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ESTÉTICA E EDUCAÇÃO

Desconstrução dos padrões


estéticos no ambiente escolar
César Augusto Battisti
Bernardo Sakamoto
Rafaela Ortiz Salles
Henrique Précoma
Junior Cunha
José Dias
(Organizadores)

ESTÉTICA E EDUCAÇÃO
Desconstrução dos padrões
estéticos no ambiente escolar

Primeira Edição E-book

Toledo - PR
2018
Copyright 2018 by
Organizadores
EDITORA:
Daniela Valentini
CONSELHO EDITORIAL:
Dr. José Aparecido Pereira - PUCPR
Dr. José Beluci Caporalini – UEM
Dr.ª Lorella Congiunti – PUU-Roma
REVISÃO FINAL:
Prof. Ademir Menin
CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:
Junior Cunha
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Estética e educação: desconstrução dos


E79 padrões estéticos no ambiente escolar /
organizadores César Augusto Battisti
... [et al.]. – 1. ed. e-book –
Toledo,Pr: Vivens, 2018.
418 p.: il.

Modo de Acesso: World Wide Web:


<http://www.vivens.com.br>
ISBN: 978-85-92670-64-1

1. Filosofia. 2. Fenomenologia. 3.
Pedagogia. 4. Arte. 5. Ética. I. Título.

CDD 22. ed. 107

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi


Bibliotecária CRB/9-1610

Todos os direitos reservados aos Organizadores.


Os textos aqui publicados são de exclusiva responsabilidade dos seus
respectivos autores e coautores.

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ...........................................................................13

PRIMEIRA PARTE
Conferências

I A CONSTRUÇÃO DA EXPRESSÃO DE GÊNERO


como as instituições educacionais exercem seu papel de imposição
de binaridade de gênero?
Silvana de A. Vaillões ..................................................................... 17

II RACISMO NO AMBIENTE ESCOLAR


perspectivas de desconstrução dos padrões estéticos
eurocêntricos?
Francy Rodrigues da Guia Nyamien ...............................................29

SEGUNDA PARTE
Artigos

I A CRÍTICA AO PSICOLOGISMO NAS INVESTIGAÇÕES


LÓGICAS DE EDMUND HUSSERL
Paulo Ricardo da Silva
Roberto S. Kahlmeyer- Mertens ......................................................51

II A LEGITIMIDADE DA ESTÉTICA POPULAR


uma abordagem pragmatista do rap
Rafaela Ortiz de Salles
Bernardo Sakamoto ........................................................................ 65

III A NOÇÃO DE EXPLICAÇÃO EM VAN FRAASSEN


Josiel dos Santos Camargo
Marcelo do Amaral Penna-Forte .................................................... 93

IV A QUESTÃO ÉTICA DO “BOM” EM UMA ANÁLISE DA


PRIMEIRA DISSERTAÇÃO DA GENEALOGIA DA MORAL DE
NIETZSCHE
Diogo Massochin* .......................................................................... 101
8 Estética e Educação

V A SANTÍSSIMA TRINDADE EM TOMÁS DE AQUINO


Filipe Luís Brustolin
José Dias ....................................................................................... 109

VI A VISÃO DOS SENTIDOS E A DISTINÇÃO E RELAÇÃO DE


CORPO E ALMA EM DESCARTES
Marcelo Luiz Dalmagro ................................................................ 121

VII ANÁLISE DA ATUAL POlÍTICA BRASILEIRA, SOB A


MORAL KANTIANA
Katleen Talia Lopes de Melo Viana
Márcio Prígoli Santetti .................................................................. 131

VIII AS FONTES CRISTÃS DA COMPREENSÃO


HEIDEGGERIANA DE VIDA FÁTICA
Marcelo Ribeiro da Silva
Roberto S. Kahlmeyer-Mertens ..................................................... 137

IX DO RESPEITO REFLEXIVO
uma perspectiva ética
Gustavo Henrique Martins ........................................................... 147

X FILOSOFIA DE HIPÓCRATES DE KÓS


reflexões acerca da filosofia da medicina presente no helenismo
antigo
Gabriel Arienti Barbieri
José Dias ........................................................................................ 157

XI GUERRA E PAZ
o problema da guerra e as vias da paz no pensamento de Norberto
Bobbio(1909-2004)
Valdenir Prandi
José Dias ........................................................................................ 175

XII NOTAS SOBRE A FENOMENOLOGIA SARTRIANA


Josieli Aparecida Opalchuka* ........................................................ 191
Sumário 9

XIII O ENSINO COMO UMA FILOSOFIA DA CULTURA


Junior Cunha................................................................................. 203

XIV O LEGÍTIMO INTERESSE DA RAZÃO EM KANT


Vanessa Brun Bicalho
Luciano Carlos Utteich.................................................................. 213

XV O PROBLEMA EXISTENTE ENTRE SER E PARECER NO


PENSAMENTO DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU
Whesley Fagliari dos Santos
José Dias ....................................................................................... 223

XVI O ROSTO EM EMMANUEL LEVINAS


uma proposta para a pedagogia da inclusão
Douglas Silvino de Camargo
José Dias ....................................................................................... 235

XVII O TEMA DA VIOLÊNCIA PELA PERSPECTIVA DE


HANNAH ARENDT
Mário Sérgio Vaz .......................................................................... 245

XVIII OS MODERADOS E OS EXTREMISTAS POLÍTICOS


SEGUNDO NORBERTO BOBBIO
Distinções e Semelhanças
Thélio dos Santos Caudinski
José Dias ....................................................................................... 261

XIX SCHOPENHAUER EM “A GUERRA DOS TRONOS”


Aproximações de conceitos filosóficos de Arthur Schopenhauer no
universo de “As Crônicas de Gelo e Fogo”, de George R. R. Martin
Felipe Belin
Ademir Menin ............................................................................... 273

XX SER, VERDADE E ARTE


a arte como abertura do ente na totalidade, no pensamento
heideggeriano
Giovani Augusto dos Santos......................................................... 283
10 Estética e Educação

XXI SÉRIE E MUNDO POSSÍVEL EM GILLES DELEUZE


Gonzalo Montenegro Vargas ....................................................... 297

XXII SOBRE A ARTE POÉTICA EM ARTHUR


SCHOPENHAUER
Cristiele Rhoden
Ademir Menin ............................................................................... 309

XXIII WESTWORLD
sob a teoria estética de Edmund Burke
Daniel Du
Bernardo Sakamoto ....................................................................... 317

TERCEIRA PARTE
Resumos

I A ALEGORIA DA CAVERNA E A IMPORTÂNCIA DA


FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO
Bruno Roberto Bellotto
Ewerton Proença dos Santos ........................................................ 347

II A EDUCAÇÃO (DES)CONSTRUÍDA
uma reflexão a partir de Marcuse
Eli Schmidtke ................................................................................ 349

III A EQUIVALÊNCIA VALORATIVA ENTRE MENTE E


CORPO NA ÉTICA DE ESPINOSA
Murilo Morato Santos ................................................................... 351

IV A ESTRUTURA TROPOLÓGICA DA LINGUAGEM EM


NIETZCHE
Celia Machado Benvenho ............................................................. 355

V A INFLUÊNCIA DE MICHEL FOUCAULT PARA A TEORIA


QUEER
Jackison Roberto dos Santos Pinheiro Junior............................... 357
Sumário 11

VI A LINGUÍSTICA COMO CIÊNCIA EM SAUSSURE


Thayla Magally Gevehr ..................................................................361

VII A LUTA DE CLASSES COMO PROCESSO HISTÓRICO DE


NEGAÇÃO À PROPRIEDADE
Leandro Ramires Duarte .............................................................. 363

VIII A MORTE DE DEUS E A LANTERNA DE DIÓGENES


aproximações entre Nietzsche e o cinismo grego
Leonardo Augusto Catafesta ........................................................ 367

IX CLÍNICA DE PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA


EXISTENCIAL
Giane Inacio dos Santos ............................................................... 369

X FILOSOFIA E VESTIBULAR
um olhar sobre o ensino de filosofia em instituições particulares
Marcos Fernando de Souza Máximo ............................................ 373

XI HEIDEGGER E A FINITUDE DO DASEIN


Neusa Rudek Onate ...................................................................... 375

XII KANT E O ENSINO DO FILOSOFAR


Elvio Camilo Crestani Junior ........................................................381

XIII LILITH E EVA


o mito bíblico e a opressão da mulher
Arielle Kant Lavarda ..................................................................... 385

XIV MOTIVOS DE UM ÓDIO


Rancière e o escândalo democrático Felipe Pereira Gomes
Ester Maria Dreher Heuser .......................................................... 387

XV O “JOGO DA ARTE” COMO ACONTECIMENTO DA


VERDADE EM GADAMER
Bruna dos Santos da Luz
Roberto S. Kahlmeyer-Mertens .................................................... 389
12 Estética e Educação

XVI O DOPPELSATZ DA FILOSOFIA DO DIREITO E A


RECONSTRUÇÃO CRÍTICA DAS CATEGORIAS MODAIS NA
LÓGICA DA ESSÊNCIA DE HEGEL
Patrícia Riffel de Almeida ............................................................. 391

XVII RELAÇÃO ENTRE A FÉ E A RAZÃO


Pedro Inácio Andrade de Souza Santos
Márcio Prigoli Santetti ................................................................. 395

XVIII RESOLUÇÃO DE QUEBRA-CABEÇAS OU


DOGMATISMO
a filosofia da ciência de Thomas Kuhn em foco
Priscila Aparecida Woiski Triper
Douglas AntonioBassani ..............................................................399

XIX TEMPO, MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E CRIAÇÃO


uma leitura nietzschiana do filme “Para sempre Alice”
Nilson Rodrigo da Silva ................................................................ 403
APRESENTAÇÃO

De 21 a 25 de maio de 2018 aconteceu a XXI Semana


Acadêmica de Filosofia, o evento teve como tema central: “Estética
e educação: desconstrução dos padrões estéticos no ambiente
escolar”. Nesta edição, a Semana Acadêmica acrescentou seu
prestígio com as Jornadas de Metafísica & Conhecimento e de
Ética & Filosofia Política, que estão em sua 11ª edição.
A Semana Acadêmica de Filosofia, realizada há mais de
vinte anos, desde o século passado, pretende estreitar a relação
entre a educação e a filosofia. Por ser um curso de licenciatura o
objetivo principal é a formação e a capacitação dos professores de
nível médio e a integração da Graduação e o Programa de Pós-
Graduação em Filosofia, Mestrado e Doutorado, da UNIOESTE.
Na Semana Acadêmica, professores convidados e do curso
participaram de palestras e mesas redondas; os graduandos do
curso e pessoas interessadas apresentaram suas pesquisas, estas
atividades contribuíram para uma ampla difusão e discussão das
questões sobre filosofia e educação na região, que se registram
neste e-book.
A Semana Acadêmica em sua 21ª versão, mostrou, mais uma
vez, a boa disponibilidade de todos os docentes do Curso;
ademais, os acadêmicos, uma vez mais, adquiriram experiência na
organização de eventos, participando ativamente os integrantes
do Centro Acadêmico e membros do PET.
Ressaltamos que a Semana Acadêmica faz parte do
calendário ordinário de atividades do Curso de Graduação e do
Programa de Pós-Graduação de Filosofia da UNIOESTE.

Boa leitura!

Bernardo Sakamoto
Coordenador da XXI Semana de Filosofia
Toledo, maio de 2018.
PRIMEIRA PARTE:
Conferências
I

A CONSTRUÇÃO DA EXPRESSÃO DE GÊNERO:


como as instituições educacionais exercem seu
papel de imposição de binaridade de gênero?

Silvana de A. Vaillões*

RESUMO: Este texto tem como objetivo geral discutir a questão


da expressão trans nas instituições escolares, uma vez que essa
instituição tem por prática reproduzir o que é considerado pela
sociedade capitalista: a exclusão. São objetivos específicos:
evidenciar o que é gênero, orientação sexual e sexo biológico;
considerar e analisar a construção do gênero como papel social,
vinculado ao sexo biológico; discutir a (in)congruência entre
identidade de gênero e sexo biológico, imposta pela sociedade;
discutir e refletir sobre a binaridade de gênero e as imposições da
sociedade a uma escolha dentro dessa possibilidade; analisar o
papel da escola na formação do papel social de gênero (educação
do corpo); analisar sobre como a estética (aparência) influencia a
questão de identidade de gênero na atualidade.
(Binaridade/passabilidade/estereótipos). Foram considerados,
para o referencial teórico, os seguintes autores: Louro (2010), Lanz
(2015) e Althusser (1980). Dessa forma, considera-se de extrema
importância a viabilidade da discussão do tema em questão, já que
os sujeitos trans têm sido, constantemente, empurrados à margem
da sociedade. A inclusão dessas pessoas e a resposta aos seus
direitos é primazia para a sociedade em que se vive, atualmente,
de forma que se respeitem os direitos constitucionais
considerados em nosso país.

*
UNIOESTE.
18 Estética e Educação

Primeiro, precisamos considerar questões básicas, a


respeito da realidade das pessoas trans no Brasil – e, por trans,
entenda-se transgêner@s, transexuais, travestis e todas as
identidades que possam se expressar sob esse termo guarda-chuva
(LANZ, 2015). É fato já bem divulgado na mídia que os sujeitos,
cuja expressividade de gênero não esteja nas “caixas” masculina ou
feminina, enfrentam uma dura realidade de exclusão e desrespeito
aos direitos mais básicos, como educação e saúde. Diante disso, é
importante discutir formas de inclusão e respeito, observando a
diversidade sexual e de gênero.
Inicio minha fala lembrando de duas grandes
personalidades trans no Brasil: João Nery, primeiro homem trans
a fazer cirurgias, tendo passado pelo processo de redesignação na
década de 70, e Nany People, que iniciou sua carreira no teatro
ainda expressando a identidade masculina, mas que efetivou as
modificações ao longo de sua vida. Falar dessas duas pessoas é
relevante, visto que suas histórias remetem a muita luta,
sofrimento e sentimento de inadequação, por viver em um corpo
com o qual não se identificavam.
Entretanto, antes de mais nada, é preciso definir os termos
que usaremos no decorrer de nossa discussão, a fim de deixar tudo
mais evidente:

Vamos combinar uma coisa, de novo e de novo e quantas vezes


ainda forem necessárias: sexo é uma coisa, gênero é outra coisa
e orientação sexual é outra coisa ainda. Sexo é genital: macho e
fêmea (além de intersexuado e nulo). Gênero é social: homem e
mulher ou masculino e feminino. Orientação sexual é erótico-
afetivo: homo, hetero, bi, assexual, pansexual, etc. Não é porque
alguém nasceu macho (i.e., com um pinto) que tem que ser
homem (gênero masculino) e querer a companhia de mulher
(heterossexual), como consta da regra chamada
heterossexualidade compulsória, em pleno vigor na nossa
sociedade. A pessoa pode nascer com um pinto e descobrir
(identidade de gênero) que não tem a menor afinidade com o
gênero masculino pessoa transgênero = transgressora de gênero,
no qual, por possuir um pinto, a pessoa é compulsoriamente
classificada ao nascer e, ainda assim, gostar de mulher para
A construção da expressão de gênero... 19

namorar e fazer sexo. Assim como há muitos machos de


nascimento (portadores de pintos) que se sentem bem
enquadrados na condição de homem mas que sentem atração
não por mulheres (como estabelece a regra da
heterossexualidade compulsória, já mencionada antes) mas por
homens. Da mesma forma, se um macho sente atração por outro
macho não quer dizer que ele está necessariamente em conflito
com a sua categoria de gênero (homem) e que, portanto, deve
mudar de gênero. (LANZ, 2015, p. 38).

Assim, é preciso considerar que cada termo condiz a uma


situação diferente. Infelizmente, muitas pessoas – durante quase
todo o decorrer da nossa história – confundem o que é sexo com
o que é identidade de gênero. Por causa disso, inclusive, muitos
foram os preconceitos evidenciados. Orientação sexual está
relacionada ao desejo: com quem quero me envolver, com quero
ter relações sexuais (ou não); sexo está voltado ao biológico,
genitália: pênis, vagina, intersex. Quando se fala de identidade de
gênero, estamos falando de como a pessoa se identifica, como ela
quer se expressar na sociedade.
É importante ressaltar que esse papel social, relacionado à
identidade de gênero, está também intrinsecamente ligado à
forma como nos organizamos enquanto sociedade, visto que o
gênero é uma construção social, que muda de acordo com a
cultura, os costumes, os hábitos, o desenvolver histórico
(BEAUVOIR, 1960). Temos ensinado o comportamento de gênero
e, também, imposto muitas verdades já cristalizadas em relação à
expressividade do gênero, assim como ao papel social exercido
dentro de cada “setor”.
Quando sabemos de uma mãe grávida, sempre lhe
perguntamos: “O que é?” A resposta não envolve a mãe dizer se é
um alien ou ser humano, mas sim, se será menino ou menina, visto
que hoje é perfeitamente possível saber o sexo genital do bebê
antes mesmo do nascimento. Diante desse fato, passamos a
exercer uma série de controles em relação a essa criança e à sua
expressividade de gênero, ou seja, sabendo ser um menino (genital
biológico pênis), automaticamente entendemos como comum
20 Estética e Educação

comprar para essa criança roupas cujas cores sejam consideradas


de “menino”. Ora, que mãe em sã consciência compraria para um
menino uma roupa rosa? Afinal, é preciso já ir colocando-o dentro
do padrão do que é ser um homem na nossa sociedade.

Consideremos a interpelação médica que, apesar da emergência


recente das ecografias, transforma uma criança, de um ser
“neutro” em um “ele ou em uma “ela”: nessa nomeação, a garota
torna-se uma garota, ela é trazida para o domínio da linguagem
e do parentesco através da interpelação do gênero. Mas esse
tornar-se garota da garota não termina ali; pelo contrário, essa
interpelação fundante é reiterada por várias autoridades, e ao
longo de vários intervalos de tempo, para reforçar ou contestar
esse efeito naturalizado. A nomeação é, ao mesmo tempo, o
estabelecimento de uma fronteira (BUTLER, 2007, p. 161).

Isso faz com que nos questionemos a respeito do que é ser


homem ou mulher. Que roupas são permitidas? Que brinquedos
podem ser oferecidos a essas crianças? Como nos reportamos a
elas e de que forma esperamos que reajam diante da vida?
Iniciamos uma cruzada para que as meninas se tornem: delicadas,
doces, submissas, caseiras, respeitadoras, que falem baixo, que
sejam obedientes, que não questionem, que gostem de bonecas (e,
mais tarde, que queiram ser mães), que se sentem de determinada
maneira, que não corram, que não pulem, que gostem de cores
claras, que estejam sempre bonitas, que saibam cuidar do outro,
que saibam agradar, que escolham determinada profissão (por nós
considerada como de mulher), que sejam tímidas, recatadas, mas,
ao mesmo tempo, que saibam resolver seus problemas, que
chorem por tudo, que expressem emoções, que sejam de abraçar e
beijar (entre tantas outras “verdades” que vamos construindo no
decorrer da vida dessa criança).
Da mesma forma, passamos a dizer aos meninos, desde
muito jovens: que ele não deve chorar, que ele é um super-herói,
que ele é forte, que ele não deve abraçar os outros, que ele não
deve abaixar a cabeça para ninguém, que ele pode brincar com o
que quiser (desde que não seja com bonecas), que ele pode bater
A construção da expressão de gênero... 21

nos outros meninos quando for ofendido, que ele precisa se


defender, que ele tem que cuidar e sustentar a família (mais tarde,
pois homem mesmo cuida de tudo sozinho), que ele não deve
andar ou falar de maneira parecida com as meninas, que ele não
deve gostar de nada que seja sensível demais, como música e
poesia, literatura ou arte, que ele precisa fazer uma atividade
esportiva, que ele tem instinto sexual mais forte que o da menina,
que ele precisa sempre estar pronto para o sexo, que ele precisa
desejar as mulheres, que ele deve ser musculoso (entre tantas
outras “verdades”, que nem cabem nessa fala).
Assim, passamos uma vida dizendo o que essa criança pode
ou não pode fazer, pode ou não pode vestir, pode ou não pode ser.
Passamos a reprimir um menino que fale mais preguiçoso, que
ande mais delicadamente, por achar que ele será “afeminado”. Da
mesma forma, reprimimos qualquer comportamento rebelde de
uma menina, dizendo a ela que esse não é um comportamento de
mulher. Aos poucos, vamos construindo a ideia perfeita do que é
ser homem ou mulher, empurrando para dentro dessa ideia a
criança que nem teve a oportunidade de pensar sobre o que gosta
ou não.

Não é possível fixar um momento – seja esse o nascimento, a


adolescência, ou a maturidade – que possa ser tomado como
aquele em que a identidade sexual e/ou a identidade de gênero
seja “assentada” ou estabelecida. As identidades estão sempre se
constituindo, elas são instáveis e, portanto, passíveis de
transformação. (LOURO, 2010, p. 27).

De acordo com Louro (2010), os gêneros são construídos


nas relações sociais. Não são, de forma alguma, naturalizados pelo
sexo biológico. Da mesma forma: [...] tanto na dinâmica do gênero
como na dinâmica da sexualidade – as identidades são sempre
construídas, elas não são dadas ou acabadas num determinado
momento (LOURO, 2010, p. 27).

Nesse sentido, pois, o “sexo” não apenas funciona como uma


norma, mas é parte de uma prática regulatória que produz os
22 Estética e Educação

corpos que governa, isto é, toda força regulatória manifesta-se


como uma espécie de poder produtivo, o poder de produzir –
demarcar, fazer, circular, diferenciar – os corpos que ela controla
(BUTLER, 2007, p. 153-154).

Dessa forma, fica evidente que utilizamos os fatores


biológicos para definir as diferenças sociais, naturalizando os
comportamentos de acordo com o sexo biológico, quando, na
verdade, o sujeito se constitui por meio de sua construção social.
É fato que isso tudo é feito de maneira muito sutil, não por meio
de decretos ou leis. No entanto, esse processo é recorrente,
insistente e fomentado por várias instituições, durante toda a
nossa vida: família, escola, religião, etc. São as práticas cotidianas
que nos colocam dentro das caixas do gênero, sem que sequer
consigamos perceber o que realmente está acontecendo (LOURO,
2010).
Portanto, somos definidos por nosso sexo, antes mesmo de
nascer, e passamos toda uma vida lutando para manter a
(in)congruência entre isso e o que sentimos em nossas mentes e
corações.

O “sexo” é, pois, não simplesmente aquilo que alguém tem ou


uma descrição estática daquilo que alguém é: ele é uma das
normas pelas quais o “alguém” simplesmente se torna viável, é
aquilo que qualifica um corpo para a vida no interior do domínio
da inteligibilidade cultural (BUTLER, 2007, p. 154-155).

Obviamente, a escola, como uma instituição da sociedade


capitalista, tende a contribuir para toda essa realização de
imposição de gênero. A escola, de acordo com Althusser (1980), é
um aparelho ideológico do Estado e, assim, reproduz a lógica do
capital, exercendo influência para disciplinar os estudantes, de
forma que estejam preparados para o mercado de trabalho, mais
tarde. Louro (2010) afirma que a escola é lugar das diferenças, mas
que, no entanto, produz a padronização por meio de variados
recursos de classificação, ordenamento e hierarquização.
A construção da expressão de gênero... 23

Como pensar a realidade da pessoa trans, dentro da escola?


Se a escola padroniza, tentando, por diversificados meios, ordenar
esse corpo, que está tentando se expressar fora da caixa da
binaridade de gênero, é comum que se espere - após todo esse
ensinamento sobre como ser homem ou mulher - que a pessoa
“aceite” a congruência entre sexo-gênero-orientação sexual, tão
difundida pela nossa sociedade. Isto é: se nasci com uma vagina,
preciso me comportar como uma mulher, exercendo o papel
feminino, naturalmente voltando meu desejo sexual para o
oposto: o homem. Da mesma maneira, isso se efetiva em relação à
pessoa que nasce com pênis: deve se comportar como um homem,
exercendo o papel masculino, naturalmente voltando seu desejo
sexual para o oposto: a mulher. As pessoas que não seguem o
padrão (sexo genital em congruência com a identidade de gênero),
ainda que muito lhe tenha sido forçado, são chamadas
Transgêneras, ou seja, transgressoras da imposição da binaridade
de gênero (LANZ, 2015).

Quem transgride o dispositivo binário de gênero torna-se


obviamente sociodesviante, gênero-divergente ou transgênero.
Por isso mesmo, a pessoa trans-gressora da conduta oficialmente
estabelecida para a categoria de gênero em que foi classificada
ao nascer torna-se uma de-generada, palavra que significa
literalmente “alguém que perdeu o gênero”. As pessoas
transgêneras têm chamado a atenção dos estudiosos de sexo e
gênero, por constituírem uma prova concreta de que gênero não
é uma “herança biológica” indelével e inalterável, mas o
resultado de um longo, lento e árduo processo de aprendizagem
social (LANZ, 2015, p. 43).

Nesse contexto, uma pessoa trans vive a realidade da


exclusão, na escola, na família, não tendo como se preparar para o
mercado de trabalho, visto que lhe são negados os direitos
mínimos, como educação e saúde. As pessoas justificam a
exclusão, com base em suas crenças religiosas (a ideia de pecado)
ou por meio da ideia de que é uma doença, um equívoco que uma
pessoa seja assim. Ela precisa ser tratada, curada. Quando não
24 Estética e Educação

aceita o tratamento, ela deve ser banida, afinal, ninguém quer ver
uma pessoa que não está nem lá e nem cá, que fica transitando
entre as duas caixas possíveis de gênero.
Foucault (1988) afirmava:

O homossexual do século XIX torna-se uma personagem: um


passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de
vida; também é morfologia, com uma anatomia indiscreta e,
talvez, uma fisiologia misteriosa. Nada daquilo que ele é, no fim
das contas, escapa à sua sexualidade. Ela está presente nele todo:
subjacente a todas as suas condutas [...] (FOUCAULT, 1988, p.
43).

Ou seja, antes de pensar no sujeito como um sujeito,


pensamos nele enquanto definido por sua sexualidade, orientação
ou identidade de gênero. E, diante disso, passamos a rotulá-lo,
naturalizando comportamentos e impondo critérios que não
podem ser considerados para todos. Também por causa disso, as
pessoas que não estão enquadradas nas possibilidades da
binaridade de gênero acabam por ter que vivenciar experiências
de sofrimento e violência, sendo expulsas de casa, da escola,
morrendo pelas ruas, sempre de forma muito violenta.
De acordo com a Associação Nacional de Travestis e
Transexuais1, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans no
mundo, sendo que a expectativa de vida desses sujeitos é de 35
anos (metade da vida de um cidadão cisgênero – pessoa que se
identifica com o gênero que lhe foi designado ao nascer, baseado
no sexo genital). Ademais, as pessoas trans são assassinadas de
forma brutal, no meio da rua, nas vielas, a pauladas, sempre de
maneira muito violenta, evidenciando a forma como são vistas
pela sociedade. Dandara, uma trans que morava na periferia de
Fortaleza, foi assassinada de forma vil, a pancadas. Os agressores
filmaram seus momentos de agonia e disponibilizaram na

1
Disponível em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,numero-de-
assassinatos-de-pessoas-trans-no-brasil-e-o-maior-em-dez-anos,70002167595.
Acesso em: 06 de junho de 2018.
A construção da expressão de gênero... 25

internet, o que levou toda a comunidade a iniciar uma grande


discussão sobre esse assunto.
Assim, como imaginar o lugar das pessoas trans, na
sociedade e, por conseguinte, dentro da escola? Até questões
corriqueiras, como “Que banheiro essa pessoa irá usar?” ou “Como
irei chamá-la?” são desculpas para a violência, a discriminação e o
desrespeito.
Mas, afinal, o que é “natural”? Se construímos o gênero,
como pensar que um comportamento possa ser natural ou não?
Enquanto professores, lidando com essas diferenças, é natural que
meninos sejam mais agitados que meninas? Ou mais curiosos?
Diante disso, devo avaliar esses alunos de forma diferenciada?
Devo esperar que seu desempenho seja diferente, por causa do
sexo que possuem entre as pernas? (LOURO, 2010).

Uma das consequências mais significativas da desconstrução


dessa posição binária reside na possibilidade que abre para que
se compreendam e incluam as diferentes formas de
masculinidade e feminilidade que se constituem socialmente. A
concepção dos gêneros como se produzindo dentro de uma
lógica dicotômica implica um polo que se contrapõe a outro
(portanto, uma ideia singular de masculinidade e de
feminilidade), e isso supõe ignorar ou negar todos os sujeitos
sociais que não se “enquadram” em uma dessas formas (LOURO,
2010, p. 34).

Nesse contexto, além de negar os sujeitos que são trans,


negamos também qualquer pessoa que não se enquadre em uma
das possibilidades da binaridade de gênero, o que evidentemente
silencia formas diversas de expressão e singularidades pessoais.
Em outras palavras: será que algum de nós consegue performar o
gênero ao qual fomos designados ao nascer de forma perfeita? Será
que estamos tão dentro dos estereótipos impostos pela sociedade?
Normalmente, a pessoa trans tende a, também, tentar
obedecer a um dos estereótipos de gênero, o que, inclusive, lhe
possibilita ter uma vida mais ou menos normal. Quanto mais
intervenções uma pessoa faz em seu corpo, a fim de estar dentro
26 Estética e Educação

do estereótipo no qual quer se enquadrar, mais “passabilidade” ela


adquire e, portanto, mais possibilidade de ser aceita como sujeito
que performa aquele gênero específico. Isso pode ser positivo e
negativo, já que, uma pessoa que “passa” pelo gênero que performa
tem mais facilidade para conseguir emprego, estudar, ou seja,
adequar-se ao dia a dia comum, como qualquer outra. Em
contrapartida, quanto menos essa pessoa “passa” pelo gênero que
performa, mais dificuldades ela terá, visto que o que se julga é se
o corpo está ou não adequado ao gênero performado.
Nesse contexto, pensar o fim da dicotomia entre os gêneros
seria importante; primeiro, porque somos seres em constante
mudança; em segundo, pois, por mais que uma pessoa tente
performar o gênero ao qual se enquadrou, vinte e quatro horas por
dia, ela não consegue fazer isso de maneira perfeita, sem cometer
deslizes.

A proposição de desconstrução das dicotomias –


problematizando a constituição de cada polo, demonstrando que
cada um na verdade supõe e contém o outro, evidenciando que
cada polo não é uno, mas plural, mostrando que cada polo é,
internamente, fraturado e dividido – pode se constituir numa
estratégia subversiva e fértil para o pensamento (LOURO, 2010,
p. 31).

Também, é preciso considerar que as pessoas estão em


constante construção, sendo influenciadas pela sociedade,
história, tecnologia e outros tantos fatores que seria impossível
nomear aqui. É próprio do ser humano estar em busca de
mudanças e evolução, portanto, não se efetivando como um ser
estático e fechado, pronto e acabado.

Em se tratando de identidade de gênero, é possível, sim, que a


pessoa troque de identidade quantas vezes quiser ao longo da
vida. É como o ator, que vive inúmeras personagens, sem deixar
de ser ele mesmo. Identidade de gênero não é um dado inflexível
e imutável, mas um dado absolutamente fluido (LANZ, 2015, p.
223).
A construção da expressão de gênero... 27

Sendo assim, para pensar o papel da escola nessa realidade,


é preciso considerar que, apesar de reproduzir os padrões da
sociedade capitalista, disciplinando os estudantes para que
estejam dentro dos moldes necessários à adequação ao mercado
de trabalho, a escola também é espaço de furo e de resistência. É
na escola que evidenciamos nossa construção enquanto seres
humanos, detentores de direitos. A presença dos sujeitos trans só
tende a melhorar o espaço, em relação à diversidade. A aceitação
e o respeito devem estar em primeiro lugar, o que se confirma por
meio de muita luta. Hoje, no Brasil, já é lei que uma pessoa trans
possa solicitar o uso do nome social, ou seja, que ela seja chamada
e considerada pelo nome com o qual se identifica, em relação à sua
identidade de gênero. Se, na escola, aprendemos a obedecer,
também na escola quebramos as regras. Assim, vamos
continuando, nessa briga de forças, em que um ou outro acabam
cedendo para que ambas as partes possam conviver de maneira
um pouco mais harmoniosa.
Atualmente, já temos muitas iniciativas voltadas às pessoas
trans, como o projeto Transcidadania, empreendido em São Paulo,
pela gestão do prefeito Fernando Haddad, que oferece bolsas às
travestis e transexuais para que possam concluir ensino
fundamental e médio. Também, há a movimentação de pessoas
militantes, a saber, o projeto Transempregos2, site no qual a pessoa
trans pode cadastrar seu currículo, recebendo treinamento grátis
e conseguindo contato com várias empresas parceiras. Ainda,
personalidades, como Paola Carosella, têm contribuído
demasiadamente, visto ter oferecido, no caso da cheff, um curso
de cozinha para várias pessoas trans, em São Paulo, o que lhes
propicia a oportunidade de vivenciar outras possibilidades, que
não a prostituição. 3

2
Disponível em: http://www.transempregos.com.br/. Acesso em 06 de junho
de 2018.
3
90% das pessoas trans, no decorrer da via, confessam ter que recorrer à
prostituição. Sem visões moralistas, a prostituição é apenas considerada uma
profissão como outra qualquer, mas que deveria ser exercida por opção e não
por imposição, como é o caso da maioria das pessoas trans.
28 Estética e Educação

Assim, entendemos ser de extrema importância discutir


sobre tais questões, com o objetivo de que possamos, sempre,
primar pelo oferecimento de oportunidades iguais a todos,
independentemente de raça, cor, religião, orientação, identidade
ou qualquer outra expressão que possa existir. A escola como um
todo, nós, professores, devemos estar voltados para a construção
dessas oportunidades, evidenciando um espaço de saber e busca
por evolução de nossa sociedade.

REFERÊNCIAS

ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado. 3 ed.


Lisboa: Editorial Presença/Martins Fontes, 1980.

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo:


Difusão Européia do Livro, 1960.

BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos


do “sexo”. In: O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Ogs.
Guacira Lopes Louro. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. p.152 a 172.

FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio


de Janeiro: Editora Graal, 1988.

LANZ, Letícia. O corpo da roupa: a pessoa transgênera entre a


transgressão e a conformidade com as normas de gênero. Curitiba:
Transgente, 2015.

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma


perspectiva pós-estruturalista. Petrópolis: Vozes, 2010.
II

RACISMO NO AMBIENTE ESCOLAR:


perspectivas de desconstrução dos
padrões estéticos eurocêntricos?

Francy Rodrigues da Guia Nyamien*

PALAVRAS-CHAVE: racismo; corpo negro; estética negra;


identidade étnico-racial.

INTRODUÇÃO

O principal objetivo deste texto é analisar as tramas das


relações étnico-raciais que recoloca a antiga e ao mesmo tempo
atual discussão sobre as formas de racismos e preconceitos na
escola1. O pensamento racista presente no imaginário social foi
incorporado nas representações sobre a estética do corpo negro a
ponto de ser reproduzido na escola.

Os sistemas de representação hegemônicos ignoram todo o


caráter individual do conceito de estética e impuseram que
alguns traços do fenótipo branco são os traços considerados
belos, ao passo que os fenótipos dos demais grupos étnico-
raciais, à medida que mais se afastam do “modelo
homogeneizador”, são considerados “feios” e ridículos,
“impuros” (SOUZA; PEREIRA, 2013, p.64).

*
UNIOESTE.
1
O texto resulta de reflexões e análises realizadas no âmbito das seguintes
pesquisas: "Ser negro nas vozes da escola" desenvolvida no mestrado em
educação pela Universidade Federal do Ceará (NYAMIEN,1999) e da pesquisa "
Tessituras da cor da cultura: em cena, os episódios televisivos da série nota 10"
realizada no doutorado em educação pela Universidade Estadual de Maringá
(NYAMIEN, 2016).
30 Estética e Educação

No Brasil em 2003, após décadas de lutas do movimento


negro, no início do governo Luís Inácio Lula da Silva, foi
sancionada a Lei n. 10.639/2003, de 9 de janeiro de 2003 que altera
a Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da rede de ensino a obrigatoriedade do ensino de história e
cultura afro-brasileira. Tais medidas se concretizam com
iniciativas de combate ao racismo e demais formas de
discriminação, além da contribuição para reeducação das relações
étnico-raciais entre os diversos grupos sociais constituintes da
sociedade brasileira.
O dispositivo legal2 provocou tensões e conflitos e, as
transformações nas práticas escolares observadas ainda são
embrionárias para superação do racismo na educação escolar, mas
é notório que algum movimento afirmativo está ocorrendo.

Em algumas regiões, sistemas de ensino e escolas o processo está


mais avançado, em outros ele caminha lentamente e em outros
está marcado pela descontinuidade. A pesquisa revela, portanto,
que não há uma uniformidade no processo de implementação da
Lei 10.639/2003 nos sistemas de ensino e nas escolas públicas
participantes (GOMES; JESUS, 2013, p. 32).

O olhar do movimento negro e os embates suscitados pela


Lei 10.639/2003, provocaram inúmeras problematizações. Nessa
direção, pensar a educação do ponto de vista da negritude é
compreender que a exclusão de crianças e da juventude negra não
acontece somente na esfera ideológica, que se faz notar a
reprodução de estereótipos racistas nos materiais didáticos, na
baixa expectativa do/a professor/a em relação a população negra,
na veiculação das teorias racistas, na folclorização da cultura
negra, nos preconceitos contra a religiosidade de matriz africana,

2
Consultar o Relatório da Pesquisa Nacional “Práticas Pedagógicas de Trabalho
com Relações Étnico-Raciais na Escola na Perspectiva da Lei 10.639/2003”,
apoiada e financiada pelo Ministério da Educação/Secretaria de Educação
Continua da, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) e pela
representação da UNESCO no Brasil.
Racismo no ambiente escolar... 31

mas também na existência de um sistema de ensino pautado em


uma estrutura rígida e excludente que representa campo fértil
para a repetência e a evasão(NYAMIEN, 1999, p.81)
Cabe destacar que uma das iniciativas dessa legislação é
contribuir para desconstrução do imaginário social racista sobre a
população negra a partir de uma prática pedagógica crítica,
evidenciando as inúmeras contribuições dos povos africanos e
seus descendentes para formação da nação brasileira, com seus
valores e patrimônios culturais comuns a todos os grupos
(SANTOS, 2010),

2.1 APONTAMENTOS SOBRE RACISMO, ESTÉTICA DO


CORPO NEGRO E IDENTIDADE

Adotamos como referência para os apontamentos sobre


racismo, estética do corpo negro e identidade étnico-racial, os
escritos de Gomes (2008), Oliveira (2010), Munanga (1999, 2008).
Destacamos, com base nos referidos autores, que os
atributos como a cor da pele, textura de cabelo e traços físicos
propiciam uma compreensão das relações raciais construídas no
processo histórico, social, político, econômico e cultural
brasileiro.
O corpo humano como motivo de arte, afirma Munanga
(2008), é uma realidade inerente a todas as culturas e civilizações
e elucidam essa tendência universal do corpo como objeto de
beleza e estética.
O belo ou beleza diz respeito a motivos, temas e
interpretações particulares. São maneiras próprias de
compreender e de simbolizar o mundo próximo, a natureza, os
mitos e os deuses, na descoberta de tecnologias e, assim, no
encontro de soluções estéticas. Nas linguagens sensíveis, a beleza
faz o relato das trajetórias humanas, trazendo memórias e
construindo dinamicamente o que se chama de identidade. Se
existem inúmeros conceitos de beleza, todos são, contudo,
tradutores das culturas e dos desejos criativos do homem (LODY,
2006).
32 Estética e Educação

O corpo situa-se em um terreno social conflitivo, uma vez


que é tocado pela esfera da subjetividade. Ao longo do processo
histórico,

o corpo se tornou um emblema étnico e sua manipulação


tornou-se uma característica cultural marcante para diferentes
povos. Ele é um símbolo explorado nas relações de poder e de
dominação para classificar e hierarquizar grupos diferentes. O
corpo é uma linguagem e a cultura escolheu algumas de suas
partes como principais veículos de comunicação (GOMES, 2008,
p.174).

Para Inocêncio (2006), os corpos nas suas dimensões


coletiva ou individual foram historicamente e socialmente
construídos. A própria noção de raça está fortemente ligada a essa
construção, a essa forma como a população negra é vista e
significada no nosso contexto específico. Ademais, “raça” opera
como forma de classificação social, demarcação de diferenças e
interpretação política e identitária.
Essa discussão sucede, em geral, com base em
determinados termos e conceitos comumente utilizados que
ajudam a refletir sobre as relações étnico-raciais. O conceito de
raça foi usado e redefinido em três momentos cruciais. No início
do século XVI era utilizado para identificar um grupo ou uma
categoria de pessoas vinculadas por uma origem comum. O
segundo momento, já no século XIX, nesse momento o conceito
de raça apareceu com uma conotação biológica, pois os grupos
humanos passaram a ser diferenciados por suas características
físicas (ênfase para a cor da pele) e mentais, baseadas na ciência
da época. E nesse contexto da colonização ocidental, a utilização
das teorias raciais servia como justificativa para a hierarquização
de grupos, legitimando a dominação colonial. As práticas de
crueldade e as atrocidades ocorridas durante a Segunda Guerra
Mundial fizeram com que a concepção de raça, compreendida
como um conceito biológico e genético, fosse questionada e
contestada no século XX.
Racismo no ambiente escolar... 33

De um modo geral, o uso do termo "raça" esteve ligado à


dominação político-cultural de um povo em detrimento de outro,
de nações em detrimento de outras e possibilitou tragédias
mundiais, como foi o caso do nazismo, em virtude dos
acontecimentos da própria guerra (holocausto). E apesar das
pesquisas cientificas comprovarem à inexistência de aspectos
significativos nas diferenças de características fenotípicas entre
grupos humanos que justificassem (o racismo) a hierarquização
entre eles, o termo “raça” continua existindo, e é no mundo social
a sua localização (GUIMARÃES, 2005).
Felipe (2014, p. 117) destaca que o elemento central na
classificação das populações opera em torno do corpo e, nesse
sentido, raça é uma categoria discursiva e não uma categoria
biológica, estabelece como parâmetros os aspectos físicos, em
especial a pigmentação das peles branca, negra ou amarela, para
definição de características hereditárias e psicológicas. Esse
conceito fluido e transformante é historicamente demarcado, de
modo que seu significado é fruto de teorias, interesses e discursos
sociais de época. No pensamento do autor, o conceito de raça é
polissêmico e revelador de sua ambiguidade.
Munanga (1999) reitera que sociologicamente o conceito de
raça existe e, mais do que isso, determina as relações étnico-
raciais. E Felipe (2014) corrobora que as discussões sobre o
conceito de raça nos princípios genéticos ou biológicos concorrem
com as formações discursivas que entenderão o conceito de raça
dentro de uma dinâmica social. Felipe (2014) alerta, ainda, sobre o
uso do conceito de etnia, introduzido nas pesquisas acadêmicas,
desvinculado do sentido biológico atribuído à raça apresentando-
se como identidade social, traz o debate sobre as construções
sociais, culturais e políticas. Os grupos humanos passam a ser
vistos em suas características culturais, como: língua, tradição,
territórios, história, dentre outras. De toda forma, o conceito de
etnia como uma perspectiva de análise não pode substituir o
conceito de raça sem qualquer implicação. Ambos os conceitos,
utilizados nos estudos sobre os grupos que foram marginalizados
historicamente, são também ambíguos, mostrando que não
34 Estética e Educação

apenas o conceito de raça tem dimensões biológicas e sociais,


como também o conceito de etnia. Assim, considerando as
peculiaridades sob quais são constituídas as relações étnico-raciais
brasileiras, em vários estudos no campo da educação há a
preferência de se utilizar a expressão “raça/etnia”. Essa formulação
remete a lutas discursivas de combate ao racismo e à
discriminação. É uma tentativa de sair do impasse e da dicotomia
entre esses dois conceitos.
A construção desses termos, portanto, nunca está acabado,
pois é atualizado de modo constante em meio a relações sociais, a
relações de poder-saber, por variados discursos, em meio a
diferentes currículos construídos no ambiente escolar. Os termos
raça/etnia têm implicações com ser e/ou estar diferente,
pressupondo critérios seletivos a partir de um modelo ideal
construído e sedimentado pelo grupo hegemônico.
E, em nossa conjuntura social, esse tipo ideal corresponde
a um ser: jovem, masculino, branco, cristão, heterossexual, física e
mentalmente perfeito, belo e produtivo e afastar-se desse padrão
construído como ideal caracteriza a diferença significativa, que,
no cotidiano, é utilizado para categorizar o outro (AMARAL,
1998).
Para Gomes (2008), estamos em uma zona de tensão, e é
dela que emerge um padrão de beleza corporal real e um ideal. A
questão da estética corporal negra no Brasil, se apoia em um
imaginário que prima por um ideal de beleza europeu e branco,
mas o real é negro e mestiço. A consciência ou o encobrimento
desse conflito, vivido na estética do corpo negro, marca a vida e a
trajetória dos sujeitos.
É nesse processo que o corpo se destaca como canal de
expressão e de resistência sociocultural, mas também de opressão
e negação. Por isso, para o/a negro/a, a intervenção no cabelo e no
corpo é mais do que uma questão estética. É identitária.

Essa identidade é construída historicamente em meio a uma


série de mediações que diferem de cultura para cultura. Em
nosso país, o cabelo e a cor da pele são as mais significativas.
Ambos são largamente usados no nosso critério de classificação
Racismo no ambiente escolar... 35

racial para apontar quem é negro e quem é branco em nossa


sociedade, assim como as várias gradações de negrura por meio
das quais a população brasileira se autoclassifica nos censos
demográficos (GOMES, 2008, p. 21).

