no mestrado e no dou-
ro e o último capítulo deste livro foram, aliás, instituições no país que atuaram como pare- era tarde de terça-feira, 25 de julho de 2006, e o torado, ambos na UNICAMP, creio que posso
traduzidos e publicados na Cadernos de Campo ceristas, pela competência e pelos ricos mo- e-mail me trazia a mensagem da morte do profes- partilhar algo dessa experiência humana e inte-
nº 07 - antecipando em cinco anos a edição mentos de aprendizagem proporcionados por sor Roberto Cardoso de Oliveira, ocorrida qua- lectualmente enriquecedora. Escrevo, pois, como
brasileira de Obras e Vidas. Em 2004, foi pu- seus pareceres. A todos os colaboradores desse tro dias antes. Confesso que, por um momento, quem reconhece uma dívida e se sente feliz por
blicada na Cadernos de Campo nº 12 o ensaio número duplo, pelo interesse no projeto edito- senti-me meio desamparado – ou algo próximo ter algo a relembrar. Estou certo de que muitos
“O Selvagem Cerebral: sobre a obra de Claude rial e pela paciência da espera do trabalho de disso. É sempre difícil pôr em palavras o tipo de poderiam escrever em meu lugar.
Lévi-Strauss”, capítulo que consta da versão edição. E, sobretudo, a todos os ex-editores da sensação que nos toma quando sabemos da mor-
original mas não integrou a edição brasileira de Cadernos de Campo, pela sua dedicação àquela te de alguém querido e admirado. Intimamente, Primeiro ato
A interpretação das culturas. que foi a primeira revista editada por alunos de sabemos nesse momento o quão frágeis e efême-
Trazer ao leitor esse número bastante am- Pós-graduação em Antropologia no país. ras são também as nossas próprias vidas. De uma Conheci o professor Roberto quando ainda
pliado de artigos, ensaios, traduções e resenhas Brindemos, assim, a todos que izeram par- hora para outra, a morte faz com que nos sinta- cursava minha graduação em ciências sociais na
só foi possível pela ajuda de muitas pessoas, ao te dessa história – editores, autores, revisores, mos, nós mesmos, um pouco mais humanos. De UNICAMP, em 1986. Foi conhecimento rápi-
longo de 2006. Gostaríamos de agradecer, des- diagramadores, pareceristas, entrevistadores, um modo bem simples e natural, ela nos devolve do, lembro-me bem, mas suicientemente alegre
te modo, aos professores que compõem o Con- conselheiros, professores, alunos, leitores – e ao mundo dos que morrem e nos obriga a aceitá- e simpático para quebrar o gelo, por assim dizer.
selho Editorial da revista e aos professores do que fazem desta revista, atualmente, um espa- lo igualmente para nós. É a vida... Por inelutável Um semestre depois, no entanto, quando já ha-
Programa de Pós-graduação em Antropologia ço para divulgação do debate antropológico no que seja e cruel que pareça, aceitar a morte é des- via ingressado no mestrado, e queria tê-lo como
Social da USP, pelo apoio recebido em diver- país. fazer-se dela. É a razão pela qual, reescrevendo sua orientador (a exemplo de muitos...), eu não sa-
sas ocasiões; à equipe da Biblioteca Florestan Boa leitura! memória, tornamos novamente viva a pessoa. bia como deveria abordá-lo, ou como me fazer
Há alguns dias, recebi da editoria desta Ca- interlocutor interessante. Enim, os medos da ju-
dernos de Campo o convite para escrever uma ventude; potencializados, nesse caso, pela minha
nota em homenagem a meu grande professor e certeza de ter tido até ali uma formação acadê-
sempre amigo, e de fato é com imenso prazer que mica mais ou menos porosa, plena de buracos.
levo adiante a tarefa de relembrar, em umas pou- Naquele momento, recordo-me bem, senti-me
cas páginas, a sua memória. No entanto, tarefas pequeno diante da tarefa de convencer alguém
desse tipo, como se sabe, têm algo de ingrato: por tão difícil de ser enganado. Como um tipo como
mais que se diga, sempre haverá mais a dizer; es- eu deve falar com alguém que é a antropologia bra-
crever sobre um personagem acadêmico notável sileira em pessoa?, eu perguntava a mim mesmo.
como o professor Roberto requer uma pesquisa Depois de muito tempo sem encontrar a resposta
de caráter acadêmico-genealógica que por certo – acho que um semestre inteiro de ensaios e desis-
excede os limites deste texto. É a razão pela qual, tências –, reuni inalmente um pouco de coragem
em vez de recontar sua longa trajetória de forma- e, um dia, depois de ter marcado com ele uma
dor acadêmico e pesquisador, desde os tempos hora, procurei-o em sua sala, solicitando orienta-
do Serviço de Proteção ao Índio, nos anos 1950, ção. Eu levava embaixo do braço uma coletânea
até sua última passagem pela UnB, mais recen- de textinhos insossos que havia escrito durante os
temente, preferi oferecer apenas o testemunho dois últimos anos da graduação, e era com eles
de quem com ele conviveu academicamente. Sei que pretendia convencer o professor Roberto a
que parece pouco, mas depois de tê-lo tido como aceitar a pouco gloriosa tarefa de me orientar.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 9-12, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006
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A conversa que tivemos naquela tarde foi eu inalizava a dissertação de mestrado, já me ço de 1995 o professor Roberto deve tê-la perdi- pessoa correta, além de intelectual competente
apenas introdutória, é claro, mas serviu para me cobrava tanta perfeição (se alcançada ou não, é do em algum ponto da Bandeirantes, entre São – se desculpou meio sem jeito, asseverando não
mostrar que o caminho a ser trilhado até a oicia- outra história) que, diante das minhas autocríti- Paulo e Campinas. Sua “vítima”, por assim dizer, ter escondido quaisquer intenções maliciosas na
lização da orientação seria extremamente doloro- cas devastadoras, foi o professor Roberto quem foi outro docente do IFCH. Se alguém me per- pergunta descabida. Empalideceu um pouco,
so, em termos intelectuais. O professor Roberto intercedeu em favor... de meus julgadores: “o que guntar quem era, não digo, por pura educação, mas deve ter-se recuperado mais tarde.
me ouviu atentamente; pôs-se à minha disposição mais você quer? Deixe algo para a banca criticar!” mas posso adiantar que não foi nenhum dos seus O professor Roberto partiu decidido para
para ler e criticar o que eu lhe estava apresentan- - disse ele, em tom de suave repreensão, depois colegas de departamento de antropologia. sua sala, caminhando em direção ao outro lado
do, mas foi logo adiantando o tipo de literatura e que eu quis adicionar uma notinha a mais num O ambiente na universidade estava alegre do prédio, e eu, como é óbvio, resolvi apressar
a quantidade de leitura que exigiria de mim du- texto que já contava com centenas delas. como sempre está no início do ano, com os calou- meu passo, já que chegar atrasado era tudo o que
rante um eventual processo de orientação. Não Ao longo de todos esses anos de relacionamen- ros da graduação reconhecendo o novo terreno e não queria nesse dia. Uma vez em sua sala, ele se
posso dizer que não me senti um pouco descon- to acadêmico, de 1987 a 95, período em que foi os recentemente ingressos na pós-graduação pro- ajeitou calmamente diante de sua mesa, convi-
certado, depois daquela hora e meia de conversa. meu orientador – e mesmo depois disso, quando curando suas salas de aula. Os docentes também dou-me para que eu me sentasse na cadeira à sua
Diante da quantidade quase incontável de livros continuamos amigos –, sempre tive a impressão reapareciam na universidade depois de algum frente e perguntou como estava o capítulo que
e artigos que ele citava de cabeça; incluindo capí- de que o homem da academia era a forma mais tempo de férias e se encontravam nos corredores eu escrevia. Acho que respondi mais ou menos
tulos, páginas, discussões encontráveis aqui e ali bem-acabada que o professor Roberto havia en- do prédio da administração, nas salas de aulas, na como sempre o fazia, mais enrolando que escla-
no meio daquela livraria inteira que eu teria de contrado para ser ele mesmo. Essa era – e parecia biblioteca, nas cantinas, etc. Eu havia marcado recendo, mas realmente o que me interessava na-
digerir no início do trabalho, seu veredicto não ser, o que é igualmente importante – sua essência com o professor Roberto um horário para que nos quela hora era saber como ele havia classiicado a
me foi, ainal, tão ruim: eu só precisava conden- mais íntima. Os dois próximos atos demonstram encontrássemos em sua sala. Cheguei um pouco pergunta que recebera pouco tempo antes. Estava
sar tudo aquilo no argumento de meu projeto... como eu estava certo e errado sobre isso. antes da hora certa porque sabia que meu orien- claro para mim que o professor Roberto se senti-
“Quem quer escrever sobre Lévi-Strauss e Geertz tador era bastante apegado ao seu relógio (por ra ultrajado, e que tinha boas razões para tal; mas
precisa ler bastante...” – disse ele, enquanto exa- Segundo ato alguma razão, sempre certo), e, diante dos minu- alguma coisa me dizia que, se a questão lhe fosse
minava o pedaço de pedra lascada à sua frente, tos que nos separavam do encontro, resolvi dar apresentada de outra forma (se ele aceitaria um
tentando imaginar se haveria algo aproveitável Creio que estávamos no início de 1995; em umas voltas pelo IFCH, para ver o movimento. cargo, no caso de ser convidado, por exemplo),
ali dentro. “Para início de conversa, isso que ci- março, para ser mais preciso. Eu havia retornado E foi quando subi a escada, que leva ao primeiro sua resposta talvez fosse mais amena. Hoje não
tei estará bom para você” – sentenciou, por im, de minha primeira estadia de pesquisa no Qué- andar do prédio da administração, que a coisa es- tenho dúvida de que seu rigor acadêmico foi tão
enquanto eu já me despedia meio atordoado. bec já fazia alguns meses, e nessa época escrevia tava acontecendo. Pude ver bem. Diante da então decisivo naquela resposta quanto sua noção de
Como livros costumam pesar, tomei o rumo da alguns esboços de minha tese de doutorado. Ela recente eleição de Fernando Henrique Cardoso dignidade e honestidade pessoais. É verdade que
porta com a sensação de ser uma espécie de Atlas me daria problemas depois, mas isso também é para a Presidência da República – que, para os uma pergunta formulada de modo mais educa-
do IFCH, encarregado por Zeus de carregar o outra história... Freqüentemente eu telefonava ao que ainda não sabem, era cunhado do professor do mudaria as coisas, e mereceria de sua parte
mundo antropológico sobre as costas. professor, que então morava em São Paulo, para Roberto –, um docente do IFCH, desavisado dos uma resposta talvez melhor humorada, mas ela
Ao sair daquela sala, errei o caminho e qua- discutir com ele um e outro aspectos do argu- riscos que corria, resolveu saudá-lo com uma per- por certo indicaria a mesma direção. Um profes-
se acabei subindo a escada que pretendia descer. mento que queria escrever, e sempre cuidava de gunta de raríssima infelicidade: “e então, Roberto, sor; tratava-se antes de tudo de sê-lo da melhor
Acontece quando a gente se sente meio tonto. “É convocá-lo para vir a Campinas o mais rápido vai para algum ministério em Brasília?” O mais maneira possível. Mesmo quem não sabia disso,
o preço” – pensei comigo – “para ter como orien- possível, onde tínhamos tempo para conversar provável é que esse docente sequer soubesse o que pôde sabê-lo então. Enim, governo não é para
tador alguém que realmente vai orientar”. Como bastante. Iniciado o ano letivo, o professor Rober- tal questão signiicava para seu interlocutor, e me qualquer um. Academia, menos ainda.
o tempo se encarregou de mostrar, eu estava cer- to vinha para a UNICAMP toda semana, já que pareceu evidente que não havia dito tais palavras
to sobre a relação que ali se iniciava. Depois dessa orientava e oferecia disciplinas na universidade, como sinal de qualquer tipo de provocação políti- Terceiro ato
primeira conversa tivemos inúmeras outras, nem e me lembro de que foi numa dessas suas vindas ca ou pessoal. De fato, ainda mantinha seu alegre
sei quantas, na universidade ou no apartamen- para cá que vi uma de suas mais contundentes sorriso ingênuo nos lábios quando recebeu a res- A memória do professor Roberto está, para
to do professor Roberto, e sempre, ao conversar (e eventualmente mal-humoradas) reairmações posta, meio segundo depois: “sou homem de ci- mim, fundamentalmente associada a conversas
com ele, tive a impressão de estar diante das mes- acadêmicas. Homem polido, era raro que ele de- ência, sou homem da academia; não trabalho em que tivemos nos mais variados momentos, e
mas exigências que eu já conhecia desde aquela monstrasse pouca paciência com algum assunto governos!” Diante disso, é claro, o sorriso sumiu. sobre os mais diversos assuntos – muitos deles
primeira entrevista. Alguns anos depois, quando ou interlocutor, mas naquela terça-feira de mar- Desconcertado, aquele docente – que garanto ser passando tão longe de uma tese ou um trabalho

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acadêmico quanto a imaginação e a circunstância abalado com a tragédia, comecei a me dar conta o conteúdo que havia acabado de nos oferecer. A biam com um sorriso, fui direto ao escritório, ao
permitissem. Por vezes, passávamos uma manhã do quão dramático e sensacional eu tinha sido. semana seguinte! Inteira! lado da sala, apresentei-me ao professor Roberto
inteira discutindo usos tão sutilmente diferentes Por um momento, confesso que senti vergonha É claro que nos surpreendemos com o fato de e me sentei na poltrona em frente à sua, a que era
de um conceito, que, ao término de uma análise de mim mesmo. Imaginei que ninguém poderia ele nos dispensar da aula que deveria ocorrer uma dedicada aos seus interlocutores – nela, eles po-
minha, ou dele, precisávamos voltar ao ponto de levar a sério um tipo tão instável e sentimental semana depois – e que deveria ser exatamente a diam ser observados de forma bem minuciosa...
partida, para recobrar exatamente o motivo da como eu (especialmente, sendo um orientador de minha apresentação –, mas, antes que pudés- Por uns cinco minutos, conversamos sobre um
discussão ou nossa diferença de interpretação. durão...), mas como eu ainda nem havia conse- semos lhe perguntar algo sobre o fato, ele mesmo pouco de tudo, da arrumação do seu apartamen-
Acontece, se o discurso não é escrito e a mente se guido reler os textos de meu seminário, decidi já partia para a justiicação: “é o seminário do to à previsão de chuva para aquele dia, mas enim
move por prazer... Às vezes, quando eu ia ao seu que realmente deveria deixar a coisa para a sema- Celso, que foi remarcado, e como há muita coisa o assunto mestrado-apresentação-Ricoeur tomou
apartamento, para acertar detalhes da tese, ani- na seguinte, tal como solicitara por telefone ao a preparar, podemos usar a próxima semana para seu lugar. O professor Roberto foi direto ao pon-
mávamos-nos tanto com um vinho recém-aber- professor Roberto – que, para minha surpresa, estudar os textos de Ricoeur, enquanto ele se pre- to: “e então, você já conseguiu ler e preparar tudo
to, ou com as carnes bem temperadas que Dª. aquiescera sem maiores problemas. para para expor esse autor com mais cuidado”. para a próxima aula?”. Respondi que, apesar de
Gilda preparava, que da tese mesmo nos sobrava E foi assim que aconteceu. Na aula daquela Ninguém entendeu realmente por que o profes- meus problemas, estava quase tudo pronto; que
apenas o im da tarde para tratar. semana, ele mesmo apresentou uma nova “amar- sor Roberto decidira atrasar duas semanas o cur- faltavam apenas uma e outra conclusões sobre al-
E é assim, em meio a esse conjunto disforme ração” para as diversas leituras que tínhamos fei- so – uma, de minha responsabilidade; outra, da guns conceitos importantes, e que isso não me to-
de recordações sobre conversas de outros tem- to até ali, aproveitando o horário que eu deixara sua –, mas isso, em todo caso, não era problema. maria muito tempo. Enim, tal como disse a ele,
pos, que me lembro de um momento difícil para vago. Recordo-me bem: foi uma daquelas aulas Se era para ser em duas semanas, então que fosse. nada que nos impedisse de conversar sobre o que
mim. Eu estava ainda na fase dos créditos do que ninguém que leva a universidade a sério Despedimo-nos como sempre o fazíamos depois eu havia preparado.
mestrado e fazia um curso ministrado pelo pro- pode esquecer. O professor Roberto alinhavou das aulas e cada um tomou seu rumo. De fato, eu já estava reordenando minhas
fessor Roberto – creio que sobre a Inter e a Mul- autores como Cliford Geertz, Paul Ricoeur, O que restava daquela semana se passou; a anotações – e tentando compreendê-las... –, para
tidisciplinaridade da Ciência, tal como ele o havia Robert Merton, Imre Lakatos, Karl Popper e seguinte se iniciou e foi adiante. Meu sofrimen- melhor me dedicar ao assunto, quando ele me in-
batizado. Deveria preparar uma apresentação so- homas Kuhn, dentre outros, com a mesma fa- to pela perda recente foi aos poucos se tornando terrompeu. Depois de se levantar e fechar a porta
bre alguns textos de Paul Ricoeur, mas naquela cilidade com que falava deles durante uma con- menor e, quando eu já estava em pleno trabalho do escritório, o professor Roberto retornou à sua
semana a morte de uma pessoa muito querida me versinha na cantina do IFCH ou uma sessão de de preparação dos textos de Ricoeur, o professor poltrona, aproximou-a da minha, sentou-se e me
tornou essa preparação simplesmente impossível. orientação em seu apartamento. Parecia falar de Roberto me telefonou. Faltava quase uma sema- pediu que lhe dissesse o quê, exatamente, me cau-
Para mim, era um caso muito grave; eu tinha me improviso, e de certa forma o fazia. Suas anota- na para meu seminário e ele me convidou para ir sara a interrupção do trabalho duas semanas antes.
desmanchado como um mingau quando recebe- ções em ocasiões desse tipo sempre permaneciam ao seu apartamento com a inalidade de discutir Foi quando me dei conta, enim, de que eu ainda
ra a notícia, e por algum tempo – uma semana, esquecidas sobre a mesa, enquanto ele, diante do quais pontos daquela bibliograia ricoeuriana eu não tinha explicado muito bem o que ocorrera;
talvez – não consegui realizar nada que pudesse quadro negro, rabiscava aqui e ali para dizer que deveria abordar mais detalhadamente. “Ok”, eu tendo-lhe no máximo contado da morte e dos
dar a um ser humano a sensação de algum con- este fazia o contrário daquele, e todos precisavam disse. Sendo orientando dele, e já conhecendo transtornos que ela acarreta, sem contudo dizer
trole sobre a própria vida. Quando a antevéspera de revisões. Poucos poderiam dizer isso sem se sua meticulosidade, sua perseverança na perfeição uma só palavra sobre a natureza e o grau dos senti-
da apresentação chegou, eu me sentia tão triste e constranger... Nós sabíamos que aquelas aulas e sua capacidade de enxergar a olho nu os defeitos mentos que me haviam derrubado completamen-
improdutivo que a única atitude que me pareceu eram meticulosamente preparadas, fato cons- que para mim pareciam invisíveis sob microscó- te. Para mim, naquele momento doloroso, tudo se
razoável tomar foi telefonar ao professor Roberto, tatável pelas páginas e páginas cheias de frases pio, decidi não me opor a essa conversa potencial- resumira a um telefonema para contar que alguém
para lhe dizer que naquela quinta-feira não have- e parágrafos em letrinhas pequenas que víamos mente perigosa. No dia seguinte, logo de manhã, havia morrido e que eu me sentira triste e acabado
ria apresentação nenhuma. Foi, pois, o que iz. saírem de sua pasta, mas a impressão que tínha- eu estava na portaria daquele prédio no Cambuí, o suiciente para não produzir nada além de au-
Disse-lhe que não tinha condições de arriscar um mos era de que aquilo só estava ali para o caso de em Campinas, solicitando ao porteiro a permis- tocomiseração. No entanto, aquela sua demons-
único comentário que fosse sobre a hermenêuti- uma emergência, evidentemente nunca ocorrida. são para subir ao segundo andar. Na minha pasta, tração de interesse me dizia que eu não apenas
ca ricoeuriana, e que o mundo, de meu ponto Foi assim também naquela quinta-feira – de fato, eu tinha três ou quatro livros de Ricoeur, mais conseguira dele uma espécie de trégua acadêmica
de vista, havia-se transformado numa coisa sem talvez naquele dia um pouco mais. Ao término as cópias de uns tantos artigos e, é claro, minhas por conta – por assim dizer –, mas igualmente que
sentido, sem vida e sem esperança. Enim, devo da aula, já quase noite, sentíamos-nos tão cansa- anotações escritas numa letra tão ruim que nem para ele o assunto não se resolvia no adiamento
ter produzido uma imagem tão autopiedosa de dos que o professor Roberto nos convidou a usar eu mesmo conseguia entender. Entrei, cumpri- de minha apresentação. Para quem não o conhe-
mim que, no dia seguinte, já um pouco menos toda a semana seguinte para rever e sistematizar mentei Dª. Gilda e Lúcia, que sempre me rece- cesse pessoalmente, mas soubesse de sua fama de

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18 | Celso Azzan Jr.

orientador rigoroso, tudo isso poderia ser compre- que implicava, mas também assustava, dadas as
endido como o prenúncio de um sermão daque- minhas diiculdades para cumprir planos ambi-
les, no caso de minhas explicações não parecerem ciosos pensados por outrem (como ele mesmo
muito convincentes. E, no entanto, como pude disse alguns anos depois, eu sempre fui um “pes-
ver imediatamente, tudo o que o professor Ro- quisador autárquico”). No entanto, nada daquilo
berto queria era saber se eu estava bem. Ele havia era verdade. Depois de conviver com o professor
compreendido que eu sofrera muito pela morte de Roberto, tudo o que posso dizer a seu respeito é
alguém de minha família, e que meu sofrimento que, bem ao contrário da idéia generalizada que
me tirara do ar por uns dias, mas ainda não tinha havia sobre ele, seu rigor e suas exigências sempre
conversado o suiciente sobre isso. Enim, ele me foram apenas as da academia que ele quis fazer, e
chamava para ter comigo não a conversa do orien- efetivamente fez – mas, em nenhum momento,
tador, que queria cobrar uns conceitos de Ricoeur,
mas o diálogo do amigo, que desejava saber como
eu me sentia, pondo-se à minha disposição para
a despeito ou à custa daqueles com quem convi-
veu. Havia nele a certeza de que, na academia e
em nome de nossa disciplina comum, era preciso
artigos
me ajudar de alguma maneira. Imagine... Por mais fazer mais e melhor, sempre. Mas também havia,
que pareça infantil, o fato é que aquela conversa,
plena de tentativas de me reanimar e de conselhos
assumida, uma noção muito precisa das vicissi-
tudes e da miséria humana a que qualquer um
e ensaios
bem-intencionados, me comoveu o suiciente para está sujeito, além de um respeito absolutamente
que, ali, na sua frente, eu quase desabasse de novo. irredutível pelo mundo; coisas que faziam dele
Senti-me tão grato por alguém de fora da família não apenas o notável homem da academia, mas
preocupar-se tão seriamente comigo, e com meus igualmente um ser humano tão envolvido na hu-
problemas, que por um momento quase me senti manidade alheia quanto possível. Lembro-me, é
alegre de novo. claro, das broncas que ouvi ao errar uma inter-
Quando saí daquele apartamento, umas três pretação, ou ao me mostrar desanimado ante o
horas depois de entrar, eu me achava tão intri- volume que tinha de ler e reler. Mas também me
gado e surpreso com o que acabara de ocorrer lembro de ouvi-lo dizer, quando eu estava doen-
que, por mais que quisesse me concentrar nos te, que tinha de tomar mais cuidados com minha
assuntos acadêmicos, a imagem que eu doravan- saúde, que deveria dar mais atenção à minha vida
te guardaria do professor Roberto seria mesmo pessoal, que precisava deixar os livros e a tese de
a do bom amigo preocupado com minha vida, lado quando uma crise de enxaqueca parecia se
com minhas perdas pessoais. Eu já tinha ouvido aproximar. Talvez eu erre, por deixar alguns fora
outros de seus orientandos contarem histórias da lista, mas não tenho dúvidas de que acerto ao
terríveis sobre o professor durão que exigia sacri- incluí-lo: o professor Roberto foi, dentre as tantas
fício além dos limites humanos, já escutara aqui e tantas pessoas que conheci na universidade, das
e ali comentários a respeito das diiculdades para que mais mostrou verdadeiramente importar-se
satisfazer seus critérios de qualidade e, de vez em com os outros, e levar a sério seu bem-estar.
quando, ouvia conversas sobre a impassibilidade Parece pouco, mas olhe atentamente para os la-
do mestre diante das agruras de seus alunos. Tudo dos, e diga quantos iguais você vê. Faz pouco tem-
isso, é óbvio, me fascinava, pelo rigor proissional po. A universidade ainda vai sentir muita falta.

autor Celso Azzan Jr.


Pesquisador Associado do Centro de Lógica, Epistemologia e História da
Ciência / UNICAMP

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 13-18, 2006


são Tomé das Letras e Lagoa santa: mineração,
turismo e risco ao patrimônio histórico e natural

DAVID IVAN REZENDE FLEISCHER

resumo São Tomé das Letras se mantém O presente artigo faz uma análise de dois
através da mineração, da agricultura e do turismo, municípios distintos: Lagoa Santa e São Tomé
e Lagoa Santa através de empresas mineradoras, das Letras, que possuem forte atividade de
fábricas de cimento e agricultura. A mineração mineração. Um está inserido em uma Área de
ameaça recursos naturais nas duas localidades, que Proteção Ambiental (APA) e o outro faz par-
possuem patrimônios distintos. Esses patrimônios te do Circuito Turístico Vale Verde e Quedas
impõem restrições, criadas para garantir sua preser- D’água, recentemente criado pela Secretaria de
vação. Diferentes grupos locais buscam alternativas Turismo do Estado de Minas Gerais. Os dois
sustentáveis para a conservação deste patrimônio. municípios apresentam situações diferentes,
O artigo faz uma comparação das duas realidades, mas estão diante de um mesmo fenômeno, que
procurando entender a sustentabilidade de cada ci- é a sustentabilidade de atividades econômicas
dade mineira através da análise de atividades espe- de alto impacto ambiental.
cíicas como o turismo, a mineração e as iniciativas Ambos os municípios possuem rico patri-
de preservação de patrimônios culturais. Este artigo mônio cultural. Em São Tomé das Letras há
baseia-se em dados etnográicos focados em con- um centro histórico tombado pelo Instituto
litos sociais presentes nos dois cenários e políticas Estadual de Patrimônio Histórico e Artístico
públicas locais guiadas para o desenvolvimento de de Minas Gerais (IEPHA/MG), que inclui o
atividades econômicas sustentáveis para o ambiente tombamento da Igreja da Matriz e Igreja do
e patrimônio locais. Rosário, vários casarões antigos, passos colo-
palavras-chave Turismo. Meio ambiente. niais, além de peças de arte sacra; tudo refe-
Patrimônio. Cidades mineiras. Políticas públicas. rente ao terceiro período do Barroco Mineiro.
Desse período, segundo dados do IEPHA/MG,
resta apenas um pequeno acervo, e São Tomé
Histórico das Letras possui o conjunto mais expressivo.
Lagoa Santa possui alguns casarões antigos
O estado de Minas Gerais possui diversas ci- além da Igreja Matriz, que foram tombados
dades que têm como principal atividade econô- pelo IEPHA/MG. Lagoa Santa possui como
mica a mineração. O estado possui ricas reservas patrimônio mais expressivo o conjunto de sí-
de minerais metálicos e não-metálicos. A extra- tios arqueológicos.
ção é feita por grandes empresas que recebem Lagoa Santa é um município de 36 mil ha-
do Departamento Nacional de Prospecção Mi- bitantes (IBGE 2000) e faz parte da região me-
neral (DNPM) autorização de lavra de grandes tropolitana de Belo Horizonte. A cidade possui
áreas. Muitos municípios não possuem plano uma grande área rural, que vem sendo rever-
diretor, por isso, a atividade mineradora segue tida em área urbana com a criação de vários
de forma desordenada, comprometendo nas- condomínios privados, além de novos bairros,
centes de rios, mananciais e vegetação natural e, em parte para acomodar a classe média urbana
em decorrência disso, a qualidade de vida. de Belo Horizonte.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006


22 | David Ivan Rezende Fleischer São Tomé das Letras e Lagoa Santa | 23

O município de Lagoa Santa faz parte da crativa para as pedreiras da cidade. A pedra de cidade de interior, apesar de sua proximidade consideração a preservação do patrimônio his-
APA – Carste de Lagoa Santa, que foi criada São Tomé é uma das características que melhor da cidade grande. No entanto, nos dois muni- tórico e artístico presente na APA, bem como
em 1990. Sua criação teve o intuito de preser- identiica a cidade. As ruas e calçadas são pa- cípios, os patrimônios natural e cultural estão no meio ambiente e recursos naturais. Cada
var o grande acervo arqueológico, geológico, vimentadas com pedras. A cidade possui uma sob permanente ameaça pela ação da minera- zona dispõe de diretrizes apoiadas em diferen-
espeleológico, paleontológico, biótico e cul- arquitetura própria. Boa parte das casas da ci- ção, agricultura, pecuária e turismo. Este será o tes usos. Além dos usos permitidos, cada zona
tural. A APA é amparada por um complexo dade é construída de pedras extraídas da mine- ponto de comparação entre as duas realidades. possui usos proibidos, determinados de acordo
código de Zoneamento Ambiental, que rege ração local. Apesar de várias novas construções O patrimônio da APA – Carste de Lagoa com as características principais de cada zona.
normas de usos do solo, planos de manejo dos de alvenaria, a área urbana ainda é marcada Santa foi inventariado pelo IEPHA/MG e A APA é administrada e controlada por órgãos
recursos naturais, expansão urbana, regras para pelas construções de pedra e ruas e calçadas de Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico governamentais como o Instituto Brasileiro de
construção e reforma, além de controle da ati- pedra. Nacional (IPHAN). Os bens tombados pelo Meio Ambiente e Recursos Hídricos Renová-
vidade industrial, que é representada pelas mi- A principal economia da cidade ainda é a IEPHA/MG são ediicações religiosas como veis (IBAMA), o IPHAN, o IEPHA/MG e a
nas de calcário e fábricas de cimento. A APA mineração de pedras de calcário. Outras ati- igrejas, santuários e capelas; ediicações rurais Fundação Estadual de Meio Ambiente de Mi-
está localizada em uma zona de transição en- vidades importantes são também o comércio em fazendas e sítios, complexos de balneário, nas Gerais (FEAM) (MEC/SPHAN 1982).
tre os ecossistemas da zona da mata, cerrado e e a agricultura. O turismo vem despontando casarios antigos com arquitetura típica da re- A valorização da arqueologia no Brasil par-
sertão, com rica biodiversidade. O patrimônio como uma atividade econômica importante gião; sítios arqueológicos, espeleológicos e pa- te do conceito de patrimônio, que no Brasil
arqueológico incorporado pela APA e é um dos para o município, gerando mais empregos e ar- leontológicos que incluem lapas1, abrigos, sítios tem inluência do Movimento Modernista de
elementos mais importantes desse zoneamento recadação. Ainda assim, a mineração continua cerâmicos, grutas, sítios com pinturas rupestres 1922. Os modernistas defenderam uma valo-
ambiental. Todos os sítios arqueológicos estão sendo a grande atividade econômica da cidade e fósseis, e sítios com material lítico2. Para o rização da cultura nacional a partir de seus ele-
dispostos próximo da superfície em áreas de e a principal responsável pela consolidação da IPHAN, o acervo da APA – Carste de Lagoa mentos históricos e artísticos regionais. Dessa
pastagens, agricultura ou mineração, icando cidade e por atrair uma grande força de traba- Santa inclui outros bens como sítios arqueoló- busca da valorização, veio o estímulo em pre-
muito vulneráveis à degradação ou saque. A lho para o local. gicos (mais de 100) e os túmulos do Dr. Lund servar a história do país através da proteção do
atividade de mineração apresenta o maior risco São Tomé das Letras é, desde a década de (arqueólogo dinamarquês que fez pesquisas na seu acervo histórico e artístico. Mário de An-
para este patrimônio. As mineradoras explo- 1970, um dos principais locais de refúgio para região no inal do século XVIII) e de seus co- drade foi igura central nessa discussão e um
ram a calcita e o calcário, muito abundantes boa parte dos moradores de São Paulo e Belo laboradores. dos personagens principais na criação de um
na região, desmatam hectares de mata nativa Horizonte. Muitos estabelecem residência no A preservação e conservação desses sítios aparato legal e burocrático estatal para a pro-
e alteram a dinâmica da natureza destruindo o local depois de visitá-lo como turistas. A cidade arqueológicos são de responsabilidade das pre- moção e proteção desse patrimônio (Andrade
habitat natural de diferentes espécies da fauna e possui diferentes atrativos para esses novos re- feituras dos municípios inseridos na APA e os 1974). A idéia de patrimônio está relacionada
lora. Boa parte dos bens arqueológicos tomba- sidentes. O meio ambiente ainda é o principal órgãos competentes. O zoneamento feito re- ao conceito de tradição, no sentido de uma
dos está dentro de áreas de exploração mineral elemento que fez várias dessas pessoas trocarem centemente tratou de dividir a APA em dife- necessidade de preservar elementos que cons-
e estão em constante risco (Souza 1997). as duas regiões metropolitanas por esta peque- rentes zonas com distintos usos. Uma zona é tituam uma identidade coletiva e contribuam
O município de São Tomé das Letras pos- na cidade. O município possui várias cachoei- destinada à expansão urbana, outra às ativida- para a construção de memória nacional. A ar-
sui aproximadamente 6500 habitantes (IBGE ras, grutas e mirantes bem preservados e que des industriais, outra à expansão agrícola, outra queologia no Brasil só pode ser compreendida
2000) e está localizado na região sul do estado encantam os visitantes. A vinda desses novos à preservação do patrimônio histórico e outra como patrimônio porque como ciência, como
de Minas Gerais, estando eqüidistante de São moradores fez com que a cidade incorporasse à preservação das paisagens naturais. A criação construção de pensamento e produção cien-
Paulo (240 km) e Belo Horizonte (250 km). elementos culturais diferentes, que foram res- desse sistema de zoneamento ambiental leva em tíica, a arqueologia não possui uma tradição,
A área urbana do município está localizada no ponsáveis pela diversiicação de valores e con- não está presente nas escolas, dentro das salas
topo de uma montanha a uma altitude de 1480 ceitos, transformando a cidade num pólo de 1. O termo “lapa” é utilizado para deinir um grande de aula e/ou nos livros didáticos. Os bens ar-
paredão de pedra que se projeta à frente criando um
metros acima do nível do mar, e é rodeada de atração para místicos e esotéricos. queológicos são patrimônio nacional. Eles são
abrigo natural muito utilizado pelas populações pré-
vales. A vegetação local é de cerrado e conta Lagoa Santa é um município urbanizado, históricas. Muitas vezes ica em local elevado e escon- considerados importantes para a compreensão
com grande biodiversidade. O solo no topo da com uma densidade demográica muito maior dido pela vegetação. da pré-história brasileira, e por isso devem ser
montanha é composto de quartzito, pedra de que a de São Tomé das Letras. O que atrai no- 2. “Material lítico”: termo utilizado pela Arqueologia preservados. O valor dado aos bens arqueológi-
alta dureza extraída em grandes quantidades vos moradores para Lagoa Santa é a tranqüili- para designar artefatos e utensílios feitos de pedra, cos está diretamente relacionado com as formas
e permitindo uma comercialização muito lu- dade da região, que ainda tem o ar bucólico de como por exemplo: lanças, machados, lascadores e de preservação.
cortadores.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 21-39, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 21-39, 2006
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Uma sociedade só tem interesse em proteger APA – Carste de Lagoa Santa foi criada com O intuito inicial era preservar o ambiente na- valiosa fonte de arrecadação para o município.
seus bens culturais quando é de interesse coleti- esse propósito. Já que os sítios arqueológicos tural da degradação pelo turismo e mineração. Entretanto, o prefeito atual possui interesses
vo conservar sua memória. A memória nacional estão todos ao ar livre, nas matas, cavernas, gru- Entretanto, ao contatar o IEPHA/MG para conlitantes por ser dono de uma das maiores
tem relação direta com o conceito de patrimô- tas, lorestas, às margens de rios e em paredões veriicar a possibilidade de tombar um parque mineradoras da cidade. Desse modo, seu apoio
nio. Patrimônio são bens que apresentam um rochosos, é necessário preservar o meio natural recém-criado, a comissão descobriu que o mu- ao turismo se dá de forma parcial, respeitando
valor histórico, artístico, arqueológico e ambien- em volta para manter os sítios intactos. Assim, nicípio já possuía bens tombados. Atualmen- os interesses das mineradoras. A prefeitura está
tal para uma nação. São bens móveis e imóveis a educação ambiental tem papel fundamental te, a Comissão está engajada em defender esse com planos de utilizar o patrimônio histórico
protegidos por lei e preservados e conservados para a preservação dos sítios arqueológicos. O patrimônio histórico, bem como o ambiente tombado como atrativos turísticos, mas ainda
por instituições competentes. Existem, por- IBAMA de Lagoa Santa produziu cartilhas edu- natural. O objetivo é preservar as característi- não possui infra-estrutura, nem autorização do
tanto, distintas categorias de “patrimônio”: (1) cacionais, mas não planejou formas eicientes cas do município e com isso atrair mais turistas IEPHA/MG.
patrimônio histórico, quando se trata de bens de distribuí-las. O IBAMA de Lagoa Santa pos- para a região. Lagoa Santa foi incorporada no Circui-
históricos como edifícios, espaços públicos, ci- sui apenas um funcionário em tempo integral, to Turístico das Grutas, que inclui outros 11
dades, ligados à história de uma dada sociedade o que inviabiliza um programa de educação municípios. Esse roteiro inclui várias grutas
ou país; (2) patrimônio artístico, quando se trata ambiental. As escolas do município de Lagoa Turismo e mineração como impacto onde o turista pode ver as belezas do subsolo
de bens artísticos como pinturas ou esculturas Santa criam seus próprios métodos de educa- para o patrimônio brasileiro. Entretanto, poucas grutas possuem
representantes de uma determinada época, es- ção ambiental, como a manutenção de hortas infra-estrutura adequada ou plano de manejo.
tilo artístico de um dado povo; (3) patrimônio comunitárias e aulas sobre natureza em seu cur- Os municípios de São Tomé das Letras e Assim, poucas delas estão abertas para visitação.
arqueológico, quando se trata de bens arqueo- rículo de ciências3. Essas iniciativas não fazem Lagoa Santa são atualmente parte integrante de Visitação de grutas requer autorização prévia
lógicos como artefatos, folclore, arte, local de referência ao município e seus atrativos naturais rotas turísticas do estado de Minas Gerais. O do IBAMA e IEPHA/MG ou IPHAN. Mu-
habitação e meio ambiente de povos extintos, e patrimônio arqueológico. Deste modo, não há município de São Tomé das Letras foi incorpo- nicípios como Lagoa Santa possuem guias que
importantes, por exemplo, para a construção como conscientizar a população da necessidade rado ao Circuito Turístico Vale Verde e Quedas têm autorização para entrada em alguns pontos
de um vínculo entre o passado e presente. Estes de preservar o patrimônio. D’Água, que inclui outros oito municípios da que possuem bens arqueológicos.5 Lagoa Santa
três tipos de patrimônio estão contidos em uma O patrimônio do município de São Tomé região. O objetivo desse novo circuito turístico possui também outros atrativos, como um mu-
categoria mais ampla, chamada “patrimônio das Letras foi inventariado e tombado pelo é atrair visitantes interessados nos atrativos na- seu de arqueologia e um de aviação6, e é rota
cultural”. Esses bens dotados de valor histórico, IEPHA/MG. São considerados patrimônio o turais da região, como cachoeiras, rios, trilhas para o Parque da Serra do Cipó. Esse parque
artístico ou arqueológico, geralmente, são tom- Centro Histórico e Matriz de São Tomé das e grutas e nos esportes que foram introduzidos ica no município de Santana do Riacho e está
bados para que possam ser preservados e passam Letras e o Conjunto Arquitetônico e Urba- recentemente, como o rappel, trekking, escala- compreendido por outra área de proteção am-
a fazer parte da memória coletiva de um povo e nístico da Capela do Rosário. O objetivo do da, mountainbiking e enduro. O objetivo foi biental, a APA – Morro da Pedreira, adjacente
de sua identidade social (MEC/SPHAN 1980). tombamento é preservar essas ediicações que atrair cada vez mais o turista interessado nessas à APA – Carste de Lagoa Santa. O Parque da
Preservar monumentos históricos não é uma representam o terceiro período do Barroco Mi- modalidades de esportes e nas belezas naturais.4 Serra do Cipó atrai muitos visitantes ao lon-
preocupação recente no Brasil. No século XVIII, neiro, além do estilo arquitetônico único de Na cidade, os comerciantes vêm investindo em go do ano e o único acesso asfaltado passa por
por exemplo, um primeiro caso de preocupação São Tomé das Letras, feito todo em pedra. infra-estrutura de restaurantes, pousadas e ba- Lagoa Santa. Desse modo, a cidade vira ponto
com os monumentos históricos partiu do Con- A responsabilidade pela preservação desse res para melhor atender o turista que vem pas-
de das Galveias, vice-rei do Estado do Brasil de patrimônio é do IEPHA/MG e da prefeitu- sar o inal de semana e descansar. A prefeitura 5. Existem na APA de Lagoa Santa, ao todo, 78 sítios
1735 a 1749 quando deu ordens ao Governador ra de São Tomé das Letras. Apesar de ele ter de São Tomé das Letras está muito interessada arqueológicos catalogados e registrados no Livro do
de Pernambuco para que preservasse as constru- sido tombado ainda na década de 1970, o go- em investir no turismo porque acredita ser uma Tombo do IPHAN. No município de Lagoa Santa,
ções holandesas dali (MEC/SPHAN 1982: 13). verno municipal só tomou conhecimento do existem 20. Todo esse patrimônio se encontra em
propriedade particular. (veja Fleischer 2000: Anexo
Outros casos sucederam-se até o presente século. tombamento em 2000, quando um grupo de
4. A introdução de esportes como atrativo turístico 1 para lista de sítios)
Contudo, até então não havia uma lei especíica recém-eleitos vereadores instaurou na Câmara é cada vez mais comum em destinos ecoturísticos. 6. Lagoa Santa é área de treinamento da aeronáutica. O
que visasse à proteção do patrimônio. Municipal uma comissão para a preservação do Como a maioria dos visitantes são jovens engajados aeroporto de Conins possui base área para este im e
Outra questão a levar em conta é que a patrimônio histórico e natural do município. em atividades esportivas, cidades como São Tomé a cidade de Lagoa Santa possui um setor, o Aeronáu-
preservação do patrimônio arqueológico está das Letras vêm investindo em “turismo de aventura”, tico, que é moradia para oiciais da Aeronáutica, com
vinculada à preservação do meio ambiente. A uma modalidade que alia ecoturismo e esportes como escola, infra-estrutura para as famílias e o Museu de
3. Veja Fleischer 2000: 48-60. uma forma de atrair ainda mais esses visitantes. Aeronáutica.

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de parada para o parque. Esse luxo tem esti- igrejas barrocas, além de ser parte da história se encontra em propriedade particular, o que cisam seguir normas mais rigorosas na gestão
mulado estabelecimentos como restaurantes e local, também habitam o imaginário nacional, diiculta tanto a iscalização quanto o acesso de suas áreas, visando à proteção desse acervo.
pousadas na estrada, mas pouco movimento representando uma época importante na cons- por parte do turista. Poucos visitantes vão ao A proteção do patrimônio público e privado
é revertido para a cidade. A prefeitura possui tituição da história nacional: ciclo do ouro em município atrás desse acervo arqueológico. ocorre de modo diferente, às vezes divergente
planos de abrir ao público alguns sítios arque- Minas Gerais, sistemas políticos e formas de Os dois municípios têm problemas com (Canclini 1994). Iniciativas privadas tendem
ológicos com pinturas rupestres, mas falta um organização social da época. a proteção de seu patrimônio natural e cultu- a quantiicar a proteção e preservação do pa-
plano de manejo. Existem divergências entre o As duas localidades sofrem o impasse de ral, no entanto a causa em cada um é distinta. trimônio em termos econômicos. Iniciativas
IBAMA e a prefeitura em torno da visitação conciliar o desenvolvimento turístico com a Em São Tomé das Letras, o patrimônio é re- governamentais qualiicam o patrimônio em
a esses sítios. A prefeitura quer construir in- proteção e preservação do patrimônio local. presentado pelas ediicações barrocas, as escul- termos de sua importância para a constituição
fra-estrutura para a visitação e o IBAMA exige São Tomé vem investindo cada vez mais em turas naturais em pedra e as cachoeiras. Nem da cultura e história nacionais. Quando se tem
que o local sofra o mínimo de interferência. O turismo. Atualmente, essa é a segunda ativida- as esculturas naturais e nem as cachoeiras são a interposição dessas duas esferas, público e pri-
Zoneamento da APA – Carste de Lagoa San- de econômica do município, atrás apenas da tombadas, porém ambos têm um valor sim- vado, a proteção e a promoção do patrimônio
ta estabelece que todas as cavernas, tombadas mineração. A cidade vem promovendo eventos bólico muito importante para os moradores tornam-se mais difíceis. No caso de Lagoa San-
pelo IPHAN, devem ser mantidas inalteradas e culturais para promover a imagem do muni- locais. Esses bens colorem o cartão postal da ta, o patrimônio é publico, mas localizado em
nenhuma infra-estrutura pode ser erguida nas cípio e atrair cada vez mais visitantes, como cidade, atraindo turistas. Em Lagoa Santa, o propriedades particulares. Em São Tomé das
proximidades. ocorre com a Festa de Agosto, quando a cidade patrimônio sofre com a ausência dos turistas. Letras, o patrimônio tombado é de proprieda-
Interesse em desenvolvimento turístico não recebe 30 mil foliões. Representando 6 vezes a Seu patrimônio está escondido e afastado. Para de particular. São residências e estabelecimen-
signiica interesse em preservação de patrimô- população local, esse número de turistas gera que sua proteção ocorra de modo efetivo é ne- tos comerciais, alem de propriedades da igreja
nio ou do meio natural. O uso econômico do prejuízos ao patrimônio, como, por exemplo, cessário que os turistas os commodiiquem, os que compõe o patrimônio tombado.
patrimônio é geralmente estimulado por de- daniicação de monumentos em espaço públi- transformem em objetos de consumo. Isso se- O patrimônio histórico-arquitetônico em
senvolvimento turístico. Turismo cultural é um co e vandalismo de ediicações. Depois da Fes- ria possível se o município estimulasse o turis- São Tomé das Letras não é uma commodity para
tipo de turismo que utiliza os atributos histó- ta, eles vão embora sem a menor preocupação mo histórico com ênfase na visitação de sítios os turistas, apesar de estar muito mais visível
ricos e artísticos de um lugar como atrativos sobre o que deixaram para trás. Considerando arqueológicos. que os sítios arqueológicos. A vocação ecotu-
turísticos. Museus, ediicações históricas e pro- a arrecadação total da festa, esses prejuízos per- Arqueólogos, por outro lado, argumentam rística do município não oferece espaço para a
dução cultural compõem esses atrativos. Tem- dem valor e relevância. Para a prefeitura essa que uma maior exposição desses sítios poderia promoção desses bens, simplesmente porque o
se então uma objetiicação do outro, do exótico festa é excelente negócio porque engorda a ar- ser sua morte anunciada, uma vez que uma visitante veio primeiramente para apreciar os
a partir da promoção de uma cultura material recadação anual do município, mas há pouca superexposição comprometeria a preservação atrativos naturais locais. O patrimônio arqui-
local (Stocking 1985). Tanto em Lagoa Santa preocupação com os potenciais danos causados dos tão sensíveis e vulneráveis bens arqueoló- tetônico embeleza a cidade, e para o ecoturista
como em São Tomé das Letras o poder político pelo evento. Os prejuízos ao patrimônio não gicos, além de que uma valorização dos mes- serve apenas para isso.
local não percebeu no patrimônio arqueológi- são reparados, apesar da “gorda” arrecadação mos estimularia o mercado paralelo que age A falta de um programa de desenvolvimento
co e arquitetônico um potencial econômico de com a Festa. na região há anos, revendendo pequenas peças turístico que valorize esse patrimônio contribui
exploração turística. Lagoa Santa não promove eventos festi- como pontas de lechas e cacos de cerâmica. É para sua degradação. O visitante está interes-
Atualmente, como observaram Rojek e Urry vos desse porte como parte de seu calendário muito interessante a distinção entre o patrimô- sado em conhecer lugares novos, experimentar
(1997), turismo e cultura estão cada vez mais turístico. De fato, o turismo ainda é pouco nio arqueológico, o natural e o arquitetônico. novidades e aproveitar o que o lugar pode lhe
interligados e relacionados. O turista tem inte- promovido no município, em parte porque os Cada um exige uma iniciativa diferenciada de oferecer. O patrimônio histórico-arquitetônico
resse em destinos pouco familiares, onde pode atrativos do município estão além do alcance proteção. O patrimônio arqueológico em La- de São Tomé das Letras pode ser um dos atra-
vivenciar experiências diferenciadas e conhecer do visitante. Os sítios arqueológicos não são de- goa Santa está no subsolo, na maioria das ve- tivos que esses visitantes podem vir a usufruir.
o outro autêntico. A idéia de patrimônio local marcados e as pinturas rupestres se encontram zes em propriedade privada. São bens públicos Os dois municípios se tornaram conhecidos
torna-se parte dessa discussão por compor a em paredões especíicos escondidos na mata, em propriedade privada, o que cria uma tensão pela propaganda “boca-a-boca”. Eram luga-
parte material da cultural local. No caso de São ou cavernas de difícil acesso. Todo esse acervo entre o poder público e os proprietários. Uma res pequenos e desconhecidos que possuíam
Tomé das Letras, é mais fácil a incorporação exige orientação de um guia treinado. Em toda discussão sobre o que é público e o que é pri- atrativos. Os primeiros visitantes foram os que
do patrimônio arquitetônico porque é parte a APA, apenas um possui certiicação reconhe- vado. A presença do Estado é maior em locais izeram a promoção dos municípios. O que
constituinte da história da cidade. O casario e cida pelo IPHAN. Além disso, todo esse acervo de sítios arqueológicos e os proprietários pre- eles costumam promover são os atrativos pelos

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quais se interessaram e que experimentaram. Em São Tomé das Letras, os turistas têm queológicos, além de comprometer recursos permanente risco porque, com o zoneamen-
Assim, os primeiros visitantes de São Tomé comprado boa parte dos imóveis da cidade naturais, como mananciais e cavernas. A APA to, permaneceram dentro das propriedades
das Letras promoveram as cachoeiras, o estilo para transformá-los em pousadas ou casas de – Carste de Lagoa Santa foi criada para prote- das mineradoras e, conseqüentemente, muito
de vida alternativo, o misticismo e esoterismo, veraneio. Eles exercem certa inluência na di- ger os sítios arqueológicos, os sistemas de ca- próximas das áreas de mineração. A criação de
além das formações rochosas que distinguem o nâmica da cidade por descaracterizar os espaços vernas que contém pinturas rupestres e parte uma APA não signiica a desapropriação de
município de seus vizinhos. Os primeiros visi- urbanos, que está sendo tomado por constru- do ecossistema, dada sua complexidade topo- terra, como acontece com a criação de Parques
tantes de Lagoa Santa promoveram o estilo de ções modernas e destoantes. O número de gráica e biodiversidade. Assim as mineradoras, Nacionais ou Reservas Naturais. Diante deste
vida bucólico, os bons restaurantes à beira da turistas aumenta nos feriados, mas a maioria com seus métodos de extração agressivos, como quadro, os sítios arqueológicos e espeleológicos
Lagoa e a Serra do Cipó como destino inal, dos que visitam São Tomé das Letras utiliza a o uso de dinamites e operação de maquinário que permaneceram dentro dessas propriedades
depois de uma parada breve em Lagoa Santa cidade apenas como ponto de apoio para visitar pesado, representam um perigo iminente ao após o zoneamento tornaram-se suscetíveis a
para comer, relaxar e seguir viagem. as inúmeras cachoeiras que existem na região. acervo arqueológico que está em sua proximi- danos e avarias causados pela atividade de ex-
O turismo é, portanto, gerador de profun- Esse tipo de turista cria problemas como sujei- dade. Em São Tomé das Letras, a mineração tração mineral.
das alterações no cotidiano das duas cidades. ra pelas ruas e cachoeiras, degradação das áreas prejudica o patrimônio arquitetônico porque No caso da APA – Carste de Lagoa Santa, as
Novos estabelecimentos comerciais surgem verdes e vandalismo, entre outros. A prefeitura utiliza também dinamite e transporta a carga infrações são consideradas mais severas por cau-
mês a mês para atender ao aumento no núme- está investindo em turismo ecológico, que po- em caminhões pesados que circulam dentro da sa do zoneamento ambiental lá existente e por
ro de turistas; o consumo de drogas entre os derá propiciar mais conforto aos usuários que cidade, além de comprometer cursos d’água haver regulamentação especíica sobre a condu-
jovens vem aumentando signiicativamente; as vêm em busca dos atrativos naturais da região, por assoreamento de resíduos. O IBAMA, o ção da atividade mineral. O município de La-
cachoeiras e trilhas pela mata estão sendo de- ao mesmo tempo em que trará maior proteção IEPHA/MG e o governo municipal são os res- goa Santa tem obtido sucesso com a aplicação
predadas por falta de um manejo adequado; e e garantia ao patrimônio natural. ponsáveis pela iscalização e punição das mine- de infrações e o recebimento de indenizações
a tranqüilidade do lugar está sendo ameaçada Em Lagoa Santa, as construções não têm pa- radoras nos dois municípios. por parte das mineradoras, o que não signiica
pela falta de respeito dos visitantes. drão deinido e oferecem outro tipo de ameaça Existe uma diferença entre os dois muni- uma mudança na atitude das mineradoras. Os
A construção típica de São Tomé das Le- ao patrimônio histórico: no subsolo da maioria cípios. No município de Lagoa Santa, as mi- danos mais freqüentes são ao acervo de pin-
tras é feita com lascas de pedra, chamadas pelos dos lotes existe uma quantidade considerável de neradoras são todas empresas de grande porte, turas rupestres presentes em cavernas e grutas
pedreiros de folhas, empilhadas uma em cima potes cerâmicos pré-colombianos, de machadi- algumas multinacionais, com pouca ou nenhu- próximas às áreas de extração mineral. A região
da outra, fazendo um encaixe perfeito, não dei- nhas semilunares, entre outros artefatos. A pre- ma relação com o município. Todas as ativi- é um rico depósito de calcário e há muito antes
xando nenhuma fresta e dispensando cimento feitura dá orientação aos proprietários de lotes dades são coordenadas por escritórios em São da criação da APA as mineradoras já estavam
ou argamassa. Por dentro, alguns rebocavam que contatem o Centro de Arqueologia sobre os Paulo, e alguns de seus funcionários moram em na área extraindo calcário e fabricando cimen-
a parede com adobe e pintavam. O chão é de achados para que este possa providenciar, junto municípios vizinhos. De acordo com a legisla- to. De acordo com dados do IBAMA, FEAM e
cimento queimado, e o telhado, com madeira- ao Setor de Arqueologia da Universidade Federal ção que rege as áreas de proteção ambiental, é a Federação das Industrias do Estado de Minas
mento feito de árvores do cerrado, era coberto de Minas Gerais (UFMG), a retirada e correta permitida qualquer atividade econômica, des- Gerais (FIEMG), o número de autuações às
com telhas de coxa. Janelas e portas no estilo acomodação dos artefatos. A maioria dos mora- de que se respeite o zoneamento ambiental que mineradoras não mostrou declínio algum des-
colonial fechavam o conjunto. Atualmente, dores não sabe dessa orientação e quando sabem, delimita áreas especíicas para o desenvolvi- de a criação da APA, no início dos anos 1990.7
poucos casarões construídos dessa forma ain- não avisam porque sabem que o procedimento mento de atividades industriais, agrícolas, áreas Em 2000, o IBAMA e a Prefeitura de Lagoa
da estão de pé. A cidade tem perdido parte do legal de retirada dos artefatos pode acarretar no urbanas e áreas de preservação ambiental. No Santa haviam multado em mais de 1 milhão
aspecto original com a destruição dos casarões embargo de obras de construção civil. Portanto, caso da APA – Carste de Lagoa Santa, as áreas de reais uma das mineradoras que destruiu por
de pedra e construção de novos edifícios de muitos simplesmente retiram algumas peças que de proteção foram demarcadas de acordo com completo um sítio arqueológico, tombado pelo
alvenaria. A prefeitura não tem uma política os agrade para usar como decoração em casa e a localização dos sítios arqueológicos, cavernas, IEPHA/MG. A justiça determinou que o valor
de preservação da história local e a população destroem o restante, que é misturado ao entulho mananciais e cursos d’água. As áreas de ativida- serviria como “medida compensatória”. As mul-
prefere seguir construindo da forma mais fá- removido depois de terminada a obra. de industrial foram delimitadas conforme a lo- tas estipuladas pelo IBAMA são elevadas, mas
cil e barata. Os defensores das construções em Nos dois municípios a mineração é um po- calização das mineradoras, presentes na região
pedra não têm respaldo dos outros moradores, tencial foco de conlito entre diferentes atores muito antes da criação da APA. Conforme a lo- 7. Dados obtidos através de consulta a arquivos na sede
que não encontram a mesma praticidade nesse sociais. Em Lagoa Santa a mineração é a ati- calização das mineradoras, alguns sítios arqueo- da FEAM e da FIEMG, em Belo Horizonte. Dados do
tipo de construção. vidade que mais coloca em risco os sítios ar- lógicos e espeleológicos icaram em situação de IBAMA obtidos através de consulta ao funcionário do
IBAMA responsável pela APA Carste de Lagoa Santa.

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não funcionam como mecanismo de coibição APA, portanto não possui plano de manejo ou Nessa discussão, centrada no patrimônio restritivas, as mineradoras tiveram que desa-
da ação destrutiva das mineradoras. Para estas, zoneamento ambiental. Frente a este quadro, natural, não está presente a situação do patri- tivar áreas de mineração que se encontravam
os sítios arqueológicos são um empecilho para a atividade das mineradoras no município é mônio histórico, talvez porque o patrimônio dentro do espaço urbano; reduziram o ritmo
a expansão de sua área de extração. Não existe muito mais agressiva: a extração causa maior natural seja mais importante para o desenvolvi- de extração porque só podiam dinamitar os
uma consciência para a preservação desse patri- impacto ambiental e não existe limite para a mento ecoturístico. Como o setor de ecoturis- bancos de pedra duas vezes ao dia (antes di-
mônio. As mineradoras em Lagoa Santa estão expansão da mineração. Até recentemente, a mo concentra suas preocupações na qualidade namitavam até 10 vezes); e tiveram seus custos
limitadas pelo zoneamento da APA às áreas de atividade de mineração estava avançando em do meio natural, sobra pouca preocupação com elevados para disporem corretamente os deje-
extração que tinham antes da criação da APA. direção à área urbana do município, estando o patrimônio histórico. Assim, desqualiica-se tos. O atual prefeito (2000-2008) de São Tomé
Mas a tecnologia permite que a extração seja a poucos metros de algumas casas. Foi preciso esse patrimônio em detrimento do patrimô- das Letras é dono da maior mineradora do mu-
concentrada e avance em profundidade. criar uma regulamentação para o uso de dina- nio natural. A prefeitura não tem uma política nicípio e tem sido omisso diante de atos ilícitos
No caso de São Tomé das Letras as mine- mite e para a distância segura das casas. Previa- clara de preservação do patrimônio local, ape- praticados por mineradores. Esta situação não
radoras são menores, se comparadas com as de mente a essa regulamentação, as mineradoras sar de existir um tombamento realizado pelo é positiva para a preservação ambiental e do pa-
Lagoa Santa. Todas as mineradoras que atuam dinamitavam os bancos de pedra várias horas IPHAN, na década de 1970, da Igreja Matriz, trimônio no município. A Câmara Municipal
no município são de propriedade de empresá- durante o dia, abalando as estruturas das casas da Praça da Matriz e do casario que circunda a criou uma comissão para promover a preserva-
rios locais. A mão de obra é do próprio muni- e ediicações históricas. praça, a Igreja do Rosário e alguns Passos.8 A ção do patrimônio histórico, artístico e natural
cípio ou de municípios vizinhos. As empresas Uma análise sociológica dos conlitos sociais preservação do patrimônio é um tema polêmi- da cidade, mas tem encontrado diiculdades
que lá operam extraem quartzito, que é utili- nos mostra que o meio ambiente é compreen- co, que tem gerado algumas brigas dentro da para implementar algumas de suas iniciativas
zado pela construção civil. A atividade é mais dido de forma diferente em cada município. O prefeitura e entre os moradores. porque o prefeito freqüentemente veta os pro-
artesanal e possui menos tecnologia investida, conlito em São Tomé das Letras ocorre entre Os moradores mais recentes em São Tomé jetos de lei apresentados pela Câmara.
porque o custo do produto inal é baixo, se ecoturismo e mineração, em Lagoa Santa, entre das Letras, preocupados com a preservação A discussão em Lagoa Santa é outra. A mi-
comparado com o produto inal das minera- mineração e APA. A mineração e seu potencial dos recursos naturais, com a manutenção da neração representa um risco à sustentabilidade
doras de Lagoa Santa, o cimento. O estrago é de degradação ambiental está no centro da dis- paisagem e dos edifícios históricos, iniciaram do patrimônio arqueológico. A cidade não tem
diferente. Com a falta de tecnologia aplicada, cussão. O motivo de discussão em São Tomé é o conlito com as mineradoras, fazendo de- atividade de ecoturismo. A discussão, portan-
as mineradoras locais extraem pedras somente de que a atividade de mineração está em direta núncias constantes à prefeitura municipal, ao to, se concentra no fato de a mineração estar
próximo à superfície. Assim, as jazidas avançam oposição à atividade de conservação ambiental IBAMA e a FEAM. Na época, inal da década em direta oposição aos mecanismos de prote-
horizontalmente, ocupando cada vez mais área promovida pelo ecoturismo. Mineração e eco- de 1980, o então prefeito se sensibilizou com ção do patrimônio arqueológico, justamen-
de mata nativa. A extração de quartzito foca em turismo são atividades econômicas, que seguem a preocupação dos moradores e pediu uma in- te porque os sítios arqueológicos estão muito
um formato especíico de pedra: as lascas ou fo- lógica de mercado. Entretanto, mineração é tervenção do IBAMA no local. O órgão federal próximos das áreas de extração mineral. O em-
lhas, que têm como destino inal a construção uma atividade econômica extrativista, enquan- impôs uma série de normas para regulamentar bate ocorre entre as empresas de mineração e o
civil. Além das folhas, existe um outro forma- to ecoturismo é uma atividade econômica com a atividade mineradora no município. Dentre conselho diretor da APA, composto pelo IBA-
to, que é a rocha. Por um processo geológico intenção de conservação. As duas consomem as mais signiicativas estão a determinação de MA, Conselho Municipal de Meio Ambiente
diferenciado, esta possui dureza muito superior os recursos naturais locais, só que de modo dis- uma distância mínima da área urbana, a cria- (CODEMA), Setor de Arqueologia da UFMG
e não tem boa aceitação no mercado. Segundo tinto. Para o setor de ecoturismo, que envolve ção de horários ixos para o uso de dinamites e e Prefeitura de Lagoa Santa9. Assim, o conlito
os operários das mineradoras, o aproveitamento empresários locais e de outros centros urbanos a regulamentação para a disposição de dejetos mantém-se no nível técnico e freqüentemente
na extração não passa de 40%. Todo o resto vira do setor de hospedagem, comércio e lazer, a da mineração. Com a imposição de normas focalizado nos problemas de gestão da APA. Ao
dejeto e deve ser acomodado em montanhas de mineração representa um risco à sustentabili- contrário de São Tomé das Letras, o patrimônio
pedra com altura máxima de cinco metros. Es- dade dessa atividade. O assoreamento de rios e 8. Os passos são pequenas capelas de 3 m² que eram histórico, cultural e natural são considerados
utilizados na procissão da Via Sacra. Cada Passo mar-
sas montanhas modiicam a topograia da cida- a devastação de áreas de mata nativa descons- de forma conjunta. A proteção do patrimônio
cava um dos passos da procissão (muito comum em
de pois fazem surgir no horizonte montanhas troem a imagem de cidade ecoturística e invali- cidades mineiras). Em cada um, os religiosos paravam
quadradas e sem cobertura vegetal. dam a promoção do município como lugar de para rezar. Mas a má conservação dos passos fez com 9. São quatro os municípios que compõem a APA Cars-
Outro fator que agrava a degradação do natureza exuberante e bem preservada, como que vários fossem demolidos e outros fossem abando- te de Lagoa Santa: Lagoa Santa, Vespasiano, Pedro
meio ambiente em São Tomé das Letras é o o fazem os guias de turismo produzidos pelos nados, restando apenas 6 dos 12 originais. Atualmen- Leopoldo e Matozinhos. Mas a SEDE do IBAMA na
fato de o município não estar inserido em uma empresários locais. te, a conservação é feita pelos próprios moradores, APA está dentro do município de Lagoa Santa, e é
que cuidam do passo mais próximo de sua casa. este que participa das decisões do conselho diretor.

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arqueológico depende da proteção do meio à poderem operar dentro da APA. Quem apli- geralmente resulta em medidas compensató- servação e conservação do patrimônio arqueo-
sua volta. ca as normas é o IBAMA. As mineradoras não rias pagas ao IBAMA e à prefeitura, mas que lógico quanto na ausência de políticas públicas
Como Lagoa Santa está inserida em uma desejam interromper sua atividade. Querem nem sempre resolvem o problema da degrada- que incluem a educação da população. Quanto
APA, a presença do IBAMA é constante. A pre- explorar cada vez mais, de forma contínua. ção ao patrimônio arqueológico. Muitas vezes o ao IBAMA, os arqueólogos acreditam que ele
feitura da cidade também está sempre presente, A FIEMG é o órgão que geralmente negocia IBAMA e a prefeitura entram em acordo para deva se unir à prefeitura na elaboração de pro-
por ser encarregada de preservar o patrimônio com o IBAMA. É um órgão privado, parte in- aplicar o valor monetário da medida em outras jetos de educação ambiental junto à popula-
arqueológico através de seu Centro de Arqueo- tegrante da Confederação Nacional das Indús- atividades que não são relacionadas diretamen- ção que compreendam também a arqueologia.
logia. São Tomé das Letras, por outro lado, não trias (CNI) e responsável por dar amparo legal te à proteção do patrimônio arqueológico. Os Em relação à população local, os arqueólogos
é beneiciada pelo poder itinerante do IBAMA. e apoio tecnológico às indústrias do estado de mecanismos de proteção ao patrimônio arqueo- acham que é ela a responsável pela pilhagem
Como não possui áreas protegidas, a iscaliza- Minas Gerais. Ela defende os interesses das mi- lógico são tão precários que qualquer destruição dos sítios e vandalismo dos paredões, mas acre-
ção das mineradoras só ocorre quando existe neradoras tentando negociar uma decisão con- por parte das empresas de mineração é irreversí- ditam que a razão disso seja falta de conscienti-
uma denúncia formal ao IBAMA. Quando não ciliatória com o IBAMA. vel. Não há como recompor pinturas rupestres zação, e que isso pode ser resolvido com a ajuda
é o caso, cabe à prefeitura iscalizar, mas, como O conlito entre a prefeitura e o IBAMA de uma caverna ou gruta que viraram entulho. da prefeitura e do IBAMA. As mineradoras e os
o prefeito é dono de uma mineradora, isso não acontece quando a primeira comete infrações A população tem atrito com o IBAMA, re- exploradores e depredadores são rechaçados pe-
costuma ocorrer. contra o patrimônio natural. Geralmente isso sultado da função iscalizadora do órgão. De los arqueólogos por apresentarem uma ameaça
O patrimônio arqueológico cria um campo ocorre quando a prefeitura pretende realizar acordo com o diretor da sede do IBAMA na ao patrimônio arqueológico. Estes acadêmicos
relacional, onde os grupos sociais envolvidos obras de infra-estrutura, tanto em área urbana APA – Carste de Lagoa Santa, “a população têm uma briga declarada contra esses atores
interagem. A valorização dada à Arqueologia quanto rural, dentro da APA. Qualquer obra acha que o IBAMA é polícia. Polícia Ambien- que exploram, daniicam ou destroem vários
é diferente para cada grupo. Os grupos sociais deve ter previamente um Estudo de Impac- tal”10. O mesmo ocorre com o CODEMA. sítios, inclusive levando muitas peças ou lascas
possuem interesses divergentes, criando uma si- to Ambiental (EIA) aprovado pelo IBAMA e Este órgão é mais atuante, possui mais agentes de pedra embora.
tuação de conlito que não é de simples resolu- depois um Relatório de Impacto Ambiental e aparece mais. Às vezes os agentes são recha- Desta forma, os conlitos em torno da ar-
ção. O conlito citado acima entre empresas de (RIMA) que vai anexado ao processo de libera- çados pela população, que desconhece leis am- queologia variam conforme os atores sociais en-
mineração e o conselho diretor da APA – Cars- ção da obra. Esse estudo deve incluir um laudo bientais e formas de conduta sob a legislação volvidos, de acordo com a questão especíica da
te de Lagoa Santa pode ser melhor compreen- do Centro de Arqueologia da UFMG para pos- que rege a APA – Carste de Lagoa Santa. O arqueologia e das ainidades entre os diferentes
dido se observado mais detalhadamente. Os síveis impactos ao patrimônio arqueológico, e vandalismo é o ato mais agressivo e é freqüen- grupos (Simmel 1955). Analisando a situação
vários atores sociais presentes na APA possuem também um programa de manejo que pode in- temente cometido contra as pinturas rupestres. através da dicotomia público-privada, pode-se
conlitos menores entre si: existem conlitos cluir a retirada prévia de artefatos, caso sejam O IBAMA não tem como iscalizar todos os compreender melhor como é dada a valoriza-
individualizados entre IBAMA e mineradoras, encontrados. Todos os projetos devem passar pontos. São mais de dez paredões com pinturas ção do patrimônio histórico pelos diferentes
prefeitura e IBAMA, prefeitura e mineradoras, por esse processo burocrático, e às vezes as pre- rupestres espalhados por toda a área da APA atores sociais envolvidos. Esse patrimônio está,
IBAMA e população local, IBAMA e vândalos, feituras simplesmente pulam essas etapas do – Carste de Lagoa Santa e constituem parte ex- em sua maioria, dentro de áreas particulares, e
arqueólogos e prefeitura, arqueólogos e IBA- processo e partem para a execução. O IBAMA, pressiva dos bens tombados pelo IPHAN. seus donos têm obrigação de preservá-lo. De
MA, arqueólogos e população local, e arqueó- com apenas um funcionário na APA – Carste Os arqueólogos possuem conlitos mais acordo com o Decreto-Lei número 25, de 30
logos e vândalos. de Lagoa Santa, não tem capacidade de isca- tênues com alguns desses atores sociais. Em de novembro de 1937, todos os bens móveis e
O conlito entre as mineradoras e o IBA- lizar de forma eiciente todas as infrações que entrevistas com alguns deles que trabalham na imóveis, tombados como patrimônio histórico
MA recai sobre as infrações que as primeiras ocorrem dentro da APA. UFMG, foi possível observar que discordam de e artístico, são de propriedade do Estado (Go-
cometem tanto ao código ambiental brasilei- A prefeitura de Lagoa Santa possui conli- ações da prefeitura, IBAMA, IPHAN, IEPHA/ verno Federal ou Estadual) e, estando em pro-
ro, quanto às leis especíicas que regem a APA. tos com as mineradoras, mas geralmente perila MG e população local. Entre a prefeitura e os priedade particular, cabe ao proprietário zelar
Como o IBAMA é o órgão responsável pela ao lado do IBAMA. Quando o problema é re- arqueólogos, o objeto do conlito é o descaso pela integridade deste patrimônio, seja ele um
proteção dos sítios arqueológicos, qualquer lacionado às mineradoras, o IBAMA e prefei- da prefeitura com o patrimônio arqueológico. bem artístico, histórico, arqueológico, espeleo-
degradação por parte das mineradoras a esses tura icam lado a lado na briga enquanto, em Isto pode ser observado tanto pela falta de pre- lógico, arquitetônico, paisagístico ou natural.
sítios envolverá o IBAMA. As leis ambientais casos como de obras públicas, duelam entre si. Cabe também ao Estado auxiliar na proteção
estabelecem normas para a atuação das mine- A mineradora que comete infrações ambientais 10. Parte de entrevista concedida pelo presidente da sede do desse patrimônio, impedindo sua destruição,
radoras. Elas devem seguir estas normas para tem que resolver o problema na justiça. Isso IBAMA na APA Carste de Lagoa Santa em março de dilapidação, mutilação ou alteração.
2000. Veja Fleischer 2000: 40 para maiores detalhes.

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Enquanto em Lagoa Santa a prefeitura tem grupo. O espaço urbano é um típico lugar para pela mineração. A prefeitura de São Tomé das rante a época das chuvas, só permitia a passa-
um comprometimento maior com a preser- se encontrar relações de conlito por concentrar Letras ignora a destruição ambiental e patri- gem de caminhões ou veículos de tração nas
vação do patrimônio local, em São Tomé das em um espaço reduzido um grupo de pessoas monial da cidade. quatro rodas. Isso limitava muito a vinda de
Letras a prefeitura cria impedimentos para o com diferenças de valores, biograias, trajetó- A Câmara Municipal de São Tomé das Le- turistas. O peril dos visitantes era o de pessoas
mesmo. Comum entre as duas cidades é a de- rias, expectativas, visões de mundo, enim, “he tras criou recentemente um grupo de trabalho jovens (entre 16 e 23 anos), aventureiras, que
gradação ambiental causada pela mineração. whole inner organization of urban interaction is que tinha por objetivo averiguar o estado de viriam a qualquer custo. Com o asfaltamen-
Enquanto numa a mineração abala (e às vezes based on an extremely complex hierarchy of sym- conservação do patrimônio local e possivel- to, o peril do turista se diversiicou e a cidade
destrói) sítios arqueológicos e espeleológicos, pathies, indiferences, and aversions of both the mente propor alternativas para sua preservação. passou a receber turistas mais velhos (entre 27
na outra os mananciais são contaminados e most short-lived and the most enduring kind.”12 A iniciativa pretendia veriicar a possibilidade e 60 anos) interessados em aproveitar os bons
as estruturas de edifícios tombados no centro (Simmel 1955: 20) de constituir um Parque Ecológico e integrá-lo restaurantes e bares e apreciar a arquitetura em
histórico icam abaladas. Ainda não existe no Deste modo, o espaço urbano se apresenta como atrativo ecoturístico, que teria como ob- pedra e as construções do período Barroco.
Brasil um aporte legal para orientar a atividade como campo de possibilidades para o conlito, jetivo principal limitar o avanço da mineração As casas de pedra encantam e dão um certo ar
de ecoturismo. Afora isto, as discussões sobre porque o indivíduo se relaciona com diversos em direção ao espaço urbano e também o avan- de bucolismo, como se lá estivesse parado no
desenvolvimento de ecoturismo não costumam outros num espaço limitado. Simmel apon- ço da cidade em direção à área natural. Com tempo. Esse patrimônio arquitetônico ainda é
combinar meio ambiente com desenvolvimen- ta que as pessoas que vivem em cidades estão o rápido desenvolvimento do ecoturismo no a primeira foto que o visitante vê nos guias tu-
to. Como airma Butler (2000), as questões de em contato diário com diversos estímulos que município, novas casas13 estão sendo constru- rísticos da cidade.
meio ambiente são tidas como algo automático saturam e criam “antipatias” ou impedimentos ídas, cada vez mais próximas das áreas de mata Com a intensiicação do turismo ocorre um
em desenvolvimento de ecoturismo, sem que se a relacionamentos mais intensos. Os conlitos nativa, contribuindo para a destruição da ori- aumento no luxo de informações, bens e ser-
discuta sua utilização, os impactos e as formas se intensiicam em cidades pequenas porque o ginalidade da cidade. Os vereadores estão em viços em São Tomé das Letras que vão sendo
de gestão. A utilização do meio ambiente mu- campo de possibilidades de distanciamento é confronto direto com o prefeito e contam com incorporados ao ethos da cidade (Appadurai
dou muito nos últimos anos e sua degradação reduzido e as interações mais intensas. É em São o apoio do setor de ecoturismo que demonstra 1996). Por exemplo, a prestação de serviços
está em ritmo cada vez mais acelerado. Assim, Tomé das Letras que isso se torna mais eviden- preocupações com a proteção ao patrimônio se diversiicou oferecendo maior amplitude
políticas públicas para o ecoturismo deveriam te. O espaço urbano, no ano de 2000, possuía natural. A parte da população que trabalha nas de opções de hospedagem, alimentação e la-
incluir mecanismos de gestão conciliada entre apenas 4 mil habitantes. Todos esses habitantes mineradoras é a que teme as novas restrições, zer. Hoje, encontra-se em São Tomé das Letras
meio ambiente e ecoturismo. se conhecem e sabem a que grupo pertencem. porque elas podem representar no futuro pró- restaurantes de comida japonesa, creperias,
São Tomé das Letras é uma cidade dividi- O conlito em torno da atividade de minera- ximo o im dos seus empregos. pizzarias, cafés e churrascarias; pousadas com
da. Os grupos de ecoturismo e de mineração ção é constante e o ecoturismo rapidamente Todo o engajamento em torno da criação piscina aquecida e café da manhã completo;
são representados por nativos e forasteiros, res- expandindo-se no município aumenta a ani- de um parque ecológico decorre da preocupa- passeios turísticos em vans e jipes, atividades
pectivamente.11 Há momentos de concórdia ou mosidade entre os grupos. As características de ção em proteger o patrimônio natural. O patri- de lazer como shows de rock no meio das pe-
discórdia diretamente imbricados com as rela- identiicação de cada grupo social são expressas mônio arquitetônico da cidade está ameaçado e dras, competições de enduro e mountainbiking,
ções de conlito e as redes de ailiação de grupos pela sua preferência política, econômica, social o turismo pode ser um fator catalisador de uma passeios ciclísticos e vários pontos para prática
(Simmel 1955). Segundo Simmel, o objetivo e cultural. mudança na política local. A grande maioria de esportes radicais. Algumas destas novidades
de um conlito é resolver divergentes dualismos Como na maioria das cidades de Minas Ge- dos turistas visita São Tomé das Letras atraída podem parecer comuns por serem encontradas
(no caso de conlitos envolvendo turistas, foras- rais que têm atividade de extração mineral, a por sua paisagem pitoresca. Como dito antes, em várias outras cidades, mas quando foram in-
teiros e nativos) para se atingir um consenso de preservação do patrimônio histórico, arqueo- o maior interesse dos turistas está nas belezas troduzidas em São Tomé das Letras, causaram
lógico, artístico, cultural, natural e paisagístico naturais do município, porém uma recente um impacto na vida local. Os moradores locais
ica em segundo plano diante do desenvolvi- mudança no peril do visitante vem aos poucos assimilam com muita facilidade as novidades
11. Os termos “nativos” e “forasteiros” foram adaptados
mento econômico da região proporcionado mudando a forma como se percebe o patrimô- trazidas pelos turistas. A assimilação desses lu-
dos termos “established” e “outsiders” respectivamen-
te, utilizados por Elias (2000). A relação entre na- nio histórico-arquitetônico. Até 2001, o acesso xos, segundo Appadurai (1996), representa a
tivos e forasteiros se dá de forma muito semelhante 12. “Toda a organização interna de interações urbanas a cidade era feito por estrada de terra que, du- participação do município em uma estrutura
ao analisado por Elias. Os conlitos e as identidades é baseada em um complexo sistema hierárquico de de poder maior, a nível global. Turismo em ge-
de grupo também respeitam essa diferenciação, que simpatias, indiferenças e aversões tanto das mais sim- 13. As novas casas são de turistas que vêm para inais de ral é uma atividade globalizante, onde interes-
é baseada em local de origem, identidade funcional, ples como das mais difíceis de se resolver” (Tradução semana, de moradores locais, que mudaram da zona ses locais são subordinados a interesses federais
crença religiosa e posicionamento político. do Autor) rural, ou de pessoas que trabalham no comércio.

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e internacionais. Partindo dessa perspectiva, a ferentes elementos e de forma distinta daque- necessárias medidas eicientes para a proteção estadual e federal está presente, mas de forma
preservação do patrimônio, o desenvolvimen- la experimentada no seu cotidiano – e o que desse acervo. A modernização, exempliicada menos ostensiva. Isso tem levado a uma atitude
to de ecoturismo e a atividade de mineração era esperado pode ser, de forma imediata ou por ruas asfaltadas, prédios novos, mineração, mais pró-ativa da sociedade civil, o grupo mais
devem ser compreendidos como partes desse gradual, confrontado com o que foi vivido. comércio, indústria e agricultura extensiva, não interessado no desenvolvimento de um progra-
campo relacional das lógicas de mercado. Eco- Ou seja, a viagem leva a pessoa a provar suas são compatíveis com as necessidades de conser- ma de ecoturismo sustentável.
turismo e mineração estão em consonância com expectativas e veriicar os resultados. Analisan- vação do patrimônio histórico. Essa dicotomia Em ambas as localidades, o turismo é visto
interesses de mercado que visam a exploração do essas expectativas e resultados, o indivíduo entre o antigo e o novo cria conlitos de interes- como uma excelente alternativa de renda para a
de recursos locais, seja pelo modo extrativista veriica as modiicações pelas quais passou. A se e portanto é necessário uma ação combina- população local, frente a diminuição (ou até de-
ou pelo modo conservacionista. A preservação sensibilidade de cada indivíduo permite que, da, onde as iniciativas de preservação estão em cadência) de outras atividades econômicas que
do patrimônio representa o interesse de manter em diferentes graus, se consiga vivenciar dife- consonância com as inovações propostas pela estão estagnadas ou em declínio. O turismo vem
estático um período da história, para que seja rentes situações e se perceba diferentes aspectos sociedade que visam uma melhoria da qualida- sendo estimulado pelos governos estadual e fede-
consumido como mercadoria por turistas. da cultura local. De qualquer forma, os visitan- de de vida. A demanda pela preservação do pa- ral e possui uma demanda continuada e crescen-
O turismo é uma importante fonte gerado- tes costumam gostar de suas visitas a São Tomé trimônio e sua commoditização pela indústria te. As pessoas viajam cada vez mais e mais longe,
ra de renda e de desenvolvimento para o mu- das Letras. do turismo vêm contribuindo para que prefei- querem conhecer os mais diferentes lugares, vi-
nicípio. O governo do estado de Minas Gerais turas e empresários revisem suas políticas para venciar novas experiências e trazer para casa pro-
tem incentivado os municípios com potencial facilitar o acesso de turistas a esse patrimônio. vas de sua jornada. No caso de Lagoa Santa e de
turístico a traçarem um plano de exploração tu- Políticas públicas e sustentabilidade Turismo e preservação ambiental ainda são São Tomé das Letras, o turismo é amparado por
rística e desenvolverem programas que promo- palavras novas no vocabulário dos governos atrativos de grande potencial, infra-estrutura bá-
vam o turismo sustentável. Para isto o governo O patrimônio pode ser compreendido a locais desses dois municípios. As prefeituras sica amparada nos hotéis e pousadas, restauran-
estadual mapeou o estado, classiicando regiões partir de dois modos distintos: ao mesmo tem- ainda estão em processo de adaptação para in- tes e bares, mão-de-obra disponível e barata, e
com potencial turístico. São Tomé das Letras po em que é um empecilho, também pode ser corporar o turismo como uma nova atividade localização privilegiada por estarem próximas de
passou então a constar nos roteiros turísticos considerado como um atrativo. É um empeci- econômica geradora de empregos e tributos. A duas metrópoles nacionais.
do estado de Minas Gerais e da EMBRATUR lho porque não permite às mineradoras ampliar iniciativa continua sendo do setor privado, que Atualmente, o Brasil possui uma legislação
e passou a receber visitantes de várias partes do suas áreas de mineração, apresenta diiculdades oferece serviços nessa área. Entretanto, cabe ao ambiental muito avançada e completa, que in-
mundo durante feriados prolongados como para as prefeituras realizarem obras de infra-es- poder público regular a atividade para que não corpora questões pertinentes a todas as áreas de
o do Carnaval ou da Festa de Agosto. Ameri- trutura e impõe restrições para certos setores haja degradação do meio ambiente ou do patri- desenvolvimento econômico, propõe iniciati-
canos, canadenses, argentinos, venezuelanos, como agricultura, pecuária, comércio e turis- mônio local. As assembléias legislativas têm se vas interessantes de educação ambiental, prevê
bolivianos, alemães, espanhóis, japoneses, co- mo. É um grande atrativo pelo valor histórico preocupado com a atividade. penalidades severas, entre outros. No entanto,
reanos e outros visitam a cidade com interesse que possui e pela autenticidade que concede ao Em São Tomé das Letras alguns vereadores a questão ambiental no Brasil ainda é tratada
no esoterismo e na natureza do lugar. Como local. A indústria do turismo está sempre em vêm polarizando as discussões para a questão de forma marginal pelas diferentes instâncias
turistas, esses visitantes vêm a essa remota ci- busca do que pode ser considerado autêntico e da preservação do patrimônio local. Em Lagoa governamentais e sua legislação, por enquan-
dade no sul de Minas Gerais com vontade de passível de se tornar uma commodity. O turis- Santa existe uma preocupação do IEPHA/MG to em alguns casos, como os relatados aqui,
conhecer mais um lugar, distante e diferencia- mo pode promover a valorização do patrimô- na preservação dos sítios arqueológicos, que é ainda não soluciona todos os problemas exis-
do (MacCannell 1999). Os motivos que levam nio e criar uma demanda de preservação. Assim respaldada pela prefeitura. Como o município tentes, ou não tem sua aplicação de modo ei-
turistas a viajar, segundo MacCannell (1999) ocorre com centros históricos, como na cidade de Lagoa Santa faz parte de uma APA, há um caz. Todas as propostas de desenvolvimento de
são variados, mas têm relação com uma neces- de Ouro Preto e em Tiradentes, também no es- acompanhamento mais ostensivo por parte de atividades econômicas como o ecoturismo ou
sidade de compreender o mundo a sua volta. tado de Minas Gerais. órgãos públicos estaduais e federais como o IE- turismo histórico-cultural, mesmo sendo con-
O turista move-se por diferentes estruturas to- A criação da necessidade de preservar e con- PHA/MG, IBAMA, FEAM e UFMG. O mu- sideradas pouco nocivas para o meio ambiente,
talizantes. servar esses patrimônios natural, arqueológico nicípio de São Tomé das Letras, por não fazer se comparadas com atividades como a minera-
Fazer turismo consiste em ir e voltar mo- e histórico-arquitetônico depende da criação de parte de uma unidade de conservação tal como ção ou agricultura, podem ter impactos diretos
diicado. Os sentimentos e atitudes são vis- consciência por parte da sociedade civil, empre- a APA, não se beneicia da legislação ambien- irreversíveis se não houver um plano de manejo
lumbrados pela pessoa – admitindo-se que, sários e governo em torno da preciosidade des- tal complexa e punitiva criada para a gerência e um monitoramento constante das atividades
na viagem, as pessoas são estimuladas por di- ses bens e de sua condição frágil. Também são de unidades de conservação. O poder público por órgãos iscalizadores.

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Como airma Honey (1999), estamos num natural tem sofrido fortes impactos com o au- Referências bibliográicas HONEY, Martha. 1999. Ecotourism and Sustainable Deve-
momento de mudança de paradigmas, onde mento de visitantes, falta de manejo de áreas lopment: who owns paradise? Washington: Island Press.
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ecoturismo e conservação devem incluir be- vulneráveis como cachoeiras, grutas, pinturas ANDRADE, Mário de. 1974. Aspectos da literatura brasi-
ca (IBGE) http://www.ibge.gov.br/
nefícios e participação ativa da comunidade rupestres. Os novos visitantes contribuem dire- leira. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes.
MACCANNELL, Dean. 1999. he tourist: a new theory of
APPADURAI, Arjun. 1996. Modernity at Large: cultural
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ties that minimize visitor impact while benei- legislação ambiental sem interromper suas ati- phies 2(3):337-358
Livros do Tombo do Patrimônio Histórico e Artístico Na-
ting both protected areas and the surrounding vidades econômicas. A sustentabilidade dessas CANCLINI, Néstor García. 1994. “O Patrimônio cultu-
cional. Brasília: SPHAN-PróMemória
ral e a construção imaginária do nacional”. Revista do
human population”14 (Honey 1999: 390). atividades depende diretamente de uma ativi- ROJEK, Chris, e John URRY, (orgs.). 1997. Touring Cul-
Patrimônio, IPHAN, 23: 95-115
Esses novos paradigma e discurso são relexos dade conjunta entre sociedade civil, governo lo- ELIAS, Norbert. 2000. Os Estabelecidos e os Outsiders: so-
tures: Transformations of Travel and heory. New York:
da necessidade de integrar elementos sociais, cal e empresários na implementação de políticas ciologia das relações de poder a partir de uma pequena
Routledge.
econômicos e ambientais quando do plane- públicas que estimulem o desenvolvimento de SIMMEL, Georg. 1955. Conlict and he Web of Groups
comunidade, tradução de V. Ribeiro. Rio de Janeiro:
Ailiations. Nova York: he Free Press.
jamento e implementação de atividades de atividades que sejam econômica e ambiental- Jorge Zahar Editores.
SOUZA, Hélio Antonio de. 1997. Zoneamento Ambien-
ecoturismo. Uso de recursos naturais, manejo mente sustentáveis. FLEISCHER, DAVID I. R. 2003. São Tomé das Letras:
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Uma etnograia de “ver para crer”. Dissertação de Mes-
de áreas protegidas (no caso da APA – Cars- zonte: IBAMA-CPRM.
trado. Brasília: PPGAS-UnB,
te de Lagoa Santa), e iniciativas de proteção são Tomé das Letras and Lagoa san-
FLEISCHER, DAVID I. R. 2000. Arqueologia em Lagoa
STOCKING Jr., George. 1985. “Essays on museums
ao patrimônio têm sido motivo de discussão ta: mining, tourism, and threats to the Santa: tendão de Aquiles ou cabelo de Sansão. Disserta-
and material culture”. In G. Stocking (org.), Objects
entre governo, comunidades locais e setor pri- historical and natural heritage. and others; essays on museum and material culture. Ma-
ção de Graduação. Brasília: DAN-UnB,
dison: University of Wisconsin Press, pp. 3-14, série
vado por muito tempo. O que se faz neces-
History of Anthropology, n. 3.
sário agora é uma ação combinada, visando abstract São Tomé das Letras thrives on
a um desenvolvimento sustentado que inclua mining, agriculture and tourism. Lagoa Santa
atividade industrial, ecoturismo e proteção ao thrives on mining, cement factories and agricul- autor David Ivan Rezende Fleischer
patrimônio local. ture. Mining is a threat to natural resources in Doutorando em Antropologia / State University of New York at Albany – E.U.A.
Em suma, ao analisarmos atividades como o both locations. hese locations have distinct heri-
turismo e mineração e seus impactos sobre esses tage landmarks. hese heritage landmarks impose Recebido em 13/02/06
dois municípios, podemos reletir sobre alguns restrictions, crated to guarantee their preservation. Aceito para publicação em 18/06/06
pontos importantes. O turismo tem surgido Diferent local groups are in search for sustainable
como principal alternativa às outras economias alternatives for the conservation of this heritage.
locais, como a agricultura e pecuária, hoje es- he article makes a comparison of these two reali-
tagnadas; e representa um interesse maior do ties, trying to understand the sustainability of each
Estado de transformar as duas localidades em mining town through the analysis of speciic ac-
pólos turísticos locais com atrativos especíicos tivities such as tourism, mining and the initiatives
e, conseqüentemente, vem causando importan- of preservation of cultural heritage. his article is
tes transformações socioeconômicas e culturais based on ethnographic data focused on the social
nas duas localidades. O patrimônio histórico e conlicts present in the two scenarios and the local
public policies guided towards the development of
14. “Turismo de natureza representa não somente expe- sustainable economic activities for the environment
riências do mundo selvagem, natural, mas também and local heritage.
atividades que visem minimizar os impactos do visi- keywords Tourism. Environment. Heri-
tante enquanto beneiciam tanto as áreas protegidas tage. Mining towns. Public policies.
quanto as populações humanas vizinhas.” (Tradução
do Autor)

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Encontros cartografados: relexões sobre
encontros entre meninos e educadores de rua

JULIA FRAJTAG SAUMA

resumo Este trabalho tem como objetivo pico de Jorge Amado, Capitães de Areia – que
principal conectar uma pesquisa de campo, sobre destacava a rebeldia e a beleza das relações esta-
os encontros entre meninos e educadores de rua, belecidas nas ruas de Salvador –, até a década de
com perspectivas teórico-metodológicas que visam 1980, com a atuação de ONGs com menores
re-situar a representação etnográica. Para esse im, de rua nas diversas metrópoles do Brasil, a exis-
ofereço um contraste entre recentes análises antro- tência desse grupo de fantasmas sociais nunca
pológicas sobre este tema, em que uma interpreta- deixou de nos lembrar as violências inerentes à
ção é elaborada a partir de termos como família e nossa atual forma de socialidade. Até meados
identidade, e uma análise que parte das relações so- da década de 1990, a atuação de ONGs nessa
ciais que ultrapassam esses conceitos. Desta forma, área era considerada inovadora, fundada pela
proponho tornar um pouco mais visíveis alguns dos transformação e pela resistência. Porém, desde
múltiplos planos sociais que atravessam esse campo então esses primeiros impulsos, constitucio-
de pesquisa e de relações. Este artigo busca elaborar nais e sociais, perderam sua força e, hoje em
uma alternativa para a análise de fenômenos que são dia, em situações de violência urbana cada vez
normalmente deinidos por sua “carência” e esboça, mais assustadoras, os nossos fantasmas urbanos
assim, uma relexão sobre a própria idéia de uma que serviram e servem como objeto de tanto
“realidade” etnográica. barulho continuam a perambular, roubar, vi-
palavras-chaves Meninos de rua. ONGs. ver e morrer nas “pistas”2 das grandes cidades
Antropologia urbana. Etnograia. Verdade. brasileiras3.

Introdução questão que se manifestou durante os esforços para a


quantiicação do “problema” (Cf. Rizzini 1992; He-
cht 1998). Já que este trabalho pretende se prender às
Os chamados “meninos de rua” sem dúvida experiências e opiniões dos atores dentro do campo
constituem um desses temas sobre os quais é, mais do que às dos acadêmicos envolvidos nessa dis-
ao mesmo tempo, muito fácil e muito difícil cussão, e visto que tanto os meninos como os educa-
falar.1 No Brasil, desde o famoso romance utó- dores utilizam a expressão “meninos de rua”, escolhi
manter essa categoria tão polêmica.
2. Os meninos e meninas de rua costumam chamar a
1. Existe uma ampla discussão sobre como denominar rua de “pista”. Todas as palavras que estiverem entre
este “grupo”, sendo que, atualmente, os movimentos aspas ao longo do texto vêm diretamente dos atores
sociais que trabalham com as pessoas que dele fazem que moram ou trabalham no abrigo, podendo ser,
parte preferem chamá-las de “crianças em situação assim, denominadas como categorias nativas – tanto
de rua”, algo que em si mereceria uma análise. Neste dos meninos de rua quanto dos educadores. Os con-
trabalho, a falta de tempo e espaço não permitem tal ceitos em itálico vêm dos autores que inluenciaram
elaboração, mas vale mencionar que um dos grandes este trabalho de diversas formas.
problemas dessa expressão recai sobre a distinção 3. Para uma história mais detalhada do desenvolvimento
entre crianças que moram habitualmente nas ruas e desses movimentos e organizações sociais, cf. Gregori
crianças que simplesmente trabalham nas ruas, uma (2000).

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006


42 | Julia Frajtag Sauma Encontros cartografados | 43

Este trabalho apresenta uma relexão ini- gos contemporâneos, dentro e fora do campo. esta divisão: a lacuna entre aqueles que anali- meninos de rua. Comparando esses agrupamen-
cial sobre alguns dos múltiplos elementos que Penso que essa redução, essa aparente crise e sam a experiência de crianças e adolescentes tos, foi possível reconhecer que há uma signii-
se destacam em um grupo de meninos e edu- a suposta necessidade de revolução resultaram de rua quase como uma realidade cultural e cativa variação em seus modos de se relacionar.
cadores de rua que se encontram diariamente em fragmentações antropológicas que, para aqueles que interpretam a mesma experiência E, o que me parece mais intrigante: essa varia-
em uma praça da cidade do Rio de Janeiro, utilizar os termos de Deleuze e Guattari, mui- como um problema social para o qual a pesqui- ção está diretamente ligada ao estabelecimento
a partir de dados coletados durante dez me- tas vezes reterritorializam-se duramente. Uma sa antropológica pode fornecer soluções. Minha de contatos e de convívio com um contexto de
ses de trabalho de campo desenvolvido entre dessas fragmentações é a divisão entre a an- experiência com meninos e adolescentes que interação especíico (Gregori 2000: 123).
eles. A maioria dos trabalhos desenvolvidos so- tropologia teórica e a antropologia aplicada: o vivem ou transitam pelas ruas do Rio de Ja-
bre esse tema tende a apresentar dados sobre buraco negro e o muro branco do meu campo, neiro indica, é claro, que nada é tão simples e, A meu ver, a simples constatação dos auto-
diversos grupos de meninos e educadores. O uma das rostiicações da antropologia.5 mais do que isso, que essas visões reduzem a ex- res a respeito da convergência dos dois lados
foco deste trabalho sobre um grupo especíico Há muito tempo – desde que iniciei meu periência concreta dessas crianças e adolescen- da moeda não resolve o problema. Essa solução
– e, mais signiicantemente, sobre os encontros trabalho de campo com meninos de rua, por tes a fórmulas unidimensionais: nem a versão descreve a heterogeneidade dos atores muito
desse grupo – visa estabelecer, além de uma vi- volta de 2000 –, pergunto-me como atravessar teórica, nem a versão aplicada permitem-nos supericialmente a partir da diferenciação entre
são mais complexa sobre as relações entre os pensar a complexidade das forças que estão em grupos e entre indivíduos, mas a heterogênese6
atores, uma proposta metodológica potencial- 5. No sétimo platô – Année Zero: Visageité – Deleuze e jogo e, em vez de dar vida à experiência, esta é implícita dentro dos grupos e dos indivíduos,
mente interessante para estudos urbanos, que Guattari exploram a identiicação de duas semióticas: sufocada brutalmente. em suas falas e em suas ações concretas, não
pretende ser iel às mais tradicionais metas an- a da signiicância e a da subjetividade, o muro branco Uma clara indicação dessa limitação apare- é analisada. Duas saídas se apresentam para
tropológicas. O maior objetivo dessa proposta e o buraco negro. Porém, eles também exprimem a ce em trabalhos sobre meninos de rua que não esses autores: no caso de um dado concreto a
é multiplicar o potencial de descrição sobre a clara interdependência entre esses planos e, portanto, conseguem se concentrar em um só grupo (dois ser analisado, a interpretação se baseia em se-
colocam a necessidade de se pensar esse funcionamen-
conexão entre diversos mundos, diversos pla- exemplos recentes são Gregori 2000; Hecht mióticas signiicantes7 – normalmente ligada à
to como um rosto, um sistema muro branco-buraco ne-
nos aparentemente distantes. gro. Esse é um sistema de índice que territorializa, que 1998). A explicação para isso seria a necessida- família e à identidade -, no caso da constatação
dá forma ao signiicado a partir da subjetividade e de de tentar quantiicar a situação, uma prática generalizada de uma falta de coerência nas falas
Princípios teórico-metodológicos que, por função, orienta o signiicado: “Os rostos não sociologizante acompanhada por uma identii- dos meninos e meninas (e mesmo entre educa-
são primeiramente individuais, eles deinem zonas cação imediata do objeto de pesquisa como um
Como fazer antropologia na cidade, nas de freqüência e probabilidade, delimitam um cam- problema social, e, além disso, por uma negação
po que neutraliza de saída as expressões e conexões 6. Em Caosmose: Um novo paradigma estético, Félix Guat-
chamadas sociedades complexas, sem a necessi- da complexidade e dos múltiplos planos que
rebeldes às signiicações conformadas” (1980: 206 tari desenvolve a noção de heterogênese: uma categoria
dade de utilizar tais expressões e as aspas que – tradução da autora). O sistema rosto combinado existem nesse campo de pesquisa – como se, relacionada à de causa eiciente, correspondente à cons-
as acompanham? Será possível continuar com com o sistema paisagem formam os dois dispositivos por ser um tema familiar, os pesquisadores não tituição de universos de referência. Como colocado
os tradicionais padrões metodológicos e teóri- de desterritorialização, horizontal e vertical, que for- soubessem muito bem como conduzir uma pelo autor, a heterogênese é “uma dimensão de produ-
cos, ou será que precisamos de uma revolução çam a reterritorialização de um sobre o outro, sobre análise verdadeiramente antropológica, isto é, ção ontológica que implica que se abandone a idéia de
metodológica? Essas parecem ser algumas das a complementaridade ou sobre a sobrecodiicação. uma análise que se detém na multiplicidade da que existiria um Ser subsumido às diferentes categorias
Guattari sugere que essa máquina abstrata de rostii- heterogêneas de entes (...) Não existe uma substância
grandes perguntas da disciplina. Acredito que socialidade dos atores em questão e que não se
cação entra em jogo em qualquer relação que envolve ontológica única se perilando com suas signiicações
a tradicional noção de crise na disciplina4, usu- uma economia ou organização do poder – do dese- limita à visão dominante dos mesmos. Porém, ‘sempre já presentes’ (...) Para além da criação semioló-
almente ligada a essas questões, tem o efeito de jo – e que essa engrenagem delimita o signiicado, sendo trabalhos antropológicos com base em gica de sentido, se coloca a questão da criação de textura
limitar as experiências concretas de antropólo- neutralizando a “aspereza da alteridade” e reduzindo pesquisas de campo, os autores também colo- ontológica heterogênea” (1992: 88-89). A heterogêne-
a vitalidade humana a uma série de dicotomias (Ibi- cam a necessidade de demonstrar a heteroge- se implica uma dinâmica de constante diferenciação,
dem: 214-215) Aqui, a fragmentação da antropologia neidade dos meninos e meninas de rua, suas seguida por uma necessária singularização em novos
4. Como destacado por Goldman (1994), este é um em, entre muitas outras, uma antropologia aplicada e territórios existenciais, que deine os processos de des-
práticas sociais, suas origens diferentes, sua
tema que percorre toda a história da antropologia, uma antropologia teórica, neutraliza as diversas mul- territorialização e reterritorialização criativas.
desde Frazer, com o desaparecimento do objeto an- tiplicidades que podem, e devem, aparecer na repre- cultura. 7. Aqui as semióticas signiicantes ‘que articulam cadeias
tropológico, até hoje, com o “seqüestro” do estudo sentação antropológica. Assim, um rosto delimitado signiicantes e conteúdos signiicados’ se distinguem
antropológico pelo pensamento pós-moderno. O es- em que tipos de antropologia podem aparecer nega a A primeira implicação importante dessa descri- das semióticas a-signiicantes “que agem a partir de ca-
forço aqui é de tentar incorporar estes movimentos e possibilidade de uma antropologia que possibilite a ção é a de desmistiicarmos a noção corrente deias sintagmáticas, sem engendramento de efeitos de
não simplesmente ignorá-los ou aceitá-los sem restri- suscitação de vários planos de imanência e a comuni- de que existe um comportamento genérico dos signiicação no sentido lingüístico” (Guattari e Rol-
ções. cação entre eles. nik 1986: 317).

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dores), os autores se limitam a observar que o recorrência das descrições de contradição nas Por exemplo, quando consideramos a rela- como também é descrito pela autora, para a
pesquisador tem que aprender a distinguir as falas e ações dos meninos e meninas de rua, ção entre meninos de rua, ou entre educadores maioria desses meninos e meninas, essa viração
mentiras e as fantasias da verdade. segundo os trabalhos de diversos autores, e de rua e os meninos e meninas de rua, a questão é o funcionamento prático de uma vida toda.
pode ser traduzida na seguinte pergunta: já que da família não pode se limitar à idéia de uma Então, por que a experiência de vida deles pode
Acredito que desenvolvi a habilidade de distin- estas contradições são tão normais e fazem par- substituição; esses movimentos são muito mais ser descrita como uma simulação, como algo ar-
guir precisamente quando as crianças estavam te do cotidiano, será que elas não estabelecem complexos, muito mais ricos, e merecem uma tiicial, sem um valor independente? Acredito
recontando fantasias, quando elas estavam fa- um dado signiicativo para análise? Parece-me maior atenção. Um dado que pode ilustrar essa que esse é um problema inerente à tentativa de
lando o que elas achavam que seu interlocu- que a mentira e a fantasia são dados muito in- observação são as usuais interpretações da exis- elaborar uma interpretação da alteridade de re-
tor queria ouvir e quando estavam dizendo o teressantes para serem analisados e acredito que tência de “mães-de-rua” entre meninos e meni- lações entre pessoas, como meninos e meninas
que se poderia chamar de verdade. Mas, como temos que ter mais cuidado com a idéia de es- nas de rua. Esse fenômeno tende a ser pensado de rua. Esse dispositivo analítico não permite
qualquer etnógrafo, eu nunca tive certeza (...) tarmos fazendo antropologia em casa: a partir da idéia de uma simulação ou mimeti- uma descrição ampla dessas relações e tende a
Outras vezes, era impossível desembaralhar os zação do papel familiar de mãe para legitimar jogá-las contra o muro branco, as semióticas
fatos de uma teia de fantasias (Hecht 1998: 12; Se os antropólogos, enquanto antropólogos, es- uma liderança entre as meninas de rua. Nesse signiicantes, que formam as relações sociais
tradução da autora). tão ou não em casa não deve ser decidido pelo sentido e diferentemente dos meninos, as me- com as quais icamos mais tranqüilos, nesse
fato de se chamarem de Malaios, de pertencerem ninas precisariam lançar mão de um código da caso, a família. Assim, noções como simulação
Esta resposta a problemas de campo muito aos Viajantes ou de terem nascido em Essex, mas sociedade para estabelecerem sua autoridade. e substituição são utilizadas para demarcar esta
comuns não me parece satisfatória se aceitar- pela relação entre suas técnicas de organização Esta interpretação não se adéqua bem a meus falta de valor, própria às relações em questão.
mos que o ofício principal do antropólogo é a de conhecimento e o modo pelo qual as pesso- dados de campo: em primeiro lugar porque en- Gregori interpreta a posição “mãe-de-rua” da
descrição etnográica, ou seja, a descrição e a as organizam o conhecimento sobre si-mesmas contrei tanto “pais-de-rua” quanto “mães-de- seguinte maneira: a menina constrói sua posição
apresentação amplas e detalhadas de qualquer (Strathern 1987: 31; tradução da autora). rua” e, portanto, esse fenômeno não se limita através de regras com conteúdos convencionais
objeto de pesquisa8. Quanto ao “problema” a uma questão de gênero. Além disso, ela me (como o de não poder usar drogas, por exem-
apresentado por Hecht – a saber, o das apa- A questão da interpretação de dados concre- parece incompleta na medida em que analisa a plo). Ela exerce o papel de punir os seus “ilhos”
rentes contradições nas falas e ações dos atores tos é um problema um pouco mais polêmico parte família e sociedade9 do dispositivo “mãe- nos casos freqüentes de desobediência. Segundo
envolvidos –, acho improvável que um bom e complicado e, por falta de espaço e de tem- de-rua”, mas deixa de analisar amplamente um a análise da autora, o conteúdo da regra impor-
pesquisador de grupos indígenas possa perse- po, não pretendo desenvolver uma elaboração outro lado desse fenômeno: sua parte “de-rua”, ta, mas não exprime uma crença efetiva, já que
guir tal questão com o propósito de distinguir muito detalhada desse debate. Porém, acredito que é igualmente importante para a produção as próprias “mães-de-rua” não seguem suas re-
o que é verdade e o que é fantasia nas narrativas que uma demonstração do problema, a partir da subjetividade desses atores. gras. Para garantir a eiciência da substituição,
de seus informantes. Dessa forma, a suposta de questões especíicas do campo, pode tornar Por exemplo, para Gregori (2000), as rela- diz Gregori, precisa-se estabelecer a autoridade
familiaridade com o mundo dos meninos de visíveis as diiculdades em questão. ções ativadas por meninos na rua são relações e a legitimidade do papel a partir da punição e
rua prejudica o trabalho do pesquisador – são A família é um dos grandes signiicantes da de sobrevivência, de viração em circunstâncias que, portanto, esta prática ilustra a ixação de
crianças, pobres e sobreviventes – e esse é um antropologia social e, junto com o parentesco, difíceis e, certamente, ela tem razão. Porém, referências em um universo social cujos códigos
problema grave em muitos trabalhos de antro- forma uma base importante para a interpreta- não são reconhecidos publicamente.
pologia urbana. Minha preocupação deve-se à ção antropológica. É claro que em pesquisas 9. Segundo as idéias de Guattari, essas noções seriam Além de congelar relações familiares em um
sobre crianças e adolescentes esse dispositivo algumas das máquinas sociais da representação antro- padrão normativo, vemos que a autora se ixa na
8. Vale notar que o uso dos dois termos descrição e repre- é especialmente forte. Porém, este último não pológica. “A mecânica é relativamente fechada sobre relação dos meninos com a sociedade, mas ela não
sentação segue uma lógica especíica sobre a descrição deve sufocar outros planos, quer dizer, outras si mesma: ela só mantém com o exterior relações per- descreve esse fenômeno a partir da relação entre
etnográica, no sentido em que uma descrição pura relações signiicativas e seus vínculos não so- feitamente codiicadas. As máquinas consideradas em esses indivíduos publicamente desconhecidos e,
de um objeto é impossível e, portanto, sempre re- suas evoluções históricas, constituem, ao contrário,
mente com a falta de uma família tradicional, assim, ela não reconhece a importância dessas re-
presentacional: “O estudo ou representação de outra um phylum comparável aos das espécies vivas. Elas
cultura não é uma mera ‘descrição’ do mesmo jeito mas também com seu ambiente mais imediato: engendram-se umas às outras, selecionam-se, elimi- lações. As descrições antropológicas das relações
em que uma pintura não ‘descreve’ aquilo que está a rua. Para isso, o uso dos conceitos de família nam-se, fazendo aparecer novas linhas de potencia- de rua dessas crianças e adolescentes tendem a
sendo descrito. Nos dois casos ocorre uma simboliza- ou de parentesco, assim como de outros signi- lidades... As máquinas (técnicas, teóricas, sociais, destacar sua qualidade temporária, normalmen-
ção, que está conectada à intenção do antropólogo ou icantes, em uma análise antropológica, precisa estéticas) nunca funcionam isoladamente, mas por te baseada nas falas dos seus informantes tiradas
do artista de representar o objeto no primeiro lugar” ser repensado. agregação ou por agenciamento” (Guattari e Rolnik de entrevistas gravadas. Meninos e meninas de
(Wagner [1975] 1981:11 – tradução da autora). 1986: 320).

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rua, quando entrevistados formalmente, não fa- Segundo a proposta destes autores, esses de “mãe-de-rua” – por uma reterritorialização rua e ONGs – fornece um meio de controlar
lam tanto de suas relações com outros “de-rua”10 movimentos são simultâneos: um depende do lexível na conexão entre relações heterogêneas o encontro com a molecularidade dos meninos
como da importância de ser independente e de outro para sobreviver, para existir. Portanto, onde encontramos o funcionamento de semió- de rua, mas também fornece a visibilidade da
“se virar”. Contudo, durante os dez meses do voltando ao exemplo, no movimento molar, um ticas a-signiicantes. forma heterogenética em que essas relações se
meu trabalho de campo, constatei que, muitas movimento de encontro e visibilidade, temos a Enquanto a “mãe-de-rua” ou o “pai-de-rua” articulam com outras relações para o desenvol-
vezes, essas falas não encontravam total con- gloriicação da mãe tanto nas falas dos meni- têm o papel de proteger e punir, eles também vimento subjetivo dos atores envolvidos. Essa
cordância com as ações concretas dos meninos nos e meninas quanto em sua conexão para a são punidos e protegidos por seus “ilhos- visibilidade se coloca a partir do encontro das
e meninas. Além disso, quando conversavam criação da igura “mãe-de-rua”: uma evidência de-rua”. Assim, o conlito e a facilidade com diversas relações sociais em jogo nesse meio: a
– fora de uma situação de entrevistas – o assun- do uso de semióticas signiicantes. Ao mesmo que os meninos e meninas rompem com suas família é somente uma delas, mas é uma má-
to ao qual eles mais se referiam dizia respeito às tempo, temos um movimento molecular – um “mães-de-rua” não representa simplesmente a quina social especialmente pesada12. Esclareço,
suas relações com seus amigos “de-rua”. Vêem-se movimento de agenciamento e invisibilidade conseqüência de uma substituição ou simulação segundo o trabalho de Guattari, a subjetivida-
logo os problemas de uma pesquisa que não se (pública) – nas ações afetivas deles com suas temporária, mas sim um elemento deinitivo de dos atores no campo é produzida e individu-
detém em um só grupo e que, por isso, se baseia “mães-de-rua” e a rejeição da mãe biológica, da das relações entres esses atores. Brigar com sua ada por agenciamentos coletivos de enunciação; a
sobretudo em entrevistas. casa e de tudo que é representativo disso. Nesse “mãe-de-rua” ou seu “pai-de-rua” não quer di- subjetividade é:
Os meninos e meninas com quem encontro último movimento, a idéia de simulação não zer somente quebrar com uma autoridade, pois
falam constantemente da importância de suas é suiciente, pois, como eles mesmos colocam, essa posição é deinida tanto pela ação e pela O conjunto das condições que torna possível
mães: “mãe só tem uma, tia”. Quando são per- não se trata de uma substituição – eles só têm relação entre os meninos e meninas, quanto que instâncias individuais e/ou coletivas estejam
guntados sobre a sua “mãe-de-rua”, indicam a uma mãe –, mas da criação de um novo pla- pela relação entre esse papel e a “real” posição em posição de emergir como território existencial
diferença entre a mãe biológica e a de rua. Em no de relação. Desse modo, a heterogênese das de mãe ou de pai. Se a “mãe-de-rua” faz algo auto-referencial, em adjacência ou em relação
certos momentos eles gloriicam a mãe biológica, relações vem a funcionar na criação de uma li- de errado nos olhos de seus “ilhos-de-rua”, sua de delimitação com uma alteridade ela mesma
mas, em muitos outros, eles a criticam e guardam nha de fuga de um território já existente – o de posição muda instantaneamente, algo que não subjetiva.
presentes para levar às suas “mães-de-rua”. Como mãe em todos os seus sentidos molares – para a acontece com a mãe ou pai biológico. Além Assim, em certos contextos sociais e semioló-
esses movimentos coexistem? Qual seria o mais produção de um novo território existencial – o disso, romper com uma “mãe-de-rua” ou o gicos, a subjetividade se individua: uma pessoa
legítimo? Seriam essas descrições contradições “pai-de-rua” não signiica deixar de conviver tida como responsável por si mesma, se posi-
de viradores proissionais? São questões difíceis, ciais, em qualquer situação, seguem lexivelmente os com ele ou ela, deixar de se relacionar, como ciona em meio a relações de alteridade regidas
movimentos de fusão e issão – e a comunicação en-
mas, como explicitado por Wagner (1974), não é o caso entre muitos meninos e meninas de por usos familiares (...) Em outras condições, a
tre estes segmentos se faz neste movimento –, sendo
acredito que o papel do pesquisador se deina por esta segmentaridade binária, circular ou linear. Para rua e seus pais biológicos enquanto os meninos subjetividade se faz coletiva (...) o termo “coleti-
uma determinação da realidade, portanto, a per- identiicarmos algumas das patologias do nosso pen- estão na rua. Embora os meninos e meninas vo” deve ser entendido aqui no sentido de uma
gunta mais eiciente seria a primeira: Como esses samento, começamos por identiicar os tipos de seg- falem da maior importância da mãe biológica, multiplicidade que se desenvolve para além do
dois planos funcionam ao mesmo tempo? O que mentação que nos acometem. Em “Micropolitique suas ações concretas demonstram igual impor- indivíduo, junto ao socius, assim como aquém
temos são dois movimentos e acredito que esses et Segmentarité”, o nono dos Mille Plateaux (1980), tância dada às suas relações com as crianças, os de pessoa, junto a intensidades pré-verbais, de-
Deleuze e Guattari começam por binarizar e nos ofe-
se preenchem e se elucidam através das noções adolescentes e os adultos com quem eles con- rivando de uma lógica dos afetos mais do que
recem dois “tipos” de segmentaridade: uma primiti-
de molaridade e de molecularidade desenvolvi- va e uma moderna, uma lexível e uma dura, uma vivem na rua. Dessa forma, a noção de uma uma lógica de conjuntos bem circunscritos
das por Deleuze e Guattari11. molecular e uma molar. Esta dicotomia serve como simulação me parece fraca, pois esta interpre- (Guattari [1992] 2000: 19-20).
salto para sua relexão, que também começa ofere- tação subordina as relações de rua às relações
10. Expressão utilizada por meninos e meninas de rua cendo dois processos, dois movimentos diferentes da de família e, neste sentido, limita a criatividade Guattari sugere que a parte não-humana e
e por educadores, que marca uma distinção com os segmentaridade: a árvore e o rizoma. Acredito que dessas relações moleculares, que são deinidas pré-pessoal da subjetividade é essencial para o
meninos de casa e os infratores. Esta expressão de per- esta conexão serve para chegarmos ao cerne do assun-
por sua lexibilidade. desenvolvimento da heterogênese, na medida em
tencimento enfatiza a necessidade de nos determos to, a árvore não sobrevive sem o rizoma e vice-versa,
mais sobre as relações desenvolvidas na rua e de sois- portanto toda sociedade, bem como todo indivíduo, A importância dada às relações de família que as máquinas de subjetivação – da produção
ticar nossas descrições sobre as relações destes atores é atravessada por dois tipos de segmentaridade, uma – não somente por antropólogos, mas também
com a “sociedade”. molar e uma molecular. Não se pensa em uma dico- dentro do que Guattari chama de CMI (Capi- 12. Algumas das outras máquinas sociais que funcionam
11. Como dizem Deleuze e Guattari, “O homem é um tomia, mas em uma política que é, ao mesmo tem- talismo Mundial Integrado) e, especiicamen- amplamente nesse meio podem ser vistas no uso das
animal segmentar” e a vida é segmentarizada, tanto po, macro e micro, homem e mulher e suas múltiplas te, nesse campo de relações entre população de seguintes noções: “educação”, “delinqüência”, “inclu-
espacialmente quanto socialmente. Os segmentos so- combinações. são social”, “solidariedade”.

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da subjetividade – não trabalham apenas nas re- passar para o funcionamento concreto das di- vez que constituem eixos necessários, ainda como apoio em seu encontro com a molarida-
lações interpessoais como também se colocam versas relações sociais envolvidas no encontro que os extremos de cada um deles tenham suas de apresentada no trabalho de “educação”. A
a partir de máquinas sociais – mass-mediáticas e pesquisado, isto é, alcançar as micropolíticas em potencialidades perigosas: no molar – o muro forma com que essa verdade permeia esse cam-
lingüísticas. Segundo o autor, cada grupo social jogo nesse contexto. Assim, proponho oferecer branco, a falta de criatividade, a redundância; po requer muita atenção, pois essa inluência é
“veicula seu próprio sistema de modelização da uma breve cartograia de minha pesquisa de no molecular – o buraco negro, a loucura, a central na atuação de projetos, governamentais
subjetividade a partir do qual ele se posiciona campo, que tem como objetivo a produção de morte. Toda experiência precisa se reterrito- ou não-governamentais, junto aos meninos e
em relação aos seus afetos, suas angústias e tenta um mapeamento de seus encontros e agencia- rializar, se molarizar, para criar e, ao mesmo meninas de rua. Sem essa força, moldadora e
gerir suas inibições e suas pulsões” (Ibidem: 21- mentos14 sociais. tempo, todo território precisa se desterritoria- delimitadora, a legitimidade desses atores se-
22). Nesse caso, o que acontece quando reuni- lizar, produzir linhas de fuga, se molecularizar, ria impossível e, mais do que isso, o funcio-
mos sistemas de modelização da subjetividade Verdade e mentira – um campo para criar. Apesar das novas relações criadas, namento do encontro entre os meninos e os
heterogêneos em um encontro intenso e mul- cartografado as experiências de rua dos meninos e meninas educadores seria impensável. Se a verdade não
titerritorial? que acompanhei durante os últimos dez meses é oferecida aos perdidos, aos que se desviaram
O projeto de abordagem de rua que é o foco Como dissemos acima, molar e molecu- são muitas vezes violentas e tristes. Se toma- do caminho comum, como encontrá-los? Essa
dessa pesquisa faz essencialmente isso, não so- lar são planos de referência interdependentes, mos como regra absoluta do etnógrafo que a verdade é uma potência rostiicadora da experi-
mente no sentido do encontro antropológico ainda que distintos15. Não se trata, de forma representação da experiência dos nativos deve ência social16.
com os meninos de rua, mas, mais do que isso, alguma, de opô-los como o mal ao bem, uma ser a base de qualquer pesquisa, tanto a idéia Nessa linha, uma discussão mais ampla so-
no encontro molar entre meninos de rua, en- de que os meninos oferecem uma nova e me- bre a constituição dessa verdade molar, a partir
tre os meninos e os educadores, e entre cada desterritorialização do signo signiicante no centro do lhor maneira de viver, quanto a noção de que a de uma análise da noção de moralidade – tema
um desses dois grupos com a assistente social, sistema (1980: 144-47). Nas análises tradicionais do identidade e a família (ou melhor a falta dela) que permeia todas as tentativas de “resgate”17
contexto em questão, a família muitas vezes funciona
com as ONGs, com o governo, com o sistema rege a vida deles, não têm coerência nenhuma. de meninos de rua – é necessária, porém, por
como este centro e as interpretações que dele se se-
capitalista. Não é suiciente identiicar os me- guem prendem as relações analisadas a este signo. Como já indiquei no início do trabalho, a in- enquanto, deixo tal discussão para autores mais
ninos como os pobres, os que sobrevivem, os que 14. Segundo Guattari, “um agenciamento comporta tenção é ultrapassar tanto descrições meramen- aptos (ver Nietzsche [1887] 1998; Donzelot
se viram, e deixar de elaborar o funcionamento componentes heterogêneos, tanto de ordem biológi- te culturalistas quanto aquelas que se ixam na [1977] 1980). Antes de mais nada, também
detalhado – nos micro-planos e nos macro-pla- ca, quanto social, maquínica, gnosiológica, imaginá- pura negatividade da situação, quer dizer, que precisamos reconhecer uma outra verdade,
nos desse dado – como se fosse algo puramente ria” (Guattari & Rolnik 1986: 317). tratam meninos de rua como nada mais do
15. Os planos de referência molar (arborescente, orga-
explicativo de uma situação de origem e como que problemas sociais a serem resolvidos. Por
nizador, signiicante, mecânico, linear) e molecular 16. Ver nota 5.
se não afetasse profundamente o cotidiano dos (rizomático, conectativo, a-signiicante, maquínico, conseguinte, tanto o molar quanto o molecular 17. Resgatar os meninos e meninas da rua é a concep-
atores de diversas formas. superlinear), que Deleuze e Guattari utilizam na des- merecem suas elaborações. ção oicial do trabalho de abordagem de rua. Tanto a
Minha perspectiva se ajusta à tentativa de crição de movimentos e formas relacionais, carregam Como já foi explicitado, a questão da verda- coordenação quanto os educadores usam essa noção,
atravessar os dispositivos usuais da descrição uma qualidade fractal que não permite uma oposição de se coloca de forma instigante neste trabalho. que faz parte de todo um vocabulário descritivo da
para alcançar uma forma de explicitar a com- dualista. Na descrição das multiplicidades que for- Se apreendemos a noção de verdade usual como situação desses meninos como um problema social,
mam o inconsciente, Deleuze e Guattari, distinguem assim como a descrição deles como “crianças em si-
plexidade desses atores, em vez de reduzi-la às inerentemente molar, os atores do campo em
entre multiplicidades molares (extensivas, divisíveis, tuação de rua”, “crianças em risco social”, “crianças
interpretoses e signiicâncias13. Busco, portanto, uniicáveis, totalizáveis, organizáveis, conscientes ou questão se colocam da seguinte forma: os me- socialmente excluídas” e toda uma outra série de
pré-conscientes) e multiplicidades moleculares (libi- ninos são os sem-verdade; os educadores, por expressões que determinam, ou rostiicam, a mar-
13. No quinto platô “Sobre múltiplos regimes de signos”, dinais, inconscientes e intensivas que não se dividem via de seus cargos, são os emissores da verdade; ginalidade dessas crianças e adolescentes e enfatiza
Deleuze e Guattari desenvolvem uma análise de qua- sem mudarem de natureza). Porém, eles advertem a assistente social, assim como a ONG e seus a necessidade de reinserção total dentro das normas
tro sistemas semióticos: o sistema presigniicante, o contra o estabelecimento de uma oposição dualista coordenadores são os produtores e os donos da sociais e de socialidade capitalística: “A marginalida-
signiicante, o contrasigniicante e um possigniican- entre o molar e o molecular, que não seria nada me- de chama o recentramento, a recuperação” (Guattari
verdade. A verdade é um bem importantíssimo
te. Eles identiicam o sistema signiicante, que funcio- lhor do que o dualismo entre o um e o múltiplo da [1977] 1987: 46). No lugar de marginalidade, Guat-
na a partir de signiicâncias e interpretoses ininitas, psicanálise, que eles buscam ultrapassar: “Existem so- para os seus produtores e donos porque ela de- tari propõe a noção de “minoritário”, que, em vez de
como “a neurose fundamental da humanidade”. Um mente multiplicidades de multiplicidades formando ine a existência e a coerência dos mesmos. Para considerar fenômenos sociais, como o dos meninos
sistema semiótico despótico cujo funcionamento não um único agenciamento: bandos em massa e massas os emissores, a verdade é um apoio fundamen- de rua, como uma carência, foca-se na maneira em
permite linhas de fuga positivas, somente negativas, em bando. Árvores têm linhas rizomáticas e o rizoma tal em seu enfrentamento da molecularidade que estas minorias sociais “exploram os problemas
e que se baseia na identiicação absoluta do excluído pontos de arborescência”. (1980: 47 – tradução da e os sem-verdade também utilizam a verdade da economia do desejo (do sistema capitalístico) no
– o “contra-corpo”, aquele que ultrapassa o nível de autora). campo urbano” (Ibidem: 47).

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mais molecular, maquínica18 e a-signiicante: a pode ser alterado ou transferido a uma relação Holbraad desenvolve essa análise a partir de Para melhor pensarmos o uso metodológico
verdade como redeinidora de conceitos. Para tão temporária, tão insegura quanto “mãe-de- sua pesquisa sobre o culto do Ifá, em Cuba, da proposta de Holbraad, voltemos a outra si-
facilitar, utilizaremos o exemplo anterior para rua”. Em Deining Anthropological Truth, Hol- para melhor descrever a maneira que os ba- tuação, em que a noção de verdade tem um lu-
tentar elucidar essa colocação e o problema an- braad (2004) explicita a relação íntima entre a balaôs utilizam a noção de verdade em suas gar central, a saber, a maneira pela qual as falas
tropológico em questão. Os termos mãe e rua alteridade e a verdade, já que a primeira é neces- airmações sobre o caráter infalsiicável dos dos meninos muitas vezes não vão ao encontro
– em seus aspectos molares, como semióticas sariamente deinida pela negação da segunda: pronunciamentos dos oráculos. Mas acredito de suas ações ou das informações obtidas por
signiicantes da família (o privado) e do espaço que podemos utilizar a noção de deinição in- outros meios. Alguns antropólogos adotam a
público – são utilizados criativamente pelos me- Supostamente, se nosso objetivo é a explicação ventiva quando consideramos novas maneiras posição do serviço social em geral que é a de
ninos e meninas de rua no termo “mãe-de-rua” causal ou a interpretação adequada, estamos ba- de utilização de termos ou conceitos comuns. tentar distinguir a verdade da fantasia, ou da
para criar uma nova relação, uma nova sociali- sicamente no negócio de “representar” os con- Esse seria o caso do termo “mãe-de-rua”, pois, mentira. Contudo, enquanto esse método pode
dade. Se pensamos no termo como resultado ceitos e práticas dos outros, que não são somente no ato da utilização desse termo por meninos servir para os problemas muito práticos (mola-
das relações e não o oposto19, no momento em interessantes mas também disponíveis (compre- e meninas de rua, tanto mãe quanto rua são res) de assistentes sociais e educadores – como
que esse novo termo é estabelecido, por novas ensíveis) como negações dos nossos conceitos e colocados a partir de novos sentidos, novas ex- fazer uma visita domiciliar se o menino, um
relações, ele também automaticamente redeine práticas (Holbraad 2004; tradução da autora). periências, novas relações. Assim, nesse plano dia, fala um endereço e, no próximo dia, outro?
os anteriores para os atores em questão, já que descritivo, a proposta de interpretação – tanto –, o trabalho do antropólogo se coloca a partir
as relações de rua mudam as relações de casa O autor defende a necessidade de ir além pela coninação dessa categoria às meninas de de outro problema, a saber, qual é o lugar da
e vice-versa. Para usar uma noção wagneriana, do conceito comum de verdade, que inerente- rua, quanto pela adoção da noção de simulação mentira e da fantasia nas vidas dessas crianças,
no ato de se relacionar, distinções são feitas e mente se opõe à falsidade, para alcançarmos o e, portanto, pela insistência na noção de iden- adolescentes e educadores?
estas fazem aparecer novas categorias. Com objetivo deinidor da antropologia, a saber, a tidade – perde sua eicácia descritiva e repre- A im de esclarecer tal proposta, uma bre-
isso, parece-me necessário procurar a relação representação dos fenômenos que observamos sentativa. ve elaboração do campo em si é necessária. O
ou as relações por trás das distinções que criam e dos quais participamos no trabalho de cam- Vale enfatizar mais uma vez que Holbraad projeto de abordagem de rua que faz o meu
os termos, em vez de os identiicar de saída e, po. O que precisamos, segundo o autor, é um coloca, além de um novo parâmetro teórico, campo atende um grupo de meninos e meni-
assim, molarizar um sentido deinidor de cada conceito diferente de verdade. Para esse im, e uma outra proposta metodológica, segundo a nas que, habitualmente, dorme em um local
termo (Wagner 1974; Strathern 1988). com base na idéia de que a criação de novos qual os pesquisadores devem voltar sua aten- próximo ao centro da cidade do Rio de Janei-
O que isso tem a ver com a verdade? Tudo, sentidos é um aspecto irredutível da vida social, ção para experiências mais luidas e complexas, ro. Atualmente, o projeto funciona com en-
já que a representação de qualquer fenômeno Holbraad propõe a noção de deinição inventi- mais moleculares, do que aquelas por trás de contros diários, de segunda-feira à sexta-feira,
social é necessariamente difícil, como vimos no va que também distingue a noção de deinição noções molares, como a de identidade. O que das 10h00 às 12h30, e, nas terças-feiras, das
trabalho de Gregori, quando a verdade é dei- da noção tradicional de verdade. O autor deine não quer dizer, é claro, que noções molares 10h00 às 16h00. Nos dias de sol esse encontro
nida pela alteridade. No caso citado, a diicul- esse ato-conceito como “um ato-fala que inau- como a de identidade não tenham seu lugar acontece em uma praça pública onde existem
dade começa quando a noção de “mãe-de-rua” gura um novo sentido através da combinação no trabalho antropológico, especialmente ao se três quadras de futebol, árvores com bancos e
é tomada como uma identidade e não como o de dois ou mais sentidos anteriormente desco- considerar a maneira como tais conceitos são mesas na sombra para jogar damas, um par-
resultado de uma relação. Esse ato automati- nexos”: utilizados muitas vezes por nossos informantes, quinho para crianças, uma casinha para o
camente deine a “mãe-de-rua” como diferente criando, assim, o campo em questão. Todavia, guarda municipal (com banheiro e chuveiro)
da mãe e essa alteridade se consolida a partir da Colocado como uma condição para sua própria parece que essas noções têm ocupado, há mui- e um pequeno coreto (que normalmente ser-
noção de simulação. Nessa perspectiva, a rela- deinição, o deinível toma precedência sobre to tempo, um lugar hegemônico em pesquisas ve como dormitório/banheiro para maiores de
ção mãe é absoluta, é um fato concreto que não seus deinidores e, assim, não se pode dizer que antropológicas, e que um equilíbrio precisa ser rua, mas que está sendo utilizado atualmen-
esses últimos inauguram o anterior. Então, uma estabelecido. Além disso, tal esforço também te pelo grupo nos dias de chuva) sob o qual
vez que deinições inventivas são deinidas como envolveria uma reavaliação da maneira segundo os garis da companhia municipal de limpeza
18. Para Guattari, a máquina social funciona a partir de
um agenciamento maquínico com diversas outras má- inaugurações – quer dizer, como invenções de a qual temos analisado noções molares. Quero guardam suas coisas.
quinas sociais, aqui, a verdade, enquanto máquina so- (novos) sentidos –, segue que, diferentemente dizer com isso que ao considerar-se a existência Grande parte do trabalho é realizada na
cial, é agenciada maquinicamente no ato de invenção das deinições verdade-funcionais, deinições de relações moleculares as relações molares são praça. As principais atividades desenvolvidas
do termo “mãe-de-rua”, com a máquina público-pri- inventivas não são reivindicações-da-verdade necessariamente redeinidas e, por isso, preci- são o café da manhã, a higiene, o futebol, o
vado, que é exposto pelos termos iniciais mãe e rua. (Ibidem; tradução da autora). sam ser redescritas. desenho e a confecção de bijuteria – o futebol
19. Ver Strathern (1988).

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atrai a maioria dos meninos. Eles demoram en- Eu estava sentada em um banco, tentando na boca e logo pude reconhecer o thinner, pelo os educadores servem o café da manhã: suco
tre vinte e trinta minutos para andar do local icar à sombra porque, às dez horas da manhã, cheiro, que impregna até a pele dos meninos ou leite com achocolatado e biscoito ou pão
onde dormem até a praça e fazem esta viagem o sol começava a queimar e esquentar a minha e queima seus pulmões e suas mãos. O cheiro com manteiga. Normalmente, todos repetem o
todos os dias, cedo, em baixo do sol forte, mui- cabeça. A praça estava mais ou menos deserta e começou a despertar-me outras sensações, mais lanche. A fome de alguns meninos é interminá-
tas vezes descalços. As crianças, adolescentes e parecia um oásis no meio das ruas. Do raro co- concretas, como se o cheiro do thinner atraves- vel. Eles comem rápido e brigam por quererem
maiores que são atendidos pelos educadores, mércio e dos prédios abandonados que rodeiam sasse o calor do dia e me acordasse. Comecei comer mais, mesmo quando não tem mais co-
formam um grupo muito heterogêneo, em ter- a praça – uma ilha com árvores e lores no meio a perceber mais os detalhes da “ilha” que era mida. No entanto, eles também dizem que não
mos de idade, sexo, origem e hábitos. de um mar de concreto quente –, provinham a praça – o fedor de fezes, a boca de fumo, a icam sem comida porque várias “instituições”
A idade do grupo varia entre 7 e 25 anos as poucas pessoas que passavam ou sentavam- pança do guarda – e, com isso, também via, os ajudam na rua. Eles dizem que recebem
(crianças, adolescentes e adultos), mas também se nos bancos, conversando, lendo o jornal ou pela primeira vez, os corpos, rostos, olhos em- café da manhã, almoço de uma igreja, lanche e
existem bebês e crianças mais jovens, que dor- dormindo. Um guarda municipal sentava per- baçados e sorrisos perdidos dos meninos. jantar de diversas pessoas; o que é conirmado
mem na rua com suas mães. A maioria dessas to do portão principal e garis tiravam folhas do Cada encontro tem uma estrutura. Quando pelos educadores. Porém, estes últimos tam-
últimas está na faixa de 14 a 17 anos de idade. gramado. Quando vi os primeiros meninos che- os educadores consideram que reuniram um bém falam que eles deixam de comer mesmo
É difícil dizer exatamente, mas o grupo consis- gando, ainda à distância, no primeiro momen- bom número de meninos – decisão que tam- quando têm com o que se alimentar, porque
te em, aproximadamente, quatro meninos para to, na forte luz do dia, eles pareciam sombras bém depende daqueles que chegaram, e, ainda, o thinner suprime o apetite. Mas, quando eles
cada menina. A maioria vem do Estado do Rio magras e escuras atravessando as ruas, sombras de os meninos acharem que outros virão – eles param de cheirar, dizem que a fome é desespe-
de Janeiro, muitos da Baixada Fluminense, mas que vinham de todas as direções para repou- começam uma oração. Normalmente um edu- radora. Também há aqueles meninos que gos-
também há meninos e meninas de diversos ou- sarem nos bancos da praça e se recuperarem: cador puxa a oração começando com um curto tam de dar demonstrações do seu autocontrole
tros Estados. O grupo tem um núcleo pequeno um devir-sombra20, um devir-molecular, que se discurso sobre o projeto, sobre algum aconte- para os outros meninos e para os educadores,
que vive na rua constantemente. Mas uma gran- reproduz sem cansaço, sem direção; um bando cimento ou com uma história tirada da Bíblia. e, por isso, chegam falando alto: “Tia, eu só
de parte dos meninos e quase todas as meninas que mina as “grandes forças molares: família, De vez em quando, os meninos também pe- quero um pão e um copo de Nescau”.
passam boa parte do seu tempo na rua e voltam proissão e conjugalidade” (Deleuze & Guatta- dem para falar ou contribuem com o discurso Terminando o café da manhã, os meninos
para a casa da família, ou de algum amigo, du- ri 1980: 285). Quase todos mantinham a mão do educador com exemplos pessoais do tema correm direto para a quadra de futebol e se
rante o im de semana ou quando icam doen- que está sendo tratado. Após esse discurso, a dispõem no jogo em times de cinco pessoas.
tes. Uma vez por semana, a prefeitura também 20. O “devir” está relacionado à economia do desejo: “Os oração consiste em um “Pai Nosso” e uma “Ave Quando são poucos, os educadores também jo-
luxos de desejo procedem por afetos e devires, inde-
faz um “recolhimento” das crianças e adolescen- Maria”: um ritornelo21, com uma força fenome- gam; quando são muitos, a cada partida o time
pendentemente do fato de que possam ser calcados
tes de rua. A maioria já passou por abrigos e sobre pessoas, sobre imagens, sobre identiicações. nal para paciicar os meninos. Após a oração, que perdeu sai e os que icaram de fora formam
os meninos utilizam esses espaços, de vez em Assim, um indivíduo, etiquetado antropologicamen- um novo time. São poucos os meninos que não
quando, para saírem da rua por algum tempo, te como masculino, pode ser atravessado por devires 21. Deleuze e Guattari denominam quatro tipos de ritor- querem jogar, mas sempre há um ou dois. Já as
por diversos motivos. Porém, essa ação voluntá- múltiplos e, aparentemente, contraditórios: devir nelo: “(1) ritornelos territoriais que buscam, marcam meninas raramente jogam bola. Os que icam
ria raramente torna-se uma mudança absoluta; feminino que coexiste com um devir criança, um e agenciam um território; (2) ritornelos de função de fora do futebol jogam vôlei, damas, domi-
devir animal, um devir invisível, etc. Uma língua territorializada que assumem uma função especial no
os meninos e meninas fogem dos abrigos com a nó, bola de gude, fazem bijuteria, desenham
dominante pode ser localmente capturada num devir agenciamento (…o ritornelo dos Amantes que terri-
mesma facilidade com que entram. minoritário” (Guattari & Rolnik 1986: 318) Segun- torializa a sexualidade do amado…); (3) os mesmos, e conversam com os educadores e a assistente
Comecei a acompanhar o encontro en- do Deleuze e Guattari, o devir é necessariamente um quando estes marcam novos agenciamentos, passam social. Estes últimos tentam reconstruir as his-
tre educadores e meninos na segunda semana devir minoritário e molecular: “uma irresistível des- a novos agenciamentos por meio de desterritorializa- tórias de vida dos meninos – seus nomes reais
de março de 2005. Marquei um encontro na territorialização, que anula de saída as tentativas de ção-reterritorialização; (4) ritornelos que colecionam (muitos usam apelidos ou nomes falsos), suas
praça com a assistente social que acompanha reterritorialização edipiana, conjugal ou proissional” ou juntam forças, no centro do território ou para sair idades, suas naturalidades – e, a partir dessas
(1980: 285 – tradução da autora). O devir-sombra do mesmo (estes são refrões de confrontação ou de
os educadores. No primeiro dia cheguei cedo informações, procuram oferecer algum tipo de
dos meninos se refere a seus movimentos entre os ter- partida que às vezes trazem um movimento de des-
demais. As crianças começaram a chegar antes ritórios marcados por eles dentro da cidade, quando territorialização absoluta…)” (1980: 402-3; tradução ajuda às crianças ou adolescentes, tais como:
dos educadores. Vi-os chegando, à distância e, se esforçam para não serem detectados e preferem an- da autora). Aqui a oração aparece como o primeiro documentos, visitas domiciliares, acompanha-
para mim, pareceu claro que se tratava do gru- dar sozinhos ou em grupos pequenos. Este devir se desses ritornelos, como um ritmo de agenciamento mento médico etc.
po que eu estava esperando. Ofereço ao leitor opõe ao devir-menino e ao devir-bando que os fazem territorializante: como um centro paciicante e extre- Enquanto o maior objetivo do projeto é o
uma imagem da chegada desses meninos. aparecer e dominar um determinado território ou mamente frágil no meio do caos no início de cada “resgate individual” dos meninos e meninas,
momento. encontro.

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ou seja, tirá-los da rua, os educadores e a assis- Pai-nosso: 08/06/81 – 24 anos também signiica: continuar a se relacionar com entre eles na rua que os leva a saírem de casa e
tente social sabem que esse é um trabalho mui- Silvio: 22/08/86 – 18 anos os outros menores, não ter que crescer, não ter a passarem as maiores diiculdades, e até mor-
to difícil e, portanto, também lhes oferecem o Gato: 22/09/? – 15 ou 16 anos que mudar ou “tomar uma atitude”, continuar rerem, para estarem juntos: “Porque eu voltei
que é de mais valia: um lugar onde os meninos Pirulito: 22/07/87 – 17 anos a ser um menino de rua. para a rua? Para visitar meus amigos, meus ir-
podem encontrar carinho e amizade. Embora Daniel: 18/03/81 – 24 anos A exemplo dessa necessidade de manter-se mãos, tia”. Impressionante é a quantidade de
esse último aspecto tenha também uma função Tiago: 22/08/80 – 25 anos como um menor, relato a ocasião em que um meninos que estão em casa mas voltam para a
molar de resgatar a auto-estima dos meninos Pedro Bala: 31/12/? – 13 ou 14 anos senhor de mais ou menos 40 anos, morador rua, por alguns dias ou semanas, para visitarem
com o objetivo maior de tirá-los da rua, mole- Chinês: 03/10/79 – 26 anos de rua, veio me pedir uma quentinha no dia seus amigos. Seria fácil dizer que é mais por
cularmente, no dia-a-dia, esses afetos se desen- Charles: 25/12/89 – 16 anos em que estávamos dando almoço aos meninos. causa das drogas. É certo que, em alguns casos,
volvem como base das relações nos encontros. Capixaba: 10/04/84 – 25 anos Respondi a ele que primeiro iria servir comi- esse fator predomina, mas, em muitos outros,
Os meninos expressam enfaticamente que o Paulista: 24/10/90 – 15 anos da aos meninos e que depois eu lhe daria de conheci meninos que não são usuários e que
que os educadores têm a oferecer é felicidade, Gordinho: 12/02/90 – 15 anos comer; em seguida, ele me respondeu: “mas fazem essas “visitas” regularmente. Levando em
carinho e respeito. Como uma menina falou: Sem-Pernas: 02/07/? – entre 15 e 18 anos eu sou menino, tia”. Muitos dos maiores no consideração a importância dessas relações en-
“São poucas as pessoas que falam com a gen- projeto continuam se considerando meninos e, tre os meninos, podemos analisar a semelhança
te da forma que vocês falam, sem preconceito. Em primeiro lugar, percebe-se que, nesse dia, assim, problematizam a linha oicial da ONG entre as datas de aniversário como uma expres-
São poucas as pessoas que não vêem a gente havia uma proporção muito grande de maiores, segundo a qual o projeto tem como prioridade são dessas relações, desse tempo juntos, e, so-
só como meninos de rua, e que não se apro- o que não é recorrente. Além disso, enquanto oferecer serviços exclusivamente aos menores. bretudo, como uma visualização da união entre
veitam, mas tentam ajudar; que fazem coisas eu perguntava sobre os aniversários, o que mais Os educadores lidam com essa diiculdade dia- eles, o devir-bando dos meninos. Para voltar aos
legais com a gente”. me chamou a atenção foi o fato que muitos dos riamente, sabendo que a passagem à maiori- parâmetros teórico-metodológicos anteriores,
Os educadores e a assistente social procuram meninos nos diziam datas parecidas (as que es- dade para os meninos – e, especialmente, para ser menino de rua é uma identidade que os tor-
desenvolver novas atividades para os meninos e tão em negrito). Esses meninos eram os que ti- aqueles que estão na rua desde cedo – não é so- na visíveis para o mundo exterior e eles sabem
meninas. Uma dessas tentativas foi a de pro- nham mais diiculdade em se lembrar das datas mente uma mudança de idade ou identidade, como utilizar essa identidade – para dar medo
mover um dia de celebração dos aniversariantes dos seus aniversários. Eles formavam um grupo mas uma mudança de relações, pois ser maior ou criar pena dependendo do contexto –, mas
de cada mês. Essa comemoração oferece uma coeso, que demonstrava intimidade entre si, signiica ter uma relação diferente com a po- também é um agenciamento coletivo de enun-
situação interessante para retomar a questão da tendo em vista que dispunham de muita convi- lícia, com as ONGs, com o tráico e com os ciação, é a produção de uma subjetividade e
verdade e da mentira. vência, de muito “tempo de rua” juntos. Todos outros meninos de rua. uma deinição inventiva – aqui tanto ser menino
Em um dos encontros, a assistente social, responderam à pergunta individualmente sem Podemos considerar a maneira por que al- como de rua são sentidos desterritorializados e
Luísa, me pediu para ajudar a recolher as datas antes conversar com os outros, com a exceção do guns maiores se declaram mais novos como reterritorializados pelos meninos, em relação.
dos aniversários. Então, escolhemos um dia em João-Grande22 que não pôde nos responder até uma mentira ou fantasia que faz parte de sua O tempo também faz aparecer outra dimen-
que muitos meninos estavam reunidos e, du- que Silvio informou sua data, “só sei que meu eterna viração e sobrevivência. Porém, uma aná- são, a do tato, e, em conexão com isto, a corpo-
rante o jogo de futebol, pedimos a todos que aniversário é um dia antes do que o dele, tia”. lise das datas dos aniversários em si e da seme- ralidade. Para pensar essas questões e, com isso,
dissessem suas idades e datas de nascimento. Sabemos que alguns dos meninos, como lhança entre elas, também fornece outro plano os movimentos molares e moleculares que as
Foi um exercício interessante. Alguns dos me- Sem-Pernas, não gostam de revelar suas idades interessante para a representação desses dados. transversalizam, proponho que pensemos, pro-
ninos respondiam à pergunta diretamente, mas porque querem permanecer como menores de Como já coloquei, os meninos que deram as visoriamente, em dois planos de imanência (de
muitos tinham diiculdade em lembrar as da- idade. Especialmente para aqueles que aparen- datas semelhantes são meninos que moram há vida): o plano estratégico e o plano tátil. O pla-
tas, suas idades e especialmente o ano em que tam isicamente serem menores, apesar de não muito tempo juntos na rua. Também, como foi no estratégico se refere às formas de socialidade
nasceram. A lista abaixo apresenta as datas de o serem, essa é uma posição importante frente explicitado, a passagem do tempo é um dado que se baseiam na aplicação eicaz de recursos
nascimento e as idades dos 16 meninos que es- à polícia, que signiica não ir para a cadeia jun- problemático para os meninos. Além do exem- ou na exploração de condições favoráveis, visan-
tavam presentes naquele dia: to com os adultos. Em outro plano, ser menor plo referido acima, os meninos têm muita dii- do o alcance de determinados objetivos – como
culdade em equacionar suas experiências com o no sentido de uma estratégia para sobreviver
Sérgio: 22/12/? – 22 ou 23 anos 22. Os nomes utilizados aqui são uma mistura de nomes tempo e demonstram a mesma diiculdade em na rua, uma estratégia para sair da rua, uma
Professor: 10/10/90 – 15 anos comuns que coloquei no lugar dos nomes reais e, no falar sobre o futuro. O que importa para eles é estratégia para resgatar da rua ou até uma estra-
João Grande: 21/08/82 – 23 anos caso dos apelidos, usei aqueles criados por Jorge Ama- o tempo em que convivem juntos. É a relação tégia para o agenciamento – e que, portanto,
do em Capitães de Areia (1937).