A autora ressalta a importância da cor da pele e do cabelo


na construção da identidade negra, no modo como o negro e a
negra se vê e é visto pelo outro. E em algumas situações, o cabelo
continua sendo visto como estigma de inferioridade.
Por isso, as conotações racistas são movidas pela
construção de estigmas (marca, sinal) que, conforme Goffman
(1988), são imputados àquelas pessoas que se afastam da
idealização corrente em determinado contexto. O estigma pode
desencadear reações nas relações entre duas pessoas, relações nas
quais uma tem uma predisposição desfavorável em relação à outra,
por ser ou estar significativamente diferente quanto às condições
dadas como ideais. Ou seja, refiro-me ao preconceito, que é um
conceito formado a priori, portanto, anterior à nossa experiência.
E o preconceito possui dois componentes básicos: uma atitude
favorável ou desfavorável em relação a algo ou alguém, que se
baseia em conteúdos emocionais como atração, amor, medo, raiva
ou repulsa e o desconhecimento concreto e vivencial desse algo ou
alguém, assim como de nossas próprias reações diante deles/as
(AMARAL, 1998).
Já o racismo é uma construção social, psicológica, afetiva,
cognitiva. É, ainda, uma forma de discriminar pessoas com base
em motivos raciais, em cor da pele ou em outras características
físicas, de tal forma que umas pessoas se consideram superiores a
outras. O sistema racial brasileiro é eficaz porque mantém uma
estrutura racista sem as hostilidades abertas encontradas em
outros países. Logo, o racismo local é difícil de ser percebido e
combatido. Nesse sentido, o racismo brasileiro é implícito,
submetido ao silêncio e, como se sabe, os preconceitos se tornam
problemáticos quando utilizados em instrumentos ideológicos
para a legitimação e justificativa de extermínio, exploração e
exclusão de grupos sociais (MUNANGA, 1999).
36 Estética e Educação

Alguns preconceitos estão tão enraizados na sociedade que


se tornam estereótipos, que são preconceitos cristalizados
presentes em nosso cotidiano e atribuem e indicam traços,
geralmente pejorativos, de comportamentos e de personalidade
para alguns grupos (GOMES, 2005).
Os estereótipos que veiculam e formam as atribuições a
respeito do ser negro/a indicam as bases sociais que definem esse
segmento no imaginário social brasileiro. Existem estereótipos em
relação ao/à negro/a, tais como incapacidade, submissão, feiura,
burrice, preguiça e outros adjetivos negativos. Essas imagens
negativas que aparecem nos materiais e livros didáticos levam as
crianças e jovens negros/as a se sentirem mal e constrangidos em
determinados momentos na escola. Isso também contribui para a
evasão ou o fracasso escolar, bem como reforça a baixa autoestima
dos/as alunos/as negros/as (SILVA, 2011).
De acordo com Hall (1997), o estereótipo é uma prática
representacional recorrente e constitui o que ele chama de
representações racializadas do/a negro/a, ou seja, um conjunto de
práticas representacionais que reduz as pessoas a umas poucas
características simples, essenciais, que são representadas como
fixas e produzidas pela natureza. O reconhecimento da diferença
significativa do outro (ou a rejeição a ela) causa profundo mal-
estar, conflito e ansiedade. Nesse sentido, os mecanismos de
defesa da negação e atenuação de conflitos são incorporados no
cotidiano dos sujeitos sociais. O uso de determinadas expressões
ilustra as formas de negação, por exemplo, expressões como: “é
negro, mas tem alma de branco”, “é negra, mas é bonita [...]”. São
expressões que explicitam a compensação da característica ou
condição considerada desagradável. E, portanto, negando essa
característica ao contrapô-la a um atributo desejável – o termo
“mas” denuncia esse movimento (AMARAL, 1998).
Nesse sentido, ocorre que, muitas vezes, nega-se
literalmente a diferença e simula-se a situação: é negro/a, mas é
como se não fosse. A negação do ser negro/a nas relações
interpessoais ajuda a cristalização dos estereótipos, interferindo
na vida do significativamente diferente, inclusive no campo
Racismo no ambiente escolar... 37

educacional. A imagem do Brasil foi construída a partir de uma


imagem negativa para os/as negros/as. De modo simultâneo, foi-
se construindo um ideário de submissão e dominação com base na
ideia de inferioridade, no desejo do branqueamento ou da
mestiçagem. E a imagem do/a negro/a foi, gravemente, privada de
todos os signos de beleza estética, moral, material (SANTOS,
2002).
A ideologia do branqueamento se efetiva com a
internalização da imagem negativa do/a negro/a e da imagem
positiva do/a branco/a, o/a negro/a estigmatizado/a tende a se
rejeitar, a não se estimar e busca aproximar-se em tudo do ideal
do branqueamento e dos seus valores tidos como bons e perfeitos
(SILVA, 2000). Nesse sentido, o ideal do branqueamento se
fundamentou na desqualificação dos/as negros/as, que seriam
moralmente degenerados/as e supostamente seriam incapazes de
produzir em um sistema de livre iniciativa. Dessa forma, a
substituição da mão de obra negra pela branca imigrante e o
incentivo à miscigenação foram estratégias encontradas para
melhorar gradativamente a população que compunha a nação
brasileira. (FELIPE, 2014, p. 53).
A política de branqueamento característica do racismo no
Brasil se fundamentou com ideologias, teorias e estereótipos de
inferioridade-superioridade raciais que se conjugaram com a
política de imigração europeia, para melhorar a raça brasileira e
com a não legitimação, pelo Estado, dos processos civilizatórios
africanos constituintes da identidade cultural brasileira.
Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Oliveira Vianna e Gilberto
Freire ajudam a compreender como, historicamente, foi
construída a ideologia racial brasileira. Desde o fim do século XIX
e início do século XX, esses se destacaram por terem elaborado e
divulgado a respeito do discurso ideológico sobre o/a negro/a,
apesar de hoje esses trabalhos deles estarem sendo bastante
criticados. Mesmo assim, no entanto, ao que tudo indica, ainda se
incorporam no discurso atual e influenciam a sociedade e o campo
educacional.
38 Estética e Educação

Os estudos sobre os/as negros/as no Brasil foram de fato


pautados no conceito de raça, conceito esse baseado nas teses
europeias do racismo científico, como eixo dominante nas
discussões sobre a identidade nacional. E teve como pioneiro Nina
Rodrigues (médico baiano), que atribuía ao/a negro/a uma
herança étnico-racial inferior e um mau caráter patológico e a
mestiçagem era um desequilíbrio mental instável (RIBEIRO, 1995;
GUIMARÃES, 2005).
Contrário às teses de Nina Rodrigues, Oliveira Vianna
acreditava na miscigenação como possibilidade de purificação
étnica, estando no branqueamento da população a solução para o
problema. Já Arthur Ramos afirmava que os negros eram
portadores de uma cultura primitiva e que sua mentalidade
infantil ou ilógica não permitiria que alcançassem o mesmo
estágio de civilização dos povos mais avançados (RIBEIRO, 1995).
De modo paradoxal, na década de 1930, o Brasil
apresentava-se para o mundo como uma nação onde a convivência
entre as raças era cordial e pacífica, onde a integração se efetivava
sem traumas e onde a miscigenação se realizava através das
relações entre as diferentes raças? a chamada "democracia racial".
Essa difusão das teorias sobre a democracia racial inspirada por
Gilberto Freire obteve bastante receptividade pelas elites políticas
e intelectuais, que endossaram a noção de harmonia e tolerância
entre os grupos raciais (GUIMARÃES, 2005).
A UNESCO patrocinou, entre 1952 e 1955, o projeto sobre
relações raciais no Brasil, levantando o debate em torno da
referida temática no país. A discussão se polarizou em torno da
existência ou não do preconceito racial. Bastide e Fernandes
tratavam a democracia racial não como algo que existisse
concretamente, mas apenas como um padrão ideal de
comportamento. Os sociólogos não viam problemas em conciliar
a realidade do preconceito de cor ao ideal da democracia racial,
tratando-os como prática e norma sociais, as quais podem ter
existências contraditórias, concomitantes e não necessariamente
excludentes. Em Bastide dos anos 1950, democracia racial significa
um ideal de igualdades de direitos, e não apenas de expressão
Racismo no ambiente escolar... 39

cultural, artística e popular, constituindo-se num alargamento da


noção de democracia social e étnica de Gilberto Freyre
(GUIMARÃES, 2005).
Guimarães (2005) afirma que foi somente a partir de 1964
que se estabeleceu a ideia de que a democracia racial, mais que um
ideal, era um mito racial, concebido como nova fórmula política
por Florestan Fernandes. Os intelectuais e ativistas negros/as, aos
poucos, afirmariam as relações entre brancos/as e negros/as e o
padrão ideal dessas relações como o mito da democracia racial.
Florestan Fernandes se reportará às conjunturas históricas
e sociais que fizeram com que o mito da democracia racial surgisse
e fosse manipulado socialmente na defesa dissimulada de atitudes,
comportamentos e ideais aristocráticos da raça dominante. O
inverso dessa situação dependeria de que negros/as e mulatos/as
conquistassem autonomia social equivalente para explorá-lo na
direção contrária, em vista de seus próprios fins, como um fator
de democratização da riqueza, da cultura e do poder
(FERNANDES, 2008).
A questão racial negra foi significativamente marcada pela
ideologia do branqueamento físico e cultural da nação por meio
da imigração europeia e pelo mito da democracia racial e seu
discurso harmonioso entre brancos/as e negros/as, que mascarou
as hierarquias e as discriminações constitutivas das relações
raciais. Assim, portanto as relações entre a escola e o negro
brasileiro estão silenciadas e escondem-se as injustiças sociais e
raciais.
É importante, portanto, trazer a reflexão sobre a influência
do pensamento racista no campo educacional, visto que, até hoje,
essas teorias se introjetam no imaginário social, nas
representações e nas atribuições dos sujeitos sociais que transitam
no espaço escolar. O seu efeito foi incorporado no discurso e na
prática social a ponto de ser repetido na escola, quando
apresentam o/a negro/a como pertencente a uma raça inferior ou
portador de uma cultura primitiva, que o impediria de realizar um
percurso escolar e social semelhante ao do/a branco/a (GOMES,
2005).
40 Estética e Educação

As consequências desse pensamento no contexto escolar


manifestam-se, ainda, nos conceitos sobre a passividade do/a
negro/a, sua aptidão para trabalhos braçais e outras difundidas
nos conteúdos dos livros didáticos. Desrespeitar aquilo que é
específico, omitir o não dito ou escamotear a questão étnico-racial
na escola são também formas de discriminar: “O silêncio instalado
nos discursos educacionais sobre o/a negro/a é significativo,
produz o sentido do não dizer e que diz muita coisa significante.
Abrange o discurso sobre o/a negro/a e o discurso do/a negro/a”
(RIBEIRO, 1995, p. 34). E, no meio desses discursos, forma-se o
silêncio do discurso pedagógico sobre o negro.

2.2 ESCOLA E OS PADRÕES ESTÉTICOS EUROCÊNTRICOS

A experiência escolar é profunda, complexa e produz


efeitos duradouros na vida dos sujeitos que chegam à escola, sejam
eles/as provenientes de qualquer classe social, grupo étnico-racial,
gênero e cultura.
A escola aparece como um importante espaço no qual
também se desenvolve o tenso processo de construção da
identidade negra. Infelizmente, nem sempre ela é lembrada como
uma instituição em que o/a negro/a e seu padrão estético são
vistos de maneira positiva. O entendimento desse contexto revela
que o corpo, como suporte de construção da identidade negra,
ainda não tem sido uma temática privilegiada pelo campo
educacional, principalmente pelos estudos sobre formação
docente e diversidade étnico-cultural. E que esse campo, também,
ao considerar tal diversidade, deverá se abrir para dialogar com
outros espaços em que os/as negros/as constroem suas
identidades.
A promoção do respeito e da igualdade no ambiente
escolar, a reflexão sobre a dinâmica das relações raciais
vivenciadas nesse espaço não pode mais ser protelada. Cavalleiro
(2006) alerta que é uma decisão que precisa ser assumida por
todos/as aqueles/as que se consideram ou ocupam a função de
educador/a. Está reconhecida a presença do racismo, do
Racismo no ambiente escolar... 41

preconceito e da discriminação racial na sociedade brasileira e a


reprodução desses problemas no cotidiano escolar.
De fato, as experiências em sala de aula não estão alheias
ao racismo e a seus derivados; conectam-se às de muitos outros
espaços. Vários estudos e pesquisas apontam a presença de
racismo e de discriminação racial em várias instituições
socializadoras, como a escola, os meios de comunicação, a religião,
o trabalho, a família. No caso particular do sistema de ensino, as
pesquisas acadêmicas indicam os profissionais da educação como
agentes reprodutores da discriminação e do racismo no espaço
escolar, desde aqueles que atuam em educação infantil, até mesmo
aqueles que atuam no ensino superior (CAVALLEIRO, 2006).
Como pensar a chegada do “outro” à escola e se a forma que
chega nos permite diálogos contemporâneos sobre as temáticas do
cotidiano. A identidade nacional estabeleceu a negatividade do/a
negro/a e a produziu de modo naturalmente inadequada à
integração. A negritude estaria alijada a não participar, o que
culminou “não só nas conhecidas políticas de extermínio,
genocídios e limpezas étnicas sistemáticas, mas também em
estratégias de regulação e controle da alteridade” (GIVIGI, 2011,
p.166).
A pesquisadora Givigi ao se reportar à negritude relata, em
seus escritos, uma conversa com uma professora sobre o
comportamento de uma menina negra, que, segundo a depoente,
não se valorizava, “dormia com quem precisasse” para comprar a
droga da qual era dependente.

- Sim, mas ela sendo uma menina e negra fica mais feio ainda.
Sabe, ela não se valoriza, não valoriza a raça dela... devia ter mais
cuidado ainda que fosse branca...
(...) Ora, porque os outros já acham que a menina preta nasce
pra ser prostituta e ela ainda reforça isso. Minha filha, onde o
tambor bate forte é preciso se dar mais valor. (GIVIGI, 2011,
p.167).

A autora nos instiga a pensar na professora, na menina


negra e nos tambores de batidas profanas e fortes que reportam a
42 Estética e Educação

negritude e ecoam sons distantes do continente africano


hibridado num Brasil tão presente. O cenário escolar nos remete
aos acordos, negociações, prescrições curriculares e esboroamento
das fronteiras multiculturais (GIVIGI, 2011).

A menina negra é o outro de uma cultura branca, eurocêntrica e


masculina que se autoproclamou referência promovendo seu
sistema de signos por meio de variados mecanismos de coerção
e de convencimento. Da menina se exige “dar-se mais valor”: à
sua individualidade atribui-se o encargo de valorizar aquilo que
a cultura não o fez. No seu corpo negro de menina ecoa os
tambores que rememoram a África hibridada na carne brasileira
e, no discurso da escola, pode-se entender a articulação do
chamado “mito da democracia racial” que, embora reconheça o
“tambor”, não poupa esforços para lhe esconder o som. (GIVIGI,
2011, p.170-171)

O corpo do negro é, continuamente, visto por um olho


eurocêntrico e um currículo monocultural. A escola tem que se
constituir como espaço privilegiado das experiências
comunitárias. E trazer o corpo da menina negra como tela de
apresentação dos tambores para a roda de conversa de discursos
de saber que movem relações de poder na escola.
O corpo e seus atributos constituem o fundamento de
qualquer processo de construção da identidade. As práticas
racistas que marcam as relações raciais brasileiras atribuíram
aos/as negros/as uma identidade corporal inferior que eles/as
introjetaram e os/as brancos/as se auto atribuíram uma
identidade corporal superior. A libertação dessa inferiorização é a
reversão da imagem negativa do corpo negro, através de
construção de novos cânones da beleza e da estética que dão
positividade às características corporais do/a negro/a e, também,
reassumir a negritude (MUNANGA, 2008).
Esse entendimento da simbologia do corpo negro é um dos
caminhos para a compreensão da identidade negra em nossa
sociedade e a possibilidade de desconstrução dos padrões
Racismo no ambiente escolar... 43

estéticos eurocêntricos e do combate ao racismo no ambiente


escolar.
Nessa perspectiva, Gomes (2008, p. 278) afirma que,
reconhecer a existência de uma beleza negra remete a percepção
da alteridade e da ressignificação de um padrão estético do ponto
de vista do negro, como agente político.
Reitera a autora que o negro, quando se impõe perante a
sociedade, quando debate politicamente, quando produz cultura
e se insere nos mais diferentes espaços sociais, traz em si a marca
da corporeidade e se expressa esteticamente.

2.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em linhas gerais, constatamos que a Lei 10.639/2003


completou seus 15 anos de existência. E ainda persiste a
dificuldade da inclusão efetiva da História das culturas africanas e
afro-brasileiras em todas as modalidades de ensino público e
privado integrando a formação de todos/as brasileiros/as com
vistas à promoção da igualdade racial.
E notório que uma das iniciativas dessa legislação é
contribuir para desconstrução do imaginário social racista sobre a
população negra a partir de uma prática pedagógica crítica,
evidenciando as inúmeras contribuições dos povos africanos e
seus descendentes para formação da nação brasileira.
Importa destacar que diferentes e múltiplos currículos
estão sendo praticados e representam alternativa pedagógicas
concretas na busca de pensar os desafios que se apresentam
cotidianamente aos educadores e educandos, em diferentes
contextos escolares. E é na encruzilhada destes currículos que são
construídos sentidos plurais em torno do corpo negro, de suas
memórias e história ancestral.
Podemos, portanto, afirmar que a discussão sobre a riqueza
do trato do corpo e estética pode vir a ser uma rica atividade
pedagógica a ser desenvolvida em sala de aula, possibilitando
debates e atividades sobre a história e a cultura afro-brasileira.
44 Estética e Educação

Enfim, pensar a dignidade do ser negro vinculada a uma


construção positiva, à sua corporeidade, a sua ancestralidade, à
memória e o enfrentamento de tensões e conflitos identitários
ocasionados pelo racismo.
É pertinente que a escola contribua com os/as negros/as e
seus/suas descendentes no sentido de enegrecer a escola, nos
relembra Silva (1997). "Enegrecer a escola" é entendido como uma
maneira própria de os/as negros/as se porem no mundo ao
receberem o mundo em si. Enegrecer, face a face, em que negro/a
e branco/a se espelham, se comunicam e concebam novas
referências visuais, sonoras, espaciais, estéticas, além daqueles
orientados pelo olhar europeu, ocidental, judaico-cristão.

REFERÊNCIAS

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falando de diferenças físicas, preconceitos e sua superação. In:
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9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as Diretrizes e
bases da Educação Nacional, para incluir no currículo oficial da
rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura
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SEGUNDA PARTE:
Artigos
I

A CRÍTICA AO PSICOLOGISMO NAS


INVESTIGAÇÕES LÓGICAS DE EDMUND HUSSERL

Paulo Ricardo da Silva*


Roberto S. Kahlmeyer- Mertens**

PALAVRAS-CHAVE: Psicologismo; Lógica; Antipsicologismo;


Fenomenologia; Teoria do conhecimento

Esta pesquisa se trata de uma investigação sobre a crítica ao


psicologismo consignada na obra Investigações Lógicas (1900) de
Edmund Husserl, mais especificadamente na primeira parte desta
obra intitulada Prolegômenos à Lógica Pura. Desta forma, tem-se
como finalidade perscrutar sobre a importância de determinada
obra para uma proposta de refundamento da teoria do
conhecimento e do método científico.
As Investigações Lógicas (1900) trazem como preâmbulo
uma discussão voltada para definição de uma fundamentação
lógica da teoria do conhecimento e das ciências em geral. Tendo
como escopo analisar e estabelecer distinções essenciais acerca do
estatuto epistemológico das ciências, e assim indicar os aspectos
necessários de uma doutrina da ciência. Husserl objetiva a
refutação da teoria do conhecimento psicologista, empirista e
cética, e também arquiteta a base de um projeto fenomenológico
para uma filosofia cientifica e de rigor, tendo como base novos
métodos de análise e de fundamento do conhecimento, projeto
este, que o guiará filosoficamente durante sua vida (SANTOS,
2010).
Segundo Zahavi (2015), a discussão sobre o psicologismo
possui como fio condutor na argumentação de Husserl, levando-o

*
UNIOESTE; E-mail: pricardo_psi@hotmail.com.
**
UNIOESTE.
52 Estética e Educação

a investigar questões epistemológicas e teórico-científica,


determinadas pela natureza cognitiva do perceber, do crer, do
julgar e do conhecer. Levando a crítica ao posicionamento que
considerava à psicologia a investigação e constatação da estrutura e
fundamentação científica e teórica da lógica, a qual constituiria sua
validade através da investigação empírica. A subordinação da lógica
a psicologia demostraria uma conversão da teoria do conhecimento
e da lógica a uma psicologia do conhecimento.
Segundo Schérer (1969), a reflexão sobre a lógica é o motivo
fundamental da edificação do método fenomenológico. Sendo
assim, Husserl demonstra o problema da lógica de seu tempo, a
qual continha imperfeições teóricas, ao fundamentar-se na
psicologia, o que a tornaria inábil para fornecer bases seguras para
o esclarecimento de uma unidade teórica, uma vez que se basearia
em uma ciência que tem como pressuposto unicamente fatos. Isso
o levou a uma proposta epistemológica que se distancia das
concepções filosofia até então, passando a considerar as formas de
conhecimento principalmente sobre o ato do conhecer e a
objetividade do conteúdo do conhecimento.
Por conseguinte, a tentativa de Husserl de fundamentação
de uma doutrina da ciência (Wissenschaftslehre) como lógica
pura, a qual se refere unicamente a objetividade da ciência,
considera a evidenciação das estruturas científicas enquanto
unidade ideal e objetiva e de caráter formal, sendo independente
das ciências particulares em seu conteúdo, bem como das
atividades empíricas e psicológicas tendo como escopo a
identificação de traços universais comuns entre todas as ciências
possíveis. A refutação do psicologismo e a proposta de uma lógica
enquanto disciplina teorética e como fundamento das ciências,
tem como ponto fulcral o estabelecimento de uma teoria do
conhecimento fundamentada sob um viés fenomenológico,
fundamentado por método próprio e que se articula em torno da
evidência e do reconhecimento no âmbito da idealidade.
Husserl, nas Investigações Lógicas (1900), critica a
concepção positivista-psicologista, indicando que o positivismo e
o psicologismo reduzem a ideia de verdade a uma verdade
A crítica ao psicologismo... 53

científica e objetiva, calcados em constatações decorrentes de


fatos contingentes do mundo físico. Deste modo, Husserl tem
como tarefa nesta obra, demonstrar como o psicologismo é
contraditório e explicar como um saber fundamentado na
universalidade e necessidade não esteja baseado na experiência e
que proporcione certeza apodítica (DIAZ, 2006, p.17-18).
Husserl objetiva explanar nos Prolegômenos à Lógica Pura,
a fundamentação de uma lógica pura, apontando as imperfeições
teóricas que a lógica de seu tempo possuía, a qual teria como
fundamento a psicologia, o que a tornaria inábil para fornecer
bases que fossem seguras para o esclarecimento de uma unidade
teórica, visto que esta se basearia em uma ciência que tinha como
pressuposto só fatos. Isso o levou a um estudo epistemológico
mais radical, considerando as formas de conhecimento, da
essência da lógica e principalmente sobre a relação da
subjetividade do conhecer e a objetividade do conteúdo do
conhecimento (ZAHAVI, 2015, p.14).
A crítica ao psicologismo nos Prolegômenos à Lógica Pura,
começa pela consideração do assunto relacionado a delimitação
de domínios de uma ciência, e isso inclui a lógica enquanto
ciência. Husserl (2005 [1900], p.3) afirma que a lógica, por mais
que tenha sido discutida por vários autores, os quais tiveram
interesse e dedicação na sua elucidação, ainda se encontra
distante de constituir uma definição generalizada sobre ela.
Husserl demostra que devido a influência de John Stuart
Mill e de seu tratado sobre a lógica, é possível encontrar três
correntes principais nesta disciplina, a saber, a psicológica, a formal
e a metafísica. As duas últimas correntes reproduzem ainda,
controversas questões de princípio, que refletem em uma
pluralidade de definições da lógica. É no campo da lógica
psicológica que se encontra uma maior dinâmica, exibindo
unidades de convicções referentes a uma delimitação da disciplina
e aos métodos e objetivos, no entanto não se encontra nela um
núcleo maciço que pudesse delimitar a ciência da lógica.
Nesta situação da ciência, seria necessária uma retomada
dos princípios que delimitem a lógica, isso sendo de grande
54 Estética e Educação

importância para a resolução de correntes diversas. Questões estas,


que se tornaram importantes devido à retomada das discussões
sobre tais temas e que pareciam terem sido superadas pelos ataques
de Mill contra a lógica de Hamilton e das investigações lógicas de
Trendelenburg (HUSSERL, 2005 [1900], p.4).
Devido ao crescimento de estudos psicológicos, a corrente
psicologista acabou por conquistar preponderância na lógica.
Tendo todos os esforços destinados em uma construção geral da
disciplina da lógica “[...] segundo princípios admitidos como
válidos [...]” (HUSSERL, 2005 [1900], p. 4). No entanto essa
perspectiva não alçou grandes êxitos na tentativa de trazer tal
disciplina ao curso seguro de uma ciência, dando motivos e
questionamentos para os objetivos perseguidos, requerendo uma
investigação mais atenta.
Segundo Husserl “[...] a apreensão dos objetivos de uma
ciência encontra, porém, a sua expressão na definição da mesma
[...]” (HUSSERL, 2005 [1900], p. 4). Para Husserl, as definições de
uma ciência refletem as etapas do seu desenvolvimento, bem como
o conhecimento subsequente das propriedades conceituais dos
seus objetos, a delimitação e a situação do seu domínio. Desse
modo:

[...] o domínio de uma ciência é uma unidade objetiva fechada;


não reside no nosso livre arbítrio onde e como delimitamos o
domínio da verdade. O reino da verdade divide-se objetivamente
em domínios; a investigação tem de se orientar segundo estas
unidades objetivas, e coordenar-se em ciências [...] (HUSSERL,
2005 [1900], p.4).

Entretanto é perigosa, uma imperfeição na delimitação do


domínio, ou como Husserl, chamou de “confusão de domínio”, ou
seja, a mistura do que é heterógeno em uma pretensa unidade de
domínio, ou ainda mais grave quando o fundamento está em uma
interpretação errônea do objeto.
Husserl quer demostrar nas Investigações Lógicas (1900)
que a lógica sofre esta confusão de domínios, o que ocasionou
dificuldades ao seu conhecimento. Para Husserl:
A crítica ao psicologismo... 55

[...] as investigações que se seguem esperam, com efeito, tornar


claro que a lógica até aqui, e principalmente a lógica atual,
psicologicamente fundada, sucumbiu quase sem exceção aos
perigos enunciados, e que pela incompreensão dos fundamentos
teóricos, e pela confusão de domínios daí resultantes, o progresso
no conhecimento lógico foi substancialmente dificultado [...]
(HUSSERL, 2005 [1900], p.5).

Husserl ao investigar os domínios científicos, considerando


os objetos e as relações submetidas a leis de cada domínio,
demostra que cada ciência em particular desenvolveria seus
métodos adequados para a investigação de seus objetos, e são estes
domínios, enquanto rigorosidade científica que não permitem
extrapolar um domínio para outros domínios, que requer métodos
diferentes de investigação. O erro do cientista é não buscar
investigar o fundamento do método que ele emprega (HUSSERL,
2005 [1900], p.8).
O estado de imperfeição das ciências, segundo expõe
Husserl nos Prolegômenos, não existe somente porque estas não
completaram a exploração de seus devidos domínios, mas devido
a falta de clareza acerca de suas próprias bases e de como o
conhecimento se justifica por meio destas. Para Husserl (2005
[1900], p.7) nem mesmo a matemática conseguiu tal engenho, pois
os pesquisadores, por mais que trabalhem com técnicas
engenhosas não possuem uma visão evidente das essências das
teorias que constroem. Segundo Santos (2010, p.100) o problema
da imperfeição das ciências particulares não decorre somente
devido ao conjunto de proposições e teorias formuladas, mas
devido a decorrência da falta de reflexão sobre seus fundamentos
e pressupostos metodológicos.
Neste sentido, as ciências particulares, para Husserl, não
obtendo êxito ao realizar uma explicação sobre seus métodos,
exigem um método diferente a qual possa realizar uma mudança de
perspectivas, uma vez que não possui uma em si mesma, a avaliação
de sua própria realidade, exigindo uma explicação que pressupõe
uma atitude teórica e metódica nova (SANTOS 2010, p.100). Desta
forma tona-se necessário uma doutrina das ciências, ou seja, uma
56 Estética e Educação

ciência das ciências, que terá como objeto aquilo que autentica a
ciência como sendo uma ciência. Apenas por meio de tal doutrina
e que se poderá fornecer e elucidar a fundamentação essencial de
uma ciência em geral, devido a esses fundamentos encontrarem-se
sem uma elucidação adequada pelas ciências particulares é que há
uma imperfeição teórica das ciências (HUSSERL, 2005 [1900], p.12).
Husserl demostra a importância de fundamentações para o
conhecimento que ultrapasse o imediatamente evidente, por isso,
torna-se tão necessário às ciências uma “doutrina da ciência, uma
lógica” (HUSSERL, 2005 [1900], p.12, grifo do autor). Santos (2010,
p.104) expõe que a lógica surge como a teoria de todas as teorias
possíveis, ou como ciência ou teoria das ciências em geral.
Oferecendo uma fundamentação verdadeira e universal que não se
restringe ao domínio particular do conhecimento, mas sim a
possibilidade do conhecimento geral. Assim, Husserl (2005 [1900],
p.18) considera a lógica como teoria das ciências, sendo necessário
delimitar a ação que possibilita ser uma disciplina de
fundamentação das ciências.
Entretanto, Husserl aponta quatro questões
tradicionalmente controversas para a delimitação da lógica,
questões estas que estão intimamente ligadas, fazendo com que a
tomada de posição por uma, influencie e condicione a tomada de
posição das restantes, a saber:

1. Se a lógica é uma disciplina teorética ou pratica (i.e., uma


“técnica”)
2. Se é uma ciência independente e, em especial, independente da
psicologia ou da metafísica.
3. Se é uma disciplina formal ou, segundo se usa considerar, se diz
respeito só à mera “forma do conhecimento”, ou se tem de dizer
respeito também à sua “matéria”.
4. Se tem o caráter de uma disciplina apriorística e demonstrativa,
ou empírica e indutiva (HUSSERL, 2005 [1900], p.5-6).

Desta forma, Husserl nos Prolegômenos (1900) objetiva


realizar esclarecimentos sobre a lógica pura, fazendo um exame da
concepção comum aceita da lógica como “técnica do pensar”, bem
A crítica ao psicologismo... 57

como uma investigação referente aos fundamentos teóricos da


lógica. Com o intuito de elucidar as relações entre lógica e
psicologia, que culmina no debate com o psicologismo. Sendo o
resultado destas investigações uma clara ideia da lógica, no quadro
geral da teoria do conhecimento. Os propostos que norteiam esta
discussão são os questionamentos em relação a se os fundamentos
teoréticos da lógica residem na psicologia ou se lógica é puramente
teorética. Desta forma, Husserl considera que há duas concepções
de lógica, a primeiro fazendo referência a uma disciplina teorética
independente da psicologia, formal e demonstrativa. E a outra
como sendo a lógica uma técnica dependente da psicologia, não
formal e não demonstrativa em sentido aritmético.
Husserl começa expondo a discussão entre os partidários
ao psicologismo como Theodor Lipps, Wilhelm Wundt e John
Stuart Mill. E os antipsicologistas, adeptos a lógica a uma formal e
demonstrativa como, Herbart, Hamilton, entre outros. Os
primeiros afirmam que não há sentido e motivos para a
formulação de uma nova ciência no âmbito da lógica, uma vez que
esta se encontra no âmbito da psicologia (HUSSERL, 2005 [1900],
p.40). Esta disciplina estaria diretamente vinculada com a lógica
fornecendo fundamentos únicos e teoricamente suficientes para
esta última, sendo a constituição e validade constatadas através da
investigação empírica (ZAHAVI, 2015).
Segundo os defendentes do psicologismo, a definição de
lógica implica uma função normativa e prática, ou seja, uma
técnica do pensar (l’art de penser) assim, o pensar, o julgar, o
raciocinar, o conhecer e o demostrar, seriam técnicas de
orientação do entendimento, encontrando na lógica atividades ou
produtos psíquicos indicados como objetos de regulamentação
prática. Da mesma forma que a elaboração artificial de um
material conjectura o conhecimento de suas propriedades, o
mesmo deverá ocorrer nesta situação a qual trata de um material
psicológico. (HUSSERL, 2005 [1900], p.40). Dentro desta óptica, a
psicologia forneceria os fundamentos teóricos para a edificação de
uma técnica lógica sendo impossível a desvinculação desta
disciplina do conteúdo psicológico.
58 Estética e Educação

No entanto, a corrente antipsicologista tenta demonstrar a


separação das duas disciplinas, considerando para isso, o caráter
normativo da lógica, enunciando que “[...] a psicologia, diz-se,
considera o pensar como ele é, a lógica, como deve ser [...]”
(HUSSERL, 2005 [1900], p.40-41). Desta forma, a primeira refere-
se às leis da natureza e a segunda as leis normativas do pensar.
Considerar a lógica como constituída pela psicologia, torna-se por
meio da crítica, tão insensato “[...] quanto retirar a moral a partir
da vida [...]” (HUSSERL, 2005 [1900], p.41). A lógica deve ensinar
o emprego correto do entendimento, ou seja, o seu emprego de
acordo consigo mesma, não se preocupando em determinar como
é que pensa o entendimento e como procedeu a lógica no pensar,
mas sim como deveria proceder ao pensar (HUSSERL, 2005 [1900],
p.41).
A oposição dos psicologistas considera que quando se
pensa sobre o uso necessário do entendimento, este já é um
entendimento e está relacionado com a psicologia, desta forma o
pensar como deve ser é um caso especial do tal como ele é
(HUSSERL, 2005 [1900], p.41). Lipps apud Husserl (2005 [1900],
p.42), considera que as regras por meio das quais se tem de
proceder para pensar corretamente, são regras pelas quais que
exige a natureza do pensar, sendo assim a lógica a física do pensar
ou coisa nenhuma.
Para os antipsicologistas, os juízos, silogismo, e outros
gêneros de representação, enquanto disposições psíquicas,
também pertencem a psicologia, mas possui uma tarefa diferente
da lógica. As duas estudam leis dessas operações, no entanto “lei”
significa algo distinto para ambas. A tarefa da psicologia é
pesquisar, segundo suas leis, as conexões reais entre si dos
processos de consciência, bem como as disposições psíquicas
associadas e os processos que corresponde ao organismo
corpóreo, lei significa aqui, “[...] uma fórmula sumária para uma
ligação necessária e sem exceção na coexistência e na sucessão
[...]” (HUSSERL, 2005 [1900], p.42), como uma conexão causal.
Para a lógica, não há pergunta sobre a origem e pela
consequência causais das operações intelectuais, mas pelo seu
A crítica ao psicologismo... 59

conteúdo de verdade, ela se preocupa com a pergunta sobre a


constituição e como devem decorrer as operações, para que os
juízos resultantes sejam verdadeiros. Os juízos corretos ou
incorretos apresentam-se contingentes devido às leis naturais, e
assim como todos os fenômenos psíquicos, tem seus antecedentes
e consequentes de origem causal. Entretanto os lógicos não se
interessam por essas conexões naturais, buscam as conexões ideias
realizadas no processo fático do pensar. O objetivo da lógica, não
é uma física, mas uma ética do pensar (HUSSERL, 2005 [1900],
p.42).
Husserl aponta como insuficiente a constatação dos
psicologistas ao tentar provar que a psicologia participa sozinha
na fundamentação da lógica, ou que preferencialmente estabeleça
o fundamento essencial da lógica. Husserl demonstra a abertura
de possibilidade, a qual outra ciência contribuiria para a
fundamentação, esta ciência seria segundo Husserl, seria a Lógica
Pura, que segundo os antipsicologistas, deve ser considerada como
uma “[...] ciência com fronteiras naturais, encerrada em si mesma
e independente da psicologia [...]” (HUSSERL, 2005 [1900], p. 45).
Husserl preconiza as críticas ao psicologismo, mas não
considera inteiramente adequadas a postura antipsicologista.
Postula que mesmo a lógica sendo determinada como uma
tecnologia do pensar ou como uma lógica normativa, inferirá
como fundamento uma base teorética. Segundo Husserl “[...] toda
disciplina normativa, e a fortiori, toda disciplina prática,
pressupõe como fundamento uma ou mais disciplinas teoréticas
[...]” (HUSSERL, 2005 [1900], p.35). A lógica baseada em princípios
normativos torna-se inadequada, por desconsiderar seus aspectos
enquanto puramente teorética, e considerando que somente por
derivação as proposições lógicas podem ser normatizadas
(SANTOS, 2010, p.107). O princípio normativo de uma disciplina
decorre diretamente de uma teoria que a fundamenta e lhe
garante a unidade sistemática das proposições. Husserl determina
que se busque a teoria adequada que possa explicar a
normatividade lógica, qual unidade sistemática teórica, uma vez
que a lógica possui um teor normativo.
60 Estética e Educação

Em relação aos psicologistas, Husserl mostra que ao tentar


fundamentar a lógica em atos psicológicos, estes não distinguem
e confundem as leis de pensamento e leis causais da natureza.
Confinando-se em um probabilismo e se eximindo da distinção
entre conteúdo do juízo e o próprio juízo, o qual está submetido
em acontecimentos reais e casuísticos, confundindo deste modo,
o ideal e o real.
Apesar de Husserl tomar partido ao lado dos
antipsicologistas, adverte que se deve considerar as incorreções e
refutações que foram trazidas pela corrente psicologista. Desta
forma, Husserl considera que a verdade poderá estar no justo
meio, entre as duas concepções, necessitando de uma maior
delimitação conceitual (HUSSERL, 2005 [1900], p. 44).
A psicologia, segundo Husserl, é uma ciência de fatos, uma
ciência experimental ao mesmo modo das ciências positivas,
adotando como metodologia investigativa a indução. A qual parte
de observações de fatos particulares de forma sistematizadas,
descrevendo a regularidades do aparecimento de um evento, para
assim inferir uma lei geral. Husserl vai demostrar que regras
meramente empíricas, como as elegidas por indução, ao
demostrar leis gerais precisam de exatidão absoluta e tais leis são
unicamente generalizações e probabilidades vagas da experiência,
o que faz com que o sentido atribuído a uma lei não seja autêntico
(TOURINHO, 2014, p 133).
Na psicologia encontram-se generalizações vagas da
experiência enunciada sobre regularidades, faltando a psicologia
leis genuínas e exatas, pois funda-se sob regras teóricas vagas. Para
Husserl “[...] sobre fundamentos teoréticos vagos só podemos
fundamentar regras vagas [...]” (2005 [1900], p.47). Destarte, o
psicologismo erra em tomar as puras leis do pensamento em
termos de leis causais da natureza, prendendo-as na esfera do
probabilismo. Husserl expõe que o naturalismo faz confusões, por
não considerar a distinção crucial entre as leis lógicas, conhecidas
como os conteúdos dos juízos, e os próprios juízos, como sendo
acontecimentos reais dotados de causa e efeito. Assim, confundem
a lei do pensar com o ato de julgar, ou seja, o ideal com o real. A
A crítica ao psicologismo... 61

redução da lógica aos critérios psicológicos, demonstra uma falta


de conhecimento da idealidade, da apodicidade e da validade a
priori, que caracterizam as leis lógicas, questões esta que não
possuem fundamentação e explicação em uma vinculação com a
natureza empírica e fática do psíquico (ZAHAVI, 2015,p.15).
Tem-se a unanimidade perante a psicologia que esta seja
uma ciência de fatos ou ciência da experiência, e que não se
encontra nela leis genuínas e exatas e que as proposições que ela
confere como lei, não passam de generalizações vagas da
experiência (HUSSERL, 2005 [1900], p.48), pois sob bases que são
imprecisas só podem-se fundar leis que são imprecisas, se a lógica
fosse fundada na psicologia, suas leis não aspirariam exatidão, pois
seu fundamento não conseguiria estabelecer leis exatas, assim, a
silogística e outras leis lógicas que são absolutamente exatas por
não ser obtidas por via da generalização empírica. O mesmo
raciocino aplica-se as leis da matemática. Não se pode confundir
as leis ideais de caráter lógico-matemático, com a causalidade das
ciências de fatos, a autêntica objetividade somente é alcançada na
esfera do conhecimento conceitual, ou seja, na esfera dos objetos
ideais.
O que na psicologia é uma possibilidade justificada, na
lógica se manifesta absurdo, pois a “[...] a probabilidade não pode
se impor contra a verdade, ou a conjectura contra a intelecção [...]”
(HUSSERL, 2005 [1900], p.47), as leis psicológicas, estariam
fundamentadas pela indução partindo de fatos particulares da
experiência. No entanto a indução não funda a validade da lei, mas
unicamente a probabilidade desta validade, justificado por
intelecção é a probabilidade não a lei. Não podendo ser
confundida com leis lógicas como o princípio da não-contradição
e as leis silogísticas, que seriam a priori tendo como validade a
evidência apodítica e a apreensão por intelecção. A lógica como
ciência teorética compõe-se de proposições verdadeiras que
possui validade que não dependem do sujeito pensante.
O erro fundamental do psicologismo demonstrado por
Husserl segundo Zahavi (2015, p.15), é a não distinção clara entre
o objeto e o ato do conhecimento. O ato é um processo psíquico
62 Estética e Educação

temporal possuindo começo e termino, não sendo possível aplicar


os mesmos atributos para os princípios lógicos ou objetos
matemáticos. A lógica não se referencia a uma experiência
subjetiva e com duração no tempo, mas sim na atemporalidade, a
objetividade e a uma validade eterna. Mesmo que os princípios
lógicos sejam apreendidos e conhecidos na consciência, aquilo de
que somos conscientes permanece ideal, não podendo ser
reduzido a atos psíquicos reais.
Não obstante, Husserl parece identificar, ainda que
aceitando mais os preceitos antipsicologista, que os dois partidos
que se referem a lógica não chegam a um resultado exatamente
sólido por não explicitarem como relacionam-se o ato subjetivo de
conhecimento e o seu objeto transcendente visado neste ato.
Desta forma o ato de julgar refere-se sempre a um vivido, o juízo
sempre será de uma vivência da consciência do sujeito julgador,
no entanto o conteúdo do julgado, não está contido no ato e nem
recai em uma instância fatual, fundando em uma ciência empírica
que possa fundamentar o caráter normativo da lógica. Todo ato
tem a particularidade de fazer referência a um objeto que
transcende a consciência. Nos Prolegômenos, Husserl apresenta o
início desta questão, a qual vai ser respondida não âmbito da
fenomenologia, a qual pretende resolver este impasse ao descrever
uma subjetividade que não tenha a referência contingente e fatual
do empírico, mas sim que se preocupe com a descrição das
vivências da consciência.

REFERÊNCIAS

DIAZ, Vicente Lozano. Hermenéutica y Fenomenologia: Husserl,


Heidegger y Gadamer. 1ª Edicíon. Coleccíon: Monografías:
Filosofia. Edicep C.B. Valencia-España, 2006.

HUSSERL, Edmund. [1900]. Investigações Lógicas: Prolegômenos


à Lógica Pura. 1ª Edição. Tradução de Diogo Ferrer. Lisboa: CFUL.
Coleção Phainomenon: Clássicos de Fenomenologia, 2005.
A crítica ao psicologismo... 63

SANTOS, José Henrique. Do empirismo à fenomenologia: A


crítica do psicologismo nas Investigações Lógicas de Husserl. São
Paulo. Loyola, 2010.

SCHÉRER, René. La fenomenologia de las “Investigaciones


Lógicas” de Husserl. Versión espanola de Jesus Díaz. Madrid:
Editorial Gredos S. A.,1969.

TOURINHO, Carlos Diógenes C. Lições fundamentais de Husserl


em Prolegômenos: distinção e relação entre real e o ideal/ o
normativo e o puramente teorético. Problemata: R. Intern. Fil, v5,
n1, p.130-148, 2014.

ZAHAVI, Dan. A fenomenologia de Husserl. 1ª Edição. Rio de


Janeiro: Via Verita, 2015.
II

A LEGITIMIDADE DA ESTÉTICA POPULAR:


uma abordagem pragmatista do rap

Rafaela Ortiz de Salles*


Bernardo Sakamoto**

PALAVRAS-CHAVE: pragmatismo; arte popular; rap.

INTRODUÇÃO

Richard Shusterman, nasceu em 3 de dezembro de 1949,


nos Estados Unidos da América. Atualmente ele é professor de
filosofia na Florida Atlantic University. A filosofia de Shusterman
se estende além dos limites da universidade, em 1995, ele foi
membro delegado da UNESCO, Filosofia e Democracia no Mundo,
e durante vários anos ficou a frente do projeto da UNESCO
MÚSICA: Música, Urbanismo, Integração Social e Cultura. Em
2012, preparou um projeto encomendado pela UNESCO que visava
utilizar a internet para estimular os jovens do mundo todo a
adentrar no diálogo sobre a paz e a violência, por meio da arte.
Um dos problemas abordados por Shusterman, na obra que
irei investigar, é a legitimação estética da arte popular. Ele sente
que, embora a arte popular possa agora parecer socialmente
justificada, seu valor artístico ainda é questionado, o que resulta
nos desdobramentos argumentativos da obra.
Um defensor assíduo da estética popular, Shusterman
reconhece as falhas estéticas e seus abusos políticos, mas também
enaltece seu potencial e sua grande capacidade de interação para
uma pratica politico e social. O pragmatismo de Shusterman,
admite que existem perigos na integração da arte com a vida,

*
UNIOESTE; E-mail: rafa-salles@hotmail.com.
**
UNIOESTE.
66 Estética e Educação

assim como reconhece que as artes populares podem ser


exploradas com objetivos de manipulação e de dominação social,
ele insiste então, na necessidade de uma crítica constante das artes
populares, mas rejeita a concepção adorniana de condenação total
das produções populares. Colocando seu meliorismo em prática,
Shusterman procura estabelecer a legitimação estética para a arte
popular estabelecendo a definição de arte como experiência,
assumindo que poderia “efetuar a legitimação artística” da arte
popular, a estética pragmatista e fornecendo argumentos contra
as críticas à arte popular, por exemplo, as de Theodor W. Adorno,
Shusterman, desenvolve também uma crítica estética de gêneros
particulares das artes populares, como o rap. É valido ressaltar que
Shusterman foi provavelmente o primeiro filósofo a escrever sobre
a arte do rap. Para apresentar melhor estas ideias, dividi o trabalho
em três partes, a primeira parte, o que é pragmatismo?; a segunda
parte, as acusações feitas à arte popular, e por ultimo, o que é o
Rap.

2.1 O QUE É PRAGMATISMO?

Na obra VIVENDO A ARTE: O pensamento pragmatista e a


estética popular, Shusterman elabora um prefácio voltado
especialmente aos leitores brasileiros, justamente porque a
corrente filosófica do pragmatismo é tipicamente americana, e
ainda pouco divulgada no Brasil, com exceção de alguns trabalhos
realizados no meio acadêmico.
Um dos objetivos de Richard Shusterman é o de introduzir
a estética pragmatista de Dewey elaborada nos anos 30, que tinha
como ponto principal a aproximação da arte à vida, mas que logo
perdeu forças. Através desta pesquisa, buscarei em Shusterman, os
critérios para romper a crença da estética de que a arte está
descolada da vida, mostrando que ela se torna mais atraente e
significativa quando admitimos que, ao abranger o prático, ela
também condiz com o social e o político.
Ao repensar a arte e a estética, o pragmatismo também
repensa o papel da filosofia, nesta corrente filosófica a tarefa da
A legitimidade da estética popular... 67

estética não é, apenas, identificar a verdade de nossa compreensão


da arte, mas sim repensar a arte, não sendo mais o objetivo último
o conhecimento, mas a experiência. Buscando aproximar a
experiência da arte, devemos trabalhar a partir de obras de arte
concretas, por isso escolhi o gênero musical, que ganha cada vez
mais popularidade, o RAP. Este gênero é analisado por
Shusterman nos últimos capítulos do livro, buscando legitimar a
arte popular, comprovando que ela esta interconectada com a
vida. O pragmatismo considera que o conceito de arte deve ser
repensado democraticamente como parte de uma reforma social,
mudando consequentemente os fatos sociais.
A arte popular, ainda não teve seu momento de gloria,
justamente pelo modo como é tratada pelos críticos intelectuais.
Quando ela não é completamente ignorada, ela é rebaixada a lixo
cultural, por alegarem sua falta de reflexão. A difamação da arte
popular parece inevitável. O uso "popular" contrasta com o uso
"nobre" por ser mais próxima da experiência e menos amparada
pelas teorias academicistas.
Um dos primeiros argumentos identificados por
Shusterman, que ressaltam a ilegitimidade da estética popular, é a
falsa acusação de que as produções da cultura popular visam
apenas a venda e o lucro, colocando seus consumidores como
seres passivos. Para ele a critica de que a cultura popular vise
apenas o lucro, não esta limitada apenas a isto, mas também ao
fato de que a partir desta limitação, as produções da cultura
popular se tornam homogêneas a fim de agradar seus
consumidores, perdendo assim o caráter individual de seus
produtores, deixando de lado a criatividade e a originalidade, essa
é uma das criticas centrais na obra do filósofo, e que iremos
trabalhar no decorrer deste artigo.
68 Estética e Educação

2.2 ACUSAÇÕES À ARTE POPULAR

O primeiro tópico que Shusterman se prontifica a defender


perante a cultura popular, é o prazer estético que a mesma nos
proporciona, um prazer forte demais para que aceitemos as
críticas feitas à sua ilegitimidade estética. Por muito tempo, os
grandes críticos de arte, alegaram que as artes populares
satisfaziam apenas ao espírito rude e grosseiro das massas
ignorantes e manipuladas, tomando o Rap como exemplo e me
colocando também como consumidora desta arte, cito
Shusterman:

equivale a nos colocar não só contra o resto de nossa


comunidade, mas também contra nós mesmos. Somos levados a
desprezar as coisas que nos dão prazer e a sentir vergonha desse
prazer. (SHUSTERMAN, 1998, p. 100).

Contudo, mesmo que a defesa da arte popular não consiga


libertar os grupos dominados que a consomem, ela pode ao menos
ajudar nossas partes oprimidas a se libertarem dessa pretensão do
conceito de “artes maiores”, que Shusterman utiliza para se referir
as culturas eruditas e as artes clássicas. Essa divisão traçada entre
as artes maiores e a arte popular, apenas retrata as mesmas
divisões da nossa sociedade, tornando as artes maiores de difícil
acesso ao proletariado e legitimando a arte popular como
desprovida de sentido, beleza e conteúdo, tendo acesso a essa,
apenas as classes dominadas. Reconhecer a opressão cultural, a
divisão no mundo das artes e na nossa sociedade, já é um estimulo
para uma reforma social.
Segundo Herbert Gans (1927-atualmente), um dos grandes
defensores da arte popular, citado por Shusterman:

uma vez que as classes inferiores "não se beneficiam das


oportunidades socioeconômicas e educacionais necessárias para
escolher as formas de cultura superior", elas não podem ser
condenadas por apreciar os únicos produtos culturais que são
capazes de apreciar; uma sociedade que não consegue lhes
A legitimidade da estética popular... 69

fornecer educação e lazer adequados à cultura superior "deve


permitir a criação de conteúdos culturais que encontrem [...]
suas necessidades e seus critérios de gosto" reais (GUNS apud
SHUSTERMAN, 1998, p. 102).

Porém para Shusterman, tal argumento está longe de ser


aceito para a legitimidade da estética popular, pois ele consiste
apenas na crença de que somente para aqueles que possuem falta
de educação, lazer e difícil acesso à cultura superior, possuem a
cultura popular como amparo, não a desfrutando pelo simples
prazer que ela proporciona, contribuindo assim para uma divisão
social e aniquilando a legitimidade da estética popular, colocando-
a apenas como algo para ser tolerado e não apreciado e celebrado.
Um dos maiores empecilhos ao tentar firmar a legitimidade
estética da cultura popular, encontra-se na própria palavra
“estética”, justamente por remetermos a mesma apenas as artes
maiores, como se o termo “estética popular” fosse uma
contradição. Realmente, o termo “estética” é fruto de um discurso
intelectual e desde então, vem sendo aplicado às artes maiores,
mas seu uso não é assim tão restrito, libertar o termo estética desse
monopólio das artes maiores é extremamente necessário para
conseguirmos traçar a legitimidade estética da arte popular.

Basta considerar as inúmeras escolas de moda e os salões de


cosméticos que são chamados de "salões de estética" e “institutos
de beleza’’, e cujos profissionais são denominados “esteticistas”“.
Além disso, predicados estéticos tradicionais, tais como "graça",
"elegância", "unidade" e "estilo" são aplicados regularmente aos
produtos da arte popular, sem equívoco aparente.
(SHUSTERMAN, 1998, p. 104).

Richard Shusterman identifica que as acusações mais


graves feitas contra a arte popular não se dirigem apenas a sua
situação estética, mas principalmente a sua influência cultural e
política. A primeira critica realizada à arte popular pelos críticos,
reside na ideia de que as produções da cultura popular são
voltadas para o capitalismo, a arte como mercadoria, visando a
70 Estética e Educação

venda e o lucro, colocando seus consumidores como impotentes.


Shusterman identifica tal crítica como extremamente perigosa
para a legitimação que ele está tentando traçar em sua obra,
porque, além de abranger o mercado capitalista, ela abrange
também o critério de criação, pois já que as artes populares visam
apenas um lucro desenfreado, visam atingir um grande publico,
passando a produzir arte para uma grande massa homogênea, o
que torna a arte popular padronizada, perdendo assim seu caráter
de arte pessoal, ou seja, a critica remete também para a falta de
criatividade e originalidade nas artes populares.
A segunda critica contra a cultura popular concerne a seus
efeitos negativos sobre a cultura superior, alegando que a cultura
popular, apenas empresta elementos da cultura superior, não
construindo assim sua própria identidade.

e pode ser reduzido, segundo Gans, a duas críticas básicas: "que


a cultura popular empresta o conteúdo da cultura superior,
degradando-o, e que, oferecendo incentivos econômicos, a
cultura popular é capaz de desviar os criadores potenciais do
domínio da cultura superior, diminuindo assim a qualidade
desta. (SHUSTERMAN, 1998, p. 106)

Posso até mesmo admitir que o empréstimo das artes


populares seja um desafio à cultura superior, porem, devemos
analisar isso de forma positiva, pois assim, as artes superiores
perdem seu posto de dominação. Shusterman, diante desta
acusação, se mostra preocupado agora em elaborar um VALOR
ESTÉTICO PRÓPRIO da cultura popular.
Essa suposta ausência de valor estético da arte popular
suscita em diversas criticas, que correspondem aos efeitos
negativos da cultura popular sobre seu público, Herbert Gans,
enumera as principais criticas, cito Shusterman:

Gans reuniu aqui as acusações que especificam três efeitos: "a


cultura popular é emocionalmente destrutiva, pois produz uma
satisfação fictícia...] ela é intelectualmente destrutiva, já que
oferece um conteúdo evasivo que inibe a capacidade das pessoas
A legitimidade da estética popular... 71

de enfrentar a realidade e (...) ela é culturalmente destrutiva,


enfraquecendo a capacidade das pessoas de participar da esfera
da cultura superior’. “Tais críticas, rejeitadas por Gans pelo fato
de não serem confirmadas por evidencias empíricas conclusivas,
apoiam-se na suposta pobreza estética da arte popular.
(SHUSTERMAN, 1998, p. 107).

Shusterman alega diante desse grupo de criticas que as


mesmas não possuem nenhum valor empírico e real, apenas são
sustentadas pela suposta ausência de estética dentro das artes
populares. Seus supostos efeitos negativos na sociedade, acusam
as artes populares de criarem um público passivo, receptivo e
alienado à de persuasão de massa.
Acusar a arte popular de induzir ao conformismo sob a
premissa de que ela requer uma recepção estúpida e passiva,
equivale a afirmar que a arte popular não pode inspirar nem
recompensar uma atenção estética fora desse âmbito de
passividade sem crítica. Tal acusação pode ser efetivamente
destruída quando demonstrada que a arte popular pode ser não só
intelectualmente estimulante, como intensamente crítica em
relação às condições sociais, tais demonstração que pretendo
realizar com o estudo do Rap.
Não podemos ignorar que muitos produtos da arte popular
deixam a desejar do ponto de vista estético, seus efeitos sociais
podem realmente ser muito nocivos, se desfrutados de forma
passiva e sem crítica. O que busco contestar juntamente com
Shusterman e com um estudo mais aprofundado do Rap são os
argumentos filosóficos segundo os quais a arte popular constitui
um fracasso estético necessário, tendo como ponto principal da
cultura popular, o desdém e a certeza de que nunca poderão ser
boas.
Shusterman reconhece também que a arte popular pode se
tornar um meio de manipulação, se não amparada por uma teoria
estética ou de um reconhecimento social, mas também acredita
no seu potencial de propor uma livre expressão daquilo que há de
melhor na vida.
72 Estética e Educação

Sustento que a arte popular deveria ser melhorada, porque ainda


deixa muito a desejar, e ela pode ser melhorada, porque pode
alcançar, e tem alcançado um mérito estético real, servindo a fins
sociais de valor. Minha posição insiste em que a arte popular
merece uma atenção estética séria, uma vez que considerá-la
indigna de consideração estética equivale a abandonar sua
apreciação e seu futuro às pressões mais mercenárias do
mercado. (SHUSTERMAN, 1998, p. 110).

Aqui, me posiciono a favor da filosofia de Richard


Shusterman, que no meio de críticas e defesas, elabora o seu
meliorismo, reconhecendo os sérios problemas da arte popular,
mas também seus méritos e seu potencial. A cultura popular
merece uma atenção estética e filosófica, assim como as artes
maiores.
O argumento central contra a arte popular é de que ela não
é capaz de oferecer nenhuma satisfação estética, sendo os
prazeres, as sensações e as experiências que a mesma produz,
rejeitados como falsos e enganosos, enquanto as artes maiores são
tidas como autênticos e únicos. Adorno é um dos grandes
defensores desse argumento e salienta que as satisfações causadas
pela arte popular são “exauridas” e “falsas” e relata “sendo massas
provadas do prazer verdadeiro, elas, por ressentimento, deliciam-se
com os substitutos que aparecem em seu caminho’’ (ADORNO
apud SHUSTERMAN, 1998, p 111)”. O entusiasmo, em recusar que
na arte popular não há nada de positivo, como o prazer, leva seus
críticos não só a negar que as experiências e os divertimento sejam
legítimos, como a negar também a própria existência das artes
populares:

implica que a elite cultural não apenas tenha o poder de


determinar, contra a opinião popular, os limites da legitimidade
estética, mas também de decretar, contra a evidência empírica,
o que pode ser chamado de experiência ou prazer reais.
(SHUSTERMAN, 1998, p. 111).

Porém, o que de fato se pretende ao afirmar que as


satisfações oferecidas pela cultura popular são ilegítimas? Quais
A legitimidade da estética popular... 73

argumentos sustentam essa tese? Richard Shusterman reconhece


que tais criticas não são fundamentadas, mas afirmadas pela
autoridade dos prepotentes defensores das artes maiores e pela
ausência de oposição em favor da estética popular.
Talvez a interpretação mais razoável desta acusação de
ilegitimidade, seja que os prazeres da arte popular não são reais
por não serem sentidos profundamente. Mas a experiência do Rap
pode desmontar tal argumento, já que a mesma pode ser tão
intensamente arrebatadora e poderosa a ponto de modificar a vida
de diversas pessoas que possuem contato com o movimento.
Tomemos de exemplo, o antigo grupo de rap 509-E. O grupo era
formado pelo Dexter e o Afro-X, que se juntaram no extinto
presídio Carandiru na cela que se tornou o nome do grupo, em São
Paulo. Ainda detentos, começaram a escrever letras de rap que se
tornaram a voz de todos os penitenciários e moradores de
periferia:

[…] Sem anistia, todo dia é foda, cadeia, ae maluco, to fora.


Continuar no crime, não to afim, não quero mais essa vida pra
mim.
Num pássaro voando enxerguei minha verdade, compreendi o
valor da liberdade. Na paz, sigo sempre mais, pena que esta ideia
pra você tanto faz. […]
(509-E. Oitavo anjo, Provérbios 13. Gravadora: Atração
Fonográfica. 2000).

[…] os mano da correria que se envolve com o rap, curti esse rap,
é resgatado pelo rap […].
(CRIOLO, Sapatinho. Ainda há tempo. Oloko, 2016).

Ameaçadoras e reais em sua intensidade, as satisfações da


arte popular às vezes são desprezadas como falsas em outro
sentido, que Shusterman alega ser o da efemeridade. Elas não são
reais por serem fugazes, mas por garantir um divertimento
temporário e não duradouro, porém, devemos salientar que aquilo
que existe apenas por um período, ainda assim existe, e a
satisfação temporária é igual a qualquer outra. O caráter
74 Estética e Educação

passageiro dessas nos estimula a querer ainda mais, e nos faz


questionar essa exigência de uma satisfação duradoura, mesmo
que as proporcionadas pelas artes populares sejam passageiras,
elas possuem seu valor, rejeitar isso se tornou cultural no meio de
nossa sociedade intelectual.

[…]de um ponto de vista lógico, é simplesmente falso concluir


pela irrealidade de algo a partir de sua efemeridade. Esta
conclusão arbitrária pode parecer convincente não só por ter um
bom pedigree filosófico, remontando a Parmênides, mas
também por servir um forte motivo psicológico - nosso profundo
desejo de estabilidade, erroneamente interpretado como uma
necessidade de absoluta permanência. Mas, apesar do suporte de
preconceitos tão poderosos e duráveis, a inferência é claramente
falsa. (SHUSTERMAN, 1998, p. 112).

As satisfações da arte popular ainda podem ser acusadas de


meras substitutas de prazeres que são mais reais ou essenciais, ou
seja, os vindos das artes maiores, Adorno denuncia que as
condições sociais nos negam uma real satisfação estética:

[…] sendo as massas privadas do prazer verdadeiro, elas, por


ressentimento, deliciam-se com os substitutos que aparecem em
seu caminho'', apresentados pela "arte ordinária" e pelo
"divertimento" (ADORNO apud SHUSTERMAN, 1998, p. 116).

Assim, criticar a arte popular por oferecer apenas prazeres


ilegítimos é também um disfarce para a negação de todo prazer
mundano, uma estratégia adotada pelas mentes fechadas, que
temem o prazer como um desvio de sua moral fundamentada em
princípios básicos, a arte popular é na maioria de suas produções
pesada demais; o rapper Sabotage1, um dos maiores nomes do Rap
nacional, foi assaltante e gerente de tráfico e encontrou a saída da
vida do crime no rap, mas foi morto a tiros em 2003. No trecho
abaixo ele relata de forma clara a realidade da Zona Sul de São

1
Mauro Mateus dos Santos (São Paulo, 3 de abril de 1973 — São Paulo, 24 de
janeiro de 2003) foi um cantor, compositor, rapper e ator brasileiro.
A legitimidade da estética popular... 75

Paulo, o que obviamente, desafia toda e qualquer moralidade; as


gírias, a critica à opressão policial a referência ao crime, etc., nos
remete a uma realidade cruel:

[…] Pra quem nasceu na sul, o sofrimento é evidência.


Aqui não tem paz, aqui não tem sinceridade
Não tem nenhum filha da puta sem maldade
Necessidade, na espraiada o crime em sua porta
Também polícia, revólver, droga […].
(SABOTAGE, País da fome. Sabotage, 2016).

Para Shusterman, a arte popular é sempre condenada por


nunca fornecer uma resposta ativa, ela induz a uma passividade,
sua estrutura simples é totalmente o oposto das artes maiores, cuja
apreciação demandam um esforço intectual e estimulante.

Esta passividade explicaria não somente seu grande poder de


atração como também sua incapacidade de satisfazer
verdadeiramente. Sua "inatividade" seduz facilmente aqueles de
nós que estão cansados demais para buscar algo provocativo
(BOURDIEU apud SHUSTERMAN, 1998, p. 117).

Shusterman identifica nesta acusação o mesmo problema


do argumento anterior que acusa a arte popular de submeter seus
consumidores a meras pessoas passivas e sem critica. Porém tais
argumentos recusam-se a reconhecer que existem atividades fora
do esforço intelectual que são gratificantes do ponto de vista
estético e humano. Existem outras formas, validas de esforço,
resistência e satisfação, tomando de exemplo a cultura hip-hop,
temos o graffit, o break-dance, o beat-box e etc. É claro que, há
muito mais atividade e esforço na apreciação da cultura hip-hop
do que na música erudita, cujos concertos nos forçam a ficar
sentados num silêncio imóvel que induz à passividade. Assim,
como podemos identificar na letra de Rincon Sapiencia, um nome
que ganhou destaque no cenário Hip-Hop no ano de 2016:
76 Estética e Educação

[…] Corpo não para de mexer da até calor


É vitamina pra alma, melanina tem
E todos querem degustar desse bom sabor
Vamo, vamo, vamo
Sem corpo mole, mole, mole […]
(RINCON SAPIENCIA, A coisa ta preta. Galanga livre, Boia fria
Produções, 2017).

Desta forma, as artes populares, sugerem uma estética


revisada, com um retorno alegre da dimensão corporal que a
filosofia reprimiu, por tanto tempo, a fim de preservar sua
superioridade.

Não é de se surpreender que a legitimidade estética de tal


arte seja negada com veemência e que seus esforços
corporais sejam ignorados ou rejeitados como regressão
irracional em relação à verdadeira finalidade da arte - a
finalidade intelectual. O fato de esta arte e sua apreciação
ter raízes numa civilização não ocidental as torna ainda
mais retrógradas e inaceitáveis (SHUSTERMAN, 1998, p.
119).

Richard Shusterman reconhece que muitos produtos da


mídia são superficiais, mas os críticos culturais deduzem
erroneamente que todos sejam necessariamente assim.
Reproduzindo o preconceito de que toda cultura popular é
idêntica, ignorando as complexidades e as sutilezas que podem ser
reunidas por ela. Críticos intelectuais não conseguem reconhecer
as significações da arte popular porque, desde o início, foram
desinteressados em dar a essas obras a atenção necessária para
compreender sua complexidade. Mas às vezes eles simplesmente
não entendem as obras em questão, as suas raízes, que muitas
vezes são advindas de condições sociais opressivas e etc. Com esta
acusação de que a arte popular é incapaz de engajar o intelecto,
me vem a mente, o MC Fabio Brazza, que estudou Ciências Sociais
na Puc, em São Paulo e traz em todas as suas musicas, referências
históricas, filosóficas, astrofísicas e etc.:
A legitimidade da estética popular... 77

[…] Vou ter que citar Rousseau, a injustiça começou


Quando o primeiro a se achar dono de uma terra a demarcou
Nossas religiões nos separam desde cedo
Protegendo terra fértil, fertilizamos o medo
O início da divisão revolução agrícola
Com advento do Estado Leviatã facínora
Mas temos um elo perdido em comum
Adão já foi macaco e todos nós já fomos um
O mundo se metamorfa mais do que conto de Kafka
Só vai sobrar as baratas, mas todos viemos da África […]
(Fabio Brazza part. Atentado Napalm, Pangeia. Epópeia da
Poeira cósmica. Fabio Brazza, 2017).

Muitos especialistas em estética afirmam que uma obra de


arte é sempre única e original, segundo Shusterman é com base
neste argumento, muitas vezes que a arte popular é totalmente
difamada, não apenas pela sua repetição e seu empréstimo de
elementos da cultura superior, como já citei acima, mas pela
padronização dos seus produtos.

A afirmação de que a arte popular é necessariamente desprovida


de criatividade apoia-se em três linhas de argumentos. Em
primeiro lugar, a padronização e a produção tecnológica, à
medida que limitam a individualidade, excluem toda
criatividade. Em segundo lugar, a produção coletiva e a divisão
do trabalho na realização da arte popular frustram a expressão
original, pois envolvem decisões coletivas. Em terceiro lugar, o
desejo de divertir um grande público é incompatível com a
expressão do sujeito individual e, portanto, com uma forma
estética original. Todos esses argumentos baseiam-se na mesma
premissa: a criação estética é necessariamente individual
(SHUSTERMAN, 1998, p. 126).

Porém, esses argumentos construídos contra a arte popular


podem ser facilmente derrubados, hoje encontramos
padronização tanto na arte popular como nas artes maiores, por
exemplo, a criação de um poema é uma norma tão rígida quanto
à dos seriados de televisão, a produção de músicas, e em nenhum
78 Estética e Educação

dos casos a limitação exclui a criatividade, ou pelo menos foi


acusada disso.
A tecnologia ajudou a arte popular a criar diversas formas
artísticas como o cinema, as séries de TV e os vídeos clipes; e esse
poder criativo, coloca a arte popular como imponente em criação,
por afirmar que o sucesso desta tecnologia dentro da arte, exige
uma forma e um conteúdo artístico que seja facilmente
compreendido e apreciado pelo publico de massa, alegando que a
mídia deve oferecer algo homogeneizado para agradar a todos os
espectadores, estando condenada a expressar apenas o óbvio.
Contudo, o simples fato dos produtos da arte popular terem, nos
últimos anos chocado e ofendido a um público “comum” já coloca
como falaciosa esta afirmação. Os críticos intelectuais concluem
que o público da arte popular seja um público de massa. Eles se
recusam a reconhecer o quanto esse público é composto por
grupos de gostos diferentes, diversas ideologias e meios
socioculturais diversos.

O fato de existirem públicos distintos tão vastos significa que a


arte popular não tem necessidade de se limitar a estilos,
estereótipos e pontos de vista que sejam compreendidos e
aceitos por um público considerado geral (SHUSTERMAN, 1998,
p. 129).

O scratching2 dos discos, a gíria, e a crítica ao modelo sócio


econômico, que compõe muitas letras de rap, não são
esteticamente aceitas ou aprovadas pela grande maioria da
população, mas isso não as impede de alcançar imensa
popularidade. Na verdade, sua popularidade deriva precisamente
de sua critica ideológica e de seu desafio ao convencional.
A mensagem do rap é fruto da injustiça, é apreciada por
jovens que se sentem alienados dentro de diferentes meios sociais,
descontentes com o sistema; uma intensa aproximação da arte

2
Técnica musical utilizada para produzir sons ao "arranhar" o disco de vinil
para frente e para trás repetidas vezes. Criado em 1978, é comumente associado
ao hip hop, mas atualmente é usado em diversos estilos - entre eles o pop.
A legitimidade da estética popular... 79

com a vida. Porém para Adorno, as normas da arte não têm outra
função senão estar a serviço da própria arte, Adorno, defende
justamente o contrário do que o Rap afirma, para ele, embora a
arte seja enraizada no real na vida material e social, ela se define e
se justifica apenas pelo fato de "se diferenciar da realidade perversa"
(ADORNO apud SHUSTERMAN, 1998, p. 132) de nosso mundo, "se
alguma função social pode ser atribuída à arte, é sua qualidade de
não ter função nenhuma" (Ibid, p. 132).
Esse argumento dirigido contra a arte popular depende da
premissa de que a arte e a vida podem e devem ser opostas e
separadas. Mas apesar desta visão secular da filosofia estética, por
que deveríamos aceita-la? Porque ignoramos durante tantos anos
a estética pragmatista de Dewey, e sua tentativa de construir
argumentos para aproximação da arte à vida. Se desconsiderarmos
a questão dos preconceitos filosóficos, veremos que a arte
constitui parte da vida, assim como a vida constitui a arte. Tanto
como objeto ou como experiência, as obras de arte habitam o
mundo e modificam nossas vidas. A arte popular, não precisa
especificamente de uma teoria estética, pode ser legitimada
apenas pelas experiências que fornece, pela audição, pela visão e
pelas críticas que realiza.
Falar desta maneira, mencionando exemplos breves
dificilmente constitui uma prova convincente de que a arte
popular tenha essas qualidades, talvez a única maneira de provar
isso e responder a todas as acusações, seja mostrar concretamente
que as obras de arte populares apresentam, na realidade, valores
estéticos, sociais e políticos. E isto só pode ser feito pelo estudo de
obras existentes em gênero específico: O RAP.
80 Estética e Educação

2.3 A CULTURA HIP HOP E SEU PILAR DA MUSICALIDADE:


O RAP

O rap é um dos gêneros de música popular que mais se


desenvolve atualmente, mas também um dos mais perseguidos e
condenados. Sofre cotidianamente críticas abusivas e atos de
censura. Algo que não é de se surpreender, já que as suas raízes
culturais e seus primeiros adeptos pertencem à classe baixa da
sociedade negra periférica.
O rap é fruto de uma cultura complexa, o HIP-HOP, que se
originou em 1970 nos guetos norte-americanos, trazidos pelos
imigrantes do Caribe, vindos principalmente da Jamaica, os
bairros, onde os imigrantes moravam, eram excluídos e por isso
enfrentavam diversos problemas sociais, como pobreza, violência,
racismo, tráfico de drogas, ausência de educação entre outros.

Tivemos que convencer os lideres que lideravam os seguidores,


para que viessem a bordo fazer parte do que estávamos fazendo.
Nós nos organizamos e informamos o que estávamos fazendo.
Desenvolvi uma visão para a universal Zulu Nation3, de paz, união,
amor e diversão.

Afrika Bambaataa (HIP HOP EVOLUTION, 2016).

Bambaataa foi instrumental para que parasse a violência das


gangues e ele convenceu os Black Spades4 a começar a Zulu
Nation.
Shadrach Kabango (HIP HOP EVOLUTION, 2016).

A cultura Hip-hop possui quatro pilares essenciais, que


Afrika Bambaataa, reconhecido como o criador desta cultura,
estabeleceu: o Rap, o DJ, o breakdance e o graffiti, durante o
desenvolvimento da cultura hip-hop mais dois pilares surgiram: o

3
ONG Fundada pelo DJ Afrika Bambaataa, que nos anos 70 foi responsável pela
união das gangues em prol do bem comum, visando o hip-hop e o
conhecimento como saída a dos jovens da criminalidade, drogas e etc...
4
Gangue de rua afro-americana que inicio no Bronx no final dos anos 1960.
A legitimidade da estética popular... 81

MC e o beat box. Na continuação desta pesquisa, tenho como foco


a legitimação estética do Rap.

2.3.1 O QUE É O RAP?

Nesta altura, hip-hop não apenas influencia a sociedade, ele é a


sociedade, mas apesar do seu sucesso, a rica historia das origens
do hip-hop, é, muitas vezes ignorada. Shadrach Kabango (HIP
HOP EVOLUTION, 2016).

Rap significa rhythm and poetry em inglês, que em


português se traduz para Ritmo e Poesia. Como podemos notar no
verso do Leal membro do grupo PrimeiraMente de São Paulo, que
faz uma participação na Cypher5 “Poetas no topo 3.2”:

[Leal]
Rap é ritmo e poesia
Eu não sei o que tem a ver com pagar de malandro
E eu não me perco entre palavras, não me afirmo em fantasia
Sou pior que cês esperava, revolução com raiva, anarquia.
(Raillow | Xamã | LK | Choice | Leal | Síntese | Ghetto | Lord.
Pineapple Supply e Brainstorm Estúdio, 2017).

Esse pilar do movimento é o da musicalidade, onde os


pretos, pobres e marginalizados pela sociedade se expressam
rimando ao som da base do DJ ou beat-box. Diante disso, é fácil
encontrar as razões estéticas para desacreditar do rap enquanto
forma legítima de arte. Suas canções não são nem cantadas, mas
faladas ou recitadas, a trilha sonora é composta de vários samples6
de discos famosos. Logo se pode dizer que rap é ritmo e poesia,
que compõe uma revolta, reabilitação, cultura e arte a fim de

5
Cypher no rap tem objetivo de reunir MCs, sendo eles de grupos ou artistas
solos, para rimas inéditas e com uma conexão de palavras mais complexas, com
um DJ responsável pelo beat.
6
Sample, em inglês, significa “amostra”. Quando se usa um som já gravado de
algum instrumento ou trechos de outra musica, adicionando a uma nova
composição.
82 Estética e Educação

expressar o sofrimento de um povo que sobrevive dia após dia a


repressão do Estado e a ausência dele.

Eu disse: Rap dos novos bandidos


Pra que os menor me vejam como espelho
Esse é o resgate de um povo banido
Em pé ou caído no chão
Mas pra verme eu não me ajoelho
Eu sigo frio (frio, frio)
(Kayuá part. Sant & Tiago Mac, Frio. El Lif Beatz, Gravação e
Mixagem: Johny Monteiro, 2017)

Mas as questões culturais e as implicações estéticas são


muito maiores. Pois acredito que o rap desafie as convenções
estéticas mais dogmáticas da filosofia. Entre essas características
posso citar a apropriação utilizada pelo rap, a perca da identidade
de arte como produção exclusiva e única, a mistura eclética de
estilos, a adesão à nova tecnologia e a sua característica de ser uma
arte com localização espacial e temporal mais do que universal e
eterna.
A apropriação artística, que constitui o rap, é sua técnica
característica. A música é composta pela combinação de partes de
musicas já gravadas, a técnica é realizada por um disc-jockey (DJ)
em uma mesa composta por inúmeras tecnologias. As letras, no
entanto, ficam por conta do talento de um rapper, chamado de
MC, (mestre de cerimônia).
Cito o rapper cariosa SANT no seu single “O que separa os
homens dos meninos”, que o levou ao cenário do Rap nacional em
2015, e que traz o sample da música “O mágico de Oz” do grupo
Racionais mc’s:

[Sample - Racionais MC's (O Mágico de Oz)]


Aquele moleque sobrevive como manda o dia a dia
Tá na correria, como vive a maioria
Preto desde nascença, escuro de sol
Eu tô pra ver ali igual no futebol
Sair um dia das ruas é a meta final
[Sant]
A legitimidade da estética popular... 83

Sem espaço pra emoções, a rua ensina


Que se eu seguir só o meu coração, me fodo na próxima esquina
É mais que rima, é mais que som, é mais que sina
É, mas que porra, Sant? É minha vida e o beat em cima, óh”
(SANT, O que separa os homens dos meninos. Álbum: O que
separa os homens dos meninos, VVAR, 2015).

Para ressaltar a habilidade do MC (mestre de cerimônia)


cito Shusterman:

Pode ser difícil, para certos brancos, imaginar que a habilidade


verbaI seja tão apreciada no gueto africano urbano. Mas um
estudo sociológico revela o quanto ela é estimada, e uma pesquisa
antropológica mostra que afirmar uma posição social superior
pelo poder verbal é uma tradição negra profundamente
enraizada...” (SHUSTERMAN, 1998, p. 146).

Mas apesar de sua herança africana, o hip hop nasceu na


era disco, no meio dos anos 70, nos guetos de Nova York e a partir
do inicio da década de 80 chegou também as noites de Manhattan,
era a explosão triunfal da musica Rap. Inicialmente o rap surgiu
como uma música para dançar, para ser admirada pelo movimento
e não pela audição. Não era dirigido a uma plateia de massa, e por
vários anos ficou confinado à cidade de Nova York, fora da mídia.
O rap apresenta uma variedade de apropriação de
conteúdos, se apropria de musicas populares, para a composição
de sua própria musica, mas também absorve elementos da
televisão, de videogames, de discursos, reportagens de jornais etc.
A partir desta apropriação, o rap desafia o tradicional de
originalidade que durante tanto tempo escravizou nossa estética.

A arte pós-moderna, como o rap, acaba com essa dicotomia,


empregando e adotando de forma criativa sua apropriação como
temática, no intuito de mostrar que empréstimo e criação não
são incompatíveis. Ela também sugere que a obra de arte
aparentemente original é, em si, sempre um produto de
empréstimos desconhecidos, o texto novo e único, sempre um
84 Estética e Educação

tecido de ecos e fragmentos de textos anteriores...


(SHUSTERMAN, 1998, p. 150).

Como na música, “Capítulo 4 versículo 3” do Racionais


MC's, um grupo brasileiro de rap, fundado em 1988, formado pelos
Mc’s Mano Brown, Edi Rock e Ice Blue e o DJ KL Jay, está entre as
bandas mais influentes do país, somando hoje mais de 8 prêmios
consagrados no mundo da música:
60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já
sofreram violência policial

A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras


Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros
A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São
Paulo
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente.
(Sobrevivendo no Inferno. Cosa Nostra, 1997).

Aqui notamos a apropriação que o grupo fez de uma


manchete de jornal na introdução de uma de suas musicas, que
denuncia a ausência dos negros em ambientes educacionais e
também o genocídio que a raça sofre cotidianamente.
A originalidade perde assim seu status inicial, não há
originais perfeitos, definitivos, a criatividade pode então fazer uso
de empréstimos, muito menos o valor de criação única e exclusiva.
As canções de rap comemoram sua originalidade e seu
empréstimo.
A perda do valor de unidade e exclusividade pode ser
notado claramente no Rap, basta analisar os grupos, que
geralmente são compostos por mais de dois membros e também
nas Cyphers que ganharam espaço no cenário do Rap Nacional em
2016, caracterizada pela união de diversos MC’S , sendo eles de
grupos ou artistas solos, cada qual com a sua rima, mas ainda
assim estabelecendo uma conexão entre elas. É algo que se
A legitimidade da estética popular... 85

aproxima muito do freestyle7, porém com produções e métricas


mais elaboradas.
A produção de músicas a partir de colagens de trechos já
gravados configura o sampling como um estilo central do rap e
desafia o ideal tradicional de unidade das obras de arte.

Opondo-se à estética do culto devocional à obra fixa, intocável,


o hip hop oferece os prazeres da arte desconstrutiva a beleza
vibrante de desmembrar obras antigas para criar outras novas,
transformando o pré-fabricado e o familiar em algo diferente e
estimulante... (SHUSTERMAN, 1998, p. 151).

O processo de produção de um rap se dá de modo


fragmentado, desestruturando e recompondo sons já gravados,
para produzir um novo beat, a batida sobre a qual irá se sobrepor
a letra do Mc, dando vida a uma nova musica, “Sua estética sugere,
assim, a mensagem de Dewey, segundo a qual a arte é
essencialmente mais um processo do que um produto acabado”
(SHUSTERMAN, 1998, p. 151).
O rap também evidencia uma das maiores criticas feitas a
arte popular, a efemeridade, para a estética do rap, o valor efêmero
das canções, não quer dizer que não possuem um valor estético
real. Pois a visão de que o valor estético é válido apenas se resistir
ao tempo, deriva de uma teoria filosófica para identificar a
realidade com a permanência.

Em oposição à ideia comum de que "um poema é eterno", o rap


evidencia a temporalidade da obra de arte e sua provável
efemeridade: não somente pelas desestruturações apropriadoras
como pelo desenvolvimento explícito de sua própria
temporalidade como tema de suas letras. (SHUSTERMAN, 1998,
p. 152).

7
O Freestyle, nome em inglês significa estilo livre, é um gênero musical,
vertente do Rap, nascido nos Estados Unidos nos anos 1980, que se caracteriza
por letras improvisadas do MC.
86 Estética e Educação

O Rap, além de colocar em cheque a efemeridade, também


coloca em questão a universalidade, que permearam durante
tanto tempo a estética, “o dogma de que a boa arte deve ser capaz
de agradar todas as pessoas em todas as épocas, tratando de temas
humanos universais” (SHUSTERMAN, 1998, p. 152).
O rap traz como tema central de suas músicas, a injustiça,
a opressão social e a exclusão dos jovens negros e periféricos,
podemos assim considerá-los temas universais, porém, ele se
orgulha em evidenciar nas suas canções as suas raízes,
normalmente os guetos e as zonas periféricas. “Mesmo quando
ganha uma dimensão internacional, o rap continua
orgulhosamente local.” (SHUSTERMAN, 1998, p. 153).
Aqui, cito a musica do grupo Facção Central, que descreve
a realidade local:

Zona Sul, São Paulo, hospital em Santo Amaro,


no prontuário um menino descrito como mulato
Parto normal, sem pai pra visitar
outro cu que pra pagar pensão só com DNA
Filho da empregada do executivo porco,
fritando filé mignon pros outros e arrotando ovo
(Facção Central. O Menino do Morro, Direto do Campo de
Extermínio. Facção central, 2003).

2.3.2 PODEMOS CONSIDERAR O RAP UMA CULTURA DE


MASSA?

O rap, como já vimos anteriormente, é fruto da tecnologia


surgida nos anos 70, desde então, rap e tecnologia sempre
estiveram no mesmo compasso e com isso ouve também uma
grande absorção da mídia, mesmo exaltando em suas letras a
antipatia por ela.

Ir na TV é uma conquista? Só quando for nosso próprio canal


Se não tu é isca e canta no mermo local que o Jornal Nacional
nazista
Atiça o povo a ser a favor de aprovar a lei da maioridade penal,
Nossos menor precisam de revolução educacional
A legitimidade da estética popular... 87

(Sant, part. Mc Marechal. O tempo passou. O que separa os


homens dos meninos vol. 1. VVAR, 2015).

Porém, essa dicotomia está presente na cultura Hip-hop,


ele acolhe a tecnologia presente na mídia, mas permanece,
oprimido pela mesma e pelo capitalismo que o sustenta, o mesmo
modelo econômico ao qual esta voltada toda a crítica do rap.
Porém, mesmo o rap sendo fruto da tecnologia, que
permitiu aos DJ’s criarem seus beats inovadores a partir de sons já
gravados e que não poderiam ser gravados de outras formas, como
já mencionei acima, o rap é o grito dos oprimidos e marginalizados
que veem nele a oportunidade para sair da vida do crime e do
tráfico. Sem a tecnologia, esses jovens não teriam esta
oportunidade, porque não poderiam arcar com os custos dos
instrumentos necessários para a produção de sample.
Os Djs se orgulham da técnica de apropriação utilizada e
não fazem questão de escondê-la, pelo contrário, exultam a forma
como criam seus samples, demonstrando um domínio artístico da
tecnologia.
A tecnologia se demonstrou essencial para a propagação do
rap, para que a mensagem da periferia chegasse também nas áreas
nobres das cidades. Como a mensagem transmitida pelo Rap
ocorre de forma oral, é necessário sentir sua batida e seu ritmo
para que tenha o efeito que os Mc’s e produtores esperam que suas
músicas causem no público: a comoção, a revolta e essencialmente
a mudança de mentalidade, tanto das pessoas da periferia, mas
principalmente das pessoas de fora, que ainda carregam consigo o
preconceito e a discriminação com o negro, pobre e periférico.
A música “Duas de cinco” do rapper Criolo, tem seu sample
na canção "Califórnia azul", de Rodrigo Campos8, e é um complexo
de informações líricas, que denunciam a desigualdade social e a
revolta da periferia:

8
Rodrigo Augusto de Campos (1977) é um cantor, compositor, violinista,
cavaquinista e percussionista brasileiro. Em 2013 ganhou o 24º Prêmio da
Música Brasileira na categoria Revelação, por seu disco Bahia Fantástica.
88 Estética e Educação

Cá pra nós, e se um de nós morrer


Pra vocês é uma beleza
Desigualdade faz tristeza
Na montanha dos sete abutres
Alguém enfeita sua mesa
Um governo que quer acabar com o crack
Mas não tem moral pra vetar
Comercial de cerveja
Alô Foucault
Cê quer saber o que é loucura?
É ver Hobsbawm na mão dos boy
Maquiavel nessa leitura
Falar pra um favelado
Que a vida não é dura
E achar que teu 12 de condomínio
Não carrega a mesma culpa.
(Criolo. Duas de cinco, 2014).

Foi apenas através da mídia que o rap conseguiu ser notada


dentro de nossa cultura popular, voz que a mídia agora tenta
ocultar, por demonstrar a vida real dentro das favelas e o desejo
de uma mudança social urgente, reconhecendo que aqueles que
governam são indiferentes às classes negras periféricas.
Mas apesar dos poucos benefícios oferecidos pela mídia, ela
ainda é vista como a maior inimiga da cultura hip-hop, um dos
exemplos são as manchetes otimistas quando se refere a uma
polícia que mata pretos e pobres nas periferias do Brasil inteiro;
tudo aquilo que o rap denuncia, a mídia propaga como correto.
“Os rappers recriminam sua evasão fictícia e superficial, seu
conteúdo comercialmente padronizado, seu distantanciamento
da realidade e sua brutalidade” (SHUSTERMAN, 1998, p. 156).
Mesmo tendo como característica a condenação à mídia, o
rap, ainda assim, usufrui da mesma. Apesar de denunciar as
injustiças do sistema capitalista, celebram seu sucesso comercial,
possível graças a ela. Porém o rap não se encontra fora do
capitalismo, infelizmente tal sistema existe, e então, por que os
lucros obtidos pelo rap deveriam anular seu poder de crítica
social? Devemos estar fora do sistema para criticá-lo?
A legitimidade da estética popular... 89

Ao lado da contestação da existência de uma dicotomia clara


entre dentro/fora, também devemos nos perguntar por que a
atitude estética tradicional requer a contemplação distanciada
de um sujeito senssatamente desinteressado. A suposta
necessidade de distância é mais uma manifestação da ideologia
moderna de pureza e autonomia artísticas, a qual o hip hop
repudia. Na verdade, mais do que uma estética de juízo distante
e desengajado, os rappers privilegiam uma estética de profundo
envolvimento corporal e participante, em relação tanto ao
conteúdo como à forma. (SHUSTERMAN, 1998, p. 160).

Passageiro do Brasil,
São Paulo,
Agonia que sobrevivem,
Em meia zorra e covardias,
Periferias,vielas,cortiços,
Você deve tá pensando,
O que você tem a ver com isso?
Desde o início,
Por ouro e prata,
Olha quem morre,
Então veja você quem mata,
Recebe o mérito, a farda,
Que pratica o mal,

Me ver pobre preso ou morto,


Já é cultural
(Racionais Mc’s. Negro Drama, 2002).

A arte por muito tempo se distinguiu das práticas éticas e


políticas, que envolviam os interesses reais da sociedade. A arte
foi, assim, designada a algo imaginativo, perfeito e imutável.
Assim também se afastou das satisfações mais corporais do ser
humano, da própria vida.
Contudo, o rap rompeu com essa concepção de arte. Os
rappers exaltam constantemente que seu papel enquanto artistas
e poetas são também de investigadores da realidade,
principalmente por denunciar a verdade, muitas vezes
90 Estética e Educação

negligenciadas pela mídia. Os poetas do rap, vão ao encontro de


John Dewey, por acreditarem em uma estética não
compartimentada que evidencia a função social e o aspecto
corporal, ligados à arte e a estética, neste sentido:

[…] igualmente salienta o fato de a funcionalidade pratica poder


fazer parte da significação e do valor artísticos. Muitas canções
são explicitamente consagradas a desenvolver a consciência
política, a honra e os impulsos revolucionários dos negros;
algumas defendem a ideia de que os julgamentos estéticos (e
especialmente a questão de saber o que pode ser definido como
arte) envolvem questões políticas de legitimação e luta social. O
rap engaja-se nesta luta através da práxis progressista, que
desenvolve pela afirmação de sua própria dimensão artística.
(SHUSTERMAN, 1998, p. 161).

[Funkero]
Favela vive no coração de cada morador
Na lembrança de cada vida que a guerra levou
Somos a tribo perdida, trazida de longe
Somos filhos da lama, Brasil que a mídia esconde
Nos entopem de pólvora, coca, esgoto a céu aberto
E quilombos de madeirite e concreto
O futuro chegou e ainda usamos corrente
Escravizados através do tráfico de entorpecente
Nos empurram todo dia goela a abaixo
Ódio, medo, desespero e incentivo à violência
Dizem que somos bandidos
Mas quem mata usa farda e exala despreparo e truculência.
(Favela Vive 2 (Cypher) – ADL, BK, Funkero e MV Bill. ESFINGE,
2016).

REFERÊNCIAS

HIP HOP EVOLUTION. Direção de Darby Wheeler. Produção:


Darby Wheeler, Sam Dunn, Scot McFadyen. Interpretes: Shadrach
Kabango, Darryl "D.M.C." McDaniels, Grandmaster Caz,
Grandmaster Flash, Russel Simmons, Afrika Bambaataa, Dan
A legitimidade da estética popular... 91

Charnas, Kurtis Blow, Ice T, Ice Cube, Shad, Bil Adler. CANADÁ:
Banger Films, 2016. Quatro episódios (50min) cada.

SHUSTERMAN, Richard. Vivendo a arte: o pensamento


pragmatista e a estética popular. tradução de Gisela Domschke. 1ª
Edição. São Paulo: Ed. 34, 1998.
III

A NOÇÃO DE EXPLICAÇÃO EM VAN FRAASSEN

Josiel dos Santos Camargo*


Marcelo do Amaral Penna-Forte**

PALAVRAS-CHAVE: Explicação científica; Teorias científicas;


Van Fraassen;

3.1 O REALISMO CIENTÍFICO

Logo no início da sua obra The Scientific Image (1980), van


Fraassen anuncia a importante distinção a ser tratada no decorrer
do livro acerca da aceitação de uma teoria científica, a saber, a
distinção entre a dimensão epistêmica e pragmática. Para van
Fraassen, a crença envolvida na aceitação de uma teoria científica
no âmbito epistêmico é somente que ela salva os fenômenos1, ou
seja, que descreve corretamente o que é observável (VAN
FRAASSEN, 1980, p. 4). Mas quando se tem que escolher entre
teorias equivalentes, ou seja, quando ambas teorias contêm o
mesmo conteúdo empírico e com isso estão subdeterminadas
pelos dados da observação, surge a dificuldade de qual delas
aceitar. E essa diferença, para van Fraassen, é apontada como
sendo pragmática2, que, segundo ele, não dá nenhuma razão, além
da evidência dos dados empíricos, para pensar que uma teoria é
verdadeira (VAN FRAASSEN, 1980, p. 4). Essas “verdades”,
segundo o realismo científico, postuladas pelas teorias acerca dos
fenômenos, invocam a crença de que seria possível obter algum
conhecimento sobre certas entidades inobserváveis através de

*
UNIOESTE; E-mail: josiel.camargo@outlook.com.
**
UNIOESTE.
1
VAN FRAASSEN, 1980, p. 41-69
2
VAN FRAASSEN, 1980, p. 97-157
94 Estética e Educação

uma espécie de desvelamento, ou seja, do descobrimento por meio


da própria investigação científica, feita mediante mensurações
cada vez mais precisas, como é o caso de Hacking (1983)3, fazendo
com que se avance nos limites do conhecimento do que é
observável. Van Fraassen, introduzindo seu empirismo
construtivo, se opõe a este descobrimento, afirma ele:

[...] I use the adjective ‘constructive’ to indicate my view that


scientific activity is one of construction rather than discovery:
construction of models that must be adequate to the
phenomena, and not discovery of truth concerning the
unobservable [...]” (VAN FRAASSEN, 1980, p. 5).

Pois a pretensão realista, com relação a verdade das teorias,


como bem caracteriza van Fraassen, é a de que:

Science aims to give us, in its theories, a literally true story of


what the world is like; and acceptance of a scientific theory
involves the belief that it is true. This is the correct statement of
scientific realism (VAN FRAASSEN, 1980, p. 8).

Por conseguinte, van Fraassen afirma sua posição:

Science aims to give us theories which are empirically adequate;


and acceptance of a theory involves as belief only that it is
empirically adequate. This is the statement of the anti-realist
position I advocate; I shall call it constructive empiricism (VAN
FRAASSEN, 1980, pág. 12).

Os principais argumentos em defesa do realismo científico,


como bem salienta Chibeni: “[...] são aqueles que envolvem
inferências abdutivas, ou seja, que propõem algum tipo de
conexão entre o poder explicativo de uma teoria e a sua verdade"
(CHIBENI, 1996, p. 48). A inferência abdutiva, ou mesmo
inferência da melhor explicação (como foi amplamente

3
HACKING, I. Representing and Intervening. New York: Cambridge University
Press, 1980.
A noção de explicação... 95

difundida), propõe que uma teoria quanto melhor explicada,


melhor aceita pela comunidade científica deveria ser; seguindo
alguns critérios, como o de simplicidade, poder explicativo, etc.
Van Fraassen critica tanto essa versão de argumentação, como
também, os dois argumentos sofisticados do realismo científico:
“o argumento da coincidência cósmica” e “o argumento do
milagre” (cf. CHIBENI, 1996, p. 48). Pois tais argumentos
relacionarão a alta probabilidade de que uma teoria científica
esteja correta condicionando-a ao seu alto grau de explicação e
posterior confirmação. Van Fraassen parece não ver tal
necessidade de explicação, mesmo sob condições persuasivas,
como é o caso de ambos os argumentos:

There cannot be a requirement upon science to provide a


theoretical elimination of coincidences, or accidental
correlations in general, for that does not even make sense. There
is nothing here to motivate the demand for explanation, only a
restatement in persuasive terms (VAN FRAASSEN, 1980, p. 25).

No entanto, van Fraassen não exclui a possibilidade da


inferência da melhor explicação; pelo contrário, afirma ser
possível escolher uma teoria pelo seu poder explicativo. O que
ocorre nesse caso é que isso valeria apenas para afirmar uma teoria
como sendo apenas empiricamente adequada, e não como
verdadeira:

When I discussed the putative rule of inference to the best


explanation, which must indeed be unacceptable to an
antirealist, I offered an alternative. The alternative is that
explanatory power is certainly one criterion of theory choice.
When we decide to choose among a range of hypotheses, or
between proffered theories, we evaluate each for how well it
explains the available evidence. I am not sure that this evaluation
will always decide the matter, but it may be decisive, in which
case we choose to accept that theory which is the best
explanation. But, I add, the decision to accept is a decision to
accept as empirically adequate. The new belief formed is not that
the theory is true (nor that it gives a true picture of what there is
96 Estética e Educação

and of what is going on plus approximately true numerical


information), but that the theory is empirically adequate. In the
case of a hypothesis, the belief formed is that the theory which
results from the one we have already accepted, by adding this
hypothesis, is empirically adequate (VAN FRAASSEN, 1980, p.
71/2).

3.2. A EXPLICAÇÃO NAS TEORIAS CIENTÍFICAS

Van Fraassen, começa aos poucos delinear as


características e a utilização de uma explicação em uma teoria
científica. Ele retoma esse ponto reafirmando que a aceitação de
uma teoria possui uma dimensão pragmática, denominada
virtudes pragmáticas, que está para além do poder explicativo ou
mesmo de sua força empírica, pois estes não mantêm relação entre
a teoria e o mundo, mas melhor que isso seria o uso e a utilidade
da teoria (VAN FRAASSEN, 1980, p. 88), pois dão razões para
preferir uma teoria independente da sua questão de verdade. A
força do poder explicativo na escolha de uma teoria tanto não
pode ser confundida com a verdade da teoria como também com
a escolha de uma teoria ao invés de outra no que concerne à teoria
equivalentes, mas diz respeito justamente no uso e na utilidade
dessa teoria, que ainda dependerá tanto do usuário como do
contexto em que será aplicada: somente dessa maneira, segundo
van Fraassen, é que a capacidade explicativa de uma teoria poderia
servir aos propósitos da ciência:

To praise a theory for its great explanatory power, is therefore to


attribute to it in part the merits needed to serve the aim of
science. It is not tantamount to attributing to it special features
which make it more likely to be true, or empirically adequate.
But it might be arguable that, for purely pragmatic (thatis,
person- and context-related) reasons, the pursuit of explanatory
power is the best means to serve the central aims of science
(VAN FRAASSEN, 1980, p. 89).