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utilizam a temporalidade como eixo para mo- lidade (e não a ausência de) e a corporalidade (Deleuze & Guattari 1980: 295; tradução da em questão. A noção de “exclusão social” é
vimento. Por sua vez, o tato é uma experiência inluenciam fortemente o estilo em que eles se autora). um dispositivo rostiicador que funciona para
que ocorre em um certo vácuo temporal, quer relacionam. Já os educadores estariam associa- a identiicação de um “problema” e sua “solu-
dizer, não depende de recursos ou de condições dos ao plano estratégico, na maneira em que, Esse funcionamento vampírico, esse con- ção”. Como foi colocado por Hardt e Negri,
exteriores ao ator, mas da própria sensibilidade grosso modo, eles conceitualizam a razão do seu tágio, destaca um outro elemento central do essas organizações “lutam para a identiicação
de cada ator ou grupo com relação ao seu am- trabalho e os fatores que regem a concepção CMI: a produção da subjetividade. O CMI, de necessidades (...). Por meio de sua lingua-
biente físico ou relacional. Assim, o plano tátil oicial de sucesso em um atendimento: o fu- bem como sua habilidade reprodutiva, depen- gem e de sua ação, eles primeiro deinem o
indica formas de socialidade baseados na cone- turo – planejamento para, auto-estima para, de de um investimento profundo na constru- inimigo como privação e depois reconhecem o
xão criativa de diferentes experiências (táteis e responsabilidade para etc. Porém, o que tam- ção da subjetividade e da lexibilidade, que, por inimigo como pecado” (Ibidem: 55). A maior
estratégicas). Quanto ao campo em questão, o bém interessa é o modo como esses dois pla- sua vez, permite linhas de fuga, que permitem privação é a exclusão, porque só os incluídos,
plano tátil se manifesta na maneira pela qual nos se cruzam molarmente, se agenciam e se a vitalidade dos movimentos sociais... nessa perspectiva, podem ter acesso a tudo
meninos e educadores se relacionam durante articulam molecularmente no encontro entre As ONGs representam uma territoriali- aquilo que o CMI oferece de “bom”: casa, car-
parte de seus encontros – fora de um contexto meninos e meninas de rua e educadores de zação molar desta vitalidade, o que não quer ro, família, emprego. Nesse sentido, a popula-
que depende do posicionamento social (condi- rua. Nesse sentido, as datas de aniversário dos dizer que os movimentos sociais também não ção de rua e, especialmente, as crianças são os
ções) de cada ator (educador, menino, menina) meninos fornecem uma situação interessante façam esse movimento molar, ou que as ONGs mais excluídos, os mais “marginais”, e vemos
e que se direciona sempre a um determinado dessa articulação, já que, no plano estratégico, não contenham elementos moleculares. Como então que caímos em uma das divisões binárias
objetivo –, nas conseqüências dessa situação eles fantasiam sobre suas idades e datas de ani- já foi exposto, esses processos são interdepen- mais clássicas, o bem e o mal, porque, no inal,
(as histórias contadas, as amizades formadas), versário por uma razão muito prática – ser me- dentes. Porém, acredito que, atualmente, as se inclusão é tudo de bom, exclusão só pode
e, também, no modo que esses atores passam, nor quer dizer ser protegido –, mas, em outro ONGs e a proliferação destas indica uma cap- ser tudo de ruim. A legitimação moral do CMI
constantemente e com facilidade dessa forma sentido, o plano tátil também se expressa na tura brutal e muito efetiva para a produção da – como a única opção possível – é concreta e
tátil de se relacionar a uma situação “educativa” maneira em que as datas também descrevem a subjetividade capitalística24. Segundo Hardt & profunda.
muito tradicional e extremamente estratégica. relação íntima entre os meninos. Negri (2001), em uma relexão sobre essa pro- O funcionamento do CMI é sutil porque
Essas passagens dependem da sensibilidade dução social, uma intervenção do Império se ele funciona na produção da subjetividade,
de cada ator, em conexão com outros atores e Encontros Molares – Agenciamentos baseia numa intervenção moral: contudo, seria pura teorização dizer que dentro
outras experiências. Ao mesmo tempo, a cria- Moleculares do funcionamento de ONGs e outras organi-
ção de novos territórios existenciais, em que O que chamamos de intervenção moral é pra- zações, as pessoas, por deinição, atuam para
relações hierarquizadas podem existir ao lado Na análise de Guattari, o Capitalismo ticado hoje por uma variedade de entidades, cumprir todas as necessidades do sistema ca-
de relações cuja natureza nega tais hierarqui- Mundial Integrado (CMI) é diferente de um incluindo os meios de comunicação e organi- pitalístico. Na realidade, esse sistema tem suas
zações, depende da habilidade do ator em, es- capitalismo universal hegemônico ou totali- zações religiosas, mas as mais importantes talvez brechas, especialmente em um encontro tão
trategicamente, utilizar essas percepções para zado. O CMI precisa ser variado e controlar sejam as chamadas organizações não-governa- brutal entre molar e molecular, que se coloca
formar uma nova relação. Assim, o plano tátil e diferentemente cada situação, além disso, ele mentais (ONGs), as quais, justamente por não no encontro entre o sistema capitalístico – as
o plano estratégico podem ser entendidos atra- depende da existência de linhas de fuga para a serem administradas diretamente por governos, ONGs – e os meninos de rua. Muitas linhas de
vés da relação interdependente e fractal entre a constante renovação de sua força. Guattari diz, entende-se que agem a partir de imperativos éti- fuga são criadas e, por mais que estas tenham
percepção e a criação. 23 nos Anos de Inverno, que o CMI é um sistema cos ou morais (2001: 54). a tendência de se reterritorializarem duramen-
Geralmente falando, seria possível identii- vampírico e, portanto, em conexão com o pla- te, existem momentos em que as linhas de
car os meninos como atuando em um plano tô do devir, ele é um sistema contagioso, um O “risco social” enfrentado pelos jovens em fuga carregam o potencial de escapar ao muro
mais tátil, no sentido em que a anti-tempora- sistema molecular. questão é o risco de exclusão de um sistema branco e ao buraco negro. Portanto, as ONGs
social – o CMI – e é fundamental entender o também carregam um potencial heterogênico.
23. A corporalidade é um tipo de experiência particular- O vampiro não se ailia, ele contagia. A diferen- funcionamento dessa perspectiva: o signiicado Esse potencial se revela na maneira em que os
mente apto para uma descrição da tatilidade, porém, ça é que o contágio, a epidemia, põe em jogo é muito amplo e depende muito do contexto atores se conectam, tanto meninos quanto edu-
vale enfatizar que não se deve pensar que a tatilidade termos completamente heterogêneos: por exem- cadores, e tanto em suas relações interpessoais
depende da corporalide – a tatilidade não é puramen- plo, uma homem, um animal e uma bactéria, 24. Guattari utiliza o conceito ‘capitalístico’ para enfati- quanto com relação à situação social em que
te física e também se manifesta através de outros sen- um vírus, uma molécula, um micro-organismo zar a maneira em que o CMI depende da construção eles se encontram.
tidos. de subjetividades.

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Cada um dos meninos e meninas de rua e Maria foi para a rua com sua mãe, quatro Fernando – que também foi um dos fundado- passei por isso. Tudo tem sua teoria e sua práti-
dos educadores tem suas histórias e suas experi- irmãs e dois irmãos, aos seis anos de idade, res da ONG para a qual ela trabalha atualmen- ca, minha experiência de rua foi a prática, aqui
ências que repercutem no projeto de diferentes após a separação dos pais, situação que deixou te – viu que ela tinha uma vocação para ajudar é a teoria para mim.
maneiras, segundo as relações que os meninos a mãe e as crianças desabrigadas. Sua mãe ain- os meninos e meninas e sugeriu que ela come-
estabelecem entre eles, com os educadores e da conseguiu alugar um barraco em um bairro çasse a aprender o cargo de educadora. Ela diz Maria sabe mais do que ninguém das dii-
comigo, claro. Contudo, certos personagens longe do centro do Rio de Janeiro, mas, nas que uma das razões pelas quais ela se interessou culdades da vida na rua, mas também ressalta
parecem se conectar mais com minhas atuais idas e vindas da casa para a rua (onde ela ven- por esse cargo foi por ver educadores fazerem e que certas atitudes são difíceis de encontrar
relexões, por motivos que logo se tornaram dia doces), eles acabaram perdendo o barraco e falarem coisas que ela não achava certo quando fora da rua:
óbvios. Nesse momento, eu lhes apresento seus pertences. Logo que começaram a morar ela era menina de rua:
duas dessas pessoas: Pedro Bala (13 anos), me- na rua, o irmão mais novo de Maria foi leva- Você pode estar dormindo debaixo de um via-
nino de rua; e Maria, educadora e ex-menina do por um casal – ela diz que, na época, não A pior coisa que se pode falar para um desses duto com outra pessoa que você não conhece
de rua. A partir de uma breve descrição desses existiam termos para se dizer que ele havia sido meninos é que não tem mais jeito. Quando eu e que está na mesma situação que você, mas,
atores e da maneira pela qual eles se relacionam seqüestrado – e foi criado por outra família. Ela era menina de rua eu era muito danada e toma- mesmo assim, o pouco que ela tiver ela divide
e se conectam com os diversos elementos do e suas irmãs só reencontraram este irmão mui- va muitas drogas. Eu ouvi educadores falarem com você. Enquanto tem muitas pessoas que
campo, pretendo esboçar uma visão mais clara to tempo depois, quando ele já era adulto. O que não tinha mais jeito para mim e sempre têm condições muito melhores, que não te dão
das idéias colocadas neste trabalho. outro irmão mais velho morreu “por causa do pensava que se eu fosse educadora não faria isso. nada. Esse é o bom da rua, são as pessoas e a
Os três atuais educadores sociais (título oi- sofrimento que ele passou na rua”. Maria pas- Sempre tem jeito, ainda mais quando se fala de convivência com elas.
cial) do projeto em que realizei a minha pes- sou a ser responsável pelas suas quatro irmãs, crianças.
quisa de campo são ex-beneiciários da ONG já que a saúde de sua mãe também começou É evidente que a vida de Maria revela mui-
que inancia o projeto e todos ainda fazem a ser prejudicada por viver na rua. Ela diz que Maria airma que para quem já passou por tas “conquistas”: o fato de ter tirado sua família
parte de outro projeto que visa fornecer “cida- foi “resgatada” da rua, por outro projeto que isso é mais fácil entender o que os meninos da rua, de ter conseguido sua casa, de seguir
dania” através de seus trabalhos. Daniel nunca trabalhava com meninos e meninas de rua, na pensam, como e porque eles reagem: com seus estudos e de “dar condições” a seu
foi “de-rua”, mas vem de uma comunidade-fa- época, no centro do Rio de Janeiro. Também ilho. Maria fala da diiculdade que teve em
vela da Zona Sul do Rio de Janeiro. Samuel já era um projeto de abordagem através do qual, A rua foi uma faculdade para mim. Para quem largar a rua e mudar de vida e de atitude. Po-
morou na rua, mas não se considera como “ex- após muito tempo e muitas “conquistas”, ela já viveu isso, é mais fácil entender a maneira rém, também podemos dizer que, por mais que
de-rua”, mas como “ex-infrator” – por razões conseguiu sair da rua. Começou a estudar e, em que esse meninos e meninas são violentados ela tenha saído da rua, as condições em que ela
que não tenho espaço de elaborar no presente para que tivesse uma ocupação e, assim, icasse de todas as formas, não só de forma física, mas saiu também são muito especiais. Maria não é
trabalho. Ele foi “acolhido” pela ONG e atu- fora da rua, ganhou uma “função” dentro do mesmo no olhar, na falta de respeito, no fato mais de-rua, mas seu relacionamento com os
almente também coordena uma escolinha de projeto. Mas suas irmãs e sua mãe continuavam de você não ter onde chamar de casa ou para- meninos e as meninas de-rua continua. Essa
futebol nos ins de semana, inanciado pela morando na rua. Foi só depois que Maria falou deiro, porque quando você acorda de manhã as possibilidade de manutenção de vínculo, nes-
mesma ONG, em um bairro no subúrbio do que não conseguia sair da rua sem sua família pessoas te expulsam e jogam um balde de água ses termos, não é comum. O encontro molar
Rio de Janeiro. Maria morou durante cerca de que o projeto levantou dinheiro e comprou um em você. de Maria com a ONG, que lhe ofereceu sua
dez anos na rua, no centro do Rio de Janeiro, barraco numa comunidade-favela na periferia saída de uma vida violenta e difícil, tanto isica-
e se considera “ex-de-rua”. Atualmente, além do Rio de Janeiro. Nessa ocasião ela tinha de- Maria fala que as pessoas que não conhe- mente quanto conceitualmente, proporcionou
de trabalhar no projeto de abordagem de rua, zesseis anos de idade e, logo que se mudaram cem os meninos não sabem de suas vidas e nem condições para que ela continuasse a se relacio-
ela também cumpre diversos papéis em outros para lá, sua mãe faleceu. Maria ainda mora no querem saber; dão dinheiro, mas querem dis- nar com os meninos e meninas que icaram na
projetos da ONG. Dos três educadores, o úni- mesmo bairro. tância: rua – não os da sua geração25, mas a dos atendi-
co que chegou ao ensino superior foi Daniel, Quando Maria saiu da rua, uma de suas pri- dos pelos projetos de abordagem – e, também,
que atualmente cursa Serviço Social em uma meiras “funções” dentro do projeto, que a aten- Comida eles arrumam em qualquer lugar, mas com os meninos e meninas com os quais ela
universidade particular, inanciado pela mes- dia na época, foi como auxiliar de educação em carinho e amor, tocar e ser tocado, isso é mais
ma ONG. A formação deles como educadores uma casa. Ela organizava atividades para meni- difícil e é isso que a gente dá a eles. E aqui você 25. “Dos que icaram na rua, muitos já morreram, muitas
sociais se baseia em cursos informais de curta nos e meninas de rua durante o dia. Maria diz tem que saber com quem você trabalha, você é meninas viraram prostitutas, outros conseguiram um
duração. que um educador e coordenador do projeto, agredido, é um trabalho difícil. Eu sei porque eu barraquinho, casaram e estão trabalhando, mas além
dos educadores vejo eles pouco e somente por acaso”.

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conviveu na rua e que tiveram a mesma opor- para a criança. Ao encontrá-la, além das roupas, educadores de rua esses dois planos aparecem e, causa de sua situação extrema – Pedro e Ander-
tunidade que ela (Maria parece conhecer todos ela também deixou um pouco de dinheiro e um assim, eles fazem funcionar e aparecer a potên- son são dois meninos que perturbam muito os
os educadores de rua da cidade) e organizações cartão telefônico. “Uma pessoa não deixa de ser cia de redundância, de loucura, de morte e de educadores e a função molar do projeto porque
e coordenadores (antigos educadores) que tam- um atendido nosso só porque saiu da rua”, ela criatividade, tudo ao mesmo tempo. eles não acreditam que os meninos tenham uma
bém a atenderam quando era menina de rua. me disse na ocasião. Certamente, essa atitude é Pedro Bala tem mais ou menos treze ou qua- saída. De fato, apesar da gozação dos meninos,
Essa situação foi estimulada por Maria da estimulada até um determinado ponto, o que torze anos de idade. Ele mora na rua desde os 5 Pedro e Anderson despertam muita simpatia
mesma maneira intensa e tátil com que ela se se vê na maneira pela qual ela foi atendida, mas ou 6 anos de idade. Sua mãe também morou na dentro do grupo e até as meninas de rua tentam
relaciona com os outros e resultou em uma Maria se ressente que as coisas tenham mudado rua durante muito tempo. Atualmente ele tem sugerir a Pedro que ele deve conversar com sua
rede de relações impressionante, pois – além e por isso se esforça para manter sua indepen- pouco contato com sua mãe, que mora em um mãe, mas ele se recusa.
das relações do passado, no antigo projeto que dência da ONG e de qualquer outra pessoa. pequeno barraco em um antigo galpão abando- Nos encontros, Pedro Bala se faz sempre
a atendeu, e com todas as pessoas com quem Maria se orgulha por não ter que, isicamente, nado onde cerca de 30 famílias construíram suas notar em função da maneira como se relacio-
ela conviveu naquela época – Maria também se depender de ninguém: “A única coisa que eu pequenas casas de madeira e papelão, ao lado de na com todos, tanto educadores, quanto me-
relaciona ativamente com os meninos e meni- não sei fazer é mexer com computador, mas uma das novas e enormes construções laranjas do ninos. Ele fala pouco, a não ser quando está
nas de rua que ela atende no projeto de abor- isso eu também vou aprender”. prefeito César Maia. Ele tem um irmão mais ve- brincando com alguém no futebol. Mas ele
dagem atual. A forma como Maria pensa suas relações, lho, Anderson (de 25 anos), que também mora abraça, morde, beija e belisca o tempo intei-
Ela baseia muitas de suas avaliações sobre os tanto com os meninos como com os outros na rua há muito tempo e que participa dos en- ro. A relação com o Pedro é intensa e acontece
meninos e outras pessoas no modo como eles educadores, a assistente social e os coordena- contros regularmente, mas, atualmente, ele está quase completamente a partir do corpo. O que
olham e se movem: “eu sei quando um menino dores, e a maneira como ela age nessas relações icando mais tempo na casa de sua mãe. Os dois ele mais gosta de fazer nos encontros, além de
quer falar mas não sabe como, pelo seu olhar, – através do toque, do controle da distância fazem parte de um núcleo estabelecido dentro jogar futebol (ele é um artilheiro e goleiro ta-
pela sua forma de se mexer”. Esse modo ilimita- física, de um olhar ou sorriso, da ausência de do grupo maior de meninos e meninas que se lentoso), é icar pendurado no pescoço de um
do e, por isso, molecular de se relacionar, tende um limite de relação – é indicativo daquilo que reúnem com os educadores diariamente. Os ou- educador ou menino, mordendo, beliscando e
a entrar em conlito com a visão mais “prois- nomeio de um plano tátil de relacionamento, tros meninos, no entanto, também costumam beijando. Ele nunca freqüentou a escola. Assim
sional” da assistente social que critica o fato de um agenciamento molecular de luxos hetero- se diferenciar dos dois irmãos por serem mais como Anderson, ele aprendeu na rua a ler um
Maria não conseguir romper relações com me- gêneos. Porém, também é importante destacar escuros e por terem uma família visivelmente pouco e a contar. Diferentemente de seu irmão
ninos e meninas que já foram “resgatados” pela o plano estratégico: no modo como ela airma muito pobre. Todos conhecem a mãe dos dois e de todos os outros meninos do grupo, Pedro
organização, mas que continuam a pedir apoio. sua independência e auto-suiciência, no jei- irmãos, que, segundo os meninos, é alcoólatra nunca usou drogas e nunca volta para casa. A
Os meninos tendem a ligar para a Maria antes to assertivo com que ela se relaciona com os e costuma procurá-los onde os meninos costu- pista é o reino de Pedro Bala, ele passeia pelas
de ligar para a assistente social ou para os coor- outros e nas suas falas a respeito de como ela mam dormir. A maioria dos meninos vem de ruas, sozinho ou com seus amigos. Ele degusta
denadores. Um exemplo foi o caso de Regina, teve que ser “resgatada” da rua – “eles me mos- famílias de baixa renda da Baixada Fluminense e todos os prazeres e sofrimentos que as ruas do
uma ex-menina-de-rua que foi atendida pela traram quem eu era com um espelho e, assim, não do centro do Rio de Janeiro. A visibilidade Rio de Janeiro têm a oferecer. Ele também é um
ONG no passado e que recebeu um barraco levantaram minha auto-estima”. Movimentos da situação familiar de Pedro e Anderson parece observador astuto e suas observações se molari-
para ela e seus cinco ilhos nesse atendimento. molares e moleculares funcionam no proces- diferenciá-los. Pedro Bala raramente falta aos en- zam em seus lindos desenhos e sob a forma de
Recentemente ela engravidou novamente, mas so de deinição inventiva (que ao meu ver não contros com os educadores que têm um carinho agressão verbal e física. É difícil imaginá-lo fora
a criança nasceu prematura de quatro meses e se restringe somente a conceitos ou palavras, muito especial por ele, mas ao mesmo tempo da rua e a rua sem Pedro Bala. Os educadores
foi incubada. A primeira pessoa para quem ela como também se desenvolve na forma pela todos (educadores e meninos) identiicam Pedro identiicam essa situação e a maior frustração é
ligou, a cobrar, do hospital, numa sexta-feira, qual os atores se relacionam) simultaneamente como um menino que perturba muito – ele está não ter o que oferecer a um menino como ele,
foi para Maria, pedindo companhia e ajuda, nas ações e nas falas de Maria. sempre brincando e provocando o grupo como além de muito carinho.
pois, ela não tinha dinheiro nem roupas. A li- Os meninos e meninas de rua que conhe- um todo. Nessas situações, os meninos tendem Pedro, sua maneira de se relacionar e vi-
gação caiu sem que Regina falasse o nome do ci no projeto de abordagem apresentam esses a chamar a atenção de Anderson para contro- ver, pode ser muito bem considerado como
hospital em que ela estava, Maria passou o seu mesmos movimentos: o plano tátil, muitas lar seu irmão. Em outras ocasiões mais sérias, os o exemplo por excelência do plano tátil. Sua
im de semana e feriado procurando a menina vezes, parece escamotear o plano estratégico; meninos tentam bater em Pedro, mas ele é mui- corporalidade e espontaneidade indicam isso
nos hospitais públicos da Baixada Fluminense o molecular parece afogar o plano molar, mas to rápido e ao mesmo tempo Maria diz que os e, com certeza, seria difícil encontrar tantos
e do Rio de Janeiro para levar roupas para ela e em seus encontros altamente molares com os outros meninos “têm pena do Pedro Bala”, por elementos desse território como encontramos

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em suas ações. Porém, sua fala e sua identii- Cartographic meetings: relections HARDT, Michael & NEGRI, Toni. 2001. Império. Rio Problems with Women and Problems with Society in
cação absoluta com a rua, que também se evi- on meeting between boys and street de Janeiro: Record. Melanesia. Berkeley: University of California Press.
HECHT, Tobias. 1998. At Home in the Street. Cambridge: WAGNER, Roy. 1974. “Are there social groups in the
dência na sua total lealdade aos educadores e educators
Cambridge University Press. New Guinea Highlands?” In: M. J. Leaf (ed.), Fron-
aos encontros com eles, demonstra a maneira HOLBRAAD, Martin. ‘Deining Anthropological Tru- tiers of Anthropology. New York: D. Van Nostrand.
com que o plano estratégico funciona em seus abstract his work has as its objective the th’. Paper for Truth Conference, Cambridge, September _____________. [1975]. he Invention of Culture. Chi-
relacionamentos e em suas experiências de rua. connection between a ieldwork about the meet- 2004. Disponível em: http://abaete.wikicities.com/ cago: he University of Chicago Press, 1981.
Uma indicação desse plano molar é a maneira ings between street children and educators and wiki/Deining_anthropological_truth_%28Martin_
como, apesar de todas as suas brincadeiras, Pe- theoretic-methodological perspectives that aim to Holbraad%29
relocate ethnographic representation. For this end, NIETZSCHE, Friedrich. [1887]. Genealogia da Moral: Agradecimentos
dro é um dos meninos que mais leva a sério o
Uma Polêmica. São Paulo: Companhia das Letras,
momento de oração e o respeito pelos educado- a contrast is ofered between recent anthropological
1998.
res – tudo que ele parece querer é se agenciar. analyses about this theme, in which an interpreta- A Marcio Goldman, pela orientação sempre
RIZZINI, Irene et alli. 1992. Childhood and Urban Pov-
Pedro Bala é independente, foge das triste- tion is elaborated through the use of terms such as erty in Brazil: Street and Working Children and their inspiradora; a Luciana França, Virna Plastino e
zas que encontra na casa de sua mãe. Anderson family and society and an analysis that begins with Families. Florence: UNICEF ICDC. Camila Medeiros Pinheiros, pelas revisões; aos
nunca consegue convencer seu irmão a voltar the social relations that run through these terms STRATHERN, Marilyn. 1987. “he Limits of Auto-An- educadores e aos meninos e meninas pelas li-
and beyond. As such, an attempt is made to elicit thropology”. In: Anthony Jackson (eds.), Anthropology ções e pelo carinho. Este trabalho é dedicado
para o pequeno barraco que sua mãe oferece
at Home. Cambridge: University of Cambridge Press. aos meninos, e amizades, que perdemos e que
como alternativa. Apesar de suas tentativas de the multiple social planes and relations that cross
___________________. 1988. he Gender of the Gift:
se agenciar com o exterior (da rua), Pedro faz this theme. his article tries to elaborate an alterna- recebemos nesse último ano.
sua vida inteiramente na rua, porque a vida tive for the analysis of phenomena that are normally
que ele conhece e que ele criou está na rua. deined by their “lack of…” and thus outlines re-
Sua afetividade com outros meninos e meni- lections about the very idea of one ethnographic
autor Julia Frajtag Sauma
nas, com os bebês das meninas de rua e com “reality”.
Mestranda em Antropologia Social / MN-UFRJ
os educadores indica seu território existencial. keywords Street children. NGOs. Urban
A molecularidade de suas relações se reterri- anthropology. Ethnography. Truth.
Recebido em 15/02/2006
torializa na rua e, por enquanto, somente na
Aceito para publicação em 25/07/2006
rua.
A situação dos meninos e meninas de rua Referências bibliográicas
que conheci nesses últimos dez meses é difícil
e violenta. Ela não representa de forma algu- AMADO, Jorge. [1937]. Capitães de Areia. Rio de Janei-
ro: Record, 1991.
ma uma realidade utópica. Ao mesmo tempo,
DELEUZE, Gilles & GUATTARI, Félix. 1980. Mille
não deixa de ser palco para uma criativida- Plateaux: Capitalisme et Schizophréne. Paris: Minuit.
de que revela formas de relacionamento com DONZELOT, Jacques. [1977]. A Polícia das Famílias.
os quais talvez tenhamos muito a aprender. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1980.
Nessa linha, o trabalho que continuo a de- GOLDMAN, Marcio. 1994. Razão e Diferença: Afetivi-
senvolver tem como uma de suas motivações dade e relativismo no pensamento de Lévy-Bruhl. Rio de
Janeiro: Grypho.
principais um desejo de afetar os leitores,
GREGORI, Maria Filomena. 2000. Viração: Experiên-
sejam eles antropólogos, outros acadêmicos cias de meninos nas ruas. São Paulo: Companhia das
ou pessoas que se interessam por esses ato- Letras.
res, por razões proissionais ou não, da mes- GUATTARI, Félix. [1977]. Revolução Molecular. Pulsa-
ma maneira como fui afetada pelas amizades ções Políticas do Desejo. São Paulo: Brasiliense, 1987.
que esses meninos, meninas e educadores me ___________. 1986. Les Années d’Hiver. Paris: Barrault.
___________. [1992]. Caosmose: Um novo paradigma es-
ofereceram durante meu tempo de pesquisa
tético. São Paulo: Editora 34, 2000.
de campo. GUATTARI, Félix & ROLNIK, Suely. Micropolítica.
Cartograias do Desejo. Petrópolis: Vozes, 1986.

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Cantoria de Pé de Parede: a atualização da
cantoria nordestina em Brasília

PATRÍCIA SILVA OSÓRIO

resumo Formada por um contingente mi- uma enorme invasão, resultado da destruição
gratório bastante signiicativo, notamos na dinâmi- de antigos acampamentos era transferida para
ca urbana da cidade de Brasília a presença de grupos uma área nas proximidades de Taguatinga. As-
que atualizam manifestações culturais identiicadas sim nasce a Ceilândia, conhecida na época pelas
com seus contextos de origem. Este artigo se ocu- siglas CEI, Centro de Erradicação de Invasões.
pa de um desses grupos, os cantadores nordestinos A CEI se transformou na residência de muitos
– também conhecidos como repentistas – e de um trabalhadores nordestinos da construção civil.
evento em particular, a Cantoria de Pé de Parede. A Ceilândia é o local apontado pelos can-
Analisando o cenário no qual a manifestação é atu- tadores como sendo um reduto da cantoria
alizada, as formas poéticas utilizadas, a importân- nordestina. Nos inais dos anos sessenta (nas
cia da comensalidade e da idéia de conterrâneo, o imediações do que hoje é o centro comercial da
objetivo é indicar algumas facetas do modo como cidade), os encontros eram feitos no “Bar do
esses poetas populares constroem imagens acerca da Galego”. Após alguns anos de funcionamento,
cantoria, da tradição, de Brasília e do Nordeste. o estabelecimento mudou de proprietário e foi
palavras-chave Cantadores nordestinos. renomeado como o “Bar do Gouveia”, mas os
Performance. Tradição. Pertencimento. encontros não pararam. Atualmente, o ponto
de encontro da cantoria nordestina não é nos
Em 1957, quando a nova capital federal era bares. Foi construído um local especíico para a
formada pelo Núcleo Bandeirantes e por qua- divulgação da cantoria: a Casa do Cantador.
torze acampamentos, foi realizado um primeiro Existem outras Casas do Cantador dis-
recenseamento que indicava a presença de qua- tribuídas pelo Brasil: Teresina, São José do
tro mil pessoas. O contingente populacional Egito, Campina Grande, Rio de Janeiro, etc.
compunha-se basicamente por trabalhadores Da mesma forma que a Casa do Cantador na
não qualiicados (cujas procedências eram pre- Ceilândia, elas surgiram com o objetivo de di-
dominantemente dos Estados de Goiás e Minas vulgar e manter manifestações culturais ligadas
Gerais) que vinham trabalhar na construção ci- à literatura de cordel e à cantoria nordestina.
vil (Sousa 1983: 34). Em 1958, chegaram cerca No entanto, a Casa do Cantador localizada no
de cinco mil nordestinos, impulsionados pela Distrito Federal apresenta uma particularidade
grande seca que assolava a região Nordeste. À frente às demais: ela é uma instituição pública.
medida que crescia a população, aumentava o Financeiramente, a Casa depende exclusiva-
estabelecimento de moradias por invasão. Vi- mente das verbas liberadas pela Secretária de
sando solucionar o problema habitacional da Cultura do Distrito Federal. Se por um lado tal
nova capital, surgem as cidades-satélites: em peculiaridade pode implicar no enfretamento
1958, Taguatinga; em 1959, Sobradinho; em de sérios problemas inanceiros, vivenciados
1960, o Gama (Ribeiro 1982: 119). Em 1971, constantemente pela instituição, por outro

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lado, o fato de ser uma entidade pública signi- mesmo arquiteto que projetou Brasília. Foram airmação e legitimação de um lugar dentro da de uma nova imagem dessa manifestação cul-
ica muito para os cantadores nordestinos em os cantadores que, unidos e mobilizados, ize- cidade de destino (op. cit.: 64). tural e de seus promotores.
Brasília. ram a reivindicação ao Governador do Distrito A Cantoria de Pé de Parede é o principal Por ser um evento especial, a Cantoria de
O “mito” de fundação da Casa do Canta- Federal para a construção da Casa. A Casa do evento da Casa do Cantador consagrado à atu- Pé de Parede é caracterizada por uma forma es-
dor na Ceilândia marca o ano de 1985 como Cantador é apreendida como uma conquista. alização da cantoria nordestina na capital fe- pecíica. Ela é também um ato performático.
o pontapé inicial para a construção da entida- A ligação com o poder público assume um lu- deral. Analisar esse evento nos direciona para Analisar uma performance é voltar a atenção
de. Em 1985, aconteceu um Festival de Re- gar importante na forma como os cantadores a relexão de temas relativos à reconstrução ao poder simbólico da comunicação humana.
pente em Brasília, organizado pela Associação constroem a instituição. O fato de ser uma das idéias do migrante nordestino e da cantoria De acordo com Victor Turner (1982), a co-
de Moradores da Ceilândia. Os cantadores instituição pública sugere um reconhecimento nordestina, e para as estratégias de inserção dos municação simbólica não se limita às palavras.
do Nordeste se uniram aos que aqui estavam formal por parte das instâncias administrati- cantadores e da cantoria nos grandes centros Cada cultura usa seu repertório sensorial para
e foram à residência do então Governador do vas e políticas. O relato de fundação da enti- urbanos. transmitir mensagens. Assim, gesticulações
Distrito Federal, José Aparecido, reivindicar a dade faz parte de todo um contexto, acionado Em todas as sociedades existem eventos que manuais, expressões faciais, posturas corporais,
construção da Casa do Cantador. A idéia era pelos cantadores, que pretende ixar jogos de podem ser reconhecidos como rituais por serem respirações, padrões de dança e movimentos
construir um espaço para hospedar cantadores intenções. O que denominamos “jogos de in- considerados especiais (cf. Tambiah 1985; Pei- sincronizados nos dizem muito sobre seus exe-
nordestinos de passagem pela cidade, além de tenções” corresponde às expectativas desses mi- rano 2003). Atualmente, a antropologia argu- cutores. O que o autor denomina “Antropolo-
ser um local para a realização de grandes festi- grantes; aos processos de autoconstrução de si menta em prol de uma deinição etnográica de gia da Performance” tem como objetivo trazer
vais e festas ligadas ao cordel e ao repente. No mesmos como nordestinos e como artistas; aos ritual, apreendida pelo pesquisador em campo, os dados/atos em sua plenitude, onde desejos
ano de 1986, a Casa do Cantador foi inaugu- signiicados de estar em Brasília; às adaptações junto à realidade observada. Cabe ao pesqui- e moções, estratégias pessoais e coletivas, situ-
rada pelo Governador e pelo Presidente da Re- e inovações que fazem no novo cenário; e ao sador desenvolver a capacidade de apreender ações de vulnerabilidade, cansaço e erros são
pública, José Sarney. que selecionam em seu repertório tradicional o que os nativos estão indicando como sendo levados em conta (op. cit.: 13). Não pretendo
As dependências do prédio são amplas. No para a exibição pública. Estas são as questões único, excepcional, crítico e diferente (Peirano trazer aqui essas idéias com o objetivo de em-
térreo, aniteatro, cozinha, dois banheiros, salas que analisaremos nas próximas páginas. 2003: 09). Na esfera da Casa do Cantador, o preender uma possível Antropologia da Per-
para a diretoria, secretaria e biblioteca. No an- que me era indicado como sendo especial era a formance. Os estudos de performance não são
dar superior estão localizados os quartos e ba- Cantoria de Pé de Parede: o cenário, Cantoria de Pé de Parede. Sendo assim, tomo utilizados com o propósito de contribuir para
nheiros destinados aos cantadores em trânsito as formas poéticas e outros ingredien- as noites de cantoria como o rito por excelência uma discussão teórica sobre o tema, mas ape-
que se hospedam na Casa. O prédio da sede tes do rito da Casa do Cantador. nas como um instrumento metodológico que
da Casa do Cantador segue os traços de Oscar Pensar a Cantoria de Pé de Parede como possibilite ao pesquisador dar especial atenção
Niemeyer. Dentre as várias construções que le- Para a adaptação e inserção em novas situa- um evento ritual é sublinhar alguns de seus à dimensão gestual, cenográica e comunicativa
vam sua assinatura na capital do país, a Casa ções, indivíduos ou grupos muitas vezes recor- traços fundamentais. A Cantoria exerce o pa- dos eventos rituais.
do Cantador é o único projeto do arquiteto rem à idéia de tradição cultural. Em contextos pel de reunir e congregar pessoas. Além disso, Dito isso, a Cantoria de Pé de Parede é um
situado numa cidade-satélite. Conhecida nos migratórios, manifestações tidas como tradi- o evento desvela algo sobre seus praticantes. É ato que envolve o estranhamento do cotidiano,
noticiários por ser um dos locais mais violen- cionais convertem-se num estoque de símbo- um momento em que imagens são construí- ou seja, acontece em ocasiões especiais; pres-
tos do Distrito Federal, Ceilândia se orgulha da los necessários e eicazes. Lúcia Morales (1993) das e comunicadas. Imagens que se referem às supõe responsabilidade para com uma audi-
obra de Niemeyer. Frente aos graves problemas exempliica a argumentação ao analisar a Feira airmações da identidade nordestina, mas que ência, competência comunicativa, preparação,
sociais, altos índices de homicídio e roubos, a de São Cristóvão, localizada no Rio de Janeiro. também nos permite perceber que idéias sobre organização, expectativas, reações da platéia e
Casa do Cantador é indicada por muitos cei- A concretização do evento e a história da mi- a tradição e o cantador estão sendo reavaliadas interações (cf. Bauman 1986; Finnegan 1992;
landeses como uma das melhores coisas que gração nordestina para o Rio de Janeiro estão e ganhando novas nuanças. O evento ritual é Langdon 1999). De que modo essas caracterís-
existem na cidade. imbricadas. A Feira é vista pela autora como um pensado enquanto uma forma de comunicação, ticas luem na dinâmica do evento aqui anali-
O mito de fundação desse espaço reservado fator de organização e atualização de uma tradi- expressando representações sociais, ediicações sado?
à atualização da cantoria nordestina na capital ção através da qual identidades são negociadas. de imagens, modos de inserção e airmação do As Cantorias de Pé de Parede são eventos
federal nos coloca diante de algumas questões. É o espaço onde não apenas se comunica o que indivíduo no meio urbano. É o momento pri- em que se apresentam dois cantadores ento-
A Casa foi inaugurada pelo Presidente da Re- é ser nordestino, mas principalmente onde a vilegiado para a exibição do modo de fazer a ando versos de improviso. As noites de canto-
pública. Foi fruto de um projeto assinado pelo experiência de ser migrante é apropriada para a cantoria, do ser cantador e para a consolidação ria têm início por volta das vinte ou vinte e

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uma horas. Terminam quando os ouvintes se deles se considera músico. Segundo Dulce La- que se constitui na interação entre intérprete tema bastante comum é o próprio desaio entre
vão ou quando a dupla de cantadores se cansa. mas (1986), a relação entre melodia cantada e ouvintes, em ocasiões especíicas” (Travassos os cantadores. O desaio é o momento dos can-
Normalmente, as cantorias não acontecem no e acompanhamento musical é relativa. O ins- 1989: 116). As condições do evento condicio- tadores estabelecerem abertamente uma peleja
aniteatro da Casa, mas em um espaço impro- trumento, executado pelo próprio cantador, nam o conteúdo e o desenrolar da cantoria. De entre si, quando um pretende denegrir a ima-
visado próximo à cozinha. O local é preparado destaca-se tão somente na introdução e nos acordo com as reações e respostas da platéia, gem do outro por meio dos versos.
de modo especial. Existe um cuidado recor- pequenos interlúdios entre os cantadores (op. os cantadores vão elaborando seus versos. Além Além das formas poéticas citadas acima, os
rente no que se refere à disposição das mesas cit.: 38). O acompanhamento musical funcio- de dominar a confecção de versos em diferen- cantadores lançam mão de outros recursos em
e cadeiras no ambiente. As cadeiras reservadas na como um acessório nas performances dos tes modalidades ou estilos, os poetas precisam suas performances. Reiro-me às declamações
aos cantadores icam encostadas numa parede. cantadores. O que é mais importante nas apre- estar aptos para abordar qualquer tema que seja de poemas. Nas noites de cantoria existem mo-
As mesas destinadas ao público são distribuídas sentações é a voz do poeta e o cumprimento de sugerido pelo público. mentos dedicados às poesias recitadas indivi-
de modo que iquem ao lado dos cantadores. determinadas regras do jogo, envolvendo habi- Os cantadores gostam de enfatizar que o dualmente pelos poetas. A declamação é feita
A impressão que temos é a de que o cenário é lidades especíicas e o manejo de determinadas “bom cantador” é aquele que canta temas atu- de uma forma especial. Os poemas são ditos/
organizado como se fosse um grande quadra- formas poéticas. ais: assuntos políticos, econômicos e sociais cantados no mesmo ritmo das estrofes feitas de
do: num dos lados, os cantadores; no lado a As formas poéticas utilizadas numa canto- do Brasil e do mundo. Segundo eles, os can- improviso, só que sem o uso de instrumentos
sua frente, um espaço vazio; e nos dois lados ria nordestina são várias. Os versos cantados tadores dos grandes centros urbanos não estão musicais. Nesses momentos, apenas a voz do
restantes, a platéia. são construídos na forma de diferentes estilos, mais restritos aos “regionalismos”, ou seja, não poeta ecoa pelo salão. A rima é pronunciada de
A disposição espacial do cenário é arranjada gêneros ou modalidades. São alguns desses es- cantam apenas os aspectos da vida no sertão modo cantado e bastante acentuada. Todas as
para que os cantadores iquem em evidência. tilos: 1) sextilhas – um dos gêneros mais prefe- nordestino. Não foram somente os cantadores poesias recitadas são de autoria de poetas po-
Mesmo sem o recurso do palco, eles estão em ridos e usados pelos cantadores. Geralmente é que mudaram para as metrópoles brasileiras. O pulares nordestinos.
destaque num dos cantos do salão. Na frente utilizado no início das cantorias. São estrofes público que comparece às cantorias também é Nas apresentações, seja recitando uma poesia
dos cantadores não é colocada nenhuma mesa, de seis versos (pés ou linhas) em que cada verso outro. Mesmo constituída principalmente por ou fazendo um verso de improviso, os cantado-
o espaço ica vazio. O público evita a circulação tem sete sílabas e as rimas ocorrem entre as li- nordestinos, a platéia da Casa do Cantador não res estão sujeitos aos erros: não conseguir fazer
pelo centro do salão durante as apresentações. nhas pares; 2) martelo agalopado – ritmo mais quer que os cantadores mencionem (unicamen- a rima, não pronunciar as palavras de forma se-
Apesar do barulho das conversas, a atenção da acelerado. Compõem-se de uma estrofe de dez te) assuntos regionais. Assim, é muito usual a gura, etc. Os acontecimentos são imprevisíveis.
platéia está voltada aos cantadores. Porém, o versos em decassílabos, obedecendo a seguinte construção de versos sobre personagens da his- Mesmo assim, a utilização de pausas, silêncios,
cuidado maior com a organização da cena diz ordem de rima: abbaaccddc; 3) galope à bei- tória do Brasil ou personalidades em voga no repetições de palavras, não são recursos valo-
respeito apenas ao arranjo espacial das mesas e ra mar – estrofe de dez versos, obedecendo à momento, como Sadam Hussen e Bin Laden. rizados na performance. Essas eventualidades,
cadeiras de modo a evidenciar os cantadores no rima abbaaccbba. O último verso deve termi- Os cantadores cantam também eventos atuais quando acontecem, prejudicam a competência
momento das apresentações. Não existe uma nar com a frase “beira mar” ou “beira do mar”; da política nacional, como o Programa Fome comunicativa do poeta frente a uma platéia em
atenção especial com a decoração do ambiente. 4) mote – estrofe de dez versos que pode ser de Zero e o caso Waldomiro Diniz. permanente estado de alerta.
Não notamos o uso de bandeiras, quadros e ou- sete ou de dez sílabas. Entrega-se ao cantador o No entanto, apesar dos cantadores desta- Durante a performance, o público interfere
tros objetos que pudessem nos remeter à canto- conjunto dos dois últimos versos que termina a carem que cantam principalmente assuntos da por meio de palmas, risos e silêncio. A platéia
ria nordestina. Poucos ingredientes no cenário estrofe de dez linhas. Além dessas modalidades atualidade, os conteúdos de suas composições avalia, discorda, corrige, aplaude e silencia de
fazem referência à cantoria ou ao Nordeste. aqui citadas foram catalogados por pesquisado- são vários. As oposições entre o bem e o mal são acordo com suas expectativas. O horizonte des-
No momento das apresentações, os canta- res do assunto mais de setenta estilos de canto- freqüentes nos versos de improviso. A oposição sas expectativas abarca uma avaliação em que
dores fazem uso de microfones para uma me- ria. Entre eles estão a gemedeira, os quadrões, ganha diferentes roupagens, podendo assumir a são consideradas: a rima dos versos; a veloci-
lhor recepção da voz. As cantorias são feitas ao martelo alagoano, Brasil Caboclo, rebatido, forma dos seguintes pares de oposição: Deus e dade com que o cantador elabora sua estrofe;
som de violas ou violões, cujas ainações são mourão, etc. (cf. Mota 1987; Seraine 1983; o Diabo, o pobre e rico, o citadino e o matuto. a forma como o verso é cantado – visto que o
bastante agudas e o acompanhamento musical Ramos 1991). Existem também versos dedicados aos assuntos cantador não pode gaguejar ou repetir palavras;
é feito pelos próprios cantadores. Na Casa do As sextilhas, os martelos e os galopes fazem religiosos. Quando os improvisos abordam tais a empatia e a identiicação do público com o
Cantador, todos os cantadores aprenderam a referência a uma série de temas. Falar sobre temas, notamos a forte inluência de uma mo- enredo da estrofe. A competência comunicati-
tocar seus instrumentos de forma autodidata esses temas é mencionar o próprio caráter da ral cristã. Valores como o perdão e a caridade va do cantador depende de todo esse arcabouço
por meio da observação e da prática. Nenhum cantoria. “Pois, trata-se de um tipo de música aparecem constantemente nas estrofes. Outro de habilidades.

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Apesar das conversas, a platéia está atenta O negro é aquele mesmo Outras formas de diálogo com o públi- É importante destacar que o diálogo não é
à performance. Nas noites de cantoria é inte- Que coloca o pé no chão co podem ser observadas ao longo de todo o estabelecido somente durante os intervalos da
ressante notar o quanto o público direciona Se vive da escravidão evento. Ao recitar um poema nos intervalos da cantoria, por ocasião da recitação de poesias
sua atenção ao enunciado dos cantadores. Esta Preto da cor de café cantoria, o poeta procura chamar atenção do ou da narração de piadas. O auditório pode se
atenção pode ser convertida numa tensão para Zumbi dos Palmares é público, fazendo perguntas e dialogando aber- transformar no próprio assunto da conversa, ou
o cantador, que a todo o momento se vê ava- Escravo da escravidão. tamente com ele: “Vocês conhecem aquele po- melhor, das sextilhas. Numa dessas situações a
liado. O desempenho do poeta vai garantir a ema? Não?! Então, eu vou recitar”. O auditório própria pesquisadora foi colocada no centro do
avaliação positiva ou negativa das pessoas que O erro não somente persistiu como o canta- também pode ser usado como testemunha de debate:
o assistem. O cantador que melhor comunica dor fez uso de palavras repetidas e alguns versos uma situação de diálogo. Por exemplo, os poe-
é aquele que tem rapidez na confecção das es- parecem não fazer muito sentido. Pelo salão, tas podem narrar uma piada como se tivessem Patrícia que é verdadeira
trofes, que garante a continuidade temática dos algumas vaias puderam ser ouvidas. Na platéia, vivenciado a situação. É como se o fato acon- Veio aqui pra assistir
versos e que pronuncia as palavras sem hesi- a agitação era grande: risadas e comentários tecesse com o próprio contador da história. A Ouvir repente bem feito
tação. Demonstro a questão com um exemplo jocosos denegrindo a imagem dos cantadores idéia é a de compartilhar um enredo não anô- Pra depois que ela sair
vivenciado por mim, em campo. Numa noite que não conseguiam acertar o mote e nem fazer nimo, propiciando certa autenticidade ao rela- Comunicar às colegas
de cantoria, foi dado aos cantadores o seguinte versos bem feitos. to e ao mesmo tempo despertando o interesse Que faz gosto a gente ouvir
mote: “Zumbi dos Palmares é símbolo da es- A atenção do público, voltada ao enunciado do público.
cravidão”. O primeiro cantador apresentou a dos cantadores, é garantida pelo uso de micro- Patrícia que veio ouvir
sua primeira estrofe da seguinte forma: fones que abafam as conversas e também pelas Eu tava vindo agora lá do Nordeste e presenciei Para nos apreciar
intervenções dialógicas feitas ao longo das per- o acontecido. Vou contar... Tem alguém de me- Não é Patrícia França
Vejo humilde escravizado formances. Os cantadores procuram estabelecer nor aí? [pergunta à platéia] Como tem muito Nem é Patrícia Pillar
Todos os familiares um diálogo com a platéia. O diálogo é estabele- cantador que ganha dinheiro, às vezes aparece Mas gosta de cantoria
Sou Zumbi de Palmares cido de diferentes formas. Uma delas acontece até cantador gago. Ele não era diretamente um Por isso veio escutar
Para defender seu estado nos intervalos. Nesses momentos é fornecida cantador. É que tinha um outro rapaz que um
Veja ele contentado uma série de explicações sobre a cantoria nor- dia falou para ele: “Vamos comprar duas violas Segundo Paul Zumthor (1993), as interven-
Que andou na contra-mão destina. As explicações são dadas por alguém e sair cantando?”. O gago disse: “A... amos!”. Aí, ções dialógicas têm uma função pedagógica: é
Sofreu muito lá no chão especial, o diretor da Casa do Cantador, que compraram duas violas. Na primeira fazenda que uma maneira de ensinar o momento e de ad-
Passou fome, andou de pés ica durante o rito como o principal responsá- chegaram, o fazendeiro disse: “É cantador? Eu vertir o público (:224). Na Casa do Cantador,
Zumbi dos Palmares é vel por essa tarefa. É ele também quem recebe gosto demais! Ave Maria! Gosto demais! Vamos elas são utilizadas como uma forma de chamar
Escravo da escravidão. os presentes, assumindo a função de cicerone fazer uma cantoria hoje à noite. Vou mandar a atenção do público para o que está sendo
do evento. Abaixo, fornecemos um exemplo: matar o carneiro, ajeitar o ‘tundum’...”. Como enunciado pelos narradores. As intervenções
Quando o primeiro cantador pronunciou vocês sabem, tundum é o fígado do carneiro. dialógicas são apenas uma das várias estratégias
o mote solicitado de forma errada, trocando Sejam bem-vindos! Toda a sexta-feira a gente O que aconteceu, então? À tarde, todo mundo acionadas pelo cantador para garantir a sua
“símbolo da escravidão” por “escravo da escra- tem um encontro daqueles que prestigiam a can- foi jogar baralho. Caiu uma chuva daquelas e competência comunicativa.
vidão”, algumas pessoas da platéia repetiram o toria nordestina. Toda a sexta-feira a gente escala até molhou o baralho. Mais tarde, o dono da Uma das questões mais interessantes nas
“mote certo” a im de que o cantador pudesse uma dupla. A dupla participa do início ao im da fazenda: “Epa, já tá cozido o tundum. Vamos apresentações dos cantadores refere-se ao uso
se corrigir na próxima estrofe, e para que se- cantoria (...). Muita gente não conhece as mo- comer? Mas antes vou pedir para os cantado- do corpo. O corpo não é um recurso muito
gundo cantador não cometesse a mesma gafe. dalidades da cantoria. Sempre se começa com res fazerem um refrão”. Aí, o cantador que não utilizado nas performances. Durante todo o
Mesmo assim, este emendou: as sextilhas que é um verso feito em seis linhas. era gago disse ao gaguinho: “O que eu disser momento em que estão cantando, eles per-
Agora, tem o galope à beira mar, tem o martelo você repete. O verso vai ser o seguinte: À tarde manecem sentados, tocando suas violas. O
Eu quero seguir a esmo agalopado, uma canção, um poema, um soneto... choveu e molhou o baralho, e daqui a pouco eu corpo ica quase que imóvel nas cadeiras. Às
Já botei no meu papel E quem souber pedir: “Quero que o cara fale so- como tundum”. O gago cantou: “A...arde ô... vezes, quando uma estrofe faz referência a al-
Mas a Princesa Isabel bre determinado assunto...”, os poetas estão aqui ôveu e ô...olhou o a.... aralho e a...aqui a ...ouco guma pessoa da platéia, o cantador pode tro-
Que talvez seguiu a esmo à mercê de vocês para qualquer assunto. eu ...como o ...um”. car olhares com o endereçado dos versos. Mas

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este recurso nem sempre é posto em prática. O possível distinguir auditivamente o som da vo- e depositam o dinheiro numa bandeja de palha uma esmola, a Bandeja é legitimada pela idéia
cantador está concentrado nos versos constru- gal ou das vogais em que a rima terminaria. Tal colocada ao lado dos cantadores. A Bandeja é de tradição. Não obstante, a “tradição” é pen-
ídos pelo poeta que está ao seu lado, forman- estratégia é uma forma de proporcionar uma explicada da seguinte forma para o público: sada pelos informantes não tanto a partir de
do a dupla. No entanto, eles também não se recepção auditiva semelhante ao que se espe- sua relação com o passado, ou seja, como algo
olham. O olhar está voltado para frente (lem- rava. Assim, a palavra falta, mas a intenção da Quando a gente vai assistir a uma peça teatral, concretizado no tempo. A tradição não se si-
brando que o cenário é organizado de modo rima permanece. um ilme, enim, um show, a gente costuma sem- tua na duração, e sim na obviedade. A tradição
que o espaço situado na frente dos cantadores A habilidade de fazer versos com rapidez, pre pagar na entrada. Aqui é ao contrário: não é usual e comum. É tudo aquilo que fazemos
esteja livre) e algumas vezes para o alto, suge- pronunciar as palavras sem hesitação e abordar é na saída e nem na entrada, é no meio mesmo porque devemos fazer. A Bandeja é tradicional,
rindo a busca por concentração e inspiração. temas que provoquem uma empatia com o pú- (...) Essa Bandeja é tradicional (...) Muita gente assim como é tradicional comprar um ingresso
A gestualidade expansiva não se faz presente blico; a organização do cenário, que coloca o que não entende a cantoria nem o formato dela, para ver um ilme no cinema; assim como é
nas apresentações. Porém, a “imobilidade” dos cantador no centro do espetáculo; as estratégias chama a Bandeja de esmola, correr o chapéu. tradicional pagar a entrada de um show. A Ban-
cantadores não é menos eicaz: ela direciona a de utilização da voz; o andamento melódico da Não! Essa Bandeja é tradicional (...) A gente faz deja não tem nada de infame ou vil: o pedido
dinâmica da performance à voz e às qualida- cantoria e a imobilidade gestual que direciona uma lista aqui (...) para ter mais praticidade (...). de dinheiro manifesta-se numa relação entre
des do poeta. “Os gestos – ainda que contidos o foco da atenção para o poeta; são estratégias A gente sempre tem o Cristo, vamos dizer assim iguais1.
– contribuem com a voz para ixar o sentido” que garantem a competência comunicativa do que começa (...) Eu vou chamar o Eron para ba- Algumas questões trazidas por Eric Ho-
(Zumthor 1993: 244). cantador. A combinação desses e outros ele- tizar a Bandeja... bsbawn (1997) podem ser úteis para pensar-
Para Mário de Andrade (1984), a melodia mentos, que veremos a seguir, possibilitam a mos a maneira como a “tradição” da Bandeja é
da cantoria é algo fundamental nesta manifes- eicácia do ritual. A explicação é uma das estratégias utilizadas acionada nas Cantorias de Pé de Parede. Para o
tação cultural. A monotonia da linha melódica pelos cantadores para valorizar uma manifesta- autor, a característica da tradição2 é a invariabi-
facilita e torna mais clara a enunciação de textos A “tradição” da Bandeja ção cultural profundamente atrelada à idéia de lidade de um passado que impõe práticas ixas.
em que importa muito o entendimento da pa- subalternidade. A cantoria é uma manifestação Já o costume tem a dupla função de motor e
lavra (op. cit.: 383). A melodia executada com O público das Cantorias de Pé de Parede pensada pelo senso comum e descrita por uma volante.
poucas variações (assim como a gestualidade pode ser dividido em quatro categorias: 1) literatura especializada no assunto a partir da
“contida” dos cantadores) direciona a atenção curiosos que pela primeira vez freqüentam a sua identiicação com o meio rural e com seto- Os estudiosos dos movimentos camponeses sa-
do público para o que o cantador canta. A voz é Casa. Normalmente, essas pessoas moram na res subalternos da sociedade (cf. Andrade 1984; bem que quando numa aldeia se reivindicam
o fator constitutivo da performance. Podemos Ceilândia, Taguatinga e imediações, sendo em Barroso 1949; Campos 1973; Cascudo 2001; terras ou direitos comuns “com base em costu-
ilustrar a questão com o momento da recitação. sua maioria nordestinas; 2) estudantes univer- Maxado 1984; Mota 1987; Romero 1888). mes de tempos imemoriais” o que expressa não
As poesias são decoradas e recitadas sem o auxí- sitários que em grupos ou sozinhos sentam nas Para alguns desses autores, muitos cantadores é um fato histórico, mas o equilíbrio de forças
lio de livros. Se o poeta ou o intérprete lê num mesas com seus cadernos, anotando os versos utilizaram a cantoria como forma de renunciar na luta constante da aldeia contra os senhores da
livro o que os ouvintes escutam, a autoridade dos cantadores; 3) cantadores que prestigiam à mendicância ou como uma possibilidade de terra ou contra outras aldeias (...). O “costume”
provém do livro, objeto visualmente percebido a cantoria de seus colegas; 4) e, inalmente, os abandonar os trabalhos na roça e sobreviver não pode se dar ao luxo de ser invariável (...).
no centro do espetáculo. Quando o poeta canta apologistas, nordestinos admiradores da canto- nos centros urbanos. No entanto, percebemos
ou recita, mesmo que o texto não seja impro- ria e que contribuem com os cantadores, de- que a todo o momento, seja nas conversas ou 1. Um exemplo dessa questão pode ser visto na análise
visado e sim memorizado, sua voz lhe confere positando na Bandeja notas ou cheques, cujos na dinâmica dos eventos da Casa do Cantador, de Paul Zumthor (1993) sobre os pedidos de dinhei-
autoridade (Zumthor 1993: 19). valores variam de vinte a cinqüenta reais. os cantadores procuram construir uma nova ro feitos no momento do canto por trovadores me-
A voz é utilizada pelo cantador de modo par- Para assistir às cantorias não é obrigatório pa- imagem da cantoria nordestina. O momento dievais na Europa (: 63).
ticular e em proveito de uma possível avaliação gar ingresso ou couvert. Porém, o diretor da Casa de explicação sobre a Bandeja é um exemplo 2. Pensada no sentido de tradição inventada: “um con-
junto de práticas (...) de natureza ritual ou simbólica
positiva sobre o seu desempenho. As palavras carrega consigo um caderno, onde são feitas dessa tentativa.
que visam inculcar certos valores e normas de com-
são pronunciadas de forma estridente. As es- anotações de temas solicitados pelo público aos Os informantes evocam a idéia de tradição portamento através da repetição, o que implica (...)
trofes improvisadas são emitidas de modo claro cantadores, como também o registro dos presen- para tornar ímpar o momento da Bandeja. Para uma continuidade com o passado (...). Elas são re-
e em alto volume quando a rima é acertada. tes para que sejam convidados a “comparecer” os cantadores, “correr o chapéu” é esmolar ou, ações a situações novas que ou assumem a forma de
Quando o poeta não consegue a rima, o som é no momento da Bandeja. Os presentes, convi- na melhor das hipóteses, uma espécie de gor- referência a situações anteriores, ou estabelecem seu
feito de modo rápido quase imperceptível, só é dados nominalmente pelo diretor, levantam-se jeta. Diferente de uma simples gorjeta ou de próprio passado através da repetição quase obrigató-
ria” (Hobsbawn 1997: 09-10).

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O direito comum ou consuetudinário ainda exi- proposta. As transformações ocorridas com bairro, mas de estarem identiicadas com um Pra gente comer com cuscuz
be esta combinação de lexibilidade implícita e a cantoria, principalmente quando seus pra- tipo de manifestação cultural, a cantoria nor- Quem vai ao sertão e volta
comprometimento formal com o passado. Nes- ticantes atingiram os centros urbanos, impli- destina. Vê a cara de Jesus
se aspecto, a diferença entre “tradição” e “costu- cou a apreensão de novos códigos típicos da A identiicação com a cantoria nordestina (Casa do Cantador – Francisco Nunes,
me” ica bem clara. “Costume” é o que fazem os modernização e identiicados com os setores leva à identiicação com um espaço, o Nor- 21/11/03).
juízes; “tradição” (no caso, a tradição inventada) dominantes da sociedade nacional4. Os códi- deste. Conforme vimos, tal ligação não está
é a peruca (...) e outros acessórios e rituais que gos dessa aparência não são aqueles do típico expressa na decoração do ambiente. Eles não A valorização não é só de objetos considera-
cercam a substância, que é a ação do magistrado vaqueiro do sertão nordestino, e sim de uma lançam mão de “objetos típicos” para compor dos típicos da região, mas também de seu povo.
(op. cit.: 10). sociedade urbanizada e muito diferente da re- o cenário das Noites de Cantoria. Os intérpre- O tipo social do nordestino é construído a partir
alidade rural. Apropriando-se de alguns desses tes não usam uma indumentária especíica ca- das seguintes qualidades: honestidade, força de
A Bandeja se refere ao que fazem os canta- códigos, os cantadores se vestem nas noites de paz de sugerir uma identiicação com a região. vontade e capacidade de superar as adversidades:
dores. Ela não é acionada como um acessório cantoria e acionam a “tradição” da Bandeja. Mecanismos desse processo de identiicação
simbólico. O seu sentido não tem uma função A indumentária utilizada nas apresentações podem ser analisados a partir da idéia do con- O Nordeste não engana
simbólica precisa. O seu uso no ritual tem um e as explicações para o momento da Bandeja terrâneo, da comensalidade e dos conteúdos de Que se parece um porvir
objetivo prático. Com o tempo, o costume da reletem a maneira como os cantadores tentam algumas composições dos cantadores. Honesto pai de família
Bandeja pode até ter sido transformado num se construir: eles são artistas. A autoconstrução Apesar de destacarem que não cantam ape- Vai o pão adquirir
aspecto formalizado das Cantorias de Pé de Pa- do cantador-artista implica a elaboração de nas assuntos regionais, os versos entoados pelos A mulher pegando o braço
rede. No entanto, sua função é técnica, prática uma série de noções e o compartilhamento de cantadores que abordam o Nordeste têm um Pra ele também sorrir.
e de direito: a Bandeja é um pagamento pelos códigos sociais. O cantador-artista precisa ter grande espaço nas Cantorias de Pé de Parede. (Casa do Cantador – Elias Ferreira, 21/11/03).
serviços prestados pelos cantadores. uma preocupação excessiva com o uso correto Nas estrofes, o Nordeste aparece de forma gené-
A indumentária utilizada pelos protago- da língua portuguesa e estar profundamente rica, ou seja, é uma categoria homogeneizante. A experiência dos migrantes na construção
nistas do ritual também pode ser citada como familiarizado com assuntos da atualidade po- A categoria iguala os vários Estados que com- de Brasília também é relatada de modo que su-
mais uma estratégia de construção de outras lítica, econômica e social do país e do mundo. põem a região. Antes de serem paraibanos, per- blinhe as características positivas do povo nor-
imagens acerca da cantoria e de seus execu- Pensar a cantoria enquanto arte é principal- nambucanos e cearenses, eles são nordestinos. destino. Nas comemorações do aniversário de
tores. Sendo identiicados com o contexto de mente fazer menção a um determinado contex- O Nordeste aparece também com a deno- Brasília, realizadas na Casa do Cantador, um
um Nordeste pastoril, poderíamos imaginar to: o urbano. Ao aproximar a cantoria da idéia minação de sertão. Em grande parte dos ver- cantador improvisou:
os cantadores usando em suas apresentações de arte, os cantadores se afastam da vincula- sos, o Nordeste ou o Sertão é extremamente
roupas de couro e chapéu de vaqueiro. Mas, ção ao ambiente rural. A formulação da noção valorizado. Os cantadores elaboram um rol das Essa data não é feia
em todas as performances na Casa do Can- de cantoria artística é uma forma de inserção melhores coisas que existem por lá. A lista en- Que eu estou de cabeça erguida
tador, os cantadores trajam calças sociais, numa nova realidade. globa desde pratos típicos e festas populares até Parabenizo Brasília
blusas de mangas compridas, cintos, sapatos o “caráter” do povo. A idéia é a de criar a ima- Por mais um ano de vida
engraxados e alguns capricham no perfume. Conterrâneos e comensalidade gem positiva de um lugar e de sua gente, e de Por suor de nordestino
Ivanildo Vila Nova, um dos mais respeita- diferenciá-lo das demais regiões do Brasil. Brasília foi construída.
dos cantadores da atualidade, numa entre- A Casa do Cantador pode ser pensada como Os exemplos são inúmeros no que se refe- (Casa do Cantador – Francisco Nunes,
vista ao Jornal do Brasil, comenta indignado uma forma de lazer, de entretenimento e de rem à retomada de traços considerados típicos 21/04/04).
e alinhado em paletó e camisa social: “você diversão no contexto urbano. No entanto, ela da região. Os versos abaixo destacam a carne as-
imagina que uma emissora de TV queria que é principalmente um local de encontro, cujo sada e o cuscuz. Tais pratos são tão valorizados Na idealização e extrema valorização de coi-
a gente usasse chapéu de couro e peixeira?”3. motivo da reunião não é tanto o fato de que no poema que a experiência de experimentá-los sas e de pessoas, a esperança da volta para o
Os cantadores residentes no Distrito Federal as pessoas ali presentes pertencerem ao mesmo “propicia um encontro com seres divinos”: sertão é outra constante (pelo menos no mo-
também se mostrariam indignados frente a tal mento ritual):
4. Eduardo Diatahy Menezes (1999) mostra essas trans- Nosso sertão tem sossego
3. Entrevista dada à jornalista Helena Aragão (Jornal do formações e apreensões de novos códigos nas narrati- Que eu quero sol e luz Eu estou feliz porque
Brasil), realizada em 19/06/04 e disponível em www. vas populares de versos escritos, como a literatura de Tem carne assada na brasa Estou na localidade
nordesteweb.com/not04_0604/ne_not20040618b. cordel.

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Mas do povo do Nordeste das apresentações, o diretor da Casa sempre a cantoria, eu abro pra você”. Recuso, agrade- Para degustar a comida, os freqüentadores só
Desse eu sinto saudade apresenta os cantadores, fazendo referência aos cida. Dou um giro pelas dependências. Leio a precisam acionar um objeto bastante signi-
De voltar para casa um dia seus estados de origem e completando como placa de inauguração e observo a escultura de icativo: um sino de boi. Tocado o sino, você
Eu tenho a maior vontade uma espécie de anexo ou apêndice, o fato de um cantador esculpido em pedra. E assim per- é prontamente atendido pela responsável por
(Casa do Cantador – Elias Ferreira, 21/11/03). viverem em Brasília. maneço... andando pela Casa. Um senhor que preparar os pratos ou por uma de suas ajudan-
Durante o rito, nas conversas com a platéia morava ali perto assistindo o DFTV [noticiário tes. É interessante perceber que nesta parte do
O sertão é de valor ou com os cantadores, o “morar em Brasília” local] soube da cantoria, resolveu aparecer para ritual a utilização de um objeto que tem uma
É onde o povo me adora soa como algo que parece não dizer muita coi- conferir. Com muitas perguntas iniciou um di- profunda ligação simbólica com o Nordeste
Eu tenho a maior certeza sa: “moro trinta anos aqui, mas sou de Recife”, álogo comigo: pastoril é vista positivamente. O sino de boi é
De quem só vive por fora “sou de Pernambuco, apesar de morar quinze – Você gosta disso? usado como um modo de divertir os convivas,
Pode não chorar com os outros anos em Brasília”. Quando as pessoas chegam – Gosto, é legal. que têm a possibilidade de fazer um pedido
Mas chorar sozinho chora. para a cantoria, são imediatamente indagadas – Será que tem que pagar alguma coisa? gastronômico de forma inusitada e particular.
(Casa do Cantador – Chico Oliveira de Acopia- a respeito da sua naturalidade, seja pelos can- – Não, acho que não. Diferentemente do uso de uma indumentária,
ra, 31/10/03). tadores ou pelo próprio público. A resposta à – Onde você mora? capaz de aproximar os cantadores dos vaquei-
indagação é na maioria das vezes uma cidade – No Plano Piloto. ros ou dos cangaceiros do sertão, o sino de boi
Dentro do contexto da esperança da volta, nordestina, pelo menos essa é a resposta espe- – Você veio de carro? é convertido num ícone positivo, capaz de tor-
do saudosismo e da valorização do Nordeste, rada por todos. – Vim de ônibus. nar o ambiente típico e diferente.
para aqueles cantadores que aqui residem, can- O ser de algum lugar do Nordeste assume – Onde você nasceu? Na Casa do Cantador não existe a idéia de
tando para o público da Casa do Cantador, um papel de destaque nas Noites de Cantoria. – No interior do Rio. restaurante. O “serviço” não recebe um nome
Brasília assume uma função quase que utilitá- As pessoas fazem menção a essa questão nas – Mas, os seus pais são nordestinos, né? especial do tipo: “Bar”, “Cantina” ou “Canti-
ria. Seguindo o raciocínio dos poetas já citados conversas entrecortadas pelos sons das violas – Não, eles são do Rio também. nho da...”. Os “fregueses” não comem em mesas
anteriormente: dos cantadores. A resposta dada à pergunta: Minha última resposta, o inquietou profunda- previamente preparadas para uma refeição com
“de onde você é?”, é, sem dúvida, uma porta de mente. O senhor aos gritos chamou sua esposa saleiros, paliteiros, galheteiros e guardanapos.
Distante do pessoal entrada na Casa do Cantador. e ilha, comentando perplexo: “Essa menina é No “Bar”, não é possível ver engradados ou co-
Não sei se eu passei no teste Muitas pessoas são atraídas para a cantoria doida. Vem lá do Plano só para assistir cantoria pos sobre o balcão. O cardápio está resumido
De tanto sofrer saudade a im de prestigiar e encontrar um conterrâ- e nem é nordestina”. Sua surpresa não se refe- a uma cartolina, aixada numa parede, com as
O meu compadre hoje investe neo cantador ou simplesmente para matar a ria tanto ao fato da “menina” ter vindo sozinha seguintes opções: buchada de bode, carne de
O dinheiro é em Brasília saudade do Nordeste. E quando essa situação de noite e de ônibus para um lugar “tão longe”, sol, caldo de galinha, cerveja e refrigerante. Por
E o sossego é no Nordeste. não acontece, o espectador pode ser motivo de mas principalmente por ter feito tudo isso não um preço bastante acessível é possível saborear
(Casa do Cantador – Elias Ferreira, 21/11/03). espanto. Foi o que aconteceu comigo numa de sendo nordestina e nem ao menos tendo pais um farto “P.F.” (prato feito). É o que muitos
minhas primeiras visitas à Casa do Cantador. nordestinos. ouvintes e cantadores fazem por volta das vinte
As apresentações feitas na Casa do Canta- Reproduzo abaixo um trecho de meu diário de e duas ou vinte e três horas da noite.
dor podem ser de cantadores que moram em campo: Além das conversas e dos versos cantados O que pretendo enfatizar é a relação entre
Brasília ou daqueles que estão de passagem pela que ressaltam a importância do “ser do Nor- o que se faz e o que se come na Casa do Can-
cidade. No entanto, todas as apresentações na Após sair da Rodoviária do Plano Piloto às de- deste”, está presente no ritual outro traço evo- tador. O ato de comer e cantar/ouvir estão
Casa do Cantador são de “cantadores do Nor- zenove horas, em um ônibus lotado, chego para cativo das “coisas de lá”. O ser nordestino se imbricados na dinâmica do ritual. É como se
deste”. É feito um registro de todas as apresen- uma noite de cantoria por volta das vinte horas. expressa através do idioma da comensalidade. você estivesse assistindo a cantoria e a comida
tações realizadas na Casa, onde são anotados os Cumprimento algumas pessoas no portão de A culinária da Casa do Cantador é um fator de fosse trazida a sua mesa. Tudo é feito num tom
nomes das duplas e as siglas dos estados de ori- entrada. Lá dentro, avisto o diretor da Casa, me atração dos nordestinos residentes em Brasília de informalidade, simplicidade e familiarida-
gem de cada cantador. No registro, cantadores aproximo e pergunto: “Lembra de mim?” Ele e de curiosos. de. Muito mais que a noção de restaurante,
que aqui residem durante vinte anos não são prontamente me responde: “Claro, você está Durante as cantorias, os presentes podem a Casa cede espaço para a idéia de “cozinha”.
catalogados pela sigla DF, mas sim pelas letras fazendo uma pesquisa, né? Olha, se você qui- saborear pratos considerados típicos do Nor- A cozinha é o ambiente familiar e aconche-
iniciais do estado em que nasceram. No início ser icar um tempinho na biblioteca esperando deste, como a carne de sol e a buchada de bode. gante da casa, aqui com “C” maiúsculo. Vale

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destacar que esse espaço é dirigido por uma dida por um senhor que se prostrou na minha Em seu estudo sobre a cantoria nordesti- Diferente das imagens que colocam os can-
mulher. A cozinha na Casa do Cantador é o frente com um prato de comida. A Casa estava na em São Paulo, Maria Ignez Ayalla (1988) tadores como espécies de ambulantes que fazem
único espaço feminino num grupo eminente- vazia, no salão estavam apenas dois cantadores airma que a atualização da manifestação em suas apresentações nas ruas, praças e praias, os
mente masculino. ocupados em arrumar a aparelhagem de som alguns bares no bairro do Brás permite o encon- cantadores nordestinos têm um local especial
A sedução dos pratos servidos na Casa do e o diretor que corria de um lado para outro, tro entre conterrâneos e reforça a sua condição para as suas apresentações, a Casa do Canta-
Cantador é a sensação de comer num ambien- ajeitando os últimos preparativos para apresen- de manifestação artística regional, consolidan- dor. Diferente das praias, das ruas e dos bares,
te descontraído e aconchegante. Uma sensação tação. O senhor, que eu já tinha visto algumas do os vínculos com a cultura nordestina (: 94). a Casa do Cantador é pensada como um centro
que se aproxima do “comer em casa”. Outra vezes na Casa, disse: “será que eu posso sentar Na capital federal, o reconhecimento de uma cultural, um espaço construído para a valori-
imagem sedutora dos pratos é a da fartura. Não com você?”. E logo em seguida se explicou: “É tradição (nordestina) é um dos motivos para zação e atualização de uma dada manifestação
se privilegia a escolha de cerâmicas coloridas ou que eu não consigo jantar sozinho”. Sem espe- as reuniões na Casa do Cantador. A “tradição” cultural em Brasília, a cantoria nordestina.
talheres lustrosos. Enim, nada é chique, mas rar minha resposta, foi logo sentando e gritan- é reconhecida pelo sotaque, pela música, pela Na percepção dos cantadores, a boa can-
tudo é farto. A visualidade dos pratos servidos do para a responsável pela cozinha: “traz mais dança e pelas comidas típicas. toria nordestina é aquela em que existe uma
na forma de “P.F.” é a de uma “montanha” in- um prato aí”. O senhor preferiu rachar o seu Nesses encontros se reúnem não apenas preocupação com o uso de um português
terminável de comida. As imagens de fartura e “P.F.” com uma quase “estranha” a ter que se nordestinos no Distrito Federal, mas também considerado gramaticalmente correto (os
da “casa” ajudam a estabelecer a idéia positiva sentar numa mesa e comer sozinho. não nordestinos que vivenciam os eventos, bons cantadores não são mais analfabetos,
do grupo. A suculenta buchada de bode, ser- Vários elementos que compõem uma noi- avaliam, elaboram e comprovam imagens re- têm “estudo”); o bom cantador é aquele que
vida sem grandes ostentações, mas com muita te de cantoria na Casa do Cantador nos per- ferentes aos seus praticantes. As Cantorias de detém um arcabouço de informações sobre
fartura e familiaridade, reforça a construção da mitem pensar as relações das pessoas que ali Pé de Parede realizadas pela Casa do Cantador fatos importantes da humanidade no que se
boa imagem do grupo. estão com o Nordeste: a música; as letras das são momentos privilegiados para a construção, refere às esferas políticas, econômicas e sociais
A comida é um tempero fundamental das canções; as comidas que compõem o cardápio airmação e a possível comprovação de uma sé- (não estão mais presos aos “regionalismos”).
relações estabelecidas nas noites de cantoria. aixado numa das paredes do bar com carne de rie de representações. Além de imagens sobre o A própria indumentária utilizada nas apresen-
Comer num lugar público, por mais perto da sol e buchada de bode; o sotaque das pessoas; Nordeste, essas representações abarcam noções tações relete a maneira como esses cantado-
casa que ele esteja, requer o conhecimento de frases do tipo: “vim porque sou baiano” ou as sobre a deinição de uma manifestação cultural res tentam se construir. Eles não querem ser
um idioma cultural. Isso implica o como co- falas do diretor, momentos antes dar início às especíica; sobre a idéia de cantador e a tentati- identiicados com o vaqueiro típico do sertão
mer. Na Casa do Cantador, come-se em com- apresentações: “aqui é um espaço para reunir, va de construí-lo como um artista. nordestino, mas com os códigos de uma so-
panhia de outras pessoas. A comensalidade é uma referência para os nossos conterrâneos...”. ciedade urbanizada e com os valores da classe
um veículo privilegiado para o estabelecimento Rosani Rigamonte (1996) ao traçar alguns Conclusão média. Para os cantadores a ameaça à preser-
de laços sociais. itinerários dos migrantes nordestinos na cida- vação da cantoria parece ser a não “moderni-
“Encher a barriga ou encher a pança é um de de São Paulo, aponta o forró como uma via Ao mencionar que eu estava fazendo uma zação” de seus promotores.
ato concreto destinado à saciedade do corpo, de acesso para mapear a presença cultural nor- pesquisa sobre cantadores, muitas pessoas ma- O cenário, o domínio de formas poéticas
mas é também um modo de se referir a uma destina na capital. Segundo a autora, as festas nifestavam reações de desagravo: “poxa! Como e de habilidades especíicas, o conteúdo dos
ação simbólica” (Da Matta 1994: 52). Em de- de forró podem ser realizadas em lugares im- você foi escolher esse tema? Repentista é muito versos, a comensalidade, a vestimenta, a uti-
terminados eventos, a comida pode abrir uma provisados e pequenos, ou seja, são festas para chato!”. Para essas pessoas, os repentistas eram lização da idéia de tradição são ingredientes
brecha no mundo diário, engendrando ocasi- encontrar amigos, para bater papo, divertir- aqueles que entoavam versos em troca de algum que compõem as noites de Cantoria de Pé
ões em que relações sociais devem ser saborea- se entre conhecidos e conterrâneos. A autora trocado, importunando turistas nas praias do de Parede e que ajudam a formar o mote das
das e prazerosamente desfrutadas (op. cit.: 54). aponta também para espaços cujos limites não Nordeste ou nos centros das grandes cidades. mensagens comunicadas pelos cantadores du-
Na Casa do Cantador, fazer uma refeição não estão restritos a uma rede local, como o caso Nesse contexto, a cantoria nordestina é vista rante a atualização da cantoria nordestina em
é um ato desprovido de uma ação simbólica. do Centro de Tradições Nordestinas (CTN), como uma manifestação banal e muito próxima Brasília. Analisar o manejo e a manipulação
Não se come sozinho. O comer não é um ato que reúne cerca de vinte mil pessoas nos inais do ato de mendicância. Os cantadores são vistos desses elementos nos remete às lutas pelo re-
individual e sugere tentativas de aproximações de semana. Neste espaço, as pessoas, mesmo como analfabetos e profundamente vinculados conhecimento de imagens, representações e
entre as pessoas e o desfrute de relações afeti- não se conhecendo, se reconhecem enquanto ao sertão nordestino. Bem, os cantadores que processos identitários. Promovendo uma dada
vas. Numa das noites na Casa do Cantador, um partícipes de uma tradição e de uma trajetória eu estudei procuram se construir de uma forma manifestação cultural, os cantadores objeti-
pouco antes da cantoria começar, fui surpreen- comum (op. cit.: 251). completamente contrária a essas versões. vam a inserção em novos espaços e lutam pelo

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Tatuagem e autonomia: relexões sobre a
juventude

ANDRÉA OSÓRIO

resumo Pesquisa realizada em dois estúdios de à juventude no país. Além dos suristas, outros
tatuagem da cidade do Rio de Janeiro apontou para a grupos jovens, como os punks do ABC paulista,
predominância da prática na faixa etária dos 20 aos 29 izeram uso da marca (Marques 1997).
anos. Cerca de 60% do público de um dos estúdios é Em observação de campo em dois estúdios
formado por jovens entre 16 e 29 anos. Por trás da se- de tatuagem na cidade do Rio de Janeiro entre
dução que a tatuagem exerce sobre a juventude, parece 2003 e 2004, percebi que os grupos de cultura
estar um processo de marcação social – sobre o corpo jovem não formam a maioria da clientela. Em
– de autonomia pessoal, que foi nomeado na litera- um dos estúdios pesquisados, próximo às praias
tura dedicada ao estudo da tatuagem contemporânea de Copacabana e Ipanema, os suristas são um
como posse de si, conceito que remete à emergência de grupo visível entre os clientes, mas não consti-
um processo de individualização, em que a tatuagem tuem o público majoritário. Por outro lado, o
pode se apresentar como signo propício a uma prova mesmo imaginário que associa a prática a estes
pessoal (e social) de força e coragem ou como epíteto grupos, normalmente associa-a a um universo
de uma rebelião silenciosa contra instâncias de con- masculino e os próprios grupos jovens são pen-
trole do indivíduo, sobretudo a família. sados como fundamentalmente masculinos1 ou
palavras-chave Tatuagem. Juventude. Auto- sem maiores relexões a partir do recorte de gê-
nomia. nero, como por exemplo em Vianna (1985) so-
bre o universo funk carioca, Caiafa (1988) sobre
os punks cariocas, Costa (1993) sobre os “ca-
“Menino do Rio recas” paulistas e Abramo (1994) sobre punks
Calor que provoca arrepio e darks. Em campo, identiiquei um público
Dragão tatuado no braço majoritariamente feminino e que não podia ser
Calção, corpo aberto no espaço” associado a nenhum grupo jovem especíico.
Caetano Veloso Analisando ichas de cadastro de clientes
de um dos estúdios pesquisados, localizado no
Introdução bairro da Tijuca, Zona Norte2 carioca, obser-
vou-se que as mulheres formam cerca de 70%
Quando Petit, o “Menino do Rio” que Cae- dos clientes, número observado por outros
tano Veloso cantou em versos, fez sua aparição na tatuadores em outros estúdios, como Emer-
Praia de Ipanema com o célebre “dragão tatuado son, tatuador da Rocinha3, que airmou ao
no braço”, ele não foi o primeiro de sua geração
a associar surf e juventude ao uso de tatuagens 1. Conforme também observado por Weller (2005).
(Marques 1997). Contudo, foi um pioneiro e 2. Área da cidade de baixo poder aquisitivo, embora a
serviu de ícone na difusão da prática tanto en- Tijuca sobressaia aí como região de classe média.
3. Antiga “maior favela da América Latina”, hoje com
tre jovens quanto entre as camadas médias ca-
status de bairro, encravada no morro entre os bairros
riocas. A partir de Petit e da cultura de massas, da Gávea e São Conrado, Zona Sul carioca, áreas ex-
construiu-se um imaginário ligando a tatuagem tremamente valorizadas da cidade.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006


84 | Andréa Osório Tatuagem e autonomia | 85

site Beleza Pura4 que 70% de seus clientes são em que uma Resolução Municipal impediu a Tabela n. 1– Faixa etária dos clientes do estúdio pesquisado na Zona Norte.
mulheres (Leal 2005). Estas ichas de cadastro prática para menores de 16 anos, e entre os 16 MÊS /ANO
apontaram, ainda, para faixas etárias dominan- e 17 anos apenas com termo de responsabili- SETEMBRO/ DEZEMBRO/ JANEIRO/
FAIXA ETÁRIA TOTAL
2003 2003 2004
tes no público local, outras que não aquelas dade assinado pelo responsável. Ainda assim, 16-17 4 (2.5%) 6 (2.4%) 1 (0.6%) 11 (2%)
consideradas “jovens”. Estes dados indicaram a os estúdios pesquisados implementaram regras 18-19 16 (10%) 10 (4%) 12 (7.2%) 38 (6.6%)
necessidade de se repensar a tatuagem não mais próprias, ainda mais rígidas: naquele pesqui- 20-25 57 (35.8%) 78 (30.7%) 46 (27.7%) 181 (31.3%)
como uma prática de juventude, mas como um sado na Zona Sul, menores não são tatuados, 26-29 20 (12.6%) 49 (19.3%) 29 (17.5%) 98 (17%)
30-39 36 (22.6%) 87 (34.2%) 52 (31.3%) 175 (30.2%)
processo de marcação corporal que tem atingi- enquanto no estúdio pesquisado na Zona Nor-
40-49 19 (12%) 17 (6.7%) 22 (13.2%) 58 (10%)
do estratos populacionais que não estão rela- te7 o termo deve ser apresentado pelo próprio 50-59 6 (3.8%) 4 (1.6%) 3 (1.8%) 13 (2.2%)
cionados às culturas jovens. responsável. 60 ou mais 1 (0.6%) 3 (1.2%) - 4 (0.7%)
Fonseca (2003), em levantamento quanti- Esta situação indica uma tutela por parte da TOTAL 159 (100%) 254 (100%) 166 (100%) 579 (100%)
tativo das ichas de cadastro de clientes5 de um família que é vista por alguns como incômoda.
estúdio pesquisado na cidade de Florianópolis, Parece ser a necessidade de romper com este
Gráico n. 1 – Faixa etária dos clientes do estúdio pesquisado na Zona Norte, em nú-
observou que as faixas etárias não-jovens sofre- status de menoridade, não no sentido jurídico,
meros absolutos, nos meses pesquisados.
ram um incremento e os homens deixaram de mas valorativo, que leva alguns a se tatuarem 90
80
ser o público majoritário em função do cresci- assim que os 18 anos chegam. Ou seja, a marca 70
mento da clientela feminina6. Quanto à mu- parece ser um indicativo de liberdade – aqui 60
50 set/03
dança na faixa etária, o levantamento da autora uma liberdade sobre o próprio corpo que se 40
dez/03
30
demonstra que não houve clientes acima dos conjuga a uma liberdade por escolhas. Trata- 20 jan/04
10
40 anos entre 1997 e 1998, situação que mu- se de um processo análogo ao que se observou 0
16- 18-19 20-25 26-29 30-39 40-49 50-59 60 ou
dou paulatinamente a partir de 2000, ano em entre algumas mulheres de diversas faixas etá- 17anos anos anos anos anos anos anos mais
que já houve um cliente nesta faixa etária; em rias em que a resistência da família, sobretudo
2001, 7 clientes; em 2002, 12. A expressivida- nas iguras do pai e do marido, teve que ser ção interessante quanto à faixa etária da clientela. consideração a preponderância numérica de ca-
de daqueles abaixo de 20 anos, por outro lado, enfrentada com airmações como “esse corpo é Dezembro é considerado pelos tatuadores do es- sos em determinadas idades, que foram agrupa-
caiu. Em 1997, eram 142 indivíduos, contra meu”, indicando não apenas a necessidade de túdio um mês de alto movimento. Os meses do das. Entre os 16 e 17 anos é possível ser tatuado
135 dos 20 aos 39 anos. Em 2002, eram 90 uma autonomia individual, mas a diiculdade verão, os que o antecedem e o mês de julho são com a apresentação de uma autorização dos
abaixo dos 20 anos contra 235 acima, com de se adquirir/exercer esta autonomia. considerados mais proveitosos inanceiramente9. responsáveis. A partir dos 18 anos, construí fai-
uma super-representação da faixa de 20 a 24 O total do mês de setembro foi de 159 respostas xas que possibilitassem tanto uma diferenciação
anos: 113 indivíduos. Peril etário e de gênero sobre idade em 162 ichas10, enquanto o de de- numérica visível ao leitor, quanto a que público
Há ainda muitos jovens que buscam a ta- zembro foi de 254 em um total de 262 ichas e é realmente majoritário e em que faixa etária.
tuagem como prática de modiicação corpo- O levantamento efetuado no cadastro de o de janeiro foi de 166 respostas em 180 ichas, O que se torna mais relevante, ao meu ver,
ral. Entre os casos observados em campo, os clientes do estúdio pesquisado na Tijuca8, re- conforme a tabela 1 e o gráico 1 acima. é saber em que medida a tatuagem é hoje uma
recém-completos 18 anos são, muitas vezes, ferente aos meses de setembro e dezembro de A construção de faixas etárias é, até certo prática de juventude e em que medida ela tem
comemorados pela aquisição da marca. Os 18 2003 e janeiro de 2004, demonstrou uma varia- ponto, arbitrária. A busca por um critério que sido buscada por sujeitos mais velhos. Embora as
anos têm sido uma idade-limite, na medida permitisse a organização de tais dados levou em deinições de juventude tenham sido recorrente-
7. Embora a comparação entre Zona Norte e Sul cariocas mente baseadas em uma dicotomia entre a faixa
seja bastante presente na Antropologia Urbana brasilei-
etária e alguns marcos de transição para a idade
4. Ligado ao site do projeto Viva Favela do Viva Rio, ra, esta linha de análise não foi privilegiada no presente 9. Segundo os tatuadores, em função da remuneração
ONG carioca. O projeto privilegia as comunidades trabalho em função da baixa diferenciação observada salarial adicional recebida no período de férias.
adulta11 (Pais, Cairns e Pappámikail 2005), não
de favelas e assim o faz também o Beleza Pura, mas entre os clientes dos dois estúdios pesquisados. 10. Comparando-se os dados quantitativos de Fonseca
voltado ao universo da estética. 8. No estúdio pesquisado na Zona Sul, percebi que rara- (2003), que são anuais, com minha amostra, que é 11. São eles: im do processo de escolarização, primeiro
5. Entre 1996 e 2002, exceto 1999. mente os clientes preenchiam tais ichas, enquanto na mensal, observa-se que o estúdio da Tijuca que pes- emprego, saída da casa paterna, primeira união con-
6. O ano em que as mulheres se tornam maioria no es- Zona Norte nenhum cliente deixava de preenchê-las. quisei atende mensalmente uma proporção de clien- jugal e primeiro ilho, com um sentido linear dos
túdio pesquisado por Fonseca (2003) é 2000, man- Assim, não foi possível pesquisar o cadastro do estú- tes semelhante a que o estúdio catarinense pesquisado acontecimentos que têm se perdido nas últimas dé-
tendo-se maioria nos dois anos subseqüentes. dio observado na Zona Sul. pela autora atende anualmente. cadas em virtude de fatores como novos arranjos con-

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Gráico n. 2 – Percentuais de clientes no estúdio pesquisado na Zona Norte, nos meses Cairns e Pappámikail 2005), envolve dependên- Outra variação quanto ao gênero16 é o ta-
citados, agrupados em dois grupos etários, com corte aos 25 anos. cia inanceira, maior tempo residindo na casa manho da tatuagem: as femininas costumam
paterna/materna, instabilidade proissional no ser menores do que as masculinas. A região do
mercado de trabalho, mais anos de escolariza- corpo a ser tatuada também pode diferir entre
ção e, para alguns (Singly 1993), relações afeti- homens e mulheres, havendo regiões que são
vas instáveis – marcos mais relevantes do que a preferidas por elas e outras por eles, e ainda
26 anos e acima idade do indivíduo. Outros autores (Lyra et al. algumas tatuadas por ambos. Segundo o le-
2002) apontam, inclusive, para a criação de no- vantamento efetuado, as regiões mais tatuadas
16-25 anos
vas categorias classiicatórias para este fenôme- pelas mulheres são as costas (26,4%), seguidas
0,00% 10,00% 20,00% 30,00% 40,00% 50,00% 60,00% 70,00% no, como “adultescência”, “pós-adolescência” e por pescoço/nuca (23,6%) e por calcanhar/pé
“geração canguru”13. Para outros, contudo, mais (9,5%). Entre os homens, o braço emerge como
Gráico n. 3 n.– 3Percentuais
Gráfico dedeclientes
– Percentuais clientesno
no estúdio pesquisadonanaZona
estúdio pesquisado Zona Norte,
Norte, nos nos meses
meses surpreendente pode ser a existência de casos de preferido absoluto (61,7%), evocando a noção
citados, agrupados em dois grupos etários, com corte aos 29 anos. tatuagem em indivíduos acima dos 60 anos. de força física como um valor masculino.
Quanto ao gênero, atualmente o público fe-
minino tem sido maioria nos estúdios (Milin Família, Estado, mercado de trabalho
1997; Leitão 2002). Em conversas com tatu- e tatuagem
adores cariocas, a informação foi conirmada.
30 anos e acima
Esta parece ser uma mudança no quadro dos Embora o consumidor da tatuagem não seja
16-29 anos tatuados, pois historicamente a tatuagem oci- essencialmente adolescente, estúdios e poder
dental esteve mais ligada ao universo masculi- público desenvolveram uma série de restrições
0,00% 10,00% 20,00% 30,00% 40,00% 50,00% 60,00%
no, sobretudo nas iguras dos marinheiros, dos para o seu atendimento. A partir de agosto de
militares e dos criminosos14. A partir das ichas 2004, a Prefeitura do Município do Rio de Ja-
é possível neste trabalho operar a partir destes Acima desta faixa, ou seja, dos 26 em diante, de cadastro de clientes preenchidas em um dos neiro determinou que menores de 16 e 17 anos
marcos, uma vez que os dados que permitiram há um total de 349 casos (60,1%), conforme estúdios pesquisados, pode-se observar esta podem ser tatuados desde que responsáveis as-
a construção de um peril de clientes são majo- pode ser observado no gráico nº 2. Se o cálcu- maioria feminina, que constitui uma média de sinem um termo de responsabilidade. Apesar
ritariamente quantitativos, o que me leva a uma lo fosse efetuado com um grupo de 16 aos 29 70% da clientela daquele estúdio15. das restrições e do baixo número de clientes
abordagem mais etária e geracional do que dos anos, este total se alteraria para 338 clientes jo- As tatuagens mais populares entre as mulhe- nesta faixa etária (2%), pode-se encontrar nos
marcos da transição à idade adulta. Desta forma, vens (56,9%), contra 250 a partir dos 30 anos res, segundo as ichas de cadastro pesquisadas, se- próprios estúdios quem tenha feito a primeira
agrupei os resultados inais em dois blocos: um (43,1%), conforme pode ser observado no grá- guindo a classiicação dos próprios tatuados, são tatuagem em idade inferior aos 16 anos.
que vai dos 16 aos 25 anos e outro que vai dos ico n.º 3. A faixa entre 26 e 29 anos, portanto, a borboleta (13,7%), a estrela (12,9%) e a lor Em uma tarde de observação na Zona Nor-
26 em diante. Esta escolha se alinha com a in- é o diferencial para se deinir se a tatuagem é (11,5%). Evocam valores da feminilidade: frágeis, te, ouvi a história de Márcia17, uma moça de 28
dicação etária da OMS sobre o escopo etário da hoje procurada por jovens ou não-jovens. delicados, pequenos. As tatuagens mais populares anos, casada, mãe de dois ilhos, microempre-
categoria “juventude” como sendo constituído Pode-se observar na tabela acima que o públi- entre os homens, segundo as ichas pesquisadas, sária. Estava fazendo sua terceira tatuagem. A
de indivíduos entre 10 e 24 anos, embora alguns co preponderante está entre os 20 e os 39 anos, são os ideogramas japoneses (14,4%), as tribais primeira, contou, izera aos 13 anos. Já estava
autores possam utilizar outro escopo12. com uma ligeira vantagem para as faixas entre (11,4%) e as letras/frase/escrita (10,6%). desgastada e ela pensava em retirá-la com laser.
Segundo os dados levantados, dos 16 aos 25 20 e 25 anos e entre 30 e 39 anos. Esta última Não queria retocá-la nem cobrir com outro de-
anos tem-se um total de 230 clientes (39,9%). faixa é, talvez, aquela que cause alguma surpre- senho, pois achava a região tatuada exposta, à
sa, pois os 30 anos não costumam ser considera- mostra com certos tipos de roupa. A tatuagem
13. Embora os autores não indiquem o sentido desta úl-
dos como juventude, muito embora os marcos localizava-se nas costas, perto do ombro. Segun-
jugais, uma nova moral sexual pós-década de 1970, tima expressão, parece se tratar de uma crítica à saída
a atual diiculdade de inserção no mercado de traba- da passagem à vida adulta venham se tornando considerada tardia da casa paterna/materna. do disse, esteve em um evento com clientes de
lho e, conseqüentemente, de estabilidade inanceira tardios, ou seja, sendo alcançados em idades 14. Ver Gilbert (2000) e Le Breton (2002), entre outros.
(Vieira 2006). mais avançadas. O avanço etário da juventude, 15. Em setembro de 2003, foram 80,2% de mulheres; 16. Para uma relexão mais aprofundada, ver Osório
12. Pais, Cairns e Pappámikail (2005), por exemplo, para conforme apontado por diversos autores (Pais, em dezembro de 2003, foram 70%; em janeiro de (2005a) e Osório (2005b).
efeitos de pesquisa tomaram a faixa de 16 aos 34 anos. 2004, foram 65,5%. 17. Todos os nomes são ictícios.

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sua empresa e, sentindo calor, retirou o casaco. tinha a certeza de que ela seria bem atendida, força transformadora, mas também como um hora para ser atendida, mas não havia informa-
O vestido que usava deixava a tatuagem à mos- com proissionais capacitados e material este- elemento desordenado e caótico: não pensa no do a ninguém de sua família que seria tatuada
tra, o que foi observado por algumas pessoas e rilizado. Ao mesmo tempo em que não queria futuro, não pensa em seu ingresso no mercado naquela ocasião. Quando o marido lhe telefo-
automaticamente transformou-se em assunto perder a cliente, ele se preocupava com o que de trabalho e por isso pode se arrepender de se nou para saber onde estava, disse-lhe que seria
entre elas. O comentário que recebeu e repro- Costa (2004) chamou de biossegurança. tatuar em locais visíveis, ou mesmo de se tatuar; tatuada em um estúdio. O marido foi contra.
duziu para mim foi o seguinte: “Nossa, você Durante a conversa com Maria, alertou-a sua mentalidade e interesses podem mudar, pois A cena sucedeu da seguinte forma: o marido
tem tatuagem? Mas nem parece!”. que pensasse bem sobre qual desenho gostaria é um ser incompleto e inexperiente, que viveu desligou o telefone; voltou a ligar e Cândida
A tatuagem executada sobre a adolescente de tatuar e em que parte do corpo. O ingresso poucos anos. Enquanto ele muda e a juventu- tentou explicar-lhe que era seu o corpo que se-
de 13 anos passou a ser vista como um trans- no mercado de trabalho foi o alvo dos alertas de passa, a tatuagem permanece. Por isso deve- ria marcado e que ela desejava uma tatuagem;
torno 15 anos depois em função das exigências sobre o local escolhido. Segundo ele, deveria se pensar bem, escolher com cautela e reletir. o marido contatou os pais dela que, também
do mercado de trabalho, ainda que Márcia não optar por uma região que não lhe causasse Mas, como indica Almeida (2001), mesmo contrários, tentaram demovê-la de suas inten-
fosse empregada, mas microempresária. O ato transtornos futuros. Sobre o desenho, disse que para pós-adolescentes, nem sempre a tatuagem ções por telefone; ao inal da sessão de telefone-
de tatuar-se, contudo, não causou nenhum ar- aquela tatuagem seria carregada pelo resto da é o resultado de um processo relexivo. mas, ela comentou comigo: “O corpo é meu, o
rependimento, visto que ela fez mais duas ta- vida, que escolhesse algo de que não se arre- Segundo Lyra et al. (2002), idéias sobre a dinheiro é meu, ninguém tem nada a ver com
tuagens. A diferença era, apenas, na escolha da pendesse, pois os gostos da adolescência nem adolescência normalmente evolvem concep- isso. Agora você vê: eu tenho 38 anos e não
região do corpo: tatuava-se em regiões em que sempre são os mesmos da idade adulta. Neste ções de crise, desordem, irresponsabilidade e posso tomar minhas próprias decisões!”.
pudesse esconder a marca. O desejo de escon- ponto, a mãe de Maria concordou e disse que risco (de gravidez, de contágio por HIV, de uso Cândida sofreu reprimendas em duas ins-
dê-la não é particularidade sua, mas uma preo- a mentalidade da adolescência e os interesses de drogas e de uso/vitimização por violência). tâncias: como esposa e como ilha. No primeiro
cupação de vários tatuados, sempre em função deste período nem sempre acompanham as Conforme os autores (Lyra et al. 2002: 12), o caso, conquanto participando da “família con-
do mercado de trabalho18. mudanças da vida. Apenas depois de tantos adolescente é um “sujeito permanentemente jugal moderna”, ou família nuclear, observa-se a
O comentário recebido por Márcia deixa alertas, perguntou-se a Maria o que ela deseja- em risco, submetido a uma condição especial”. força do marido como autoridade, o que faz pen-
transparecer que a tatuagem não é tão bem acei- va tatuar: “uma estrela”, respondeu. O dono do O risco que o adolescente representa a si e à sar no que Vaitsman (1994: 33) chamou de “um
ta quanto se imagina atualmente: não apenas há estúdio relaxou, pois icou de acordo que era sociedade é o que leva a idéia de prevenção. No individualismo patriarcal, legitimando as relações
situações em que ela deve ser escondida, como o um desenho difícil de causar arrependimento. caso das tatuagens, esta prevenção tomou a for- hierárquicas entre homens e mulheres, nas esfe-
fato de ter de sê-lo envolve uma percepção real, Na medida em que os desenhos escolhidos ma de uma ação estatal regulatória. ras pública e privada”. “Aquilo que, realmente e
factual, e não imaginária, de que a tatuagem pode pelas mulheres, especialmente criados para elas e Embora os cuidados gerados pelo Estado na de forma mais evidente, pertence ao indivíduo
causar transtornos. Uma marca mal-vista no mer- classiicados nos estúdios sob a categoria “dese- aplicação de tatuagens em jovens tenham dado – seu corpo e seu esforço” (Vaitsman 1994: 28)
cado de trabalho, que deve ser escondida, torna-se nhos femininos”, envolvem representações de fe- aos pais a última palavra sobre o assunto, du- –, a família de origem e a família nuclear à qual
um adorno charmoso na praia, ou em outras situ- minilidade, estes desenhos são formados por um rante o campo no estúdio da Tijuca não percebi Cândida pertence tentaram simultaneamente
ações, como o lerte, por exemplo (Leitão 2003). escopo restrito de possibilidades que envolvem, nenhum conlito geracional na escolha pela ta- roubar-lhe, ou negar-lhe. Sendo esposa, Cândida
Em outra ocasião, antes de serem tornadas fundamentalmente, animais e insetos conside- tuagem. Nunca ouvi nenhum cliente comentar não cessou de ser ilha, ainda sob a vigilância ze-
públicas as novas determinações municipais rados não-agressivos, lores e desenhos infantis, posições contrárias oriundas da família, a não losa, embora distante, dos pais.
sobre o funcionamento dos estúdios, observei como bonecas, querubins e personagens de gibis ser no caso de mulheres adultas com relação Entre os clientes mais jovens, todavia, a famí-
um caso correlato no mesmo estúdio. Maria, e desenhos animados (Meninas Superpoderosas a seus maridos. Aqui, a questão da indepen- lia não era mencionada. Diversas vezes, na ver-
16 anos, acompanhada pela mãe, queria ser ta- e Hello Kitty, entre outros). Os desenhos infan- dência inanceira feminina como relacionada à dade, observei moças jovens comparecerem ao
tuada. O recepcionista encaminhou mãe e ilha tis são aqueles mais passíveis de causarem “ar- sua emancipação se torna bastante visível, bem estúdio acompanhadas pelas mães, o que indica
para que conversassem com o proprietário do rependimento”, pois se imagina que não farão como a separação entre estas esferas da inde- uma aceitação da prática, mas também, gostaria
estúdio. Este não se recusou a tatuar Maria, ar- sentido para o(a) (corpo) adulto(a). pendência e da autonomia (Vieira 2006). de sugerir, sendo uma prática atualmente majo-
gumentando para mim que, se ele se negasse a Há uma representação social sobre a ado- O caso mais paradigmático, neste sentido, ritariamente feminina, tem se tornado parte das
atendê-la, ela procuraria um outro estúdio ou lescência presente nas histórias acima que pa- foi o de Cândida, 38 anos, casada, mãe e traba- práticas femininas de embelezamento e, portan-
outro proissional. Em seu estúdio, disse-me, rece ser um dos fatores de preocupação quanto lhando fora de casa em proissão não especiica- to, um momento passível de ser compartilhado
à tatuagem em menores. O adolescente – e o da. Chegou ao estúdio no inal da tarde, vinda entre mãe e ilha. Na maior parte das vezes, vi
jovem de um modo geral – é visto como uma diretamente de seu trabalho. Havia marcado as mães aguardarem suas ilhas na sala de espera.
18. Para maiores considerações, ver Osório (2006).

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Em alguns casos, a mãe se tornava conselheira, tornava mais evidente, mesmo que se tratasse do um lado os pais e o discurso médico se alinham rapaz argumentou que, sendo fumante, a mãe
observando o processo de tatuar e interferindo, uso do piercing e não da tatuagem. Apresentados em uma voz quase uníssona; de outro, os ilhos corria mais riscos de ter a doença do que ele.
quando achava necessário. Esta interferência diz na reportagem como grupos geracionais em con- e o psicólogo apresentam as modiicações cor- Vânia Maria de Oliveira, dona-de-casa, ne-
respeito, sobretudo, ao que será tatuado (dese- lito, percebe-se como os pais faziam uso de per- porais como fruto da sociedade e da cultura. gou às ilhas de 13 e 16 anos permissão para se
nho) e onde (local do corpo). De fato, obser- cepções médicas do corpo para confrontarem os A professora Maristella Almeida Cunha, submeterem ao piercing. Segundo ela, “isso é só
vei que as mães que desempenham este papel usos que os ilhos – jovens – fazem dele. O corpo mãe de uma adolescente que fez um piercing um modismo. Vai passar como todas as modas.
de “conselheiras” exercem um controle sobre emerge como o local da disputa e do controle. aos 13 anos, contou à revista Vida como se Além disso, existem riscos à saúde delas. (...) Se
os corpos de suas ilhas. A mãe no estúdio de Ao longo da reportagem, percebe-se que os preocupou com o que considerou “despreparo permitisse que elas colocassem o piercing, estaria
tatuagem desempenha uma dupla função: ela pais entrevistados, embora apelem para questões para algum imprevisto. Não havia kit de pri- trazendo problemas para todos nós” (Almeida
dá apoio, mas também controla, restringindo a de “risco à saúde”, não estão apenas preocupados meiros socorros, nem um proissional de saúde 2004: 18). A ilha de 16 anos argumentou que
escolha do desenho e do local do corpo a serem com os malefícios físicos que tal prática pode vir (...)” (Almeida 2004: 17), apesar de ter consi- o piercing pode ser retirado, diferentemente da
tatuados (Osório 2005b). a trazer, mas também com as suas implicações derado o local bastante asséptico. Logo após, tatuagem, que é permanente: “Tatuagem, não.
No caso de adolescentes, a companhia de morais. Os pais se referem a “problemas”, nunca ela concluiu: “Não considero o piercing um É uma marca para sempre” (Almeida 2004: 18).
um dos responsáveis é condição sine qua non especiicados, o que leva a uma idéia de que ou adorno bonito. Ao contrário, acho vulgar” (Al- Neste caso, o piercing está em contraposição à
para a tatuagem. No estúdio da Zona Sul, os não há argumentos substanciais e a noção de ris- meida 2004: 17). tatuagem na percepção adolescente, mas não
menores não são nem tatuados nem se aplica co está vinculada a um medo difuso19, ou se tra- O designer gráico Cláudio Novaes, pai de na materna. Esta diferença é utilizada como ar-
piercings, mesmo com o acompanhamento de ta de uma alusão a possíveis estigmas (Gofman uma adolescente de 14 anos que teve a jóia co- gumento para uma prática vista pelos pais não
um dos responsáveis. Neste estúdio, observei 1975) tampouco determinados. Observe-se que, locada em seu umbigo, tinha como argumen- apenas como perigosa, mas como de mau gosto,
um caso em que a mãe era contra a tatuagem, na medida em que concepções de juventude en- tos contra a prática “perigos [não especiicados] vulgar, fruto de uma moda que, como todas as
mas observei também clientes sendo acompa- volvem a idéia de que os jovens podem romper à saúde”, o peso de ser uma marca deinitiva21 modas, há de passar um dia.
nhadas pelas mães. Nice, cliente na Zona Sul, com códigos morais vigentes mais conservado- no corpo e a imaturidade da ilha para cuidar Sobre esta categoria, “moda”, é interessan-
fez sua primeira tatuagem em janeiro de 2005: res e que formam uma espécie de grupo de ris- do local perfurado. A solução para as alições te observar que a palavra traz em si a idéia de
o nome de São Judas Tadeu na nuca. Devota do co (Lyra et al. 2002), é justamente a implicação do pai zeloso foi procurar um cirurgião que algo passageiro, idéia compartilhada pela ilha.
santo, esperava para tatuar sua imagem em ou- moral de seus atos o que preocupa os pais. Se a colocasse a jóia na menina. A preocupação de Ao mesmo tempo, “moda” ganha um tom pe-
tra ocasião, o que realmente ocorreu. Na época desconiança quanto à assepsia e a capacitação Cláudio fora reforçada, segundo a reportagem, jorativo, de algo que inluencia os sujeitos para
de sua primeira tatuagem morava com a mãe, do piercer podem ser contornadas com a apli- por um evento familiar. O primo de sua ilha, além de sua capacidade relexiva e crítica, o que é
contrária aos desenhos permanentes no corpo, e cação da jóia feita por um médico, salvando o Daniel Viana, colocara um piercing na língua, indicado pela noção de que um piercing poderia
se aligia em ter que esconder a marca. O irmão jovem dos “riscos à saúde”, a desconiança moral aos 17 anos, sem o conhecimento dos respon- trazer problemas a toda a família e não apenas às
era cliente do estúdio e a havia levado até lá, não pode ser contornada. sáveis. Segundo Daniel, o proissional “esterili- meninas. Sendo algo passageiro para Vânia, ela
em companhia de sua noiva, que também seria Na revista, apenas adolescentes do sexo fe- zou os instrumentos e me mostrou que a agulha não lhe dá valor, prevendo que o tempo dará cabo
tatuada. Nice havia escolhido a nuca proposi- minino foram entrevistadas20. Um único rapaz era descartável (...)” (Almeida 2004: 19), o que dos desejos das ilhas. A adolescente, contudo,
talmente, pois os longos cabelos serviriam para mencionado é primo de uma das entrevistadas, lhe fez coniar no processo. Contudo, segun- utiliza o mesmo argumento para tentar conven-
esconder a marca do olhar cuidadoso e vigilante todas menores de 18 anos. Ao inal da reporta- do a repórter, ele teve “uma leve inlamação no cer a mãe de que os eventuais problemas também
da mãe. Embora o irmão fosse tatuado, a mãe de gem, as opiniões de um médico e de um psi- local” (Almeida 2004: 19), o que fez a mãe do seriam passageiros, pois a jóia pode ser retirada.
ambos não poupava críticas à escolha do ilho e cólogo dão pistas sobre as diferentes visões: de rapaz, médica, determinar a retirada da jóia, Não creio, contudo, que se tratem dos mesmos
Nice pretendia fugir às situações de constrangi- alegando, segundo Daniel, que ele estava pro- “problemas”. Quando a adolescente compara
mento materno ocultando a marca. A vigilância penso a desenvolver um câncer na língua. O tatuagem e piercing, trazendo à tona a diferente
19. Gonçalves (2005), sobre o medo que os pais têm
e a atenção sobre os ilhos permanecem como natureza das práticas quanto à sua permanência,
de que seus ilhos sejam vítimas da violência urba-
característica da família (brasileira). na, percebe também que o medo é de origem difusa, 21. O piercing não é deinitivo. Segundo o piercer que o que faz é elaborar uma relexão sobre elas. Ela
Em reportagem de capa para a revista Vida de como se o risco fosse difuso. trabalhava no estúdio pesquisado na Zona Sul, pou- se coloca em posição desprivilegiada para decidir
agosto de 2004 (Almeida 2004), veiculada sema- 20. O estudo dos usos relativos ao piercing não é objeto cas semanas após a retirada da jóia, independente de sobre algo que pode marcá-la por toda a vida,
nalmente pelo Jornal do Brasil, em função da Re- da pesquisa aqui apresentada, portanto não possuo quanto tempo ela permaneça no corpo, são suicien- como a tatuagem, mas não para decidir sobre o
solução Municipal carioca, o conlito geracional se informações sobre o peril dos adeptos, sua faixa etá- tes para a oclusão do furo. Contudo, alguma marca piercing, por sua qualidade não-permanente.
ria ou gênero majoritário. pode ser deixada na pele.

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No conlito de gerações, são noções morais fosse o único. A cada nova tatuagem, contou Marcela, por sua vez, fora para sua primeira status, que mostra ao mundo este novo status
de gosto (o vulgar e o modismo, por exemplo) que ele, a mãe reforça o desejo de que não se tatue tatuagem acompanhada por uma amiga de cer- recém-adquirido. Muito mais do que tatuadas,
parecem exprimir os prós e contras para piercings mais. Seu pai, por outro lado, foi mais enfático ca de 35 anos, que já possuía algumas. O dese- estavam informando, por meio de seus corpos,
e tatuagens – e possivelmente outras práticas de na crítica ao ilho: disse-lhe que “quem pinta o nho era um presente de aniversário, cujo valor que eram pessoas “maiores”, ou seja, com um
modiicação corporal, mas gostaria de sugerir corpo é índio”, indicando a velha diferenciação seria dividido entre as duas. Escolheu um gno- grau de autonomia antes inexistente.
que o que está em jogo é, de fato, o grau de auto- entre hábitos civilizados, de bom gosto, e hábi- mo sentado em um cogumelo, mas pediu ao Ao invés de um isolamento no ato de serem
nomia dado ou negado aos ilhos. Quando o tos selvagens, que devem ser evitados. tatuador que diminuísse o desenho. Escolheu tatuadas, apresentaram uma sociabilidade intra-
gosto adolescente e o gosto paterno entram em Moda ou “coisa de índio”, trata-se de algo as costas (omoplata) para tatuá-lo, mesmo local geracional, como que marcando, além do cor-
conlito (no caso paterno, relacionado a questões que não nos pertence e que, por isso, deve ser em que Márcia izera sua primeira tatuagem. po, uma prática associada ao indivíduo e não a
morais), lança-se mão dos “riscos à saúde” para abandonado. Trata-se, justamente, de uma A panturrilha que Mônica escolheu tatuar é processos coletivos. Torna-se interessante, aqui,
coibir as intenções dos mais jovens. Em sujeitos diferença cultural. O pai do cliente observa a um local tão visível quanto as costas onde Már- diferenciar esta situação daquela na qual a mãe
acima desta faixa etária, não há como proibir a prática como culturalmente mais alinhada com cia e Marcela izeram suas primeiras tatuagens. acompanha a ilha, quando a relação interge-
prática, mas a atuação repressiva da família opera outros povos, operando uma desvalorização da Sendo a tatuagem um adorno corporal, que o racional marca um processo coletivo feminino
mais diretamente com as noções de gosto e de mesma. É justamente nesta falta de percepção tatuado entende como uma espécie de embele- de práticas corporais e não necessariamente um
risco, como que escondendo por trás do embate da tatuagem como uma nova prática corporal, zamento de seu corpo, convém perguntar se a rompimento com um status de menoridade.
a questão central da autonomia. alinhada com uma nova cultura do corpo, que primeira marca não é escolhida justamente em Convém questionar, aqui, o quanto a companhia
Não se trata, aqui, de negar a preocupação os pais de adolescentes encontram argumentos algum lugar de fácil visibilidade, para que este- do responsável freia a sensação de autonomia em
dos pais quanto ao bem-estar de sua prole, nem para se oporem aos piercings, desvalorizando-os ja à mostra, identiicando o antes não tatuado a adolescentes de 16 e 17 anos que desejam ser
tampouco observar seu papel exclusivamente a partir da noção de que se trata de uma moda. um agora-tatuado. A idéia de ser tatuado pode tatuados. Por outro lado, alguns autores têm
sob a ótica da imposição de limites. Pelo contrá- Tenho sugerido aqui, contudo, que se trata me- envolver noções de que o tatuado é uma pessoa apontado para a relevância do apoio familiar no
rio, apontei neste trabalho como as mães, espe- nos de uma questão de “gosto” ou de “risco” do alheia às imposições sociais22, que tem persona- cotidiano de jovens que não residem mais com
cialmente, podem apoiar as ilhas na decisão de que da percepção da família de que se tatuar é lidade para ir contra elas – o que de fato nem suas famílias, casados ou não (Singly 1993). Se a
adquirir uma tatuagem. O que a reportagem apre- uma forma de exprimir individualidade e que sempre ocorre, dada a preocupação em poder família apóia a emancipação, pode perfeitamen-
senta é uma visão que os pais têm da juventude e o piercing constitui, neste processo de indivi- esconder os desenhos –, de que é autêntico e te bem apoiar a tatuagem, respeitando a escolha
de modiicações corporais que se tornaram popu- dualização e exercício de autonomia, espécie de original. Ao mesmo tempo em que a panturri- do adolescente, seja ela encarada como uma bus-
lares recentemente, tanto quanto de seu próprio meio caminho andado. lha de Mônica e as costas de Márcia e Marcela ca pelo exercício de autonomia ou não.
papel regulatório como pais, cuidando tanto da podem ser facilmente deixadas à mostra, tam- A tatuagem como marca de mudança de sta-
saúde quanto do comportamento moral de seus Mudança de status bém podem ser escondidas pelas roupas. Már- tus não é exclusividade dos jovens. No estúdio
ilhos. Este papel da família não é recente, mas é cia, contudo, não viu muita praticidade em ter pesquisado na Zona Sul, observei Nice, já recém-
um produto das transformações sociais entre os Em outras ocasiões, vi meninas com os re- que esconder sua primeira tatuagem, em um casada, adquirir tatuagens após a saída da casa
séculos XVIII e XIX na Europa, popularizadas cém-completos 18 anos irem ao estúdio para local mal escolhido segundo sua visão atual. materna e da mudança de seu status de solteira
nos preceitos higienistas (Donzelot 1986). serem tatuadas. Mônica foi ao estúdio da Tiju- Para Marcela e Mônica, os 18 anos foram para casada (uma das tatuagens era o nome do
Um cliente do estúdio pesquisado na Zona ca para se dar de presente de aniversário, como marcados pela idéia de liberdade: a liberdade de marido). Em outra ocasião, conheci um senhor
Sul, Francisco, indicou como viveu o processo contou, sua primeira tatuagem. Havia atingido se tatuarem, a autonomia sobre seus corpos, a recentemente aposentado que fazia sua primei-
familiar contrário à tatuagem. Morando sozi- à maioridade três dias antes. O namorado foi liberdade de fazerem dele o que quisessem, sem ra tatuagem com o signiicado, segundo ele, de
nho desde seus 19 anos, tatuou-se sem o co- acompanhá-la na aventura. Escolhera tatuar a presença de nenhum responsável, mas com um recomeço em sua vida, portanto marcando
nhecimento de seus pais. O desenho gravado um leão por ser o seu signo astrológico. O ta- o apoio de uma amiga ou um namorado. Ou igualmente uma mudança de status.
no braço era escondido pelas mangas de cami- tuador escolheu um leão ilhote como modelo seja, liberdade e autonomia, mas não isolamen- Estes casos ensejam uma idéia de tatuagem
sa. Quando se tornou mais coniante de seu de- e teve a preocupação de torná-lo “um desenho to. Ambas pareciam igualmente realizadas por como rito de passagem (Van Gennep 1978).
sejo por novas marcas, Francisco tornou-se, ao feminino”, conforme disse a Mônica, ou seja, passarem por aquele processo, como se ele fosse O rito, porém, não parece ser constituído pelo
mesmo tempo, mais relaxado no encobrimento sem traços de agressividade. A moça escolheu a a prova, espécie de marca de uma mudança de processo de ser tatuado, mas ostentar a tatua-
da tatuagem. A mãe, ao perceber o desenho, panturrilha como local a ser marcado, na parte gem pode se tornar uma forma de marcar esta
disse-lhe que era bonito, mas que esperava que lateral, um pouco acima do tornozelo. 22. Posições contrárias oriundas da família e do mercado mudança de status. Conforme Van Gennep
de trabalho, entre outros.

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(1978), a marca corporal faz parte de alguns lidade, associada a uma noção de individualida- tencimento a si. Rito pessoal para se transfor- ro. Em outras palavras, os jovens aos quais me
destes ritos23. Os ritos de passagem são forma- de. Não se trata, necessariamente, de observar mar transformando a forma de seu corpo”26 (Le reiro no presente artigo são, em sua maioria, as
dos por três estágios, por assim dizer: separação, a tatuagem como expressão de um Eu interior, Breton 2002: 175). jovens. Dadas as relações de gênero no Brasil,
margem e agregação. A marca corporal, neste de uma identidade que alora na pele. A esco- A marca dá posse ao corpo, uma posse re- onde uma igualdade entre os sexos não foi al-
contexto, é a marca de agregação. No caso dos lha de desenhos cujos signiicados são pessoais quisitada pelo sujeito frente a determinadas cançada, pode-se propor que, para elas, alcan-
18 anos recém-completos, de agregação ao uni- denota, ao contrário, um uso relexivo da esco- instâncias (controladoras) da sociedade. No çar uma autonomia tem um sentido particular,
verso da maioridade. lha, amparado de certa forma em escolhas ra- caso dos jovens, esta instância é a família e é na medida em que as moças costumam ser
cionais. Originalidade e autenticidade não são compreensível que o seja, uma vez que a saída mais controladas do que os rapazes. De fato, a
Autonomia, corpo, individualismo e sinônimos. Um desenho original é aquele sem da casa paterna/materna e a independência i- pesquisa de campo apontou para um constran-
posse de si cópia, ou seja, individual, que ninguém mais nanceira constituem marcos da transição para a gimento sofrido por algumas mulheres adultas
possui. Ele distingue seu portador. Autentici- idade adulta e, conseqüentemente, de indepen- (economicamente ativas, casadas e mães) ao
O individualismo na juventude incorre em dade é uma noção que remete à idéia de uma dência e ganho de autonomia. Assim, ao mes- fazerem suas tatuagens, constrangimento este
elementos como o valor dado à autonomia, à identidade latente, conforme Singly (1996). mo tempo em que marca a mudança de status, causado tanto pela família de origem quanto
diversão e à experimentação, bem como às A tatuagem relacionada à autonomia foi carac- atesta o tomar posse de seu corpo como uma pelo marido/namorado/companheiro. O con-
idéias de escolha, auto-realização e autenticida- terizada na literatura dedicada ao estudo das tatua- forma de autonomia pessoal. trole dos corpos femininos é exercido de uma
de (Pais, Cairns e Pappámikail 2005). No caso gens sob o conceito de posse de si (Benson 2000; Le O mercado de trabalho, por outro lado, é forma que não se opera sobre os homens (Bour-
da tatuagem, é necessária uma leitura conjun- Breton 2002), segundo o qual os tatuados marcam uma instância reguladora cujo poder não pode dieu 2003) e este controle é uma das principais
ta sobre individualismo e usos do corpo. Em seu corpo como uma forma de airmação de pro- ser questionado, tampouco o é. Em campo, formas de controle dos sujeitos.
meu argumento, a tatuagem entre alguns jovens priedade sobre ele. Noção amparada em um con- observou-se todo um processo de racionaliza- Autoridade, autonomia e controle corpo-
tanto quanto entre algumas mulheres – embora texto individualista, em que a autonomia pessoal ção na escolha dos locais a serem tatuados, em ral são questões relacionadas que se tornam
aqui eu tenha privilegiado os primeiros como é valorizada e buscada, traz questões relacionadas função não apenas da família, mas sobretudo explícitas em contextos de punição física28 e
foco da análise – expressa uma busca, ou um à dinâmica entre indivíduo e sociedade, mas tam- do mercado de trabalho. Este aceita os tatuados marcação punitiva. Em qualquer caso de mar-
exercício, de autonomia pessoal, conceito rela- bém controle e resistência, superfície e profundi- apenas na medida em que suas tatuagens pos- cação punitiva, o que está em jogo é o poder de
cionado, conforme visto, ao de individualismo e dade e, ainda, corpo/mente (Eu interior). sam ser consideradas discretas, o que na maior controle da autoridade que pune sobre o indi-
de experimentação. O corpo pode ser, nestes ca- Para Benson (2000), é em um contexto indivi- parte das vezes signiica pequenas27 e cobertas, víduo. A marcação é um meio de estigmatizar
sos, um dos espaços desta experimentação tanto dualista ocidental que a tatuagem passa a adquirir conforme reportagem de Calaza (2005) para o e identiicar (Anderson 2000). Se ela é perma-
quanto da marca desta autonomia. A auto-reali- este uso de posse de si, identiicando o corpo não jornal O Globo demonstrou. nente, signiica que a identidade atribuída por
zação, a experimentação e a autonomia passam mais como um objeto e sim como pertencente ao Contudo, conforme vem sendo apontado meio da marca também é pensada como per-
pelos usos que o sujeito faz de seu corpo. Eu, ao sujeito. Trata-se de uma marca que emer- pela literatura dedicada ao tema das tatua- manente por aquele que a produz. Gustafson
Observei em campo uma visão dos tatuado- ge à superfície vinda das profundezas do Eu, em gens, hoje as mulheres constituem a clientela (2000) airma que a marca29 é envolta em um
res que opõe modismo e originalidade. Esta é uma espécie de grito por autonomia. majoritária da prática. Assim, pode-se sugerir processo pedagógico que visa alterar a menta-
mais valorizada do que aquele. Embora se trate Para Le Breton (2002), o conceito é percebi- aqui, também, que a tatuagem como signo de lidade, a noção de si e o poder pessoal. Logo,
de uma oposição que se refere aos desenhos es- do na disputa geracional entre jovens e pais. A autonomia opera dicotomicamente tanto em a marca auto-imposta pode funcionar de igual
colhidos e à natureza desta escolha (desenhos disputa pelo controle daqueles, que passa pelo termos geracionais quanto em termos de gêne-
“da moda” versus desenhos cujo signiicado é controle de seus corpos, faz com que busquem 28. Gonçalves (2005) chama a atenção para o uso da pu-
pessoal)24, pode-se muito bem ampliar esta vi- na tatuagem uma forma de marcar o pertenci- 26. “La marque corporelle signe l’appartenance à soi. Rite nição física de crianças e jovens de classes populares
são identiicando na própria marca a conferên- mento de seus corpos a si mesmos, e não mais a personnel pour se changer soi em changeant la forme de por seus pais, especialmente as mães, que, segundo a
son corps”. autora, defendem tais métodos vistos por elas como
cia de um status positivo, do ponto de vista do seus pais. Diz o autor: “os corpos legados pelos
27. Daí, provavelmente como mais uma variável na cons- educativos, crendo que são capazes de forjar o bom
tatuado, no sentido de que lhe confere origina- parentes são modiicados para se fazerem de- trução desse novo público da tatuagem, a grande caráter, apontando para um caminho de retidão mo-
initivamente seus [dos jovens]”25 (Le Breton procura feminina por tatuagens: suas áreas do cor- ral. Embora não se possa airmar que o público pes-
23. Para exemplos concretos ver Borel (1992) e Gell 2002: 172). “A marca corporal assinala o per- po tatuadas e seus desenhos são sempre pequenos e quisado tenha sido educado desta forma pela família,
(1993). o jogo de revelar/esconder é utilizado por elas em ica o registro de que a família pode utilizar a força
24. Pessoalmente atribuído ao desenho ou a uma fase de 25. “Les corps légué par les parents est à modiier pour le aspectos outros que não o proissional, tais como o física como punição.
vida que o tatuado diz que o desenho representa. faire déinitivement sien”. lerte e a sedução. Ver Leitão (2002). 29. Tatuagem e branding (marca a ferro quente).

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forma, alterando a mentalidade e a noção que Foi apenas a partir de uma visão dada pelo Não coube tratar de cada um deles, mas indicar Referências bibliográicas
o sujeito tem de si, bem como seu poder pesso- trabalho de campo que se pôde constituir algu- um caminho relexivo para se compreender sua
al. Neste caso, sugiro um aumento desse poder mas das idéias aqui apresentadas. Em primeiro importância e seu uso entre os jovens. ABRAMO, Helena. 1994. Cenas juvenis – punks e darks
e a formação de uma percepção de autonomia lugar, a tatuagem não é um adorno caracteristi- Os embates percebidos na aceitação ou não no espetáculo urbano. São Paulo: Scritta.
ALMEIDA, Maria Isabel Mendes de. 2001. “Nada além
pessoal. O corpo pode ser marcado como pro- camente jovem, mas é popular entre os jovens. da tatuagem e no desejo por ela não são oriun-
da epiderme: a performance romântica da tatuagem”.
priedade alheia ou como propriedade do Eu. Em segundo lugar, coube observar em que si- dos do próprio universo da tatuagem, mas re- Psicologia Clínica, 12 (2): 103-123.
Ele torna aparente uma condição social, isto é, tuações a juventude foi um fator associado à lexo da sociedade, das relações familiares e da ALMEIDA, Aline. 2004. “No ringue com o piercing – a
torna visível, através de símbolos, o status social prática. A partir destes dois eixos, então, iden- inserção dos indivíduos no mercado de traba- moda do adereço perfurante divide os pais, que te-
do sujeito. tiiquei casos em que a marca envolve a mu- lho, seu imaginário e suas aspirações. Assim, o mem pela saúde dos ilhos.” Revista Vida do Jornal do
A análise de Foucault (1997) aponta clara- dança de status e outras situações em que ela corpo e em especial a tatuagem permitem uma Brasil, ano 1, n. 36: 16-20, 14 ago.
ANDERSON, Clare. 2000. “Godna: inscribing indian
mente para esta tensão inscrita no corpo, pois se apresenta em meio a um conlito ou tensão relexão sobre instâncias de controle do indi-
convicts in the nineteenth century” In Jane Caplan
ele é o limite entre o Eu (mental individual) e o pelo poder de modiicar o próprio corpo. Em víduo que são instâncias de controle corporal, (org.), Written on the body – the tattoo in european and
Mundo (social)30. No corpo, a pele se apresenta ambos os casos, há um uso político do corpo bem como a relação que este indivíduo pode american history. New Jersey: Princeton University
como o limite extremo (Gell 1993), que toca acenando para as relações de poder existentes manter com tais instâncias. O corpo emerge Press, pp-102-117.
a esfera interna (do indivíduo) e externa (do no cotidiano dos sujeitos. Estas relações são como espaço de uma luta simbólica, política, BENSON, Susan. 2000. “Inscriptions of the Self: re-
mundo). Sendo o limite, pode-se sugerir que mantidas especialmente em duas esferas: na fa- por individualidade. Nesta luta, autonomia, lections on tattooing and piercing in contemporary
Euro-America.” In Jane Caplan (org.), Written on the
é sua região mais sensível, onde as lutas entre mília e no mercado de trabalho. originalidade, distinção, liberdade, controle e
body – the tattoo in european and american history.
controle e autonomia se dão mais fortemente e Utilizando a restrição ao uso de piercings resistência são elementos constitutivos do pro- New Jersey: Princeton University Press.
as marcas de um e de outro são dispostas como como um contraponto, indiquei como a per- cesso experimentado: em alguns casos causa, em BOREL, France. 1992. Le vêtement incarné – les méta-
troféus. manência da marca nem sempre é a questão- outros conseqüência do desejo de ser tatuado. morphoses du corps. Paris: Calmann-Lévy.
chave quanto à interdição de seu uso. Em outras BOURDIEU, Pierre. [1998] A dominação masculina. Rio
Considerações Finais palavras, as restrições impostas aos adolescentes de Janeiro: Bertrand, 2003.
CAIAFA, Janice. [1985] Movimento punk na cidade – a
que querem um piercing parecem ser da mesma Tattoos and autonomy: relections
invasão dos bandos sub. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
Rompendo com um senso comum que natureza que aquelas impostas sobre quem de- about youth
CALAZA, Luciana. 2005. “Com o dragão tatuado no
pensa a tatuagem como um adorno corporal seja uma tatuagem e é constrangido pelo poder braço – aumento do número de pessoas com tatuagem
utilizado por indivíduos do sexo masculino público ou pela própria família. Na busca pelo abstract Research carried through in two tat- e piercing gera polêmica no mercado de trabalho.” O
participantes de grupos jovens, observei, em direito à marca, então, os tatuados empreendem too studios in the city of Rio de Janeiro pointed to Globo. Boa Chance: 1. 1o maio.
campo, que o público atual da prática é outro uma busca pelo poder de modiicar seus corpos. the predominance of customers between 20 to the COSTA, Márcia Regina. 1993. Os ‘carecas do subúrbio’ –
caminhos de um nomadismo moderno. Petrópolis: Vozes.
e que seu uso vai além do embelezamento. O A autonomia sobre o corpo é uma autonomia 29 years. About 60% of the public of one of these
COSTA, Zeila. 2004. Do porão ao estúdio – trajetórias e
universo da tatuagem, conforme indicado de sobre o indivíduo. Trata-se, portanto, de uma studios is formed by customers between 16 and 29
práticas de tatuadores e transformações no universo da
forma rápida, é generiicado, ou seja, consti- marca que, mais que um adorno, enseja uma years. As a background of the seduction that tat- tatuagem. Dissertação de Mestrado. Florianópolis:
tuído por separações entre os gêneros. Embora relexão sobre liberdade, controle e resistência. toos exerts on youth, it seems to be a process of so- Universidade Federal de Santa Catarina, datilo.
não haja uma separação análoga baseada nas Sobre os jovens observados em campo, está cial marking - on the body - of personal autonomy, DONZELOT, Jacques. [1980] A polícia das famílias. Rio
categorias adulto e jovem, a geração e a faixa clara a relação entre maioridade e autonomia that was nominated in the literature dedicated to de Janeiro: Graal, 1986.
FONSECA, Andrea Lisset Perez. 2003. Tatuar e ser ta-
etária parecem apresentar distinções interessan- como causas de uma mudança de status. Entre the study of the contemporary tattoos as self pos-
tuado – etnograia da prática contemporânea da tatua-
tes quanto aos usos. Entre estes usos, destaquei outros jovens, possivelmente, a autonomia não session. It is a concept related to the emergency of
gem, estúdio: Experience Art tattoo – Florianópolis – SC.
aqueles observados entre os jovens, mas não é o fator determinante da aquisição da marca, an individualization process, where tattoos can be Dissertação de Mestrado. Florianópolis: Universidade
necessariamente exclusivos deles. com isso apontando para a autonomia como ne- presented as a propitious sign of a personal (and Federal de Santa Catarina, datilo.
cessidade de alguns, não de todos, e para a tatu- social) proof of force and courage, or as a quiet re- FOUCAULT, Michel. [1975]. Vigiar e punir. Petrópolis:
30. Basicamente em contexto moderno-individualista, agem como processo que marca esta autonomia bellion against instances of individual, specially the Editora Vozes, 1997.
GELL, Alfred. 1993. Wrapping in images – tattooing in
pois, como apontam o próprio Foucault (1997) e para alguns, mas não para todos. Existem múl- family.
também Rodrigues (2001), em contexto pré-moder- Polynesia. Oxford: Clarendon Press.
tiplos usos possíveis para a tatuagem, incluindo keywords Tattoo. Youth. Autonomy.
GILBERT, Steve. 2000. Tattoo history – a source book.
no não há esta construção individualista do corpo e aqueles relativos ao embelezamento e à sedução.
seus usos e percepções são distintos. New York: Juno Books.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 83-98, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 83-98, 2006
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ten on the body – the tattoo in european and american cipal de Governo. “Resolução SMG ”N” n. 690 de 30
resumo As inúmeras possibilidades e proble- do etnógrafo era distinta da do antropólogo,
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LE BRETON, David. 2002. Signes d’identité – tatouages, o funcionamento dos estabelecimentos executores da lógica na antropologia fazem dela uma importante única personagem. O resultado foi o surgimen-
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LEAL, Mariana. 2005. “Pele ilustrada”. In Beleza pura. e tatuagem, e dá outras providências.” Diário Oicial o sentido do ofício (“fazer”) dos antropólogos. As- conhecemos hoje. Um proissional com forma-
Espelho meu. Disponível em: <http://www.belezapu- Eletrônico do Município. Disponível em: < http://www.
sim, a etnograia pode ser vista como um gênero de ção acadêmica e que tem no trabalho de campo
ra.org.br>. Acesso em: 17 fev. 2005. rio.rj.gov.br/dorio >. Acesso em: 30 ago. 2004.
LEITÃO, Débora Krischke. 2002. O corpo ilustrado - um RODRIGUES, José Carlos. 2001. O corpo na história.
performance cujo signiicado ultrapassa as fronteiras um método de pesquisa, a “etnograia”, sendo
estudo antropológico sobre usos e signiicados da tatuagem Rio de Janeiro: Fiocruz. das culturas nativas, alcançando o campo cultural a legitimidade desta conquistada por meio da
contemporânea. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: SINGLY, François de. 1993. Sociologie da la famille con- do antropólogo. Performance, neste estudo, repre- observação-participante. Desde então, etnogra-
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, datilo. temporaine. Paris: Nathan. senta um modo de auto-relexividade social em que ia tornou-se sinônimo de trabalho de campo,
LYRA, Jorge et al. 2002. “‘A gente não pode fazer nada, ______. 1996. Le soi, le couple et la famille. Paris: Na- o antropólogo, através da narrativa, busca ampliar o embora estas sejam atividades distintas.
só podemos decidir sabor de sorvete’. Adolescentes: de than.
“campo” da antropologia. Apontar alguns momen- Os antropólogos são unânimes quanto à
sujeito de necessidades a um sujeito de direitos”. Ca- VAITSMAN, Jeni. 1994. Flexíveis e plurais – identidade,
derno Cedes, v. 22, n. 57, agosto/2002: 9-21. casamento e família em circunstâncias pós-modernas.
tos desse processo de relexividade etnográica é o inexistência de receitas para se fazer trabalho de
MARQUES, Toni. 1997. O Brasil tatuado e outros mun- Rio de Janeiro: Rocco. objetivo deste texto, sendo a obra de Marcel Mauss campo. Mesmo que tenham sido produzidos ma-
dos. Rio de Janeiro: Rocco. VAN GENNEP, Arnold. [1909] Os ritos de passagem. Pe- (1872-1950), um exemplo privilegiado. nuais de etnograia, tais como o Guia Prático de
OSÓRIO, Andréa. 2005a. “O frouxo e o carniceiro: dor trópolis: Vozes, 1978. palavras-chave Etnograia. Performance. Antropologia, publicado em 1874, e o Manual de
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cariocas”. Revista Gênero, v. 5, n. 2, 1. sem. 2005: 113- de Janeiro: Zahar.
blicado em 1947, o trabalho de campo consiste
135. VIEIRA, Joice Melo. 2006. “Transição para a vida adul-
______. 2005b. “O gênero da tatuagem: pensando mas- ta, família e curso de vida”. XXV Reunião Brasileira de em uma experiência profundamente marcada
culino e feminino em estúdios no Rio de Janeiro”. Antropologia. CD-Room. “Agora somos todos nativos...” pela singularidade sócio-histórica. Isto não signi-
Revista Contemporânea, ano III, n. 5, dezembro/2005. WELLER, Wivian. 2005. “A presença feminina nas Cliford Geertz ica a ausência de rigor metodológico e analítico
Disponível em: <http://www2.uerj.br/~fcs/contempo- (sub)culturas juvenis: a arte de se tornar visível”. Re- do antropólogo, ao contrário, a etnograia garan-
ranea/n5/artigosorio.htm>. Acesso em: 20 jun. 2006. vista Estudos Feministas, 13(1), janeiro-abril/2005: O ofício de antropólogo te novas possibilidades teóricas ao “campo epis-
107-126.
temológico” da disciplina, exatamente porque aí
Por muito tempo, a etnograia correspon- reside o que DaMatta (1978) denominou anthro-
autor Andréa Osório deu à descrição dos costumes de um povo ou pological blues, ou seja, o lado extraordinário, me-
Doutora em Antropologia / UFRJ tratado sobre as gentes. Apesar desses costu- nos rotineiro, porém, mais humano do trabalho
mes, de gentes e povos representarem diferen- de campo. Por este motivo é possível considerar
Recebido em 10/02/2006 tes formas de experiências culturais, em geral a etnograia como um gênero de performance, ou
Aceito para publicação em 01/07/2006 diferentes da cultura do etnógrafo, nutria-se seja, uma forma de ação simbólica densa e pro-
a ilusão de que tais descrições eram isentas de fundamente rica em relexões epistemológicas.
juízos de valor. O que muda com a institucio- Nas últimas décadas, a etnograia tornou-se
nalização da antropologia como ciência social “objeto” privilegiado de relexões nos meios an-
nos séculos XIX/XX é que as descrições sobre tropológicos nacionais e internacionais1. Mesmo
as experiências humanas e culturais, de povos e
gentes diferentes, passam a considerar a pessoa 1. Para um balanço crítico sobre a produção etnográica
do antropólogo. Se até esse momento a igura contemporânea, ver Marcus e Cushman (2003).