Esse tipo de delimitação da explicação científica, ao seu uso


prático feita pelo usuário, deve-se à enorme dificuldade que surge
A noção de explicação... 97

ao se tentar buscar uma definição do que seja de fato uma boa


explicação. O que van Fraassen propõe, nesse caso, parece ser uma
alternativa pertinente, dado a complexidade do tema em questão.
O autor segue elucidando as dificuldades encontradas que
justificam sua proposta. Van Fraassen tem em vista alguns dos
velhos problemas debatidos em filosofia, o autor cita o problema
da indução de Hume no caso da causalidade, por exemplo, onde
ao explicar um fenômeno deve-se explicar o que o causou e assim
sucessivamente. Desse modo, tornando qualquer explicação
inviável, sem contar o fato de que mesmo quando se pressupõe
qual foi a causa, não se consegue abstrair uma só e única causa
nem explicar a relação entre a causa e o efeito. Van Fraassen
fornece um exemplo para compreender este problema: suponha-
se que em um acidente de carro onde o motorista entre em óbito,
qual seria a real causa da morte? O policial poderia afirmar que
isso não teria ocorrido se tivesse prestado atenção na sinalização;
um mecânico alegaria que foi por um problema mecânico no freio
do veículo; e o médico afirmaria que foi devido a hemorragia que
a vítima sofreu. Nesse caso, cada profissional explicaria a morte à
sua maneira, e todos teriam razão (VAN FRAASSEN, 1980, p. 125).
O exemplo mostra a dificuldade em determinar a real causa, ou
melhor, fornecer uma explicação para a morte do motorista sem
privilegiar um só ponto de vista. Assim sendo, van Fraassen
resume o problema da explicação como sendo uma resposta a uma
pergunta “por quê?” (VAN FRAASSEN, 1980. p. 126), nesse caso as
respostas a uma pergunta por explicação dependerão tanto do
contexto quanto das alternativas em questão. Essas alternativas,
van Fraassen denominará como sendo as “classes de contraste”
(VAN FRAASSEN, 1980, p. 127/8), que também dependerão do
contexto. Em suma, a explicação, nesse caso, possuirá uma
enorme dependência contextual. Segundo van Fraassen, o
elemento do contexto é justamente o que completa a questão da
explicação, segundo ele:

The discussion of explanation went wrong at the very beginning


when explanation was conceived of as a relationship like
description: a relation between theory and fact. Really it is a
98 Estética e Educação

three-term relation, between theory, fact, and context (VAN


FRAASSEN, 1980, p. 156).

3.3 A PRAGMÁTICA DA EXPLICAÇÃO

Compreendendo as principais características de uma


explicação científica, van Fraassen delimitará o seu uso dentro da
atividade científica:

So scientific explanation is not (pure) science but an application


of science. It is a use of science to satisfy certain of our desires;
and these desires are quite specific in a specific context, but they
are always desires for descriptive information. (Recall: every
daughter is a woman.) The exact content of the desire, and the
evaluation of how well it is satisfied, varies from context to
context. It is not a single desire, the same in all cases, fora very
special sort of thing, but rather, in each case, a different desire
for something of a quite familiar sort (VAN FRAASSEN, 1980, p.
156).

Percebe-se, com isso, que a pergunta pela explicação está


para além da dúvida: se é ou não tarefa da ciência oferecer
explicações, pois mesmo dentro da ciência, van Fraassen afirma
que a explicação é uma tarefa da ciência aplicada e não da ciência
pura, apontando uma clara distinção. Segundo Dutra:

A concepção clássica considera que dar explicações é parte da


atividade da ciência pura, mas van Fraassen discorda dessa
concepção afirmando que pelo contrário, essa tarefa é da ciência
aplicada. Pois no primeiro caso se restringe a apenas à elaboração
de modelos empiricamente adequados (DUTRA, 2009, p. 100).

Tem-se, desse modo, de um lado a ciência pura ou


conhecimento teórico; e do outro a ciência aplicada ou
conhecimento prático; onde o conhecimento prático envolve a
crença em dominar a natureza, enquanto o conhecimento teórico
em saber como o mundo funciona (DUTRA, 2009, p. 103). Muitos
filósofos compreenderam essa distinção, mas consideram que a
A noção de explicação... 99

tarefa de fornecer explicações fica a cargo da ciência pura, ou seja,


da ciência teórica, compreendendo que o uso da ciência aplicada
para fazer tecnologias demonstra uma certa presunção em
dominar a natureza, pois essa não seria a tarefa principal da
ciência; mas é aí que reside a originalidade da proposta de van
Fraassen:

Quando, em seu The Scientific Image, van Fraassen propõe a


atividade de dar explicações como atividade de ciência aplicada,
ele está indo frontalmente contra essa concepção de ciência e de
explicação científica sustentada por autores como Popper e
Hempel (DUTRA, 2009, p. 103).

Van Fraassen rebate esse ponto de vista afirmando que não


é possível conceber em absoluto a capacidade explicativa, do
mesmo modo que não se pode falar em domínio da natureza
apenas pelo fato de que, através das teorias, às vezes exerce-se
algum controle sobre a natureza. O que guia as pesquisas
científicas, muitas vezes, é o interesse do cientista, e esse interesse
nem sempre é em si mesmo, ou seja, apenas pela curiosidade ou
amor pela ciência. Tais escolhas de teorias contêm sempre uma
pitada de interesse pessoal por parte do usuário, e esse interesse
não condiz com o trabalho da ciência pura, mas é na aplicação
dessas teorias por parte do usuário que a tese pragmática de van
Fraassen se sustenta.

3.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caráter explicativo é, por conseguinte, não uma


necessidade na escolha de teorias ou mesmo de explicação acerca
delas, mas antes disso, salienta van Fraassen, na negação da
concepção de que o êxito explicativo ofereça alguma evidência em
verdade de uma teoria que vá além de oferecer uma descrição
adequada dos fenômenos. Pois o êxito da explicação é um êxito
apenas do ponto de vista da descrição informativa e adequada, e
tal valor para a ciência é que sejam apenas empiricamente
adequadas e empiricamente fortes.
100 Estética e Educação

REFERÊNCIAS

VAN FRAASSEN, B. The Scientific Image. Oxford: Clarendon


Press, 1980.

DUTRA, Luiz Henrique de Araújo. Introdução à Teoria da


Ciência. 3ª edição. Florianópolis: Editora da UFSC, 2009.

CHIBENI, Silvio Seno. A Inferência Abdutiva e o Realismo


Científico. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, v.3, n.6,
1996, p. 45-73.
IV

A QUESTÃO ÉTICA DO “BOM” EM UMA


ANÁLISE DA PRIMEIRA DISSERTAÇÃO DA
GENEALOGIA DA MORAL DE NIETZSCHE

Diogo Massochin*

PALAVRAS-CHAVE: Nietzsche; ética; moral.

Ao propor uma investigação sobre a origem do conceito de


“bom”, Nietzsche dá o pontapé inicial para a revisão do conceito
de moral em sua época. Deixando de lado paradigmas de moral
gregos, cristãos ou metafísicos, Nietzsche propõe uma análise da
moral com fundamentos históricos e culturais, chegando assim a
necessária compreensão de como surgiram as coisas “boas” no
mundo. Neste trabalho, tentaremos fazer uma breve análise sobre
a primeira dissertação de sua obra Genealogia da moral, onde o
pensador trata das diferenciações dos conceitos de “bom e mau” e
“bom e ruim”, bem como uma análise da formação histórica dessa
moral entre senhores e escravos.
Nascido em uma família luterana, na antiga Prússia em
1844, Nietzsche fora preparado a vida inteira para ser um pastor e
seguir as crenças de sua família; entretanto, aos dezoito anos
perdeu totalmente a sua fé no cristianismo e enveredou por outros
caminhos, tornando-se, aos 24 anos, professor de filosofia na
Universidade da Basileia. Levou uma vida completamente
libertina, pois, como pregava em sua filosofia, deveríamos
encontrar o lado dionisíaco de nossa existência. Após abandonar
a docência na universidade alegando fortes dores de cabeça,
terminou seus dias vagando entre o norte da Itália, os Alpes e o sul
da França. Faleceu em 1900.

*
UNIOESTE; E-mail: tapiocadesalsicha@yahoo.com.br
102 Estética e Educação

Embora não seja considerado um filósofo contemporâneo,


a sua filosofia é de fundamental importância para compreender
esse período de “transição de pensamentos” entre os considerados
filósofos modernos e os contemporâneos. Enquanto os primeiros
debruçavam-se sobre o problema da racionalidade humana e do
conhecimento, os contemporâneos buscam respostas para, de
fato, aonde esse conhecimento nos leva, haja vista a completa
miséria e falta de dignidade que assola boa parte da humanidade
no século XX. Nietzsche encontra-se exatamente nessa mediana:
ao fazer a sua crítica ao pensamento moderno, abre as portas da
filosofia para os contemporâneos. Dono de um arguto
conhecimento, teve como uma de suas grandes inspirações o
filósofo Arthur Schopenhauer, justamente um dos derradeiros
filósofos da modernidade, que trouxe o papel da sua filosofia para
o mundo da representação. Ao beber nessa fonte, Nietzsche fará
contundentes críticas ao modelo de civilização de sua época,
deixando um imenso legado aos filósofos da contemporaneidade.
No primeiro capítulo, ou primeira dissertação, de sua obra
Genealogia da moral, que será o papel de estudo nesse trabalho,
Nietzsche buscará encontrar a gênese do conceito de bom, e,
consequentemente, de seu, ou de seus, antônimos: mau e ruim;
não à toa, o título dado por ele a essa dissertação é “’bom e mau’,
‘bom e ruim’”. Para tanto, o pensador buscará esses significados
não com base em preceitos metafísicos ou religiosos, mas sim
através da história humana e, consequentemente, seus processos
de formação cultural. Essa é, portanto, a sua genealogia: o estudo
que tem o objetivo estabelecer qual a origem do bem; buscar a sua
cronologia até onde for possível. E tudo isso ocorrerá a partir de
uma análise que o filósofo faz no prólogo de sua obra: ao tomar
esses valores éticos como dados (no sentido de efetivos), eles ficam
além de qualquer questionamento, até que não haja mais
“hesitação em atribuir ao ‘bom’ valor mais elevado que ao ‘mau’”1.
Nietzsche nos diz que se tornou natural conceber o “bom” como

1
NIETZSCHE, F. W. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia
das Letras, 1998, p. 12. Essa obra, doravante, será citada como GM, e a referida
página.
A questão ética do “bom”... 103

melhor que o “mau”; e o advento das religiões modernas e da


metafísica filosófica, em sua opinião, ajudaram a ratificar esse tipo
de pensamento no mundo ocidental. Destarte, ao buscar a gênese
do “bom”, Nietzsche também buscará a formatação de uma nova
ética, que não seja calcada nos antigos ideais morais, que para ele
é uma moralização “generalizada e equivocada”; ao propor essa
nova perspectiva de análise, Nietzsche está nos propondo
trocarmos esse culto equivocado a um céu metafísico (ou
religioso) vazio para tentarmos revogar o menosprezo à vida
terrena, que séculos desse modelo moral nos impuseram2.
Esse modelo moral inicia-se com a “criação” do que é o
“bom”. Diferentemente da moral cristã, por exemplo, que remete
a criação das coisas boas ao momento da criação do mundo por
Deus, Nietzsche afirma que a caracterização do que é “bom” deu-
se por quem era “superior em posição e pensamento”, a quem ele
chama também de nobres3. Destarte, a criação de valores ocorreu
por quem detinha certo poder na sociedade, transformando o seu
poder e os seus costumes em valores morais e, assim, relegando
todos os outros valores, a “valores anti-bons”, ou seja, maus (uma
moral escrava, como chama Nietzsche). Portanto, juntamente
com a criação de um conceito de valoração moral ocorrera uma
completa divisão social, pois as coisas boas não remetiam a ações
não egoístas; elas remetiam ao campo de ação dessa nobreza
aristocrática. O interessante dessa análise é que Nietzsche traz
para o plano terreno a discussão da moral, caracterizando-a como
uma convenção social, e não como algo transcendental ou divino4.
Nietzsche chega a essa conclusão porque, em todos os idiomas que
ele pesquisou, o conceito de “bom” remetia a ações aristocráticas;

2
MATTEO, V. Di. Nietzsche, pensador da modernidade. Cadernos Nietzsche, v.
27, 2010, p. 123.
3
GM, p. 19.
4
Ao evocar a morte de Deus, Nietzsche faz uma crítica a divisão entre mundo
suprassensível e mundo sensível, caracterizando esse evento (a morte de Deus)
como algo necessário para a modernização do mundo e obrigando os
pensadores a mudar os seus pontos de vista morais de Deus para outros valores.
Cf. ARALDI, C. L. Para uma caracterização do niilismo na obra tardia de
Nietzsche. Cadernos Nietzsche, v. 5, 1998, p. 77.
104 Estética e Educação

assim, os ricos são designados (se auto designam) por um traço


típico de caráter; outrossim a própria linguagem, culta ou
vernácula, adjetiva ações boas a temas nobres, e, em
contrapartida, ações más à pobreza, fazendo assim uma associação
quase automática entre moral e status social5. Nota-se aqui a
importância da linguagem para a afirmação de um mito moral,
pois a sua construção dá-se no dia-a-dia, no próprio uso das
palavras. Ficamos tão inebriados com tal afirmação que nos choca,
ao primeiro momento, escutar Nietzsche perguntar o porquê de o
bom ser mais elevado que o mal. Ficamos acostumados a essa
assertiva. Entretanto, se esmiuçarmos a sua gênese e chegarmos
às conclusões que Nietzsche chegou, perceberemos que, muitas
vezes, as aparências enganam. E, além disso, há ainda um
antagonismo entre a nobreza: os sacerdotes e os guerreiros6.
Enquanto uns prezam a guerra, para os outros ela é mal negócio.
Mas essa divisão não corrói o significado de “bom”, nem o duplica;
continua sendo um só, uma vez que ambos, sacerdotes e
guerreiros, são nobres.
Porém, com o passar do tempo e, principalmente, com o
advento do judaísmo e do cristianismo, o valor moral dos
aristocratas sofreu uma inversão substancial; a moral escrava, ou
a moral do homem comum, vencera. E ocorre uma inversão de
valores, onde o que era “mau” passa a ser “bom”: pobreza,
resiliência, tolerância... Esses costumes que eram relacionados
com a plebe, passam a ser dominantes no seio dessa sociedade. E
Nietzsche caracteriza essa mudança como uma rebelião dos
escravos, a partir de um “ressentimento [que] se torna criador e
gera valores”7. E este impulso “provém do ódio transmutador dos
valores nobres, do ódio instintivo contra a realidade, ou,
fisiologicamente falando, da fraqueza intestinal e neurastenia do
animal de rebanho”8. Ora, ao invés de uma criação de sim pelo
sim, de “bom” pelo “bom”, essa moral escrava, a partir de uma

5
GM, p. 22.
6
GM, p.25.
7
GM, p. 28.
8
ARALDI, 1998, p. 80.
A questão ética do “bom”... 105

negação que lhe é dada por ser “mau”, ela nega esse ser “mau”
caracterizado por um estranho, por um de fora, e nega a própria
moral nobre – ou seja: a sua ação é no fundo uma reação9. E essa
reação, essa negação, é o seu ato criador10. Entretanto, devem
haver ressalvas quanto a essa mudança de padrão moral, pois esses
progressos devem ser vistos como retrocessos morais; e todas
essas mudanças trarão um reflexo na cultura europeia no período
em que Nietzsche escreve: ele constatará que toda essa cultura
está infectada: é o mal moderno11. Essa transição de valores da
moralidade demonstra que ela não é estática, podendo
transmutar-se de acordo com a ocasião. Se ela se transforma de
acordo com o contexto observado, ela não é fruto de algo
transcendental ou algo divino; ela é feita de acordo com a vontade
dos homens. E é essa a questão que Nietzsche tenta nos colocar:
como poderiam os valores morais mudarem, sendo que a
moralidade deve ser suprassensível? E se ela já mudou uma vez,
não poderia mudar novamente e, assim, passarmos a viver sobre
valores morais diferentes dos que presenciamos ontem? Questões
que deixamos sem resposta nesse trabalho, mas que encorajamos
os mais ousados a buscarem as suas respostas.
No excerto 14 desse capítulo12, Nietzsche faz uma paródia
de como os ideais morais são fabricados na Terra. Evidentemente
ele faz uma ácida sátira aos cristãos, pois, como ele mesmo sugere,
“os fracos são realmente fracos”13. Mas, mesmo com essa mudança
de perspectiva na moralidade que ocorrera, ele não concebe esses
“descendentes da escravatura” como os portadores da cultura
europeia (e, por consequência, ocidental) de sua época14. Mas,
então, de que valeria essa moral? A moral, no espectro
Nietzschiano, seria um antídoto ao niilismo15, ou, em outras

9
GM, p. 29.
10
ARALDI, Idem.
11
MATTEO, 2010, p. 126-7.
12
GM, p. 37-9.
13
GM, p. 37.
14
GM, p. 34.
15
Conceito fundamental na filosofia de Nietzsche, que não será profundamente
abordado aqui.
106 Estética e Educação

palavras, seria ela quem possibilitaria a vida terrena16. É através


desses valores, e, nesse último caso, dos valores cristãos, que a vida
teria o seu rumo traçado seguindo um nível de moralidade “ideal”
a toda a humanidade. Independentemente de como os valores
sejam fabricados, sempre restará a questão do “bom” contra o
“mau”; e, lembremos, é essa a questão (o bom é mais elevado que
o mau?) que Nietzsche se faz no prefácio da obra. Já vimos que a
questão do bom é uma questão de construção entre os homens;
vimos também que essa questão, de o que é “bom”, pode ser
relativa, uma vez que é passível de mudança. Resta-nos agora
diferenciar o “mau” do “ruim”.
Ao analisarmos esses dois conceitos, “mau” e “ruim”,
notamos que o antônimo das duas palavras (em português –
embora a mesma relação dê-se também no original em alemão,
conforme nota explicativa do tradutor do texto) é “bom”; mas,
entretanto, o significado dos dois conceitos, “mau” e “ruim”, tem
conotações diversas na filosofia de Nietzsche. A questão de “bom
e mau”, para o pensador, remete a valores judaico-cristãos, ou seja,
oposta à designação “bom e ruim”, que remete a questões
mundanas. Desse modo, encontramos duas contraposições ao
conceito de “bom”, que seria por natureza o conceito aceito como
definidor da moral. Mas, será que poderiam haver dois
antagonismos diretos ao preceito definidor da moral? Ou esse
seria mais um indício de que a moral dos homens não pode ser
considerada estática? Nietzsche não nos responde essas questões
no primeiro capítulo da Genealogia, mas ele atesta que ocorre um
embate muito grande entre essas duas vertentes, e que o
antagonismo “bom e mau” predominava perante a oposição de
ideias terrenos17. Doravante, cabe-nos perguntar ainda se seria
possível um embate moral diverso entre fundamentações
religiosas e fundamentações mundanas? Nietzsche diz que sim, e
caracteriza a mudança de padrão para a moral escrava como o
início desse embate moral. Mas se se admite duas possibilidades
de fundamentação moral, esta não seria inválida? Afinal, porque a

16
ARALDI, 1998, p. 79.
17
GM, p. 43.
A questão ética do “bom”... 107

religião deveria ter mais moralidade que as ações cotidianas? Ou


ainda, como a moral escrava fora capaz de impor, não só uma nova
tendência moral, mas uma dualidade na questão da moralidade
vigente? A questão, novamente, talvez não seja a caracterização
dessa dualidade moral por Nietzsche, mas sim a possibilidade por
ele elencada de uma moral que seja cambiante, passível de revisão
a qualquer momento, seja por puro desejo, por necessidade ou por
mera deliberalidade. Viver em um mundo desses, com uma moral
totalmente moldável ao contexto, certamente deve ser algo
extremamente complexo.
Como conclusão, ficamos mais com perguntas do que com
respostas, mas essas perguntas podem nos levar a algum lugar, ou,
ao menos, fazer com que raciocinemos de modo diverso ao
habitual. Ao caracterizar a moral como algo cultural, Nietzsche
retira-a da esfera transcendental e coloca-a no âmbito das coisas
terrenas, como praticamente todo o pensamento humano. Daí,
caberia perguntar se a moral deve ser tratada a partir dessa nova
perspectiva, ou ela deveria retornar ao pedestal em que sempre
esteve? Além disso, a possibilidade de existir uma dualidade nos
antônimos de “bom” (que seria o valor moral por excelência),
caracterizada ou por questões religiosas, ou por questões terrenas,
torna a ideia de supremacia de um tipo de moral mais mambembe
ainda.
As questões que puderam ser formuladas através da leitura
dessa primeira dissertação da Genealogia da moral de Nietzsche
deram-se pelo esforço do filósofo em estudar a real origem do
conceito de “bom”. Com as suas conclusões, percebe-se que a
humanidade fora iludida por um longo período, ao imaginar que
a moral seria algo superior e que deveria ser um espelho ético das
ações cotidianas. Nietzsche quebra esse mito e nos mostra que,
muito mais do que questões suprassensíveis, o mundo é feito de
ações humanas.
108 Estética e Educação

REFERÊNCIAS

ARALDI, C. L. Para uma caracterização do niilismo na obra


tardia de Nietzsche. Cadernos Nietzsche, v. 5, p. 75-94, 1998.
MATTEO, V. Di. Nietzsche, pensador da modernidade. Cadernos
Nietzsche, v. 27, p. 117-142, 2010.
NIETZSCHE, F. W. Genealogia da moral: uma polêmica. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
V

A SANTÍSSIMA TRINDADE
EM TOMÁS DE AQUINO (1225-1274)

Filipe Luís Brustolin*


José Dias**

RESUMO: O presente trabalho irá tratar sobre a Santíssima


Trindade, nas obras de Tomás de Aquino; isto é, as explicações
dele a respeito do principal dogma cristão que afirma ser um Deus
em três Pessoas. É evidente que esta concepção só pôde ser
alcançada por meio da Revelação. Apesar de a razão natural poder
chegar, sem erro, ao entendimento da existência de um Deus, para
alcançar a noção de Deus trino é indispensável à razão a revelação
divina. Aqui se tratará da Trindade baseando-se apenas na
Filosofia. Pois, sabendo Tomás, pela Revelação, que Deus é trino,
ele conquista demonstrar a Trindade dentro dos limites da
Metafísica natural, por motivos apologéticos. Pretende-se, como
resultado, atestar metafisicamente que no único Deus deve haver
três Pessoas. Para se entender com maior convicção a doutrina
trinitária, é fundamental ter um conhecimento prévio de Deus
enquanto uno: as provas de sua “existência” – melhor: das provas
que Deus é –, a descrição de seu ser (perfeição, identificação do
ser com a essência etc.), suas ações no mundo etc. Porém, este
trabalho não aborda tal tema. Basta saber que Deus é sumamente
uno, que é incorpóreo (sem constituição de matéria), puramente
espírito, e as explicações sobre estas informações se deixam para
outra oportunidade. Ora, todo espírito possui duas operações:
intelecto e vontade, das quais resultarão as processões em Deus.
Primeiro. Quando o homem, também possuidor de intelecto,
pensa em algo, gera em seu intelecto um verbo – ou ideia – daquilo

*
UNIOESTE; E-mail: filipebrustolin@hotmail.com.
**
UNIOESTE.
110 Estética e Educação

que pensou. Deus obviamente pensa em si mesmo. Analogamente,


Deus, ao pensar em si mesmo, tem, em si, um verbo daquilo que
intelige. Há, portanto, uma geração intelectual em Deus, ou seja,
o verbo que tem de si. Pelo fato de a essência de Deus se identificar
com suas operações, o Verbo que Deus tem de si próprio é igual à
sua essência. Segundo. Deus possui vontade. O amor se afigura
como o princípio basilar de todas as manifestações volitivas. Deus
indiscutivelmente ama a si mesmo. Ora, o amado está, de certa
forma, na vontade do amante, como termo de seu querer. Já se
disse anteriormente: em Deus, essência e operação se identificam.
Temos, por conseguinte, a processão volitiva, denominada
expiração: esta vontade, o Amor, é, portanto, Deus. Não se dá aqui,
como na processão intelectual, uma geração em Deus; mas uma
inclinação da vontade de Deus para si mesmo. Há, assim, as três
Pessoas: Deus ingerado, seu Verbo e seu Amor, que são uma só
essência. As processões divinas não acrescentam diferença,
cronológica ou local, em Deus, pois Deus se intelige e se ama
eternamente; suas processões são internas, não para fora. Sendo
Deus ato puro que se identifica com suas próprias operações, a
simplicidade e unicidade de sua essência permanecem livres de
embaraços. A única distinção que há entre as Pessoas é a relação.
A metodologia empregada para cumprir o intento do trabalho será
o estudo das duas principais obras de Tomás, nos trechos sobre a
Trindade, e um comentário, em forma de artigo, às mesmas.

PALAVRAS-CHAVE: Trindade; Filosofia Medieval; Tomismo;


Deus; Teologia.
A santíssima trindade... 111

INTRODUÇÃO

O presente trabalho trata sobre a Santíssima Trindade nas


obras de Tomás de Aquino (1225-1274); isto é, sobre as explicações
deste a respeito do principal dogma da doutrina cristã, que afirma
ser um Deus em três Pessoas.
É evidente que esta concepção só pôde ser alcançada por
meio da Revelação (1; porque, nas Sagradas Escrituras (Bíblia), são
abundantes as evidências desta doutrina. Apesar de a razão
natural poder chegar, sem erro, ao entendimento da existência de
um Deus2 (através das cinco vias), para alcançar a noção de Deus
trino é indispensável à razão a Revelação divina. Todavia, sobre os
dados fornecidos na Bíblia, discutir-se-á em outro momento. Visto
que aqui se tratará da Trindade baseando-se apenas na Filosofia.
Pois, sabendo Tomás, pela Revelação, que Deus é trino, ele
conquista demonstrar a Trindade dentro dos limites da Metafísica
natural num segundo momento. Assim, consegue disputar e
refutar aqueles que negam a doutrina trinitária, sem se valer dos
dados da Revelação; o que é utilíssimo na apologética, uma vez
que seus adversários não admitem a autoridade das Sagradas
Escrituras e, por isso, tomam a Trindade como absurda.
Pretende-se, como resultado, atestar
filosoficamente/metafisicamente que no único Deus deve haver
três Pessoas (lembrando-se sempre que não se parte, num
primeiro momento, da razão para discorrer sobre a Trindade, mas
da Revelação).
Para se entender com maior convicção a doutrina trinitária,
é fundamental ter um conhecimento prévio de Deus, enquanto
uno. O método — tradicional na época — utilizado por Tomás, ao
falar de Deus, é dividir a obra em dois tratados. Primeiramente,
Deo uno (Deus uno): as provas de sua “existência” — melhor: das
provas que Deus é —, a descrição de seu ser (perfeição, unidade,
identificação do ser com a essência), suas ações no mundo etc.
Somente depois, de Deo trino (Deus trino). Portanto, para se

1
Cf. Cf. S. T. I-I, q. 12, art. 13, p. 101-102.
2
Cf. Ibidem, art. 12, corpus, p. 100.
112 Estética e Educação

compreender com maior clareza Deo Trino, é mister ter uma


compreensão mínima de Deo uno. Porém, o presente trabalho não
aborda este tema. Basta saber que Deus é:
1) sumamente uno, ou seja, há uma única essência divina,
não há vários deuses;3
2) incorpóreo, sem constituição de matéria, portanto
puramente espírito;4
3) a sua própria essência.5
Para se manter no tema aqui trabalhado, as explicações
sobre estas informações se deixam para outra oportunidade.
A metodologia empregada para cumprir o intento do
trabalho é o estudo das duas principais obras de Tomás de Aquino
— a Suma Teológica e a Suma Contra os Gentios —, nos trechos
sobre a Trindade, e um comentário, em forma de artigo, às
mesmas — Das Processões Divinas, escrito por Orlando Fedeli.6

5.1 AS PROCESSÕES DIVINAS

5.1.1 AS OPERAÇÕES DIVINAS

Como se disse acima, Deus é espírito. Ora, todo espírito


possui duas operações: intelecto e vontade. Das suas duas
operações, resultarão as duas processões em Deus; duas, não mais,
pois há apenas duas operações em Deus. Tais processões, deixe-se
claro, por serem internas a Deus, e não externas a Ele — em outras
palavras: são ad intra e não ad extra —, se dão para dentro de Deus,
e não para fora d’Ele.

3
Cf. S. T. I-I, q. 11, art. 3, p. 85-86.
4
Cf. Ibidem, q. 3, art. 1-2, p. 41-43.
5
Cf. Ibidem, art. 3, p. 43-44.
6
Mais informações nas referências bibliográficas.
A santíssima trindade... 113

5.1.2 A PROCESSÃO INTELECTIVA

Quando se pensa em algo, gera-se, no intelecto daquele que


pensa, um verbo — ou ideia, ou palavra — daquilo que pensou.
Aquilo que foi pensado está, portanto, no intelecto que o pensou,
de forma intelectual, como verbo mental, que consiste no conceito
da coisa e se manifesta pela palavra7. É por isso que, quando o
homem, também possuidor de intelecto, pensa em algo, tem, em
sua mente, o verbo daquilo que pensou; e, para manifestar tal
verbo, usa de palavras.
Deus obviamente pensa em si mesmo. Logo, Deus, ao
pensar em si mesmo, tem, em si, um verbo daquilo que intelige,
neste caso, de si mesmo. Há, portanto, uma geração intelectual em
Deus, ou seja, d’Ele procede o Verbo que tem de si próprio. Esta
processão não é cronológica, visto que Deus, na eternidade, está
fora do tempo — portanto não é passível de antes e depois — e
absolutamente não houve tempo em que não pensava em si
mesmo: o Verbo é abeterno (co-eterno) a Deus8.
O Verbo está em Deus, pois, como se disse acima, o verbo
da coisa pensada está no intelecto que a pensou, e não fora.
Deus é distinto de seu Verbo: porque o primeiro intelige, e
o segundo é inteligido; todavia, a distinção é apenas de relação, o
que será explicado adiante (cap. 4).

Ora, todo intelecto, enquanto intelecto, deve estar no


inteligente, pois intelecção significa a apreensão daquilo que é
conhecido pelo intelecto. Donde, também o nosso intelecto, ao
se conhecer, está em si mesmo, não só como identificado a si
mesmo pela sua essência, mas ainda como apreendido por si
mesmo no ato de conhecer. Convém, pois, que Deus esteja em si
mesmo como o objeto conhecido no inteligente. Ora, o objeto
conhecido no inteligente é a intenção inteligida e a palavra
(verbum). Assim sendo, em Deus, ao entender-se a si mesmo,
está o Verbo de Deus como entendido, como também a idéia de
pedra no intelecto é a pedra conhecida. (S.C.G., IV, XI, 8, p. 627)

7
Cf. S. T. I-I, q. 27, art. 1, corpus, p. 214.
8
Cf. S. C. G., IV, XI, 9, p. 627
114 Estética e Educação

5.1.3 A PROCESSÃO VOLITIVA

A vontade consiste na inclinação de um ser — que possui


vontade — a um objeto. Por exemplo: quando o homem quer uma
coisa, tende a buscá-la.
O amor se afigura como o princípio basilar de todas as
manifestações volitivas — da vontade —, pois “ter inclinação para
algo enquanto tal é amá-lo”9. E o amado está, de certa forma, na
vontade do amante, como termo de seu querer.
Deus possui vontade, e ama — e quer — a si mesmo. Tem-
se, por conseguinte, a processão volitiva: esta vontade, o Amor que
Deus tem por si próprio. O Amor está em Deus, pois, como se disse
acima, o amado está naquele que o ama.
Não se dá aqui, como na processão intelectual, uma geração
em Deus; mas uma inclinação da vontade de Deus para si mesmo.
As duas processões, portanto, são diferentes10.
Assim como na processão intelectiva, Deus é distinto —
somente por relação — do Amor que tem de si mesmo: o primeiro
é o amante, o segundo é o amado. E o Amor é eterno, pois não
houve tempo em que Deus não se amava, coisa que colocaria
temporalidade na eternidade divina, Deus se ama eternamente.
É necessário que o Amor proceda, além de Deus, também
do Verbo, porque só é possível amar aquilo que se conhece11.

É necessário que Deus, em primeiro lugar e acima de tudo, ame


a sua bondade e a si mesmo. Ora, como também foi demonstrado
que o amado deve estar de certo modo na vontade do amante, e
que o próprio Deus se ama a si mesmo, é necessário que Deus
esteja na sua vontade como o amante, no amado. Ora, o amante
está no amado, enquanto é por este amado. Mas o amar é um
certo querer. (S. C. G., IV, XIX, 6, p. 646)

9
Ibidem, XIX, 2, p. 645.
10
Cf. S. T., I-I, q. 27, art. 4, corpus, p. 218.
11
Cf. S. C. G., IV, XIX, 7, p. 646.
A santíssima trindade... 115

5.1.4 OS OUTROS NOMES DAS PROCESSÕES

A processão intelectiva pode ser denominada de geração,


posto que Deus gera o Verbo intelectualmente. Tal geração não
deve ser compreendida como aquela que ocorre nos animais e nas
plantas, isto é, uma produção material, na qual o genitor transmite
uma parte material de si para fora, gerando outra vida exterior a
ele. Mas, por ser Deus espírito, sua geração é intelectiva, imaterial
e, dada sua atemporalidade, eterna12.
Ademais, os frutos duma geração são chamados de filhos,
estes que igualmente são assim chamados por possuírem a
natureza de seu genitor. Ora, o Verbo é fruto da geração de Deus
e é da mesma natureza d’Ele, como se dirá abaixo (cap. 3);
portanto, o Verbo também é conhecido, por causa da geração,
como Filho, e Deus como Pai.13
Amar é próprio de espíritos. Santo se diz daquele que
almeja as coisas boas e divinas. Ora, a processão volitiva é
espiritual — parte de Deus, que é espírito, e tem a mesma natureza
divina e espiritual, como será explicado adiante (cap. 3) — e o
objeto de seu amor é o Bem maior, Deus, portanto com razão é
conhecida por Espírito Santo.14
Em suma: Pai (Deus), Filho (Verbo) e Espírito Santo
(Amor). Assim fica categoricamente elucidado o porquê de as
Sagradas Escrituras chamarem Deus e suas duas processões com
tais nomes.

12
Cf. Ibidem, IV, XI, 7, p. 626-627.
13
Cf. Ibidem, IV, XI, 16, p. 629-30.
14
Cf. Ibidem, IV, XIX, 9-11, p. 646-647.
116 Estética e Educação

5.2 AS PROCESSÕES SÃO DEUS

Nas criaturas dotadas de intelecto e vontade, tais operações


são coisas que, apesar de estarem unidas a elas, não são a essência
delas, isto é, são distintas delas mesmas; por exemplo: o homem
não é o seu próprio inteligir.
O que não ocorre em Deus, que é perfeitíssimo, ato puro e
se identifica com sua própria essência (mais uma vez: coisas
aprendidas no tratado de Deo uno e não recebem explicação aqui).
Portanto, em Deus, intelecto e vontade não constituem uma
realidade estranha a Ele, mas são sua própria essência15: o Verbo e
o Amor que Deus tem de si próprio são iguais à sua essência; o
Verbo é Deus e o Amor é Deus.

A vontade de Deus não lhe é algo acrescido, como também não


lhe é o intelecto, como acima foi demonstrado, pois a vontade de
Deus identifica-se com a sua substância. E como o intelecto
divino identifica-se também com a substância divina, disto
resulta que uma só coisa são, em Deus, o intelecto e a vontade.
(S.C.G., IV, XIX, 4-5, p. 646)

5.3 DEUS E AS PROCESSÕS SE DIFERENCIAM


EXCLUSIVAMENTE PELA RELAÇÃO

Há, assim, Três em Deus: Deus ingerado, seu Verbo e seu


Amor, que são uma só essência. As processões divinas não
acrescentam diferença, cronológica ou local, em Deus, pois Deus
se intelige e se ama eternamente; e suas processões são internas,
não externas. Sendo Deus ato puro que se identifica com suas
próprias operações, a simplicidade e unicidade de sua essência
permanecem livres de embaraços. A única distinção que há entre
os Três são as relações de origem, e não uma diferença pautada em
outras categorias, isto é, não há mudança substancial,

15
Cf. S. C. G., IV, XIX, 4, p. 646.
A santíssima trindade... 117

quantitativa, qualitativa, local, temporal, ou de qualquer outra


categoria de ser16.
Ao gerar o Verbo, há, em Deus, duas relações que
diferenciam Deus e o Verbo, como já se disse acima (cap. 2-b e 2-
d): a paternidade de Deus e a filiação do Verbo.
Na processão do Amor, há outras duas relações: da parte de
Deus e do Verbo, a expiração — assim denominada pois o ato de
Deus, metaforicamente falando, se “inclinar”, se “mover” a si
mesmo, se assimila com a respiração humana —, e da parte do
Amor, a processão — simplesmente denominada com esta
palavra, pois, diferentemente do Verbo, não há aqui uma geração,
mas simplesmente a “moção” de Deus para si mesmo.17

Deve-se aceitar, do que acima foi dito, que na natureza divina


subsistem três pessoas — Pai, Filho e Espírito Santo — e que as
três são um só Deus, distintas entre si só pelas relações, pois o
Pai distingue-se do Filho pela relação de paternidade e pela
inascibilidade; o Filho distingue-se do Pai pela relação de
filiação; o Pai e o Filho distinguem-se do Espírito Santo pela
expiração, de modo a se dizer que o Espírito Santo procede do
Pai e do Filho por processão de amor, segundo a qual procede de
ambos. (S.C.G., IV, XXVI, 1, p. 660)

O que também pode ser entendido com o seguinte quadro:

16
Cf. ARISTÓTELES. Órganon: Categorias, c. IV, p. 41.
17
Cf. FEDELI, Orlando. Das Processões Divinas, Relações em Deus. Disponível
em: <http://www.montfort.org.br/bra/cadernos/religiao/processoes/>. Acesso
em: 28 de maio 2018.
118 Estética e Educação

5.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, resta ainda realizar duas advertências breves.


Primeiro: as relações, em Deus, não implicam dependência causal
— como é o caso dos acidentes, nas criaturas, que dependem da
substância — do Verbo e do Amor para com o Pai, pois Deus não
é acidental e tudo que há n’Ele se identifica com a sua essência18.
Segundo: é falsa a tese que diz dever haver não uma Trindade, mas
uma multiplicidade numericamente maior de pessoas em Deus,
pelo fato de que o Verbo também deve pensar em si mesmo e, por
conseguinte, gerar outra pessoa divina, e assim ad infinitum; e o
mesmo com o Amor, que, ao amar a si mesmo, faz proceder de si
uma infinidade de outras pessoas, porque:

Em Deus, só é possível haver uma processão por via de


intelecto, porque a intelecção divina é una, simples e
perfeita, pois Deus ao se conhecer conhece todas as coisas.
Assim, em Deus não há senão uma só processão de Verbo.
Deve, igualmente, haver uma só processão de amor, porque
a volição divina é também uma só e simples, pois, ao se
amar, Deus ama todas as cosias. Por isso, é simplesmente
impossível não haver em Deus senão duas pessoas
procedentes: uma por via de intelecto, como Verbo, isto é,
o Filho; outra por via de amor, como Espírito Santo. Há
também uma pessoa não procedente, o Pai. Logo, na
Trindade só pode haver três pessoas. (...) Deve-se saber que
o Filho é Deus, como gerado, não como genitor. Por isso, a
potência intelectiva está no Filho como em procedente por
via de verbo, não como procedente do Verbo. Semelhantemente,
como o Espírito Santo é Deus como procedente, a bondade
infinita está nele como em pessoa que recebe, não como pessoa
que comunica à outra a bondade infinita. (...) Se a relação [de
geração ativa] do Pai for atribuída ao Filho, será tirada toda
distinção; e a mesma razão vale para o Espírito Santo. (S.C.G., IV,
XXVI, 2 e 4, p. 660-661)

18
Cf. S. C. G., IV, XV, 12, p. 638.
A santíssima trindade... 119

Fica, desta forma, resumida a prova metafísica, dada por


Santo Tomás de Aquino, que evidencia filosoficamente como há,
em Deus, Três Pessoas — uma ingerada, e as outras duas
procedentes das operações intelectiva e volitiva —, sem formarem
três deuses, mas mantendo a unidade da substância divina, pois
só se diferenciam entre si pela relação, como foi dito.

REFERÊNCIAS

AQUINO, Santo Tomás de. Suma Teológica: volume 1, 1ª pars.


Tradução de Alexandre Correia. Campinas, SP: Ecclesiae, 2016.

AQUINO, Santo Tomás de. Suma Contra os Gentios. Tradução de


D. Odilão Moura, OSB. Campinas, SP: Ecclesiae, 2017.

ARISTÓTELES. Órganon. Tradução, texto adicionais e notas de


Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2016.

FEDELI, Orlando. Das Processões Divinas. Disponível em:


<http://www.montfort.org.br/bra/cadernos/religiao/processoes/
>. Acesso em: 28 de maio 2018.
VI

A VISÃO DOS SENTIDOS E A DISTINÇÃO E


RELAÇÃO DE CORPO E ALMA EM DESCARTES

Marcelo Luiz Dalmagro

RESUMO: O artigo busca, primeiramente, fazer uma breve


introdução ao pensamento cartesiano a fim de, em outras
oportunidades, aprofundá-lo; além do mais, apresenta uma
análise da matéria e da alma tendo os sentidos como uma possível
ligação na visão de Descartes. O texto base para o artigo é o início
da segunda parte do livro Princípios da Filosofia, o qual tem como
título Dos princípios das coisas materiais. Essa parte irá falar sobre
a matéria no espaço que chamamos de mundo, e que, em contato
com as outras matérias, onde existem algumas que vivem mais
próximas à alma, a qual é denominada: corpo humano. Com isso
o filósofo problematiza a ligação entre o corpo e a alma. Segundo
ele, provem do pensamento toda a base para suas crenças, dessa
maneira Descartes procura entender a relação entre corpo e alma
para uma possível descoberta sobre a matéria que está a sua volta,
onde ele julga haver a presença de corpos contendo: extensão,
comprimento, largura e altura, e que os sentidos apenas podem
perceber e fornecer o odor, a cor e a dor. De certa forma, ele tenta
dizer que os sentidos podem ser falhos enquanto, apenas
fornecem algumas características, sendo que não é possível
conhecer por meio deles a natureza de tal matéria. É claro que
existem algumas exceções, todavia à primeira vista é impossível
obter a natureza de tal coisa, sendo assim na maioria dos casos.
Por isso, o filósofo julga haver na infância uma falha na qual não é
conhecida por certo a matéria, mas sim, que o ser se adapta a
conhecer as coisas apenas por meio dos sentidos, apesar de eles
serem postulados como uma das ligações entre a alma e a matéria.
De certa forma, os sentidos são os meios pelos quais uma criança
122 Estética e Educação

alcança de maneira mais fácil o conhecimento e uma concepção


de tal objeto [matéria], entretanto, não sabe e não tem em mente
que a realidade poderia ser o contrário daquilo que se vê, que se
sente ou que se inala, pois não tem em vista o possível erro de
conceber ou obter a natureza plena do objeto pelos sentidos. O ser
humano enquanto criança não teve a maturidade de conciliar e ter
conhecimento das possíveis consequências ao ponto de usar
apenas o intelecto como meio de conhecer a matéria cobiçada.
Assim parece existir, em uma visão cartesiana deste problema
filosófico, uma falha na busca pelo conhecimento do mundo
extenso [matéria] causada pela confiança cega aos sentidos.

PALAVRAS-CHAVES: Corpo; Alma; Sentidos; Conhecimento;


Descartes.

Descartes, pensador, filósofo, de família nobre, resolveu


conhecer uma parte do mundo. Andou por vários palácios, foi
soldado e passou algum tempo por algumas cortes da Europa.
Com isso, carregou consigo uma grande bagagem cultural, quanto
intelectual sobre aqueles pensamentos dos povos visitados. O fato
que levou a começar a pensar mais sobre a realidade e sobre o seu
cogito. Aconteceu, porém, que em um inverno, onde ele ficou
cerca de quinze dias dentro de uma cabana por conta do frio, se
ocupou em questionar sobre a vida e pensar um pouco a mais
sobre ela.
O tempo que ali ficou lhe rendeu alguns pensamentos, os
quais o acompanharam até o final de sua vida, além do mais, são
os mesmos que acompanham a sociedade até hoje, e que deu
inicio ao um novo momento da história da filosofia a qual
denominamos moderna.
Estando ele em uma idade considerada adulta e já digna de
escrever: “[...] aguardei atingir uma idade que fosse tão madura
que não pudesse esperar outra depois dela em que estivesse mais
apto para a executar, [...]” (DESCARTES, Meditações metafísicas,
p.31, 2016), pensava baseando-se na realidade, contudo duvidava
se aquilo que havia ao seu redor era real, ou não passava de uma
A visão dos sentidos e a distinção... 123

visão ou sonho. Sonho este, se referindo aquele de quando estava


dormindo lhe era oferecido quase um mesmo plano presente, e
neste havia também parte idêntica aos sentidos. Dessa forma, fazia
com que duvidasse se estava vivendo ou se estava sonhando.
Todavia, percebe que o problema do sonho está a
percepção, pois existem momentos no sonho que tudo parece
nítido, e outros momentos que está diferente, nota que sempre
existe no sonho algo do real, nem que seja apenas as cores, e que
existe uma relação completa com os sentidos nos diferentes
planos.
Olhando para os sentidos, Descartes nota que eles, em sua
natureza podem apenas nos oferecer algumas noções do objeto,
todavia, podem eles sempre nos enganar e apresentar uma forma
diferente do real, consequentemente, estes não apresentam a real
natureza sobre tal objeto, como bem explica na terceira meditação
do seu livro sobre as meditações metafísicas:

[...] Com respeito às outras coisas, como a luz, as cores, os sons,


os cheiros, os sabores, o calor, o frio e as demais qualidades que
afetam o tato, encontram-se em meu pensamento com tanta
obscuridade e confusão que desconheço mesmo se são
verdadeiras ou falsas e somente aparentes [...] Com efeito, ainda
que haja eu observado precedentemente ser possível deparar
com a verdadeira e formal falsidade só nos juízo, é possível,
entretanto, encontrar nas ideias certa falsidade material [...]
(DESCARTES, Meditações metafísicas, p.65, 2016)

Tendo em vista, o problema dos sentidos apresentados, o


filósofo acaba duvidando da realidade pelo qual é cercado, dessa
maneira tudo ao seu redor se torna uma grande duvida: se estas
coisas são como são, ou não passam de uma invenção dos próprios
sentidos ou da mente, semelhante ao sonho, cuja qual é a primeira
duvida do filosofo em relação a realidade: “[...] Quantas vezes
ocorreu-me sonhar, durante a noite, que estava neste lugar, que
estava vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse
inteiramente nu dentro de meu leito?[...]” (DESCARTES, 2016).
124 Estética e Educação

Desorientado, busca um meio para usar como base em vista


da verdade. Já tem em mente que, os sentidos não são esse meio,
pelo fato já apresentado: de não fornecer ao intelecto a perfeita e
completa natureza do ente.
Assim, ao fazer algumas análises, percebe que ao
questionar a realidade, ele está pensando e, por meio desse pensar
é que, descobre que não tem como negar a si mesmo, pois como
poderia negar aquela dúvida cuja qual duvida de tudo e antecede
os planos? Como duvidar do meio pelo qual possibilita que exista
uma análise e o questionamento sobre tal situação?