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100 | Gilmar Rocha A etnografia como categoria de pensamento na antropologia moderna | 101

que esta seja uma questão predominante no con- moderna. Algumas das obras mais signiicati- - e, ao mesmo tempo, o local de uma experi- Alfred Kroeber, e o ensaio de Edward Sapir,
texto norte-americano, como sugere Trajano Filho vas que marcaram a história da disciplina, ser- ência privilegiada para a iniciação do antropó- “Cultura autêntica e espúria”, publicado em
(1988), o estatuto da etnograia sempre mereceu a vindo, muitas vezes, como paradigmas do saber logo proissional e do desenvolvimento teórico 1924, contribuindo para a renovação do sig-
atenção dos antropólogos ao longo da história da antropológico, surgem neste momento. Além da antropologia. niicado de cultura a ponto de, na avaliação
disciplina no século XX. O entendimento da etno- de Argonautas do Pacíico Ocidental (1922), de Sem perder de vista as especiicidades das de Stocking Jr. (1983), este último represen-
graia como uma categoria de pensamento não ex- Bronislaw Malinowski, alguns outros clássicos antropologias nacionais, o quadro cultural dos tar uma espécie de “documento de fundação”
clui sua dimensão performativa o que, em termos da etnograia modernista vieram a público: na anos 20-40 exigiu dos antropólogos da época da sensibilidade etnográica nos anos 20. Com
geertzianos, designa o “fazer” do antropólogo. Por Inglaterra, a versão resumida de he Golden a necessidade de realização de uma dupla ta- efeito, uma das grandes contribuições de Sapir
este prisma, pensamento e ação, razão e afetivida- Bough (1922), de Sir James George Frazer, e he refa. De um lado, a antropologia, ao imaginar para a antropologia cultural deste momento foi
de não estão separados na experiência etnográica. Andaman Islanders (1922), de Radclife-Brown; o im ou desaparecimento das culturas primi- a de deslocar o conceito de cultura do campo
Portanto, é como categoria de pensamento e ação na França, La Mentalité primitive (1922), de tivas frente à marcha inelutável do processo factual das tradições, costumes etc., empurra-
performativa que a etnograia adquire relevância Lucien Lévy-Bruhl, e Essai sur le don (1925), de civilizatório ocidental, colocava ao antropólo- do-o para o plano da cognição5.
sociológica e epistemológica na compreensão do Marcel Mauss; nos Estados Unidos, o trabalho go a “missão salvacionista” de resguardar es- Por outro lado, também a aproximação da
ofício do antropólogo e na construção do “campo” de Franz Boas Anthropology and Modern Life ses patrimônios culturais (e porque não dizer antropologia com certas experiências artísticas,
da antropologia2. (1928) e Coming of Age in Samoa (1928), de “naturais”) da humanidade, garantindo sua como o movimento surrealista, contribuiu para
Margaret Mead. Isto para icarmos com alguns sobrevivência mesmo que por meios iccionais, aprofundar a crítica cultural dos antropólogos
Cultura e missão da antropologia em dos principais textos representativos de cada como narrativa etnográica. Por outro lado, aos males produzidos pela civilização, ainda que
tempo de guerra uma dessas antropologias nacionais3. essas mesmas sociedades ameaçadas de desapa- não tenha sido possível fugir completamente à
No período entre-guerras, o mundo ociden- recimento exerceram grande fascínio no meio encenação do exótico. A Missão Dakar-Dji-
A década de 20 é um marco na história da tal viveria uma profunda crise de consciência, intelectual, artístico e antropológico, favore- bouti, realizada na África entre 1931-1933,
antropologia social e cultural. Pode-se conside- que seria acompanhada da intensiicação dos cendo assim o desenvolvimento de uma críti- liderada por Marcel Griaule, e da qual parti-
rá-la como o “período clássico” da antropologia estudos sobre as sociedades primitivas, conside- ca cultural na medida em que estas sociedades cipou Michel Leiris é, sem dúvida, o melhor
radas como “modos de vida autênticos”. Parte apresentavam alternativas culturais frente aos exemplo do que Cliford (1998) classiicou de
2. A categoria “etnograia” tem sido utilizada com sen- da motivação em direção ao “mundo primiti- problemas introduzidos pela marcha da civili- “surrealismo etnográico”: um movimento cul-
tidos variados ao longo da história da antropologia vo” seria fornecida por uma certa concepção zação ocidental. Antropólogos como Ruth Be- tural que, além de produzir estudos profundos
moderna. Ora será vista como método qualitativo de-
antropológica de “campo”, visto então como nedict expressariam de maneira dramática este sobre sociedades africanas como os Dogons,
senvolvido no trabalho de campo, ora estará relacio-
nada à escrita do antropólogo – o texto monográico uma espécie de “laboratório natural” – logo, quadro de crítica cultural em termos da tensão também possibilitou a realização de uma gran-
propriamente dito – ora, ainda, a ênfase recaindo so- um lugar livre das “impurezas” da civilização indivíduo/sociedade característica da sensibi- de relexão sobre a própria sociedade francesa
bre os discursos, as formas de diálogos, estabelecidos lidade modernista da época4. Assim, a impor- em geral, e a antropologia em particular. Logo
entre nativos e antropólogos no encontro etnográico. 3. A antropologia produzida até o momento da Primei- tância deste “fascínio pelo primitivo” reside no depois seria criado o Musée de l’Homme (1938),
Aqui, a compreensão da etnograia como categoria de ra Guerra Mundial seria marcada pelas perspectivas fato de este ter provocado a necessidade de se um centro cultural cujo título condensa o espí-
pensamento com qualidades performativas tem como do evolucionismo social e do difusionismo cultural.
repensar o signiicado da cultura, abrindo a an- rito maussiano do fato social total. Mais do que
pressuposto: 1) o fato de que a etnograia é “boa para Neste momento, predominava ainda a representação
pensar” a constituição do campo antropológico; 2) do “etnógrafo amador” (missionários, militares, via- tropologia para o campo do relativismo cultu- um lugar de exposição dos artefatos culturais
ampliar o entendimento da etnograia como proces- jantes etc.), quando não a do “antropólogo de gabi- ral e, por conseguinte, engendrando a crítica ao exóticos, o Museu do Homem era também o
so epistemológico que vai do campo ao texto; 3) por nete”, sendo, nesse caso, o nome de Sir James George etnocentrismo. centro de pesquisas e lugar de reunião da arte
im, sem perder de vista todas as implicações teóricas Frazer o mais lembrado. Mas desde ins do século A partir de então, o fazer etnográico e o com a antropologia. Na verdade, este se tornou
relacionadas às dimensões metodológica, ritualística, XIX, experiências como a famosa Expedição ao Es- conceito de cultura ganham atenção especial
cognitiva nesse processo, a aproximação com a per- treito de Torres (Oceania) em 1888/89, que contou
dos antropólogos, estimulando cada vez mais
formance visa destacar o caráter relexivo da narrativa com a participação de eminentes antropólogos como 5. Sapir pensa a cultura como um sistema de comu-
etnográica como um “modelo de ação”, cuja fonte W. H. R. Rivers e C. G. Seligmann a convite de novas pesquisas e discussões teóricas. O resul- nicação no qual a linguagem classiica e organiza as
de inspiração são as análises de Austin (1990) sobre Alfred C. Haddon, representaram signiicativa con- tado imediato foi a produção de textos exem- experiências sensíveis fazendo a mediação entre a cul-
os atos performativos da linguagem, os modelos “de” tribuição para a institucionalização da antropologia plares, tais como O Superorgânico (1919), de tura e o pensamento cognitivo. A partir do conceito
e “para” realidade na interpretação de Geertz (1978) social e cultural moderna. Para Grimshaw (2001), de cultura se criticava o “estilo de vida” desenvolvido
e o “comportamento restaurado” de Schechner, ver esta expedição celebra o nascimento da Antropologia pela civilização ocidental em sintonia com as críticas
Silva (2005). Moderna. 4. A este respeito ver Handler (1990). de Freud, por exemplo.

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um dos principais símbolos da antropologia aureolada com os prestígios do exotismo” (1981: Geralmente durante o trabalho de campo os mas tão somente que o trabalho de campo é o
moderna em tempos de guerra, cuja missão era 59), assumindo assim, muitas vezes, as feições de antropólogos são temporariamente retirados do epítome do que fazem os antropólogos quando
a de salvaguardar a cultura do homem, amea- um mito7. Não se nega a importância do traba- convívio de seus familiares e amigos para vive- escrevem.
çada de extinção. lho de campo, seu caráter extraordinário e, sem rem uma outra experiência social extraordinária,
dúvida, a experiência exótica que ele encerra. tal como acontece a muitos noviços nas socie- A partir de tais observações, pode-se air-
A instituição do campo Contudo, o signiicado mítico da aventura mali- dades primitivas. O resultado é, após o antro- mar, então, que a modelagem da persona do
nowskiana está longe de ser plenamente realizado pólogo ter experimentado situações limites de antropólogo, em grande medida, está relacio-
O antropólogo, ao deslocar-se de sua socieda- e ritualizado pela maioria dos antropólogos8. convívio social com o “outro”, uma mudança de nada com sua experiência de campo. “É no
de para uma outra distante, buscava apreender, Se, inicialmente, o trabalho de campo re- sua posição social, acompanhada de uma pro- campo que o antropólogo forma sua identi-
sem a interferência de terceiros (viajantes, mis- presentou uma oportunidade de ultrapassar os funda operação cognitiva. Ao inal do processo dade», sentencia Kilani (1994). Por vezes a
sionários, militares e outros), a realidade concreta limites teóricos e metodológicos impostos pela é a própria percepção, os sentidos, os valores, construção da identidade social do “nativo” e
ou, no dizer de Mauss, buscava “fazer como eles “antropologia de gabinete” - na medida em que enim, o “ponto de vista” do antropólogo que do “antropólogo” adquire contornos de uma
[os historiadores]: observar o que é dado. Ora, o abriu a possibilidade de se estudar in loco a vida, se modiica. Pode-se vislumbrar um verdadeiro relação “totêmica” em que os nomes Malino-
dado é Roma, é Atenas, é o francês médio, é o os costumes, os mitos, os ritos, as formas de estru- processo de “educação dos sentidos” cujo resul- wski, Evans-Pritchard, Firth e Turner estão
melanésio dessa ou daquela ilha, e não a prece, turação e organização das sociedades primitivas - tado é a formação de uma reinada sensibilida- intimamente associados às culturas Trobriand,
ou o direito em si” (1974: 181). Para estudar o com o tempo, este se tornou uma quase exigência de antropológica. As considerações de Roberto Nuer, Tikopia e Ndembu, respectivamente. De
concreto (no sentido da realidade social), é preci- na produção de conhecimento e desenvolvimen- Cardoso de Oliveira (2000) sobre o processo acordo com Kilani (1994:49):
so “estar lá”, é preciso ir ver de perto o “nativo”. to da própria disciplina, além de designar uma de domesticação do olhar, do ouvir e do escre-
Desde então, a viagem tornou-se algo mais do espécie de “rito de passagem” (em especial, de ver - espécies de “faculdades do entendimento” A monograia constrói a imagem uniicada de
que uma aventura ou experiência exótica; tor- iniciação) ao aspirante a antropólogo9. sociocultural inerentes ao “campo” das ciências um antropólogo em simbiose com uma cultura
nou-se uma estratégia fundamental no processo sociais e humanas - no ofício do etnógrafo, dão “das gentes”. As “gentes” são elas mesmas coni-
de institucionalização do trabalho de campo e, 7. Também James Cliford chama atenção para o “mito” bem o tom do ethos antropológico10. guradas nos limites do texto etnográico, assim
portanto, de disciplinarização da antropologia6. do trabalho de campo: “A observação participante obri- Na verdade, não é somente a identidade do como a diversidade das formas sociais e cultu-
Sem dúvida o clássico Argonautas do Pacíico ga seus praticantes a experimentar, tanto em termos “nativo” que está sendo construída no trabalho rais é estabilizada através de uma representação
Ocidental, de Malinowski, constitui o modelo físicos quanto intelectuais, as vicissitudes da tradução. de campo, mas também a persona do antropó- “padrão”. Em suma, a monograia surge nesse
Ela requer um árduo aprendizado lingüístico, algum
exemplar do texto etnográico. Desde sua pu- logo. Parafraseando Condominas, Pulman diz sentido como um tipo de ícone. Ela conjuga,
grau de envolvimento direto e conversação e, freqüen-
blicação tem servido de paradigma metodoló- temente, um ‘desarranjo’ das expectativas pessoais e cul- que “o momento mais importante de nossa vida segundo os termos de Atikinson, um “autor” e
gico do trabalho de campo, não sendo exagero turais. É claro que há um mito do trabalho de campo. proissional corresponde ao tempo de trabalho um “campo” (uma cultura, uma sociedade) de
dizer que a experiência etnográica do trabalho A experiência real, cercada como é pelas contingências, no campo: ao mesmo tempo nosso laboratório uma representação concreta: o “campo” como
de campo tornou-se, desde então, sinônimo raramente sobrevive a esse ideal; mas como meio de e nosso rito de passagem, o campo transforma o “autor” são com efeito “reconhecidos” – pode
de “observação participante” e, via de regra, os produzir conhecimento a partir de um intenso envol- cada um de nós em um verdadeiro antropólo- se dizer então – no e através do mesmo processo
vimento intersubjetivo, a prática da etnograia mantém
textos etnográicos posteriores passaram a se- go” (1988: 22). Essa também é a conclusão de de leitura da monograia. É por meio das mo-
um certo status exemplar. Além disso, se o trabalho de
guir o seu “modelo realista”. campo foi durante algum tempo identiicado a uma ci- Boon (1993: 24), para quem nograias, dos homens e das mulheres daquelas
É bem verdade que o trabalho de campo é ência totalizante, a ‘Antropologia’, tais associações não “culturas”, dos “campos”, que os autores são
visto, salienta Copans, como “uma experiência são necessariamente permanentes. Os atuais estilos de A identidade contemporânea do antropólogo identiicados e classiicados. É este um tipo de
descrição cultural são historicamente limitados e estão proissional baseia-se, em minha opinião cor- classiicação “totêmica” (...) a base textual que
vivendo importantes metamorfoses” (1998: 20). retamente, no trabalho de campo ideal e na nos permite identiicar emblematicamente
6. Para uma análise do papel das viagens na instituição 8. Para Kuper (1978) a experiência de Malinowski pode
prática. Isto não quer dizer que a história da Evans-Pritchard aos Nuers, Margaret Mead aos
do campo antropológico ver Cliford (1997). Apesar ser vista como “mito de fundação”.
de Lévi-Strauss ter anunciado o “im” das viagens, 9. O trabalho de campo pode ser visto como uma espé- disciplina comece com o trabalho de campo Samoanos, Marcel Griaule aos Dogons... e in-
sem dúvida a “viagem etnográica” do antropólogo cie de instituição, no sentido atribuído por Douglas nem que os antropólogos tenham que fazê-lo, versamente.
proissional consiste num momento especial do tra- (1998): trata-se de uma convenção que, como tal, se
balho de campo, haja vista sua qualidade performa- autopolicia, deine regras de comportamento, estabe- 10. A noção de ethos, na deinição de Bateson (1990), Por outro lado, não só as experiências vividas
tiva. A propósito, este é exatamente o caso de Tristes lece sistemas de pensamento e se legitima em torno remete a um sistema cultural de normalização e orga- pelo antropólogo em campo são fundamentais
Trópicos. de algum princípio fundante. nização dos instintos e emoções dos indivíduos.

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para sua formação, mas também o aprendiza- nos anos 40; Tristes Tropiques, de Lévi-Strauss drões inteiros de interpretação social e cultural. sentar a fraqueza da antropologia, portanto, a
do de certos valores da cultura cientíica. O nos anos 50; e he Teachings of Don Juan, de O conjunto do que eu vi (ou penso ter visto) na etnograia dramatiza, com especial ênfase, a vi-
universo cientíico comporta um conjunto de Carlos Castañeda nos anos 60. Antes de repre- história, eu o vi (ou penso ter visto) antes nos es- são weberiana da eterna juventude das ciências
regras, valores e procedimentos éticos aos quais sentarem “desvios” frente às convenções disci- treitos limites de cidades e aldeias camponesas. sociais.
o pesquisador deve, até certo ponto, submeter- plinares estes trabalhos são indicadores do que
se. Este processo exige que o iniciado partilhe alguns antropólogos chamam de “experiência Sem perder de vista os padrões antropo- É preciso considerar, no entanto, que o
de um sistema de crenças como, por exemplo, indisciplinada” da etnograia12. Tais trabalhos lógicos de interpretação social e cultural, pas- método etnográico do trabalho de campo não
racionalidade, ruptura epistemológica, objeti- abriram espaço para que a etnograia deixasse sados exatos vinte anos, Geertz (1997:14) aponta somente para o estilo literário, o aspecto
vidade etc., que devem ser por ele aprendidas e de ser vista única e exclusivamente como estra- trouxe a público em 1988, Works and Lives artesanal e microscópico ou o caráter temporá-
experimentadas11. tégia metodológica do trabalho de campo. Ou- – he Anthropologist as Autor, trabalho no qual rio das explicações antropológicas, fazendo-nos
De fato, tanto a compreensão e interpre- tras estratégias metodológicas desenvolvidas na o antropólogo chama a atenção para a eicá- ver a “eterna juventude” da antropologia. Na
tação de outras culturas, quanto o desenvolvi- construção textual do objeto antropológico, cia simbólica da retórica etnográica. É visível, verdade, trata-se de uma prática incorporada
mento teórico e metodológico da antropologia então, passaram a ser teorizadas13. neste caso, a mudança de foco do antropólogo, ao fazer da antropologia que denota seu traço
deve muito às experiências do trabalho de cam- Isto ica claro quando se têm em conside- do campo ao texto: distintivo e especíico frente às outras ciências
po. Apesar das recentes críticas epistemológicas ração as observações de um antropólogo como sociais. O trabalho de campo não é exclusivi-
à etnograia, mesmo as posições mais radicais Geertz acerca da relexividade epistemológica A habilidade dos antropólogos em nos fazer to- dade da antropologia mas é uma de suas tarefas
não supõem sua eliminação no campo da an- inerente ao trabalho de campo14. Em prefácio mar a sério o que dizem tem menos a ver com seu básicas, senão a principal. Pode-se dizer que a
tropologia, mas reconhecem a necessidade de datado de 1968, no recém editado Islam Obser- aspecto factual ou seu ar de elegância conceptu- experiência etnográica constitui-se no traço
se repensar e reletir sobre seu ideal “cientiicis- ved, Geertz (2004:12), destacava a importância al, que com sua capacidade para nos convencer identitário da disciplina.
ta”. Com isso, muito das questões que envol- do trabalho de campo no processo de interpre- de que o que dizem é o resultado de termos po- Os antropólogos concordam, hoje, com
vem a experiência etnográica do antropólogo tação de uma cultura, diz ele: dido penetrar (ou, se prefere, de termos sido pe- o caráter experimental da etnograia. Nessa
moderno são colocadas sob suspeita. netrados por) outra forma de vida, de havermos, perspectiva torna-se inegável a contribuição da
O trabalho de um antropólogo, a despeito do de um outro modo, realmente ter “estado lá”. E etnograia para o próprio desenvolvimento epis-
A favor do método tema declarado, tende a ser uma expressão de na persuasão de que tendo este milagre invisível temológico da disciplina ao se relativizar rígidos
sua experiência de pesquisa, ou, mais precisa- ocorrido, houve intervenção da escrita. padrões e modelos teóricos e metodológicos. O
A canonização da etnograia, a partir do mente, do que a experiência de pesquisa faz a método do trabalho de campo em antropologia
trabalho de campo de Malinowski entre os ele. Isso certamente vale no meu caso. O traba- Ou seja, as monograias antropológicas re- é, nesse caso, exemplar. Nele, o encontro etno-
Trobriandeses (Pacíico Ocidental), não im- lho de campo tem sido para mim intelectual- velam tanto a “visão de mundo” do autor (o seu gráico do sujeito e do objeto do conhecimento
pediu que outras modalidades de experiências mente (mas não só intelectualmente) formativo, estilo “literário”) quanto à visão dos nativos que transpõe os limites do trabalho de campo para o
etnográicas fossem elaboradas ou que fossem fonte não só de hipóteses isoladas, mas de pa- este estuda. Mas, apesar das críticas ao caráter próprio campo da antropologia, exigindo assim
sugeridas por outras interpretações em anos “autoral” e “iccional” dos textos etnográicos, uma dupla hermenêutica enquanto exercício
recentes (pós-60). Não deixaram de provocar a importância do trabalho de campo pode ser profundo de auto-relexividade15.
12. A idéia de “experiência indisciplinada” é, na verdade,
certo incômodo na comunidade antropológica, o reconhecimento daquilo que Fayereband denun-
corroborada pelo que nos diz Mariza Peirano. A visão realista da etnograia como estraté-
por exemplo: Naven, de Gregory Bateson, nos ciava em Contra o método (1989). Por outro lado, Após argumentar A favor da etnograia, conclui gia metodológica de trabalho de campo cede
anos 30; he City of Women, de Ruth Landes, esta idéia não contradiz o seu processo histórico de a antropóloga (1995: 57):
disciplinarização conforme sugere a interpretação de 15. Segundo Boaventura Santos, com a crise dos para-
Oliveira (1988). Novas análises e reanálises virão comprovar a fe- digmas da ciência moderna impôs-se a necessidade
11. Complementando a nota anterior, o conceito de ha- 13. Mais do que uma questão de método, etnograia de uma relexão hermenêutica que procura “romper
cundidade teórica do trabalho etnográico. Elas
bitus, tal qual utilizado por Bourdieu (1983) em sua e trabalho de campo são experiências de natureza o círculo vicioso do objeto-sujeito-objeto, ampliando
sociologia da ciência, representa a outra metade desse epistemológica e ontológica, como o sugerem al-
certamente irão reforçar a convicção central dos o campo da compreensão, da comensurabilidade e,
processo de “educação dos sentidos”. Assim, amplian- guns ilósofos e antropólogos, dentre eles: Merleau- antropólogos: a de que a prática etnográica portanto, da intersubjetividade e, por essa via, vai ga-
do o sentido dessa sensibilidade etnográica, podemos Ponty (1989), Kilani (1994), Casal (1996), Cliford – artesanal, microscópica e detalhista – traduz, nhando para o diálogo eu/nós-tu/vós o que agora não
ver em todo este processo uma espécie de “educação (1998). como poucas outras, o reconhecimento do as- é mais que uma relação mecânica eu/nós-eles/coisas”
sentimental”, na qual o principal aprendiz é antropó- 14. Essas observações relativas a Geertz me foram sugeri- pecto temporal das explicações. Longe de repre- (1989: 16). A tradicional relação epistemológica “eu-
logo, sugere Geertz (1978). das pelo parecerista do artigo, a quem agradeço. coisa” desloca-se para relação hermenêutica “eu-tu”.

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lugar a uma visão hermenêutica na qual o re- culturalmente, isto é, se o etnógrafo ixa o dis- e, portanto, formas de ação e representação que desenvolvimento de uma teoria da performance
conhecimento da “experiência indisciplinada” curso social no modo de uma escrita narrativa podem ser vistas como “performances” na medi- na chamada antropologia pós-moderna. Na ver-
do ofício do antropólogo e as “retóricas” do como “registro de consultas sobre o que o ho- da em que revelam um processo de relexividade dade, esse percurso não nos leva a uma situação
texto antropológico colocam a etnograia no mem falou” (1978: 41), então a etnograia é, hermenêutica sobre as maneiras como os homens estável e deinida sobre a relação antropologia/
campo das relexões epistemológicas. Quando ela mesma, uma forma de inscrição do discurso interpretam, sentem, experimentam e vivem suas performance. Não signiica isto que as etnogra-
a etnograia passa a integrar o campo do co- antropológico moderno, pois é através da ex- culturas, sobretudo quando a cultura em questão ias produzidas antes dos anos 70 não sejam nar-
nhecimento epistemológico, transformando-se periência e da escrita etnográica que a ciência é a do próprio antropólogo17. rativas performáticas. O fato é que a chamada
em uma estimulante categoria de pensamento antropológica se modela cultural e historica- As narrativas etnográicas expressam muitas pós-modernidade tornou a relação etnograia/
sobre a experiência e a escrita antropológica, mente. Assim, etnograia é também, além do vezes conlitos de experiências entre emoção e performance um problema visível.
abre-se espaço para falar em “etnograia do registro textual de uma fala nativa, um modo razão, não totalmente domesticados pelas con- Uma antropologia da performance nos pos-
pensamento antropológico”. Em outras pala- cultural de escrita antropológica. venções disciplinares. Nem por isso estas expe- sibilita assim uma dupla interpretação: de um
vras, sem perder de vista que “a construção do Com efeito, o que a escrita etnográica ixa riências deixam de ser guiadas por “estruturas lado, com a descrição de uma performance cul-
texto antropológico começa no campo” (Ki- não é somente o dito no luxo do discurso so- narrativas”. Como propõe Bruner, “as estruturas tural qualquer como espetáculo, evento ou ritu-
lani 1994: 46), a etnograia deixa de ser vista cial, “o que o homem falou”, mas, sobretudo, um narrativas servem como guias interpretativos; al, e, do outro lado, com o estudo performativo
somente como uma estratégia metodológica e modo de pensamento social etnográico. As et- elas nos dizem o que constitui dados, deine os de toda e qualquer etnograia – na medida em
passa a signiicar um empreendimento textual nograias, ao representarem sistemas simbólicos tópicos de estudo, e ressalta o sentido da cons- que as etnograias, envolvendo as experiências
situado em contextos históricos e culturais es- de crenças, ritos, mitos e religiões, não apenas trução na situação de campo quando transforma do campo ao texto, dramatizam uma ação re-
pecíicos. descrevem ou falam sobre o modo de pensamen- o estranho em familiar” (1986: 147). No entan- lexiva. Embora a etnograia da performance e
to dos “nativos”. A maneira como estes sistemas to, estas estruturas narrativas devem ser vistas a performance da etnograia sejam perspectivas
Performance etnográica são descritos revelam, por sua vez, o modo como mais como “estruturas performativas”, nos ter- distintas, uma mesma obra permite que se arti-
este pensamento foi organizado textual e nar- mos de Sahlins (1990), do que como “estruturas cule as duas. Na verdade, a etnograia não fala
Para alguns antropólogos a escrita etnográica rativamente. A escrita etnográica, portanto, ao prescritivas”, nos padrões radclife-brownianos. somente de uma única cultura18.
dramatiza uma estratégia especíica de autorida- expor a cultura do “outro”, informa-nos também Com isso abre-se a possibilidade de pensar a Enquanto um tipo de experiência e narra-
de que se revela, basicamente, em certos modos sobre a estrutura e a organização narrativa do tex- narrativa etnográica não só em termos de uma tiva, a etnograia é auto-referencial, pois repre-
de representação. Sem entrar na especiicidade to, revelando assim parte da cultura do próprio etnograia da performance, mas também de uma senta uma forma de ordenar o mundo tanto
de cada um deles, vale registrar o fato de que antropólogo. Em última instância, quem fala é o performance da etnograia. do “eu” quanto do “outro”. Ao integrarem
“os processos experiencial, interpretativo, dia- antropólogo, embora sua fala não seja a única16. Sabe-se que os anos 70 marcam o encontro narrativas etnográicas, os conceitos antropoló-
lógico e polifônico são encontrados, de forma Pode-se airmar então que etnograias são da antropologia com a arte da performance no gicos de cultura, mito, campo etc., organizam
discordante, em cada etnograia, mas a apresen- narrativas, expressões de certo tipo de experiência campo das ciências sociais. Mas é a luz dos des- de maneira coerente a cultura e dão signiicado
tação coerente pressupõe um modo controlador dobramentos sociológicos da fenomenologia às experiências humanas. Nesse sentido, ica-se
de autoridade”, como dirá o historiador James de Schutz, da etnometodologia de Garinkel,
16. Relativizando as teorias que vêem na escrita um
Cliford (1998: 58). Vimos que também Geertz da dramaturgia social de Gofman assim como
modo de domesticação do pensamento ou limitação 18. Basicamente, existem duas linhas de investigações
põe em destaque a importância da experiência da experiência compartilhada pela oralidade, a exem- dos movimentos artísticos modernos - como o antropológicas sobre a performance: de um lado, a
e da escrita na deinição da própria etnograia plo do poder da fala nos rituais mágicos, também a Surrealismo, o Dadaísmo, o Futurismo e demais linha de investigação da performance na linguagem,
e, portanto, dessas estratégias de construção da escrita promove uma operação simbólica de ampliar manifestações contraculturais na música, na cuja base encontra-se nos trabalhos de Wittgenstein,
autoridade etnográica. Ainal, a etnograia está, o mundo das experiências e do pensamento social. dança, no teatro e os movimentos da living art, Austin e Searle, culminando nas contribuições antro-
inextricavelmente, presa ao campo da escrita. Se, por um lado, a escrita individualiza o mundo da body art e outros - que se pode compreender o pológicas de Bauman e outros sobre a “etnograia da
experiência, por outro lado universaliza quando lhes fala”. Do outro lado, a “antropologia da performan-
Na verdade, trata-se de uma escrita que guar-
possibilita viajarem por meio dos textos no tempo ce” de Victor W. Turner, que se converte em um dos
da a memória da experiência etnográica, agora e no espaço. Haja vista o quanto nossas sociedades 17. É como gênero discursivo por meio do qual se trocam melhores exemplos de performance cultural da antro-
traduzida para uma forma textual. trabalham com a idéia do “mundo fechado” dos anal- experiências, se mesclam sentidos e tradições diferen- pologia pós-moderna, a qual Langdon (1999) bati-
Se, como pensa Geertz, o etnógrafo “ins- fabetos. Daí, a crítica dirigida à antropologia inter- tes (oral/escrito; nativo/antropólogo) à maneira de za de “enfoque da performance como drama social”.
creve” o discurso social, anotando-o, objeti- pretativa de Geertz, reside no fato de que nesta, mais uma atividade artesanal que a narrativa, no sentido Nesse caso, o teatro tem servido de fonte primordial
icando-o e autorizando-o a existir textual e do que a fala do nativo, o que se ouve é a voz de benjaminiano, se mostra referencial neste texto. Ver de inspiração à antropologia da performance, ver Silva
Geertz “por sobre os ombros dos balineses”. Benjamin (1994). (2005).

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muito próximo da idéia de “invenção da cultu- relexiva na qual, por meio da escrita transfor- sociedade e, em particular, sobre o “campo” da Embora ausente da lista de Geertz, o nome
ra” de Roy Wagner (1981). Num movimento mada em narrativa, personagens são acionados, antropologia21. de Mauss pode ser incorporado ao dos “fun-
dialético de controle (às vezes “inconsciente”) verdades relativizadas, sentimentos ritualizados, Não por acaso os primeiros escritos de Mauss dadores de discursividade” na antropologia
do campo etnográico e da invenção cultural, enim, culturas são inventadas. Em suma, pode- têm como preocupação principal a construção moderna, isto é, aos “estudiosos que ao mesmo
os antropólogos tornam inteligíveis as práticas se dizer que a etnograia constitui uma importan- do “campo da sociologia”, numa época em que tempo tem estabelecido suas obras com certa
e experiências dos “outros”, na medida em que te categoria de pensamento na antropologia20. a fronteira entre esta e a antropologia ainda não determinação e construído teatros de lingua-
objetiicam “nativos” e “culturas”. Mas, ao im estava bem deinida. Não se trata somente de gem a partir dos quais toda uma série de outros
desse processo, segundo Wagner, o que de fato A magia de Mauss uma herança do tio, Durkheim, mas sim um atuam, de maneira mais ou menos convin-
ocorre é que “o que o pesquisador de campo projeto de etnologia (no sentido de uma antro- cente, e, sem dúvida, seguirão atuando ainda
inventa, portanto, é seu próprio entendimen- A obra de Marcel Mauss (1872-1950) apa- pologia comparada e, metodologicamente, pra- por um longo período de tempo” (1997: 31).
to; as analogias criadas por ele são extensões de rece como um exemplo oportuno e fecundo ticada por Mauss em sua obra), voltada para a Numa linha de interpretação radical e provoca-
suas próprias noções e as referências de cultura para se pensar o alargamento da noção de et- superação da distância entre o primitivo e o ci- tiva, Alain Caillé vê no “Ensaio sobre a dádiva”:
são transformadas pelas suas experiências das nograia na antropologia moderna. Neste arti- vilizado, como sugere a leitura de Merleau-Pon- “as linhas mestras não apenas de um paradigma
situações de campo” (1981: 12). Inventando go será possível oferecer apenas algumas notas ty (1989). Advém desta proposta a ênfase nos sociológico entre outros, mas do único para-
“outras” culturas, os antropólogos constroem introdutórias sobre, o que se poderia dizer, sua estudos sobre representações coletivas e sistemas digma sociológico que se possa conceber e de-
para si mesmos o sentido de cultura, ainal, “performance etnográica”. de classiicações desenvolvidos desde os primei- fender” (1998: 11). Mesmo que Caillé declare
Inicialmente, pode-se perguntar qual a ra- ros trabalhos, apontando para a complexidade ser o espírito de Mauss tomado por um ver-
o estudo da cultura é, de fato, nossa cultura; zão de se tomar como exemplo para a relexão e soisticação do pensamento simbólico nas so- dadeiro “horror à sistematização”, no conjunto
operada através de nossas formas, criada em nos- desenvolvida nesse texto um antropólogo que ciedades primitivas. Estes estudos revelam tam- a obra de Mauss parece formar um “sistema”
sos termos, seguindo nossas palavras e conceitos nunca realizou “trabalho de campo” no sen- bém outra preocupação fundamental de Mauss: bastante coerente e integrado, embora goze de
para seus signiicados, e nos recriando através de tido estrito do termo. É no mínimo curioso a de identiicar e analisar algumas das principais um caráter aparentemente anárquico23.
nossos esforços (1981: 16). Mauss ter proposto um Manual de etnograia categorias do pensamento humano22. A compreensão da obra de Mauss não está
(1993), trabalho este interrompido pela eclo- separada de sua trajetória biográica, o que,
De resto, pode-se dizer que as etnograias são da guerra nos anos 40, mas publicado em 21. Mauss faz exatamente aquilo que os etnógrafos fazem na interpretação de Fournier (1993), signiica
são “invenções”, “icções” (no sentido de ictio, 1947 pelo esforço de um de seus alunos. Esta quando vão a campo, transformando o exótico em analisar como o sábio e o militante socialista
familiar. Inversamente, ele estranha e transforma o
“construções”) modeladas por certo tipo de es- obra constitui a versão estenografada das suas participam do texto. A exemplo do próprio
familiar em exótico, em algo que merece ser investi-
crita e de experiência, autorizando-nos assim a “instruções de etnograia descritiva”, desenvol- gado e conhecido. A julgar pela observação de um de “Ensaio”, de 1925, Mauss fez de sua vida uma
pensar em “estilos de antropologia” ou modos vida no Institute d’Ethnologie da Universidade seus alunos, Dumont (1985), são os homens concretos
de representação etnográica19. de Paris, entre os anos de 1926-1939. Con- (como o “francês médio” ou o “melanésio desta ou da- os estudos sobre “A expressão obrigatória dos senti-
Os textos etnográicos expressam valores, tudo, o fato de Mauss não ter “nunca pratica- quela ilha”) em sua própria sociedade, com suas ações mentos” (1921); a “Mentalidade primitiva” (1923);
idéias, sensibilidades, enim, “estruturas de signi- do a observação etnográica”, adverte Denise e representações em torno do corpo, da religião, da ali- “As relações reais e práticas entre a psicologia e a so-
mentação etc., que servem de parâmetro para Mauss ciologia” (1924). E, em 25, surge o clássico “Ensaio
icados e pensamentos”, às vezes muito mais rela- Paulme em prefácio ao Manual, não signiica
desenvolver suas “instruções de etnograia descritiva”. sobre a Dádiva”. Nesta década surgem ainda outros
cionados aos antropólogos do que aos nativos em que não tenha produzido obra de etnograia. A 22. Um sobrevôo na obra de Mauss nos revela sua preo- trabalhos na linha das representações coletivas sobre
cena. Conclui-se que a etnograia não se restringe exemplo do que dizem algumas leituras sobre cupação com as representações coletivas. Já em 1899, a morte (1926) e sobre o “gracejo” (1926), período
a uma estratégia de trabalho de campo com ins Lévi-Strauss, às quais vêem na sua experiência juntamente com Henri Hubert, publica o “Ensaio so- que também inicia suas “Instruções de etnograia des-
à descrição das culturas nativas em termos de nova-yorkina seu verdadeiro trabalho de cam- bre a natureza e função do sacrifício”. Em 1901/1902 critiva”, interrompidas pela Segunda Guerra. Antes,
performances textuais. Esta também dramatiza po, pode-se dizer que também a única e ver- vêm à tona os estudos sobre o campo da sociologia porém, surgem os últimos trabalhos que se tornariam
e “O ofício do etnógrafo”. Logo em seguida, Mauss referências na antropologia: “As técnicas corporais”
muito das experiências dos antropólogos. A et- dadeira etnograia de Mauss foi a sua própria
dá início à série de estudos sobre representações co- (1934) e “Uma categoria do espírito humano – a no-
nograia, então, performatiza um modo de ação letivas com o “Esboço de uma teoria geral da magia” ção de pessoa, a noção de ‘Eu’” (1938).
20. Concordo com Gonçalves (2004) em relação a noção (1902/1903). No mesmo ano, aparece “Algumas For- 23. Fournier (s/d) declara que a obra de Mauss é multi-
19. No Brasil, o antropólogo Roberto Cardoso de Olivei- de patrimônio, que também a etnograia, pensada mas Primitivas de Classiicação”, escrito em parceria forme, difícil e cheia de ambigüidades. Além do já
ra (1995) tem se destacado na análise dos estilos de como categoria de pensamento, designa um modo de com Durkheim e, no seguinte, é a vez do “Ensaio citado trabalho de Fournier, estou tomando como
antropologia produzidos no centro e na periferia do ação relexiva e de performance que deve ser vivido e sobre as variações sazoneiras das sociedades esqui- referência: Lévi-Strauss (1974); Oliveira (1979); Du-
sistema mundial. sentido no cotidiano. mós”. Dando um salto para os anos 20, aparecem mont (1985); Founier (1993; 2003).

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forma de dádiva sociológica e política, sugere o alunos, mas, sobretudo, em decorrência da po- 116), diz o próprio Mauss. Ele entende a magia Se em antropologia social, diz Geertz, “o
biógrafo canadense. Nessa perspectiva, as raízes sição que ocupou no campo da antropologia. como uma “idéia prática” na qual as ações e as que os praticantes fazem é etnograia” (1978:
do “Ensaio sobre a dádiva” já se encontram no Como apontou acerca dos agentes da magia representações, a performance ritual e o sistema 15), então Mauss não foge à regra. Como nas
“Ensaio sobre a natureza e a função do sacrifício”, (mágicos, feiticeiros, xamãs), cuja eicácia sim- de crenças, não estão separados, mas, ao contrá- performances verbais dos rituais mágicos, a es-
publicado em 1899 em colaboração com Hen- bólica deriva dos sistemas de crenças e das posi- rio, formam um único processo simbólico tra- crita de Mauss não só fala da magia, mas põe
ri Hubert. Complementar a essa interpretação, ções liminares que estes ocupam na sociedade, duzido em termos de “arte de fazer”. A magia é em prática um sistema mágico ao “fazer” socio-
gostaria de propor uma outra fonte de leitura, a Mauss também parecia assumir uma posição portadora de uma signiicativa qualidade perfor- logia ou antropologia. As análises de Dumont
partir do “Esboço de uma teoria geral da magia”, até certo ponto liminar frente à dominante so- mativa que parece inscrita nos rituais da prece, (1985) e Oliveira (1979) convergem para este
publicado em 1903, também em colaboração ciologia de Durkheim quanto ao amplo, aberto das trocas simbólicas, do “fazer” etnograia26. ponto: o primeiro destaca o fato de a Sociolo-
com Henri Hubert, no qual o destaque vai para e ainda indeinido campo da antropologia25. Quando ultrapassa o campo estabelecido da gia e a Antropologia na França terem atingido
a dimensão ritual do “fazer”. Tal ênfase leva-nos É dentro deste quadro que podemos enten- sociologia das representações coletivas, Mauss seu “estágio experimental” com Mauss; o se-
a airmar que a raiz do Manual de etnograia en- der a performance etnográica de Mauss à luz da parece interessado em projetar uma teoria da gundo, airma que “o fazer Sociologia – me-
contra-se na teoria da magia de 1903/0424. sua teoria da magia. A compreensão da magia ação social. Sem romper com as representações lhor diríamos, Antropologia – parece-me ser o
Seguindo a sugestão de Giumbelli (1997) e como sistema ritual de crenças (representações) sociais, Mauss pensa as “categorias do enten- seu melhor ensinamento” (1979: 23). Mas, en-
estendendo-a ao conjunto da obra de Mauss, e práticas (ações) simbólicas, cuja eicácia con- dimento humano” como idéias de natureza gana-se quem vê no Manual de etnograia uma
“Esboço a uma teoria geral da magia” aparece siste na produção de sentido, está na base da prática, construídas historicamente. O estudo “receita para se fazer antropologia”. Resultado
como um texto seminal a partir do qual a obra própria antropologia de Mauss. O que interessa sobre “A noção de pessoa, a noção de ‘Eu’”, de de um processo que se desenvolve a partir de
de Mauss vai sendo construída. É como se ele a Mauss é, antes, o ato de fazer do que o feito, 1938, é, sem dúvida, o melhor exemplo disto. suas preocupações com o campo sociológico,
colocasse em prática a idéia que ajudava escla- o ato de dizer do que o dito, o ato de rezar do Procurando superar o etnocentrismo dos soci- o Manual funciona como uma espécie de “car-
recer, realizando assim, ao longo de sua obra, que a reza, o ato de curar do que a cura. Para ele, ólogos europeus, Mauss dá atenção especial às tograia do pensamento” ou “mapa cognitivo”
trabalho semelhante ao de um mago. Como os vale lembrar, importa observar o que é dado e categorias (teorias) nativas. Para ele, as catego- sobre o “estado da arte” da antropologia à épo-
xamãs nas sociedades primitivas que fornecem o que é dado é o que o romano, o ateniense, os rias fazem a mediação entre o pensamento e a ca de Mauss. Na verdade, o Manual não é um
um mito, uma linguagem a partir da qual os franceses fazem quando fazem suas rezas, suas realidade, aproximando-se da proposta de uma manual de etnograia, trata-se antes de uma
doentes, os iniciados, podem organizar suas an- leis etc. Também o mágico é alguém que se faz, antropologia da experiência27. Daí a importân- (meta)etnograia do campo da antropologia,
siedades, suas dores, Mauss era visto por mui- pois “não há mágico honorário e inativo. Para cia que o Manual de etnograia adquire na obra ainda em desenvolvimento. Mauss é, talvez, o
tos de seus alunos como uma espécie de “guru” ser mágico, é necessário fazer magia...” (1974: de Mauss. Mesmo que na visão de Dumont as melhor exemplo de que a etnograia começa
(sábio espiritual e intelectual), alguém que lhes instruções apresentem um caráter tão geral que e termina em casa e de que o “campo”, como
fornecia (no sentido da dádiva) um “sistema de 25. Do ponto de vista da “sociologia da biograia” todo assumem um ar de lugar-comum, tais instru- pensa Cliford, parafraseando Certeau, “nunca
referência” por meio do qual podiam se orien- intelectual típico de sua época concentra as caracte- ções - por se voltarem para o mundo concreto é dado ontologicamente. É discursivamente
tar. Segundo Dumont, “graças a Mauss, tudo, rísticas de seu grupo, diz Fournier: “Marcel Mauss do fazer cotidiano, das técnicas corporais, das mapeado e praticado corporalmente” (1997:
mesmo o gesto mais insigniicante, adquiria abrange o que poderíamos denominar uma biogra- trocas cerimoniais etc., enim, da investigação 54). Dumont sabia disso, e viu no mestre o
ia coletiva, pois inclui tanto uma apresentação dos
um sentido para nós” (1985: 181). Talvez isto exaustiva e microscópica no estilo de uma “des- signiicado profundo da etnograia, alguém
membros da equipe de L’année sociologique, como
ajude a explicar um pouco seu poder de sedu- um estudo das instituições de ensino superior Esco- crição densa” - são de capital importância para que, misturando carisma e sabedoria, magia
ção sobre os alunos. Mas a razão principal pela la Prática de Estudos Superiores, Collège de France e se entender a proposta de Mauss. e dádiva, “recebera do céu a graça especial de
qual o “carisma” de Mauss se mostra eicaz não ainda uma análise do desenvolvimento de disciplinas ser um homem de campo sem sair de sua pol-
reside somente na personalidade extraordinária cientíicas (história das religiões, antropologia, socio- 26. Reforçando a antropologia da performance no campo trona” (1985: 183). Em suma, Mauss, como
do “humanista” que “sabia tudo”, diziam seus logia)” (2003: 3-4). Mas toda biograia traz implícito da “fala”, os inúmeros estudos de Malinowski, Lévi- Benedict em O Crisântemo e a Espada, desloca
o risco da hagiograia: a canonização do Mauss pio- Strauss e Evans-Pritchard enfatizam o poder das pala-
a noção convencional de que “o campo é um
neiro e/ou pai fundador. Ainda, segundo Fournier vras (oralidade) nos rituais mágicos. Mesmo a escrita
24. Uma leitura de Mauss, de trás para frente, começando (1993), Mauss ocupou durante muito tempo uma tem a sua magia. Vale ressaltar que Mauss dá grande lar longe do lar”, e, por meio de seu Manual,
pelos últimos trabalhos até atingir os estudos iniciais posição marginal no sistema universitário francês, o atenção às palavras, salienta Fournier (1993). amplia o sentido do “campo etnográico” na
sobre magia, revela não só uma continuidade, mas que o colocou ao lado da pesquisa e não do ensino. 27. Basta lembrar a importância da categoria “mana” medida em que explicita a natureza performá-
também outras dimensões até então domesticadas Este fato, além de ter relevância sociológica para a nos sistemas de trocas simbólicas. Sobre a proposta tica da etnograia.
pela visão tradicional e holista, no caso, o individua- compreensão da obra de Mauss, parece reforçar a di- da antropologia da experiência, ver Turner e Bruner
lismo e a teoria da ação social. mensão performativa de sua etnologia. (1986).

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Uma categoria heurística Com efeito, a etnograia não representa a of the anthropologist. Performance, in this study, CLIFFORD, James. 1997. “Spatial Practices: Fieldwork,
solução de todos os problemas da antropologia, represents a mode of social auto-relexivity in which Travel, and the Disciplining of Anthropology”. In
Routes – Travel and Translation in the Late Twentieth
A etnograia, tal como entendida no pensa- mas também não consiste na causa de todos os the anthropologist, by making use of narrative,
Century. Cambrigde: Harvard University Press, p. 52-
mento antropológico moderno, tem uma histó- seus males. É preciso estar atento para se evitar searches to enlarge the “ield” of anthropology. he
91.
ria: o seu signiicado não foi sempre o mesmo. cair nas armadilhas do que Eunice Durham, goal of this text is to point out a few moments in ______. 1998. A Experiência Etnográica: Antropologia e
Longe de pretender ter abordado todos os pro- avaliando a produção antropológica no espaço this process of ethnographic relexivity, pointing Literatura no Século XX. J. R. Gonçalves (org.), tradu-
blemas colocados pela etnograia ao campo da urbano no Brasil, chamou de “deslize semân- out the writings of Marcel Mauss (1872-1950) as a ção de Patricia Farias, Rio de Janeiro: UFRJ.
tico”, isto é, quando alguns conceitos como privileged example. COPANS, Jean. 1981. Críticas e Políticas da Antropologia,
antropologia e de sua inscrição no conjunto da
tradução de Manuela Torres, Lisboa: Edições 70.
obra de Mauss, e acreditando como Geertz no “classe”, “ideologia”, “pessoa”, “ethos”, “identi- keywords Ethnography. Performance. Nar-
DaMATTA, Roberto. 1978. “O Ofício de Etnólogo ou
inal de “Uma descrição densa – por uma teo- dade” etc, sofrem um processo de despolitiza- rative. Marcel Mauss
como ter “Anthropological Blues”. In E. Nunes (org.),
ria interpretativa da cultura” que “não há con- ção, perdendo sua vinculação teórica e poder A Aventura Sociológica – Objetividade, Paixão e Impro-
clusões a serem apresentadas; há apenas uma de crítica cultural. A etnograia não está imune Referências bibliográicas viso e Método na Pesquisa Social. Rio de Janeiro: Zahar,
discussão a ser sustentada” (1978: 39), duas ou a este risco. No entanto, creio que parte dos p. 23-35.
motivos que sugerem o perigo de “deslize se- ALMEIDA, Mauro W. B. 2004. “A Etnograia em Tem- DOUGLAS, Mary. [1987]. Como as Instituições Pensam,
três idéias podem ser destacadas neste inal.
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Cultural Moderna signiica pensá-la como uma a etnograia, como um gênero de performan- Editora UFMG, p. 61-77. Perspectiva Antropológica da Ideologia Moderna, tradu-
categoria heurística na medida em que permi- ce narrativa, realiza a mediação entre o campo AUSTIN, John L. 1990. Quando Dizer é Fazer – Palavras ção de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
te analisar algumas das principais performances e a escrita, a teoria e a prática, o pensamento e Ação, tradução de Danilo Marcondes de Souza Filho, FEYERABEND, Paul. [1977]. Contra o Método, tradu-
antropológico e a experiência individual do Porto Alegre: Artes Médicas. ção de Octanny Mota & Leônidas Hagenberg, 3a ed.
narrativas da disciplina antropológica. Em ou-
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tras palavras, a etnograia é, ela mesma, uma etnógrafo. De certa forma, ela fornece os ios
Problemas Sugeridos por Una Visión Compuesta de la FOURNIER, Marcel. 1993. “Marcel Mauss ou A Dádi-
chave metodológica para se penetrar no cora- narrativos que permitem fazer a união dos ex- Cultura de Una Tribu de Nueva Guinea Obtenida desde va de Si”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 21 (8):
ção do pensamento e da prática antropológica. tremos no campo antropológico, embora esta Tres Puntos de Vista, traducción de Ramón M. Caste- 104-112.
Se aceito esse pressuposto um mundo de pos- se dê de forma relexiva, incompleta e dramati- llote, Madrid: Ediciones Jucar, 1990. ______. 2003. “Para Reescrever a Biograia de Marcel
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por meio do trabalho relexivo, abre-se à nossa
Gagnebin (Prefácio), Magia e Técnica, Arte e Política: ______. 1994. Marcel Mauss. Paris: Fayard.
frente denunciando sua qualidade performati- GEERTZ, Cliford. 1978. A Interpretação das Culturas,
Ensaios sobre Literatura e História da Cultura, tradução
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Freitas e Silva. Lisboa: Dom Quixote, 1993. o dos Pós-Modernos?”. Anuário Antropológico, 86: rece se deinir ao mesmo tempo pela subversão da do para domingo. Nesta ocasião realizou-se no
MERLEAU-PONTY, Maurice. 1960. “De Mauss à 133-151. legitimidade do Estado na regulação do consumo de armazém B do Cais do Porto de Porto Alegre,
Claude Lévi-Strauss” In Textos Selecionados, tradução TURNER, Victor W. 1988. he Anthropology of Perfor- substâncias – através de bricolagens práticas e cos- de frente para o rio Guaíba. O segundo fato
de Marilena Chauí. São Paulo: Nova Cultural, coleção mance. New York, PAJ Publications.
Os Pensadores, vol. XLI, 1989, p. 141-154,. WAGNER, Roy. 1981. he Invention of Culture. Chica-
mológicas contemporâneas – e dos próprios ideais ocorreu na primeira edição em Porto Alegre da
go: he University of Chicago Press. libertários originalmente associados às festas rave, re- festa rave Exxxperience, em setembro de 2002,
produzindo valores e práticas culturais dominantes. realizada exatamente no mesmo local da festa
palavras-chave Festas rave. Substâncias do Mix Bazaar.
psicoativas. Identidade jovem.
autor Gilmar Rocha
Professor do Departamento de Ciências Sociais / PUC - Minas Para analisar e compreender o sentido das
Doutor em Ciências Humanas (Antropologia Cultural) / UFRJ práticas de consumo de substâncias na cena por produtoras “outsiders” que tentam entrar neste
eletrônica1 sugiro que nos “inebriemos” um mercado cultural. Deine-se concretamente pelos es-
Recebido em 06/03/2006 paços de sociabilidade reconhecidos, como festas rave,
Aceito para publicação em 14/07/06 em clubs, pubs, feiras alternativas, grupos de discussão
1. “Cena eletrônica” é uma categoria originalmente nati- na internet, lojas de roupa, cursos de DJ.
va, negociada entre os produtores culturais e o público 2. “Diet” é uma substância cuja utilidade original, se-
de “estabelecidos” (Elias 1990), que compartilham de gundo os nativos, é a limpeza de piscinas. Nas festas
códigos lingüísticos, estéticos, práticos e morais. O de música eletrônica é utilizado como um inalante/
público da cena eletrônica é eventualmente disputado entorpecente de caráter “underground”.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 99-114, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006
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A transmutação convivia muito com ele, eu encontrava com ele


em festa... [...]
... eu iquei sabendo que ele cheirava solvente3 ... quando eu cheguei em casa, assim, depois que
em casa, em casa !!! ... e o cara, segundo o André, eu soube que o cara morreu, no lyer7 da festa eu
tinha contato com outras realidades,... falou que li assim: “prepare-se para fazer parte da histó-
o solvente era a salvação do mundo. ...não, e esse ria”, ai eu me apavorei !!!,... eu olhei e tinha um
cara era como se fosse um ilósofo, ele tinha vá- símbolo Oum assim [no lyer], ai dei mais uma
rios conhecimentos, tudo adquirido através dos olhada e tinha uma cabeça com umas mandalas,
inalantes, tá ligado, ele recebia o conhecimento ligando os pontos energéticos da cabeça assim,
através da viagem do inalante... [...] ai... [...] Ah, eu, bah, me apavorei quando vi o
... uma estória engraçada desse cara, que numa lyer, tá ligado, e tive uma idéia desse desenho
festa lá, aquela lá do Mix Bazaar, o cara tomou que parecia uns espermatozóides entrando num
um teto4 desse negócio, desse diet ai, ai em- óvulo, tá ligado, ai deu toda uma viagem de nas-
bolotou5, icou deitado, assim, e parou a festa cimento, com o Oum, que é o som primordial,
assim em volta do cara, e ai daqui há pouco o “você vai fazer parte da história”, e esse cara foi
cara pegou e se levantou dançando um break6 um dos caras que mais abriu minha mente as-
assim, toda festa começou a vibrar assim, a bater sim, em termos de visão de mundo, o cara tinha
palma,... ai depois o cara veio me falar que ele uma visão tri esclarecida do mundo, não era pre-
tinha morrido e ressuscitado como mestre Lú, tá so a conceitos, em nada assim, e uma mente tri
ligado, e o cara é conhecido como Gô, tá ligado, aberta assim, então a morte desse cara, e lendo o
chamam ele de Gô, só que ele falou que a partir negócio do lyer no dia que ele morreu, foi um
daquele momento ele tinha se tornado mestre negócio que bah, caiu minha casa, foi foda assim
Lú,... ai numa festa depois dessa que ele morreu. !!!. [...] Pior que eu não iquei ruim, na hora eu
(Juliano. Entrevista, em 08/07/03) iquei normal, só que o negócio foi mais a longo
prazo, vira e mexe eu me lembro assim, e é um
A transcendência negócio que eu não consigo aceitar muito, eu
me lembro do cara nas festas, dançando, porque
... É, eu acho que o cara teve uma parada ce- o cara chutava o balde8 assim, tipo, ele entrava
rebral, por causa do inalante, no auge da festa, em transe mesmo na festa, e eu nunca via o cara
dançando, e cheirando aquele esquema, e eu pra baixo, ele sempre tinha uma mensagem de
não cheguei a ver, só sei que quando eu cheguei otimismo, assim, e sempre pra cima, e depois
um amigo meu falou que viu um corpo sen- o cara sumiu, do nada assim, bah, foi uma via-
do tirado, e depois se ligou que era o cara. [...] gem. (Juliano. Entrevista, em 08/07/03)
Não, o cara,... eu acho que ele... é que eu não
Em relação a esta segunda narrativa, acres-
cento ainda a menção feita por Juliano de que
3. Substância de uso doméstico e industrial utilizada Gô teria passado um dia em estado de grande
para limpeza e/ou dissolução/solvência de tintas óleo.
felicidade, aumentada ainda mais no momento
4. Vertigem; rápida perda da consciência, geralmente
acompanhada de um desmaio de curta duração.
5. “Embolotar”, neste contexto, signiica cair no chão
desmaiado. 7. Flyer é o panleto de divulgação das festas de música
6. Break é a dança típica do movimento cultural jovem eletrônica.
hip-hop, seus passos são inspirados em movimentos 8. “Chutar o balde” signiica não dar importância a de-
“robóticos”. terminada coisa em determinado momento.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 115-132, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 115-132, 2006
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da festa. Há registros, inclusive, no E-Ar9, um cendência espiritual no momento em que ele pessoa que o obtém –, o que resultaria do pri- como que divinizaria os homens com sua lumi-
antigo informativo eletrônico da cena de Porto teria obtido o saber universal. A interpretação vilégio conferido à revelação, à participação nosidade fulgurante, mesmo nessa situação teria
Alegre, de que esta festa vinha sendo comen- do evento, realizada por Juliano, a partir da lei- mística ou à intuição receptiva frente a uma na- (sic) de estender, mais uma vez, a assimetria, pois
tada entre o público local com dois meses de tura de símbolos que compunham o lyer de tureza que teria incorporado as propriedades suporia, ainda uma vez, a última revelação, aque-
antecedência. Revelando uma certa extraordi- divulgação da festa, conecta uma série de ele- do espírito humano (idem); como uma forma la derradeira intuição que informaria o homem
nariedade atribuída ao evento pelos ravers. mentos simbólicos disponíveis a partir de um de legitimação de determinados papéis-sociais- iluminado sobre o caráter último e completo de
Na primeira parte da narrativa podemos des- esquema interpretativo bastante particular. chave na organização interna das culturas alter- seu conhecimento. (Soares 1989: 195).
tacar o caráter heurístico atribuído ao consumo Estes elementos expressam, primeiro, uma nativas ou religiões – e, por que não, na própria
do inalante, como forma de ampliar a percepção crença na verdade e eicácia de sua interpretação cena eletrônica –, e destas culturas e religiões Como garantia de manutenção desta “as-
da realidade e aumentar o “conhecimento” sobre para os fatos; e, segundo, um fenômeno global frente à sociedade abrangente. simetria constitutiva” do “conhecimento” nas
ela. Nota-se que o narrador atribui à sua perso- contemporâneo, muito comum entre jovens de O fundamento deste privilégio da revelação culturas místico-alternatvas, Gô teria “entrado
nagem um status signiicativo: desempenharia a classe média envolvidos com a música eletrôni- ocorreria graças a uma “assimetria constituti- para a história”, conforme a conexão interpre-
função de uma espécie de “guru” entre os par- ca. Fenômeno em que há uma bricolagem de va” da relação a partir da qual se dá o acesso tativa realizada por Juliano entre o fato ocor-
ticipantes de sua rede de relações. Os “conheci- práticas rituais e discursivas resultante da combi- ao conhecimento. Haveria um “depositário rido na festa e a mensagem impressa no lyer,
mentos adquiridos através de suas viagens com nação de elementos originários de cosmologias de verdades”, um “ser supremo”, ou o próprio incorporando-se, a partir de um movimento
solvente” parecem ter eicácia no convencimen- religiosas orientais, de outras gerações de cultu- “cosmos”, que, uma vez espiritualizado, assu- deinitivo de libertação do corpo, - que, como
to dos participantes quanto ao seu poder intelec- ras jovens e da tecnologia utilizada na produção miria a posição de sujeito, produtor de sentido, veremos, é um preceito componente da cos-
tual no sentido de “compreensão do mundo”. e ritualização da música eletrônica. Enim, uma concebido como inteligência ampliada à pleni- mologia da cena eletrônica -, ao plano cósmico.
O primeiro fato narrado, em que Go – sob série de evidências que nos permitem caracteri- tude do real. “Havendo irredutivelmente assi- Os deuses, espíritos, ou forças místicas, onipo-
efeito de inalante – desmaia, e em seguida, sur- zar a cultura da música eletrônica dançante no metria, sendo esta a condição de possibilidade tentes, oniscientes e onipresentes, geralmente
preende o público que se aglomerava em seu campo mais amplo das culturas místico-alter- do acesso (aos saberes universais)10, a limitação habitam o céu ou são elementos da natureza, e
entorno para ajudá-lo, retomando a consciência nativas, que foram descritas por Luis Eduardo terá de ser reposta indeinidamente, para que o não seres humanos que vivem entre nós.
e realizando movimentos associados pelo nar- Soares em “Religioso por natureza: cultura alter- acontecimento continue sendo possível” (Soa- Para reconstruir e compreender melhor seu
rador aos dos dançarinos de break, é interpreta- nativa e misticismo religioso no Brasil” (1989). res 1989: 195). sentido, muito mais das narrativas do que os
do pelo próprio Gô como uma transformação Um dentre os vários aspectos destacados Se não houvesse mais limitação, não have- fatos em si – o que seria uma tarefa muito mais
repentina de si. Uma mudança de identidade por Soares, que deiniriam as culturas alternati- ria assimetria, e sequer a possibilidade de acesso complexa e delicada –, é preciso também ter
própria de seres com poderes sobre-humanos, vas em geral, seria o da existência de condições humano às verdades universais, à inteligibilida- acesso a alguns dos elementos que deinem o
capazes de interferir diretamente sobre a ordem de se efetivar o “acesso do ser humano aos se- de da essência do todo. A limitação de acesso que podemos chamar de “ideologia da trans-
humana e natural, de ultrapassar o limiar da gredos universais”. Segundo ele, nos casos mais ao conhecimento, no caso de Gô, teria sido a cendência” na cena eletrônica. Esta ideologia
existência e retornar à condição comum com expressamente religiosos, as vias prioritárias de restrição da própria vida, depois de ter, confor- pode ser observada tanto nos discursos quanto
outra identidade, resultado de um ato de “reve- acesso ao conhecimento seriam os ensinamen- me a interpretação de Juliano, alcançado a re- nas práticas. A noção nativa de vibe é um ele-
lação” ou “iluminação”. tos revelados e as experiências místicas, e, nos velação plena. A sua morte corresponderia, no mento discursivo que podemos associar a esta
O segundo acontecimento, conforme narra- outros, a sensibilização receptiva da intuição. sentido de manutenção da assimetria, em uma ideologia. Chico, um participante assíduo de
do, conecta a ação da personagem Gô a dimen- A “razão”, nas culturas místico-alternativas, forma de garantir a inacessibilidade comum ao raves, procura sintetizá-la:
sões mais abrangentes da especulação ilosóica adequar-se-ia aos constrangimentos impostos conhecimento pleno. Gô morreu em função de
sobre a “existência humana”: a “história”, o pelas demais vias de acesso ao “conhecimento”, sua transcendência a outra dimensão, porque Vibe é a abreviação de vibração, seria tu conse-
“nascimento”, o “som primordial do universo”. limitando-se a apoiar e a traduzir o material descobriu o segredo da existência, sujeitando- guir pegar no éter que está causado, pegar no
Enim, aspectos da mesma “grandiosidade” apreendido pela via direta das “conexões cós- se às “leis” do conhecimento pleno. ar as ondas assim, de vibração da música, do
que os poderes previamente reconhecidos em micas” (Soares 1989: 194). No caso de Gô, os ambiente, e conseguir entrar em sintonia, isso
Gô, concretizando-se na forma de uma trans- contatos que teria com “outras realidades” atra- Mesmo a situação extrema da revelação plena da é a vibe. Se a vibe está boa é porque tem tipo,
vés das “viagens com inalante”. verdade absoluta, em que a essência transparente um inconsciente coletivo que tá conseguindo
9. E-Ar. Electronic Alternative Resistence nº 48. Dispo- O acesso aos “segredos universais”, no en- transmitir uma mensagem, mesmo que a gente
nível em: <http://www.e-ar.cjb.net>. Acesso em: 16 tanto, teria um caráter restrito – não é qualquer não consiga exprimir em palavras [...]. Muita
ago. 2002. 10. Parênteses inseridos por mim.

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energia, concentração [...] tem que ter harmo- reforçado pelas luzes; do processo neuroquímico contexto de uso ritual, o discurso de sentido Há, no entanto, uma série de outras subs-
nia [...]. As pessoas têm que ter tudo isso, elas de liberação de substâncias presentes no corpo que o acompanha e os aspectos ideológicos e tâncias utilizadas que revelam uma diversida-
têm que estar em harmonia com a música, têm humano, em virtude do grande esforço físico de distinção social, que de modo algum podem de sob esta suposta hegemonia do ecstasy. A
que estar em harmonia entre elas, têm que estar realizado dançando-se na festa, e que provocam ser desprezados. Tais pontos revelam nuances visão do “ecstasy como emblema da cultura”
em harmonia consigo mesmas, tudo ao mesmo liberações emocionais; do compartilhamento de no interior de um suposto “todo”, como a cena certamente reduz a “diversidade química”, e de
tempo, têm que estar com energia... (Entrevista, um mesmo estado com uma grande quantidade eletrônica pode ser imaginada. signiicados sociais e culturais, a apenas um ele-
em 06/08/03) de pessoas; do uso de substâncias que reforçam A substância MDMA, conhecida como mento. Mas como o ecstasy não é a única subs-
estes estados corporais; e, por im, da crença na ecstasy, tem sido tomada, principalmente pela tância utilizada, a cena não é um todo coerente
A noção de vibe é freqüentemente usada para possibilidade de seu alcance, conforme a cosmo- mídia, como o “emblema químico” das cenas nem estático.
se referir à qualidade da festa, corresponde à emo- logia presente na cena eletrônica, da qual a narra- eletrônicas, a droga diretamente associada a elas. Neste sentido, é necessário evitar repre-
ção, à energia, à vibração e harmonia alcançadas tiva de Juliano é um exemplo. Isto é bastante evidente nas notícias de apreen- sentá-la como um território homogêneo, sem
quando os participantes do ritual de música ele- Nesta conexão da narrativa expressa por Ju- são policiais de ecstasy e prisão de seus comer- diferenças internas de práticas ideológicas e so-
trônica estão individual e coletivamente “sinto- liano com a descrição genérica da cosmologia ciantes. E mesmo os próprios efeitos do ecstasy ciológicas e de visão de mundo. Assim, a noção
nizados” com a música, entre si, e com o meio. das culturas místico-alternativas feita por Soares, são associados por alguns informantes como os de “cena” – como um espaço geográico perma-
Extasiados e transcendidos do “estado comum” o consumo de substâncias parece adquirir um mais compatíveis com o ambiente sensorial de nentemente mutável de práticas e experiências
físico, mental e espiritual, um estado que pode sentido cultural, senão para todos, pelo menos uma festa rave. Um DJ compara, a partir de de produção, apropriação e ressigniicação sim-
ser associado à communitas de Turner (1969) ou para os participantes “estabelecidos” (Elias 1990) suas próprias experiências, os efeitos do LSD bólica de elementos culturais de origens locais
à “efervescência” de Durkheim (1913). da cena eletrônica. Estes promovem e têm incor- (ácido lisérgico) e os do ecstasy. e globais diversas, para a construção de identi-
A “ideologia da transcendência”, a idéia de porado uma sensibilidade cultural que inclui um dades individuais e sociais locais, marcado por
“ir além da condição dada”, tem, entretanto, seu ethos, uma visão de mundo e práticas que dão É que [o ecstasy] não é exatamente um estimulan- disputas internas por poder e prestígio no tra-
sentido prático no “corpo” dos participantes. O sentido ao ato de permanecerem dançando du- te, ele te faz sentir... tua parte sensorial ica mais balho de agenciamento cultural e na deinição
propósito da música e do ambiente sensorial rante horas em ambientes escuros com luzes co- aguçada, mas de uma maneira associada ao prazer. das fronteiras simbólicas e físicas do território -,
criado seria motivar a mobilidade corporal atra- loridas, sob o ostinado da música eletrônica em Por exemplo, é diferente do LSD, que tua parte teria uma relevância epistemológica signiicativa
vés da dança, que realizada até a exaustão física alto volume. A seguir, procuro situar as narrati- sensorial também ica mais aguçada, mas não ne- para a apreensão da diversidade e dinâmica das
provoca a liberação de compostos neuroquími- vas sobre o caso de Gô entre algumas questões cessariamente está ligada ao prazer. Numa viagem práticas culturais jovens na cena eletrônica. Da
cos, que geram prazer. A idéia da estrutura da que parecem ser fundamentais para a análise das de LSD, tu pode te dar conta de certas coisas que mesma forma, o conceito de “cena” também é
festa, tanto da dinâmica (diacrônica) quanto práticas de consumo de substâncias na cena. antes tu não estava te dando, ou pode ter... me- importante para a superação do conceito de cul-
do meio ambiente sensorial (sincrônica), esta- xer em memórias tuas engavetadas, e tu vai estar tura como algo uniicado, homogêneo, rígido,
ria diretamente relacionada à ampliicação des- Uma pausa no êxtase ouvindo uma música, digamos, e tu vai estar ou- essencializado, estático, conforme a sua crítica
tas sensações, pela indução de uma experiência vindo ela diferente,... mas o ecstasy, ele amplia tua contemporânea que reivindica a consideração
“totalizante” de longa duração, que ultrapassa Meu interesse se dirige aos sentidos sim- audição, tua visão, e junto com isso vem... quase, das dimensões histórica e de poder, responsáveis
o limiar da noite, avançando muitas vezes por bólicos e práticos do consumo de substâncias não chega a ser uma euforia, mas tu ica, é como pela historicização e fragmentação de seu caráter
boa parte do dia seguinte. Assim, conforme esta como prática cultural jovem na cena eletrônica se tu icasse com o instinto à lor da pele, digamos, de todo coerente e imutável (Dirks, Eley & Ort-
lógica, as substâncias seriam consumidas para para a construção de identidades; muito mais então é muito mais fácil tu dançar, e ai toda aque- ner 1994; Comarof & Comarof 1992).
prover o corpo com mais energia, ampliicando que como um im em si mesmo. Nesta direção, la massa de gente... [...] Claro, mas é uma com- Mary Bucholtz (2002) parece adaptar de
as sensações naturalmente provocadas sem a sua proponho-me reconstruir etnograicamente11 o binação, não é só a droga... é pela música em si, modo fecundo as discussões teóricas mais am-
utilização. Para que se possa “ir além”, “trans- tu consegue sentir realmente mais a música, [...] plas em relação ao conceito de cultura às “cul-
cender”, pelo transe hipnótico, libertando-se do e aquilo, e aquela massa de gente que está ali na turas jovens”, expressão que ela propõe superar
11. As informações contidas neste texto são resultado
ego e do superego, pela expansão da consciência do trabalho de campo realizado de agosto de 2002 pista... deixa de ser uma massa de gente e passa a (pela mesma crítica mencionada acima) com o
ou da sensibilidade ao ambiente. a setembro de 2003 no universo social deinido pela ser quase uma comunhão, ... (DJ, em entrevista) conceito de “práticas culturais” da juventude. A
Em síntese, podemos dizer que o alcance cena eletrônica de Porto Alegre. Observei, também, autora se preocupa em focar a “ação” dos jovens
da vibe dependeria de vários fatores. Sem uma festas na cidade de São Paulo e arredores, no inal As observações incluem as festas de música eletrônica em termos de construção de suas identidades
ordem de importância: do ostinato da música, de setembro de 2003, realizando algumas entrevistas tanto em clubs como raves, identiicadas como per- sociais no contexto contemporâneo.
com freqüentadores e produtores da cena paulistana. tencentes à cena eletrônica. Ver Fontanari (2003).

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Nesta linha, as práticas de consumo de subs- no controle do uso e comércio de substâncias ao qual as narrativas apresentadas acima se re- tica visual desta juventude abastada, sendo com-
tâncias como ecstasy, diet, anfetaminas e outras, consideradas ou não perigosas, o que termi- ferem12. plementado por corpos atléticos, preparados
poderiam ser interpretadas como práticas cultu- na por lhes reservar tom subversivo. Parecem Pode-se entrar e sair de uma festa de música em academia, e enfeites, como correntes grossas
rais jovens visivelmente opostas a algumas estru- chocar-se também com o conceito de saúde eletrônica sem perceber qualquer indício de con- no pescoço para os homens, cabelos bem trata-
turas de poder e instituições sociais estabelecidas; promovido por agências do Estado e pelo sumo de substâncias ilícitas. A visibilidade deste dos, brincos grandes e roupas sensuais para as
e como tal deveriam ser compreendidas “[...] não capitalismo contemporâneo, mostrando que tipo de consumo depende em grande parte das mulheres. O estacionamento interno também,
simplesmente como manifestações especíicas alguns grupos sociais subvertem-no na dei- intenções do consumidor em se revelar ou não e cheio de carros relativamente novos, alguns
de angústia pessoal, mas muito mais signiicati- nição de suas identidades em alguns contex- da perspicácia na observação da prática de con- modelos importados como BMW e Mercedes
vamente como práticas culturalmente críticas, tos especíicos – como o da combinação entre sumo em si ou de suas evidências. O estabeleci- remetiam à presença de uma juventude perten-
através das quais os jovens exibem sua agência” lazer e religiosidade radicais, que parecem mento de vínculos com os nativos nos permite, cente à elite econômica da cidade. Um segundo
(Bucholtz 2002: 531). Pensando o consumo des- caracterizar esta experiência para o público no entanto, superar metodologicamente estas olhar, para além desta performance ostentatória
tas substâncias no contexto ritual da música ele- insider da cena. E por im parecem, por outro limitações. notada à primeira vista, reparava em uma diver-
trônica como “fuga psicológica”, ou como “prática lado, substrato para a reprodução de valores e Em setembro de 2002 fui à rave Xxxperien- sidade de público cujo despojamento de símbo-
socialmente desviante”, estaríamos reduzindo-as e modelos dominantes que seriam supostamen- ce, junto com Roberto e Karina, antigos fre- los de poder de uma elite massiicada revelava
deixando escapar entre os dedos um modo parti- te opostos à ideologia originalmente associada qüentadores da cena local. Antes de chegar na uma diversidade de estilos e identidades jovens,
cular da construção de identidades jovens indivi- a este tipo de festa. Todos estes aspectos ex- festa, passando pela avenida Mauá, já podíamos algumas vezes combinados: dark, punk, heavy
duais e coletivas no mundo contemporâneo. pressam a dinâmica local do fenômeno global escutar uma batida “surda”, constante e muito metal, hippie, reggae, grunge, convencional.
O sentido do uso do conceito identidade jo- das festas rave. potente, que vinha dos armazéns do Cais do O armazém 6 do Cais do Porto era um pavi-
vem seria não “[...] evocar nem as conhecidas Porto. Estacionamos o carro no pátio externo, lhão grande, estava todo decorado. Nas paredes
formulações psicológicas de adolescência, como Um cenário para as narrativas – peque- pois dentro do pátio custava R$ 10. Comprei, havia painéis de mais ou menos 1,5 x 2 metros,
uma prolongada ‘busca por identidade’, nem o no fragmento da “cena de Porto” por R$ 20, muito contrariado, o ingresso de com temas “psicodélicos” pintados com tinta
rígido e essencializado conceito que tem sido um cambista, que ainda queria me cobrar R$ 5 luminosa. No teto estavam penduradas oito
alvo da crítica recente. Mas pelo contrário, a Seja por puro acaso, ou não, eu estava pre- pela vaga, mas não paguei. Fomos caminhando lâmpadas grandes de luz negra, e também vá-
identidade é ativa, lexível, e sempre-mutável, sente nas duas festas mencionadas acima (as pelo pátio do Cais do Porto até a entrada da rias estruturas de canos de PVC envolvidas por
e não mais para a juventude que para qualquer que foram cenário para os atos de Gô), fazendo festa, em meio a outras pessoas que chegavam. redes de tecido luminoso: uma espécie de art
geração.” (Bucholtz 2002: 532). O estudo das observações de campo. Ainda não havia conhe- Chamava atenção o peril do público: jovens decó psicodélica para festas rave. Havia um aro-
práticas culturais jovens, para Bucholtz, enfatiza cido Juliano, a não ser por me recordar de sua aparentemente de 18 a 30 anos, com suas rou- ma agradável no ambiente, produzido por um
o modo “aqui e agora” da experiência dos jovens, isionomia em meio às milhares de pessoas que pas de estampas e cores exclusivas. Um estilo incenso gigante preso numa das colunas de sus-
as práticas sociais e culturais a partir das quais participavam da festa do Mix Bazaar: um ra- “esportivo estilizado”, que parece deinir a esté- tentação do prédio. Em um lado do pavilhão
constroem seus mundos (idem), considerando a paz de uns vinte e poucos anos, com uma barba estava o DJ, num palco, tendo às suas costas
emergência de identidades em novas formações enorme e com uma camiseta estampada com um telão, onde eram projetadas animações e
12. Quase como uma “sorte etnográica”, depois de ter
culturais que combinam criativamente elemen- uma igura egípcia, fazendo gestos de reverência fractais produzidos em computador.
observado estas e mais uma série de festas em Porto
tos do capitalismo global, transnacionalismo e ao DJ. Ele estava na festa em que Gô sofreu um Alegre e imediações, registrando-as em meu diário de Do lado direito do DJ icava o equipamen-
cultura local. (Bucholtz 2002: 525). “teto” e na festa em que morreu. Eu também es- campo, tive oportunidade de conhecer Juliano, atra- to que produzia uma série de efeitos com fei-
Deste modo, o que as representações e o tava lá, mas não vi nada. Uma festa rave ocorre vés de um colega que me convidou para um jantar xes de luz, misturando as cores verde, amarelo
consumo de substâncias na cena nos diriam num lugar de grandes dimensões, ocupado por em sua casa, para que me apresentasse uns amigos e azul. Desde efeitos simples, como feixes de
em termos de práticas culturais e construção muitas pessoas, e por uma ininidade de micro- que iam às raves. Foi uma surpresa. Além de já tê-lo luz que em movimento cruzavam o ambiente,
descrito em uma passagem de meu diário de campo
de identidades jovens? Para responder esta eventos signiicativos que ocorrem simultanea- até uma “malha” de feixes que se fechava logo
como uma personagem emblemática da cena eletrôni-
questão, parto das que considero as principais mente, dentre os quais conseguimos perceber ca, pude ser apresentado pessoalmente a ele, que icou acima de nossas cabeças. Produzia também um
dimensões de sentido local para estas práticas: e registrar uma porção limitada do que se en- igualmente surpreso quando lhe revelei já ter escrito túnel giratório e enfumaçado de cor verde, mo-
ritual, de distinção social e ideológica e de contra em nossos campos de percepção visual e sobre ele em meu diário. Em seguida, apresentou-me mento em que muitas pessoas emitiam gritos
geração. Elas, no entanto, parecem chocar-se sonoro, principalmente. Mesmo assim, sobram uma série de relatos e interpretações sobre eventos eufóricos. Tratava-se de um ambiente de cará-
com a legitimidade reivindicada pelo Estado elementos para reconstruir o contexto do fato que já haviam sido etnografados por mim, dispondo- ter “onírico”. Tudo isso abaixo de psytrance, a
se a continuar contribuindo em minha pesquisa.

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versão mais recente do estilo trance. Uma músi- A importância das classiicações como o café, o amendoim, o tabaco, o guaraná, venda e porte ilegal. Há uma série de termos
ca com o andamento marcado por uma batida a coca-cola, os chás, o chimarrão, e os produtos nativos, como bala e “e”, para o ecstasy; doce
grave e “seca”, a mais ou menos 140 BPMs13, e Gilberto Velho chama atenção para a im- derivados e processados a partir dos princípios para LSD, entre outros, mas nenhum termo
por uma linha de baixo “monoton” quatro vezes portância da “classiicação” em relação aos ativos destas substâncias. Estas, porém, não têm que os designe genericamente, como o termo
mais rápida. Sobre esta base musical, são fei- “tóxicos”, objeto de conlito entre a visão dos a mesma carga simbólica negativa que outras, ético “substâncias”.
tos efeitos sonoros “espaciais” e “psicodélicos”, utilizadores e a dos órgãos de comunicação de como o ecstasy, o LSD, a cocaína, a maconha, o
algumas vezes criando pequenas células meló- massa e entidades oiciais, que marcam inten- ópio, etc. consideradas absolutamente ilícitas. Distinção social, mainstream e un-
dicas. Algumas freqüências graves não eram es- samente de forma diferenciadora as pessoas que O modo como todas estas substâncias são derground
cutadas, mas sentidas como vibrações no peito os utilizam com categorias como, por exemplo, classiicadas, porém, depende de como se cons-
ou mesmo na superfície da pele. Apesar de um a de “viciado” (Velho 1998:13). Esta posição tituem as relações de poder em cada contexto. O consumo de substâncias, assim como a
tanto agressivo, o apelo sensorial do ambiente expressa, de certo modo, a visão da sociedade Isto é, de quem as consome, de quem as reco- indumentária e os adereços usados pelos parti-
era muito forte e contagiante. abrangente sobre o consumo de substâncias menda, com que inalidade são usadas, em que cipantes da cena, os cortes de cabelo, as viagens
A notícia que tive depois da festa foi que o psicoativas como algo anormal ou transgressor, quantidade, em que lugar, da presença ou não e o conhecimento de outras cenas nacionais e
público chegou a 6 mil pessoas. Tanto o inte- e, especialmente em relação às cenas eletrônicas, dos olhos do Estado etc. Assim, sua classiica- internacionais, o desempenho de funções de
rior do pavilhão, quanto a parte ao ar livre com justiica ações de repressão, como algumas ve- ção como legais ou ilegais depende da legitimi- visibilidade na cena, a proximidade de pessoas
vista para o rio, estavam cheios de gente. Para zes tem-se observado sobre as festas de música dade atribuída a determinados grupos sociais de destaque; tudo isso faz parte do que Sarah
se deslocar era preciso caminhar desviando-se e eletrônica e seus freqüentadores. para classiicar o que é e o que não é legal. hornton chama de “capital subcultural” (1995:
pedindo licença. Chegar próximo ao palco do Ao tratarmos de tal tema, coloca-se como Dentre uma série de termos acadêmicos, 11) dos participantes da club culture. Capital
DJ era quase uma luta: passar no meio da mul- obrigatória a desconstrução antropológica da técnicos e utilizados pelo senso comum, como subcultural é uma noção inspirada nos concei-
tidão que dançava em espaços exíguos, ombro categoria “droga”, e de outras categorias simboli- “drogas” – sejam legais, ilegais, naturais, semi- tos de “campo” e “capital” de Bourdieu, porém,
a ombro, numa disputa pelos melhores luga- camente negativizadas no modo como são utili- naturais, sintéticas; “substâncias” psicoativas e adaptados pela autora ao contexto das “subcul-
res garantidos à base de sutis empurrões e leves zadas em nossa sociedade. Este empreendimento psicotrópicas; “tóxicos”; “narcóticos”; e “entorpe- turas” (Hebdige 1979) jovens. As diferenças de
cotoveladas. Era difícil acreditar como alguém é, sem dúvida, problemático, pois relaciona ao centes”, parece não haver unanimidade quanto posse de capital subcultural expressariam formas
conseguiria se sentir à vontade para dançar mesmo tempo questões morais e técnicas, cate- ao mais adequado, muito menos para o discurso de distinção social operadas no interior da cena
nestas condições; mas muitos pareciam não se gorias éticas e êmicas. A deinição do que é e do antropológico. Tendo em vista este problema, eletrônica que conformariam uma hierarquia de
importar. Havia também a opção de espaços li- que não é “droga” é, antes de tudo, uma questão utilizo apenas o termo “substância”, reconhecen- prestígio, estabelecida pela diferença de capital
vres próximos à outra extremidade do pavilhão. de “classiicação”, permeada pelo “poder” de de- do seu caráter genérico e nada diferenciador de subcultural especíico da cena.
Pessoas paradas: só do lado de fora, descansan- inir o que faz e o que não faz bem para o corpo, outras substâncias de caráter predominantemente O ecstasy seria o exemplo de uma substância
do, bebendo e conversando. o que é e o que não é permitido14. nutritivo, como os alimentos e refrigerantes, e de de caráter mainstream; é a substância de maior
Quanto às substâncias consumidas, não Há uma série de substâncias utilizadas no co- hidratação, como a água. Sua deinição, porém, prestígio na cena eletrônica. O diet, e outros tipos
havia maiores evidências além dos legalmente tidiano, algumas legitimamente recomendadas corresponde ao contexto em que a emprego: o da de inalantes underground, como a cola de sapa-
aceitos cerveja, água, cigarro e energy drink. e cujo uso é visto como exclusivamente positi- cena eletrônica. As “substâncias” da cena. teiro, o loló, o cheirinho do morro, pelo contrário,
Pelo menos até às 05:30h da manhã, hora em vo tal como os remédios, que são drogas usa- A vantagem do termo “substâncias” seria a seriam de menor prestígio. Durante as 18h de
que fomos embora com a festa ainda em alta das para curar infortúnios físicos e/ou mentais. de se apresentar como uma alternativa ideolo- duração da excursão que saiu de Porto Alegre
– Karina mais uma vez exagerou no vinho –, Há outras também, cuja composição química gicamente neutra em relação ao senso comum para o festival Skolbeats de 2003 em São Paulo,
ainda estava escuro no pavilhão. Mesmo olhan- exerce inluência sobre a disposição mental, e, da mesma forma, em relação ao impasse en- composta quase que exclusivamente por freqüen-
do à minha volta, nada havia me chamado a sensorial e física dos seres humanos, em graus tre os termos técnicos. Gilberto Velho (1998) tadores assíduos da cena, entre as conversas que
atenção. Neste momento da festa, conforme variados, consideradas ou não drogas, algumas utiliza o termo “tóxicos”, argumentando que se desenrolavam era comum escutar relatos so-
iquei sabendo posteriormente através de Julia- mais identitariamente marcadas, outras não, esta é a palavra usada pelo grupo por ele estu- bre experiências com ecstasy, e “viagens de ácido
no, Gô já teria transcendido. dado, na zona sul do Rio de Janeiro. O termo (LSD)”, mas absolutamente nenhum sobre via-
14. Uma discussão mais aprofundada certamente seguiria refere-se basicamente à maconha, cocaína, he- gens de diet, cola de sapateiro ou loló. Já a maco-
na direção das formulações de Foucault sobre os dis- roína, ácido, ópio, haxixe, e certos remédios, nha, de uso tão comum, só seria vista como algo
positivos de disciplinamento do corpo. Ver Foucault em sua totalidade, substâncias consideradas de extraordinário por quem não compartilhasse em
13. Batimentos por minuto. (1975; 1976).

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nada dos códigos desta subcultura, alguém com substâncias disponíveis. Tal como expresso em na entrada das festas, seria, neste contexto, uma do lança-perfume. Entre a multidão que se jun-
um “capital subcultural” muito baixo. Lévi-Strauss (1962), identiica-se a lógica de prática de caráter underground entre o público tava no portão de entrada do festival Skolbeats
Os modos de airmação das identidades un- construção de identidades sociais; neste caso das raves. Roberto e Karina tomavam vinho an- de 2003 em São Paulo, um raver da excursão de
derground e mainstream na cena, como se pode uma relação entre uma “série humana” e uma tes de entrar como forma de reduzir os custos Porto Alegre comprou de alguns garotos, por
observar, dão-se em uma dinâmica de oposi- “série de substâncias”, cada uma com um sig- com bebidas. O custo do vinho ainda era divi- R$ 20,00, 200ml de “lança-perfume” em um
ções relacionais. Se as substâncias underground niicado e um lugar na hierarquia de prestígio, dido entre os interessados, e seu tipo preferido, frasco branco, bastante diferenciado do origi-
são desprezadas pelos consumidores de ecstasy e em termos de capital subcultural na escala de o vinho doce, não passava de R$ 4,00 reais o nal transparente de tampa verde. Garotos na
de outros elementos de prestígio, devido ao seu valores da cena. litro. Grande parte dos freqüentadores de festas rave Earth dance em Santos/SP, em setembro de
baixo grau de distinção; seus consumidores e os No entanto, como as motivações para estas de música eletrônica não enfrenta o problema 2003, inalavam “lança-perfume” em latas vazias
locais que estes freqüentam também o são. Seus práticas são simbólicas e operadas por indiví- de ter de economizar dinheiro, enquanto outros de cerveja, depois de dividirem um “coquetel”
clubs e festas preferidas, para os “mainstream”, duos em diferentes contextos, estes signiicados economizam dinheiro para entrar nas festas e cujo nome não sabiam informar, mas o qual, se-
seriam “sujos”, “baratos”, onde entra “qualquer e formas de distinção podem ser por eles sub- muitas vezes adotam táticas para entrar de gra- gundo eles, era feito com vodca, suco de abacaxi
um”. Em contrapartida, o público “mainstre- vertidos. O preço das substâncias, deste modo, ça, evitando o preço do ingresso, que, depen- e uma cartela de “remédios”, derretida.
am” abastado é igualmente desprezado pelo seria um delimitador bastante relativo para o dendo da festa, varia de R$ 8,00 a R$ 30,0015. Qual seria a motivação para a sujeição ao
público underground por “não ir nas festas por seu consumo, considerando a possibilidade de Uma carteira de cigarro não passa de R$ risco de ingestão de substâncias de efeito tão
causa da música, e sim para ‘badalar’”, por uma série de “ajustamentos” que lexibilizam 5,00. Um frasco de energético varia de R$ 7,00 imprevisível sobre o corpo e tão negativamen-
“querer aparecer”, enim, de “deturpar” o sen- a limitação econômica de acesso elas. Renata, a R$ 10,00. Algumas substâncias podem ser te previsível para o conceito dominante de
tido da música e da festa em função de práticas outra antiga freqüentadora, revelou-me ter já compradas “muito camuladamente” de pessoas “saúde”? Isso parece não ser levado muito em
e valores pertencentes justamente ao mundo ao tomado um ecstasy ganho de um amigo. Julia- que icam no interior das festas, outras devem conta pelos consumidores de substâncias un-
qual a ideologia underground se opõe. no, embora tenha tomado LSD já algumas ve- ser adquiridas por seus consumidores de outras derground, nem pelos consumidores de subs-
Apesar do peril do público da cena se dei- zes, nunca teve de adquiri-lo, sempre ganhou maneiras, principalmente através de traicantes tâncias de maior prestígio social na hierarquia
nir entre os limites do que se pode chamar de de algum amigo que comprava em grande em lugares estrategicamente situados na cida- de valores da cena. Visto que, de acordo com
camadas médias, há uma variação considerável quantidade. Os relatos de “ganhar” substâncias de. Certa vez Karina me informou ter pago R$ a sua ideologia dominante, a noção de “indi-
dentro destes limites, expressa de algum modo nas festas não são raros. A prática de compar- 25,00 por uma cartela de anfetaminas, conse- víduo” que rege as relações entre as camadas
nos tipos ideais underground e mainstream tilhamento de substâncias é bastante comum, guida através de uma amiga que trabalhava em médias no cotidiano é subvertida em função
de práticas e signiicados. O poder aquisitivo como é o caso dos inalantes, bebidas, cigarros, uma farmácia. Um comprimido de ecstasy varia da “sociedade”, da “comunidade” em êxtase
pode ser um limitador do tipo de substância ou mesmo comprimidos. A possibilidade de entre R$ 40,00 e R$ 50,00. Uma “unidade” de no momento da festa, para o que deve se “en-
a ser utilizada, no entanto, restringindo-nos ajustamentos não altera, no entanto, o prestí- LSD custa em torno de R$ 30,00. A grama de tregar”, conforme o que parece ser o sentido
à dimensão econômica, estaríamos adotando gio de algumas substâncias, que se relete de maconha, equivalente a um cigarro, custa R$ dominante do fenômeno rave como um todo:
uma posição “materialista” e desconsiderando algum modo em seu preço. 1,00. Um frasco de lança-perfume era vendi- o de entregar-se para a música e libertar-se do
a dimensão cultural intrínseca a estas práticas. Nos bares internos das festas uma lata de do nas raves do carnaval de 2002 na Guarda do ego. O “risco” envolvido neste consumo parece
As motivações são simbólicas, e o conceito de 355ml de cerveja varia entre de R$ 2,50 a R$ Embaú, em Santa Catarina, por R$ 35,00. Um ser parte, justamente, do modo de airmação
“ajustamentos” (Gofman 1961) nos permite 5,00. Uma dose de uísque ou vodca de R$ 5,00 frasco pequeno de diet pode, eventualmente, ser de identidade neste contexto, tem uma base de
captar a nuance das práticas. a R$ 8,00. A variedade de bebidas depende do comprado em uma festa por R$ 10,00. O preço sustentação cosmológica, uma lógica social de
Poderíamos deinir o signiicado social e tipo de festa. Até hoje não observei venda de das substâncias, no entanto, varia não só confor- distinção, e uma “antilógica” de ajustamentos.
cultural destas substâncias a partir do concei- vinho em nenhuma festa ou casa noturna ex- me o seu grau de reinamento, se legal ou ilegal, A opção pelo consumo de determina-
to de capital subcultural de hornton, e é a clusivamente de música eletrônica. Uma práti- mas também de um lugar para outro, tornan- da substância é acima de tudo um modo de
partir desta lógica que tais substâncias operam ca isolada é a do casal Roberto e Karina, que do-se geralmente mais caras pela facilidade de airmação de identidade, tanto no interior da
como elementos de distinção e identidade de acompanhei algumas vezes. Na rave Xxxperience aquisição. cena eletrônica quanto em oposição ao mundo
“classe” na cena. Esta lógica opera de um modo mencionada, entre o caminho e a espera para Algumas substâncias podem ter inclusive externo. São os jovens que “consomem” estas
muito semelhante ao princípio lévi-straussia- entrar na festa, os dois tomaram todo o conteú- versões artesanais mais baratas, como é o caso substâncias como forma de airmação de suas
no, segundo o qual a substância é escolhida do de uma garrafa de dois litros de vinho. Beber identidades, e não “são consumidos” por elas.
pelo seu signiicado simbólico entre a série de vinho ou outros tipos de bebida “no gargalo”, É necessário resgatar sua “agência” cultural, seu
15. Preços de 2004.

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caráter ativo como sujeitos, como enfatiza Bu- procura pelo bem estar... [...] a música eletrônica modo próprio de alcançar a libertação do ego em sonoras totalizantes, motivadas pelo consumo
choltz (2002). é meio que uma coisa que veio pra icar, como função da música e do ambiente sensorial. de substâncias cuja legitimidade de prescrição
teve a era do rock’n’roll... (DJ Fabrício Peçanha. É, no entanto, precisamente no aspecto ri- é reivindicada pelo Estado – que se reserva o
Agenciamento jovem Entrevista, em 08/07/03) tual que parece se situar o principal apelo da direito do controle sobre o corpo de seus con-
cena no processo de agenciamento jovem. Isto tribuintes –, parece ser, à primeira vista, o prin-
A identidade de geração, além da cosmologia O consumo de substâncias, deste modo, é é, a estratégia através da qual os seus produto- cipal motivo pelo qual os órgãos oiciais, em
e da distinção social, também parece ter algum contextualizado como marca de geração etária res buscam agregar cada vez mais participan- algumas circunstâncias, têm se empenhado em
peso para a compreensão do sentido do consu- na sociedade. Consumir diet ou ecstasy é uma tes a seu mercado cultural, compondo a partir reprimir e controlar as festas de música eletrô-
mo das substâncias na cena. Kristina Sliavaite, forma de airmar uma identidade não só nas deste tipo de experiência a sua singularidade nica e as substâncias nelas utilizadas.
autora de uma etnograia sobre a cena eletrônica hierarquias de prestígio no “interior” da cena como identidade de geração, um estilo de vida Quanto maior o grau de formalização das
de Vilna, capital da Lituânia, apresenta relatos eletrônica, mas também como um paradigma de “novo” para a “juventude” do presente. instituições de uma sociedade, maior parece ser
de informantes que opunham o uso de drogas identidade jovem, que apresenta tanto rupturas o grau de repressão. Inúmeras são as notícias
nas raves ao uso do álcool pelas gerações mais ve- quanto continuidades em relação ao paradigma Os perigos políticos da “libertação” de monitoramento de raves, fechamento de
lhas; utilizado, de acordo com seus informantes, dominante, historicamente anterior, nesta loca- festas, e tratamento violento dos participantes,
para a obtenção de um prazer de curta duração, lidade. A este “novo” paradigma, que vai além A disposição corporal cotidiana, isto é, incluindo prisões e agressão física, na Europa,
pois seus usuários bebem e em seguida vão para dos modos particulares de expressão identitária o controle do corpo, justamente o objeto de EUA, e outras partes “civilizadas” do mundo.
a cama, dormir. O álcool é oposto às drogas con- no interior da cena e os transcende, podemos agenciamento desta identidade, parece ser o Neste sentido, dançar música eletrônica passa a
sumidas nas raves, porque essas proveriam ener- chamar de “identidade eletrônica”, nome meta- principal campo de disputas entre a cultura da adquirir um caráter político, pois tal ato passa
gia por muito mais tempo. Um dos sentidos que fórico para a identidade jovem construída pela música eletrônica dançante, e sua contraparti- a ser visto pelo Estado como um ato de subver-
a autora identiica para o uso de substâncias é o participação e compartilhamento dos valores da repressiva, o Estado. Mary Douglas (1970), são da legalidade e dos conceitos que deinem
de expressão do conlito entre gerações, bastante e práticas da cena eletrônica. A transcendência analisando o fenômeno do transe, destaca a as atividades de lazer.
marcado na Lituânia, mas também de identi- destas diferenças se daria justamente em sua di- “consonância entre níveis de experiência” em No Brasil, apesar de alguns incidentes de
dade e experiência histórica, neste país que, em mensão ritual, pelo compartilhamento da expe- uma mesma sociedade, entre, por exemplo, o ação violenta da polícia, como o cancelamento
virtude da barreira de informações, até o im da riência descrita anteriormente, tal como Juliano controle corporal e a formalização das institui- de algumas festas no Rio de Janeiro, a proibição
União Soviética não teria tido contato com qual- enfatiza. O que importa é entrar em transe: ções, para justiicar a ocorrência do transe em de raves em Santa Catarina, revistas e constran-
quer elemento da “cultura da música eletrônica sociedades cujas instituições sociais são menos gimentos impostos aos participantes, e algumas
de pista”, tendo suas primeiras raves organizadas ... não interessa se tá no estilo ou não,... não formalizadas. Neste sentido, a idéia de transe e prisões e apreensões de ecstasy em diversas partes
em 1994 (Sliavaite 1998). interessa se o cara é um punk ou se o cara é um libertação do corpo existente na cena eletrônica do país, a política de repressão parece, no entan-
O exemplo dado por Sliavaite nos permite clubber, tá ligado, não interessa se o cara é um iria de encontro às disposições corporais das to, incomparável à repressão policial em outros
entender melhor como esta identidade é cons- mauricinho ou se o cara é um maloqueiro da sociedades modernas, subvertendo a cultura lugares. Lugares em que a existência das raves
tituída em termos geracionais, em Porto Alegre, vila, interessa o nível de transe, tá ligado, e esse dominante, só que a partir de seu interior, con- depende de que sua organização e divulgação se
cidade cuja forte presença do rock, e de seu esti- nível de transe da galera não é um negócio que siderando a condição de inclusão social em que dêem de modo camulado para despistar as au-
lo de vida correspondente, como forma de iden- tu vê, tu sente,... então quanto maior o número se encontram os jovens participantes da cena. toridades. A asserção de Mary Douglas quanto
tiicação entre camadas médias, são espelhados de pessoas que se deixar largar assim, pelo pen- Para Douglas, o corpo humano é visto não à correspondência entre a formalização das ins-
no discurso dos DJs de música eletrônica. samento, e icar só no som, maior vai ser a ener- apenas como uma metáfora da cosmologia so- tituições sociais e a formalização do uso do cor-
gia da festa. (Juliano. Entrevista, em 08/07/03) cial, mas como a suposta origem das catego- po, e supostamente um correspondente grau de
... a gente tá revolucionando a música assim rias culturais, do sistema simbólico que ordena repressão a práticas que se contraponham a esta
como o rock revolucionou os anos 50, no inal O que ambas tendências, underground e as relações sociais e todo o universo (Douglas formalização, parece, no entanto, ter algum sen-
dos anos 40, 50, a gente tá nesse estágio assim. mainstream, compartilhariam é o ritual da festa. 1970: 89). Subverter as categorias conven- tido. As autoridades, ao menos, parecem cum-
(DJ Double S. Entrevista, em 21/11/02) Cada indivíduo, tendo incorporado a sensibi- cionalmente associadas ao corpo seria, deste prir o seu papel para provar esta teoria.
lidade cultural da cena eletrônica, deinindo-se modo, subverter automaticamente a própria Embora a grande maioria das festas realizadas
... a música eletrônica não é só música, é com- identitariamente a partir da dialética entre sua cultura, pois o corpo é a cultura. Fazer isso no Brasil dependa de autorização para a sua rea-
portamento, é muita coisa envolvida né, cara, é condição social e a ideologia que adota, teria um por meio de música repetitiva em experiências lização (o que é fornecido), por serem realizadas

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em lugares de visibilidade, e também por seus utopia que animou o início do movimento. Para mostrar, não se dá pelos efeitos fenomenológicos assim, em algumas de suas interpretações locais,
organizadores temerem comprometer a sua mar- ele, em virtude de sua difusão e “popularização”, da substância em si ou sobre a experiência pes- terminam por ser reapropriados em modos que
ca/nome e investimento sob a ameaça de uma este tipo de festa teria se degradado e perdido o soal do indivíduo como ser isolado. Tampouco não são mais do que a reprodução dos mode-
intervenção policial que encerre a festa, elas pa- sentido, incorporando aspectos que combatia, por questões de desequilíbrio emocional ou fuga los dominantes em sua versão local. Seja pelo
recem continuar como espaços de “transcendên- como a diferenciação social e a hierarquização, psicológica, tal como o discurso do senso comum fetichismo em relação ao exótico que vem dos
cia”. Em Porto Alegre, as raves de maior destaque e também indivíduos agressivos e violentos, sobre o consumo de substâncias poderia inter- centros de poder como novidade tecnológica,
são divulgadas em outdoors e na mídia de grande contrários à ideologia PLUR (Peace, Love, Unit pretar. O consumo de substâncias nas festas rave seja pelos modos de distinção social emprega-
alcance, algumas sendo inclusive patrocinadas and Respect), deinida como um valor universal tem um signiicado social e cultural deinido no dos pela elite e grupos de camadas médias como
por grandes empresas, como é o caso das com- das raves. De um espaço de “inversão”, passou a contexto em que é utilizado, por práticas e con- forma de marcar simbolicamente seu poder lo-
panhias de telefonia celular, as principais patro- “imitar” modelos sociais convencionais. cepções compartilhadas e voltadas a ins especíi- cal. Ou ainda, pela própria reprodução do siste-
cinadoras de raves e festas de música eletrônica O processo de difusão das raves no Brasil, en- cos. É inclusive fortemente determinado por estas ma capitalista no desenvolvimento do mercado
em geral. Um freqüentador “underground” certa- tretanto, ocorreu de modo bastante diferente. As lógicas sociais e culturais, da mesma forma que o do entretenimento, que incrementa e torna a
mente veria este fato com pesar, contabilizando primeiras raves já teriam começado como festas são as ações de repressão a este tipo de festa e a festa do inal de semana algo mais extraordiná-
o aumento do preço do ingresso, e o aumento de caráter comercial, trazidas como um produto caça às drogas promovida pelo Estado. rio, soisticado e mais caro do que poderia ser.
de um público “nada a ver” com a coisa, além de cultural empacotado, uma novidade vinda dire- É esta perseguição que politiza o consumo das Termino com a pergunta: não estaríamos jus-
uma perda de “aura” devido à excessiva plastici- to dos centros geopolíticos de poder. Este é o substâncias, atribuindo-lhe um caráter subversi- tamente desenvolvendo modos liminares e cria-
dade do evento. No entanto, é justamente neste exemplo das L&M Party, patrocinadas e utiliza- vo que não está em sua natureza, contribuindo tivos – adequados aos grupos sociais que deles
tipo de evento que a qualidade de som e luz são das na divulgação desta marca de cigarros, tidas inclusive com o seu poder sedutor. Neste sentido se utilizam, às suas novas construções cosmoló-
melhores, em que há um investimento também por consenso na cena brasileira como as primei- são “hidden transcripts” (Scott 1995), práticas de gicas, à tecnologia disponível e à química dispo-
em DJs mais famosos. Os patrocínios de grandes ras raves do Brasil, realizadas em 1993 em Por- resistência que ocorrem nos interstícios do po- nível – para nos adequarmos mais estreitamente
empresas também envolvem marcas de grande to Alegre, São Paulo e Curitiba – experiências der, no escuro, e muitas vezes restritas ao domí- ao cotidiano ordinário sem festa, à ordem oicial,
valor no mercado e poder econômico, dando as- míticas para os que puderam participar. Mesmo nio interior do indivíduo, sem deixarem registros dominante, capitalista, supostamente subvertida
sim uma aparência sóbria ao evento e afastando a assim, com seu caráter histórico comercial, as ra- e sem terem visibilidade, embora tenham conse- na transcendência da pista de dança? Não seria
possibilidade de intervenções policiais, deixando ves no Brasil não deixam de se apresentar como qüências concretas para as estruturas que as con- esta justamente a razão da tensão entre os “recur-
livres aqueles que querem “ir além”. lugar para diversos modos de experiência, sen- têm. O risco envolvido na transgressão contribui sos para ir além” e a “mecânica do juízo”?
O caso das raves francesas talvez nos permi- do ou não foco de repressão policial. Entre tais certamente com seu signiicado cultural e social,
ta estranhar melhor o seu signiicado no Brasil. experiências está o consumo de substâncias un- criando barreiras que incrementam o desejo de
O pesquisador francês Emmanuel Grynzpan derground em um universo predominantemente transgredir, enfrentar a ordem e ir além de onde Resources to go beyond and judg-
(1999) diferencia dois tipos de festas, as “fre- mainstream. Além disso, continuam sendo es- é permitido. De visitar lugares “exclusivos”, guar- ment mechanic: on the comsuption of il-
eparties”, gratuitas e clandestinas, realizadas paços para experiências e interpretações místi- dados pela lei, de onde muitas vezes não há volta legal substances as a cultural action by
em lugares distantes dos centros urbanos; e as co-ilosóicas que se potencializam inclusive em – como no caso de Gô. the youth in electronic music parties
“comerciais”, legais, autorizadas pelo poder pú- contraste com os modos legalmente subversivos, Em oposição ao mundo moderno, branco,
blico e incorporadas à lógica do consumo. A mas caretas, de utilizar o momento de inversão masculino, careta, e ocidental que tem nos con- abstract he purpose of this article is to
base desta diferença para ele está na transgres- que é a festa, para a reairmação de sua posição ceitos de indivíduo e corpo cristãos a sua base analyze and interpret the consumption of substances
sividade e subversão do modelo dominante de de classe através dos mesmos mecanismos de di- de sustentação, a festa rave parece apresentar commonly known as “psycho-actives”, “psycho-
sociedade ocidental, realizadas através do uso ferenciação evocados à luz do dia. conceitos diferenciados, que incluem uma mú- tropics”, “toxic”, or “narcotic”, in the environment
de drogas, da “insegurança” dos lugares de rea- sica e uma dança, mas também uma cosmologia of electronic dance music parties (raves), as cultural
lização – desconhecidos das autoridades –, do Voltando da festa de sentidos, elementos técnicos e químicos para practices fulilled by middle-class youths, departing
desrespeito à legislação da autoria, da “econo- a sua objetivação. Se estes parecem subversores from ethnographical ieldwork in the electronic dance
mia paralela”, do nomadismo e marginalidade. O consumo de substâncias neste universo, um da ordem, há de se lembrar que são, no entan- music scene of Porto Alegre/BR. Objectifying the dis-
Para Guillaume Kosmicki (2001), outro estu- tanto em evidência, das raves revela lógicas e sen- to, performatizados justamente no momento tance from the common sense about these substanc-
dioso das raves, no inal da década de 1990 já não tidos aplicáveis a outros universos, muito diferen- socialmente liminar da festa, em que a ordem es, I seek through ethnographic depiction to rebuild
haveria mais festas “freeparty” na França com a tes de uma festa rave. Seu sentido, como pretendi se apresenta, por deinição, já suspensa. Mesmo some senses related to them by the natives in the local

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o século VII – idêntico ao que era quando foi dessas correntes antropológicas buscar inspi-
construído pela primeira vez. Para os ocidentais, ração e dialogar com trabalhos desenvolvidos
autor Ivan Paolo de Paris Fontanari é claro, ele não parece assim tão velho. É que, fora da disciplina, numa tentativa de trazer
Doutorando em Antropologia Social / UFRGS segundo a tradição corrente, os edifícios em Ise novos desaios e possibilidades para o projeto
têm sido reconstruídos (em locais alternados) a antropológico na sua passagem para o novo sé-
Recebido em 31/01/2006 cada vinte anos, exatamente da mesma maneira culo. Pretendo nesse ensaio enfocar um desses
Aceito para publicação em 11/11/2006
cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 115-132, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006
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trabalhos, o da cineasta Trinh T. Minh-ha1, que a sua subversão da busca de soluções inais e No cerne de todo o trabalho de Trinh, tanto Técnicas como planos longos montados no ilme
apresenta críticas ferozes e deslocadoras do pro- caminhos ixos. Liberto dos limites implícitos escrito quanto visual, encontra-se uma crítica sem cortes, a negação da presença do cineasta no
jeto antropológico, assim como possibilidades nessa busca, aquele que falar perto das relações, profunda ao poderoso discurso ocidental domi- ato de ilmagem, o comentário autoritário do
igualmente radicais para o seu futuro. Desen- processos e experiências “culturais” abre-se para nante na antropologia desde seu começo. Trinh antropólogo em of, explicando as atividades do
volvo abaixo uma possível leitura do trabalho uma multiplicidade de direções e possibilida- vê esse discurso – caracterizado por uma visão ilme, e a preocupação em evitar montagens “ar-
de Trinh, explorando, primeiro, a sua crítica à des novas para a aprendizagem da experiência do mundo baseada em princípios masculinos, tísticas” que poderiam prejudicar o caráter cien-
produção de conhecimento ocidental/mascu- humana. Portanto, a leitura do trabalho de Tri- ocidentais e colonialistas/imperialistas – não tíico do ilme, foram aplicadas com esse im.
lino sobre “o outro” e, segundo, as alternativas nh desenvolvida abaixo não se faz como uma somente na antropologia, mas na produção de A chegada de novas tecnologias, permitindo a
por ela apresentadas em relação a algumas cor- tentativa de apresentar uma leitura coerente e conhecimento e no exercício do poder por par- gravação de som sincronizado e a entrevista, ser-
rentes de pensamento em antropologia ao longo totalizada, mas como algumas relexões acerca te de missionários, colonialistas e organizações viu em muitos casos para fortalecer essa estética,
do último meio século. Em seguida abordo um de um conjunto de trabalhos que chamaram assistencialistas ao longo de suas histórias e nas permitindo uma aproximação maior à “realida-
trabalho especíico, he Fourth Dimension, o pe- a atenção de uma jovem antropóloga preocu- fundações do próprio pensamento intelectual de” do momento da ilmagem. Listas de critério
núltimo ilme de Trinh, produzido em 2001. pada tanto em entender as raízes da visão de ocidental. Elementos centrais desse discurso especiicaram as medidas necessárias para que
No entanto, o primeiro deslocamento exigido mundo antropológica que lhe foi passada du- incluem a busca pela verdade, consagrada por os ilmes fossem legitimamente “etnográicos”4.
por Trinh já subverte o primeiro parágrafo aci- rante a sua formação, quanto em questionar sua natureza “cientíica”, o caráter totalizante Ocupava um lugar central nesse critério a legiti-
ma. Para Trinh, a prática de “falar sobre” (speak essa visão conforme começa a desenvolver sua e onipotente dessa suposta verdade, o direito midade cientíica do antropólogo-cineasta, que
about) vem carregada de profundas camadas de própria pesquisa. auto-concedido de representar ou falar no lugar tinha que comprovar sua autoridade para falar
pressupostos, implicações e jogos/demonstrações do outro não-ocidental e – e neste último ele- do assunto/povo/cultura em questão mostrando
de poder: “o ‘falar sobre’ somente compartilha da Falar Sobre mento Trinh direciona a sua crítica mais espe- sua permanência estendida no local de pesquisa
conservação de sistemas de oposição binária (su- ciicamente à antropologia – a crença de que as e às vezes produzindo informação textual para
jeito/objeto; Eu/Ele; Nós/Eles) de que depende O incomum. “culturas tradicionais” existem numa condição acompanhar e explicar o ilme.
o conhecimento territorializado … assegurando Primeiro, criar necessidades; depois, ajudar prístina, sendo assim ameaçadas por seu contato É essa estética e os pressupostos subjacentes a
uma posição de dominação para aquele que fala” Etnólogos manuseiam a câmera da mesma fo- com o ocidente e necessitando de “recuperação, ela que é alvo da crítica do primeiro ilme de Tri-
(Trinh 1991: 12) 2. Evitar a reprodução das re- ram que manuseiam as palavras coleta e preservação” (Trinh 1982). nh, Reassemblage, de 1982. Neste, Trinh desaia
lações de poder epistemológicas, ela argumenta, Recuperado colecionado preservado Em relação a isso, as primeiras experiências as convenções do ilme etnográico explicitadas
implica abrir mão da tradição antropológica de Os Bamun os Bassari os Bobo em antropologia visual e com o ilme etnográico acima com uma montagem de diversas imagens
falar sobre, e passar a “falar perto” (speak nearby). Como se chama mesmo o seu povo? um etnólo- tiveram uma parcela considerável de culpa, sen- do Senegal, que fazem referência a uma abor-
Tentando, então, considerar a proposta de Tri- go pergunta a um colega do a mídia visual na antropologia originalmente dagem convencional, mas imediatamente a sub-
nh com seriedade, pretendo nesse ensaio falar do (extrato do roteiro de Reassemblage, Trinh T. entendida exatamente nesse veio, como instru- verte com a ausência de explicações autoritárias.
trabalho perto dela e pensar (também de perto) Minh-ha 1982) mento para coleta e registro de dados culturais
as implicações do mesmo para um projeto aca- considerados em risco de desaparecimento3. A es- 4. Karl Heider, por exemplo, oferece uma série desses
critérios no seu livro Ethnographic Film de 1976:
dêmico que se encontra no meio de um sério e Exaltam o conceito de descolonização e trazem tética por muito tempo dominante na produção
“primeiro, a etnograia é um modo de se fazer uma
incerto processo de reavaliação e mudança. continuamente para o seu universo “o desaio do do ilme etnográico reletia essa preocupação, descrição detalhada e uma análise do comportamento
Nesse ambiente de incerteza, um dos as- Terceiro Mundo.” Porém, não parecem perceber fundada na busca de uma representação “verda- humano baseada em um estudo observacional de lon-
petos mais fascinantes do trabalho de Trinh é a diferença, mesmo quando se defrontam com deira” e “cientíica” da vida cultural dos outros. ga duração in loco… outra característica essencial da
ela – uma diferença que não se anuncia, que não etnograia é que esta relaciona comportamentos espe-
antecipam e que não conseguem encaixar em cíicos observados a normas culturais … um terceiro
1. Trinh, que nasceu no Vietnã e se formou original- 3. Essa visão do papel do visual na antropologia foi de- princípio básico da etnograia é o holismo … deve-se
nenhum dos diversos compartimentos de seu
mente em composição musical, é atualmente cineasta fendida com intensidade por, entre outros, Margaret ter em mente que o princípio holístico serve como
e teórica pós-colonial feminista, atuando como pro- mundo catalogado; uma diferença que insistem Mead. Para Mead, o registro visual era uma ferramenta um princípio corretivo para tornar os ilmes mais
fessora nos Departamentos de Retórica e de Estudos em medir com réguas inadequadas, projetadas essencial para o projeto antropológico, sendo que: “a etnográicos … para poder julgar a etnograicidade
de Gênero da Universidade de Califórnia, Berkeley. de acordo com seus mórbidos ins. antropologia … aceitou, tanto implícita quanto expli- de um ilme precisamos saber quanto e em até que
2. A tradução das citações de trabalhos não disponíveis (When the Moon Waxes Red, Trinh T. Minh-ha citamente, a responsabilidade de fazer e preservar os grau a realidade foi distorcida. E ao fazermos ilmes
em português que aparecem ao longo do texto, é de 1991: 16). registros dos costumes e seres humanos que estão em etnográicos podemos pedir que as distorções sejam
minha autoria. processo de desaparecimento” (Mead [1975] 1995 :3). mantidos em um nível mínimo” (Heider 1976: 6-7).

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Em seu lugar Trinh oferece um comentário frag- ximar o trabalho do antropólogo ao mundo mas políticos subjacentes ao seu projeto, mas ao ordem social e cultural não signiica meramente
mentado e uma trilha sonora diversiicada que, dos seus sujeitos, tanto na produção de tra- mesmo tempo vêem nesse processo possibilida- destruir alguns preconceitos ou inverter as rela-
junto com o uso da repetição e cortes e planos balhos cinematográicos quanto na sua exi- des novas para o futuro da disciplina. Cliford ções de poder nos termos de uma economia do
não lineares, deixam clara a natureza construída bição. Para Rouch, tratava-se de um projeto argumenta, na introdução a essa coletânea, que mesmo. Ao contrário, signiica ver através da por-
de qualquer estética cinematográica. de “democratização do saber”, implicando na “o trabalho etnográico tem-se deinitivamen- ta giratória de todas as racionalizações e defron-
A antropologia visual das últimas décadas, participação ativa dos sujeitos dos seus ilmes te enredado em um mundo de desigualdades tar-se com a verdade daquela luta entre icções.
porém, tem avançado além da estética que Trinh na sua concepção, produção e análise. Essa ca- de poder duradouras e cambiantes, e continua (When the Moon Waxes Red, Trinh T. Minh-ha
critica nesse ilme, em grande parte na medida racterística do trabalho de Rouch foi compar- implicado, sancionando relações de poder. Mas 1991: 6)
em que a disciplina como um todo começou a tilhada pelo casal de cineastas-antropólogos sua função dentro dessas relações é complexa,
repensar seu próprio projeto. Assim sendo, parece David e Judith MacDougall, especialmente muitas vezes ambivalente e potencialmente Em resposta à pergunta proposta acima,
que, em Reassemblage, Trinh questiona um mode- nos ilmes produzidos por eles na comunida- contra-hegemônica” (Cliford 1986: 9). creio que a crítica de Trinh vai além dos deslo-
lo de ilme etnográico que precede as inovações de aborígine australiana no inal dos anos 70 Dado a implícita recusa de Trinh de ver nes- camentos do projeto antropológico provocados
e desaios há muito tempo introduzidos na área, (vide Grimshaw 2001: 140-148). A produção ses trabalhos um engajamento com os temas da pelos pós-modernistas e os primeiros inovado-
em uma tradição que começou com o trabalho de cinematográica e escrita desse casal também sua crítica, a reação dos antropólogos tem sido res na área da antropologia visual. Assim sen-
cineastas-antropólogos como Jean Rouch e Da- signiica um projeto de grande experimenta- muitas vezes de indignação no que concerne do, a sua crítica se direciona tanto ao projeto
vid e Judith MacDougall, os quais enfrentaram e ção no desenvolvimento da antropologia vi- à sua representação do projeto antropológico. pós-colonial da antropologia quanto à antro-
subverteram muitos dos pressupostos da antropo- sual ao longo das últimas quatro décadas. Por Henrietta Moore, por exemplo, escreve que: pologia anterior. Na citação acima, Trinh argu-
logia visual já nos anos 1960 e 1970. que, então, Trinh T. Minh-ha parece dar tão menta que para realmente derrubar os sistemas
Jean Rouch desenvolveu a maior parte do pouca atenção a essas correntes inovadoras Houve momentos, tanto em Reassemblage quanto de valores dominantes, é necessário efetuar um
seu trabalho cinematográico na África Oci- que já caracterizavam a antropologia visual do em Naked Spaces [ilme de Trinh de 1985], em deslocamento profundo dos paradigmas hege-
dental na época da independência dos países último meio século, e que à primeira vista pa- que me senti em meio a um discurso antropológi- mônicos da crítica e do entendimento, e não
da região. O ambiente revolucionário e expe- recem já atender às demandas da sua crítica? co antigo, do qual muitos antropólogos airmam simplesmente reorganizar as fronteiras e rela-
rimental deste momento teve grande impacto A mesma dúvida pode ser articulada em re- estar tentando escapar ao longo dos últimos vinte ções em um sistema duradouro de pensamento
no seu trabalho, que rompeu com as limitações lação às tendências da antropologia de maneira anos […] a antropologia moderna, ao contrário, e poder. É isso, no fundo, que torna tão desa-
acadêmicas e teóricas da sua formação na Sor- mais geral na época em que Trinh começou a está muito mais preocupada em localizar culturas iante, desconcertante e, inalmente, tão difícil
bonne dos anos 50, desaiando os limites da desenvolver essa crítica. Pós-modernistas como nos seus contextos históricos, realçar a natureza trabalhar com a proposta de Trinh, pois esse
antropologia e do cinema da sua época. Para James Cliford e George Marcus, por exemplo, construída das identidades sociais e culturais, exa- deslocamento implica uma avaliação de todas
Rouch, a rígida distinção entre arte e ciência desenvolveram novas abordagens nos anos oi- minar a natureza conlitante e muitas vezes con- as referências e pressupostos que dão estrutura
que restringia o papel da câmera na antropo- tenta, com base na crítica da produção do texto traditória de valores sociais e auto-entendimentos, para o modo ocidental/intelectual/antropológi-
logia a um mecanismo de registro de dados et- etnográico na antropologia, inluenciada pela enfatizar as especiicidades históricas e dimensões co de pensar o mundo e a experiência humana.
nográicos desintegrou-se em um trabalho que crítica literária. Em trabalhos como aqueles que de poder das representações de “outras culturas” (Só para começar, verdade/icção, ciência/arte,
situou a busca de uma nova teoria antropoló- fazem parte da inluente coletânea Writing Cul- e, ao representar outras pessoas e a vida de outras eu/outro, passado/presente e a própria distin-
gica na própria prática cinematográica. Em ra- ture (fruto de um seminário de 1984 sobre “the pessoas, sublinhar a sua natureza cambiante, pro- ção binária não nos servem mais …) Submeter-
zão da resistência ao seu trabalho por parte da making of ethnographic texts” [a confecção de cessual e dinâmica.” (Moore 1994: 117) se à esse deslocamento deixa o/a antropólogo/a
academia da época, Rouch foi, durante muito textos etnográicos]), esses autores exploraram em terra insegura, pois, como pergunta Sarah
tempo, melhor conhecido pelos cineastas do relações de poder implícitas no encontro entre o Como devemos entender, então, a natureza Williams em um ensaio sobre críticas ao tra-
que pelos antropólogos, situação esta que co- antropólogo e seu sujeito, a natureza mitológica da crítica de Trinh e a resposta que a mesma balho de Trinh, “se não aceitamos o direito
meça a ser retiicada só nos últimos anos5. da representação do outro ‘inocente’ e sem con- engendra em muitos antropólogos? modernista (e, ironicamente, também pós-mo-
Um outro elemento central no trabalho de texto histórico-político e a voz autoritária e oni- dernista) de impor leituras autorais, como pro-
Rouch foi a busca de uma “antropologia com- potente subjacente ao texto etnográico clássico Falar Perto tegemos o privilégio acadêmico?” (1991: 2).
partilhada” em que a câmera serviu para apro- (ver, por exemplo, Pratt 1986 e Rosaldo 1986). A diiculdade em saber como proceder
Esses autores enfatizam a necessidade da an- Romper os sistemas existentes de valores do- com esse deslocamento pode assim expli-
5. Para um tratamento mais aprofundado do trabalho tropologia enfrentar os pressupostos e paradig- minantes e desaiar a própria fundação de uma car muitas das críticas ao trabalho de Trinh,
de Rouch, vide Sztutman 2004 e Grimshaw 2001.

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que, em vez de tentar trabalhar com o desa- e na sua ênfase no corpo como lócus da produ- isionômico habituado […] que signiica dizer exemplo, reconhece que “Trinh T. Minh-ha
io que este representa à disciplina, tendem a ção do sentido. Donna Haraway, por exemplo, que aqui opera uma tactilidade de visão inde- oferece uma leitura sintomática e distanciada
desprezá-lo como leitura simplista da prática em um artigo intitulado “Saberes Localizados: inível […] e apesar do fato do olho ser im- da prática antropológica desenhada para colo-
etnográica ou mais uma representação crítica a questão da ciência para o feminismo e o pri- portante para sua canalização, essa tactilidade car seus pressupostos subjacentes em um esta-
que acaba caindo nas mesmas armadilhas dis- vilégio da perspectiva parcial”, argumenta a fa- pode bem ser bem mais importante para nosso do de suspensão crítica” (1994: 72). Nichols
cursivas que tenta superar (ver Moore 1994, vor de políticas e epistemologias de alocação, conhecimento da coniguração especial, tanto reconhece que o gênero do ilme etnográico
Crawford 1992: 79 e Henley 1999: 42). Um posicionamento e situação nas quais parciali- nos seus aspectos físicos quanto sociais, do que está precisando repensar seu projeto à luz de
desaio a mais do projeto de Trinh é que não dade e não universalidade é a condição de ser a visão em algum sentido não-tátil do termo. É trabalhos de cineastas como Trinh, e que esses
oferece nenhuma resposta “totalizante” para o ouvido nas propostas a fazer de conhecimento claro que o que acontece aqui é que o próprio cineastas estão, na sua maioria, trabalhando
que deve ser construído em lugar do discurso racional. São propostas a respeito da vida das conceito de “conhecer” algo ica deslocado por fora das fronteiras disciplinares da antropolo-
dominante que ela critica. De fato, parte dessa pessoas; a visão desde um corpo, sempre um um “relacionar-se a.” E o que é preocupante e gia. Porém, esse mesmo autor airma a possi-
crítica é direcionada à própria noção da possi- corpo complexo, contraditório, estruturante e empolgante é que não somente estamos esti- bilidade do ilme etnográico enfrentar esses
bilidade da totalidade. “Ao desfazer modelos e estruturado, versus a visão de cima, de lugar mulados a repensar o que quer dizer “visão” na desaios, argumentando que “em lugar de des-
códigos estabelecidos”, argumenta Trinh, nenhum, do simplismo ([1988] 1995: 30).6 medida em que esse termo se decompõe diante cartar o ilme etnográico por deixar de aten-
Outra linha de pensamento semelhante dos nossos olhos, mas também o fato de sermos der a critérios (geralmente não-especiicados)
a pluralidade não resulta em uma soma total. tem avançado bastante no campo da antropo- forçados a nos perguntar por que a visão é tão de validação antropológica baseados em uma
Ah menina, pegando água na beira da estrada/ por logia visual contemporânea, a ponto de alguns privilegiada, em termos ideológicos, enquanto concepção de antropologia como ciência e dis-
que despejar a luz dourada da lua? (Vietname- antropólogos verem no visual o meio por exce- que outras modalidades sensoriais são, ao me- ciplina proissional, poderíamos ir adiante …
se Ca Dão). Essa não-totalidade estará sempre lência da produção desse novo tipo de conheci- nos nas culturas euro-americanas, tão linguisti- em direção a uma etnotopia que não abolirá a
desconcertando ou despertando intolerâncias e mento. O próprio MacDougall argumenta camente empobrecidas, apesar de cruciais, para vivência, o corpo e o conhecimento que vem
ansiedades profundas (1991: 15). o ser humano e à vida social. (1994: 209) da barriga, mas que o airmará” (1994: 69).
há recentemente um crescente interesse antropo- Sem dúvida, o fato de Trinh não ser an-
Depois dos seus primeiros ilmes, porém, lógico pela emoção, o tempo, o corpo, os senti- Através de um questionamento do privile- tropóloga a permite desenvolver um projeto
Trinh acrescenta à sua crítica o desenvolvimen- dos, gênero e identidade individual [...] uma das giado papel do visual na cultura européia/nor- visual bastante radical sem se preocupar em
to de algumas experiências num projeto alter- diiculdades de se explorar e comunicar os enten- te-americana em relação à outras ‘modalidades associar a prática visual e a teoria antropológi-
nativo de produção de conhecimento sobre a dimentos sobre essas questões é a de encontrar sensoriais’, Taussig critica, no texto acima, a ca, questão esta que tem preocupado os antro-
condição humana. E é aí que, se dotados de um uma linguagem que seja próxima a elas, tanto do possibilidade da produção de conhecimento pólogos visuais desde Rouch e os MacDougall.
olhar cuidadoso, poderemos ver, efetivamente, ponto de vista metafórico quanto experimental. no modo clássico ocidental (“o que acontece Trinh subverte essa preocupação questionando
relexos de correntes também em desenvolvi- Uma das razões que levou à primazia histórica aqui é que o próprio conceito de ‘conhecer’ a própria legitimidade de um tipo de produção
mento na antropologia contemporânea, tanto do visual foi a sua capacidade de metáfora e si- algo ica deslocado por um ‘relacionar-se a’”) de conhecimento que insiste em uma divisão
dentro quanto fora do campo do visual. No nestesia. Muito do que pode ser “dito” sobre es- de uma maneira que lembra o “falar perto” entre esses dois aspectos. No trabalho de Trinh,
cerne dessas correntes encontra-se uma crítica sas questões pode encontrar melhor expressão no (“falar sobre”) de Trinh. Em veio semelhante, o meio audiovisual permite a produção de um
ao modo de produção de conhecimento clássi- meio visual (MacDougall 1997: 287). o teórico de ilme documentário Bill Nichols tipo diferente de conhecimento, que, de acor-
co da antropologia ocidental no que tange à sua fala, na revista Visual Anthropology Review, da do com a sua crítica política e epistemológica,
racionalidade cerebral, uma crítica em favor de Michael Taussig vai mais além, argumentan- necessidade de se distanciar das “tentativas de é explicitamente diferenciado das convenções
uma aproximação do mundo através da expe- do a favor de uma abordagem sensorial na produ- falar de mente a mente, no discurso da sobrie- de produção de conhecimento da antropolo-
riência corporal, individual e sensorial. Vemos ção de conhecimento em que o visual age como dade cientíica” e de coloca-se “na direção de gia acadêmica ocidental. Ademais, ao rejeitar
isto, por exemplo, numa linha de pensamento mero condutor para a experiência do sentido: uma política e epistemologia da experiência fa- radicalmente esse mundo, Trinh consegue ir
no campo da antropologia da ciência e das no- lada de corpo a corpo” (1994: 73). muito mais longe no desenvolvimento dessas
vas tecnologias (especialmente na sua interface Benjamin pede que nós consideremos a arqui- Nesse meio, o trabalho de Trinh é recebido novas possibilidades de produção de conheci-
com a antropologia feminista), na sua crítica da tetura como um exemplo de conhecimento com mais seriedade por autores que se interes- mento do que muitos antropólogos, restritos
distinção epistemológica entre natureza e cul- sam por seu projeto e as suas implicações para em seu potencial de experimentação pelas li-
tura e da airmação da objetividade cientíica, 6. Ver Latour 1999, para outra análise nessa direção, porém antropologia de modo mais geral. Nichols, por mitações da ‘ordem social e cultural’ em que
partindo mais especiicamente da questão do corpo.

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sempre atuaram. Ou seja, ao se posicionar fora Assim sendo, exige que o espectador critique as acompanhada por uma série de imagens de pe- individual, vemos Trinh desaiando, mais uma
do mundo acadêmico ocidental (pelo menos suas reações iniciais e se abra para uma experi- dras trabalhadas num jardim arborizado (um vez, as categorias que sublinham e dão forma à
ideologicamente), Trinh consegue oferecer a ência incerta de recepção que possibilita novos cemitério? um monumento sagrado?): nossa disciplina. Como já vimos acima, muitos
esse mundo experiências mais avançadas e ra- modos de entendimento e experiência. Será dentro das fronteiras acadêmicas da antropolo-
dicais do que aquelas sendo lentamente desen- que, com isso, o espectador entra na “quarta aquilo que vemos se vai/ aquilo que é mais evi- gia já se preocupam em fazê-lo (existe, é claro,
volvidas no seu próprio meio através de linhas dimensão” visual de Eisenstein? Certamente, é dente passa para o segundo plano/ enquanto os uma literatura contemporânea maciça sobre a
de pensamento semelhantes. uma dimensão sensorial em que imagem, som, detalhes menores continuam alterando aquilo questão indivíduo-sociedade que não cabe ex-
memória, experiência pessoal (de Trinh e do que é visto e ouvido/ a outra dimensão/ gasoso plorar aqui), mas o que é tão interessante no
he Fourth Dimension: explorando a próprio espectador) e reação corporal se encon- e líquido/ porque o que parece evidente ao olho trabalho de Trinh é que aquilo que oferece em
quarta dimensão tram, desaiando e enriquecendo a tentativa do é uma linha reta/ a percepção normal é sólida, lugar do que critica não é um refazer do mesmo,
espectador de criar algum “sentido racional” geométrica, bem-deinida e divisora mas algo radicalmente diferente, possibilitado
Partindo do teatro Kabuki do Japão pré-moder- – já que, no inal das contas, fácil não é se li- por sua apropriação do meio visual. Muitas
no, Eisenstein tornou mais complexa a teoria da vrar de dois séculos de discurso epistemológico O ilme apresenta inúmeras imagens e co- vezes, o resultado dessa experiência nos con-
montagem cinematográica criando a noção de em uma única tarde – a partir do que se está mentários, reletindo (entre outras) as questões funde, incomodando nossos olhos, ouvidos e
“harmônicos visuais” (visual overtone) original- assistindo/ouvindo/sentindo. de tempo, tradição, modernidade, velocidade, sentidos intelectuais, bem como os tons agudos
mente estabelecida com a produção de O Velho he Fourth Dimension começa, literalmen- espaço e arquitetura; mas, o tema que parece tão característicos das trilhas sonoras dos seus
e o Novo em 1928. “A extraordinária qualidade te, em uma neblina cinza, com a câmera em dominar o ilme é o do ritual. Em planos de ilmes. Mas é exatamente isso que precisamos
isiológica da dimensão emocional em O Velho movimento numa estrada. Vagas formas de diversos rituais musicais e performativos ilma- enfrentar: novos modos de conhecimento com
e o Novo, explicou o diretor, deve-se a esses har- outros carros e placas de sinalização aparecem dos no Japão urbano e rural, Trinh explora a os quais talvez não estejamos acostumados, que
mônicos, uma “quarta dimensão ilmica” que atrás da neblina, e temos a forte sensação de experiência sensorial do comportamento hu- não entendemos e com os quais não sabemos,
resulta em uma “sensação isiológica.” estarmos avançando em alguma direção, mas mano coletivo. Esse tema, porém, é subvertido de primeira, dialogar, elogiar ou criticar. Aqui
(Physiognomic Aspects of Visual Worlds, Michael sem destino claro nem motivo. O primeiro co- por Trinh de duas maneiras. Primeiro, ao mos- encontramo-nos novamente diante do desaio
Taussig 1994: 210) mentário de Trinh, “Is it a fog? Or is it me?” (É trar o ritualismo da atividade cotidiana em vá- que está atualmente abalando a antropologia.
uma neblina? Ou será que sou eu?) já aponta rias cenas rítmicas, como as de uma academia Temos que aceitar a possibilidade de outras
O penúltimo ilme de Trinh, he Fourth para certa impossibilidade de clareza/certeza de ginástica e outras dentro do trem urbano, maneiras de conhecer o mundo, maneiras que
Dimension (2001), é um sensível e enigmático tão típica dos comentários clássicos em ilmes onde ressalta a experiência erótico-sensorial do não cabem sempre em nossos próprios enqua-
exercício de falar perto. Tomando o Japão como ‘sobre outras culturas’ e ao mesmo tempo loca- corpo e máquina juntos, em movimento. Se- dramentos e estruturas intelectuais, e procurar
locus de relexão, Trinh constrói uma viagem liza Trinh, como self, no âmbito do ilme. Uma gundo, ao enfocar repetidamente nos rostos modos de falar (perto) delas mesmo assim.
pessoal no tempo e no espaço através dos ritmos citação logo aparece escrita na tela, “coração da dos participantes dos rituais em plano fecha- Com isso, precisamos também enfrentar
que emanam do ritual e do cotidiano. Como viajante nunca permaneceu muito tempo em do, e nos vários planos dos participantes em outro desaio colocado por Trinh: a impossibi-
em seus outros ilmes, Trinh não segue nenhu- um só lugar como um fogo portátil – Basho”, e momentos de descanso no começo, meio ou lidade de chegar a ‘conclusões’, de reivindicar
ma regra do cinema convencional, e muito me- a sensação de estar acompanhando uma viagem im dos rituais performáticos, momentos es- a nossos trabalhos a condição de totalidade e
nos do ilme etnográico. he Fourth Dimension aumenta. tes liminares, em que os participantes, ainda fechamento. A última frase de he Fourth Di-
não tem história linear nem mensagem clara, e A viagem de Trinh, porém, é condição para vestidos nos igurinos ‘tradicionais’ dos rituais, mension, que aparece escrita na tela superposta
a rica e dinâmica trilha sonora é fragmentada, se explorar a experiência de estar fora de um batem papo e adotam posturas corporais rela- à imagem de uma lor de lótus, é:
bem como as imagens e os comentários feitos lugar, de uma “cultura”, ao mesmo tempo em xadas que contrastam com a rígida coletividade
pela própria Trinh, as únicas palavras faladas que se está perto e presente. Falar perto do Ja- das performances de alguns minutos antes ou O mundo inteiro é a nossa mente, a mente de
do ilme, além de algumas falas curtas que não pão, nessa condição, torna-se oportunidade de depois. Trinh comenta: “é somente quando o uma lor.
são traduzidas. A própria experiência de assistir sentir, experimentar, reletir, sem precisar ou comportamento cuidadosamente ensaiado se (Dogen Zenyi)
o ilme é perturbadora; percebe-se rapidamente procurar “explicar” o que aparece na frente da torna coletivo que as diferenças realmente as-
que as convenções e a ordem que “normalmen- câmera. E é nesse caminho que a “outra dimen- sumem suas cores individuais”. Na sua crítica da busca da verdade domi-
te” estruturam um ilme e conduzem o enten- são” aparece para subverter a solidez e a certeza Nesta subversão à questão – tão cara à an- nante, qualquer e de quem quer que seja, o
dimento do seu conteúdo não vão servir aqui. da “percepção normal”. Trinh comenta em of, tropologia – da interface entre o coletivo e o trabalho de Trinh abraça a multiplicidade da

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experiência humana e das ininitas perspectivas looking more closely at the outcome of her experi- PRATT, Mary Louise. 1986. “Fieldwork in Common TAUSSIG, Michael. 1994. “Physiognomic Aspects of Vi-
localizadas na mente – e no corpo – de cada mental practice in one particular work, he Fourth Places”. In J. Cliford e G. E. Marcus (orgs.), Writing sual Worlds”. In L. Taylor (org.), Visualizing heory.
Culture: he Poetics and Politics of Ethnography. Berke- Selected Essays from V.A.R. 1990-1994. New York and
um. A mente aqui não é uma mente totalizante Dimension, Trinh’s penultimate ilm produced in
ley e Los Angeles: University of California Press, pp. London: Routledge, pp. 205-213.
e singular, mas a mente de uma lor, abrindo-se 2001.
27-50. TRINH, T. Minh-ha. 1991. When the Moon Waxes Red.
para incorporar os vários selves de um corpo e keywords Visual anthropology. Post-colo- ROSALDO, Renato. 1986. “From the Door of His Tent: New York and London: Routledge.
suas várias experiências do mundo. Desta for- nial critique. Experimental ilm. he Fieldworker and the Inquisitor”. In J. Cliford e WILLIAMS, Sarah. 1991. “Suspending Anthropology’s
ma, ao mesmo tempo em que Trinh subverte a G. Marcus (orgs.), Writing Culture: he Poetics and Inscription: Observing Trinh Minh-ha Observed”. Vi-
possibilidade de conclusões, seu trabalho pede Politics of Ethnography. Berkeley e Los Angeles: Uni- sual Anthropology Review, 7 (1):7-14.
versity of California Press, pp. 77-97.
um mundo acadêmico em que a ausência des- Referências bibliográicas
SAHLINS, Marshall. [1993]. Esperando Foucault, ainda. Filmograia
sas últimas não implica em uma falha da/do São Paulo: Cosac Naify, 2004
acadêmica/o em provar sua competência, mas CLIFFORD, James. 1986. “Introduction: Partial Truths”.
SZTUTMAN, Renato. 2004. “Jean-Rouch: Um An-
In J. Cliford e G. E. Marcus (orgs.), Writing Culture: he Fourth Dimension. Direção: Trinh T. Minh-há. Ja-
na possibilidade de se colocar nesse mundo tropólogo-cineasta”. In S. C. Novaes, [et al.] (orgs.),
he Poetics and Politics of Ethnography. Berkeley e Los pão / Estados Unidos, 2001. (87 min.)
falando perto das suas experiências e das ex- Angeles: University of California Press, pp. 1-26.
Escrituras da Imagem. São Paulo: Fapesp / Editora da
Reassemblage. Direção: Trinh T. Minh-há. Senegal / Es-
periências que observa no seu entorno. Assim Universidade de São Paulo, pp. 49-62.
CRAWFORD, Peter Ian. 1992. “Film as discourse: the tados Unidos, 1982. (40 min.)
sendo, não ofereço nenhuma conclusão fecha- invention of anthropological realities”. In P. I. Cra-
da a esse ensaio. Ao contrário, procuro abrir, wford e D. Turton (orgs.), Film as Ethnography. Man-
com ele, mais uma lor no mundo. chester: Manchester University Press, pp.66-82.
GRIMSHAW, Anna. 2001. he Ethnographer’s Eye: Ways
autor Jessie Sklair
of Seeing in Modern Anthropology. Cambridge: Cam- Mestranda em Antropologia Social / USP
bridge University Press.
The fourth dimension in the work of HARAWAY, Donna. 1995. “Saberes Localizados: a ques- Recebido em 24/02/2006
Trinh T. Minh-ha: challenges for the an- tão da ciência para o feminismo e o privilégio da pers- Aceito para publicação em 18/05/2006
thropology or learning to talk close pectiva parcial”. Cadernos Pagu, (5): 07-41.
HEIDER, Karl G. 1976. Ethnographic Film. Austin: Uni-
versity of Texas Press.
abstract he work of ilmmaker and femi-
HENLEY, Paul. 1999. “Cinematograia e pesquisa et-
nist, post-colonial theorist Trinh T. Minh-ha is
nográica”. Cadernos de Antropologia e Imagem, 9(2):
considered here in terms of the challenges it poses 29-50.
for both visual anthropology and the discipline’s LATOUR, Bruno. 1999. “How to talk about the body?
project on a wider scale. Trinh’s work relects de- he normative dimension of science studies”. Paper
veloping trends in anthropology – especially in the apresentado no simpósio ‘heorizing the Body’, Paris,
França.
realm of the visual – in relation to both post-colonial
MACDOUGALL, David. 1997. “he Visual in Anthro-
critique and the growing interest in new methods
pology”. In M. Banks, H. Morphy (orgs.), Rethinking
for the production of knowledge about the world visual Anthropology. New Haven/London: Yale Uni-
which reject the cerebral rationality of older West- versity Press, pp. 276-295.
ern anthropological theory in favor of more corpo- MEAD, Margaret. [1975]. “Visual Anthropology in a
ral, individual and sensorial means of understanding Discipline of Words”. In P. Hockings (org.), Prin-
ciples of Visual Anthropology. New York: Mouton de
human experience. However, I argue that the radical
Gruyter, pp. 3-10, 1975.
nature of Trinh’s critique and her position outside of
MOORE, Henrietta L. 1994. “Trinh T. Minh-ha Obser-
the conines of academic anthropology result in ad- ved: Anthropology and Others”. In L. Taylor (org.), Vi-
vances in this direction in her work that go beyond sualizing heory. Selected Essays from V.A.R. 1990-1994.
the limited attempts in the same vein currently in New York and London: Routledge, pp. 115-125.
development within the discipline. In this article I NICHOLS, Bill. 1994. “he Ethnographer’s Tale”. In L.
Taylor (org.), Visualizing heory. Selected Essays from
explore this interface between Trinh’s work and such
V.A.R. 1990-1994. New York and London: Routled-
trends in contemporary visual anthropology before
ge, pp. 60-83.

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Por sobre os ombros de um viajante: ensaio
sobre o movimento, o perspectivismo e o
xamanismo na cosmologia Tupinambá a partir da
obra de André Thevet

DANIEL CALAZANS PIERRI

resumo No trabalho em questão, o autor na qual me debrucei sobre a obra do viajante André
preocupou-se em formular uma interpretação de hevet, que esteve em terras brasileiras na segunda
aspectos relevantes da cosmologia Tupinambá a par- metade do século XVI, como capelão da fracassa-
tir de informações etnográicas esparsas que podem da expedição de colonização francesa na Baía de
ser obtidas nos relatos de André hevet, viajante Guanabara, encampada pelo almirante Villegaig-
francês que participou da expedição de colonização non. Nessa ocasião, iz um exercício de interpreta-
francesa na Baía de Guanabara, no século XVI, en- ção das informações etnográicas contidas em seus
campada pelo almirante Villegaignon. Foram três os relatos a respeito dos Tupi que habitavam a costa
temas privilegiados, a saber: a análise dos nove mi- em tempos de conquista2. Desses índios, conheci-
tos reproduzidos pelo cronista e suas relações com dos na literatura antropológica como Tupinambá,
o perspectivismo ameríndio, tal como abordado por muito se falou a respeito do complexo da guerra
Viveiros de Castro e com o conceito de movimento e dos rituais antropofágicos que lhes eram carac-
cosmológico, desenvolvido por Dominique Gallois, e, terísticos. O interesse sobre esses temas data do
por im, o xamanismo Tupinambá como tendo sido Renascimento (basta pensar no ensaio “Os cani-
uma instituição privilegiada para pautar a relação bais” de Montaigne), mas no âmbito da etnologia
que se travou com os franceses. Esse segundo ponto pode-se situar a obra de Florestan Fernandes sobre
permitiu ao autor reletir sobre as modalidades de
temporalidade inscritas no pensamento Tupinambá muito grato também às minhas professoras Marta
e desse modo inserir-se, tangencialmente, no debate Amoroso e Dominique Gallois que me auxiliaram em
a respeito da “tradicionalidade” do profetismo Tupi- diferentes momentos da pesquisa e da elaboração des-
Guarani. se artigo e à Ana Lúcia Pierri pela revisão do texto.
2. Em outra parte de minha pesquisa, empreendi uma
palavras-chave Tupinambá. hevet. Et-
crítica etnológica de fontes, focada no trabalho de
nologia. Villegaignon. Cunhambebe. História Indí- hevet (Pierri 2005: 2-27), na qual analisei as con-
gena. Tupi da Costa. Xamanismo. Mitologia dições de produção de sua obra, tendo em vista seu
contexto de produção que era marcado: pelo empre-
Introdução endimento colonial francês do qual o frade fez parte,
pelas disputas religiosas que ocorreram no seio des-
se empreendimento e que foram, em grande parte,
Pretendo neste artigo-ensaio focalizar uma das
responsáveis pelo seu insucesso, por sua carreira de
partes de minha pesquisa de Iniciação Cientíica1, cosmógrafo na corte do rei Henrique II marcada pelo
que chamei de disputa por campo cosmográico e pelo
1. Pesquisa realizada sob o apoio inanceiro da FAPESP, contexto de cisma religioso que reinava na Europa e
à qual sou grato. Agradeço também e sobretudo à que se relete também nessa disputa por campo. Essa
Lilia Schwarcz, cuja orientação foi imensamente im- relexão sobre as fontes de hevet foi imprescindível
portante para mim e aos colegas de orientação pela para um bom uso das mesmas, mas ela não igurará
discussão de uma versão preliminar desse texto. Sou aqui senão de maneira indireta.

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os mesmos Tupinambá, da década de 50, como centrou os estudos a respeito dos Tupinambá, documentos seiscentistas e setecentistas. Nessa criador na construção do mundo. Isso pode ser
marco da renovação do interesse sobre a guerra e mas também de que se trata de assuntos ine- obra alguns dos mitos colhidos por hevet são imputado ao enfoque inicial dado por Métraux
o canibalismo. vitavelmente imbricados. Nesse terreno, pro- analisados, mas a interpretação restringe-se a ex- que, para icar com a formulação de Clastres,
Em contrapartida, procurei nesse trabalho curei, sobretudo, discutir com o modelo de plorar as questões relacionadas ao papel do herói não percebeu que os Tupinambá praticavam
explorar outros temas menos discutidos, mas Fausto (1999) a respeito da guerra ameríndia. cultural, Maire, na criação do mundo atual. Em uma religião atéia6.
não menos importantes, a respeito desses anti- outro texto (Métraux 1946), no qual o autor se Lévi-Strauss (1991) foi o único que nos for-
gos Tupi da Costa. Elaborarei aqui uma inter- hevet e os mitos detém um pouco mais sobre esses mitos, limi- neceu uma interpretação de todos os episódios
pretação sobre os mitos colhidos pelo viajante, ta-se a abordá-los a partir das recorrências que reproduzidos por hevet. Seu foco, porém, não
reletindo como corroboram a concepção de Helène Clastres, em seu famoso livro A Terra apresentam em relação ao difundido episódio era restrito aos antigos Tupi da Costa, já que
uma cosmologia em movimento, conceito que Sem Mal (1975), pergunta-se sobre o porquê de dos gêmeos míticos3, não dando conta das varia- os relatos são discutidos no âmbito de uma
tomo de empréstimo de Gallois (1988), que os viajantes do século XVI terem caracterizado ções que cada episódio reproduzido por hevet relexão abrangente a respeito de um atributo
o desenvolveu para reletir sobre os Wajãpi do os Tupi e os Guarani como povos sem supers- oferece. Em uma análise difusionista, defende distintivo do pensamento ameríndio, qual seja,
Amapari, e que nos permite lançar uma nova tições e sem religião alguma. Ela atenta para o que as versões mais ricas em detalhes são ante- o de sua “abertura para o exterior”. Aborda-
luz sobre as interpretações a respeito do profe- fato de que o juízo de missionários e antropólo- riores em relação às outras compondo seu centro rei brevemente essa questão, mas apresentarei
tismo ameríndio. Do mesmo modo, pensarei gos do começo do século XX a respeito de índios de dispersão, esse que o autor mesmo julga difí- uma interpretação complementar dos referidos
os mitos reproduzidos pelo frade (em especial da mesma família lingüística foi completamente cil de determinar. mitos, cuja descontinuidade relativa àquela
os que compõem a série das metamorfoses) em outro, por referirem-se a eles, especialmente aos hevet relatou em seu livro La Cosmographie proposta pelo autor deve-se antes a uma discre-
sua relação com o perspectivismo ameríndio, Guarani, como extremamente místicos. É como Universelle, de 1575, nove episódios míticos que pância de objetivo que a uma discordância, o
tal como descrito e analisado por Viveiros de forma de resolver o problema colocado por essa tratam de temas diversos porém correlacionados. que, creio eu, icará suicientemente explícito.
Castro (1996). Formularei também uma inter- descontinuidade de juízos distantes no tempo Dois deles referem-se a cataclismos que foram Buscando interpretar esses relatos tendo
pretação a respeito do xamanismo Tupinambá que a autora desenvolve a intrigante formulação responsáveis pela coniguração da topograia ter- como foco mais detido os Tupinambá, penso
a partir das diversas referências contidas nas de que se tratava e se trata de povos com uma re- restre, bem como da cosmograia4 atuais (1 e 3). poder demonstrar que a produção quinhentista
obras de hevet que permitem pensá-lo. Tra- ligião atéia, cuja compreensão escapou aos viajan- Dois deles abordam a separação entre a primei- e seiscentista a respeito dos índios que habita-
ta-se não apenas de alusões diretas às cerimô- tes e missionários da época, donde a impressão, ra humanidade e os deuses ou heróis culturais vam a costa em tempos de conquista oferece
nias de curas ou agressões operadas pelos Pajés equivocada para a autora, de que se lidava com (2 e 4). Um narra a origem da agricultura (5) e ainda muita matéria para a relexão etnológica,
e Caraíbas mas, sobretudo, de descrições de povos sem qualquer religião. Essa expressão, re- outro a origem da discórdia entre os Tupinam- sobretudo por conta da renovação teórica que
episódios envolvendo os próprios franceses, em ligião atéia, foi cunhada pela autora para ilustrar bá e os Tomino (3). Há um ainda que discor- tem se dado na disciplina a partir dos anos 70.
especial, hevet e Villegaigon. As solicitações o fato de que a relação desses povos Tupi com o re sobre a natureza dos poderes xamânicos dos De qualquer modo, se como parece, de fato pou-
que os índios faziam aos brancos, bem como as que se chama, na falta de uma palavra melhor, Caraíbas e heróis culturais (9). Cinco deles, por ca atenção foi dada à religião atéia dos antigos
atitudes dos últimos que nos primeiros desper- de “sobrenatural”, não é pautada pela centralida- im, versam sobre as metamorfoses e transfor- Tupinambá, a obra de André hevet se mostra
tavam indignação, permitem pensar no modo de de um deus criador. Ela defende, muito pelo mações operadas pelos heróis culturais sobre a
como o xamanismo foi um terreno privilegia- contrário, que o que deine a “religião Tupi-Gua- primeira humanidade e que deram origem às es-
6. Não creio que religião seja a expressão mais adequa-
do pelos Tupinambá para pautar as relações rani” é a utopia de alcançar a imortalidade sem pécies animais e naturais (1, 2, 6, 7 e 8).5 Pouca da para caracterizar as cosmologias ameríndias. O
que travaram com os europeus (basta lembrar passar pela prova da morte, o que coloca deuses e atenção foi dada à maioria desses relatos, tendo termo implica necessariamente na idéia de “crença”
que eram tempos de grandes epidemias). To- homens em um mesmo plano. os autores focado sobretudo no papel do herói que carrega certamente muitos problemas. Para uma
mei como referência, a esse respeito, o balanço Mas essa tendência em conceber uma religião discussão em torno dos problemas em se pensar os
feito recentemente por Sztutman (2005) sobre a partir da centralidade de um deus criador não 3. Note-se, porém, que o autor foi responsável por su- Tupinambá a partir da idéia de crença ver Viveiros de
blinhar a enorme dispersão da seqüência dos gêmeos Castro (2002a).
o xamanismo na região das Guianas, no qual resultou apenas na recusa por parte dos padres
míticos na América indígena. Mas defendo a expressão “religião atéia” justamente
o autor atenta para o seu grande rendimento em conceder aos Tupinambá uma religião. Pode 4. Emprego o termo aqui no sentido de desenho do cos- pelo seu teor propositadamente paradoxal, que per-
para pautar as relações interlocais. E por im, ser atribuído mesmo a um autor como Alfred mos tal como o concebiam esses índios e não preten- mite subverter o sentido do termo apontando para
esboço uma relexão a respeito das relações en- Métraux em seu livro pioneiro, A Religião dos do me referir ao sentido empregado por hevet por o desconforto de pensar as cosmologias ameríndias a
tre o xamanismo e a guerra, tendo em vista não Tupinambá, de 1928, primeiro a articular o ma- conta da deinição de seu ofício como cosmógrafo. partir da idéia de religião. Bem ao gosto dos Clastres,
apenas o fato de que esse último tema sempre terial sobre os índios contemporâneos com os 5. Como se pode notar, um mesmo mito trata, em al- é pelo paradoxo que se constrói a relexão, necessaria-
guns casos, de mais de um tema. mente comparativa.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 145-166, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 145-166, 2006
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como especialmente adequada para este exercí- lugar que cada classe de seres acaba por ocupar. eram rivais. O cataclismo e o dilúvio explicam ameríndios como descendentes de São Tomé.
cio que pretendo desenvolver aqui por conta da Uma concepção bastante difundida no cenário agora não apenas a topograia terrestre, mas a Isto é, porém, um capítulo à parte, que não será
enorme curiosidade do frade a respeito dos mi- ameríndio e sobre a qual falarei mais detida- eterna rivalidade entre os Tupinambá e seus matéria desse trabalho (ver Holanda 1959).
tos, das cerimônias de cura, das agressões xama- mente quando da análise do perpectivismo im- inimigos. Não tendo sido fruto do desenten- O que quero ressaltar é que os Tupinambá
nísticas operadas pelos Pajés e Caraíbas, enim, plícito nesse conjunto de mitos é inicialmente dimento entre humanos e heróis míticos, mas alegavam que a pedra tinha sido colocada na
de todas essas manifestações que os cronistas7, expressa nos primeiros: trata-se da idéia de que destes últimos entre si, o cataclismo e o dilúvio terra por heróis míticos que haviam se transmu-
bons cristãos que eram, resistiam em descrever homens e deuses viviam todos num mesmo es- aparecem invertidos aqui. Não é o herói que tado em estrelas e passado a viver no céu. Aqui
com detalhes. Iniciemos, assim, com uma análi- paço e compartilhavam da mesma cultura e que sobe aos céus deixando os homens em terra, marca-se o espaço dos deuses e o dos homens na
se desses relatos reproduzidos pelo frade. foi uma série de eventos nos quais os homens mas toda a “vila” que é erguida ao céu, os he- coniguração atual do universo. Mas além disso
puderam estabelecer uma escolha circunstan- róis icando em terra. Do mesmo modo, ao eles diziam que os homens tinham sido desig-
A conformação do universo, a separa- cial que desencadeou o processo de separação invés do dilúvio vir dos céus, por intervenção nados como guardiões da pedra, pois se ela fosse
ção entre deuses e homens e o movi- entre eles e os deuses ou heróis míticos (ver de um herói que deliberadamente se distancia removida de seu lugar ocorreria um novo cata-
mento cosmológico Gallois 1988; Viveiros de Castro 1986 e 2001; dos homens, vem do chão após uma pancada clismo responsável pela aniquilação dessa terra.
entre outros). de Tamendonare (um dos irmãos) que resulta Aponta-se, assim, para o risco de que os cata-
Os quatro primeiros relatos reproduzidos Tal concepção é ilustrada pelo primeiro re- num rasgo na terra de onde escapa a água. E os clismos míticos voltem a ocorrer no presente.
por hevet devem ser analisados como perten- lato que fala sobre a história de Monan. Entre heróis é que tiveram que fugir da água subindo Não é portanto apenas o gosto salgado das
centes a uma mesma série, que discorre sobre o ele e os homens, cultivava-se uma boa relação, em palmeiras bem altas (ver diagramas adian- águas do mar (pois os Tupinambá diziam que
processo de conformação do cosmos atual e do marcada por uma convivência freqüente. Vi- te). Isso mostra a continuidade entre homens e as cinzas do incêndio haviam salgado as águas
viam todos do que a terra lhes proporciona- deuses, pois os primeiros são descendentes dos dos mares) que o mito explica, mas uma con-
va, com a ajuda dos céus e, desse modo, não últimos. Foram esses dois heróis e suas esposas cepção acerca da dinâmica da cosmograia e da
7. Esse termo genérico, cronistas, usado indistintamente
para designar um conjunto extremamente diversii- tinham necessidade de trabalhar. Isso fez com que povoaram a terra. temporalidade, ou também do poder transfor-
cado de documentos quinhentistas e seiscentistas a que se alimentasse entre os homens uma certa Os mitos 4 e 2, porém, ao focarem a distri- mador das águas (hevet 1953: 38-41)8. Neste
respeito dos índios da costa, que compreendem não mesquinhez, que os fez passar a desprezar Mo- buição do espaço do cosmos entre as diferen- sentido, esses mitos cosmogônicos não podem
apenas crônicas de viagem, mas cartas, documentos de nan. Esse, indignado com a situação, resolveu tes categorias de seres e não sobre a discórdia ser vistos como ilustradores da formação de um
circulação restrita, compilações de outros documentos separar-se do convívio com eles indo para o céu entre os grupos humanos, acabam ressaltando universo fossilizado, que não compreende em
(como a obra de Simão de Vasconcelos), entre outros,
e vingou-se enviando à terra o fogo, Tata, que a descontinuidade entre os homens e os deu- si a possibilidade de transformação, mas sim
tem causado enorme desconforto. Não obstante, há
em comum entre todos eles o fato de tratar dos índios tudo queimou. Foi esse incêndio o responsá- ses. O quarto mito é o último desse conjunto como operantes na relação atual que os índios
e é isso que os faz interessante ao etnólogo. O termo, vel pela conformação da topograia atual pois recolhido por hevet que faz menção ao cata- tinham com o cosmos. A possibilidade aberta
além de apagar a diferença entre os tipos de documen- enrugou toda a terra (antes plana e regular), clismo apontando, porém, não para o seu pa- de que ocorra um novo cataclismo corrobora
to, tem o agravante de se referir originalmente a um formando vales e montanhas. O único poupa- pel na formação do mundo atual, mas para sua com a interpretação de Becquelin de que “todo
gênero literário especíico, o das crônicas. Assim, uti- do do desastre foi Irin-Magé, que Monan havia função na formação dos mundos futuros. Tra- mundo sabe que o que ocorreu no passado
lizá-lo signiica tratar tanto uma carta de circulação
retirado da terra na ocasião do incêndio. Ele ta-se da explicação da “reverência” dos índios pode ocorrer agora. O tempo do mito e o tem-
restrita como uma cosmograia, gêneros tão distintos,
como crônicas. O que se deve ter claro ao utilizar esses ica muito irritado com esse último e reivindica a uma determinada pedra que eles teriam feito po de hoje são contemporâneos. Um evento do
documentos é que se deve lê-los tendo em conta o gê- que faça alguma coisa. Monan, por im, envia questão de mostrar a hevet e que, aliás, icou passado, de lá, pode se repetir aqui, agora, co-
nero literário ao qual se referem; do contrário corre-se chuvas abundantes, que apagam todo o fogo e bastante famosa na literatura quinhentista por migo ... (...)” (apud Gallois 1988: 55, tradução
o risco de mal compreendê-los. Porém, ao escrever nos formam os rios e os mares, cujo gosto salgado é ter se prestado às especulações teológicas sobre minha). É isso que faz com que os mitos se-
deparamos com a necessidade de empregar um termo fruto das cinzas desse grande incêndio. A Irin- a origem dos ameríndios. Assim ocorreu, pois jam sempre atuais ou atualizáveis e que coloca
genérico (ainal, são todos documentos que versam so-
Magé concede uma mulher e esse casal povoa a outros cronistas associaram as pegadas inscritas a coniguração do cosmos como transitória e
bre os índios) e desde a monumental obra de Flores-
tan Fernandes é o termo cronista que tem carregado nova terra que é a dos Tupinambá atuais. na pedra, das quais hevet também fala, a um
esse sentido, por isso continuo a empregá-lo. O que O mito 3 também discorre sobre um cata- herói mítico chamado Sumé. Os padres logo o 8. As águas têm grande rendimento no pensamento
importa, a meu ver, é o modo como se utilizam esses clismo responsável pela coniguração atual do tomaram pelo apóstolo São Tomé, que teria via- ameríndio que confere freqüentemente a elas esse po-
documentos e não o termo genérico empregado. Es- mundo. Porém é resultado, desta vez, do de- jado por todos os cantos do mundo para pregar der de transformação. A esse respeito notar os outros
crevi a respeito das especiicidades do texto de hevet sentendimento entre dois irmãos míticos que a palavra divina e explicaram assim a origem dos mitos colhidos por hevet, comentados adiante, e a
em outra ocasião, ver Pierri (2005). relexão de Wright (1996: 101).

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sempre na iminência de ser superada. Portanto, sustentar a abóbada celeste, o céu cairá sobre a relexão sobre o futuro. O profetismo é jus- céu) tem um estatuto totalmente diferente do
narrar os cataclismos do passado mítico é aten- as cabeças de todos (Albert 2002). Semelhante- tamente isso: um desdobramento atual (que que pode ter em um messianismo cristão, no
tar para a possibilidade sempre presente de que mente pensaram os Baniwa: quando os evangé- pode se manifestar em migrações no espaço, qual a teleologia é colocada no tempo longo e
eles possam voltar a ocorrer no presente. licos acabaram com a prática dos seus pajés, que em discursos políticos ou em crises desespe- a lógica cíclica no tempo curto. Para os cristãos
Isso nos remete diretamente ao conceito de eram responsáveis por “melhorar o mundo”, o radas, mas que implica necessariamente em (assim como para os ambientalistas modernos)
movimento cosmológico, desenvolvido por Gallois cataclismo também fez-se iminente (Wright uma ação por parte dos índios) das virtualida- o cataclismo representa um télos, o im (em seus
(1988) para caracterizar concepção semelhante 1996: 99, 111). Os Guarani de hoje também des possíveis dentro de cosmologias nas quais dois sentidos) da História. Para um Tupinambá
presente entre os Wajãpi do Amapari. A autora alegam que a cruz que ica na casa de reza está está presente essa concepção de movimento, (assim como para muitos outros ameríndios)
aponta para o fato de que não se pode caracteri- lá para segurar a abóbada e impedir que o céu relacionada a representações complexas a res- representava o im da humanidade atual (um
zar a cosmograia Wajãpi a partir de uma taxio- caia em suas cabeças; o que eles tem certeza que peito da cosmograia, envolvendo uma miríade im entre outros). Muitas humanidades já po-
nomia, pois ela não se resolve em posições ixas. cedo ou tarde acontecerá (Fausto 2005). Os de plataformas e seres que nela habitam, mas voaram a Terra e muitos cataclismos já ocorre-
O universo foi formado por diversos cataclismos Araweté, por sua vez, temem que a abóbada ce- que nunca são tidas como ixas. Uma atualiza- ram. Não é tão excepcional assim esperar que
sucessivos no passado e o futuro será também leste tombe por conta do peso dos mortos que ção, necessariamente da ordem da curta dura- outro esteja na iminência de ocorrer.
marcado por eles. Assim, sua coniguração está nela habitam. Cada vez mais mortos, cada vez ção, que se exprime sob a forma de teleologia, Não quero sugerir com isso que os movi-
sempre aberta à transformação. Esse movimen- mais pesada a plataforma celeste, o que faz com visto que toda profecia remete a um im, mas mentos proféticos não devam nada à expansão
to cosmológico institui assim uma temporalidade que em tempos de epidemia eles tenham mui- que se inscreve dentro de uma lógica cíclica a do “sistema mundial”. De fato, a conquista co-
muito diversa da teleologia cristã. A história não to medo de um novo cataclismo (Viveiros de longo prazo, a da alternância de humanidades locou para os índios problemas novos10, cuja
é o percurso em direção ao seu termo, no im da Castro 1986). Os mesmos Wajãpi também pro- que se sucedem a partir dos cataclismos. Trata- dimensão ultrapassava os limites até então co-
qual o Grande Julgamento acabará por instaurar duziram recentemente discursos a respeito do se de um problema que remete diretamente a nhecidos. Basta pensar mais uma vez no modo
deinitivamente o reino da salvação e a punição cataclismo. Os igarapés secaram com a abertura uma discussão de Becquelin (1993) a respeito brutal através do qual as epidemias tornaram-
dos pecadores. É, muito por outro lado, a su- da terra operada pelos garimpeiros e o céu cairá, da transmissão da memória entre os Maya, na se um problema cotidiano na vida dos amerín-
cessão de humanidades que serão sempre subs- mais uma vez, dizem (Gallois 1989). qual a autora se questiona sobre o aparente pa- dios. Como icará claro adiante, elas serviram
tituídas pelos deuses ou mortos que habitam a Não faltariam outros exemplos para ilustrar radoxo da coexistência destas duas lógicas de em grande medida à especulação dos Tupinam-
abóbada celeste no momento em que esta cair essa idéia: o passado foi marcado por sucessi- temporalidade, uma cíclica, a longo prazo, que bá11 a respeito da origem dos brancos e podem
sobre a cabeça dos homens atuais. Os mortos do vos cataclismos e o futuro também será. Desse remete à alternância de humanidades e outra ter sido vistas como indícios de que um novo
presente (que habitam a plataforma celeste) se- modo vê-se uma coniguração de um espaço- linear, que sobressai das profecias que tinham cataclismo estaria na ordem do dia. Porém,
rão os vivos do futuro, o que, ao mesmo tempo tempo na qual esses dois pólos vêm necessaria- grande centralidade na vida dos Maya. isso tudo não faz necessário imputar uma in-
em que instaura uma concepção de certa forma mente imbricados e podem ser, de certa forma, Nesse sentido, a discussão em torno do luência cristã à emergência dos movimentos
cíclica ou espiralada da história, aponta para a alternáveis entre si. O espaço das divindades ou profetismo Tupi-Guarani tem muito a ganhar proféticos, já que sua possibilidade é dada de
continuidade entre homens e deuses, tão bem dos mortos remete ao tempo de uma humani- se partir de uma perspectiva comparativa mais maneira muito forte pela lógica do movimento
explorada por H. Clastres9. dade simultaneamente passada e futura: os que ampla, considerando a lógica dentro da qual inscrita na cosmologia Tupinambá e em inú-
Essa concepção me parece bem difundida foram os antigos habitantes da plataforma ter- esses discursos e movimentos chamados pro- meras outras cosmologias ameríndias. Não vou
no cenário ameríndio. Entre os Yanomami, restre e hoje habitam a plataforma celeste serão féticos emergem, que certamente transborda me alongar aqui nessa discussão, pois para isso
pode-se pensá-la a partir dos discursos de Davi os próximos a povoar a terra. o domínio dos grupos Tupi-Guarani. Nessa seria necessário ampliar muito o exercício aqui
Kopenawa a respeito da queda do céu desenca- Creio que esse conceito de movimento cos- perspectiva, a emergência de movimentos pro- proposto. Fica sublinhada, porém, esta suges-
deada pela epidemia shawara proveniente da fu- mológico permite lançar uma luz sobre a dis- féticos deve-se a uma lógica muito diferente tão de pensar o profetismo relacionando-o com
maça da queima do ouro e dos manufaturados cussão a respeito do profetismo Tupi-Guarani. da lógica cristã e não a uma inluência tomada o conceito de movimento cosmológico, proposto
que acaba por eliminar os xamãs e os seus espí- Nessa perspectiva os discursos proféticos e as do convívio com os missionários. Essa idéia de por Gallois.
ritos auxiliares da loresta. Sem os xamãs para narrativas míticas se confundem, pois não se movimento cosmológico poderia ser deinida a
trata de pensar estes últimos como explicações partir de uma lógica cíclica de tempo a longo 10. Desde os primeiros momentos, como comentarei
9. A autora segue o mote de A. Métraux, que designa a respeito de um passado distante mas como prazo cujas atualizações são efetuadas na forma adiante reletindo sobre os Tupinambá.
os Caraíbas como homens-deuses. Posteriormente constituidores de uma lógica operante no pre- de teleologia, notadamente no caso das profe- 11. Assim como servem a muitos outros grupos indíge-
Viveiros de Castro (1986) aproveita sua relexão para sente para lidar com o mundo atual e pautar cias. Nesse regime, o cataclismo (a queda do nas. Ver sobretudo Albert (1992 e 2002) sobre os Ya-
sublinhar os traços da “utopia Tupi-guarani”. nomami.

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Voltemos, assim, ao material de hevet. A homens em animais, operada também a par- Diagrama 1- Conformação do universo e separação dos homens e deuses
transformabilidade da cosmograia relaciona-se tir do desentendimento entre heróis e homens Desentendimento entre o herói e os homens A separação se dá de baixo para cima por vontade Água e fogo provém dos
M1
intimamente com a transformabilidade dos se- no começo dos tempos. Em alguns desses epi- por descontentamento do herói do herói céus
res que habitam o cosmos. Isso permite traçar sódios (1, 2 e 6) estão associadas a separação Desentendimento entre o herói e os homens A separação se dá de baixo para cima por vontade
M2 Não há água nem fogo
por descontentamento dos homens dos homens
uma ponte entre a série dos mitos que abordam dos homens e dos deuses e a dos animais e ho-
A separação se dá de modo que os humanos sobem
o processo de conformação do cosmos com a mens. Há freqüentemente a alusão a um estado M3
Desentendimento de dois irmãos heróis entre
aos céus e se transformam em deuses e os dois heróis
Água brota da Terra mas
outra série, que focaliza a criação das espécies de abundância plena em oposição a outro de eles mesmos não há fogo
icam na terra e dão origem à humanidade.
naturais e animais a partir de metamorfoses carência generalizada (1, 6 e 8) e também ao
sofridas pela primeira humanidade. O mito 2 papel da água nos processos de metamorfose Diagrama 2 - Metamorfoses
permite exempliicar essa passagem, pois dis- (6, 7 e 8). Mas passemos a uma análise mais Homens desrespeitam Homens viviam com o herói em Herói metamorfoseia, do Herói sobe ao céu se separando
corre tanto sobre a separação entre os homens pormenorizada de cada mito antes de sistema- M1
um herói um estado de abundância céu, os homens dos homens por vontade própria
e um herói cultural como enfatiza as metamor- tizá-los. Herói metamorfoseia, da Herói é transformado em estrela
M2 Herói destrata dos homens
foses operadas pelo último. Resume-se assim: No mito 1, Monan vivia entre os homens - terra, os homens. por vontade dos homens
os homens, cansados das transformações que o em um estado de abundância plena, como já Homens passam a viver na
Homens subjugam um Herói metamorfoseia, da Herói sobe ao céu por vontade
herói operava manipulando poderes xamâni- mencionei. Eles o desrespeitam e ele sobe aos M6 carência e o herói e sua família
herói terra, os homens na água própria
cos, resolvem matá-lo e o fazem submeter-se céus, transformando-se em estrela e enviando na abundância
a uma prova que acaba resultando na sua me- fogo e água. No inal do episódio menciona-se Homem desrespeita um Herói metamorfoseia, da
M7
herói - terra, um homem na água -
tamorfose em uma estrela, indo morar no céu. que ele tratou de usar seus poderes metamorfo-
Homem desrespeita a mãe Herói metamorfoseia, da
Também é um mito que ilustra a origem de seando os homens em animais de acordo com M8a1
de um herói - terra, um homem -
Tupã, o trovão, uma vez que foi causado pela o ambiente, de modo a se vingar dos homens, Os heróis mencionam um lugar O mito 9, que é continuação
metamorfose de Maire-Monan em estrela. As- o que ele faz do alto dos céus. Homens desrespeitam a de abundância para além de Herói metamorfoseia, da desse, mostra como os heróis
sim, a vontade dos homens faz com que a se- Na outra versão (mito 2), Maire-Monan M8b
mãe de dois heróis irmãos onde vivem homens e heróis terra, os homens na água continuam a viver entre os
paração entre eles e os deuses se dê de forma intervém sobre os homens com suas metamor- para ludibriá-los homens
que o herói seja lançado aos céus por vontade foses tanto para ajudá-los como para realizar o
deles, diferentemente do cataclismo gerado contrário. Eles se voltam contra o herói, pois
homens e se transforma em estrela, indo viver eles a fazem em pedaços, devorando-a em um
pelo desentendimento entre os heróis do mito achavam que ele estava abusando no uso de
no céu. banquete e jogando fora seus ilhos. Estes pas-
3, quando são os homens que se transformam seus poderes e acabam os homens mesmos in-
No mito 7, o herói vive entre os homens e sam a viver na aldeia entre os homens e em um
em deuses e os deuses em homens, no entanto duzindo sua metamorfose em estrela. No mito
se entretém manipulando seus poderes xamâni- determinado momento se vingam, incitando-
de maneira semelhante ao mito 1, no qual a 6, o herói é subjugado pelos homens e se en-
cos para confeccionar um ornamento feito de os a ir a uma ilha, na qual abundam os víveres,
separação também é fruto do desentendimento contra, a princípio, na condição de escravo. No
fogo. Um homem o desrespeita e ele se vinga lançando-os ao mar quando navegavam até a
entre deuses e homens, vindo o descontenta- momento seguinte, após ter se casado e tido
transformando-o em uma galinha (Sarracou). ilha e metamorfoseando-os em jaguar. Aqui é
mento do herói, que se lança ao céu por von- um ilho, ele é abandonado pelos homens que
Também é enfatizado o papel da água na me- enfatizado o papel da água.
tade própria. As transformações desta série de passam a viver em uma carência absoluta en-
tamorfose. O oitavo mito, por sua vez, trata da Esta série de mitos encontra relações com a
mitos podem ser resumidas pelo diagrama 1. quanto ele, sua mulher e seu ilho vivem em
história dos meio-irmãos míticos. Um herói primeira mencionada no que se refere à separa-
abundância plena. Os homens desrespeitam-
vive errante na companhia de sua mulher e de ção entre homens e deuses. O diagrama 2 tenta
A Origem das espécies (ou das pers- no e o herói se vinga metamorfoseando-os em
seu ilho. Ele abandona os dois e estes acabam resumir essa airmação.
pectivas...) animais, o que ele faz estando em terra. É res-
encontrando homens. No primeiro encontro, Gallois (1988: 72) mostra como, entre os
saltado o papel da água nas operações. Logo em
com o homem-sarigué, ele desrespeita a mãe Wajãpi do Amapari, a separação entre homens
Dois mitos já mencionados (1 e 2) e ou- seguida, resolve se separar do convívio com os
do pequeno herói estuprando-a e engravidan- e animais, Wajãpi e outras categorias de seres,
tros três (6, 7 e 8), tratam da metamorfose12 de
do-a de um novo ilho. Ele é metamorfoseado se dá no plano horizontal, e que a separação
operados pelos heróis do tempo mítico e o termo
12. A partir daqui seguirei a sugestão de Gallois (1988: transformação às operações dos xamãs do tempo
em sarigué (não se menciona a água). Em se- entre vivos e mortos, terrestre e celeste, dá-se
74) de reservar o termo metamorfose a esses processos “atual”. Até aqui utilizei os dois termos (meio que) guida, continuando em sua jornada, a mulher no plano vertical. Viveiros de Castro (1986)
de transformação deinitiva de homens em animais indistintamente, pois assim o fez hevet. encontra com o homem-jaguar e sua aldeia e propõe, à luz da deinição de cosmologia de

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Lévi-Strauss, que para os povos Tupi-Guarani escravo. O que acarreta em um momento no aqui é uma cosmograia colocada sempre em transformados nos primeiros representantes de
o eixo vertical será tanto mais enfatizado quan- qual ele e sua família viveram na terra num es- risco pela lógica do universo que é pautada várias espécies de animais e plantas, bem como
to mais for presente a atuação dos deuses na tado de abundância plena, enquanto os outros pela possibilidade de transformação. Foi algo de corpos celestes ou de acidentes geográicos
vida cotidiana do grupo. Essa assertiva tem homens sofriam carências e morriam de fome. semelhante o que Viveiros de Castro (2001a) (...) (apud Viveiros de Castro 2001a: 356).
como objetivo claro dar conta da transforma- Como no mito 1, o desrespeito dos homens o explorou buscando uma generalização para o
ção lógica entre o sistema da sociologia canibal leva a deixar a terra por vontade própria. Por cenário ameríndio na teoria que chamou de A mitologia destes Tupinambá, que anali-
Tupinambá, na qual o inimigo que compunha im, outra inversão merece ser notada. No mito perspectivismo. Pensarei agora nas implicações so aqui, não é tão diferente assim. Vemos, nos
o complexo da vingança era um outro grupo 2, diferentemente do mito 1, do 3 e do 6 (o dessa teoria para o material de que disponho. mitos colhidos por hevet, como homens de
humano, para a teologia canibal Arawété, na diagrama 1 mostra isso mais detalhadamente), O perpectivismo é, para Viveiros de Castro, um passado distante se transmutaram em: sari-
qual são os Deuses Canibais que devoram os o desentendimento entre o herói e os homens um aspecto do pensamento ameríndio referen- gué e jaguar (mito 8), jacaré, tartaruga de água
homens. se dá de tal modo que são esses últimos que se te a uma concepção muito difundida dentre os doce, grilos e gafanhotos, porcos e aves (mito 6)
As narrativas da gênese das distinções en- descontentam com o primeiro e não o contrá- povos do continente de que “o mundo é habita- e galinha (mito 7) e como o herói se transfor-
tre homens/deuses/animais aqui abordadas, rio. Conseqüentemente, é por vontade dos ho- do por diferentes espécies de sujeitos ou pesso- ma em estrela (mito 2). Em alguns desses casos,
de outro modo, apontam ora para uma ante- mens que o herói se metamorfoseia em estrela as, humanas e não-humanas, que o apreendem porém, estes homens que vieram a dar origem
rioridade da disjunção homens/deuses ora, ao e vai morar no céu. segundo pontos de vista distintos” (2001a: aos animais já carregavam em si aspectos de suas
inverso, da separação homens/ animais. A se- O que quero destacar a respeito dessas duas 347). A questão central é a de que, inversa- perspectivas atuais, como animais. Esse é o caso,
paração entre homens e deuses se expressa no séries de mitos é a sua relevância para destacar mente ao que ocorre entre nós, “ocidentais”, sobretudo, do homem-jaguar do mito 8, que
plano vertical a partir de um desentendimento aspectos importantes da cosmologia Tupinam- o universo é composto por diversas categorias havia comido a mãe do herói em um banque-
que tem origem no plano horizontal, o que é bá. O primeiro deles, como ressaltei, se refere de seres, dotadas de um mesmo “espírito” hu- te canibal, semelhante em tudo às cerimônias
ilustrado por quatro dos mitos que analiso (1, à grande consonância que se pode notar entre mano, que vêem o mundo, porém, a partir de antropofágicas que costumavam fazer os pró-
2, 3 e 6). Já as metamorfoses animais guardam o que Gallois caracterizou como o movimento perspectivas diversas e estas estão relacionadas, prios Tupinambá. Assim, estes homens-jaguar
uma certa complexidade, como expressa o dia- na cosmologia Wajãpi e o que sugerem os mi- antes de mais nada, com os corpos dos seres. já carregavam no princípio dos tempos o fato
grama acima. É isso que sugere a comparação tos aqui analisados. Ela defende que a lógica Neste sentido, homens, deuses, animais, entre de serem predadores dos humanos (mas não dos
entre o primeiro e os outros mitos. Esse é o do universo não pode ser apreendida por uma Outros, compartilham um mesmo “modo de deuses, ainal eles não comeram os heróis), mas
único no qual os homens viviam em um estado taxionomia, pois é uma lógica que compreende vida”, que se expressa de maneira diferente para sua cultura era essencialmente a mesma que a
de abundância quando do desentendimento em si o movimento, já que o universo se fez e se cada qual. O corolário disso tudo é que todos dos homens: canibal. O jaguar continua, no
entre eles e o herói e isso se relete no processo refez através de sucessivos cataclismos e outros vêem a si mesmos como humanos e aos outros tempo “atual” dos Tupinambá, portando a mes-
de metamorfose dos homens em animais, pois ainda são esperados (1988: 84-85). Do mesmo como animais e espíritos, porém, vêem coisas ma cultura antropofágica. É o que justiica todas
ele se dá (e é o único caso no conjunto) do céu modo, a posição que cada classe de seres ocu- diferentes. Para um animal de presa, o homem as precauções que eles tinham em comê-lo (he-
para a terra. Ou seja, o herói primeiro sobe ao pa na coniguração atual do universo pode ser pode ser um espírito enquanto seu alimento se vet 1953: 156), pedindo desculpas e tentando
céu, deixando o convívio com os homens, e só transigurada a partir das transformações ope- manifesta como um animal de presa. Para os neutralizar ou amenizar a vingança que sabiam
depois e lá de cima é que opera as metamorfo- radas por xamãs de diversos planos, pois são deuses, os homens podem ser animais de pre- que viria, uma hora ou outra. É certo que ves-
ses. Em outras palavras, há inicialmente a se- eles que no presente possuem as capacidades sa, assim como para um jaguar, por exemplo. tem outra “roupa” que impossibilita aos homens
paração entre deuses e homens e, em seguida que os heróis tinham no tempo mítico.13 Nesse Enim, não convém aqui reproduzir o ensaio. verem-nos da mesma forma pela qual vêem a si
e por conseqüência da primeira, a disjunção sentido cabe lembrar a proposição de Becquelin Destacarei apenas alguns pontos importantes. mesmos. Mas o risco não é por isso menor.
homens/animais. Em todos os outros casos, a de que “o que ocorreu no passado pode ocorrer Não menos difundida no continente, e inti- De qualquer modo, esses mitos da série das
separação entre homens e animais se dá hori- agora” pois o “tempo do mito e o tempo de mamente relacionada com esse modelo, é a con- metamorfoses podem ser vistos como uma nar-
zontalmente, com herói e homens em terra, ou hoje são contemporâneos” (op. cit.). Isso nos cepção de que no passado mítico todos os seres rativa sobre a origem das espécies, ou melhor,
seja, antes da separação homens/deuses (ou da leva a crer que essas metamorfoses do passado, eram humanos e viviam juntos. Nesse sentido, das perspectivas que habitavam o mundo atual,
produção desta, já que antes eles se confundiam que izeram dos homens animais, são plausíveis “a mitologia dos Campa”, como advoga Weiss, dos Tupinambá dos tempos da conquista. Desse
entre si). Outra transformação interessante é re- de se repetirem no presente. O que se entrevê conjunto de narrativas sobre a especialização dos
presentada pelo mito 3. Nesse caso, os homens é, em larga medida, a história de como, um a um, seres do cosmos sobressai uma continuidade en-
não apenas desrespeitam o herói como o fazem 13. Falarei mais detidamente do xamanismo no próximo os Campa primordiais foram irreversivelmente tre homens/deuses, como é claro desde Métraux
item.

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e H. Clastres, e também entre homens e espécies nos detêm no momento atual são vistos como os dois irmãos eram “meio-gêmeos”15, pois um maiores problemas. O pai diz estar convencido,
naturais, como tem sido discutido por Descola tendo sido emprestados ou roubados de outros era ilho da mãe deles com o caraíba Maire-Atá mas insiste para que passem por outra prova.
(2005) no âmbito de um regime que o autor seres, provenientes de outros domínios. Em e o outro, mais novo, com o homem-sarigué Deveriam ir a um lugar chamado Agnen pinai-
chama de animista e que seria marcado pela ex- hevet, o mito 5 ilustra exatamente este aspec- que a havia estuprado. O episódio do mito 8 ticane, que é o lugar onde os mortos moqueiam
tensão dos atributos humanos aos não-humanos to, pois narra o processo de aquisição da agri- havia acabado quando os meio-irmãos tinham e fazem secar um peixe chamado Alain. De lá
e seria operante em uma porção grande do globo, cultura a partir de Maire-Monan. Mas o que se vingado dos homens-jaguar que devoraram deveriam trazer a isca com a qual Agnan pega-
incluindo parte das duas Américas e da Oceania. importa agora notar é como esse conjunto de sua mãe. É nesse ponto que começa o mito 9. va esse peixe. Assim, o mais velho propõe algo
O que, por outro lado, pode-se ter claro a partir questões têm implicações bastante palpáveis no Depois de metamorfosear todos em animais, os semelhante ao que já havia feito, enviando seu
do perspectivismo e que é bem ilustrado por essas que tangia à vida presente dos índios. Como irmãos se viram sozinhos, sem ter nem ao me- irmão em primeiro lugar. Ele vai, é estilhaçado
narrativas, é o modo de diferenciação que sobres- ressaltei, o que ocorreu no “tempo do mito”, nos mulheres para esposar. Resolveram, então, por Agnan, seu irmão o recompõe, eles vão em
sai dessas narrativas. Trata-se da questão de que a tem sempre o risco de ocorrer no “tempo vivi- ir à procura de seu pai e passaram a vagar pelas seguida juntos ao fundo do mar e pegam a tal
distinção entre os pontos de vista é levada a cabo do”, o que faz do espaço da loresta um espaço terras mais longínquas sem ouvir notícia dele. isca levando-a de volta a seu pai. Maire-Atá per-
pela diferenciação entre os corpos dos seres que perigoso, pois “é sempre possível que aquilo Em determinado momento da história en- cebe que eles tinham de fato ido ao fundo do
foi operada pelos heróis desses episódios ocorri- que, ao toparmos com ele na mata, parecia ser contram seu pai, que era o grande caraíba de mar, pois tinham trazido o verdadeiro alimento
dos num tempo mítico ainda marcado pela in- apenas um bicho, revele-se como o disfarce de uma aldeia e vivia entre os homens. Abordam- do peixe, que é a pele de um animal chamado
distinção das posições. um espírito de natureza completamente dife- no, dizem que são seus ilhos e que ele deve Tapirousou. Assim, o caraíba os acolheu como
Viveiros de Castro (2001a) aborda essa rente” (Viveiros de Castro 2001a: 354). Sugeri, tomá-los como tal. Contam para ele toda a his- ilhos em sua casa, mas todo dia propunha a eles
questão caracterizando o perspectivismo de algumas linhas atrás, que o xamanismo ocupa- tória de sua mãe, exceto o fato de que o irmão uma nova prova, com o ito de que eles “ades-
multinaturalismo já que, neste regime, a posição va no tempo atual o papel que as metamorfo- mais novo era “bastardo”. Maire-Atá, assim, trassem a magia” (e este é o ponto importante).
de humano só pode se exprimir na forma cul- ses ocupavam no tempo mítico14. Não há pois, diz a eles que devem passar por algumas pro- Esse mito pode, a princípio, parecer o ates-
tural (todos as classes de seres caçam, pescam sentido falar em domesticação da natureza, vas para mostrar que eram de fato ilhos de um tado de que os poderes xamânicos são restritos
ou fazem guerra, têm seus próprios xamãs e, so- pois os seres que nela habitam podem a qual- caraíba. Primeiramente, manda-os atirar lechas à “linhagem” dos caraíbas, já que o irmão mais
bretudo, vêem-se a si próprias como humanas), quer momento emergir como sujeitos e voltar- com seu arco e fazê-las parar no ar. Eles o fazem, novo, que não era ilho de Maire-Atá, tinha
e portanto a diferenciação, atributo do corpo, se contra o homem e a ele cabe a retaliação e a mas ele não se dá por satisfeito. Manda-os, en- diiculdade em operá-los. Mas o que se dá é
estaria no âmbito da natureza: são efetivamente vingança. O que é necessário para lidar com os tão, passar três vezes e voltar pela fenda de uma justamente o contrário. Penso que o que esse
mundos distintos que são dados a ver a cada seres da natureza (ou melhor, com os não-hu- grande rocha que abria e fechava, destroçando relato destaca é o fato de que mesmo o ilho
ponto de vista. Nota-se ainda que os sinais dessa manos) e também com os brancos, como pre- tudo16. O primogênito diz então ao mais novo de um caraíba deve passar por uma série de
distinção já estão dados de antemão nas narrati- tenderei mostrar, é política e guerra e é neste que este deveria ir primeiro, pois não era ilho procedimentos diários (que podem envolver
vas, pois, desde o seu início, os personagens que plano que o xamanismo exercia (e exerce, em do caraíba e se fosse estilhaçado, ele o recom- resguardos, restrições alimentares, além dos
serão objeto de metamorfose já desempenham outras paisagens) papel fundamental. É isso poria. Obedecendo-o, o irmão mais novo, logo exercícios) para conservar a substância xamâni-
um comportamento pouco comum e que é jus- que explorarei no próximo item. que se aproxima da fenda, é despedaçado em ca e, além de tudo, que um humano qualquer
tamente aquele que lhe será característico en- O xamanismo e os franceses-maire milhões de partes e seu irmão as junta, todas, e pode se tornar um xamã se passar pelos pro-
quanto espécie animal. O homem-sarigué, por Deixei para este momento a análise do o recompõe. Faz o mesmo mais duas vezes e de- cedimentos adequados. Nesse sentido, o irmão
exemplo, viola a heroína e por isso é transfor- mito 9, do qual nada falei, por ele tratar de pois passa ele mesmo três vezes pela fenda, sem mais novo representa o xamã Tupinambá atual,
mado em um animal de pele fétida. Essa des- maneira muito sutil e interessante o tema do não um caraíba dos tempos míticos. Vê-se um
continuidade que se instaura depois do tempo xamanismo. Esse mito é um outro episódio 15. Ou que os dois meio-irmãos eram gêmeos... exemplo aqui de “horizontalidade dos poderes
mítico não excluirá no tempo atual a possibili- no qual iguram como protagonistas os mes- 16. Atento para o rendimento simbólico que a pedra tem, xamânicos” (Sztutman 2005), e que exprime o
no cenário ameríndio, na relação com os deuses. En-
dade de comunicação, muito pelo contrário. As mos irmãos míticos do mito 8, ao qual já me fato de que o poder xamânico é, ao menos te-
tre os Araweté (Viveiros de Castro 1986) e os Wajãpi
perspectivas são tão imbricadas que a própria referi. Trata-se, na verdade, da seqüência desse (Gallois 1988), a plataforma celeste, onde moram os oricamente, acessível a qualquer pessoa, sendo
constituição dessa cultura universal é uma ope- último. Recapitulando, assim, lembremos que deuses, é feita de pedra e por conta disso corre o risco necessárias, porém, uma série de observâncias
ração que transpassa as perspectivas. de cair sobre a cabeça dos homens. Além disso, há en- para conservá-lo. É esse o sentido que se pode
Em relação a isto, nota-se freqüentemente tre os Wajãpi menção semelhante à aqui presente, nes- dar ao inal do mito, no qual o caraíba expe-
que os atributos de civilização que os huma- 14. hevet, aliás, diz que os próprios Tupinambá lhe sus- te mito e no mito 4, de que uma pedra é responsável riente determina aos neóitos que devem passar
tentaram isso. Ver adiante. pela conexão entre o céu e a terra (Gallois 1988: 61).

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por provas diárias para conservar e incrementar de agressões no momento em que se instalaram encontrado seu pai; ver infra). Quando chega, ras, há alusão tanto a procedimentos de sopro e
seus poderes. as missões salesianas no território Yanomami e perguntam-no sobre uma série de coisas rela- sucção, tal qual descrito no parágrafo anterior,
Além deste mito, uma série de referências os padres foram inseridos no sistema de trocas, cionadas à guerra, sobretudo, se vencerão seus como a curas por meio de pinturas corporais,
esparsas nos livros de hevet permitem pensar quando seu poder xamânico passou a ser visto inimigos17, e isto de fato determinará se sairão da ornamentação com plumas e do pétum, que
sobre o xamanismo entre os Tupinambá. Na como inoperante. Porém, na primeira fase do em guerra ou em caça ou se permanecerão onde eles fumavam (idem: 100-102). Dupla possi-
verdade, as passagens que mais dão elementos contato os brancos haviam sido associados a es- estavam. Nesse mesmo sentido, hevet airma bilidade na cura, certamente, mas também no
para pensá-lo são os relatos de episódios vividos píritos canibais, grotescos e inumanos, cujo po- (idem: 78) que os índios coniavam nos pajés diagnóstico, como sugerirei mais para a frente.
por hevet, Villegagnon e outros brancos. São der de agressão era extremo. Do mesmo modo, para lhes prevenirem sobre a guerra e também A doença pode ser causada tanto pela intro-
repletos de apelos trágicos aos brancos ou de a intensiicação das epidemias ocorrida pela sobre os agnan; espíritos que os atormentavam missão de corpos estranhos, tal qual ilustra a
pedidos pontuais. Muitos deles não se referem abertura da Perimetral Norte no território Ya- nas mais diversas situações, como relata he- cerimônia acima descrita, como pela expulsão
ao xamanismo propriamente dito, mas permi- nomami, depois da instalação das missões, fez vet (ver adiante). Já a outra cerimônia descrita do princípio vital do doente, como alguns ape-
tem ver operando claramente o modelo de cau- com que os índios reelaborassem essa primeira aponta para uma cura xamânica. Dá também los aos brancos sugerem (ver adiante). Quanto
salidade nele implícito, tal como descrito por relexão, colocando novamente os brancos na algumas informações sobre os procedimentos às curas por meio de revestimentos corporais,
Gallois (1988) e Sztutman (2005). Adianto que condição de alteridade absoluta, cujo poder de de diagnóstico. hevet menciona que nas curas Gallois (1988: 273) sugere que devam ser pen-
isso me parece uma evidência bastante concreta agressão é enorme. os “caraíbas e pajés” (ele usa esses termos indis- sadas como transformações análogas às meta-
de que o xamanismo foi uma instituição privi- No momento no qual hevet vivia entre eles, tintamente) dizem falar com as almas dos mor- morfoses operadas outrora pelos heróis míticos.
legiada, através da qual os índios pautaram suas os Tupinambá, como explorarei logo adiante, tos. E, além disso, dizem que quando alguém Em relação a esse aspecto, pode-se lembrar a
relações com os brancos. No que concerne ao inseriram os brancos no sistema de agressões está doente é porque sua alma (ou princípio relexão de Viveiros de Castro a respeito do
xamanismo Wajãpi, Gallois nos diz que o siste- não por serem tidos como alteridade absoluta vital) está se queixando. Para curá-lo, chupam perspectivismo ameríndio, que mencionei an-
ma de diagnóstico tendeu a “excluir os brancos (inumana e canibal, como entre os Yanomami) o braço e a parte molestada, pretendendo fazer teriormente, segundo a qual o ponto de vista
do sistema de trocas de agressões, colocando mas como descendentes dos grandes caraíbas com que a doença saia. E ainda, acrescenta ele, a partir do qual as diversas categorias de seres
essa categoria de humanos numa posição inde- do tempo mítico que haviam se distanciado do as mulheres eniam um pedaço de algodão na vêem o cosmos está relacionado ao seu corpo e
inida, que escapa aparentemente ao sistema de convívio com eles e agora retornavam. O gran- boca do paciente e depois o sugam dizendo ser não a seu espírito. Neste sentido, o uso de or-
interpretação de doenças” (1988: 50). Defendo de poder xamânico a eles atribuído, portanto, o mal. Dizem também como diagnóstico, que namentos plumários ou de pinturas corporais
que, entre os Tupinambá, as coisas tenham se era tanto poder de cura como de agressão. Mas o doente pode ter comido qualquer fruta, peixe pode ser certamente associado a uma transfor-
passado de forma bastante diversa, pois os bran- voltemos alguns passos. ou animal morto de doença (1953: 147). mação, semelhante em tudo às metamorfoses
cos não apenas foram integrados ao complexo Começarei analisando duas passagens nas Dessa forma, hevet menciona a respeito míticas, salvo pelo fato de ser transitória. Pois
de vingança, como já é bastante sabido (havia quais hevet faz alusão direta ao xamanismo, do xamanismo Tupinambá tanto operações de bem, segundo hevet, foram os próprios xamãs
grupos aliados aos franceses e outros aos portu- descrevendo uma cerimônia na qual se fazem cura como de agressão aos inimigos através de Tupinambá que lhe sugeriram esta associação,
gueses), mas também ao sistema de diagnóstico previsões a respeito da guerra (1953: 81-82) venenos (idem: 80). Portanto, a ambigüidade pois lhe disseram que “podiam fazer metamor-
de doenças e de agressões e curas xamânicas. e outra na qual se procede a uma cura (idem: do xamã, que pode tanto fazer o “bem” como o foses e transformações como outrora fazia Mai-
Mais que isto, passaram a ocupar nesse 147). Nesta primeira, hevet diz que eles ergue- “mal”, está certamente presente também entre re-Monan” (1953: 61). Tal passagem sugere,
sistema uma posição de destaque, pois foram ram uma habitação nova, na qual entrou o Ca- os Tupinambá18. No que concerne as primei- em consonância com as relexões de Gallois
vistos eles mesmos como descendentes dos raíba e onde haviam colocado uma rede branca (1988), Viveiros de Castro (1986, 2001a) e
grandes caraíbas, com poderes superiores aos e limpa. O Caraíba, que há nove dias estava em 17. Gallois (1988: 232) diz como os presságios têm, entre Sztutman (2005), entre outros, que a particu-
de seus próprios xamãs. A este respeito é in- abstinência e que havia sido lavado por uma jo- os Wajãpi, um valor interpretativo “a posteriori”. Entre laridade do xamã consiste no fato de poder ver
teressante o artigo de Bruce Albert (1992), “A vem virgem, é conduzido solenemente à habi- os Tupinambá parece que as previsões dos xamãs de fato o mundo primitivamente, tal como era antes
inluenciavam as ações os índios, sobretudo em relação
fumaça do metal”, que traz as transformações tação. Depois, levam a ele uma série de víveres do processo de especialização dos domínios do
ao fato de saírem ou não em guerra. Ademais, também
estruturais da relexão dos Yanomami a res- e também cauim. Ele ica sozinho na casa e os encaravam como sinal de mau presságio, o fato de en- cosmos, podendo, pois, operar transformações
peito da origem e natureza dos brancos, das outros vão para trás dela. Ele inicia uma série contrarem um sapo ou uma onça no caminho e então que lhes permitem comunicar-se com esses
epidemias e dos objetos manufaturados nas de procedimentos para invocar um espírito que desertavam a expedição de guerra (1953: 272). domínios outros que interferem na vida de to-
diferentes “fases do contato”. Como entre os se chama Houioulsira (mesmo nome do espíri- 18. Ver sobretudo Viveiros de Castro (1986) que coloca dos, mas aos quais nem todos podem ter acesso
Wajãpi, os brancos foram excluídos do sistema to que revela aos irmãos do mito 9 que haviam essa ambigüidade como traço marcante da “ilosoia (voltarei a isso logo adiante).
Tupi-Guarani”.

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O que ocorre, porém, é que hevet mencio- por uma divergência completa de interesses em acusações de terem trazido o mal. Em segui- seriam efetivamente os brancos os agressores.
na como seres que atormentam os Tupinambá relação aos índios. Os viajantes queriam saber da, hevet fala que foi com Villegagnon ver Indignados por terem sido roubados, operaram
apenas os Agnan (além de uma referência a in- se lidavam com uma verdadeira porção da hu- um rei e seus ilhos para “tocar-lhes a pele” e retaliações xamânicas através talvez de venenos,
fortúnios causados pelas Chepicouares, que ele manidade ou com outra categoria de seres, se curar-lhes. Nota-se como os próprios brancos é isso o que hevet dizia para os Tupinambá.
associa às almas dos mortos – hevet 1953: 20). estes eram susceptíveis de serem convertidos se prestavam a integrar-se no sistema de curas Por isso, se apressaram em trazer todos os obje-
Por outro lado, menciona-os inúmeras vezes e à “verdadeira fé” ou se serviriam apenas como para adquirir prestígio entre os índios. Esta ini- tos. O desespero com o qual pediam ajuda pro-
nas mais diversas situações (idem: 71, 77, 78, mão-de-obra (ver Pompa 2003). Mesmo assim, ciativa fez com que os índios esquecessem as vinha da certeza da impotência de seus xamãs
84, etc.), referindo-se às almas dos mortos, aos e é isso que quero enfatizar, creio que não seja, injúrias que proferiam aos brancos e viessem frente a esses caraíbas tão poderosos. Eram os
espíritos que os atormentam nas lorestas, aos de maneira alguma, o caso de proclamar uma todos ao encontro de hevet, rogando: “Faça brancos que tinham proferido as agressões cau-
espíritos das águas (lembrar do mito 9), etc. A impotência frente ao rico material de que se com que eu não morra!”. hevet retruca dizen- sadoras das doenças e, além disso, os únicos que
série mítica das metamorfoses colhida por he- dispõe em relação a esses índios, muito pelo do que os roubos que tinham feito é que eram a podiam curá-los. Um indício desse poder era o
vet indica, como pretendi ter mostrado, um contrário. causa das doenças, ao que respondem trazendo fato de que podiam inclusive, pensaram, trazê-
cosmos recortado em diversos domínios, que Feita esta digressão, voltemos à análise do imediatamente tudo o que tinham roubado e los de volta da morte, buscar o princípio vital
interferem uns nos outros. Nesse sentido, pen- material de hevet. Como sugeri, são as passa- com muito medo de morrer por estarem tocan- que já se afastara, então, do envelope corporal.
so que os Agnan, de que fala hevet, reiram-se gens nas quais se relatam episódios vividos pe- do naqueles objetos (idem: 87-88). Este episó- As febres, que deixaram muitos moribundos,
antes à categoria genérica “efeito-espírito”, dos los brancos que mais podem servir para pensar dio bastante trágico, além de dar uma idéia eram causadas por isso, pelo afastamento do
Wajãpi (Gallois 1988: 239), na qual estão in- o xamanismo Tupinambá. É delas que tratarei do grau a que haviam chegado as epidemias princípio vital e não pela intromissão de corpos
cluídos os espíritos terrestres provenientes da agora. Na primeira, hevet diz ter ido ver um que matavam os índios - ele diz que os índios estranhos. Frente a tamanho mal, um xamã or-
cisão da alma na morte, que exclusivamente rei, Pinda-houssoub, que estava em seu leito morreram em número ininito e que não mais dinário nada poderia fazer; seria necessário um
a esses últimos, como parece ser o caso entre com febre e bastante preocupado pois não ha- existiam em número necessário para carregar grande caraíba, um Maire19.
os Araweté (Viveiros de Castro: 1986). Agnan, via destino pior do que morrer de uma doença. madeira (idem: 86) – é uma evidência bastante Essa sugestão de que a chegada dos bran-
assim, seria a manifestação de diversas catego- Roga então ao padre para que lhe cure, prome- clara do modelo de causalidade operado pelos cos já estava prevista é bastante difundida no
rias de seres no momento de uma retaliação ou tendo em troca prestar-lhe honras e dar pre- Tupinambá e pelo qual pautavam sua relação cenário ameríndio e, como bem mostrou Lévi-
reparação a múltiplas injúrias e designaria, sob sentes. Diz que deixaria a barba crescer, como com os brancos. No mito 2, que analisei an- Strauss (1991), é fruto da atualização de um
essa rubrica genérica, muitos seres diferentes. ele, e passaria a andar vestido. Vê-se aqui como teriormente, hevet fala como os Tupinambá mecanismo geral constituinte das ontologias
Infelizmente, hevet (e talvez qualquer outro o índio atribuía poderes xamânicos de cura ao chamavam os franceses pelo nome Maire, que americanas caracterizadas por um “dualismo
cronista) não foi suicientemente atento para frade que frustra, porém, suas expectativas. era reservado aos caraíbas do tempo mítico e em perpétuo desequilíbrio” (Lévi Strauss 1991:
que tenhamos uma visão mais precisa da divisão hevet lhe diz que se quer se curar deve crer cujo poder ultrapassa em muito o dos xamãs 90). Não posso deixar de notar que o autor
do cosmos tal qual concebiam os Tupinambá e em Deus, deixar de crer nos caraíbas e feiticei- atuais. Essa assertiva, bem como os episódios constrói este célebre argumento tendo com
dos diversos seres que ocupavam os diferentes ros, não mais se vingar, nem mais comer seus narrados, permitem, penso eu, perceber como principal fonte de inspiração (além de parte
domínios. Não temos qualquer alusão aos do- inimigos e que só assim sua alma não seria ator- os brancos (ou ao menos os franceses) foram importante da base documental) a série mítica
nos das espécies, como entre Wajãpi (Gallois, mentada por espíritos malignos após a morte. tomados por xamãs especialmente poderosos. dos heróis culturais Tupinambá, da qual dispo-
op. cit.), ou aos espíritos das espécies (Viveiros E o rei teria respondido que abriria mão de Foram tido mesmo como descendentes dire- mos graças a hevet e que tenho comentado
de Castro 2001a). O que se teve ter em con- tudo menos de se vingar, mesmo se Toupan, ele tos de Maire-Monan, separado dos índios pelo neste texto. Para o autor, ela ilustra em uma
ta, a partir disso, é que de fato não é possível próprio, lhe pedisse, pois se o izesse morreria dilúvio, como airma o próprio hevet (1953: escala exemplar uma lógica que se reproduz
que os cronistas nos forneçam uma imagem da de vergonha. O frade vira as costas, vai embora 41). Isso é coerente tanto com o poder de cura nas mais diversas operações do pensamento
cosmologia Tupinambá com o mesmo teor que e o índio então começa a bradar insultos a ele a a eles atribuído, como o de provocar doenças ameríndio e por toda parte, dos Tupinambá
podem nos oferecer os etnólogos modernos a seu deus, Toupan (hevet 1953: 85). (lembrar da ambigüidade do poder xamânico), aos hompson da América do Norte, passando
respeito dos grupos entre os quais fazem traba- Em outro momento, Villegagnon teria ido que transparece das acusações que proferem pelos Bororo e pelos Krahó. Trata-se de uma
lho de campo. Não apenas por conta do fato de ver o mais famoso entre os “reis do país”, que contra Villegagnon. lógica da bipartição a partir da qual os pares
que se contrastam instrumentos de análise mui- havia matado e comido muitos. Logo que che- Quando hevet diz serem os roubos a cau-
to diversos (os de um cosmógrafo quinhentista gou, esse e outros morubixabas caíram doen- sa das doenças, os índios tomam a assertiva 19. A respeito dos dois tipos de causas que podem alo-
e os de um etnógrafo moderno), mas também tes. Imediatamente pesaram sobre os brancos como um diagnóstico xamânico que atesta que rar de um diagnóstico xamânico, ver Gallois (1988:
243).

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sempre se constituem de maneira desigual for- Mas voltemos ao xamanismo. hevet alude, é sempre possível que aquilo que, ao toparmos
mando uma hierarquia. Desse tipo bem par- de maneira bastante caricatural, porém precisa, com ele na mata, parecia ser apenas um bicho,
ticular de dualismo sobressai uma lógica de ao modelo de causalidade operado pelos Tu- revele-se como o disfarce de um espírito de na-
“abertura para o exterior”, pois de um dos ter- pinambá no xamanismo e na relação com os tureza completamente diferente (op.cit.).
mos da oposição constituir-se-á um novo par, diversos planos do cosmos e através do qual se
sempre desigual entre si, o que cria a cada des- pautou também a relação com os brancos. Diz Por esses motivos que o xamanismo apa-
dobramento do sistema uma “casa vazia”, que a respeito dos índios: “Eles estão tão mergulha- rece como uma instância privilegiada de ação
deve ser redobrada em um novo par. Isso que dos nessa obsessão pela vingança que se uma política, como sugere Sztutman (2005), pois é
o autor caracterizou como “um desequilíbrio mosca passa frente aos seus olhos querem se através dele que se pode ter acesso aos diversos
dinâmico do qual depende a estabilidade do vingar e se um espinho os pica ou uma pedra os domínios do cosmos dos quais pode partir uma
sistema” e que parece bastante abstrato, ganha acerta eles os farão em pedaços” (1953: 207). agressão cujo agente não é visível em “condi-
contornos muito mais palpáveis nessa série de Esse juízo certamente depreciativo que hevet ções normais”. Sem a mútua relação entre os
mitos recolhida por hevet. faz dos índios mostra como parecia estranho a diversos domínios do cosmos não há eventos,
O mito de Monan (1) narra a disjunção en- um europeu a idéia de que objetos da natureza pouco ocorreria mesmo no mundo dos vivos.
tre criador e criaturas, o de Maire-Monan (2) a pudessem agir como sujeitos. Mas isso é central Nesse sentido, uma cura é sempre uma retalia-
disjunção entre índios e brancos, já que são os para se pensar a noção de agência (Sztutman ção ou uma vingança já que a causa da doen-
últimos os verdadeiros herdeiros do herói apar- 2005) mobilizada no xamanismo e que aponta ça é sempre uma agressão. Dessa forma, o que
tados dos índios, pois esses foram ingratos com para uma resolução de um problema clássico Sztutman generaliza para as Guianas (2005:
o primeiro. A discórdia entre Tamendonare e na ilosoia ocidental, da relação entre sujeito 162), de que há “duas políticas jamais desim-
Aricoute (3) marca a disjunção entre concida- de Lévi-Strauss e é comentada por Viveiros de e objeto, que parece ter se constituído de ma- bricadas: a política do visível (ou dos homens)
dãos e inimigos. A história de Maire-Pochy (6) Castro (2001), que recupera a relexão do pri- neira bastante peculiar na América indígena. O e a política do invisível (ou cósmica)”, é mais
institui a oposição entre bons e maus e a histó- meiro. Trata-se de relatos extremamente díspa- que se passa é que nada ocorre no mundo sem acertado que nunca para pensar os Tupinambá.
ria dos ilhos de Maire-Ata (8/9), que acabo de res, mas que têm em comum, como sugere este a intenção de um agente, que pode ou não ser O que ocorre é que a relação entre os homens se
analisar, marca, por este outro ângulo, a distin- último autor, o fato de situarem a origem dos humano, pode ser desse ou de outro domínio realizava, sobretudo (mas não exclusivamente),
ção entre bons e maus. De um dos termos da brancos como algo que ocorreu no processo de do cosmos, visível ou invisível (Sztutman 2005: através da guerra e da antropofagia21, movidas
oposição cria-se uma outra, num dualismo que criação da humanidade e que portanto se refere 174). Neste sentido a frase de hevet não é tão ambas pelo desejo de vingança, e a relação com
se esforça em enfatizar e produzir a diferença a uma questão já resolvida. O relato de hevet fantasiosa assim, pois remete ao fato de que outros seres do cosmos se dava através do xa-
entre os pares (idem: 65-77) e a partir de uma contrastado às narrativas dessa coletânea, todas eventos que aos olhos ocidentais podem pare- manismo, no qual o ímpeto de vingança não é
reprodução em cascata de sua estrutura, deixa do século XX (exceto uma, do XVII, recolhida cer irrepreensíveis, pois frutos de causas exter- menos presente, já que o modelo de causalidade
sempre em aberto uma casa que espera a in- também entre os Tupinambá por D’Abbeville) nas aos sujeitos, mereçam ser vingados. Assim, nele implícito marca esse imperativo da agência.
trodução de um elemento novo. Não apenas permite pensar como, desde os primeiros mo- o “espinho que os pica ou a pedra que os acer- Por outro lado, a antropofagia fazia da vingança
aberto para o exterior, mas mesmo dependen- mentos da conquista, os índios já sabiam da ta” podem não ser eles mesmos os agentes da realizada na guerra algo acessível a todos, fazia
te dele, como mostrou Viveiros de Castro em chegada dos brancos, e que ela não foi vista agressão, mas a manifestação de uma retaliação com que participassem da guerra não apenas os
um registro distinto, abordando a dinâmica da como um problema insolúvel, o que corrobora proveniente de um domínio cósmico invisível. guerreiros. Antes de prosseguir com esta airma-
vingança (1986). Reproduzo aqui, para ilustrar Lévi-Strauss (1991)20. É por este modelo que passam as concepções de ção, deste modo, me parece necessário matizar a
o argumento, o esquema apresentado Lévi- morte, doença ou qualquer infortúnio fortuito relação entre o guerreiro e o xamã e conseqüen-
Strauss em sua História de lince, com o qual como esses relatados por hevet. São todos fru- temente a relação entre guerra e xamanismo.
20. Para encerrar esse comentário sobre a interpretação do
dialogam os diagramas que construí nas passa- tos da intenção de algum agente. Trata-se de O Pajé ou Caraíba é, antes de mais nada,
autor a respeito dos mitos que nos importam aqui, devo
gens anteriores deste texto (diagrama 3). notar que essa lógica em desequilíbrio da qual ele fala um cosmos povoado por quase-sujeitos (Latour responsável por gerenciar a relação com a al-
Uma coletânea editada pelo ISA que reúne está também relacionada com o conceito de movimento 1994), ou sujeitos potenciais, no qual não faz teridade, a partir de sua capacidade de acessar
“doze narrativas, de grupos distintos, a respei- cosmológico que descrevi aqui. A possibilidade sempre sentido a idéia de um objeto do qual a agência os domínios invisíveis do cosmos (Sztutman
to da origem dos brancos” ilustra muito bem aberta de um novo cataclismo também pode ser aborda- não possa emergir. Como ressalta Viveiros de
a abrangência e vitalidade da argumentação da a partir de um dualismo em desequilíbrio entre a pla- Castro ao falar do perspectivismo, 21. Ver Viveiros de Castro (1986) e Viveiros de Castro e
taforma terrestre e a celeste ou os homens e os deuses. Carneiro da Cunha (1986).

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2005; Viveiros de Castro 1986 e 2001; Gallois “homem de grande magia”. Uma luz é lançada homens, mas apenas os que foram mortos em reza (Yanomami)”. In Albert & Ramos (org). Pacii-
1988). Isso lhe confere uma posição de gran- sobre os efeitos da guerra, portanto. guerra” (1953: 196). Essa frase pode bem ex- cando o Branco. São Paulo: Editora UNESP/ Imprensa
Oicial, pp. 239-276.
de risco, pois, ao tratar com os Outros, sempre Mas, que conseqüências podem ser extraí- primir as angústias de um Tupinambá comum,
BECQUELIN, Aurore. 1993. “Temps du récit, temps de
está sujeito a ser sobrepujado pelo ponto de vis- das destas duas airmações de que os matado- que não podia arcar com a manipulação dos l’oubli”. In Becquelin & Molinie (org). Mémoire de la
ta alheio. Como mencionei, os homens se rela- res, na medida em que abatem seus inimigos poderes xamânicos. Tradition. Nanterre : Société d’ethnologie, pp. 21-50.
cionavam sobretudo através da guerra, entre os em guerra, vão ganhando nomes de animais e CARNEIRO DA CUNHA, Manuela; VIVEIROS DE
Tupinambá. Mas cabe agora notar que isso não acumulando magia? Penso que seja o caso de CASTRO, Eduardo. 1986. “Vingança e Temporali-
signiica que apenas os homens se relacionam efetivamente levar a sério a airmação de Sztut- Over the shoulders of a traveler: es- dade: os Tupinambá”. Anuário Antropológico, 85 [57-
78].
através da guerra, pois ela também pode mo- man de que as políticas visível e invisível estão say on movement, perspective and sha-
CLASTRES, Helène. [1975] Terra Sem Mal: o profetismo
bilizar domínios invisíveis. Isso é o que sugere sempre imbricadas. Se o guerreiro acumula ma- manism in Tupinambá cosmology from a
Tupi-Guarani. Tradução de Renato Janine Ribeiro.
Fausto (1999) em sua relexão sobre a guerra gia é porque é capaz de controlar e domesticar André Thevet’s work São Paulo. Brasiliense, 1978.
indígena a partir do conceito de predação fami- as propriedades alheias e essas não se restrin- FAUSTO, Carlos. 1992 “Fragmentos de História e Cul-
liarizante. O matador, ao exercer sua função, gem ao “domínio humano”. Acumular nomes abstract In this paper, the author formulates tura Tupinambá”. In Manuela Carneiro da Cunha
engendra uma transformação na sua relação de animais signiica efetivamente domesticar an interpretation of important aspects of the Tu- (org). História dos Índios do Brasil. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, pp. 382-396.
com o inimigo (e portanto com o outro) que atributos dos animais, cujos espíritos são os ini- pinambá cosmology, based on sparse ethnographic
______. 1999. “Da inimizade: forma e simbolismo da
será processada a partir de um resguardo, ao migos dos xamãs. Os inimigos colocam o guer- information obtained from André hevet’s reports. guerra indígena”. In Adauto Novaes (org). A Outra
cabo do qual ele deve ter sucedido em domesti- reiro em contato com os domínios invisíveis hevet was a French traveler who took part in the Margem do Ocidente. São Paulo: Cia das Letras, pp.
car e controlar o espírito da vítima em proveito do cosmos, fazendo com que a distancia que o French colonization expedition to Guanabara Bay, 251-282.
próprio. Desse modo é responsável, analoga- separaria do xamã seja minimizada. O guerrei- in the 16th century, under the leadership of Admi- ______. 2005. “Se Deus fosse Jaguar: Canibalismo e
mente ao xamã, por administrar a relação com ro e o xamã estão sujeitos a riscos semelhantes ral Villegaignon. hree themes are taken up here: Cristianismo entre os Guarani (XVI- XX séculos)”.
Mana. 12 (2): 395-418.
o exterior, tratando-se nesse caso do inimigo. e cumprem funções análogas. Porém, a guerra irstly, the analysis of the nine myths reproduced by
FERNANDES, Florestan. [1949] “Um Balanço Crítico
O matador Tupinambá era submetido, em con- tinha na antropofagia um mecanismo de socia- hevet and their relationship with Viveiros de Cas- da contribuição etnográica dos cronistas”. In Investi-
sonância com a interpretação de Fausto, a um lização de seus efeitos que um xamã não pode- tro’s theory of Amerindian perspectivism; secondly, gação Etnológica no Brasil e Outros Ensaios. Petrópolis:
resguardo penoso que, segundo hevet (1953: ria almejar. Tanto a manipulação dos poderes how these can be related with the concept of cosmo- Vozes, 1975, pp. 192-298.
201), consistia em se recolher em casa e per- xamânicos como a domesticação da alteridade logical movement developed by Dominique Gallois; FOUCAULT, Michel. 2002. Em Defesa da Sociedade. São
manecer três dias em seu leito, sem tocar os pés do inimigo através dos resguardos eram ope- and inally, the institution of Tupinambá Shaman- Paulo: Martins Fontes.
GALLOIS, Dominique Tilkin. 1988. Movimento na Cosmo-
no chão e em total abstinência. O frade não rações com as quais nem todos podiam arcar. ism as a privileged ield to regulate the relationship
logia Wajãpi. Criação, Expansão e Transformação do Uni-
nos oferece uma explicação explícita a respeito Na antropofagia, porém, a guerra se estendia with the French. he latter allowed the author to verso. São Paulo. Tese de Doutoramento. FFLCH/USP.
dos efeitos e das causas do resguardo, limitan- e a vingança se mostrava acessível a todos. Vê- think about the temporality modalities inscribed in ______. (1989) “O Discurso Wajãpi sobre o Ouro: um
do-se a dizer que, em o desrespeitando, o mata- se como guerra e xamanismo são duas formas the Tupinambá’s way of thinking and, thus, bring it Profetismo Moderno”. Revista de Antropologia. 30-32:
dor cairia doente e morreria. Tendo cumprido similares de política. to the debate about the traditionality of the Tupi- 456-467.
corretamente o resguardo, ele fazia incisões no Pois bem, o xamanismo, como a política Guarani’s prophetism. GINZBURG, Carlo. 1989. “O Inquisidor como Antro-
pólogo” In A Micro-História e Outros Ensaios. Lisboa:
corpo que iguravam como marca da vingança (ou talvez porque político), é a continuação da keywords Tupinambá. hevet. Ethnology.
Difel, pp. 203-214.
realizada contra (e com) os inimigos. Por outro guerra por outros meios, como poderia suge- Villegaignon. Cunhambebe. Indigenous History. HOLANDA, Sérgio Buarque de. 1959. Visão do Paraíso:
lado, hevet fornece outras pistas para se pensar rir Foucault. Mas se guardarmos o sentido que Tupis from the Coast. Shamanism. Mythology. motivos edênicos no descobrimento e colonização do Bra-
os efeitos da guerra. A respeito das suas causas, guerra e política adquirem nessa frase, ela bem sil. Rio de Janeiro: Editora José Olympio.
disse, em consonância com os demais cronis- mereceria ser re-invertida. A guerra, assim, LATOUR, Bruno. 1994. Jamais Fomos Modernos. São
tas, que tinham como objetivo o acúmulo de é também a continuação do xamanismo por Referências bibliográicas Paulo: Editora 34.
LESTRINGANT, Frank. 1992. “O Conquistador e o Fim
nomes. De maneira singular, porém, acrescenta outros meios. Meios estes extensíveis a todos
dos Tempos”. In Adauto Novaes (org). Tempo e Histó-
que os nomes viriam dos animais (1953: 53-54) através da antropofagia. hevet mesmo é quem ALBERT, Bruce. 1992. “A Fumaça do Metal: História
ria. São Paulo: Companhia das Letras, [411-422]..
e que os grandes guerreiros que ‘matam muita airma que os índios lhe disseram que o honorá- e Representações do Contato entre os Yanomami”.
______. 1999. “À Espera Do Outro”. In Adauto Novaes
Anuário Antropológico 89: 151-189.
gente e ganham muitos nomes’ são chamados vel é morrer no estômago do inimigo, pois não (org). A Outra Margem do Ocidente. São Paulo: Cia
______. 2002. “O Ouro Canibal e a Queda do Céu:
de Treresimbave, o que, segundo ele, signiica se pode “vingar a Morte, que ofende e mata os Uma crítica xamânica da economia política da natu-
das Letras, pp. 33-51.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 145-166, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 145-166, 2006
166 | Daniel Calazans Pierri

LÉVI-STRAUSS, Claude. [1962] O Pensamento Selva- notas de Estevão Pinto. Rio de Janeiro: Companhia
gem. Tradução de Maria Celeste de C. e Souza e Almir Editora Nacional, 1944.
de Oliveira Aguiar. São Paulo: Companhia Editora ______. 1953. Les Français en Amérique pendant la
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MÉTRAUX, Alfred. 1946. “Twin Heroes in South Amer- Lussagnet ; précédé d’une introduction par Ch.-André Ju-
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nópolis: Editora da UFSC, pp. 75-115.

autor Daniel Calazans Pierri


Graduando em Ciências Sociais / USP

Recebido em 06/04/2006
Aceito para publicação em 21/12/2006

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 145-166, 2006


Alto da serra

FABIENE DE M. V. GAMA

Alto da Serra é o nome dado a uma comu- trouxeram álbuns com fotograias que, em sua
nidade negra rural do município de Rio Claro, quase totalidade, eram de casamento ou de al-
região sul do Estado do Rio de Janeiro. Lá vive gum evento familiar.
cerca de 60 pessoas, descendentes de duas famí- Ver álbuns é ouvir histórias. Produzir novas
lias de trabalhadores rurais –– a família Leite e fotos é, além de registrar momentos que no futu-
a família Antero ––, que chegaram à região há ro servirão como fonte de lembranças, participar
mais de 40 anos, seguindo o ciclo do carvão. da memória do grupo fotografado. Durante a
Hoje, a maior parte do grupo mora na Estrada pesquisa, ganhei intimidade com as crianças, o
Alto da Serra, antigo Caminho do Ouro, e vive que me ajudou a conseguir bons retratos. A fa-
da agricultura e da criação de animais. Tudo es- mília de que mais estive próxima é também a que
taria bem não fosse certa especulação fundiária, rendeu as melhores imagens. Mas esta não é uma
a partir do inal dos anos de 1990, que deu iní- relação de mão única. Algumas imagens foram
cio a um processo de questionamento da posse também escolhidas pelos fotografados. Seu Dito,
dessas famílias, que ainda não têm o título de principal liderança (política e religiosa) local, fez
suas terras. Desde então, a comunidade procura questão de ter sua imagem relacionada ao traba-
se organizar para reverter esse quadro de vulne- lho na terra, atividade que valoriza muito.
rabilidade e garantir sua permanência no local. Um outro momento interessante foi fo-
Este ensaio foi realizado depois de quase tografar a família inteira antes do culto. Boa
seis meses de idas e vindas a campo, aplican- parte do grupo é evangélica e costuma se reu-
do questionários para elaboração de um rela- nir de três a quatro vezes na semana em uma
tório socioeconômico para o programa Egbé igreja que ica no quintal da casa do Seu Dito.
– Territórios Negros, do Koinonia. Mas, quan- Domingo é o principal dia. Apesar de estarem
do cheguei para fotografar, foi um momento sempre juntos, no entanto, não possuíam ainda
particular. Retornei dessa vez exclusivamente uma foto do grupo. E foi o próprio Benedito
para registrar algumas imagens. Tirar fotos, ou quem reuniu todos para o registro.
falar de fotos, em um trabalho de campo de A vontade de fotografar trouxe, junto com
caráter antropológico, em minhas experiências, as poses, a esperança de um futuro menos con-
sempre trouxe novas informações, provocou lituoso. Quanto à pesquisa, a generosidade do
novas conversas. Em Alto da Serra não foi di- grupo em colaborar revela mais do que um re-
ferente. Durante minha pesquisa, ao expressar lexo de gentilezas, é o desejo de ver a justiça
meu desejo de fotografar, ou ao perguntar se sendo cumprida.
costumam se fotografar, alguns moradores me Espero ter feito algo em prol dessa causa.

autor Fabiene de M. V. Gama


Mestranda em Ciências Sociais / UERJ
Associada à Linha de Pesquisa “Imagens, Narrativas e Práticas Sociais” / UERJ

Recebido em 13/12/2005
Aceito para publicação em 19/05/2006
cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006
170 | Fabiene de M. V. Gama Artes da Vida | 171

Foto 01: Seu Dito


Descendente de uma das famílias mais antigas na região, Seu Dito preferiu ser fotografado em seu ambiente de trabalho. Benedito
Bernardo Leite. Lídice, Rio Claro/RJ. Agosto de 2005.

Foto 02: Terezinha


Dona Terezinha, que já trabalhou na produção do carvão, trabalha desde a infância cuidando da casa e de plantações da família. Terezi-
nha Leite. Lídice, Rio Claro/RJ. Agosto de 2005.

Foto 03: Família da Ilda


Ilda Clarice Leite dos Santos, 28 anos, e seus 6 ilhos: Lucas, Lucimary, Marcos, Marielli, Marília e Mizael. Lídice, Rio Claro/RJ. Agosto de
2005.

Foto 04: Lucimary e Mizael


Lucimary e seu mais novo irmão que acaba de completar 1 ano. As crianças desde cedo ajudam os pais nos cuidados com a casa e as
plantações. Lucimary e Mizael Leite dos Santos. Lídice, Rio Claro/RJ. Agosto de 2005.

Foto 05: Marielle


Marielle Leite dos Santos. Lídice, Rio Claro/RJ. Agosto de 2005.

Foto 06: Igreja


A maior parte da família é evangélica. A Igreja da localidade foi construída no quintal da casa do Seu Dito, principal liderança política e
religiosa da região conhecida como Alto da Serra. Igreja. Lídice, Rio Claro/RJ. Agosto de 2005. Foto 01

Foto 07: Lucimary vendo fotos


Através das fotos, Lucimary pôde conhecer novas histórias da sua família. Lucimary Leite dos Santos. Lídice, Rio Claro/RJ. Agosto de
2005.

Foto 08: Família reunida


A religião é um fator de integração social. O culto de domingo é o mais importante, onde boa parte da família costuma se encontrar.
A família se reúne de 3 a 4 vezes por semana para os cultos e as crianças estudam fundamentos religiosos em uma escola dominical.
Lídice, Rio Claro/RJ. Agosto de 2005.

Foto 02

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Foto 03 Foto 05

Foto 04 Foto 06

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 169-174, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 169-174, 2006
174 | Fabiene de M. V. Gama

entrevista
Foto 07

Foto 08

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 169-174, 2006


Abaeté, Rede de Antropologia simétrica
Entrevista com Márcio Goldman e
Eduardo Viveiros de Castro

entrevistadores ARISTÓTELES BARCELOS NETO, DANILO RAMOS, MAÍRA


SANTI BÜHLER, RENATO SZTUTMAN, STELIO MARRAS E VALÉRIA MACEDO

No inal de 2004, dois professores do Progra- autoria coletiva capaz de dar margem a uma
ma de Pós-Graduação em Antropologia Social obra aberta.
do Museu Nacional (UFRJ), Marcio Goldman A conexão entre campos semânticos – e tam-
e Eduardo Viveiros de Castro, idealizaram a bém etnográicos – heterogêneos é justamente
Rede Abaeté de Antropologia Simétrica visando o alvo da rede Abaeté, e não surpreende que os
reunir pesquisadores de diferentes áreas e ins- campos evocados no Manifesto Abaeté1 digam res-
tituições e promover discussões antropológicas peito ao histórico de pesquisa dos idealizadores em
para além do ambiente de especialização que questão. Viveiros de Castro é o que se pode cha-
caracteriza o cenário acadêmico das ciências mar de “etnólogo”. Pesquisou entre os Araweté,
humanas na atualidade. grupo de língua tupi-guarani no sudeste do
A melhor maneira de fazer funcionar essa Pará, e já há mais de uma década se dedica ao
rede, que embora esteja adensada no Museu estudo do que ele cunhou como “perspectivismo
Nacional não pretende ter uma sede ixa, foi a ameríndio”, modo de pensar que rejeita dua-
criação de uma página wiki, na qual é possível lismos típicos do pensamento ocidental-moder-
desenrolar discussões e produzir textos coletivos, no. Já Marcio Goldman voltou-se à chamada
(no sistema wiki, toda pessoa que acessa a pá- “antropologia das sociedades complexas”. Além
gina pode mudar o conteúdo do que lê, e todas de ter se debruçado sobre capítulos da história
as outras pessoas que acessam podem ver essas da antropologia, desenvolve suas pesquisas na
modiicações). O wiki Abaeté (http://abaete. cidade de Ilhéus (sul da Bahia), tratando de
wikia.com) seguiu, nesse sentido, o exemplo do temas como participação política, movimentos
wiki Amazone (http://amazone.wikia.com), do culturais e religiões afro-brasileiras.
Núcleo de Transformações Indígenas (NuTI), Ao apostar na conectividade, Goldman e
coordenado por Viveiros de Castro. No wiki Viveiros de Castro buscam diluir as fronteiras
Amazone, Viveiros de Castro disponibilizou estabelecidas entre a “etnologia indígena” e a “an-
partes de um livro seu em preparação sob a for- tropologia das sociedades complexas”. Nesse senti-
ma de um texto-piloto, “A onça e a diferença”. do, eles atentam contra os “grandes divisores”, estes
Seu objetivo era substituir o mar de citações, do
qual é composto um texto, por um processo de 1. Disponível em http://abaete.wikia.com

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006


178 | Entrevista com Márcio Goldman e Eduardo Viveiros de Castro Abaeté, Rede de Antropologia Simétrica | 179

que separam em mundos incomunicáveis “nós” e toral. O autor deixa de ser Viveiros de Castro Tim Ingold, a distância entre essas duas antro- mas a idéia é reunir pessoas interessadas (e, se
os “outros”, produzindo não raro assimetrias do ou Goldman, individualmente ou em parceria, pologias parece aumentar a cada dia. A forma possível, também interessantes), antropólogos
tipo “nós sabemos, eles crêem”, “nós temos antro- ou mesmo o conjunto de intervenções realizadas rede é importante. Buscamos maneiras de criar ou congêneres. A nossa idéia é de fato borrar as
pologia e ilosoia, eles possuem crenças e visões de por outros autores nos textos disponibilizados. O conexões que não se assemelhem ao modelo fronteiras entre os autores, produzir uma certa
mundo”. Em vez des “grandes divisores”, é preciso, autor passa a ser, então, a própria Abaeté, um das associações proissionais, ou do grupo de multiplicidade autoral, mudar um pouco o re-
eles alertam, pensar em “pequenas multiplicida- “coletivo” ou “rede de associações”. Nesse senti- pesquisadores que se juntam para fazer um gime de enunciação da produção antropológica,
des”. Em outras palavras, não se trata de abolir do, como consta no texto-piloto, “Simetria, re- projeto, obter um inanciamento etc. Esses que é um regime clássico do autor individual
as diferenças entre os mundos, mas, a partir de versibilidade e relexividade”, Abaeté adquire o modelos são perfeitamente normais e admirá- (singular ou plural, pouco importa) que escreve
conexões transversais, capturar formas singulares estatuto de um parlimpsesto, ela é um “objeto veis, claro, mas será que não temos criatividade um artigo ou livro e publica citando outros, os
de pensar e agir que podem ser traduzidas umas discursivo em situação de interpolação, enun- suiciente para usar o tipo de experiência que a quais entram em seu texto unicamente através
nas outras por meio de uma imaginação concei- ciado por uma multiplicidade autoral antes que antropologia suscita e promover outras formas das aspas. A Rede Abaeté e o AmaZone buscam
tual mais apurada. por autores múltiplos”. de associação? Vários planos estão em jogo: as outras formas de conectar pessoas dentro de um
A “antropologia simétrica”, expressão cunhada formas de associação, os modos de transmissão mesmo discurso que não seja a forma das aspas,
por Bruno Latour, é então eleita como antídoto a do saber e das experiências de cada um, o cru- mas que envolva o outro na produção de um
esses “grandes divisores” na medida em que per- Idéias zamento de divisões internas, e assim por dian- texto que não é mais individual. O que não quer
mite o estabelecimento de um diálogo não apenas te. Nesse sentido, a fronteira entre as chamadas dizer que é de todos, já que a diferença entre esse
entre áreas do conhecimento, mas entre mundos, A idéia da Rede Abaeté veio de uma expe- “etnologia indígena” e “antropologia das socie- autor múltiplo e o mundo é grande. O texto não
por exemplo, o mundo ameríndio e o da ciência riência anterior feita por um de nós (Eduardo dades complexas” é particularmente perniciosa, resulta de/em um consenso, pois a idéia é emitir
moderna. Ainal, se todos somos nativos, todos so- Viveiros de Castro): a tentativa de elaboração de porque tende a barrar esse tipo de conexão. proposições radicais mas que não estejam assina-
mos, de um ponto de vista reverso, antropólogos, um texto “coletivo” por meio da Internet. Trata- das por um autor e que nem caiam no regime do
como propôs Roy Wagner. Nessa dupla condição se do Projeto AmaZone, que permanece ativo na Outras formas de associação: Wiki “ele disse e eu não concordo”, mas que produza
comum, e nessa possibilidade de transitar entre rede, no endereço http://amazone.wikia.com/ uma multiplicidade autoral, como resultado do
esses pontos de vista, é que se estabelece uma re- wiki/Projeto_AmaZone. Esta página é ligada ao A Rede Abaeté pode ser tomada como uma trabalho de várias pessoas ao mesmo tempo. Se
lexividade propriamente antropológica, como NuTI (Núcleo de Transformações Indígenas), espécie de “sujeito” distribuído, que teria por ob- alguém izer uma modiicação imbecil — um pa-
sustentou Marilyn Strathern. Wagner, Strathern que reúne pesquisadores da área de etnologia jeto ou objetivo algo como a elaboração de uma lavrão ou alguma coisa desse tipo — alguém entra
e Latour são considerados inspiradores da Rede indígena. Em função disso, aconteceram alguns antropologia simétrica, tendo no wiki seu, diga- e ao tira. Se alguém introduzir algo que traga uma
Abaeté de Antropologia Simétrica. Seguindo os encontros no Museu, em princípio para que es- mos, método. As três coisas mantêm uma rela- contradição teórica, qualquer um pode enviar uma
seus atalhos, fortemente críticos a uma antropolo- ses pesquisadores apresentassem seus trabalhos. ção importante. O wiki Abaeté não é uma lista mensagem para a página de discussão dizendo que
gia standard, torna-se possível aproximar os estu- Mas aí aconteceu algo de relativamente inédito, de discussão clássica da internet, em que tudo o a inserção tem de ser compatibilizada porque está
dos sobre os “outros” e sobre “nós mesmos” de modo ao menos no Museu Nacional: muita gente que que se tem a dizer é “sou contra” ou “sou a favor” airmando o contrário da proposição anterior, e
a desestabilizar os modelos teóricos dominantes e não trabalha especiicamente com etnologia se disso ou daquilo. É preciso entrar no texto para assim por diante. O que fazer nesse caso? Uma
enfatizar que o conhecimento antropológico não interessou pelos encontros e pelas discussões. modiicá-lo. O resultado desse processo coletivo nota dizendo que esta é uma posição especíica de
é jamais relexo de um ponto de vista neutro ou Imaginamos então, inicialmente, criar uma pá- não é da mesma natureza de um trabalho in- fulano, ou uma correção? A questão em si é parte
total e só pode ser construído na interlocução com gina parecida com a AmaZone, e, depois, tentar dividual, ou mesmo de um com vários autores do projeto. Enim, há mil formas, mas o proble-
aqueles entre os quais se estuda. estabelecer uma rede, a Abaeté. identiicados, onde o(s) autor(es) controla(m) o ma não é deixar aparecer contradições ou muito
A idéia de que o conhecimento antropológico que vai ser publicado. A ferramenta wiki é para menos escamoteá-las, e sim fazer sentido. A Aba-
é construído em rede ressoa, enim, na experiên- Desconexões, reconexões ser usada de uma maneira aberta a todo leitor. eté tem um texto-piloto, Simetria, Reversibilidade
cia de diluição da autoria. Como frisam Gold- A enciclopédia Wikipedia (www.wikipedia.org) e Relexividade, inicialmente um manifesto que
man e Viveiros de Castro, na entrevista que se A rede busca uma nova forma de conexão é o maior exemplo do sistema: uma enciclopé- acabamos deslocando para uma página especial
segue e na qual as falas de ambos se encontram entre pessoas mais interessadas em pensar e dis- dia em que todos podem entrar, escrevendo ou que não pode ser alterada, a im de que ele perma-
propositalmente fundidas, a internet e o wiki cutir o que os antropólogos estão efetivamen- corrigindo o que quiserem. No caso da Rede necesse justamente como um manifesto, ou seja,
servem como instrumentos para a produção de te fazendo hoje do que aquilo se ensina como Abaeté e do AmaZone, qualquer um que sou- uma referência. Ao mesmo tempo, expandimos o
um texto que é fruto de uma multiplicidade au- antropologia na universidade. Como observou ber o endereço também pode entrar e modiicar, manifesto, tornando-o um texto-piloto que dia-

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 177-190, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 177-190, 2006
180 | Entrevista com Márcio Goldman e Eduardo Viveiros de Castro Abaeté, Rede de Antropologia Simétrica | 181

loga com todas as outras coisas penduradas nesse ora, o/a Abaeté é um/a wiki-rede em português, Pequenas Multiplicidades exemplo, a relação que estabelecemos entre Roy
wiki, coisas paralelas, ligadas, desdobradas a partir ou melhor, em brasileiro. Mas isso não tem nada Wagner, Marilyn Strathern e Bruno Latour ser-
dele. É esse texto-piloto que deveria ser coletiva- a ver com ser uma rede periférica, que, eventu- Para nós, foi curioso e, até certo ponto, viu aos propósitos de um manifesto. Se fôssemos
mente modiicado e elaborado almente seria capaz de se estender para o centro, surpreendente observar algumas reações ao escrever um artigo, essa relação seria elaborada de
uma rede que ou está dominada pelo centro, que estamos tentando fazer. Alguns chegaram outra maneira, mas o texto-manifesto está elabo-
Em rede ou vai dominar este centro… Porque esta não a dizer que pretendemos destruir a antropolo- rado desse jeito porque sua idéia foi aparecendo
é a questão! Lembremos a frase de Duchamp: gia; outros (às vezes os mesmos) dizem que não no cruzamento de várias coisas. A idéia de antro-
Se o wiki é um instrumento de trabalho “não há solução porque não há problema”. A há nada de novo nisso tudo; outros admitem pologia simétrica, de Latour, surgiu como o em-
em rede, lembremos que a noção de antropo- existência da rede impede que esse problema se que há algo de novo, mas ressaltam que não é blema mais óbvio de uma operação que buscava
logia simétrica surgiu num contexto teórico coloque enquanto tal. No caso da antropolo- a única coisa nova que existe na antropologia. romper a separação entre os campos da etnologia
que também valoriza a noção de rede. De certo gia brasileira, a impressão que temos é que há Bem, claro que concordamos com essa última indígena e o das chamadas sociedades complexas,
modo, foi Bruno Latour quem “inventou” a uma densidade suiciente para se fazer um ex- observação, mas achamos curioso que alguém sem negar suas singularidades. A questão que La-
ambas ou, pelo menos, deu uma interpretação perimento desses: se nenhuma outra pessoa do considere necessário fazê-la; concordamos até tour coloca é o que signiica fazer antropologia na
que nos interessa para a noção de rede e para planeta entrar na Abaeté — e não é esse o caso com a idéia de que não estamos propondo nossa própria sociedade, questão que ricocheteia
a idéia de uma antropologia de nós mesmos. —, essa densidade já seria suiciente para que as nada de novo, uma vez que se alguém quiser sobre o modo de fazer antropologia em outras so-
Existe assim uma consubstancialidade primei- coisas funcionassem. A distinção entre antropo- procurar, certamente encontrará “precursores” ciedades. Como fazer uma antropologia simétri-
ra entre o Abaeté-wiki e a Abaeté-rede, e entre logia central e periférica é um fantasma que foi e “inluências” à vontade (só não entendemos ca? Ou como simetrizar a antropologia? A noção
eles e o tema da antropologia simétrica. Esta, criado de propósito, e que serve para uma série muito bem por que alguém pode se interessar de antropologia simétrica é alvo de todo tipo de
ao contrário de muitos mal-entendidos em cir- de coisas. A Associação Brasileira de Antropo- por isso); quanto à destruição da antropologia, mal-entendido porque a palavra simetria quer di-
culação, opera, em parte, estabelecendo uma logia, por exemplo, usa a distinção para obter tudo depende do que se entende por esse ter- zer muitas coisas diferentes. Quando Latour diz
espécie de homologia formal entre os objetos algumas compensações de associações mais mo: se é de suas formas atuais de organização, “simétrica”, o que ele propõe é a dissolução de
que estuda e seu próprio modo de operação. O “centrais”; alguns departamentos ou programas poderia até ser; mas se é da antropologia en- assimetrias constitutivas do pensamento antropo-
que corresponde, nesse sentido especíico, a to- usam a distinção para indicar nomes ou organi- quanto aventura intelectual que se trata, e se lógico, pensamento cuja forma emblemática é a
mar esses objetos como redes de conexão entre zar congressos (“agora o congresso tem que ser quiséssemos ser pretensiosos, diríamos até que assimetria entre o discurso do sujeito e o do ob-
humanos e não-humanos ou, em uma lingua- aqui porque somos a periferia e sempre somos o que desejamos é tirá-la da estagnação em que, jeto. Assim, é contra essa assimetria que a noção
gem mais diretamente latouriana, em redeinir discriminados…”); alguns criticam outros por- ao menos no Brasil, ela se encontra há alguns de simetria é proposta. Ninguém está propondo
objetos que não podem mais ser deinidos sob que, supostamente, falam como se estivessem anos; mas é claro que não temos essa pretensão um mundo onde tudo seria harmônico e igual!
o modo da entidade, do sujeito ou do objeto no centro quando estão na periferia; ao mesmo toda… O que parece particularmente irritan- O oposto do grande divisor não é a unidade e
puriicados, da natureza ou da cultura purii- tempo, os mesmos críticos se angustiam per- te aos nossos críticos, se bem os entendemos a noção de simetria não vai restaurar nenhuma
cadas, e assim por diante. Nessa perspectiva, os guntando se seremos ouvidos por pessoas fora (não fazemos questão absoluta disso, sejamos unidade perdida. O que se contrapõe aos grandes
“objetos” são sempre articulações entre dimen- daqui, como fazer para que eles nos leiam, e as- francos), é justamente a nossa tentativa de divisores são as pequenas multiplicidades. A no-
sões, facetas, momentos diferentes, que nesse sim por diante. É preciso escapar desses falsos (re)aproximar a “etnologia indígena” da “antro- ção de multiplicidade é a chave: o problema não é
sentido, são múltiplos, ou melhor, são multi- constrangimentos e colocar a verdadeira ques- pologia das sociedades complexas”, e nossa úni- ser dois, mas ser só dois; e a solução para isso não
plicidades, quer dizer, são como a própria rede: tão: somos capazes de produzir idéias e de fazer ca hipótese sobre as raízes de tal irritação é que é voltar ao um.
nem um nem todos, mas todos menos um, n- algo novo com essas idéias? Do nosso ponto de ela não respeita os feudos institucionalmente
1, isto é, a multiplicidade enquanto tal. vista, um dos problemas que enfrentamos atu- estabelecidos (outro dia ouvimos alguém falar, Igualmente diferentes
almente é que as questões organizacionais e de com aprovação, da necessidade de pagamento
Nem periférico nem central política institucional estão dadas de antemão, das “corvéias acadêmicas”…). É evidente que as sociedades ou os coletivos
subordinando as questões intelectuais substan- É preciso, pois, ressaltar que, em certo senti- não têm todos o mesmo poder, e o desaio da
Por deinição, a noção de rede é completa- tivas (como vai se falar e não o quê ou sobre o do, os textos que estão aparecendo nas páginas da antropologia é posicionar os discursos da socie-
mente refratária a qualquer diferença entre cen- quê vai se falar). Quando esse tipo de operação Abaeté devem ser encarados a partir dos propósi- dade de que faz parte o antropólogo e aquela
tral e periférico. Uma rede não tem nem centro é praticada, já se assassinou o que há de mais tos especíicos ao qual se destinam. Não são textos que ele estuda como igualmente diferentes, evi-
nem periferia, só pontos de adensamento. Por interessante no nosso trabalho. publicáveis do jeito que estão em outro lugar. Por tando a introjeção das relações de poder em seu

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discurso. A simetria está nessas duas palavras, ciedades complexas sempre foi tomar conceitos Wagner trata a noção de cultura como in- disposição nossas próprias categorias? Parece-
no igualmente e no diferente, ou seja, simetri- tidos como tradicionais na antropologia das venção2, ou a crítica de Strathern à noção de nos que uma das inovações introduzidas por essa
zar não signiica passar por cima do fato de que outras sociedades e aplicá-los à nossa. O pro- sociedade em favor da de socialidade. Essas antropóloga é reconhecer que “nossas próprias
há uma diferença enorme entre as sociedades, blema é que um dos efeitos dessa operação (que duas noções, cultura e sociedade, se tornaram categorias” é um objeto um pouco mais compli-
mas, ao contrário, converter justamente esse poderíamos denominar falsa simetrização) cos- uma espécie de emblema da banalização em cado do que parece. O problema levantado por
fato no problema e fazer com que a sociedade tuma ser um enfraquecimento generalizado do antropologia. Assim, quando Wagner recon- Marilyn Strathern, diga-se de passagem, não
ou o grupo de onde vem a antropologia seja que se está dizendo sobre nossa própria socie- ceitualiza a cultura como uma operação de signiica nem que estamos fatalmente condena-
tão antropologizável quanto os demais. Mas é dade, uma banalização tanto do discurso an- invenção (em sentido completamente diver- dos ao etnocentrismo, nem a promessa de um
preciso fazer isso sem tirar o antropólogo da tropológico quanto do objeto ao que ele está so do da “invenção da tradição”, anote-se), ponto de vista e de um vocabulário “cientíicos”
jogada, porque é muito fácil exotizar os oci- sendo aplicado. Latour, ao contrário, mais in- a idéia de cultura começa a se complexiicar que ultrapassem, ao mesmo tempo, o nosso vo-
dentais, os brancos, o que for, desde que não teressado em uma antropologia da ciência do e a perder sua banalidade, porque a cultura cabulário e o deles melanésios. Pois, ao mesmo
seja exatamente onde você está. A insistência que do cientista, é capaz de colocar sua ênfase só se constitui num certo ponto de contato, tempo em que o discurso radical do feminismo
do Latour na antropologia da ciência — não nas práticas e não apenas nos discursos, ou me- ela não “está lá”. Da mesma maneira, a noção é, sem dúvida, um discurso da nossa sociedade,
simplesmente na antropologia do discurso oci- lhor, em todos os tipos de práticas, discursivas stratherniana de socialidade só se constitui no parece claro que não podemos dizer que ele seja
dental oicial, da razão ocidental dominante e não-discursivas. O que signiica que, na ver- funcionamento efetivo das coisas (humanos, o discurso dominante da nossa sociedade. As-
como um todo, mas da ciência especiicamente dade, ele aplica o mesmo método que os antro- animais, objetos, espíritos…), ela tampouco sim, em vez de simplesmente colocar em rela-
— se justiica porque é aí que se enraíza a as- pólogos empregam para estudar casamentos, “está lá”. Em certo sentido, seria possível di- ção duas sociedades ou duas culturas, de acordo
simetria fundamental. Todo mundo é objeto, rituais, possessões etc. Descreve o que está efe- zer que ao etnografar como os cientistas se com o antigo método comparativo, Strathern
menos o sujeito. Eu sempre posso desobjetivar tivamente acontecendo quando alguém está fa- relacionam para fazer ciência, Latour descre- coloca em conexão uma certa multiplicidade de
a mim mesmo, e o que nós estamos propon- zendo ciência. Nesse sentido, se a antropologia ve seus modos de socialidade, assim como as práticas discursivas, o que permite que aquilo
do é a possibilidade de bloquear essa clarabóia sempre foi concebida como ciência de segunda invenções que são obrigados a fazer para esta- que se encontra entre os melanésios possa ser
por onde o antropólogo desaparece. Assim, se é classe, podemos ler o que Latour está propon- belecer relações. expresso de uma forma que certamente é “nos-
possível pensar a antropologia moderna a par- do como uma descolonização da antropologia sa”, mas que não é “nossa” no sentido de que é
tir da relação entre sujeito e objeto, e a pós-mo- pela ciência. Comunicabilidade das formulações de todo mundo, que é apenas uma parte do que
derna a partir da relação entre sujeito e sujeito, fazemos, uma parte que poderíamos denominar
uma antropologia que propomos denominar Wagner, Strathern e a desbanalização No caso especíico de Marilyn Strathern, minoritária.
pós-social poderia talvez ser pensada segundo dos conceitos talvez pudéssemos dizer que sua hipótese ou sua
uma relação em que todos são sujeitos e obje- questão fundamental seja a da comunicabilida- Pessoas e coisas
tos simultaneamente (como nos ensinam, ali- Por outro lado, nos últimos 25 ou 30 de das formulações. Por exemplo, seu livro mais
ás, tanto o perspectivismo nietzscheano quanto anos, no que icou conhecido como pós-es- conhecido, he gender of the gift3, tem duas par- É preciso escapar das alternativas do tipo
aquele de vários povos indígenas). truturalismo, foram aparecendo, no interior tes, e ela procede como se jogasse uma contra a tudo ou nada, ou do que Isabelle Stengers e
da própria antropologia, uma série de noções outra. De um lado, o discurso da antropologia Philippe Pignarre chamam de “alternativas in-
Latour e a descolonização da antro- e de críticas a noções mais antigas que podem feminista, de outro, o que os melanésios têm a fernais”. Podemos, por exemplo, partir de uma
pologia problematizar a opção latouriana pelo mé- dizer sobre aquilo que os antropólogos chama- oposição muito simples: ali há uma sociedade
todo antropológico em detrimento de seus riam de gênero na Melanésia. O primeiro pro- de pessoas, aqui uma de bens ou coisas. Às vezes
É de se observar que Latour quase não se conceitos e teorias. Essas transformações já blema é: com que categorias podemos exprimir esses divisores podem ser bons pontos de parti-
refere aos antropólogos proissionais. Fala de permitem, cremos, uma apropriação de no- as categorias dos melanésios, quando, como diz da… O chato é quando também são os pontos
alguns, claro, mas ressalta que o que sempre o ções da etnologia pela antropologia de nossa a própria Strathern, por deinição só temos à de chegada! Porque na chegada a questão não
interessou na antropologia teria sido seu mé- própria sociedade capaz de produzir efeitos é constituir pessoas e coisas, mas perceber que
todo, não seus conceitos, nem, muito menos, de conhecimento, e não necessariamente de 2. WAGNER, Roy. 1981. he invention of culture. Chi- pessoas e coisas, ou palavras e coisas, são ape-
suas teorias. Não é difícil compreender essa enfraquecimento ou de banalização, daquilo cago: University of Chicago Press. nas objetiicações de certas relações, de certas
posição de Latour se lembrarmos que uma das que se está dizendo e sobre aquilo de que se 3. STRATHERN, Marilyn. 1988. he Gender of the tramas — e isso, claro tanto num caso quanto
características da chamada antropologia das so- está falando. Por exemplo, a maneira como gift: problems with womem and problems with society in no outro. Dar voz às coisas não quer dizer que
Melanesia. Berkeley: University of California Press.

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as coisas sejam iguais às pessoas, mas que elas tribunal uma pessoa jurídica independente de homem e sua diversidade sociocultural. É isso um lado, um monismo absoluto, de outro, um
são iguais apenas na medida em que são resul- uma pessoa física. Ou seja, tudo é pessoa, mas que as pessoas ainda estão aprendendo quando pluralismo absoluto. Apesar das aparências, isso
tantes de processos de objetiicação, processos algumas pessoas são mais pessoas que as outras. começam a estudar antropologia. Mas o que isso não constitui um novo dualismo porque, como
que, não obstante, são heterogêneos e têm de Lembranças de Radclife-Brown. Ora, basta tem a ver com o que os antropólogos estão efeti- sustenta Deleuze, o que isso revela é a identi-
ser descritos enquanto tais. Em Art and agency4, um segundo para perceber que “pessoa física” vamente fazendo hoje? dade profunda entre Spinoza e Nietzsche, dois
por exemplo, Alfred Gell procura deinir os ob- é uma categoria jurídica, tão jurídica quanto a ilósofos que todos achavam absolutamente
jetos como “agentes de segundo grau”. Nesse de pessoa jurídica. Não há “pessoas físicas” fora Alternância entre o dado e o constru- opostos. E o que os identiica é o fato de tanto
sentido, continua separando humanos e não- do direito. E aí? ído a unidade spinozista quanto a pluralidade niet-
humanos, dessa vez como agentes de primei- zscheana serem da ordem da multiplicidade
ra e segunda classe. Gell, de certo modo, foi o Instaurar uma multiplicidade Há uma passagem em que Lévi-Strauss fala — conceito que abole os dualismos e todas os
autor que levou a antropologia social britânica do sexo dos caracóis, que são hermafroditas. Se debates em torno do um e do múltiplo.
a seu limite; é nesse limite que se pode situar a No que diz respeito a Latour, um mal-en- um caracol encontra outro caracol, quem vai
obra de Gell dentro de um projeto de antro- tendido de que já falamos rapidamente é supor ser o macho e a fêmea depende de uma série de Dualismos provisórios
pologia simétrica pós-social. Sua idéia de que que, ao acusar e recusar os dualismos, seu pro- circunstâncias, eles não são machos ou fêmeas
o objeto é, sobretudo, o índice de uma agência jeto consistiria na restauração de uma unidade a priori ou em si. Lévi-Strauss airma que a dis- O ponto crucial é que o dualismo é mais um
supõe no fundo uma distinção entre agência do humano. O mundo dos híbridos, aquele que tinção entre sentido literal e metafórico é como modo de tratamento das coisas do que uma ma-
primária e secundária, isto é, uma distinção prova que ninguém jamais foi moderno, não o sexo dos caracóis: se você olha daqui para lá, neira de distribuição “real” das coisas. Por isso,
entre um sujeito vicário e um sujeito legítimo, seria o que uniria todos os homens, não seria aquilo é letra e isso metáfora; se olha de lá para quando se diz, por exemplo, que as sociedades Jê
já que é apenas na vizinhança deste que aque- o dado para todos os homens? O ponto é que cá, é o contrário. Não existe metáfora em si, li- são dualistas, é preciso ter cuidado para não cair
le pode adquirir agência. Haveria, assim, uma separar vem sempre depois, é sempre a posteriori, teralidade em si, signiicante em si, signiicado nem na hipótese de que o dualismo é, no fundo,
“ontologia dos agentes de verdade”, ou primá- não a priori. A puriicação sempre vem depois, em si. Não são distinções essenciais, absolutas. uma propriedade do espírito humano que os Jê
rios, e uma dos “agentes secundários”, que só como a oposição entre natureza e cultura, à qual É provável que algo próximo se dê na oposição (mas também Descartes e todo mundo) apenas
são agentes quando colocados nas vizinhanças se chega mediante um processo laborioso de entre o dado e o construído na semiótica de exprimem a seu modo, nem na de que ele seria
de um agente primário. Gell permanece, des- puriicação, separação, destilação. Mas o que é Roy Wagner: o dado é o que é pressuposto em um traço substantivamente característico dos Jê,
se ponto de vista, dentro da visão naturalista dado é esse mundo do meio, da prática, anterior função do que se usa como controle. Isso não aquilo que os “identiicaria” (em oposição aos
cara à London School of Economics, supon- à distinção entre teoria e prática. Uma pergunta quer dizer que, em outra circunstância, não se Tupi, a nós mesmos etc.). Porque existe toda
do a existência de uma distinção natural entre que, sim, poderia ser feita é se não seria impossí- possa tomar o que se tomava como construído a diferença do mundo entre operar com dua-
agentes e coisas que, em seguida, é recoberta vel não puriicar. E, nesse caso, como seria pos- como dado e vice-versa. Ou que seja necessário lismos substanciais e utilizar dualidades como
por uma (in)distinção social. Existiria uma sível puriicar de uma maneira não dualista, não dispor primeiro de um dado para que depois se pontos de passagem para se fazer outra coisa.
diferença entre pessoas e coisas, ainda que em polarizada? Ora, vencer (não se trata de ultrapas- tenha um construído: eles são simultâneos, es- O dualismo é uma forma de se administrar o
seguida as coisas possam ser trocadas como sar) o dualismo não consiste em restaurar uma tão em implicação ou pressuposição recíprocas. Um (mesmo supondo o Múltiplo) ou um modo
pessoas ou vice-versa. As pessoas são coisas se- unidade perdida, mas em instaurar uma certa O que constitui uma espécie muito singular de de sair da questão Um-Múltiplo para instaurar
cundariamente, e as coisas são pessoas secun- multiplicidade. O campo do meio — ou im- dualismo, se quisermos manter o termo. De- uma multiplicidade? Depende. Mesmo a sepa-
dariamente. O que, na verdade, não é muito pério do meio, como o chama Latour — é um leuze distingue, um tanto ironicamente, dois ração entre corpo e alma pode ser usada para ins
diferente da distinção clássica em nosso direito campo de multiplicidade, disponível para toda a tipos de dualismo: um dualismo “verdadeiro” não dualistas. O que, em geral, provoca aque-
entre pessoa física e pessoa jurídica. A pessoa humanidade. No fundo o monismo mais radical (de tipo cartesiano, onde se pode passar a vida las críticas muito fáceis e algo irritantes: “você
jurídica é uma icção legal, no sentido próprio sempre se encontra com a multiplicidade mais inteira tentando conciliar o corpo e a alma ou está sendo dualista!”. Pior: “você é etnocêntrico!
do termo, porque a pessoa jurídica só é uma radical. Latour opera, cremos, em um registro coisas parecidas) e um dualismo que ele cha- Você apenas projetou e/ou reencontrou o cor-
pessoa na vizinhança da pessoa física. É preciso mais contemporâneo que o dessas velhas ques- ma de “provisório”, porque serve apenas como po e a alma dos cristãos!”. Críticas não apenas
que uma pessoa física responda pela jurídica, e, tões sobre unidade, dualidade etc. Continua a ponto de partida ou de apoio para outra ope- simplistas como limitadoras, paralisantes. Pois o
em última análise, não é possível arrastar para o se repetir nas salas de aula de antropologia que ração, mais importante. Neste caso, há duas problema (“técnico”, como diz a autora) é aque-
o que deine a disciplina é trabalhar com o pro- possibilidades representadas, para Deleuze, le enunciado por Strathern: “como criar uma
4. GELL, Alfred. 1998. Art and agency: an anthropologi- blema da relação entre a unidade biológica do respectivamente por Spinoza e Nietzsche: de consciência de mundos sociais diferentes quan-
cal theory. Oxford, New York: Clarendon Press.

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do tudo o que se tem à disposição são termos na análise a ciência e a política ocidentais e culture, de Roy Wagner, poderíamos dizer que terminar num livro. Triste destino da relação. É
que pertencem ao nosso”? Essa é a questão. Isso proceder como os antropólogos que analisam a noção de cultura é problemática sempre que claro que as relações produzem, entre outras coi-
signiica, cremos, que em Strathern nos depara- as sociedades não-ocidentais. O desaio maior se pretende que ela funcione como um metro sas, identidades. Mas não devemos imaginar que
mos sempre com esse tipo de dualismo provi- é tratar nossos conceitos com a mesma dureza padrão. Por outro lado, ela pode ser reinventa- as relações existam para produzir identidades,
sório de que falávamos, já que suas análises em com que tratamos os conceitos dos outros — e da se se admite que ela é apenas um meio de que é esse seu telos, seu objetivo, sua inalidade.
geral partem de distinções usuais para com elas com a ajuda dos conceitos dos outros! Aquilo comparar o incomensurável. (Como se toda diferença quisesse “no fundo” ser
fazer outras coisas. que os nossos conceitos faziam com os dos ou- uma identidade). Esse é o problema. A impres-
Como fazer os conceitos de corpo e alma tros, agora eles também vão sofrer a partir dos Relação versus identidade são que se tem é que essas noções de identidade,
funcionarem de outra maneira? Se utilizarmos conceitos dos outros. como as que derivam das abordagens das “rela-
a noção de corpo e alma como um refúgio no Vale a pena observar que Wagner utiliza muito ções raciais” ou das “relações interétnicas”, agem
qual se faz uma leitura cartesiana das noções Comparar o incomensurável a palavra relatividade, mas, salvo engano, nunca como uma máquina de repressão contra qualquer
indígenas, a crítica é totalmente legítima. Mas relativismo. De fato, é preciso ativar essa pequena outra coisa que se deseje pensar. É como se todos
se tomarmos as palavras corpo e alma como Pode-se argumentar, claro, que esse novo dicotomia porque, de certo modo, o relativismo soubessem a resposta de antemão. Seria preciso,
tradução provisória dos conceitos indígenas método comparativo não está comparando já é uma maneira de domesticar a relatividade. antes de mais nada, saber o que se quer dizer com
e, em seguida, usarmos os conceitos indígenas coisas comparáveis, mas bananas e laranjas, Como diria Deleuze, o relativismo é a idéia de a palavra identidade. Ou melhor ainda, o que se
para sabotar os conceitos ocidentais de corpo e segundo a velha metáfora até hoje empregada que a realidade é relativa, e a relatividade é a idéia pretende não dizer, ou o que não se deseja que se
de alma, essa homonímia se faz estratégica e a nos cursos de introdução à antropologia. Mas, de que o relativo é que é verdadeiro. Que a ver- diga, ao empregar essa noção.
coisa se torna interessante. Traduzimos as pala- por que comparar o comparável? Para isso basta dade do relativo é a relação. O que signiica que
vras, mas preservarmos a dinâmica conceitual chamar um contador… O interessante é medir não há não-relação nesse sentido especíico. Isso Alteridade e alienação
nativa e assim, quem sabe, conseguimos per- o incomensurável, comparar o incomparável, de algum modo conecta esses três autores, Latour,
turbar nossas próprias categorias, mostrando como disse Marcel Detienne (em um livro jus- Strathern, Wagner (além de Deleuze, Guattari e Se identidade existe, ela é secundária em
que alma e corpo são capazes de outras coisas. tamente chamado Comparer l’incomparable5). outros de quem gostamos). Eles estão todos na relação à alteridade. Mas é também preciso
Toda discussão de Strathern sobre o feminis- O que quer dizer isso, o incomensurável? Ora, contramão de uma visão identitária da relação, cuidado para não transformar a alteridade em
mo tem a ver com isso. Ao contrário de muitos o que não tem uma medida comum. A noção essa visão que os cientistas sociais apresentam to- outra identidade. A alteridade hoje em dia cos-
antropólogos, Strathern foi realmente afetada, de comensurabilidade supõe que o que comen- dos os dias no jornal e na televisão. Porque, dizem tuma aparecer como meio para a airmação da
no bom sentido do termo, pela crítica pós- sura duas coisas está fora delas. Duas coisas são eles, essas são idéias “perigosas”: ao enfatizar as di- identidade. Uma boa alternativa vocabular, mas
moderna, ou seja, em vez de perder seu tempo comensuráveis em função de uma terceira, que ferenças, temos a guerra, a destruição, porque se que infelizmente já foi usada para ins com-
acusando os equívocos ou as bobagens dos pós- é supostamente a natureza em si. Esta funciona está. E, de fato, quando se supõe que só existam pletamente opostos, seria a palavra alienação,
modernos, ela concentrou seu foco em uma como o referente que legisla de que modo A identidades que se relacionam, as únicas formas nome, a rigor de uma ação e não de um estado,
questão que eles levantaram mas com a qual está ligado a B em função de uma terceira coisa de relação passam a ser a assimilação ou a destrui- como “alteridade”. Mas a palavra foi destruída
não souberam lidar muito bem: como falar dos que é independente dela. Achamos que uma ção. Uma teoria verdadeiramente relacional, que pelo uso inverso ao que buscamos: alienação é
outros sem que se esteja falando de si mesmo. das coisas que a antropologia mostra é que a não suponha identidades existindo a priori ou em perda de identidade. Observemos de passagem
A reposta de Strathern é que mesmo que essa comensurabilidade é um processo interno, não si, não tem nada a ver com isso. O que se vende que identiicação, sim, também é um processo,
proeza seja impossível, isso não signiica o si- externo. O metro padrão, para usar uma lin- por aí são teorias identitárias da relação (identi- e um processo bem interessante, uma vez que
lêncio — bem ao contrário do que supunham guagem latouriana, deu muito trabalho para dade contrastiva, etnicidade - Barth, em suma). existe uma imensa quantidade de dispositivos
os próprios pós-modernos. Se, ao falar dos me- ser elaborado. Com que metro você mede o É como se a relação existisse para a identidade. sociopolíticos de identiicação — por exemplo,
lanésios, necessariamente usamos categorias metro padrão? Como é que você vai saber que Antigamente se imaginava que primeiro existiam vários conceitos antropológicos…
que são nossas, é preciso proceder de um modo existe um metro, o metro padrão? Se existe al- as identidades e então as relações; agora se diz
em que os melanésios nos ajudem a nos dis- guma coisa incomensurável é precisamente o que “as identidades são relacionais”, como se as A perversão identitária
tanciarmos dessas nossas categorias. E este é o metro padrão, porque ele é a medida de todas relações existissem para produzir as identidades.
sentido, mais alargado que o de Latour talvez, as coisas. Pensando de novo em he invention of Não se progrediu muito, pois tudo continua exis- Todas as etnograias bem elaboradas, nos
que gostaríamos de dar à idéia de antropologia tindo apenas para terminar em uma identidade. mais diversos campos, mostram que, além de
simétrica. Não se trata simplesmente de incluir 5. DETIENNE, Marcel. 2000. Comparer l’incompara- Ou, como dizia Mallarmé: o mundo existe para extremamente soisticadas, as teorias locais são
ble. Paris: Seuil.

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hábeis e lexíveis. E que o discurso da identidade ça a dizer “sim, sou negro e me orgulho disso” Eles começam a distinguir quem é índio puro ela é aceita e incorporada por falta de opção!
aparece sempre que o Estado entra em cena, para ou “sim, sou gay, exijo tais direitos”, “sim, sou e quem não é, dizendo: “você não pode icar Criando entidades
o bem ou para o mal, se podemos nos exprimir brasileiro”, alguma coisa sutil começa a acon- aqui porque você não é índio puro”. Um índio
dessa forma. Como não pretendemos fazer par- tecer. Normalmente, quando alguém começa a diz para outro índio: “nós somos os verdadeiros Toda identidade supõe uma entidade, toda
te do aparelho de Estado em nenhuma de suas se identiicar com aquilo que por meio do qual Pancararu, vocês são mestiços”; “índio mesmo identidade engendra uma entidade que vai ad-
múltiplas formas, perguntamos de que lado está o identiicam, ele passa a identiicar alguém no somos nós aqui”; “olha, o Estado reconheceu ministrá-la segundo o modo de constituição
o antropólogo nessa história. Do lado do Estado, seu lugar. Ele vai inventar o palestino, no caso a comunidade Pancararu, você não é Pancara- e funcionamento do Estado. Porque uma das
para dialogar com ele ou em nome dele? Ou a do judeu; vai inventar um argentino, no caso do ru, você é mestiço, tem que ir embora”. E aí o maiores e mais péridas habilidades do Estado
tarefa mais interessante da antropologia não seria brasileiro (brincadeira…). Ou seja, vai inventar próprio Estado — e mesmo alguns defensores é sua capacidade de convencer todo mundo de
justamente encontrar um modo de se conectar alguma coisa “pior” do que ele. Parece, assim, não-governamentais dos índios — dizem que que a única maneira de enfrentá-lo é assumin-
com essas outras formas, mais instáveis, de arti- que a identidade possui a perversa capacidade de é preciso fechar a lista de quem é índio (ou do sua forma (com outro conteúdo, claro, mas
cular as relações? Essa é uma aposta política e te- produzir esses efeitos em que o sujeito começa a quilombola ou o que quer que seja) para evitar quem se importa?). No que diz respeito aos
órica. Na antiga teoria da luta de classes, em que aprisionar a si mesmo e aos outros. “Assumir” uma confusão generalizada. Ou seja, o Estado antropólogos, nossa questão não é só conceitu-
os campos são determinados pela posição que os sua identidade é apenas o primeiro capítulo de e seus congêneres impõem o congelamento do al, ela também é política. Estamos fabricando
atores ocupam nas relações de produção, prole- um processo que aparece como “luta de liberta- processo que eles mesmos haviam gerado. idéias, fabricando conceitos que se vinculam a
tário era proletário e burguês era burguês (se abs- ção”: “sim, sou isso e me orgulho disso”. Mas, esse tipo de operação. É curioso comparar um
trairmos, claro, essas coisas meio estranhas que logo depois, começa a crescer o germe microfas- Identidade, isso pega? laudo de reconhecimento de uma terra de qui-
eram a pequena burguesia, a classe média etc.). cista que já estava lá, e se eu me orgulho disso, lombo ou indígena e, por exemplo, à tese que
Mais tarde, começaram a aparecer os movimen- alguém tem que se envergonhar: quem é que vai Uma das sessões de debates que organiza- o autor desse hipotético (mas é claro) laudo
tos identitários, porque a classe como categoria se envergonhar no meu lugar? Quem é que eu mos na Abaeté tinha esse título: “identidade, escreveu sobre o mesmo lugar. Na tese, o au-
objetiva desapareceu, ou se tornou complicada vou identiicar agora? isso pega?”. Chegamos à conclusão de que pega. tor é sempre um desconstrucionista ou, mais
porque as relações de produção se tornaram in- Como é possível abrir mão da noção de identi- precisamente, um crítico que vai desnaturalizar
crivelmente complexas, e a noção de classe foi Paradoxos da indianidade dade quando se estrutura toda a ação em torno e desestabilizar todas as falsas certezas. Mas, no
icando cada vez mais difícil de ser determinada. dela? Os militantes do movimento indígena ou laudo, o autor vai essencializar, assumindo para
Então, no lugar da luta de classes, passamos para Esse movimento de identiicação é curioso do movimento negro adotariam, então, o que se si a operação do essencialismo estratégico. É
a reivindicação de identidades. porque ele nunca vai até o im, ao menos da convencionou denominar “essencialismo estraté- um enigma como alguém consegue fazer essas
Uma das coisas curiosas sobre a noção de forma em que começa: em algum momento gico”. Noção cínica e paternalista, que “perdoa” duas coisas ao mesmo tempo. Como é possível
identidade é que é muito diferente se identiicar ele tem que parar ou ser detido. Vejamos, por os oprimidos por seus erros teóricos. Mas não é pintar, com a mesma tinta, um retrato de de-
e ser identiicado. Normalmente achamos que é exemplo, o caso clássico do Nordeste, dos ín- esse o problema. O problema é o preço político sessencialização e outro de objetiicação? É pos-
a mesma coisa, como na deinição clássica ado- dios “emergentes” do Nordeste. Trata-se de um que se paga por esse uso abusivo e quase monoi- sível sim, porque no fundo trata-se da mesma
tada pelo Estatuto do Índio: “índio é aquele que paradoxo do ponto de vista conceitual: os ín- deístico da noção de identidade. Por que imaginar operação, apesar de parecerem duas operações
se identiica e é identiicado como tal”. Nesse dios do Nordeste são “mestiços”, eles são a en- que todas formas de luta passam necessariamente diferentes. Assim, vive-se no melhor dos mun-
pequeno “e” reside toda a confusão. Ao mesmo carnação viva da anti-idéia de índio puro, com pela noção de identidade? Obviamente há outras. dos, ganhando algum dinheiro para identiicar
tempo é identiicado? Ou alternativamente é tudo o que há nela de racista, essencialista, cul- O que tem que ser enunciado é uma coisa muito gente e, ao mesmo tempo, conseguindo títulos
identiicado? Por quem é identiicado? Quando? turalista etc. Desse modo, o índio do Nordeste elementar: por que alguém que habita um lugar acadêmicos ao desindentiicar a mesma gente.
Em que circunstâncias? O que acontece quan- é um índio bom, no sentido metafísico da pa- há centenas ou milhares de anos só tem direito Isso só vai se complicar quando os advogados
do alguém se identiica e não é identiicado, ou lavra, pois estaria encarnando a essência da não de viver em paz aí se for índio ou se for negro? de madeireiras, mineradoras e congêneres co-
quando é identiicado e não se identiica? Quan- essencialidade, a essência do não-culturalismo. Por que é preciso passar por processos de reco- meçarem a usar as teses para refutar os laudos
do te identiicam, é uma objetivação, para o O que acontece quando os índios do Nordes- nhecimento como índio ou quilombola para que (como, aliás, já acontece em outros países).
bem ou para o mal: “você é brasileiro”, te identi- te são reconhecidos como índios pelo Estado? se tenha o direito de viver do jeito que se quer?
ica alguém, o que imediatamente retira de você Eles poderiam tentar fazer valer diretamente É assim que a identidade pega! Ninguém adere Texto e autor híbridos
tudo o que interessa. Ou, “você é judeu”, “você a legitimidade da mestiçagem como condi- por “conscientização” e nós sabemos, histórica e
é gay”, qualquer coisa. Quando alguém come- ção, mas o que ocorre é, antes, o contrário. etnograicamente, como é que a identidade pega: Todos sabemos que a antropologia não pode

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190 | Entrevista com Márcio Goldman e Eduardo Viveiros de Castro

se deinir por um objeto. As questões de pesquisa torno da autoria. Sabemos que não são raros aí
devem ser propriamente intelectuais e não icar os bloqueios pessoais, o que exige primeiro, e
à mercê das ondas e políticas de inanciamen- evidentemente, uma escolha e, depois, muita
to. Se é importante estar atento à sociologia da autodisciplina. Como isso começou há pouco
produção intelectual, coisa que evidentemente tempo e, de certa forma, de modo meio espon-
existe e que todo mundo sofre na pele, mais im- tâneo, não sabemos ainda muito bem aonde é
portante é saber que tem gente que não acredita que esse negócio pode chegar — nem mesmo se
que isso seja a coisa mais importante do mun- ele vai chegar em algum lugar.
do. A pesquisa não pode ser escolhida e orien-
tada apenas por “demandas de balcão”, nome Saída transversal pela esquerda
técnico desse tipo de coisa. De que alternativas
dispomos? Acreditamos que uma possibilidade De toda forma, o que pretendemos é de-
é a criação o mais livre possível de territórios e senvolver conexões transversais. “Transversali-
espaços onde se possa pensar com mais prazer. dade” é uma noção que Guattari desenvolveu
Assim, a idéia da Abaeté tem esse componente e que se opõe tanto a verticalidade quanto a
associativo-institucional, ou melhor, contra-as-
sociativo e contra-institucional. Tem uma di-
horizontalidade. No primeiro caso porque é
preciso escapar dessa relação mestre-discípulo,
traduções
mensão teórica, que é a questão da antropologia que é uma relação basicamente vertical. No se-
simétrica. E tem uma dimensão técnica, que é gundo, porque não se deve supor que é possível
a questão inovadora, quer dizer, a tentativa de ligar qualquer coisa com qualquer coisa, pois
usar o instrumento wiki para efetuar uma co- há coeicientes de transversalidade. Às vezes a
municação subordinada a uma produção ino- conexão funciona, às vezes não funciona, é uma
vadora e livre. Ou seja, não se trata apenas de questão de experimentação. Essa idéia permite,
circulação de idéias, mas de produção de idéias. também, conectar diferentes teorias. O uso
Como utilizar esse sistema de circulação — que que alguns antropólogos fazem, por exemplo,
não obedece ao modelo clássico dos seminários da obra de alguns ilósofos (como os próprios
e dos artigos autorais (que são ótimos e vão con- Deleuze e Guattari) implica essa transversalida-
tinuar existindo) — para abrir um novo espaço de. Há sempre uma certa aspereza, há sempre
de produção de textos híbridos, múltiplos, de transformações a introduzir, mas essas diferen-
vários autores? Nesse espaço, quem escreve não ças não são, em princípio, obstáculos para as
deve mais ser a questão. Trata-se de deslocá-la conexões que se pretende estabelecer. As rela-
para o que se escreve, de modo que o quem se ções transversais são as únicas capazes de gerar
torna progressivamente menos importante ou e sustentar um “grupo-sujeito”, capaz de não se
importante em contextos especíicos. Sabemos submeter passivamente nem às determinações
que isso não é fácil, inclusive porque suspende exteriores, nem à sua própria lei interna. Esta
antigos referenciais, como todo o complexo em é, parece-nos, a única saída pela esquerda para

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Etnograia e história na Amazônia, por Peter Gow

MARTA ROSA AMOROSO

Lançada em 1991 pela Clarendon Press parentesco e economia de subsistência. Por


de Oxford, a monograia de Peter Gow talvez im, a terceira focaliza como o conhecimento e
constitua uma das obras mais citadas nos últi- as instituições estrangeiras (a escola e o regime
mos dez anos no contexto dos estudos america- de terras, especialmente) se incorporam à gra-
nistas. Neste sentido, a tradução de parte dela mática local, articulando a particularidade de
pela Revista Cadernos de Campo busca sanar uma história que rejeita a continuidade com o
várias dívidas. A primeira delas é a de preen- passado e inaugura um novo tempo de convi-
cher uma injustiicável lacuna na biblioteca do vência expresso no idioma da mistura.
aluno das ciências sociais, enquanto se aguarda Produto ela mesma da mistura na dose cer-
a recomendável tradução da monograia na ín- ta da etnograia – tomada na mais pura tradi-
tegra. A segunda é a de reduzir o imenso débito ção malinowskiana como a deinição do fazer
que a Antropologia acumulou com populações antropológico – e da história – entendida na
nativas da Amazônia, que, como os Piro do acepção nativa enquanto memória do paren-
Baixo Urubamba, da região subandina do Peru, tesco – De Sangue Misturado atualiza o deba-
acumularam longa e traumática experiência de te contemporâneo sobre a presença e destino
contato, tendo muitas vezes por esta condição das populações indígenas do continente, ao
da sua história, deixado de despertar o interesse tomar a condição histórica das populações in-
da disciplina. É neste sentido que De Sangue dígenas como ponto de partida para a relexão
Misturado inova ao focalizar a experiência vivi- etnológica e propor como solução analítica a
da pelos povos nativos da Amazônia e ao pro- exploração sistemática dos discursos locais de
por para esse tipo de análise uma metodologia identidade, de cultura e de história.
clássica da disciplina - a abordagem etnográica E o que os Piro do Baixo Urubamba falam?
dessas populações - realizada a partir de intenso Dizem-se de sangue misturado, e dessa forma,
trabalho de campo. excluem-se das categorias de pureza que por
Originalmente tese de doutorado apresen- muito tempo foram perseguidas pela etnologia
tada à London School of Economics, orientada amazônica, por missionários que atuaram na
por Joanna Overing, Of Mixed Blood: Kinship região e pelos órgãos de tutela dos Estados na-
and History in Peruvian Amazônia contém três cionais, mas que não interessavam os nativos
partes e nove capítulos. A primeira parte abor- civilizados e escolarizados do Baixo Urubam-
da o sistema social no Baixo Urubamba, des- ba, que ao contrário, marcavam nas práticas e
tacando o discurso sobre o tempo e o espaço nos discursos irme intenção de se diferencia-
assim como a chegada da civilização e a etno- rem dos selvagens da Amazônia. A complexida-
sociologia que emerge do idioma nativo – os de das relações que envolvem as comunidades
“tipos de gente” ou razas – categorias com as nativas no Baixo Urubamba, com a adoção do
quais o povo nativo pensa sobre si e sobre o regime de terras e do sistema escolar do Es-
mundo em que vive. A segunda parte trata da tado peruano, aproxima inicialmente as nar-
natureza do trabalho do povo nativo no siste- rativas coletadas por Gow dos estudos sobre
ma de habilitación e explora as relações entre a “aculturação”, ou ainda dos estudos sobre a

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194 | Marta Rosa Amoroso Etnografia e história na Amazônia, por Peter Gow | 195

etnicidade. Trabalhos como os de Charles Wa- Peter Gow recupera a concepção de Lévi- se tratam de objetos fugidios. Há, assim, um __________. 1995b. “Cinema na Floresta: Filme, Alu-
gley, Eduardo Galvão e Robert Murphy, que Strauss da história enquanto uma “história decisivo abandono da ambição dos modernos cinação e Sonho na Amazônia Peruana”. Revista de
Antropologia, 38 (2): 37-54.
assinaram primorosas etnograias em meados para”, isto é, inevitavelmente referenciada por de descrever “culturas” e “sociedades”, em prol
__________. 1996. “Podia ser Sangama? Sistemas Gra-
do século passado, construíram, entretanto, um determinado ponto de vista. A história de uma atenção da antropologia, evidentemen- icas, Lenguage y Shamanismo entre los Piro (Peru
uma imagem dominante de uma Amazônia emerge assim das narrativas e da experiên- te não menos ambiciosa, de captar a riqueza Oriental)”. In Fernando Santos Granero (ed.), Glo-
nativa perdendo suas culturas e se assimilando cia particular das comunidades nativas, assim circunstanciada de objetos históricos deinidos balización y cambio em la Amazônia Indígena. Vol I:
à massa não indígena de camponeses rurais. como do mito, ou as “histórias dos antigos”. enquanto tal, na sua condição efêmera. Quito: FLACSO and Ediciones Abya Yala.
Essas seriam comunidades que por meio das Estas seriam o artifício literário que os Piro __________. 1997. “O Parentesco como Consciência
Humana: O Caso dos Piro”. Mana, 3(2): 39-65.
transformações sócio-econômicas advindas do encontraram para construir seu afastamento
_________. 1999a. “Piro Designs: Painting as Meanin-
sistema dos patrões acabaram por se assimi- em relação ao povo antigo e incivilizado que Publicações gful Action in an Amazonian Lived World”. Journal of
larem a comunidades modernas, baseadas no morava na loresta. São histórias que continu- the Royal Anthropological Institute, (n.s.) 5: 229-46.
cristianismo e nas relações de mercado. avam, entretanto, sendo encenadas pelos Piro GOW, Peter. 1987. “La Vida Monstruosa de las Plantas”. _________. 1999b. “A Geometria do Corpo”. In Adauto
Neste e em outros trabalhos (Gow 2001; que hospedaram Peter Gow nos anos 1980, de- Amazonia Peruana, 14: 115-22. Novaes (ed.), A Outra Margem do Ocidente, São Paulo:
__________. 1989a. “h “hee Perseve Child: Desire in a Na- MINC-FUNARTE/Companhia das Letras.
2003) a crítica ao uso do conceito de “acultura- monstrando, portanto, que eram atualizações
tive Amazonian Subsistence Economy”. Man, (n.s.) _________. 2001. An Amazonian Mith and Its History.
ção” desdobra-se na insatisfação com os resul- dos mitos que os povos nativos não abriam 24:299-314. Oxford Studies in Social and Cultural Anthropology.
tados da aplicação da teoria sobre a etnicidade mão de utilizar. __________. 1989b. “Visual Compulsion: Design and Oxford: Oxford University Press.
aos Piro do Baixo Urubamba e seu complexo O mito é assim enfatizado na sua condi- Image in Western Amazonia”. Revindi, 2: 19:32. _________. 2003. “Ex-Cocama: Identidades em Trans-
sistema identitário. Ambas as abordagens reve- ção de objeto histórico. Mais uma vez, inspi- __________. 1990a. “Aprendiendo a defenderse: La his- formação na Amazônia Peruana”. Mana, (9) 1: 57-79.
lariam de fato a ausência do dado etnográico rada em Lévi-Strauss das Mitológicas, a análise toria oral y el Parentesco en el Bajo Urubamba”. Ama-
zonia Indigena, 11: 10-16.
e uma apreensão das populações nativas pos- identiica nas “histórias dos antigos” dos Piro
__________. 1990b. “Could Sangama Read? he origin
tulada de fora, de onde só se vê desagregação, os mecanismos de obliteração do tempo e de of Writing among Piro of Eastern Peru”. History and Referências bibliográicas
vitimização e dissolução, ou o uso político da absorção do impacto das turbulências, consti- Anthropology, 5: 87-103.
identidade étnica. tuindo dessa forma as evidências para a aná- __________. 1991. Of Mixed Blood: Kinship and History GOLDMAN, Márcio. 2006. Como Funciona a Democra-
O diagnóstico do que Paul Veyne (1982) lise antropológica dos processos criativos de in Peruvian Amazonia. Oxford Studies in Social and cia. Uma Teoria Etnográica da Política. Rio de Janeiro:
Cultural Anthropology. Oxford: Oxford University 7 Letras.
chamaria “os possíveis atuais” leva Peter Gow transformação das culturas. O método histó-
Press. LIMA, Tânia Stolze Lima. 2002. “Resenha: An Amazo-
a elaborar mais recentemente (2001) o concei- rico da análise antropológica emerge assim da nian Mith and Its History”. Mana 8 (2): 198-202.
__________. 1993. “Gringos and Wild Indians: Images
to de “mundo vivido”, para o qual nosso autor investigação etnográica. Gow aproxima, nesse of History in Western Amazonia”. In C Humphrey MUNÕZ, Yolanda Gloria Gamboa. 2005. Escolher a
mais uma vez inova ao adotar soluções clássicas sentido, as análises do mito empreendidas por and N. homas (eds.), Shamanism, History and the Montanha. Os Curiosos Percursos de Paul Veyne. São
da disciplina: a análise do parentesco e do mito Malinowski e por Lévi-Strauss: ambas busca- State. Ann Arbor: University of Michigan Press. Paulo: Humanitas/FAPESP.
como forma de acesso à história do povo nativo ram partir de situações concretas de comunida- __________. 1995. “Land, People and Paper in Wester VEYNE, Paul. [1971]. Como se escreve a história Foucault
Amazonia”. In Eric Hirsh and Michael O´Hanlon revoluciona a história. Brasília: Editora da UnB, 1982.
da Amazônia. des observadas e descritas pelos antropólogos, e
(eds), he Anthropology of Landscape: Perspectives on VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. 1993. “Review: Of
Assim, na concepção nativa, a história ad- desse modo, buscaram acessar as concepções de Mixed Blood: Kinship and History in Peruvian Amazo-
Place and Space. Oxford: Clarendon Press.
quire o sentido precioso e indispensável de elu- pessoa e de mundo formuladas pelos nativos. nia”. Man 28 (I): 182-183.
cidar a gênese das relações de parentesco que Muitas são, portanto, as ainidades que Peter
explicam a vida atual, depois que o sistema de Gow estabelece entre seu trabalho de análise
habilitación ampliicou e tornou complexas as do mito e as metodologias e teorias formuladas
possibilidades de arranjos matrimoniais (Gow por funcionalistas e estruturalistas. Entretanto, autor Marta Rosa Amoroso
2001). A mistura, no entanto, não abole a alguma distância se estabelece entre nosso au- Professora do Departamento de Antropologia / USP
atenção às diferenças, e neste sentido a teoria tor e os antropólogos modernos. Gow recupe-
da história formulada por Gow dialoga com os ra em Edmundo Leach (1954) a idéia de que Recebido em 25/01/2007
estudos do parentesco sobre povos tradicionais dispostos diante das comunidades que estuda- Aceito para publicação em 30/01/2007
e nestes estudos encontra seu conceito e um re- mos trabalhamos “como se” estas constituíssem
pertório. sistemas, sem, no entanto, perder de vista que

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 193-195, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 193-195, 2006
Da Etnograia à História: “Introdução” e
“Conclusão” de Of Mixed Blood: Kinship and
History in Peruvian Amazônia

PETER GOW
TRADUÇÃO: ANNA MARIA DE CASTRO ANDRADE, JAYNE HUNGER
COLLEVATTI E UGO MAIA ANDRADE
REVISÃO TÉCNICA: MARTA AMOROSO E JESSIE SKLAIR

Introdução amazônico que parece rejeitar abertamente sua


continuidade com o passado, e que usa uma
Este trabalho é uma etnograia do povo na- linguagem moderna para discutir suas relações
tivo do rio Baixo Urubamba, no Peru oriental. sociais iriam descartá-los como “aculturados”.
As pessoas desta área da Amazônia peruana fre- A descrição desses povos tem sido mantida
qüentemente dizem ser de sangre mezclada, “de separada das várias culturas nativas amazôni-
sangue misturado”. Ao fazer isto, elas parecem cas consideradas “tradicionais”. Eles são vistos
colocar em dúvida a continuidade cultural en- como vítimas da história, prejudicados pelo
tre elas mesmas e os ancestrais Piro, Campa e contato com a sociedade européia e com as so-
outras populações indígenas da região. Tal re- ciedades nacionais. Suas culturas são conside-
jeição de continuidade cultural é penetrante em radas sem coerência própria, uma vez que elas
seu discurso. Quando discutem a organização sofreram mudanças históricas que os distan-
de suas comunidades, falam muito mais sobre ciam da genuína cultura tradicional anterior ao
a escola da aldeia e de seu título legal da terra. contato com os estrangeiros. Se nós seguirmos
Suas expressões culturais cotidianas não se en- esta abordagem das culturas amazônicas, deve-
caixam naquilo que nós poderíamos designar remos olhar para as políticas educacionais e a
de modelos “tradicionais” de organização co- reforma da terra do estado peruano para enten-
munitária, familiares aos antropólogos através der por que os nativos do Baixo Urubamba fa-
de etnograias de outros povos indígenas ama- lam sobre a escola e a Comunidad Nativa, e não
zônicos. De fato, eles contrastam as “vidas civi- sobre a cultura dos povos nativos. Igualmente,
lizadas” em povoados legalmente reconhecidos a reivindicação dos nativos de serem “de sangue
com escola, chamadas Comunidades Nativas, misturado” os exclui da categoria antropológi-
com a vida de seus ancestrais da loresta, na ca de culturas nativas amazônicas “puras” e nos
qual não se tinha “aldeias reais”. Neste estudo isenta da necessidade de analisar sua cultura, o
apresento um relato de como as instituições da que eles dizem e fazem.
escola e da Comunidad Nativa operam na orga- Mas se ouvirmos o que os nativos dizem
nização das comunidades do povo nativo. e procuramos entendê-los, chegaremos a uma
Este estudo também é uma etnograia num conclusão radicalmente diferente. Ao evocar a
sentido mais radical. Ele busca levar a sério escola e a Comunidad Nativa como base para
aquilo que os nativos do Baixo Urubamba fa- a ação comunitária, eles evocam, simultanea-
zem e dizem. A maioria dos antropólogos e de- mente, por contraste, as vidas de seus ances-
mais pessoas, ao serem apresentados a um povo trais, que viveram na loresta. Especialmente,

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006


198 | Peter Gow Da etnografia à história | 199

eles evocam as narrativas de escravidão e opres- xo apresenta-se somente porque os etnógrafos de uma cultura nativa amazônica “tradicional”: Urubamba compunha uma cena deprimen-
são sofridas por seus ancestrais e por alguns insistiram em conceber povos “aculturados” em eram largamente monolíngues em Campa, sua te. Todos vestiam roupas de estilo ocidental,
parentes mais velhos. Os ancestrais foram es- termos históricos e culturas “tradicionais” em cultura material era basicamente de manufatu- muitas casas tinham telhado de zinco, mobília
cravizados pelos brancos e seus descendentes termos a-históricos. O paradoxo é dissolvido ra local e tinham poucos contatos diretos com de estilo europeu e a maioria das ferramentas
viveram e trabalharam em sistema de débito quando se abandona a oposição “aculturado”/ pessoas não-Campa. Ao planejar estender meu usadas eram de manufatura não local. Essas
(“barracão”) nas haciendas. Os mais velhos vi- “tradicional” como deinidora de tipos particu- trabalho de campo para o doutorado, decidi es- comunidades não tinham, de imediato, nada
veram essa experiência de violência e as “aldeias lares de culturas. tudar um povo nativo amazônico que estivesse do charme exótico das aldeias Campa que co-
reais” de hoje foram vitórias obtidas frente à A abordagem adotada nesta etnograia em contato mais próximo com povo não-nati- nhecera anteriormente. A comunicação com
oposição dos patrões brancos. Cada referência coloca a história no centro da análise, mas o vo. Optei pelos Piro do Baixo Urubamba que essas pessoas deveria ter sido mais fácil do que
à escola e à Comunidad Nativa ressoa contra a presente estudo não é uma análise histórica moram perto dos Campa, mas que estão em foi com os Campa do Ene ou do Pajonal, pois
narrativa de violência e opressão. Para os nati- das pessoas nativas do Baixo Urubamba. Ao contato muito mais intensivo com os brancos. a maioria das pessoas do Baixo Urubamba são
vos, “ser civilizado” não é oposto a uma cultura contrário, ela lida com a história de dentro da Interessava-me especialmente a organização so- perfeitamente luentes em espanhol. Muitos
idílica “tradicional” que vem se perdendo, mas cultura dos povos nativos. A constante evoca- cial das aldeias piro e como esta organização não falam outra língua. Mas talvez devido a
sim se opõe à ignorância e ao desamparo dos ção do passado nas vidas dos nativos deve ser estava relacionada à sua integração no mercado esta aparente facilidade, estava ciente de que
antigos ancestrais moradores da loresta. Ser referida a seus próprios valores. Para as pessoas de trabalho madeireiro. Mais especiicamente, muitas pessoas não gostavam da minha presen-
“civilizado” é ser autônomo, viver em aldeias nativas, a história é o parentesco. A história não eu estava interessado em como os Piro man- ça entre elas e mesmo suspeitavam de minhas
de acordo com os valores dos próprios nativos, é experimentada como uma força que vem de tinham sua identidade étnica face a esse con- intenções de estar por lá.
ao invés de viver dos caprichosos desejos de um fora para corromper uma estrutura atemporal tato, com respeito particularmente aos altos Essas foram, obviamente, simples impres-
patrão. de deveres e obrigações de parentesco. As re- níveis de casamentos interétnicos que foram sões iniciais. Mas não tinha a sensação, con-
Quais são esses valores? Falando com os na- lações de parentesco são criadas e dissolvidas registrados entre eles pela missionária Mat- forme se passavam as semanas e meses, de que
tivos, logo se apreende que eles querem “viver no tempo histórico que confere signiicados e teson (1955: 25) do Summer Institute of Lin- esta “aculturação” fosse um aspecto supericial
bem”, como eles mesmos dizem. Eles querem inluências para os nativos ao serem estrutu- guistics e pelo missionário dominicano Alvarez dessas comunidades, sob o qual a cultura piro
comer “comida de verdade”, que são os pro- radas pelas relações de parentesco. Este é um (1957). Esses autores, ambos com longa expe- funcionava como no passado. Na verdade, os
dutos de suas hortas, da pesca do rio e caça fato de extrema importância, pois desaia a vi- riência entre os Piro, produziram vários traba- Piro mostravam ser extremamente evasivos so-
da loresta. Querem morar com seus parentes, são dominante dos povos nativos amazônicos lhos que, apesar de indicarem o envolvimento bre sua cultura. Por mais que fosse óbvio que
que lembrarão de sua fome e irão alimentá-los. como historicamente impotentes. Este estudo intensivo dos Piro com seus vizinhos nativos muitas pessoas ao meu redor falassem Piro e
Querem morar em comunidades pacíicas e fe- procura mostrar que os povos nativos amazôni- e brancos, subentenderam que essas pessoas fossem identiicadas como Piro tanto por elas
lizes, rodeadas por parentes cuidadosos, livres cos são agentes históricos ativos e que para en- formavam um grupo étnico discreto na área mesmas quanto pelos outros, eu não me sentia
da opressão dos patrões. Seus valores são os va- tender sua agência precisamos compreender os do Baixo Urubamba. Outros autores deram a seguro de estar realmente entre os Piro. Muitas
lores do parentesco. Como mostro neste estu- signiicados culturais de suas ações, tanto agora mesma impressão sobre os Piro (i.e. Loeler e pessoas nas três comunidades ao redor da boca
do, o idioma do parentesco permeia toda a sua quanto no passado. Baer 1974, Chirif e Mora 1977, Ribeiro e Wise do rio Huau não são Piro, em nenhum sentido.
linguagem, a escola e a Comunidad Nativa são 1978). Além disso, uma considerável literatura Muitos são Campa, outros são imigrantes da
idiomas de parentesco, quando vistas de dentro As comunidades nativas do Baixo histórica traçou o percurso dos Piro através dos parte mais baixa do Ucayali ou da cidade de
da cultura nativa. Por causa disto, as pessoas Urubamba séculos desde seu primeiro contato com os eu- Pucallpa. Algumas dessas pessoas falam Piro,
nativas do Baixo Urubamba apresentam um ropeus no século XVI. mas muitas não. Até mesmo entre aquelas que
paradoxo para os antropólogos. É o uso que Meu interesse em estudar os Piro do Bai- A despeito de não alimentar ilusões de que se dizem Piro há quem não possa falar essa lín-
elas fazem da escola e do título legal da terra xo Urubamba veio de um breve contato que veria uma antiga cultura amazônica nativa, gua e o mesmo é verdade entre os Campa, com
que as revela como “aculturadas”, e diferentes tive com os Campa das áreas do Gran Pajonal, mesmo assim minha primeira experiência dire- respeito à língua Campa. De maneira mais
das culturas nativas amazônicas “tradicionais”. Tambo e Ene em 1978. Estas pessoas, apesar ta com as pessoas nativas do Baixo Urubamba confusa, o fato de uma pessoa ser Piro ou não
Mas esta mesma linguagem codiica a centra- de uma longa história de contato com estran- foi um pouco chocante. Conheci as comuni- parecia depender do meu interlocutor: a mes-
lidade do parentesco em suas relações sociais, geiros1, correspondiam à imagem que eu tinha dades de Huau, Santa Clara e Nueva Itália em ma pessoa poderia ser identiicada por alguém
revelando-os idênticos a esses outros povos 1980, quando o céu baixo da estação chuvosa como Piro, por outro como Campa e por um
amazônicos. Procuro mostrar que este parado- 1. Veja Varese, 1973b, Bodley 1970 e Lehnertz 1972 encobrindo as águas lodosas e volumosas do terceiro como moza gente, um termo que pode
sobre a história dos Campa.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 197-226, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 197-226, 2006
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ser traduzido como “mestiço”. Além disso, in- bre elas mesmas e sobre seus vizinhos de forma constantemente, para duas, instituições: a legal- organizador da estrutura da comunidade. A es-
dividualmente as pessoas poderiam trocar sua extremamente consistente. Todas realçavam, ao mente reconhecida Comunidad Nativa e a escola. cola parecia personiicar tudo o que ameaçava
auto-identiicação dependendo da ocasião. falarem comigo, que eram gente civilizada, e di- A Comunidad Nativa, baseada na lei de reforma a cultura nativa amazônica. Em Santa Clara, o
Uma mulher se airmava como sendo Piro para ferenciavam a si mesmas dos Campa do Gran de terras ocupadas no Peru amazônico promul- currículo escolar excluía quase toda referência
alguns visitantes Campa, enquanto que uma Pajonal e do Amahuaca e Yaminahua, que ha- gada no início de 1970, parecia um princípio à cultura tradicional, e a instrução era exclu-
semana mais tarde ela anunciava para outros bitavam a parte oriental do Baixo Urubamba, organizacional peculiarmente inadequado para sivamente em espanhol. Perguntava-me se os
visitantes: “Yo Campa!”, “Sou Campa!”. que eram, por sua vez, gente de monte, “gente esse povo. No tempo do meu trabalho de cam- nativos do Baixo Urubamba tinham sido tão
Essa complexidade na identiicação estava da loresta”, ou índios bravos. As pessoas me di- po, Santa Clara era somente uma Comunidad traumatizados em suas experiências com a so-
ligada a um sistema lingüístico que era comple- ziam que seus ancestrais também eram “gente Nativa registrada há cinco anos, enquanto que as ciedade peruana nacional e com a civilização
tamente inesperado. Com exceção das crianças da loresta”, mas que elas mesmas se tornaram comunidades vizinhas haviam se registrado um ocidental em geral, a ponto da frágil linha da
e de alguns homens de Ucayali, as pessoas que “civilizadas”. Os comentários depreciativos so- ano antes de Santa Clara. Por que esta instituição cultura tradicional haver se quebrado, forçan-
moravam nas comunidades que eu conhecia bre a “gente da loresta” eram uma constante nova deveria dominar o relato da organização do-os a fazer o melhor que podiam com os
melhor eram multilingües. A maioria dos adul- característica da vida cotidiana: as crianças mal social dos nativos? Como uma complicação a se detritos deixados para trás desta experiência
tos falava espanhol luente e qualquer uma das comportadas eram repreendidas com exclama- somar ao problema da identiicação, o povo local histórica cruel.
duas línguas, Piro ou Campa; alguns adultos ções de “Yaminahua!” ou “Amahuaca!”. habitualmente se auto-identiicava nas conversas Mas se essa explicação parecia vigorosa, dei-
falavam as três, e algumas pessoas mais velhas A princípio supus que essa constante referên- como gente nativa, uma designação que suprimia xava muita coisa sem explicação. Para começo,
falavam Piro e Campa, mas não espanhol. Fre- cia a eles mesmos como “civilizados” e aos seus as diferenças tribais, mas que enfatizava a diferen- os nativos que cheguei a conhecer não pare-
qüentemente, as conversas cotidianas envol- vizinhos como “gente da loresta” não civilizada ciação entre eles e os brancos. Quando pergun- ciam confusos ou profundamente perturbados
viam duas línguas diferentes, às vezes três: um era resultado da nossa interação. Reconhecendo- tava aos informantes o signiicado do termo yine e, muito menos, infelizes. Ao contrário, pare-
locutor falava Piro, enquanto seu interlocutor me como um estrangeiro poderoso, os nativos – que a literatura invariavelmente traduz como a ciam muito convictos e tinham um considerá-
respondia em espanhol, e um terceiro interviria estavam motivados, eu imaginei, a enfatizar nos- autodenominação dos Piro2 –, me diziam enfati- vel senso de humor. Tinham, em certas áreas,
na conversa em Campa. A maioria das crian- sa civilidade comum, em oposição aos “índios camente que o termo signiicava “povo nativo”, e um apreço muito alto por si mesmos. Isto era
ças falava somente o espanhol. Entretanto, bravos”. Suspeitei que esta constante fala sobre o não “Piro”. Como uma autodenominação, gente particularmente perceptível com respeito à
seus pais, e especialmente suas mães, freqüen- tema de ser civilizado era um tipo de racismo e nativa era uma estranha denominação, uma vez comida. Inicialmente, as pessoas me pediam
temente se dirigiam a elas em Piro ou Campa. auto-aversão, que essas pessoas odiavam o “povo que só pode ter entrado no uso local com o re- desculpas por serem incapazes de me prover de
Eu não pude entender bem como as crianças da loresta” porque saberiam que elas também gistro das comunidades nativas3. Até mesmo o comidas a que supunham que eu estaria acos-
aprenderam o espanhol, uma vez que esse pa- eram “pessoas da loresta”, desprezadas pelos nome que este povo usava para se autodescrever tumado. Quando icou claro que eu estava bem
drão era tão bem desenvolvido em crianças brancos. Ao perderem sua própria cultura, esses era inautêntico, emprestado do Estado peruano. feliz em comer banana da terra cozida, peixe
pré-escolares quanto nas mais velhas. Quando, nativos tiveram que se defrontar com os aspectos Com relação às escolas no Baixo Urubam- do rio e cerveja de mandioca, eles se torna-
em desespero, eu perguntava às pessoas nativas mais brutais e sem sentido da cultura dos bran- ba, sendo instituições mais velhas, que começa- vam efusivos em seus elogios, pois icava óbvio
sobre este problema, elas pareciam não achar cos. Neste momento, eu estava particularmente ram no início dos anos de 1950, podendo, em que eu gostava de comida verdadeira. Durante
nada particularmente estranho nisso, apontan- inluenciado pela análise de Cardoso de Oliveira conseqüência, ser atribuída a elas uma maior todo meu período no Baixo Urubamba, toda
do simplesmente que seus ilhos nunca tenta- sobre a situação problemática do caboclo do Alto “tradição”, parecia ainda assim menos apro- vez que eu visitei uma casa estranha, a anitriã
ram falar a língua nativa dos pais. Durante os Solimões: o caboclo é o índio que não se vê como priado que funcionassem enquanto princípio perguntava, nervosa, aos meus companheiros,
primeiros meses de trabalho de campo, bus- um Tukuna, mas como um ser inferior através se eu “sabia como beber cerveja de mandioca”.
quei achar uma comunidade mais “Piro” para dos olhos do “Mestre”, o homem branco (1972: 2. Veja Matteson (1965: 397); Alvarez (1970: 36); Chirif Meus companheiros anunciavam alto: “El sabe
estudar, e, com este im, viajei rio acima para 83). Isso pareceu extremamente apropriado às e Mora (1977: 170); d’Ans (1982: 262); Ribeiro e Wise tomar!” (“ele sabe como tomar!”) e eu poderia
(1978: 157).
Sepahua. Entretanto, até onde posso airmar, pessoas do Baixo Urubamba. ser incluído na apresentação das grandes tige-
3. Os termos gente nativa ou los nativos foram intro-
todas as comunidades Piro eram caracterizadas Quando tentei coletar dados sobre a orga- duzidos pela agência de reforma agrária SINAMOS las de cerveja. Freqüentemente, depois de uma
pelo mesmo nível de heterogeneidade. nização social dessas comunidades nativas, en- (Sistema Nacional de Apoyo a la Movilización Social) refeição particularmente boa de algum tipo de
Apesar da complexidade das questões de contrei a mesma situação. Longe de apelar ao para substituir termos como índio ou indígena, am- caça altamente apetitosa, as pessoas me per-
identidade e língua, as pessoas das comunidades parentesco, matrimônio ou cheia como princí- bos considerados pejorativos para funcionarem como guntavam: “Como você irá voltar para seu país?
de Huau, Santa Clara e Nueva Itália falavam so- pio de organização social, os nativos apelavam, palavra de ordem de um sistema de reforma agrária Você não pode comer essas coisas lá”.
progressista.