Dessa maneira, Descartes descobre a substância pensante: a


alma, e já a toma com verdade, assim essa afirmação passa ser o
começo de uma de suas mais lembradas frases: “cogito, ergo
sunt”, ou seja, “Penso, logo existo”; “[...] eu sou, eu existo, é
necessariamente verdadeira sempre que a pronuncio, ou que a
concebo em meu espírito” (DESCARTES, Meditações
metafísicas, p. 41, 2016)

“Cogito, ergo sunt”, é uma frase que vai marcar a vida deste
filosofo, no entanto, não será ela lançada precocemente, pois ela
virá apenas mais tarde, depois de muitos pensamentos e reflexões
sobre essa dúvida.
A dúvida dele, como pode perceber, surge por meio de um
questionamento da realidade com um olhar profundamente
filosófico, que surge certamente, após vários dias frios a qual
estava encurralado em uma tenda por conta deste evento
climático.
Com certeza, foi aí, com esses pensamentos que o filosofo
passa a desconfiar de tudo, até de sua própria existência, tendo em
vista que sua primeira afirmação se dá por meio do seu
pensamento, onde ele cai em si e nota que não é possível negar
quem o possibilita raciocinar.
Ao duvidar de tudo, Descartes nega até mesmo o seu
próprio corpo, e após ele comprovar sua existência por meio do
espírito, ele tenta julgar aquilo que nós denominamos como
corpo.
A visão dos sentidos e a distinção... 125

Portando, o raciocínio provém do espírito, o qual está


juntamente com o corpo e não pode ser dividido. Segundo
Descartes, o corpo nada mais é que uma matéria mais próxima do
espírito, do qual possibilita receber certas sensações cujas quais
denominamos como sentidos.
Os sentidos consequentemente, não apresentam a
natureza plena do objeto, mostram apenas cor, temperatura e
dureza o que possibilita, portanto, ser enganoso ao espírito.
Todavia, podemos notar que em um primeiro momento
existem duas Substâncias: a do corpo (matéria) e a do espírito. E é
sobre essas que pretendo analisar e mostrar um pouco a mais
sobre elas, segundo o pensamento cartesiano.
Pretendo seguir a mesma sequencia de Descartes em seus
estudos, quando assim analisou por primeiro a alma, pois partiu
dela todo o pensamento e toda a dúvida, sendo ela a base sólida
para todo o edifício do pensamento cartesiano.
A alma para Descartes é incorpórea e indivisível, sendo ela
também imortal, ao contrario do corpo que é divisível e se
decompõe, fato este que não acontece com a alma, por conta de
ela ser outra substância totalmente diferente do corpo, ou seja,
não conhece a corrupção. Tanto que Descartes diz: “[...] a morte
da alma não segue a corrupção do corpo e, assim, para
proporcionar aos seres humanos a esperança de uma segunda vida
após a morte; [...]” (Meditações metafísicas, p.25, 2016).
Além do mais, define como algo pensante sem qualquer
pertença a substância corpórea:

E certamente, a ideia que tenho de espírito humano, na


qualidade de uma coisa que pensa e não extensa em
comprimento. Largura e profundidade, e que não participa de
nada do que pertence ao corpo, é incomparavelmente mais
distinta do que a ideia de qualquer coisa corpórea (Meditações
Metafísicas, p. 77, 2016).

Contudo, a ela é concedida a capacidade de pensar; o


pensamento é uma faculdade própria da alma, sendo que pode ser
possível que ela dê algumas ordens ao corpo, procurando
126 Estética e Educação

admoestar os seus atos, a fim de obter algo do seu interesse: “[...]


da faculdade cognitiva que está em min, e da capacidade de
escolha, ou então de meu livre-arbítrio, isto é, de meu
entendimento associado à minha vontade.[...]” (DESCARTES,
Meditações metafísicas, p.81-82, 2016)
O pensamento, então está na alma, assim leva Descartes
afirmar provisoriamente que ela existe enquanto ser
transcendental e que é este que diferencia o homem dos demais
animais.
É por meio do pensamento que o ser busca o conhecimento
e investida a partir dele e não a partir dos sentidos a realidade. Os
sentidos são tidos, ou relacionados, semelhantes a uma opinião do
vulgo, algo que pode apresentar certa falsidade e enganar o sujeito,
caso não seja analisado com cautela. Porém, será o Espírito que irá
conceber a ideia e irá analisar antes, para depois, apenas, ter o
sentido para confirmar a natureza do objeto almejado.
Contudo, podemos afirmar, segundo pensamento
cartesiano, que o sujeito é ponto base para as suas buscas tendo
ele como ser uno, a qual sua substância, ou essência, é pensar:

[...] não discirno pertencer necessariamente nenhuma outra


coisa à minha natureza ou à minha essência senão ser uma coisa
que pensa, concluo positivamente que minha essência consiste
nisto somente: nomeadamente que sou uma coisa que pensa, ou
uma substância cuja essência total ou natureza é tão só pensar.
[...] (DESCARTES, Meditações metafísicas, p.112, 2016).

Desta maneira o “penso, logo existo”, é uma forma de dizer


que o pensamento é quem dá base e caráter a alma do ser humano.
Porém, o ser humano não é formado só por alma, mas sim,
corpo e alma, cujos quais se denominam respectivamente matéria
e espírito, e dessa forma, cabe explicitar mais sobre o corpo, o qual
vive mais próximo à alma, “[...] corpo está estreitamente unido à
nossa alma do que os outros [ que estão no
mundo],[...]”(DESCARTES, p. 60, 1997), e que sua essência nada
mais é que a extensão.
A visão dos sentidos e a distinção... 127

Quanto ao corpo, ou aquilo que Descartes julga ser matéria;


ele ressalta dizendo que o corpo apresenta certa superficialidade,
a qual tem-se que este é formado por algo extenso:

[...] devemos concluir que existe uma certa substância extensa


em comprimento, largura e altura que está presente no mundo
[com todas as propriedades que sabemos pertencerem-lhe
claramente]. A esta substância chamamos [propriamente] corpo
ou substância das coisas matérias (DESCARTES, Princípios da
filosofia, p.60, 1997).

Assim julga ser a matéria, tanto do seu corpo quanto os


demais corpos ao seu redor.
O corpo por sua parte, não está livre da divisão, tanto que
nas Meditações são descritas algumas partes do corpo e tendo
assim uma das conclusões do pensador: “[...] grande diferença
entre o espírito e o corpo que consiste em que o corpo, por sua
natureza, é sempre divisível e o espírito inteiramente indivisível.”
(Descartes, Meditações metafísicas, p.122, 2016). Tanto que esta
afirmação leva-nos a entender que aquilo que se divide também
sofre alteração do seu estado e de certa forma perece, logo, aquilo
que perece (corpo) não é infinito, sendo assim o corpo ao invés do
espírito é mortal.
Percebe, também, que este sentia alguma sensação a qual
não provinha da alma, mas do contato com os demais corpos, estes
sinais eram enviados até o espírito de forma que estes fossem
sentidos. Esse ato de sentir, julga ser os sentidos, os quais estão
ativos no corpo humano e que chegam a um ponto onde são
transmitidos para a alma aquilo que fora percebido.
Tendo assim, que a análise de algo só por meio do contato
com o corpo, sendo por meio dos sentidos, aqueles que levam
informações até o espírito, pode ser algo duvidoso quanto a
natureza do objeto.
Mas se o corpo e os demais corpos são considerados
matéria, qual seria a diferença entre ambos? Descartes julga ser os
membros do corpo humano, aqueles cujos quais realizam funções
e se movem por vontade própria que assim diferenciam dos
128 Estética e Educação

demais. Contudo, afirma também que o corpo funciona sem o


espírito, sendo ele semelhante a uma maquina.
O intuito de fazer essa afirmação, nada mais é que: afirmar
que o corpo sendo diferente da alma, é mortal; pode sofrer sinistro
e mudança a qualquer momento da mesma forma que os demais
corpos sem alma, sendo que, com a ajuda do espírito, pode se
adaptar a situações que lhe advém.
Mesmo que espírito e corpo sejam opostos, pode ser que
entre eles exista certa ligação, a qual pode apresentar certa
extensão dos demais corpos sendo esta ligação os sentidos, mesmo
corpo e alma sendo diferentes, aqui neste plano eles podem se
ajudar, em relação a concepção de ideias, ou para evitar algum
dano corporal. Ambos formam assim o corpo humano, o qual é
dotado de razão e certa materialidade que podem conjuntamente
conceber ideias e sensações a fim de obter verdades.
Além do mais, percebe-se que aquelas sensações que o
corpo tem pode também a alma ter por meio do corpo, mas que a
alma também tem certa ciência sobre tais, pois ela sabe a distinção
entre ambos os sentidos, dessa forma pode ser que os sentido seja
uma das ligações presente entre as partes, todavia na visão
cartesiana seria um equivoco dizer que os sentidos corporais são
aqueles que dão conhecimento claro de algo, seria então aí o
momento em que a alma tomasse a frete e julgaria certo ser
aqueles que estão presentes nela e também no corpo.
O corpo sendo matéria confirma aquilo que o espírito
imagina e julga ser a natureza depois de analisar o objeto. Ambos
são partes do ser humano. Todavia é o espírito quem dá a ideia de
sujeito, pois é a partir dele que se afirmo ou nega algo.

REFERÊNCIAS

ACEZES, Amir D. O caderno secreto Descartes. Trad. Maria Luiza


X. de A. Borges,1 ed. Rio de Janeiro: Zahar. 2007. 229 p.

AGUIAR, Joana D.; René Descartes: A distinção da alma e do


corpo; 6 p.; Disponivel em:
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Descates.pdf. Acesso em: 18 de outubro de 2017

BATTISTI, Cesar A.(Org.); Às voltas com o questão do sujeito:


posições e perspectivas; Cascavel; Edunioeste; 2010,459p.

BORGES, M. A.; O papel do movimento no mundo de Descartes;


Revista prometeus: Filosofia em revista; 5 de julho de 2012; 16 p.
Disponivel em:
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DESCARTES, René, Meditações metafísicas. Trad. Edson Bini 1ª,


São Paulo:edipro,2016,127 p.

_______. Discurso do método, Meditações. Trad. Roberto Leal


Ferreira.2ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2012. 134p.

_______. Princípios da filosofia.Trad. João Gama. 1. ed. Lisboa:


Edições 70. 1997. 279 p.

DUARTE, Hênia L. D. F.; SOARES, Alexandre G. T. D.; União e


distinção entre corpo e alma em Descartes; 20 p. Disponível em:
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es.pdf. Acesso em: 18 de outubro de 2017

MEDEIROS, C. V. F.; O conceito de “matéria sutil” na filosofia de


René Descartes. Ítaca 29, ISSN 1679-6799, 17 p. Disponivel em:
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df. Acesso em: 18 de outubro de 2017

RIBEIRO, O. L.; O “eu”, a “alma” e “Deus”; Edição especial,


Oracula; 7 de dezembro de 2011, ISSN:1807-8222. 11 p. Disponivel
em:
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a%20Descartes.pdf. Acesso em: 18 de outubro de 2017
130 Estética e Educação

VERGEZ, A.; HUISMAN, D. História dos filósofos ilustrada pelos


textos, 1 ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos.1976.
VII

ANÁLISE DA ATUAL POlÍTICA


BRASILEIRA, SOB A MORAL KANTIANA

Katleen Talia Lopes de Melo Viana*


Márcio Prígoli Santetti**

PALAVRAS-CHAVE: Kant; política brasileira; moralidade

Para a apresentação desse trabalho de pesquisa partimos do


pressuposto que a terminologia e as ligações conceituais são de
conhecimento dos presentes, não nos ateremos ao
aprofundamento da construção dos conceitos, mas cabe
esclarecer, a terminologia utilizada.
Para abordar a temática política usando como referencia a
moral kantiana, primeiramente é necessário saber o que é moral,
a fim de tentarmos estabelecer um critério e possíveis conexões
entre a moral kantiana e a atual politica.
Segundo Kant, uma ação moral é realizada, não para
obedecer a uma certa atitude sensível, nem a um certo interesse
material, mas somente para obedecer à lei do dever, ou seja, a ação
é aquela que é cumprida não para um fim, mas somente pela
máxima que a determina, em respeito à lei. Kant procura
princípios racionais que fundamentem a moralidade, pois
qualquer regra ou preceito que se paute em princípios empíricos,
torna-se uma regra prática e não uma lei moral.
Só existe moralidade a partir do imperativo categórico.
Segundo Kant as leis da conduta humana são ordens,
diferentemente das leis naturais. São ordens porque enquanto as
leis naturais regulam seus fenômenos que expressam uma relação
de necessidade, as leis que se referem ao homem o qual é livre,

*
CEEP - Pedro Boaretto Neto; E-mail: katleen.viana@ceepcascavel.com .br.
**
CEEP - Pedro Boaretto Neto.
132 Estética e Educação

estabelecem entre fato e consequência uma relação de obrigação.


Por meio do verbo “dever”, não descreve, mas prescrevem uma
conduta. O autor expressa na “fundamentação da metafisica dos
costumes” que todos os imperativos indicam a relação entre uma
lei objetiva da razão e uma vontade que, segundo a sua
constituição subjetiva, não é necessariamente determinada por
essa lei. Os imperativos dizem que seria bom praticar esta ou
aquela ação. Dizem que a vontade nem sempre faz o que a razão
ordena como bom. Mas o que é bom? Bom é aquilo que é
determinado pela vontade por meio de representações da razão,
ou seja, por princípios racionais que são validos para todo ser
racional como tal.
Kant distingue dois imperativos: categóricos e hipotéticos.
Os categóricos, são os que prescrevem uma boa ação por si
mesma, e os hipotéticos, prescrevem uma ação para alcançar certo
fim. Ateremos-nos aos imperativos categóricos já que são eles que
determinam a moralidade. O mesmo pressupões três formas de
apresentação: o principio que fundamenta tal ação deve ser uma
lei universal, ter uma finalidade em si mesma, tendo um legislador
universal.
Ademais Kant atribui a moral, uma vontade autônoma, pois
a vontade tem que ser lei para si mesma, independente de uma
qualidade qualquer dos objetivos do dever, já quando a vontade
busca a lei que deve determina-la num lugar diferente daquela a
qual já está acostumada, a saber, a razão, segundo as suas
máximas, buscando essa lei na qualidade de alguns objetos, resulta
sempre em uma heteronomia. Sendo assim a vontade moral ou é
autônoma ou não é moral, qualquer objeto que determine a
vontade de maneira heterônoma tira da vontade a qualidade de
moral da ação.
Partindo desse pressuposto é possível realizar uma analise
acerca da atual conjuntura politica brasileira. A principal
indagação presente é: Onde está a moralidade na politica?
Lembremos que este é apenas um exercício filosófico realizado a
partir de um critério formal.
Análise da atual política brasileira... 133

Existem ações que aparentemente são honestas, mas não


podem ser chamadas morais, porque são cumpridas por impulsos
diversos daquele do cumprimento do próprio dever, e acaba sendo
meio para outros fins. A partir disso vê se que conjuntura a qual
se encontra a politica brasileira, vemos que muitas das atitudes
praticadas pelos dirigentes não são baseadas em princípios
racionais, éticos, autônomos, mas sim em móbiles empíricos, ou
seja, por inclinações imediatas, onde prevalece um interesse
próprio, partidário ou do grupo financiador.
Uma ação moral não é um simples desejo, mas sim o
emprego de todos os meios de que as forças se disponham. Ações
que são praticadas somente por dever ou por alguma inclinação
distinguem o que foi praticado por dever ou intenção egoísta. Ao
ter explicitado pelas mídias os escândalos de corrupções,
mensalões, obras superfaturadas, percebe-se que a politica passa
por um momento de turbulências evidenciando que preceitos
éticos e morais se encontram esquecidos ou propositalmente
deixados de lado, já que tudo de certa forma pauta-se em
interesses próprios.
A própria etimologia da palavra politica remete, ao cidadão
e ao estado, ou seja, a responsabilidade, pela atual situação em que
se encontra não é somente dos “políticos”, mas também dos
próprios cidadãos, já que os mesmos se submetem a essa situação,
aceitando e de certa forma contribuindo, para a estática politica,
não vamos aqui abordar os problemas do pacto social. Para ser um
homem legalmente honesto, é suficiente ser honesto conforme a
lei, para ser um homem moralmente honesto, o simples
conformismo não é mais suficiente, é necessário “dever ser”. A
partir do conhecimento dos preceitos de imperativos (categóricos
e hipotéticos) percebe-se que muitas ações são executadas para
alcançar um fim como é facilmente identificado atualmente.
Vê-se que os representantes que estão no parlamento
parecem preocupar-se tão somente com a própria manutenção no
poder e obtenção de vantagens pessoais, conduzindo-se por uma
inclinação devassa. Essa realidade desesperadora, ao mesmo
tempo em que desencanta e desestimula, permite uma reflexão
134 Estética e Educação

sobre a fonte dos infortúnios brasileiros, entre as quais parece


estar em uma crescente crise moral.
O caráter individual, da livre aceitação das obrigações do
imperativo categórico, é de extrema importância nesse contexto já
que boa vontade parte desse pressuposto. E se a boa vontade não
estiver pautada em princípios morais, fundamentalmente
racionais, torna- se prejudicial a todos.
O que chamaríamos de “boa politica” deve ter um fim em
si mesma, e não pautadas em móbiles, ou seja, em interesses
individuais, que analisando a partir de Kant, deveria buscar a
felicidade. Sendo assim resta-nos o seguinte questionamento:
Seria possível acreditar que um novo politico teria ambiente para
adotar comportamentos próximos do rigorismo kantiano? É
evidente que essa pergunta não encontrará resposta, até porque
esta revestida de subjetividade, da aceitação e adoção desse
imperativo. O obstáculo o qual chegaria ao fim para a adoção
desses imperativos seria o fato da moral kantiana ser formal ao
extremo, e nem todos serem dotados de uma boa vontade em si
mesma, se é possível tal vontade e a falta de obediência em relação
às ações e atribuições dos entes políticos, tornando difícil a
aplicação de tais conceitos. Vale ressaltar que os princípios da
moral formal kantiana poderiam nos oferecer aparato conceitual
para adotar comportamentos que permitissem a construção de
uma sociedade livre, justa e solidária, onde fosse efetivamente
possível a redução das desigualdades (já que ao meu ver estas são
decorrentes da má distribuição de renda), ouso dizer que os
imperativos categóricos seriam norteadores da ação politica.

REFERÊNCIAS

ARANHA, Maria Lucia de Arruda; MARTINS, Maria Helena


Pires. Filosofando: Introdução a filosofia. 5 ed. São Paulo:
Moderna:2013

BOBBIO, Norberto. Fundamentação da metafisica dos costumes.


Análise da atual política brasileira... 135

KANT, Immanuel. A fundamentação da metafísica dos costumes.


Tradução: Paulo Quintela . Lisboa:Portugal.Ed 70. Edições 70.

KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes. Tradução: textos


adicionais e notas Edson Bini/ Bauru, SP: EDIPRO, 2003.
VIII

AS FONTES CRISTÃS DA COMPREENSÃO


HEIDEGGERIANA DE VIDA FÁTICA

Marcelo Ribeiro da Silva*


Roberto S. Kahlmeyer-Mertens**

PALAVRAS-CHAVE: Vida; Facticidade; Teologia Cristã;


Fenomenologia da Religião;

INTRODUÇÃO

Na preleção Introdução a Fenomenologia da Religião (1920-


1921), Heidegger empreende um trabalho de afirmação de um
locus filosófico mais primigênio que a consagrada concepção
filosófica de sujeito-objeto. Para ele, o filosofar auri força na fonte
da experiência fática da vida e nela também tem seu cume. Não
sem demoras, o texto do filósofo lança-se à compreensão da vida
fática e crava uma afirmação impressionante:

A experiência da vida é mais do que a mera experiência de


tomada de conhecimento. Ela significa a plena colocação ativa e
passiva do homem no mundo: vemos a experiência fática da vida
apenas segundo a direção do comportamento que experimenta
(HEIDEGGER, 2014, p.15).

São conhecidos com maior intensidade os filósofos que


contribuíram para a compreensão heideggeriana de vida fática, em
especial Lask, Dilthey e Husserl, mas importa para esse trabalho
trazer à cena a relevância da mística e da teologia cristã como
artífices do sentido de vida no pensamento do jovem Heidegger.

*
UNIOESTE; E-mail: pemarcelo@outlook.com.
**
UNIOESTE.
138 Estética e Educação

8.1 O PROBLEMA DA FACTICIDADE DA VIDA

O primeiro problema que salta aos olhos na citação


anterior é que a experiência da vida não significa tomada de
conhecimento. O que entender por essa consideração
heideggeriana do conhecimento? A narrativa peculiar do conhecer
que se afirmou na história é de que o conhecimento é possível pela
ocupação rigorosa do sujeito com os objetos, a confiança no
entendimento humano dava asas a sonhar com uma filosofia
capaz de chegar pela objetificação ao nexo mais profundo e
essencial das coisas mesmas. Distinguir a compreensão da vida e
do conhecimento é mexer em uma baliza estruturante de todo o
pensamento greco-ocidental. (Cf. HEIDEGGER, 2014, p. 21).
Para Heidegger (Cf. 2014, p.33), esse trato filosófico não
significou até então qualquer modo de acesso à vida, mas a reificou
como se ela pudesse ser conformada a uma dedução científica.
Ademais, achando por certo o caminho que galgava uma definição
teórica e universal da vida, na realidade, não procedia de outro
modo que favorecendo o seu esvaziamento.
O que Heidegger viu na experiência fática da vida que lhe
deu condições de sair da armadilha da concepção teórica da
mesma? Ele viu que a vida excede a objetivação teórica. Como
arguiu HEBECHE (2005, p.23) é que “a vida nasce do subterrâneo
e não da clara ideia filosófica”, quando tomada em termos
especulativos a experiência da vida perde seu caráter de
facticidade, no caso a correlação vida e vivido se esfacela quando
interpretada nos termos de sujeito e objeto (Cf. ESCUDERO, 2000,
p. 215).
Por isso, a questão da vida apresenta-se como uma
demanda de grave urgência, por ela vem à tona a facticidade que
estava oculta nos sistemas metafísicos e na ideia de sujeito
racional. Com efeito, o jovem Heidegger aceita o desafio de
percorrer as sendas da vida fática, isso ele o faz como
propriamente uma vocação para reconduzir a filosofia a seu
âmbito original, e com isso reavivar o projeto filosófico antes que
As fontes cristãs da compreensão... 139

ele se desmanche, como os grandes sistemas conceituais frente a


irrupção da facticidade.

8.2 APORTE TEOLÓGICO PARA A COMPREENSÃO DE VIDA

Com ajuda de quem o jovem Heidegger entreviu essa


dimensão fática da vida? Logo vem à mente os filósofos de quem
Heidegger é leitor, todavia, a orientação e interesse filosófico de
Heidegger pelo fenômeno da vida religiosa denunciam sua
proximidade e diálogo com pensadores cristãos: místicos e
teólogos.
De certo modo, no projeto heideggeriano de superar a
tradição objetivadora da filosofia ocidental tem especial presença
a experiência de fé do cristianismo. Certamente, Heidegger não o
faz como modo de enveredar-se nas discussões teológicas, mas
porque vê no cristianismo matéria para a renovação do
pensamento filosófico. A razão para isso é que, no cristianismo
Heidegger percebe uma noção de facticidade da vida e de
consciência histórica (Cf. ESCUDERO, 2000, p. 203). Sobre isso, é
iluminador o que disse HEBECHE a respeito da transformação que
empreendeu o cristianismo no mundo clássico e sua influência em
Heidegger e Auerbach:

Há um conflito no cerne do cristianismo que subsidiou a filosofia


de Heidegger e a estética de Auerbach, pois, com as cartas
paulinas e os evangelhos, dá-se uma inflexão na experiência
religiosa de si que continua impregnando a gramática da
facticidade dando-lhe um caráter da dramaturgia cristã, pois,
segundo Auerbach, “as representações realistas greco-latinas não
são tão sérias e problemáticas, e muito mais limitadas na sua
captação dos movimentos históricos; [...] desconhecem a luta
entre a aparência sensível e a significação, luta que permeia a
visão da realidade dos primeiros tempos do cristianismo e, a bem
dizer, de todo o cristianismo” (2005, p.38-39).

O interim do que se segue é perceber as incursões de alguns


teólogos cristãos na complexa genealogia do conceito de
140 Estética e Educação

experiência fática da vida. O ponto de partida para tanto, será a


sugestão de ESCUDERO (Cf. 2000, p.198-202), de que se considere
as leituras da teologia protestante e da mística medieval que
Heidegger fez na frente de guerra, na sua crise pessoal em 1917 e,
em particular, nos anos propriamente de formulação do conceito
de 1919 a 1923.

8.2.1 MÍSTICA MEDIEVAL

Em 1918/1919 Heidegger preparou a preleção: Os


fundamentos filosóficos da Mística Medieval, esse texto não foi
proferido em aula, mas por sorte acabou somado à obra do
pensador. Por ela tem-se acesso a relevância da mística medieval
na problematização e formação do conceito de vida fática.
O tema em discussão é a compreensão do fenômeno
religioso. O trato tradicional da filosofia com a experiência
religiosa orientou-se pela contraposição racional e irracional, ora
assegurando um acesso racional à religiosidade, ora negando
qualquer conformação da religião à racionalidade. Para
Heidegger, esse modo de exame da religiosidade emudeceu o
fenômeno religioso arrancando-o de sua realidade factual para
conformá-lo a determinadas visões filosóficas (Cf. HEIDEGGER,
2014, p.31; p. 297).
Para enfrentar essa questão contemporânea, Heidegger
retoma as relações entre o pensamento escolástico e a mística. Ali,
faz ele emergir o perigo que a razão teórica representa para a vida
religiosa: ela suplanta a imediaticidade da experiência religiosa
pelo procedimento da racionalização da vivência. Como qualquer
objeto, a vitalidade originária é destrinchada em categorias e
propriedades (Cf. HEIDEGGER, 2014, p. 291).
A leitura de Eckhart, Bernado de Claraval, Teresa de Ávila
e Thomas Kempis introduzem Heidegger na questão do como se
realiza a vida (Cf. ESCUDERO, 2000, p. 206). A abordagem teórica
não dá conta de compreender a religiosidade viva, porque como
vida imediata, ela não é “algo simplesmente irracional, um factum
brutum, mas algo dotado de sentido, forma e perspectiva”
As fontes cristãs da compreensão... 141

(ESCUDERO, 2000, p. 210), algo que porta uma outra modalidade


de nexos de razões, que irrompem da religiosidade viva e que tem
a dimensão histórica como determinação constitutiva do sentido
de vida (Cf. HEIDEGGER, 2014, p.317).
A leitura dos místicos abre, portanto, caminho para um
novo olhar à esfera do vivencial e o modo como isso deverá
acontecer será pela escuta hermenêutica da vida. Sobre isso,
Heidegger comenta:

A análise, isto é, a hermenêutica trabalha no eu histórico. A vida


como religiosa já está ali presente. Não é assim como se
analisasse uma consciência objetiva neutra, mas em tudo é
preciso auscultar a determinidade específica de sentido” (2014,
p.319)

8.2.2 FRIEDRICH SCHELEIERMACHER

Outra fonte cristã que promoveu o pensamento


heideggeriano sobre a vida fática foi Scheleiermacher. Sua obra
Sobre a Religião (1799) somava-se entre as principias leituras de
Heidegger a respeito do fenômeno religioso. No texto,
Scheleiermacher questiona a visão dominante de religião do seu
século, assentada numa configuração metafísica e moral do ato
religioso, seu empreendimento investigativo buscava recuperar
um âmbito próprio do qual fosse possível pensar a religião, um
domínio em que a vivência religiosa pudesse manifestar-se desde
sua “imediatez fenomênica e experiencial” (FERRER, 2003, p.76).
A investigação de Scheleiermacher edifica-se sobre a
compreensão do caráter imediato da experiência religiosa e a
crítica da ingerência moral e metafísica na consideração da
vivência religiosa. O que se concebe com o empreendimento
scheleiermachiano é uma visada dos atos religiosos atento aos
seus elementos imanentes e desprendido de conceitos
extrarreligiosos (Cf. ESCUDERO, 2000, p. 217).
O que essa abordagem faz emergir? A articulação entre
experiência originária da vida, sentimento e intuição. Na
experiência religiosa, que é pré-teórica, vivencia-se a unidade
142 Estética e Educação

sacral da vida, não pelo conhecimento, mas pelo sentimento


religioso, que desce até o âmbito originário da vida, onde
descortina-se a relação intencional entre o finito e o mistério
inefável do Universo e de onde provém o sentido da totalidade da
existência (Cf. HEIDEGGER, 2014, p.305-306).
Ademais, a abordagem de Scheleiermacher do fenômeno
religioso faz também ver a relevância do acontecer histórico. Ao
tratar os atos religiosos sem as mediações da moral e metafísica, o
pensamento scheleiermacheriano abre à compreensão do
transfundo histórico no qual se articula toda consciência religiosa.
Heidegger, ao resenhar Sobre a Religião, não passou por isso
desapercebido: “Religião, como todo e qualquer mundo da
vivência, só pode ganhar configuração numa consciência histórica
[...]” (HEIDEGGER, 2014, p.307).
Isso significa que a dimensão histórica é possibilidade pela
qual toda e qualquer vivência se faz compreensível e, nesses
termos, também fonte constante da religião. Heidegger afirmará a
partir da consideração schleiermacheriana da história enquanto
sentido primordial da religião: “É só assim que a vida religiosa é
mantida em sua vitalidade e não ameaçada pelas assim chamadas
visões de mundo científicas (HEIDEGGER, 2014, p.307).

8.2.3 KARL BARTH

A produção teológica protestante após o fim da Primeira


Guerra Mundial exerceu uma importante influência no
pensamento do jovem Heidegger. Após a guerra, a teologia sofreu
uma guinada em suas pesquisas, passou-se de um otimismo
histórico dominante na Teologia Liberal para uma preocupação
com a compreensão do tempo na Teologia Dialética, o que, por
sua vez, despertou o interesse do jovem Heidegger (Cf.
ESCUDERO, 2000, p.234).
Essa transformação teológica deita raízes no pensamento
de Karl Barth, de modo particular em sua obra: Comentário as
Cartas aos Romanos (1919), nesse importante texto Barth rompe
com uma solidificada harmonia entre fé e sua manifestação
As fontes cristãs da compreensão... 143

histórica e faz ver um cristianismo originário que não perdurou no


tempo, pois foi suplantado por um sistema filosófico cristão mais
próximo do pensamento grego do que das fontes cristãs.
Na corrente década, pesquisas estão a estabelecer relações
entre Karl Barth e Heidegger, de modo que já é possível falar em
influências daquele no pensamento deste. Rudy Koshar, por
exemplo, acena para a relevância da leitura que Barth faz de
história e revelação:

Revelação para Barth era uma sem precedente interrupção do


fluxo do tempo humano; esse caráter era diametralmente oposto
a uniforme e progressiva evolução da história característica do
pensamento do século dezenove em geral e da Teologia Liberal
em particular (2008, p. 345).

A compreensão barthiana da revelação se assenta no


conceito de crise. A revelação divina é crise, ela implode as
seguranças humanas e expõe a realidade da vida como tempo de
aflição e finitude. Sobre esses termos, Barth abre possibilidades
para se pensar “como o ser humano deveria ser orientado para o
mistério do tempo (e eminente morte) quando toda outra forma
de conhecimento humano (incluindo a ciência) falham em
providenciar uma resposta” (SAMPATH, R., 2017, p. 28).
Ademais, na leitura dos comentários de Barth a epístola aos
Romanos, Heidegger lida com uma percepção da vida em que se
desfaz uma ideia de estabilidade e se perfaz uma visão onde cada
momento se converte em tempo de transição, em processo de
realização da vida. Com a ajuda de Barth, Heidegger consegue
enxergar no cristianismo paulino um modo de viver a
temporalidade sob a orientação da expectativa escatológica: o
cristianismo originário vive a expectativa do retorno do Senhor em
estado de vigilância e serviço. O influxo de Barth em Heidegger
vem à tona em afirmações como a que se segue: “a questão do
‘quando’ se retrai em meu comportamento. Pelo modo como a
parusia se apresenta em minha vida, remete ela à realização da
vida mesma” (HEIDEGGER, 2014, p.92).
144 Estética e Educação

Ainda, vale um último comentário de Escudero que não


deixa de alinhavar o pensamento teológico de Barth, mas também
de Bultmann (teólogo íntimo de Heidegger), como influências
crucias para a compreensão heideggeriana sobre o problema da
vida fática:

Desde está nova vertente teológica protestante, o jovem


Heidegger já não aborda o problema da facticidade em chave de
sujeito e objeto; antes bem, aposta por uma aproximação à
facticidade em termos de processo de realização histórica e
temporal da existência humana que se projeta na futurabilidade,
não na consciência representativa (2000, p.231).

8.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O caminho percorrido até então indicou proximidades


entre o pensamento do jovem Heidegger com teólogos e místicos
que estavam entre suas leituras. Vale, à guisa de conclusão,
repropor a explicação heideggeriana de vida fática exposta no
início deste artigo, agora alinhavada com as contribuições dos
pensadores cristãos anteriormente expostas.
Para Heidegger o modo pelo qual se acessa a experiência
fática da vida é pela direção do comportamento que experimenta
(Cf. HEIDEGGER, 2014, p.15). À luz do que se considerou até o
momento, o afirmar-se da experiência cristã da vida foi crucial
para o alcance desta compreensão da experiência da vida. Os
místicos medievais a falaram em termos de auscultuar a vida em
sua determinidade de sentido, Scheleiermacher percebeu que toda
vivencia se dá numa conformação, num transfundo histórico, e
Barth viu no cristianismo originário um modo de viver a
temporalidade. Desse modo, esses pensadores ajudaram com que
Heidegger aproximasse-se do fenômeno da vida a partir de seu
sentido, sua realização histórico-temporal.
As fontes cristãs da compreensão... 145

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O’MEARA, Thomas. Heidegger and his origins: theological


perspectives. Theological Studies, v. 47, n.2, p.205-226, 1986.

SAMPATH, Rajesh. The time of God’s time: the problem of time


in Barth’s Church Dogmatics and Heidegger’s Being and Time.
IAFOR: Journal of Ethics, Religion and Philosophy, Brandeis, v.3,
n.1, p. 27-34, 2017.

SCHLEIERMACHER, Friedrich. Sobre la religión. Trad. Rafael


Celda e Joaquim Gallego. Madrid: Editorial Tecnos: 1990. 202p.

WOLFE, Judith. Heidegger and Theology. Disponível em:


https://www.academia.edu /7242096/Heidegger_and_Theology.
Acesso em: 18 de abril de 2018.
IX

DO RESPEITO REFLEXIVO:
uma perspectiva ética

Gustavo Henrique Martins*

RESUMO: Este artigo tem como finalidade explorar a proposta


ética de Josep M. Esquirol, descrita no seu livro “O respeito ou o
olhar atento: uma ética para a era da ciência e da tecnologia” cujo
objetivo é aproximar e fundamentar uma noção de ética contra a
indiferença e a ignorância a partir do olhar – um olhar que o
filósofo caracterizou como olhar atento. Este simples trabalho fora
feito para que pensemos numa filosofia que, concordando com
Esquirol, seja íntima, logo, uma filosofia que se acenda no âmago
da própria vida, distanciando-se de sistemas e linguagens que não
podem ser compreendidos sem uma longa formação acadêmica;
formulando, assim, uma filosofia que possa ser tocada pelos que
se interessam sobre o assunto e que mesmo sem um contato direto
com a filosofia, consigam compreender a mensagem que está
sendo transmitida. Esquirol interessa-se, e isso é muito visível
neste estudo, em uma reflexão filosófica nas experiências e nas
atitudes mais fundamentais do ser humano, transformando nossa
noção sobre essas atitudes (que podem parecer simples, cotidianas
e distantes de uma filosofia de criação) e trazendo-as para nosso
olhar sobre o mundo e a vida; algo mais próximo, interior e
reflexivo – uma das características da ética do respeito. Logo no
título, Esquirol nos mostra que sua proposta está visando nossa
era, a era da ciência e da tecnologia, que ele mesmo a define como
a “era da técnica”. Busquei algumas referências que poderiam
contribuir para este trabalho, acrescentando a ele algumas
matérias e estatísticas sobre uma característica peculiar do séc.
XXI: o uso excessivo dos aparelhos smartphones e das redes
*
UNIOESTE; E-mail: martins2017.gustavo@gmail.com.
148 Estética e Educação

sociais. Mesmo os criadores das redes sociais admitem que isso


tenha gerado grandes problemas psicológicos – e mesmo físicos
em pessoas que passam muito tempo unidas a esses vícios. Os
artigos que trouxe para com o trabalho representam apenas dois
parágrafos dele, porém, são de suma importância para
compreender o que Esquirol está tratando como fundamental na
sua proposta ética, visto que atualmente há uma amarga
indiferença quanto à realidade. Não apenas uma indiferença ao
outro, mas uma desatenção a si mesmo, uma desatenção com
nosso próprio íntimo. Por fim, na conclusão apresento uma breve
crítica ao processo conclusivo da proposta ética formulada, visto
que o filósofo busca no conceito cristão de humildade uma
característica essencial para o movimento do respeito. Acredito
que o conceito por si só não representa um problema para o
sistema filosófico, mas a união de uma proposta ética com uma
determinada religião (ou conceito religioso) não pode
fundamentar uma ética universal – que é um dos pressupostos
estabelecidos pelo próprio filósofo: uma proposta ética universal.

PALAVRAS-CHAVE: Josep M. Esquirol; ética contemporânea;


respeito e atenção;

Não houve tempo em que os homens que habitam essa


terra já não tenham concedido respeito a certas coisas e a certas
pessoas: a culturas e escrituras, a mestres e a deuses, à símbolos
abstratos e símbolos concretos etc... Respeito é tradição (assim se
pensa). Os significados que atribuímos a ele, o respeito, podem ser
muitos, tal como podem ser interpretados a partir de diversas
perspectivas; portanto, gradualmente, o significado/importância
do respeito tem mudado de tempos em tempos, e pode divergir
bruscamente de uma civilização a outra – como de uma cultura a
outra.
Porém, a era da ciência e da tecnologia trouxe consigo uma
avalanche de problemas e questões que nos persuadem a refletir
melhor até nossa linguagem mais simplória – como no caso da
palavra ‘respeito’ e a noção que temos sobre o respeitar. Nos atuais
Do respeito reflexivo... 149

dias, cheios de besteiras absurdas e vidas vazias em abundância, o


respeito é pouco tratado, tanto na vida pública quanto na privada.
A “virtual life” via Instagram e Faceboock tornou-se uma extensão
daquilo que somos, visto que tudo deve ser postado para que
tenhamos cada vez mais curtidas dos nossos seguidores. Inflamos
nossos egos e, assim, torna-se impossível distinguir o que é de foro
íntimo e o que pode tornar-se público – ou o que pode ser
publicado.
As críticas às redes sociais – e aqui detenho-me ao
Facebook, exclusivamente – partem de pessoas externas e internas
a empresa, como é o caso do ex-presidente do Facebook Sean
Parker, e o antigo executivo Chamath Palihapitiya, que segundo o
jornal El País, mostra total arrependimento em ter trabalhado para
empresa, e diz que as relações humanas apresentam grave falta de
‘discurso civil’ e estão se perdendo entre desinformações e
falsidades:

É um problema global, está corroendo as bases fundamentais de


como as pessoas se comportam consigo mesmas e com as outras1

Não muito além da violência psicológica, o uso desmedido


dos aparelhos smartphones no volante geram números
preocupantes. No Brasil, que é o quinto país que mais mata no
trânsito, o uso do celular enquanto se dirige é uma realidade.
Segundo a Polícia Rodoviária Federal (PRF) 30,8% dos óbitos
registrados em 2016 foram por falta de atenção. Apesar dos dados,
das campanhas de prevenção e conscientização, há uma profunda
necessidade de compreender a gravidade dos problemas e suas
relações. A combinação entre dirigir e usar o celular (seja para qual
for a finalidade) carrega consigo o terceiro lugar nas causas de
mortes no trânsito no Brasil2.

1
El País, Brasil.“As redes sociais estão dilacerando a sociedade, diz um ex-
executivo do Facebook”. Link nas referências.
2
BURNIER, José Roberto. “Usar celular na direção é a terceira causa de
mortes no trânsito do Brasil”. Link nas referências.
150 Estética e Educação

Esses fatos levam a vários caminhos abismais, dentre eles,


a falta de atenção na vida – naquilo que deveríamos perceber. Ou
seja, tem-se construído uma cultura de carregar conosco nossos
aparelhos smartphones, de tal modo que consigamos não nos
desligar do mundo virtual, e assim, seguirmos conectados mesmo
nos nossos momentos mais íntimos e particulares. Para alguns isto
é uma evidente falta de respeito, assim como para tantos outros é
algo corriqueiro e natural, atribuindo a este comportamento uma
“característica da nossa época”.
Além de estudos tecnológicos, de constatações psicológicas
e antropológicas, há uma concepção filosófica por trás de dois
conceitos adentrados vagamente anteriormente: o conceito de
respeito e as concepções sobre a era da ciência e da tecnologia. Os
estudos variam e divergem. Alguns atribuem a esses conceitos
definições que os aproxima positivamente, mostrando a evolução
das nossas concepções éticas/estéticas sobre vida e obra (mundo);
outros mostram que estamos degradando tudo que conhecemos,
desde nossos ideias ou “valores” (mesmo neste uso pejorativo da
palavra) até nosso habitat natural. Ao respeito me proponho
escrever aqui3.
Segundo Josep Maria Esquirol4, nosso tempo, uma era
determinada pela ciência e tecnologia, precisa de uma ética que
ouse posicionar-se diante problemas tal como o respeito. No seu
livro “O respeito ou o olhar atento: uma ética para a era da ciência
e da tecnologia”5 Esquirol afirma que o respeito há tempos tem
sido tratado com banalização e como se não fosse algo mais que a
própria tradição.
No seu livro, Esquirol não busca tratar uma ramificação da
ética, uma ética setorial como “ética empresarial”, “bioética”,
“ética na administração pública”, etc... A ética do respeito é uma
concepção ética universal (apesar dos problemas que isso pode

3
Esquirol, professor e pesquisador espanhol, ousou tratar de ambos os
conceitos no livro que deu vida a este artigo.
4
Filósofo e professor de filosofia na Universidade de Barcelona.
5
Título original: “El respeto o la miranda atenta – Una ética para la era de la
ciencia y la tecnologia” 2006, Editorial Gedisa S.A.
Do respeito reflexivo... 151

acarretar), com o objetivo de, posteriormente, conversar com cada


uma das ramificações. Tal proposta o é desta maneira, visto que a
era que estamos presenciando comporta muitas éticas particulares
e estas, por sua vez, não conseguem definir uma ética universal ou
mais abrangente, dedicada ao novo, ao diferente – as “éticas”
particulares demandam de um utilitarismo próprio.
Para tanto, o filósofo espanhol busca nas expressões
cotidianas que se referem ao respeito, uma relação que possa
definir o que o é de fato. O respeito, segundo ele, pode se
manifestar com características próprias: através de atitudes
respeitosas, linguagem respeitosa ou como uma definição de
virtude. As atribuições, assim como as finalidades, são muitas.
Porém, apesar das diversas formas do respeito se manifestar, não
é possível defini-lo factualmente. Logo, busca-se então uma
definição do que é o respeito na sua respectiva palavra, ou seja, na
origem dela.

A palavra latina respectus deriva do verbo respicere, que significa


“olhar atrás”, “olhar atentamente”, “tornar a olhar”. Respiceri tem
a mesma raiz que spectare, ver, olhar, contemplar.
Evidentemente, encontramo-nos no universo do olhar:
spectaculum é o que se olha, respicio, seria olho atentamente, e
respectus, o resultado do olhar atento. Entendemos, assim, que
o respeito tanto é o olhar como o resultado desse olhar6.

Com essa premissa/definição, pode-se considerar que o


respeito tem uma relação direta com o olhar, e unindo estas duas
palavras chegar-se-á a uma definição que percorrerá toda sua obra;
se o respeito, em sua origem etimológica, se aproxima do olhar, é
devido perguntar: que olhar é este? Para onde e como olha? Logo,
como não é possível apontar um olhar qualquer como olhar
respeitoso, é necessário que este olhar seja um olhar crítico, um
olhar atento, visto que, para o filósofo, o núcleo do tema está
justamente na atenção, e esta, assim como o respeito, não deve ser
tratada abstratamente, mas com caráter reflexivo.

6
2008, pg. 54.
152 Estética e Educação

Entretanto, há neste respeito um movimento que precede


o olhar atento, e este movimento é a aproximação (que, segundo
Esquirol, é uma aproximação que guarda “distância”).

Em que consiste o movimento do respeito? Um tanto paradoxal


e, ao mesmo tempo, sumamente significativo de um aspecto
importante da condição humana, o movimento é um aproximar-
se que guarda a distância, uma aproximação que se mantém a
distância7.

Para o filósofo, essa aproximação encontra-se distante de


uma concepção utilitarista ou funcionalista, ou seja, não tem
vínculo algum com essas duas concepções – inclusive podendo
haver circunstâncias contrarias a essas. A condição de aproximar-
se, contudo, não é um movimento propriamente físico, mesmo
podendo o ser também, visto que se percebo algo, ao me
aproximar consigo identificar com melhores condições a sua
singularidade. O que segue o aproximar é aquilo de que se
aproxima, que nunca é abstrato. Mesmo se digo “respeito à
humanidade” digo que não respeito à abstração da humanidade,
mas sim o humano, o concreto.

O respeitado pode ser distante no espaço e no tempo, ou até


fazer parte de outro plano, mas se é entendido, o é como algo
concreto e singular. Pode-se respeitar também o abstrato, mas
sempre através do respeito ao concreto: assim, o respeito à
humanidade depende do respeito às pessoas concretas, de carne
e osso; o respeito à natureza depende do respeito a cada um de
seus bosques e de seus rios... Consequentemente, convém não
esquecer nunca essa estrutura do respeito no campo educativo,
pois, do contrário e contra toda lógica, induz-se a respeitar
termos abstratos grandiloquentes sem conexão efetiva com o
concreto, que é o único que pode ser objeto de experiência
pessoal 8.

7
2008, pg. 48.
8
2008, pg. 48-49.
Do respeito reflexivo... 153

Esse aproximar-se tem lá sua cautela, ou seja, sua distância;


a violação da distância correta equivale à violência do respeito e a
violação do respeitado. O respeito então é esse aprender a manter
certa distância sobre o aproximar-se, e só aprendendo a distância
justa teremos condições para notar e respeitar devidamente o
outro. Aproximar-se torna-se sinônimo de prestar atenção e assim
distancia-se da indiferença e da ignorância (que, segundo o
filósofo, é o que devemos encarar com seriedade na sociedade
contemporânea). Segue do aproximar-se a atenção.
Esta atenção é dotada de um significado ético porque ainda
que falemos do respeito, e que o tratemos com o devido cuidado,
estamos diante de um problema que, por sua vez, é reflexo de uma
evolução tecnológica: a indiferença e a ignorância. E, estar diante
deste problema é buscar contê-lo devidamente. Logo, tratando a
atenção como movimento do respeito, estaremos efetivando a
exclusão da indiferença e da ignorância.

Ocorre, de fato, que o movimento da atenção não é apenas para


resgatar ao outro ou o outro, mas também a si mesmo” 9.

O respeito requer uma atenção, e a atenção, um acercamento,


uma aproximação 10.

Seguindo a lógica da exposição, a princípio, foi possível


verificar que 1) é preciso encarar a situação que nos encontramos
hoje (com uma amarga indiferença quanto ao outro) 2) e para
escaparmos dessa indiferença precisamos encontrar o devido
respeito que deveria ser o princípio das nossas relações; 3) este
respeito não pode ser um respeito por devaneio (ou desatencioso),
mas sim um respeito reflexivo, 4) e este, o respeito reflexivo, tem
um duplo movimento: a atenção (o olhar atento) e a aproximação
(movimento de aproximação).
Tendo em vista que até o determinado ponto fora apenas
tratado da concepção externa do olhar, passamos agora ao foro

9
2008, pg. 09.
10
2008, pg. 13.
154 Estética e Educação

íntimo deste olhar. A possibilidade apontada por Esquirol mostra


que nossa experiência com o mundo é uma relação particular que,
através do respeito reflexivo, nos torna pessoas mais humanas,
mais preocupadas com as coisas mesmas e menos indiferentes.
Entretanto, como este olhar parte do próprio homem, é
necessário compreender o foro íntimo da Etíca do olhar atento.
Assim como o respeito reflexivo opõe-se à indiferença e a
ignorância, o olhar para si mesmo age contra o orgulho e a
arrogância, e este combater particular é fruto da consciência de
finitude do homem – que, no campo da moral, é uma humildade
para auto-conhecimento11.
A ação moral do homem pode significar uma ação que
consiste em não agir, em guardar para si algo e não o exteriorizar.
Tal aspecto também vai ao encontro dessa proposta ética, mesmo
não tratando explicitamente tais conceitos, os de orgulho e
arrogância, Esquirol deixa nas entrelinhas que guardar algo para
si também tem um fim na ótica do respeito.