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A falta de interesse na cultura “tradicional” Essa experiência pessoal se reletiu em minha multilingüismo e sua airmação aparentemente dança cultural, a cultura particular da socieda-
que havia me deprimido tanto em minha pri- posição analítica. Tornou-se claro que as vidas contraditória de valores opostos estavam, assim, de nativa amazônica se torna idêntica às suas
meira estadia no Baixo Urubamba se revelou dos nativos do Baixo Urubamba não poderiam intimamente conectados a sua auto-identiica- vizinhas, e, em conseqüência, seus membros
com o tempo algo mais complexo. Em aldeias ser entendidas em termos de uma oposição en- ção como “povo misturado”. se tornam assimilados à sociedade envolvente.
como Santa Clara, ninguém vestia o cushma, tre uma cultura “tradicional”, que estava sendo A imagem dominante da história amazônica
roupa de algodão trançado em estilo antigo, perdida, e uma cultura “moderna” que tomara Culturas nativas Amazônicas: etnogra- apresentada pelos estudos de aculturação é a de
preferindo roupas compradas em lojas, mas seu lugar. As coisas eram muito mais complexas. ia e história povos amazônicos nativos perdendo suas cultu-
a comida comprada em loja era considerada Por que o povo indicava a Comunidad Nativa e ras distintas e se tornando assimilados à massa
com desprezo, como um último recurso quan- a escola, ambas instituições externas, para ex- Face à situação etnográica esboçada acima não-indígena de camponeses rurais, um prog-
do tudo mais falhara. Todos queriam comer plicar porque as pessoas moravam juntas em al- procurei, em campo e nas análises posteriores nóstico encontrado no estudo de Wagley e Gal-
a caça e a pesca da loresta e do rio, banana deias onde a atividade mais importante era um dos dados, entender as comunidades nativas vão sobre os Tenetehara do Maranhão (1949).
da terra e cerveja de mandioca. E enquanto as ciclo incessante de distribuição de carne de caça do Baixo Urubamba nos termos dos estudos Um tema similar é encontrado no trabalho de
pessoas me diziam que agora elas eram civiliza- e cerveja de mandioca? Que lógica ligava a air- prévios dos povos nativos amazônicos. Os Bodley sobre os Campa (1970), no qual ele
das, e moravam em comunidades legalmente mação dos nativos de que eles eram um “povo nativos do Baixo Urubamba são um exemplo mapeia a transformação socioeconômica dos
registradas que giravam em torno da rotina di- civilizado” à sua óbvia preferência por comida clássico de um povo Amazônico “aculturado”, Campa de uma cultura tradicional, através do
ária da escola, elas eram veementes nas críticas tirada da loresta? Um indício para uma solução foi inicialmente para estudos de aculturação e sistema de patrón, para uma comunidade mo-
da vida das cidades como Pucallpa, onde as possível repousa em uma história que me conta- mudança social que me voltei. A despeito da derna baseada no cristianismo e nas relações de
pessoas eram más e a comida não era de graça. ram tantas vezes que ela quase equivale ao mito variedade de abordagens existente na litera- mercado5.
Onde inicialmente ouvira nada além de des- de origem de toda a área do Baixo Urubamba. tura, achei todas insatisfatórias para a análise Esta abordagem talvez se encaixe nos nativos
prezo pelos “índios selvagens”, tornei-me, pos- Era-me dito, com respeito a alguma pessoa em do Baixo Urubamba: todas falharam quando do Baixo Urubamba muito bem, mas é venci-
teriormente, mais sensível às convicções dos particular, que o pai dele ou dela era de afuera, procuraram relacionar história e etnograia e, da pela complexidade da estrutura cultural da
nativos de que eles viviam de uma maneira que “de fora” (de fora do Baixo Urubamba ou mes- em particular, o signiicado da história para os área. Quem está aculturando quem no Baixo
era, do ponto de vista moral, superior às vi- mo da Amazônia), enquanto que a mãe dele ou povos nativos amazônicos. Urubamba? Ao passo que existe um grande
das das pessoas da cidade, aquelas mesmas que dela era uma paisanita, “uma mulher da tribo”, Acumulamos hoje várias tendências impor- acúmulo de documentação histórica dos povos
eles pareciam se empenhar arduamente por ou seja, uma mulher Piro ou Campa. Tal airma- tantes nas análises de povos “aculturados” na do Baixo Urubamba desde a metade do século
imitar. Comecei a entender que meu próprio ção se referia especialmente àquelas pessoas co- Amazônia. Uma das primeiras abordagens é XVI, é extremamente difícil decidir se qualquer
interesse em “índios selvagens” ou na cultura nhecidas como gente blanca, “gente branca”, os aquela que eu irei chamar de estudos de acultu- prática particular do povo nativo contemporâ-
dos ancestrais, abertamente expresso por mim madeireiros locais ou os donos de loja no centro ração, representada pelos trabalhos de Wagley neo deriva ou não do contato histórico com
quando cheguei, havia preocupado os nativos. administrativo de Atalaya. Ocasionalmente, me e Galvão, Baldus e Murphy4. O foco nesses outros povos, ou, ao menos, quando tal prá-
Havia falado com eles como um missionário foi contado sobre um patrão local particular ou estudos é o processo pelo qual uma cultura tica foi adotada. Um exemplo simples disto é
ou um chefe branco, romanceando as vidas um chefe, que ele era “de fora”, mas sua mulher amazônica nativa muda por assimilação das ca- o uso do espanhol. Obviamente, os povos Pré-
do “povo da loresta”. Os nativos são perfeita- era Campa. A imagem é potente para o povo racterísticas culturais de outra sociedade com a Colombianos do Baixo Urubamba não falavam
mente cônscios de que este romance vai ao en- do Baixo Urubamba: um homem estrangeiro qual ela veio a ter contato historicamente. Ne- espanhol. Mas quando o espanhol começou a
contro de manipulação e exploração do “povo casa com uma mulher local e permanece para les, o contato entre culturas é o canal ao longo ser usado pelo povo nativo do Baixo Urubam-
da loresta” ignorante. Antes de nos conhecer- criar as crianças na área. É também uma ima- do qual as características culturais circulam e é ba? Poder-se-ia supor que o espanhol começou
mos melhor, os nativos temiam que eu fosse gem verdadeira da maioria dos próprios Piro, de pouco interesse nele mesmo. O tema cen-
um poderoso estrangeiro. Ao morar com eles assim como muitos Campa, que são produto de tral para o projeto dos estudos de aculturação
5. Os trabalhos tanto de Murphy (1960) e Bodley
aprendi aos poucos a ouvir com cuidado o que várias gerações desses casamentos interétnicos. é o conceito de “assimilação”: após um período
(1970) são, de alguma forma, diferentes dos estudos
diziam e a agir em relação a eles com respeito, Constantemente me era dito pelo povo nativo, suicientemente prolongado de contato e mu- de aculturação mais antigos, pois eles enfatizam a
valor altamente valorizado em suas relações “Somos gente mezclada, somos de sangue mezcla- mudança econômica ao invés de mudanças culturais
interpessoais. Ao fazer isso, me disseram mais da”, “nós somos um povo misturado, nós so- 4. Os exemplos são Wagley e Galvão (1949), sobre os abstratas. Entretanto, eles permanecem no interior
tarde, havia me tornado “como família”, con- mos de sangue misturado”. A heterogeneidade Tenetehara, Galvão (1959), sobre os povos do Rio da mesma tradição, dado que eles vêem a mudança
iável, respeitável e memorável. dos habitantes dessas comunidades nativas, seu Negro, Baldus (1964), sobre os Tapirapé, e Murphy econômica como a força motora da mudança das cul-
(1960), sobre os Mundurukú. turas tribais para culturas não-tribais.

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a ser usado seguindo o contato intensivo com Ribeiro, em particular, está preocupado em tra- diferenças práticas muito importantes entre os estes estudos questionam a noção de assimi-
os chefes da borracha que falavam espanhol çar a seqüência evolucionista que acompanha brancos e os nativos, mas duvido que qualquer lação, por revelar como culturas amazônicas
por volta do inal do século, ou mesmo como a colonização das sociedades indígenas pela comunicação entre eles seja impossível. Se as nativas podem mudar com o passar do tem-
um resultado da educação bilíngüe nos anos de sociedade nacional, indo de povos não conta- pessoas habitualmente tecem comentários pejo- po enquanto mantêm uma diferenciação dos
1950. Mas viajantes do Baixo Urubamba de tados até o índio genérico. Essencialmente, essa rativos a respeito do comportamento umas das vizinhos não nativos. Entretanto, tentar usar
meados do século XIX notaram que ao menos seqüência, que Ribeiro chama de “transigu- outras, esses comentários revelam não ignorân- este enquadramento para as análises do Baixo
alguns dos Piro podiam falar espanhol, e con- ração étnica” consiste na remoção violenta de cia ou confusão, mas, ao contrário, um conhe- Urubamba levou-os aos mesmos tipos de pro-
siderando os laços comerciais antigos tanto nos toda especiicidade cultural dos povos indíge- cimento profundo dos valores dos outros. Por blemas que emergiram do trabalho de Ribeiro
Andes quanto no resto da Amazônia, o padrão nas, até que eles permaneçam como “entidades exemplo, o povo branco local freqüentemente e de Oliveira: como alguém deine a identidade
era provavelmente mais velho ainda. Além dis- étnicas” destituídas de toda especiicidade cul- me dizia como o povo nativo era sujo. Isto não étnica no Baixo Urubamba? A manutenção das
so, o espanhol falado no Baixo Urubamba é um tural (1970: 446). era um mau entendido dos valores diferentes fronteiras (veja Barth, 1969) diicilmente po-
dialeto distinto, comum para a bacia do Ucaya- O problema em aplicar este modelo em dos nativos sobre higiene, mas um insulto bem deria ser a característica mais importante dessas
li, e contém muitos itens léxicos de Quéchua e particular no Baixo Urubamba é o de ser pra- deliberado. Os brancos sabem quanto os nati- comunidades cheias de “povos misturados”.
outras origens indígenas. Portanto, a qual cul- ticamente impossível decidir quem pertence à vos são sensíveis a esta acusação. Igualmente, Obviamente, seria difícil analisar o sistema
tura ele deveria ser referido? É claro que não ao sociedade nacional e quem pertence à socie- os nativos acusam os brancos de serem sovinas social do Baixo Urubamba como a interação de
espanhol europeu, nem ao espanhol da costa dade tribal. Por exemplo, vários dos homens com a comida, e de cobrar dos visitantes por grupos étnicos discretos, dado a multiplicidade
do Peru andino. Problemas similares de origens de uma comunidade como Santa Clara não hospedagem. Isto também é um insulto inten- de identidades. Mas, igualmente, é questioná-
culturais nascem em relação a muitos aspectos iriam identiicar a eles mesmos com nenhum cional, atacando a convicção dos brancos de vel se tal abordagem faria avançar nosso enten-
culturais do povo nativo do Baixo Urubamba. grupo tribal: esses homens, tão importantes e que eles são hospitaleiros. Mas geralmente os dimento deste sistema, pois é a multiplicidade
As diiculdades que encontrei com uma ativos nos negócios da comunidade, deveriam nativos e os brancos revelaram, em conversas de identidades, e como estas funcionam como
abordagem de aculturação para o povo nativo ser considerados como membros da sociedade comigo, um extenso entendimento das mo- um sistema, que deveria constituir o interesse
do Baixo Urubamba izeram a análise alternati- nacional? Similarmente, muitas mulheres Piro, tivações e valores uns dos outros. Realmente, primordial. Whitten (1976 e 1985) e Taylor
va de Ribeiro e Cardoso de Oliveira, no Brasil, Campa e Amahuaca moram com seus maridos valores tais como limpeza e generosidade com (1981) notaram uma situação muito similar
e Varese, no Peru, parecer mais atrativa6. Em não-nativos fora das comunidades nativas: es- a comida são gerais para qualquer um do Baixo a essa do Baixo Urubamba entre os Canelos
desacordo direto com os estudos de acultura- sas mulheres deveriam ser consideradas mem- Urubamba: os brancos e os nativos diferem so- Quíchua, Shuar e Achuar do Equador, mas
ção, esses autores, e muitos outros nesta tra- bros da sociedade tribal? Ainda mais confuso mente em eleger suas urgências como fontes de suspeito que o uso da etnicidade como um en-
dição, argumentam que o contato não é um é o fato de as muitas pessoas brancas locais, ação. Isto não é um problema de tradução, mas quadramento metodológico obscureceu, mais
canal inerte, mas uma relação concreta de do- incluindo o ex-prefeito da Atalaya, serem atri- sim de poder. Os conlitos entre os brancos e do que elucidou o problema. Blu, em seu estu-
minação. O foco, desta maneira, muda das di- buídas relações de parentesco com o povo na- os nativos no Baixo Urubamba derivam não de do dos Lumbee dos EUA, comenta:
ferenças abstratas entre culturas para uma única tivo. Essas pessoas são membros da sociedade incompreensão mútua, mas do fato de que eles
diferença crucial: o desejo por dominação e nacional ou tribal? Tais problemas fazem o tipo entendem um ao outro muito bem. Idealmente, o termo etnicidade deveria ser com-
controle, que é característica da “civilização” de análise proposta por Ribeiro extremamente Outra abordagem, relacionada aos estudos pletamente deixado de lado como um termo in-
ou “sociedade nacional”. Para esses autores, problemática, pois estas análises repousam na de conlito interétnico e, mais incidentalmen- tercultural analíticamente útil. Ao invés, deveria
as sociedades nacionais são dominadoras, im- oposição entre sociedade nacional e tribal. te, aos estudos de aculturação, é encontrada nos ser restrito àquilo que faz de melhor, a saber, uma
perialistas e expansionistas, enquanto que so- Os mesmos problemas se aplicam à análi- estudos de etnicidade. Esta abordagem é repre- importante forma de diferenciação social nos Es-
ciedades indígenas são insulares, igualitárias e se da situação interétnica feita por Cardoso de sentada pelo trabalho de Whitten sobre os Ca- tados Unidos. Mas sendo que isso é tão provável
estáticas. Os trabalhos de Ribeiro, Cardoso de Oliveira. Em seu estudo dos Tukuna do Alto nelos Quíchua (1976 e 1985), por Scazzachio quanto a nossa suspensão do uso do termo raça
Oliveira e Varese estão, claramente, de acordo Solimões, Cardoso de Oliveira argumenta que sobre os Lamista Quéchua (1979) e por Sto- exceto em um senso genético estrito, alguma ou-
com a divisão de Lévi-Strauss entre sociedades há uma contradição entre a sociedade nacional cks sobre os Cocamilla (1976 e 1984). Nestes tra solução terá que ser encontrada. Certamente,
“frias” e “quentes” (1977: 29). O trabalho de e a sociedade tribal, e que cada uma é caracte- estudos, apesar de uma certa dependência de nenhum uso dos termos “étnico” e “etnicidade”
rizada por um “campo semântico” distinto que análises históricas, o foco é, primordialmente, deve ocorrer sem extensiva e detalhada descrição
6. Veja Ribeiro (1970), sobre todo o Brasil, Cardoso de inviabiliza a comunicação entre elas (1972: a construção dos valores de diferentes grupos da situação a qual se refere em termos tanto so-
Oliveira (1972), sobre os Tukuna, e Varese (1973 e 31-2). No Baixo Urubamba, existem certas étnicos e a relação entre eles. Implicitamente, ciológicos quanto culturais (1980: 227).
1972) sobre os Campa.

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Este é, precisamente, o problema no Bai- a um sujeito particular para quem esta histó- preocupação com os signiicados culturais dos te, etnográico, ao invés de histórico. No lugar
xo Urubamba: o que, exatamente, signiicam ria tem signiicado (1966: 257). A etnograia, povos nativos amazônicos, mesmo quando es- de apelar para o que nós conhecemos sobre a
termos como “Piro”, “Campa”, “mestizo”, ou neste sentido, é a descoberta desses signiicados ses signiicados se referem a aspectos aparente- recente organização social das comunidades
“branco” para o povo local? É fato que estes ter- dos sujeitos particulares. Desta perspectiva, nós mente externos de suas vidas. Nesses estudos, nativas do Baixo Urubamba para elucidar sua
mos se referem a algum tipo de diferença, mas podemos ver que os estudos discutidos acima e em outros mais recentes, como de Fernández organização contemporânea, foco aquilo que o
não são claras essas diferenças. Não temos ne- freqüentemente falham enquanto etnograias. (1986), Muratorio (1987) e Faulhaber (1987), povo nativo airma sobre sua organização co-
nhuma razão para pressupor qualquer conteú- Pouca atenção é dada nesses estudos à explica- a história cessa de ser de fora das culturas nati- munitária e como isto se relaciona com o que
do particular para esses termos, nem para supor ção de por que e como o povo contemporâneo vas amazônicas, infringindo sobre eles, e toma disseram ou izeram em outros aspectos de suas
que esses modos de classiicação são idênticos fala e age. Realmente, em contraste marcado seu lugar de direito dentro delas. vidas.
as nossas próprias visões de fora do que seriam com etnograias de povo “tradicionais”, os es- Assim, uma solução para os problemas ana- Essa metodologia levanta um sério proble-
“tribos” amazônicas ou “grupos étnicos”. O critores muitas vezes descartam ou criticam in- líticos de entender as comunidades nativas do ma. Não disponho de nenhuma boa evidência
mesmo se aplica ao trabalho de Whitten sobre formações particulares dos informantes como Baixo Urubamba, e a que sigo aqui, é explorar dos idiomas da organização comunitária que
os Canelos Quíchua. Na sua impressionante se estas não fossem dados etnográicos a serem os discursos locais de identidade, cultura e his- os nativos usaram dez anos antes do meu tra-
etnograia dos Canelos as noções de cultura explicados. Assim, Cardoso de Oliveira descre- tória. Ao invés de tentar identiicar uma cul- balho de campo, muito menos de um século
e identidade e a multiplicidade de aspectos e ve o relato de seu informante Tukuna sobre a tura “tradicional” em documentos históricos, atrás. Não busco, assim, relacionar os dados
densidade simbólica que envolvem encaixam- propriedade da terra como “falsa consciência” poder-se-ia indagar aos nossos informantes que recolhi com os relatos históricos do Bai-
se incomodamente no enquadramento da etni- porque é fora daquilo que Oliveira supunha como era do ponto de vista deles, a cultura dos xo Urubamba. A questão é identiicar como o
cidade (1985: 107-63). como o sistema de posse de terra “tradicional” “povos antigos”. Similarmente, ao invés de ten- povo local usa seus idiomas e tal investigação
O problema central em todos os modos de dos Tukuna (1972: 94). Similarmente, Ribeiro tar identiicar cada pessoa no Baixo Urubam- não deveria ser prejudicada neste momento
análise discutidos acima é a prioridade analítica descarta o relato de Las Casas do uso do termo ba como portador de uma cultura particular, por tentativas de encaixar essas práticas a um
dada à história. A cultura da sociedade nativa caboclo no rio Tapajós como “percepções locais como membro de uma sociedade tribal ou na- discurso externo sobre história. Isto é particu-
amazônica em estudo é entendida em termos que confundem posições socioculturais distin- cional particular, ou um grupo étnico particu- larmente importante já que os povos nativos
de uma modiicação de uma situação anterior, tas” (1970: 376). Certamente, o dever do et- lar, podemos explorar as categorias salientes de dão considerável ênfase a sua própria narrativa
base original ou cultura “tradicional”, ou em nógrafo é analisar os sistemas de posse de terra identidade usadas pelos próprios povos locais. histórica local para explicar a natureza de sua
termos de contato interétnico gerido pela his- e classiicação social, e não fazer preleções aos Além disso, ao invés de tentar enquadrar a his- cultura. Estive assim preocupado em elucidar
tória. Igualmente, a categoria social ao redor informantes sobre qual seria a sua verdadeira tória do Baixo Urubamba no esquema ou dos o que esta narrativa signiica para os nativos
da qual a análise é construída é a das frontei- cultura. estudos de aculturação ou de contato, podemos e não se ela se amolda em uma reconstrução
ras geradas pelo contato histórico de diferentes A etnograia de Whitten sobre os Canelos indagar ao povo local quais processos e eventos da história local vinda de fora, feita por meio
culturas ou sociedades, de modo que a distin- Quichua levanta uma questão fundamental eles consideram signiicativos em sua história. da análise de evidências documentadas. Como
ção categórica considerada importante é aquela sobre a forma pela qual a etnograia de povos Ao explorar porque a Comunidad Nativa, a Strathern airmou em sua análise da noção de
que se estabelece entre os portadores da cultura amazônicos “aculturados” tem sido escrita. As- escola e o idioma de “povo misturado” são tão aldeia na Inglaterra rural, “quando os mora-
tradicional e os portadores da cultura estran- sim como os nativos do Baixo Urubamba, es- importantes para os nativos do Baixo Urubam- dores de Elmdon dizem, então, que fulano é
geira, entre os membros da sociedade tribal e os tes povos têm sido descartados como um povo ba na deinição de suas comunidades, não foca- uma verdadeira pessoa de aldeia, ou um recém
membros da sociedade nacional ou entre gru- “aculturado” de pouco interesse adicional. Mas lizo a história dessas instituições e idiomas, mas chegado declara que as verdadeiras famílias de
pos étnicos que existiram antes desse contato. o trabalho de Whitten revelou uma cultura de sim como estas se relacionam com as outras Elmdon têm estado lá por gerações, nós não
Para todos esses modelos de análise, o foco está complexidade notável, particularmente na di- instituições e idiomas usados pelo povo nativo. devemos perguntar se é verdade, mas porque
na transformação da cultura ou sociedade “tra- cotomia alli runa / sacha runa (“pessoa cristã” Assim, não oponho a importância contempo- isso importa” (1981: 17). O problema aqui é
dicional” sob o impacto do contato com uma / “pessoa da loresta”) (1976). Similarmente, a rânea da comunidade nativa ou da escola para de análise histórica: ao passo que seria ridícu-
cultura ou sociedade de fora. Esse processo é análise de Taylor sobre as reações dos Achuar os nativos à organização “tradicional” da aldeia, lo argumentar que a importância da Comu-
concebido como história. à inluência missionária mostra a importância mas preiro explorar a maneira que os nativos nidad Nativa ou da escola para os nativos do
Em O Pensamento Selvagem, Lévi-Strauss de endereçar o entendimento dos povos nati- opõem a Comunidad Nativa e a escola a outros Baixo Urubamba é tradicional, uma simples
argumenta que não pode haver história inal vos amazônicos para instituições como a esco- idiomas, como “viver na loresta” ou ser “escra- airmação de que não é não nos ajuda a en-
porque todas as histórias devem ser referidas la (1981). A força dessas análises vem de sua vos dos patrões”. O método é, primordialmen- tendê-la. Diferentemente do que se passa com

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certas partes da Amazônia, é possível construir narrativas históricas dos nativos para desenvol- sua história, mas o foco foi sempre o de ob- dos por Overing Kaplan (1981). Segundo esta
esta história do Baixo Urubamba com alguma ver uma história “objetiva” da área. Não por- servar como os próprios povos locais falavam autora, a residência endogâmica dos Piaroa e os
profundidade, mas a riqueza comparativa da que acredite que os relatos dos nativos sobre e agiam. complexos sistemas de metade dos Jê-Bororo
documentação histórica é ilusória num certo o passado não sejam verdadeiros, longe disso, obscurecem a identidade e a diferença entre as
sentido. Tanto missionários quanto viajantes mas por considerar que elas formam parte dos Conclusão: o Baixo Urubamba na categorias sociais. Eu poderia sustentar que as
nos proveram de breves relatos sobre os povos dados etnográicos a serem explorados7. perspectiva amazônica pessoas no Baixo Urubamba fazem algo simi-
nativos da área ao longo dos quatro últimos sé- O método adotado para este estudo foi o lar, mas de uma forma talvez mais radical. No
culos, mas em muitas áreas vitais a documen- de permitir que os dados etnográicos me le- Segundo Joana Overing, na base das dife- momento elas têm oposto as identidades pesso-
tação é precária e enigmática. Esses escritores vassem o mais longe possível, guiado por uma rentes estruturas sociais das terras baixas sul- ais dos contemporâneos às diferenças radicais e
tiveram relativamente pouco interesse ou ex- postura teórica: há um tipo de ordem no dis- americanas está uma única ilosoia social: “o perigosas entre os “tipos de gente” de gerações
periência com os nativos, pois eles não eram curso simbólico usado pelo povo do Baixo universo existe, a vida existe, a sociedade exis- passadas. Cada pessoa no Baixo Urubamba é
antropólogos. Eu não questiono que estudos Urubamba. E desde que é melhor trabalhar te apenas à medida que há contato e mistura produto da unidade da extrema diferença nas
históricos são importantes, mas eu questiono do conhecido para o desconhecido, sigo a di- adequada entre coisas diferentes” (Overing Ka- gerações anteriores. Categorias sociais puras, os
a prioridade analítica da história. Lévi-Strauss reção dos trabalhos recentes em etnograias de plan 1981: 161). Seu argumento é persuasivo e “tipos de gente” existem no Baixo Urubamba,
(1981: 627) argumentou que novas estruturas outros povos nativos amazônicos e exploro as ressoa nas culturas amazônicas, com suas pro- mas elas não existem na forma de indivíduos.
são transformações das estruturas antecedentes, áreas do simbolismo temporal e espacial, eco- fundas preocupações com a dualidade, a reci- Essas categorias puras existem como identida-
e, assim, a história não tem começo. A própria nomia, parentesco e matrimônio, ciclo de vida, procidade, a segurança e o perigo da alteridade. des pessoais totais apenas no passado, em paí-
noção de um único momento, quando a mu- padrão de residência, cheia e xamanismo. Es- As culturas amazônicas tornaram-se variações ses distantes e na experiência dos que tomavam
dança histórica começa, é uma ilusão. O pas- ses temas têm sido explorados em um grande sobre este tema essencial. Overing Kaplan a datura. Como os pólos opostos do presente
sado do Baixo Urubamba está além do nosso número de etnograias recentes da Amazônia, (1981) e Viveiros de Castro (1986) têm defen- e do parentesco, o passado e a experiência da
alcance, e sua prioridade analítica é duvidosa. no corpo principal deste trabalho disponho o dido a unidade essencial de todas as culturas datura deinem todas as pessoas vivas no Bai-
Assim, a explicação histórica deve ser deixada relato do povo nativo do Baixo Urubamba no indígenas amazônicas, substituindo o evolu- xo Urubamba como “pessoas misturadas”. O
de lado por enquanto, e o foco deve se dirigir contexto desses estudos. Assim como a maio- cionismo e o particularismo das áreas culturais “aqui e agora” do Baixo Urubamba é composto
para o que os antropólogos fazem de melhor: ria dessas etnograias, o método seguido aqui é presentes em análises comparativas anteriores. por “pessoas misturadas” vivas, em oposição às
etnograia. funcionalista, no sentido de uma procura por Viveiros de Castro, em particular, destacou que categorias puras do passado, da datura e dos
Seguindo Lévi-Strauss, minha preocupação coerência entre diferentes aspectos da organiza- essa unidade é topológica (1986: 276): não lugares distantes.
aqui é com o signiicado da história para os na- ção social dos nativos do Baixo Urubamba em existe elemento básico ausente ou presente em A caracterização de Overing da ilosoia
tivos do Baixo Urubamba, ao invés de qualquer termos de sua co-presença, no mesmo tempo cada cultura, mas, antes, todas essas culturas sócio-cosmológica dos índios das terras baixas
história a respeito deles. Quando eu discutia a e espaço. A diferença mais importante é que são variantes de uma única estrutura de rela- sul-americanas ajusta-se bem às pessoas nativas
história da área com meus informantes, ica- não faço nenhuma especulação sobre a profun- ções. Nenhuma cultura “possui” essa estrutura do Baixo Urubamba. Para que as pessoas pu-
va óbvio que os nativos têm um interesse for- didade do tempo, ou natureza “tradicional” das básica, sendo que a estrutura existe nas relações dessem viver nas aldeias verdadeiras como pes-
te pelo passado. Eles narram este passado de práticas discutidas aqui8. O método central do transformacionais entre todas elas. Overing e soas civilizadas, elas experimentaram um longo
uma maneira particular, é o relato de como este trabalho de campo foi simplesmente observar o Viveiros de Castro têm mostrado como esta e complexo processo de mistura apropriada da
povo se tornou “gente civilizada”, em oposição que as pessoas faziam e o que elas diziam para estrutura básica explica as similaridades e di- diferença, lindamente expresso no idioma das
aos ancestrais “povos da loresta”. Além disso, mim e para as outras. Reuni o quanto pude de ferenças entre as culturas Jê-Bororo do Brasil “pessoas misturadas”. Para que este processo
as narrativas históricas dos nativos envolvem informação geral sobre o sistema social local e Central, os povos Tukano do Noroeste amazô- continue, novas diferenças devem ser encontra-
uma constante referência ao parentesco e à po- nico e as culturas Caribe-Piaroa das Guianas. das e incorporadas. Isto corrobora o progressis-
sição de quem fala em relação ao passado. Tal A ilosoia social das pessoas nativas do mo das pessoas nativas do Baixo Urubamba e
7. Cf. discussão de tais histórias indígenas em Morphy e
estilo de narrativa histórica é relacionado ao Morphy (1984) e Carrier (1987). Baixo Urubamba fornece uma solução para o sua fascinação pelos “estrangeiros brancos” e os
parentesco, considerado central na constituição 8. A qualidade “como se fosse” da presente análise é for- enigma da diferença – perigosa, porém criativa, “índios selvagens”. É somente por meio desse
da cultura dos nativos, e, conseqüentemente, temente “como se fosse” (cf. Leach 1954: 7). Nem e da igualdade – segura, porém estéril, enigma processo que as pessoas conseguem imaginar a
central para a presente análise. Por este mesmo reivindico a duração histórica das práticas contempo- este tão radical quanto aquele encontrado nos continuação da vida. Encontramos novamente
motivo julgo ser importante evitar o uso das râneas, e nem que a cultura dos povos nativos forma povos das Guianas ou do Brasil Central analisa- diante do mesmo paradoxo da cultura nativa
um sistema fechado.

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do Baixo Urubamba, pois é na sua “falta de tra- discutidas por Overing (Kaplan, 1975: 146- cada nova geração masculina com a ancestra- “alucinar” o que os Bororo alcançam na prá-
dição” que vislumbramos sua unidade com as 182, 186-194). Onde os Piaroa apagam os pe- lidade e, dessa forma, “favorece” a acumulação tica, seguindo uma das famosas comparações
culturas “tradicionais”. Mas as pessoas nativas rigos do matrimônio e da ainidade mediante o de gerações (S. Hugh-Jones 1979: 248-251; de Lévi-Strauss (1973) sobre a pintura facial
do Baixo Urubamba são muito diferentes dos “casar perto”, as pessoas nativas do Baixo Uru- C. Hugh-Jones 1979: 107-168; J. Hill 1984: kadiwéu e a sociedade bororo. A experiência
Piaroa, dos Bororo, dos Tukano e dos Araweté. bamba apagam os perigos do não-parentesco 535-539). Onde, no Noroeste Amazônico, a da datura presenteia as pessoas nativas do Bai-
A cultura nativa do Baixo Urubamba pode ser entre os diferentes “tipos de gente” utilizando aliança simétrica entre diferentes tipos de gente xo Urubamba com uma imagem fantasiosa de
vista, assim, como uma transformação dessas a produção do matrimônio a im de ramiicar é produzida no interior do casamento, no Bai- suas próprias aldeias. Entretanto, não podemos
outras culturas, sendo, portanto, essas diferen- largamente laços de consangüinização entre as xo Urubamba o idioma do “sangue misturado” atribuir prioridade analítica da “verdadeira” es-
ças de natureza topológica. novas gerações. Mais comumente, as comuni- produz tal diferença no âmago do parentesco. trutura da sociedade bororo sobre a “verdadei-
A comunidade nativa do Baixo Urubamba, dades nativas do Baixo Urubamba demonstram Diferentemente do Noroeste Amazônico, onde ra” estrutura das comunidades nativas do Baixo
se comparada às aldeias unitárias dessas outras marcar oposição àquelas sociedades guianenses a diferença primordial de tipos de gente é in- Urubamba10. Como argumentaram Overing
sociedades, é uma comunidade voltada para o analisadas por Rivière (1984). Nada poderia cessantemente renovada, no Baixo Urubamba Kaplan (1981) e Viveiros de Castro (1986), a
exterior. As pessoas nativas não podem ima- estar mais distante da comunidade nativa do o sistema está constantemente se expandindo sociedade e a cosmologia não podem ser facil-
ginar uma comunidade auto-suiciente, pois Baixo Urubamba que o desejo guianense por por meio da mistura continuada e da busca por mente separadas no estudo das culturas nativas
todas as comunidades são construídas sem a grupos locais sem ainidade ou diferença (ib.: novas diferenças. amazônicas. Quando muito, nas análises com-
domesticação da diferença radical. A comuni- 70-71), embora isto não oculte o desejo, co- Pode parecer inadequado comparar os “ti- parativas, podemos questionar porque alguém
dade nativa, lugar do parentesco, imobiliza em mum às duas áreas, de comunidades onde pos de gente” do Baixo Urubamba aos grupos compreende uma solução particular qualquer
seu interior as forças que são mais destrutivas todos sejam considerados consangüíneos. A de descendência unilinear do Noroeste Ama- como a organização da aldeia, enquanto ou-
ao parentesco. O conhecimento dos civiliza- diferença é que as pessoas do Baixo Urubamba zônico. Na tradição antropológica estrutural- tro a compreende na experiência alucinógena,
dos, que freqüentemente ameaça escravizar as vêem sua comunidade como algo a ser criado, funcionalista os “tipos de gente” desempenham conduzindo uma solução bastante distinta na
pessoas (dispersando seus ilhos e destruindo enquanto as sociedades guianenses vêem a sua funções sociais radicalmente distintas em cada prática diária. Além disso, a simples existência
a co-residência) é controlado na Comunidad como algo a ser preservado. caso e são, portanto, incomparáveis. Entretanto, de tamanha variedade de organizações comuni-
Nativa e na escola, enquanto o conhecimento As comunidades nativas do Baixo Urubam- Overing (Overing Kaplan 1981) tem sugerindo tárias diferentes na Amazônia sugere que todas
dos espíritos maléicos do rio e sobre a loresta, ba, construídas sobre um modelo de interca- uma ponte ao comparar em suas análises as rela- são soluções perfeitamente viáveis para o pro-
que freqüentemente ameaça matar as pessoas, samentos entre diferentes “tipos de gente”, ções entre os clãs Bororo, os grupos exogâmicos blema de se fazer aldeias.
é controlado nas atividades do xamã. Essas apresentam grande semelhança com os povos Vaupés e os clãs dos tempos míticos dos Piaroa. Se buscamos resposta para o fato de que vi-
formas perigosas de conhecimento são, assim, Tukano e Arawak do Noroeste amazônico9. A similaridade entre os clãs míticos Piaroa e os sões especíicas da comunidade são realizadas
utilizadas para defender a energia do corpo e Em cada caso, a aldeia isolada não possui re- “tipos de gente” do Baixo Urubamba não pre- de formas particulares pelos diferentes povos
a memória, os processos construtivos centrais alidade separada de seu espaço em um sistema cisa ser trabalhada aqui, mas a associação dos nativos da Amazônia, devemos abandonar
da comunidade nativa. Igualmente, os perigos mais amplo de diferentes “tipos de gente”. O “tipos de gente” do Baixo Urubamba com o
potenciais dessas formas de conhecimento são contraste mais marcante é que, enquanto os território, com a linguagem e conhecimento e
10. Os Kayapó, como descritos por Lea (1986), elaboram
controlados através dos processos que constro- povos do Noroeste amazônico freqüentemente com as origens no passado profundo, os coloca
uma instância intermediária entre a aldeia Bororo e a
em o parentesco. recriam a diferença em relação a cada nova ge- muito próximos aos grupos exogâmicos Vau- comunidade nativa do Baixo Urubamba. Como os
Tanto os Piaroa quanto as pessoas nativas ração através dos rituais masculinos de inicia- pés. Entretanto, o mais marcante e eloqüente clãs e as linhagens Bororo, as “casas” kayapó (para
do Baixo Urubamba vêem a comunidade como ção, as pessoas do Baixo Urubamba vêem cada é a similaridade da experiência da comunidade utilizar uma expressão de Lea) são associadas a no-
um conjunto heterogêneo de “tipos de gente”, nova geração como diferença gradativamente do Baixo Urubamba com a datura e a atual or- mes particulares e rituais de opulência. Mas, como as
embora os “tipos de gente” sejam apenas reali- misturada. A iniciação masculina no Noroes- ganização social dos Bororo (Lévi-Strauss 1970: comunidades nativas do Baixo Urubamba, em qual-
quer tempo esses nomes e objetos de rituais de opu-
dade post-mortem para os Piaroa (Kaplan 1975: te amazônico, atuando através de uma eleva- 37-43; Crocker 1979). Em ambos os casos, a
lência são distribuídos em uma aldeia kayapó através
203-205). Ambas as sociedades defendem que da oposição entre homens e mulheres e suas comunidade é formada por categorias sociais das atuais casas. A complexidade do nome e riqueza
comunidades são formadas por consangüíneos capacidades reprodutivas, coloca em contato mutuamente exclusivas, habitando casas sepa- transmitidos entre os Kayapó tem pouco em comum
e acentuam que estes deveriam viver juntos. radas em uma única aldeia. com a “cristalina” estrutura da sociedade Bororo, mas
Mas as pessoas nativas do Baixo Urubamba 9. Cf. S. Hugh-Jones (1979), C. Hugh-Jones (1979), É tentador argumentar aqui que as pesso- muito em comum com a maneira pela qual as pessoas
invertem as políticas matrimoniais dos Piaroa Arhem (1981) e Bidou (1972 e 1977) sobre os povos as nativas do Baixo Urubamba são forçadas a nativas do Baixo Urubamba marcam a produção do
Tukano, e Hill (1984) sobre um povo Arawak. parentesco em suas narrativas sobre a história.

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qualquer esforço de encontrar uma estrutura (Whitten 1976: 141-161) e guiadas através de rentes, são variantes transformacionais (Whit- nativas do Baixo Urubamba são “aculturadas”,
“básica” da qual outros sistemas são elabora- um complexo simbolismo espacial que opõe o ten, 1976; Taylor, 1981: 666-667). O mesmo pois o intenso e prolongado contato com a civi-
ções. Ao invés disso, no terreno da história, o caserío na borda do território comunitário e em provavelmente é verdadeiro para a situação do lização e com o homem branco, sem mencionar
projeto comparativo deve seguir as pistas suge- contato com o Estado às casas dispersas no cen- Baixo Urubamba12. Esta sugere que um enten- os casamentos interétnicos, têm apagado muito
ridas pelo sistema de transformações topológi- tro do território e, portanto, mais próximas à dimento das culturas nativas amazônicas como dos elementos diacríticos da cultura indígena
cas das organizações sociais nativas amazônicas loresta (ib.: 1985). No Baixo Urubamba é a es- sistemas de transformações topológicas é mais amazônica. Que a organização social dessas pes-
existentes. Melhor que perguntarmos por que cola que serve como o foco da comunidade, não que um jogo estruturalista desempenhado por soas possa ser comparável àquela das culturas
as sociedades guianenses não podem criar ela- o xamã. Mas as diferenças não são tão dramá- antropólogos e é a prática social concreta de indígenas amazônicas “tradicionais” é ao mes-
boradas instituições comunais, como os Jê (Ri- ticas, pois no Baixo Urubamba o conhecimen- muitos povos nativos amazônicos. Se as pesso- mo tempo inesperado e improvável. Porque se-
vière 1984: 108-109), ou por que os Jê-Bororo to representado pela escola e o conhecimento as nativas amazônicas podem “alucinar” outros ria assim?
não podem formar relações intercomunais ela- xamânico estão intimamente ligados enquanto modos possíveis de organização, podem igual- A razão é que, em parte, os antropólogos têm
boradas como os povos do Noroeste Amazô- modelos. Nos Canelos, o conhecimento xamâ- mente se ocupar deles na prática. Este assunto raramente experimentado este tipo de compa-
nico (Turner 1979: 175), podemos perguntar nico é proveniente de espíritos ancestrais da novamente levanta a questão da história. ração, e nesses termos. Como já discuti, os po-
por que os povos das Guianas são bons em criar loresta (Whitten 1976: 148-153); as pessoas vos “tradicionais” são habitualmente analisados
pequenas aldeias densamente entrelaçadas ou manipulam a identidade caserío/loresta (alli Da etnograia à história de maneira completamente diferente dos povos
por que os Jê-Bororo são bons em fazer grandes runa/sacha runa) na prática social. No Baixo “aculturados”. A ênfase nos estudos do primei-
aldeias separadas entre si. Urubamba, tanto o conhecimento xamanístico O foco principal deste estudo foi a etnogra- ro tipo está na coerência cultural e integração,
Essas formas de organização comunitária quanto o da escola vêm de regiões à jusante e ia das pessoas nativas do Baixo Urubamba, e quanto que no segundo tipo de estudo a ênfase
são, claramente, adaptações a alguma coisa. esses poderes externos estão relacionados aos a história foi abordada aqui como um assunto reside na incoerência cultural e desintegração
Essa “alguma coisa” pode ser somente a própria poderes da loresta na criação histórica da Co- etnográico, por meio da narrativa histórica das que se operou por meio da agência histórica.
história. Não devemos saber, a priori, o que munidad Nativa. Em ambos os casos, há um pessoas nativas. Entretanto, muitos problemas Dada esta divisão na abordagem, não é surpre-
essa história é para os guianenses, os Jê-Boro- complexo entrelaçamento entre o “civilizado” e históricos emergem dessa etnograia das pesso- sa que uma comparação mais profunda entre
ro ou os povos do Noroeste Amazônico, mas a “loresta” na produção de um termo central, a as nativas. Pretendo aqui discutir como a et- povos “tradicionais” e “aculturados” mostre-
podemos começar a formular as possibilidades comunidade composta por parentes. nograia do Baixo Urubamba se volta a uma se inviável: as premissas desses dois estilos de
através de uma análise de seus resultados11. Essa Os sistemas sociais dos Canelos Quíchua reinterpretação da história amazônica, escrita etnograia são bastante distintas13. A possibili-
é uma das mais importantes implicações deste e das pessoas nativas do Baixo Urubamba têm agora com o pleno reconhecimento da agência dade de comparar as pessoas nativas do Baixo
estudo sobre as pessoas nativas do Baixo Uru- uma característica adicional em comum, pois histórica do povo nativo da Amazônia. Urubamba com culturas “tradicionais” como os
bamba: ao rejeitar as soluções históricas super- ambos funcionam através da multiplicidade Mostrei anteriormente como a organização Piaroa, Vaupés Tukano, Machinguenga, relete
iciais para as particularidades da organização de identidades pessoais. Em ambos os siste- social das comunidades do Baixo Urubamba a natureza de meu projeto etnográico. Seguin-
social dessas pessoas, ele revela a história como mas uma pessoa pode estar, simultaneamente, pode ser interpretada como uma transforma- do o estilo dessas etnograias de povos “tradi-
o problema central nas análises de todas as cul- em duas categorias formalmente opostas. Isto ção topológica de outras sociedades indígenas cionais”, procurei por coerência e integração
turas nativas amazônicas. se comprova, sem dúvida, pela maneira como amazônicas. Apenas supericialmente as pessoas nas vidas das pessoas nativas, não incoerência
A organização comunitária das pessoas na- ambos os sistemas funcionam em contínuo e desintegração. Em lugar de atribuir parte da
tivas do Baixo Urubamba é uma transformação contato com outros sistemas sociais que são 12. Em comunicação pessoal, Graham Townsley (que es- prática das pessoas nativas à cultura tradicional
incomum de outros sistemas nativos amazôni- organizados de forma diferente. Os Canelos tudou os Yaminahua) e Soren Hvalkof (que estudou e o resto à falsa consciência ou às percepções
cos, mas não é única. O sistema de parentesco Quíchua intercasam em peso com os Shuar os Campa do Pajonal) discordaram radicalmente de
do Baixo Urubamba carrega algumas grandes e os Achuar (Whitten 1976 e 1985; Taylor minhas análises da situação do Baixo Urubamba, ba-
seados na idéia de que estes dois povos constituem 13. Nota-se que muitos estudos clássicos de povos “acul-
similaridades com aquele dos Canelos Quíchua 1981), enquanto as pessoas nativas do Baixo
unidades culturais evidentes. Contudo, suspeito turados” baseiam-se em uma comparação entre um
descrito por Whitten (1976 e 1985). As comu- Urubamba intercasam com os Tambo, Cam- que estávamos situados em planos diferentes. Anne- segmento “tradicional” do povo estudado e outro
nidades canelos são desenvolvidas pelos xamãs pa do Gran Pajonal e com Machiguenga do Christine Taylor contou-me que os Achuar subesti- “aculturado”, como os estudos de Cardoso de Oli-
Alto Urubamba (cf. Casevitz 1977). Whitten mam sua identidade Quíchua, enquanto os Canelos veira (1972), Bodley (1970) e Murphy (1960). Tais
11. Veja Lévi-Strauss (1963) sobre o falso “arcaísmo” dos e Taylor sustentam que as culturas Canelos enfatizam sua identidade Achuar. Em tais sistemas estudos prestam insuiciente atenção aos problemas
Nambikwara e Price (1987) para uma interessante Quíchua e Shuar / Achuar, mesmo muito dife- complexos, a multiplicidade de identidades não pre- analíticos que emergem da presença sincrônica dos
solução histórica para esse problema. cisa ser acentuada por todos os povos envolvidos. dois estágios de “história”.

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distorcidas, procurei pela coerência interna en- As pessoas nativas poderiam discutir o últi- das casas e pelas embaraçosas perguntas sobre Se considerarmos seriamente o que as pes-
tre diferentes campos de práticas. mo século de mudanças radicais na sociedade quanto eles ganham e sobre o valor de suas ba- soas nativas do Baixo Urubamba dizem sobre
Com esta escolha por um estilo particu- local em termos de parentesco, as relações prá- gagens. Onde estavam as cerâmicas pintadas, as si mesmas, vemos uma nova dimensão para
lar de descrição etnográica e análise, não es- ticas de suas vidas cotidianas. Não poderia fa- roupas exóticas e as revelações autênticas sobre a cultura descrita nessa etnograia. A cultura
tou sugerindo que as pessoas nativas do Baixo zer o mesmo porque meu conhecimento sobre uma cultura misteriosa escondida? “Porque vir das pessoas nativas é sua prática política, seu
Urubamba pertençam a uma cultura indígena meu próprio passado estava dividido entre um de tão longe para estudar isso?”, é a reação co- engajamento concreto com a história. A his-
tradicional. Ao invés disso, proponho desa- pequeno número de fragmentos acerca de pa- mum, como de fato foi a minha própria. Os tória narrada pelas pessoas nativas é a história
iar a visão da história que sustenta a divisão rentes mais antigos e um conhecimento razoa- Piro parecem ter jogado fora sua cultura, sua do parentesco. Ela está muito distante de ser
entre povos “tradicionais” e “aculturados”. Se velmente coerente sobre a “história mundial” preciosa herança da diferença, para alcançarem simplesmente a narrativa das vítimas do colo-
é possível descrever e analisar um povo “acul- aprendida nos livros. Esta última história era a identidade sem valor do campesinato pobre. nialismo e da exploração e é muito diferente de
turado” em termos de coerência e integração puramente abstrata para mim e eu tinha pouca Assim os Piro como outros povos do Baixo nossa visão externa sobre a história do Baixo
cultural, então devemos questionar se a história noção de que eu ou alguém que conhecia era Urubamba não pensam sua cultura como uma Urubamba. A im de explicar estas diferenças,
realmente rompe a coerência das culturas ama- agente ativo desse cenário de narrativas. Estou posse a ser herdada ou esbanjada. A habilidade não podemos recorrer à “cultura tradicional”.
zônicas nativas. Pelo mesmo motivo, devemos certo de que esta é a experiência histórica da para falar piro, fazer cerâmica policromada ou Por exemplo, seria duplamente absurdo e re-
nos certiicar se a relativa ausência de história maioria dos “povos históricos”, para adaptar a cantar como “os antigos” é conhecimento adqui- dutor argumentar que a distância entre nosso
nas etnograias dos povos tradicionais represen- respeitável formulação de Wolf (1982). O co- rido. Tal conhecimento é adquirido na relação entendimento das escolas e aquele das pessoas
ta algo mais que uma convenção estilística. Se nhecimento dos povos nativos sobre o passado entre parentes e corresponde aos contextos de nativas resulta da mediação deste último atra-
a diferença entre os dois estilos de etnograia se não é simplesmente impressionante; é também tais relações. Se os pais temem que uma inabi- vés de sua “cultura tradicional”. Historicamen-
baseia em uma falsa visão da história amazôni- uma forma potente de consciência histórica. lidade em falar espanhol conduzirá à escravidão te, a importância das escolas deve derivar de
ca, então a nova abordagem para a etnograia Quando meus informantes estruturavam uma dos seus ilhos, então eles encorajam-nos a apren- paradigmas anteriores de conhecimento e po-
que venho utilizando aqui conduzirá a uma narrativa histórica sobre o passado com a frase: der o espanhol. O conhecimento é importante à der na cultura nativa (cf. Gow, 1990), mas en-
nova e melhor abordagem para esta história. “Mi mamá me contó que ...” (Minha mãe me medida que protege o andamento dos processos tre as pessoas nativas contemporâneas a escola
A natureza enigmática da história me foi contou que ...), era eu, e não eles, que reagia do parentesco e é supérluo e perigoso se não o aparece de forma proeminente em seu enten-
fortemente revelada pela profundidade tempo- à aparente insuiciência da história doméstica izer. As pessoas nativas do Baixo Urubamba não dimento de conhecimento e poder. Seria um
ral da documentação da história sobre os Piro contada face à história mundial. Para gente vêem suas culturas ancestrais como bens herdá- absurdo ver a escola como algo fora do enten-
e Campa. Enquanto trabalhava no Baixo Uru- nativa, uma narrativa obtém seu poder de ve- veis, mas como armas em defesa do parentesco. dimento das pessoas nativas sobre tais coisas e
bamba, soube através de leituras, que os Piro racidade precisamente de tais relações de pa- Em momentos particulares tais armas podem ser assim separar na análise etnográica o que na
haviam matado o padre jesuíta Enrique Richter rentesco próximo. Essa é outra dimensão para inúteis e icarem abandonadas, para serem reto- prática dessas pessoas está junto. Também seria
em 1695, pondo im às esperanças dos jesuítas minha análise da história como parentesco para madas depois quando as circunstâncias muda- extremamente redutor que de algum modo as
de controlar a região do Ucayale/Urubamba e as pessoas nativas do Baixo Urubamba. Histó- rem. Isto explica porque as pessoas nativas não pessoas nativas desconheçam o que as escolas
supus que várias daquelas pessoas ao meu redor ria é a narrativa da criação do parentesco con- compartilham conosco a nostalgia pela “cultura “realmente são”. Sem dúvida, as pessoas nativas
eram descendentes de seus assassinos. Desco- temporâneo e a fonte das respostas das pessoas autêntica” que nós atribuímos a seus ancestrais. não sabem o que as escolas signiicam para os
brir que a morte de Richter não tinha nenhum nativas às novas situações. Os “antigos” produziram as pessoas atuais, mas funcionários do Estado peruano, para os mis-
interesse para meus informantes não foi uma Se tomarmos seriamente a identiicação que eles estão agora mortos e não podem ajudá-los. sionários dominicanos ou para os antropólo-
grande surpresa. Perturbava-me, no entanto, essas pessoas fazem da história com o parentes- São os vivos que devem ser defendidos, com o gos românticos, mas isto não é a mesma coisa.
o contrate entre meu conhecimento dessa his- co, podemos começar a entender porque elas que está à mão. As pessoas nativas temem a perda Como estrangeiros, podemos entender muito
tória e minha ignorância sobre minha própria não compartilham da nostalgia pela cultura de seus ilhos, não de sua “cultura”14. bem como as pessoas de kinkon construíram
história. Não sabia o que meus ancestrais na “tradicional” sentida pela maioria dos viajantes
Escócia haviam feito três séculos atrás e menos e antropólogos que têm visitado o Baixo Uru- 14. Em 1988 fui informado por um jovem em Sepahua Este homem não me conhecia e estava muito bêbado
ainda como eram. O que signiicava saber mais bamba (Cf. Matthiessen 1962: 211; Huxley que os Piro estavam perdendo sua cultura, esquecendo quando me contou isso, então suspeitei que ele estava
sobre a história do Baixo Urubamba que a da & Capa 1965: 164-7; Ribeiro & Wise 1978; os hábitos antigos. Disse ele: “As jovens estão enver- repetindo o que havia ouvido de algum antropólogo
minha própria terra? O que há de tão especial d’Ans 1982: 263). Os forasteiros são repelidos gonhadas de fazerem o ritual da puberdade, porque ou missionário. Sua declaração não é menos interes-
na “história”? pelas roupas ocidentais, pelos telhados de zinco elas não gostam mais de mostrar seus seios. Mas este sante por isso e pode sinalizar uma nova fase de resis-
é nosso costume e elas não deveriam se envergonhar”. tência.

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sua escola, mas não temos o direito de dizer nessa identiicação do parentesco e história, já isso exatamente o que ele airma, já que diz que sigo compreender a caracterização de Turner da
que elas o izeram por um engano. Devemos que poucos etnógrafos têm discutido história e certas sociedades são mais aptas a suportarem situação de contato dos Aguaruna e Shipibo. Os
repensar nossos próprios signiicados como parentesco em termos comparáveis àqueles que as mudanças na história que outras. Ele argu- Aguarauna são famosos, ao menos no Peru, pela
buscamos enfrentar aqueles das pessoas nativas utilizo aqui. menta que sociedades como os Kayapó, onde a força de suas federações políticas e pela reação
do Baixo Urubamba. Tal procedimento é esperado em etnogra- reprodução social da comunidade é coerente- agressiva a qualquer sinal de ameaça contra sua
O mesmo se aplica ao entendimento que ias dos povos “aculturados”, com o foco na mente guiada pelas instituições coletivas, estão autonomia, como foi testemunhado durante a
essas pessoas produzem sobre Comunidad Na- incoerência das práticas sociais de seus atores. mais aptas à consciência histórica e à resistência campanha contra a tentativa de Werner Her-
tiva. Barclay e Santos (1985) discutiram de Mas isto também persegue as etnograias dos cultural que sociedades que carecem de tal in- zog de ilmar Fitzcarraldo em seu território. Os
forma eloqüente as falhas da lei que instituiu povos “tradicionais”. Estes estudos constroem tegração funcional. Turner cita como exemplo Shipibo são talvez menos famosos pelo seu ati-
a Comunidad Nativa e argumentaram que essa uma visão de uma cultura tradicional com dessas últimas “os Shipibo e as sociedades simi- vismo político, mas suas próprias federações e a
era uma forma de etnocídio ideológico, atuan- uma estrutura particular. Buscando descrever lares das montanhas e das terras baixas sub-an- grande cooperativa shipibo de artesãos, Maroti
do para legalizar o roubo da terra das pesso- os povos nativos amazônicos, cuja história é dinas marginais” (1988: 209). Ele escreve: Shobo, não poderiam rigorosamente ser descri-
as nativas e destruir sua organização política. desconhecida e fragilmente entendida, os et- tas como “insulares” e nem mesmo o grande
Localizando o uso e o direito de posse sobre a nógrafos tendem a subestimar o “como se” de As sociedades andinas e do Brasil Central (...) número de pessoas Shipibo morando dentro e
terra na comunidade local, a lei das Comunida- suas explicações (Leach 1954). Mesmo quan- com seus complexos sistemas de instituições ao redor da cidade de Pucallpa corroboram a
des Nativas pode ser uma má lei, mas é a única do as etnograias interessam-se pelos processos coletivas estão muito melhor adaptadas à ma- idéia de um “contato esporádico” 15.
correntemente disponível para eles e devemos temporais, tais como casamentos, iniciações nutenção de uma relação de integração e de A análise de Turner e sua maneira de clas-
explorar como e porque eles a tem usado. No ou rituais funerários esses processos são nive- interação intensiva com a sociedade ocidental siicar essas pessoas como “de montanha e de
caso do Baixo Urubamba, as pessoas nativas lados a im de mostrar uma estrutura cultural local, ao mesmo tempo em que mantém uma terras baixas marginais sub-andinas”, retoma o
têm situado a Comunidad Nativa no coração abstrata e atemporal. Não há nada de errado identidade coletiva separada e internamente au- Handbook of South American Indians (Steward
de sua organização comunitária e no centro nisso enquanto uma metodologia etnográica tônoma, do que as sociedades simples, como os 1946: 59), onde as culturas da Amazônia Oci-
de sua narrativa histórica. Eles têm rejeitado o é consensualmente preferível ao redemoinho Shipibo, os Aguaruna e os Waurá. Os tipos de dental são englobadas em uma única categoria,
espírito desta lei, que foi planejada para dar re- do espetáculo histórico de uma abordagem situações de contato são aqueles em que as pri- já que pouco se sabia a respeito delas, e esse
conhecimento legal a uma ordem “tradicional” mais antiga, onde os povos nativos americanos meiras sociedades estão engajadas combinando parco conhecimento não apresentava qualquer
pré-existente. Ao invés disso, as pessoas nativas encontram-se ao acaso em suas migrações e interdependência, resistência e manutenção de padrão coerente. Como notou Myers (1974),
têm dado à Comunidad Nativa um signiica- deixaram para trás seus “elementos culturais” uma identidade social diferenciada no meio do a classiicação para as organizações sociais na
do progressivo dentro do processo contínuo de distintos (cf. Steward 1946: 59, Steward & Fa- contato intensivo diferem das últimas, com sua Amazônia Ocidental no Handbook era total-
produção e defesa do parentesco. Tal recons- ron 1959). Mas esta metodologia etnográica ênfase na insulação, distância e contato esporá- mente inadequada e ignorava as complexas
trução indígena da Comunidad Nativa de for- torna-se perniciosa quando está disfarçada de dico (1988: 280). mudanças que ocorreram na história. Nosso
ma alguma exclui uma receptividade à nova e análise histórica. conhecimento sobre os povos da Amazônia
melhor proteção legal às terras das pessoas na- Turner, em seu comentário em um volume História é, pois, o desvelamento dentro da Ocidental está evoluindo, ainda que perma-
tivas, como o previsto por Barclay e Santos, e dedicado ao mito e à história na América do “situação de contato”, das possibilidades ima- neça inadequado. Ao menos o presente estudo
parece estimulá-la ativamente. Sul indígena, escreveu: “A estrutura da socie- nentes na estrutura “tradicional” da sociedade abriu para a possibilidade dos arranjos sociais
A etnograia apresentada neste livro revela dade nativa, signiicando em particular seus nativa. Não considero convincentes as similari- aparentemente amorfos de povos como os Ca-
um povo nativo amazônico com uma profun- modos de produção social, e a estrutura da si- dades entre organização das comunidades cam- nelos Quéchua, Shipibo-Conibo, Cocamillia
da consciência histórica situada nas relações de tuação de contato da qual ela participa, não são pesinas andinas e os Kayapó e Bororo. Apesar e das pessoas nativas do Baixo Urubamba não
parentesco. O parentesco para elas não é conce- variáveis independentes” (1988: 280). Estou da presença das instituições comunais dualistas serem, em nenhum sentido, “simples”, deven-
bido como uma estrutura atemporal na qual as de acordo, desde que Turner queira dizer que em ambos os casos, a experiência histórica e do ser estudados no contexto de suas interações
novas gerações são socializadas, mas como um os povos indígenas são agentes de sua própria organização social dos Kayapó ou Bororo têm
conjunto de relações entre pessoas vivas que história e que os etnógrafos deveriam buscar pouco em comum com aquelas comunidades 15. A fonte de Turner para os Shipibo é Roe (1988), que
são ativamente produzidas no tempo. É difícil relacionar o conhecimento etnográico que eles campesinas andinas que por muitos séculos fornece a impressão de que eles são “isolados”. Su-
saber se as pessoas nativas do Baixo Urubamba têm de uma sociedade nativa ao seu conheci- vêm sendo integradas em complexos sistemas ponho que Roe quer dizer que eles são isolados em
são exceções entre os povos nativos amazônicos mento da história dessa sociedade. Mas não é nacionais. Entretanto, simplesmente não con- comparação aos Cocama, em vez de isolados como os
Waurá do Alto Xingu (Cf. Ireland 1988).

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com contextos regionais mais amplos. Tal pro- Esta relexão sobre a história do projeto an- tracemos as múltiplas e complexas estratégias da seram, chamava os grandes barcos que iam rio
blema ica talvez mais evidente com os Campa, tropológico tem implicações importantes para resistência cultural na Amazônia nativa que Tur- acima trazendo mercadorias e mandava os pro-
cujas interações com os outros vão do isola- relexões antropológicas sobre a história amazô- ner ignora, ao mesmo tempo nos aproxima da dutos de suas haciendas. Mas para onde e para
mento extremo no vale de Ene e Gran Pajonal nica. Viveiros de Castro sugere que a resistência relexão sobre o projeto antropológico que Tur- quem? Com que se parecia o sistema regional
à co-residência próxima no Baixo Urubamba cultural dos povos Jê, mediada pela organização ner tão corretamente defende. que apoiava Vargas? Como isso emergiu da in-
e no Ucayali, mas sem revelar quaisquer dife- introspectiva da aldeia, pode ser simplesmente Para escrever tal história da Amazônia, de- dústria da borracha para se transformar na cena
renças signiicativas em seu modo de reprodu- mais visível de uma particular persuasão teórica vemos primeiro nos dar conta que sabemos de atual? Por alguma ironia cruel, sabemos mais
ção social fora da própria “situação de contato” aos antropólogos do que a resistência dos Ara- fato muito pouco sobre a história da Amazônia. das relações sociais das missões franciscanas
em si (Bodley 1970). Além disso, a “situação weté e outras culturas Tupi-Guarani, haja vista Nessa discussão sobre a historiograia da Ama- entre os Campa nos primeiros anos do século
de contato” dos diferentes grupos Campa va- que elas estão em busca de relações exteriores. zônia peruana, Santos Granero (1988) observa XVIII do que sobre um sistema social que ainda
riou consideravelmente ao longo dos últimos Tais culturas, devido às interações que elas bus- que esta história tem sido largamente escrita por se mantém vivo na memória das pessoas.
quatro séculos, da missionarização à rebelião, cam com estrangeiros, são fáceis de serem inter- missionários e antropólogos e que muito pou- Alguns autores têm dado atenção a esse
do trabalho para os patrones à guerra. Tais va- pretadas em termos de “má fé” ou “vendo eles co foi escrito por historiadores proissionais. Os período pós-colapso da indústria da borracha
riações espacial e temporal na interação com mesmos com os olhos do mestre”, mas somente missionários focaram a história da evangeliza- (Stocks 1984; San Roman 1975), momento
os sistemas de poder colonial e nacional são quando permanecemos cegos para suas próprias ção, enquanto a produção dos antropólogos in- que parece ter sido crucial para a formação e
comuns em toda Amazônia ocidental e para dinâmicas culturais (1986: 76). A resistên- cide sobre o período mais antigo do “primeiro consolidação das culturas rural e urbana. Stocks
explicá-la devemos lidar com toda a complexi- cia cultural não pode simplesmente ser “vista” contato” com os europeus ou sobre as histórias argumenta que tal época viu o desenvolvimen-
dade histórica dessa região. como qualquer outro aspecto da cultura. Ela individuais dos povos nativos da Amazônia. Há to da sociedade rural da Amazônia ribeirinha,
Os modismos antropológicos mudam e tem que ser investigada etnograicamente. Que poucos estudos regionais e menos ainda sobre com o surgimento das escolas e de pequenas
o “marginal” pode rapidamente tornar-se o a resistência cultural dos Araweté ou dos povos o desenvolvimento da habilitación, das cida- vilas como centros administrativos e isso foi
“caso típico”, como foi claramente demonstra- nativos do Baixo Urubamba não está articulada des, da burguesia urbana e do proletariado, ou associado às relações de obrigação entre chefes
do com a retomada dos estudos dos Jê. Como pelas instituições coletivas não é mais surpreen- dos ribereños, o campesinato não-tribal (Santos e trabalhadores nativos. Mas praticamente não
o próprio Turner acentuou (1988: 237-238), dente que a ausência de aldeias circulares entre Granero 1988). Airmação semelhante pode ser existem estudos detalhados de tais relações so-
a relexão sobre a história amazônica deve in- eles e nem mais signiicativo. feita sobre o Brasil, Equador, Colômbia e Bolí- ciais com a notável exceção do próprio traba-
cluir uma relexão sobre a história da antropo- Viveiros de Castro indicou a possibilidade via. Estamos, portanto, na posição singular de lho de Stocks (1984) entre os Cocamilla e o de
logia e sobre o empreendimento etnográico. de uma história real da Amazônia. Tal história muitas vezes saber com algum nível de detalhe Rummenhoeller (1988) em uma comunidade
Este ponto foi tratado por Viveiros de Castro deve considerar eventos enquanto a conjunção as reações dos povos indígenas em relação a mu- Shipibo em Madre de Deus.
em seu estudo sobre os Araweté (1986), onde de projetos históricos de sociedades indígenas danças históricas, mas não de compreender por Pouco surpreende que saibamos tão pou-
ele explora a complexa interação entre agen- e coloniais. O expansionismo e a “vontade de que estas mudanças aconteceram. co da história do sistema social ribeirinho da
da de mudanças teóricas na antropologia e a dominação” das sociedades nacionais são reais o Tal problema recaiu sobre este trabalho e Amazônia ocidental. A história da Amazônia
atenção voltada às culturas amazônicas parti- suiciente, mas são igualmente reais a busca pelo conduziu-me eventualmente a abandonar qual- tem sido largamente escrita por antropólogos
culares e aos problemas que elas propõem. Es- outro do Tupi-Guarani, as aldeias circulares dos quer esforço sério de relacionar a análise da nar- que demonstraram pouco interesse nas pessoas
tudos dos anos 30 e 40 sobre os Tupi-Guarani, Jê-Bororo e o desejo pelo conhecimento externo ração das pessoas nativas sobre o passado com que não são, em algum sentido óbvio, indíge-
inluenciadas por escolas americanas e alemãs das pessoas nativas do Baixo Urubamba. Todos a documentação histórica acerca da região. Um nas. Poucos antropólogos têm trabalhado em
do culturalismo ou do difusionismo, focaram eles são realidades históricas e projetos históricos. bom exemplo desse problema é a igura de Fran- cidades da Amazônia peruana16, em cidades
a fragilidade dessas culturas que caminhavam Tal visão de história amazônica se livraria de cate- cisco Vargas. Este homem sempre aparece na
para a aculturação ou a extinção. Como o es- gorias como as de sociedades indígenas amazôni- narração nativa da história, mas quando tentei
16. A pesquisa antropológica em centros urbanos na
trutural funcionalismo britânico e o estrutura- cas “tradicionais” e “aculturadas”. Esses dois tipos localizá-lo e identiicar suas relações com seus
Amazônia peruana tem sido largamente focada na
lismo francês tornaram-se mais proeminentes, de sociedades não diferem porque um tem uma trabalhadores no contexto histórico, defrontei- cura xamânica (cf. Luna 1986 e De Rios 1972). O
os Tupi-Guarani foram abandonados e a aten- cultura coerente, mas não história, enquanto o me com a falta de documentação e análise. Pou- tema da cura xamânica urbana nessas regiões mos-
ção teórica voltou-se para os Jê, que deixaram outro possui história, mas sua cultura é incoe- co se sabe sobre as relações sociais da indústria tra um número de problemas históricos fascinantes,
a sua posição “marginal” para tornar-se “clássi- rente. Eles diferem apenas nos detalhes de suas de borracha e menos ainda sobre as décadas que principalmente à luz do estudo de Taussig (1987) no
cos” (1986: 97). culturas e suas histórias. Tal história permite que se seguiram. Vargas, meus informantes me dis- Sudoeste da Colônia. Abordarei este assunto poste-
riormente em Gow (s/d).

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menores ou vilas ao longo dos maiores rios da no Pachitea), utiliza o termo mestizo sem refe- e deveria ser intrigante saber mais sobre as rela- tureza das relações sociais na comunidade que
região. A etnograia da Amazônia se manteve rência aos discursos locais. Sua falha ao explo- ções sociais que a estrutura. Suspeito que essas descreveu e nem dispomos de outras pesquisas
cega a tais situações, porque elas não podem rar os signiicados deste termo é o mais notável comunidades não são baseadas no princípio do sobre isso.
facilmente ser encaixadas dentro da visão an- dado sua descrição detalhada das relações de parentesco englobante como o encontrado no Até a elaboração desses estudos, minha
tropológica para a história da região. Por não parentesco e a importância das imagens de es- Baixo Urubamba, mas está claro na explicação explicação para a organização social do Baixo
serem obviamente indígenas, as pessoas são paço e do lugar de origem para o simbolismo de Padoch que as declarações de descendência Urubamba permaneceu problemática. Lendo
assimiladas a categorias sociais abstratas, como de classe. Chevalier concentra-se em uma com- dos ancestrais nativos são importantes na deini- Padoch, presumo fortemente que as comuni-
“sociedade nacional”, e suas especiicidades paração abstrata entre o sistema local de Puerto ção da identidade. É de importância particular dades ribeirinhas do Ucayali e Amazônia são
culturais são ignoradas. Inca e o dos Campa, tal qual foi apresentado para qualquer análise dessas comunidades uma transformações topológicas das comunidades
Em meu trabalho sobre o Baixo Urubamba por etnólogos como Bodley (1970) e Weiss. explicação sobre o que signiica ser Cocama na nativas que estudei. Um pequeno redireciona-
estava claro para mim que muitos aspectos do Entretanto, ele não fornece informações a res- Amazônia peruana contemporânea. Os Coca- mento do foco nos idiomas das comunidades,
sistema local deveriam ser generalizáveis para a peito das relações concretas entre as pessoas em ma são uma grande, porém vaga, população ao menos ênfase na ascendência comum e nos la-
Amazônia peruana. As relações de habilitacion Puerto Inca e os Campa, e muito pouco sobre longo dos rios Ucayali, Marañon e Amazonas, ços englobantes entre parentes e mais no com-
com suas imagens correlatas de classe e “raça”, como os primeiros falam atualmente dos últi- mas até agora têm atraído pouca atenção17. padrazgo – conduziria de uma a outra. Essas
certamente são gerais nesta região, como a mos. A área mais baixa da Pachitea parece simi- Um dos aspectos mais surpreendentes sobre a pequenas mudanças teriam profundos efeitos
imagem espacial da cidade, do rio e da loresta. lar ao Baixo Urubamba e suspeito fortemente vila descrita por Padoch é que uma comunidade nas formas atuais das comunidades, particu-
Igualmente a facilidade com que os homens de que a ideologia de “raças” e das “pessoas mistu- dessas possa se formar e durar sobre fundações larmente com referência à circulação da caça
Pucallpa ou do Ucayalli mais baixo participa- radas” deve ser tão penetrante no primeiro caso aparentemente tão heterogêneas. Não há raízes e ao peso empregado na identidade pessoal em
vam das relações de ainidade dos povos nativos quanto no último. na “tradição” e as pessoas que residiam nas vilas termos de “tipos de gente”. Na verdade, o úni-
locais sugere uma familiaridade anterior com Deve ser também interessante comparar as se liberavam do chefe que originalmente as trou- co signiicado que posso pensar para termos
tais padrões. O idioma do “sangue misturado” comunidades nativas do Baixo Urubamba com xera juntas. Mas esta comunidade faz claramen- como “ex-Ashaninka” ou “ex-Cocama” é na
era criterioso aqui. Tais homens deiniriam a si as atuais comunidades ribereño de Ucayali, mas te sentido para aquelas pessoas e a explicação situação onde “tipos de pessoas” são dispostos
mesmos como mestizos e freqüentemente evo- dispomos de pouca informação para a tarefa. que Padoch sugere é que ela seja organizada de na geração dos pais ou superior: onde “tipos de
cariam sua própria ascendência como vindo de Padoch, em sua descrição da ecologia do cam- uma maneira similar a das comunidades nativas pessoas” operam como identidade nas gerações
casamentos entre mulheres nativas amazônicas pesinato ribeirinho do Baixo Ucayali, fornece do Baixo Urubamba, guardadas certas diferen- ascendentes, mas isso não funciona como uma
e homens imigrantes. Suas relações com suas uma pequena amostra das possibilidades. Des- ças. Neste caso, a descendência dos ancestrais identidade pessoal para pessoas no presente.
esposas nativas a ains eram, portanto, ligadas crevendo a formação de uma aldeia de trabalha- Piro e Campa forma o coração do parentesco Essas especulações, e elas devem permanecer
por eles a suas próprias identidades pessoais e dores errantes ligados a um chefe, ele escreve: e fornece o cenário de conexões dominantes na como tal até que pesquisas conirmem ou re-
suas ações atuais ligadas em uma história de construção da comunidade enquanto parentes jeitem-nas, sugerem um novo cenário de possi-
tais ações. A nova comunidade foi composta por pessoas de interconectados. Isto é improvável no exemplo bilidades para interpretar a história amazônica.
Entretanto, é quase impossível saber se o diversas origens. Havia ex-Ashaninkas, ex-Coca- fornecido por Padoch. Entretanto, os povos na- Argumentei anteriormente que a organização
termo mestizo tem essa profundidade de signi- mas, mestiços que descendiam de uniões entre tivos da Amazônia peruana têm outros idiomas social das pessoas nativas do Baixo Urubam-
icados em outras partes da Amazônia peruana. Cocamas e europeus... Ex-Quechuas que junta- para pensar a comunidade enquanto parentes- ba era uma transformação topológica das or-
A maioria dos autores utiliza o termo como se ram-se ao grupo no Napo superior, várias mulhe- co, como o compadrazgo (compadrio)18. Padoch ganizações das comunidades “tradicionais” da
ele descrevesse algum grupo de pessoas coeren- res ex-Yagua da malfadada fazenda na Amazônia. não nos fornece nenhuma explicação para a na- Amazônia. Sugeri também que as interelações
te e deinido, separado dos indígenas (Chau- Todos consideravam-se ribeirinhos. (1988: 132) dessas comunidades com os sistemas regionais
meil 1983, 1984; d’Ans 1982; Luna 1986 ou 17. Lathrap (1970) e Roe (1988) também utilizam o ter- mais amplos são possíveis porque as pessoas na
mo “ex-Cocama” e não especiicam seus equivalentes
Siskind 1973). Entretanto, não existem análi- Padoch não fornece o contexto para essas Amazônia reconhecem sistemas transformacio-
locais.
ses sobre o signiicado do termo para as pessoas identiicações e eu nunca ouvi alguém na Ama- 18. Mauricio Fasabi uma vez descreveu a Comunidade nais e agem sobre eles. Esta parece ser a única
que o utilizam para descreverem a si mesmas. zônia peruana utilizando termos que poderiam de Santa Clara como tendo seu início em relações maneira pela qual podemos explicar a facilidade
Mesmo Chevalier (1982), um dos raros etnólo- corresponder a “ex-Ashaninka” ou “ex-Coca- de compadrazgo e só mais tarde desenvolveu, através relativa pela a qual as pessoas nativas no Baixo
gos a descrever em detalhe as relações sociais de ma”. A heterogeneidade dessa comunidade é dos casamentos de suas ilhas, em “todos os parentes”. Urubamba podem mudar para grandes cidades
uma pequena cidade ribeirinha (Puerto Inca, similar a das comunidades no Baixo Urubamba Transformações topológicas podem percorrer ambos como Pucallpa, pela qual os homens mestizos
os caminhos ao menos para certas pessoas.

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podem se mover para as comunidades nativas, investigação revelou para mim essas pessoas Dentro de poucos séculos, nesse mesmo lugar, Referências bibliográicas
pela qual um cenário de pessoas aparentemente enquanto agentes históricos ativos, com uma outro viajante tão desesperado quanto eu vai
aleatório pode criar a comunidade descrita por profunda consciência de seu passado, seu pre- lastimar o desaparecimento do que eu poderia ALVAREZ, Ricardo. 1957. “¿Piros en el Urubamba?”.
Padoch. Estou sugerindo que todas essas po- sente e suas possibilidades para o futuro. Con- ter visto, mas fracassei em ver (1973: 51). Missiones dominicanas, 38: 263-5.
_____.1970. Los Piros: Hijos de dioses. Lima: Heraclio
pulações heterogêneas da Amazônia ocidental forme me movia da história das pessoas nativas
Fournier SA.
se compreendem umas as outras, e é tarefa da do baixo Urubamba para uma análise do pa- Portanto, para Lévi-Strauss, o problema
ARHEM, Kaj. 1981. Makuna Social Organization: A Stu-
antropologia descobrir porque isso ocorre. rentesco e daí para a história para as pessoas central da história se refere às condições sobre dy in Descent, Alliance and the Formation of Corpora-
Como essa compreensão é possível? Não nativas do Baixo Urubamba, fui conduzido a as quais nós podemos conhecê-la. E porque te Groups in North-West Amazon. Uppsala Studies in
pode ser porque eles são todos “tradicional- um problema central: nossa ignorância sobre o não podemos vislumbrar o que aconteceu na Cultural Anthropology 4, Uppsala.
mente” o mesmo ou similares, porque in- que aconteceu no passado da Amazônia. Essa história amazônica, somos forçados a enfrentar BALDUS, Herbert. 1964. “O xamanismo na aculturação
as dolorosas tarefas da análise de evidências do- de uma tribo tupi do Brasil Central”, Revista do Museu
cluem modos de existência social que não ignorância é real, e até que algo seja feito a res-
Paulista, 15: 319-27.
tinham precedência na cultura pré-colombia- peito, não podemos entender como antropó- cumentais e da investigação etnográica. Como
BARCLAY, Frederica; SANTOS, Fernando. 1985. “Las
na, como grandes cidades e as haciendas. O logos a agência histórica das pessoas nativas da ato de aprender uma língua desconhecida, tal Comunidades nativas: Un etnocidio ideológico”.
sistema sócio-econômico da Amazônia oci- Amazônia. tarefa implica em aceitar as profundidades da Amazonía Indígena, 9: 3-4.
dental é produto da inserção do capitalismo Não há nada particularmente inusitado em nossa ignorância, ao mesmo tempo estender ao BARTH, Fredrik. 1969. (ed.), Ethnic Groups and Boun-
e está conectado aos mercados mundiais. Mas minha abordagem, desde que isso foi explo- máximo nosso limitado conhecimento. daries: the social organization of cultural diference. Bos-
Minha análise seguiu um dos pólos do pro- ton: Little, Brown.
este sistema de transformação não pode ser rado com ininita densidade por Lévi-Strauss,
BIDOU, Patrice. 1972. “Représentations de l’espace dans
explicado mediante a inserção do capitalismo que ainda é ritualmente castigado por igno- jeto de Lévi-Strauss, tendo em vista que me
la mythologie tatuyo (Indiens Tucano”. Journal de la
destruindo toda a variação local e a recolocan- rar a história (cf. Hill 1988). O que, então, preocupei com a etnograia mais do que com Societé das Americanistes, 61: 45-108.
do com o simples discurso “moderno” sobre a fazemos de Tristes Trópicos? Meditando sobre a história. Considerando seriamente o que as _____. 1977. “Nâitre et être tatuyo”. In J. Kaplan (ed.),
vida social, pois inclui grupos indígenas que sua jornada pelo Brasil Central, Lévi-Strauss pessoas nativas do Baixo Urubamba dizem so- Social Time and Social Space in Lowland South Ameri-
têm pouco ou mesmo nenhum contato com o questiona insistentemente sobre em que con- bre o passado, deixei de lado em grande parte can Societies: Actes du XLIIe Congrès International des
o problema da evidência histórica. Entretanto, Américanistes II, Paris.
“mundo moderno”. A prática atual das trans- dições nós podemos conhecer o passado e qual
BODLEY, John H. 1970. ‘Campa Socio-economic Adap-
formações topológicas da vida social da Ama- é a relevância de tal conhecimento19. História através do trabalho etnográico, habilitei-me a
tation’ (manuscript), Ann Arbor, Mich.
zônia Ocidental é apenas possível sob duas e etnograia se confrontam continuamente levantar importantes questões sobre esta his- BLOCH, Maurice. 1986. From Blessing to Violence: History
condições: que ela seja historicamente desen- nesse texto. Discutindo sua visita aos Mundé, tória cujas respostas somente podem ser for- and Ideology in the Circumcision Ritual of the Merina of
volvida; e que as pessoas nativas da Amazô- ele argumenta que a falta de tempo e recursos necidas pelas análises históricas. Não menos Madagascar.Cambrigde: Cambrigde University Press.
nia sejam os agentes centrais dessa evolução para um estudo etnográico apropriado torna importante entre essas é a agência histórica das BLU, Karen. 1980. he Lumbee Problem: he Making of
pessoas nativas amazônicas. Como Lévi-Strauss an American Indian People. Cambridge: Cambridge
histórica. Certamente não lhes faltou tempo sua experiência entre esses pristine savage sem
University Press.
para construírem esse sistema de transforma- sentido. Como Lévi-Strauss não dominava a anunciou há algum tempo:
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. 1972. O índio
ções das possibilidades já existentes. Em 1542 língua, os Mundé permanecem um enigma e o mundo dos broncos: Uma interpretação sociológica
Orellana descobriu a Amazônia e as pessoas para o antropólogo. Essa experiência enig- “O sociólogo, enquanto isso, deve sempre ter da situação dos Tukuna. São Paulo: Livraria Pioneira
da Amazônia descobriram a Europa. mática conirma a rejeição de Lévi-Strauss da em mente que as instituições primitivas não são Editora.
Uma análise completa desse complexo sis- prioridade da história: somente capazes de preservar o que existe, ou de CARRIER, James G. 1987. “History and Self-Concep-
tion in Ponam Society”. Man, 22: 111-31.
tema escapa ao escopo desse trabalho e, como guardar brevemente um passado despedaçado,
CASEVITZ, France-Marie. 1977. “Du proche au loin :
tenho dito, muita pesquisa histórica e etnográ- mas também de elaborar audaciosas inovações
Étude du fontionnement des systèmes dela parenté et
ica ainda está por ser feita. Neste estudo limi- mesmo que as estruturas tradicionais sejam pro- de l’alliance matsiguenga”. In J. Kaplan (ed.), Social
19. A importância da análise histórica no trabalho de
tei-me à etnograia de um pequeno número de fundamente transformadas”. ([1942]1976: 339) Time and Social Space in Lowland South American So-
Lévi-Strauss tem sido quase despercebida. Tristes
pessoas em poucas comunidades ao longo de Trópicos é ou ignorado ou mal lido por aqueles que cieties: Actes du XLIIe Congrès International des Améri-
um rio amazônico. Buscando a solução para comentam a discussão de Lévi-Strauss sobre o tempo, Já conhecemos bastante sobre as profundas canistes II, Paris.
transformações nas estruturas tradicionais na- CHAUMEIL, Jean-Pierre. 1983. Voir, savoir, pouvoir: Le
o problema colocado pela sua aparente “acul- por exemplo, Fabian (1983). Uma exceção é Maurice
Chamanisme chez les Yagua du nord-est du Pérou. Pa-
turação”, fui conduzido para uma análise de Bloch, que anunciou em um seminário no London tivas da Amazônia. Esse estudo investigou uma
School of Economics que Tristes Trópicos é um livro ob- ris : Éditions de l’École des Hautes Études en Science
suas próprias narrativas sobre o passado. Essa de suas inovações audaciosas. Sociales.
cecado com a história (Bloch 1986).

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 197-226, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 197-226, 2006
224 | Peter Gow Da etnografia à história | 225

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226 | Peter Gow

traduzido de Dilemas do Reconhecimento: apresentação ao


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artigo de nancy Fraser
University Press. pp. 1-20; 274-298.
HELOISA BUARQUE DE ALMEIDA
tradutor Anna Maria de Castro Andrade
Mestre em Antropologia Social / USP
he recognition dimension corresponds to the mas e gênero”1. Incorporando a teoria de gêne-
tradutor Jayne Hunger Collevatti status order of society, hence to the constitu- ro, Fraser analisa, discute e desconstrói alguns
Doutoranda em Antropologia Social / USP tion, by socially entrenched patterns of cultural conceitos da Teoria Crítica, demonstrando os
value, of culturally deined categories of social subtextos de gênero que atuam nas deinições
tradutor Ugo Maia Andrade actors – status groups – each distinguished by propostas por Habermas. Tal se dá, por exem-
Doutor em Antropologia Social / USP the relative honor, prestige and esteem it enjoys plo, a partir da suposta oposição de “tipos natu-
vis-à-vis the others. he distributive dimension, rais” entre a reprodução material e a reprodução
revisor Marta Amoroso in contrast, corresponds to the economic struc- simbólica – esta última relacionada ao trabalho
Professora do Departamento de Antropologia / USP ture of society, hence to the constitution, by feminino invisível e não remunerado de cuidar
property regimes and labor markets, of econo- das crianças, que ela destaca como trabalho tam-
revisor Jessie Sklair mically deined categories of actors, or classes, bém material e não apenas simbólico. Uma série
Mestranda em Antropologia Social / USP distinguished by their diferential endowments de categorias e deinições de Habermas que se
of resources (Fraser 2000: 117). desdobram desta primeira distinção são revistas
Recebido em 08/05/2006 em seu texto, como a distinção entre “contextos
Aceito para publicação em 15/01/2007 Nancy Fraser é professora de Ciência Políti- de ação socialmente integrados” e “contextos de
ca da New School de Nova Iorque, onde leciona ação sistemicamente integrados”. A relexão so-
disciplinas de teoria social e política e teoria bre a própria ciência remete a Foucault. Fraser,
feminista. Ainda pouco de sua produção foi como grande parte das teóricas contemporâneas
traduzida para o português. Apresento aqui – a sobre o gênero, revela esta evidente inspiração
convite da Cadernos de Campo e de Júlio Si- teórica em seu trabalho.
mões – alguns comentários sobre seu trabalho Nos anos 90, diante do im do socialismo,
e os temas que trata no artigo que segue. Para da intensiicação dos processos de globaliza-
a antropologia, sua problematização da cultu- ção e da visibilidade da presença da política
ra como um lugar de disputas por deinições, das identidades no âmbito dos movimentos
de luta por sentidos simbólicos e de perigosas sociais, o pensamento social e a teoria política
reiicações (essencializantes) é um tema de ex- passaram a enfrentar de forma crescente os ou-
trema relevância. tros eixos de desigualdade social para além das
A relexão de Nancy Fraser parte de duas classes. Nancy Fraser já reletia sobre a questão
vertentes: da Teoria Crítica e sua análise so- a partir da teoria de gênero.
bre participação política, democracia, justiça,
sociedade civil e esfera pública, com foco na
1. Publicado em Benhabib & Cornell (1987: 31–55).
questão da desigualdade de classes; e por outro Há uma versão portuguesa na revista Ex Aequo, da
lado, da teoria feminista e de gênero pós-estru- Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres,
turalista. Um exemplo da proposta crítica de de 2003. Nesta coletânea e neste número da revista
Fraser é sua análise do trabalho de Habermas, encontram-se trabalhos de outras autoras com quem
em “O que é crítico na teoria crítica? Haber- Fraser dialoga e debate intensamente, como Carole
Patemen, Seyla Benhabib, Iris Young e Judith Butler.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 197-226, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006
228 | Heloisa Buarque de Almeida Dilemas do Reconhecimento | 229

As analogias entre a teoria de gênero e aquelas Fraser propõe no artigo que o foco esteja nas pois são ambos exemplos de coletividades biva- de cultura. “A cultura é um terreno legítimo
questões trazidas pelas diferenças raciais, étnicas duas dimensões. Por um lado na justiça eco- lentes que revelam tanto problemas de redistri- e mesmo necessário de disputas, um espaço de
e culturais se tornam evidentes. Movimentos nômica pela redistribuição, e por outro no re- buição como de reconhecimento. A distinção injustiça em si mesmo, e fortemente imbricado
sociais recrudescem na defesa de determinadas conhecimento cultural e o devido respeito às lhe parece mais fundamental quando discute os com a desigualdade econômica” (: 109). Cultu-
identidades, por um lado, ao passo que a teoria diferenças. Trata-se de uma distinção analítica remédios para compensar tais demandas e suas ra não é um todo fechado, nem uma unidade.
pós-estruturalista questiona a essencialização entre dois campos: um mais propriamente da complexidades – o remédio para redistribuição É um lugar de disputas de sentido, associadas
destas identidades promovidas pelo movimen- economia política e outro cultural, embora ela reforçaria a igualdade, ao passo que o remédio a formas de desigualdade econômica e política.
to social e pelo senso comum, demonstrando considere as correlações entre eles. Fraser desta- para o reconhecimento marcaria a diferença e Há sentidos que podem desvalorizar e colocar
como são construtos sociais, políticos e histó- ca neste e noutros trabalhos que não é possível a especiicidade do grupo. A aproximação en- alguns indivíduos em posições sociais desfa-
ricos, e desnaturalizando alguns de seus aspec- excluir do debate a dimensão da desigualdade tre gênero e raça também é feita teoricamente voráveis. Em “Rethinking Recognition”, Fraser
tos. Na teoria de gênero anglo-saxã esta questão econômica e de classes no sentido estrito, e air- pela desnaturalização e desconstrução das di- destaca que está usando o conceito de classe so-
torna-se evidente e ponto central de relexão ma que esse tema estaria perdendo espaço na ferenças, quer seja pela desconstrução do sexo cial no sentido de status de Weber. Relaciona a
de algumas autoras (como Judith Butler, com agenda política e teórica contemporânea com operada pelo próprio conceito do gênero, ou questão do reconhecimento ao status individual
quem Fraser mantém um longo debate). Mes- o im do socialismo e a crescente ampliação do pela desconstrução da “raça” ou da identidade e ao acesso às formas de poder. “A dimensão do
mo quando tais teóricos estão comprometidos processo de globalização. Mais do que isso, a étnica. Este texto revela como Fraser agrega a reconhecimento (...) refere-se à subordinação
com o movimento político, ou seja, defendem autora defende que o apagamento da questão uma mesma proposta teórica aspectos centrais de status, enraizada em padrões instituciona-
uma prática política feminista ou anti-racista, de classe estaria sendo impulsionado por uma advindos da Teoria Crítica e a contribuição es- lizados de valor cultural” (: 117). O não-re-
a teoria provoca dilemas e impasses para o mo- visão que tende a negar o problema da desi- pecíica do pós-estruturalismo. conhecimento (misrecognition) torna-se uma
vimento, pois este se baseia em categorias uni- gualdade econômica e de classes como se ela Noutro artigo, “Rethinking Recognition” forma institucionalizada de subordinação.
icadas, como “mulher” ou “negro”. Ademais, pudesse ser superada no mundo do consumo (maio-junho 2000), Fraser relete como as Os sentidos dados ao feminino, à negritu-
mesmo no âmbito dos movimentos sociais tais e das especiicidades identitárias, e como se tal demandas por reconhecimento podem variar de, à pobreza, à homossexualidade, podem as-
categorias foram problematizadas pela percep- não izesse mais sentido num mundo “pós-so- desde movimentos emancipatórios até a for- sim afetar as formas institucionais – como as
ção de um mundo social marcado por múltiplas cialista”. Para Fraser é preciso ter um modelo ma perversa como a noção de uma identidade leis propriamente, que podem invisibilizar tais
diferenças e desigualdades – de classe, “raça”, bidimensional em termos analíticos, mesmo cultural reiicada e essencializada é usada em grupos, gerando e promovendo desigualdade
etnia ou cultura, gênero, sexualidade, entre ou- que na prática tal distinção seja difícil e ainda campanhas de “limpeza étnica” e genocídio de acesso a direitos. A cultura construída na so-
tros. Esta percepção coloca novos dilemas para que seja evidente que em vários exemplos em- (os exemplos são a guerra dos Bálcãs e Ruan- ciedade contemporânea é marcada por formas
os movimentos sociais, mas também para a teo- píricos a desvalorização cultural de um grupo da). Neste trabalho, ela pergunta por que os de desigualdades e de “naturalização” destas em
ria de gênero, para os estudos sobre raça e para esteja diretamente relacionada a seu acesso a re- conlitos teriam tomado esta forma e por que categorias culturais, mesmo em instituições e
a teoria social. cursos e direitos, ao passo que seu menor acesso movimentos tão variados teriam baseado suas formatos como a própria ciência, que não pre-
O texto de Fraser que é traduzido a seguir2 a recursos promova uma construção simbólica demandas no idioma do reconhecimento e da tendem ser discriminatórios.
insere-se em um debate mais amplo da autora como um grupo que “vale menos”. A distin- identidade apenas. Problematizam estas formas O texto aqui traduzido é uma boa introdu-
com Axel Honneth, que, ao lado de Charles ção é mais evidente nos exemplos opostos de reiicadas de identidade, construções que ser- ção a sua análise bidimensional: para usar ter-
Taylor, reforça que a questão central do mundo movimentos sociais calcados na diferença de vem a violentas ações de padronização de uma mos foucaultianos, a materialidade é também
contemporâneo é a luta por reconhecimento3. classe – com foco na questão da distribuição comunidade que não aceita dissensos internos produzida pelo discurso (cultura). Mas para
de maneira mais evidente, embora contemple o e nega o respeito à diferença. O que me pa- Fraser materialidade e discurso nem sempre
2. A primeira versão, mais longa do que esta tradução, componente cultural –, por oposição ao exem- rece mais interessante para a antropologia é estão coladas de modo evidente, necessitam de
foi publicada em 1995, e uma versão ainda mais ex- plo dos movimentos calcados na sexualidade, que, ali, sua proposta descola o reconhecimen- um olhar analítico que os distingam, pelo me-
pandida está em seu livro Justice Interruptus: Critical
como o movimento homossexual – cujo foco to da questão da identidade, e aproxima-se da nos em teoria, e que busque interpretar suas
Relections on the “Postsocialist” Condition (1997).
3. O debate entre Honneth e Fraser é explicitado no seria o reconhecimento, embora sua desvalori- problemática da cultura e de suas formas va- formas de interação. Esta distinção lhe parece
livro de Nancy Fraser & Axel Honneth, Redistribu- zação cultural afete seu acesso a direitos, como lorativas. Naquele texto, assim com no ensaio central para não se correr o risco de deslocar o
tion or Recognition? A Political-Philosophical Exchange direitos relativos ao casamento. aqui traduzido por Júlio Simões, o problema problema da redistribuição, escondendo-o ou
([1998] 2003). O trabalho de Honneth tem também Outro aspecto relevante deste artigo é a do reconhecimento está atrelado a uma versão marginalizando-o sob a crescente valorização
uma tradução para o português, intitulado Luta por aproximação evidente entre gênero e “raça”, não unitária, não unívoca e não consensual do reconhecimento.
Reconhecimento (Honneth 2003).

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 227-230, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 227-230, 2006
230 | Heloisa Buarque de Almeida

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que: on the politics of gender. Minneapolis: University
te se tornando a forma paradigmática de conlito senta um lapso de “falsa consciência”? Ou seria
of Minnesota Press, pp. 31-55. político no inal do século XX. Demandas por mais um meio de compensar a cegueira cultural
“reconhecimento da diferença” dão combustível de um paradigma marxista posto em descrédito
às lutas de grupos mobilizados sob as bandeiras pelo colapso do comunismo soviético?
da nacionalidade, etnicidade, “raça”, gênero e Nenhuma das duas posições é adequada,
autor Heloisa Buarque de Almeida
sexualidade. Nestes conlitos “pós-socialistas”, a a meu ver. Ambas são demasiado abrangentes
Professora do Departamento de Antropologia / USP
identidade de grupo suplanta o interesse de clas- e sem nuanças. Ao invés de simplesmente en-
Editou a Cadernos de Campo nos 1 a 3
se como o meio principal da mobilização políti- dossar ou rejeitar o que é simplório na política
ca. A dominação cultural suplanta a exploração da identidade, devíamos nos dar conta de que
Recebido em 22/12/2006
como a injustiça fundamental. E o reconheci- temos pela frente uma nova tarefa intelectual
Aceito para publicação em 22/01/2007
mento cultural toma o lugar da redistribuição e prática: a de desenvolver uma teoria crítica
socioeconômica como remédio para a injustiça do reconhecimento, que identiique e assuma
e objetivo da luta política. a defesa somente daquelas versões da política
Claro que esta não é toda a história. Lutas cultural da diferença que possam ser combi-
pelo reconhecimento ocorrem num mundo de nadas coerentemente com a política social da
exacerbada desigualdade material – desigual- igualdade.
dades de renda e propriedade; de acesso a tra- Ao formular esse projeto, assumo que a jus-
balho remunerado, educação, saúde e lazer; e tiça hoje exige tanto redistribuição como reco-
também, mais cruamente, de ingestão calórica nhecimento. E proponho examinar a relação
e exposição à contaminação ambiental; portan- entre eles. Isso signiica, em parte, pensar em
to, de expectativa de vida e de taxas de mor- como conceituar reconhecimento cultural e
bidade e mortalidade. A desigualdade material igualdade social de forma a que sustentem um
está em alta na maioria dos países do mundo ao outro, ao invés de se aniquilarem (pois há
– nos EUA e na China, na Suécia e na Índia, na muitas concepções concorrentes de ambos!)
Rússia e no Brasil. Ela também aumenta glo- Signiica também teorizar a respeito dos meios
balmente, de modo mais dramático, do outro pelos quais a privação econômica e o desrespei-
lado da linha que divide norte e sul. to cultural se entrelaçam e sustentam simulta-
Como, então, devemos ver o eclipse de um neamente. Exige também, portanto, esclarecer
imaginário socialista centrado em termos como os dilemas políticos que surgem quando ten-
“interesse”, “exploração” e “redistribuição”? E tamos combater as duas injustiças ao mesmo
o que devemos fazer com a emergência de um tempo.
novo imaginário político centrado nas noções Meu objetivo maior é ligar duas problemá-
de “identidade”, “diferença”, “dominação cul- ticas políticas atualmente dissociadas; pois é

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 227-230, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006
232 | Nancy Fraser Da redistribuição ao reconhecimento? | 233

somente integrando reconhecimento e redis- interpretativas e representacionais autorizadas reconhecimento assumem com freqüência a As coisas icam mais turvas, porém, à medi-
tribuição que chegaremos a um quadro concei- da própria cultura); e o desrespeito (ser difa- forma de chamar a atenção para a presumida da que nos afastamos das extremidades. Quan-
tual adequado às demandas de nossa era. mado ou desqualiicado rotineiramente nas re- especiicidade de algum grupo – ou mesmo do consideramos coletividades localizadas na
[...] presentações culturais públicas estereotipadas de criá-la performativamente – e, portanto, região intermediária do espectro conceitual,
Para ajudar a esclarecer esta situação e as e/ou nas interações da vida cotidiana). airmar seu valor. Desse modo, elas tendem encontramos tipos híbridos que combinam
perspectivas políticas que ela apresenta, pro- [...] a promover a diferenciação do grupo. Lu- características da classe explorada com carac-
ponho distinguir analiticamente duas maneiras Insistirei em distinguir analiticamente in- tas de redistribuição, em contraste, buscam terísticas da sexualidade desprezada. Essas co-
muito genéricas de compreender a injustiça. A justiça econômica e injustiça cultural, em que com freqüência abolir os arranjos econômi- letividades são “bivalentes”. São diferenciadas
primeira delas é a injustiça econômica, que se pese seu mútuo entrelaçamento. O remédio cos que embasam a especiicidade do grupo como coletividades tanto em virtude da estru-
radica na estrutura econômico-política da so- para a injustiça econômica é alguma espécie de (um exemplo seriam as demandas feministas tura econômico-política quanto da estrutura
ciedade. Seus exemplos incluem a exploração reestruturação político-econômica. Pode en- para abolir a divisão do trabalho segundo o cultural-valorativa da sociedade. Oprimidas
(ser expropriado do fruto do próprio trabalho volver redistribuição de renda, reorganização gênero). Desse modo, elas tendem a promo- ou subordinadas, portanto, sofrem injustiças
em benefício de outros); a marginalização eco- da divisão do trabalho, controles democráticos ver a desdiferenciação do grupo. O resultado é que remontam simultaneamente à economia
nômica (ser obrigado a um trabalho indesejável do investimento ou a transformação de outras que a política do reconhecimento e a políti- política e à cultura. Coletividades bivalentes,
e mal pago, como também não ter acesso a tra- estruturas econômicas básicas. Embora esses ca da redistribuição parecem ter com freqü- em suma, podem sofrer da má distribuição so-
balho remunerado); e a privação (não ter acesso vários remédios diiram signiicativamente ência objetivos mutuamente contraditórios. cioeconômica e da desconsideração cultural de
a um padrão de vida material adequado). entre si, doravante vou me referir a todo esse Enquanto a primeira tende a promover a di- forma que nenhuma dessas injustiças seja um
Teóricos igualitários empreenderam gran- grupo pelo termo genérico “redistribuição”. O ferenciação do grupo, a segunda tende a de- efeito indireto da outra, mas ambas primárias
de esforço para conceituar a natureza dessas remédio para a injustiça cultural, em contraste, sestabilizá-la. Desse modo, os dois tipos de e co-originais. Nesse caso, nem os remédios de
injustiças socioeconômicas. Suas concepções é alguma espécie de mudança cultural ou sim- luta estão em tensão; um pode interferir no redistribuição nem os de reconhecimento, por
incluem a teoria de Marx sobre a exploração bólica. Pode envolver a revalorização das iden- outro, ou mesmo agir contra o outro. si sós, são suicientes. Coletividades bivalentes
capitalista; a concepção de justiça de Rawls, tidades desrespeitadas e dos produtos culturais Eis, então, um difícil dilema. Doravante necessitam dos dois.
como justiça na seleção dos princípios que dos grupos difamados. Pode envolver, também, vou chamá-lo dilema da redistribuição-reco- Gênero e “raça” são paradigmas de coleti-
regem a distribuição dos “bens primários”; a o reconhecimento e a valorização positiva da nhecimento. Pessoas sujeitas à injustiça cul- vidades bivalentes. Embora cada qual tenha
visão de Amartya Sen, de que justiça implica diversidade cultural. Mais radicalmente ainda, tural e à injustiça econômica necessitam de peculiaridades não compartilhadas pela outra,
“capacidades de função” iguais; e a de Ronald pode envolver uma transformação abrangente reconhecimento e redistribuição. Necessitam ambas abarcam dimensões econômicas e di-
Dworkin, de que justiça implica “igualdade de dos padrões sociais de representação, interpre- de ambos para reivindicar e negar sua especii- mensões cultural-valorativas. Gênero e “raça”,
recursos”. Para meus propósitos neste trabalho, tação e comunicação, de modo a transformar o cidade. Como isso é possível? portanto, implicam tanto redistribuição quan-
porém, não precisamos nos comprometer com sentido do eu de todas as pessoas. Embora esses [...] to reconhecimento.
nenhuma visão teórica em particular. Precisa- remédios diiram signiicativamente entre si, As coisas são bem claras nas duas extremi- O gênero, por exemplo, tem dimensões
mos apenas subscrever uma compreensão geral doravante vou me referir a todo esse grupo pelo dades de nosso espectro conceitual. Quando econômico-políticas porque é um princípio
e rudimentar da injustiça socioeconômica in- termo genérico “reconhecimento”. lidamos com coletividades que se aproximam estruturante básico da economia política. Por
formada por um compromisso com o iguali- [...] do tipo ideal da classe trabalhadora explorada, um lado, o gênero estrutura a divisão funda-
tarismo. Postas estas distinções, posso passar agora encaramos injustiças distributivas que precisam mental entre trabalho “produtivo” remune-
A segunda maneira de compreender a in- à questão seguinte: qual é a relação entre lutas de remédios redistributivos. Quando lidamos rado e trabalho “reprodutivo” e doméstico
justiça é cultural ou simbólica. Aqui a injustiça por reconhecimento, voltadas para remediar com coletividades que se aproximam do tipo não-remunerado, atribuindo às mulheres a
se radica nos padrões sociais de representação, a injustiça cultural, e lutas por redistribuição, ideal da sexualidade desprezada, em contraste, responsabilidade primordial por este último.
interpretação e comunicação. Seus exemplos voltadas para compensar a injustiça econômica? encaramos injustiças de discriminação negativa Por outro lado, o gênero também estrutura a
incluem a dominação cultural (ser submeti- E que espécie de interferências mútuas podem que precisam de remédios de reconhecimento. divisão interna ao trabalho remunerado entre
do a padrões de interpretação e comunicação brotar quando os dois tipos de reivindicação são No primeiro caso, a lógica do remédio é acabar as ocupações proissionais e manufatureiras de
associados a outra cultura, alheios e/ou hostis feitos simultaneamente? com esse negócio de grupo; no segundo caso, ao remuneração mais alta, em que predominam
à sua própria); o ocultamento (tornar-se in- Existem boas razões para se preocupar contrário, trata-se de valorizar o “sentido de gru- os homens, e ocupações de “colarinho rosa” e
visível por efeito das práticas comunicativas, com essas interferências mútuas. Lutas de po” do grupo, reconhecendo sua especiicidade. de serviços domésticos, de baixa remuneração,

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em que predominam as mulheres. O resultado nalizantes, objetiicadoras e humilhantes na injustiça de gênero, portanto, é preciso mudar a e “supérluo” que não vale a pena ser explorado
é uma estrutura econômico-política que en- mídia; o assédio e a desqualiicação em todas economia política e a cultura. e é totalmente excluído do sistema produtivo.
gendra modos de exploração, marginalização as esferas da vida cotidiana; a sujeição às nor- Mas o caráter bivalente do gênero é a fonte O resultado é uma estrutura econômico-políti-
e privação especiicamente marcados pelo gê- mas androcêntricas, que fazem com que as mu- de um dilema. Uma vez que as mulheres sofrem, ca que engendra modos de exploração, margi-
nero. Esta estrutura constitui o gênero como lheres pareçam inferiores ou desviantes e que no mínimo, de dois tipos de injustiça analitica- nalização e privação especiicamente marcados
uma diferenciação econômico-política dotada contribuem para mantê-las em desvantagem, mente distintos, elas necessariamente precisam, pela “raça”. Essa estrutura constitui a raça como
de certas características da classe. Sob esse as- mesmo na ausência de qualquer intenção de no mínimo, de dois tipos de remédios analiti- uma diferenciação econômico-política dota-
pecto, a injustiça de gênero aparece como uma discriminar; a discriminação atitudinal; a ex- camente distintos: redistribuição e reconheci- da de certas características de classe. Sob esse
espécie de injustiça distributiva que clama por clusão ou marginalização das esferas públicas mento. Os dois remédios pendem para direções aspecto, a injustiça racial aparece como uma
compensações redistributivas. De modo muito e centros de decisão; e a negação de direitos le- opostas, porém, e não é fácil persegui-las ao espécie de injustiça distributiva que clama por
semelhante à classe, a injustiça de gênero exi- gais plenos e proteções igualitárias. Esses danos mesmo tempo. Enquanto a lógica da redistri- compensações redistributivas. De modo mui-
ge a transformação da economia política para são injustiças de reconhecimento. São relati- buição é acabar com esse negócio de gênero, a to semelhante à classe, a injustiça racial exige
que se elimine a estruturação de gênero desta. vamente independentes da economia política lógica do reconhecimento é valorizar a especii- a transformação da economia política para que
Para eliminar a exploração, marginalização e e não são meramente “superestruturais”. Por cidade de gênero. Eis, então, a versão feminista se elimine a racialização desta. Para eliminar a
privação especiicamente marcadas pelo gênero isso, não podem ser remediados apenas pela do dilema da redistribuição-reconhecimento: exploração, marginalização e privação especii-
é preciso abolir a divisão do trabalho segundo redistribuição econômico-política, mas preci- como as feministas podem lutar ao mesmo tem- camente marcadas pela “raça” é preciso abolir
ele – a divisão de gênero entre trabalho remu- sam de medidas independentes e adicionais de po para abolir a diferenciação de gênero e para a divisão racial do trabalho – a divisão racial
nerado e não-remunerado e dentro do trabalho reconhecimento. O androcentrismo e sexismo valorizar a especiicidade de gênero? entre trabalho explorável e supérluo e a divisão
remunerado. A lógica do remédio é semelhante predominantes exigem a mudança dos valores Um dilema análogo aparece na luta con- racial dentro do trabalho remunerado. A lógi-
à lógica relativa à classe: trata-se de acabar com culturais (assim como de suas expressões legais tra o racismo. A “raça”, como o gênero, é um ca do remédio é semelhante à lógica relativa à
esse negócio de gênero. Se o gênero não é nada e práticas) que privilegiam a masculinidade e modo bivalente de coletividade. Por um lado, classe: trata-se de fazer com que a “raça” ique
mais do que uma diferenciação econômico- negam respeito às mulheres. Exigem o descen- ela se assemelha à classe, sendo um princípio fora do negócio. Se a “raça” não é nada mais do
política, a justiça exige, em suma, que ele seja tramento das normas androcêntricas e a revalo- estrutural da economia política. Neste aspec- que uma diferenciação econômico-política, a
abolido. rização de um gênero desprezado. A lógica do to, a “raça” estrutura a divisão capitalista do justiça exige, em suma, que ela seja abolida.
Isso, no entanto, é apenas uma parte da remédio é semelhante à lógica relativa à sexu- trabalho. Ela estrutura a divisão dentro do Entretanto, a raça, como o gênero, não
história. Na verdade, o gênero não é somen- alidade: conceder reconhecimento positivo a trabalho remunerado, entre as ocupações de é somente econômico-política. Ela também
te uma diferenciação econômico-política, mas um grupo especiicamente desvalorizado. baixa remuneração, baixo status, enfadonhas, tem dimensões culturais-valorativas, que a
também uma diferenciação de valoração cul- O gênero é, em suma, um modo bivalente de sujas e domésticas, mantidas desproporcional- inserem no universo do reconhecimento. As-
tural. Como tal, ele também abarca elementos coletividade. Ele contém uma face de economia mente pelas pessoas de cor, e as ocupações de sim, a “raça” também abarca elementos mais
que se assemelham mais à sexualidade do que política, que o insere no âmbito da redistribui- remuneração mais elevada, de maior status, de parecidos com a sexualidade do que com
à classe, e isso permite enquadrá-lo na proble- ção. Mas também uma face cultural-valorativa, “colarinho branco”, proissionais, técnicas e ge- a classe. Um aspecto central do racismo é o
mática do reconhecimento. Seguramente, uma que simultaneamente o insere no âmbito do re- renciais, mantidas desproporcionalmente pelos eurocentrismo: a construção autorizada de
característica central da injustiça de gênero é conhecimento. Naturalmente, as duas faces não “brancos”. A divisão racial contemporânea do normas que privilegiam os traços associados
o androcentrismo: a construção autorizada de são claramente separadas uma da outra. Elas se trabalho remunerado faz parte do legado his- com o “ser branco”. Em sua companhia está
normas que privilegiam os traços associados à entrelaçam para se reforçarem entre si dialetica- tórico do colonialismo e da escravidão, que o racismo cultural: a desqualiicação genera-
masculinidade. Em sua companhia está o se- mente porque as normas culturais sexistas e an- elaborou categorizações raciais para justiicar lizada das coisas codiicadas como “negras”,
xismo cultural: a desqualiicação generalizada drocêntricas estão institucionalizadas no Estado formas novas e brutais de apropriação e explo- “pardas” e “amarelas”, paradigmaticamente
das coisas codiicadas como “femininas”, para- e na economia e a desvantagem econômica das ração, constituindo efetivamente os “negros” – mas não só – as pessoas de cor. Esta depre-
digmaticamente – mas não só –, as mulheres. mulheres restringe a “voz” das mulheres, impe- como uma casta econômico-política. Atual- ciação se expressa numa variedade de danos
Essa desvalorização se expressa numa variedade dindo a participação igualitária na formação da mente, além disso, a “raça” também estrutura sofridos pelas pessoas de cor, incluindo re-
de danos sofridos pelas mulheres, incluindo cultura, nas esferas públicas e na vida cotidiana. o acesso ao mercado de trabalho formal, cons- presentações estereotipadas e humilhantes na
a violência e a exploração sexual, a violência O resultado é um círculo vicioso de subordi- tituindo vastos segmentos da população de cor mídia, como criminosos, brutais, primitivos,
doméstica generalizada; as representações ba- nação cultural e econômica. Para compensar a como subploretariado ou subclasse, degradado estúpidos etc; violência, assédio e difamação

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em todas as esferas da vida cotidiana; sujei- classe, que ocupa uma das extremidades do es- Vou começar por uma breve distinção entre do substantivo, muito semelhante à etnicidade
ção às normas eurocêntricas que fazem com pectro conceitual, e da sexualidade, que ocupa a airmação e transformação. Por remédios air- (ou à visão de senso comum desta). Assume-se
que as pessoas de cor pareçam inferiores ou outra, gênero e “raça” são bivalentes, implicados mativos para a injustiça, entendo os remédios que essa positividade subsiste em si e de si mes-
desviantes e que contribuem para mantê-las ao mesmo tempo na política de redistribuição e voltados para corrigir efeitos desiguais de arran- ma, necessitando somente de reconhecimento
em desvantagem mesmo na ausência de qual- na política do reconhecimento. Ambos, conse- jos sociais sem abalar a estrutura subjacente que adicional. A política queer, em contraste, trata
quer intenção de discriminar; a discriminação qüentemente, enfrentam o dilema da redistri- os engendra. Por remédios transformativos, em a homossexualidade como um correlato cons-
atitudinal; a exclusão e/ou marginalização buição-reconhecimento. As feministas devem contraste, entendo os remédios voltados para truído e desvalorizado da heterossexualidade;
das esferas públicas e centros de decisão; e a buscar remédios que dissolvam a diferenciação corrigir efeitos desiguais precisamente por meio ambas são reiicações da ambigüidade sexual
negação de direitos legais plenos e proteções de gênero, enquanto buscam também remédios da remodelação da estrutura gerativa subjacen- e são co-deinidas somente uma em relação à
igualitárias. Como no caso do gênero, esses culturais que valorizem a especiicidade de uma te. O ponto crucial do contraste é efeitos ter- outra. O objetivo transformativo não é conso-
danos são injustiças de reconhecimento. Por coletividade desprezada. Os anti-racistas, da minais vs. processos que os produzem – e não lidar uma identidade gay, mas desconstruir a
isso, a lógica do remédio também é conceder mesma maneira, devem buscar remédios eco- mudança gradual vs. mudança apocalíptica. dicotomia homo-hétero de modo a desestabili-
reconhecimento positivo a um grupo especii- nômico-políticos que dissolvam a diferenciação Pode-se aplicar essa distinção, primeira- zar todas as identidades sexuais ixas. A questão
camente desvalorizado. “racial”, enquanto buscam também remédios mente, aos remédios para a injustiça cultural. não é dissolver toda a diferença sexual numa
A “raça” também é, portanto, um modo culturais que valorizem a especiicidade de co- Remédios airmativos para tais injustiças são identidade humana única e universal; mas sim
bivalente de coletividade com uma face eco- letividades desprezadas. Como podem fazer as presentemente associados ao que vou chamar manter um campo sexual de diferenças múl-
nômico-política e uma face cultural-valorativa. duas coisas ao mesmo tempo? “multiculturalismo mainstream”. Essa espé- tiplas, não-binárias, luidas, sempre em movi-
Suas duas faces se entrelaçam para se reforça- Até aqui, apresentei o dilema da redistri- cie de multiculturalismo propõe compensar mento.
rem uma à outra, dialeticamente, ainda mais buição-reconhecimento de uma forma que o desrespeito por meio da revalorização das As duas abordagens são de considerável
porque as normas culturais racistas e eurocên- parece completamente intratável. Assumi que identidades grupais injustamente desvalori- interesse como remédios para a ausência de
tricas estão institucionalizadas no Estado e na os remédios redistributivos para a injustiça eco- zadas, enquanto deixa intactos os conteúdos reconhecimento. Mas há uma diferença con-
economia, e a desvantagem econômica sofrida nômico-política sempre diferenciam os grupos dessas identidades e as diferenciações grupais siderável entre elas. Enquanto a política de
pelas pessoas de cor restringe sua “voz”. Para sociais. Da mesma maneira, assumi que os subjacentes a elas. Remédios transformativos, identidade gay tende a realçar a diferenciação
compensar a injustiça racial, portanto, é preci- remédios de reconhecimento para a injustiça em contraste, são presentemente associados à de grupo sexual existente, a política queer tende
so mudar a economia política e a cultura. Mas, cultural-valorativa sempre realçam a diferen- desconstrução. Eles compensariam o desrespei- a desestabilizá-la – no mínimo, ostensivamen-
como ocorre com o gênero, o caráter bivalen- ciação do grupo social. Diante dessas posições, to por meio da transformação da estrutura cul- te e no longo prazo. A observação vale para os
te da “raça” é a fonte de um dilema. Uma vez é difícil ver como feministas e anti-racistas po- tural-valorativa subjacente. Desestabilizando as remédios de reconhecimento, de modo geral.
que as pessoas de cor sofrem, no mínimo, de dem buscar redistribuição e reconhecimento ao identidades e diferenciações grupais existentes, Enquanto os remédios de reconhecimento air-
dois tipos de injustiça analiticamente distintos, mesmo tempo. esses remédios não somente elevariam a auto- mativos tendem a promover as diferenciações
elas necessariamente precisam, no mínimo, de Agora, porém, quero complicar essas po- estima dos membros de grupos presentemente de grupo existentes, os remédios de reconhe-
dois tipos de remédios analiticamente distin- sições. Nesta seção, vou examinar concepções desrespeitados; eles transformariam o sentido cimento transformativos tendem, no longo
tos: redistribuição e reconhecimento, que não alternativas de redistribuição, de um lado, e do eu de todos. prazo, a desestabilizá-las, a im de abrir espaço
são facilmente conciliáveis. Enquanto a lógica concepções alternativas de reconhecimento, de Para ilustrar a distinção, vamos considerar, para futuros reagrupamentos.
da redistribuição é acabar com esse negócio de outro. Meu objetivo é distinguir duas grandes mais uma vez, o caso da sexualidade despreza- [...]
“raça”, a lógica do reconhecimento é valorizar abordagens para corrigir a injustiça que atraves- da. Remédios airmativos para a homofobia e Distinções análogas valem para os remédios
a especiicidade do grupo. Eis, então, a versão sam o divisor da redistribuição-reconhecimento. o heterossexismo são presentemente associados para a injustiça econômica. Os remédios air-
anti-racista do dilema da redistribuição-reco- Vou chamá-las de “airmação” e “transforma- com a política de identidade gay, que visa a re- mativos para essas injustiças estão associados
nhecimento: como os anti-racistas podem lu- ção”, respectivamente. Após apresentá-las gene- valorizar a identidade gay e lésbica. Remédios historicamente ao Estado de bem-estar liberal.
tar ao mesmo tempo para abolir a “raça” e para ricamente, mostrarei como cada uma opera em transformativos, em contraste, são associados à Eles buscam compensar a má distribuição ter-
valorizar a especiicidade cultural dos grupos relação à redistribuição e ao reconhecimento. política queer, que se propõe a desconstruir a minal, enquanto deixam intacta a maior parte
racializados subordinados? Por im, a partir dessa base, vou reformular o dicotomia homo-hétero. A política de identi- da estrutura econômico-política subjacente. As-
Gênero e “raça” são, em suma, modos di- dilema da redistribuição-reconhecimento para dade gay trata a homossexualidade como uma sim, eles aumentariam a parte de consumo dos
lemáticos de coletividade. Diferentemente da uma forma mais aberta a uma resolução. positividade cultural, com seu próprio conteú- grupos economicamente desprivilegiados, sem

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reestruturar o sistema de produção. Remédios e generosidade imerecida. Assim, uma abor- Essa abordagem é internamente consisten- des do espectro conceitual. Contrastamos os
transformativos, em contraste, são associados dagem voltada para compensar injustiças de te. Como a redistribuição airmativa, a redistri- efeitos divergentes dos remédios airmativos e
historicamente ao socialismo. Eles compen- distribuição pode acabar criando injustiças de buição transformativa em geral pressupõe uma transformativos para as injustiças distributivas
sariam a distribuição injusta transformando a reconhecimento. concepção universalista de reconhecimento, a de classe, enraizadas economicamente, de um
estrutura econômico-política existente. Rees- Em certo sentido, esta abordagem é inter- igualdade de valor moral das pessoas. Diferen- lado, e para as injustiças de reconhecimento da
truturando as relações de produção, esses re- namente contraditória. A redistribuição air- te da redistribuição airmativa, contudo, sua sexualidade, enraizadas culturalmente, de ou-
médios não somente alterariam a distribuição mativa, em geral, pressupõe uma concepção prática tende a não dissolver essa concepção. tro. Vimos que remédios airmativos tendem,
terminal das partes de consumo; mudariam universalista de reconhecimento, a igualdade Assim, as duas abordagens engendram diferen- em geral, a promover a diferenciação de grupo,
também a divisão social do trabalho e, assim, de valor moral das pessoas. Vamos chamar tes lógicas de diferenciação de grupo. Enquan- enquanto remédios transformativos tendem a
as condições de existência de todos. isso seu “compromisso formal de reconheci- to os remédios airmativos podem ter o efeito desestabilizá-la ou embaçá-la. Vimos também
Para ilustrar a distinção, vamos considerar, mento”. Entretanto, a prática da redistribui- perverso de promover a diferenciação de classe, que os remédios de redistribuição airmativos
mais uma vez, o caso da classe explorada. Re- ção airmativa, reiterada ao longo do tempo, os remédios transformativos tendem a embaça- podem engendrar um protesto de menosprezo,
médios de redistribuição airmativos para as tende a pôr em movimento uma dinâmica se- la. Além disso, as duas abordagens engendram enquanto os remédios de redistribuição trans-
injustiças de classe freqüentemente incluem cundária de reconhecimento estigmatizante, diferentes dinâmicas subliminares de reconhe- formativos podem ajudar a compensar algumas
transferências de renda de dois tipos distintos: que contradiz seu compromisso formal com cimento. A redistribuição airmativa pode es- formas de não-reconhecimento.
programas de seguro social dividem parte dos o universalismo. Essa dinâmica secundária, tigmatizar os desprivilegiados, acrescentando o Tudo isso sugere um meio de reformular o
custos de reprodução social dos empregados estigmatizante, pode ser entendida como o insulto do menosprezo à injúria da privação. dilema da redistribuição-reconhecimento. A
formais, os chamados setores primários da clas- “efeito de reconhecimento prático” da redis- A redistribuição transformativa, em contraste, pergunta que pode icar é: no que diz respeito
se trabalhadora; programas de assistência públi- tribuição airmativa. pode promover a solidariedade, ajudando a aos grupos submetidos aos dois tipos de injus-
ca oferecem auxílios “focalizados” ao “exército Vamos, agora, contrastar essa lógica com compensar algumas formas de não-reconheci- tiças, qual será combinação de remédios que
de reserva” de desempregados e subemprega- os remédios transformativos para as injustiças mento. funciona melhor para minimizar, senão para
dos. Longe de abolirem a divisão de classes per distributivas de classe. Remédios transformati- O que devemos concluir, pois, desta dis- eliminar de vez, as interferências mútuas que
se, esses remédios airmativos sustentam-na e vos comumente combinam programas univer- cussão? Nesta seção, consideramos somente os surgem quando se busca redistribuição e reco-
moldam-na. Seu efeito geral é desviar a atenção salistas de bem-estar social, impostos elevados, casos típico-ideais “puros” nas duas extremida- nhecimento ao mesmo tempo?
da divisão de classes entre trabalhadores e capi- políticas macroeconômicas voltadas para criar
talistas para a divisão entre as frações empre- pleno emprego, um vasto setor público não-
gadas e desempregadas da classe trabalhadora. mercantil, propriedades públicas e/ou coletivas
traduzido de
Programas de assistência pública “focalizam” os signiicativas, e decisões democráticas quanto
FRASER, Nancy. 2001. “From redistribution to recognition? Dilemmas of justice in a
pobres não só por auxílio, mas por hostilidade. às prioridades socioeconômicas básicas. Eles
‘postsocialist’ age”. In: S. Seidman; J. Alexander. (orgs.). 2001. he new social theory
Tais remédios, com certeza, oferecem a ajuda procuram garantir a todos o acesso ao empre-
reader. Londres: Routledge, pp. 285-293.
material necessitada. Mas também criam dife- go, enquanto tendem também a desvincular a
Outra versão do artigo foi publicada na New Left Review (212: 68-93, 1995).
renciações de grupo fortemente antagônicas. parte básica de consumo e o emprego. Logo,
A lógica aqui se aplica à redistribuição air- sua tendência é dissolver a diferenciação de
mativa em geral. Embora essa abordagem vise a classe. Remédios transformativos reduzem a
tradutor Julio Assis Simões
compensar a injustiça econômica, ela deixa in- desigualdade social, porém sem criar classes es-
Professor do Departamento de Antropologia / USP
tactas as estruturas profundas que engendram tigmatizadas de pessoas vulneráveis vistas como
a desvantagem de classe. Assim, é obrigada a beneiciárias de uma generosidade especial. Eles
fazer realocações supericiais constantemente. tendem, portanto, a promover reciprocidade e
Recebido em 30/09/2006
O resultado é marcar a classe mais desprivile- solidariedade nas relações de reconhecimento.
Aceito para publicação em 30/11/2006
giada como inerentemente deiciente e insaci- Assim, uma abordagem voltada a compensar
ável, sempre necessitando mais e mais. Com o injustiças de distribuição pode ajudar também
tempo essa classe pode mesmo aparecer como a compensar (algumas) injustiças de reconhe-
privilegiada, recebedora de tratamento especial cimento.

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resenhas
MOUTINHO, Laura. 2004. Razão, “cor” e desejo:
uma análise comparativa sobre relacionamentos
afetivo-sexuais “inter-raciais” no Brasil e na
África do Sul. São Paulo: Editora UNESP; 452 pp.

MÁRCIO MACEDO

A racionalidade do desejo e relaciona- ta com pessimismo por alguns e com otimis-


mento “inter-racial” mo por outros, salta aos olhos que os diversos
trabalhos que analisaram a obra desses autores
Somos um país miscigenado, da democracia não tivessem, até a atualidade, analisado um
racial, onde a mulata é a tal. Certo? Ou não? Se aspecto crucial que dá base à miscigenação: o
sim, por quê? O mito de origem de nossa na- relacionamento inter-racial.
ção é contado recorrentemente em textos que O livro de Laura Moutinho intitulado Razão,
sempre (re)atualizam a fábula das três raças, “cor” e desejo: uma análise comparativa sobre rela-
apresentada pela primeira vez em 1825, no tex- cionamentos afetivo-sexuais “inter-raciais” no Brasil
to de autoria do alemão Karl von Martius, no e na África do Sul detém-se sobre essa fascinante
concurso promovido pelo Instituto Histórico e, porque não, dolorosa temática. O livro é, na
e Geográico Brasileiro, intitulado “Como es- verdade, fruto de uma tese de doutoramento em
crever a história do Brasil”(Martius 1991:13). Antropologia Social, desenvolvida na Universi-
Desde aquela época, a formação do Brasil é dade Federal do Rio de Janeiro. E nele autora se
pensada a partir da contribuição de três grupos propõe a fazer uma análise das lógicas presentes
(branco, negro e índio) com suas, respectiva- nos relacionamentos inter-raciais nas cidades do
mente, três “raças” ou “culturas”. Rio de Janeiro (Brasil) e Cidade do Cabo (África
Na segunda metade do século XIX, a ques- do Sul). A hipótese central do trabalho é de que
tão racial emerge como problema a partir da estes relacionamentos dialogam diretamente com
abolição da escravidão, em 1888. O impasse a maneira pela qual estas nações estruturam seus
era reletir sobre a constituição de uma nação mitos de origem, identidades e políticas sexuais.
onde a maior parte da população era constitu- O título da obra em si já é bastante sugestivo. O
ída de ex-escravizados negros e mestiços, agora mesmo sugere que, ao contrário do que o senso
elevados, ao menos juridicamente, à categoria comum airma, há uma “racionalidade” nos rela-
de cidadãos. O elemento complicador vinha cionamentos afetivos em geral e nos inter-raciais,
da chegada no Brasil das teorias racistas oriun- em especíico. Em ambos, categorias como cor,
das da Europa, que condenavam o futuro de desejo, gênero e classe social têm um papel estru-
um país mestiço como o nosso. Dentro deste turador no jogo que se estabelece dentro do que a
contexto, as idéias de raça, mestiçagem e mis- autora denomina “mercado do amor e do desejo”.
cigenação tornaram-se conceitos fundamentais Ao mesmo tempo, Moutinho se coloca no grupo
problematizados nos trabalhos de intelectuais dos antropólogos que usam o conceito de raça en-
que buscavam solução para esse impasse1. Vis- tre aspas, com o intuito de evitar uma reiicação
do termo. O que ica sugerido é que apesar da ne-
1. Ver Schwarcz (1995).
gação do conceito por parte da biologia e genética

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244 | Márcio Macedo Razão, “cor” e desejo | 245

moderna, a idéia de “raça” continua a fazer senti- algumas obras. Os textos escolhidos para análi- que os atores sociais fazem de atributos como raciais vigente no Brasil. Bastide, por sua vez, re-
do para os atores sociais e, no estudo em questão, se são aqueles que possuem casais inter-raciais cor, desejo, classe e gênero, no “mercado dos feria-se à existência de uma “batalha das cores”
é uns dos conceitos centrais que conduz a ação nos seus enredos, a saber: O Mulato (1881) e afetos”, é informada pela noção de classe social e dos sexos nos relacionamentos afetivo-sexuais
dos indivíduos, sendo muitas vezes o responsável O Cortiço (1890) de Aluísio Azevedo, O Bom que cada um deles utiliza. Dentro dessa lógi- entre brancos e negros. O sociólogo francês en-
pela construção ou ausência do desejo sexual. Crioulo (1895) de Adolfo Caminha, Jubiába ca, autores como Pierson e Azevedo se apro- cara o relacionamento inter-racial como espaço
A antropóloga dá início à exposição da pes- (1935) e Gabriela: cravo e canela (1958) de Jor- ximam de uma perspectiva mais weberiana de privilegiado para analisar o tipo de preconceito e
quisa por meio de uma sondagem nos estudos ge Amado, além das peças Anjo negro (1948) de classe, na qual o indivíduo é entendido dentro a discriminação existente no país, ou seja, aque-
demográicos sobre conjugalidade e uniões in- Nelson Rodrigues e Sortilégio (1951) de Abdias da lógica de “situação de classe”, onde, “além le que se daria na intimidade. Nessa medida,
ter-raciais, realizadas no Brasil entre os anos do Nascimento. Nos três primeiros romances do poder econômico que determina as posições o autor aproxima-se da proposta de Abdias do
1980 e 1990. Nestes trabalhos, veriica-se uma o contato inter-racial é visto com pessimismo, de classe, há outros elementos que constituem Nascimento, ativista negro cuja peça encarava os
forte tendência à endogamia e homogamia no algo que levaria a uma degenerescência do casal as hierarquias sociais, como, por exemplo, as relacionamentos heterocrômicos como uma re-
país. O casal miscigenador é sempre compos- e, conseqüentemente, da nação. Já nos livros de convenções, os grupos de status, os ´modos de lação tabu, vinculados a uma tentativa de bran-
to pelo homem negro ou mestiço e mulheres Jorge Amado, a miscigenação é celebrada e en- vida’” (Moutinho 2004: 179). Os autores aci- queamento do cônjuge não-branco.
brancas, a partir de uma união formal. As con- tendida como positiva. Nas duas últimas peças, ma citados, de acordo com a antropóloga, en- A seguir a antropóloga passa ao que pode-
clusões levantadas por esses dados chocavam-se o relacionamento sexual do homem negro com tendem a mestiçagem em seus trabalhos como ríamos chamar de “cereja do bolo” de seu tra-
com o imaginário nacional que celebra a mis- a mulher branca é visto como tabu e o fruto um campo no qual há uma série de elementos balho. Neste momento, Moutinho apresenta os
cigenação e uma, suposta, exogamia. Esse pa- da relação é interpretado como uma forma de de prestígio manipuláveis, dos quais negros fa- elementos reunidos a partir do seu trabalho de
radoxo é colocado pela autora como uma das embranquecimento social. O ponto comum a zem uso para se inserir no “mundo branco”. E campo: cerca de trinta entrevistas realizadas no
questões iniciais da investigação. todos esses textos é que o desejo é sempre joga- isso ocorreria porque a noção de classe está vin- Rio de Janeiro com indivíduos que já tiveram
Em seguida, Laura Moutinho se debruça do para uma esfera exterior ao casamento, ou culada à idéia de grupo aberto. algum tipo de envolvimento inter-racial, desde
sobre obras que buscaram fazer uma espécie de seja, nestas obras literárias a relação formal não Fernandes e Costa Pinto, por sua vez, se “rolos” até casamentos. As falas dos informantes
interpretação do país e que passaram, em algum é o espaço onde o desejo e o erotismo possam aproximam nas suas análises da noção marxista e experiências da antropóloga no campo reme-
momento, pela discussão da miscigenação. São ser vivenciados. de classe, ou seja, o indivíduo é pensado a partir tem o leitor a um misto de situações cômicas,
cinco as obras resenhadas: As raças humanas e a No capítulo seguinte, Moutinho busca ana- da sua posição na estrutura de produção e, por dilemas, experiências dolorosas e reverberação
responsabilidade penal no Brasil (1891) de Nina lisar as produções socioantropológicas que de conseguinte, as relações afetivas inter-raciais são de idéias estereotipadas e racistas que nos fazem
Rodrigues; A evolução do povo brasileiro (1923) alguma maneira passaram pela discussão do interpretadas como comprovação do racismo. reletir sobre a predominância do racismo na
de Oliveira Vianna; Retrato do Brasil (1928) de contato inter-racial e da miscigenação. Sendo Nas palavras da autora, “os elementos de prestí- intimidade sexual e amorosa. Isso ocorre embo-
Paulo Prado; Casa Grande & Senzala (1933) de assim, a autora analisa as obras de Gilberto gio social que compensariam a desvantagem da ra Moutinho, desde o início do capítulo, airme
Gilberto Freyre e Raízes do Brasil (1936) de Sér- Freyre, Donald Pierson, Florestan Fernandes, “cor negra”, são, antes, interpretadas como indi- que sua intenção não é provar que existe pre-
gio Buarque de Holanda. O que ressalta da leitura Roger Bastide, Costa Pinto e Carl Degler; in- cativo do preconceito “racial”, dado que inclui, conceito, discriminação ou racismo no Brasil
dos textos é que somente Freyre e Vianna visua- tituladas, respectivamente: Sobrados e mocambos individualmente, alguns, e não modiica a estru- a partir da análise dos casos ali expostos. Per-
lizaram a miscigenação a partir de uma perspec- (1936), Brancos e pretos na Bahia: estudo de con- tura de produção propriamente dita” (: 180). cebe-se que a concordância, de antemão, com
tiva mais otimista, ou seja, que poderia levar a tato racial (1945), Brancos e negros em São Paulo Freyre é incluído nessa seleção por ser o esta constatação é o ponto de partida da pesqui-
um “branqueamento” do país. Os demais autores (1959) – escrito conjuntamente por Roger Bas- autor que vislumbra - em seu livro Sobrados e sadora. Assim sendo, ali se encontra o caso da
tinham um posicionamento mais reticente em tide e Florestan Fernandes –, O negro no Rio de mocambos (1936) - o “mulato bacharel” como negra universitária que busca desenvolver estra-
relação à miscigenação. Por outro lado, todos os Janeiro (1953) e Nem preto nem branco (1976). elemento que mais se beneiciaria da lógica ra- tégias para não ser confundida com prostitutas;
cinco entreviram a base deste processo de misci- Em todos os autores, o conceito biológico cial vigente no “mercado dos afetos e prazeres” do negro universitário e militante que se vê no
genação no casal composto pelo homem branco de raça cede lugar a uma percepção sociológica na época do Império, ao manipular vários atri- dilema de se relacionar apenas com negras, ou
português com mulheres negras e mestiças. que busca entender como “raça” aloca os indi- butos de prestígio como títulos acadêmicos, be- de liberar sua atração e possibilidade de rela-
Mais adiante, a pesquisadora volta-se para o víduos no espaço social. Ainda de acordo com a leza física e atração sexual (:185 a 197). Degler cionamentos com garotas brancas, atitude que
universo da literatura brasileira e questiona-se análise da antropóloga, a maneira como quatro é analisado a partir da problematização que a soaria como uma traição ao “movimento”. Há
a respeito de qual a representação da miscige- destes analistas vão interpretar o relacionamen- autora faz de sua tese, na qual o mulato surge ainda (dentre outros) o caso da mulher negra
nação e dos relacionamentos inter-raciais em to inter-racial, a miscigenação e a manipulação como “válvula de escape” no sistema de relações casada com um médico branco que nos encon-

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tros proissionais do marido se ausenta para não como apartheid naquele país nutriu-se da para- COHN, Clarice. 2005. Antropologia da Criança.
prejudicar a carreira do cônjuge, ou da garota nóia em relação ao contato sexual inter-racial.
branca que vê o homem negro e mestiço como Há uma sistematização das várias leis que con-
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.; 60 pp.
sexualmente superior ao homem branco. Neste trolavam e puniam as relações sexuais entre as
ponto, lembra-se da airmação de Peter Fry, re- várias categorias raciais existentes no país, com EDUARDO DULLO
petida por Moutinho várias vezes em seu livro, vistas a preservar a pureza do ventre da mulher
“as pessoas desejam o que é socialmente desejá- branca sul-africana. A parte mais interessante
vel”. A partir desta perspectiva, os informantes deste capítulo é o momento no qual a autora
desejam o socialmente (in)desejável, o que as resenha um romance do autor sul-africano John É freqüente lermos, na literatura antropo- lacuna. Levar a sério o discurso nativo e ao me-
coloca na situação de “desviantes”. Coetzee, Desonra (1999), e expõe algumas ques- lógica, textos que não informam a idade dos nos tentar não constituir uma relação de po-
Há vários outros elementos que são levanta- tões a partir da análise desta obra de icção. O nativos. As pesquisas (em geral) são feitas com der em relação de sentido signiica, neste caso,
dos pela autora a partir das entrevistas e que são texto traz um pequeno quadro da África do Sul adultos, o que pode ser interpretado como apreender o mundo social a partir da constru-
relacionados com aspectos teóricos apontados pós-apartheid, com seus conlitos internos, um conseqüência da importância que nossa socie- ção simbólica das crianças, fazendo desta ex-
nas resenhas da obras sócio-antropológicas e li- lugar onde raça e racismo tornaram-se assunto dade confere a esta faixa etária, em detrimen- periência peculiar uma diferença qualitativa ao
terárias. Porém, um deles é central: o “estigma tabu que causa mal-estar nas pessoas. Ao mesmo to de outros períodos – a velhice e a infância invés de quantitativa.
da cor”. Moutinho revela que o grande esforço tempo, ocorre a celebração de um país que se vê – como locus de produção de signiicados e Seu texto preocupa-se, desde o início (e re-
empreendido por negros e mestiços, num espaço como rainbow nation, mas que registra o mais relexões acerca da vida social. Tornado claro tomando a discussão ao inal), em esclarecer a
social que extrapola os relacionamentos sexuais alto índice de casos de estupros no mundo. desde o início pela autora, o debate sobre uma particularidade da Antropologia, diferencian-
amorosos, está justamente em reverter o estig- Por im, vale ressaltar que o livro de Laura Antropologia da criança trata de uma revisão de do-a dos mais antigos estudantes do tema: psi-
ma que a tonalidade mais escura de pele traz. Moutinho abre um leque de assuntos a serem conceitos fundamentais que, originando-se na cólogos, psicanalistas e pedagogos. Assim, além
Neste sentido, nunca há uma associação direta pesquisados que se relacionam às relações ra- década de 1960, estende-se às teorias contem- de uma “antropologia da criança”, a autora nos
de negro(as) e de sua negritude com referenciais ciais, estudos de gênero, sexualidade e constru- porâneas, articulando uma revisão da noção expõe sua visão do que caracteriza uma pesqui-
de prestígio social. Apesar desta perspectiva de ção da nação no pensamento social brasileiro. de pessoa e da criação de uma antropologia da sa da disciplina. Não é na metodologia de co-
estigma poder ser relativizada no campo sexual O texto é leitura obrigatória dos pesquisadores cognição. É frente a este complexo debate que leta de dados que reside a especiicidade, mas
e amoroso para os homens negros – onde são vinculados a estas áreas temáticas ou do públi- opto por situar a importante contribuição que no cuidado com a contextualização e com os
vistos como superiores –, sua constatação dá co não especializado em busca de uma boa obra este pequeno livro (como de praxe da coleção, “pressupostos analíticos e no arcabouço concei-
margem para nos questionarmos sobre o “valor” de ciências sociais num assunto tão polêmico 60 páginas) apresenta. tual” (:48). Com isto em mente, ela lembra que
da “branquidade” em nossa sociedade, questão que desperta paixões, sentimentos e, como não O convite para escrever este número da co- “não podemos falar de crianças de um povo in-
pouco levantada nos debates atuais sobre raça, podia deixar de ser, dores. leção “Passo a Passo”, baseou-se em sua compe- dígena sem entender como esse povo pensa o
racismo, representação, democracia racial e até tente – apesar de relativamente breve e recente que é ser criança e sem entender o lugar que
mesmo política de cotas. Referências bibliográicas – produção e na (não tão breve assim, 12 anos) elas ocupam naquela sociedade – e o mesmo
A última parte do trabalho aborda a questão pesquisa com crianças dentre os Kayapó-Xi- vale para as crianças nas escolas de uma metró-
dos relacionamentos inter-raciais na África do MARTIUS, Karl F. P. von. 1991. Como escrever a histó- krin do Bacajá. Por tratar, em sua dissertação pole” (:9).
Sul, e traz relatos da estadia de um mês da autora ria do Brasil. Ciência Hoje 13( 77): 56-63. de mestrado, sobre a concepção de infância e Sua introdução é, portanto, mais que um
SCHWARCZ, Lilia Moritz. 1995. O espetáculo das raças. aprendizado nesse contexto, traz numerosas preâmbulo para a discussão bibliográica que
no país africano. Laura Moutinho explica como
São Paulo: Companhia das Letras.
a construção ideológica do sistema conhecido contribuições sintetizadas (o que não quer vem em seguida; é a assunção de uma postura
dizer, necessariamente, simpliicadas) a partir teórico-metodológica com a qual irá debater
dessa experiência etnográica. com autores e escolas. Nesse sentido, importa-
autor Márcio Macedo Esse terreno da disciplina só recentemente se em realçar a distinção entre nature e nurture
Mestre em Sociologia / USP foi visto com a adequada sistematização, ainda realizada por Margareth Mead na tentativa de
em curso, que evita a deinição pela negativa. entendimento da parcela cabível à natureza e
Recebido em 13/02/2006 Uma das principais proposições que a exposi- à cultura no comportamento dos não-adultos
Aceito para publicação em 19/05/2006 ção de Clarice Cohn visa é a de suprimir essa (tendo os norte-americanos como contraponto).

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248 | Eduardo Dullo Antropologia da Criança | 249

Apesar de reconhecer a importância dos traba- cultura), demonstra que a especiicidade de um criança, do desenvolvimento e da capacidade de trabalhos realizados com as crianças “de cá”,
lhos, posiciona-se na airmação: “Esses estudos sentimento de infância é característico da mo- de aprender, devem ser entendidas de maneira como ela as chama. Não creio, contudo, que
estão marcados pela cisão entre vida adulta e a dernidade ocidental, historicamente construí- interligada” (:40). isso diminua o mérito do livro. Preiro encarar
da criança, e remetem a uma idéia de imaturida- da, conforme o estudo clássico de Ariès. Faz, Se há algo a ser criticado em Antropologia a questão como proveniente do estímulo que
de e desenvolvimento da personalidade madura” sempre, um belo contraponto com seus dados da criança, é o seu tamanho. O formato da o livro imprime no leitor, na sede de conhecer
(:15). O que vai de encontro à sua posição, por etnográicos, para esclarecer como não deve- coleção não permite que a autora explore de outras pesquisas sobre o tema.
prever um “adulto ideal” como “im último do mos incorrer no erro de ter como pressupos- modo satisfatório as demais articulações do Como espero ter esclarecido, o formato
processo de desenvolvimento”. to a existência de momentos do curso da vida tema, que icaram restritas a poucos parágra- introdutório que a coleção impõe não cau-
Direciona, seqüencialmente, seu comen- em quaisquer contextos sociais. Após discorrer fos. É notável, por exemplo, como a temática sou uma simpliicação dos argumentos. Sua
tário para a tradição estrutural-funcionalista, brevemente sobre a formação da pessoa Xikrin da educação emerge do texto como algo mais constante menção a trabalhos empíricos e
com inspiração em Radclife-Brown, para de- (e de tornar claro a importância disso para se próximo ao cotidiano das crianças, enquanto as utilização de exemplos permite uma compre-
monstrar tanto a oposição destes aos primeiros, compreender a criança) mostra que a delimita- relações jurídicas (como no Estatuto da Crian- ensão mais completa do tema. Seu louvável
norte-americanos, pela excessiva relação com a ção do curso da vida e da duração do período ça e do Adolescente), ou ao trabalho infantil poder de síntese pode, em parte, ser atribuí-
psicologia, quanto pela primordial relevância em que se é criança é algo especíico. são mencionados de forma rápida, se tivermos do à sua experiência docente, permitindo-lhe
conferida ao processo de socialização dos indi- Na intenção de ver a criança como atuante, em mente o cuidado com o procedimento de escrever um texto claro, com frases curtas e
víduos e práticas sociais. Não se satisfaz, apesar lança mão de exemplos retirados tanto de sua transmissão e aquisição de conhecimentos. sem redundâncias: acessível tanto aos leitores
disso, com a postura que prevê uma certa gama pesquisa como do trabalho de Maria Filome- Mais ainda: a ênfase em seu trabalho de cam- iniciantes quanto imperioso aos mais experi-
de papéis e condutas às quais devem os sujei- na Gregori sobre crianças “de rua”, mostrando po ocupa boa parte do livro, em detrimento mentados.
tos se adequar. Essa forma impede a apropria- como elas constroem uma identidade para si e
ção qualitativamente diferenciada que Clarice para os outros. Por im, a criança produtora de
Cohn propõe: “a criança dos estudos estrutu- cultura é uma interlocução com a antropologia
ral-funcionalistas se vê relegada a protagonizar da cognição, exempliicada com os trabalhos autor Eduardo Dullo
um papel que não deine” (:16). da antropóloga britânica Christina Toren. No Mestrando em Antropologia Social / MN-UFRJ
Ao conceber o avanço da teoria antropológi- entender de Toren – corroborada por Cohn – o
ca a partir dos anos 1960, a autora coloca tanto estudo da criança torna-se importante por ela Recebido em 15/02/2006
a importância dos conceitos de agência, quanto expressar o que os adultos normalmente não Aceito para publicação em 19/05/2006
o de sociedade e cultura. Revê como importan- o fazem e por fazê-lo de forma distinta. Não
te o sistema de simbolização compartilhado, se trata de uma cisão absoluta entre o mundo
porém, não mais como existente previamente adulto e o da criança, mas de uma relativa au-
aos sujeitos, mas sendo por eles formado a par- tonomia, na qual as crianças não sabem menos,
tir de suas relações e interações. Essa capacidade e sim sabem outra coisa sobre o mundo.
de agência permite conceber as crianças como Não sendo uma área já bem desenvolvida e
criadoras de seu próprio sistema simbólico e vi- esmiuçada, convém lembrar que seu trabalho
são de mundo, e não mais como um depositário remete-se bastante a um tema que associamos
de papéis: “Ao contrário de seres incompletos, de imediato com a criança: a educação. Sua
treinando para a vida adulta, encenando papéis preocupação, nesse caso, é o de romper com
sociais enquanto são socializados ou adquirindo o chamado “Grande Divisor” entre sociedades
competências e formando sua personalidade so- ditas complexas e simples, primitivas ou tradi-
cial, passam a ter um papel ativo na deinição de cionais. Uma das formas de impor a diferença
sua própria condição” (:21). entre as sociedades recai na educação formal e
Ao diferenciar três aspectos dos estudos so- escolarizada, em contraposição à tradição oral
bre a criança (a deinição da condição social da e/ou informal. Por isso, a autora relembra – e
criança, como ator social e como produtora de nunca é demais – que “concepções do que é ser

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A formação do Candomblé | 251

PARÉS, Luis Nicolau. 2006. A formação do de outro, temos a ação policial se imiscuindo na entre a construção da parte historiográica de
prática religiosa, produzindo uma série de relatos seu trabalho e da parte baseada em entrevistas
Candomblé: história e ritual da nação jeje na ricos em dados sobre a composição social dos ca- e etnograias produzidas em terreiros de Can-
Bahia. Campinas: Editora da UNICAMP; 390 pp. lundus e dos candomblés, os objetos rituais uti- domblé na Bahia.
lizados bem como alguns dos termos religiosos. O sucesso da institucionalização do Can-
LUIZ ALBERTO COUCEIRO A postura n.º 59, de 27 de fevereiro de 1857, domblé está ligado, e Parés o demonstra de
proibia os batuques, as danças e as reuniões de modo convincente, a outra característica: a re-
escravos, em qualquer lugar e hora, sob pena de lação entre ganhar dinheiro e obter êxito nesta
Candomblé como ação (dos jeje) no Os grupos étnicos africanos classiicados
oito dias de prisão. Mas os livres e os libertos não empreitada através do recurso às forças mági-
mundo como jeje pertenciam à área denominada por
tinham o dever de respeitar esta postura. Pagan- cas. Ainal, em situações cotidianas de maior
Parés como “área dos gbe falantes”, região seten-
do uma licença à polícia, podiam organizar li- dramaticidade emocional – como era a vida de
A formação do Candomblé na Bahia teve trional do atual Togo, da República do Benin e
vremente as suas festas, muitas delas ligadas ao escravos, libertos e africanos livres, em todas as
como pilar central a nação jeje. Esta airmação o sudoeste da Nigéria. Foi entre os grupos que
Candomblé. Quando ocorriam batidas policiais cidades escravistas do Atlântico – o recurso às
já é suiciente para despertar o interesse do leitor habitavam esta região que surgiu o termo “vo-
nos calundus ou nos candomblés, fossem para crenças mágicas era uma garantia a mais para a
pelo livro de Luis Nicolau Parés, professor de dum”, utilizado para identiicar as divindades
encontrar escravos fugidos, ou para reprimir ba- obtenção do im desejado.
Antropologia da Universidade Federal da Bahia. ou forças invisíveis do mundo espiritual. Esta
tuques e festas não autorizadas, ou simplesmente Ao estudar a formação das congregações reli-
É ela que dá a tônica argumentativa do livro, fru- pequena palavra designa uma crença que apa-
para perseguir as práticas religiosas das “classes giosas, Parés demonstra que tal fenômeno estava
to de pesquisa de sete anos, envolvendo resenhas rece em vários documentos sobre a América
perigosas”, autos de apreensões e processos crimi- relacionado ao tempo e ao dinheiro disponíveis,
da literatura especializada e atual sobre o tráico portuguesa, o Império do Brasil e a Primeira
nais eram produzidos. Tais fontes mostram que mais ligados ao estilo de vida dos libertos e das
de escravos para a Bahia de Todos os Santos, as República, ou seja, a de que pessoas acreditam
os espaços das práticas religiosas dos calundus, e escravas, que ganhavam a vida em atividades co-
disputas internacionais pelos domínios desta ati- no poder de “espíritos” ou “entidades espiritu-
depois dos candomblés, eram lugares de diferen- merciais, em grande parte das cidades escravas
vidade econômica, as relações internas de povos ais” para intervir em seu mundo, na vida co-
ciação das diversas nações africanas. Estas nações das Américas.1 Os candomblés serviam, como os
africanos com comerciantes europeus por aquela tidiana. Este dado é fundamental para que se
foram se deinindo na relação entre os escravos, quilombos e as casas de zungu, estas últimas, na
atividade comercial, pesquisa em fontes primá- possa compreender a construção de uma iden-
livres e libertos em torno das formas de ocupa- Corte, como lugares de pouso para escravos fugi-
rias de diversos arquivos, além de trabalho etno- tidade coletiva entre os jeje, desembarcados
ção do espaço urbano, e dos pontos de encontro dos dos seus senhores, que, pela natureza das ati-
gráico em terreiros de Salvador e de Cachoeira, maciçamente na Bahia de Todos os Santos da
onde eram estabelecidos os contatos. vidades características de sua condição social, não
cidade do Recôncavo da Bahia. Mas, por que primeira metade do século XVIII. Este evento
Uma outra característica foi fundamental podiam manter uma relação ritual constante com
os jeje, e não mais os nagô, entram no centro ocorreu graças aos fortes laços estabelecidos en-
para o dimensionamento geográico dos agentes o Candomblé.2 Em Salvador, especiicamente,
da discussão sobre a construção do Candomblé tre os portos da Bahia e os da África gbe-falante
sociais não-senhoriais em torno da religiosida- salta aos olhos a alta porcentagem de pessoas de
como instituição religiosa na Bahia? pelos traicantes de escravos baianos, que em
de: a fundação e a manutenção de espaços es- cor livres e libertas, estimada entre 30% e 40% da
O argumento de Parés não está centrado no muito se aproveitaram da produção de fumo do
táveis para a adoração de “ídolos” ou “iguras”, população total, nas primeiras décadas do século
desmerecimento dos nagôs e dos termos ioru- Recôncavo para comprar escravos naquela área.
típico das tradições da Costa da Mina, onde XIX, como fato necessário para o entendimento
bá, na construção do Candomblé como ins- Alguns libertos retornados trataram de interme-
habitavam muitos dos escravos jeje. No iní- da consolidação institucional dos candomblés.
tituição religiosa. Os alicerces do argumento diar as relações econômicas entre os traicantes e
cio, tais espaços eram domésticos, muitas vezes Com um grau de mobilidade social maior, os lí-
são a demonstração empírica da presença dos as elites políticas locais, em cidades como Uidá,
para a adoração de uma divindade, passando,
jeje, principalmente até a década de 1860, na dando continuidade ao comércio de escravos, 1. Para maiores informações acerca das atividades econô-
aos poucos, aos espaços extradomésticos, com
formação ritual e lingüística do Candomblé mesmo na clandestinidade, até por volta de micas de libertos, africanos livres e escravos, em Salvador
níveis de hierarquia mais complexos, dentro de
na Bahia. Esta demonstração está pautada em 1850 – quando o governo imperial brasileiro e na Bahia, respectivamente, ver REIS (1993 e 2003).
um calendário litúrgico melhor deinido.
duas linhas mestras: a movimentação do tráico se empenhou na aplicação da Lei Eusébio de 2. Para os quilombos como lugares de recepção de escra-
Como, então, as crenças mágicas foram ins- vos fugidos, ver GOMES (1995 e 2005). Já para as
de escravos africanos da Costa da Mina para a Queiroz, que proibia o tráico internacional de
titucionalizadas e ganhando um corpo expli- casas de zungu na Corte, ver SOARES (1998). Vale
Bahia de Todos os Santos e as fontes documen- escravos para o Brasil, deinitivamente.
cativo racionalizado no Candomblé da Bahia? notar que ambos autores montam seus argumentos
tais produzidas no entorno do envolvimento Se, de um lado, temos o impacto demográico levando em consideração os quilombos e as casas de
Esta é uma questão que perpassa todo o livro
de policiais e membros da elite política com de uma leva de africanos escravizados que com- zungu como espaços dinâmicos de construção de
de Parés e que, inclusive, serve de elo de ligação
rituais de Candomblé no século XIX. partilhavam a crença no “vodum”, em Salvador, alianças e de resolução de conlitos.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 250-253, 2006
252 | Luiz Alberto Couceiro A formação do Candomblé | 253

deres religiosos dos calundus ou dos candomblés, relações ampla entre congregações religiosas de seja, o culto a uma constelação ou a grupos de di- Parés mostra a importante diferença entre os
desde o período colonial, conseguiam sedimentar fortes traços jeje, consolidando formas de soli- vindades, com rituais que utilizam a performan- métodos e investigação da História, as formas
alianças com membros de outras classes sociais, dariedade em momentos mais críticos da repres- ce seriada. As etnograias produzidas por Parés de construção da memória e os métodos de aná-
ampliando o poder político através da crença nos são promovida por membros da boa sociedade demonstram como tais características, constru- lise baseados na etnograia, uma das marcas da
“voduns” para manter as casas de culto em plena imperial. Apoiando-se na historiograia recente ídas historicamente através da inluência da re- Antropologia, para a construção do livro.
atividade. Neste sentido, Parés argumenta que as sobre as irmandades religiosas do período colo- ligiosidade dos jeje na Bahia, se transformaram O livro de Parés trata, em suma, das condi-
iguras conhecidas como ogãs eram recrutadas nial, Parés argumenta que as intensas ligações em pontos centrais da vida social dos candom- ções de possibilidade para a força do Candomblé
entre pessoas inluentes para interceder a favor entre os grupos religiosos no século XIX tinham blés e do exercício ritual da crença nas divinda- na Bahia como religiosidade institucionalizada,
dos candomblés, impedindo a prisão de seus lí- relação com um comportamento de longa du- des, essencialmente dinâmicas. Na formação do condições estas historicamente construídas e
deres e a interrupção de suas atividades rituais. A ração temporal, remontando ao incentivo se- Candomblé, além destes elementos demonstra- com uma compreensão memorial do “povo-de-
argumentação de Parés, então, entrelaça relações nhorial para a formação daquelas irmandades, dos no livro, encontra-se também a capacidade, santo” nos dias atuais. Candomblé, assim, não é
políticas, formas de uso do dinheiro na sociedade as quais contavam com a participação ativa de oriunda do “vodum”, de, ao longo dos séculos, um termo engessado, mas em movimento cons-
escravista da Bahia e a visão de mundo dos agentes escravos, africanos livres e libertos. incluir outras divindades aos panteões existentes. tante de mudança social, como a própria vida
sociais, baseada na crença em poderes mágicos. Mas e após os anos 1860, como icou a A formação é, assim, compreendida como termo social. Ainda, e sempre, em formação.
A conduta metódica de administração do di- inluência jeje na institucionalização do Can- que dá dinamismo à leitura das fontes diversas
nheiro ganha por libertos e escravas, em Salvador domblé na Bahia, o leitor, como eu mesmo ao pesquisadas e produzidas pelo autor. Referências bibliográicas
em larga medida pode ter ajudado na consolida- ler o livro, pode ter se perguntado? O sentido do termo formação usado por Parés
ção dos procedimentos mágicos dos jeje, como Nos anos 1871-1891, houve o que icou não remonta, assim, o entendimento do modo GOMES, Flávio dos Santos. 1995. História de quilombolas:
uma ação que tinha resultado no mundo social. conhecido entre os intelectuais que estudaram pelo qual as características dos Candomblés na mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janei-
ro – século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional. (2ª.
Este clima social foi favorável à predomi- as “religiões afro” na Bahia e o “povo-de-santo” Bahia, no presente, foram gestadas no passado
edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006).
nância da tradição jeje no Candomblé dos anos como “processo de nagoização” do Candom- para que se possa compreender como chegamos ______. 2005. A hidra e os pântanos: mocambos, qui-
1860, o que pode ser conirmado na análise blé da Bahia, quando a identidade nagô-iorubá ao presente. Ao compreendermos isso, ter-se-ia lombos e comunidades de fugitivos no Brasil – séculos
minuciosa de Parés das notícias do periódico sobrepujou as referências às características jeje. as bases para a deinição dos rumos da nossa XVII-XIX. São Paulo: Editora Unesp / Polis.
O Alabama, que alude a um nível complexo e Neste período, a “africanidade” foi construída sociedade, vista muitas vezes como monolítica OLIVEIRA, Maria Inês Côrtes de. 1995/1996. Viver e
bem estruturado de institucionalização religio- como uma forma de resistência das antigas casas e homogênea. Parés usa o conceito de formação morrer no meio dos seus: nações e comunidades afri-
canas na Bahia do século XIX. Revista USP, São Paulo,
sa em Salvador. Na cidade, predominavam os de culto, mesmo já crioulas no século XIX, para no sentido de pensar o passado à luz do cruza-
n. 28: 175-193, dez./fev.
“indivíduos”, praticantes de Candomblé, mas se manterem à frente das casas fundadas mais re- mento dos dados coletados das fontes impres- ______. 1997. Quem eram os “negros da Guiné?” A ori-
que não lideravam hierarquia complexa algu- centemente. Parés ressalta que, neste período, a sas, das conclusões da historiograia pertinente gem dos africanos na Bahia. Afro-Ásia, n. 19-20: 37-73.
ma, desenvolvendo práticas de “exorcismo” e idéia de que as “coisas da África” eram mais fortes ao assunto, da memória oral e da prática ritual REIS, João José. 1993. A greve negra de 1857 na Bahia.
de “cura”, cultuando uma única entidade. Já do que as “crioulas”, nos efeitos dos feitiços, per- – etnografada pelo autor – de certas casas de Revista USP, n. 18: 7-29, jun./jul./ago.
nas roças ao redor da cidade, para onde escra- passava fortemente vários grupos sociais. Assim, Candomblé de Salvador e do Recôncavo Baia- ______. 2003. Rebelião escrava no Brasil: a história do
levante dos malês em 1835. Ed. revista e ampliada.
vos fugidos seguiam com maior freqüência e aquilo que as pessoas não diziam ser “africano”, no. Ele não coloca o presente em estado pronto
São Paulo: Companhia das Letras.
onde se localizavam quilombos diversos, esta- passou a ser dito africano. Também neste perí- e inquestionável, mas como fruto de uma cons- SOARES, Carlos E. Líbano. 1998. Zungu: rumor de
vam os candomblés com uma hierarquia mais odo muitos terreiros baianos se comunicavam trução de uma narrativa e das percepções que os muitas vozes. Rio de Janeiro: Arquivo Público do Es-
complexa e o culto de mais de uma divindade com a Costa da Mina, legitimando a sua hierar- agentes sociais têm do passado. Neste sentido, tado do Rio de Janeiro.
espiritual. Trata-se, mais uma vez, de um traço quia frente aos outros terreiros que não tinham
da matriz de culto religioso jeje, e não nagô. estes vínculos diretamente estabelecidos.3
autor Luiz Alberto Couceiro
Conforme Parés, há outros indícios desta O século XX foi palco de uma proliferação de
Professor de Sociologia e Antropologia / Faculdade São Bento - BA
marcante e fundamental presença. Ele encon- Candomblés baseados, direta ou indiretamente,
Doutorando em Antropologia / UFRJ
trou, em O Alabama, um maior número de em certas características da religião “vodum”, ou
termos jeje do que nagô, na década de 1860 e
3. Para uma discussão detalhada das ditas “nações afri-
Recebida em 25/10/2006
que, por mais imprecisões jornalísticas que pos-
canas” em Salvador e no seu entorno, ver OLIVEIRA Aceito para publicação em 13/12/2006
sam ter sofrido, indicam que havia uma rede de
(1995/1996 e 1997).

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 250-253, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 250-253, 2006
Negócio Público e Interesses Privados | 255

ZARIAS, Alexandre. 2005. Negócio Público e certos sistemas classiicatórios que lhes são dis- aos sujeitos mediante processos de classiica-
poníveis e da importância de cada uma dessas ção” (: 55).
Interesses Privados: a interdição civil e os dramas instituições no processo. Essa necessidade de classiicação volta-se
de família. São Paulo: Hucitec/Anpocs; 269 pp. Diante das observações, conclui que “na contra o interditando, sujeito que concentra
interdição, nem todo doente é ‘incapaz’, mas vários discursos em torno de si. Ele é quem
TANIELE CRISTINA RUI todo ‘incapaz’ é um doente” (: 43). A questão, reúne diferentes instituições num momento
então, é entender como se estabelece a relação único e particular. Assim, no processo de inter-
entre as noções de “doença” e “capacidade ci- dição, é possível não só acompanhar parte da
vil”. E para responder esta pergunta, mais uma trajetória da vida de uma pessoa, mas também
Já disse Balzac que “o mais trivial dos en- não possa mais fazê-lo por si só. Mas, como ob-
vez, é preciso lançar mão da idéia do encontro. apreender parte da história das instituições
contros, dependendo da ocasião e do lugar jeto de estudo das ciências sociais, o interessan-
Isto porque, na interdição, quem deine o que com as quais essa pessoa se envolveu. Portanto,
onde foi realizado, pode determinar a manei- te é saber como algo nascido de um interesse
é a “doença” é o médico nomeado para a perí- compreender o papel que cabe às instituições
ra pela qual as pessoas interagem e tiram suas privado, circunscrito à esfera familiar, torna-se
cia, mas o que orienta a determinação do que através da constatação social da “doença” e da
próprias conclusões a respeito de um fato”. É um negócio público não só pelo acionamento
é chamado “capacidade civil” são os desígnios “incapacidade civil” como formas de desvio
essa lição, trazida do romance A interdição, que da justiça e da medicina, mas também pelos
legais que encontram sua expressão deinitiva requer o exame de quais são os mecanismos
Alexandre Zarias carrega consigo em seu livro efeitos que procura produzir no âmbito da vida
por meio da atuação do juiz. Durante o pro- utilizados para tanto, compreendendo que o
Negócio Público e Interesses Privados. Para ele, a civil de uma pessoa e da sociedade em geral.
cesso jurídico é avaliada a competência do in- destino legado por essas instituições ao indiví-
interdição é também um encontro de institui- Durante as etapas de um processo de in-
terditando para a realização de ações que, na duo varia menos do que os atributos que lhes
ções que, de forma ritualizada, negociam cate- terdição, apura-se se o interditando é “incapaz
linguagem legal, signiicam a aptidão para ad- são conferidos. É nesse sentido que, na interdi-
gorias de identidade atribuídas a uma classe de civilmente” e se tem ou não condições de res-
quirir direitos e contrair obrigações. ção, é necessário compreender a doença como
indivíduos em nossa sociedade. ponder por seus atos e por sua pessoa, segundo
Em outras palavras, a determinação da “ca- um fenômeno sociológico e entender que, no
Mas não se trata de um encontro trivial. a lei. Geralmente uma “doença” é apresentada
pacidade civil” pelos critérios deinidores do universo proposto, sua noção é relativa à noção
Em um processo de interdição, incidem três como a causa dessa incapacidade, como exem-
que é a “doença” nos coloca diante da intersec- de “capacidade civil”. Signiicados estes que são
instituições distintas de poder e de saber im- plos temos se o réu foi vítima de um derrame
ção de duas esferas institucionais: a medicina negociados pelas pessoas que participam do
portantíssimas nas sociedades “modernas”: a ou de “loucura” em suas várias acepções, en-
e a justiça. Mais interessante é que isso não é processo jurídico e cujo resultado determina o
família, a justiça e a medicina. Em comum, a tre elas a esquizofrenia. Ciente disso, Zarias
característico apenas do processo de interdição. futuro do interditando.
direção para a qual essas instituições lançam enfrenta tanto as noções de “doença” e de “ca-
Ao contrário, o processo de interdição como Zarias também cria categorias para o estudo
seus olhares: a pessoa contra quem o processo pacidade civil”, quanto a forma pela qual uma
ponto de união dessas duas instituições é ape- da interdição visando descrever o universo de
é movido. Premiado no concurso CNPq-AN- pessoa é classiicada segundo seu comporta-
nas um exemplo de um dos efeitos de um pro- interdições possíveis e suas principais caracterís-
POCS como melhor dissertação de mestrado mento diante de outras. Além destas duas ques-
cesso histórico em que a medicina, por meio ticas segundo as pessoas que participam da ação
em Ciências Sociais de 2004, com orelha escri- tões principais, o livro abre espaço para outras
de sua especialização, notadamente na área de judicial como interditandos e a forma pela qual
ta por Sérgio Adorno e prefaciado por Heloí- que surgiram ao longo da pesquisa de campo.
psiquiatria, alastra seu campo de atuação, insti- a justiça e a medicina atendem ao pedido for-
sa Pontes, o texto de Zarias, que se inicia com Entre elas, a complexa negociação de sentidos
tucionalizando a “doença” como verdade cien- mulado pela família em função das característi-
fragmentos de um interrogatório de interdição, que pode ser veriicada na interdição entre os
tíica no interior da justiça por meio da perícia cas atribuídas ao interditando na petição inicial
é uma arrojada abordagem antropológica não representantes das instituições familiar, médica
legal (a prova judiciária). E, como ponto de do processo jurídico. Diferenças que também
só sobre os processos judiciais de interdição, e legal, e o papel que cabe às duas últimas na
união, pode-se dizer que o critério estabelecido estão relacionadas com os custos dos processos
mas principalmente sobre como essas institui- dinâmica de atribuição de uma identidade ao
para julgar o interditando no que diz respeito e com a soma de dinheiro a ser recebida.
ções negociam durante os processos a “verdade réu no processo.
aos seus direitos e obrigações não é mais jurídi- O autor mostra ainda que os processos
cientíica” da interdição. Da junção de pesquisa em arquivo com pes-
co e nem médico, “é algo entre esses dois uni- jurídicos classiicados segundo a categoria de
Como um mecanismo legal de natureza ci- quisa etnográica e das dimensões sincrônicas e
versos, é o resultado do encontro de práticas e “doença mental” são os mais férteis para o es-
vil pertencente à área do direito de família, a diacrônicas, Zarias estuda a interdição tratan-
saberes num campo onde a apreensão social de tudo da atividade de negociação existente entre
interdição é constituída por um processo jurí- do da interação de grupos. O autor pretende
certos atributos do comportamento humano as instituições familiar, médica e legal, pois os
dico no qual procura-se nomear alguém para mostrar quem são seus representantes e suas
condiciona a atribuição de papéis especíicos elementos simbólicos manipulados pelos seus
administrar a pessoa e/ou os bens e de quem instituições por meio da análise do emprego de

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participantes nos conduzem aos modelos e pa- brecha, inerente à estrutura do processo, per- MÍGUEZ, Daniel; SEMÁN, Pablo (orgs.). 2006.
péis aceitos e atribuídos aos indivíduos dentro mite, enim, uma inversão, ou até mesmo uma
de seu círculo social, indo além do ideal de sobreposição das funções – o que permite air-
Entre santos, cumbias y piquetes: las culturas
uma pessoa isicamente saudável. Isto porque mar que há um descompasso entre o pensa- populares en la Argentina reciente. Buenos Aires:
se a idéia que se tem sobre “doença” serve como mento individual e as categorias institucionais Editorial Biblos; 230 pp.
mediadora no processo de deinição do que se usadas para a classiicação do comportamento
entende por “capacidade civil”, nos casos de de um indivíduo. LAURA COLABELLA
doença mental, esta deinição é mais acentuada É assim que, congregando aspectos das
e importante, pois a própria expressão “doença perspectivas sincrônica e diacrônica, Zarias
mental” oferece uma estrutura lógica aos parti- mostra com maestria que os participantes da
cipantes da interdição para tornar inteligíveis os Interdição, sejam eles os requerentes, réus, fun- Entre categorías nativas, jerarquías y el modo en que las personas viven y atraviesan
comportamentos do interditando apreendidos cionários da justiça, médicos, etc. estão sujeitos obligaciones. diversos fenómenos mostrándolas de manera
em diferentes momentos do processo jurídico. a um conjunto de normas de conduta pré-esta- elocuente en su subjetividad. Sin embargo, no
Somada a isto, há a escolha metodológica do belecidas em função da estrutura relacional do Entre santos, cumbias y piquetes es una com- todos los autores aquí reunidos logran identii-
autor por estudar ações legais de longa data que campo a que estão submetidos. Nesse caso, os pilación de 10 artículos que reunieron Daniel car claramente las nociones propuestas por los
possuem a qualidade de agregar num só plano processos de interdição coniguram exemplos Míguez y Pablo Semán, jóvenes antropólogos compiladores a los que podríamos sumar los
diferentes versões sobre um caso para o qual fo- de um complexo campo relacional e nos per- doctorados en Holanda y el Brasil respec- términos o categorías nativas: materia prima de
ram utilizados os mesmos procedimentos, de- mitem discutir como as Instituições exercem tivamente, en los que se abordan, desde una todo antropólogo. Pues son aquellas que nos
monstrando que as lógicas operativas de uma socialmente seu domínio sobre os indivíduos perspectiva etnográica aunque con resultados revelan las formas de percepción que los sujetos
mesma instituição variam ao longo do tempo e seu grupo. disímiles, diferentes prácticas y manifestacio- de estudio tienen del mundo social en el que
e os tipos de conlito que essa mudança oca- Lidando com uma bibliograia interacionis- nes de los sectores populares en el contexto de interactúan.
siona também. Com esta opção, mostra como ta simbólica norte-americana e tendo de enfren- la Argentina reciente. Uno de los artículos que logra esta tarea más
o estudo de um documento sem a contextu- tar os “imponderáveis” da pesquisa acadêmica En una actitud provocativa, los compila- claramente es el de Garriga Zucal y Moreira sobre
alização de sua produção revela muito pouco (como greve do Judiciário e tempo curto de dores sugieren en la introducción del volumen las hinchadas de fútbol. Allí los autores discuten
sobre as condições sociais que o determinam e mestrado), o trabalho de Alexandre Zarias é dos modalidades de lectura posible. La primera el concepto de violencia comúnmente utilizado,
que certos atos dos participantes da interdição uma prova de que ainda há questões importan- de manera más corriente y lineal que resultaría por los medios de prensa y el sentido común eru-
também obedecem a uma organização social de tes e vigorosas necessitando de um pesquisador de seguir una lectura por agrupación temáti- dito, para designar a los enfrentamientos entre
outro tipo, a qual está circunscrita a uma lógica sempre à espreita e atento aos detalhes, como ca ubicando a los artículos bajo los rótulos de hinchadas de clubes diferentes. Dicha discusión
institucional, médica ou jurídica. é o caso das questões suscitadas pelos processos “política”, “fútbol” “religión”, “familia”; y otra conduce luego al término con que los prota-
É claro que há uma incompatibilidade de interdição. É uma prova também de que as que habilitaría al lector a una comparación gonistas deinen esos mismos hechos. Para los
das convicções pessoais com as decisões téc- ciências sociais, sempre atuais porque clássicas, trasversal buscando en los textos nociones re- hinchas que se enfrentan con otros clubes, esos
nicas exigidas no exercício da proissão. Este têm ainda muito a nos dizer sobre as instâncias currentes como las de jerarquías, reciprocidad episodios no son expresión de violencia sino más
aspecto, apreendido por meio da etnograia, de poder e de controle das sociedades moder- y obligación. Opté por ésta última por ser una bien señales de aguante. Esta categoría, según los
demonstra que as pessoas têm à disposição nas. Trata-se, portanto, de mais um encontro invitación a la relexión y a la búsqueda mi- autores, no es una muestra de irracionalidad
diferentes sistemas classiicatórios indepen- que tem muito a contribuir para o modo como nuciosa de nociones comunes de la teoría an- sino expresión de pertenencia a un grupo donde
dentes da Instituição à qual pertencem e essa tiramos conclusões a respeito de um fato. tropológica clásica. Los textos que componen a su vez están en juego cuestiones vinculadas a la
el volumen provienen de antropólogos forma- honra y el honor. El artículo señala también a las
autor Taniele Cristina Rui dos en Argentina, Brasil, Francia y los Estados hinchadas como grupos de espectadores ordena-
Mestranda em Antropologia Social / UNICAMP Unidos. Dicha diversidad dio por resultado dos de manera jerárquica. Entre ellos los más
una producción etnográica interesante que encumbrados son quienes se ocupan de obtener
Recebido em 01/11/2006 muestra los matices diversos que asume la vida recursos como entradas a partidos, pasajes, al-
Aceito para publicação em 06/12/2006 social de los sectores populares, en la provincia quiler de micros y ropa deportiva a través de sus
de Buenos Aires, poniendo especial énfasis en lazos con dirigentes. Esos bienes o dones forman

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 254-256, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006
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parte del circuito necesario para que los hinchas del Estado como planes sociales y alimentos a sectores populares que logra constituirse en colocados en relación con los ieles que reciben
pongan en juego una multiplicidad de cuali- cambio de votos y que en la Argentina tiene la “única heredera” de Gilda una cantante de sus dádivas. Por el contrario, la autora optó por
dades como la lealtad, el fervor entre los cuales la particularidad de ser una práctica que se le cumbias que luego de una muerte trágica de- presentar a santos populares provenientes de
el aguante es su expresión máxima. El fervor se adjudica, casi de modo exclusivo, al peronismo vino en santa popular. Un punto central que contextos y períodos muy disímiles de la Ar-
maniiesta en la cancha en los saltos y cánticos, (Cf. Auyero 2001). En este trabajo, la autora, señala la autora es que la protagonista accede, gentina con evidencias imprecisas sin señalar
en sostener las banderas, pero el aguante precisa a partir de una situación etnográica especíica a través de un contacto de su padre, a grabar cómo éstas fueron obtenidas. En suma, el ar-
de algo más pues éste se dirime poniendo el pe- muestra aristas interesantes del funcionamien- un disco en un sello de géneros tropicales que tículo no permite saber quiénes componen la
cho en peleas y enfrentamientos con otros clubes to de las organizaciones de desocupados. El inalmente no logra salir a la venta. Pero este es multitud de feligreses que van tras sus santos
destacando el uso relevante que tiene el cuerpo caso presentado reiere al momento en que los el único dato, que aporta la autora, del circuito en todo el país, qué les piden y cómo viven esa
en la defensa del honor al club. Se trata de un hijos de una referente local y antigua integrante de bienes intercambio en que la protagonista se deuda.
trabajo interesante cuyo aporte principal reside del movimiento se quedaron fuera del repar- apoya para constituirse en cantante y heredera. Una mención aparte merece el artículo de
en reconocer, a través de escenas etnográicas di- to de yogures que el movimiento acordó con El artículo es rico en mostrar los mecanismos Isla pues tiene la particularidad de ser el único
ferentes, los puntos centrales de un circuito de una empresa láctea previo envío de los listados. que esta mujer usa para trazar paralelismos en- trabajo que se apoya en una investigación lo-
intercambio que une a dirigentes de clubes, con Todo concluyó cuando la vieja militante recla- tre su vida y la de Gilda, pero son escasos los calizada fuera de Buenos Aires, en la provincia
los “capos” de las hinchadas, y con los “pibes” o mó a los gritos a la persona encargada de “los pasajes en que se la ve interactuando con otras de Tucumán, en el norte argentino. El artículo
jóvenes hinchas residentes de barrios populares papeles”, aquella encargada de confeccionar el personas que podrían reconocerla en su rol de tiene por foco un objeto difuso y poco claro “la
bonaerenses quienes, en deinitiva, son los que listado de los niños que recibirían su ración. El heredera. Todo ocurre como si la protagonista familia como espacio de armonía y conlicto y
ponen el pecho en el aguante. Sin embargo, lo caso sirve a la autora para mostrar cuáles son se convirtiera aisladamente en doble de la can- como ámbito para analizar relaciones de géne-
que el artículo no explora en detalle es cómo y los criterios nativos que las organizaciones uti- tante. Faltaría saber por qué apela a esos me- ro e identidades políticas durante el ascenso del
en qué momento las entradas, los pasajes, son lizan para distribuir alimentos. Los términos en canismos, qué signiica ser la heredera de una General Bussi”. El análisis se sostiene a partir
recibidos por los pibes de las hinchadas y cómo juego papeles y lucha son analizados en función santa popular en el mundo de relaciones de su de una serie de entrevistas al azar realizadas en
ellos representaron esas dádivas. Esos datos per- de un entramado de relaciones que liga a diri- barrio monoblocks, en el que vive con su espo- 1993 y con una revisita en el 2002. Varios son
mitirían identiicar el intervalo de tiempo que gentes encumbrados, viejos y nuevos miembros so – un policía retirado – y sus dos hijos; y en los problemas que presenta este trabajo. En pri-
existe entre la concesión de los bienes, las cami- de la organización en la distribución de recur- el que, a su vez, a diferencia de sus vecinas lleva mer lugar, el autor elude mencionar las peculia-
setas, entradas a partidos, la asistencia a la can- sos públicos, la mayoría de las veces. La autora los quehaceres de su hogar con disgusto pues ridades de su campo. La provincia de Tucumán
cha y el aguante. Porque probablemente éste sea presenta un análisis enriquecido con evidencias ella más que ama de casa es una cantante popu- es el productor principal de azúcar del país cuya
no sólo expresión de honor y pertenencia sino que ligan el término papeles con igualdad en lar. Ubicando a la protagonista en la trama de elaboración involucra a grupos de trabajadores
también una forma de retribución. Dicho en la distribución pues quien los presentó a tiem- sus relaciones más próximas se harían visibles diferenciados por el tipo de contratación. Es-
otras palabras falta saber cuánto de los bienes po recibió su ración; y el término lucha con el otras nociones menos ligadas a lo sagrado, y tán los obreros industriales de los ingenios que
que controlan los dirigentes de los clubes le de- de antigüedad en el movimiento. Esos son los más próximas a los modos en que es conferido tienen cierta estabilidad, los zafreros o peones
ben al aguante. argumentos que los miembros de esta organi- el prestigio entre los habitantes de un barrio contratados sólo de mayo a octubre durante los
Otro artículo que identiica categorías nati- zación discuten a la hora de distribuir un bien marginal. Una noción que tampoco abordan el meses de la zafra y los pequeños arrendatarios
vas y redes de obligación e intercambio es de de insuiciente. A su vez, el artículo ilumina otro resto de los artículos compilados. En una línea (Cf. Santamaría 1986: 88-90). Estos últimos li-
Ferraudi Curto sobre distribución de alimen- aspecto poco explorado por la literatura sobre temática similar se ubica el artículo de Caro- gados a un patrón a través de lazos personales y
tos en una organización piquetera del sur del movimientos sociales, el de la subjetividad de zzi sobre antiguos y nuevos difuntos. La autora de obligaciones mutuas. Nada de esto es incor-
gran Buenos Aires. Este artículo, a diferencia las personas que se involucran en tales movi- compara en la literatura sobre religión a los di- porado en el análisis de Isla. Pero lo que aún lla-
de otros de su misma temática, tiene el méri- mientos (Cf. Quirós 2006) y en particular el funtos canonizados en la década de los 90 con ma más la atención es que no sean consideradas
to de poner en tela de juicio el concepto de carácter conlictivo y de rivalidad que se desata los que accedieron en décadas anteriores pero las condiciones sociales que hicieron posible, a
clientelismo político. En primer lugar, porque cuando los bienes en circulación son, nada me- no explicita el propósito de tal comparación. mediados de los ´70, la presencia de grupos de
no se trata de una categoría nativa sino de un nos que, alimentos destinados a niños. Los casos presentados corresponden a santos izquierda armada en la sierra tucumana con la
término de origen político con una fuerte con- En la línea de la subjetividad el trabajo de milagrosos, es decir, a difuntos que dan cosas intención de reproducir la experiencia cubana
notación moral. En general, es utilizado para Martín sobre la “doble de Gilda” merece espe- o hacen favores o más aún capaces de conceder en la Argentina. La sorpresa de esta ausencia
designar un tipo de intercambio de bienes cial atención. Allí se muestra a una mujer de milagros. Sorpresivamente los difuntos no son responde a que Bussi tuvo, en aquel período,

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 257-262, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 257-262, 2006
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un rol protagónico a cargo de las fuerzas de se- la actuación de una ONG encargada de tareas intercambio y los tipos de bienes en circulación tiplicación de iglesias pentecostales se debe a
guridad destinadas a “combatir la guerrilla”, en comunitarias como apoyo escolar, merienda re- como planes sociales en dinero de los planes que muchas de ellas surgen a partir de desa-
un plan sistemático que recibió el nombre de forzada y huertas comunitarias, atendidos por alimentarios que los punteros controlan y más iliaciones por conlictos en la administración
“Operativo Independencia”; lanzado en 1975 vecinos de un barrio en calidad de “volunta- aún está ausente en el análisis la voz de los des- de bienes religiosos que dan lugar a la apertura
bajo el gobierno de Isabel Perón. Dos décadas rios” y presidida por un sindicalista en ascenso. tinatarios de los beneicios. de nuevas iglesias en otros barrios. Pero no son
más tarde Bussi asumía como gobernador de El autor presenta ricas evidencias del cambio Antes de pasar a los artículos de los com- presentadas las causas de esos conlictos y las
Tucumán en elecciones libres y democráticas. que ocurrió en dicha institución cuando los piladores del trabajo de Cepeda y Rustoyburu personas que participan de ellos. Un proble-
Fue en ese contexto en el que el autor inició voluntarios fueran inscriptos en el Plan Jefes sobre la “distribución de quehaceres domésti- ma recurrente del artículo es que las evidencias
su trabajo de campo sobre “violencia familiar e de hogar, un subsidio a desocupados por $150, cos en hogares de la ciudad de Mar del Plata” presentadas son imprecisas y tienen un grado
identidades políticas” pero preirió eludir esas convirtiéndose en beneiciarios; y del reempla- sólo diré que sorprende su inclusión en el vo- de generalidad bastante alto. Esto es, se air-
referencias. En contrapartida optó por presen- zo de los encargados del merendero desatando lumen. La sorpresa se debe a que las autoras man las habilidades que un pastor protestante
tar casos aislados de “violencia” entendida en entre los beneiciarios el temor a “ perder el no se apoyan en evidencias etnográicas sino “puede” o “debe tener” pero no es posible ver
términos de golpizas de los maridos hacia sus plan”. Pero el problema del artículo reside en en datos obtenidos de “formularios con pre- en el artículo a un pastor de carne y hueso ejer-
mujeres y de éstas hacia sus hijos sin ofrecer, al la interpretación que Noel hace de la relación guntas dirigidas” cuyo resultado derivó en ge- ciendo su rol o conociendo la red que debió
lector, evidencias sobre las actividades del gru- que se establece entre quien da y quien reci- neralizaciones que no explican cómo fueron atravesar para poder constituirse en líder de
po familiar, distribución de las tareas domésti- be el subsidio. Para el autor, el presidente de obtenidas. una iglesia protestante. Así no es posible expli-
cas, y tipos de relaciones y circulación de bienes la ONG “usa” a la institución para “acumular Por último pasaremos al análisis de los ar- car las condiciones que permiten la expansión
con otras personas allegadas. Dicho en otras capital político” y para los beneiciarios dicha tículos de cada uno de los compiladores. El de iglesias pestecostales en los barrios carencia-
palabras no describe el contexto en que los situación es “invisible” pues ellos con la simple texto de Míguez analiza el fenómeno de la dos del conurbano. Lo mismo puede decirse
hombres se encolerizan y se violentan con sus asistencia a sus tareas comunitarias reprodu- cumbia villera a través de las letras de dife- del análisis del “rock chabón”. Se menciona
mujeres. Este punto no es menor pues marcó cen de manera automática la maquinaria del rentes grupos de ese género. El artículo es un su crecimiento y el avance de ciertas bandas
una inlexión en la historia de nuestra discipli- clientelismo político. Los beneiciarios más que minucioso análisis de las temáticas que abor- musicales pero no se mencionan quiénes son
na. Fue el propio Malinowski quien reconoció personas involucradas en redes de relaciones dan esos grupos: el uso de drogas y alcohol, el los jóvenes que participan de ellos. Un pro-
la crítica de Mauss en relación a la inexistencia recíprocas aparecen retratados como “ciegos” y paso por el sistema carcelario, el uso de armas blema central además, es que el término “rock
de dones libres como los airmaba en relación “autómatas”. Dicha caracterización parece res- de fuego y la vida en las villas de emergencia. chabón” no es una categoría nativa sino una
al marido y la mujer. El abordaje, adecuado, ponder a que no hay en el artículo información Pero están ausentes del análisis los escenarios expresión peyorativa, de cierta prensa especia-
se corrige Malinowski consiste en un examen sobre el modo en que los voluntarios fueron donde los grupos se despliegan, las historias lizada en crítica musical (Cf. Marchi 2005),
de dones, deberes y beneicios mutuos entre el inscriptos al plan jefes, los requisitos de los be- de los protagonistas y más aún el modo en para referirse a bandas de rock cuyos integran-
marido, la mujer, los hijos y el hermano de la neiciarios y menos aún sobre la duración del que un joven, habitante de un barrio marginal tes son habitantes de villas y asentamientos
mujer (Cf. Sigaud, 1999: 99). Pero los proble- subsidio y las obligaciones de contraprestación. logra comprar instrumentos, armar su grupo bonaerenses y en cuyas presentaciones el pú-
mas de este artículo probablemente se deban a Esos datos podrían darnos la clave para com- y alcanzar popularidad. A ello se agrega la blico tiene una participación particularmente
que se apoya en una investigación cuyos datos prender, el temor y la angustia de las personas ausencia de la relexión sobre el rótulo “cum- activa que incluye el uso de material pirotéc-
fueron obtenidos sólo de “entrevistas abiertas” que se involucran en la distribución de recur- bia villera”: ¿ será el término expresión de los nico. La insistencia por las categorías nativas
sin complementarlos con otros datos provis- sos cuando se avizora la posibilidad de peder seguidores del género o será invención de la no es un mero capricho de mi parte sino que
tos por otra herramienta vital: la observación el bien y quedar fuera del circuito, un punto prensa musical?. responde a que su identiicación es la única vía
y permanencia entre los nativos. Dos puntos que ya vimos en el artículo de Ferraudi Curto. Para inalizar, el trabajo de Semán nos in- posible para alcanzar formas de percepción del
ineludibles a los que también Malinowski pres- En la misma línea aunque con escasas eviden- troduce en una problemática similar el análisis mundo social y así mantener vivos los propó-
tó especial atención cuando señaló la necesidad cias empíricas se destaca el artículo de Puex. El del “rock chabón” para compararlo con otra sitos comprensivos de nuestra disciplina. Los
de enmarcar a los datos etnográicos en propó- trabajo señala la mayor o menor autonomía de práctica en aumento en los barrios populares: puntos controversiales que recorren esta reseña
sitos cientíicos. los “punteros”, personas del partido peronista el aumento de las iglesias pentecostales. No no pretenden desmerecer un libro interesan-
Una breve mención merecen otros dos artí- que controlan un grupo de votantes a través son claros los propósitos de la comparación te, polémico y rico en matices que apuestan
culos sobre política. El primero de ellos es un de la distribución de recursos, respectos de los salvo que se trata de fenómenos en etapa de al debate y la relexión en un área nueva y que
interesante trabajo autoría de Noel que explora intendentes. Pero no distingue los circuitos de “proliferación”. El artículo señala que la mul- promete ser más que prolíica.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 257-262, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 257-262, 2006
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Referências bibliográicas SIGAUD, L. 1999. As vicissitudes do ensaio sobre o BROWN, Michael F. 2003. Who Owns Native
dom. Mana, 5(2): 89 -124.
AUYERO, Javier. 2001. La política de los pobres: Las
Culture?. Cambridge/ Massachusetts/ London:
prácticas clientelistas del peronismo. Buenos Aires: Agradecimentos Harvard University Press; 315 pp.
Manantiales.
MARCHI, Sergio. 2005. El rock perdido: De los hippies Agradezco especialmente los valiosos apor-
a la cultura chabona. Buenos Aires: Le Monde Diplo- JOANA DE FREITAS LINS
tes y comentarios de Rosana Guber y Patri-
matique.
cia Vargas, la lectura de Brígida Renoldi y
QUIRÓS, Julieta. 2006. Cruzando la Sarmiento: una et-
nografía sobre piqueteros en la trama social del sur del
las sugerencias que recibí de un evaluador(a)
Gran Buenos Aires. Buenos Aires: Antropofagia. anónimo(a) a una versión preliminar de esta
Entre o inal dos anos 1980 e o início dos Native Culture1, onde o autor discute questões
SANTAMARÍA, Daniel. 1986. Azúcar y sociedad en el reseña.
noroeste argentino. Buenos Aires: IDES.
1990, Martinho da Vila lançou a música “Ma- como apropriação cultural, direito à privacidade
dalena do Jucá”, baseada em uma melodia e e ao segredo e direitos autorais, no contexto de
versos de congo do Espírito Santo, de domínio reivindicações de defesa de direitos de povos na-
público. A música foi um de seus maiores su- tivos. Seu objetivo é propor formas de controle
cessos, mas suscitou protestos de grupos tradi- sobre a informação cultural que sejam eticamente
autor Laura Colabella cionais e de alguns estudiosos, que o acusavam consistentes, mas acima de tudo realistas, ou seja,
Doutoranda em Antropologia Social / MN-UFRJ de apropriação cultural. Lado a lado com as que levem em consideração a luidez das culturas
acusações e denúncias de que Martinho da Vila e as limitações de uma regulamentação puramen-
Recebido em 02/11/2006 estaria lucrando às expensas de uma criação te legal, que pode ter conseqüências imprevistas
Aceito para publicação em 09/01/2007 popular – ou pior, de grupos cujos membros e mesmo indesejáveis. De linguagem simples e
viviam em situação econômica precária – sur- direta, o livro pode ser lido não apenas por espe-
giam argumentos que apoiavam a iniciativa de cialistas, mas por qualquer pessoa interessada no
um músico famoso que estaria ajudando a di- debate recente sobre cultura e direitos.
vulgar o congo e o Estado do Espírito Santo. Michael Brown é professor de Antropolo-
Martinho argumentava que conhecia a música gia e Estudos Latino-Americanos do Williams
desde a infância e que ela era cantada por diver- College, formado em Princeton e doutorado
sos grupos, sendo que a sua era uma versão ori- na Universidade de Michigan. Relativamente
ginal. Em nome de que grupo deveria a música conhecido entre os etnólogos brasileiros, suas
ser registrada? Seria possível nomear um autor, áreas de interesse incluem religião e ritual,
sendo a música muito antiga e conhecida por ecologia humana e propriedade intelectual e
diversos grupos e mesmo por pessoas sem liga- cultural. Os primeiros trabalhos do autor tra-
ção com a tradição dos congos? Atualmente a taram da Amazônia peruana e de movimentos
música é registrada em nome do compositor indígenas, tendo se interessado, durante suas
e da Associação de Congos do Espírito Santo, pesquisas, pelo movimento New Age, do qual
mantendo também a referência ao domínio trata um de seus trabalhos mais famosos fora
público, solução negociada e bastante inovado- do Brasil, he Channeling Zone: American Spi-
ra, tendo em vista que a maioria das versões rituality in an Anxious Age, de 1997. As acusa-
e gravações musicais baseadas em músicas de ções a participantes de movimentos New Age
domínio público nem sequer indicam a origem de apropriação cultural por parte de grupos
de suas fontes.
É com base em casos semelhantes a este, ocor- 1. O livro não foi traduzido para o português. Uma tra-
dução literal seria A quem pertence a cultura nativa? As
ridos nos Estados Unidos e na Austrália, que se
traduções de citações colocadas ao decorrer do texto
estrutura o livro de Michael Brown, Who Owns são minhas.

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indígenas americanos o levou a pesquisar pro- cultural, onde estão envolvidos não apenas os e do exterior (tanto de povos indígenas quanto A legislação que regula bens culturais não
priedade cultural e direitos indígenas. “nativos”, mas também ativistas, antropólogos, de afro-descendentes), ainda é incipiente. oferece soluções para a complexidade dos ca-
documentaristas e agentes do Estado. Outros casos colocam em questão o uso de sos tratados no livro, e nem deveria, segundo o
Até que ponto pode a lei controlar o luxo das O primeiro caso analisado pelo autor é um conhecimentos tradicionais para ins comer- autor. Brown aponta para a necessidade de diá-
idéias? Faz sentido que grupos étnicos deinam documento encaminhado pelo povo Hopi a um ciais – sejam pinturas aborígines reproduzidas logo na construção de soluções para cada con-
suas práticas culturais como uma propriedade museu americano em 1994, onde lideranças so- sem o consentimento do artista que as pro- texto, levando em conta os interesses dos vários
que não pode ser estudada, imitada ou modiica- licitam que registros etnográicos coletados pelo duz (ou da tribo à qual ele pertence), seja o grupos e agentes envolvidos: “abordagens que
da sem sua permissão? Até que ponto podem os missionário H. R. Vogh a partir do inal do sé- uso de ervas na fabricação de medicamentos, airmem o caráter inerentemente relacional do
estados democráticos se comprometer a oferecer culo XIX, sejam acessados apenas com consen- sem que haja retorno inanceiro para o grupo. problema” (: 10). Para ele, a construção de uma
proteção cultural a suas populações nativas sem timento prévio da comunidade. Reproduções Aqui o problema central, embora certamente “alteridade radical”, que acaba por considerar
violar os direitos do resto da população? Qual das fotos de H. R. Vogh são comuns em muitas não o único, é econômico: o contraste entre a as culturas indígenas como entidades puras e
o futuro do domínio público, pressionado, por etnograias sobre os Hopi, e seu material inclui precariedade das condições de vida de muitas encerradas em si mesmas, pode impossibilitar a
um lado, pela lógica privatizante do mundo em- não apenas registros visuais, mas gravações so- populações indígenas em relação às sociedades comunicação entre diferentes, levando à restri-
presarial e, por outro, por ativistas que pregam noras, textos de vários tipos e até anotações de onde estão inseridas e a magnitude dos lucros ção à circulação de informações e à construção
formas coletivas de direitos autorais? (: 7). campo. A restrição aplica-se especialmente a obtidos por empresas farmacêuticas, fonográ- de conhecimento. Ainal, como deinir quem é
materiais sobre religião e outros assuntos con- icas e outras que freqüentemente se aprovei- indígena? Quem, dentro das disputas internas
No início de cada capítulo Michael Brown siderados “sensíveis” pelos Hopi. Questiona-se tam de conhecimentos nativos (em pesquisas de cada grupo e entre grupos, deve ter prio-
introduz um mote, a partir do qual questões nesse caso não apenas a divulgação de informa- de bioprospecção ou procurando atingir um ridade de decisão? Ainda: em nome de quem
como essas – teóricas, éticas e práticas a um ções consideradas secretas, mas também suas mercado crescente e interessado em produtos registrar práticas e conhecimentos partilhados
só tempo – são discutidas. Ao longo dos oito condições de coleta, já que segundo alguns in- “nativos genuínos”). Entretanto, “[o] conlito por mais de uma comunidade?
capítulos o autor enfoca diversos aspectos das formantes o missionário participava de rituais e não pode ser reduzido a agendas políticas ou A defesa de direitos dos povos nativos não
disputas pelo controle da informação cultural, os registrava sem consentimento dos índios. econômicas sem ignorar os processos sutis atra- deve ser feita de modo inconseqüente e in-
tentando inserir os debates sobre direitos espe- Os Hopi desejam que esse material seja re- vés dos quais, em momentos de crise, forja-se a gênuo. O cerne das preocupações do autor,
cíicos de povos indígenas e minorias dentro, patriado, a partir da Native American Graves auto-deinição coletiva.” (: 189-190). levando-se em consideração os diversos con-
por um lado, daquele mais amplo sobre domí- Protection and Repatriation Act (NAGPRA), de Dispositivos como patentes, direitos au- textos que ela envolve assim como embates po-
nio público e livre circulação de informações, 1990, que visava inicialmente à devolução de torais e marcas registradas não são adequados líticos e questões éticas, pode ser resumido pela
em face do avanço de patentes e registros e, por objetos sagrados e restos humanos, coletados em para regular o luxo de produções coletivas e airmação seguinte: “Como estratégia retórica,
outro, das novas tecnologias, que permitem a cemitérios indígenas, aos seus povos de origem. apresentam limitações – têm um prazo de vali- a insistência de um grupo no fato de que ele, e
reprodução e circulação de informações e cujo O decreto acabou sendo interpretado de forma dade e não restringem citações ou uso de par- apenas ele, conhece sua própria história, pode
controle é praticamente inviável. mais ampla, servindo como instrumento para tes do material protegido, além de referirem-se ser útil; como orientação para políticas públi-
As situações selecionadas são recentes e diver- reivindicações diversas, como a descrita acima. especiicamente apenas à versão registrada. cas em um estado multicultural o argumento
sas disputas descritas no livro continuavam sem Para Michael Brown, o debate em torno das Comentando dois processos movidos pelo con- é potencialmente suicida. O princípio das de-
solução até sua publicação. Assim, começamos noções de patrimônio e direitos autorais expli- trole do uso de imagens nativas por povos indí- mocracias pluralistas é que os grupos que con-
acompanhando casos de solicitação de restri- cita a disputa pelo controle sobre a cultura, a genas norte-americanos, Brown coloca que vivem devem falar sobre as culturas e histórias
ção da divulgação de imagens e outros registros manipulação de identidades e a resistência à assi- uns dos outros. Sem essas trocas, eles não são
e símbolos “sensíveis” de povos indígenas nos milação à sociedade abrangente, inclusive como no fundo, o caso dos Snuneymuxw, assim como capazes de construir um convívio cívico e du-
Estados Unidos e na Austrália; projetos de co- meio de garantir direitos – “é necessário que o dos Zia, refere-se menos à propriedade inte- rável. Todas as sociedades permitirem-se algum
laboração entre cientistas e comunidades campo- controlemos nossos documentos para contro- lectual que à resistência à proliferação descon- grau de auto-mitologização. Perspectivas exter-
nesas no México, com acusações de biopirataria; lar nossa história” (: 33). Tal debate pode ser de trolada dos signos – mais precisamente, cópias nas fornecem correções necessárias.” (: 224).
disputas sobre o uso de espaços públicos onde grande interesse no contexto brasileiro, onde a dos signos – que uma comunidade considera A criação de mecanismos de proteção baseados
se localizam lugares sagrados para aborígines e discussão sobre “repatriação” e direitos sobre ob- seus. A linguagem do lucro que regula as marcas unicamente em leis pode levar à burocratização
índios pueblos; e, por im, propostas de criação jetos e restos mortais, coletados por pesquisado- registradas ajusta-se apenas de forma canhestra (no sentido weberiano) e instituir formas de con-
de mecanismos legais de proteção ao patrimônio res e museus de arqueologia e etnologia do Brasil a preocupações religiosas (: 86). trole institucional e de poder sobre a circulação de

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 263-266, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 263-266, 2006
266 | Joana de Freitas Lins

informações, inclusive sobre os próprios grupos aos cientistas sociais mas também aos movimentos HIKIJI, Rose Satiko Gitirana. 2006. A Música e
indígenas, mesmo quando o objetivo inicial é o de sociais, legisladores e outros, Michael Brown torna
garantir direitos e liberdades a eles (e aqui o autor público, em um sítio eletrônico, o acesso aos do-
o Risco: etnograia da performance de crianças
inspira-se em Michel Foucault). cumentos citados no livro, processos judiciais, sí- e jovens participantes de um projeto social de
Ao problematizar situações recentes e suas tios eletrônicos e outras fontes bibliográicas sobre ensino musical. São Paulo: EDUSP; 256 pp.
conseqüências práticas, assim como descrever a os “esforços pelo controle sobre o conhecimento e
dinâmica das negociações entre diferentes agen- a produção cultural originária de sociedades indí- FRANCIROSY CAMPOS BARBOSA FERREIRA
tes, Michael Brown complexiica o debate sobre genas” (http://www.williams.edu/go/native/).
propriedade cultural e sobre as interfaces entre A questão da apropriação cultural é relativa-
pesquisa e luta por direitos, entre as abordagens mente fácil de ser identiicada, porém, as soluções
sobre uma cultura e como os agentes a mobili- para ela não são simples e envolvem não apenas
zam na ação (que traços e que signiicados são a “cultura nativa”, mas a questão da circulação Para tocar bem música, você precisa estabelecer biográico é ressaltado, uma vez que é funda-
valorizados e como certos atributos servem como da informação e dos direitos culturais e autorais um equilíbrio entre cabeça, coração e estômago. mental no exercício interpretativo que constitui
mediadores entre universos culturais distintos), como um todo, sobretudo em sociedades mul- (Baremboim & Said [2003] apud Hikiji 2006: 19). essa pesquisa, bem como o foi no surgimento da
recolocando questões como identidade, tradição ticulturais e democráticas. Em certas passagens curiosidade que a impulsiona... (2006: 21).
e mudança na ordem do dia. Uma de suas con- o pressuposto de tais valores limita o alcance A antropóloga Rose Satiko Hikiji em seu li-
clusões mais interessantes é que nos contextos do debate, já que outros deslocamentos seriam vro, A Música e o Risco, resultado de sua tese de Suas questões dizem respeito à especiicida-
de disputa também se confere sentido e sacra- necessários para tratar, por exemplo, de países doutoramento em antropologia social pela USP, de do aprendizado musical: por que a música
lidade a lugares, práticas, ritos e imagens. Nesse em desenvolvimento. Não é à toa que a grande traz como pano de fundo questões sociais que envolve os participantes? Por que a música veio
sentido, os povos indígenas são recolocados em maioria das situações descritas são provenientes permeiam há muito tempo as Ciências Sociais ocupar um lugar de destaque dentre os proje-
sua condição de atores e não apenas vítimas da dos Estados Unidos e da Austrália, países com e que englobam jovens e crianças de baixa ren- tos sociais voltados à questão do menor? Para
sociedade ocidental ou do colonialismo, como tradição na organização dos movimentos indíge- da em “situação de risco” e o seu fazer musical. dar conta dessas questões, a autora desenvolve
poderia ocorrer se a questão fosse tratada de ma- nas e legislação bastante complexa nesse âmbito. No entanto, a autora vai além da dicotomia en- cinco capítulos, que nos colocam em contato
neira simplista, sem levar em conta a ambigüi- Apesar da sensação de certa falta de conclusão tre aqueles que têm acesso à educação e aqueles com a música, objeto que ela constrói antropo-
dade que as agências e políticas podem portar. que o livro deixa no leitor, trata-se de um traba- que estão à margem do processo educacional. logicamente. Música como intervenção social.
Os objetivos principais são levantar questões, lho fundamental para as discussões sobre patri- Seu trabalho, no contexto teórico da antro- Hikiji airma que os projetos de intervenção
complexiicar debates e marcar a necessidade de mônio, legislação e propriedade cultural, assim pologia da performance, desaia a antropologia estão preocupados com ética, política e fazer
uma abordagem realista e, apesar de o autor não como no debate entre história e agência, por des- clássica a pensar os seus velhos moldes de aná- social, mas em se tratando de música a autora
chegar a conclusões sobre os problemas levanta- crever situações recentes e que se referem muito lise, propondo a certo ponto uma antropologia não descarta os demais elementos que lhes são
dos, sugere caminhos. Assim, não cabe procurar de perto à prática da pesquisa antropológica. da experiência. Autores como Victor Turner e constitutivos: estética, arte e prática musical.
aqui uma discussão teórica exaustiva. O autor não Richard Schechner são contemplados de forma Segundo Hikiji, esses projetos sociais ga-
aprofunda teoricamente suas colocações, apenas Nota magistral e ajudam a iluminar os caminhos tri- nharam força na medida em que há “adoles-
indica referências e diálogos potenciais, como lhados pela autora, momentos performáticos, centes e crianças em situação de rua”. A rua,
com Weber, Foucault e Marilyn Strathern. Seus Esta resenha foi produzida no contexto do liminares, liminóides... que outrora era o lugar de lazer e sociabilidade,
principais interlocutores diretos são os atores en- curso História e Teorias Antropológicas I, na Hikiji apresenta seu interesse pessoal em hoje é o lugar do perigo. “Quando não se tem o
volvidos nas situações descritas, além de ativistas UNICAMP, ministrada pelo Prof. Dr. John Ma- relação à música. Ela é música e, também por que fazer se aprende besteira” (: 82). O tempo
das questões indígenas. Nesse sentido, de abrir ca- nuel Monteiro (a quem agradeço pelos comentá- isso, estabelece um contato muito profícuo do “ócio” é o tempo do perigo, é preciso tirar
minhos para um debate que não interesse apenas rios e sugestões), no primeiro semestre de 2006. com os meninos que aprendem e fazem música o jovem da rua apontam as pessoas pesquisa-
no Projeto Guri. das pela autora. A prática musical é vista como
autor Joana de Freitas Lins
uma forma de ocupação do tempo dos jovens
Mestranda em Antropologia Social / UNICAMP
É também objeto de interesse pessoal: desde os e como via de acesso ao exercício da cidadania.
cinco anos, quando comecei a estudar violão, O aprender está relacionado ao trabalho, a uma
Recebido em 06/11/2006
nunca deixei de tentar fazer música. O dado determinada utilidade, “tocar em algum lugar”
Aceito para publicação em 06/12/2006
cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 263-266, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006
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é o mínimo que se espera. A música estabeleci- principalmente quando se trata dos músicos Mas nada é mais instigante do que a própria Neste momento inal, não poderia deixar de
da como o trânsito entre o lazer e o trabalho. de igrejas evangélicas. Isso responde por que a experiência da pesquisadora, que se deixa re- revelar a predileção pelo último parágrafo do li-
É relevante a trajetória de pesquisa de Hiki- música erudita ganha destaque signiicativo em velar. A descrição de sua participação em uma vro, no qual um árabe e um judeu tocam juntos
ji. No seu mestrado preocupou-se com a cons- projetos de intervenção sociais. aula de Sentai-Ho, ou tocando na orquestra a mesma nota. A música une pólos opostos, por
trução da violência como linguagem no cinema Estes buscam, na sua maioria, estimular a junto aos meninos, ou revelando o seu medo um instante, é possível esquecer o que os separa-
de icção da década de 1990. Como ela mesma cidadania, a auto-estima e a inclusão social. entre os internos da Febem. Tornar-se outro va. A música é fronteira nesses intervalos de paz,
fez questão de sublinhar: a música e o cinema Arte-educação vista como meio de intervenção. não é abandonar-se, airma Schechner. Hikiji seja com os meninos da Febem, seja no Oriente
são manifestações estéticas. Neste universo ela Nesse sentido, a arte “reduz” o risco ao promo- permitiu-se estar/ser outro, no encontro de si Médio... Mesmo que haja desigualdade social,
utilizou-se do vídeo como instrumento e pro- ver a cidadania, integração social, sociabilidade mesma. Espetáculo do encontro antropológi- econômica e religiosa há música e, com música,
duto de sua pesquisa. Em campo ela soube e auto-estima, é isso que Hikiji encontra nas fa- co. A prática musical aparece aqui como mo- os riscos são menores, até deixam de existir.
muito bem utilizar o recurso vídeo-entrevista las dos seus interlocutores. A auto-estima, por mento de intervalo, de liminaridade e, por que
e com isso possibilitou uma aproximação com sua vez, é associada ao “prazer” de ser visto em não, como airma a autora, de relexividade. A [um garoto sírio] se viu dividindo uma estante
os internos da Febem que resultou no vídeo espaços antes não ocupados, como o palco de performance nada mais é que o prolongamento com um violoncelista israelense. Eles estavam
Microfone, Senhora. Não vou aqui fazer uma um teatro. da vida cotidiana, tal como é formulada por tentando tocar a mesma nota, tocar com a mes-
análise dos vídeos1, mas vale a pena pontuar Richard Schechner. ma dinâmica, o mesmo movimento do arco, o
a importância deles na produção do conheci- A pesquisa junto ao projeto Guri mostrou que a A música e o risco merece aplausos. Aplau- mesmo som, a mesma expressão. Estavam ten-
mento estabelecido pela autora que conclui: prática musical efetivamente mobiliza mecanis- sos... Como um bom espetáculo que se reve- tando fazer a mesma coisa juntos. Simples as-
“Se a captação de imagens e sons é importante mos de sociabilização de criação de identidades, la no palco – nas páginas – uma após outra, sim.[...] alguma coisa de que gostavam, alguma
instrumento de comunicação com os jovens, a reforça sentimentos de pertencimento, amplia cenas, frames, discursos, performances. É mo- coisa que os apaixonava. Bom, tendo consegui-
edição é um processo relexivo” (: 34). Nesse horizontes espaciais e alteridades (: 97). mento relexivo de dentro dessa antropologia do aquela nota, já não podiam se olhar da mes-
sentido, para Hikiji, os vídeos podem ser poli- da experiência, da antropologia compartilhada. ma forma, porque haviam compartilhado uma
fônicos, polissêmicos e interpretativos (: 39) e Interessada em saber qual a mimese entre mú- Antropólogos sentem e por sentirem são outros experiência comum (Baremboim & Said [2003]
é com essa perspectiva que ela vem produzindo sica e vida cotidiana, analisa a proposta pedagó- e são eles mesmos. apud HIKIJI 2006 :239).
os seus. gica do Projeto Guri. “A aula passa a ser locus de
É a sensibilidade que reverbera em seu tex- transmissão de valores, de experiências, de ima-
autor Francirosy Campos Barbosa Ferreira
to. Relembra uma passagem interessante do gens que ultrapassam a esfera musical atingem
Doutoranda em Antropologia Social / USP
texto de Richard Schechner quando este air- a vida dos praticantes como um todo” (: 102).
Pesquisadora do GRAVI/USP e NAPEDRA/USP
ma que “performers de diferentes culturas tem Acredita-se que o contato com instrumentos e
Editou o Cadernos de Campo nos 10 a 12
mais facilidade de entender um ao outro – e de repertórios diversos levará à ampliação do uni-
trocar técnicas, anedotas ou informações – do verso cultural dos jovens e de suas comunidades.
Recebido em 06/11/2006
que pessoas da mesma cultura que não sejam A intenção é formar um público qualiicado. “O
Aceito para publicação em 06/12/2006
performers” (: 54). Dá para entender, porque a importante aqui é você ser um músico, não ser
pesquisadora mesmo não sendo da mesma clas- um roqueiro, um pagodeiro...” (: 112).
se social dos entrevistados, soube muito bem A música passa a fazer parte do cotidiano
captar o “sentido” que subjaz para eles na prá- desses jovens (internos da Febem) ou não. O
tica musical. Pesquisadora e pesquisados falam, instrumento ganha uma dimensão especial,
em certa medida, a mesma língua: a música. pois esse deve se moldar ao corpo. Corpo e
Outro aspecto interessante é o fato de a instrumento devem estar em sintonia. O ins-
formação orquestral não ser completamente trumentista aprende mimeticamente, além
estranha à população de baixa renda, sendo da visão, observação e imitação, o contato é
uma das possibilidades musicais da periferia, fundamental. Em se tratando dos jovens da
Febem, eles são levados a adquirir um outro
corpo. Corpo submisso, vigiado.
1. A própria autora os apresenta em seu livro.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 267-269, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 267-269, 2006
informe
Comunidades quilombolas e a garantia dos
direitos territoriais: as ações da Comissão
Pró-Índio de são Paulo

A Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI- se deve, em grande medida, à própria organiza-
SP) é uma organização não-governamental que ção das comunidades, visando a garantia de um
tem como beneiciários os povos indígenas e as direito assegurado pela Constituição de 19882.
comunidades remanescentes de quilombo do E esse fenômeno envolve uma série de atores,
Brasil. como movimentos sociais, ONGs, antropólo-
Fundada em 1978 por antropólogos, advo- gos e historiadores ligados a universidades e o
gados, professores universitários e médicos, a próprio governo que tem de lidar com uma de-
CPI-SP conta com uma longa história de reali- manda crescente.
zações1. Dentre elas, estão as primeiras mobili- Visando fortalecer esse processo, bem como
zações contra a “falsa emancipação dos índios”, contribuir com a garantia dos direitos das co-
em 1978; a presença atuante na Constituinte, munidades quilombolas, a CPI-SP dedica-se
entre 1986 e 1988; a luta contra os megapro- a pesquisar e divulgar como os mesmos vêm
jetos hidrelétricos e a favor dos atingidos pelas sendo reconhecidos na legislação, implemen-
barragens, a proposição de alternativas para a tados pelo governo e interpretados pelo Poder
política energética no Brasil e a conquista da Judiciário. São três as linhas de pesquisa e mo-
primeira titulação de terras de quilombos no nitoramento:
Brasil, em 1995.
A questão quilombola entrou na pauta Legislação
dessa organização em 1989, por meio do pro-
grama de apoio às populações atingidas por Desde 2002, o sítio eletrônico da CPI-SP
empreendimentos hidrelétricos. Naquele ano, apresenta uma relação das disposições legais e re-
a CPI-SP foi convidada por órgãos da Igreja gulamentares (federais e estaduais) referentes às
Católica a auxiliar na organização das comu- comunidades quilombolas que é atualizada se-
nidades quilombolas no Vale do Ribeira (SP) mestralmente. O repertório apresenta também
e no rio Trombetas (PA), que estavam amea- uma seção internacional dedicada à legislação de
çadas por projetos de barragens. A partir dessa Colômbia, Equador, Nicarágua e Honduras, as-
primeira experiência, a CPI-SP estruturou um sim como aos instrumentos internacionais.
programa especíico para atuar na defesa dos É possível consultar os textos das leis e tam-
direitos dessas comunidades e no apoio à sua bém os artigos produzidos pela equipe da CPI-
organização. SP no endereço eletrônico:
Nos 17 anos que se seguiram, observamos www.cpisp.org.br/htm/conheca_quilombos.
que a questão quilombola ganhou maior visibi-
lidade política. Entendemos que esse processo 2. Trata-se do artigo 68 do Ato das Disposições Cons-
titucionais Transitórias. Diz ele: “Aos remanescentes
das comunidades dos quilombos que estejam ocupan-
1. Para saber mais sobre essa história, consulte: www. do suas terras, é reconhecida a propriedade deinitiva,
cpisp.org.br. devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos”.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006


274 | As ações da Comissão Pró-Índio de São Paulo Comunidades quilombolas e a garantia dos direitos territoriais | 275

htm. Público Federal e a organizações não-governa- Anteriormente, a mobilização dos quilombo- é que 61% (199 processos) apenas receberam
Processos de regularização das terras mentais. las estava restrita a poucos estados: Maranhão, um número de protocolo, ou seja, não foram
de quilombo Os primeiros resultados da referida pesqui- Pará, Pernambuco, São Paulo e Bahia. Hoje, a alvo de qualquer medida. Em suma, o INCRA
sa, bem como uma coletânea das mais signi- questão está em pauta em todo o Brasil. ainda não tem sido capaz de atender a deman-
Desde 2004, a CPI-SP monitora os pro- icativas sentenças de forma a construir um Entendemos que há uma relação dinâmica da com eiciência.
cessos de regularização de terras de quilombo repertório de jurisprudência que possa servir de entre a atuação política dos quilombolas e as Do conjunto de 327 processos, apenas 41
em curso nas diversas Superintendências Re- instrumento aos quilombolas podem ser aces- ações governamentais. Nesse sentido, o fato tinham concluído a etapa de produção do re-
gionais do Instituto Nacional de Colonização sadas em: www.cpisp.org.br/acoes de o movimento quilombola estar cada vez latório técnico de identiicação (13% dos pro-
e Reforma Agrária (INCRA). Atualmente, são mais organizado explica a ampla distribuição cessos), ou seja, tinham os limites do território
monitorados 327 processos que tramitam em Breve panorama da situação atual dos processos pelas regionais do INCRA. Um identiicados e a situação fundiária levantada.
21 estados3. bom exemplo é o caso de Minas Gerais. Em Vale destacar, porém, alguns recentes avan-
A principal fonte de informação é o próprio De acordo com os dados levantados pela junho de 2005, existiam cerca de 20 processos ços oicializados pouco antes das eleições pre-
INCRA. Os dados são obtidos junto à equi- CPI-SP, até outubro de 2006, 59 terras de abertos pela Superintendência do INCRA em sidenciais. Em outubro de 2006, a Secretaria
pe de procuradores, engenheiros agrônomos e quilombo encontravam-se tituladas. Esse con- Minas Gerais. Em outubro de 2006, esse nú- de Patrimônio da União (SPU) outorgou um
assessores técnicos daquele órgão. A coleta de junto de titulações envolve 116 comunidades, mero triplicou, somando 62 processos no total. título a parte do território da comunidade de
informações envolve também visitas às supe- uma população de 7.195 famílias e uma área de Esse rápido aumento de processos naquele es- Parateca e Pau D’Arco, na Bahia. É a primeira
rintendências, acompanhadas de uma pesqui- 907.488,4790 hectares. tado coincide com a crescente organização dos vez, na história dessa instituição, que um título
sa periódica ao Diário Oicial da União e em A maior parte desses títulos (25) foi outor- quilombolas mineiros que teve como marco a deinitivo é expedido. Até então, a SPU outor-
sítios eletrônicos que divulgam a questão qui- gada pelo Governo do Pará. O Pará é o esta- fundação da Federação Estadual das Comuni- gara apenas concessões de uso do território4.
lombola. do com maior número de terras tituladas (31 dades Quilombolas de Minas Gerais (N’golo) Outro precedente importante foi a assinatu-
As informações obtidas são continuamente terras) e também com a maior dimensão. Os em junho de 2005. ra dos decretos de desapropriação por interesse
cadastradas em um banco de dados e se encon- 533.196 hectares de terras quilombolas titu- É difícil estimar qual a população e a ex- social de propriedades incidentes nos territórios
tram acessíveis ao público para consulta por ladas naquele estado representam 59% da di- tensão de terras envolvidas nos processos em de Caçandoca (em São Paulo) e Família Silva
meio de diversas formas de busca no sítio-ele- mensão total titulada no Brasil. andamento, já que muitos ainda não apresen- (no Rio Grande do Sul). Até essa data, existiam
trônico: www.cpisp.org.br/terras. O levantamento da CPI-SP indicava tam- tam essa informação. Apenas 194 processos apenas dois casos de desapropriação de terras
bém a existência de 327 processos de regu- contam com uma estimativa de população que de quilombo, ambas iniciativas do Governo do
Ações judiciais larização de terras de quilombo em curso no soma 18.799 famílias. Número ainda menor Pará datadas de 2002.
INCRA. Veriica-se uma ampla distribuição de processos (143) contém uma estimativa de A desapropriação atende a uma antiga rei-
Em 2005, a CPI-SP iniciou o levantamento dos processos entre os estados. Das 23 unida- extensão de terras a serem tituladas que totaliza vindicação dos quilombolas, que consideram
das diversas ações judiciais envolvendo terras des da federação em que se conhece a existência 1.114.765 hectares. esta a forma de agilizar a titulação e garantir o
de quilombo. Até outubro de 2006, havia sido de comunidades quilombolas, 21 têm proces- A comparação entre o número de processos pleno acesso aos seus territórios. E, tanto Ca-
levantadas e sistematizadas informações sobre sos abertos pelo INCRA. Ou seja, em quase atualmente em curso no INCRA (327 proces- çandoca quanto Família Silva, possuem uma
93 ações envolvendo 28 territórios em 12 es- todos os estados com presença de quilombo- sos) e o total de títulos emitidos ao longo de 11 longa história de conlitos com particulares.
tados, sendo que, desse total, 56 ainda estão las há processos em andamento. Já se superou, anos (59 títulos) revela um incremento consi- Esperamos que os casos aqui mencionados
em curso. portanto, aquela etapa inicial em que a ação do derável nas iniciativas governamentais relativas abram precedentes para novas ações nesse sen-
O monitoramento inclui ainda a análi- INCRA estava concentrada no estado do Pará. a essa categoria de terras. No entanto, não há tido e que, nessa nova gestão que se inicia em
se das diversas peças dos processos e o acom- Lembramos que entre 1995 e 1998, o governo muito que comemorar, já que essas iniciativas 2007, o governo federal atenda de fato a essa
panhamento de seu andamento pelos sítios federal apenas titulou terras quilombolas loca- geraram, até o momento, poucos resultados efe- crescente demanda das mais de mil comunida-
eletrônicos da Justiça Federal e Estadual. As lizadas nesse estado. tivos, ou seja, terras tituladas e livre de invasores. des quilombolas existentes em todo o Brasil.
informações são obtidas junto a órgãos gover- Avaliamos que tal fato deve-se, em grande O Governo Lula, até outubro de 2006, havia
namentais (federais e estaduais), ao Ministério medida, à maior organização dos movimentos titulado apenas quatro terras quilombolas. 4. A Secretaria de Patrimônio da União é um órgão do Mi-
quilombolas, representados pelas associações co- Embora o número de processos abertos seja nistério do Planejamento responsável pelos terrenos de
3. Os números aqui mencionados datam de outubro de munitárias e organizações estaduais e nacionais. bastante impressionante, o que se observava marinha do país, ou seja, ilhas, praias e várzeas. Todos os
2006. terrenos de marinha pertencem, a princípio, à União.

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cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 273-276, 2006


Notas sobre a Apropriação de uma Etnograia: o
caso da Polícia Militar de são Paulo

PIERO DE CAMARGO LEIRNER

resumo Este texto pretende relatar o caso da hegemônicos” produzirem seus “antropólogos
apropriação de uma etnograia que iz sobre o exérci- orgânicos” e suas respectivas etnograias.
to brasileiro por parte da polícia militar de São Pau- Também é notável que boa parte da discus-
lo. Inesperadamente, fui convidado a assistir uma são que envolve os “limites de uma auto-antro-
representação de cadetes da PM sobre elementos pologia” (Strathern 1987; Rapport & Overing
desta, quando se colocou a idéia de que a etnograia 2000: 18-28), raras vezes tenha se voltado a
acabara por servir como uma espécie de “manual de pensar sobre grupos ou agentes tão ou mais
instruções” sobre certos valores a serem defendidos “centrais” ou “hegemônicos” que os próprios
pela corporação. Tal apropriação me levou a pensar antropólogos1 – uma exceção é Latour (e.g. La-
como duas instituições com uma natureza tão seme- tour & Woolgar 1979). E, menos ainda, fala-se
lhante – exército e PM – puderam ter leituras tão de casos em que tais grupos ou atores fazem
diferenciadas de um mesmo texto. Trata-se, assim, uso ou se “apropriam” de etnograias. Pode-
de pensar a natureza dessas instituições no Estado, mos, obviamente, sempre supor que certos te-
percebendo os matizes que não necessariamente mas nas ciências sociais podem vir a ser mais ou
podem ser empacotados na embalagem comum da menos “interessados” – que uma sociologia da
idéia de “monopólio legítimo da violência”. arte sirva para legitimar elites emergentes, que
palavras-chave Etnograia. Exército. Polí- uma “antropologia da antropologia” venha a se
cia. Estado. esforçar para redeinir o diagrama de forças no
campo acadêmico, que exista aquilo que Bour-
dieu chamou de “ciência de Estado” (Bourdieu
Introdução 1996); enim, que uma elite possa até “com-
prar” um trabalho acadêmico, é algo possível,
Embora o tema das “apropriações de et- senão mesmo esperável. No entanto, à par des-
nograias” por parte de grupos seja algo já ses caminhos, também pode haver a possibili-
explorado metodologicamente (Gonçalves da dade de apropriações inusitadas de etnograias:
Silva 1991), é notável que ele tenha sido pou- aquelas que absolutamente fogem do controle
co estendido para a relexão sobre a natureza dos antropólogos a partir do momento em que
dos grupos que então se utilizam desses meios. seus textos são publicados.
É um dado mais ou menos “natural” que tais Pois bem. O presente texto trata da descri-
esforços etnográicos muitas vezes se destinem ção da (1) apropriação involuntária de uma et-
aos grupos tidos como “periféricos” (Durham nograia (2) por parte de um grupo que pode
1988; Beviláqua & Leirner 2000), movimen- ser tomado como “central”: oiciais da Polícia
to que inclusive culminou numa tendência,
a essas alturas já consolidada (e pra lá de dis-
1. E “centrais” para os próprios antropólogos, diga-se de
cutida...), de grupos “minoritários” ou “não passagem.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006


280 | Piero de Camargo Leirner Notas sobre a Apropriação de uma Etnografia | 281

Militar do Estado de São Paulo2. Uma ressalva, tal grupo, que passou a usá-la como modelo forma bastante sintética6, entendi, após três soube exatamente o porquê, embora tenha es-
antes de tudo: é verdade que tal grupo difere para pensar em princípios que estruturam seu anos do que considerava uma seqüência de ten- peculado bastante. Provavelmente, embora a
bem no seu habitus (Bourdieu 1977) daque- próprio mundo? E mais: por que fui chamado tativas frustradas de realizar uma determinada hierarquia não constitua nenhum segredo (pelo
les, por exemplo, que poderíamos chamar de à Corporação para ver o resultado dessa apro- investigação com militares, que ao longo de meu contrário, usam e abusam dela), não se admite
“elites” da nossa sociedade3. Mas, também é priação? O presente texto trata, assim, desses contato com eles – períodos intermitentes que que ela seja o princípio de uniicação do grupo
verdade, os oiciais da PM estão bem longe de mecanismos de transferência que ocorreram a variaram de contatos de 1 dia a duas semanas, – por paradoxal que pareça, o que separa, uni-
se considerarem equivalentes sociológicos de partir de uma série de eventos que envolvem totalizando cerca de duas dúzias – havia sido ica... –, mas sim apenas a base para que outros
operários, camponeses, mulheres pobres da pe- uma etnograia.Vamos, então, aos fatos. colocado cara a cara com um princípio central princípios – honra, disciplina, amor à pátria,
riferia das grandes cidades brasileiras - aprovei- de sua cosmologia (algo semelhante ao gado etc., que julguei como cimentos ideológicos
tando o sentido assumido em Peirano (1996) Uma seqüência de eventos nuer, à bruxaria azande ou ao milho araweté) do princípio hierárquico – tomados como as
– assim como tais segmentos, também, certa- sem perceber. Tratava-se da hierarquia, um fato verdadeiras motivações que unem o militar à
mente não os enxergam assim. Os fatos que me izeram tomar ciência de tal tão óbvio, tão onipresente na vida militar, que corporação, venham se manifestar. Seria algo
O inusitado da situação me parece residir apropriação remetem a ins de 2002. Fui con- se apagou para o antropólogo e, também, para semelhante a tentar explicar a um trobriandês
no fato de que tal “grupo” – e provisoriamen- vidado por uma oicial da PM de São Paulo a o nativo que gostaria de entender o que esse que o hau é a troca em operação, com todos os
te vamos tratá-los como um grupo4 – deini- comparecer à Academia do Barro Branco, onde antropólogo gostaria mesmo de estudar. problemas que isso pode acarretar...
tivamente não necessita, à primeira vista pelo se formam os futuros Oiciais da corporação, Essa mesma hierarquia que não via era o O fato é que à época também não dei bola
menos, de legitimações como aquelas que an- para uma solenidade que em parte se basearia ponto que emperrava o que então buscava, a a uma categoria que os nativos usavam de ma-
tropólogos podem, por ou sem querer, oferecer em dados retirados de minha etnograia sobre chance de sincronizar o pensamento militar neira insistente, mas que anos depois fez sen-
(cf. também Sá 2002, que tem uma boa dis- o Exército Brasileiro (EB), publicada no ano com a questão amazônica a partir “de dentro”. tido. Diziam eles que tal país ou fulano era
cussão sobre pesquisa de campo com a PM do de 1997, e que então havia sido incorporada Tinha como resposta um certo silêncio sobre o amigo ou inimigo do exército. Exatamente,
Ceará, e Castro 1990, que inaugura a análise no currículo de formação dos cadetes da PM5. assunto, em contrapartida com uma série de en- trata-se de algo genérico o suiciente para dar
antropológica de militares). Bem, talvez nada Soube, posteriormente, que tal incorporação sinamentos nativos sobre o “verdadeiro” ponto conta de uma pessoa ou de uma nação. Perce-
disso seja uma questão de necessidade; então, deveu-se ao contato de uma Oicial-Instrutora de vista (global, cosmológico, etc). Sinceramen- bi então que a inimizade era mais do que uma
digamos de outro jeito: tal grupo diicilmente com o livro, a partir de uma indicação de uma te, a princípio pouco dei bola sobre esse “ponto simples palavra, tratava-se de uma modalidade
toma gosto por descrições etnográicas, quan- colega antropóloga que então ministrava a ela de vista”, que no meu entender descentrava a de relação ampla e profunda o suiciente para
to mais a seu próprio respeito (pelo menos foi um curso de pós-graduação lato sensu na Escola questão que gostaria de pesquisar. Contudo, in- tratá-la com um grau de abstração maior do
isso que aprendi com seus colegas do exérci- de Sociologia e Política em São Paulo. Tratava- cidentes em campo aos poucos foram revelando que o uso corriqueiro a princípio poderia su-
to, em campo). A questão que me intriga: por se para mim de uma incógnita, pois fatos que que a hierarquia era um fato que permeava não gerir. Sem maiores divagações, imagino que ela
que então tive uma etnograia apropriada por remetiam há anos atrás me levavam a crer que só as relações e dimensões “internas” da vida pode ser tomada como base para pensar a guer-
minha etnograia não tinha sido bem recebida militar como também suas classiicações “exter- ra, digamos, em um sentido “antropológico”7:
em meios militares. Cabe assim esclarecê-los. nas”, ou visão do “mundo exterior”. a guerra é uma relação, de inimizade, recíproca
2. Tive, como se verá adiante, contato com um grupo
Voltemos ao ano de 1995, quando estava Bem, o resultado disso se expressa em duas e generalizada.
de oiciais, e não com todos oiciais da PM de SP. No,
entanto, dada a oicialidade do evento, e as caracterís- para defender o mestrado que originaria tal pu- teses sobre hierarquia militar, suas implicações Não cabe aqui desdobrar os porquês e as
ticas hierárquicas da corporação (ver discussão infra), blicação e me encontrava nos passos inais de para a construção do mundo interno e sua gra- conseqüências desse uso conceitual da guerra.
pode-se de certo modo tomar a parte pelo todo. elaboração da etnograia, mas ainda em conta- mática no interior daquilo que posteriormente Vale dizer por enquanto que alguém (do exérci-
3. Talvez sejam, antes, um “grupo” a serviço do “cen- to bastante próximo com oiciais do exército. entendi ser um “sistema da guerra” (Leirner to) me disse que havia deixado de ser um amigo
tro”, mas nem por isso menos imbricado a este. Numa história que só vale a pena delinear de 2001). Tal ponto não vem ao caso; o que talvez
4. Trata-se de uma corporação que tem mecanismos in-
interesse é o fato de que dizer que a hierarquia
tensos de socialização que visam, antes de mais nada, 7. Diferente portanto da noção usualmente citada nas
inculcar em seus membros a idéia de que se trata de 5. Os cadetes da PM de SP entram para academia a par- é um “fato social total” para os militares teve ciências sociais, que aproveita a máxima de Clau-
um grupo distinto do resto da sociedade, seguindo tir de processo seletivo realizado pela FUVEST – a como contrapartida posterior um “fechamen- sewitz de que a “guerra é a continuação da política
assim prescrições bastante semelhantes àquelas que mesma que seleciona os alunos da USP. Trata-se, até to” da instituição para futuras pesquisas. Jamais por outros meios”. Uma maior problematização sobre
Castro (1990) observou entre os cadetes e que obser- o ano de 2005, de uma das três carreiras mais concor- o conceito de guerra na própria antropologia, e de
vei (Leirner 1997a) entre oiciais do exército. Voltare- ridas do vestibular em termos da relação candidato/ 6. Narrativas mais detalhadas dessa “pesquisa de campo” como ele se aproxima de uma idéia de política, está
mos a isso. vaga. estão em Leirner (1997a; 1997b). em Leirner (2001).

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do EB; isto é, no mínimo, para pensar o melhor, mandantes de Armas: tropa de choque, polícia modo a preencher espaços simétricos da sala, es- pior, me enganei a partir de meu próprio tra-
não me adeqüei ao plano que inicialmente era rodoviária, bombeiros, polícia, da própria Aca- tavam em pé pessoas vestindo um manto enca- balho! Todos se dispersaram, o circuito inverso
esperado para nossa relação, qual seja: tornar- demia do Barro Branco, além de um juiz e, se puzado e segurando velas, dando um certo tom se fez de novo: me dirigi à sala do comandante,
me uma espécie de elo de ligação entre milita- não me engano, de um promotor de justiça. de mistério e uma aura de religiosidade à cena. ouvi agradecimentos pelos serviços prestados;
res e universidade, num momento em que essas Com a cordialidade habitual que militares têm Sentados todos e em silêncio, abre-se uma desci às instalações da academia, onde me foi
eram extremamente rarefeitas (estamos falando com seus amigos, fui muito bem recebido, elo- porta, onde um jovem aparentemente encena, colocado como “tudo nesse lugar é absolutamen-
de aproximadamente 1995, como relato em giado, indagado sobre o que estava fazendo sob o som de uma música (não me recordo ago- te igual lá no exército”. Coloquei-me a pensar:
Leirner 1997b). Isso não aconteceu, tornei-me no momento, e, obviamente, prestado a ouvir ra, acho que era Beethoven), algo que represen- se de fato é igual, por que tamanha diferença
um antropólogo que os chamava de “nativos”, uma conversa sobre a importância de iniciati- taria a série de etapas por que um cadete passa na recepção de minha etnograia? Como posso
e isso talvez não tenha agradado alguém... vas que visam reconhecer o “verdadeiro” lado durante os anos de academia: a chegada assus- ser amigo aqui e inimigo lá?
Pois bem, vi-me aproximadamente 7 anos de corporações militares (isso também era uma tado; os trotes; o companheirismo de turma; a
depois com um convite para comparecer, como prerrogativa para o EB). Depois dessa rápida rotina de estudos; o duro treinamento físico; a Conclusão, se é que é possível...
amigo da PM de SP a uma solenidade, que “sala de estar”, todos nos dirigimos ao que inte- socialização. Tal etapa durou algo como 5 mi-
prestaria uma pequena homenagem justamen- ressava: uma sala, transformada em auditório, nutos. Foi o preparativo para o ápice: inalmen- De fato, responder essa pergunta só é ple-
te baseada na mesma pesquisa que anos antes onde seria realizado o esperado evento. te, quando a aluno está para sair da academia, é namente possível em um tom algo especulati-
havia me colocado no ostracismo enquanto Tratava-se de uma dramatização ou, quase amarrado ao seu corpo, por uma corrente, duas vo. Preiro enunciar uma pista, a partir de uma
pesquisador daquele “objeto” (lembre-se aqui dizendo assim, uma espécie de “psicodrama” colunas de mármore que replicam justamente conversa que tive na saída da Academia. Per-
que ele tem bem mais poder para decidir quem da vida militar, baseada em meu livro. Era a aquelas que sustentam a entrada do saguão da cebi, passando pelo hall de entrada, que junto
vai e quem não vai pesquisá-lo). Fui, então. reapresentação de uma encenação que ocorrera Academia: tratava-se da miniatura batizada às colunas havia um panleto, que justamente
Passei por um procedimento bastante co- como trabalho de im de curso de um grupo de de... Hierarquia e Disciplina! dizia algumas coisas do curso, e, mais especii-
nhecido. Alguém estava a minha espera, logo cadetes, que havia sido muito elogiada e reper- Eis que o jovem cadete entra na sala, ar- camente, da disciplina cuja atividade que aca-
na entrada da Academia, esta sustentada por cutira de forma muito positiva no comando da rastando as colunas com extrema diiculdade, bara de assistir. Uma coisa me chamou muito
duas grandes pilastras marmorizadas em esti- academia. Imaginei mesmo que se tratava de simulando choro e sinais de forte emoção, aos a atenção, uma transcrição de um trecho de
lo que não me recordo se grego ou jônico. Tal algo de proporções mais intensas do que antes gritos de frases como “não agüento mais”, “não meu livro, sem citação, mas que eu sabia ser
pessoa me leva à responsável por toda opera- esperava, uma vez que a essas alturas já sabia o posso mais”, “preciso desistir”. À chegada ao um apud de um trecho selecionado da célebre
ção – a instrutora que havia tido contato com que signiicava a presença de comandantes de centro da sala, no momento mesmo em que “Introdução à Obra de Marcel Mauss”, de C.
meu livro – e esta me leva à sala do coman- Armas ou Tropas. O que aconteceu então? ele ameaça livrar-se das correntes, os encapu- Lévi-Strauss (1974 [1950]). Tratava-se do se-
dante. Este é um procedimento padrão em ins- À entrada, distribuíram-se crachás que os- zados que se situavam de pé pela sala retiram guinte:
tituições militares: um subordinado o recebe, tentavam apenas as patentes – soldados, sargen- seus mantos, revelando que por baixo deles há
transmite o convidado à parte responsável ou tos, coronéis, etc –, que se destinaram aos seus um representante de cada comando: polícia ro- “Que o fato social é total não signiica apenas
interessada, esta faz as vezes com um superior portadores de forma aleatória (o que gerou um doviária, choque, bombeiros, etc. Esses se diri- que tudo o que é observado faz parte da obser-
– dependendo da importância do convidado, certo constrangimento, pelo que pude perceber: gem ao jovem, seguram-no, erguem-no junto vação, mas também, e principalmente, que em
é um alto superior ou alguém subalterno. No um coronel recebeu a patente de “soldado” e com as colunas, libertam-no das correntes, e uma ciência em que o observador é da mesma
caso, fui primeiramente à sala de um respon- deu uma risada nervosa; também recebi esta). o fazem perceber que, no fundo, essas colunas natureza que seu objeto, o observador é, ele mes-
sável pelo curso e depois fomos todos à sala Todos se sentaram, ocupando os cantos de uma sustentam sua vida no interior da corporação (“ mo, parte de sua observação.” (Lévi-Strauss 1974
do comandante (cabe notar que nesse circui- sala de aproximadamente 80 m2, obedecendo e essas colunas são o meu alicerce daqui para a [1950]: 16).
to sempre se passa por corredores, onde se é à disposição hierárquica (dos crachás), como é frente”...). Acaba a encenação.
apresentado à maioria das pessoas por quem se de praxe nas corporações militares: o mais gra- Quando se acendeu a luz, percebi uma cena Por que aquela frase encontrava-se solta, em
passa, e a partir daí por ante-salas, onde um duado senta-se no centro, em oposição à porta, de comoção no ambiente; o que certamente me meio a outras como “Saber, Ética e Conduta”?
ajudante ou encarregado trata de anunciá-lo ao e os subalternos vão se distribuindo em ordem assustou, pois novamente me vi diante daquela Lembrei-me de que sempre vi coisas assim no
chefe de seção). decrescente um a um, à direita e à esquerda de situação que achei que essa história de hierar- EB, frases pregadas em paredes, inscrições soltas
Quando conduzido à sala, notei uma reu- seu superior imediato, em forma respectiva. Ao quia e disciplina tratava-se de uma grande ob- na paisagem. Um ex-oicial me disse que isso
nião, em que estavam presentes alguns co- meio das cadeiras, em posições estratégicas de viedade. Mas não era, de novo me enganei, e o era uma forma de pensamento mnemônico,

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princípios que se internalizam pela sua refe- seu mundo extremamente competitivo, até as institutions of the same kind, with common vales LEIRNER, Piero de Camargo. 1997a. Meia-Volta, Volver:
rência minimalista e auto-repetitiva. Suspeitei porque aqui não há competição, lembre-se and organizational systems. In other hand, the re- um estudo antropológico sobre a hierarquia militar”. Rio
de Janeiro: FGV/Fapesp.
que aquela frase tinha a ver com alguma “re- que é um monopólio. 2: também não se tra- lations that they establish with the “encompassing
______. 1997b. “A Pesquisa de Campo com Militares:
gra de torção” do sentido original e que a rela- tou, por isso mesmo, de uma visão “exótica” world” shows us that they can’t just be classiied as
algumas questões metodológicas”. Revista Brasileira de
ção observador-observado poderia estar sendo para o próprio grupo: em algo houve o que deploy of the State’s “monopoly on the legitimate Ciências Sociais, No 34, São Paulo: Anpocs.
modulada como “amigo-inimigo”. Não resisti poderíamos chamar de uma apropriação como use of physical force”. ______. 2001. O Sistema da Guerra: uma leitura antropo-
à pergunta: “se vocês são iguais ao EB, então “reavaliação funcional das categorias” (Sahlins keywords Ethnography. Army. Police. lógica dos exércitos modernos. Tese de Doutorado. São
quem são seus inimigos?”8. Não houve resposta, 1990): o conteúdo da etnograia foi absorvido State. Paulo: DA/FFLCH/USP.
LÉVI-STRAUSS, Claude. [1950]. “Introdução à Obra
porque simplesmente não teria como haver. Sa- e domesticado, transformado no interior da
de Marcel Mauss”, In: M. Mauss, Sociologia e Antropo-
bia que a lógica da inimizade generalizada, para corporação. Referências bibliográicas logia. 2Vols. São Paulo: EPU/Edusp, 1974.
um exército, leva à idéia limite de que enim to- Por que então diferentemente do exército? PEIRANO, Mariza. 1996. A favor da etnograia. Rio de
dos os outros exércitos são inimigos potenciais, Aqui só me resta um palpite: o EB, assim como BEVILÁQUA, Ciméa; LEIRNER, Piero de Camargo. Janeiro: Relume-Dumará.
2000. “Notas sobre a Análise Antropológica de Seto-
por isso algo que sempre era me dito: “Piero, qualquer outro exército, é a corporação armada RAPPORT, Nigel; OVERING, Joanna. 2000. Social and
res do Estado Brasileiro”. Revista de Antropologia, 43 Cultural Anthropology: the key concepts. London: Rou-
estamos em guerra, pois estamos dissuadindo o para o exterior: a interpretação do antropólogo (2): 105-140. tledge.
inimigo”. tem de tudo para ser vista como um horizon- BOURDIEU, Pierre. 1977. Outline of a heory of Practi- SÁ, Leonardo Damasceno de. 2002. Os Filhos do Estado.
Bem, é verdade que a polícia pode alegar te a ser, se for, absorvido “de fora”, trata-se de ce. Cambridge: C.U.P. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.
que está dissuadindo o crime, mas o fato é que uma opinião alienígena. No caso da PM, sua ______. 1996. “Espíritos de Estado: gênese e estrutura STRATHERN, Marilyn. 1987. “he Limits of Auto-
os exércitos têm consciência de quem e como posição voltada para o interior da sociedade do campo burocrático”. In: Razões Práticas. Campinas: anthropology”. In: A. Jackson (ed.) Anthropology at
Papirus.
são seus inimigos – e não é à toa que são todos que a gesta, permite que de dentro se coloquem Home. London: Routledge.
CASTRO, Celso. 1990. O Espírito Militar: Um Estudo SAHLINS, Marshall David. 1990. Ilhas de História. Rio
iguais em sua gramática interna (Leirner 2001). as percepções exteriores... Embora sejam duas de Antropologia Social na Academia Militar das Agu- de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Quanto à polícia, ica uma incógnita. Deiniti- instituições-espelho, a única coisa que posso lhas Negras. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
vamente o crime – e o criminoso – são “dife- concluir, em antropologuês, é que se trata de DURHAM, Eunice. 1988. “A pesquisa antropológica
Nota
rentes” e algo etéreos; tudo leva a crer que de ains. Fica, assim, um palpite, baseado numa com populações urbanas: problemas e perspectivas”,
fato há uma certa confusão entre o que é amigo velha dumontiana: aim de aim é consangüí- In R. Cardoso (org.), A aventura antropológica. Rio de
Janeiro: Paz e Terra. Uma primeira versão deste texto foi apresen-
e o que é inimigo numa PM, e aí a idéia de que neo, e assim me situo...
GONÇALVES DA SILVA, Vagner. 1991. “A Crítica tada na VI RAM, no grupo “Antropologia do
o observado faz parte da observação (coisa que Antropológica Pós-Moderna e a Construção Textual Estado”, coordenado por mim e Ciméa Bevilá-
confunde a linearidade de qualquer sistema de notes about an appropriation: how da Etnograia Religiosa Afro-Brasileira”. Cadernos de qua. Aos seus participantes agradeço as suges-
informações...!) começou a fazer mais sentido. são Paulo’s Police Force viewed a Bra- Campo. 1: 47 - 60.
tões e críticas. Aproveito também para agradecer
Bem, mas para voltarmos ao início, é preciso zilian Army’s ethnography. LATOUR, Bruno; WOOLGAR, S. 1979. Laboratory
Life: the social construction of scientiic facts. London:
o gentil estímulo dos editores de Cadernos de
ver o que essas noções, amigo/ inimigo, obser-
Sage. Campo para enviar um artigo para este número.
vador/ observado, podem dizer sobre a natureza abstract his article aims to show a case of
desse grupo e sua “apropriação” da etnograia. my Brazilian Army’s ethnography and its appropria-
Tenho aqui duas coisas a dizer, para inali- tion by the São Paulo’s Police Force. Unexpectedly,
zar o texto: 1: se não se trata de uma minoria I was invited to attend to a presentation of cadets
cuja etnograia pode “servir” como instru- about their own life in the military academy, when
mento de legitimação, também não se trata it was said that my ethnography was used as a kind autor Piero de Camargo Leirner
de uma elite que pode colecionar mais essa of “instruction’s manual” on their values, moral and Professor do Departamento de Ciências Sociais / UFSCar
mercadoria como estratégia de distinção, no institutional behavior. Such reading of my ethnog- Doutor em Antropologia Social / USP
raphy lead to a relection on the nature of these two Editou a Cadernos de Campo nos 02, 04 e 05/06
8. Se o leitor tiver curiosidade, basta entrar no sítio da State’s Institutions – Police and Army –, based on
APMBB e ver como ela se assemelha a uma típica the fact that both had diferent interpretations: pos- Recebido em 25/05/2006
academia militar. Entre as suas atividades, inclusive, itive in the irst case, negative on the second. Never- Aceito para publicação em 25/06/2006
há a de “defesa territorial”. http://www.polmil.sp.gov. theless, in one hand, they seem to realize themselves
br/unidades/apmbb/.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 279-286, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 279-286, 2006
O vídeo e o encontro etnográico

ANA LÚCIA MARQUES CAMARGO FERRAZ, EDGAR TEODORO DA CUNHA, ROSE


SATIKO HIKIJI

resumo Esse artigo propõe a construção de abre diferentes possibilidades de interação com
uma relexão sobre as práticas de utilização do vídeo o grupo, de cognição e de comunicação.1
na pesquisa etnográica. Os autores partem de con-
textos de pesquisa bastante diversos, envolvendo in- Exercícios de antropologia comparti-
terlocutores como índios Bororo, trabalhadores em lhada
autogestão e jovens estudantes de música em um
projeto social. O que os aproxima é uma coinci- A nossa opção por compartilhar com os sujei-
dência metodológica: a proposta da apropriação do tos pesquisados os meios para produção de ima-
audiovisual pelos sujeitos pesquisados como meio gens e sons implica desde o início uma concepção
de expressão e comunicação. No artigo, os autores do fazer audiovisual como instrumento de comu-
buscam sistematizar algumas questões de método nicação, meio não apenas de observação do grupo
suscitadas nas “oicinas de vídeo”, marcadas pela pesquisado, mas de provocação e proposição.
abertura de diferentes possibilidades de interação Houve um momento na história do ilme
com o grupo, de cognição e de comunicação. A pro- etnográico em que se pensou a câmera como
dução audiovisual é analisada como agenciadora de um instrumento de medição e registro do real.
performances, de relexividade e de sensibilidades. O tripé, o zoom – acreditava-se – eram instru-
palavras-chave Antropologia Visual. Et- mentos que permitiam a observação e o registro
nograia. Vídeo etnográico. Oicinas de vídeo. da situação pesquisada com a mínima interfe-
rência do observador. Não é muito diferente
Esse artigo surge da necessidade de relexão desta visão a que orienta o primeiro projeto em
sobre nossas práticas na utilização do vídeo na que um antropólogo oferece a câmera aos su-
pesquisa etnográica. Pesquisamos em contex- jeitos pesquisados. Nos anos 1960, Sol Worth
tos bastante diversos. Nossos interlocutores são e John Adair propuseram a um grupo de ín-
índios Bororo, trabalhadores em autogestão, dios Navajo que produzissem ilmes a partir de
jovens paulistas estudantes de música em um equipamento e instruções “mínimas” oferecidas
projeto social. No entanto, uma coincidência por um antropólogo e por um especialista em
metodológica nos aproxima: levamos a campo comunicação. O objetivo da dupla era investi-
o vídeo, e propusemos aos nossos interlocutores gar como um povo com uma cultura diferente
a apropriação do audiovisual como meio de ex-
pressão e comunicação. O que se dá quando o 1. Esta coincidência metodológica reuniu os autores do
encontro etnográico é construído em torno des- artigo e ainda Maira Bühler em um grupo de estudos
ta provocação? Neste artigo, pretendemos siste- do Projeto Temático FAPESP “Alteridade, Expressões
matizar algumas questões de método e relexões Culturais do Mundo Sensível e Construções da Rea-
lidade - Velhas Questões, Novas Inquietações” cuja
que a experiência da introdução do audiovisual
proposta foi discutir a introdução do uso do vídeo
com os grupos pesquisados suscita. O que nos em campo. Agradecemos a Maira pela participação
motivou foi a percepção de que o uso do vídeo no diálogo que pôde constituir esse artigo.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006


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da sua se apropriaria do equipamento cinema- considerando inclusive o lugar do antropólogo observações que permitirão ao cineasta rever da pesquisa aos grupos estudados. É na intera-
tográico, expressando no ilme a forma como na sua relação com o grupo. sua montagem4. ção entre o antropólogo e os sujeitos pesquisa-
eles viam sua própria cultura (Worth e Adair Uma referência para esta abordagem do au- Em Moi, un noir (1958), por exemplo, Rou- dos que uma nova consciência vai se formando.
1972:10). Os autores pensavam que, se o grupo diovisual na pesquisa antropológica é o trabalho ch utiliza-se do recurso de propor aos nativos que Rouch marca seus ilmes com as múltiplas vozes
realizasse o ilme “do seu próprio modo”, eles o de Jean Rouch, o “antropólogo-cineasta” que pro- narrem as imagens já montadas por ele. Introduz presentes em campo e na relação de troca que
fariam de forma padronizada, e que alguns dos vocou o cinema de meados do século XX com a narrativa com sua voz over situando no tempo se dá na pesquisa etnográica/cinematográica,
padrões particulares usados reletiriam sua cul- inovações éticas, estéticas e técnicas2 e antecipou e no espaço a problemática do ilme e diz: “Eu o produto do encontro é fruto da simbiose de
tura e seu estilo cognitivo singular. Apesar de questões fundamentais ao desenvolvimento da an- lhes passo a palavra”. Os comentários dos jovens ambas as perspectivas. Assim, o próprio proces-
conscientes dos códigos associados à linguagem tropologia que só seriam formuladas nos anos de africanos tecem novos sentidos no ilme. Outro so de produção de conhecimento é comparti-
cinematográica, Worth e Adair acreditavam 1980, no movimento teórico de crítica à etnogra- ilme em que ele aprofunda essa concepção é Ja- lhado. No entanto, a produção compartilhada,
que o ilme seria uma via de acesso ao modo de ia clássica3. Em seu cinema, a câmera conigura-se guar (1967). Nele, Rouch utiliza-se do mesmo nesses moldes, se distingue da mera negociação.
ver do grupo, principalmente se fosse oferecida como uma potencial facilitadora da comunicação expediente – toda a sonorização do ilme é com- O conhecimento produzido é fruto da abertura
a menor quantidade possível de informações com o grupo pesquisado. O conhecimento obti- partilhada com os homens ilmados que contam ao diálogo, da busca do confronto de diferentes
sobre a linguagem cinematográica. Os autores do por meio da “câmera participante” não é – ou suas histórias, dizem o que vêem nas imagens. lógicas culturais.
diziam que o ideal seria se pudessem deixar o não deveria ser – um segredo roubado, mas um Nessa antropologia compartilhada “a câmera po-
equipamento e ilmes embaixo de uma árvore e processo de troca. O ilme não é tampouco pensa- deria ser não um obstáculo à expressão dos ho- Da proposta às experiências
observar como o grupo lidaria com eles. do no registro documental – aquele que quer res- mens que tinham algo a fazer ou a dizer, mas, ao
Não é esta a nossa perspectiva. Com relação à gatar, salvar da extinção culturas em “processo de contrário, um estimulante incomparável. O jogo O termo “oicina de vídeo” pode atualmente
produção de imagens pelo antropólogo, entende- desaparecimento” – mas, é, para Jean Rouch, uma começou” (Rouch 1960:27; trad. nossa). ser associado a atividades de intervenção social,
mos que não é possível falar em um olhar neutro efetiva possibilidade de compartilhar com o grupo No jogo proposto pelo autor, o ilme é si- realizadas, por exemplo, por ONGs, de ação
para a situação pesquisada, nem em um registro a produção de um conhecimento sobre si. multaneamente linguagem e meio de pesquisa, cultural e educação popular, com perspectivas
objetivo. Os ilmes ou vídeos etnográicos, em sua Desde a década de 1940 até sua morte em que estimula a produção de performances pelos de amplo espectro envolvendo educação e de-
maioria, são pensados como meios de interpreta- 2005, Rouch produziu dezenas de ilmes com sujeitos estudados. A proposição de Rouch de mocratização do acesso ao audiovisual. Nos di-
ção da situação pesquisada ou mesmo de inter- o intento de estabelecer um diálogo efetivo partager, compartilhar com o grupo a produção versos contextos que pesquisamos, muitas vezes
venção. Também a proposta de oferecer a câmera com as sociedade estudadas. Esse, o princípio de representações a seu respeito, implica uma utilizamos essa terminologia para descrever a
ao grupo é vista como meio de provocação. da “antropologia compartilhada”, seria per- abordagem particular da relação sujeito/objeto atividade que propúnhamos. Em comum com
Maresca (1996), ao tecer uma história do mitido, de forma ímpar, por meio do ilme. na produção do saber. O recurso ao ilme per- as “oicinas”, a nossa inserção em campo com o
olhar fotográico na antropologia, já notava O cineasta, pesquisador de grupos africanos mite a re-criação da história do grupo. audiovisual caracteriza-se pela apresentação de
esta potencialidade relexiva da imagem em que, em sua maioria, não liam, vê no ilme a Em Pyramide humaine (1959), o diretor informações sobre a manipulação de equipamen-
situações de encontro etnográico e observa- possibilidade de levar sua análise sobre o gru- usa as técnicas do sociodrama propondo aos tos e de elementos de linguagem cinematográica.
va ainda que a possibilidade de compreensão po de volta para o mesmo. O retorno inclui, jovens que ilma a representação de papéis para Nossos interlocutores, por sua vez, apropriam-se
cultural tem na imagem um meio privilegiado. geralmente, no trabalho de Rouch, a partici- tematizar a discriminação no encontro entre dos meios que apresentamos de formas diversas:
Destacava que a imagem, assim como a escrita pação efetiva do grupo na (re-)elaboração do franceses e africanos. Em todos os seus ilmes discutindo o material audiovisual a que tem aces-
etnográica, era fundamentalmente uma repre- ilme, seja como co-autor do roteiro, seja com a câmera atua como catalisadora de situações, so, produzindo ilmes e registros segundo seus
sentação sobre o Outro. A antropologia visual estímulo ao jogo de representação de si, em que interesses temáticos e de conhecimento e ainda
englobaria no mesmo questionamento a cultu- 2. Renato Sztutman (2004) lembra que a Nouvelle Va- se produzem identidades. como um meio expressivo de suas inquietações
ra observada e a cultura observante, e o exame gue – de Godard, François Trufaut, Jacques Rivette, O recurso ao ilme ultrapassa a inalidade do balizadas por experiências individuais e coletivas.
entre outros – muito deve às inovações éticas e esté-
das imagens seria chamado a funcionar como mero feedback ou da devolução dos produtos O que nos diferencia dessas experiências é a pos-
ticas de Rouch, como a abolição do tripé e o registro
análise do pesquisador. Essa análise em espelho simultâneo de imagem e som em situação, permiti- sibilidade de tematizar, na pesquisa, esse processo
de representações – que inclui própria a análise do pelo uso do gravador Nagra. Tais criações teriam 4. Sobre Jean Rouch, ver Colleyn (1995), Sztutman de apropriação do audiovisual e ainda pensá-lo
como representação – é uma entrada epistemo- possibilitado a emergência do cinema-direto, além da (1997, 2004), Schuler & Sztutman (1997), Rouch na perspectiva do encontro etnográico, como
lógica que nos permite observar as condições ampliação da noção de cinema-verdade. (1995 [1974]), Grimshaw (2001) entre outros, e o ví- um espaço de elaboração compartilhada de co-
de produção do conhecimento sobre o Outro, 3. Conforme Marcus e Fischer (1986), e Marcus e Cli- deo Jean Rouch, subvertendo fronteiras (Cunha, Ferraz, nhecimento.
ford (1986). Morgado e Sztutman 2000).

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Nesse caminho, experiências de uso do au- zação, entrando em momentos posteriores em na, em sessões de duas horas, com cerca de oito o aprendizado audiovisual atuaria na comuni-
diovisual associado ao trabalho de campo podem questões de linguagem e narrativa. internos, selecionados pela própria Febem. Não cação de outra experiência sensível – a prática
ter uma importância singular, possibilitando a Assim, a oicina abordou temas como foco, havia restrições quanto à idade ou escolarida- musical.
criação de um espaço de diálogo. Na pesquisa de necessidade de estabilidade ou não da imagem, de. Foram exibidos e discutidos vídeos com os No caso da pesquisa entre grupos de tra-
Edgar Teodoro da Cunha, as oicinas resultaram luz, enquadramento e as formas de controlar esses grupos9, transmitidas técnicas básicas de manu- balhadores11, desenvolvida por Ana Lúcia
no estímulo às várias leituras sobre a experiência elementos com base nos recursos da câmera7. Nos seio de equipamento para captação de imagens Marques Camargo Ferraz (2005), as oicinas
do contato vivenciada pelos Bororo5. exercícios práticos, os dois jovens bororos partici- e sons em VHS e Hi-8 e exercitadas algumas tiveram variados formatos. Junto ao grupo
Ao longo da pesquisa, o vídeo se tornou um pantes da oicina, iniciaram a proposta de realizar formas narrativas, como entrevistas e reporta- que se constituiu como movimento social em
instrumento importante de exploração6, permi- uma descrição de ações por meio das imagens, gens. Uma atividade semanal desenvolvida com Osasco, a oicina começou discutindo o tema
tindo uma nova via de acesso às representações partindo de temas por eles escolhidos, até chega- os jovens internos por um período prolongado da moradia, buscando levantar diferentes re-
construídas no e sobre o contato. No entanto, rem à realização de entrevistas e depoimentos. constituiu-se como uma forma ímpar de ganhar presentações a esse respeito. Da realização de
devemos ter como ponto de partida que a in- Depois das gravações, os jovens e o pesqui- um lugar em seu cotidiano. A oicina revelou-se desenhos à criação de espaços para a fala pú-
serção da câmera de vídeo, “máquina de braido sador assistiam a tudo na escola, onde foi mon- um importante instrumento mediador da rela- blica, os membros do grupo eram chamados a
[branco]”, não se realiza de forma neutra. Mais tado o espaço de trabalho da oicina, com uma ção das antropólogas com os internos. Nelas, exporem suas perspectivas em relação ao tema.
do que um aparato técnico, a câmera é resulta- televisão e videocassete. Durante a apreciação, evidenciava-se o universo de representações dos A presença da câmera, que inicialmente era
do de um longo processo de desenvolvimento conversava-se sobre o resultado, sobre a forma jovens, surgiam relexões acerca do seu cotidia- operada pela pesquisadora, foi se tornando fa-
de uma linguagem que é construída. Para que de gravação, sobre os problemas e qualidades das no, de sua realidade e do “mundão” 10. miliar, e estimulava a produção de discursos e
um resultado audiovisual tenha sentido para imagens produzidas. Uma preocupação do pes- Outra oicina proposta por Rose Satiko se gestos. Aos poucos, alguns membros do grupo
além das fronteiras do grupo, torna-se necessá- quisador foi não impor, unilateralmente, uma deu em 2004, quando, por um ano, desenvolveu foram demonstrando maior interesse pela pro-
rio o aprendizado e domínio não só da forma forma ixa de realização do vídeo, mas discutir com Alessandra Cristina Raimundo, importan- dução de olhares sobre o seu cotidiano. Depois
de utilização do dispositivo técnico, mas tam- se determinados resultados eram desejáveis ou te interlocutora em sua pesquisa para o douto- de algumas conversas sobre a operação do equi-
bém de sua lógica e linguagem especíicas. não de acordo com o interesse dos jovens. rado, um processo de discussão e realização de pamento e fotograia, eles passam a demandar
Dessa maneira, o desaio inicial da oicina Para Rose Satiko Hikiji, as oicinas consti- audiovisual que teve como mote a experiência a presença da câmera com o im do registro de
de vídeo foi possibilitar aos dois jovens bororos tuiram-se como uma maneira privilegiada de da jovem com a música. A proposta rouchiana situações em que o grupo se relacionava com a
um domínio do instrumento, pela compreen- inserção em um campo bastante fechado: a de produção compartilhada de conhecimento alteridade – espaços aos quais a pesquisadora,
são de seu funcionamento e do seu manejo, Febem. Com a parceria da antropóloga Paula foi experimentada neste processo no qual a pes- por vezes, não tinha acesso. As imagens pro-
mas também pelas formas possíveis de utili- Miraglia, as oicinas foram desenvolvidas entre quisadora buscou produzir com Alessandra uma duzidas enfocam a sua relação com o Estado.
junho e setembro de 19998, uma vez por sema- relexão sobre a sensibilidade construída no fa- A história do grupo - da ocupação da terra à
5. Os Bororo contam atualmente com uma população de zer musical e, simultaneamente, observar como construção de suas casas e à constituição de
aproximadamente 1.200 indivíduos e habitam áreas des- 7. A câmera é pensada como um “objeto semiótico”, uma alternativa de trabalho - é toda marcada
contínuas entre os rios São Lourenço e das Mortes, no conforme deinido por Arlindo Machado em Máqui- pela relação com a alteridade. Este dado foi re-
Mato Grosso. Algumas aldeias como Perigara ou Córrego na e imaginário (1996), como um meio “comunica- 9. Exibimos, nas primeiras sessões, os seguintes vídeos:
velado pelos olhares produzidos no material em
Grande situam-se a menos de 100 quilômetros da capital cional” que opera a partir de um conjunto de códigos As pedras no meio do caminho (Bastos, Schuller &
do Estado, Cuiabá, outras estão situadas próximas a Barra como, por exemplo, o da perspectiva. Wainer 1996), Meninos eu vi? (Salles [coord.] 1992) e vídeo gravado pelos trabalhadores. O trabalho
do Garças, somando ao todo nove áreas, algumas homo- 8. 1999 foi o ano de algumas das mais graves rebeliões Funk Rio (Goldemberg 1994). Os dois primeiros são fruto dessa pesquisa foi editado por Ana Lúcia
logadas e demarcadas, outras com problemas de invasão. da Febem. A partir de setembro, as rebeliões, que já ilmes que abordam o universo dos meninos e meni-
6. Foram realizados cinco períodos de pesquisa de campo, vinham acontecendo desde o início do ano, passaram nas de rua, sendo que As pedras no meio do caminho é 11. Na pesquisa de doutorado, Ana Lúcia Ferraz acom-
entre 2000 e 2005, junto aos Bororo da área indígena Ta- a ser freqüentes e mais violentas, o que implicou um resultado de uma oicina realizada pelos autores com panhou ao longo de vários anos quatro grupos: tra-
darimana no Mato-Grosso. Nas duas primeiras jornadas “fechamento” da instituição. Conseqüentemente, a jovens que moravam na praça da Sé, em São Paulo. Já balhadores de uma indústria automobilística em São
desenvolveu os elementos necessários para a utilização oicina foi interrompida. A experiência das oicinas Funk Rio trata da sociabilidade entre jovens cariocas a Bernardo do Campo, com os quais produziu um
do vídeo como instrumento de pesquisa e familiarizar-se na Febem foi tematizada em Hikiji & Miraglia 2003. partir da cultura do Funk. vídeo acompanhando os seus movimentos, de uma
com a realidade daquele grupo. Utilizou extensivamente Cabe notar que Paula Miraglia e Rose Satiko desen- 10. Categoria nativa que designa um conjunto de ex- indústria plástica que tentava se organizar sob a for-
o vídeo na gravação de processos e situações tanto na área volviam diferentes pesquisas na Febem: o mestrado pectativas relativas à desinternação, assim como o ma cooperativa após o abandono da produção pelo
indígena quanto fora dela, na cidade de Rondonópolis/ de Paula (Miraglia 2001) tematizou o universo da in- presente, que deixa de ser vivido fora dos muros da patrão, uma cooperativa metalúrgica nascida de mas-
MT, que ica a 40 km de Tadarimana, e em outra área ternação; o doutorado de Rose (Hikiji 2006), a práti- instituição. Paula Miraglia discute o conceito em sua sa falida situada em Itaquera, zona leste de São Paulo,
bororo (Meruri) na região de Barra do Garças. ca musical no contexto de privação de liberdade. dissertação de mestrado (Miraglia 2001). e um movimento por moradia em Osasco.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 287-298, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 287-298, 2006
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Ferraz e intitulado Foi através da necessidade. numa inserção diferenciada do seu detentor den- de enunciação dos discursos e ainda sobre os câmera, criavam narrativas que eram exibidas
História do movimento por moradia em Osasco tro do grupo. Além disso, com o vídeo reforça- modos de constituição de narrativas sobre as e comentadas com o grupo.
(Ferraz 2003, 23’). se a possibilidade de narrar a experiência, para o experiências dos sujeitos pesquisados. Na pesquisa de campo entre os trabalhado-
Em outras oicinas, realizadas em fábricas em próprio grupo e para os seus outros. Em situações Um dos primeiros exercícios propostos nas res em fábricas recuperadas, falar para a câmera
processo de autogestão, a pesquisadora propôs nas quais os sujeitos são marcados pela invisibili- oicinas na Febem era o de auto-apresentação trazia a possibilidade de emergência de discursos
sessões de audiência coletiva dos materiais pro- dade, a produção de imagens pode ter um valor para a câmera. O material gravado era em seguida silenciados em outros espaços - como o da assem-
duzidos a respeito do grupo – registros gravados estratégico para a emergência de um gradiente de exibido para o grupo, quando era discutida desde bléia ou de reuniões formais dos conselhos das
pelos próprios trabalhadores, de eventos e acon- novas vozes. a qualidade da captação, com a câmera operada cooperativas. Os gêneros de discursos que cabem
tecimentos, reportagens televisivas, entrevistas. Na Febem, o objeto-câmera fascinava os pelos jovens, à postura e voz dos “apresentadores”. nesses espaços formais de tomada de decisão e
Esses momentos eram tomados como o tempo alunos. Em uma das primeiras atividades pro- O uso do vídeo como meio de comunicação no exercício de poder apagam a existência das outras
de recriar um discurso sobre a trajetória do gru- postas na oicina, a câmera era apresentada, com contexto pesquisado tem como uma importan- falas. Com as oicinas, surgiram diversas possibi-
po, repensar o passado para reposicionar-se no a identiicação de seus componentes e de suas te conseqüência o estímulo à fala dos jovens. O lidades de manifestação de vozes. Para além da
presente, movimento importante num momen- operações básicas. Ela, em seguida, era passada vídeo era rapidamente associado à possibilidade fala do “representante”, cada indivíduo tem sua
to de reorganização das relações de trabalho em de mão em mão, até que todos a tivessem expe- de narrar a experiência da internação. Falar para posição a manifestar. No convite à performance
fábricas recuperadas pelos trabalhadores. Tais rimentado. Nas falas curiosas, evidenciava-se a a câmera era substancialmente diferente de con- para a câmera, as mulheres, os jovens, os idosos,
encontros acabavam se tornando momentos atração causada pelo aparelho eletrônico, de alto versar com uma pesquisadora. O formato “depoi- os que não dominavam o léxico dos espaços for-
catárticos em que a força da memória permi- valor monetário e também simbólico. “Conhe- mento” ou “entrevista” (no qual um dos jovens mais da fala, enunciaram suas posições.
tia a airmação de uma nova identidade para cer uma dessas”, saber usá-la e, no limite, pos- era o repórter, um, o entrevistado e o terceiro, o Uma outra situação que evidencia a forma
o grupo. Revendo seu passado e selecionando suí-la era sinal de status e poder. Fazer a oicina câmera) dava aos internos a possibilidade de do- como a presença da câmera pode de alguma
eventos dramáticos, os trabalhadores narravam, era, nesse sentido, uma possibilidade nítida de mínio sobre o conteúdo da fala: eram eles e não as maneira agenciar o discurso, a fala dos sujeitos,
de uma nova perspectiva, a sua história coletiva. diferenciação com relação ao grupo de internos. pesquisadoras quem escolhia o que falar. é evidenciada na pesquisa de campo junto aos
Isso construía uma nova unidade no grupo, ca- No caso bororo, também há uma grande va- O fato de estar à frente da câmera tem conse- Bororo. Edson, um dos jovens bororo partici-
paz de superar antigas diferenças. lorização da posse da câmera como um elemento qüências subjetivas importantes, que são otimiza- pantes da oicina, tinha como desaio em certa
de status. Os jovens bororo que utilizavam a câ- das, dada a situação da internação. A internação ocasião a realização de entrevistas, com a esco-
Etnograias do processo de produção mera podiam potencializar seu desejo de maior é caracterizada por um processo de esquecimento lha de pessoas e de temas livres, e a realizou de
de vídeo inluência política, algo que raramente é acessível dos jovens reclusos. Neste cenário, estar à frente forma bastante satisfatória. Ele gravou uma en-
a eles. Ser um “câmera” permitia a participação da câmera, falar para o vídeo é marcar uma pre- trevista com José Carlos Ekureu, que vinha de
As etnograias que nascem da narrativa das nas discussões políticas e reivindicatórias e viajar sença, expor a sua condição, abandonar por mo- outra aldeia e pretendia passar uma temporada
oicinas podem revelar o caminho da constru- para registrar rituais e negociações. No entanto, mentos a invisibilidade que os caracteriza, deixar no Tadarimana. José Carlos, um xamã de pres-
ção do conhecimento, ao apresentar o seu pró- essas possibilidades tinham suas limitações tam- registrada sua existência, sua revolta. tígio, já versado na interação com a câmera, fez
prio processo de produção. Esse conhecimento bém. Esses jovens que tinham acesso a elementos Estar atrás da câmera era também um ato um discurso nostálgico, típico de um homem
é construído no encontro etnográico. Os su- do mundo dos “brancos” podiam atuar e exercer peculiar, dada a situação de internação. A mais velho para um jovem, de valorização de
jeitos estudados produzem novas percepções de algum poder oriundo dessa situação dentro dos manipulação da câmera era uma ação inde- um passado que não permanecera12. No en-
si mesmos, elaboram sentidos para se referir às limites estritos que sua inserção social e cerimo- pendente, pouco comum no ambiente insti- tanto, pelas imagens percebemos ainda que
suas experiências e constroem relexões durante nial permitia. Dessa forma mantêm-se sua condi- tucional. A escolha do que ilmar era livre, seu depoimento não era endereçado apenas ao
a realização do vídeo. Mais que analisar o mate- ção de jovem, que implica determinada inserção dentro dos limites impostos pelo espaço e jovem que o ilmava, mas sim ao mundo dos
rial resultante das oicinas, interessa-nos pensar ritual e de conhecimento, e ainda sua condição duração das aulas. Esta liberdade tinha como “brancos”. José Carlos vai fazendo seu discur-
na especiicidade etnográica desses processos. de pertencente a determinado clã ou metade. resultado desde a escolha das “pautas” e dos so em bororo, traduzindo suas falas alternada-
Nos diversos contextos, uma percepção co- entrevistados, até o uso não previsto e desa- mente para o português. Traduz não só palavras
mum foi quanto ao poder que deriva da apro- Enunciação iador do equipamento, como a gravação em
priação dos meios de comunicação audiovisual. zoom de partes do corpo de uma funcioná- 12. “– Ih! Tinha muito tradicional, muito enfeite dos bo-
Nas oicinas evidencia-se o valor simbólico que Os processos de apropriação do vídeo nas ria. Por im, o domínio da técnica básica de roro, mas bororo está acabando! Então todas as coisas
deriva da posse da câmera; tê-la em mãos resulta oicinas permitem relexões sobre os lugares captação de imagens os fazia autores: com a todas as leis estão apagando, estão consumindo. Tem
algum que tem, pouco tem, muito não tem.”