9.1 A HUMILDADE E O OLHAR: UM COMENTÁRIO


“CONCLUSIVO”

Apesar da estrutura final do livro de Esquirol se relacionar


com a moralidade cristã (o que, sob algumas perspectivas, pode
parecer um erro, visto que vincula uma proposta ética para o
mundo tecno-cíentifico com uma determnada religião que, apesar
de predominante em todo o mundo, é umas das tantas outras que
existem) busco me ater a sua reflexão que acredito ser de suma
importância para a sociedade contemporânea; o respeito reflexivo,
a consciência de finitude, a escrita contra a indiferença e a
ignorância e a favor de uma filosofia fervorosa nas veias da vida,
longe dos cumes espinhentos das montanhas etc... afinal, são
conceitos importantes para modificarmos nossa maneira de ver,

11
Segundo o filósofo, esta humildade mostra a grande importância dos valores
cristãos na história do pensamento ocidental. A essência daquilo que somos
reside então na humildade, fechando o ciclo ético do respeito com uma
proposta moral que parece tratar um particular como universal.
Do respeito reflexivo... 155

pensar e entender o mundo – e até nossa própria filosofia – e


assim, modificar nosso estrito vínculo com ele. Como Esquirol
bem apontou: não estamos apenas destruindo o nosso mundo,
mas a nós mesmos.

A nossa é uma época de enaltecimento da facilidade: ser


indiferente não custa nada; para ser indiferente basta não fazer
nada. E exceto o dinheiro, o consumo tampouco custa: todo o
potente sistema econômico atual parece uma imensa
conspiração tramada para nos submergir em um consumo fácil e
desmedido.12

Se o respeito com caráter tradicional já não cumpre seu


papel – e não saberemos se um dia cumprira, de fato – é preciso
tratá-lo então mais profundamente e desenvolver uma cultura de
reflexão sobre ele e sobre as coisas que respeitamos, descobrindo
assim se estamos combatendo ou fortalecendo os males que
afetam nossa época 13.
Assimilo a preocupação de Josep Esquirol com o respeito
subjetivo, ou seja, o respeito sobre si, com a filosofia proposta por
David Le Breto, filósofo francês que há pouco ficara conhecido por
defender “a importância de ficar em silêncio e caminhar nos dias
de hoje14”; vemos uma constante busca, nessas reflexões aqui
citadas, de uma filosofia que trata o sujeito como algo que está
apenas contaminando as convivências, as relações pessoais e
transformando tudo isso num consumismo frenético e irracional

12
2008, pg. 19.
13
Vemos aqui no Brasil duras críticas a filosofias midiáticas, expressadas por
professores e especialistas nas colunas de jornais, em conferências e entrevistas;
porém (apesar de parecer estar me distanciando do assunto) esse modo de fazer
filosofia em meio à vida, torna-se acessível e concreto para toda comunidade,
seja acadêmica, intelectual ou social e, simultaneamente, não diminui o caráter
substancial da filosofia. Conceitos que dizem respeito ao nosso cotidiano
também precisam ser fabricados por filósofos, e estes são tão tocantes quanto
os conceitos fabricados nos cumes das montanhas espinhentas, de difícil acesso
e que nada nos dizem ou nos tocam. A filosofia não para!
14
BUJALANCE, Pablo. Guardar silencio y caminhar son hoy día dos formas
de resistencia política”. Link nas referências.
156 Estética e Educação

(se, acidentalmente, a racionalidade for uma particularidade


positiva do homo oeconomicus15) e desse modo prendendo-nos
numa busca eterna da felicidade na vida do mercado: uma
“deshumanización del presente”.

REFERÊNCIAS:

BUJALANCE, Pablo. Guardar silencio y caminar son hoy día dos


formas de resistencia política Disponível em:
<http://www.diariodesevilla.es/ocio/Guardar-silencio-caminar-
resistencia-politica_0_1183081790.html> Acesso em 19 de maio de
2018.

BURNIER, José Roberto. Usar celular na direção é a terceira causa


de mortes no trânsito do Brasil Disponível em:
<http://g1.globo.com/jornal-hoje/noticia/2017/09/usar-celular-
na-direcao-e-terceira-causa-de-mortes-no-transito-do-
brasil.html> Acesso em 19 de maio de 2018.

ESQUIROL, Josep Maria. O Respeito ou o olhar atento: uma ética


para a era da ciência e da tecnologia. Trad. Cristiane Antunes.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2008. 147 pg.

El País, Brasil. As redes sociais estão dilacerando a sociedade, diz


um ex-executivo do Facebook Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2017/12/12/tecnologia/151307548
9_563661.html> Acesso em 19 de maio de 2018.

15
Termo usado por Nuccio Ordine em “A utilidade do inútil: um manifesto”.
X

FILOSOFIA DE HIPÓCRATES DE KÓS


reflexões acerca da filosofia da medicina
presente no helenismo antigo

Gabriel Arienti Barbieri*


José Dias**

RESUMO: O tema, em âmbitos gerais, centra-se na filosofia da


ciência localizada na filosofia antiga, que explanaremos neste
resumo, a partir de uma compreensão do pensamento e filosofia
médica de Hipócrates de Kós, e sua relação com os pré-socráticos.
Comumente na era moderna pensamos nas ciências isoladas das
demais áreas do saber, como filosofia, sociologia, psicologia, etc.
Mas, em realidade, o primórdio da filosofia culmina e une-se ao
princípio das ciências, ou melhor dizendo, da concepção e
pensamento que nos leva a produzir ciência. Por isso, oriunda
desta proximidade da filosofia com demais estudos, é que
encontramos grandes figuras como Aristóteles, Ibn Sina
(Avicena), Descartes, Kant, Bacon, entre outros, que além de
pensadores, eram cientistas, e atuavam na área da prática ou
estudo médico. Desta forma, o problema do texto está em
compreendermos de que forma relacionamos a filosofia e a
medicina enquanto ciências, e percebermos a capacidade de o
pensamento filosófico humano influenciar certas áreas do saber
(nesta pesquisa, a medicina). De fato, atualmente quando falamos
de medicina antiga, pode ser motivo de zombaria ou risada, pela
concepção tida das compreensões dos antigos cientistas, seja
desde os pré-socráticos à Aristóteles. Isto nada mais mostra que
não sabemos nada sobre os antigos, ou ao menos, que não os
compreendemos de forma plena. Hipócrates de Kos e Galeno de

*
UNIOESTE; E-mail: gabriel.a.barbieri@hotmail.com.
**
UNIOESTE.
158 Estética e Educação

Pérgamo foram exemplos de pensadores e médicos que


produziram grandes ganhos às estas áreas, revolucionando-as e
marcando seus nomes na lista de médicos que são “exemplos”, mas
seus conhecimentos não se originaram apenas da medicina, mas
sim, tem suas raízes na filosofia, na história do pensamento e na
reflexão humana. Podemos dizer, sem medo ou receio, que
quando surge a busca pela physis, nasce naturalmente, em
potencial, o método científico. A busca pela natureza das coisas
levou o homem a refletir sobre o cosmos, sua origem, sua
organização, constituição, essência, e o fruto de sua harmonia,
mas também, de sua desarmonia. A physis não é apenas o marco
de um início, da passagem do mito para a razão, mas sim, da época
de inquerir e investigar (REALE; ANTISERI, 1990, p. 113). Logo,
temos o objetivo central o de explanar esta relação filosófica
científica, presente na medicina. Ora, até mesmo na medicina é
possível pensar em compreender tal ciência ou techné de maneira
reflexiva e axiomática. A filosofia da medicina nada mais é que a
área que estuda esta relação. “A interação entre médicos e filósofos
foi tão comum na antiguidade que o conhecimento filosófico
refletido pelos escritores médicos gregos levou a qualificar a
medicina como ‘irmã’ ou ‘filha’ da filosofia. Esta interação, deu-se,
sobretudo, no conhecimento acerca de temas como natureza,
alma, saúde e doença” (SOARES, 2008, p.13). Sendo assim, via a
compreensão metodológica dos conteúdos, leituras dos textos
filosóficos e reflexão, é possível extrair a compreensão necessária
para o desenvolvimento desta pesquisa.

PALAVRAS-CHAVE: Filosofia Antiga; Filosofia da Ciência;


Filosofia da Medicina.
Filosofia de Hipócrates de Kós... 159

INTRODUÇÃO

Para compreendermos profundamente a relação que existe


entre o pensamento do filósofo e médico Hipócrates, antes de
tudo, devemos investigar os conceitos que permearam a época,
fundamentando sua medicina filosófica. Por isto, antes de tudo, é
dever nosso compreender os pré-socráticos.
Os pré-socráticos são os filósofos que antecederam
Sócrates, que propôs uma nova concepção, grande expansão e
desenvolvimento da área. Comumente são denominados de
filósofos da natureza, “naturalistas” ou filósofos da “physis”, pois,
como compreenderemos a seguir, foram os intelectuais que
refletiram acerca das primeiras, e essenciais, perguntas.
Tendo como base o inicio da civilização Grega, a
constituição da cultura e escola relacionada aos Jônios, a formação
de centros culturais, políticos, filosóficos e econômicos, como
foram Mileto e Éfeso, (SOUZA, 1996, pag.17) os primeiros
pensadores se formaram com um marco do pensamento humano.
Oras, com a mudança da civilização, de nômade para as chamadas
“polis gregas”, ou seja, as primeiras cidades e centros urbanos, o
homem começa a se deparar com problemas óbvios. O primeiro
deles, diz respeito à busca por seu lugar, sua natureza.
Num âmbito mais simples, a busca por compreender a
natureza do próprio homem, seu lugar dentro da polis, sua função,
suas habilidades, características, começa a ser fomentada, afinal,
dentro de uma cidade, as pessoas deveriam se enquadrar em
determinadas funções, para adquirirem as condições mínimas de
sustento neste centro. No entanto, certos pensadores começaram
a refletir acerca desta natureza em um âmbito mais profundo,
mais filosófico. Esta mesma palavra, natureza, em verdade se
chamava physis. Tal palavra de origem grega foi utilizada,
primeiramente, na Odisseia (de Homero), canto 10, sendo usada
pelo Deus Hermes, ao fazer uma planta surgir do chão, do nada.
Alguns traduzem-na como “natureza”, no sentido de plantas,
vegetações, rios, lagos, fauna e flora. Enquanto permanecermos
nesta compreensão, não poderemos ir além. Sendo assim, temos
160 Estética e Educação

que levar a palavra natureza em seus sentidos mais profundos,


como foram utilizadas pelos filósofos a seguir iremos expor.
Também, a busca por este sentido profundo motivou ao homem a
passar dos famosos mitos gregos, cercados pela natureza, Deuses,
Divindades, heróis e contos, à idade da razão e da reflexão.
(SOUZA, 1996, pag.5)
Quando pensamos em “natureza”, podemos refletir em três
âmbitos gerais:
a) A natureza do próprio homem, ou seja, a sua essência,
sua qualidade essencial, princípio essencial, que lhe faz ser
homem, e não animal; o animal ser animal; a cadeira ser cadeira;
a árvore, árvore.
Este princípio essencial chama-se arché, e busca exprimir
este limite entre os entes. “Ente” vem de “On”, isto é, “Ens”
(correspondente ao Latim), e pode-se resumir aquilo que está
sendo. Aquilo que está sendo, “é”, e por ser, tem suas limitações.
Essas limitações são o que distinguem um ente, e podemos colocar
até mesmo como suas “características”. Por exemplo: Uma cadeira
é um Ente, pois tem delimitações (ser uma cadeira, independente
do formato, material, etc.), que distingue ela de um livro, um lápis,
do amor, tristeza, de Deus e das árvores, da mente, etc.
Arché literalmente podemos traduzir como princípio
essencial, a qualidade ou virtude que faz um ente ser ele mesmo,
sua origem (REALE e ANTISERI, 1990, pag. 29 e 30). Logo, buscar
este princípio nas coisas materiais é impossível, afinal, se
tomarmos como exemplo uma mesa de madeira, podemos refletir
acerca das qualidades que possuí, que lhe compõem, que
ordinariamente podemos atribuir como aquilo que faz a mesa ser
mesa, como são: material que é feita (madeira), formato (de
“mesa”), etc. No entanto, acerca do material, podemos ter infinitas
cadeiras, sejam elas de metal, plástico, cimento, etc. Já, o formato,
não é algo essencial pois existem inúmeras formas de cadeira, mais
altas, mais baixas, atualmente na modernidade temos uma
variedade infinita. No fim, nada que vemos nos entes pode dizer o
essencial deles, afinal, se queimarmos uma cadeira (de madeira),
teremos uma cadeira, mas queimada. Sendo assim, mesmo
Filosofia de Hipócrates de Kós... 161

destruída, ainda reconhecemos que era uma cadeira,


independente dos âmbitos físicos, constitucionais materiais.
b) Também podemos perceber a physis como aquilo que
permeia a todos os entes, e a própria natureza. Como o fio de
enlace que está presente em todos os entes, aquilo que há de
comum entre todos eles.
c) Por fim, e talvez mais relevante, a physis como o surgir
de todas as coisas. Este sentido de é de devir, irrupção, aparecer, o
vir a “ser”. Este é o movimento de surgimento da planta, que antes
“não existia” para vir a “existir”. Este movimento, que não é o
aparecimento, por exemplo, de uma pessoa entrar em uma sala,
pois está já existia. Nesse âmbito busca o surgir primordial, de
tudo, do movimento das coisas, no estado de “não-ser” para “ser”.
Também, essa busca pela natureza de todas as coisas, é a busca
pelo princípio original de tudo:

“’Princípio’ (arché) [...] é certamente o termo daquele quid do


qual derivam todas as coisas. Como nota Aristóteles em sua
exposição sobre o pensamento de Tales e dos primeiros físicos, o
‘princípio’ é ‘aquilo do qual derivam originariamente e no qual
se ultimatam todos os seres’, é ‘uma realidade que permanece
idêntica no transmutar-se de suas alterações’, ou seja, uma
realidade ‘que continua a existir imutada, mesmo através do
processo gerador de todas as coisas’”. (REALE e ANTISERI, 1990,
pag. 29)

Logo, neste ponto é que começam a surgir os primeiros


filósofos investigadores da natureza, tanto humana quanto
cosmológica. Portanto, as primeiras teorias são evidenciadas em
coisas que são visíveis na natureza, ou seja, elementos presentes
em toda a natureza, aos quais, foram elencados como princípios
essenciais. Pensadores como Tales, Heráclito, Anaxímenes, entre
outros, foram os criadores das primeiras teorias filosóficas, acerca
da physis e da arché, tendo como fundamento os quatro elementos
da natureza.
162 Estética e Educação

10.1 OS QUATRO ELEMENTOS

Para começarmos a compreender a teoria dos quatro


elementos, que são fundamento essencial, a priori, para
compreensão da filosofia médica de Hipócrates, devemos antes de
tudo, acercarmo-nos dos pensadores que constituíram esta
filosofia, que não tem caráter espontâneo, no que diz respeito ao
seu surgimento, mas sim, derivada do resultado das múltiplas
concepções abordadas na época pelos pré-socráticos, e que por
consequência, unidas em uma única tese filosófica, deram base ao
pai da medicina.
Inicialmente, o primeiro filósofo, como assim podemos
chamar, investigador desta natureza, princípio essencial de tudo,
chamou-se Tales, de Mileto. Destacou-se por muitos, sendo
comentado por Platão e Aristóteles, mas que pessoalmente não
deixou escritos. Habitou a região da Jônia, nas décadas de VII e VI
a.C (REALE e ANTISERI, 1990, pag. 29).
Sua primeira grande reflexão leva-nos a concluir que
afirmava que, está mesma arché que todos buscavam, era a água.
Importante é, mostrar neste momento, que este elemento não diz
respeito, unicamente, a seu respectivo físico, o elemento presente
nos rios e lagos, mas sim, claramente as suas características
filosóficas, como fluidez, movimento, frieza, adaptabilidade,
receptividade, clareza, etc. Desta forma, não é um “materialista”
no âmbito moderno, mas sim um “naturalista”. Desta forma,
percebeu que assim como todo organismo sem água morre, e
possuí umidade em alguma medida (mesmo alimentos, até como
o próprio corpo humano), assim também existe a relação não
apenas materialista, mas sim concebendo tal elemento como
essência, princípio, da vida. (REALE e ANTISERI, 1990, pag.31).
No entanto, Tales não foi o único a propor suas teorias e
reflexões acerca da physis. Outro filósofo conhecido na época foi
Anaxímenes, também de Mileto, inclusive um dos últimos
representantes da mesma escola. (SOUZA, 1996, pag. 20) Sua
concepção da arché é que, em primeiro ponto, deveria ser infinita,
mas não como água, mas sim como um ar infinito (pneuma
Filosofia de Hipócrates de Kós... 163

ápeiron). Este ar infinito assemelha-se ao espírito, é infinito,


incorpóreo, como diz o próprio autor em seus fragmentos:

Exatamente como a nossa alma (ou seja, o princípio que dá a


vida), que é ar, se sustenta e se governa, assim também o sopro
e o ar abarcam o cosmos inteiro

O ar está próximo ao incorpóreo (no sentido de que não tem


forma nem limites como os corpos e é invisível) e, como nós
nascemos sob o seu fluxo, é necessário que ele seja infinito e rico,
para não ficar reduzido (REALE e ANTISERI, 1990, pag. 34)

Desta forma, assim como a água, o ar não deve ser


entendido meramente como princípio de caráter elemental, físico
e apenas material. O ar como sopro vital, como o próprio termo
cunhado pelo autor, pneuma ápeiron, busca trazer a concepção de
Anaximandro, acerca deste conceito, como força movimento, vital
de tudo, mas neste caso, como ar.
Logo, Anaxímenes percebeu que, assim como a água de
Tales está presente em todas as coisas, em medidas maiores ou
menores, o ar tem relação semelhante. Em processos de rarefação
e condensação, tanto físicos como metafísicos, as coisas se criam.
Num primeiro âmbito, temos o ar infinito em sua forma invisível,
intangível, incorpóreo. Posteriormente, assim que condensa,
temos outras formas de vida como, fisicamente o nevoeiro, e todas
as demais coisas, proporcionais a sua condensação. Também
percebeu a relação de outros elementos com este, pois a terra seria
fruto deste processo. A água evaporada se converte em ar, e o ar,
no estado rarefeito preciso, gera ignição ao fogo.
Por outro lado, agora temos como outro filósofo de estudo,
um dos mais destacados em toda história da filosofia grega pré-
socrática, principalmente por abordar a questão da physis de
forma mais reflexiva ainda, concebendo-a como um verdadeiro
problema filosófico: Heráclito de Éfeso.
Sua concepção acerca da natureza das coisas foi tida como
obscura, complexa e profundamente filosófica, e uma das frases
que se considera marcante em sua filosofia (SOUZA, 1996, pag. 28)
164 Estética e Educação

é a seguinte: "Este mundo, que é o mesmo para todos, nenhum dos


deuses ou dos homens o fez; mas foi sempre, é e será um fogo
eternamente vivo, que se acende com medida e se apaga com
medida".
Esta concepção nos mostra o principal caráter do pensador,
ao compreender que os processos do universo se dão de maneira
polarizada, esse dinamismo, formação, transformação,
transmutação de tudo, geração, sustentação e reabsorção,
afirmando também “Tudo se move” e “Tudo escorre”. (REALE e
ANTISERI, 1990, pag.35). Perceptível também no seguinte
fragmento, número 67 (HERÁCLITO, 1990), “Deus [é] dia-noite,
inverno-verão, guerra-paz, saciedade-fome; mas altera-se tal
como o fogo, quando misturado com especiarias, é nomeado de
acordo com o aroma de cada uma.” Aqui encontramos claríssimo
o conceito de harmonia dos contrários. (REALE e ANTISERI, 1990,
pag. 37)
Também mostra a passagem das coisas, do ser ao não-ser,
e vice-versa, entre tudo que há, a mudança, este eterno
movimento que nos fala Heráclito, do fogo que se acende e apaga
sem medidas:

Não se pode percorrer duas vezes o mesmo rio e não se pode


tocar duas vezes uma substância mortal no mesmo estado; por
causa da impetuosidade e da velocidade da mutação, esta se
dispersa e se recolhe, vem e vai. (HERÁCLITO, 1990, fragmento
n°91)

O fogo como ontológico pode ser interpretado,


primordialmente, como algo que esquenta, isto é, aquece. Este
aquecer dá-se de uma forma simples, onde, um objeto que passe
por tal processo começa a ficar vermelho e em si mesmo,
literalmente, vibra. Vibra, pois o calor coloca o objeto em
“movimento”. Este movimento faz com que o objeto aquecido
“seja”. A totalidade do objeto e todas as suas delimitações (ente
por definição) tornam-se ativas e destacadas com o aquecimento,
por exemplo, uma caneca de ferro aquecida, e vibrando, passa a
realizar um movimento de “canecar-se”. Este movimento é a ação
Filosofia de Hipócrates de Kós... 165

ligada ao ente, e faz com que o ente atue conforme suas


características e qualidades. Isto seria a própria “intensificação” ou
“in-tensidade”, pois é um processo de dentro do ente, não algo
externo. A tensão, os limites da existência e operação do ente são
atingidos pelo fogo (aquecimento).
Mas além de aquecer, o fogo pode transformar. Sabemos
que se o aquecimento perdura, e o ente permanece “sendo” por
muito tempo, exposto ao fogo, ontologicamente falando, ocorre o
processo de transformação. A caneca de ferro passa a ser algo
diferente (ferro derretido). Essa transformação de um ente, que
antes estava “in-tenso”, total e “perene”, enquanto remanescia em
suas delimitações, pode ser colocada como “ex-tensidade”, pois é
a tensão interna “externalizando-se”. O Ente estava vibrando tanto
que essa força interna passa ao exterior.
E ainda assim, o fogo pode ser mais ontológico. O fogo em
forma de tocha ilumina. Iluminar é em si mesmo, e totalmente, o
processo de Alétheia, desvelamento, mas diferente. Pois o ente não
passa a existir, ou seja, essa iluminação, quando estamos num
quarto escuro e ascendemos a luz, não é a passagem de “não-
existência” do ente para “existência”, em seu quarto. O ente, no
quarto, já estava lá, entretanto, encontra-se velado pela escuridão,
isto é, oculto aos olhos (lete). Essa iluminação é a “abertura” do
ente ao observador, a revelação de si mesmo para o observador, o
“devir”, pois na situação da physis, o fogo, neste caso, como
“abertura”, é do “não-ser” para “ser”. (REALE e ANTISERI, 1990,
pag. 36)
Por fim, vale a nós interpretar a concepção que marcaria a
filosofia por mais de séculos, tendo em vista que não é fruto único
de seu autor, mas união dos pensamentos até então expostos. Os
quatro elementos, as quatro “raízes”, propostas por Empédocles,
de Agrigento, será a filosofia marcante em todas as áreas (vale
lembrar que a filosofia e as ciências humanas, da natureza,
matemáticas e biológicas eram muito unidas), utilizada em
futuras teorias, e principalmente na filosofia médica de
Hipócrates, de Cós, (que futuramente influência até mesmo Kant
em sua concepção acerca do Belo e do Sublime, que utiliza dos
166 Estética e Educação

quatro humores Hipocráticos/Galênicos, oriundos dos pré-


socráticos).
Tal filósofo, considerado por muitos um eclético, não
pertencente a nenhuma escola específica, demonstra em sua
filosofia uma proximidade grande com os jônicos (anteriormente
expostos), mas também uma proximidade ao pensamento
Pitagórico. Cunhado como filósofo, mas além disto, místico,
taumaturgo (pessoa que realiza milagres) e médico, gerou
bastante polêmica e dúvidas acerca de seu pensamento, pois em
grande parte, mesclou o pensamento racional com o culto órfico.
A primeira concepção é de que, as raízes, os elementos, são
forças divinas unidas (REALE e ANTISERI, 1990, pag. 62). O
próprio nascer e perecer (morrer), percebidos e concebidos como
inicio e fim, do nada ao nada, passam a ser, em realidade, um
simples processo de desassimilação dos elementos, porque o ser,
enquanto o que é, a unidade, a integridade, a verdade de algo, não
pode “não-ser”: seria ilógico que o “ser”, o que é, viesse ao “não-
ser”, o que “não-é”, seu oposto por natureza. Se algo existe,
continua a existir. (REALE e ANTISERI, 1990, pag. 60)
Portanto, os quatro elementos divinos, ar, terra, fogo e
água, unidos são a própria geração, e separados: corrupção. A água
(Perséfone), tida em Tales como essência vital, que nas medidas
certas cria tudo. O Ar (Hera), enquanto pneuma ápeiron exerce o
mesmo caráter do elemento de Anaxímenes, a alma, o sopro vital
que no processo de rarefação e condensação gera tudo. O Fogo
(Zeus), que Heráclito descreve como próprio movimento, eterno,
e dual, polarizado, como dia-noite, bem-mal. Esta relação entre as
partes, que em certas proporções produzem a harmonia,
encontrada até mesmo no lado “mal” como a Guerra (Marte-
Áries), oposta à Paz, à beleza (Afrodite-Vênus), que vide: na
mitologia grega, são um casal; portanto, esse fogo é dito pelo
filósofo como o organizador, o “logos”, Zeus, pois é aquilo que dá
ordem às partes. Acrescentando ainda a Terra (Hades), como
elemento gestante de tudo (assim como Gaia), mãe de todos, a
própria natureza, que erroneamente foi desprezada por seu
caráter denso e grosseiro. Empédocles mescla estas quatro pontas,
Filosofia de Hipócrates de Kós... 167

e compreende a força de relação entre elas. O que une, ou seja,


geração, é a força da phiíia (Amor/Amizade), o que separa, a força
do neîkos (Ódio/Discórdia). Nisto, a philía, de tempo em tempos,
gera e une os elementos, formando coisas e entes, a própria ordem,
por outro lado, alternam-se com a força do neîkos separando-as,
tornando tudo corruptível, perecível, temporal, mortal, imperfeito
e caótico. (REALE e ANTISERI, 1990, pag. 60)
Por fim, compreendendo tais filosofias e o
desenvolvimento do pensamento pré-socrático, até então, é
possível compreender onde se coloca a filosofia médica de
Hipócrates.

10.2 HIPÓCRATES DE KÓS

Quando investigamos a história da filosofia, e analisamos


conjuntamente a história da medicina, podemos perceber como a
origem de ambas se interligam de forma inseparável. Fato é, que
em filósofos como Platão, Aristóteles, Ibn Sina (Avicena),
Descartes, entre outros, não são incomuns, também oficiarem
como médicos, e além do mais, usarem constantemente exemplos
de tal área.
A princípio, a medicina era uma techné exclusiva aos
chamados asclepíades, ou seja, aos filhos/discípulos de Asclépio,
conhecido também como Esculápio, cultuado na Grécia antiga
como Deus da Medicina. Tais sacerdotes médicos eram os
responsáveis pelo cuidado dos enfermos, e a busca por sua cura.
Hipócrates, nascido na ilha de Kos, advinha diretamente de uma
família de médicos gregos, e com certeza, sofreu fortes influências
em seu pensamento e filosofia. Com este princípio, a ciência e
filosofia médica era unida à religiosidade helênica, e desta forma,
os asclepíades dedicavam templos de cura à Esculápio, e por
consequência, estes centros se tornavam espécies de hospitais, e
comumente, próximo destes pontos, surgiam escolas de medicina
(as mais famosas, localizadas em Crotona, Cirene, Kos, Rodes e
Cnido). Logo, nestes centros, onde os médicos sacerdotes
atendiam, sejam estáticos, em seus templos, moradas fixas, ou até
168 Estética e Educação

mesmo viajando, se acumulavam muitos conhecimentos de


patologia, das enfermidades, seus sintomas e tratamentos. Kos,
especialmente com Hipócrates, chegou a um ápice do
desenvolvimento desta arte médica, pois, por definição, dedicou-
se a compreendê-la como ciência, ou seja, uma forma de pesquisa
com método bem definido e preciso, para comprovação e
investigação, indo mais além do que unicamente encontrado nos
cultos órficos. (REALE e ANTISERI, 1990, pag. 111)
Desta forma, podemos compreender o surgimento antigo
de uma ciência, ou o princípio de investigação científica, com o
surgimento da filosofia, que influência todas as áreas do saber:
“Foi a ‘mentalidade científica’ criada pela filosofia da physis a
tornar possível a constituição da medicina como ciência. W.Jeager
ilustrou perfeitamente esse ponto em uma página exemplar, que
vale a pena ler: ‘Sempre e em toda parte houvera médicos. Mas a
arte sanitária dos gregos só se tornou uma arte metodicamente
consciente pela eficácia exercida sobre ela pela filosofia jônica da
natureza [...]” (REALE e ANTISERI, 1990, pag. 113)
Logo, mesmo que saibamos pouco sobre a vida deste
filósofo, e seus detalhes, presume-se que viveu entre a segunda
metade do século V e primeiras décadas, entre o século IV, sendo
citado por Platão e Aristóteles como o paradigma do médico, ou
seja, o exemplo para todos, ensinando tal arte técnica em Atenas.
Lhe atribuíram um conjunto de muitos escritos de medicina da
época, que em totalidade foram intitulados Corpus
Hippocraticum, mas que pesquisadores atribuem à Hipócrates,
devido ao reflexo de seu pensamento, apenas os textos: “Sobre a
natureza do homem” (da natureza essencial do homem, dos
humores, ao qual alguns não atribuem total, mas parcial, autoria
ao filósofo) “A medicina antiga” (manifesto em favor da autonomia
da arte médica), “O mal sagrado” (criticando as origens de tal mal,
epilepsia, tido como uma doença de caráter divino), “O
prognóstico” (caracteriza a dimensão essencial da medicina),
“Sobre as águas, os ventos e os lugares” (relação entre as doenças e
o ambiente), “Epidemias” (casos clínicos), “Aforismos” e
Filosofia de Hipócrates de Kós... 169

“Juramento” dos quais dispensam explicações, por sua fama.


(REALE e ANTISERI, 1990, pag. 114)
Nos cabe agora analisar de que forma surge a união entre a
filosofia dos quatro elementos, que em Hipócrates encontramos
em forma de humores.
Como a “figura 1” nos apresenta, em um esquema gráfico, a
relação que existe entre os elementos, devemos compreendo como
isso se caracteriza nos humores e na medicina.

Figura 1 - Tabela acerca dos quatro elementos e humores, e suas relações

Primeiro, temos que compreender que são quatro humores,


sendo eles compostos por quatro respectivos fluídos corpóreos:
Sanguíneo (sangue), Bilioso ou Colérico (bílis amarela),
Melancólico (bílis negra) e Fleumático (fleuma). Correspondentes
aos elementos, na ordem já exposta, Ar, Fogo, Terra e Água.
Quando nos referimos à medicina dos humores, vale
compreender que o significado de humor remete aos líquidos
170 Estética e Educação

acima citados, mas também, ao estado de ânimo, espírito, ao qual,


cada pessoa se enquadra naturalmente nos citados. A saúde ou
doença se dão na medida de suas relações. Quanto mais
desequilíbrio (seja no excesso ou na falta), podemos dizer que
mais as enfermidades têm desenvolvimento, e quanto mais
próximo do equilíbrio (entre estes quatro), suas sábias relações,
ordem, mais saúde. Também, cada elemento corresponde de
forma natural a uma estação do ano, que tem suas qualidades no
que tange a parte físico, isto é: Água corresponde ao inverno, que
é úmido e frio; Ar correspondente à primavera, que é úmida e
quente; Fogo relacionando-se com o verão, quente e seco; Terra,
interligada ao outono, onde se é seco e frio. (REALE e ANTISERI,
1990, pag. 121)
Nisto, as enfermidades possuem tendências relacionadas às
características dos elementos, e seus respectivos humores. Por
exemplo, uma pessoa de humor melancólico, do elemento terra,
traz atributos ontológicos à personalidade que se correlacionam,
tais como a frieza da terra, sua “morbidade”, estagnação e
imobilidade, sendo um humor apático. Pessoas com este humor,
de acordo à teoria hipocrática, teriam tendências à melancolia,
sentimento oriundo e relacionado com todos os atributos acima
citados da terra, e por consequência natural, enfermidades
relacionadas à mesma. Da mesma analogia, percebemos que o
colérico, palavra remetente à cólera, ira, força extrema, calor
extremo, prejudicaria seu portador, se em excesso, pois causaria
desordens orgânicas, levando ao superaquecimento do sistema,
resultando em demais enfermidades degradantes mediante o calor
(gastrites, etc.).
Contudo, a teoria hipocrática foi ao longo de mais de
séculos adotada, e amplamente discutida, e defendida por
inúmeros médicos e filósofos, como o conhecido Galeno de
Pérgamo, que até mesmo escreveu um texto intitulado “O melhor
médico também é filósofo”, e que expandiu a compreensão das
enfermidades e como se relacionam aos humores.
Filosofia de Hipócrates de Kós... 171

10.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por consequência deste estudo, podemos concluir, em


primeiro ponto, a proposta inicial do artigo: compreender de que
forma a filosofia proporcionou amparo às demais ciências da
época, principalmente na medicina. Ora, isto apenas nos coloca
mais questionamentos, que na atualidade vêm sendo respondidos
com mais frequência, e que momento após momento, novas
descobertas são feitas.
Podemos achar que o conhecimento é isolado, mas isto
poderia incorrer em um equívoco, pois existe uma relação entre
eles. Cada dia mais, a psicologia, psiquiatria, psicanálise, medicina
e filosofia vêm se comunicando, para compreender de que forma
o pensamento humano, sua expressão e veículo racional,
emocional, motor, instintivo e sexual contribuem para uma saúde,
ou em medidas contrárias, nos colocam em possibilidades de
desenvolver enfermidades. Isto não é segredo, doenças
psicossomáticas são campo de estudo novo, e altamente atrativo à
médicos, biólogos e psicólogos, e porque não há filósofos? Afinal,
todos trabalhamos com o âmago do homem, sua natureza, seja
psicológica, filosófica ou biológica, que estão indissociáveis.
Podemos perceber como, por mais que os filósofos antigos
possam não ser levados à sério, não no âmbito do estudo, mas no
que diz respeito à utilização de suas concepções, não estavam tão
distantes dos axiomas e causas, princípios e influências, que as
ciências atualmente estão se aprofundando. Os humores
Hipocráticos/Galênicos não são mais considerados ultrapassados,
mas sim, se reapresentam na modernidade com rostos e teorias
novas, atualizadas com as descobertas da ciência. Pois, como
dissemos, não nos importa compreender precisamente toda a
teoria e leva-la a cabo, mas sim, identificar e perceber, que o
axioma que reverbera em seu fundo está presente nas dificuldades
da medicina geral moderna: certas doenças e enfermidades
possuem fundo no âmbito interno do homem, ou seja, seus
pensamentos, emoções, desejos, afetos, instintos, etc.
Percebemos, que aquilo que não aprendemos a filtrar
172 Estética e Educação

internamente, com nossa consciência, reflexão, entendimento


profundo, se “digerem”, ou melhor dizer, são trabalhadas,
processadas, por nosso corpo biológico na forma de enfermidades
e debilidades; assim funciona a depressão, mal que assola o século
XXI.
Quando esta enfermidade psicossomática, altamente
relacionada aos pensamentos e emoções, não são trabalhadas de
forma correta, especialmente sem acompanhamento da alguém
que ajude, como um psicólogo, produzem danos corporais e
deficiências orgânicas, como extrema falta de energia,
indisposição, apatia, problemas neurológicos, perda de memória e
concentração, alterações de peso, falta de vitaminas e nutrientes
(carência orgânica), dores de cabeças, cólicas, problemas
digestivos e até náuseas e enjoos. Estes danos, problemas e
deficiências corporais, são sintomas, ou seja, sinais que nosso
corpo usa para alarmar-nos, mas também, são formas que corpo
processa aquilo que nosso interior (alma, pensamento, emoção,
instintos, afetos, etc.) não foi devidamente compreendido, e
continua a nos prejudicar, internamente.
O mesmo ocorre quando um grande evento, chocante
(emocional ou mentalmente falando), como a morte de um ente
querido, ou demais situações traumáticas, como acidentes,
fatalidades, chegam até mesmo a nos produzir efeitos corporais,
como indigestões, falta de apetite, insônia, cansaço, náuseas,
tontura e enjoo. Isto nos revela, cada vez mais, a capacidade de
relação entre corpo e alma.
Não é obscuro à ciência, que a gastrite, por exemplo, tem
fundamento intrínseco, fator de risco, na raiva e estresse
excessivo. Ora, quando estas emoções são incitadas no nosso
interior, reverberam-se em nosso corpo (se não aprendemos a
digeri-las com a consciência, ou seja, acalmar-nos). Isto produzi
um aumento no fluxo sanguíneo, a raiva, por exemplo, chega até
mesmo a dilatar as pupilas (reflexo do aumento sanguíneo), e o
suco gástrico (nada mais que enzimas e ácido clorídrico) é
produzido em maior quantidade, que culmina em ferimentos,
machucaduras e inflamação nas paredes intestinais, casando dano
Filosofia de Hipócrates de Kós... 173

a elas: gastrite! Claro, fatores biológicos e amplamente estudados


nas disciplinas de patologia são altamente relevantes, mas não são
únicos indicadores e causadores de enfermidades. O interessante
é saber usá-los em conjunto.
Pois, assim como os médicos antigos gregos perceberam, os
humores afetam a saúde, o que em outras palavras sintetizam as
descobertas atuais acerca das enfermidades de cunho
psicológico/fisiológico (psicossomáticas). Todo este
conhecimento e compreensão nos faz ser dignos de perceber a
profundidade da máxima romana: “Mens sana in corpore sano”1

REFERÊNCIAS

GMERK, Mirko. La vita, le malattie e la storia. Roma: Di Renzo


Editore, 1998.

HERÁCLITO. Fragmentos. REALE, G.; ANTISERI, D.


Antiguidade e Idade Média. São Paulo: Paulus, 1990 (História da
Filosofia vol I 3° Ed.)

REALE, G.; ANTISERI, D. Antiguidade e Idade Média. São Paulo:


Paulus, 1990 (História da Filosofia vol I 3° Ed.)

SOARES, Sônia. Medicina Filosófica. Natal: UFRN, 2008

SOUZA, Prof. José Cavalcante de (org). Os Pré-Socráticos. São


Paulo: Nova Cultura, 1996 (Coleção Os Pensadores vol. I)

1
“Sátira” X do poeta Juvenal.
XI

GUERRA E PAZ:
o problema da guerra e as vias da paz
no pensamento de Norberto Bobbio (1909-2004)

Valdenir Prandi*
José Dias**

RESUMO: O presente trabalho tem como tema o conceito de


guerra e paz no pensamento do italiano Norberto Bobbio (1909-
2004), que ficou conhecido por suas contribuições sobre a teoria
política, buscando afirmar uma democracia liberal. O objetivo
desta pesquisa é compreender o pensamento de Bobbio sobre a
guerra, ao descrever guerra como conflito entre grupos onde a
solução será a violência organizada, com suas causas,
consequências na sociedade entre Estados e Nações, assim
interferindo nos direitos do homem; que para o autor são
construídos ao longo da história, não de uma vez e nem de uma
vez para sempre. Analisar-se-á o seu conceito de paz, onde ressalta
a paz interna no indivíduo e a paz externa, quando não há conflito
entre grupos ou indivíduos, ressaltando que “paz e guerra” podem
ser dadas no sentido positivo, pois entre ambos existe uma zona
intermediária. Num terceiro momento faz-se necessário analisar e
refletir sobre as vias que levam à paz utilizando da metáfora do
labirinto como um caminho possível, pois o sujeito ao reconhecer
caminhos sem saída irá reiniciar uma trajetória de onde havia
parado e procurar encontrar uma saída. Bobbio fala de um terceiro
ainda ausente que entre as partes conflitantes encontrará uma
alternativa sem o uso da violência. Como Bobbio mesmo escreveu,
existe uma via de saída para aqueles que queiram e saibam
procurá-la.

*
UNIOESTE; E-mail: pnmeval@hotmail.com.
**
UNIOESTE.
176 Estética e Educação

PALAVRAS-CHAVE: Bobbio; Guerra; Paz; Terceiro ausente.

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa tem o objetivo de analisar a


problematização referente à guerra e à paz que serve de pano de
fundo nas reflexões do pensador italiano Norberto Bobbio. Ele
viveu no regime fascista propagador da violência, diante dessa
realidade Bobbio traz uma nova teoria da não violência. Parte da
metáfora do labirinto para mostra a realidade do homem que,
diante de caminhos sem saída (via bloccata) deve buscar uma nova
alternativa para encontrar a saída, o autor afirma que assumir a
guerra por meio dos armamentos torna-se uma via bloccata, no
entender de Bobbio a preocupação hoje é com a questão
termonuclear: a sua “solução final”. No caminho da história em
relação à guerra nos deparamos com duas atitudes o abandono
como uma via bloccata é uma necessidade ou dever.
No processo belicoso que envolve as guerras, os refugiados
e os deslocados internos, o problema do armamentismo,
militarismo e as instituições antidemocráticas, são grandes
responsáveis pelas violações dos direitos do homem. Assim,
estudar sobre a guerra, paz e direitos do homem a luz do
pensamento de nosso pensador italiano nos impulsiona a adentrar
sobre cada um deles. Bobbio entende guerra como conflito entre
grupos políticos, onde a solução está confiada à violência
organizada. Enquanto paz ao receber várias acepções tais como
“paz interna” e “paz externa”, sendo a primeira no âmbito da moral
e a segunda no âmbito do direito. A paz é um estado específico
criado por meio de um acordo entre os estados beligerantes, sendo
também condição para a realização de outros valores que vem
considerados superiores.
O autor busca uma resposta por meio do pacifismo como
uma atitude radical, já que a guerra não pode mais ser limitada é
preciso eliminá-la (BOBBIO, 2003, p. 96 e 97). Ele desenvolverá
sua tese sobre o Pacifismo ativo, compreendendo três dimensões:
o institucional, o instrumental e o finalista. Para Bobbio só haverá
Guerra e paz... 177

paz quando não mais existir cidadãos apenas deste ou daquele


Estado, mas sim do Mundo, onde faz-se necessário a presença de
um “Terceiro” que segundo ele ainda é ausente para que seja o
mediador entre as partes beligerantes. Este “Terceiro” deveria ser
a ONU (Organizações das Nações Unidas, fundada em 1945).
Diante de muitos desafios a Paz é algo de primordial importância,
por assim ser não se deve medir esforços para perquirir meios que
levem à sua concretização.

11.1 PROBLEMATIZAÇÃO DA GUERRA E DA PAZ

Norberto Bobbio (1909-2004), filósofo do direito e da


política, viveu e teve sua formação na época do regime fascista;
assim Bobbio vem com uma nova teoria da não violência. Propõe-
se a analisar as principais ideias do autor relativas à guerra e à paz.
A paz foi tema de muitos escritos do autor, principalmente os
recolhidos na coletânea O Problema da Guerra e as vias para a paz.
Ele nos narra por meio de três metáforas a condição do homem
diante de tal problemática: a garrafa, a rede e o labirinto. Na
metáfora da garrafa, inspirada na frase do filósofo austríaco
Ludwig Wittgenstein: “a tarefa da filosofia é ensinar a mosca a sair
da garrafa” (BOBBIO, 2003, p. 49). Essa imagem representa a
humanidade em uma das situações que se encontra e não a mais
desfavorável, pois existe uma saída, sendo o filósofo, com uma
visão mais clara, a indicar o caminho por vias emancipatórias.
Quanto à metáfora da rede, diz respeito ao peixe que se agita como
se houvesse saída, porquanto a saída não existe e ao sair encontra
apenas a morte. A partir dessas duas reflexões o autor vai ilustrar
a condição humana por meio da metáfora do labirinto:

Quem entra num labirinto sabe que existe uma via de saída, mas
não sabe qual das muitas vias que se abrem às vezes diante de si
levam a ela. Ele avança tateando. Quando encontra uma via
bloqueada volta atrás e toma outra. Às vezes a via que parece
mais fácil não é a mais correta; outras vezes, quando acredita
estar mais próximo da meta, está mais longe, e basta um passo
em falso para voltar ao ponto de partida (BOBBIO, 2003, p. 50).
178 Estética e Educação

O labirinto simboliza um caminho possível, ao mesmo


tempo em que não se conhece o caminho correto a ser tomado,
senão percorrendo; sua lição será o reconhecimento da guerra
como “via bloccata” – caminho sem saída. Bobbio em sua análise
diz que a problemática da guerra é indissociável da filosofia da
história; é a reflexão sobre o destino da humanidade no seu
conjunto (BOBBIO, 2003, p. 51). No entender de Bobbio, hoje, com
a ameaça termonuclear e a sua “solução final”, é possível dar uma
resposta quanto ao fim último da história. A guerra atómica tanto
no âmbito de conjunto como isoladamente na história da filosofia
a sua resposta bloqueia qualquer reflexão sobre os sentidos, pelo
menos os de índole racional. Ao identificar uma via bloccata
suscita a necessidade de abandonar tal caminho no sentido de
retroceder. Para Bobbio, na história humana e em relação à guerra
em particular, há duas atitudes distintas:

O abandono de uma via bloqueada (e obrigatória) da história é


uma necessidade (natural) ou um dever (humano)? Ou, em
outras palavras, nós não prosseguimos porque prosseguir é
impossível ou porque é moralmente condenável ou
economicamente desvantajoso, ou então inoportuno, logo não é
impossível, mas indesejável? (BOBBIO, 2003, p. 54).

O contrates entre necessidade e dever é imprescindível para


compreender os dois posicionamentos possíveis perante
“caminhos sem saída” da história. Reconhecer uma via bloccata
advém da constatação do esgotamento enquanto percurso, sendo
por isso impossível de prosseguir, outra atitude vem de uma
valoração moral dos fins, bem como da avaliação irrenunciável
entre estes e os meios de concretização. Um caminho é sem saída
não pela impossibilidade da sua sobrevivência, mas porque é
indesejável e injustificável (BOBBIO, 2003, p. 55). Que a guerra
seja uma “via sem saída” e, por isso, destina-se a desaparecer não
torna evidente “se este evento é objeto de uma predição ou de um
projeto humano” (BOBBIO, 2003, p. 57). O Autor considera vital a
aceitação de pelo menos duas hipóteses: “Que o curso da história
seja um processo, e que tal processo seja irreversível” (BOBBIO,
Guerra e paz... 179

2003, p. 55). Ele dá ainda, como exemplo, o trabalho forçado sendo


um correspondente moderno da escravatura um caminho que se
havia tornado “bloccato” (BOBBIO, 2003, p. 56). Bobbio afirma:

Justamente porque não sabemos nada a respeito, a ideia da


história como processo é uma hipótese, que será sempre
verificada só parcialmente, e vale como ponto de chegada ou
ponto de partida de um procedimento de racionalização que
serve em última instância, para fundamentar, sustentar, guiar
escolhas práticas (BOBBIO, 2003, p. 56).

Ao falar da visão cíclica da História, vai consolidar a noção


de reversibilidade dos processos no sentido da incerteza quanto
ao esgotamento categórico de um percurso ou instituição.
Considerar uma via bloccata exige a irreversibilidade dos
processos históricos. Segundo o autor a irreversibilidade, vai
encontrar suporte na teoria iluminista do progresso e, para além
de se assumir como elemento crucial da racionalização eletiva, é o
alicerce de atitudes ético políticas resignantes ao retorno a
caminhos que se foram revelando sem saída (BOBBIO, 2003, p.
56). A irreversibilidade do processo histórico é um dos
argumentos mais comuns trazidos em apoio a uma escolha
política. Em outras palavras, o fim da guerra é agora um fato
consumado, mas trata-se de saber se esse evento é objeto de uma
predição ou de um projeto humano (BOBBIO, 2003, p. 57). Os
pacifistas passivos adotam uma atitude do desaparecimento da
guerra pela impossibilidade da sua continuidade, enquanto
aqueles que acreditam no equilíbrio do terror, o abandono de uma
“via sem saída” prende-se com a indesejabilidade que, não
ignorando a possibilidade de ocorrência, concebe a guerra como
ilegítima e injustificável à luz de valores humanos
consensualmente aceitos (BOBBIO, 2003, p. 57-58). A cerca das
divergências, explicita Bobbio: “[...] Para os últimos a guerra deve
fazer-se impossível posto que é indesejável; para os primeiros a
guerra acaba por ser indesejável, devido à impossibilidade”
(BOBBIO, 2003, p. 69).
180 Estética e Educação

A impossibilidade e a indesejabilidade estão em relação


inversa nos dois posicionamentos. Enquanto uma se limita a
constatar um fato ou a fazer uma previsão, a outra emite um juízo
de valor. É essa a razão pela qual o nosso Autor destaca que a
guerra, do ponto de vista da primeira “não pode acontecer” e na
ótica da segunda “não deve acontecer” (BOBBIO, 2003, p. 69).
Estas considerações são o pano de fundo das reflexões de Bobbio
acerca da guerra e da paz e sustentam a sua análise que, com um
cunho marcadamente pacifista, é conduzida pelo rigor intelectual
e pela força dos argumentos que identificam a paz como um valor
positivo, porém não suficiente, e a guerra como um valor negativo
que, com o recrudescimento da destrutividade dos armamentos, é
mais do que nunca uma via bloccata.