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e frases que fazem referência ao sistema de clãs no” era construído a partir de características que mais de seis meses. Vale notar que são mobiliza- Em uma experiência de referência neste cam-
bororo ou a objetos da cultura material, mas compunham uma identidade grupal, mas não dos signiicados eloqüentes na compreensão do po, Terence Turner (1993) discute a apropriação
também preocupa-se em comentar situações necessariamente de elementos de uma história de ethos do grupo, elementos que aparecem nesses kaiapó do vídeo e observa como a própria estéti-
que envolvem o mundo dos brancos13. vida especíica, o que implicaria o relato numa eventos para marcar uma identidade coletiva. A ca do grupo revela-se na forma como este escolhe
Uma especiicidade da enunciação, no perspectiva individual. presença da família, com mulheres e crianças na editar o material. As várias repetições de momen-
caso bororo, é a preocupação com questões de Nessa construção de um interno genérico, porta da fábrica, a encenação do compartilhar o tos do ritual, que um espectador de fora do gru-
tradução para que se construam canais de co- não havia uma obrigação com a idéia de ver- pão, a presença da igura de Cristo, na realização po poderia considerar redundantes, eram vistas
municação que preservem um mínimo de inte- dade. A noção de encenação é, portanto, essen- de missas e atos ecumênicos, visavam sensibili- pelos Kaiapó como necessárias, devido à forma
ligibilidade mútua. Na fala de José Carlos ica cial para descrever o processo criativo e o tipo zar a “sociedade” para a centralidade do traba- de apreciação de suas expressões rituais, que têm
evidente uma busca pelo controle e domínio de de comunicação que se estabelecia por meio lho e do emprego na identidade do trabalhador. na repetição um elemento estético importante.
códigos dos dois sistemas e a criação de equiva- das imagens. Os personagens encenados con- Esses são ícones de um modo de ser que encena Steven Feld, etnomusicólogo que estudou
lências de termos e de sentido. densavam uma série de características do que a si mesmo e à sua relação com o outro a partir os Kaluli, em Papua Nova Guiné, comenta, em
se imagina ser o interno da Febem. Ao invés de seus valores. O vídeo fruto dessa pesquisa Fe- Sound and sentiment (1990), a importância de ter
Encenação de deixarem a câmera registrar suas próprias liz ano novo, véio! (Ferraz 1999) foi exibido para realizado a fotograia de um Kaluli com vestimen-
histórias pessoais, os jovens narravam histórias o grupo, durante o decorrer das mobilizações, ta de pássaro durante um ritual. Enquanto as aná-
A presença da câmera nas oicinas funciona imaginadas, incorporavam personagens basea- no espaço do Sindicato. Além disso, o vídeo lises e interpretações envolvem “símbolos sobre
como catalisadora de situações em que os sujei- das ora em um senso comum sobre quem é o foi reproduzido pelos próprios trabalhadores e símbolos, camadas de representação”, a fotograia
tos estudados elaboram diferentes performances, interno da Febem, ora nas experiências concre- circulou entre os resistentes às demissões, du- seria “uma metáfora sobre uma metáfora”. Feld
dentre as quais a encenação – dramatização de tas vividas no cotidiano da internação. As his- rante o tempo das mobilizações. Esse exercício considera a fotograia, assim como outras formas
situações vividas por meio da construção de per- tórias dos “entrevistados” criados não diferiam da enunciação de sua posição para o vídeo per- expressivas, uma construção que corresponde a
sonagens. completamente de suas próprias histórias, mas mitiu que as diversas vozes dos trabalhadores uma presença afetiva (“afecting presence”), uma
Em um dos exercícios realizados nas oicinas o distanciamento proporcionado pela encena- representassem a si mesmas, superando eles sua forma que tem a capacidade de mobilizar afetos
na Febem, os jovens encenavam uma reportagem, ção permitia um certo devaneio e a garantia de condição de representados. e sentidos, conhecimento corporal. A ênfase é na
na qual um deles atuava como repórter, o outro, alguma privacidade. A encenação permitia aos Rever esses percursos nos faz pensar na pro- esfera da sensibilidade, e a produção de uma ima-
como câmera, e o terceiro como “interno”/en- jovens ocupar lugares diversos: ora eram vítimas dução audiovisual como agenciadora de dife- gem ligada a um mito Kaluli foi uma forma dele
trevistado. O repórter assumia freqüentemente a de maus-tratos, ora criminosos experientes, ora rentes formas de relexividade e de expressão se envolver “no processo de descoberta de como a
linguagem dos telejornais mais sensacionalistas, jovens recuperados, prontos para o retorno ao crítica. Os sujeitos que lidam com a invisibili- forma encarna sentimento”.
como o Cidade Alerta, da Rede Record, apre- convívio social. É interessante pensar este exer- dade derivada do não reconhecimento de seus As experiências de compartilhar a produção
sentado por Datena14. Já o personagem “inter- cício de papéis como uma atividade relexiva, modos de expressão podem, ao se apropriar de audiovisual são marcadas pela pesquisa de meios
na qual a própria condição de “interno” é o estratégias de produção de imagem, projetar de expressar sensibilidades e conhecimento. A
13. “Eu não sei como branco trata esse enfeite. Nós mes- objeto da relexão, ao ser exercitada em vidas para um contexto mais amplo suas formas de hipótese que mobilizou a proposta de Rose Sa-
mos fala kioguaro (bracelete de penas). Nabure....pe-
diversas, criadas para o vídeo. ver, seus pontos de vista, suas demandas e críti- tiko de oferecer o vídeo a jovens participantes
nas de arara vermelha e amarela....E o pariko (diadema
de penas)? (...). Cocar! Diz que pariko chama cocar.... Nas experiências de movimentos de traba- cas. As performances para a câmera são também de projetos sociais de ensino artístico15 foi a de
criação de braido!”. Nessa frase, José Carlos refere-se lhadores, como no caso da manifestação contra exercícios de relexão sobre as possibilidades de que o contato nestes projetos com atividades
ao termo “cocar” que sendo de origem tupi foi incor- as 2.800 demissões na Ford de São Bernardo do elaborar suas auto-imagens e identidades. artísticas – como a prática musical – poderia
porado ao português para fazer referência a elementos Campo, em 1999, há também uma encenação sensibilizar e fornecer-lhes instrumentos para
de origem indígena genéricos. O termo bororo para para as câmeras, no intento de chamar a atenção O sensível e o inteligível novas formas de olhar, estar e transformar o
diadema de penas é pariko e não cocar, e José Carlos
da opinião pública. Durante esse acontecimen- mundo. O audiovisual, neste sentido, poderia
expressa uma crítica ao modo como nossa sociedade
costuma designar objetos do mundo bororo. to, as câmeras da imprensa, as do próprio mo- No caminho que percorremos até aqui, ser apropriado como meio de comunicação e
14. Cabe lembrar que esse programa deu uma cobertu- vimento, além da da pesquisadora, focalizavam uma questão comum que perpassa a nossa re-
ra peculiar às rebeliões que aconteceram nos anos de o cotidiano dessas manifestações, que duraram lexão é a especiicidade do audiovisual como 15. Tanto na oicina na Febem quanto no processo de
1999 e 2000. Sempre que apresentava uma notícia potencial articulador das dimensões do sensível discussão audiovisual desenvolvido com Alessandra
sobre a Febem, o apresentador começa a narração mente passava a chamá-los de “marginais”, “bandi- e do inteligível. Cristina Raimundo, ex-aluna de violino do Projeto
chamando os internos de “esses meninos” e rapida- dos” e até “animais” (cf. Hikiji & Miraglia 2003). Guri, analisado por Rose Satiko.

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relexão sobre esta sensibilidade. No trabalho direta a elementos da sua cosmologia. O som que da exibição pública, completa um mosaico de sion and communication. In the article, the authors
com Alessandra, que resulta em um vídeo di- ouvimos é o som de um zunidor, objeto ritual que interpretações, que já vinha sendo construído systematise some topics on method based in the
rigido pela jovem e outro pela pesquisadora16, tem o nome de Aije, que também é o nome de na interação entre a pesquisadora, a jovem e o experience of the “video workshops”. hese work-
imagens e sons são tomados como meios de um monstro sobrenatural que preside o momento grupo com o qual ela se relaciona. shops are characterized by diferent possibilities
apresentar aspectos do fazer musical nem sem- inal do funeral. É a primeira visão do Aije que Temas como o corpo, as expressões estéticas, of interaction with the groups, ways of cognition
pre traduzíveis pela palavra: o luxo do som, as marca a iniciação dos meninos, a cena seguinte do os rituais, os sentidos e emoções na vida social, a and communication. he audiovisual production is
pausas, a consonância e a dissonância, o movi- ilme. Na verdade o som do zunidor é a “voz” do construção cultural de identidades se expressam analysed as a producer of performances, relexivity
mento do corpo que executa um instrumento, Aije, que é um ser que habita o lodo da beira dos no âmbito da visualidade, e demandam estra- and sensibilities.
a transformação dos sujeitos em um momento rios, e para um Bororo essa cena inicial pode ser tégias de pesquisa e representação alternativas à keywords Visual Anthropology. Ethnogra-
de performance. Filmes, lembra MacDougall lida diretamente como aludindo a este ser em seu escrita etnográica. O audiovisual pode respon- phy. Video.
(1998: 49), sugerem modos alternativos de ex- sentido mais amplo na cosmologia e no funeral. der a essa necessidade. O questionamento sobre
pressar a experiência sensorial e social. O exemplo narrado por Edgar a partir de as formas de representação etnográica, que sur- Referências bibliográicas
Edgar Teodoro da Cunha percebeu no vídeo Ritual da Vida remete para o fato de que à di- ge das possibilidades colocadas com o audiovi-
uma forma expressiva que pode dialogar com a ferentes audiências correspondem diferentes sual, implica uma mudança de abordagem em CLIFFORD, James; MARCUS, George. 1986. he Poe-
tics and Politics of Ethnography. California, University
cosmologia do grupo que estuda. O processo de construções de sentido. Cabe ao ilme, por relação à cisão clássica entre sujeito e objeto. As
of California Press.
construção do vídeo evidenciou a necessidade de meio de suas estratégias narrativas, jogar com dimensões do sensível são fundamentais nessa COLLEYN, Jean-Paul. 1995. “Jean Rouch, 54 Anos sem
utilização de formas de linguagem que engajassem essas possibilidades de interpretação. A com- concepção de produção de conhecimento, em Tripé”. Cadernos de Antropologia e Imagem, 1: 65 -74.
os possíveis espectadores do ilme não apenas ra- preensão da obra deve então ser pensada num que o central é o compartilhar. CUNHA, Edgar Teodoro da. 2005. Imagens do Contato:
cionalmente, mas também propiciando uma ex- triângulo em que cada vértice é produtor de Com o vídeo etnográico buscamos comunicar Representações da Alteridade e os Bororo do Mato Grosso.
periência fílmica da situação cultural abordada. sentido: o pesquisador, o grupo estudado e o a experiência do trabalho de campo – sensações, Tese de Doutorado. Faculdade de Filosoia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
A aproximação de um ritual tão complexo como público mais amplo. O difícil controle sobre a sentimentos que nos levaram à compreensão. São
FELD, Steven. 1982. Sound and Sentiment. Birds, Wee-
o funeral passava por uma compreensão sensível. inteligibilidade da obra aponta que as sensibili- insights mobilizados por este modo de conhecer ping, Poetics, and Song in Kaluli Expression. Filadélia,
O vídeo Ritual da Vida17 inicia com duas seqü- dades são constituídas culturalmente. baseado na produção de “presenças afetivas”. O University of Pennsylvania Press.
ências com imagens da beira de um rio, com a A recepção do ilme é tematizada em Pul- conhecimento produzido por esse tipo de abor- FERRAZ, Ana Lúcia Marques Camargo. 2005. Drama-
água transparente evidenciando o fundo lodoso so, um vídeo com Alessandra, dirigido por Rose dagem revela processo e produto. Enquanto a turgias da Autonomia. Tese de doutorado. Programa de
da margem. Essa imagem era acompanhada de Satiko, a partir da experiência da jovem violi- antropologia clássica hierarquizava explicação, Pós-Graduação em Sociologia. FFLCH-USP.
GRIMSHAW, Anna. 2001. “he Anthropological Cine-
um som que não podemos identiicar imediata- nista com a música e com o audiovisual. Após descrição e experiência, “o ilme alteraria esta hie-
ma of Jean Rouch”. he Ethnographer’s Eye. Cambrid-
mente, um som que causa estranheza a ouvidos a exibição de Vírus da Música, trabalho realiza- rarquia, favorecendo a compreensão experimental ge, Cambridge University Press.
não bororo. A passagem da água, para espectado- do por Alessandra na oicina, para uma platéia sobre a explanação” (MacDougall 1998: 84). O HIKIJI, Rose Satiko; MIRAGLIA, Paula. 2003. “Ima-
res não bororo, pode remeter retrospectivamente a composta por alunos e professores do projeto ilme, assim como o ritual, o teatro e a música, é gens em construção: o uso do vídeo como forma de
uma imagem de renovação e transformação, idéia de ensino musical no qual a jovem aprendera performativo e propositivo. Produz sobre o mun- comunicação com o interno da Febem”. Cadernos de
importante para um ilme que tematiza um ciclo violino – e onde realizou parte das gravações –, do e é um modo de relexão e discurso. antropologia e imagem,16 (1): 47 – 58.
HIKIJI, Rose Satiko G. 2006. A Música e o Risco: Etno-
funeral buscando pensá-lo em termos da manu- alunos e professores falaram sobre o que viram.
graia da Performance de Crianças e Jovens Participan-
tenção da vida, como o título alude. Essa seqüên- As percepções foram diversas: alguns ressalta- The video and the ethnographic en-
tes de um Projeto Social de Ensino Musical. São Paulo,
cia, no entanto, pode ser lida de maneira diversa, ram o conteúdo do vídeo, como o fato de falar counter Edusp/Fapesp.
se tomarmos o ponto de vista bororo. As mesmas sobre a música a partir de experiências dos pró- MACDOUGALL, David. ›De quem é essa estória?›. In
imagens, para um Bororo, fazem uma referência prios alunos; um professor notou o potencial do abstract his article proposes the relection Cadernos de Antropologia e Imagem, 5 (2): 93-106.
vídeo de apresentar a esfera musical, que não é upon the uses of video in the ethnographic research. _____. 1998. Transcultural cinema. Princeton, Princeton
University Press.
16. O primeiro é Vírus da Música (Raimundo e Hikij verbal; um aluno, ao destacar sua identiicação he authors do researches in diferent contexts, with
MACHADO, Arlindo. 1996. Máquina e Imaginário. São
2004), o segundo, Pulso, um vídeo com Alessandra com o que foi mostrado, começou a apresentar Bororo Indians, workers in self-management and
Paulo: Edusp.
(Hikiji 2006). sua própria visão do universo musical – o vídeo young music students in a social project. he au- MARCUS, George; FISCHER, Michael. 1986. Anthro-
17. Ritual da Vida (Cunha 2005) tematiza o funeral bo- o tocou, como a música. A pluralidade de lei- thors have a common methodology: they propose pology as cultural critique. Chicago, he University of
roro, como resultado da pesquisa de doutorado de turas e sentidos, que se concretiza no momento de use of video by the subjects as a means of expres- Chicago Press.
Edgar Teodoro da Cunha (2005).

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gia. São Paulo : LISA/USP, 2003. (23 min).
sed dancer, the magician, the sorcerer, the ilmmaker, resumo Trata-se aqui de reletir sobre o ren- esta edição comemorativa da revista Cader-
Funk Rio. Direção: Sérgio Goldemberg. Brasil, 1994.
the ethnographer”. Studies in the Anthropology of visual
Jaguar. Direção: Jean Rouch. 1967.
dimento da etnograia para o estudo antropológico nos de Campo1, de reletir sobre o rendimen-
Communication 5 (1): 2 - 8. de temáticas históricas recorrendo às balizas teóri- to da etnograia para o estudo antropológico
Meninos eu Vi?. Direção: João Moreira Salles (coord.).
_____.1997. “Poesia, dislexia e câmera na mão”. Cinemais. co-metodológicas que nortearam a pesquisa de que de temáticas históricas. Considerando-se que
Brasil, 1992.
Revista de cinema e outras questões audiovisuais. 7.
Moi, um noir. Direção: Jean Rouch. 1958. resultou minha tese de doutorado (Frehse 2004). esse tipo de investigação depende fortemente
_____. [1974]. “he Camera and Man”. In: HOCKIN-
Pulso, um vídeo com Alessandra. Direção: Rose Satiko Buscarei, à luz delas, explorar especiicamente as po- da análise de documentos históricos, quais as
GS, Paul (ed.): Principles of Visual Anthropology. Nova
G. Hikiji. Produção: Laboratório de Imagem e Som
Iorque, Mouton, 1995. tencialidades de uma etnograia das ruas centrais de potencialidades da etnograia para esse tipo de
em Antropologia. São Paulo : LISA/USP, 2006. (32
SCHULER, Evelyn; SZTUTMAN, Renato. 1997. “A
min).
São Paulo entre o início do século XIX e o início do pesquisa no âmbito da antropologia?
Louca Maestria de Jean Rouch”. Sexta-Feira - Antro- XX. No intuito de trazer à tona essas potencialida- O objetivo de enfrentar essa questão inspirou
Pyramide humaine. Direção: Jean Rouch. 1959.
pologia, Artes e Humanidades, 1: 12 -22. des, a relexão se estrutura em duas etapas. Primei- a elaboração deste artigo. Para fazê-lo nos limi-
Ritual da Vida. Direção: Edgar Teodoro da Cunha. Pro-
SZTUTMAN, Renato. 1997. “Jean Rouch e o Cinema
dução: Laboratório de Imagem e Som em Antropolo- ramente, cabe construir teoricamente o argumento tes do presente texto, discutirei a problemática
como Subversão de Fronteiras”. Sexta-Feira - Antropo-
gia. São Paulo : LISA/USP, 2005. (30 min). de que a etnograia pode perpassar também estudos a partir das balizas teórico-metodológicas que
logia, Artes e Humanidades, 1: 23 - 30.
Vírus da Música. Direção: Alessandra Raimundo; Rose
_____. 2004. “Jean Rouch. Um Antropólogo-Cineasta’. antropológicos referentes a temáticas históricas por nortearam a pesquisa de que resultou a minha
Satiko G. Hikiji. Produção: Laboratório de Imagem e
In: CAIUBY NOVAES et alli (orgs.). Escrituras da
Som em Antropologia. São Paulo : LISA/USP, 2004.
ser perpassada por uma perspectiva epistemológi- tese de doutorado (Frehse 2004). Buscarei, à luz
Imagem. São Paulo, Edusp/Fapesp, p. 49 -62. ca muito especíica: a perspectiva etnográica. Com delas, explorar especiicamente as potencialida-
(20 min).
TURNER, Terence. 1993. “Imagens desaiantes, a apro- o objetivo de provar a pertinência do argumento, des de uma etnograia das ruas centrais de São
priação kaiapó do vídeo”. In Revista de Antropologia, v.
Os vídeos dos autores podem ser consultados submeterei meu próprio estudo de doutorado a um Paulo entre o início do século XIX e o início do
36(1): 81 - 121.
WORTH, Sol; ADAIR, John. 1972. hrough Navajo eyes. ou adquiridos no Laboratório de Imagem e Som estranhamento a posteriori, a im de avaliar nele a XX. Foi este o cenário espaço-temporal de refe-
Bloomington: Indiana University Press. em Antropologia (LISA-USP), lisa@usp.br. presença do recurso à etnograia. Será então possível rência para a apreensão de transformações nas
destacar que a perspectiva etnográica carrega consi- regras de comportamento corporal e de socia-
autor Ana Lúcia Marques Camargo Ferraz go, para o estudo antropológico das ruas paulistanas bilidade na cidade então; transformações essas
Doutora em Sociologia / USP do passado oitocentista, potencialidades que são de que me interessaram por aquilo que poderiam
Pesquisadora do GRAVI / USP cunho teórico-metodológico e literário, a despeito revelar a respeito da maneira como a sociedade
autor Edgar Teodoro da Cunha das inevitáveis limitações da etnograia para o trato paulistana da época se ajustou, em termos cul-
Professor de Antropologia / FGV-SP de temáticas históricas. turais, à possibilidade histórica da modernidade
Doutor em Antropologia Social / USP palavras-chave Antropologia histórica. no momento mesmo em que esta foi começan-
Editou a Cadernos de Campo nos 5/6 e 9 Etnograia. Epistemologia. Perspectiva etnográica. do a fazer-se presente em São Paulo, em meio à
autor Rose Satiko Gitirana Hikiji Etnograia e vida cotidiana. crescente prosperidade das exportações cafeeiras
Professora de Antropologia / USP
Doutora em Antropologia Social / USP Tendo me dedicado durante a minha pós-
1. Versão reformulada da comunicação apresentada no
Editou a Cadernos de Campo nos 5/6 e 7 graduação em Antropologia Social à relexão
Simpósio “Sociedade, población y economia” do VI
antropológica a respeito de temáticas históricas Congreso Internacional de Etnohistoria realizado
Recebido em 07/12/2006 (Frehse 1999, 2004 e 2005a), gostaria, neste em Buenos Aires (Argentina) entre 22 e 25 de no-
Aceito para publicação em 07/01/2007 texto, reformulado especialmente para integrar vembro de 2005.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 287-298, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006
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do interior da província e à decadência da escra- rais vigentes em um contexto espaço-temporal década de 1980, outras, mais fortemente re- em particular, reconhece na etnograia a “pos-
vidão no país. que não é de forma alguma aquele em que vive feridas ao papel político-social da etnograia. tura epistemológica que deine a antropologia”
No intuito de trazer à tona essas potencia- o pesquisador que sobre elas se debruça? O historiador da antropologia James Cliford (McCallum 2001: 6). E isso porque os dados na
lidades, é necessário antes demonstrar por que No meu modo de ver, a característica distin- foi pioneiro em conceber a etnograia essen- pesquisa antropológica constituiriam um “fato
a etnograia pode perpassar também estudos tiva é que, mesmo quando o arquivo é o “cam- cialmente como uma negociação política que social total”: a etnograia fundamenta-se num
antropológicos referentes a temáticas históri- po” no qual transcorre a pesquisa empírica, esta marca o contato entre antropólogo e nativos duplo “processo de objetivação” do etnógrafo,
cas. Essa é uma etapa relevante para a relexão, permanece orientada, em termos epistemológi- durante a pesquisa de campo e a formalização que aprecia os processos de “objetivação” vivi-
dada a associação quase imediata que, desde cos, pela ênfase num modo de conhecer que é textual da interpretação dos resultados da in- dos pelos outros que estuda para, num segundo
a famosa introdução de Argonautas do Pacíi- propriamente etnográico, quando o pesquisa- vestigação ([1983]2002: 43). Dialogando com momento, “auto-objetivar-se” por meio da aná-
co Ocidental, costuma ser feita, na disciplina, dor recorre a sua formação antropológica para essa visão, ganharam espaço outras que visa- lise e da descrição que faz do contexto apreen-
entre etnograia e uma metodologia baseada analisar o contexto espaço-temporal em ques- vam enfatizar, por meio do termo, uma forma dido (Idem: 8-9). Argumentando nesses termos,
no uso da chamada “observação participante” tão. A etnograia envolve uma determinada especíica de representação textual da análise a autora acaba por trazer para o primeiro plano
durante o chamado “trabalho de campo”. O perspectiva de conhecimento da vida social que antropológica (cf., por exemplo, Marcus e que à etnograia, tão decisiva para um conheci-
estudo de temáticas históricas evidentemente leva o antropólogo a, no contato com material Cushman 1982; Cliford e Marcus 1986; Ge- mento de cunho antropológico, está implícito
vai na contramão de tais preceitos: é impossível histórico, atentar para aspectos que os colegas ertz 1988). um modo de conhecer a realidade sociocultural.
fazer “observação participante”, e o “campo” é historiadores, em contato com a mesma docu- Em meio a essa plêiade de pontos de vista, É uma “postura” perante o conhecimento, uma
o arquivo. Há como, nesse contexto, falar em mentação, deixam em segundo plano em favor interessam-me particularmente as referências à maneira de justamente posicionar-se perante o
etnograia? de outros dos quais o antropólogo, por sua vez, experiência cognitiva implícita à etnograia. Esse contexto de estudo durante e após o trabalho de
A meu ver, sim, já que esta é perpassada por passa ao largo. De que perspectiva se trata? tipo de ênfase se faz presente num debate amplo campo, nas etapas de análise e de interpretação
uma perspectiva epistemológica muito especíi- A im de encontrar uma resposta há que se que, vigente não apenas no cenário acadêmico dos dados.
ca: aquilo que chamarei de perspectiva etnográi- contemplar, mesmo que brevemente, o deba- internacional, mas nacional atualmente, for- Essa é a associação mais explícita que pude
ca. Com o objetivo de provar a pertinência do te a respeito das características da etnograia nece esclarecedoras argumentações em relação encontrar entre etnograia e epistemologia.
argumento, submeterei o meu próprio estudo como recurso célebre da antropologia no míni- ao fato de que a etnograia de forma alguma se Importa, para os ins deste texto, que ela abre
de doutorado a um estranhamento a posteriori, mo desde os estudos pioneiros de Malinowski. restringe ao contato tête-à-tête com os nativos: espaço para uma concepção alternativa de et-
a im de avaliar nele a presença do recurso à Para este autor, “etnograia” é o rótulo de uma o “campo” do trabalho de campo antropológico nograia, mais “liberta”, por assim dizer, da as-
etnograia. Será então possível destacar que a ciência ([1922]1978: 18). Outros antropólo- pode ser também o arquivo2. Cecília McCallum, sociação automática com o trabalho de campo
perspectiva etnográica carrega consigo poten- gos evocam a noção para aludir à experiência baseado no contato físico, tête-à-tête, com os
cialidades de cunho teórico-metodológico e cognitiva de cunho existencial forjada no estra- 2. No contexto internacional a discussão já é mais antiga sujeitos a serem estudados. E isso por mais que
literário para o estudo antropológico das ruas nhamento das distâncias e proximidades entre (Bloch 1977; Geertz [1980]1991; Sahlins 1981; Gaunt McCallum tenha, ela mesma, realizado traba-
paulistanas do passado oitocentista, a despeito as referências (culturais e teóricas) do pesqui- 1982; Rowland 1987). No que se refere ao cenário lho de campo para a abordagem de antropo-
das inevitáveis limitações que a etnograia apre- sador e aquelas dos “outros” que ele estuda brasileiro, discussões sistemáticas sobre a temática são logia da saúde que apresenta em seu estudo
mais recentes e vêm tendo lugar em eventos cientíi-
senta para o trato de temáticas históricas. (cf., por exemplo, as notórias considerações (2001).
cos especíicos. Sobressai nesse sentido, entre outros, o
de Lévi-Strauss [1958]1970: 16 e de Geertz Seminário Temático “A Antropologia e seus métodos: Ancorada nessa argumentação, gostaria de,
A etnograia como perspectiva episte- [1973]2000: 6, mas também de Lévi-Strauss o arquivo, o campo, os problemas”, coordenado por parodiando o provérbio, “aumentar um ponto”
mológica [1960]1973: 16 e de Geertz 1988, desenvol- Marcio Goldman e Emerson Giumbelli e realizado desse “conto”. Ou diminuir, considerando-se
vidas, no cenário acadêmico nacional, por Pei- no âmbito do 25º Encontro Anual da ANPOCS, de que parto de uma dimensão epistemológica
Se a antropologia se particulariza por, como rano 1995 e Goldman 2001). Em diálogo com outubro de 2001 e cujas contribuições estão regis- especíica embutida na noção de “objetivação
tradas em disquete (Seminário 2001), e o Seminário
assinala Eduardo Viveiros de Castro ([1998] essas concepções todas, há quem argumente dupla”. No meu modo de ver, esta ocorre tam-
“Quando o campo é o arquivo: etnograias, histórias
2002), “dialogar para valer”, num mesmo “pla- especiicamente que “etnograia” rotularia um e outras memórias guardadas”, coordenado por Celso bém quando o contato com os processos de ob-
no epistemológico”, com aqueles que são objeto “método” especíico da antropologia para estu- Castro e Olívia Maria Gomes da Cunha realizado pelo jetivação dos “outros” e do próprio antropólogo
do discurso antropológico, o que caracteriza tal dar grupos humanos (Magnani 2002: 17). CPDOC da Fundação Getulio Vargas e pelo Labora- é mediado particularmente por documentos
empreendimento como “antropológico” quan- Paralelamente a essas relexões metodoló- tório de Antropologia e História do IFCS/UFRJ em históricos. McCallum preconiza a existência da
do o que se pretende é analisar práticas cultu- gicas, consolidaram-se, sobretudo a partir da novembro de 2004, e cujas contribuições foram publi- dupla objetivação inspirada nas considerações
cadas na revista Estudos Históricos, 36, 2005.

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de Lévi-Strauss ([1950]1997) sobre a noção etapas metodológicas envolvidas na realização teórica. E a questão se torna saber como essa me- pólogo recupera, especiicamente para o debate
maussiana de “fato social total”. Menos do que de uma pesquisa antropológica. Perpassa a for- diação se faz presente na deinição da questão sobre a noção de cultura, toda a potencialidade
recuperá-las aqui, importa enfatizar que há em- mulação da questão teórica, a deinição do ob- teórica do estudo, na deinição do objeto, na da noção de práxis que, já presente em Marx,
butida nelas a proposição de um modo especíi- jeto, do cenário espaço-temporal empírico de construção de referências metodológicas, no le- foi tão bem desenvolvida pelo sociólogo Henri
co de conhecer a vida social. E é justamente esse referência; envolve a construção da referência vantamento, sistematização e análise dos dados, Lefebvre (1966: 43) na distinção que este fez
modo de conhecer que é ensinado ao estudan- metodológica, o levantamento, a sistematiza- na redação da monograia. entre os três níveis da práxis, ou seja, do “ato;
te de antropologia quando este toma contato ção e análise dos dados e a redação do texto A questão teórica que enfrentei em minha relação dialética entre a natureza e o homem,
com a noção de etnograia. Aprender a “fazer monográico. pesquisa de doutorado foi a seguinte: como a as coisas e a consciência”. Este autor diferen-
etnograia” é aprender, antes de tudo, a impreg- Com o propósito de demonstrar a pertinên- sociedade paulistana oitocentista, rural e de ciou entre práxis repetitiva (que “recomeça
nar corpo e alma, inteligência e sensibilidade cia do argumento, trata-se agora de rastrear a fortes raízes estamentais e escravistas, se ajus- os mesmos gestos, os mesmos atos em ciclos
da imprescindibilidade da busca pelo “diálogo presença a perspectiva etnográica numa inves- tou, em termos culturais, ao advento da mo- determinados”), práxis mimética (que “segue
para valer”. E isso, mesmo sabendo que o co- tigação antropológica na qual o tempo históri- dernidade em seu dia-a-dia na cidade (Frehse modelos”, criando sem saber como nem por
nhecimento antropológico é sempre menos do co de referência é o passado. Cabe debruçar-se 2004: 7)? De fato, o momento é de difusão ali, quê) e práxis inventiva e criadora (que “intro-
que aquilo que o outro diz e sempre mais do que sobre as minhas opções teóricas, metodológi- em intensidade até então inédita, da realida- duz descontinuidades no processo global só-
aquilo que se poderia dizer sem o outro. Ora, cas e literárias na investigação que originou a de social e cultural ligada à concepção de que cio-histórico”). O ajuste que me interessou na
precisamente esse fundamento epistemológico tese de doutorado (Frehse 2004). E isso para tudo e todos são transitórios, moda, modernos investigação aqui perscrutada se dá justamente
da etnograia abre espaço para que se a reconhe- demonstrar como os procedimentos metodo- – com todas as contradições que essa realida- nesse meio de caminho entre a irreversibilida-
ça ativa em relação aos mais diversos “campos” lógicos da investigação estão impregnados da de envolve e acarreta. É um processo histórico de da mudança e a originalidade cultural em
de estudo, quando o pesquisador se propõe perspectiva etnográica. que começa a fazer-se presente no dia-a-dia dos relação a esta mesma mudança. É um meio de
uma pesquisa antropológica. A consciência da indivíduos em São Paulo; em particular, com caminho cheio de reinvenções, marcado que é
necessidade do “diálogo para valer” é o ponto Em busca da perspectiva etnográica a prosperidade crescente das exportações cafe- pela ressigniicação sempre inconclusa do velho
para o qual convergem as impressões coletadas eiras e a decadência da escravidão no país, a como novo e vice-versa.
mais ou menos aleatoriamente em campo, seja O exercício de estranhamento que viso aqui partir da segunda metade do século XIX. Abordei a temática teórica do ajuste cultu-
quando o campo é o campo tradicional do tra- realizar pressupõe que a perspectiva etnográica Ajuste cultural certamente não signiica ab- ral à modernidade a partir de interlocução com
balho antropológico, seja quando é o arquivo. É medeia os procedimentos metodológicos, não dicar das próprias referências em favor de outras autores que se preocupam, cada um à sua ma-
por serem submetidos a essa consciência que os os determina mecanicamente. Nunca é demais quaisquer. É verdade que, como bem discerniu neira, em abrir espaço para um aprofundamen-
dados coletados pelo antropólogo via contato relembrar Malinowski: “Não é suiciente [...] Marshall Sahlins ([1985]1994: 181-87) a par- to teórico-metodológico da práxis marxiana.
direto ou indireto com os sujeitos estudados se que o etnógrafo coloque suas redes no local cer- tir de um diálogo com categorias de Marx, os Por sua vez, esta noção remete instantanea-
transformam em dados propriamente etnográ- to e ique à espera de que a caça caia nelas. [...] indivíduos colocam, na ação – “práxis” –, as mente à análise dos fatos sociais no plano da
icos. O pesquisador de campo depende inteiramen- suas categorias “em relações ostensivas com o vida de todo dia dos indivíduos. Ora, não é
No intuito de ressaltar essa dimensão do te da inspiração que lhe oferecem os estudos mundo”. Os signiicados dos objetos são, na para essa seara da vida social que a etnograia
vínculo entre etnograia e epistemologia, privile- teóricos” ([1922] 1978: 22-23). Desde então, práxis, submetidos a riscos objetivos (acasos) enquanto perspectiva epistemológica instiga o
gio relacionar etnograia a uma perspectiva epis- quando o assunto é etnograia, é freqüentemen- e a riscos subjetivos (as intenções desses mes- antropólogo? Ao sinalizar para a busca episte-
temológica. Aquilo que chamo de perspectiva te reiterada, mesmo que a partir de abordagens mos indivíduos e a relação dos signos com ou- mológica incessante do “diálogo para valer”, a
etnográica é forjada na metáfora da perspectiva teóricas distintas, a premissa de que o conheci- tros, no interior do sistema de relações entre perspectiva etnográica estimula o pesquisador
para destacar, na concepção de etnograia, a sua mento etnográico depende de uma boa forma- signos que deine a cultura). É por isso que o justamente a atentar para os pequenos fatos do
dimensão de ponto de fuga para o qual converge ção teórica prévia (cf., por exemplo, DaMatta autor airma que a cultura é ordenada histo- dia-a-dia, para o aparentemente insigniicante
a maneira de o pesquisador apreender, analisar, [1974]1978: 24; Geertz [1983]2000: 55-70; ricamente. Todavia, ao mesmo tempo Sahlins que está além – ou aquém – das previsões oi-
interpretar, representar e, assim, conhecer a vida Peirano 1995: 44-45; 2006: passim). Tais con- argumenta, parafraseando Franz Boas, que “o ciais e dominantes. É essa a natureza dos dados
social, independentemente de sua forma de con- siderações sugerem que a etnograia não indica olho que vê é o olho da tradição”, por causa da que marca aquilo que Malinowski chamou de
tato com o seu “campo” empírico de estudo. mecanicamente o que conhecer. Ela intermedeia capacidade humana de atribuir signiicados aos “carne e sangue da vida nativa”. Em passagem
Trata-se, por isso mesmo, de um modo de a relação do pesquisador com aquilo que quer fenômenos. Justamente por conceber a “ação célebre, escreveu o antropólogo polonês sobre
conhecer a realidade que impregna todas as conhecer com base em determinada formação simbólica” em termos dialéticos é que o antro- os chamados “imponderáveis da vida real”:

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Pertencem a essa classe de fenômenos: a rotina desses mesmos indivíduos em sua rotina na ci- de pode ter se ajustado na cidade à difusão da À luz dessas ponderações, compreender
do trabalho diário do nativo; os detalhes de seus dade de então. Essa orientação epistemológica modernidade. como se alteram as regras de conduta em São
cuidados corporais; o modo como prepara a co- me impulsionou a um aprofundamento nas Mas por que as regras de conduta revela- Paulo em meio ao advento da modernidade
mida e se alimenta; o tom das conversas e da abordagens sociológicas da vida cotidiana no riam algo sobre o ajuste? Elas medeiam, como ali signiica apreender como a sociedade, tão
vida social ao redor das fogueiras; a existência mundo contemporâneo, seja em sua vertente sugere Erving Gofman, comportamentos e marcada pela cultura caipira das plagas rurais e
de hostilidade ou de fortes laços de amizade, microssociológica (cf., por exemplo, Schütz interações ([1956]1967). O que envolve tanto interioranas do sudeste da antiga colônia portu-
as simpatias ou aversões momentâneas entre [1970]1979; Gofman [1959]1995; 1967; a seara da cultura – se temos em mente que re- guesa na América, foi se ajustando aos padrões
as pessoas; a maneira sutil, porém inconfundí- Garinkel [1967]1984), seja em sua visada his- gras são sempre de cunho simbólico – quanto a de civilidade implícitos a essa realidade social e
vel, como a vaidade e a ambição pessoal se re- tórico-dialética (cf. em especial Lefebvre 1958, da moral, já que as regras envolvem um grupo cultural marcada pela concepção de que tudo e
letem no comportamento de um indivíduo e 1961, [1968]1972, 1981)3. Tive então como de adeptos, sendo que é a adesão às regras que todos são transitórios.
nas reações emocionais daqueles que o cercam incorporar como orientação metodológica, por leva à constância e padronização dos compor- Evidentemente, o objeto precisou ser recor-
([1922]1978: 29). um lado, que o plano da vida social cuja aná- tamentos. Essa dupla perspectiva permite ir ao tado. Civilidade onde exatamente? Quando? De
lise é favorecida pela perspectiva etnográica é encontro de uma terceira: a da história da ci- quem? Também esse procedimento metodoló-
Como, no meu caso, o assunto era o ad- atravessado por especiicidades sócio-históri- vilidade nos termos em que a noção foi como gico foi encaminhado pela mediação da pers-
vento da modernidade em São Paulo no século cas. No contexto paulistano em foco, a vida de trabalhada pelo historiador Jacques Revel. Nos pectiva etnográica. As ruas paulistanas à luz do
XIX, era claro para mim que esses “imponde- todo dia se encontrava mais e mais inluenciada termos deste estudioso, a civilidade é linguagem dia emergiram como cenário espaço-temporal
ráveis” não poderiam ser apreendidos sem levar pelo modo de vida “cotidiano”, que se deine corporal destinada às “exigências do comércio privilegiado para o contato analítico com aqui-
em conta o processo histórico mais abrangente pelo fato de que os ritmos temporais e espaciais social”, quer se trate de membros do próprio lo que Geertz chama de dimensão “pública” da
de difusão de um modo de vida muito espe- tributários da racionalidade capitalista interfe- grupo ou de outros ainda ([1986]1991:169). cultura ([1973]2000: 12). Como proclama a
cíico, cotidiano, na vida de todo dia dos in- rem de forma crescente na vida de todo dia dos Civilidade é uma categoria êmica da so- literatura especializada na temática da moder-
divíduos na cidade. Adveio daí a interlocução sujeitos a serem estudados; e isso, seja porque ciedade ocidental européia (Pons 1992:21), nidade nas grandes cidades oitocentistas (Frehse
intensa com a sociologia de Lefebvre – nova- esses ritmos representam ameaças inexoráveis, sendo que o seu sentido histórico primeiro se 2004: 14-17), a rua constitui ali o espaço que
mente (tendo-se em mente que já a iniciara seja por terem se transformado em regras de liga às regras corporais socialmente desejáveis sintetiza as concepções de fugacidade e transito-
no mestrado – cf. nesse sentido Frehse 1999 e conduta dominantes, seja por serem forças às para a convivência na cidade enquanto forma riedade que caracterizam essa realidade social e
2005a). Com o objetivo de aprofundar a com- quais resistir com unhas e dentes. Por outro especíica de povoamento humano (etimolo- cultural. Então, concentrar-se nas transforma-
preensão dos dilemas sócio-históricos do ajuste lado, analisar as práticas culturais no plano da gicamente “civilidade” remete à conduta so- ções nas regras de conduta nesse cenário à luz do
cultural que perpassam a práxis dos indivídu- vida de todo dia implica considerar também as cialmente desejável, “civil”, dos “cidadãos”, dia, que é quando ocorre com toda a intensidade
os, uma referência relevante para a relexão é a variáveis situacionais que as envolvem. moradores da “cidade”). Não obstante, com a difusão de objetos, relações sociais e concep-
abordagem sahlinsiana sobre as ressigniicações Aliar a perspectiva epistemológica da etno- a modernidade a noção começa a difundir-se ções historicamente próprias da modernidade
culturalmente especíicas de fatos históricos. E graia à orientação metodológica de foco sobre pelo mundo afora a partir da França com um em meio à movimentação humana intensa que
dá-lhe Sahlins – também novamente (conside- as práticas culturais da vida de todo dia em suas novo sentido. Corresponde a uma linguagem ali se dá, favorece a análise etnográica do ajuste
rando que também no mestrado suas relexões peculiaridades microssociológicas e sócio-histó- corporal que, propagada pela burguesia fran- cultural à civilidade historicamente própria desse
foram relevantes para a abordagem antropoló- ricas conduziu-me a privilegiar como objeto de cesa em ascensão econômica e política, a partir tipo de realidade. Com efeito, a regra de movi-
gica de outra temática histórica). análise as transformações nas regras de conduta do século XVIII, se propunha como adequa- mentação corporal nas ruas das grandes cidades
A atenção etnográica à vida cotidiana aca- referentes aos comportamentos corporais e às da à “civilização” constituída a partir da he- modernas à luz do dia envolve um conjunto de
bou sendo relevante também para a operacio- interações sociais no espaço urbano paulistano gemonia política e sociocultural dessa mesma técnicas corporais, usos físicos do corpo (Mauss
nalização da questão teórica e conseqüente oitocentista. O objetivo especíico passou a ser burguesia (Elias [1939]1993). O termo passa [1936]1997: 365), que, exercitadas num ritmo
deinição do objeto de estudo. Para uma com- atentar para como se modiicaram as regras de a dizer respeito aos tempos “modernos” instau- especíico, numa seqüência de repetições induto-
preensão antropológica desses ajustes culturais conduta no intuito de averiguar o que elas po- rados pela mediação do poder dessa classe. Não ras de “maneiras” (Lefebvre 1992: 55), resultam
no plano da vida de todo dia dos indivíduos deriam revelar sobre a maneira como a socieda- é, nesse sentido, casual que tenha sido na Paris num comportamento corporal deinido: a cir-
na São Paulo oitocentista, foi fundamental das revoluções liberais do século XIX que foi culação, passagem regular pelas ruas. Quanto às
que o objeto de estudo favorecesse a apreensão 3. Uma revisão bibliográica crítica dessas e de outras inventado por Baudelaire o neologismo “mo- interações, a regra que as perpassa é a impessoali-
analítica da dinâmica cultural relativa à práxis referências encontra-se em José de Souza Martins dernidade”. dade, cedo problematizada, em termos teóricos,
([1998]2000: 55-64).

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por Georg Simmel ([1903]1967: 14-18). E isso, renciação original em relação a este? Como a Em relação à São Paulo oitocentista, não cumentos históricos. Os ombros nativos ainda
quer os indivíduos se movimentem pela cidade sociedade paulistana foi, nas ruas, se ajustando faltam abordagens sobre o dia-a-dia de grupos parecem tão distantes...
isolados ou ajuntados em multidões. A circulação aos padrões da civilidade moderna ali? sociais especíicos. Mas pouco se sabia sobre Também na etapa do levantamento de da-
impessoal como regra básica daquilo que chamei A im de responder a questão, permanecia uma outra dimensão da experiência que os dos a perspectiva etnográica se mostrou de
de civilidade moderna (Frehse 2004: 25) exprime necessária uma referência metodológica que membros de cada segmento vivenciaram se- valia. Se o que importava eram movimentos
assim, no plano dos movimentos corporais e dos me guiasse analiticamente pelas ruas paulista- paradamente, em suas movimentações e inte- corporais e interações dos indivíduos em seu
contatos sociais diários, o princípio de transito- nas a serem perscrutadas através da documen- rações diárias nesse espaço: a relação de cada dia-a-dia nas ruas da cidade ao longo do século
riedade que sintetiza a modernidade. Circulação: tação histórica. Que personagem me forneceria indivíduo (de qualquer que seja o grupo) com XIX, seria necessário concentrar-se em fontes
trânsito. Impessoalidade: atributo do transeunte. os seus “ombros” para que eu, por detrás de- e em meio a terceiros variados nas ruas, indiví- históricas que revelassem a dinâmica envolvida
É a essas referências que os indivíduos tiveram de les, pudesse passear analiticamente pelas ruas duos mais ou menos “estranhos”, enquanto a nesse plano “carnal” dos corpos em movimento
ajustar os seus corpos em seu dia-a-dia nas ruas do centro paulistano entre o início do século modernidade ia se difundindo na cidade. pelas vias durante o dia, momento de maior
de São Paulo, modiicando de forma original as XIX e o início do XX em busca de um estra- Retomar aqui essas ponderações visa ex- burburinho humano ali, ao longo de todo o
regras de civilidade historicamente antigas que nhamento etnográico das regras de civilidade plicitar que também o papel metodológico do século. Fui assim conduzida a ruas especíicas,
até então tinham mediado os seus comporta- e suas mudanças ao longo do tempo? transeunte em minha investigação muito deve à a períodos históricos também deinidos e, con-
mentos corporais e interações sociais nas ruas. O Foi essa preocupação simultaneamente epis- perspectiva etnográica. O que o transeunte re- seqüentemente, a documentos peculiares.
que pode revelar os termos do ajuste em questão temológica e teórico-metodológica que trouxe vela sobre a maneira como a sociedade se ajus- Levando-se em conta a importância da di-
no plano “carne e sangue da vida nativa” - no para o primeiro plano a importância metodo- tou ao advento da modernidade em São Paulo? mensão de “teatro espontâneo” que envolve a
caso, substanciado nos comportamentos corpo- lógica do transeunte para a minha investigação. Tendo-se em mente que o transeunte corporii- rua em qualquer cidade (Lefebvre 1970: 29),
rais e nas interações4. Esse plano é fundamental É ele o protagonista mais acabado das regras ca as duas regras de conduta acima explicitadas, mas também as próprias características da his-
para o “diálogo para valer” com as práticas cultu- de conduta que deinem a civilidade moder- é em especial a primeira que permite entrever tória da urbanização paulistana, nota-se que
rais paulistanas em processo de ajuste à difusão na. Trata-se da personagem na qual qualquer toda a potencialidade metodológica da perso- um perímetro relativamente restrito de vias
da modernidade, nos Oitocentos. indivíduo - homem, mulher ou criança - se nagem. Está em jogo na circulação um conjun- centrais no núcleo povoado da cidade congre-
Deinido esse recorte, a questão teórica pôde transforma nos momentos mais ou menos fu- to de técnicas corporais num ritmo especíico: a gava, nesse momento, as principais funções
ser reposta, só que de maneira mais precisa. É gidios em que pelas ruas passa entre um lugar passagem física pelas ruas regularmente. Já que político-administrativas, comerciais, lúdico-re-
que o contato com a historiograia paulistana e outro com regularidade. Na rua o transeunte os ritmos são constituídos por repetições cícli- ligiosas e, a partir de inais dos Oitocentos, até
referida à vida social nas ruas do início dos Oi- corporiica a circulação como regra de conduta cas (de origem cósmica) e lineares (de origem funções industriais. É inevitável, portanto, que
tocentos deixava entrever que ali a circulação que envolve os comportamentos corporais dos social) de movimentos no tempo que, precisa- para ali fossem atraídos dia a dia, enquanto era
e a impessoalidade não eram de forma alguma indivíduos nesse espaço; e a impessoalidade mente por ocorrerem no espaço, engendram dia, grupos sociais dos mais diversos, e que fos-
regras de conduta relevantes ali durante o dia. como regra relativa à sociabilidade desses in- diferenças (Lefebvre 1992), eles constituem se grande a pressão social (e político-repressiva)
E muito menos à noite. As ruas, até mesmo as divíduos ali. uma via privilegiada para a compreensão das em prol da civilidade moderna. Estou falando
centrais, eram lugares em que os pobres, escra- Estabelecida a referência metodológica, mudanças sociais no “nível” do “vivido”, do das ruas, becos, travessas e largos da chamada
vos, forros ou livres, se deixavam icar dia a dia abria-se espaço analítico para novas pergun- “carnal”, do “corpo” (Idem: 91). Uma vez que colina histórica que, para ins operacionais, re-
e pelas quais os senhores e suas famílias passa- tas. Quem seriam os transeuntes nas ruas de esse nível é caro ao “diálogo para valer” que o cortei de maneira deinida, que reproduzo para
vam apenas em ocasiões especiais, festivas, nem São Paulo nos Oitocentos, cenário físico em antropólogo busca, então o transeunte é, no aproximar o leitor o máximo possível do cená-
um pouco cotidianas. Ora, o que seria desse que a diferença entre aqueles que serviam e contexto em foco, uma referência metodológi- rio em relação ao qual realizei a etnograia das
mundo em face da difusão da modernidade aqueles que eram servidos se expressava tam- ca extremamente útil. Se tornar-se transeunte é ruas do passado (Figura 1).
e suas regras de civilidade nas ruas, isto é, em bém no tipo de movimentação física por ali? inevitável na São Paulo oitocentista, a questão Convém ressaltar que se remeter a esse ce-
face do irreversível ajuste ao moderno e a dife- Quem transitaria por essas ruas dia a dia, se é apreender como a passagem regular, a circula- nário físico sob a orientação da perspectiva
elas eram eminentemente lugares dos pobres, e ção, vira regra de comportamento nas ruas; e o etnográica implicou incorporar à noção de
4. Aliás, Geertz preconiza que deveria ser o “compor- se os indivíduos social e economicamente mais que tal fato implica para as regras de conduta “rua” todas as variações topográico-urbanísti-
tamento” o foco primordial do antropólogo, “pois é prestigiados as freqüentavam apenas em dia de que envolvem as interações. cas (largos, becos, praças, ladeiras) decorrentes
através do luxo do comportamento – ou, mais pre- missa ou de festa? E uma vez nas ruas, como Permanece em aberto como procedi nessa do princípio básico que deine a rua: o fato de
cisamente, da ação social – que as formas culturais interagiriam entre si os indivíduos? direção, se só o que tinha à disposição eram do- ser lugar público, de acesso social irrestrito. Por
encontram articulação” ([1973]2000: 17).

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isso mesmo, trata-se de um espaço que pode um dos primeiros autorizados a embrenhar-se
exercer, como nenhum outro local da cidade, o pelos sertões da então colônia, como resulta-
papel de “teatro espontâneo” no qual represen- do do favorecimento com o qual a Inglaterra
tantes dos mais diversos grupos sociais se mo- pôde contar por ter viabilizado política e lo-
vimentaram e interagiram segundo regras de gisticamente a fuga da família real portuguesa
conduta peculiares, em momentos especíicos da Corte, durante as guerras napoleônicas. O
dos Oitocentos e do início dos Novecentos. autor produziu uma documentação de singu-
Quanto ao período histórico no âmbito do lar riqueza (Mawe 1812) no que diz respeito
qual me movimentei, também ele foi deinido a indícios sobre sua maneira de movimentar-
tendo como base a civilidade de que o tran- se e de interagir com terceiros nas ruas de São
seunte é protagonista. Um evento que incidiu Paulo entre inais de 1807 e o início de 1808.
diretamente sobre a maneira de os indivíduos Por suas características, o relato forneceu um
se movimentarem em São Paulo foi a chegada ponto de partida metodológico apropriado
da ferrovia (1865-1867). Os primeiros trilhos para a apreensão analítica de transeuntes na
instalados foram a materialização física mais documentação. Relevante passou a ser buscar
acabada do princípio da circulação de tudo nas fontes referências aos comportamentos
e de todos, indo e vindo da capital. Por isso corporais e interações dos próprios autores ou
os meados da década de 1860 constituem um dos tipos humanos a eles correspondentes – no
marco instigante de periodização, que permite caso de Mawe, viajantes – nas ruas centrais da
avaliar como regras de civilidade vigentes nas cidade.
ruas antes da implantação da ferrovia se altera- Se o primeiro intervalo temporal contem-
ram na seqüência. plado perpassou grosso modo os primeiros ses-
Mas o quanto antes dos anos de 1860 ini- senta anos do século, o segundo foi do início da
ciei a análise e em relação a que momento década de 1880 a 1917. É de 1882 o relato de
histórico a encerrei? Como a idéia era acom- viagem do carioca Firmo de Albuquerque Di-
panhar o impacto da modernidade no plano niz (?-?) sobre a São Paulo na qual vivera, como
dos comportamentos corporais e das interações estudante de Direito, trinta anos antes (Diniz
nas ruas de São Paulo no século XIX, o con- [1882] 1978). O texto foi relevante para mim
texto social e cultural que envolve a chamada por ser o mais antigo que conheço que, produ-
“abertura dos portos”, em 1808, ofereceu uma zido por um viajante brasileiro, aborda as an-
referência inicial interessante. E isso não so- danças desse indivíduo pelas ruas da cidade. A
mente porque o evento representa, em termos novidade histórica que as memórias de Mawe
simbólicos e históricos, um certo prenúncio representam para o primeiro intervalo tempo-
involuntário de processos históricos ligados à ral aqui contemplado, as notas de viagem de
modernidade que agitaram, sobretudo a partir Diniz representam para o segundo.
da segunda metade do século XIX, recônditos O limite da investigação foi julho de 1917,
interioranos como São Paulo numa colônia quando uma revista paulistana, A Cigarra, pu-
Figura 1:“Nova Planta da Cidade de São Paulo com indicação dos principaes ediicios publicos – 1891 – por U. Bonvicini & V. Dubugras” cujo povoamento, ao longo de três séculos, fora blicou uma reportagem fotográica pioneira so-
[e detalhe, circundado por um traçado em preto, com o perímetro enfocado em especial] [U. Bonvicini & V. Dubugras/Benedito Lima de principalmente litorâneo. Mas também porque bre um cortejo fúnebre que alterou os destinos
Toledo, Prestes Maia e as Origens do Urbanismo Moderno em São Paulo, São Paulo, Empresa das Artes, 1996] foi no bojo das negociações que desembocaram da primeira grande greve geral que estava em
na decisão política de abrir os portos às “na- curso na cidade em julho daquele ano. Foi uma
ções amigas” que chegou em São Paulo o via- manifestação social que envolveu a presença
jante inglês John Mawe (1764-1829). Foi ele maciça e politicamente determinante de mais

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de dez mil indivíduos, em boa parte, operários que produziram, iguram como porta-vozes e estereótipos (Idem: 139). No entanto, há na cidade. No segundo intervalo temporal
pouco remediados, nas ruas centrais no dia 12 de tipos humanos que integraram a sociedade mais, quando se explora o “encontro cultural” contemplado entraram em cena também os
de julho. Por ali conduziram em procissão o paulistana nos dois períodos aqui em questão: que cada um desses textos testemunha (Idem, livros de viagem de alguns antigos estudantes
caixão com o corpo do sapateiro espanhol José o “viajante” (estrangeiro ou brasileiro), o “estu- ibidem). Por evidenciar olhares de fora sobre a não-paulistanos da Academia: a passagem pela
Ineguez Martinez (1896-1917), morto em dante da Academia de Direito”, a “mulher de movimentação física e as interações dos estran- cidade anos após o término do curso rendeu
confrontos com a polícia, durante a greve ge- elite”, o “jornalista”, o “fotógrafo de rua”. geiros com nativos nas ruas, esse material for- evocações memoráveis sobre a movimentação
ral desencadeada na cidade de quase 500 mil Foram essas personagens que me cederam nece instigantes contrapontos à relexão sobre dos próprios autores pelas ruas centrais tanto
habitantes alguns dias antes. A publicação da involuntariamente seus “ombros” para que, por as vivências dos próprios membros “nativos” da de seu passado juvenil quanto do seu presente
série de fotograias sobre o evento expressa, em detrás deles, eu pudesse apreender as mudanças sociedade paulistana em relação a esse espaço. adulto.
imagens, a consolidação, nas ruas de São Paulo, nos padrões de conduta nas ruas paulistanas do No segundo intervalo temporal, as ruas da Mas também havia nesse período na cidade
de duas personagens que, ao mesmo tempo em século XIX. Concebi a documentação como cidade foram eternizadas em textos de estran- tipos humanos “nativos” que, pela proissão,
que produtos do passado, apontam para a pos- um conjunto de testemunhas oculares nos ter- geiros que não estavam mais somente de pas- podem ser associados às camadas médias de
sibilidade histórica de regras de civilidade bem mos – aliás, contundentemente antropológicos sagem. Multiplicaram-se órgãos de imprensa São Paulo. Foram importantes, por um lado,
diferentes ali a partir de então, na cidade. Por – do historiador Peter Burke (2001: 183), ao ligados às cada vez mais numerosas colônias determinadas crônicas e notícias jornalísti-
um lado, consagra-se o transeunte que, além reletir sobre as imagens como fonte histórica: de imigrantes, além de fotógrafos também ad- cas que começam a ser trazidas a público pe-
de fotógrafo, é repórter: o repórter jornalístico. “elas testemunham as maneiras estereotipadas ventícios (envolvidos com a produção de foto- los nascentes jornalistas na cidade a partir de
Por outro lado, o fotógrafo foi responsável por e, no entanto, gradualmente cambiantes pe- graias e de cartões postais) que na cidade se 1854, com o aparecimento do primeiro jornal
eternizar, em imagens, uma multidão constitu- las quais os indivíduos ou grupos enxergam o instalaram. Por isso mesmo, em relação a esse paulistano que assumiu o dia-a-dia das ruas
ída em instrumento político moderno passível mundo social, incluindo o mundo de sua ima- período importaram os dados que jornais, fo- como assunto cada vez mais constante de suas
de ser difundido pelo veículo de representação ginação”. Sob essa perspectiva, é crucial variar tograias e postais pudessem conter a respeito páginas. Por outro lado, consegui encontrar
também moderno que é a fotograia publicada os olhares, os testemunhos. Rastreei as fontes à da movimentação corporal e as interações co- fotograias da área central produzidas também
em revistas. procura de indícios dos comportamentos cor- tidianas de alguns de seus autores nas vias cen- por brasileiros, nos dois intervalos em questão.
Explicitados esses aspectos, há como reite- porais e das interações desses tipos humanos trais. Debrucei-me particularmente sobre as Os autores dessa documentação provavelmente
rar sob um novo ângulo a relevância da me- com terceiros nas ruas do primeiro intervalo - cotidianas - crônicas e notícias de dois desses também tenham tido laços com as elites. Como
diação da perspectiva etnográica na seleção da de estudo, apreendendo regras de conduta sin- jornais (um italiano e um alemão), mas tam- era muito restrito o número de alfabetizados na
documentação. Em busca do “diálogo para va- gulares cujas transformações acompanhei em bém sobre imagens de um fotógrafo suíço e cidade – e, de resto, no país – , não é difícil
ler” com os indivíduos que, em movimentação relação ao segundo período em jogo. de um italiano que pelas ruas se locomoveram inferir que os leitores dos jornais e mesmo os
pelas ruas centrais paulistanas, se encontravam, Tanto textos quanto fotograias foram im- com regularidade entre inais do século XIX e empregados ligados a esses órgãos de imprensa
sem saber, imersos no processo histórico de prescindíveis, já que são suportes diversos de o início do XX. As proissões fazem desses tipos fossem aparentados daqueles em cujos círculos
virem a ser transeuntes, foi fundamental con- “olhares” (“gazes”) também diferentes a respeito humanos representantes das nascentes camadas a probabilidade de letrados poderia ser maior,
centrar-se em fontes históricas cujos autores do mundo social (Idem: 126,183). Mas foram médias paulistanas. dependendo das condições econômicas.
discorressem direta ou indiretamente sobre a textos e fotograias precisos: documentos que Considerei, por outro lado, toda uma do- É certo que cada um dos documentos foi
sua própria maneira de deslocar-se isicamente tematizam essencialmente a presença dos res- cumentação “nativa”, por assim dizer, textos e produzido a partir de lugares sociais distintos
e de interagir socialmente nas ruas centrais da pectivos autores nas ruas centrais da São Paulo imagens produzidos por brasileiros no período. – e mesmo em tempos e espaços diversos, se
cidade ao longo dos dois intervalos em foco. nos dois intervalos. Constituíram o corpus do- São documentos pessoais (cartas, no primeiro levamos em conta que as memórias e, em par-
Evidentemente inexistem documentos re- cumental da investigação em questão primeira- intervalo, e um diário, no segundo) de endi- ticular, as memórias de viagem, não foram pro-
feridos às vivências de um único indivíduo mente relatos de viagem de alguns estrangeiros nheirados estudantes da Academia de Direito duzidas em São Paulo. Além disso, cada fonte
nas ruas por mais de cem anos. Porém há, em europeus e norte-americanos sobre as vias do paulistana, aberta em 1828; memórias de anti- obedece aos ditames formais dos respectivos ti-
relação às ruas centrais de São Paulo, textos centro paulistano do período. Tendo freqüen- gos estudantes da instituição também oriundos pos documentais a que pertence, em meio à di-
e fotograias que, originados no decorrer dos tado em geral, quando na cidade, as rodas mais das elites – ou, no mínimo, vinculados pesso- nâmica de sua produção. Isso para não falar de
primeiros sessenta anos do século XIX e do prestigiadas da sociedade, esses forasteiros pro- almente a estas no momento em que escreve- aspectos de apreensão mais difícil. Memórias
intervalo entre os anos de 1880 e 1917, têm duziram em seus textos, antes de tudo, “imagens ram os seus textos; memórias de mulheres de de viagem, de infância e de juventude, nas car-
como autores indivíduos que, nos documentos do outro” imbuídas de inevitáveis preconceitos elite sobre o seu passado de meninas abastadas tas e diários pessoais, resultam de seleções que

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obedecem a critérios de fundo eminentemente meio de interlocução com as considerações de jantes, de estudantes de Direito, de mulheres Etnograia, mas também perspectiva etno-
afetivo. Já no caso das crônicas e notícias dos outro historiador ainado com a antropologia: de elite, de jornalistas e fotógrafos ali naquele gráica, já que o enfoque sobre as movimenta-
jornais, as seleções obedecem a critérios políti- Carlo Ginzburg ([1979]1991; [1989]1989). As período (capítulos 1 e 2). Ancorado nesses da- ções corporais e nas interações dos diferentes
cos e literários. Nas fotograias e cartões postais referências sobre a movimentação corporal e as dos, o texto parte em direção a pistas sobre os transeuntes pelas ruas em cada momento é
fotográicos sobre as ruas, a seleção é de outro interações contidas nas fontes se insinuam atra- padrões de conduta das interações nas ruas nes- uma estratégia literária que visa aproximar cog-
tipo ainda, obedecendo à natureza da própria vés de detalhes cujo signiicado interpretativo se se período (capítulo 3). Após um Intermédio nitivamente o leitor tanto daquelas vias que se
fotograia. Combina limitações técnicas, a deine a partir do cruzamento a que o pesqui- que evoca as transformações socioeconômicas, torna quase inevitável que ele seja levado a es-
perspectiva do fotógrafo, referida à própria in- sador submete os dados contidos fontes. Desse demográicas, urbanísticas, tecnológicas e polí- tranhar as suas próprias, deste início de século
serção deste no mundo social, e a “imaginação cruzamento emerge um desencontro entre aqui- tico-administrativas pelas quais as ruas centrais XXI. Se estas são ruas paulistanas, quantas dife-
fotográica” que, ensejada por motivações esté- lo que Ginzburg chamou de “opacidades” e de de São Paulo passaram no intervalo entre os renças... Mas também, tantas semelhanças...
ticas ou documentais, leva o fotógrafo a bus- “zonas privilegiadas – sinais, indícios” de uma anos de 1860 e 1880, entra em cena a segunda
car desconstruir o visível (Martins 2002: 223). “realidade” mais ampla ([1979]1991: 177). parte do estudo. É então a vez respectivamen- Em meio a limitações, rendimentos
Esses critérios variados se transformam, em Em função da experiência que tiveram das te dos discursos, indícios e das regras referidas de cunho teórico-metodológico e li-
última instância, em pretextos que norteiam a ruas paulistanas, os autores da documentação às ruas do centro paulistano no intervalo entre terário
escolha que os respectivos autores fazem desse transformaram-se, após todo esse tratamento 1880 e 1917 (capítulos 5, 6 e 7).
ou daquele aspecto implícito à sua movimen- teórico-metodológico epistemologicamente A referência teórica que orientou a estrutura Escaparia aos intuitos deste artigo apresen-
tação pelas ruas, a im de eternizá-lo, explícita informado pela etnograia, em informantes argumentativa, na qual cada parte se constitui tar os resultados interpretativos detalhados na
ou implicitamente, nos diversos gêneros docu- por trás de cujos “ombros” documentais pude a partir dos indícios sobre os comportamentos e através da etnograia das ruas do passado que
mentais considerados. Se, nas fontes textuais, empreender a etnograia das ruas do passado. corporais, a im de aprofundar verticalmente, constitui a monograia em questão (cf. nesse
o que resulta da escolha são fragmentos mais Informantes revelados pela documentação a na seqüência (respectivamente capítulos 3 e 7), sentido Frehse 2004). Mais vale apontar o que
ou menos iccionais relativos aos “imponde- partir do diálogo que, pela mediação da pers- as regras envolvidas nas interações em meio a o exercício de estranhamento aqui realizado
ráveis” implícitos às andanças dos respectivos pectiva etnográica, pude travar com a teoria esses comportamentos, foi a premissa geertzia- revela sobre as potencialidades da etnograia
autores pelas ruas paulistanas, nas fotograias a – antropológica, sociológica, histórica6. na de que ao antropólogo cabe concentrar-se para a abordagem antropológica justamente
realidade fotografada constituída na ixidez da Há que se ressaltar, por im, que a perspec- na “hierarquia estratiicada de estruturas signi- das ruas paulistanas oitocentistas. São poten-
película retida pela moldura remete de forma tiva etnográica imbui também a representação icativas” ([1973]2000: 7). No caso, trata-se de cialidades que se apresentam em meio às inevi-
imediata a fragmentos efetivos da movimenta- literária dos resultados da investigação. De uma hierarquia de signiicados que, apreensí- táveis limitações do recurso quando o assunto
ção física do fotógrafo na hora da tomada5. fato, concebo narrativamente o texto mono- veis através do cruzamento de dados das dife- são problemáticas referidas a um tempo histó-
Mediada por esses aspectos todos, a seleção gráico em questão como etnograia da civili- rentes fontes, dizem respeito a regras que, por rico que não é aquele em que vive e pesquisa o
de cada autor acabará por conter referências di- dade que, nas ruas, foi historicamente possível sua vez, perpassam os comportamentos corpo- antropólogo.
retas ou indiretas à maneira como estes teriam para tipos humanos especíicos que estavam rais e, pela mediação destes, as interações em As limitações são óbvias quando se assume
se movimentado isicamente e interagido dia- vinculados às elites e às camadas médias paulis- questão. Mas lanço mão da noção de etnograia como parâmetro a concepção clássica de etno-
a-dia nas ruas do período. Foi essa a matéria- tanas entre o início do século XIX e o início do para caracterizar a monograia tendo em conta graia vigente na antropologia. Não há como
prima de minha análise. E dá-lhe perspectiva XIX (Frehse 2004: 51-54). Assumindo como que a estrutura de cada uma de suas partes tem ter contato físico com os nativos que se estu-
etnográica, nesta etapa da investigação traba- ponto de partida literário os discursos de cada um caráter densamente descritivo: iniciando-se da; não há como “conversar com eles” (Geertz,
lhada em termos teórico-metodológicos por uma das personagens sobre a sua maneira de na descrição dos indícios sobre a movimentação [1973]2000: 13), portanto. Ademais, se, como
se movimentar pelas vias centrais (capítulos 1 física nas ruas, a argumentação passa para as diz Geertz, os dados do antropólogo são sempre
e 2) e de interagir ali (capítulo 3) nas primei- regras signiicativas que esses indícios sugerem construções das construções dos outros (Idem:
5. É preciso considerar a condição indicial da fotogra-
ras seis décadas do século, a primeira parte da para comportamentos corporais e interações. Já 9), as construções, no caso de estudos antropoló-
ia - ou seja, o fato de meramente airmar, pelo ato
que a funda, a existência de uma realidade (objeto, monograia avança, a partir dos indícios sobre o Intermédio é a mediação que dá sentido a gicos de temáticas históricas, se fazem com base
paisagem) à qual se referencia (Dubois [1990]1994: os comportamentos corporais, para as regras essa densidade, de conteúdos socioculturais e apenas em indícios das construções dos outros.
55,88,51-2). Após o ato de exposição da chapa à luz, envolvidas na movimentação corporal de via- históricos diferentes em cada período, por mais Entretanto, penso que o exercício de estra-
essa realidade é “imediatamente (re-)tomada, (re- que a lógica cultural implícita às regras, a eti- nhamento aqui realizado contribui para atestar
)inscrita nos códigos” relativos às “formas culturais da 6. Sobre a pertinência de falar em informantes “quando queta, permaneça inalterada. que as limitações não são suicientes para de-
representação” (Idem: 85-6). o campo é o arquivo”, cf. Frehse (2005b: 131-156).

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mover o antropólogo do empreendimento, se na etnograia. a etnograia das ruas do passado, mesmo que Caxambu: XXV Encontro Anual da ANPOCS. Dis-
o que ele visa é airmar, a partir dos referenciais Expostos esses rendimentos, seria possível ofereça uma história da sociedade paulistana quete.
BLOCH, Maurice. 1977. “he past and the present in
da disciplina, algo sobre a sociedade em ques- inverter a questão inicial deste texto para reletir oitocentista e do início do século XX, não dei-
the present”. Man, 12: 278-92.
tão. Existe uma perspectiva etnográica que sobre a potencialidade que uma análise das ruas xa de ser antropológica. Mas uma antropologia BURKE, Peter. 2001. Eyewitnessing. he uses of images as
o acompanha mesmo quando ele se defronta do passado pode ter para a antropologia. Se não que parte de um pressuposto especíico: o de historical evidence. Ithaca: Cornell University Press.
com modos de viver, de pensar e de se relacio- é o caso aqui de delongar-se nesse sentido, cien- que esta sociedade – se não toda – não pode ser CLIFFORD, James. [1983]. “Sobre a autoridade etno-
nar socialmente que não lhe são contempo- te de que essa tentativa é, ela mesma, pretexto pensada sem que se incorpore à relexão sobre gráica”. Trad. Patrícia Farias. Rev. Técn. José Regi-
râneos. Essa perspectiva medeia a construção para um outro artigo, reconheço que, por meio ela suas especiicidades na maneira de perceber, naldo Santos Gonçalves. In J. R. S. Gonçalves (org.),
James Cliford. A experiência etnográica. Antropologia
teórico-metodológica da investigação, perpassa do empreendimento aqui tematizado, fui leva- viver, conceber a passagem do tempo.
e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora da
a coleta, análise e interpretação dos dados, a re- da a ponderar sobre mediações teórico-metodo- UFRJ, 2002, pp. 17-62.
dação dos resultados. lógicas que, por mais que perpassem também Potentialities of an ethnography of ______; MARCUS, George. (eds.). 1986. Writing cultu-
Se contemplada sob esse prisma, a etnogra- as etnograias realizadas no chamado “presente streets of the past re. he poetics and politics of ethnography. Berkeley/Los
ia é, por um lado, prenhe de rendimentos de etnográico”, nestas freqüentemente passam de- Angeles/London: University of California Press.
cunho teórico-metodológico para a abordagem sapercebidas, ou não são explicitamente proble- abstract Based on the theoretical and meth- DAMATTA, Roberto. [1974]. “O ofício do etnólogo ou
como ter anthropological blues”. In E. Nunes (org.),
das ruas do passado. Ela abre espaço para que matizadas em função de uma coniança talvez odological background of my doctoral thesis in his-
A aventura sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1978,
se problematize antropologicamente, lançando excessiva do antropólogo nas virtudes dos in- torical anthropology (Frehse 2004), this paper aims pp. 23-35.
mão do norte epistemológico que é o “diálo- sights “em campo”. Reiro-me especialmente à at relecting on ethnography’s potentialities for the DINIZ, Firmo de Albuquerque (Junius). [1882]. Notas
go para valer”, essa seara muito especíica da deinição da questão teórica a ser analisada, mas anthropological study of historical issues. Its speciic de viagem. São Paulo: Governo do Estado de São Pau-
vida social que é a vida de todo dia. Trata-se também à construção teórica de uma referência purpose is exploring the potentialities of an ethnog- lo, 1978.
de um ponto de reparo passível de descortinar metodológica para abordar essa questão, o que raphy of the São Paulo central streets between the DUBOIS, Philippe. [1990]. O ato fotográico e outros ensaios.
Trad. Marina Appenzeller. Campinas: Papirus, 1994.
os dilemas culturais e históricos envolvidos acarreta a elaboração de etnograias bem espe- beginning of the 19th and the beginning of the 20th
ELIAS, Norbert. [1939]. Über den Prozess der Zivilisation.
nos fatos aparentemente menores do dia-a-dia. cíicas, através de informantes singulares, que century. In order to emphasize these potentialities, Soziogenetische und psychogenetische Untersuchungen. 2
Sobretudo quando o assunto são a cidade e a são construções também teóricas, mais do que the discussion follows in two steps. First I theoreti- vols. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1993.
modernidade, temáticas tão caras às chamadas resultados exclusivos do contato empírico com cally develop the thesis that ethnography may also ESTUDOS HISTÓRICOS. 2005. Antropologia e ar-
“sociedades complexas”, a perspectiva etnográ- o campo. Isso para não falar da relevância da be present in anthropological studies of historical is- quivos, 36/2.
ica incentiva o pesquisador a estranhar essa se- chamada “crítica da fonte”, tão conhecida dos sues as it is permeated with a speciic epistemological FREHSE, Fraya. 1999. Entre o passado e o presente, entre a
casa e a rua: tempos e espaços na cidade de São Paulo de
ara, inluenciada de forma tão contundente por historiadores, para o processo de coleta, análise perspective: the ethnographic perspective. With the
ins do Império. Dissertação de Mestrado em Antropo-
esse modo de vida historicamente peculiar que e interpretação de dados etnográicos. aim of testifying to the consistency of the argument, logia Social. São Paulo: Faculdade de Filosoia, Letras
é o cotidiano. Tal ponto de vista permite trazer Já do ponto de vista teórico, foi possível I evaluate the presence of ethnography in my own e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo.
à tona, em meio ao vigor do processo histórico reconhecer a perturbadora da historicidade de doctoral study. It will then be possible to highlight ______. 2004. Vir a ser transeunte. Civilidade e modernida-
de difusão da modernidade pelos quatro cantos longa duração que impregna práticas culturais that ethnographic perspective has theoretical, meth- de nas ruas da cidade de São Paulo (entre o início do século
do mundo, as ressigniicações peculiares deste, como a civilidade. Explorando a hierarquia de odological and literary potentialities notwithstand- XIX e o início do século XX). Tese de Doutorado em An-
tropologia Social. São Paulo: Faculdade de Filosoia, Le-
dependendo do contexto sócio-histórico e cul- estruturas simbólicas, deparei-me com regras de ing ethnography’s unavoidable limitations for the
tras e Ciências Humanas – Universidade de São Paulo.
tural em questão. conduta com conteúdos diversiicados em mo- anthropological study of historical issues. ______. 2005a. O tempo das ruas na São Paulo de ins do
Paralelamente há potencialidades literárias mentos históricos distintos; mas a lógica sim- keywords Historical Anthropology. Ethnog- Império. São Paulo: Edusp.
na etnograia. Balizando a elaboração de textos bólica que os envolve tem uma historicidade raphy. Epistemology. Ethnographic perspective. ______. 2005b.“Os informantes que jornais e fotograias
fortemente marcados por fórmulas narrativas que faz reaparecerem em plena rua republicana Ethnography and everyday life. revelam: para uma etnograia da civilidade nas ruas do
que visam conduzir o leitor pela “hierarquia de e pós-escravista regras de conduta cerimoniais passado”. Estudos Históricos, 36: 131-156.
GAUNT, David. 1982. Memoir on history and anthropo-
estruturas signiicativas” que envolvem as práti- do período escravista. Em face dessa constata-
logy. Stockholm: he Swedish Research Councils/Pu-
cas culturais, a perspectiva etnográica implícita ção, ica para a antropologia a seguinte ques- Referências bibliográicas blishing House.
à etnograia acaba por incentivar a relexivida- tão: Há como compreender os signiicados dos GARFINKEL, Harold. [1967]. Studies in ethnomethodo-
de do leitor, ao mesmo tempo tão próximo e comportamentos sem recorrer à história? ANPOCS. 2001. Seminário temático “A antropologia logy. Cambridge: Polity Press, 1984.
tão distante do contexto descrito densamente Em meio a suas limitações e possibilidades, e seus métodos: o arquivo, o campo, os problemas”. GEERTZ, Cliford. [1980] Negara. O estado teatro no sé-

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problemas”, XXV Encontro Anual da ANPOCS, Ca- da ANPOCS, Caxambu. Mimeo (citado com permissão
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A loresta de cristal: notas sobre a ontologia dos
espíritos amazônicos

EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO

resumo O artigo propõe uma relexão sobre a de catalisador imediato – de pretexto, se quise-
ontologia dos espíritos na Amazônia indígena. Uma rem – foi a leitura, bem mais recente, de dois
narrativa de Davi Kopenawa (pensador e líder político fragmentos de uma notável narrativa prove-
yanomami) sobre os xapiripë (ancestrais animais ou es- niente de outra cultura amazônica. Trata-se da
píritos xamânicos que interagem com os xamãs de seu exposição que Davi Kopenawa, pensador e líder
povo) é tomada como inspiração central para uma dis- político yanomami, faz ao antropólogo Bruce
cussão mais ampla sobre cosmologia e xamanismo na Albert sobre os xapiripë, “ancestrais animais”
Amazônia. Nesta discussão, os conceitos amazônicos ou “espíritos xamânicos” que interagem com os
sobre os “espíritos” não apontam para uma classe ou xamãs de seu povo (Kopenawa 2000; Kopena-
gênero de seres, mas para uma síntese disjuntiva entre wa & Albert 2003). Estes textos são parte de
o humano e o não-humano. O tema da intensidade um diálogo em curso entre Kopenawa e Albert,
luminosa característica dos espíritos é interpretado em no qual o primeiro apresenta aos Brancos, na
termos de uma ênfase não-representacional na visão pessoa de seu interlocutor-tradutor, uma con-
como modelo da percepção e do conhecimento nas cepção detalhada do mundo e da história, que é
culturas ameríndias. Kopenawa airma que os xamãs ao mesmo tempo uma reivindicação indignada
dos Yanomami sabem que sua loresta pertence ao xa- e orgulhosa do direito dos Yanomami à exis-
piripë e é feita de seus “espelhos”, isto é, cristais bri- tência2. A seguir transcrevo a versão mais curta
lhantes. A loresta de cristal, portanto, não relete ou da narrativa, publicada em português em duas
reproduz imagens, mas ofusca, refulge e resplandece. ocasiões (Kopenawa 2000, 2004)3.
palavras-chave Yanomami. Ontologia.
Espíritos. Cosmologia. Xamanismo. Luz. Xapiripë
Os espíritos xapiripë dançam para os xamãs
Ces citoyens ininitésimaux de cités mistérieuses… desde o primeiro tempo e assim continuam até
Gabriel Tarde hoje. Eles parecem seres humanos mas são tão
minúsculos quanto partículas de poeira cinti-
Introdução lantes. Para poder vê-los deve-se inalar o pó da
árvore yãkõanahi muitas e muitas vezes. Leva
As relexões aqui alinhavadas têm sua ori- tanto tempo quanto para os brancos aprender
gem longínqua em meu trabalho junto aos Ya- o desenho de suas palavras. O pó do yãkõanahi
walapíti e Araweté, nas décadas de 1970 e 1980, é a comida dos espíritos. Quem não o “bebe”
onde, como todo etnógrafo, tive de confrontar
diferentes noções indígenas sobre a agência dos 2. O diálogo integral entre Kopenawa e Albert deve ser pu-
não-humanos1. O evento que lhes serviu porém blicado muito brevemente. Ver, além dos dois fragmen-
tos já citados, os diversos outros textos de Kopenawa e
de Albert in Albert e Chandès (2003), bem como os
1. Ver Viveiros de Castro ([1978] 2002a), para os Yawa- importantes artigos de Albert (1988) e Albert (1993).
lapíti, e Viveiros de Castro 1992, para os Araweté. 3. Transcrevo a versão publicada em 2004.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006


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dessa maneira ica com olhos de fantasma e não guardamos as palavras dos nossos antepassados Mas a narrativa é igualmente excepcional uma essência invisível distinta de suas formas
vê nada. dentro de nós há muito tempo e continuamos por sua exemplaridade cosmológica. Ela articula visíveis: os xapiripë são os “verdadeiros ani-
Os espíritos xapiripë dançam juntos sobre grandes passando-as para os nossos ilhos. As crianças, e desenvolve idéias que se encontram em estado mais” – mas são humanóides. Isto é, os verda-
espelhos que descem do céu. Nunca são cinzentos que não sabem nada dos espíritos, escutam os mais ou menos difuso em diversas outras cul- deiros animais não se parecem demasiado com
como os humanos. São sempre magníicos: o cor- cantos do xamãs e depois querem que chegue turas indígenas da região. Estamos aqui diante os animais que os xapiripë, literalmente, ima-
po pintado de urucum e percorrido de desenhos a sua vez de ver os xapiripë. É assim que, apesar de uma versão forte, no sentido lévi-straussiano, ginam. De outro lado, os xamãs se distinguem
pretos, suas cabeças cobertas de plumas brancas de muito antigas, as palavras dos xapiripë sem- da mitologia (explicita e implícita) dos espíritos dos demais humanos por serem “espíritos”, e
de urubu rei, suas braçadeiras de miçangas reple- pre voltam a ser novas. São elas que aumentam amazônicos. É esta exemplaridade que interes- mais, “pais” dos espíritos (que, por sua vez, são
tas de plumas de papagaios, de cujubim e de arara nossos pensamentos. São elas que nos fazem sa ao presente artigo, cujo propósito é chamar as imagens dos “pais dos animais”). O concei-
vermelha, a cintura envolta em rabos de tucanos. ver e conhecer as coisas de longe, as coisas dos a atenção para algumas características relativa- to de xapiripë, menos ou antes que designando
Milhares deles chegam para dançar juntos, agi- antigos. É o nosso estudo, o que nos ensina a mente comuns do modo de existência e mani- uma classe de seres distintos, fala assim de uma
tando folhas de palmeira novas, soltando gritos sonhar. Deste modo, quem não bebe o sopro festação dos espíritos na Amazônia indígena. Em região ou momento de indiscernibilidade en-
de alegria e cantando sem parar. Seus caminhos dos espíritos tem o pensamento curto e enfu- particular, tomo o discurso de Kopenawa como tre o humano e o não-humano (principal mas
parecem teias de aranha brilhando como a luz do maçado; quem não é olhado pelos xapiripë não exprimindo uma concepção pan-amazônica na não exclusivamente os “animais”, noção que
luar e seus ornamentos de plumas mexem lenta- sonha, só dorme como um machado no chão. qual as noções que traduzimos por “espírito” se discutiremos mais adiante): ele fala de uma
mente ao ritmo de seus passos. Dá alegria de ver referem a uma multiplicidade virtual intensiva. humanidade molecular de fundo, oculta por
como são bonitos! Os espíritos são assim tão nu- Esta narrativa de Kopenawa — e aqui me formas molares não-humanas, e fala dos múlti-
merosos porque eles são as imagens dos animais reiro tanto ao texto acima como à versão mais O plano de imanência xamânico plos afetos não-humanos que devem ser capta-
da loresta. Todos na loresta têm uma imagem: desenvolvida de “Les ancêtres animaux” (Kope- dos pelos humanos por intermédio dos xamãs,
quem anda no chão, quem anda nas árvores, nawa & Albert 2003) — parece-me um docu- Vários personagens salientes e contextos pois é nisto que consiste o trabalho do sentido;
quem tem asas, quem mora na água... São estas mento extraordinário. Antes de mais nada, ela pregnantes da cosmologia yanomami se acham literalmente, “são as palavras dos xapiripë que
imagens que os xamãs chamam e fazem descer impressiona pela riqueza e eloquência, qualida- evocados no texto acima: os espíritos, os animais, aumentam nossos pensamentos”.
para virar espíritos xapiripë. des que se devem à implementação deliberada, os xamãs, os mortos, os brancos; o mito e o so- A reverberação entre as posições de xamã
Estas imagens são o verdadeiro centro, o verda- por parte dos dois autores, de uma estratégia nho, a droga e a festa, a caça e a loresta. Co- e de espírito se veriica em diversas culturas
deiro interior dos seres da loresta. As pessoas co- discursiva de grande densidade poético-con- mecemos pelos xapiripë propriamente ditos. A amazônicas. No Alto Xingu, por exemplo, os
muns não podem vê-los, só os xamãs. Mas não são ceitual. Nesse sentido, estamos diante de um palavra designa o utupë, imagem, princípio vital, grandes xamãs são chamados “espíritos” pe-
imagens dos animais que conhecemos agora. São projeto de “invenção da cultura” (sensu Wagner interioridade verdadeira ou essência (Kopenawa los leigos, enquanto eles próprios se referem a
imagens dos pais destes animais, são imagens dos 1981) que é ao mesmo tempo uma obra-pri- & Albert 2003: 72, n. 28) dos animais e outros seus espíritos associados como “meus xamãs”
nossos antepassados. No primeiro tempo, quan- ma de política “interétnica”. Se o xamanismo seres da loresta, e ao mesmo tempo as imagens (Viveiros de Castro 2002a: 80-1). Para os Ese
do a loresta ainda era jovem, nossos antepassados é essencialmente uma diplomacia cósmica de- imortais de uma primeira humanidade arcaica, Eja da Amazônia boliviana, “todos os eshawa
eram humanos com nomes de animais e acaba- dicada à tradução entre pontos de vista ontolo- composta de Yanomami com nomes animais que [espíritos] são eyamikekwa [xamãs], ou melhor,
ram virando caça. São eles que lechamos e come- gicamente heterogêneos4, então o discurso de se transformaram nos animais da atualidade. os eyamikekwa têm os poderes dos eshaw’ (Ale-
mos hoje. Mas suas imagens não desapareceram Kopenawa não é apenas uma narrativa sobre Mas o termo xapiripë se refere também aos xiades 1999: 226). Entre os Ikpeng do médio
e são elas que agora dançam para nós como espí- certos conteúdos xamânicos – a saber, os espíri- xamãs humanos, e a expressão “tornar-se xamã” Xingu (Rodgers 2002), o termo pianom desig-
ritos xapiripë. Estes antepassados são verdadeiros tos que os xamãs fazem falar e agir; ele é uma é sinônima de “tornar-se espírito”, xapiri-pru. na os xamãs, seus vários espíritos auxiliares e
antigos. Viraram caça há muito tempo mas seus forma xamânica em si mesma, um exemplo de Os xamãs se concebem como de mesma natu- os pequenos dardos potencialmente auto-in-
fantasmas permanecem aqui. Têm nomes de ani- xamanismo em ação, no qual um xamã tanto reza que os espíritos auxiliares que eles trazem toxicantes que estes espíritos introduzem no
mais mas são seres invisíveis que nunca morrem. fala sobre os espíritos para os Brancos, como à terra em seu transe alucinógeno. O conceito abdômen dos xamãs e que são o instrumento
A epidemia dos Brancos pode tentar queimá-los sobre os Brancos a partir dos espíritos, e ambas de xapiripë assinala portanto uma interferência do xamanismo. Esta observação de Rodgers é
e devorá-los, mas eles nunca desaparecerão. Seus estas coisas através de um intermediário, ele complexa, uma distribuição cruzada da iden- importante por indicar que, se o conceito de
espelhos brotam sempre de novo. mesmo um Branco que fala yanomami. tidade e da diferença entre as dimensões da espírito designa essencialmente uma população
Os Brancos desenham suas palavras porque “animalidade” (yaro pë) e da “humanidade” (ya- de afetos moleculares (ver adiante), uma multi-
seu pensamento é cheio de esquecimento. Nós nomae thëpë). De um lado, os animais possuem plicidade intensiva, então o mesmo se aplica ao
4. Viveiros de Castro (1998); Carneiro da Cunha (1998).

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conceito de xamã: “o xamã é um ser múltiplo, o sopro dos espíritos tem o pensamento curto e F. Jara (1996: 92-4) observa que os xamãs – hu- espécies e as qualidades do mundo atual (Vi-
uma micropopulação de agências xamânicas enfumaçado; quem não é olhado pelos xapiripë manos ou animais, pois as espécies não-humanas veiros de Castro 2001). Donde o regime de
abrigada em um corpo” (op.cit., n.18). Longe não sonha, só dorme como um machado no também possuem xamãs – são os únicos seres “metamorfose”, ou multiplicidade qualitativa,
de serem super-indivíduos, portanto, os xamãs chão.”. De passagem, observe-se que, se o estu- que “mantêm as características primitivas ante- próprio do mito: a questão de saber se o ja-
– pelo menos os xamãs “horizontais” (Hugh- do e a razão vigilante são a alucinação própria riores à separação entre humanos e animais”, em guar mítico, por exemplo, é um bloco de afetos
Jones 1996a) mais comuns na região – são seres dos Brancos, a escrita é o seu xamanismo: “Para particular o poder de mutação inter-especíica (e humanos em igura de jaguar ou um bloco de
super-divididos: federação de agentes sobrena- poder vê-los [os xapiripë] deve-se inalar o pó da este poder é o verdadeiro poder). afetos felinos em igura de humano é rigorosa-
turais como nos Ikpeng, morto antecipado e árvore yãkõanahi muitas e muitas vezes. Leva Assim, a interferência sincrônica entre hu- mente indecidível, pois a metamorfose mítica é
vítima canibal potencial como nos Araweté tanto tempo quanto para os brancos aprender manos e animais (mais geralmente, não-huma- um acontecimento ou um devir (uma superpo-
(Viveiros de Castro 1992), corpo repetida- o desenho de suas palavras.”7. nos) que se exprime nos conceitos de xamã e sição intensiva de estados heterogêneos), não
mente perfurado como nos Ese Eja (Alexiades Como se sabe, boa parte da mitologia ama- de espírito possui uma dimensão diacrônica um processo de mudança (uma transposição
1999: 221). Além disso, se o xamã é, efetiva- zônica trata das causas e conseqüências da es- fundamental, remetendo a um passado abso- extensiva de estados homogêneos). Mito não é
mente, “diferente”, como dizem os Ikpeng peciação – a investidura em uma corporalidade luto – passado que nunca foi presente e que história justamente porque metamorfose não é
(Rodgers op.cit.), resta que esta diferença entre característica – de diversos personagens ou ac- portanto nunca passou, como o presente não processo, “ainda” não é processo e “jamais foi”
os ele e os leigos é uma questão de grau, não tantes, todos eles concebidos como comparti- cessa de passar – em que as diferenças entre as processo; a metamorfose é anterior e exterior
de natureza. “Todo mundo que sonha tem um lhando originalmente de uma condição geral espécies “ainda” não haviam sido atualizadas. ao processo do processo – ela é um devir.
pouquinho de xamã” dizem os Kagwahiv (Kra- instável na qual aspectos humanos e não-huma- O mito fala deste momento: A linha geral traçada pelo discurso mítico
cke 1987), em cuja língua, como em muitas nos se achavam inextricavelmente emaranhados. descreve, assim, a laminação instantânea dos
outras da Amazônia, as palavras que traduzi- Todos os seres que povoam a mitologia manifes- [– Gostaria de lhe fazer uma pergunta simples: o luxos pré-cosmológicos de indiscernibilida-
mos por “xamã” não designam algo que se “é”, tam esse entrelaçamento ontológico, essa ambi- que é um mito?] – Não é uma pergunta simples, de ao ingressarem no processo cosmológico:
mas algo que se “tem” – uma qualidade ou güidade trans-especíica que os faz, justamente, muito pelo contrário… Se você interrogar um doravante, as dimensões humana e felina dos
capacidade adjetiva e relacional mais que um semelhantes aos xamãs (e aos espíritos): índio americano, seriam muitas as chances de jaguares (e dos humanos) funcionarão alter-
atributo substantivo, qualidade que pode estar que a resposta fosse esta: uma história do tempo nadamente como fundo e forma potenciais
intensamente presente em muitas entidades Os animais que povoam a Terra de hoje não em que os homens e os animais ainda não eram uma para a outra. A transparência originária
não-humanas, que abunda, escusado dizer, nos chegam nem perto, em termos de poder, dos diferentes. Esta deinição me parece muito pro- ou complicação ininita onde tudo dá aces-
“espíritos”, e que pode mesmo constituir-se em animais originais, diferindo destes tanto quanto funda. (Lévi-Strauss & Eribon 1988: 193). so a tudo se bifurca ou se explica, a partir de
potencial genérico do ser (Campbell 1989)5. se diz que os humanos ordinários diferem dos então, na invisibilidade (as almas humanas e
O “xamã” humano, assim, não é um tipo xamãs […] O Povo Primordial vivia exatamen- A deinição é de fato profunda; aprofunde- os espíritos animais) e na opacidade (o corpo
sacerdotal – uma espécie ou função –, mas te como os xamãs vivem hoje, em um estado mo-nos, então, nela. Não é descabido deinir humano e as “roupas” somáticas animais)8 re-
alguém mais semelhante ao ilósofo socrático polimorfo… Depois de seu abandono da Terra, o discurso mítico como consistindo principal- lativas que marcam a constituição de todos os
– uma capacidade ou funcionamento. Pois se, cada um dos Seres Primordiais se tornou o “Se- mente em um registro do processo de atuali- seres mundanos – invisibilidade e opacidade
como sustentava Sócrates, todo indivíduo ca- nhor” ou arache da espécie que engendrou (Guss zação do presente estado de coisas a partir de relativas porque reversíveis, já que o fundo de
paz de raciocinar é ilósofo, amigo potencial do 1989: 52, sobre os Ye’kuana of Venezuela). uma condição pré-cosmológica virtual dotada virtualidade pré-cosmológica é indestrutível
conceito, então todo indivíduo capaz de sonhar de perfeita transparência – um “caosmos” onde ou inesgotável. Como dizia Kopenawa (2003:
é xamã, “amigo da imagem”6. Nas palavras de Veja-se também S. Hugh-Jones (1979: 218) as dimensões corporal e espiritual dos seres ain- 73, 81) ao falar dos cidadãos ininitesimais da
Kopenawa: “[Este é] o nosso estudo, o que nos sobre os Barasana do Vaupés: “Os xamãs são da não se ocultavam reciprocamente. Esse pré arqui-polis virtual, os xapiripë “nunca desapa-
ensina a sonhar. Deste modo, quem não bebe o povo He por excelência”; como sabemos, o ou proto-cosmos, muito longe de exibir uma recem […] seus espelhos brotam sempre de
conceito de He designa o estado originário do “indiferenciação” ou “identiicação” originárias novo […] eles são potentes e imortais”.
5. O mesmo se diga de muitas das noções amazônicas cosmos, para onde os humanos retornam pelo entre humanos e não-humanos, como se cos- Disse logo acima que as diferenças pré-cos-
de “alma”, como mostrou Surrallés, entre outros, para veículo do ritual. Sobre os Akuriyó do Suriname, tuma caracterizá-lo, é percorrido por uma di- mológicas são ininitas e internas, em contraste
o caso dos Candoshi (2003: 43-9). ferença ininita, ainda que (ou porque) interna com as diferenças initas externas entre as espé-
6. Para o contraste entre o xamã e o sacerdote na Ama- 7. Ver Gow (2001: 191-218) para uma análise brilhante a cada personagem ou agente, ao contrário das
zônia, ver Hugh-Jones (1996a) e Viveiros de Castro da conexão escrita-xamanismo entre os Piro. diferenças initas e externas que constituem as 8. Sobre os corpos animais como “roupas”, ver Viveiros
(2002b). de Castro (1998).

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cies. Estou me referindo aqui ao fato de que o que permutação de caracteres de mesma ordem e genérica de “não-humanos invisíveis” pareceria exercício empírico da visão. Eles são o objeto,
deine os agentes e pacientes dos sucessos míticos natureza. O contínuo heterogêneo do mundo uniicar adequadamente essa diversidade interna poder-se-ia dizer, de um exercício superior ou
é sua capacidade intrínseca de ser outra coisa; pré-cosmológico dá assim lugar a um discreto da “categoria”; mas o problema é que esses não- transcendental desta faculdade: imagens que
neste sentido, cada ser mítico difere ininitamen- homogêneo, nos termos do qual cada ser é só o humanos possuem determinações humanas fun- seriam então como a condição daquilo de que
te de si mesmo, visto que é “posto” inicialmente que é, e só o é por não ser o que não é. Mas os damentais, seja no plano de sua forma corporal são imagem; imagens ativas, índices que nos
pelo discurso mítico apenas para ser “substituí- espíritos são o testemunho de que nem todas as básica, seja no de suas capacidades intencionais e interpretam antes que os interpretemos; enig-
do”, isto é, transformado. É esta auto-diferença virtualidades foram atualizadas e que o turbu- agentivas. Além disso, se tais não-humanos são máticas imagens que devem nos ver para que
que deine um espírito e que faz com que todos lento luxo mítico continua a rugir surdamente normalmente invisíveis aos homens comuns, aos possamos vê-las – “quem não é olhado pelos
os seres míticos sejam espíritos. A suposta indi- por debaixo das descontinuidades aparentes que estão despertos e àqueles de “pensamento xapiripë não sonha, só dorme como um ma-
ferenciação entre os sujeitos míticos é função de entre os tipos e espécies11. curto e enfumaçado”, no contexto da alucinação chado no chão” –; imagens através das quais
sua irredutibilidade radical a essências ou iden- xamânica eles são, ao contrário, supremamente vemos outras imagens
tidades ixas, sejam elas genéricas, especíicas ou Humanos, animais, espíritos visíveis, e visíveis em sua forma humana verdadei-
individuais (pense-se nos corpos destotalizados e ra (são “o verdadeiro centro” dos seres da lores- “só os xamãs podem ver [os espíritos], após ter be-
“desorganizados” que vagueiam nos mitos). Tanto quanto podemos saber, todas as cultu- ta). Reciprocamente, há certas situações críticas bido o pó de yãkoana, pois eles se tornam outros
Em suma: o mito propõe um regime onto- ras amazônicas dispõem de conceitos que deter- em que uma pessoa encontra um ser que começa e passam a ver os espíritos igualmente com olhos
lógico comandado por uma diferença intensiva minam seres análogos aos xapiripë. Na verdade, por se dar a ver como humano – em um sonho, de espírito” (Kopenawa & Albert 2003: 77)13.
luente absoluta, que incide sobre cada ponto as palavras indígenas que traduzimos por “espí- em um encontro solitário na loresta – mas ter-
de um contínuo heterogêneo, onde a transfor- rito” correspondem em geral a uma “categoria” mina se revelando subitamente como não-hu- Tal não-iconicidade e não-visibilidade em-
mação é anterior à forma, a relação é superior fundamentalmente heteróclita e heterogênea, mano; nestes casos, os não-humanos são aqueles píricas, em suma, parecem apontar para uma
aos termos e o intervalo é interior ao ser9. Cada que admite uma quantidade de subdivisões e supremamente capazes de assumir uma forma dimensão importante dos espíritos: eles são
ser mítico, sendo pura virtualidade, “já era an- contrastes internos, às vezes mais radicais que os humana falsa perante os humanos verdadeiros. imagens não-representacionais, representantes
tes” o que “iria ser depois”, e por isso não é, que opõem os “espíritos” aos outros tipos de se- Em outras palavras, enquanto (normalmente) que não são representações.
pois não permanece sendo, nada de atualmente res. Para icarmos apenas com os Yanomami, os invisíveis, esses não-humanos “são” humanos;
determinado. Em contrapartida, as diferenças xapiripë ou “espíritos xamânicos” seriam somen- enquanto (anormalmente) visíveis, esses huma- “Todos os seres da loresta têm sua imagem utu-
extensivas introduzidas pela especiação (lato te uma espécie do gênero yai thëpë, que Albert nos “são” não-humanos12. pë … Em suas palavras, vocês diriam que eles
sensu) pós-mítica, ou seja, a célebre passagem traduz como “seres não-humanos invisíveis”, no- Por im, notemos a natureza algo paradoxal são os ‘representantes’ [em português] dos ani-
do “contínuo” ao “discreto” que constitui o ção que inclui também os espectros dos mortos, de uma imagem que é ao mesmo tempo não- mais” (Kopenawa & Albert 2003: 72-3).
grande (mi)tema da ilosoia estruturalista10, porepë, e os seres maléicos, në wãripë (Kopenawa icônica e não-visível. O que deine os espíritos,
cristalizam blocos molares de identidade in- & Albert 2003: 68, n.2). E se os xapiripë são epi- em certo sentido, é indexarem os afetos carac- Albert assinala (loc.cit., n. 29) que o termo
terna ininita – cada espécie é internamen- tomizados pelas imagens dos humanos-animais terísticos daquilo de que são a imagem sem, “representante” faz parte do vocabulário políti-
te homogênea, seus membros são idêntica e primordiais, Kopenawa deixa claro que os xamãs por isso, parecerem com aquilo de que são a co habitual dos líderes indígenas. Pois bem; em
indiferentemente representativos da espécie também mobilizam, entre outras, as imagens xa- imagem: são índices, não ícones. Ora, o que Art & Agency, ao introduzir a idéia dos símbolos
enquanto tal –, blocos estes separados por in- piripë do Trovão, do Raio, da Chuva, da Noite, deine uma “imagem” é sua visibilidade emi- anicônicos como “representantes”, Alfred Gell
tervalos externos, quantizáveis e mensuráveis, dos Ancestrais Canibais, da Panela, do Algodão, nente: uma imagem é algo-para-ser-visto, é o (1998: 98) usava o exemplo do diplomata: “[O]
uma vez que as diferenças entre as espécies do Fogo e dos Brancos, bem como uma multi- correlativo objetivo necessário de um olhar, embaixador chinês em Londres… não se pare-
são sistemas initos de correlação, proporção e dão de në wãripë (op.cit.: 79-81). Os xapiripë não uma exterioridade que se põe como alvo da mi- ce com a China; mas, em Londres, a China se
são sempre belos e magníicos, pois podem ser rada intencional; mas os xapiripë são imagens parece com ele”. O que se poderia parafrasear
terríveis e monstruosos; e eles compartilham da interiores, “moldes internos”, inacessíveis ao dizendo que os xapiripë não se parecem com os
9. Compare-se isso com as “descontinuidades internas”
de que fala M. Strathern em Partial connections (Stra- condição fantasmal dos mortos, pois são “formas animais, mas, no contexto mítico-xamânico, os
thern 1991: xxiii). espectrais”, isto é, imagens (op.cit.: 73). A noção 12. Os espíritos são não-humanos, note-se, e não ‘não-são animais se parecem com eles.
10. Para o desenvolvimento do tema no contexto da humanos’. Em outras palavras, a extra-humanidade
mitologia, ver Lévi-Strauss (1964: 58-63, 286-87, 11. “E o sistema duro não interrompe o outro: o luxo dos espíritos é um caso de “marca” ontológica (Vale- 13. Ver loc.cit. n. 39, onde Albert observa que um xamã
325-26; 1971: 417-21, 605), bem como o excelente continua sob a linha, perpetuamente mutante…” ri 2000: 28) em relação ao estatuto não-marcado do só pode ver um espírito através dos olhos de outro
estudo de Schrempp (1992). (Deleuze & Guattari 1980: 270). humano como modo referencial do ser. espírito, “com o qual se identiicou” em seu transe.

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Nem tipos, nem representações. O que estou to por oposição a um corpo imaterial que uma qual os vivos, os mortos, os brancos, os ani- dos humanos interessa-lhes muito menos que as
sugerindo, enim, é que os conceitos amazônicos corporalidade dinâmica e intensiva, um objeto mais e demais “seres da loresta”, os persona- diferenças entre as formas de existência social”
de “espírito” não designam tanto uma classe ou paradoxal que, como Alice, não cessa de crescer gens míticos antropomorfos e terionímicos (Taylor 1993: 658; cf. também Surralès 2003:
gênero de seres quanto uma certa relação de vizi- e diminuir ao mesmo tempo: um espírito é me- e/ou vice-versa, as imagens xamânicas xapiripë 111)18. Se assim é, então ao menos um signiica-
nhança obscura entre o humano e o não-humano, nos que um corpo – os xapiripë são partículas de e assim por diante seriam apenas diferentes vi- do básico da oposição clássica entre Natureza e
uma comunicação secreta que não passa pela re- poeira, miniaturas de humanos dotados de mi- brações ou modulações intensivas e contínuas. Cultura deve ser descartado quando considera-
dundância, mas pela disparidade entre eles: cro-falos e a cujas mãos faltam dedos (Kopena- Imagine-se então o “modo humano” como a mos a Amazônia e contextos similares: a nature-
wa & Albert 2003: 68)16 – e mais que um corpo freqüência fundamental deste campo anímico za não é um domínio deinido pela animalidade
[N]ão há mais um sujeito que se eleva até à ima- – aparência magníica, eventualmente terrii- que se poderia designar globalmente de meta- em contraste com a cultura como província da
gem, com ou sem sucesso. Dir-se-ia antes que cante, ornamentação corporal soberba, brilho, humano – já que a forma (interna e externa) humanidade. O real problema com o uso da
uma zona de indistinção, de indiscernibilidade, perfume, beleza, um caráter, em geral, excessivo humana é a referência aperceptiva deste domí- noção de natureza, aqui, reside menos em que
de ambigüidade se estabelece entre dois termos, em relação àquilo de que são a imagem (loc.cit. nio, toda entidade situada em posição de sujei- ela se choca com o fato amazônico universal de
como se eles houvessem atingido o ponto que 73 n. 32; cf. também Viveiros de Castro 2002a). to experimentando-se sub specie humanitatis17; que muitos animais também possuem cultura,
precede imediatamente sua diferenciação respec- Em suma, uma transcorporalidade constitutiva, imagine-se as espécies vivas e demais natural mas sim na airmação implícita de uma natureza
tiva: não uma similitude, mas um deslizamento, antes que uma negação da corporalidade: um es- kinds (inclusive nossa própria espécie) como enquanto domínio uniicado por uma não-hu-
um avizinhamento extremo, uma contigüidade pírito é algo que só é escasso de corpo na medida habitando o domínio de visibilidade deste manidade genérica (Gray 1996: 114).
absoluta; não uma iliação natural, mas uma em que possui corpos demais, capaz como é de campo; e imagine-se os “espíritos”, ao contrá- São, com efeito, raras, se existentes, as lín-
aliança contra-natureza… (Deleuze 1993: 100). assumir diferentes formas somáticas. O inter- rio, como um modo ou grau de vibração do guas amazônicas que empregam um conceito
valo entre dois corpos quaisquer, mais que um campo anímico que se acha tanto abaixo (mi- coextensivo ao nosso “animal”19, embora não
Dir-se-ia que xapiripë é o nome da síntese não-corpo ou corpo nenhum. nuscularidade granular, carência dimensional) seja nada incomum ouvirmos termos mais ou
disjuntiva que conecta-separa o atual e o virtual, Mas se os conceitos amazônicos que tradu- como acima (anomalidade, excesso) dos limi- menos correspondentes a um dos sentidos corri-
o discreto e o contínuo, o comestível e o canibal, zimos por “espírito” não designam, a rigor, en- tes de percepção do olho humano nu, o olho queiros de “animal” em inglês (e menos comum
a presa e o predador. Neste sentido, efetivamen- tidades taxonômicas, e sim nomes de relações, não investido pela droga alucinógena. em português): animais terrestres relativamente
te, os xapiripë “são outros”14. Um espírito, na experiências, movimentos e eventos, então não grandes, tipicamente mamíferos, por oposição a
Amazônia indígena, é menos assim uma coisa é impossível que noções como as de “animal” Uma nota sobre a noção de “animal” “peixe”, “ave”, “inseto” e outras formas de vida.
que uma imagem, menos uma espécie que uma e de “humano” tampouco constituam elemen- Suspeito que a maioria das palavras indígenas
experiência, menos um termo que uma relação, tos de uma tipologia estática de gêneros do Mas suponhamos, apenas para nos manter- que foram traduzidas por “animal” nas etno-
menos um objeto que um evento, menos uma i- ser ou macro-formas categoriais de uma clas- mos dentro da venerável tradição taxonomizan- graias signiicam, na verdade, algo desse tipo.
gura representativa transcendente que um signo siicação “etnobiológica”, sendo, ao contrário, te de interpretação do pensamento selvagem, Três exemplos, entre muitos. (1) A palavra jê
do fundo universal imanente – o fundo que vem coisa completamente diferente: como os es- que se possam tratar os conceitos de espírito, de setentrional mbru or mru, usualmente traduzi-
à tona no xamanismo, no sonho e na alucinação, píritos, elas seriam dispositivos de imaginação. animal ou de humano como se foram classes ou da em inglês por “animal”, e às vezes empregada
quando o humano e o não-humano, o visível e Sou levado a imaginar, assim (pois imaginar categorias. As evidências etnográicas disponí- como uma sinédoque para “Natureza” (Seeger
o invisível trocam de lugar15. Menos um espíri- não é, justamente, classiicar), um único do- veis sugerem que as cosmologias ameríndias não
mínio cósmico de transdutividade (Simondon utilizam um conceito genérico de “animal (não- 18. Ver também Monod sobre os Piaroa: “Os Piaroa não
14. “Vocês os chamam ‘espíritos’, mas eles são outros” 1995), um campo anímico basal dentro do humano)” que funcione como complemento ló- se pensam enquanto homens, como fazemos; eles se
(Kopenawa & Albert 2003: 68). gico de um conceito de “humano”. Os humanos pensam como uma espécie entre outras espécies. Há
15. “O enunciado de que alguma entidade não-huma- espíritos [ghosts] devem ser entendidos como relexos são uma espécie entre muitas outras, e por vezes toda sorte de espécies de homens, como há toda sorte
na é ‘humana’ é a marca de um discurso especíico, de um tipo de experiência, não como uma classe de de espécies animais e vegetais” (1987: 138).
as diferenças internas à “humanidade” são equi-
o xamanismo”, escreve Gow (2001: 67) a respeito ‘seres’” (1961: 153). 19. Estou ciente de que existem o que se chama de “cate-
dos Piro, enquanto Urban (1996: 222) observa que 16. O imaginário dos espíritos amazônicos se compraz valentes às diferenças interespecíicas: “Os Jívaro gorias encobertas”, i.e., formas conceituais não-lexi-
a arte xokleng de interpretação dos sonhos “consis- em construir espécies invisíveis corporalmente de- vêem a humanidade como uma coleção de so- calizadas. O que estou airmando, entretanto, é que
te em identiicar uma igura onírica como sendo um formadas, com membros invertidos, articulações ciedades naturais; a condição biológica comum na maioria dos casos amazônicos, senão em todos,
espírito disfarçado”. Recorde-se, por im, a incisiva inexistentes, apêndices minúsculos ou gigantescos, não existe noção submersa que signiique “animal
e decisiva observação de Lienhardt sobre os espíritos interfaces sensoriais atroiadas etc. Um bom exemplo 17. Ver Viveiros de Castro (1998), e mais adiante, sobre não-humano”. Naturalmente, esta airmação pode
dos Dinka, perfeitamente aplicável à Amazônia: “os são os abaisi dos Pirahã (Gonçalves 2001: 177-ss). o ‘perspectivismo’ ameríndio. ser desmentida a qualquer momento.

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1981), refere-se prototipicamente aos animais tapires, os queixadas, eram todos humanos. De- e de algumas aves. A palavra apapalutapa-mina, como a carne que comemos) (Kopenawa & Al-
terrestres, possuindo o sentido pragmático e re- pois, esses antepassados animais se transforma- que parece estar no mesmo nível de contraste bert 2003: 81, 84-5)21.
lacional de “presa”, “caça” ou “vítima”, é apenas ram em caça. Para eles, porém, somos sempre os que os termos para “peixe” e “ave”, é provavel-
nesta acepção pragmática que o termo pode ser mesmos, somos animais também; somos a caça mente um composto de apapalutapa, “espírito”, Perspectivas
aplicado aos peixes, aves etc. (Seeger com.pess.). que mora em casas, ao passo que eles são os ha- seguido de um modiicador que conota algo
(2) A palavra wari’ (família txapakura) que se bitantes da loresta. Mas nós, os que icamos, nós como “membro não-prototípico da classe X” Minha referência, mais acima, aos espíritos e
aplica aos “animais”, karawa, possui o signiica- os comemos, e eles nos acham aterrorizantes, pois ou “exemplar inferior do tipo X”, mas também animais como mergulhados em um campo aní-
do básico de “presa”, e como tal pode ser apli- temos fome de sua carne… (ibid: 75-6)20. “da mesma substância/natureza que X” (Vivei- mico universal de que eles seriam os modos res-
cada aos inimigos humanos: o par contrastivo ros de Castro 2002a). Nesse caso, os animais pectivamente invisíveis e visíveis de “vibração”
wari’/karawa, que na maioria dos contextos Se aquilo que se chamou “animal” signii- terrestres e todos os mamíferos seriam “como não é a uma analogia visualista inteiramente
pode ser traduzido como “humano/animal”, ca sobretudo “presa”, “caça”, ou simplesmente espíritos” ou “quase-espíritos”. Isto é bastante arbitrária. A narrativa de Kopenawa fala, com
possui o sentido logicamente englobante de “carne”, em alguns outros casos signiicará o similar a uma concepção barasana (Hugh-Jo- efeito, dos “olhos de fantasma” dos não-xamãs.
“predador/presa” e mesmo de “agente/pacien- exato oposto: espírito incomestível. Os Yawa- nes 1996b) segundo a qual os animais de caça A alusão aqui é aos espectros dos mortos (po-
te”. Os humanos (os Wari’, i.e. os wari’) podem lapíti (aruaques do Alto Xingu) chamam de são chamados de “peixes velhos”, onde o ter- repë) e à inversão perspectiva entre as diferen-
ser os karawa de predadores animais, humanos apapalutapa-mina uma variedade de animais, mo “velho” (ou “maduro”) funciona como uma tes modulações ontológicas do meta-humano
ou espirituais, seres que, em sua função ou “mo- a maioria deles criaturas terrestres, tipicamente espécie de superlativo. Se os Barasana pensam – um tema crucial nas ontologias ameríndias
mento” predatório são deinidos como wari’ mamíferos — e todos eles, com uma exceção os animais de caça como “super-peixes”, o que (Viveiros de Castro 1998):
(Vilaça 1992). (3) O terceiro caso é, justamen- (os cebídeos), considerados impróprios para implica que eles são um tipo particularmente
te, o da língua yanomami, onde yaro, termo que igurarem na dieta xinguana. A parte “animal” perigoso de peixe, os Yawalapíti pensam os ani- Quando o sol sobe no céu, os xapiripë dormem.
compõe o conceito de yaroripë, que designa os desta dieta se compõe principalmente de peixe, mais de caça como “subespíritos”. E, enquan- Quando ele começa a descer, à tarde, para eles
“seres humanos com nomes de animais” que to os povos rionegrinos são capazes de reduzir a aurora começa a surgir. Eles despertam todos,
foram transformados em animais e as imagens 20. Sobre os “Yanomami queixadas que viraram queixa- eufemisticamente (e xamanisticamente) a caça inumeráveis, na loresta. Nossa noite é para eles
animais xamânicas xapiripë, signiica essencial- das” etc., compare-se com o mito de origem dos ani- que eles comem à condição de “peixe”, os povos o dia. Enquanto dormimos, eles se divertem,
mente “caça” (gibier; cf. Albert in Kopenawa & mais dos Xokleng (Urban 1996: 181-2), que vivem xinguanos, que não comem carne de caça, pare- dançam. E quando falam de nós, chamam-nos
Albert 2003: 73 n. 32), isto é, corpo-carne dei- mais de 3.000 quilômetros ao sul dos Yanomami: cem considerar impossível desespiritualizar estes espectros. Aparecemos aos seus olhos como fan-
“Entrementes, alguns daqueles que haviam virado hu-
nido por sua destinação alimentar: animais, e assim se vêem empiricamente “redu- tasmas, pois somos semelhantes a estes. Eles [os
manos [lit. ‘que se tornaram aparentados a nós’] foram
embora [como animais]. O queixada virou um queixa- zidos” a comer peixe. Podemos assim estender xapiripë] nos falam assim: “vocês são estrangei-
Os Yanomami [i.e. humanos] queixadas viraram da, e se foi. Então o queixada que havia sido humano o escopo do continuum amazônico de comesti- ros e assombrações, porque vocês morrem” (Ko-
queixadas; os Yanomami veados viraram veados; [lit. ‘nós os viventes’] se foi etc.”. No verso nº 88 deste bilidade (no que concerne às fontes de proteína penawa & Albert 2003: 68).
os Yanomami cutias viraram cutias; os Yanomami mito, a palavra traduzida em inglês por “animal” é a animal) proposto por Hugh-Jones, fazendo-o ir
araras viraram araras. Eles assumiram a forma dos única palavra reconhecivelmente portuguesa utilizada dos peixes aos espíritos, e não apenas aos seres Os espíritos vêem os não-xamãs sob a forma
pelo narrador: o genérico “bicho”. À parte a fascinante
queixadas, dos veados, das cutias e das araras que humanos. Os rionegrinos principiam pelo pólo de espectros; do mesmo modo, a invisibilida-
tautologia do “queixada que virou queixada”, idênti-
habitam a loresta hoje em dia. São esses ante- ca ao mito yanomami, chamo a atenção para as duas “peixe”, deinindo a caça como uma sub-classe de usual dos espíritos aos olhos dos humanos
passados transformados que caçamos e comemos. perífrases que Urban traduz por “humano”: “tornar-se deste; os xinguanos principiam pelo pólo opos- (não-xamãs) é expressa dizendo-se que estes
Os animais que comemos são diferentes. Eles parente” e “nós os viventes”. A primeira parece sugerir to, fazendo dos animais “de caça” uma subclasse últimos possuem “olhos de espectro”. (Os
eram humanos e se transformaram em caça. Nós que, se virar humano é virar parente, então virar ani- de “espírito”. Isso sugere que os espíritos são os Brancos, portanto, são todos espectros, e sempre
os vemos como animais, mas são Yanomami. São mal é virar não-parente — virar aim potencial, talvez seres supremamente incomestíveis — o que faz espectros, uma vez que são supremamente in-
(Viveiros de Castro 2001)? A segunda sugere que virar
simplesmente habitantes da loresta. Somos seme- deles os supremos canibais do universo, e/ou, capazes de ver os espíritos.) Reciprocamente, é
animal é virar o contrário de nós-os-viventes — virar,
lhantes a eles, também somos caça. Nossa carne pois, algo como “eles-os-mortos”. Se “nós-os-viventes” como é o caso os xapiripë da narrativa yanoma- ao “morrer” sob o efeito da droga alucinógena
é idêntica, não fazemos senão trazer o nome de é a expressão para “humano”, como Urban traduz vá- mi, seres que vivem de anti-alimentos (a droga yãkoana que os xamãs são capazes não apenas
humanos. No começo do tempo, quando nossos rias vezes a fórmula, então: (1) todos os viventes são alucinógena yãkoana e o tabaco) e de “anti-ex-
antepassados ainda não tinham se transformados humanos em certa medida; (2) todos os viventes não- crementos” (alimentos doces, perfumados e 21. Na verdade, os xapiripë se alimentam de seus peidos
em outros, éramos todos humanos: as araras, os humanos são, na verdade, espécies de mortos (espec- impolutos que não apodrecem dentro do corpo perfumados, que inalam de suas mãos postas em con-
tros, como diriam os Yanomami). cha (loc.cit.).

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de ver os espíritos, mas de ver como os espíritos Tudo o que precede pode ser tomado como O brilho dos cristais mente uma em cada duas frases traz os xapiripë
(op.cit.: 68, n.2, 84, n.64): ver, justamente, os signiicando que, na Amazônia, “a dialéti- “brilhando como estrelas”, emitindo “uma lu-
humanos como espectros. Neste sentido, pelo ca primária é aquela entre o ver e o comer”, Minha caracterização da ontologia dos espí- minosidade deslumbrante”, “uma luz resplan-
menos, os xamãs dos Yanomami são mortos, como formulou elegantemente G. Mentore ritos amazônicos em registro visual não se deve decente”, “uma claridade cegante”… Quando
isto é, espectros, ou pelo menos são humanos (1993: 29) a propósito dos Waiwai. O cru e o apenas à presença, no discurso de Kopenawa, do descem à terra, eles acenam com “folhas novas
que deixaram de ser completamente huma- cozido estruturalista não é radicalmente outra tema do perspectivismo enquanto processo de de palmeira desiadas que brilham com um
nos22. Por sua vez, os xapiripë compartilham da coisa que o visível e o invisível fenomenoló- comutação discreta de pontos de vista entre as di- amarelo intenso”’. Seus dentes “são imaculados
condição espectral com os mortos, do “ponto gico: Merleau-Ponty encontra, mais uma vez, ferentes formas de agência que povoam o cosmos. e brilhantes como o vidro; quando [os dentes]
de vista” dos humanos comuns: eles são “fan- Lévi-Strauss. As culturas ameríndias, de fato, Outra coisa parece-me muito mais importante são demasiado pequenos, ou se faltam, [os xa-
tasmas”23. Quanto aos animais, já vimos como manifestam um forte viés visual todo próprio, neste discurso: o funcionamento de uma pode- piripë] os substituem por fragmentos de espe-
eles nos vêem — como seus semelhantes, mas que pouco tem a ver com o tão vilipendiado rosa imagística intensiva da cintilação e do relexo lhos”. O solo sobre o qual eles dançam “parece
estranhos: animais ao mesmo tempo domésti- visualismo ou oculocentrismo ocidental (ver luminoso, por um lado, e da divisibilidade-multi- vidro, e brilha com uma luz rutilante”...
cos (“habitantes de casas”) e canibais24. Smith 1998, Ingold 2000). A visão é freqüen- plicação indeinida dos espíritos, por outro. A qualidade primordial da percepção dos
Em suma, os espectros dos mortos estão, temente tomada como modelo da percepção e Primeiro, a luz. A narrativa de Kopenawa espíritos é, assim, sua intensidade luminosa.
na ordem da ontogênese, como os animais do conhecimento (Mentore 1993; Alexiades está literalmente constelada de referências à Essa é uma experiência freqüentemente des-
na ordem da ilogênese: ambos são humanos 1999: 239; Alexiades 2000; Surralès 2003); o luminosidade, ao brilho, às estrelas e aos es- crita na Amazônia. Os Maï, espíritos celestes
passados, e portanto ambos são imagens atuais xamanismo está carregado de conceitos visuais pelhos. Na versão que reproduzi no começo canibais dos Araweté, são caracterizados por
de humanos. Não é de surpreender assim que, (Chaumeil 1983; Gallois 1984–85; Roe 1990; deste artigo, vemos os espíritos como “poeiras meio de um abundante vocabulário da cinti-
enquanto imagens deinidas por sua disjunção Townsley 1993; Kelly 2003: 236); em grande luminosas”, vemos seus caminhos, “tão inos lação ígnea e do relampejar ofuscante, e sua
relativamente a um corpo humano, os mortos parte da Amazônia – os Yanomami são um ex- como teias de aranha… vemo-los brilhar, inu- decoração corporal se destaca pela cor e lumi-
sejam atraídos pelos corpos animais; é por isso celente exemplo – drogas alucinógenas são um meráveis, de uma claridade lunar”; vemos os nosidade intensas (Viveiros de Castro 1992).
que morrer é transformar-se em animal, como instrumento básico da tecnologia xamânica, “imensos espelhos” em que eles viajam, veícu- Os espíritos dos Hoti, os “Senhores do Fora,
acontece tão freqüentemente na Amazônia. sendo usadas como próteses visuais. De ma- los resplendentes que estão “sempre a brotar ou da Floresta”, “são detectados no mundo
Com efeito, se as almas dos animais são conce- neira mais geral, a distinção entre o visível e o de novo”. Na versão expandida da narrativa da vigília por meio do trovão e do relâmpago,
bidas como tendo uma forma corporal huma- invisível parece desempenhar um papel maior (Kopenawa & Albert 2003), a féerie luminosa que são seus gritos e o rebrilho de suas lan-
na, é bastante lógico que as almas dos humanos na região: “a distinção fundamental na onto- prolifera: ao longo de doze páginas, pratica- ças; às vezes eles são vistos, ou ouvidos, como
sejam concebidas como tendo um corpo ani- logia cashinaua [é aquela] entre visibilidade e jaguares. São percebidos nos sonhos como
mal póstumo, ou como entrando em um cor- invisibilidade” (Lagrou 1998: 52; cf. também taquem-se os seguintes: (1) O comentário de Peter seres antropomorfos luminosos, pintados de
po animal, de modo a poder ser eventualmente Kensinger 1995: 207; Gray 1996: 115, 177). Gow: “Quando perguntava aos Piro por que eles gos- urucum vermelho-brilhante” (Storrie 2003:
morta e comida pelos viventes25. Podemos também recordar a forte ênfase na tavam de tomar ayahuasca, eles davam duas respostas 417). Como os xapiripë yanomami, portanto,
decoração e na exibição de superfícies corpo- características. Primeiro, diziam que era bom vomi- os Maï araweté e os Senhores hoti “nunca são
tar, e que a ayahuasca limpava o corpo dos resíduos da
rais e artefactuais, ações estas concebidas como cinzentos como os humanos; [eles têm o cor-
22. Os Ikpeng, aliás, concebem-nos como “ex-pessoas”, carne de caça que eles haviam comido. Tais resíduos
tenpano-pin (Rodgers 2002: 112). processos epistêmica e ontologicamente ei- se acumulam com o tempo, causando um mal-estar e po] untado de urucum rubro e percorrido de
23. “A expressão në porepë, “em forma espectral” … é cazes (ver Gow 1999, 2001 para análises em um cansaço generalizados, que terminavam causando desenhos ondulados, de riscos e manchas de
freqüentemente proposta como sinônimo de utupë, profundidade da visão em uma cultura ama- um desejo do morrer. [Compare-se aqui: ‘A carne da um negro reluzente...”.
a imagem-essência xamânica (Albert in Kopenawa & zônica)26. caça que comemos se decompõe dentro de nós. Em Sem dúvida, boa parte dessa fenomenologia
Albert 2003: 73 n.33). troca, o corpo dos xapiripë não contém nenhuma car- da luz intensa pode estar associada aos efeitos
24. Albert (in Kopenawa & Albert 2003: 68 n.2) sinteti- ne corrompida…’ — Kopenawa & Albert 2003: 85]
bioquímicos das drogas. Assim os Piro, por
za: “Os espíritos vêem os humanos sob a forma de as- Vilaça 1992: 247–55 (Wari’); Turner 1995: 152 Em seguida, as pessoas me diziam que era bom tomar
sombrações [revenants]; os animais os percebem como (Kayapó); Pollock 1985: 95 (Kulina); Gray 1996: ayahuasca por que ela fazia você ver; como disse um exemplo, descrevem a experiência de ingestão
semelhantes que se tornaram ‘moradores de casas’… 157–78, 178 (Arakmbut); Gow 2001: ch. 5 (Piro); homem, ‘você pode ver tudo, tudo’” (2001: 139). de toé (Brugmansia spp.): “De repente tudo se
os seres maléicos os consideram como caça… e as as- Alexiades 1999: 134, 178 (Ese Eja); Weiss 1972: 169 (2) A observação de Miguel Alexiades (1999: 194) acende, como se o sol tivesse nascido...” (Gow
sombrações os vêem como parentes abandonados”. (Campa); Clastres 1968 (Aché). segundo a qual os edosikiana, espíritos dos Ese Eja, 2001: 136). Seu etnógrafo observa que “a me-
25. Para as relações entre mortos e animais, ver alguns 26. Entre muitos exemplos das implicações entre o exer- são invisíveis a todos os humanos exceto o xamã, pois taforização da experiência alucinatória do toé
exemplos em: Schwartzmann 1988: 268 (Panara); cício da visão e as determinações alimentares, des- quem vê um edosikiana é devorado por ele.

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como ‘luz do dia’ [daylight] é corriqueira... – mas também “fora de casa”, “ao ar livre”, “no da multiplicidade lunar, estelar e molecular in- Os espelhos e os cristais desempenham
outros informantes enfatizaram a ‘vermelhi- exterior” (cf. os Senhores do Fora dos Hoti) dígena27. um papel importante em todo o vocabulário
dão’ da experiência, ‘justo como o mundo ao –, é um estado que os xamãs procuram atin- Os “espelhos” em que abunda a narrativa de amazônico (sobretudo norte-amazônico) do
alvorecer’, ou ‘durante o pôr do sol’” (loc.cit.). gir mediante a ingestão massiva de tabaco (que Kopenawa são precisamente o instrumento de xamanismo: pense-se nos cristais xamânicos
Mas outras drogas menos violentamente alu- pode produzir um período de choque catalép- passagem entre as experiências da intensidade dos Tukano e de vários povos Caribe da Guia-
cinógenas que o toé dos Piro e o yãkoana dos tico). Estado associado à qualidade de “leveza” luminosa e da inumerabilidade dos espíritos, isto na, nas “caixas de cristal dos deuses” dos Pia-
Yanomami, como o tabaco, e outras técnicas de (wewe), a translucidez é produzida por uma se- é, à sua ininitude quantitativa. Como se foram roa, nos espelhos warua que recobrem o xamã
manipulação sensorial, como o semicegamen- paração entre a alma e o corpo (por uma exte- imagens da imagem, os espelhos se multiplicam Wayãpi; pense-se, mais geralmente, na simetria
to deliberado por meio de máscaras (Rodgers riorização do ser, então), que retira deste último na narrativa, ao mesmo tempo signo da presença dual especular interna característica da arte e da
2002), a aplicação de gotas oculares, a imer- seu “peso”(ipohi) ou sua opacidade (“a opacida- e meio de deslocamento dos xapiripë: estética alucinatória da região (ver Roe 1982,
são, a privação de sono, etc, podem estar en- de ordinária do corpo humano” – Gow 2001: 1990; Overing 1985; Gallois 1996)28.
volvidas nesses processos de desterritorialização 135), permitindo assim ao xamã ver através do Os xapiripë descem também até nós sobre es- Mas os espelhos dos espíritos – que espécie
do olhar. E de qualquer forma, a experiência corpo de seus pacientes, e, mais geralmente, pelhos, que eles mantêm acima do solo, sem de imagem reletiriam eles? É interessante notar
perceptiva da intensidade luminosa é buscada enxergar o lado invisível do mundo (Viveiros jamais tocar na terra. Estes espelhos provêm de que virtualmente todos os exemplos dados nes-
pelo xamã, não meramente sofrida como se de Castro 1992: 131, 219-20; cf. também a sua morada no peito do céu. Assim, na habitação ta seção – com a possível exceção das observa-
um efeito colateral de drogas tomadas em vista “luminescência xamanística” do payé tukano dos espíritos de um xamã, esses espelhos estão ções de P. Roe sobre a simetria “especular” da
de outras sensações, o que sugere fortemente em Reichel-Dolmatof 1975: 77, 109). Foi este postos, encostados, pendurados, empilhados, ar- arte amazônica, as quais exigem uma discussão
que essa experiência possui um valor conceitual conceito de ikuyaho que me levou à imagem rumados lado a lado. Quando a casa é vasta, os impossível de se fazer aqui – não enfatizam a
em si mesma. Naturalmente, não é preciso ser da transparência pré-cosmológica originária, espelhos são grandes, e, quando o número de es- propriedade icônica que têm os espelhos de
xamã para “perceber” a relação entre conheci- desenvolvida algumas páginas mais acima. A píritos aumenta, seus espelhos se empilham aos reproduzir imagens. O que os exemplos subli-
mento e iluminação, tema provavelmente uni- outra fonte desta imagem foi uma maravilhosa poucos uns por cima dos outros. Mas os xapiripë nham é, antes, a propriedade que têm os es-
versal. Minha impressão, entretanto, é que não passagem proto-leibniziana de Plotino sobre não se misturam entre si. Os espelhos dos mes- pelhos de ofuscar, refulgir e resplandecer. Os
se trata, no caso amazônico, de uma concepção o mundo inteligível, que me pareceu possuir mos espíritos se sucedem uns após os outros, nos espelhos sobrenaturais amazônicos não são
da luz como distribuindo relações de visibili- mais de um ponto de contato com a narrativa mesmos esteios da casa. Sucedem-se assim os es- dispositivos representacionais extensivos, espe-
dade-cognoscibilidade em um espaço extensivo de Kopenawa – um ponto extremo que a toca, pelhos dos espíritos guerreiros, dos espíritos aves lhos reletores ou “relexionantes”, mas cristais
(estou pensando aqui em algumas passagens de digamos assim: de rapina e dos espíritos cigarras; os espelhos dos intensivos, instrumentos multiplicadores de
Les mots et les choses), mas da luz como intensi- espíritos trovões, e dos espíritos relâmpagos, dos uma experiência luminosa pura, fragmentos re-
dade pura, coração intensivo da realidade que pois tudo é transparente, nada é obscuro, nada espíritos tempestades. Há tantos espelhos quan- lampejantes. Na verdade, a palavra yanomami
estabelece a distância inextensa entre os seres impenetrável; todo ser é lúcido a todo outro ser, to espíritos; eles são verdadeiramente inumerá- que Bruce Albert traduziu por “espelho” não se
– sua maior ou menor capacidade mútua de em profundidade e largura; e a luz atravessa a veis, empilhados a se perder de vista. No sopé da aplica aos nossos espelhos iconofóricos. Ao co-
devir. A conexão disto com a idéia da invisibi- luz. E cada ser contém todos os seres dentro de Montanha do Vento, onde está minha casa, há mentar uma versão anterior do presente artigo,
lidade dos espíritos me parece crucial: aquilo si, e ao mesmo tempo vê todos os seres em cada grandes espelhos [dos xapiripë] na loresta. Nós,
que é normalmente invisível é também o que outro ser, de tal forma que em toda parte há nós não fazemos mais que viver no meio de seus 28. Ver o mito shipibo analisado por Roe (1988; 120; 1990:
é anormalmente luminoso. A luminosidade in- tudo, e todos são tudo e cada um são todos, e espelhos… […] [Os xamãs dos Yanomami] sa- 139-40 n. 12): os espíritos chaiconi (Incas-cunhados)
tensa dos espíritos indica o caráter super-visível ininita é a glória. Cada ser é grande; o pequeno bem que nossa loresta pertence aos xapiripë, e “‘viraram o espelho do outro lado’ e assim obscurece-
destes seres, que são “invisíveis” ao olho desar- é imenso; o sol, lá, é todas as estrelas; e cada que ela é feita de seus espelhos [ibid: 78-9]. ram a habilidade humana primordial de ver os animais
mado pela mesma razão que a luz o é – por ser estrela é todas as estrelas, e o sol. E embora cer- de caça e os peixes que procuravam isgar nas águas
cristalinas do lago da origem dos tempos. Agora que o
a condição do visível. tos modos do ser sejam dominantes em cada ser,
27. O leitor terá compreendido que o advérbio “apenas” espelho está virado com sua face cega para os humanos,
Entre os Araweté, como provavelmente todos estão espelhados em cada um. (Enéadas, é aqui uma litotes. Para avaliarmos o papel decisivo eles não podem ver os animais que caçam… exceto se
para outros povos da Amazônia, a luminosida- V, 8, 4). da Lua e das estrelas na cosmologia yanomami e, mais estes se acham perto da superfície… Como o xamã, por
de e o brilho estão associados a uma outra qua- geralmente, na mitologia ameríndia, é preciso voltar meio de suas visões alucinatórias, pode voltar ao início
lidade visual, a transparência ou diafaneidade. Seria preciso apenas trocar a metafísica mo- a certas páginas luminosas (se me permitem) de Lévi- dos tempos, ele será capaz de ‘desvirar o espelho’ e ver
Ikuyaho, “translucidez” ou “transparência” lar e solar do Um neoplatônico pela metafísica Strauss em L’Origine des manières de table, tema que claramente. Dessa forma, os xamãs estão associados aos
conto desenvolver em outra ocasião. espelhos e os usam como ornamento…”.

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onde eu explorava a suposta propriedade dos ritos são assim tão numerosos porque eles são a 73 n.30). Eis porque por exemplo, os antepas- molecular última das formas animais molares
espelhos yanomami de reletir imagens, Albert imagem dos animais da loresta…” Na versão sados animais mitológicos e suas imagens xa- que vemos na loresta. Sua pequenez é função
generosamente me comunicou a seguinte ex- ampliada, naturalmente, o número de vezes em mânicas atuais são chamadas yaroripë, ou seja, de sua ininitude e não o contrário. Da mesma
plicação adicional, e crucial, que Davi Kopena- que eles são ditos “inumeráveis” é proporcio- yaro (caça) + ri- (excessivo, sobrenatural) + pë forma, o caráter geralmente gigantesco dos se-
wa lhe deu em resposta às suas questões sobre nalmente maior. O narrador se compraz em (pluralizador). Intensidade, exemplaridade, al- res-kumã dos Yawalapíti não os faz menos invi-
os espelhos xamânico-espirituais. A passagem enumerar esta proliferação inumerável: teridade em relação ao meramente existente: síveis aos olhos desarmados – e esse caráter os
abaixo reescreve o que se lê a certa altura de determina como qualitativamente múltiplos,
“Les ancêtres animaux”: Suas imagens são magníicas. Não pensem que [O] macaco guariba iro que lechamos nas árvo- visto que um ser-kumã é ao mesmo tempo o
só haja alguns deles. Os xapiripë são verdadei- res é outro que sua imagem, aquela que o xamã arquétipo e um monstro, um modelo e seu ex-
Os xapiripë não se deslocam jamais sobre a terra. ramente muito numerosos. Eles não terminam faz descer como Irori, o espírito-guariba. Essas cesso, a forma pura e uma reverberação híbrida
Eles a acham demasiado suja e cheia de excremen- nunca de vir até nós, sem número e sem im. imagens utupë da caça são verdadeiramente mui- (entre humano e animal, por exemplo), a be-
tos. O solo sobre o qual dançam parece com vi- Eles são as imagens dos animais que habitam a to belas. […] Comparadas a elas, os animais da leza e a ferocidade em uma só igura. Assim, a
dro, e brilha de uma luz ofuscante. Ele é formado loresta, com todos os seus ilhotes, que descem loresta são feios. Eles existem, apenas. Eles não minuscularidade e numerosidade dos xapiripë
daquilo que nossos antigos chamam de mire kopë uns atrás dos outros. Não são eles inumeráveis, fazem senão imitar suas próprias imagens. Eles marca sua natureza de bando, enxame, mati-
ou mire xipë. Estes são os objetos dos xapiripë, todos os japus, as araras vermelhas e amarelas, são apenas o alimento dos humanos. (ibid: 73). lha e multidão, enquanto o gigantismo dos se-
magníicos e rutilantes, transparentes mas muito os tucanos, os mutuns, os jacamins, os jacus, os res-kumã aponta para a igura do “anomal”, o
sólidos. Vocês diriam “espelhos”. Mas não são es- periquitos, os falcões, os morcegos, os urubus… O intensiicador-espiritualizador –ri parece representante excepcional da espécie, o mega-
pelhos de se olhar, são espelhos que brilham29. E aí os jabutis, os tatus, os tapires, os veados, as assim funcionar exatamente como o modiica- indivíduo que indica a fronteira de uma multi-
jaguatiricas, os jaguares, as cutias, os queixadas dor –kumã nas línguas aruaque do Alto Xingu, plicidade animal (Deleuze & Guattari 1980)31.
Luz, não imagens. Os xapiripë são de fato e os macacos-aranha, os guaribas, os macacos- que os Yawalapíti me traduziram por “gigan- Em suma, a pequenez dos xapiripë e a nature-
imagens (utupë), mas seus espelhos não os prego, os cairaras, as preguiças… E ainda todos tesco, feroz, outro, sobrenatural, estranho”, za frequentemente agigantada dos espíritos de
constituem como tal – estão do lado da pura os peixes dos rios, os poraquês, as piranhas, os e que interpretei (Viveiros de Castro 2002a) outras culturas (os Mestres dos Animais, por
luz. Cristais. bagres kurito, as arraias e todos os peixinhos? como um dos operadores conceituais básicos exemplo) são como a frente e o verso de uma
(Kopenawa & Albert 2003: 72). de sua cultura, o operador de alteração-espiri- mesma idéia, os dois esquematismos extensivos
Tamanho e intensidade tualização ou “exponenciação ontológica”. In- complementares da multiplicidade intensiva e
Minúsculos, esses espíritos nem por isso teressantemente, a imagística dimensional dos da intensidade “excessiva” dos espíritos32.
Além da luminosidade ofuscante, os xapiri- deixam de manifestar uma intensa vitalidade seres-kumã faz deles versões maiores, por vezes
pë, enquanto perceptos, mostram duas outras (cf. os animais descendo com todos os seus i- gigantescas e monstruosas, dos seres munda- 31. A determinação conceitual dos espíritos como multipli-
características, a pequenez e a inumerabilidade. lhotes) e uma superabundância de ser: “quan- nos: um macaco-kumã yawalapíti não é mi- cidades possui implicações sociológicas fascinantes, que
No discurso acima transcrito, já vimos que “eles do eu era mais moço, eu me perguntava se os núsculo como o Irori yanomami. Mas estamos não posso elaborar aqui. Contento-me em citar o que
parecem seres humanos mas são tão minúsculos xapiripë podiam morrer como os humanos. diante, penso, do mesmo macaco, ou antes, do diz P. Gow (2001: 148) sobre a natureza essencialmente
coletiva das interações com os espíritos: “Quando um
quanto partículas de poeira cintilantes […] mi- Mas hoje sei que, mesmo sendo minúsculos, mesmo outro do macaco, nos Yawalapíti como
xamã canta a canção de um kayigawlu [a visão xamâ-
lhares deles chegam para dançar juntos… seus eles são poderosos e imortais” (ibid: 81)30. Os nos Yanomami. A minuscularidade dos espíri- nica de um “ser poderoso” i.e. um espírito] ele se torna
caminhos parecem teias de aranha… Os espí- espíritos são, literalmente, intensos: o suixo –ri tos xapiripë não é obstáculo a sua natureza “ex- este kayigawlu. Mas… a condicão dos seres poderosos
que geralmente acompanha o nome dos xapi- cessiva” ou “extremamente intensa”, como diz é essencialmente múltipla… [A] imitação das canções
29. Nota de Bruce Albert (com. pess.): “De fato, os es- ripë “denota a extrema intensidade ou a quali- Albert: pelo contrário, parece-me que ela é um dos seres poderosos é menos uma forma de possessão
pelhos industriais são designados pelos Yanomami dade de não-humano/invisível” (Albert in ibid: signo decisivo da multiplicidade designada pelo que o ingresso em uma outra socialidade. […] O Outro
orientais pelo termo mirena (mire para os Yanomami incorpora o xamã como parte de sua multiplicidade...”.
conceito de qualquer espírito “em particular”:
ocidentais), que se distingue, ainda que formado a 32. A oscilação complexa entre as idéias de minuscularida-
partir da mesma raiz (mire- = ?), do termo que de- 30. Essas idéias yanomami sobre a inumerabilidade e “[Q]uando se diz o nome de um xapiripë, não de e de monstruosidade como esquematismos alterna-
nota os ‘espelhos’ dos espíritos, mirekopë ou mirexipë. imortalidade dos espíritos animais talvez possam é um só espírito que se evoca, é uma multidão tivos de uma multiplicidade intensiva foi muito bem
Aliás, mirexipë designa igualmente os bancos de areia ser relacionadas o tema da regeneração ininita das de espíritos semelhantes” (ibid: 73). Os espí- caracterizada por Rodgers a propósito dos Ikpeng: “O
misturada de mica que brilham nas águas claras dos espécies, objeto de uma importante discussão de R. ritos são quantitativamente múltiplos, inini- potencial de expandir os pontos mínimos e obscuros
riachos das terras altas da região yanomami. E, por Brightman em suas etnograia dos Cree do Canadá tamente numerosos; eles formam a estrutura do mundo é um traço distintivo do pensamento cos-
im, xi signiica ‘luz, radiância, emanação’”. (1993: ch. 9). mológico ikpeng — seres pequenos (tikap) como os

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À guisa de conclusão, gostaria apenas de ob- er discussion on the cosmology and shamanism in CLASTRES, P. 1968. “Ethnographie des indiens Guayaki KOPENAWA, D.Y. 2004. “Xapiripë”. In B. Albert & D.
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Yaminahua shamanic knowledge”. L’Homme, 126–128 tasse, parafraseasse e desavergonhadamente um pouco perdido? do social”. Isso é tudo. A ANT não pode lhe
XXXIII: 449–468. canibalizasse suas magníicas traduções e co- A: Bem, sim. Tenho de lhe dizer que tenho dizer positivamente o que é a ligação.
TURNER, T. 1995. “Social body and embodied subject: mentários das narrativas de Davi Kopenawa. O diiculdades para aplicar a Teoria do Ator-Rede A: Então, por que ela é chamada de “teo-
bodiliness, subjectivity, and sociality among the Kaya- trabalho etnográico de Albert sobre e com os (Actor-Network heory – ANT) em meu estudo ria”, se ela não diz nada sobre as coisas que es-
po”. Cultural Anthropology, 10: 143–170.
Yanomami, por sua riqueza, precisão e profun- de caso sobre as organizações. tudamos?
URBAN, G. 1996. Metaphysical community: the interplay of the
senses and the intellect. Austin: University of Texas Press. didade excepcionais, representa um momento P: Não me surpreende. Ela não é aplicável P: Ela é uma teoria, e penso que uma teoria
VALERI , Valerio. 2000. he forest of taboos: morality, hun- particularmente brilhante da antropologia ama- a coisa alguma. forte, mas sobre como estudar as coisas, ou an-
ting, and identity among the Huaulu of the Moluccas. Ma- zônica. Agradeço por im, e sobretudo, a Davi A: Mas nós aprendemos... quero dizer... ela tes sobre como não estudá-las. Ou ainda, sobre
dison: University of Wisconsin Press. Kopenawa, pensador que qualquer civilização parece ser bastante importante por aqui. Você como permitir que os atores tenham algum es-
van VELTHEM, L.H. 2003. O belo é a fera: a estética da do planeta se orgulharia de poder contar entre está dizendo que ela é realmente inútil? paço para se expressarem.
produção e da predação entre os Wayana. Lisboa: Assírio
os seus. P: Ela pode ser útil, mas apenas se não for A: Você quer dizer que as outras teorias so-
& Alvim.
“aplicável” a qualquer coisa. ciais não permitem isso?
A: Desculpe-me, mas você não está tentan- P: De uma certa maneira, sim. E isto, em
autor Eduardo Viveiros de Castro do me pregar uma espécie de peça Zen, está? razão mesmo do que constitui sua força: elas
Professor de Antropologia / MN-UFRJ Devo alertá-lo, sou apenas um doutorando em são muito boas em dizer coisas positivas acer-
estudo das organizações, então não espere... ca do que constitui o mundo social. Na maior
Recebido em 04/07/2006 Além disso, não estou muito a par da produção parte dos casos é perfeito; os ingredientes são
Aceito para publicação em 08/10/2006 francesa; apenas li alguns dos Mil Platôs, mas conhecidos, seu número pode se manter sui-
não os entendi muito bem... cientemente limitado. Mas isto não funciona
P: Desculpe-me. Eu não estava tentando fa- quando as coisas estão se transformando rapi-
zer nenhuma gracinha. Apenas dizia que a ANT damente. E, eu acrescentaria, não, por exemplo,

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 319-338, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006
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nos estudos organizacionais, ou nos estudos da A: Isso é confuso! Mas os executivos de mi- experiência bem comum: tente desenhar com A: Mas é preciso sempre colocar as coisas
informação, ou marketing, ou nos estudos de nha empresa não formam eles uma bela, reve- um lápis de graite ou com um pedaço de car- em seu contexto, não?
ciência e tecnologia, nos quais as fronteiras são ladora e signiicativa rede? vão, você vai sentir a diferença; cozinhar uma P: Eu nunca entendi o que signiicaria esse
terrivelmente luidas. Novos campos: é aí que P: Talvez, quero dizer, certamente sim – e torta num forno a gás não é o mesmo que num contexto. A moldura torna um quadro mais
você vai precisar da ANT. daí? forno elétrico. bonito, ela pode ajudar a melhor dirigir o
A: Mas meus agentes, atores, quero dizer, as A: Daí que eu posso estudá-la com a Teoria A: Mas não é isso que o meu orientador olhar, aumentar seu valor, mas ela não acres-
pessoas que estudo na companhia, elas formam do Ator-Rede! quer. Ele quer a moldura2 para um quadro na centa nada à pintura. A moldura, ou o contex-
muitas redes. Elas estão conectadas a muitas P: De novo talvez sim, talvez não. Isso de- qual eu possa colocar meus dados. to, é precisamente o conjunto de fatores que
coisas, elas estão por toda parte... pende inteiramente do que você permite que P: Se você quer armazenar mais dados, não alteram em nada os dados, aquilo que é de
P: Esse é, exatamente, o problema. Veja, seus atores, ou melhor, seus actantes façam. compre um disco-rígido maior... conhecimento comum sobre eles. Se eu fosse
você não precisa do Ator-Rede para dizer algo Estar conectado, estar interconectado, ser he- A: Ele sempre diz: “Você precisa de uma você, eu me absteria de toda e qualquer moldu-
que qualquer teoria social disponível diria. É terogêneo, não é o suiciente. Tudo depende moldura”. ra. Descreva, simplesmente, o estado dos fatos
uma perda de tempo pegar este argumento tão do tipo de ação que está luindo de uma coisa P: Ah? Então seu orientador negocia com que estão à mão.
bizarro para mostrar que seus informantes es- para outra. Em inglês é mais claro: no termo pinturas? É verdade que molduras são interes- A: “Descreva, simplesmente”! Desculpe-me,
tão em uma rede. network, há a net, a rede, e o work, o traba- santes: douradas, brancas, esculpidas, barrocas, mas isso não é terrivelmente ingênuo? Não seria
A: Mas eles estão! Eles formam uma rede! lho. Na verdade, deveríamos dizer worknet ao em alumínio, etc. Mas você já conheceu algum isto exatamente o mesmo tipo de empirismo,
Veja, eu tracei um esquema com as suas cone- invés de network. É certamente o trabalho, o pintor que iniciou sua obra-prima escolhendo ou realismo, contra os quais fomos alertados?
xões: chips de computador, padrões, educação, movimento, o luxo e as mudanças que devem primeiramente sua moldura? Seria um tanto Eu achava que seu argumento fosse – como
dinheiro, recompensas, países, culturas, direto- ser enfatizados. Mas agora estamos atados à ne- estranho, não? posso dizer? – mais soisticado do que isso.
rias corporativas, tudo. Não descrevi uma rede twork e todos pensam que nós nos referimos à A: Você está fazendo jogo de palavras. Por P: Porque você pensa que descrever é fácil?
em sua concepção? World Wide Web 1 ou algo do tipo. “moldura”, quero dizer uma teoria, um argu- Você deve estar confundindo descrição com en-
P: Não necessariamente. Eu concordo que A: Você quer dizer que mesmo eu tendo de- mento, uma perspectiva geral, um conceito cadeamento de clichês. Para cada centena de li-
isso tudo é terrivelmente confuso, e muito por monstrado que meus atores estão relacionados – algo que dê sentido aos dados. Sempre preci- vros de comentários, argumentações, de glosas,
nossa culpa – o termo que inventamos é bem nos moldes de uma rede, ainda assim não reali- samos de uma. há somente uma obra de descrição. Descrever,
horrível... Mas você não deve confundir a rede zei um estudo conforme a ANT? P: Não, não precisamos! Diga-me: se algum estar atento aos estados concretos das coisas,
que é delineada pela descrição e a rede que é P: É exatamente isso que quero dizer. A X é um mero “caso de” Y, o que é mais impor- encontrar a narrativa adequada e única para
utilizada para fazer a descrição. ANT é mais como o nome de um lápis ou um tante de ser estudado: X, que é o caso especíi- uma situação dada – Eu pessoalmente sempre
A: Como assim? pincel do que o nome de um objeto a ser dese- co, ou Y, que é a regra? achei isso incrivelmente exigente. Já ouviu falar
P: Certamente, você concordaria que de- nhado ou pintado. A: Provavelmente Y... mas também X, ape- de Harold Garinkel?
senhar com um lápis não é o mesmo que de- A: Mas quando eu disse que a ANT era nas para saber se realmente é uma aplicação de A: Devo dizer que estou perdido. Nos expli-
senhar a forma de um lápis. É o mesmo com uma ferramenta e perguntei se ela poderia ser Y... Bem, acho que os dois. caram que há dois tipos de sociologia, a inter-
esta palavra ambígua: rede. Com o Ator-Rede aplicada, você objetou! P: Eu apostaria em Y, uma vez que X não te pretativa e a objetivista. Certamente você não
você pode descrever algo que não se aparenta P: Porque não é uma ferramenta – ou me- ensinaria nada de novo. Se alguma coisa não é quer dizer que você é defensor do tipo objeti-
em nada com uma rede – um estado mental lhor, porque ferramentas nunca são “meras” nada além de um “exemplo” de uma lei geral, vista?
individual, uma parte de um maquinário, um ferramentas, prontas para serem aplicadas: estude, então, diretamente esta lei geral... Um P: Pode apostar que sim! Em todos os sen-
caráter iccional; inversamente, você pode des- elas sempre modiicam os objetivos que você estudo de caso que carece de ser complementa- tidos.
crever uma rede – metrôs, encanamentos, tele- tinha em mente. Isto é o que “ator” signiica. do por uma moldura é um estudo de caso, já de A: Você? Mas nos disseram que você era
fones – que não está delineada no modo como O Ator-Rede (eu concordo que o nome é tolo) saída, mal escolhido! uma sorte de relativista! Você foi citado por
o Ator-Rede o faz. Você está, simplesmente, permite que você produza alguns efeitos que dizer que mesmo as ciências naturais não são
confundindo o objeto com o método. ANT é jamais seriam obtidos por nenhuma outra teo- 2. Optamos por traduzir os termos frame e framework objetivas... Então, tudo indica que você é favo-
um método, e um método essencialmente ne- ria social. Isso é tudo que posso garantir. Uma como “moldura”, tal como izeram os tradutores rável a uma sociologia interpretativa, à multi-
gativo; ela não diz nada sobre a forma daquilo da versão francesa, cadre. Em alguns casos optamos plicidade de pontos de vista e de perspectivas,
que ela permite descrever. 1. WWW, em português, signiica “Rede Mundial de por traduzir framework como “quadro explicativo” e tudo mais.
Computadores” [N.T]. [N.T].

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 339-352, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 339-352, 2006
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P: Eu não tenho muita paciência com as so- está sempre do outro lado da cerca. E não faz por causa de um estacionamento. E mesmo as- P: É claro que está, mas de novo, e daí? Não
ciologias interpretativas, seja lá o que você qui- diferença se consideram o outro lado mais ver- sim você tem a mesma limitação “subjetiva”, e acredite em toda aquela bobagem de ser “limi-
ser chamar por este nome. Não. Ao contrário, de ou mais podre; de qualquer modo, ele está tem exatamente o seu mesmo “ponto de vista”! tado” a uma perspectiva. Todas as ciências têm
acredito irmemente que as ciências são objeti- sempre fora do alcance. Se você pode ter diferentes pontos de vista sobre inventado formas de se moverem de uma air-
vas – o que mais elas poderiam ser? Elas tratam A: Mas você não negaria que você também uma estátua, é porque a estátua em si mesma é mação para outra, de um quadro de referência
de objetos, não? Eu simplesmente digo que os possui um ponto de vista, que a ANT também tridimensional e lhe permite, sim, ela permite para outro, pelo amor de Deus: isso se chama
objetos podem parecer um pouco mais com- é situada, que você também acrescenta uma ou- que você ande em torno dela. Se algo comporta relatividade.
plicados, entrelaçados, múltiplos, complexos, tra camada de interpretações, uma perspectiva? uma multiplicidade de pontos de vista, é porque A: Ah! Então você confessa ser um relati-
emaranhados, do que aquilo que o “objetivis- P: Não, por que eu “negaria” isso? Mas e daí? este algo é muito complexo, dotado de dobras vista!
ta”, como você diz, gostaria que eles fossem. A grande coisa sobre um ponto de vista é, pre- intrincadas, bem organizado, e bonito, sim, ob- P: Mas é claro, o que mais eu poderia ser?
A: Mas é exatamente isso que as sociologias cisamente, o fato de que você pode mudá-lo! jetivamente bonito. Se quero ser um cientista e alcançar objetivi-
“interpretativas” argumentam, não? Porque eu seria um prisioneiro dele? Da posi- A: Mas, certamente, nada é objetivamente dade, tenho de ser capaz de me mover de um
P: Ah não, não mesmo. Elas diriam que os ção em que se situam na terra, os astrônomos bonito – beleza tem a ver com subjetividade... quadro de referência para outro, de um ponto
desejos humanos, os signiicados humanos, as têm uma perspectiva limitada, por exemplo em gosto e cor são relativos... Eu estou perdido de de vista para outro. Sem estes deslocamentos,
intenções humanas, etc., introduzem alguma “le- Greenwich, no Observatório situado rio abai- novo. Por que nós passaríamos tanto tempo eu estaria limitado ao meu estreito ponto de
xibilidade interpretativa” em um mundo de ob- xo desde daqui – você já foi lá? É fabuloso. E combatendo o objetivismo, então? O que você vista de uma vez por todas.
jetos inlexíveis, de “relações puramente causais”, mesmo assim, eles têm conseguido trocar de diz não pode estar certo. A: Então você associa objetividade e relati-
de “conexões estritamente materiais”. Isto não é o perspectiva muito bem, através de instrumen- P: Porque as coisas que as pessoas chamam vismo?
que estou dizendo. O que diria é que este compu- tos, telescópios, satélites. Eles agora já podem de “objetivo” são, na maior parte dos casos, P: “Relatividade”, sim, claro. Todas as ciên-
tador aqui em cima da mesa, esta tela, este teclado, desenhar o mapa da distribuição das galáxias uma série de clichês. Nós não temos muitas cias fazem o mesmo. Nossas ciências também.
enquanto objetos, esta escola são feitos de muitas em todo o universo. Nada mal, não? Mostre- boas descrições de nada: do que é um computa- A: Mas qual é a nossa maneira de mudar
camadas, exatamente do mesmo modo que você, me um ponto de vista, e eu lhe mostrarei duas dor, um elemento de software, um sistema for- nossos pontos de vista?
sentado aqui, o é: seu corpo, sua linguagem, suas dúzias de modos de alterá-lo. Ouça: toda esta mal, um teorema, uma empresa, um mercado. P: Já lhe disse, as descrições são o nosso
questões. É o objeto em si mesmo que acrescenta oposição entre “ponto de vista” e “visão de par- Nós não sabemos quase nada sobre o que é esta negócio. Todos os demais estão traicando cli-
a multiplicidade, ou melhor, a coisa, a “reunião”3. te alguma”, você pode seguramente esquecer. E coisa que está estudando: organização. Como, chês. Entrevistas, sondagens, o que seja – nós
Quando você fala em hermenêutica, não importa também esta diferença entre “interpretativo” e então, poderíamos ser capazes de distinguí- vamos, nós ouvimos, nós aprendemos, nós
qual precaução tome, você sempre espera o segun- “objetivista”. Deixe a hermenêutica de lado e la da subjetividade? Então, há duas maneiras praticamos, nós nos tornamos competentes,
do sapato cair: inevitavelmente, alguém acrescen- volte para seu objeto – ou melhor, para a coisa. de criticar a objetividade: uma é se afastar do nós mudamos nossa visão. De fato é bem sim-
tará, “mas é claro que existe algo “natural”, coisas A: Mas, eu sempre estou limitado ao meu objeto para adotar o ponto de vista humano ples: é chamado de trabalho de campo. Bons
“objetivas” que não são interpretadas”. ponto de vista situado, à minha perspectiva, à subjetivo. Mas é da outra direção que eu estou trabalhos de campo sempre produzem muitas
A: É exatamente isso que ia dizer! Não há minha própria subjetividade? falando: a do retorno ao objeto. Porque deverí- novas descrições...
apenas realidades objetivas, mas também reali- P: Você é bem obstinado! O que o faz achar amos deixar os objetos serem descritos apenas A: Mas eu já tenho muitas descrições. Estou
dades subjetivas! É por isso que precisamos de que “ter um ponto de vista” signiica “ser limita- pelos idiotas?! Os positivistas não são donos afogado nelas. É exatamente este o meu pro-
ambos os tipos de teoria social... do”, ou especialmente ser “subjetivo”? Quando da objetividade. Um computador descrito por blema. É por isso que estou perdido; é por isso
P: Viu? Esta é a armadilha inevitável: “Não você viaja e segue as placas “Belvedere”, “Pano- Alan Turing é um muito mais rico e mais inte- que achei que seria útil vir até você. A Teoria do
somente, mas também”. Ou se estende o ar- rama”, “Bella Vista”, quando você inalmente ressante que aqueles descritos pela Wired Ma- Ator-Rede não pode me ajudar com esta massa
gumento a tudo, mas daí ele se torna inútil chega àquele lugar que lhe tira o fôlego, de que gazine, não? Como vimos em sala ontem, uma de dados? Eu preciso de um quadro explicativo!
– “interpretação” se torna um outro sinônimo maneira esta é uma prova de seus “limites sub- usina de sabão descrita por Richard Powers em P: “Meu reino por um quadro!” Bem co-
de “objetividade” – ou se limita o argumento a jetivos”? É a coisa em si mesma, o vale, os picos, Gain é bem mais viva do que aquela que você movente, acho que entendo seu desespero.
um aspecto da realidade, o humano, e, então as estradas que lhe oferecem este alcance, este leu nos Harvard Case Studies. O nome do jogo Mas não, a ANT é mesmo inútil para isso. Seu
você está atado – uma vez que a objetividade toque, esta tomada. A melhor prova é que dois é voltar ao empirismo. principal argumento é que os próprios atores
metros abaixo, você não pode ver nada por causa A: Ainda assim, eu estou limitado à minha fazem tudo, inclusive seus próprios quadros,
das árvores, e dois metros acima, também nada própria visão. suas próprias teorias, seus próprios contextos,
3. Tradução de “assemblage” por “reunião”.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 339-352, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 339-352, 2006
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sua própria metafísica, até mesmo sua própria que não nos ajuda nem na descrição nem na P: Fico contente com sua satisfação. Não, um realismo raso. Uma solução é adicionar à
ontologia... Então, temo que a direção a seguir explicação. Neste caso, jogue-a fora. falando sério, você não concorda que todo mé- sua análise um “modelo teórico”, uma “expli-
seja: mais descrições. A: Mas todos os meus colegas se utili- todo depende do tamanho e do tipo de texto cação”. A outra é escrever a última palavra do
A: Mas as descrições são longas demais. Ao zam de um monte de explicações: “a cultu- que você prometeu entregar? último capítulo dessa sua maldita tese.
invés disso, eu tenho que explicar. ra corporativa da IBM”, por exemplo, ou “o A: Mas isso é um limite textual, não tem A: Eu tenho uma formação cientíica! Eu
P: Viu? É neste ponto que eu discordo da isolacionismo britânico”, ou “a pressão do nada haver ver com o método. sou engenheiro de sistemas – eu não vim para
maior parte do treinamento em ciências so- mercado”, ou “o interesse individual”. Por P: Viu? De novo é por isso que discordo to- os Estudos de Organização para abandonar
ciais. que eu deveria me privar de todas estas expli- talmente da maneira pela qual os doutorandos tudo isso. Eu pretendo adicionar deluxogra-
A: Você discordaria da necessidade das ci- cações contextuais? são treinados. Escrever textos tem tudo a ver com mas, instituições, pessoas, mitologias, psicolo-
ências sociais fornecerem uma explicação para P: Você pode mantê-las, se isso lhe faz bem, o método. Você escreve um texto de tantas pa- gia a tudo que eu já conheço. Inclusive, eu estou
os dados que elas acumularam? E você ainda se mas não creio que elas expliquem coisa alguma lavras, em tantos meses, por uma certa quantia preparado para ser “simétrico”, tal como você
intitula um cientista social e um objetivista! – elas são meros ornamentos. No melhor das de dinheiro, baseado em tantas entrevistas, umas nos ensinou, a respeito de todos aqueles fato-
P: Eu diria que se sua descrição precisa de hipóteses elas são aplicáveis a todos os atores, o tantas horas de observação e tantos documentos. res. Mas não me diga que ciência corresponde a
uma explicação, ela não é uma boa descrição, que signiica que são absolutamente supérluas, Isso é tudo. Não há mais nada a se fazer. contar belas histórias. Essa é a diiculdade com
só isso. Apenas descrições ruins precisam de ex- uma vez que são incapazes de introduzir uma A: Mas é claro que há: eu aprendo, eu estu- você. Em um momento você é completamente
plicação. É bem simples, na verdade. O que se diferença entre eles. Na pior, elas afogam todos do, eu explico, eu critico, eu... objetivista, e mesmo de um realismo ingênuo
entende por “explicação”, na maior parte das os atores interessantes em um dilúvio de ato- P: Mas todos esses objetivos grandiosos, – “apenas descreva” – e em outro você é com-
vezes? A adição de um outro ator para prover res desinteressantes. Em regra geral, o contexto você os alcança através de um texto, não? pletamente relativista – “conte belas histórias e
àqueles já descritos a energia necessária para cheira mal. É apenas uma maneira de parar a A: Certamente, mas ele é uma ferramenta, suma”. Isso é terrivelmente francês, não?
agir. Mas, se você tem que adicionar um ator, descrição quando se está cansado ou com pre- um meio, uma maneira de me expressar. P: E isso faz de você terrivelmente o quê?
então a rede não está completa, e, se os atores já guiça demais para continuar. P: Não há ferramentas, nem meios, apenas Não seja tolo. Quem falou em “belas histórias”?
reunidos não têm energia suiciente para agir, A: Mas é exatamente esse o meu problema: mediadores. Um texto é denso. Esse é um prin- Eu não, eu disse que você está escrevendo uma
então eles não são “atores”, e sim meros inter- parar. Eu preciso terminar esta tese. Eu tenho cípio da ANT, se ela tiver alguma. tese de doutorado. Pode negar isso? E depois
mediários, tolos ou marionetes. Eles não fazem apenas mais oito meses. E você sempre diz: A: Desculpe-me professor, como eu já lhe eu disse que essa tese de tantas palavras – que
nada, então não deveriam estar na descrição. “mais descrições”. Mas isso é como Freud e disse, eu nunca iz maiores investimentos na será o único resultado duradouro de sua estada
Eu nunca vi uma boa descrição que precisasse suas curas: uma análise interminável. Quan- produção ilosóica francesa. Eu poderia com- entre nós – deve ser densa.
de uma explicação. Mas, eu vi um sem número do devemos parar? Meus atores estão por toda por linhas de programa em C ou em C++ 4, mas A: O que isto quer dizer?
de descrições ruins para as quais nada foi acres- parte! Para onde eu devo ir? O que é uma des- eu não domino Derrida, semiótica, ou algo do P: Isto quer dizer que ela não é uma vidra-
centado por uma adição massiva de “explica- crição completa? tipo. Eu não acredito que o mundo seja feito de ça transparente, que transporta as informações
ções”! E a ANT não ajudou... P: Eis agora uma boa questão, pois é de palavras e coisas do gênero... sobre seu estudo sem deformá-las. “Não há in-
A: Isso é bastante perturbador. Eu deveria questão prática. Como eu sempre digo: “uma P: Não tente ser sarcástico. Isso não combi- formação, apenas trans-formação”, tradução
saber – os outros estudantes me alertaram a boa tese é uma tese feita”. Mas existe uma outra na com o engenheiro que existe em você. E, de se preferir. Suponho que você esteja de acordo
não mexer com estas histórias de ANT nem maneira de terminar uma tese que não “acres- qualquer maneira, eu não acredito nisto tam- com este slogan da ANT? Bem, então ela deve
mesmo com uma vara comprida... Agora você centando uma explicação” ou “colocando-a em bém. Você me perguntou como se faz para pa- ser verdadeira também para sua tese, não?
esta me dizendo que eu nem deveria tentar ex- um quadro explicativo”. rar, eu só estou lhe dizendo que o máximo que A: Talvez, mas, em que sentido isso pode
plicar qualquer coisa que seja! A: Diga-me, então. você pode conseguir, como aluno de doutora- me ajudar a ser mais cientíico, isso é tudo o
P: Caro estudante, eu não disse isso, mas, P: Você pára quando tiver escrito as suas do, é acrescentar, a um certo estado de conhe- que eu quero saber? Eu não quero abandonar o
simplesmente que ou a sua descrição é relevan- 50.000 palavras ou, qualquer que seja o forma- cimento atual, um texto que possa ser lido pela ethos da ciência.
te e, na prática, você está adicionando um novo to aqui na LSE, eu sempre me esqueço. banca examinadora, talvez por um punhado de P: Uma vez que o texto, segundo a maneira
agente à descrição – a rede é simplesmente mais A: Oh! Isso é ótimo! Então, minha tese ter- informantes e dois ou três colegas de doutora- como é escrito, capture ou não a rede de atores
longa do que você pensava – ou, então, não é mina quando ela estiver completa... Isso ajuda do. Nada de muito extravagante nisso. Apenas que você quer estudar. Na nossa disciplina, o
um ator que fará diferença e, neste caso, você muito, muito obrigado mesmo! Eu me sinto texto não é uma história, nem uma bela histó-
está simplesmente adicionando algo irrelevante bem aliviado agora... 4. C e C++ são linguagens de programação de sistemas ria, mas o equivalente funcional do laboratório.
para computador [N.T].

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É o local dos testes, experimentos e simulações. a ser adicionada à “mera descrição”. Não tente exigente, complicada, mas você precisa dela. bolha da internet estourou5... Mas, de qualquer
Dependendo do que se passa nele, há ou não trocar a descrição pela explicação: simplesmen- Coisas invisíveis são invisíveis. Ponto. Se elas forma, eu tenho que fornecer às pessoas algum
há um ator, há ou não há uma rede sendo tra- te continue com a descrição. As suas próprias fazem com que outras coisas se movam, e você entendimento relexivo...
çada. E isso depende inteiramente da maneira idéias sobre a companhia não interessam se pode documentar esses movimentos, então elas P: ... que antes de você chegar, claro, não
precisa como ele é escrito – e cada novo tópico comparadas à questão de como essa parte da são visíveis. De novo, ponto eram relexivas!
exige uma nova maneira de ser tratado por um empresa tem feito para se desenvolver. S: “Prova, prova”. O que ainal é uma pro- A: De certa maneira, sim. Não? Eles faziam
texto. A maior parte dos textos são fatalmente S: Mas, se as pessoas não atuam, se elas não va”? Isto não é terrivelmente positivista? coisas, mas sem saber por que... O que há de
chapados. Nada acontece neles. comparam ativamente, padronizam, organi- P: Espero que sim. O que há de tão incrível errado nisto?
A: Mas ninguém fala sobre “texto” em nos- zam, generalizam, o que eu faço? Eu estarei em dizer que as coisas, cuja a existência você P: O que há de errado é que isso é terrivel-
so programa. Nós falamos sobre “estudar orga- perdido! Eu serei incapaz de produzir outras não pode provar, atuam? Eu temo que você mente mesquinho. Muito do que os cientistas
nizações”, não em “escrever” sobre elas. explicações. esteja confundindo teoria social com teoria sociais chamam de “relexividade” se resume
P: É isso que estou falando a você: você está P: Você é mesmo extraordinário! Se seus da conspiração – embora, nos dias de hoje, eu em perguntar às pessoas coisas totalmente ir-
sendo mal treinado! Não ensinar aos alunos de atores não atuam, eles não deixarão qualquer concorde que isso ocorra na maior parte das relevantes; estas, por sua vez, fazem outras
doutorado em ciências sociais a escreverem suas rastro que seja. Assim, você não terá nenhuma teorias críticas em ciências sociais. perguntas para as quais o analista não possui o
teses é como não ensinar aos químicos fazerem informação. Então você não terá nada a dizer. A: Mas se eu não adicionar nada, estarei mais ínimo começo de resposta. A Relexivi-
experimentos laboratoriais. É por isso que atu- S: Você quer dizer que, quando não há ne- simplesmente repetindo o que os atores di- dade não é um direito inato, algo que pode le-
almente eu só ensino a escrever. É verdade, eu nhum rastro, devo permanecer em silêncio? zem. var com você apenas porque está na LSE! Você
me sinto como um velho cretino sempre repe- P: Incrível! Você poderia levantar essa ques- P: Qual seria a utilidade de acrescentar enti- e seus informantes têm diferentes interesses
tindo a mesma coisa: “descreva, escreva, descre- tão em qualquer uma das ciências naturais? Ela dades invisíveis que atuam sem deixar nenhum – quando eles se intersectam é um milagre, e
va, escreva...” soaria completamente tola. Só um cientista so- rastro, e que não fazem diferença para um esta- milagres, caso você não saiba, são raros...
A: O problema é que não é isso que meu cial para achar que pode continuar com a expli- do de coisas qualquer? A: Mas, se eu não adicionar nada a que os
orientador quer. Ele quer que meu estudo de cação mesmo na ausência de informação! Você A: Mas eu devo ensinar aos atores algo que não atores dizem, eu serei incapaz de ser crítico.
caso seja generalizável. Ele não quer uma “mera está realmente preparado para produzir dados? saibam; caso contrário, por que eu os estudaria? P: Está vendo, em um momento você quer
descrição”. Então, mesmo se eu izer o que A: É claro que não, mas eu ainda quero... P: Vocês, cientistas sociais, sempre me des- explicar e bancar o cientista, enquanto em ou-
você quer, eu terei uma boa descrição de um P: Bom, pelo menos você é mais razoável concertam. Se você estudasse formigas (ants), tro quer desconstruir, criticar e bancar o mili-
determinado estado de coisas, e então? Então, que muitos dos seus colegas. Se não há rastro, ao invés de ANT, esperaria que elas aprendes- tante...
eu ainda tenho que dispor tudo em um quadro conseqüentemente não há informação, não há sem alguma coisa sobre seu estudo? Claro que A: E eu diria: em um momento você é um
explicativo, encontrar uma tipologia, compa- descrição, e por isso não há conversa. Não pre- não. Elas sabem, você não. Elas são professoras, relativista ingênuo – de volta ao objeto – e no
rar, explicar, generalizar. É por isso que começo encha com nada. É como um mapa de um país você aprende com elas. Você explica o que elas momento seguinte você diz que apenas escre-
a entrar em pânico. no século XVI: ninguém foi até lá, ou ninguém fazem para você mesmo, para o seu próprio ve um texto no qual não adiciona nada, mas
P: Você só deve entrar em pânico se seus ato- de lá voltou, por isso, pelo amor de Deus, dei- benefício ou para o dos outros entomólogos, apenas segue seus famosos “atores”. Isso é total-
res não tiverem feito tudo isso da mesma forma, xe-o em branco! Terra incógnita. não para elas, que não dão a mínima. O que o mente apolítico. Nenhuma postura crítica que
constantemente, ativamente, relexivamente, S: Mas, e as entidades invisíveis que atuam faz pensar que um estudo sempre supõe ensinar eu possa enxergar.
obsessivamente: eles também comparam, eles escondidas por aí? coisas às pessoas estudadas? P: Diga-me, Mestre Desconstrutor, como
também produzem tipologias, eles também P: Se elas atuam, elas deixam rastro, desse A: Mas esse é o projeto das ciências sociais! você vai obter um “paradigma crítico” às custas
elaboram padrões, eles também disseminam modo você tem alguma informação, e desse É por isso que estou aqui na LSE: para criticar de seus atores? Estou ansioso para ouvir.
suas máquinas, bem como suas organizações, modo pode falar sobre elas. Caso contrário, a ideologia gerencial, desconstruir os muitos A: Apenas se eu tiver um quadro explicati-
ideologias e estados mentais. Por que você seria cale a boca. mitos da tecnologia da informação, para adqui- vo. Era isso que estava procurando quando vim
aquele que faz o trabalho inteligente enquanto A: Mas e se elas estão reprimidas, rejeitadas, rir uma postura crítica sobre as inovações téc-
eles agiriam como um bando de retardados? O silenciadas? nicas e a ideologia de mercado. Se não for isso, 5. O autor refere-se ao esgotamento da chamada “dot-
que eles fazem para expandir, para relacionar, P: Não há nada no mundo que permita di- acredite, eu ainda estaria no Vale do Silício, e com bubble”, o conjunto de empresas ponto-com
para comparar e para organizar é também o zer que elas estão lá sem que se apresente provas estaria fazendo um monte de dinheiro – bem, que apareceram entre 1995-2005 no Vale do Silício
que você tem a descrever. Não há outra camada de sua presença. Essa prova pode ser indireta, pode ser que eu não estivesse agora, já que a e boa parte delas entraram em faleência devido ao es-
touro dessa “bolha” [N.T]

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aqui, mas obviamente a ANT é incapaz de me P: Claro...! Então, o que você quer é que vez que eles não fazem nada por si próprios. A: Então, você está me dizendo que a ANT
fornecer um. seu quadro explicativo seja para o seu estudo de O tempo que você passou no campo foi um não é uma ciência?
P: Fico muito contente por ela não lhe ofe- caso o que a lei de Galileo é para a queda de um desperdício. Você deveria ter ido diretamente P: Não uma ciência estruturalista, por certo.
recer. Esse seu quadro, o qual eu assumo que pêndulo – menos as perturbações. à causa. A: O que dá no mesmo, toda ciência...
está oculto aos olhos dos seus informantes, é A: Sim, acho que sim, de certo modo, em- A: Mas é para isso que serve a ciência! Jus- P: Não! Se informação é transformação, não
revelado pelo seu estudo? bora naturalmente menos preciso cientiica- tamente isso: encontrar a estrutura oculta que importa qual o campo. Os estudos de organiza-
A: Sim, com certeza. Pelo menos eu espero mente. Por quê? O que há de errado com isso? explica o comportamento daqueles agentes que ção, estudos de ciência e tecnologia, estudos de
que este seja o valor de meu trabalho. Não a P: Nada, seria ótimo, mas isto é viável? Sig- você pensava estarem fazendo algo, mas que negócios, estudos de informação, sociologia, ge-
descrição, uma vez que todos a conhecem de niica que, o que quer que um pêndulo con- são simplesmente ocupantes do lugar6 de algu- ograia, antropologia, por deinição, não podem
alguma maneira; mas a explicação, o contexto creto faça, isso não acrescentaria nenhuma ma outra coisa. depender de uma explicação estruturalista.
que eles não têm tempo para ver, a tipologia... informação nova à lei dos corpos em queda. As P: Então, você é um estruturalista! Final- A: “Sistemas de transformações”, é disso
Veja, eles estão muito ocupados para pensar. leis contêm in potentia tudo o que há para se mente você saiu do armário. Ocupantes de lu- exatamente que o estruturalismo se ocupa!
Isso é tudo que posso proporcionar; e, a pro- conhecer sobre o estado de coisas de um pên- gar, é isso o que você chama de atores?! E você P: De maneira alguma, meu amigo, no estru-
pósito, na companhia eles estão interessados, dulo. O caso concreto é simplesmente, para quer, ao mesmo tempo, usar a Teoria do Ator- turalismo nada é realmente transformado, é ape-
prontos para me ofereceram acesso aos seus ar- falar como os ilósofos, a “realização de um po- Rede! Isto é estender por demais os limites do nas combinado. Você não compreende a distância
quivos, e com intenção de pagar por isso! tencial” que já está lá. ecletismo. abissal entre ele e a ANT. Uma estrutura é justa-
P: Bom para você... O que você está me A: Esta não é uma explicação ideal? A: Por que não posso fazer ambos? Certa- mente uma rede sobre a qual você tem apenas
dizendo é que nos seus seis meses de trabalho P: Este é justamente o problema: é um ideal mente, se a ANT tem algum conteúdo cientíi- informação aproximativa. É útil quando você é
de campo, você pode, por si próprio, apenas elevado ao quadrado: é o ideal de uma expli- co, ele tem que ser estruturalista. pressionado pelo tempo, mas não me diga que
por ter escrito algumas centenas de páginas, cação ideal. Eu duvido seriamente que os fun- P: Você notou que há a palavra “ator” em isso é mais cientíico. Se eu quero ter atores em
produzir mais conhecimento do que aqueles cionários da companhia se comportem assim. ator-rede? Você pode me dizer que tipo de ação meu relato, eles têm que fazer algo, não serem
340 engenheiros e a diretoria que você tem E eu estou bem convencido de que você não os ocupantes de lugar fazem em uma explica- apenas ocupantes de lugar; se eles fazem algo, eles
estudado? pode produzir a lei do comportamento deles ção estruturalista? marcam uma diferença. Se eles não fazem dife-
A: Não “mais” conhecimento, talvez, mas que permitiria que você deduzisse tudo como A: É fácil, ele preenche uma função. Essa é a rença, abandone-os e recomece a descrição. Você
sim um conhecimento diferente, eu espero. Eu a realização in concreto daquilo que já estava lá grande coisa sobre o estruturalismo, se eu o en- quer uma ciência na qual não exista objeto.
não deveria me esforçar exatamente para isto? potencialmente. tendi corretamente. Qualquer outro agente na A: Você e suas histórias... Histórias me-
Não é por isso que estou neste negócio? A: Menos as perturbações... mesma posição seria obrigado fazer o mesmo… moráveis, é o que você quer! Eu estou falando
P: Eu não estou certo do negócio em que P: Sim, sim, sim, desnecessário acrescen- P: Então, um ocupante de lugar é, por de- sobre explicação, conhecimento, posturas críti-
você está, mas em quão diferente é o conhe- tar... sua modéstia é admirável. inição, inteiramente substituível por qualquer cas, não escrevendo roteiro para novelas de TV
cimento que você produz em relação ao deles, A: Você está brincando comigo? Entretan- outro? do Canal 4!
esta é toda a questão. to, empenhar-se na busca deste tipo de quadro A: Sim, é isto que estou dizendo. P: Retomando o que já disse. Você quer que
A: É o mesmo tipo de conhecimento de explicativo parece-me viável... P: O que é igualmente tolo e que o torna ra- o seu calhamaço de algumas centenas de pági-
todas as ciências, o mesmo modo de explicar P: Mas, mesmo que o fosse, seria desejável? dicalmente incompatível com a ANT: um ator nas faça a diferença, não?! Bom, então você tem
as coisas: indo do caso especíico até a causa, Veja, o que você está realmente me dizendo é que não faz diferença, no meu vocabulário, não que ser capaz de provar que sua descrição do
e uma vez que eu conheço a causa, eu posso que na sua descrição os atores não fazem qual- é um ator. Um ator, se as palavras têm algum que as pessoas fazem, de quando seu texto re-
gerar seu efeito como conseqüência. O que quer diferença. Eles simplesmente realizaram signiicado, é exatamente o que não é substi- tornar a elas, faz diferença sobre o modo como
há de errado nisso? É como perguntar o que um potencial – aparte os desvios menores. O tuível. É um evento único e totalmente irredu- estão fazendo as coisas. É isto que você chama
acontece a um pêndulo que foi retirado de que signiica que eles não são, de fato, atores: tível a qualquer outro, exceto se você o torna como “postura crítica”?
seu equilíbrio; se eu conheço a lei de Gali- eles simplesmente carregam uma força que comensurável com outro através de algum tipo A: Eu suponho que sim.
leu, eu nem preciso mais olhar para qualquer passa através deles. Então, meu caro estudante, de padronização – mas mesmo isso requer um P: Mas, então, você concordaria que não
pêndulo concreto; eu sei exatamente o que você tem desperdiçado seu tempo descreven- terceiro ator, um terceiro evento. serviria de nada lhes falar de causas que não
acontecerá, desde que, claro, eu esqueça as do pessoas, objetos, locais que não são nada, trazem nenhuma diferença para o que eles fa-
perturbações. de fato, além de intermediários passivos, uma zem já que são excessivamente gerais?
6. Place holders, no original. [N.T]

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A: Claro que não. Eu estava falando de cau- blocos a relexividade que eles já tinham an- Tão grande, tão raro, tão surpreendente quanto A: Mas qual a diferença entre um bom e um
salidades reais. tes e que você retirou deles ao tratá-los de uma Galileu com seu pêndulo, ou Pasteur com seu mau texto em ANT?
P: Mas estas tampouco lhes serviriam, por- maneira estruturalista! Magníico! Eles eram vírus da raiva. P: Agora sim, esta é uma boa questão!
que mesmo que existissem, o que eu duvido atores antes de você vir com a sua “explicação”. A: Então o que eu devo fazer? Rezar por um A: Finalmente?
muito, elas não teriam nenhum outro efeito Não me diga que é o seu estudo que os fará o milagre? Sacriicar uma galinha? P: Finalmente! Resposta: a mesma que exis-
além de transformar seus informantes em ocu- serem. Ótimo trabalho, aluno. Bourdieu não o P: Mas por que que você quer que seu pe- te entre um bom e um mau laboratório. Nem
pantes do lugar de outros atores, o que você cha- teria feito melhor... queno texto seja automaticamente mais rele- mais, nem menos.
mou de função, estrutura, etc. Assim, de fato, A: Você pode não gostar muito de Bour- vante para aqueles a quem ele se refere do que, A: Bem, ok, hum, obrigado... Foi gentil de
eles seriam não atores, mas, idiotas, marionetes dieu, mas pelo menos ele era um verdadeiro digamos, para um laboratório gigante de ciên- sua parte conversar comigo. Mas acho que depois
– aliás, menos que marionetes já que elas forçam cientista, e melhor ainda, ele era politicamente cias naturais? Olhe o quanto leva pra os chips da de tudo, ao invés de ANT... Estava pensando em
os titereiros a fazer coisas inesperadas...Bem, em relevante. Até onde posso dizer, a sua ANT não Intel™ se tornarem relevantes para os telefones utilizar a teoria dos sistemas de Luhmann como
todo o caso, você está fazendo com que os atores é nem uma coisa nem outra... celulares! E você quer que todos tenham um ró- um enquadramento subjacente – ela parece ser
sejam nada: na melhor das hipóteses eles pode- P: Obrigado. Há trinta anos eu estudo as tulo “LSE™ inside” sem nenhum custo? Para se bem promissora, “autopoiesis” e tudo mais. Ou
riam adicionar algumas perturbações menores, conexões entre a ciência e a política, de modo tornar relevante você precisa de trabalho extra. talvez eu vá usar um pouco de ambas.
tal como o pêndulo concreto que adiciona so- que é um tanto difícil me intimidar com con- A: Justamente o que eu precisava: a perspec- P: Hum...
mente pequenas oscilações. versas sobre qual ciência é “politicamente re- tiva de mais trabalho ainda! A: Você não gosta de Luhmann?
A: Ãh? levante”. P: Mas esse é o ponto: se um argumento é P: Eu deixaria de lado todos os “enquadra-
P: Agora você tem de me dizer o que há A: Argumentos de autoridade também não automático, pronto de antemão, em todos os mentos subjacentes”, se eu fosse você.
de tão politicamente grandioso em transformar me intimidam, de modo que não faz qualquer propósitos, então este argumento não pode ser A: Mas, o seu tipo de “ciência”, pelo que
aqueles que você estudou em inofensivos e ina- diferença para mim os seus trinta anos de es- cientíico. É simplesmente irrelevante. Se um pude notar, signiica quebrar com todas as re-
tivos ocupantes de lugar para as funções escon- tudo. estudo é realmente cientíico, ele pode falhar. gras de nosso treinamento em ciências sociais.
didas que você, e só você, consegue detectar. P: Touché... Mas a sua questão era: “O que eu A: Muito animador, foi muito gentil você P: Eu preiro quebrá-las todas e seguir os
A: Humm, você tem um modo de colocar posso fazer com a ANT?” Eu respondi: nenhuma me lembrar que minha tese pode falhar! meus atores... Como você disse, eu sou, no i-
tudo de cabeça para baixo... Não estou tão cer- explicação estruturalista. As duas são completa- P: Você confunde ciência com posição de nal, um realista ingênuo, um positivista.
to agora. Se os atores tomam consciência das mente incompatíveis. Ou você tem atores que superioridade. Diga-me, você é capaz de imagi- A: Sabe o que seria realmente legal? Uma
determinações impostas a eles... mais conscien- realizam potencialidades e eles não são atores de nar um único tópico para o qual, por exemplo, vez que ninguém por aqui parece entender o
tes... mais relexivos... seu grau de consciência fato, ou você descreve atores que estão atualizan- a sociologia crítica de Bourdieu, da qual você que a ANT é, você deveria escrever um guia
não seria de algum modo elevado? Eles agora do virtualidades (esta é a maneira de Deleuze, a gosta tanto, não seja aplicável? sobre ela. Isso certamente faria nossos professo-
podem tomam seu destino em suas próprias propósito), e isto demanda textos muito especí- A: Mas eu não posso imaginar um único res saberem o que ela é e então, se me permite
mãos. Eles se tornam mais esclarecidos, não? icos. Sua conexão com aqueles que você estuda tópico para o qual a ANT seja aplicável!! dizer, eu não quero ser indelicado... mas talvez
E, se este é o caso, eu diria que agora, pelo me- demanda protocolos bem especíicos de traba- P: Formidável, você tem razão, é exatamen- assim eles não tentariam nos empurrar tanto
nos, em parte graças a mim, eles são mais ativos lho – eu acho que é isso que você chamaria de te isso o que eu penso... para ela... se você entende o que quero dizer...
agora, são atores mais completos. “postura crítica” ou “relevância política”. A: Isso não pretendia ser um elogio. P: Então, é tão mal assim? Hum, um guia?
P: Bravo, bravissímo! Então, para você, um A: Então em quê somos diferentes? Você P: Mas eu o tomo como um verdadeiro elo- A: Veja, eu sou apenas um estudante de
ator é um agente plenamente determinado, também quer ter uma postura crítica. gio! Uma aplicação de alguma coisa é tão rara PhD. Você é um professor. Você já publicou
mais um ocupante de lugar para uma função, P: Sim, talvez, mas estou certo de uma coisa: quanto um bom texto de ciências sociais. muito, você pode arcar com coisas que eu não
mais um pouco de perturbação, mais alguma não é automático, e na maior parte do tempo, A: Deixe-me respeitosamente lembrá-lo posso. Eu tenho que escutar meu orientador.
consciência provida a eles por um cientista so- ela vai falhar. Duzentas páginas de entrevistas, que, com toda sua excepcionalmente sutil ilo- Eu simplesmente não posso levar seu conselho
cial esclarecido? Horrível, simplesmente horrí- observações, etc. não farão, de qualquer jeito, soia da ciência, você ainda não me disse como muito adiante.
vel... E você quer aplicar a ANT a estas pessoas? nenhuma diferença por si mesmas. Para serem escrever um. P: Então, por que veio até mim? Por que
Depois de você tê-los reduzido de atores a ocu- relevantes, outro conjunto de circunstâncias ex- P: Você estava tão ansioso em adicionar mol- tentou usar a ANT?
pantes de lugar, você quer adicionar um insulto traordinárias é exigido. Trata-se de um evento duras, contextos, estruturas, à sua “mera descri- A: Na última meia-hora, devo confessar, es-
à injúria e, generosamente, trazer a estes pobres raro. Exige um protocolo imaginativo incrível. ção”, como você poderia ter me escutado? tive me perguntando a mesma coisa...

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352 | Bruno Latour

Nota dos tradutores bling the Social – an Introduction to Actor-Ne- Como não terminar uma tese: pequeno diálogo
twork heory. Oxford: Oxford Univ. Press, pp.
141-156. E: “Comment inir une these de so-
entre o estudante e seus colegas (after hours)
Traduzido do original: “A prologue in form
of a dialog between a Student and his (so- ciologie. Petit dialogue entre un étudiant et um
mewhat) Socratic Professor”. In Avgerou, C.; professeur (quelque peu socratique). In Caillé, STELIO MARRAS
Ciborra, A.; Land. F.F. (orgs.). 2004. he Social A.; Dufoix, S. (orgs.). 2004. Une théorie socio-
Study of Information and Communication Study. logique générale est-elle pensable?. La revue du
Nova Iorque: Oxford Univ. Press, pp. 62-76. M.A.U.S.S., n. 34, pp. 154-172.
Cotejado com as seguintes versões: “On the A primeira versão em inglês e a versão fran-
Diiculty of being an ANT: An Interlude in cesa estão disponíveis em http://www.bruno-
Form of Dialog”. In Latour, B. 2005. Reassem- latour.fr
Terça-feira, já noite, o estudante sai da sala tese com os funcionalismos e estruturalismos
do professor e mal se dá conta das horas trans- clássicos e duvido que fosse encontrar proble-
corridas lá dentro. Do lado de fora, as luzes em mas na defesa. Além do mais, nós aqui temos
tradutor José Glebson Vieira torno ao prédio já se insinuavam e invadiam os formação em Ciências Sociais, é verdade, mas
Doutorando em Antropologia Social / USP corredores da London School of Economics. Como não é essa a área de meu Phd. Eu sou um enge-
tradutor Leandro Mehalem de Lima estupefato, o estudante cerra a porta atrás de si e nheiro de sistemas, ora bolas...
Mestrando em Antropologia Social / USP segue com um olhar distante, circunspecto e ligei- Colega: Eu sou das Ciências Sociais, mas
tradutor Uirá Felippe Garcia ramente perturbado, vagueando passos vacilantes não creia você que as coisas sejam muito mais
Doutorando em Antropologia Social / USP e murmurando frases incompletas. Ele nem repa- tranqüilas para nós. Não tenha dúvida que es-
revisor técnico Ana Cláudia Marques ra no colega, parado bem diante dele, à espera de sas reviravoltas contemporâneas também nos
Professora do Departamento de Antropologia / USP ser reconhecido. atingem com grande impacto e não raro de-
sassossego. Em todo caso, a entrevista com o
Colega: Ei, estou há mais de uma hora te es- professor foi assim tão destrutiva?
Recebido em 20/01/2007 perando pra saber como foi essa conversa com Estudante: Ao contrário, terá sido constru-
Aceito para publicação em 30/01/2007 o professor... tiva. O problema é que se eu verdadeiramente
Estudante: Opa, como vai? Desculpe a dis- me deter nessas novas tecnologias sociológicas,
tração, mas é que ainda estou sob efeito da con- como a Actor-Network-heory, vou ter que re-
versa, nem sei bem o que pensar... formular minhas hipóteses, acho mesmo que
Colega: Posso imaginar... Escute, por que escolher outro objeto, recomeçar a minha tese,
não vamos até a biblioteca, você vai voltando a talvez nunca terminá-la...
si e me conta o que se passou lá dentro? Colega: O problema, posso imaginar, é que,
Estudante: Pode ser... Mas, se quer saber, já uma vez que a gente tomou contato com esses
digo que o problema começa a ser menos o que autores – Deleuze e Guattarri, Latour, Stra-
se passou lá dentro e mais o que se vai passar thern, Viveiros de Castro, Wagner, Tarde e tais
aqui fora, isso sim. Já me pergunto sobre o que –, como agora desconhecer ou evitá-los, não é
eu vou fazer com meu doutorado, meu Orga- mesmo?
nization Studies... Que ironia: eu devia mudar Estudante: Talvez você tenha razão, mas
para Desorganization Studies. E pensar que tudo digo que meu maior incômodo na conversa
começou com a maldita leitura de Mil Platôs... com o professor foi descobrir que este método
Eu devia mesmo era continuar do modo como da ANT se mostra ainda mais apropriado para
já vinha fazendo e tudo seria mais simples, me- as coisas ou os fenômenos que mudam rapida-
nos tormentoso ao menos. Eu terminaria essa mente...

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Colega: E o que não muda rapidamente da ordem ordinária das coisas, por assim dizer. Estudante: E isso pra não falar de meu pró- por assim dizer, nisto que se chama sociedade.
hoje em dia, não é? Mas não quando vemos o mundo em prolifera- prio ponto de vista, que seria mais um ator a ser Ou melhor, reclama ele, é preciso “reunir o so-
Estudante: Claro, e você pode bem imagi- ção com diferentes velocidades de coisas sendo considerado. E aí o problema da subjetividade cial não numa sociedade, mas em um coleti-
nar o quanto essas organizações que eu estudo criadas e entrando a todo momento em associa- do analista, e portanto da análise. Problema que vo”. Assim como as ciências naturais estariam
mudam de um para outro instante. Técnicas, ção. Penso então que, para a ANT, antes de nos não seria problema, repito, se eu apenas me va- fundadas sobre fenômenos estabilizadamente
produtos e serviços constantemente desenvol- determos na ontologia das entidades, devemos lesse dos estruturalismos e funcionalismos... naturais, também as ciências sociais estariam
vidos e substituídos, mercados que se criam e é lagrar a ontogênese delas. Antes do que são, Colega: Certamente, meu caro amigo, mas fundadas em fenômenos estabilizadamente so-
desaparecem, determinações políticas de tudo o como vêm a ser. Ou dizer: antes dos estados pelo menos 50 anos já se passaram desde a he- ciais. Veja essa nota à página 39 deste seu novo
quanto é tipo e origem, diferenças que não estáveis, devemos seguir os estados instáveis. gemonia desses métodos, dessas teorias. Depois livro: “Causas e efeitos são somente um modo
param de surgir entre países... Entende agora Ou ainda: antes das puriicações, as misturas. veio o pós-modernismo, e então o sujeito – ou retrospectivo de interpretar eventos. Isto é ver-
minha alição? Ali onde a ação social se mostra mais confusa, melhor, os sujeitos – e seus pontos de vista to- dadeiro tanto para o evento ‘social’ quanto para
Colega: Entendo que essa ANT se mostra mais múltipla, mais imprevisível, o recomen- maram a cena... o ‘natural’”. Quer dizer, as causas são sempre
como um método especialmente recomendado dado é seguir os atores nas relações intrincadas Estudante: Tomaram a cena, decerto, mas distribuídas entre os agentes quando em rela-
para domínios instáveis... que eles formam... parece que não resolveram o drama. Criaram, ção. É sempre o faz-fazer. Não há uma causação
Estudante: Talvez, que seja, mas seria pre- Estudante: Seguir os atores... foi isso o que isso sim, um impasse, uma paralisia cética, simples entre agentes, mas uma concatenação
ciso ver o que você mesmo entende por domí- ele disse... epistemológica, já que a airmação desses pon- complexa entre mediadores.
nios instáveis... Colega: Para nós, antropólogos, essa ANT tos de vista levou a mundos enclausurados, Estudante: ... e daí que vai por água baixo
Colega: Está certo, acho que o professor não supõe uma metodologia etnográica. incomensuráveis, incomunicáveis entre si. A essa terrível escolha entre objetividade e relati-
reconheceria de bom grado o que parece su- Estudante: de fato, o professor me falou em objetividade foi desacredita e só sobrou uma vismo, não é?
posto em minha airmação: isso de que o mun- “voltar ao objeto”, “voltar ao empiricismo”. tal subjetividade estéril. Colega: De fato, você sabe que Latour ressoa
do divide-se entre aquilo que é estável e aquilo Colega: Sim, teoricamente, esses atores não Colega: Bem, parece que sua conversa com essa questão, no livro Ciência em ação, como as
que é instável. Seria como repor os dualismos devem se deinir de antemão, prematuramente, o professor foi mesmo produtiva... duas faces de Jano... Eu entendo que o problema
que ele recusa, não? Seria novamente repartir como se o mundo fosse dividido entre coisas Estudante: Claro, não digo o contrário. Foi da escolha epistemológica é o mesmo problema
o mundo em dois modos distintos e opostos. sociais e coisas não-sociais, aqueles que atuam sim produtiva, ainda que angustiante... De da divisão ontológica entre natureza e sociedade
Sim, compreendo melhor agora, mas estou e aqueles que não atuam. Se as coisas, não só os todo modo, eu comentei com ele sobre essa es- que o mundo moderno oicialmente fundou.
apenas sugerindo que as coisas, não importa se humanos, também podem ser sociais, o social, colha, parece que terrível escolha... Não é essa a hipótese central do Jamais fomos
sociais ou naturais, humanas ou não-humanas, por sua vez, não pode mais ser tratado como Colega: Latour fala em “escolha comina- modernos? Aí se localizaria a origem da Guerra
elas experimentam momentos de instabilidade coisa – aí no sentido durkheimiano. Mas, aten- tória”, valendo-se desse vocabulário católico das Ciências, essa disputa entre o realismo das
e estabilidade. Seriam instáveis enquanto estão te, social e ator não se referem exclusivamen- usado para ameaçar aqueles que se recusam a ciências naturais e o construtivismo das huma-
envolvidas em controvérsias, e estáveis quando te aos humanos. Latour fala em agentes. Ou remir seus pecados... Ele afasta portanto o que nidades, a oposição dura entre objeto e sujeito,
se fecham naquilo que Latour denominou de melhor, actantes. Aliás, eu diria que a ANT se já havia deinido como a crítica ou a episte- coisa e representação, enim, todo o corolário
“caixas-pretas”. E então se estabilizam como mostra especialmente profícua em fenômenos mologia moderna. Não se pode ser obrigado de dualismos que irriga a imaginação moderna,
naturais ou sociais. ou coisas de, vamos dizer, alta actância... a optar entre causalidade simbólica ou social ocidental ou, pra dizer com Strathern, euro-
Estudante: Em todo caso, o professor me Estudante: Hein...??? e causalidade material ou naturalista. Por isso, americana... Já vi Latour se referir mais de uma
falou que as outras teorias sociais, agora já anti- Colega: ...isto é, quando a atuação é múlti- se até agora ele privilegiou o tema do natura- vez à alegoria de Platão, n’A República, como
gas, “elas são boas para coisas substantivas”. pla, heterogênea, movimentada, veloz, cheia de lismo na sua obra, em seu novo livro, Reassem- para mostrar que essas dicotomias remontam a
Colega: Ou seja, para domínios estáveis, deslocamentos e sobretudo propícia à conecti- bling the social..., ele passa a enfrentar isso que antigas origens, até que inalmente formalizadas
sociologias estáveis; para domínios instáveis, vidade com outros agentes em rede. No caso poderíamos chamar de sociologismo. Assim é pelas ilosoias modernas. Veja aqui o Políticas
sociologias como a ANT... Quer dizer, a “so- de seus Organization Studies, são as suas novas como entendo. Quer dizer, depois de trabalhar da Natureza, por exemplo... (abre seu caderno de
ciologia do social”, conforme denomina Latour máquinas, as suas culturas, os seus índices de sobre os ajuntamentos (“assemblages”, diz ele) anotações e passa a folheá-lo): diz ele que “jamais,
em seu recente Reassembling the social..., pode bolsas de valores, seus técnicos e executivos, que a noção puriicada de natureza permite (ou desde as primeiras discussões dos Gregos sobre
ser até adequado para um mundo estável, isto tudo junto, tudo se organizando e se desorga- permitia, quando pensávamos que éramos mo- a existência da vida pública, se falou de políti-
é, de pouca proliferação, de tempo ordinário, nizando mutuamente... dernos), quis agora investigar o que é ajuntado, ca sem falar de natureza.” Mas, nessa alegoria

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 353-369, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 353-369, 2006
356 | Stelio Marras Como não terminar uma tese | 357

da Caverna, o social aparece como sinônimo também. Por exemplo, um autor como Steve pode mais se manter assim, tal sua presença cada objeto e forma das redes, propriamente ditas –
de tirania, vida pública, política, subjetividade, Pinker, professor de psicologia em Harvard, se vez mais lagrante – os avanços da biotecnolo- nunca fossem senão estados transitórios, meros
representação, qualidades segundas; enquanto a serve da psicologia evolucionista, da genética gia, como a modiicação genética de organismos, intermediários sem dignidade, ontologias ne-
ciência responderia pela objetividade, a verdade comportamental ou da neurociência para air- são aí sempre citados com exemplo gritante. A gativamente instáveis ao aguardo da depuração
e o real, o domínio do Sábio, as qualidades pri- mar que o homem não nasce como uma tábula máquina de puriicação icou atulhada (Latour epistemológica moderna. O tabu da mistura
meiras. Aqui, o indiscutível das verdades cala o rasa, mas que as informações, os dados naturais, fala na recente “multiplicação de exceções”) e não funda a puriicação. Mas, vice-versa, o mesmo.
inferno ignorante e obscuro do mundo social. são já algo inato. Para ele, a criação, a sociedade, consegue mais – ou não facilmente, quando ain-
Em todo caso, o que disse o professor sobre o não passa de um aporte de segunda ordem. O da pensávamos que éramos modernos – depurar A essa altura, os estudantes conversavam de pé
relativismo? que realmente conta é a natureza universal mol- os fenômenos e distribuí-los em seus respectivos na entrada da biblioteca há cerca 20 minutos. O
Estudante: Esse parece ser um ponto impor- dada pelos imperativos da evolução ou a nature- cantões: o da Natureza e o da Sociedade... luxo de alunos já diminuía desde que disparara o
tante. Escolher entre relativismo ou realismo za particular que o indivíduo carrega em si pelo Estudante: Ou seja, você está me dizendo sinal para o último período das aulas noturnas. O
seria novamente incorrer nesses dualismos já acaso das mutações – naturezas passíveis, em que o realismo da Natureza e o construtivismo colega combinara com um amigo brasileiro fazer
desacreditados. Seria escolher, como você já todo caso, de serem conhecidas e mesmo mo- da Sociedade não servem mais – se é que algum mais um serão noite adentro para as provas de
lembrou, entre uma ou outra face de Jano... Ao diicadas pelas ciências duras. Na versão menos dia serviram, segundo essa hipótese dele – para im de semestre. Iriam aproveitar o after hours
professor eu então perguntei se ele associava canônica do realismo, o real, como dado de na- produzir conhecimento... da biblioteca nesta terça-feira. Lá dentro, o cole-
objetividade a relativismo... tureza, manifesta-se em alguns domínios e obje- Colega: Sim, acho que é isso, mas eu apenas ga brasileiro, já afundado numa dezena de livros
Colega: E então? tos do mundo, enquanto deixa para a sociedade, observaria, ainda, que o realismo, embora nor- abertos e espalhados sobre a mesa, aguardava en-
Estudante: Ele falou não em relativismo, quer dizer, o humano, a cultura, a subjetividade malmente associado ao domínio da Natureza quanto consultava e fazia anotações.
mas em relatividade. e a volição dos grupos e indivíduos, o porvir da – ainal, não somos naturalistas? – é também
Colega: Latour já falou numa espécie de construção, que por deinição é arbitrária. Claro reclamado pelos cientistas sociais, que falam Colega: Vamos entrar? Apresento a você
reforma do relativismo. Acho que ele aceitaria que há, você sabe, mil variantes entre uma e ou- em “realidade social”, enquanto muitos deles meu colega brasileiro e continuamos nossa
essa alcunha desde que o relativismo não fosse tra versão. Como disse Latour, os modernos, em acusam os cientistas naturais de construtivistas. conversa. Estamos justamente estudando esses
um relativismo cultural, já que isso implicaria sua prática de puriicação crítica, foram invencí- Parece que essa disputa por causas e determi- temas contemporâneos.
aderir ao grande divisor moderno, que ele evi- veis na habilidade de combinar transcendência e nismos da realidade é o que icou conhecido, Estudante: Já é tarde, mas confesso que o
dentemente recusa. Para ele, a questão é “como imanência, ora airmando o natural como dado, a partir dos anos 1980, como Guerra das Ci- interesse tomou o lugar do cansaço. Vamos lá.
nos tornarmos bons relativistas”. ora o social jogando esse papel. ências. É o acirramento entre naturalismo e Colega: Ali está o meu colega...
Estudante: O problema não me parece tão Estudante: Foram? Não são mais? sociologismo, universalismo e relativismo. A Colega Brasileiro: Como vai? Achei que não
simples. Já terminando nossa conversa, o pro- Colega: Pois é, às vezes também penso nisso... ciência é verdadeira ou falsa? Essa guerra ex- vinha mais...
fessor me disse que “no im, eu sou um realista Estudante: Mas continue. Quero voltar a pressaria a divisão moderna entre três catego- Colega: Desculpe o atraso, mas pelo menos
ingênuo, um positivista...” isso adiante... rias em disputa do conhecimento, que Latour já comecei a pensar sobre os nossos assuntos...
Colega: Acho que entendo o que ele quis Colega: Bem, eu dizia que para o Latour, identiica como as três diferentes estratégias Este é o estudante que teve hoje aquele encon-
dizer... como eu entendo, a prática de puriicação da rea- da crítica moderna: a naturalização, que tem tro com o professor...
Estudante: Mesmo? lidade por meio dos grandes divisores tem se tor- como objeto “as coisa-em-si”, essa natureza Colega Brasileiro: Ah, sim? Vamos sentar... E
Colega: Entendo da seguinte maneira: um re- nado cada vez mais, vamos dizer, impraticável. A no singular; a socialização, cujo objeto são os como foi essa conversa?
alista, como por exemplo tende a ser um cientis- prática da proliferação dos quase-sujeitos-quase- “homens-entre-eles”, a política e a cultura no Estudante: Estávamos justamente comen-
ta natural convencional, airma que a realidade objetos, mistos de nem bem natureza nem bem plural; e a desconstrução, ligada ao plano da re- tando... Paramos no debate realismo-constru-
ou o real é um domínio dado, exterior e trans- sociedade; essa prática que veio se proliferando tórica e dos efeitos de verdade, plataforma dos cionismo...
cendente às ingerências humanas, às paixões da mais e mais, então por reação aos mecanismos autores identiicados como pós-modernos. Diz Colega: Eu dizia sobre o modo como La-
sociedade e da política. Na versão mais dura, o puriicatórios, teria recentemente se tornado im- Latour que se os três repertórios são potentes tour, conforme eu entendo, tenta escapar desse
próprio humano não passa de um dado natu- possível de ser mantida escondida ou epistemo- em si mesmos, eles contudo não conseguem dualismo. Quer dizer, o desaio parece ser o de
ral, um caso particular da natureza. É a velha logicamente inconcebível. Quer dizer, isso que – porque não podem – se combinar. É como ressalvar a noção de verdade...
e conhecida visão biológica do homem, o na- seguia sub-repticiamente num plano oicioso, se as mediações entre os pólos que disputam a Colega Brasileiro: Ou sobretudo a prática da
turalismo. Alguns cognitivistas pensam assim incognoscível oicialmente, já não poderia, não causa das coisas e fenômenos – a um só tempo verdade, mais do que a noção...

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Colega: É verdade... e evitando assim os sub- conforme eu começo a entender, não apenas manipula, com todos os cuidados e evitações mínios da natureza (o pólo das ciências duras,
jetivismos paralisantes dos pós-modernistas, os conhecer é criar, mas a invenção seria a única contra contágios e contaminações, os agentes as exatas e naturais). Se é no mundo do meio
impasses contemporâneos do relativismo, tal a rei- maneira de conhecer. E como toda criação só se biológicos que se quer conhecer. Eu cada vez (Império do Centro, na expressão dele) que se
icação das culturas como se fossem mônadas... faz por analogia, o conhecimento é sempre uma mais penso que esse modo prático de conheci- torna lagrante a presença dos híbridos, mistos
Colega Brasileiro: Mas mônadas leibnizia- “tradução”, um emparelhamento de conceitos. mento, modo de contenção dos recintos, é algo de natureza e sociedade à espera de “puriicação”
nas, assim fechadas, circunscritas, incomunicá- Você veja: Wagner escreve A invenção da cultu- que se espraia muito além dos laboratórios. como natureza ou sociedade, então nós pensa-
veis; e não as mônadas abertas de Tarde... ra aí por meados dos anos 70 e parece adiantar Sim, vejam: a geladeira comum que temos em mos ainda como modernos (tal uma concepção
Colega: Igualmente verdade...... Enim, o uma resposta ao problema pós-moderno sobre casa, não é ela um recinto, e como tal destina- de mundo, uma imagem de realidade), quando
desaio seria então evitar esse relativismo cul- as condições de conhecimento do outro – o tal do a conter processos de deterioração e estabi- seguimos dividindo as coisas desse mundo do
tural, sem contudo cair de volta nas malhas do problema da objetividade e da subjetividade lizar o mais que pode os agentes lá dentro? E meio (as pessoas, as práticas, os objetos, os dis-
objetivismo realista próprio das ciências natu- – antes mesmo que eles viessem a formulá-lo... já dentro da geladeira, não há lá outra coleção cursos) entre fatos naturais e fatos sociais. Deixar
rais e da mentalidade naturalista. Colega: Eu dizia que a realidade, conforme de pequenos recintos? Pensem nos recipientes de ser moderno (exigência de uma antropologia
Estudante: Eu posso entender isso, mas, como Latour parece sugerir, seria tanto a mistura onde guardamos alimentos, nos potes de iogur- simétrica somente possível a partir de uma visão
eu disse: o professor terminou a conversa confes- quanto a puriicação, tanto aquilo que aparece te, enim, haveria uma ininidade de exemplos, não-moderna) implica centrar atenção à proli-
sando-se “um realista ingênuo, um positivista” instável nas controvérsias e nas operações oi- não? Quer dizer, a prática recintual, se assim feração cada vez maior dessas entidades mistu-
Colega: Eu sei, amigo, eu sei que parece ciosas de recinto quanto aquilo que se estabili- podemos conceituar, é uma prática comum en- radas, que estaria conhecendo um crescimento
contraditório, ou pior, conciliatório. Mas não zou – e nos mesmos recintos. tre nós, tão cotidiana e familiar que, talvez por em escala até então incomparável. Deixar de ser
é isso. Abolir os dualismos de que fala Latour Estudante: Perdão, mas o que você entende isso mesmo, não nos damos conta de seu valor, moderno, enim, é assumir a consciência de que
e outros autores desses que estamos estudando, por recinto? por assim dizer, cosmológico. É já um dado, a modernidade, como diferença lógica e históri-
abolir o Grande Divisor Natureza e Socieda- Colega: Eu estou pensando sobretudo nos que mal nos apercebemos dele. E não é uma ca em relação aos outros coletivos, nunca existiu
de, não é conciliar os termos opostos. Não há laboratórios... prática, penso eu, exclusiva das coisas e obje- de fato. É daí a sugestão de Latour em acom-
acordo com o Acordo Moderno. Parece bem Colega Brasileiro: Os laboratórios, sem dú- tos. Simetricamente, considerem o presídio, panhar etnograicamente a feitura dos fatos
que poderíamos aproximar a ANT de Latour, vida... Mas eu mesmo, permitam dizer, tenho o hospital, a escola ou o museu de artes: não (como os produzidos nos laboratórios cientíi-
o experimento de Strathern e a criatividade de pensado que podemos, senão devemos, expan- são recintos com semelhantes ou combinadas cos) para assim “traçar o espaço simétrico” que
Wagner nessa imperiosa necessidade de se des- dir essa noção de recinto, reconhecer nela um funções? Separa-se e contém-se o criminoso e o separa essas duas zonas ontológicas. Descrever
vencilhar das explicações prematuramente for- valor heurístico maior, e para além dos labora- louco, produz-se a criação de jovens educados e esse espaço é, segundo ele, a “tarefa da antropo-
madas, como o social, o natural, a cultura ou a tórios. Quero dizer: que são os recintos? Penso civis, distingue-se o que é arte daquilo que não logia do mundo moderno”. Aqui, em Políticas
sociedade, que no mais das vezes produzem tau- que é tudo aquilo cuja função é fechar, tal uma é. Mesmo a noção de cultura, como algo fe- da Natureza, ele reclama repetidas vezes pelo
tologias, barram as descrições, substancializam caixa, assim criando simultaneamente, no mes- chado e que fornece identidade aos que nela se abandono dos “conceitos antigos de política e
de antemão os agentes, julgam antes de descre- mo ato, um dentro e um fora. É aquilo então inscrevem, também aí não se manifesta o modo de natureza”. Eu leio para vocês: “as noções de
ver, cristalizam ou reiicam esses domínios de que serve para separar e conhecer agentes em recintual de pensamento e ação? natureza e de política já haviam sido desenha-
realidade, tornam as entidades incomensurá- situações controladas de misturas e puriicações Colega: Bem, pelo que sei, sua tese tem se das, ao longo dos séculos, para tornar impossível
veis e portanto mal comparadas. Essas estraté- sucessivas. Mas as misturas servindo para puri- encaminhado por essa, vamos dizer, heurística qualquer reconciliação, qualquer síntese, qual-
gias (modernas, diria Latour) fazem encarcerar icar. Um recinto serve para conter agentes, fa- dos recintos, não é? Você sabe, acho isso muito quer combinação entre os dois termos”. Ele fala
imediatamente as realidades nos impasses do zer com que eles ajam de modo sempre estável. interessante; mas voltemos às disputas entre na- aqui que, “desde o mito da Caverna, é a unidade
relativismo. As realidades, elas mesmas, são um Ou seja, um recinto deve conter ou controlar turalismo e sociologismo. Eu dizia que o ponto da natureza que produz todo o benefício polí-
produto do experimento antropológico – e não os processos de mudança e transformação. Se- de Latour, não custa insistir nisso, seria dar uma tico.” Para os modernos, então, a natureza, no
por isso menos reais, senão bem ao contrário. paração, controle, contenção, estabilização – mesma medida, uma mesma dignidade onto- singular, funda as políticas, no plural, como as
Colega Brasileiro: Pois é, seria menos real eis as funções de um recinto. Um recinto pode lógica e epistemológica à prática oiciosa, tal políticas fundam a natureza. “Jamais houve ou-
lançar mão de analogias, partilhar de nossos ser, por exemplo, um microtubo de laborató- como ocorre em relação à oicial. É isto que en- tra política senão a da natureza e outra natureza
“sistemas de signiicado” quando nos aven- rio, onde se deposita material genético, como tendo como a operação intelectual simétrica. É senão a da política.” Quer dizer, a natureza, no
turamos a compreender os outros modos de ainda uma sala de cultura, dentro também de não mais repartir entre domínios da sociedade singular, aparece como deinitivamente impró-
criatividade, como sugere Wagner? Para ele, um laboratório, ou um luxo laminar, onde se (o pólo das ciências sociais, humanidades) e do- pria para representar o global. Mas a cultura,

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também no singular, apresenta simetricamente realidade são sinônimos”. Mas, do modo como ostracismo. Só não devemos é começar com ela. tivo, como resultaria da crítica construtivista.
o mesmo problema. Daí que seja preciso, diz eu entendo, essa operação de simetrização no Assim também com a sociedade. A universali- Latour diz que a natureza, no singular, “nunca
ele, livrar-se da noção de “natureza já compos- interior da modernidade (que então deixa de dade dos fatos parece ocorrer na capacidade de foi estável”. Ora, o chamado aqui é por desesta-
ta, já totalizada, já instituída para neutralizar ser moderna), nos prepara para a antropologia extensão e estabilização das redes em que eles se bilizar o que antes era dado como estável (que
a política.” Livrar-se, portanto, do absoluto e comparada. Quer dizer, não devemos mais fa- enredam. Então, uma vez que acompanhamos é a natureza, previamente uniicada, mas tam-
transcendental. Romper com a reserva de ver- lar de sociedade – nem nossa, nem dos outros e descrevemos os fenômenos etnograicamen- bém a sociedade). Essa tarefa de estabilizar o
dades, fundar uma nova teoria da ciência, mas –, mas de coletivos, isto é, mistos de naturezas, te, empiricamente, tal como se formam e agem fato diria respeito a interiorizar o que, antes,
igualmente – ou melhor, simetricamente – uma no plural, e culturas, também no plural. Mas, em rede, tal como se estabilizam – mas esse era a realidade exterior. O “lá fora” das coisas,
nova teoria do social. querem saber?, nem plural nem singular; me é um processo, um trabalho, e não um dado isto sim deve ser abandonado. A realidade está
Estudante: Seja. Então nos livramos da po- convenço cada vez mais de que o melhor seria – aí poderemos até chamá-los, por que não?, dentro da caverna de Platão tanto quanto fora
lítica e da sociedade, de um lado, e da ciência se livrar de uma vez por todas desses conceitos de naturais ou sociais. Poderemos, inalmente, dela. Sim, a verdade existe.
e da natureza, de outro. Nos livramos desses já tão viciados de natureza e sociedade e cul- reencontrá-los em sua cristalina verdade, não Colega Brasileiro: “O que existe deve ser to-
conceitos totalizadores e icamos com os frag- tura, isso sim. A essa altura, são palavras que tenhamos vergonha de dizer. Sua evidente e mado a sério. Porque existe”, escreveu Mário de
mentos? A verdade ou o real não se apreende mais confundem do que ajudam. Eu exageraria demonstrada realidade. Vamos dizer assim: Andrade em seu idílio Amar, Verbo Intransitivo –
senão no fragmentário? É isso o que sugerem? dizendo que deviam até entrar para um índex quando as coisas se puriicam, seja em natu- um literato brasileiro não obstante modernista.
Colega: Se fosse assim reencontraríamos os intelectual. Mas o caso é que todos – nós e eles ral seja em social, elas se estabilizam, se fecham Colega: Mas, enim, acho que agora está claro
impasses pós-modernos e seus fragmentos de ver- – somos coletivos. Somos simetricamente co- em caixas-pretas, se tornam, para os moder- esse chamado de Latour para substituir a “socio-
dade, que nem sequer se juntam uns aos outros. letivos. Não é isto que ele chama de “a velha nos, uma verdade. Esse é o plano oicial. Penso logia do social” pela “sociologia das associações”,
Estudante: Lembro de o professor me expli- matriz antropológica”, esta a grande mensagem que a perspectiva moderna não o negaria. O esse recuperar os sentidos originais presentes na
car que o problema não é o de partir de um de Latour? O que está em pauta é recusar a co- problema está na assimetria que esta verdade fundação das ciências sociais, em especial pelas
ponto de vista subjetivo, mas o de icar nele, meçar a análise pelos pólos. Diz ele: “Os pólos assume quando é evocada como transcendente propostas de Gabriel Tarde – propostas, aliás,
isto é, se aferrar a ele e não conseguir, disse ele, não são mais o ponto de apoio da realidade, à outra que a constitui (a verdade da mistura logo subsumidas pelas de Durkheim, que se
“tornar-se apto a viajar de um quadro de re- mas sim resultados provisórios e parciais”. Daí e do instável, do controverso e dos fatos em tornaram então a versão oicial e operatória do
ferência para outro”. Embora injuriado, tive o que seja preciso, ele continua, “integrar o tra- construção). Mas para a perspectiva não-mo- conhecimento a respeito do que consiste e como
cuidado de anotar essa observação... balho de puriicação como um caso particular derna, essas ações anteriores à estabilização, e funciona a sociedade ou o social. Trata-se de
Colega: Como seja, eu acho que a questão de mediação”. que permanecem oiciosas para a epistemolo- substituir a tautologia durkheimiana, segundo a
não é totalizar ou destotalizar. Digamos de Colega Brasileiro: Sobre esse problema da gia moderna, são igualmente verdadeiras. Sem qual o social se explica pelo social, pelo “prin-
novo: em que consiste essa crítica simétrica? O constituição da realidade, eu li há pouco Paul uma, aliás, não é possível explicar a outra. Acho cípio de conexão” de Tarde, que toma o social
que a faz simétrica senão, justamente, a recusa Rabinow, no livro de ensaios Antropologia da que é nesse sentido que o professor lhe falou de como um “luido circulante” a ser seguido pela
de tomar sociedade e natureza separadamente? razão, que lembra o debate entre Foucault e ser um realista. Vendo simetricamente a partir investigação. Se tudo conectado (biologia, ele-
Este trecho de Jamais fomos modernos parece Chomsky a respeito da noção de natureza e sua do meio – e já abandonando a totalização nos trônica, mercado, artigos, inanciamentos, hu-
claríssimo: “A sociedade, como sabemos agora, relação com o domínio do humano. Foucault pólos, nos coletores, como diz ele –, as essências manos e não-humanos), agora não deveríamos
também é construída, tanto quanto a nature- entende que a boa pergunta não é sobre o que (natureza, sociedade) tornam-se acontecimen- mais falar do social como um domínio purii-
za. Se formos realistas para uma, devemos sê- há de natural no homem – o quanto há ou onde tos. Ora, acontecimentos não são pura realida- cado dos homens-entre-eles, tais os atores sociais
lo para a outro; se formos construtivistas para começa e onde termina –, mas sim sobre qual o de? Real, antes de tudo, é a ação. Rejeitar essas que a sociologia clássica sempre teve como ob-
uma, também devemos sê-lo para ambas” E funcionamento dessa concepção na nossa socie- verdades, denunciando-as como construídas, jeto, mas sim do coletivo, esse novo mundo que
um pouco adiante: “é preciso compreender ao dade. Isto não é perguntar-se sobre como uma já parecerá uma atitude tão ingênua ou insu- no entanto sempre existiu na versão oiciosa da
mesmo tempo como a natureza e a sociedade verdade se constitui? Eis aí, vamos reconhecer, iciente quanto tomá-las como dadas antes que modernidade. Não mais os homens-entre-eles
são imanentes – no trabalho de mediação – e outro modo de recusar a noção heurística de elas sejam trabalhosamente, digamos assim, das ciências humanas, nem as coisas-em-si das
transcendentes – após o trabalho de puriica- natureza humana. Não há natureza fora da po- dadiicadas – seja no trabalho de laboratório, ciências naturais – mas ambos e em formação
ção”. Já aqui não vamos ter diiculdade com a lítica, da história, da problematização. seja no da política. Depois de penosa labuta, simultânea, e não prematuramente dados. O
airmação dele em Relexão sobre o culto moder- Colega: Pensando bem, me redimo: talvez o dado é dadiicado. Quanto mais fabricado, social, como um todo (Durkheim), não deve ex-
no dos deuses fe(i)tiches: de que “construção e nem sequer devamos enviar a natureza para o mais objetivo ele se torna – e não mais subje- plicar a parte, mas a parte explicar o todo (Tarde,

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Latour). A inversão consiste portanto em partir interior dos próprios dados, postulando a exis- deliberadamente organizados, mas apenas evo- o pertencimento ao grupo, sobre a natureza
do menor para o maior. tência de grupos de descendência auto-eviden- cados por meio do uso de nomes. Trata-se, diz mesma dessa agregação.
Colega Brasileiro: Contra a noção durkhei- tes e ains, mas gradualmente deslocou-se em ele, de uma “sociedade automática”, que apare- Colega Brasileiro: Exato. Mas a segunda con-
miana de social, a propósito, podemos listar torno da posição de que os problemas básicos ce de repente numa forma concreta onde quer clusão, esta acho que vai além de Latour. Ela
Roy Wagner e seu texto de 1974. Acabei de i- eram conceituais e interpretativos. Com o es- que as distinções sejam feitas. O que podería- parece mais, vamos dizer, antropologicamente
char: “Are there social groups int the New Gui- truturalismo, no entanto, a antropologia social mos chamar de socialidade “permanente” existe interessada, e irá, quer me parecer, retumbar for-
nea Highlands?” É um texto, como A invenção reconheceu a importância de construir mode- como um contexto associativo (associational) temente em Strathern. Diz respeito a reconhe-
da cultura, que mais uma vez antecipa o centro los do “sistema nativo” e veriicar esses mode- luindo de uma ocasião ad hoc para outra. Mes- cer que nós somos tão criadores quanto os povos
nervoso das discussões que viriam adiante em los como modo de explicação. Era notável essa mo clã e comunidade, vejam vocês, não são gru- que estudamos. E, ponto capital, devemos ter
antropologia. Ali ele denuncia o determinis- projeção de uma “ordem” por parte do antropó- pos no sentido de construções deliberadamente consciência de nossa própria criatividade quan-
mo social a sustentar uma tal “natureza grupal” logo. Quer dizer, a ordem (o sistema, a estabili- organizadas ou ideologicamente regularizadas. do tentamos tomar consciência da deles. Ou
(groupiness) das interações humanas. Denuncia dade das relações, diríamos já...) era função do Termos como “clã” e “comunidade” podem ser seja, essa antropologia não pretende eliminar a
essa noção de sociedade fundada numa ciência processo antropológico de entendimento. Mas, úteis para se referir àqueles agrupamentos asso- criatividade do antropólogo ou de sua socieda-
da integração social, essa sociologia que está na pergunta-se Wagner, por que precisamos da no- ciativos desde que se tenha em mente que eles de. Já não é este um pressuposto do conheci-
base de uma antropologia social. Dado o im- ção de grupos para explicar a estrutura social? geralmente denotam associações “não-intencio- mento. Mas conhecer, isto sim, é um ato criativo
perativo do groupiness, da regularidade, ordem Claro, diz ele aqui à página 103: “nações, so- nais” deste tipo e que não tentemos torná-las e relativo. Diz Strathern que “conhecimento é
e leis e normas, lá foram os antropólogos atrás ciedades e grupos são a forma ou manifestação representações de nossos próprios corpos socio- um efeito de relações sociais”. Se somos nativos
do que preenchia essa função entre os nativos. social da dependência de ordem, organização e políticos. Tratam-se, ele continua, de sociali- – se assim se deseja e seja lá o que isso signiique
É daí a compreensão do parentesco como juris- estabilidade que permeiam toda nossa aborda- dade humana e relacionamento sem distinções – , então nós e eles devemos ser nativos. Se an-
prudência e economia corporada, o estudo dos gem do coletivo, entendida como um pressu- inerentes, cabendo às próprias pessoas fazer as tropólogos, devemos ser nós e eles antropólogos.
“sistemas de descendência” e das “instituições” posto não questionado”. Wagner propõe então distinções, embora no ato de fazer as distinções Eis aí um modo de repor a simetria, não?
formadas nas sociedades tribais pela transmis- desaiar o como se da antropologia sistêmica, a evoca-se também a socialidade. Ou seja, aí se Colega: Passo a entender que Wagner (ou
são de direitos e propriedade. O parentesco, e atitude dos antropólogos sociais britânicos e passa, diz Wagner, o oposto das formas ociden- conforme o lemos hoje), Strathern, Latour, Vi-
também a iliação, existiam para promover a so- dos estruturalistas franceses que presumem que tais, nas quais as pessoas fazem grupos por meio veiros de Castro, que eu conheça, respondem
lidariedade. Apesar do enfoque sobre os simbo- os nativos são como nós e, por isso, podemos de participação deliberada e, por isso, recorrem diretamente às problematizações pós-modernas
lismos, sobre as contradições e os paradoxos das entendê-los. Desaiar esse pressuposto era evi- às distinções “nacionais” e de “classe”. E aqui, ligadas aos limites da objetividade em ciências
sociedades nativas, enfoque que autores como tar uma perspectiva antropológica etnocêntrica, inalmente, duas conclusões muito importan- humanas. Parecem concordar com o diagnóstico
Mary Douglas e Victor Turner empreenderiam; que inadvertidamente toma nossos pressupostos tes. Primeiro, uma vez que o pesquisador esteja de falência da dicotomia sujeito/objeto ou socie-
apesar mesmo do enfoque sobre a reciprocidade culturais como parte do “modo como as coisas comprometido com um modelo, suas conclu- dade/natureza, mas discordam completamente
do estruturalismo de Lévi-Strauss, ainda assim, são”, “o modo como toda a humanidade pensa sões já estão de certo modo pré-determinadas. dos prognósticos. Em todos eles, a objetividade
diz Wagner, esses construtos mantinham, como e atua”. Era evitar, enim, airmar a prioridade Colega: Certo. Se Wagner descarta a cultura é recuperada na relação – acho que esse é o pon-
sorrateiramente, os aspectos “groupy” que carac- do modo de criatividade do antropólogo sobre como pressuposto, como assumption, “museu to. Um nativo relativo é um nativo que se faz na
terizaram o interesse da antropologia britânica o dos nativos. Diz ele que se estivermos com- de cera”, Latour descarta o social como dado. relação. É na relação que tanto o antropólogo
sobre a descendência. A cultura ou a sociedade prometidos em “encontrar” grupos, não vamos Sim, entendo que para Latour a questão sem- quanto o sujeito investigado, ambos se tornam
continuariam a ser vistos como representando ter problemas em supor que essas distinções pre deve ser isto que ele observa: “do que é ontologicamente sujeitos e epistemologicamente
algum tipo de ordem sistêmica – um sistema, se referem a grupos existentes empiricamen- feito o mundo social”. Nunca partir de concei- pensadores na relação. Como sujeitos, eles tanto
tanto para o funcionalismo como para o estru- te. Mas Wagner propõe tomar essas distinções tos já estabilizados, como grupos. Ou seja, o agem quanto conhecem. É como se diz: recu-
turalismo. Para Wagner, a tarefa da antropologia como elas se apresentam, isto é, como distin- cientista social não deve estabilizar de antemão perar a objetividade na relacionalidade – que é
seria descobrir algum tipo de ordem sistêmica, ções simplesmente, e não como grupos. Entre as conexões de seu objeto – e tampouco seu salvar, no limite, as condições próprias de pro-
seja no modo como a cultura “opera” (funcio- os Dairibi, por exemplo, ele faz notar que todo método. De perto, etnograicamente, é preci- dução do conhecimento. Acho essa uma mensa-
nalismo), seja na sua articulação conceitual ato, toda distinção delineia uma fronteira, e que so ver as controvérsias sobre a estabilidade do gem importante no perspectivismo de Viveiros
(estruturalismo). A antropologia social buscou esta fronteira é mais importante que as coisas grupo, as contradições e disputas e vozes disso- de Castro e nos experimentos das parcialidades
inicialmente descobrir essa ordem sistêmica no que ela diferencia. Os grupos, então, jamais são nantes entre os atores (agentes, actantes) sobre fractais de Strathern, suas ictions.

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Colega Brasileiro: Sim, e acrescento: se em dessa multiplicidade cujas diferenças devem ser agência para muito além da humana. Nele, monodológica dos seres, que por sua vez apare-
Wagner a cultura é uma invenção, tal um fe- tratadas justamente em suas diferenças, e não essa comunicabilidade fundamental entre ex- cem como compósitos de mônadas. Mas aqui
nômeno que ocorre no encontro (e o encontro ser reduzidas a unidades ou dualismos. Ou terior e interior, entre seres heterogêneos. Falo não há exterioridade entre as mônadas: elas se
entre antropólogo e nativo é apenas um caso lembremos o princípio de conexão do rizoma. de Monadologia e Sociologia. Desse Tarde que comunicam, se afetam. Assim o modo como a
particular de encontro), ela não é menos real De primeiro, pensei que a noção de mapa, de pretende, como diz aqui na página 58, uma memória é ativada: sempre despertada por ou-
por isso. Alistando Wagner, Stratherm, Deleu- Deleuze e Guattari, se ajustava à de rede de La- “interpretação sociológica de todas as coisas”. trem, evocada. Essa atenção sobre os elementos
ze e Guattari, acho que eles se põem de acordo tour. Mas depois iquei pensando que a noção Colega: Excelente. Ou tudo é social, ou heterogêneos que constantemente se agrupam
no que toca à empresa antropológica e a uma de rede em Latour parece pretender incorporar nada o é. Eis aí a pretensão de Latour – con- em formações sociais (ou melhor, associativas)
solução para o relativismo: em não evitar o tanto o princípio de conexão quanto o mapea- tinuada, como vemos – de estender o social já descarta uma homogeneidade já pronta,
confronto de conceitos. Seja no experimento mento dessas conexões. Bem, os próprios auto- para domínios além do humano ou da socie- como fosse pré-formada, tal entre humanos.
de Strathern, seja no “choque cultural” de que res de Mil platôs falam em rizoma como “rede dade moderna. Eis aí o imperativo de tornar Não é a homogeneidade – como a qualidade de
fala Wagner. Daí, para ele, o uso positivo das maquínica de autômatos initos”. Há ainda a socialmente compatíveis os objetos, as coisas, “social” – que garante a agregação, mas o con-
analogias – que é como traduzir os conceitos idéia da conexão de elementos heterogêneos os genes, os micróbios, as pedras, o petróleo, trário. Acho especialmente luminosa esta sua
–, buscar equivalentes entre modos de criati- – e aí podemos aproximar Latour, Deleuze e os discursos, os humanos e não-humanos. Sim, frase à página 69: “Temos, infelizmente, uma
vidade. Não é essa invenção a possibilidade de também Strathern. Há claramente o valor conferir agência aos não-humanos. Diz ele nes- tendência a imaginar homogêneo tudo aquilo
conhecimento de que ele fala? Não é assim que dado aos luxos. Para Deleuze e Guattari, os te seu novo livro: «Nós devemos estar prontos que ignoramos”. E segue: “Mas, por todos os
devemos entender a mensagem de que “a antro- luxos, os agenciamentos, seriam cristalizados para investigar a agência de todo tipo de obje- lados, sob o aparentemente indistinto, onde
pologia é sempre necessariamente mediadora”? em axiomas pelo capitalismo. Ora, se trocamos to». Sim senhor, página 76. um cientista escava, ele descobre tesouros de
E não é, enim, semelhante sugestão a de De- capitalismo pelos pólos puriicadores de que Colega Brasileiro: Pois! Quanto a Gabriel inesperadas distinções”.
leuze e Guattari quando falam em desterrito- fala Latour, as análises não se ajustam imedia- Tarde, conforme entendo, ele reduz a hetero- Colega: De novo, eis aí, tão claramente, Tar-
rializar um conceito de seu território de origem tamente? Também o corpo sem órgãos, ima- geneidade das coisas e dos seres ao espírito: a de em Latour: é a prática da ciência que faz
e reterritorializá-lo em outro domínio? Bom, é gem recorrente em Mil platôs, esse corpo sem crença, o desejo, a alma dos seres heterogêneos proliferar, que multiplica os seres no mundo.
verdade que eu mesmo tenho ainda diiculdades a organização totalitária, também essa imagem são semelhantes ou comensuráveis. Digo reduz, Relação é criação ontológica, é ontogênese...
em, vamos dizer, antropologizar o pensamento que recusa a parte e o todo não nos remete ao mas o melhor é dizer que assim ele compreende Colega Brasileiro: Eu dizia: é como se a he-
de Deleuze e Guattari, e acho que isso deve ser assunto do Partial Connections de Strathern? essa heterogeneidade. Daí, aliás e claramente, terogeneidade, então revelada por cada situação
experimentado com bastante cuidado, mas, em Aliás, um corpo sem órgãos me faz pensar num o interesse de Viveiros de Castro em recuperar relacional experimentada pelas entidades, guar-
todo caso, essa aproximação não faz sentido? corpo sem interioridade, e por isso capaz de Tarde. Justamente, o perspectivismo ameríndio dasse uma vocação para a ainidade, para a alian-
Colega: Bom, já que estamos nessa aventura se povoar de outros pontos de vista. Penso no supõe, conforme o autor o formaliza em nossos ça, para a relação, seja ela pacíica ou belicosa.
de aproximações, eu notaria que o movimento perspectivismo de que fala Viveiros de Castro a termos, reconhecer agência (isto é, intenção, Colega: Acho que é precisamente disso que
deleuziano do devir – então em contraposição respeito dos ameríndios. Enim, aqui devo ser crença, desejo, volição) em animais, plantas, estamos falando aqui: dessa preeminência da
à ilosoia do ser – parece deslocas o interes- mais cuidadoso e advertir que eu também es- coisas. O mundo é povoado de agência, espíri- relação e da diferença... Daí Latour citando Tar-
se para o meio e não mais para os pólos dos tou apenas tateando essas aproximações – tra- to, que é o dado comum – e não a natureza fria, de: ‘Existir é diferir; diferença, nesse sentido, é o
dualismos clássicos, tidos como pontos de par- balho minucioso, difícil, mesmo perigoso. Pra como o é para o moderno oicial. Com efeito, lado substancial das coisas, é o que elas mais têm
tida e chegada. Se é isso, é algo então muito começar, eu deveria ler todo o Mil Platôs – e Tarde imagina “elementos psíquicos escondi- em comum e o que as fazem mais diferentes’...
parecido com o que sugere Latour – se bem isso ainda aguarda tempo. dos” nos agentes. Desejos e crenças são “estados Colega Brasileiro: Sim, e mesmo a identidade
que a iliação aqui está mais de Latour para Colega Brasileiro: E não nos esqueçamos de da alma”, são “forças”, diz ele, que “produzem aparece aí como um mínimo de diferença. Tudo
Deleuze que o contrário. Aliás, Latour o con- Tarde. a sociedade”. Não um antropomorismo, mas se passa como se a diferença fosse o dado. Ele o
fessa explicitamente. Vocês sabem, ele diz que Colega: Antes que seja tarde demais... que um “psicomorismo inevitável”. A inteligên- diz explicitamente: “diversidade inata”, “diversi-
sua teoria-do-ator-rede bem poderia se chamar horas são? cia humana não passaria de um caso particu- dade elementar”. Tarde indica o social – sempre
“ontologia do actante rizoma”. De fato, lem- Colega Brasileiro: Não sei, mas antes tarde lar desse psiquismo universal. Daí conceber como ação, movimento – no heterogêneo, na
bremos a noção deleuziana de multiplicidade do que nunca – como deu nome ao livro um a volição de um protoplasma, de um esporo, diferença, no discordante. Esse mundo povoado
como algo que se faz, que se é agenciado, que colega brasileiro. Enim, é já em Tarde que co- mesmo que sejam entidades não organizadas. de mônadas parece feito muito mais de disputas
é trabalhado, e não dado; lembremos a noção nhecemos a sugestão de expandir a noção de Essa comensurabilidade é dada pela natureza e avidez por hegemonização do que de interação

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harmoniosa e ajuda mútua. “O ser é o ter”, diz Estudante: Muito bem, o postulado agora é estabelecidas para que elas se repitam, se repro- nos fenômenos observados”. Em todo caso,
Tarde. Donde “toda coisa deve ser ávida”. É a o da relação como dado. Ou do potencialmen- duzam, independentemente dos outros agentes. esta dicotomia, como dicotomia lexível, rever-
idéia de que “toda realidade tende a se universa- te relacional. Substitui-se então a sociedade Justamente, uma das partes deste novo livro de sa, avessa a essencializações e tipos ixos, já não
lizar”, diz ele à página 97. Daí a “disputa entre os pela socialidade, esta como um fundo virtual Latour versa sobre o como os atores se estabili- seria o bastante?
seres”, a “concorrência”. Ele certamente está dia- dado. O que há de absoluto é o relacionalismo, zam nas controvérsias. É estabilizar a ação dos Estudante: Pois bem, trata-se de reformar ao
logando com Darwin, mas diz ele, páginas 97 e pois não? Sim, mas isso só faz sentido porque agentes. Mas, pensando em Wagner, para toda mesmo tempo, simetricamente, objetividade e
98, que “isso não ocorre apenas com as espécies para todo dado há um construído, como vice- estabilização, uma contra-estabilização. Ou de relativismo pela via das descrições antropoló-
e as raças, mas também com as menores particu- versa. Não estaríamos aí novamente de volta às volta a Latour, por exemplo na página 32 de gicas. A verdade objetiva não deve ser o pon-
laridades quase invisíveis, inclusive as próprias dicotomias? Reassembling...: “Para cada grupo a ser deinido, to de partida, mas o de chegada. O ponto de
doenças de cada uma delas”. Ele fala, por exem- Colega Brasileiro: Seja, mas não são mais uma lista de anti-grupos é imediatamente insti- vista, de sua vez, deve ser capaz de se deslocar
plo, dos “germes ininitesimais”. De fato, não é dicotomias estanques, estabilizadas, duras, tuída”. Pense no exemplo do medicamento: só e se converter em outros pontos de vista. Essa
assim que as doenças – pensemos nos cânceres e prematuramente formadas, como naturais ou depois que a molécula passa pelos exaustivos e capacidade restauraria então o caráter profun-
suas metástases, por exemplo – se desenvolvem? sociais. demorados testes em laboratórios contra-place- damente relacional das entidades – coisas, pes-
As coisas se expandem, invadem, querem se re- Colega: Perfeito! Veja esta frase de Wagner bo, torna-se inalmente, se alcançar sucesso, um soas, seres etc. –, de modo a que o relativismo,
petir, querem ser imitadas, querem conquistar, que bem poderia ser de Latour: “Uma abor- medicamento estabilizado, uma molécula me- como me disse o professor, seja perfeitamente
atrair, irradiar, mas se contagiam umas nas ou- dagem dialética subverte tanto a subjetividade dicamentosa, como diz Phillipe Pignarre. Mas substituído por relatividade, essa operação que
tras durante os processos. As coisas se formam e quanto a objetividade em prol da mediação”. eis que, tão logo saia do recinto que o produziu admite as transferências, as viagens de um a
tendem a se propagar. A propaganda não apare- Colega Brasileiro: De mais a mais, os pólos e reencontre os agentes (sim, os agentes, e não outro ponto de vista, a comensurabilidade. As-
ce aí como uma tentativa de homogeneização? wagnerianos de dado e construído, se bem en- os pacientes), imediatamente retorna o efeito sim, os atores ganham o estatuto de actantes,
Mas é da natureza das próprias mônadas, diz ele, tendo, não são substantivos, idênticos a si mes- placebo, a sugestão, as variações imprevisíveis, tornam-se mediadores. Do contrário, os ato-
a tendência a se juntar. Sozinha, uma mônada mos ou ixos. Em Wagner, é conforme a cultura a volta do que seria, já nos termos antigos, o res não passariam de passivos intermediários,
nada pode. Uma ativa a outra... (no sentido que entende como universal do fe- contexto. Não é possível escolher entre estável e como marionetes monitoradas por esses con-
Colega: «Quem e o que está agindo quando nômeno humano, como prática constantemen- instável. Um existe pelo outro. ceitos previamente formados, o da Natureza e
‘nós’ agimos?», pergunta-se Latour à página 45 te inventiva, e não como tradição ixa ou museu Colega Brasileiro: Você veja, caro estudan- o da Sociedade, refratários às descrições como
de Reassembling... de cera) que um é inato para que o outro seja te, o que estamos agora tentando aproximar tais, e que só fazem resumir prematuramente,
Colega Brasileiro: Há entre as mônadas “ai- domínio da ação humana. É conforme, sobre- é a dialética inventiva de Wagner à prática si- e mal, o trabalho analítico, o conhecimento ele
nidades moleculares”. É daí que a relação apa- tudo, a situação. Para essas dicotomias, Wagner multânea de puriicação e mistura de Latour. mesmo. Os atores, assim, “eles simplesmente
rece como algo dado no mundo. propõe uma dialética, é verdade, mas uma dia- Num plano achatado, sem recorrer a explica- carregam a força”, como me disse o professor,
Colega: Deinitivamente, meus amigos, o lética sem superação, sem um tercius transcen- ções históricas e com um postulado sociológi- são apenas efeitos de um potencial dado, não
social não pode mais ser postulado. Tampouco, dente, um Leviatã, um tal deus epistemológico co minimalista (numa palavra, esse da Relação importando a concretude do que realizam na
é claro, o natural. E menos ainda assimetrica- a quem caberia a decisão e o julgamento sobre criadora como um dado), noto que também prática da ação. O resultado, no mais das vezes,
mente – um existindo externamente ao outro. a natureza das ontologias. Uma invenção gera Gabriel Tarde poderia se emparelhar nesta forte é a ingerência assimétrica da ciência na política
Contra o construcionismo social, um cons- necessariamente uma contra-invenção... sugestão, segundo a qual uma prática cria ime- e da política na ciência.
trucionismo simétrico, generalizado. “‘Cons- Colega: Assim precisamente a puriicação diatamente outra prática contrária, de que para
trutivismo’ não deveria ser confundido com que gera o híbrido – um devendo a existência ao toda invenção há uma contra-invenção. Assim, Enquanto o estudante retomava a fala, os co-
‘construtivismo social’”, diz Latour na página outro. Do mesmo modo, o inato e o artiicial, e diz Tarde, à página 71, sobre as leis: “quanto legas pareciam se admirar com essa síntese talvez
91 de seu novo livro. Digamos de uma vez por assim por diante.... Quer dizer, basta relacionar mais ixas e uniformes, mais elas conseguem inesperada do dedicado aluno da London School.
todas: a presença do social ou do natural tem (interagir, combinar, misturar) para que aquilo diversiicar os espíritos”. Ou ainda o belíssimo Diante de tal resumo, só faziam acenar positiva-
que ser demonstrada a cada empreita. que era estável, no mundo moderno, torne-se exemplo que relaciona o poeta à sua língua. A mente – e de muito bom grado –, tal o mestre que,
instável. Nossa ciência, nossos laboratórios não subversão da poesia passa pela subversão da or- não sem certa presunção e autoridade, espanta-se
Nesse momento, o estudante, que há um quar- seriam como uma prática fractal desse mundo dem gramatical. Do mesmo modo quando diz, com a performance imprevista, mas agradavel-
to de hora permanecera calado, resolve despertar identitário? Ora, o que se quer ali é ixar identi- página 76, que “quanto mais nos aproximamos mente concordante, do discípulo.
da aparente modorra e intervém: dade às coisas e seres. Fixar o sentido das relações do elemento individual, mais há variabilidade

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Estudante: De todo modo, vocês parecem terrível ponto de vista da externalidade? Sim, me à sua preferência sexual – mas vamos zom- quedaram-se calados, acompanhando com ar de
muito ainados com essas novas teorias da ação, a desterritorialização é uma imagem fulguran- bar deles, de sua formação groupiness, quando estupor a brusca saída do amigo. Quis parecer
sem dúvida, e não escondo que, também eu, te e mesmo libertadora. Mas, vocês mesmo o saem às ruas contra a discriminação, ou vamos que, repentinamente, a perturbação havia mu-
ico impactado. Sim, tenho aprendido muito diriam, que seria da desterritorialização sem a engrossar essas ileiras? O fermento de Pasteur dado de dono.
recentemente. Fico desde já muito grato por territorialização? Está tudo certo: uma coisa só não nasceu fermento – mas alguém espera que
esta noite, estes esclarecimentos after hours. existe na relação com sua, digamos, contra-coi- ele não funcione como tal quando agora dele Nota do autor
Digo isso sem ironia. Mas, está bem, os acon- sa. Que seria da libertação sem os constrangi- nos servimos? Eu não sei, meus caros colegas, Este texto tem uma dupla origem. Nasce da
tecimentos, os deslocamentos de que me falou mentos, os limites? No abecedário de Deleuze é bem possível que eu esteja sendo conservador leitura de “On the Diiculty of Being an ANT:
o professor, a ação – isso então é o que deve – eu tenho aqui –, ele mesmo diz que “não há ou tenha diiculdades em apreender rapida- An Interlude in the Form of a Dialog”, capítulo
merecer a atenção do investigador. O que há território sem um vetor de saída do território, mente essas reformas ou revoluções do conhe- constante do livro Reassembling the Social: An
de novo? – eis a pergunta de ouro, não é? O e não há saída do território, ou seja, desterri- cimento, mas, para parafrasear a “slowciology” Introduction to Actor-Network-heory (New
professor me disse: “informação é transforma- torialização, sem, ao mesmo tempo, um es- de Latour, acho que preiro ir devagar. Enim, York, Oxford University Press, 2005), de Bruno
ção”; “se eles agem, eles deixam algum rastro”; forço para se reterritorializar em outra parte”. agora devo mesmo ir para casa. Não precisamos Latour, a quem desde já agradeço pela inspira-
“por deinição, ação é deslocamento”. A natu- Ótimo!, mas como podemos supervalorizar terminar este diálogo concordando uns com os ção. E nasce do curso “Simetria, Reversibilidade
reza dos grupos, das ações, dos objetos e dos o movimento – as “velocidades” deleuzianas outros, subjugados por um Sócrates tirânico. e Relexividade na Antropologia Contemporâ-
fatos deve ser eleita como fonte de incerteza. – negando as paradas, a ação ixa, regular, idên- Felizmente, este não é um diálogo platônico. nea”, oferecido no primeiro semestre de 2006
É preciso manter uma “constante incerteza a tica a si mesma? Qual movimento sem a ixi- Desculpem, mas é hora de cortar a rede... ao Departamento de Antropologia Social/USP,
respeito da natureza íntima das entidades”. Os dez? Uma criação não se contra-cria? Por que por Márcio Goldman (PPGAS/MN-UFRJ), a
rastros, esses movimentos que fazem os agentes negar a ação que permanece estável e não cria E assim partiu o estudante. Ia já bastante quem agradeço o incentivo para a publicação
moverem em rede, são tudo o que temos para novidades? Só o que se mostra diferente merece cansado por esse inadvertido after hours de calo- e a generosa leitura que fez da primeira versão
documentar, registrar, seguir, descrever, conhe- novas descrições? Ou ainda: quando Deleuze e rosa discussão, mas, qual paradoxo, seu semblan- deste texto. Agradeço também a Renato Sztut-
cer. Nada mais. Que seja! Mas agora, notem, Guattari se referem à “multiplicidade domes- te parecia bem menos perturbado do que quando man (Unifesp) e Gabriel Barbosa pelos comen-
eu já me pergunto sobre tudo aquilo que se re- ticada”, não estariam tratando da operação de saíra da sala do professor. Seus colegas, que ain- tários minuciosos e sempre ediicantes que
pete, que não muda de natureza, tudo aquilo estabelecer unidades, uniicar, ixar a ação dos da estenderiam os estudos madrugada afora, gentilmente izeram do texto.
que não deixa novos rastros para a investigação. agentes? Também assim a relação constitutiva
Ainal, não vivemos num mundo de fenôme- entre o molecular e o molar, a interioridade
nos estáveis, de seres que procuram ser idênti- e a extensão, a matilha e a massa, o devir e a
cos a si mesmos, que reclamam identidade, esse identidade. Pergunto se é possível reconhecer a autor Stelio Marras
mundo moderno, ocidental, euro-americano? produtividade de um contra a do outro. Since- Doutorando em Antropologia Social / USP
Nós não fomos sempre modernos? Querem ramente, alguém aqui está disposto a abrir mão Co-editor da revista Sexta Feira – Antropologias, Artes e Humanidades
me dizer que deixamos de sê-lo? A ação que da ordem estável das coisas? Que mundo seria
esperamos, da natureza-via-ciência ou da socie- esse? Pelo menos quanto a nós, modernos que Recebido em 15/11/2006
dade-via-política – pra não dizer da economia, somos, pergunto: como recusar as ontologias Aceito para publicação em 15/12/2006
da medicina, das organizações, tais a que eu que nos cercam e que nos fazem? Ainda que se-
estudo – não é uma ação estável? Não é assim jamos seres duros, ixos, identitários, unos, que
que funcionamos? Para dizer a verdade, não sei sejamos mármore e não murta, como recusar
bem que novo mundo – ontológico, epistemo- essas agências, que aliás são tão eicazes? A ação,
lógico – é esse, o não-moderno, que se quer sobretudo em nosso mundo, não depende da
vislumbrar. Qual Moisés e sua Terra Prometi- ixação de ontologias, dos agentes puriicados,
da? A propósito, a perspectiva do não-moder- de conexões estabilizadas? O que há de errado
no, tal um ponto de vista que se arvora capaz conosco? O negro, é claro, não se vê como ne-
de denunciar a perspectiva moderna, não repõe gro o tempo todo – mas por isso vamos negar a
ela mesma a tão malfadada transcendência, o ação do movimento negro? O gay não se resu-

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comissões editoriais

Edições números 1 (1991) a 13 (2005).

1.
Cristina Redko, Heloisa Buarque de Almeida, Luis Donizete Benzi Grupioni, Luiz Eduardo Lacerda de Abreu, Marina Albuquerque Mendes
da Silva, Omar Ribeiro Thomaz, Zulmara Salvador.

2.
Alvaro Banducci Jr., André Pinto Pacheco, Heloisa Buarque de Almeida, Lídia Marcelino Rebouças, Luciana Ferreira Moura Mendonça,
Marina Albuquerque Mendes da Silva, Omar Ribeiro Thomaz, Piero de Camargo Leirner, Yara Schreiber.

3.
André Pinto Pacheco, Andréa Bueno Buoro, Heloisa Buarque de Almeida, Lídia Marcelino Rebouças, Luciana Ferreira Moura Mendonça,
Luiz Henrique de Toledo, Marcos Pereira Ruino, Omar Ribeiro Thomaz, Yara Schreiber.

4.
André Pinto Pacheco, Andréa Bueno Buoro, Luiz Henrique de Toledo, Piero de Camargo Leirner, Yara Schreiber.

5/6.
Alessandra El Far, Carlos Machado Dias Jr., Edgar Teodoro da Cunha, Fraya Frehse, Gabriel Coutinho Barbosa, Luiz Henrique de Toledo,
Marcos Pereira Ruino, Piero de Camargo Leirner, Ronaldo de Almeida, Rose Satiko G. Hikiji.

7.
Alessandra El Far, Carlos Machado Dias Jr., Edgar Teodoro da Cunha, Fraya Frehse, Marcos Pereira Ruino, Ronaldo de Almeida, Rose
Satiko G. Hikiji.

8.
Alessandra El Far, Ana Paula Mendes de Miranda, Andréa Marques Barbosa, Edgar Teodoro da Cunha, Fraya Frehse, Melvina Afra Mendes
de Araújo, Ronaldo de Almeida.

9.
Alecsandro J. P. Ratts, Ana Paula Mendes de Miranda, Andréa Marques Barbosa, Edgar Teodoro da Cunha, Fraya Frehse, Janine Helfst
Leicht Collaço, Melvina Afra Mendes de Araújo.

10.
Ana Paula Mendes de Miranda, Francirosy Campos Barbosa Ferreira, Janine Helfst Leicht Collaço, Melvina Afra Mendes de Araújo, Ron-
aldo Trindade.

11.
Carolina de Camargo Abreu, Francirosy Campos Barbosa Ferreira, Janine Helfst Leicht Collaço, Joana Tuttoilmondo, José Ronaldo Trin-
dade, Ugo Maia Andrade, Vania Feichas Vieira.

12.
Carolina de Camargo Abreu, Francirosy Campos Barbosa Ferreira, Francisco Simões Paes, Janine Helfst Leicht Collaço, Joana Tuttoilm-
ondo, José Ronaldo Trindade, Ugo Maia Andrade, Vania Feichas Vieira.

13.
André-Kees de Moraes Schouten, Cecília Rodriguez Sant’Ana, Daniela do Amaral Alfonsi, Danilo Paiva Ramos, Érica Peçanha do Nas-
cimento, Francisco Simões Paes, Íris Morais Araújo, Isabela Oliveira, Lílian Sales, Maíra Santi Buhler, Rachel Rua Baptista, Rafaela de
Andrade Deiab.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006


nominata de pareceristas números anteriores

Edições números 12 (2004), 13 (2005) e 14/15 (2006).

Nome Filiação Institucional Titulação Nº 13 (2005) TRADUÇÕES


Ana Cláudia Marques USP Dra. em Antropologia Social Apresentação: Jeanne Favret-Saada, os Afetos, a Et-
Ana Lúcia Pastore Schritzmeyer USP Dra. em Ciências Sociais (Antropologia Social) ARTIGOS E ENSAIOS nograia
Bianca Freire-Medeiros UERJ Dra. em História e Teoria da Arte e da Arquitetura Vestindo o jaleco: relexões sobre a subjetividade e a Marcio Goldman
Carlos Sandroni UFPE Dr. em Musicologia posição do etnógrafo em ambiente médico
Carlos Steil UFRGS Dr. em Antropologia Social Lilian Krakowski Chazan “Ser afetado”, de Jeanne Favret-Saada
Carmem Rial UFSC Dra. em Antropologia Social / Pós-doutorado
Célia Maria Marinho de Azevedo UNICAMP Dra. em História Tradução de Paula Siqueira
Celso Azzan Jr. UNICAMP Dr. em Ciências Sociais / Pós-Doutorado Os caminhos da memória
Clarice Cohn FESPSP Dra. em Ciências Sociais (Antropologia Social) Maria Angela Gemaque Álvaro Apresentação: Victor Turner e a antropologia da ex-
Clarice Peixoto UERJ Dra. em Antropologia e Antropologia Visual / Pós-Doutorado periência
Daniela Riva Knauth UFGRS Dra. em Etnologia e Antropologia Social Ipanema e suas modas: passado x presente John C. Dawsey
Deise Lucy Oliveira Montardo UFSC Dra. em Ciências Sociais (Antropologia Social) Marisol Rodriguez Valle
Maria Denise Fajardo Grupioni NHII/ USP Dra. em Ciências Sociais (Antropologia Social) “Dewey, Dilthey e Drama: um ensaio em Antropo-
Edilene Cofaci de Lima UFPR Dra. em Ciências Sociais (Antropologia Social) Filhos do Rei Sebastião, Filhos da Lua: construções logia da Experiência”, de Victor Turner
Edward MacRae UFBA Dr. em Ciências Sociais (Antropologia Social)
simbólicas sobre os nativos da Ilha dos Lençóis Tradução de Herbert Rodrigues
Elizabeth Travassos Lins UNIRIO Dra. em Antropologia Social
Ellen Woortmann UNB Dra. em Antropologia Social Madian de Jesus Frazão Pereira
Elsje Maria Lagrou UFRJ Dra. em Antropologia Social RESENHAS
Esther Jean Langdon UFSC Dra. em Antropologia Social / Pós-Doutorado Nhanhembo’é: Infância, educação e religião entre he Time and the Other: how anthropology makes its
Etienne Samain UNICAMP Dr. em Ciências Teológicas e Religiosas / Pós-Doutorado os Guarani de M’Biguaçu, SC object, de Johannes Fabian
Fernanda Peixoto USP Dra. em Ciências Sociais (Antropologia Social) Melissa Santana de Oliveira Ronaldo Lobão
Fernanda Telles Marques UNIUBE Dra. em Sociologia
Heloísa Pontes UNICAMP Dra. em Sociologia / Pós-Doutorado Olonti e o castigo da festa errada: relações entre O grande mediador: Chico Xavier e a cultura brasilei-
Izabel Missagia de Mattos UCG Dra. em Ciências Sociais mito e ritual entre os Paresi ra, de Bernardo Lewgoy
John Cowart Dawsey USP Dr. em Antropologia / Livre-docente
Renata Bortoletto Silva Marcelo Tadvald
John Manuel Monteiro UNICAMP Dr. em História / Livre-docente
Jorge Villela UFSCAR Dr. em Antropologia Social
Julio Assis Simões USP Dr. em Ciências Sociais Relendo Walter Benjamin: etnograia da música, INFORME
Lilia Katri M. Schwarcz USP Dra. em Antropologia Social / Livre-docente disco e inconsciente auditivo Os circuitos do NAU: informe das atividades de-
Luciana Teixeira Andrade PUC MINAS Dra. em Sociologia André-Kees de Moraes Schouten & Giovanni Ci- senvolvidas pelo Núcleo de Antropologia Urbana
Luciana Hartmann UFSM Dra. em Antropologia Social rino da USP
Luiz Henrique de Toledo UFSCAR Dr. em Ciências Sociais (Antropologia Social)
Marcio Goldman MN/ UFRJ Dr. em Antropologia Social Imagens perigosas: a possessão e a gênese do cinema
Márcio Ferreira da Silva USP Dr. em Antropologia Social de Jean Rouch Nº 12 (2004)
Maria Cláudia Pereira Coelho UERJ Dra. em Sociologia
Maria Filomena Gregrori UNICAMP Dra. em Antropologia Social / Pós-Doutorado Renato Sztutman
Mariza Corrêa UNICAMP Dra. em Ciência Política ARTIGOS
Mariza Peirano UNB Dra. em Antropologia Social / Pós-Doutorado ARTES DA VIDA Nova sociedade emergente: consumidores de pro-
Marta Amoroso USP Dra. em Ciências Sociais (Antropologia Social) / Pós-Doutorado Escrita urbana: a pixação paulistana dutos ou produção discursiva?
Paula Montero USP Dra. em Antropologia / Livre-docente Alexandre Barbosa Pereira Diana Nogueira de Oliveira Lima
Peter Fry UFRJ Dr. em Antropologia Social
Rafael José dos Santos UCS Dr. em Ciências Sociais ENTREVISTA Os peregrinos ecléticos cristãos
Rita Amaral NAU/ USP Dra. em Ciências Sociais (Antropologia Social) / Pós-Doutorado Entrevista com Peter Fry Gláucia Buratto Rodrigues de Mello
Stelio Marras PPGAS/USP Doutorando em Ciências Sociais (Antropologia Social) Daniela do Amaral Alfonsi, Íris Morais Araújo, Lí-
Tânia Stolze Lima UFF Dra. em Antropologia Social
Vagner Gonçalves da Silva USP Dr. em Ciências Sociais (Antropologia Social) lian Sales, Rachel Rua Baptista e Rafaela de Andra- Rompendo tabus: a subjetividade erótica no traba-
de Deiab lho de campo
Luiz Fernando Rojo

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006
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Construindo narrativas orais: interações sociais no Catolicismo, massa e revival: Padre Marcelo Rossi e Um grande atrator: toré e articulação (inter)étnica As práticas e os cuidados relativos à saúde entre os
trabalho de campo o modelo kitsch entre os Tumbalalá do sertão baiano Karipuna do Uaçá
Marilda A. Menezes, Lídia M. Arnaud Aires, Maria Sílvia Regina Alves Fernandes Ugo Maia Andrade Laercio Fidelis Dias
R. de Souza
ARTES DA VIDA ARTES DA VIDA Militância na cabeça, direitos humanos no coração
O altar no laboratório: a ciência e o sagrado no pro- Entre arabescos e mesquitas Fotos de Luiz de Castro Faria e os pés no sistema: o lugar social do advogado po-
jeto genoma humano Francirosy Campos Barbosa Ferreira pular
Guilherme José da Silva e Sá ENTREVISTA Laura D. von Mandach
ENTREVISTA Entrevista com Luiz de Castro Faria
Processo criativo e apreciação estética no graismo Entrevista com Mariza Corrêa Ana Paula Mendes de Miranda e Melvina Afra Aprendendo novas formas de representação polí-
Wauja Carolina Abreu, Francirosy Ferreira, Francisco Paes, Mendes de Araújo tica: as inter-relações entre cursos de formação de
Aristóteles Barcelos Neto Janine Collaço, Ronaldo Trindade e Ugo Maia professores Waiãpi e o Conselho APINA
TRADUÇÃO Silvia L. da S. Macedo Tinoco
ARTES DA VIDA TRADUÇÃO Apresentação: Sylvia Caiuby Novaes
Dádivas da oleira navegante: ensaio fotográico so- Apresentação: Roger Bastide e questões de mudança ARTES DA VIDA
bre a cerâmica Wauja cultural Estruturas elementares de reciprocidade: uma nota Artefatos dos povos indígenas do Oiapoque, Amapá
Aristóteles Barcelos Neto Fernanda Arêas Peixoto comparativa sobre o pensamento sócio-político nas Miguel Pacheco Chaves
Guianas, Brasil Central e Noroeste Amazônico, de
TRADUÇÃO Sociologia das Mutações Religiosas, de Roger Bastide Joanna Overing ENTREVISTA
Apresentação: Cliford Geetz e o “selvagem cere- Tradução de Rita de Cássia Amaral Tradução de Renato Sztutman Entrevista com Lux Vidal
bral”: do mandala ao círculo hermenêutico Alecsandro J. P. Ratts, Fraya Frehse, Janine H. L.
John C. Dawsey RESENHAS RESENHAS Collaço e Melvina A. M. de Araújo
Ecologia Humana, de Daniel E. Brown e Edward Punir os pobres: a nova gestão da miséria nos Estados
O Selvagem Cerebral: sobre a obra de Claude Lévi- Kormondy Unidos, de Loïc Wacquant TRADUÇÃO
Strauss, de Cliford Geertz Ana Beatriz Miraglia e Joana Cabral de Oliveira Antônio Rafael Apresentação: Marshall Sahlins ou por uma antro-
Tradução de Antonio Maurício Dias da Costa pologia estrutural e histórica
Art and Agency: an Anthropological heory, de Alfred O Mundo das calçadas: por uma política democrática Lilia Moritz Schwarcz
Gell de espaços públicos, de Eduardo Yázigi
Nº 11 (2003) Aristóteles Barcelos Neto Fraya Frehse Antropologia e história em Marshall Sahlins: “In-
trodução” e “Conclusão” de Historical Metaphors
ARTIGOS COMUNICAÇÕES E INFORMES and Mythical Realities, de Marshall Sahlins
Considerações sobre a diplomacia num encontro Nº 10 (2002) Informe sobre teses e dissertações defendidas no Tradução de Fraya Frehse
etnográico Departamento de Antropologia da USP: janeiro de
Cristina Patriota de Moura ARTIGOS 2001 a dezembro de 2001 RESENHAS
Narrativas e o modo de apreendê-las: a experiência A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração
Amazônia em movimento: “redes” e percursos entre entre os caxinauás cultural no nordeste indígena, de João Pacheco de
os índios Ye’kuana, Roraima Eliane Camargo Nº 9 (2000) Oliveira (org.)
Elaine Moreira Lauriola Melvina Afra Mendes de Araújo
O Nome “Índio”: patronímico étnico como supor- ARTIGOS
Analogismo: a natureza do social te simbólico de memória e emergência indígena no Noções sociais de infância e desenvolvimento in- Oktoberfest: turismo, festa e cultura na estação do chopp,
Gilton Mendes dos Santos Médio Jequitinhonha – Minas Gerais fantil de Maria Bernadete Ramos Flores
Izabel Missagia de Mattos Clarice Cohn Sidney Antonio da Silva
Uma faxina na identidade de imigrantes brasileiras
Soraya Fleischer Etnias de fronteira e questão nacional: o caso dos Elipses temporais e o inesperado na pesquisa etno- COMUNICAÇÕES E INFORMES
“regressados” em Angola gráica sobre crise e medo na cidade de Porto Alegre Informe sobre teses e dissertações defendidas no
A propósito dos 500 anos do Brasil: Saudações a Luena Nascimento Nunes Pereira Ana Luiza Carvalho da Rocha e Cornelia Eckert Departamento de Antropologia da USP: setembro
Oxalá e ao Senhor do Bonim no sertão de Minas de 1999 a outubro de 2000
Gerais Atores/Autores: histórias de vida e produção acadê- A natureza da fartura
Rubens Alves da Silva mica dos escritores da homossexualidade no Brasil Flávia Maria Galizoni
José Ronaldo Trindade

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 375-382, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 375-382, 2006
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Nº 8 (1999) COMUNICAÇÕES E INFORMES ves: the anthropologist as author, de Cliford Geertz Entre largo e praça, matriz e catedral: a Sé nos car-
Direito, política e meio ambiente: diálogos entre a Tradução de Fraya Frehse tões-postais paulistanos
ARTIGOS Antropologia e a Ciência Política no NUFEP/UFF Fraya Frehse
A irmandade em redeinição: tensões entre tradição Roberto Kant de Lima RESENHAS
e coletivização num grupo camponês Diário no sentido estrito do termo, de Bronislaw Ma- Representações depreciativas e espaços: notas sobre
Alessandra Schmitt Informe sobre teses e dissertações defendidas no linowski um estudo de caso
Departamento de Antropologia da USP: outubro Vagner Gonçalves da Silva Maria das Graças Furtado
Soltando o Leão: observações sobre as práticas de de 1998 a agosto de 1999
iscalização do Imposto de Renda Woman in the ield: anthropological experiences, de Da raça à identidade: da disputa por paradigmas na
Ana Paula Mendes de Miranda Peggy Golde (ed.) ciência do outro
Nº 7 (1998) Heloisa Buarque de Almeida Andreas Hofbauer
Almofala dos Tremembé: a coniguração de um ter- A heresia dos índios: catolicismo e rebelião no Brasil
ritório indígena ARTIGOS colonial, de Ronaldo Vainfas ENTREVISTA
Alecsandro J. P. Ratts Imposto de Renda e contribuintes de camadas mé- Marcos Pereira Ruino Falando de Antropologia
dias: notas sobre a sonegação Entrevista com Roberto Cardoso de Oliveira
De festas, viagens e xamãs: relexões primeiras sobre Ciméa Bevilaqua COMUNICAÇÕES E INFORMES Luís Donizete Benzi Grupioni e Maria Denise Fa-
os encontros entre Waiãpi setentrionais meridionais Extrativismo mineral por e para comunidades indí- jardo Grupioni
na fronteira Amapá-Guiana Francesa O Antropólogo no campo da justiça, o investigador genas da Amazônia: a experiência do garimpo entre
Renato Sztutman e a testemunha ocular os Waiãpi do Amapá e os Kaiapó do sul do Pará TRADUÇÃO
Joana Domingues Vargas Terence Turner Édipo e Jó na África Ocidental, de Meyer Fortes
Os peões de gado e a representação dos animais no Tradução de Samuel Titan Jr.
Pantanal da Nhecolândia A formação de um grupo de imortais nos primeiros Informe sobre teses e dissertações defendidas no
Álvaro Banducci Júnior anos da República Departamento de Antropologia da USP: setembro RESENHAS
Alessandra El Far de 1997 a setembro de 1998 Em busca da China Moderna, de Jonathan Spence
ENTREVISTA Marcos Lanna
Entrevista com Alba Zaluar Trocas, facções e partidos: um estudo da vida políti- Under the rainbow. Nature and supernature among
Alessandra El Far, Ana Paula Mendes de Miranda, ca em Araruama-RJ Nº 5-6 (1995-1996) the Panare Indians, de Jean-Paul Dumont
Edgar Teodoro da Cunha, Fraya Frehse, Melvina Ana Cláudia Coutinho Viegas Renato Sztutman
Mendes de Araújo e Ronaldo R. M. de Almeida Antropólogos vão ao cinema: observações sobre a ARTIGOS
constituição do ilme como campo Do velho ao antigo: etnograia do surgimento de A trama das imagens, de Paulo Menezes
TRADUÇÃO Rose Satiko Gitirana Hikiji um patrimônio Rose Satiko Gitirana Hikiji
Apresentação: A casa Kabyle na perspectiva estrutu- Bernardo Lewgoy
ralista de Pierre Bourdieu Cidadania e práticas sociais: as disputas entre em- A vez e a voz do popular: movimentos populares e
Paula Montero pregadas e empregadores domésticos pela mediação Classiicações êmicas da natureza: a etnobiologia no participação política no Brasil pós 70, de Ana Maria
do sindicato Brasil e a socialização das espécies naturais Doimo
A casa kabyle ou o mundo às avessas, de Pierre Eduardo Carrara Carolina Moreira Marques
Bourdieu ENTREVISTA
Tradução de Claude G. Papavero Entrevista com Ruth Cardoso Poder criativo e domesticação produtiva na estética COMUNICAÇÕES E INFORMES
Alessandra El Far, Carlos Machado Dias Jr., Edgar piaroa e kaxinwá Imagens e o olhar das Ciências Sociais: a trajetória
RESENHAS Teodoro da Cunha, Fraya Frehse e Ronaldo R. M. Elsje Maria Lagrou do GRAVI
Tremembé, Torém, Etnicidade e Campo Indigenis- de Almeida Edgar Teodoro da Cunha
ta, de Gerson Augusto Oliveira Júnior Metáforas convencionais & atribuição de crenças
Luena Nascimento Nunes Pereira DEBATE Paulo A. G. Sousa Informe sobre teses e dissertações defendidas no
A responsabilidade ética e social do antropólogo Departamento de Antropologia da USP: 1995 a
Antropologia urbana. Cultura e sociedade no Brasil Dominique Gallois, Mariana K. L. Ferreira e Vag- A metáfora do olhar em Janela indiscreta, de Alfred 1997
e em Portugal, de Gilberto Velho (org.) ner Gonçalves da Silva Hitchcock
Alessandra El Far José de Souza Martins
TRADUÇÃO
Os dilemas do antropólogo entre “estar lá” e “estar Quando o Metro era um palácio: salas de cinema e
aqui”: primeiro e último capítulo de Works and li- modernização em São Paulo
Heloísa Buarque de Almeida
cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 375-382, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 375-382, 2006
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Nº 4 (1994) RESENHAS Durkheim: uma análise dos fundamentos simbó- Da exclusão à participação: o movimento social dos
No encalço da luta cidadã licos da vida social e dos fundamentos sociais do trabalhadores atingidos por barragens
ARTIGOS Privado porém público: o terceiro setor na América La- simbolismo Lidia Marcelino Rebouças
Katukina, Yawanawa e Marubo: desencontros míti- tina, de Rubem César Fernandes Heloísa Pontes
cos e encontros históricos Marcos Pereira Ruino Tribos urbanas: metáfora ou categoria?
Edilene Cofaci de Lima TRADUÇÃO José Guilherme Cantor Magnani
As redes e o cotidiano em Laboratory Life Apresentação: Introdução: a questão colonial revi-
Antropólogos e seus Sortilégios: uma releitura do Laboratory Life: he construction of scientiic facts, de sitada Dilemas da modernidade no mundo contemporâneo
“Esboço de uma teoria da magia” de Mauss e Hu- Bruno Latour & Steve Woogar Paula Montero Paula Montero
bert Luís Eduardo Lacerda de Abreu
Emerson Alessandro Giumbelli A noção de situação colonial, de Georges Balandier Ficção cientíica: um mito moderno
Os Bororo e a Igreja Católica: paradoxos da identi- Tradução de Nicolás Nyimi Campanário Piero de Camargo Leirner
O Pluralismo Médico Wayana-Aparai: a intersecção dade vistos em um caleidoscópio
entre a tradição local e a global Jogo de espelhos: imagens da representação de si através ENTREVISTA Lógica e racionalidade em Lévi-Strauss
Paula Morgado dos outros, de Sylvia Caiuby Novaes Entrevista com George Marcus Felipe Soeiro Chaimovich
Ana Lúcia Marques Camargo Ferraz Heloísa Buarque de Almeida, Lídia Marcelino Re-
Homo Solitarius: notas sobre a gênese da solidão bouças e Vagner Gonçalves da Silva A antropologia e a “relexão inacabada” em Merle-
moderna COMUNICAÇÕES E INFORMES au-Ponty
Celso Castro O grupo MARI: educação e respeito à diversidade RESENHAS Alberto Alonso Muñoz
brasileira O espetáculo das raças
Máscaras Iluministas: os usos retóricos do selvagem André Luiz da Silva O espetáculo das raças, de Lilia Moritz Schwarcz A força e a fraqueza do argumento anti-liberal de-
Samuel Titan Jr. Alessandra El Far mocrata: a crítica à Primeira República em Oliveira
Informe sobre teses e dissertações defendidas no Vianna, Sérgio Buarque de Holanda e Vitor Nunes
A Reforma da Cultura Popular e suas Implicações Departamento de Antropologia da USP: 1991 a Estrangeiros no Brasil Leal
para a Construção do Sujeito Moderno 1994 Estrangeiros no Brasil, de Fernanda Peixoto Massi Fernando Luiz Abrucio
Fabíola Rohden Ana Paula Cavalcanti Simioni
A origem do Homo Sapiens Sapiens: uma questão
ENTREVISTA Nº 3 (1993) As ilusões do multiculturalismo ainda não esclarecida
Entrevista com Darcy Ribeiro Questão de raça, de Cornel West Diogo Meyer
Luís Donizete Benzi Grupioni e Maria Denise Fa- ARTIGOS Omar Ribeiro homaz
jardo Pereira A “Aquarela do Brasil”: relexões preliminares sobre Indigenismo sanitário? Instituições, discursos e po-
a construção nacional do samba e da capoeira COMUNICAÇÕES E INFORMES líticas indígenas no Brasil contemporâneo
TRADUÇÕES Letícia Vidor de Souza Reis Carnaval: o potlatch da sociedade complexa no Brasil István Van Deursen Varga
Apresentação: Introdução ao “Signiicado Etnológi- Angelo José Perosa
co das Doutrinas Esotéricas”, de Franz Boas Por que xingam os torcedores de futebol? TRADUÇÃO
Margarida Maria Moura Luiz Henrique de Toledo Até que nem tão Esotérico assim: o NAU e suas ca- O sagrado selvagem, de Roger Bastide
Quando 1 + 1 = 2: práticas matemáticas no Parque minhadas pelas formas de lazer e práticas esotéricas Tradução de Rita de Cássia Amaral
Signiicado Etnológico das Doutrinas Esotéricas Indígena do Xingu da grande cidade ENTREVISTA
Franz Boas Mariana Kawall Leal Ferreira Flávia Prado Moi e Renato Sztutman Entrevista com Claude Lévi-Strauss
Tradução de Margarida Maria Moura Edmundo Magaña
As mulheres negras do Oriashé: música e negritude
Apresentação: Introdução a “A ‘Doença’ E Suas no contexto urbano Nº 2 (1992) RESENHAS
‘Causas’”, de Andras Zempléni Luciana Ferreira Moura Mendonça As estratégias textuais de Cliford Geertz
Paula Morgado ARTIGOS El antropologo como autor, de Cliford Geertz
Para não ver cara nem coração: um estudo sobre o Entre penas e cores: cultura material e identidade Fernanda Massi
A “Doença” e suas “Causas”, de Andras Zempléni serviço telefônico Disque-Amizade bororo
Tradução de Solange Unti Cunha Pinto Lilian de Lucca Torres Luís Donizete Benzi Grupioni Rock brasileiro: retratos de uma tribo urbana
Retratos de uma tribo urbana, de Almerinda Sales
Bakhtin, Ginzburg e a cultura popular “Vídeo nas aldeias”: a experiência Waiãpi Guerreiro
Karina Kuschnir Dominique T. Gallois e Vicent Carelli Heloísa Buarque de Almeida

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 375-382, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 375-382, 2006
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A morte é uma festa TRADUÇÃO Instruções para colaboradores


A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Da cosmologia à história: resistência, adaptação e
Brasil do século XIX, de João José Reis consciência social entre os Kayapó, de Terence Tur-
Íris Kantor ner
Tradução de David Soares Objetivo e política editorial em língua estrangeira (espanhol, francês e inglês).
Índios no Brasil: os caminhos do futuro
Índios no Brasil, de Luís Donizete Benzi Grupioni ENTREVISTA 1. Cadernos de Campo – revista dos alunos de 6. Os trabalhos devem ser apresentados em
Edmundo Antônio Peggion Novas propostas para a pós-graduação: a academia duas vias impressas, acompanhadas de uma cópia
pós-graduação em antropologia social da USP, é uma
deve estar mais perto da sociedade
publicação anual dedicada a divulgar trabalhos em mídia eletrônica (de preferência e-mail ou CD,
COMUNICAÇÕES E INFORMES Entrevista com Eunice Ribeiro Durham
Estes quinhentos e outros tantos Luís Donizete Benzi Grupioni e Omar Ribeiro que versem sobre temas, resultados de pesquisas e conforme o caso). Os textos devem estar digitados
Marcos Pereira Ruino homaz modelos teórico-metodológicos de interesse para o em página A4, fonte Times New Roman, corpo 12,
debate antropológico contemporâneo e que possam espaçamento 1,5 cm, com margens esquerda/direi-
Relações sujeito-objeto na pesquisa antropológica: RESENHAS contribuir no desenvolvimento de pesquisas em ta 2,5 cm, cabeçalho/rodapé 3 cm, em processador
seminário temático e exposição fotográica M. M. para não íntimos de texto compatível com MSWord. As notas devem
nível de pós-graduação, no país e no exterior. As
Maria Denise Fajardo Pereira Margaret Mead: uma vida de controvérsia, de Phyllis
contribuições podem ser apresentadas nos seguintes ser numeradas com algarismos arábicos, em ordem
Grosskurth
Índios no Brasil: alteridade, diversidade e diálogo Luís Donizete Benzi Grupioni formatos: artigos e ensaios, traduções, resenhas, crescente e listadas ao pé da página. Quadros, ma-
cultural entrevistas e produções visuais. pas, tabelas, imagens etc., devem ser enviados em
Lilia Katri Moritz Schwarcz Os escritos de uma “conquista”: a educação escolar arquivo separado, com indicações claras, ao longo
indígena 2. A pertinência para publicação das contribui- do texto, dos locais em que devem ser incluídos. No
Nº 1 (1991) OPAN: a consquista da escrita, de Loretta Emiri e caso das fotograias, devem estar digitalizadas com
ções será avaliada pela comissão editorial – quanto à
Ruth Monserrat (org.)
adequação ao peril e à linha editorial da revista – e resolução acima de 300 dpi e formato TIFF.
ARTIGOS Marina Kahn
As tatuagens e a criminalidade feminina por pareceristas ad hoc – no que toca ao conteúdo e a) Artigos e ensaios inéditos. Devem indicar tí-
Marina Albuquerque Mendes da Silva Mutirão: utopia e necessidade, de Jeanne Bisilliat- à qualidade dos trabalhos. Os nomes dos pareceris- tulo (em português e inglês), nome(s) do(s) autor(es),
Gardet (org.) tas permanecerão em sigilo, omitindo-se também os titulação, ailiação acadêmica, endereço para corres-
Loucas, agitadas, doentes ou perigosas: representa- Zulmara Salvador nomes dos autores perante os primeiros. pondência e e-mail. Devem também apresentar, em
ção e cotidiano das internas do Hospital de Juqueri português e inglês, um resumo entre 100 e 150 pa-
Cristina Pozzi Redko COMUNICAÇÕES E INFORMES
3. A comissão editorial entende que a remessa lavras e um elenco de palavras-chave (separadas por
A nova LDB e os índios: a rendição dos caras-pá-
lidas espontânea de qualquer colaboração implica auto- ponto) que identiique seu conteúdo. Limite máxi-
Duas mulheres negras: histórias de religiosidade po- Luís Donizete Benzi Grupioni maticamente a cessão integral dos direitos autorais mo de 30 páginas, incluídas as referências.
pular e resistência a Cadernos de Campo. Publicados os trabalhos, a b) Traduções de trabalhos relevantes e indis-
Neusa Maria Mendes de Guesmão Declaração Universal dos Direitos Coletivos dos revista reserva-se esses direitos, mesmo os de tradu- poníveis em língua portuguesa. Devem apresentar
Ana Lúcia E. P. Valente Povos título, nome(s) do(s) autor(es) e do(s) tradutor(es),
ção, permitindo entretanto a sua posterior reprodu-
Ex-escrava proprietária de escrava: um caso de Seví- Clara Massip
ção, desde que citada a devida fonte. indicando deste(s) último(s) titulação, ailiação aca-
cia na Bahia do século XIX
Jocélio Teles dos Santos MARI: Grupo de estudos de educação indígena dêmica, endereço para correspondência e e-mail.
4. Conceitos e opiniões expressos nos trabalhos Devem ainda ser acompanhadas de cópia do ori-
A crítica antropológica pós-moderna e a construção Tribunal permanente dos povos publicados são de responsabilidade exclusiva dos ginal utilizado na tradução, bem como autorização
textual da etnograia religiosa afro-brasileira Lux Vidal autores, não reletindo obrigatoriamente a opinião – do editor ou do autor – para publicação.
Vagner Gonçalves da Silva c) Resenhas de livros, coletâneas, ilmes, docu-
da comissão editorial.
mentários, discos, etc. Devem indicar a referência
A etnopoesia de Hubert Fichte
Plácido Alcântara Critérios para apresentação de cola- bibliográica do trabalho resenhado, nome(s) do(s)
borações seu(s) autor(es), acompanhado(s) de titulação, ai-
liação acadêmica, endereço para correspondência e
5. De preferência redigidos em português, Ca- e-mail. Não devem ultrapassar 6 páginas. Não de-
dernos de Campo publicará eventualmente trabalhos vem receber título.

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 375-382, 2006 cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006
382 | Instruções para colaboradores

d) Entrevistas devem apresentar o(s) nome(s) b) Artigos em periódicos: Cupom para pedido de números anteriores
do(s) entrevistado(s) e entrevistador(es), indicando, GEERTZ, Cliford. Ethos, world view and the
deste(s) último(s), titulação, ailiação acadêmica, analysis of sacred symbols. he Antioch review, Lo-
endereço para correspondência e e-mail. Devem cal, v. 17, n. 4, p. 234-267, 1957. Edição  Brasil – individual  Brasil – institucional Quantidade Sub-total
trazer também uma apresentação de, no máximo, 1 Nº 13 R$ 10,00 R$ 14,00
página. Solicitamos também o envio da autorização c) Trabalhos em coletâneas: Nº 12 R$ 08,00 R$ 11,00
Nº 11 R$ 08,00 R$ 11,00
do(s) entrevistado(s), concordando com a publica- STOCKING JR., George. he Ethnographer’s
Nº 10 R$ 08,00 R$ 11,00
ção do trabalho. As entrevistas não devem exceder Magic: Fieldwork in British Anthropology from Tylor Nº 09 R$ 08,00 R$ 11,00
30 páginas. to Malinowski. In: ______. (Org.). Observers observed Nº 08 R$ 05,00 R$ 07,00
e) Produções visuais – ensaios fotográicos, ilus- – Essays on Ethnographic Fieldwork. Madison: he Nº 07 R$ 05,00 R$ 07,00
trações, desenhos, caricaturas etc. – devem trazer tí- University of Wisconsin Press, 1983. p. 70 - 120.
Nº 05/06 Esgotado Esgotado
Nº 04 R$ 05,00 R$ 07,00
tulo e nome(s) do(s) autor(es), indicando titulação, Nº 03 Esgotado Esgotado
ailiação acadêmica, endereço para correspondência d) Teses ou dissertações acadêmicas: Nº 02 R$ 05,00 R$ 07,00
e e-mail. Apresentação e legendas são opcionais, não DAWSEY, John Cowart. De que riem os bóias-frias? Nº 01 Esgotado Esgotado
podendo a primeira ultrapassar 1 página. Os traba- Walter Benjamin e o teatro épico de Brecht em carroce- Coleção (exceto nº esgotados) R$ 50,00 R$ 70,00
Postagem por exemplar
lhos não devem exceder 8 imagens, acompanhadas rias de caminhões. 1999. 235 f. Tese (Livre-docência)
(modalidade de envio: impres- R$ 5,00 R$ 5,00
da indicação do autor e do ano. Quando necessá- - Faculdade de Filosoia, Letras e Ciências Humanas,
so normal com registro módico
rias, solicitamos também as devidas autorizações de Universidade de São Paulo, São Paulo. 1999.
TOTAL
uso da imagem.
e) Documento eletrônico
Preços válidos até 31/12/2007.
7. Menções a autores ou citações presentes no AMARAL, Rita. Antropologia e internet. Pes-
corpo do texto devem adequar-se aos respectivos quisa e campo no meio virtual. In: OS URBANI- Assinante
modelos: (Geertz, 1957) e (Geertz, 1957, p. 235). TAS - Revista digital de Antropologia Urbana. ano Nome ________________________________________________________________
Títulos do mesmo autor com o mesmo ano de pu- 1, v. 1, n. 0, out. 2003. Disponível em: < http:// Endereço ______________________________________________________________
blicação devem ser identiicados com uma letra www.aguaforte.com/antropologia/osurbanitas/re- _______________________________________________________________________
após a data: (Lévi-Strauss, 1962a) e (Lévi-Strauss, vista/pesqnet1.htm>. Acesso em: 18 jan. 2007. CEP ________________________
1962b). Citações com mais de 3 linhas devem ser Cidade _______________________ Estado __________ Pais _______________
apresentadas em parágrafo próprio. f ) Imagem em movimento Telefone ( ) ______________________ Fax ( ) ____________________
Prelúdio. Direção: Rose Satiko Hikiji. Produ- E-mail ____________________________________________________
8. As referências bibliográicas devem vir ao ção: Laboratório de Imagem e Som em Antropolo-
inal do trabalho, listadas em ordem alfabética, gia. São Paulo: LISA/USP, 2003. 1 videocassete (13 Forma de pagamento
obedecendo aos seguintes padrões exempliicados, min.), VHS, son., color. Depósito bancário.
segundo as normas da ABNT NBR 6023: Banco do Brasil Agência: 3559-9. Conta Poupança 29.153-6 (variação 01). Titular: Daniela do Amaral Alfonsi
a) Livros: (Informação válida até 31/12/2007).
LÉVI-STRAUSS, Claude. La pensée sauvage. 9. As contribuições devem ser enviadas para:
Paris: Plon, 1962a. 395 p. Envie seu pedido e comprovante de depósito para:
______. Le Totémisme aujourd’hui. Paris: PUF, Comissão editorial Cadernos de Campo Comissão Editorial Revista Cadernos de Campo
1962b. 154 p. Departamento de Antropologia/FFLCH/USP Departamento de Antropologia/FFLCH/USP
______. O cru e o cozido. Tradução de Beatriz Av. Professor Luciano Gualberto, 315 Av. Professor Luciano Gualberto, 315
Perrone-Moisés. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. São Paulo, SP São Paulo, SP cep 05508-900
442 p. cep 05508-900 e-mail: cadcampo@usp.br
e-mail: cadcampo@usp.br

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 381-382, 2006


FONTE ADOBE GARAMOND PRO 11/14
PAPEL OFF-SET 75 G/M2
GRÁFICA PROL GRÁFICA
IMPRESSÃO MARÇO DE 2007

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