11.2 CONCEITO DE GUERRA

Bobbio descreve uma definição de guerra, a partir de três


características: “a guerra é um conflito entre grupos políticos
respectivamente independentes e considerados como tais, cuja
solução é confiada à violência organizada” (BOBBIO, 2003, p. 142).
O autor compreende que guerra é o uso da força por parte de um
grupo humano organizado que tende a fazer-se reconhecer pelo
antagonista, “independente” ou “soberano” no sentido jurídico,
com escopo de resolver problemas vitais à própria sobrevivência.
Do ponto de vista da doutrina filosófica tradicional e do senso-
comum a guerra é “uma” das formas mais radicais com a qual pode
manifestar a violência no mundo. Eliminá-la não implica na
eliminação da violência no Mundo, mas sua “limitação”, ou seja, a
eliminação do uso da violência continuada entre grupos humanos.
A natureza da guerra consiste na “disposição” manifestamente
hostil, durante a qual não existe segurança.
A expressão hobbesiana “guerra de todos contra todos”, que
Bobbio qualificou como “hiperbólica”, estado no qual um grupo de
homens ou individuais, vivem por falta de um poder comum, no
terror recíproco e permanente da morte violenta. Um estado
“intolerável”, do qual o homem deve sair se quiser salvar a própria
Guerra e paz... 181

vida. Na relação entre guerra e direito fala de quatro tipos de


relação: guerra como meio para estabelecer o direito; guerra como
objeto de regulamentação jurídica; guerra como fonte de direito;
guerra como antítese do direito. As duas primeiras como meio e
objeto do direito correspondem ao modo tradicional de considerar
a guerra, a partir do direito internacional, enquanto as duas
últimas, como fonte e antítese do direito, representam a
consequência da crise das doutrinas tradicionais (BOBBIO, 2000,
p. 559). O Autor elabora, a partir da classificação feita, juízos
acerca da guerra sobre a teoria jurídica e ressalta dois problemas:
um sobre à justa causa (iusta causa), a partir das disputas e sobre
a guerra justa (bellum iustum) e outra quer se atém a
regulamentação da conduta de guerra, que deu origem ao ius belli.
O autor faz uma aproximação entre guerra e direito, da relação
direito e força; a força no direito pode ser considerada como fim
em meio às regras que disciplinam o seu exercício, a distinção se
dá por meio de regras primárias e secundárias (BOBBIO, 2000, p.
561). Quando se diz que a guerra é um meio para estabelecer o
direito o que se entende é o conjunto de regras primárias, onde a
guerra como conteúdo são as regras jurídicas entendidas como
normas secundárias o autor irá dizer, “enquanto o processo
judicial de acordo com o objetivo deve ser organizado de modo a
permitir a vitória de quem tem razão, a guerra, de fato, é um
processo que permite dar razão a quem vence” (BOBBIO, 2003, p.
123). O autor assevera decididamente que a guerra se convertera
na “forma mais baixa, escandalosa e enganadora de crime contra a
humanidade” pois se antes “se dizia e se fingia acreditar que a
guerra elevava as almas, agora se aprende que ao contrário, as
humilha, as deprime, as leva às raias do desespero” (BOBBIO,
2003, p. 94).
Dessa forma, é possível considerar a guerra como fonte ou
a guerra como antítese do direito, “a guerra é principalmente
concebida como negação do direito; o direito, por sua vez, como
afirmação ou reafirmação da paz” (BOBBIO, 2000, p. 564). “A
guerra é um evento não necessário, mas possível” (BOBBIO, 2003,
p. 68). Por força dessas considerações o debate sobre o pacifismo
182 Estética e Educação

emerge com relevância. A guerra é sempre uma “força” exercida


coletivamente, disciplinada por regras e tem como objetivo
resolver uma controvérsia através da razão das armas, não através
das armas da Razão. O término do conflito será com a “vitória” de
um e a derrota do outro: mors tua, vita mea – morte tua, vida
minha.

11.3 CONCEITO DE PAZ

Uma vez apresentado o conceito de guerra faz-se


necessário explicar o significado de paz em um artigo sob o título
A ideia da paz e o pacifismo, onde o Autor inicia um debate sobre
as concepções existentes e possíveis a serem consideradas à teoria
política. O vocábulo paz recebe várias acepções como nos diz
Bobbio:

Por “paz interna” entende-se a ausência (ou cessação, etc.) de um


conflito interno, no qual por “interno” entende-se um conflito
entre comportamentos ou atitudes do mesmo ator (por exemplo,
entre dois deveres incompatíveis, entre dever e prazer, entre
razão e paixão, entre interesse próprio e interesse alheio etc.);
por “paz externa”, a ausência (ou cessação etc.) de um conflito
externo, no qual por “externo” entende-se um conflito entre
indivíduos ou grupos diferentes (BOBBIO, 2003, p. 138).

Assim o tema Paz interna pertence ao âmbito da moral e


Paz externa no âmbito do direito, ao ser contraposto os temas Paz
externa e Paz interna estão falando de Paz que segue qualquer tipo
de conflito entre indivíduos e grupos, a chamada “Peace research”,
trata-se da Paz que põe termo ao tipo de conflito particular que é
a guerra, em todas as suas acepções. A Paz sempre vem
apresentada de forma negativa como ausência de guerra, como
não guerra, enquanto “guerra” é definida positivamente com seus
elencos das conotações características. Poder-se-ia afirmar que
parte da filosofia política principalmente da época moderna é uma
constante meditação sobre o tema da guerra e luta pelo
desenvolvimento da civilização humana. Ao caracterizar Paz
Guerra e paz... 183

como não guerra, a definição de Paz depende da definição de


guerra. Onde as conotações mais frequentes de “guerra” são: é um
conflito, entre grupos políticos respectivamente independentes ou
considerados como tais, cuja solução é confiada ao uso da violência
organizada. Existe conflito sempre que os interesses ou
necessidades de um indivíduo ou de um grupo não podem ser
satisfeitos se não com dano de outro indivíduo ou grupo. A Paz
entendida como não guerra, pode ser definida como uma situação
em que não existe entre os grupos políticos relação de conflito
caracterizada por uma violência durável e organizada. Dois grupos
políticos se encontram em estado de paz quando, entre eles, não
existe uma “situação de conflito” que não possa ser resolvida por
meios pacíficos: que não precisem recorrer a uma violência
coletiva, durável e organizada. Bobbio observa que o estado de
paz não exclui o “conflito” onde dois grupos podem estar em
conflito sem estar em guerra. Nas relações internacionais uma de
suas características é a ameaça da força e é considerada condição
de paz, segundo a máxima: si vis pacem para bellum – se quiser a
paz prepare a guerra. Na linguagem técnica, especialmente
técnico-jurídica, o termo Paz tem um significado positivo conceito
específico que se entende não tanto a ausência de guerra (Paz
como não guerra), mas o fim, a conclusão ou o desfecho
juridicamente regulado de uma guerra.
O significado negativo de Paz, é um estado de coisas
genérico. Enquanto “guerra e paz” no sentido positivo podem ser
interpretadas como termos contrários que entre os dois tertium
datur – terceiro dado, podendo existir uma zona intermediária,
como trégua ou armistício, que não são nem guerra nem Paz, ou
não são guerra, mas também não são ainda Paz. Na teoria da
guerra como mal necessário e nas teorias do progresso apresenta-
se sobre três formas principais: A guerra é necessária para o
progresso moral da humanidade, necessária para o progresso
social da humanidade e necessária para o progresso técnico. A
outra face da concepção da guerra como mal necessário é o da
concepção da Paz como bem insuficiente, significa que a Paz por
184 Estética e Educação

si só, não pode garantir uma vida social perfeita, onde os homens
vivem felizes e prósperos.
A paz é considerada uma das condições para a realização
de outros valores, considerados superiores, como a justiça, a
liberdade e o bem-estar, o bem que a Paz defende é o bem da vida,
o maior dos bens, a vida é um bem, posto continuamente em
confronto com outros bens, como a liberdade, considerada
superior à vida.
A diferença entre o estado de natureza e a sociedade
civilizada é que, no estado de natureza, o temor é recíproco, ao
passo que, na sociedade civilizada, o temor é de todos em relação
a um. Bobbio deixa transparecer claramente em seus textos a
concepção dos direitos do homem como direitos históricos,
pertencentes a uma época e lugar, nascidos em certas
circunstâncias, de modo gradual, “não todos de uma vez e nem de
uma vez por todas” (BOBBIO, 1992, p. 5); para ele os direitos do
homem constituem uma classe variável “como a história destes
últimos séculos demonstra suficientemente. O elenco de direitos
do homem se modificou, e continua a se modificar, com a
mudança das condições históricas” (BOBBIO, 1992, 18). O Autor é
claro ao dizer que não há um fundamento absoluto, por que soa
direitos que variam conforme a época e cultura, prova que são
direitos fundamentais por natureza: “O problema fundamental em
relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los,
mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas
político” (BOBBIO, 1992, p. 24). Quanto à sua efetivação estão
ligados ao desenvolvimento global da civilização humana, que não
pode ser tratado isoladamente; para o Autor quem isola um
problema para apreciá-lo já o perdeu, temos que ter presentes dois
grandes problemas de nosso tempo, que são para ele a guerra e a
miséria: “Só nesse contexto é que podemos nos aproximar do
problema dos direitos com senso de realismo. Não podemos ser
pessimistas a ponto de nos abandonarmos ao desespero, mas
também não devemos ser tão otimistas que nos tornemos
presunçosos” (BOBBIO, 1992, p. 45).
Guerra e paz... 185

11.4 PACIFISMO E VIAS PARA A PAZ

Bobbio, grande defensor e propagador da teoria da não


violência, fala em muitos textos que a possibilidade de uma guerra
atômica alterou as formas de pensar o binômio paz-guerra. As
armas termonucleares não distinguem nada nem ninguém e
ameaçam a sobrevivência da humanidade como um todo: “para a
formação de uma consciência atômica é necessário então
considerar que a eliminação da guerra deve andar pari passu [igual
paço] com a abolição daquelas situações que podem ser
consideradas males maiores da pior guerra” (BOBBIO, 2003, p.
67), fazendo da guerra uma via sem saída. A virada é uma análise
da guerra como via bloccata levando em conta o aparecimento e a
disseminação das armas termonucleares, que colocam em risco a
existência da espécie humana no planeta, a “autodestruição total”,
o “sacrífício da humanidade”, a “destruição hedionda” (BOBBIO,
2003, p. 58-62). O Autor faz menção ao Pacifismo passivo onde a
constatação de que a paz é um fim inevitável, no qual a
humanidade chegará a constatar que a guerra é uma via sem saída;
mas aprofunda o Pacifismo ativo, dizendo: “O pacifismo ativo
coloca-se diante da guerra como o comunismo diante da
propriedade (individual) e a anarquia diante do Estado, pois, já
que a guerra não pode mais ser limitada, é preciso eliminá-la”
(BOBBIO, 2003, p. 96-97). Anarquismo, comunismo e pacifismo
são soluções radicais que propõem uma renovação do curso da
história e tendem a impor ao caminho da humanidade uma
direção completamente nova (BOBBIO, 2003, p. 97), sendo
solução revolucionária o pacifismo tem por objetivo a ordem nas
relações internacionais, a partir de um conceito positivo de paz
como arranjo permanente.
O pacifismo ativo é apresentado a partir de três formas: o
pacifismo instrumental, é apresentado por duas vias: 1- o esforço
para destruir ou reduzir sua quantidade e periculosidade a partir
de políticas de desarmamento, é uma política menos eficaz porque
não vai à raiz do problema; 2- Na tentativa de substituir os meios
violentos por meios não violentos, buscando por outros meios os
186 Estética e Educação

mesmos resultados, sendo a ética da renúncia total da violência,


segundo a qual o recurso à violência jamais é justificado, nem
sequer como extrema ratio (BOBBIO, 2003, p.100). O Autor afirma
que a não violência ativa é uma via aberta em direção ao futuro, e
que a invenção de novas técnicas não cruentas para dobrar os
soberbos ou para desencorajar os temerários ou para reduzir à
obediência os recalcitrantes aparece como uma das formas mais
elevadas da soberania e da inteligência humana (BOBBIO, 2003,
p. 101).
O pacifismo institucional é dirigido pelo Estado, como
realizador de guerras ou como instituição capaz de edificar o
pacifismo jurídico (paz através do direito, sendo a guerra uma
forma de resolver os conflitos internacionais) e o pacifismo social
(a paz através da revolução social, guerra como consequência dos
conflitos gerados pela estrutura social e política internacional de
alguns Estados). O remédio previsto pelo pacifismo jurídico é a
instituição do supra-Estado ou Estado mundial, ao modelo
hobbesiano com a heterotutela no âmbito internacional, um
Estado acima dos Estados (BOBBIO, 2003, p. 101-104), que não
tenha a violência como uma via para resolução dos conflitos de
interesses. O pacifismo social, para Bobbio, tem como remédio a
transformação da ordem social capitalista para o socialismo,
visando à supressão do Estado.
O pacifismo finalista vislumbra a paz duradoura através
da atuação sobre o homem, buscando motivações para a guerra, o
autor conclui com dois critérios que são a exequibilidade e a
eficácia (BOBBIO, 2003, p. 108), o pacifismo finalista que trata da
atuação sobre os homens, é considerado o mais eficaz, também é
o menos exequível. Enquanto o pacifismo instrumental é menos
eficaz por não ir à origem do problema, todavia é o mais exequível.
Bobbio afirma que “a paz hoje é uma tarefa demasiado importante
para que se deixe de percorrer todos os caminhos que possam
levar, mais cedo ou mais tarde, à meta” (BOBBIO, 2003, p. 134). O
Autor afirma que as três vias são compatíveis, pois “podem ser
percorridas paralelamente sem cruzar-se, como de fato está
acontecendo nas conferências de desarmamento, no reforço da
Guerra e paz... 187

organização da comunidade internacional, na expansão dos


movimentos pela não-violência” (BOBBIO, 2003, p. 134). Dado a
importância do pacifismo não há razão para que não se perquira
seus fins por todos os caminhos.
Bobbio em sua busca pelas vias da paz vai utilizar-se do
legado de Thomas Hobbes o qual dedicou ao longo de sua vida
muito estudo sobre seu pensamento, assim na relação entre o
estado moderno e as condições para a paz perpétua. Sendo o
modelo hobbesiano o Estado natural como estado de guerra
permanente, “no qual os homens eram todos iguais no poder de
infligir-se reciprocamente o maior dos males, a morte (BOBBIO,
2003, p. 71). O estado de natureza é um estado de guerra uma vez
que é um estado sem direito, no qual as leis positivas não existem
ainda e as leis naturais existem, mas não são eficazes (BOBBIO,
2000b, p. 565). Já o estado civil é o momento no qual os homens,
por meio de um acordo de cada um com todos os outros, instituem
um sistema de leis válidas e eficazes com o objetivo de fazer com
que cesse a guerra de todos contra todos, instaurando-se a paz
(BOBBIO, 2000, p. 565). Sendo instaurado um poder superior de
comum acordo dos membros da sociedade será a condição para
coexistirem entre si. Com o equilíbrio do terror os Estados não
atacam um ao outro pelo potencial destrutivo, mas o que impediu
os grandes Estados modernos de lançarem-se uns contra os outros
nunca foi à força dos armamentos, mas o equilíbrio das respectivas
forças, o hobbesianismo temor recíproco (BOBBIO, 2003, p. 68).
O autor faz uma comparação com as possibilidades de transição
na sociedade civil na esfera internacional, do regime jurídico da
autotutela para o regime jurídico exclusivamente da heterotutela,
pelo uso eficaz e regulamentado da força, através de um supra-
Estado. Dessa forma Bobbio apresenta a construção da paz no
sentido kantiano: haverá paz estável, uma paz que não tenha a
guerra como alternativa, somente quando existirem cidadãos não
mais apenas deste ou daquele Estado, mas do mundo (BOBBIO,
1992, p. 1). Observou Bobbio que uma Constituição Democrática é
um conjunto de regras em base às quais os conflitos sociais vêm
resolvidos com meios pacíficos, ou seja, meios políticos.
188 Estética e Educação

Segundo Bobbio faz-se necessário à presença de um


“Terceiro” super partes que ainda é ausente, esse terá a função de
mediador entres as partes beligerantes buscando a solução por
meio de sua autoridade ao colocar as partes juntas para que
estabeleça a paz e pondo fim ao término do conflito estabelecendo
relações para estabilidade entre as partes beligerantes. Para o
Autor esse “Terceiro” deveria ser a ONU (Organização das Nações
Unidas) ao ser instituída em 1945, inicia com a realização das duas
primeiras condições para a paz: o pacto de não-guerra e
transformar o estado polêmico, violento, em estado não-violento.
A carta das Nações Unidas inicia dizendo: “Nós, os povos das
Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do
flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida,
trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos
direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser
humano, na igualdade de direito dos homens e das mulheres,
assim como das nações grandes e pequenas, e a estabelecer
condições sob as quais a justiça e o respeito às obrigações
decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional
possam ser mantidos, e a promover o progresso social e melhores
condições de vida dentro de uma liberdade ampla. Segundo
Bobbio esta Carta não trata ainda de um Poder Comum, mas já se
exprime a nova consciência da via obbligata – via obrigatória, mão
única.

11.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Bobbio não se cansou de referir-se à não violência como


forma legítima de transformação social, contribuindo para que o
homem crie novos valores dos quais podem contribuir a uma
convivência em sociedade, onde os homens aprenderão a respeitar
uns aos outros na sua dignidade de ser humano. O pensador
italiano trouxe importantes contribuições para que possa pensar
os direitos do homem e as vias para a paz. Em sua análise
constatamos que o Autor nutre sua reflexão de grandes expoentes
Guerra e paz... 189

da filosofia política, como Thomas Hobbes e Immanuel Kant,


trazendo consigo uma analise clara e rigorosa.
Podemos inferir que os trabalhos sobre a paz e os direitos
do homem devem estar conectados ao buscar sua máxima
eficiência não pela sua urgência em se efetivar, mas pelos escassos
recursos, diante do que se investe para a guerra e como
consequência investidos também pela violação dos direitos do
homem. Além disso, as três vias do pacifismo ativo podem ser
percorridas paralelamente sem cruzar-se, como de fato hoje está
acontecendo nas conferências de desarmamento, no reforço da
organização da comunidade internacional, na expansão dos
movimentos pela não-violência (BOBBIO, 2003, p. 134). A saída
do labirinto não é conhecida, mas tem que reconhecer os
caminhos sem saída e buscar consenso sobre outros que possam
facilitar a saída: a guerra já foi experimentada e demonstrou-se via
bloccata.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos


Nelson Coutinho. Rio de Janeiro – RJ: Campus, 1992.

BOBBIIO, Norberto. Teoria Geral da Politica: A filosofia política e


as lições dos clássicos. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani.
Rio de Janeiro – RJ: Elsevier, 2000.

BOBBIO, Norberto. O problema da guerra e as vias da paz.


Tradução Álvaro Lorencini. São Paulo – SP: UNESP, 2003.

BOBBIO, Norberto. O Terceiro Ausente: Ensaios e Discursos


sobre a Paz e a Guerra. Tradução Daniela Versiani. Barueri – SP:
Manole, 2009.

DIAS, José Francisco de Assis. Guerra e paz: o problema da guerra


no pensamento de Norberto Bobbio (1909-2004). Sarandi - PR:
Humanitas Vivens, 2009.
XII

NOTAS SOBRE A FENOMENOLOGIA SARTRIANA

Josieli Aparecida Opalchuka*

PALAVRAS-CHAVE: Fenomenologia; Consciência; Liberdade;


Ser.

Na década de 30, um jovem estudante francês, chamado


Jean Paul-Sartre, tem seu primeiro contato com a filosofia
husserliana. Encantado pelas ideias que vira, parte para Berlim, na
Alemanha, para desenvolver uma bolsa de estudos com o próprio
Husserl. Esse contato com a fenomenologia husserliana, e
posteriormente heideggeriana, certamente influenciaram
grandemente o pensamento de Sartre, como veremos no texto que
se segue.
Em 1934 Sartre escreve sua primeira obra considerada
estritamente filosófica, que viria a ser publicada apenas em 1936,
A Transcendência do Ego. Nela, fica evidente o caminho que o
autor seguiria em toda sua trajetória como filósofo.

Tem-se, então, que entender que a fenomenologia é uma ciência


de fato e que os problemas que ela coloca são problemas de fato,
como, ademais, pode-se compreender considerando que Husserl
a denomina uma ciência descritiva. [..] Quanto a nós, preferimos
acreditar na existência de uma consciência constituinte.
Seguimos Husserl em cada uma das admiráveis descrições em
que mostra a consciência transcendental constituindo o mundo
ao aprisionar-se na consciência empírica; estamos persuadidos
como ele de que nosso eu psíquico e psicofísico é um objeto
transcendente que deve cair sobre a ação epoché (SARTRE, 2015a,
p. 18-19).

*
UNIOESTE; E-mail: josi.aop@gmail.com.
192 Estética e Educação

Neste trecho supracitado fica clara a discussão na qual


Sartre está inserido: o problema do Eu em relação à consciência,
em oposição à consciência transcendental de Kant. O filósofo
francês, ao refutar a ideia kantiana sobre a consciência, infere que
esta é real e acessível através da redução fenomenológica, a saber,
a epoché, como sendo uma consciência no mundo, “com um ‘eu’
psíquico e psicofísico” (SARTRE, 2015, p. 19). Por mais que, após
essa concordância com a teoria husserliana, Sartre discutisse e
discordasse de seu mentor sobre este e outros diversos temas, um
conceito em específico foi incorporado em suas obras, tal qual
Husserl o pensou, e levado à cabo: a intencionalidade.
Entretanto, antes de falarmos sobre a intencionalidade, faz-
se necessário abordar de maneira mais incisiva, porém breve, dois
pontos cruciais para o entendimento do que se segue, são eles: do
que se trata o ser e o fenômeno. Sartre, ao abordar este assunto o
coloca com dois enunciados: “o fenômeno de ser” e o “ser do
fenômeno”, pois ambos se dão concomitantemente, sendo que o
ser se manifesta através do fenômeno e ao mesmo tempo é o que
subjaz o fenômeno, que o permite. Diferentemente do que Kant
disse, para o autor francês ser e fenômeno são o mesmo, não há
nada por detrás do que aparece ou do aparecimento, desta forma,
o ser do existente é justamente o que aparece. O ser do fenômeno
é a condição e o fundamento do aparecimento. Porém, há uma
diferença na dinâmica de um para o outro (de ser do fenômeno
para fenômeno de ser), conforme aponta Hoste,

Com efeito, pode-se perceber que o Ser do fenômeno não se


reduz ao fenômeno de ser. O fenômeno de ser é ontológico e
exige um fundamento transfenomenal – no sentido de que
está além do fenômeno, mas nem por isso está escondido
atrás dele. Já o Ser do fenômeno, mesmo coexistindo ao
fenômeno, escapa a essa condição de fenômeno – ou seja, de
existir à medida que se revela – e consequentemente, “[...]
ultrapassa e fundamenta o conhecimento que dele se tem”
(HOSTE, 2015, p.5).
Notas sobre a fenomenologia sartriana 193

Destarte, o ser não poderia ser uma essência, como


considerava a tradição metafísica, pois ao mostrar sua essência
através do fenômeno careceria de uma outra essência, ou ser.
Assim, “o ser não é uma “estrutura entre as outras”, um momento
do objeto: é a própria condição de todas as estruturas e momentos,
o fundamento sobre o qual irão se manifestar os caracteres do
fenômeno” (SARTRE, 2015, p.55). A fenomenologia desta forma,
seria uma volta às coisas mesmas, o estudo do modo como as
coisas aparecem e do ser enquanto ser.
Nesta empreitada a consciência passa a ter um papel
fundamental, já que a dualidade sujeito/objeto já fora renunciada
por Husserl. Neste aspecto, observa Ricœur (1990, p. 8):

Não se entra pouco a pouco nesta ontologia da compreensão;


não se chega a ela gradualmente, aprofundando as exigências
metodológicas da exegese, da história ou da psicanálise:
transportamo-nos até ela através de uma súbita inversão da
problemática. A questão: em que condição um sujeito que
conhece pode compreender um texto, ou a história? É
substituída pela questão: o que é um ser cujo ser consiste
compreender? O problema hermenêutico torna-se assim uma
província da Analítica desse ser, o Dasein, que existe ao
compreender (RICOEUR, 1990, p. 8).

Na metafísica tradicional, este processo de conhecimento


que se dá através de uma consciência substancial que alcança os
objetos fora dela a partir da consolidação de um Eu, ou Ego, como
podemos perceber no cogito cartesiano, por exemplo, na
afirmação que “eu sou, eu existo”. As implicações dessa afirmação
dizem respeito à permanência do “eu” fora da dinâmica do existir,
porque o eu cartesiano é substancial. O “eu” não emerge do corpo,
pois, sua existência não depende deste para existir. Descartes
propõe, em sua filosofia, três tipos de substância: o pensamento, a
extensão e a divina. Com isso, dá origem a famosa dualidade entre
corpo e mente, porque pensa essas noções como substanciais,
existentes por si mesmas (como aquilo que subjaz o existir). “O
que sou eu então? Sou uma coisa que pensa. O que é uma coisa
194 Estética e Educação

que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que
nega, que quer, que não quer, que imagina também e que sente
(DESCARTES, 2009, p.103). Percebemos aqui, que para o autor,
existe algo anterior à existência, na medida em que, primeiro há o
eu penso, depois o existo. O pensamento, em Descartes é uma
manifestação do espírito, que já é anterior à dinâmica do existir. É
o pensamento que ganha diversas formas, as quais são atribuídas
por ele próprio. O pensamento seria, então uma “coisa que pensa”
e só conseguimos o diferenciar pelo uso da razão.
Sartre intenta através da fenomenologia, continuar o
projeto de uma ontologia já iniciada por Husserl, e continuada por
Heidegger, de romper com os dualismos e conceitos metafísicos.
Percebe-se, como no trecho de Ricœur supracitado, que a
pergunta não é mais pelo sujeito que conhece o objeto, mas sim
de uma pergunta pelo ser, ou ainda, pelo sentido de ser. Isso é
possível através de um movimento da consciência, da saída do
mundo ôntico rumo ao mundo ontológico, onde o ser se revela à
consciência.
Conforme o autor,

Estamos no plano do ser, não do conhecimento. [...] Partimos


assim da pura aparência e chegamos ao pleno ser. A consciência
é um ser cuja existência coloca a essência, e, inversamente, é
consciência de um ser cuja essência implica a existência, ou seja,
cuja aparência exige ser. O ser está em toda parte. Por certo,
poderíamos aplicar à consciência a definição que Heidegger
reserva ao Dasein e dizer que é um ser para o qual, em seu
próprio ser, está em questão o seu ser, mas seria preciso
completá-la mais ou menos assim: a consciência é um ser para o
qual, em seu próprio ser, está em questão o seu ser enquanto este
se implica outro ser que não si mesmo (SARTRE, 2015b, p.35)

Para Sartre, toda consciência é consciência de algo ou


alguma coisa, ou seja, está lançada no mundo, voltada para um
fenômeno no mundo. A consciência é sempre vazia, visto que não
há nada de interior, nem no interior, dela. A intencionalidade é o
movimento de projetar-se da consciência, pra fora do Eu, na
Notas sobre a fenomenologia sartriana 195

direção de um conteúdo, propiciando assim o eu-no-mundo. A


intenção de Sartre é a de retirar da consciência tudo aquilo que faz
dela uma coisa, como um objeto do mundo, ou, na terminologia
sartriana, um Em-si. A consciência, longe de ser algo fechado em
si mesmo é, ao contrário, aquilo que visa um objeto. Ela é,
portanto, intencionalidade.
É característico da consciência, ser consciência de seu
objeto, ao mesmo tempo em que é consciência de si mesma
enquanto reconhecimento de ser consciência do objeto. De forma
mais simples, a maneira com a qual a consciência visa um objeto
é posicional. Por outro lado, no mesmo movimento de posicionar
o objeto, ela mesma tem consciência de si. No entanto, isto não
implica uma espécie de regressão infinita, visto que o modo pelo
qual ela toma consciência de si se dá de maneira não-posicional.
Assim, a consciência é consciente de si na exata medida em que
posiciona, ou põe um objeto como existente, através de uma
intuição reveladora, por um ser transcendente.
Para melhor compreender esse modo de operar da
intencionalidade faz-se necessário a elucidação de alguns
conceitos. O primeiro, e um dos principais, é o ser-em-si. Este
caracteriza-se principalmente por ser tudo aquilo que não é
consciência, poder-se-ia falar então de tudo aquilo que é objeto da
consciência. Este ser-em-si é opaco, obscuro, incomunicável, pois
é fechado em si, pleno de si mesmo, não remetendo à si [ele
mesmo] como uma consciência. O ser-em-si não possui o
movimento intencional da consciência, o movimento de projetar-
se, pois no interior dele não há nada, ou nas palavras de Sartre: “O
ser-Em-si não possui um dentro que se oponha a um fora e seja
análogo a um juízo, uma lei, uma consciência de si. O Em-si não
tem segredo: é maciço [...] síntese de si consigo mesmo” (SARTRE,
2015, p.39). Desta forma, toda a classificação ou adjetivação do ser-
em-si é provisória, exceto pela sua característica de simplesmente
ser o que é, sem derivação de outro ser, incriado, sem condição de
possibilidade, sem contradições. O ser-em-si é indefinível e toda
sua determinação provisória vai ser dada através do fenômeno, por
um sujeito que o desvenda, ou melhor, que tem uma visada sobre
196 Estética e Educação

ele. Nele também não cabe o nada, já que é cheio de si, pura
positividade.
O segundo conceito que se faz necessário expor é o de ser-
para-si. O para-si é toda a consciência, podendo ser auto-reflexiva.
Assim, “a lei de ser do para-si, como fundamento ontológico da
consciência, consiste em ser si mesmo sob a forma de presença de
si” (SARTRE, 2015, p.125). É a consciência que transcende os dados
do fenômeno e está situada sempre na relação com o mundo.
Deste modo, é superficial considerar o para-si como simplesmente
o humano, ou um ser que pensa, mesmo que ele implique num
sujeito, já que o para-si se diz muito mais na relação da consciência
com o em-si, pois, como vimos, toda consciência é que consciência
de alguma coisa. Como o para-si é sempre em relação com o em-
si, ele se define negativamente, isto é, como não sendo o em-si.
Esse movimento é importantíssimo na filosofia sartriana, pois é
daí, do para-si como fundamento de si, que surge a nadificação. O
para-si, portanto, não tem sentido, sendo falta, nada, ou pura
possibilidade de ser, existindo a partir da negação do em-si e da
facticidade e exigindo ser-no-mundo.
Enquanto o em-si é o ser do fenômeno, o para-si é o ser da
consciência. É através do homem que o nada aparece no mundo:

O nada é o ato pelo qual o ser coloca em questão seu ser, ou seja,
precisamente a consciência ou Para-si. É um acontecimento
absoluto que vem ao ser pelo ser e que, sem ter ser, é
perpetuamente sustentado pelo ser. Estando o ser-Em-si isolado
de seu ser por sua total positividade, nenhum ser pode produzir
ser e nada pode chegar ao ser pelo ser, salvo o nada. O nada é a
possibilidade própria do ser e sua única possibilidade. E mesmo
esta possibilidade original só aparece no ato absoluto que a
realiza. O nada, sendo nada de ser, só pode vir ao ser pelo próprio
ser. Sem dúvida, vem ao ser por um ser singular, que é a realidade
humana. Mas este ser se constitui como realidade humana na
medida em que não passa do projeto original de seu próprio
nada. A realidade humana é o ser, enquanto, no seu ser e por seu
ser, fundamento único do nada no coração do ser (SARTRE,
2015b, p. 127-128).
Notas sobre a fenomenologia sartriana 197

Para Sartre, é nessa dinâmica entre o ser-em-si e o ser-para-


si que se dão as coisas como são na existência humana, pois
também é como se dá o jogo da consciência, ou da
intencionalidade. Neste aspecto,

É o Para-si que, sendo presença a si e não si, vazio de ser, nada


de ser procura, por isso mesmo, seu “si” nas lonjuras. Sendo
assim, só ao Para-si, homem, é própria a atribuição de significado
e a alteridade, o estabelecimento de relações entre ele e outro
para-si, entre ele e um em-si, e mesmo entre dois ou vários Em-
si. “somos nós que colocamos essa árvore em relação com aquele
pedaço de céu; [...] A cada um dos nossos atos, o mundo nos
revela uma face nova”. Somente a realidade humana, por ser
presença a si, nada de ser, falta, é que pode estabelecer relações
com o que é pleno de si, desvendando, nesse processo, o mundo
e si-mesmo, como não sendo aquilo que percebe (SOUZA, 2008,
p.78-79).

Pelo fato de a existência humana se dar nesta conjuntura, o


homem se descobre através de seus atos, porque é desvelador,
detector de ser. Por detrás deste desvendamento (embora nada há
por detrás) o que há é sempre o desejo de ser em-si-para-si. Em
outras palavras, o para-si é o desejo do fundamento enquanto ser
e não enquanto nada. Deste modo, “O homem é o Vazio que quer
ser preenchido sem deixar de ser vazio, é o Nada que busca
também Ser, é Existência que se quer também Essência – enfim, é
a busca de uma síntese impossível” (SOUZA, 2008, p.80).
Todavia nos parece impossível caracterizar o homem, seja
por sua racionalidade, pelo contexto ou circunstância na qual está
inserido, ou qualquer outra coisa que o seja, já que a princípio, ele
é nada (pura possibilidade de ser). Neste contexto, surge a ideia
da liberdade, pois se o homem o nada é constituinte deste, por
consequência, é pura indeterminação. A liberdade não possui uma
essência, já que não está resignada à uma necessidade lógica, ela
se apreende através dos atos que são praticados por um homem.
Se a negação vem ao mundo por intermédio da existência humana,
é possível ao mundo realizar uma ruptura nadificadora com o
198 Estética e Educação

mundo e consigo próprio, esta ruptura é possível pela liberdade,


ou ainda, ela é a própria liberdade.
Conforme o filósofo parisiense analisa a questão da
liberdade surge a conclusão de que no para-si, ou no humano
neste caso, “a existência precede e condiciona a essência”
(SARTRE, 2015b, p. 543) e isso implica em necessariamente, ser
livre. E mais,

Com efeito, somente pelo fato de ter consciência dos motivos


que solicitam minha ação, tais motivos já constituem objetos
transcendentes para minha consciência, já estão lá fora; em vão
buscaria recobrá-los: deles escapo por minha própria existência.
Estou condenado a existir para sempre Para-além de minha
essência, Para-além dos móbeis e motivos de meu ato: estou
condenado a ser livre. Significa que não se poderia encontrar
outros limites à minha liberdade além da própria liberdade, ou
se, preferirmos, que não somos livres para deixar de ser livres
(SARTRE, 2015, p. 543-544)

Embora esta seja uma definição radical de liberdade, Sartre


não ignora que estamos incorporados em uma determinada
situação, contexto, bem como limitações e disposições físicas,
psicológicas e sociais. A esse conjunto de situações que o homem
se vê lançado, ou imposto sobre ele, é chamado facticidade.
Porém, “o homem não é primeiro para ser livre depois: não há
diferença entre o ser do homem e seu ‘ser-livre’ (SARTRE, 2015b,
p. 68). Por mais que a facticidade, de certa forma, limite o homem,
ela não retira deste a sua liberdade. Deste ponto, até mesmo o
escravo pode ser considerado livre, no sentido de que, enquanto
humano, pode transcender sua facticidade, movendo-se para
além.
A transcendência é o movimento de nadificar, negar ou
niilificar a própria facticidade e os objetos (ou o em-si). É
necessário esse movimento de transcendência para-além, pois é
ser-para-si só é livre em situação, ou seja, através de sua condição
e para explorar suas possibilidades, nega tudo aquilo que o
Notas sobre a fenomenologia sartriana 199

circunscreve. É próprio do para-si realizar essa trajetória, já que o


nada o constitui, como vimos acima. Desta forma,

O Para-si é livre, mas em condição, e é essa relação entre a


condição e a liberdade que queremos precisar de situação. [...]
Mostramos que a existência de significações que não emanam do
Para-si não poderia constituir um limite externo à liberdade
deste. O Para-si não é primeiro homem para ser si mesmo depois,
e não se constitui como si mesmo a partir de uma essência
humana dada a priori; mas, muito pelo contrário, é um seu
esforço para escolher-se como si mesmo pessoal que o Para-si
mantém em existência certas características sociais e abstratas
que fazem dele um homem; e as conexões necessárias que
acompanham os elementos da essência humana só aparecem
sobre o fundamento de uma livre escolha: nesse sentido, cada
Para-si é responsável em seu ser pela existência de uma espécie
humana. Mas precisamos esclarecer ainda o fato inegável de que
o Para-si só pode escolher-se Para-além de certas significações
das quais ele não é a origem. Cada Para-si, com efeito, só é Para
si escolhendo-se Para-além da nacionalidade e da espécie, assim
como só fala escolhendo a designação Para-além da sintaxe e dos
morfemas. Este “Para-além” é suficiente para assegurar sua total
independência em relação às estruturas que ele transcende. Mas
isso não impede que o Para-si se constitua como Para-além em
relação a estas estruturas-aqui. [...] Não se trata aqui de um limite
à liberdade, mas sim do fato de que é nesse mundo mesmo que o
Para-si deve ser livre; é levando em conta essas circunstâncias –
e não ad libitum - que ele deve escolher-se (SARTRE, 2015b, p. 37-
38)

Assim, é estabelecido que a condição primordial da ação é


liberdade. Isto acontece porque o ato implica necessariamente no
movimento intencional da consciência, para agir, quando se tem
em vistas um meio para chegar a determinado fim, o homem se
retira da facticidade que é, no momento, sua contingência, e
adentra no não-ser (no nada), no terreno das possibilidades. Neste
aspecto, a intenção é supervalorizada, visto que é a escolha de um
fim que alcançaremos e mostraremos ao mundo através das nossas
ações. Porém, o inverso também é válido, à saber, que a liberdade
200 Estética e Educação

só é possível através da ação já que se o Para-si se percebe como


um ser pleno de possibilidades, é imprescindível que ele tenha de
se fazer a todo tempo, desbravar o mundo que se apresenta através
de uma ação concreta, em busca da atribuição de um sentido à
vida. Voltando à situação em que falamos que, para Sartre, até
mesmo um escravo é livre, isto é possível porque o escravo é
totalmente livre pra agir, dentro de suas contingências, ou seja, ele
é livre para tentar fugir ou para continuar cativo, a liberdade não
está apenas no pensamento do escravo, mas também em suas
ações. É aqui que fica claro que ser livre implica em um fazer, todo
o fazer implica em liberdade.
Ora, se a liberdade é o fundamento do para-si, isto é,
aparece concomitantemente com o homem que existe, significa
que este não carrega dentro de si nenhuma significação anterior
ou essência interior, mas sim que se faz no mundo, daí a célebre
premissa, também atribuída ao Dasein de Heidegger, que “a
existência precede e comanda a essência” (SARTRE, 2015b, p.541).
A partir dessa definição que o existencialismo e suas implicações
vem à tona, discussão que será realizada pelo autor na sua
conferência O existencialismo é um humanismo.

REFERÊNCIAS

DESCARTES, René. Meditações Metafísicas. Tradução de César


Augusto Battisti. Curitiba: SEED – PR, 2009.

HOSTE, Vinicius X. Sartre e as regiões do ser: da consciência ao


em-si. Kínesis, Vol. VII, n° 15, dezembro 2015, p.104-119.

REYNOLDS, Jack. Existencialismo. Tradução de Caesar Souza.


2.ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

RICŒUR, Paul. O conflito das interpretações: ensaios de


hermenêutica. Tradução de M. F. Sá Correia. Portugal: Rés, 1990.

SARTRE, Jean-Paul. A transcendência do Ego. Petrópolis: Vozes,


2015.
Notas sobre a fenomenologia sartriana 201

_______. O existencialismo é um humanismo; A imaginação;


Questão do método; seleção de textos de José Américo Motta
Pessanha; traduções de Rita Correria Guedes, Luiz Roberto
Salinas Forte, Bento Prado Junior. – 3.Ed. São Paulo: Nova
Cultural, 1987.

_______. O Ser e o Nada: ensaio de ontologia fenomenológica.


Petrópolis: Vozes, 2015b.

SOUZA, Thana Mara de. Sartre e a literatura engajada: Espelho


crítico e Consciência infeliz. São Paulo: Editora da Universidade
de São Paulo, 2008.
XIII

O ENSINO COMO UMA FILOSOFIA DA CULTURA

Junior Cunha*

PALAVRAS-CHAVE: cultura; professor erudito; professor


jornalista; educador.

O processo ensino-aprendizagem ocorre desde o


nascimento do ser humano e gera questões específicas sobre o
assunto. Essas questões são tratadas, sobretudo, no campo
filosófico. Ao longo da tradição filosófica percebe-se que muitos
foram os autores que se debruçaram sobre o assunto. Entre eles,
mesmo que não de forma direta, está o filósofo alemão Friedrich
Nietzsche. Com sua filosofia ímpar, Nietzsche crítica o modelo de
educação de sua época, que não é muito diferente da atualidade.
Diante disso, este trabalho buscará fazer uma breve reflexão sobre
os modos como os professores ministram o ensino, e como os
alunos se demonstram diante a esses professores. Usar-se-á aqui
como base a conferência: Sobre o futuro de nossos
estabelecimentos de ensino, proferida por Nietzsche em 1872 à
alunos e intelectuais da Basileia.
Como que um ponto de partida ou fonte de estudos de
vários filósofos o ensino, em especial o de filosofia, é uma
problemática que remete há anos – e por que não séculos? – de
intensas discussões. A tradição filosófica moderna em seu rol de
estudos elencava a discussão se, de fato, é possível o ensino da
filosofia, ou então, quiçá, o filosofar. Junto a esse problemática se
soma a criação e a vinculação do Estado com as instituições de
ensino superior. Algo que será criticado pelo filosofo alemão
Friedrich Nietzsche, que em seu vasto acervo de obras nunca
dedicou um livro em especifico a educação, no entanto, há em
*
UNIOESTE; E-mail: juniorlcunha@hotmail.com.
204 Estética e Educação

grande parte de seus textos trechos que tangenciam o tema aqui


proposto.
Enquanto formação acadêmica Nietzsche é filólogo,
disciplina pela qual se dedicou a cátedra na Universidade da
Basileia na Suíça, como professor, ainda novo – tanto em idade,
visto que nasceu em 1844, quanto em tempo de oficio,
considerando que iniciou seu professorado na Basileia em 1869 –
proferiu uma conferência em 1872 justamente criticando os
estabelecimentos de ensino Europeus e, principalmente, Alemães
da época.
A conferência, ministrada a alunos e intelectuais da
Basileia, recebeu de Nietzsche o nome: Sobre o futuro de nossos
estabelecimentos de ensino1. Nela, o filosofo alemão, denuncia o
modelo de ensino vigente e as possíveis consequências deste.
Escreve Nietzsche:

duas correntes aparentemente opostas, ambas nefastas nos seus


efeitos, mas unidas enfim nos seus resultados, dominam
atualmente os estabelecimentos de ensino: a tendência à
extensão, à ampliação máxima da cultura, e a tendência à
redução, ao enfraquecimento da própria cultura. A cultura, por
diversas razões, deve ser estendida a círculos cada vez mais
amplos, eis o que exige uma tendência. A outra, ao contrário,
exige que a cultura abandone as suas ambições mais elevadas,
mais nobres, mais sublimes e que se ponha humildemente a
serviço não importa de que outra forma de vida, do Estado, por
exemplo. (2003, p. 61)

Nesse sentido, segundo o filosofo aqui em voga o ensino de


sua época era uma perversão a verdadeira cultura, que para
Nietzsche significava uma perfeita harmonia entre o físico, o
psíquico e o intelectual, elementos constituintes da vida e que em
sua plenitude elevam o homem a um estado de espírito de

1
NIETZSCHE, Friedrich. Sobre o futuro dos nossos estabelecimentos de
ensino. In: Escritos sobre educação. trad. Noéli Correia de Melo Sobrinho. 3.ed.
Rio de Janeiro: PUC- Rio; São Paulo: Loyola, 2003.
O ensino como uma filosofia da cultura 205

aceitação da complexidade trágica da vida. Ou seja, a cultura é


para o filosofo alemão a realização de nossa potencialidade.
Nesta perspectiva a cultura é parte do indivíduo, logo,
todos os esforços dos estabelecimentos de ensino, na ampliação
de uma cultura, isto é, quando os estabelecimentos de ensino se
tornam instituições do Estado que para sua conveniência funda,
ou se apropria de elementos culturais formulando, assim, uma
nova cultura que, por sua vez, deve ser algo em comum ao maior
número possível de indivíduos, é uma ofensa a manifestação da
potencialidade singular de cada indivíduo, pois, a ampliação de
uma cultura resulta na redução de outras.
Junto a esse processo estão os eruditos, pessoas que
acreditam que esta falsa cultura é destinada a poucos, por outro
lado, surge então o jornalismo, aquilo que será o acesso dos não
eruditos a erudição.

O jornalismo é de fato a confluência das duas tendências:


ampliação e redução da cultura dão aqui as mãos; o jornal
substitui a cultura, e quem ainda, a título de erudito, tem
pretensões à cultura, este se apoia habitualmente nesta trama de
cola viscosa que cimenta as juntas de todas as formas de vida, de
todas as classes sociais, de todas as artes, de todas as ciências. É
no jornal que culmina o desígnio particular que nossa época tem
sobre a cultura: o jornalista, o senhor do momento, tomou o
lugar do grande gênio [...]. (NIETZSCHE, 2003, p. 65)

Enquanto os eruditos permanecem dentro das instituições


de ensino e se auto aclamando detentores da cultura, os jornalistas
serão os que levaram esta tal cultura para além dos portões das
universidades, serão vistos como “os senhores do momento”,
como heróis, como destemidos, e trarão cada vez mais para
próximos de si, pessoas que querem ter acesso a erudição, ao
conhecimento advindo dos centros educionais, da dita cultura
erudita.
Partindo desta exposição sucinta da crítica de Nietsche ao
ensino alemão de sua época, verificamos que o ensino brasileiro
atual não se distancia do objeto criticado pelo filósofo alemão.
206 Estética e Educação

Facilmente notamos em nosso atual sistema educacional há a


presença de professores tanto do modelo erudito, quanto do
modelo jornalístico.
O professor erudito com um olhar arrogante e prepotente,
vê-se como superior a seus alunos. Normalmente com um alto
grau de instrução acadêmica, tem em seu currículo nomeações e
títulos que o qualificam como conhecedor de um repertorio
respeitável. Trafega com facilidade entre as doutrinas e sistemas
filosóficos. Seu ensino, de modo geral, é metódico e
presunçosamente hierárquico. Com um plano de docência muito
bem definido, retira do aluno a viabilidade de participar nas aulas,
os transforma em verdadeiros ouvintes. E se os alunos são meros
ouvintes, os professores eruditos, por sua vez, são meros leitores.
Nada produzem enquanto criação filosófica, apenas se vangloriam
por conhecer e reproduzir de modo fiel os sistemas consagrados
pela história do pensamento. Mais ainda, tem um afinco enorme
pela historicidade, se nega a olhar a atualidade. Tem consigo
metres do passado, elege figuras nomeadas pela história como
grandes pensadores em ídolos a serem seguidos. Suas aulas são
em um todo ricas em conteúdo estritamente dogmático. Para além
disso, nada fazem, não são ousados, não se aventuram, se
acovardam escondidos sob extensos manuais de filosofia. E se
alguém lhes convida para ir além disso, é ignorado, é visto como
pernicioso, alguém que não tem em si a cultura erudita.
Se persistirmos em ir além em nossa análise, veremos que
há também os que se deixam levar pela aparente caricatura
emblemática do professor erudito, há os que se tornam alunos
eruditos. Discípulos fies que se comprazem em se calar, que
escutam com retidão os ensinamentos daqueles que os subjugam.
Os que olham com despotismo para aqueles que se levantam,
aqueles que se rebelam diante a doutrina ou sistema ensinado,
aqueles que questiona, aqueles que pergunta o por que disto e não
daquilo?
Os alunos eruditos defendem com ferocidade seus
professores, tomam para si seus ídolos e os fazem também deles.
Acreditam no poder da história e se espelham nela negando,
O ensino como uma filosofia da cultura 207

assim, a oportunidade de viverem por si mesmos. Se alegram por


estarem protegidos pelas grades que lhes oprimem. Se contentam
com pouco que recebem por não estarem dispostos a empregar
maior empenho a conquistar mais. O aluno erudito é, sobretudo,
um escravo que consente com seu senhor.
O professor jornalista, por sua vez, ensina com notícias,
sem se esforçar para buscar um conteúdo puramente filosófico, se
contenta em transmitir o que se passa nas academias e instituições
de ensino. Extremamente vago em sua prática docente, está
sempre a produzir sem ao menos refletir. Com a pretensão de estar
sempre publicando coisas novas, nunca se aprofunda em seus
estudos. Tratam seus alunos com superficialidade, elogiando-os
exacerbadamente os desencoraja a pensar por si mesmos. Se
satisfazem por serem simpáticos e mesquinhos. Lutam para
passarem a imagem de bons amigos, nunca elevam a voz com
medo de afugentar seus alunos. Estão sempre prontos para
reconfortarem aqueles que se afugentam do caminho árduo e
fatigante que é o ensino e o estudo, principalmente o da filosofia.
E do mesmo modo que os professores eruditos têm seus
alunos, os jornalistas os têm em quantidade ainda maior. Há
sempre os que se divertem com a comodidade oferecida pelos
professores jornalistas. Os que nunca estão dispostos a buscar algo
mais do que foi dito em sala de aula. Os alunos jornalistas
discursam por horas sem nada dizerem, se alvoroçam em sua
eloquência amando sempre estarem em destaque.
Por fim há ainda, por sorte, aqueles que se distanciam do
professor erudito e do professor jornalista, aqueles que nem
mesmos se permitem serem colocados como modelos, aqueles que
nem devem receber o nome de professor, mas sim de educadores.
Enquanto que os professores se agarram com toda sua força
naquilo que lhes mantém, isto é, no caso dos professores eruditos
suas instituições erigidas sobre o rigor reprodutivo do que lhes dá
notoriedade; e no caso dos professores jornalistas seus alunos que
os veem como facilitadores. O educador sabe que
208 Estética e Educação

a verdadeira cultura rejeita com desdém contaminar-se no


contato com indivíduos assim tão necessitados e cheios de
desejos: a autentica cultura sabe escapar sabiamente daquele que
quisesse apodera-se dela como de um meio para realizar seus
desígnios egoístas; e quando alguém imagina tê-la capturado,
para tirar dela algum proveito e apaziguar com sua utilização a
miséria de sua vida, então, ela desaparece subitamente com
passos inaudíveis e com uma expressão de escárnio.
(NIETZSCHE, 2003, p.104)

Os educadores, desse modo, veem o ensino como uma


filosofia da cultura. No entanto, essa filosofia não deve ser vista
como algo acabado, como uma elaboração sistemática ou
mecanicista, nem tão pouco delimitada sobre a luz do pensamento
de determinados autores ou doutrinas. Está filosofia é um
espelhamento da cultura que lhes funda. Os educadores são
capazes de fazer o que os professores eruditos e jornalistas não
são, os educadores se transvaloram, não se prendem a modelos de
aula, nem tampouco buscam dar aula, formam para a vida. O que
lhes diferenciam é a atenção que dão a seus alunos, pois sabem
que estes são também capazes de educar. O que faz de um
educador ser um educador é, antes de mais nada, um educar a si
mesmo. Dessa forma, não menosprezam os que se arriscam a
caminhar junto a eles, nem pretendem que estes os sigam ou se
igualem a eles. Os educadores prezam pela individualidade, são
avessos a universalizações e padronizações.
O educar de um educador é severo e firme, mas nunca
opressor, nunca com descaso. Não delimitam rotas, nem sequer
propõem destinos, caminham e deixam caminhar livres rumo ao
desconhecido, incentivando sempre um passo à frente. Não dão
instruções previas, mas mostram que todos temos a cultura a
nosso favor e com ela podemos nos guiar apenas por nós mesmos.
Não impõem regras, mas cobram disciplina e rigidez. São
aguçados em seu olhar, nada lhes escapa, nada lhes passa
despercebido.
O ensino como uma filosofia da cultura 209

Quanto aos alunos dos educadores, devemos chamá-los de


libertos, diz Nietzsche em sua III Consideração Intempestiva:
Schopenhauer educador2:

Teus verdadeiros educadores, aqueles que te formarão, te


revelam o que são verdadeiramente o sentido original e a
substancia fundamental da tua essência, algo que resiste a
qualquer educação e a qualquer formação, qualquer coisa em
todo caso de difícil acesso, como um feixe compacto e rígido:
teus educadores não podem ser outra coisa senão teus
libertadores. (2003, p.141-142)

Os libertos são os que ousam caminhar ao lado dos


educadores, este caminhar, porém, não deve ser entendido como
um gesto de um mero seguir ou de um ato passivo. O caminhar
lado aos educadores é somente para aqueles que compreendem o
que está para além do ensino – o ministrado nos centros e
instituições educacionais –, é um reconhecimento de sua própria
potencialidade e coragem necessária para manifestá-la; é a força
de vontade que os alunos eruditos não possuem, os libertos
traspõem o institucional e veem em si mesmos a fonte do ensino;
é um superar do medo que os alunos jornalistas possuem de irem
mais longe do que foi dito em sala de aula, os libertos sempre estão
em busca de mais conhecimento. Este conhecimento, entretanto,
não é o ministrado nas academias ou o repassado pelos
professores, é um conhecimento de si mesmo, é uma busca pela
cultura contida em si.
Os libertos junto de seus educadores são os que expressam
a filosofia da cultura. Filosofia, aqui, deve ser entendida em seu
sentido grego primordial, isto é, philos (φίλος) sophia (σοφία) –
amor ao saber –. Este amor é um amor philia, isto é, um amor que
um amigo tem por outro, e dessa relação não se espera nada, não
se cobra nada, mas se estabelece um respeito mútuo entre as
partes. Este saber sophia deve aqui ser compreendido como a

2
NIETZSCHE, Friedrich. III Consideração Intempestiva: Schopenhauer
educador. In: Escritos sobre educação. trad. Noéli Correia de Melo Sobrinho.
3.ed. Rio de Janeiro: PUC- Rio; São Paulo: Loyola, 2003.
210 Estética e Educação

própria cultura, logo, a amizade que deve se estabelecer é a do


indivíduo com sua cultura, e como diz Nietzsche “a verdadeira
cultura rejeita com desdém contaminar-se no contato com
indivíduos assim tão necessitados e cheios de desejos” (2003,
p.104), dessa forma, o que temos de ter pela cultura é o respeito,
ou melhor, um amor philia.

REFERÊNCIAS

COSTA, Abraão Lincoln Ferreira. Nietzsche e Deleuze: críticas e


perspectivas para uma educação da diferença. In: Carvalho, M.;
Fornazari, S. K.; Haddock-Lobo, R. Filosofias da Diferença.
Coleção XVI Encontro ANPOF: ANPOF, p. 165-177, 2015.

GRANIER; Jean. Nietzsche. trad. Denise Bottmann. Ed, L&PM -


Porto Alegre-RS, 2013.

HOSSON, Natália Santos Abul. Nietzsche e educação: a


extemporaneidade de suas críticas. In: Anais da Semana
Acadêmica do PPG em Filosofia da PUCRS, coord. Jerônimo de
Camargo Milone. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2014. Disponível em:
<http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/anais/semanadefilosofia/XIII/1
8.pdf>. Acessado em: 11/04/18.

NIETZSCHE, Friedrich. Escritos sobre educação. trad. Noéli


Correia de Melo Sobrinho. 3.ed. Rio de Janeiro: PUC- Rio; São
Paulo: Loyola, 2003.

_______. Ecce Homo. trad. Paulo César de Souza. Ed. Schwarcz


ltda. - São Paulo-SP, 1995.

SALINAS, Walmir Ruis; MELO, José Joaquim Pereira.


Considerações de Nietzsche sobre educação e cultura. In: Anais
do Seminário de Pesquisa do PPE (ISSN: 2177-4765), coord. Profa.
Dra. Rosângela Célia Faustino e Profa. Dra. Maria Cristina Gomes
Machado.
O ensino como uma filosofia da cultura 211

Universidade Estadual de Maringá-UEM, Maringá 2011.


Disponível em:
<http://www.ppe.uem.br/publicacoes/seminario_ppe_2011/pdf/5
/090.pdf>. Acessado em: 11/04/18.

SANTOS, Vanilda Honória. A educação como crítica à


modernidade na filosofia de Friedrich Nietzsche. In: Horizonte
Científico (ISSN: 1808-3064), VOL 4, Nº 1 (AGO 2010). Disponível
em:
<http://www.seer.ufu.br/index.php/horizontecientifico/article/vi
ew/6242/8108>. Acessado em: 11/04/18.
XIV

O LEGÍTIMO INTERESSE DA RAZÃO EM KANT

Vanessa Brun Bicalho*


Luciano Carlos Utteich**

RESUMO: São dois os níveis que atendem à pergunta da razão


pelo legítimo quid juris: o nível dos interesses puros e o nível da
legitimidade dos conceitos de conhecimento do entendimento.
Àquele preserva os interesses relativos ao domínio prático, que só
podem ser validados sob o contexto da moralidade (interesse
prático). O último protege a necessidade da razão teórica pela
admissão da causalidade da natureza contextualizada pelo
domínio da ciência (interesse especulativo). Se a razão não
preservar tais interesses em seu interior, não há justificativa para
sua existência, são, portanto, interesses absolutamente
irrevogáveis da necessidade de ser da razão pura. Isto posto, a
pergunta que circunscreve esse texto é, precisamente, se é possível
identificar um único e, portanto, legítimo interesse da faculdade
da razão pura? E se a resposta for positiva, este interesse seria
constituído por um interesse prático ou especulativo?

PALAVRAS-CHAVE: Kant; Razão; Interesse; Liberdade.

“A via crítica é a única ainda aberta” é uma estrada que


“conduz a razão humana até à plena satisfação” (CRP, B884). Essa
é uma definição de filosofia que se denúncia ao dar permissão a
“uma razão que se arrisca a voar com as suas próprias asas” (CRP,
B878).

*
UNIOESTE; E-mail: vanessabicalho@gmail.com.
**
UNIOESTE.
214 Estética e Educação

Segundo a filosofia transcendental de Kant é a partir da


admissão de uma perspectiva sistemática1 que se torna possível
satisfazer o interesse e necessidade da razão em prol do seu
exercício. Essa inquietação da faculdade da razão pura em seu fim
e totalidade é aquilo que leva à questão sob o duplo interesse da
razão.
São dois os níveis que atendem à pergunta da razão pelo
legítimo quid juris: o nível dos interesses puros e o nível da
legitimidade dos conceitos de conhecimento do entendimento.
Àquele preserva os interesses relativos ao domínio prático, que só
podem ser validados sob o contexto da moralidade (interesse
prático). O último protege a necessidade da razão teórica pela
admissão da causalidade da natureza contextualizada pelo
domínio da ciência (interesse especulativo). Se a razão não
preservar tais interesses em seu interior, não há justificativa para
sua existência, são, portanto, interesses absolutamente
irrevogáveis da necessidade de ser da razão pura.
Isto posto, a pergunta que circunscreve esse texto é,
precisamente, se é possível identificar um único e, portanto,
legítimo interesse da faculdade da razão pura? E se a resposta for
positiva, este interesse seria constituído por um interesse prático
ou especulativo?

A razão, por uma tendência da sua natureza, é levada a


ultrapassar o uso empírico e a aventurar-se num uso puro, graças
a simples idéias, até aos limites extremos de todo o
conhecimento e só encontrar descanso no acabamento do seu
círculo, num todo sistemático subsistente por si mesmo. Ora,
esta tendência está fundada simplesmente num interesse
especulativo, ou antes única e exclusivamente no seu interesse
prático? (CRP, B825)

1
Razão que concebe conjuntamente, e sem contradições, a causalidade
mecânica da natureza (tematizada no interior da dimensão teórica da razão) e
a causalidade incondicionada da liberdade (desenvolvida no interior da
dimensão prática da razão).
O legítimo interesse da razão em Kant 215

Desde a CRP Kant postula que a razão pura persegue, a


partir da especulação, interesses que se apresentam, no fim, como
práticos. Rohden, no livro Interesse da razão e Liberdade (1981)
reduz todo interesse da razão ao prático quando afirma que “o
verdadeiro interesse da razão reside na liberdade, que por sua vez
torna prática a razão” (ROHDEN, 1981, p.52). Para o intérprete a
questão pelo problema da liberdade desperta o total interesse da
razão especulativa, não, somente, porque a liberdade é colocada
como a “pedra angular de todo edifício de um sistema da razão
pura” (CRPr, A4), mas, também, porque ela (a liberdade) constitui
o real interesse da razão, na medida em que expôs Kant na FMC, a
realidade da razão pura depende, portanto, da realidade da
liberdade.
A redução dos interesses da razão ao prático diz respeito a
questão da unidade da razão pura, onde está implícito a
singularidade de se pensar um sistema filosófico a partir daquelas
duas esferas da razão. Os dois objetos da filosofia, que são a
natureza e a liberdade, apenas de início são tratados
separadamente, mas em última análise pertencem a um único
sistema filosófico.
A razão teórica é sempre movida com vistas ao uso prático,
isso quer dizer que, enquanto na esfera da natureza o
entendimento exige solucionar aquelas questões que estão além
do seu alcance2 Kant se vê fadado a conceder à razão a legitimação

2
Kant denomina de conceitos puros da razão ou ideias transcendentais a
totalidade incondicionada das condições. Sobre isso prossegue: “Entendo por
ideia um concito necessário da razão ao qual não pode ser dado nos sentidos
um objeto que lhe corresponda. Os conceitos puros da razão, que agora estamos
a considerar são, pois, ideias transcendentais. São conceitos da razão pura,
porque consideram todo o conhecimento e experiência determinado por uma
totalidade absoluta de condições. Não são forjados arbitrariamente, são dados
pela própria natureza da razão, pelo que se relacionam, necessariamente, com
o uso total do entendimento. Por último, são transcendentes e ultrapassam os
limites de toda a experiência, na qual, por conseguinte, nunca pode surgir um
objeto adequado à ideia transcendental. Quando se nomeia uma ideia, diz-se
muito quanto ao objeto (como objeto do entendimento puro), mas, por isso
mesmo, se diz muito pouco quanto ao sujeito (isto é, quanto à sua realidade sob
uma condição empírica), porque como conceito de um maximum nunca pode
216 Estética e Educação

de um uso, exclusivamente, prático3 capaz de elucidar a possível


tematização das ideias transcendentais e de todo incondicionado.
É após negar à razão especulativa (Verstand) a ampliação de seu
uso ao campo do supra-sensível, que se constituirá uma nova
esfera da razão pura (Vernunft) responsável por determinar
praticamente o incondicionado em interesse de constituir para si
uma unidade autônoma, tal como descreve Kant pela metáfora de
organismo, como “num corpo organizado, cada membro existe
para todos os outros e todos para cada um” (CRP, BXXIII). Essa
exigência é assim manifesta pelo filósofo: “Que uso podemos fazer
do nosso entendimento, mesmo em relação à experiência, se não
nos propusermos fins? Ora, os fins supremos são os da moralidade
e apenas a razão pura no-los pode dar a conhecer” (CRP, B844).
Ao investigar o contexto do fim último no uso puro da
razão (Vernunft) que tem de estar em consonância com o seu
duplo interesse e em harmonia com seu quid juris, Kant constata
em confronto com o interesse prático, que o interesse especulativo
se torna secundário e, portanto, derivado daquela, uma vez que
todo interesse da razão sempre está orientado ao fim que é, e só
pode ser, prático.
Os fins supremos e que constituem o verdadeiro interesse
da humanidade repousam sob a liberdade da vontade, a
imortalidade da alma e a existência de Deus. Estes apoiam-se na

ser dado in concreto de uma maneira adequada” (CRP, B384), é apenas uma
ideia, que se empregada desde a perspectiva teórica da razão é limitada e
defeituosa, porém altamente fecunda e incontestavelmente necessária se
tomada como uma ideia da razão prática.
3
Sobre a faculdade da razão, segundo uma extensão, prática diz Kant: “a razão
[prática] não é afetada por toda essa sensibilidade, não se modifica (embora os
seus fenômenos, isto é, a maneira como se mostra os seus efeitos [da ação], se
alterem); nela nenhum estado anterior determina o seguinte, não pertencendo,
portanto, à série das condições sensíveis que tornam necessários os fenômenos
segundo leis naturais. Esta razão está presente e é idêntica em todas as ações
que o homem pratica em todas as circunstâncias do tempo, mas ela própria não
está no tempo nem cai, por assim dizer, num novo estado em que não estivesse
antes; é determinante em relação a todo o novo estado, mas não é determinável.”
(CRP, B584).
O legítimo interesse da razão em Kant 217

ideia de unidade e não se encontram subordinados a nenhum


outro superior. Diz Kant:

Numa palavra, estas três proposições mantêm-se sempre


transcendentes para a razão especulativa e não têm o mínimo
uso imanente, isto é, válido para objetos da experiência e, por
tanto, de qualquer maneira, útil para nós; mas, consideradas em
si mesmas, são esforços completamente ociosos e além disso
extraordinariamente difíceis da nossa razão. Se, portanto, estas
três proposições cardeais nos não são absolutamente nada
necessárias para o saber, e contudo são instantaneamente
recomendadas pela nossa razão, a sua importância deverá
propriamente dizer respeito apenas à ordem prática. (CRP, B828)

Como a razão teórica fracassa ao tentar fazer um uso


transcendental desses conceitos puros, resta a razão torná-los
lícitos a partir do fundamento da moralidade sob a orientação do
domínio prático. Este, enquanto um domínio autonomamente
fundado tem sua sistematicidade e validade caracterizada pelo
abandono da razão teórica, em outras palavras, a razão, segundo
seu uso prático, tem autoridade num campo que é vazio de
conteúdo útil à ciência e para o conhecimento objetivo, mas que
é, apesar disso, nutrido de conteúdo concernente à moralidade e
a totalidade absolutamente incondicionada os quais são, por isso,
inalcançáveis pelo entendimento.
Uma vez que, disse Kant, “a ausência de respostas é ainda
uma resposta” (CRP, B507), vemos que o legítimo conceito de
interesse leva a razão estender seu uso a fim de preencher e tornar
farto de significado aqueles conceitos que só admitem uma
aplicação prática. De modo geral, a razão tem o incansável
interesse pela ampliação do seu uso, e como “não se pode pedir à
razão prática que se subordine à razão especulativa e, portanto,
que inverta a ordem, porque todo interesse é finalmente prático e
mesmo o da razão especulativa só é condicionado e completo no
seu uso prático” (CRPr, A219).
Ora, na CPPr Kant manifesta o primado da razão prática
sob a teórica no que concerne ao interesse da razão em geral
218 Estética e Educação

(CRPr, A218); também, na FMC, diz o filósofo que “interesse é


aquilo porque a razão se torna prática” (FMC, BA122, nota).
Indícios esses que mostram o que já era pretendido por Kant desde
a Primeira Crítica, a saber, que todo interesse da razão está voltado
ao prático.
É essencial destacar que o conceito de interesse é
completamente distinto do conceito de inclinação, um genuíno
interesse da razão representa a dependência de um ente finito em
relação à razão em geral (Vernunft); uma inclinação, por sua vez,
se constitui na dependência de um ente finito em relação aos
desejos e vontades subjetivas em geral. O homem enquanto ser
racional têm por interesse o absolutamente bom (Gute)4, isto é,
por aquilo que é universalmente bom. Na CFJ Kant atesta que o
“bom é representado somente por um conceito como objeto de
uma satisfação universal (...) o que não é o caso (...) do agradável”
(CFJ, B21).
Alerto, aqui, para o caráter universal do interesse da razão
em geral pelo bom, na medida em que querer o bom é idêntico ao
interessar-se por ele, “o bom é o objeto da vontade (isto é, de uma
faculdade de apetição determinada pela razão). Todavia, querer
alguma coisa e ter complacência na sua existência, isto é, tomar
um interesse por ela é idêntico” (CFJ, §14).
Pode ser identificada uma relação entre vontade, interesse
e liberdade, na medida em que a vontade é a liberdade sob as

4
Sobre esse conceito é interessante indicar que, na CRPr, Kant se utiliza dos
conceitos da bem (Wohl) e mal (Übel) e bem/bom (Gute) e mal (Böse) para
definir aqueles enquanto originários de uma inclinação, e estes últimos como
originários de uma razão pura que é prática. Diz Kant: “O bem [Whol] ou mal
[Übel] significa sempre apenas uma relação com o nosso estado de agrabilidade
ou desagradabilidade, de prazer e de dor e se, por isso, desejamos ou detestamos
um objeto [Objekt], tal acontece só enquanto ele se refere à nossa sensibilidade
e ao sentimento de prazer e de desprazer [Lust, Unlust] que produz. Mas o bem
(bom) [Gute] ou o mal [Böse] significam sempre uma relação com a vontade
enquanto é determinada pela lei da razão a fazer de algo o seu objeto [Objekt];
porque ela nunca é imediatamente determinada pelo objeto e sua
representação, mas é um poder [Vermögen] de fazer de uma regra da razão a
causa motriz de uma ação mediante a qual se pode realizar um objeto” (CRPr,
A105).
O legítimo interesse da razão em Kant 219

determinações da razão prática e o objeto de interesse dessa razão


é representado pelo universalmente bom. Assim o interesse
último da razão em geral é uma espécie de satisfação
incondicionada da razão que só se contempla pela efetivação da
liberdade.
Isso nos leva a pensar que a liberdade é o horizonte da
filosofia de Kant, uma vez que a razão pura especulativa está
sempre voltada a tentar satisfazer interesses que só podem ser
elucidados quando se admite um domínio da razão que coloca a
liberdade como chave do fundamento de todo um sistema possível
da filosofia (CRPr, A4)5. O próprio Kant define o horizonte dentro
do qual se move o homem ao dizer “por horizonte absoluto e
universal deve-se entender-se a congruência [proporção
adequada] dos limites do conhecimento humano com os limites
da inteira perfeição humana em geral” (Lógica, VI, A54-6). Isto
posto, podemos pactuar da interpretação de Rohden que certifica
que a “liberdade é o horizonte unitário da filosofia como ciência
da razão” (ROHDEN, 1981, p. 55).
À vista disso, é justo suscitar as três questões conduzidas
por Kant, no final da CRP, a respeito da completa satisfação da
razão na sua totalidade e sistematicidade, para compreender os
propósitos do filósofo quando ele buscou, a partir do pensamento
de uma Metafísica da Natureza, fundamentar um novo domínio
da filosofia, mas que tem seu alicerce enraizado numa Metafísica
da Liberdade, cujo desfecho pretende satisfazer o legítimo
interesse e integridade da razão pura. Diz Kant:

5
Embora a liberdade não seja o único conceito para o esclarecimento completo
da razão, ela se constitui como o conceito chave para tal, assim como disse Kant
na CRPr: “O conceito de liberdade, na medida em que a sua realidade é
demonstrada por uma lei apodítica da razão prática, constitui a pedra angular
de todo edifício de um sistema da razão pura, mesmo da razão especulativa, e
todos os outros conceitos (os de Deus e da imortalidade) que, enquanto simples
ideias, permanecem nesta sem apoio, conectam-se com este [conceito] e
adquirem com ele e através dele consistência e realidade objetiva, isto é, a sus
possibilidade é provada pelo fato de a liberdade ser efetiva; com efeito, esta ideia
revela-se mediante a lei moral” (CRPr, A4-5).
220 Estética e Educação

Todo interesse da minha razão (tanto especulativa como prática)


concentra-se nas seguintes interrogações: 1. Que posso saber?; 2.
Que devo fazer?; 3. Que me é permitido esperar?. A primeira
questão é simplesmente especulativa (...). A segunda
interrogação é simplesmente prática [moral] (...). A terceira
interrogação: Se faço o que devo fazer, que me é permitido
esperar? É ao mesmo tempo prática e teórica (...). Com efeito,
toda a esperança tende para a felicidade e está para a ordem
prática e para a lei moral, precisamente da mesma forma que o
saber e a lei natural estão para o conhecimento teórico das
coisas. (CRP, B833-4)

E nisso continua o filósofo ao afirmar que a satisfação de


todas as inclinações está no conceito de felicidade, o qual pode ser
entendido de dois modos: entende-se por felicidade
empiricamente condicionada quando a vontade é determinada
por uma lei pragmática (regra de prudência) e que aconselha o que
deve-se fazer para participar da felicidade; e, por outro lado, têm-
se o conceito enquanto dignidade de ser feliz, isto é, quando a
vontade não tem outro móbil além da própria lei em si mesma,
aqui a lei ordena a agir de tal modo a tornar-se digno da
participação da felicidade (CRP, B834). Todo interesse prático
repousa na resposta à seguinte declaração: “Faz o que pode tornar-
te digno de ser feliz” (CRP, B837). De modo que o sistema da razão
pura deve ser pensado enquanto inseparável da exigência pela
felicidade enquanto dignidade de ser feliz.
Pelo pensamento da razão pura em seu domínio prático,
Kant insere a possibilidade de pensar positivamente a liberdade,
enquanto um conceito sine qua non da constituição da
moralidade, e esta deve reportar, por meio da razão, as condições
exclusivas e inerentes à esperança pela recompensa da felicidade
enquanto dignidade. Sobretudo, adverte Kant, “este sistema da
moralidade que se recompensa a si própria é apenas uma ideia”
(CRP, B838), de modo que denominará de ideal do sumo bem
(Höchste Gut) a ideia de uma inteligência (Deus) que é a causa de
toda a felicidade do mundo.
O legítimo interesse da razão em Kant 221

Designo de ideal do sumo bem a ideia de semelhante inteligência,


na qual a vontade moralmente mais perfeita, ligada à suprema
beatitude, é a causa da toda a felicidade do mundo, na medida
em que esta felicidade está em exata relação com a moralidade
(mérito de ser feliz). (CRP, B839)

Seria, portanto, o genuíno interesse da razão ordenado pela


suposição de um ideal; “uma teologia transcendental, que faz do
ideal da perfeição ontológica suprema um princípio de unidade
sistemática, ligando todas as coisas segundo leis naturais
universais e necessárias, porque todas elas têm a sua origem na
necessidade absoluta de um Ser primeiro e único” (CRP, B844)?
Por fim, ao se posicionar sobre o legítimo interesse do
homem diz Kant:

Interesse prático [é o] que adere de todo o coração todo o


homem sensato, que compreenda onde está o seu verdadeiro
interesse. Que o mundo tenha um começo; que o meu eu
pensante seja de natureza simples e por tanto incorruptível; que
nas suas ações voluntárias seja simultaneamente livre e superior
à compulsão da natureza; que, por fim, a ordem das coisas que
constituem o mundo derive de um ser originário, donde tudo
recebe a unidade e encadeamento em vista de fins, tudo isto são
pedras angulares da moral e da religião. (CRP, B494)

É sempre a razão pura prática que deve ligar o nosso


interesse supremo a partir de um pressuposto absolutamente
necessário para satisfazer seus fins essenciais. Portanto, se todo
interesse da razão for considerado sob o prisma do sumo bem,
pode-se concluir daí que a unidade da razão é movida em vista a
um fim que só é, e só pode ser alcançado pela condição da
liberdade que traz consigo o pensamento e efetivação da
possibilidade de a razão pura ser prática. Portanto a liberdade
representaria, na filosofia de Kant, além do legítimo interesse, o
fim e, também, a pedra de fecho da abóbada de todo sistema da
razão pura.
222 Estética e Educação

REFERÊNCIAS

KANT, Immanuel. Lógica – Um manual para preleções (Logik ein


Handbuch zu Vorlesungen) – (1800). Trad. Guido de Almeida. Rio
de Janeiro: Tempo brasileira, 1992.
_______. Crítica da Razão Prática (Kritik der praktischen
Vernunft) – (1788). Trad. Artur Morão. 9ª Edição. Lisboa: Edições
Setenta, 2008.
_______. Crítica da Razão Pura (Kritik der reinen Vernunft) -
(1781/1ªed. – 1787/2ªed.). Trad. Manuela Pinto dos Santos e
Alexandre Fradique Morujão. 7ª Edição. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2010.
_______. Crítica da Faculdade do Juízo (Kritik der Urteilskraft) -
(1790). Trad. Valerio Rohden e António Marques. 2ª Edição. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
ROHDEN, Valério. Interesse da Razão e Liberdade. São Paulo:
Editora Ática, 1981.
XV

O PROBLEMA EXISTENTE ENTRE SER E PARECER


NO PENSAMENTO DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU

Whesley Fagliari dos Santos*


José Dias**

RESUMO: O objetivo do presente artigo sobre o problema de ser


e parecer no pensamento de Rousseau é dialogar com o filósofo de
Genebra. Dessa maneira, construir um ponto de partida, uma
superfície por onde caminhar, dar alguns passos em busca de uma
pesquisa mais consistente e aprofundada, um estudo mais
elaborado com o tratamento que o tema e o filósofo em questão
merecem e, portanto, quanto mais sólido e desenvolvido. Algumas
indagações importantes podem conduzir esse estudo, são as
seguintes: de que maneira Rousseau coloca em antagonismo o ser
e o parecer em suas obras? Por que ser e parecer entendidos como
coisas distintas, passam a ser um problema para Rousseau?
Extraindo este problema de uma visão panorâmica da obra do
genebrino, quais as primeiras conclusões que se podem formular?
Se, por um lado, há no pensamento rousseauniano muita
coerência acerca das análises políticas e morais, por exemplo,
também há, por outro, algumas contradições difíceis de resolver.

PALAVRAS-CHAVE: Jean-Jacques Rousseau; Ser e Parecer;


Homem Civilizado.

*
UNIOESTE; E-mail: whesleyfagliari@gmail.com.
**
UNIOESTE.
224 Estética e Educação

INTRODUÇÃO

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo de Genebra, é


um pensador importantíssimo, sem dúvida nenhuma, para
questionar, investigar e entender assuntos extremamente
importantes já em sua época e tão atuais hoje em dia. Uma das
grandes certezas sobre Rousseau é que seu pensamento não é
aceito e apoiado de maneira unânime pela academia
contemporânea. Nem nunca foi por academia de nenhuma época.
Esse fato fortalece o estudo acerca de suas obras e suas teorias.
Inquirir Rousseau é profundamente interessante e profícuo
porque coloca a pesquisa em movimento, em diálogo, em
perspectiva de investigação vigorosa e rigorosa.
Se, por um lado, há no pensamento rousseauniano muita
coerência acerca das análises políticas, por exemplo, também há,
por outro, algumas contradições difíceis de resolver. Paradoxos
concretos que, se não causam certa aversão ao pensamento do
genebrino, por certo, provocam argumentos contrários, adversos,
antagônicos que buscam superar o pensamento do filósofo aqui
estudado.
Um desses impasses levantados pelo próprio Rousseau é o
do ser e parecer. Este assunto está presente, ainda que não tratado
diretamente, em algumas obras dele como, por exemplo, Discurso
Sobre as Ciências e as Artes (1749), Discurso Sobre a Origem e Os
Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens (1755), O Contrato
Social (1757), Emílio ou Da Educação (1757), entre outras.
O objetivo deste artigo sobre o problema de ser e parecer
no pensamento de Rousseau é dialogar com o filósofo de Genebra,
é ter um ponto de partida, uma superfície por onde dar alguns
passos em busca de uma pesquisa, um estudo mais aprofundado
e, portanto, quanto mais sólido e desenvolvido. Algumas questões
importantes podem conduzir esse estudo, são as seguintes: de que
maneira Rousseau coloca em antagonismo o ser e o parecer em
suas obras? Por que ser e parecer entendidos como coisas
distintas, passam a ser um problema para Rousseau? Extraindo
esse dilema, aqui apresentado, de uma visão panorâmica da obra
O problema existente entre ser e parecer... 225

rousseauniana, quais as primeiras conclusões que se podem


formular?

15.1 ROUSSEAU: SER E PARECER

Pensar rousseauanamente é colocar-se no mundo como


alguém real, multifacetado, complexo, enfim, humano. Rousseau
não é um homem de plástico, estático. Analisá-lo dessa maneira
pode servir tanto para defendê-lo quanto para atacá-lo. É o que ele
deixa bem claro nas primeiras letras de uma de suas últimas obras,
As Confissões (1764):

Tomo uma resolução que jamais houve exemplo e que não terá
imitador. Quero mostrar aos meus semelhantes um homem em
toda a verdade de sua natureza, e esse homem serei eu. Somente
eu. Conheço o meu coração e conheço os homens. Não sou da
mesma massa daqueles com quem lidei; ouso crer que não sou
feito como os outros. Mesmo que não tenha maior mérito, pelo
menos sou diferente. Se a natureza fez bem ou mal quando
quebrou a forma em que me moldou, é o que poderão julgar
somente depois que me tiverem lido (ROUSSEAU, 2011, p. 21).

Visceral e intenso, o próprio filósofo de Genebra não


consegue escapar de parecer ser aquilo que, de fato, não é. A
maneira como ele mesmo se mostra não é a mesma como as
pessoas o vêem. E, assim, ser e parecer não é apenas um problema
filosófico fundante para entender o pensamento rousseauneano. É
também e, sobretudo, um ponto central de seu raciocínio que, se
ignorado, pode acarretar muitos equívocos:

Rousseau é, por excelência, o autor sobre o qual todo mundo se


julga apto a discutir, sem se dar ao trabalho de ler de fato sua
obra. Quem fez essa observação, por volta de 1912, foi o filósofo
francês Henri Bergson (1859-1941) (FORTES, 1989, p. 8).
226 Estética e Educação

Compartilha deste ponto de vista o professor Arlei de


Espíndola:

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) é um filósofo não lido como


deveria ser, havendo o caso, inclusive, de quem acredita que
estudá-lo seria algo dispensável. Parte significativa do público
vê-se no direito de pensar que pode conhecer suas ideias sem
reservar tempo e energia para apreendê-las e refletir sobre elas
tomando como referência o próprio texto do autor
(ESPÍNDOLA, 2012, p.11).

Em um texto chamado de Discurso Sobre as Ciências e as


Artes (1749), Rousseau se propõe a investigação, como o próprio
título da obra indica, dos efeitos, das consequências do
desenvolvimento das ciências e das artes nos costumes da
sociedade. Na primeira parte do seu primeiro discurso1, Rousseau
já apresenta o problema do ser e parecer:

Como seria doce viver entre nós, se a contenção exterior sempre


representasse a imagem dos estados do coração, se a decência
fosse a virtude, se nossas máximas nos servissem de regra, se a
verdadeira filosofia fosse inseparável do título do filósofo! Mas
tantas qualidades dificilmente andam juntas e a virtude nem
sempre se apresenta com tão grande pompa (ROUSSEAU, 2005,
p. 191).

O genebrino deixa o seu argumento, a sua preocupação


com o problema da aparência sobrepujando e subjugando a
essência desde o início:

Não se ousa mais parecer tal como se é e, sob tal coerção


perpétua, os homens que formam o rebanho chamado sociedade,
nas mesmas circunstâncias, farão todos as mesmas coisas desde
que motivos mais poderosos não os desviem. Nunca se saberá,
pois, com quem se trata: será preciso, portanto, para conhecer o
amigo, esperar pelas grandes ocasiões, isto é, esperar que não

1
É desta maneira que ficou conhecida a obra Discurso Sobre as Ciências e as
Artes e é como ela será chamada a partir de agora neste texto.
O problema existente entre ser e parecer... 227

haja mais tempo para tanto, porquanto para essas ocasiões é que
teria sido essencial conhecê-lo (ROUSSEAU, 2005, p. 192).

Rousseau considera, no Discurso Sobre A Origem e Os


Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens2(1755), depois de
ter se desenvolvida completamente a perfectibilidade3 no homem
– criatura esta que já não é mais natural e, ainda, não é civil – uma
crescente relação entre o que se é, de fato, e o que se deve
demonstrar. Isso se dá principalmente em relação aos outros
membros da sociedade que então passara a existir, a sociedade
civil. Este homem sofre em si as transformações oriundas de um
processo de sair do estado de natureza:

Para proveito próprio, foi preciso mostrar-se diferente do que na


realidade se era. Ser e parecer tornaram-se duas coisas
totalmente diferentes. Desta distinção resultaram o fausto
majestoso, a astúcia enganadora e todos os vícios que lhes
formam o cortejo (ROUSSEAU, 2005, p. 97).

Há, inicialmente, uma impressão de que parecer para o


outro, ou melhor, parecer na relação com o outro, poderia ser na
intenção de se proteger, de se preservar em uma sociedade que
estaria corrompida por interesses e paixões deterioradas por uma
civilidade nada natural. Em uma leitura um pouco mais cuidadosa,
entretanto, é possível perceber que a intenção vai além. Na
sociedade civil, parecer significa obter vantagem, tirar proveito,
beneficiar a si mesmo:

Por outro lado, o homem, de livre e independente que antes era,


devido a uma multidão de novas necessidades passou a estar
sujeito, por assim dizer, a toda a natureza e, sobretudo, a seus
semelhantes, dos quais num certo sentido se torna escravo,
mesmo quando se torna senhor: rico, tem necessidade de seus

2
Que, a partir daqui, será tratado apenas como Segundo Discurso.
3
Cf ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso Sobre A Origem e Os Fundamentos
da Desigualdade Entre os Homens. Volume II. Coleção Os Pensadores. Trad.
De Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural, 2005. P. 64-65.
228 Estética e Educação

serviços; pobre, precisa de seu socorro, e a mediocridade não o


coloca em situação de viver sem eles (ROUSSEAU, 2005, p. 97).

E Rousseau continua:

Isso faz com que seja falso e artificioso para com uns, e, para com
outros, imperativo e duro, e o coloca na contingência de iludir a
todos aqueles de que necessita, quando não pode fazer-se temer
por eles ou não considera de seu interesse ser-lhes útil
(ROUSSEAU, 2005, p. 97).

O genebrino atribui o que fora demonstrado acima a


característica, a consequência, de ser o primeiro efeito da
propriedade e, consequentemente, da desigualdade nascente. Se
na natureza o homem vivia solitário e estava bem desta maneira,
no estado civil o homem é envolto em relações com outros
humanos que também são civilizados. Essas relações –
corrompidas como tudo o que provém do estado civil – não
comporta pessoas como realmente elas são. Pois, isso significaria
um dano muito grande. No final do Segundo Discurso, Rousseau
elenca várias características do homem civil:

O cidadão, ao contrário, sempre ativo, cansa-se, agita-se,


atormenta-se sem cessar para encontrar ocupações ainda mais
trabalhosas; trabalha até a morte, corre no seu encalço para
colocar-se em situação de viver ou renunciar à vida para adquirir
a imortalidade; corteja os grandes, que odeia, e os ricos, que
despreza; nada poupa para obter a honra de servi-los; jacta-se
orgulhosamente de sua própria baixeza e da proteção deles, e,
orgulhoso de sua escravidão, refere-se com desprezo àqueles que
não gozam a honra de partilhá-las (ROUSSEAU, 2005, p. 115).

Em seguida o filósofo de Genebra ironiza essas


características civis do cidadão europeu – porque a Europa é a sua
inspiração de descrição de uma civilização corrompida e
corruptível. Rousseau coloca demasiado espanto nos olhos de um
nativo (caraíba) caso este visse e observasse aquele:
O problema existente entre ser e parecer... 229

Que espetáculo não seriam para um caraíba os trabalhos penosos


e invejados de um ministro europeu! Quantas mortes cruéis não
preferiria esse selvagem indolente ao horror de uma tal vida que
frequentemente nem sequer se ameniza pelo prazer de bem
proceder! (ROUSSEAU, 2005, p. 115).

O filósofo aqui estudado, na sequência, determina que o


homem natural – personificado na figura do caraíba – só seria
capaz de entender a maneira que o civilizado age se
compreendesse – e partilhasse em sua própria constituição moral
– o seguinte aspecto daquela maneira de ser (corrompida):

Mas, para aquilatar o objetivo de tantos cuidados, seria preciso


que as palavras poder e reputação tivessem um sentido para seu
espírito e que soubesse existir uma espécie de homens que dão
valor aos olhos do resto do mundo e se sentem satisfeitos consigo
mesmos mais pelo testemunho de outrem do que pelo seu
próprio (ROUSSEAU, 2005, p. 115).

Rousseau conclui este raciocínio, esta comparação, na obra


acima mencionada, demonstrando o motivo disso:

Tal, com efeito, a verdadeira causa de todas essas diferenças: o


selvagem vive em si mesmo; o homem sociável, sempre fora de
si, só sabe viver baseando-se na opinião dos demais e chega ao
sentimento de sua própria existência quase que somente pelo
julgamento destes (ROUSSEAU, 2005, p. 115).

O filósofo de Genebra escreve no Livro II de Emílio ou Da


Educação, uma relação que pode já estar corrompida entre
preceptor e aluno. E essa relação de aparências convenientes
perpassa toda uma trama de interesses tanto de um lado quanto
de outro:

Ao tentar convencer vossos alunos sobre o dever de obediência,


juntais a essa pretensa persuasão a força e as ameaças, ou, o que
é pior, a adulação e as promessas. Assim, atraídos pelo interesse
ou obrigados pela força, eles fingem ser convencidos pela razão.
Vêem muito bem que a obediência lhes é vantajosa e a revolta
230 Estética e Educação

nociva, assim que vos dais conta de uma ou de outra


(ROUSSEAU, 2014, p. 92).

O que segue, por outro lado:

Não o deixeis nem mesmo imaginar que pretendeis ter alguma


autoridade sobre ele. Saiba vosso aluno apenas que ele é fraco e
vós sois forte e, por seu estado e pelo vosso, está necessariamente
à vossa mercê [...] (ROUSSEAU, 2014, p. 326).

Ainda em Emílio ou Da Educação, no Livro IV, Rousseau


imbrica em outros momentos no problema aqui tratado. Exemplo
disso é o que escreve o genebrino quando examina a educação de
um jovem e defende que mostrar como o mundo funciona a esse
rapaz – a saber, o Emílio – implica necessariamente tentar escapar
dessas máscaras sociais, uma vez que elas não representam a
essência, o que cada homem é, de fato:

Se se tratasse apenas de mostrar aos jovens o homem por sua


máscara, não precisaríamos mostrá-lo, pois eles sempre o
veriam. Como a máscara não é o homem e é preciso que seu
verniz não os seduza, ao representar-lhes os homens representai-
os tais como são, não para que os odeiem, mas para que os
lamentem e não queiram parecer-lhes com eles (ROUSSEAU,
2014, p. 326).

E continua dessa maneira:

[...] descubra nos preconceitos a fonte de todos os vícios dos


homens; [...] veja que todos os homens carregam mais ou menos
a mesma máscara, mas saiba também que existem rostos mais
belos do que a máscara que os cobre (ROUSSEAU, 2014, p. 327).

Rousseau segue seu raciocínio e complementa fazendo um


alerta, no mínimo, contundente sobre o homem não mais ser o
equivalente a seu ser e sim à sua aparência social:

Para conhecer os homens, é preciso vê-los agir. No mundo,


ouvimo-los falar; eles mostram seus discursos e escondem as
O problema existente entre ser e parecer... 231

suas ações; na história, porém, elas são reveladas e julgamo-los


pelos fatos. Suas próprias palavras ajudam-nos a apreciá-los,
pois, comparando o que fazem com o que dizem, vemos ao
mesmo tempo o que são e o que querem parecer; quanto mais se
disfarçam. Melhor os conhecemos (ROUSSEAU, 2014, p. 327).

Os Devaneios do Caminhante Solitário4 (1776) é uma obra


madura em muitos sentidos. Rousseau a escreve já com idade
avançada e cerca de dois anos antes de morrer. Só será publicada
algum tempo depois da sua morte, mas traz uma análise apurada,
sólida e profunda sobre os seus próprios atos, suas obras, seu
pensamento e os acontecimentos considerados por ele mesmo
importantes e definitivos. Especificamente no início da Segunda
Caminhada5, o filósofo deixa claro o seu sentimento em relação ao
que, de fato, é, sem a necessidade de qualquer representação social
porque caminha sozinho:

Essas horas de solidão e de meditação são as únicas do dia em


que sou eu mesmo por inteiro e pertenço a mim sem distração,
sem obstáculo, e em que posso dizer de verdade que sou o que a
natureza quis (ROUSSEAU, 2008, p. 16).

4
Os Devaneios do Caminhante Solitário, obra biográfica escrita por Rousseau em
1776, que a partir deste momento, será denominado neste trabalho apenas como
Devaneios.
5
Em sua obra Devaneios do Caminhante Solitário, Rousseau classifica os
capítulos como “caminhadas”.
232 Estética e Educação

15.2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Obviamente o problema de ser e parecer está longe de ser


esgotado. Com certeza ser o que a aparência não mostra é um
problema deveras salutar não somente na época em que Rousseau
viveu sobre esta Terra, mas nos dias presentes. Em tempos de
redes sociais estimulando uma espécie de vitrine virtual onde as
pessoas podem, enfim, ser – aparentemente – felizes e satisfeitas,
a essência fica prostrada em algum ponto do caminho.
O desenvolvimento tecnológico tornou possível o acesso
fácil a instrumentos que favorecem a ilusão ideal de seres
humanos esteticamente próximos à perfeição. É ainda mais
tentadora a possibilidade de idealização aparente de uma
superficial estampa sem nenhum, ou bem pouco, conteúdo a ser
descoberto além desta película frágil. Frágil e atraente.
Rousseau, ao que se percebe estudando suas obras, passou
a sua vida, ou a maior parte dela, imbricado em uma teia, em um
emaranhado de aparências e relações sociais esvaziadas ou
motivadas por interesses escusos.
É possível, a partir de reflexões rousseauneanas, questionar
a própria humanidade sobre os caminhos pelos quais a vida está
sendo conduzida. É perfeitamente cabível trazer Rousseau à
discussão e permitir ao genebrino apontamentos tão
contemporâneos e relevantes ainda para a sociedade atual.
Entre tantas possibilidades de conduzir a existência
humana, o caminho, a prática de cultivar e aprimorar o ser, a
essência, o que, de fato, se é, se faz cada vez mais necessário em
tempos onde as aparências se tornam a cada dia mais presentes,
mais fortalecidas e superiores por serem divinizadas justamente
pela humanidade – ainda tão desumana –, tão alheia às
potencialidades da própria essência.
O problema existente entre ser e parecer... 233

REFERÊNCIAS

ESPÍNDOLA, Arlei de. Rousseau: Pontos e Contrapontos. Arlei de


Espíndola (Organização). São Paulo: Editora Barcarolla, 2012.

FORTES, Luiz Roberto Salinas. Rousseau: O Bom Selvagem. São


Paulo: FTD, 1989.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. As Confissões. Trad. De Wilson


Lousada. São Paulo: Martin Claret, 2011.

_______. Discurso Sobre as Ciências e as Artes. Volume II.


Coleção Os Pensadores. Trad. De Lourdes Santos Machado. São
Paulo: Nova Cultural, 2005.

_______. Discurso Sobre a Origem e Os Fundamentos da


Desigualdade Entre os Homens. Volume II. Coleção Os
Pensadores. Trad. De Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova
Cultural, 2005.

_______. Do Contrato Social. Volume I. Coleção Os Pensadores.


Trad. De Lourdes Santos Machado. São Paulo: Nova Cultural,
2005.

_______. Emílio ou da Educação. Trad. De Roberto Leal Ferreira.


São Paulo. 4ª Ed. Martins Fontes, 2014.

_______. Emílio ou da Educação. Trad. De Sérgio Milliet. Rio de


Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.

_______. Os Devaneios do Caminhante Solitário. Trad. Júlia da


Rosa Simões. Porto Alegre: L&PM, 2008.
XVI

O ROSTO EM EMMANUEL LEVINAS:


uma proposta para a pedagogia da inclusão

Douglas Silvino de Camargo*


José Dias**

RESUMO: O presente artigo tem como tema a Ética da Alteridade


no pensamento de Emmanuel Levinas (1906-1995), filósofo franco-
lituano do século XX. A pergunta norteadora é a seguinte: Como
pensar o Outro em seu Rosto que interdita toda espécie de
pensamento reificante? O objetivo geral é compreender a noção
de Rosto em Levinas como caminho de inclusão do Outro. A
justificativa do tema apresenta a alteridade do Outro como
princípio ético a ser debatido e vivenciado na escola, numa
pedagogia que inclua. Com isso, a relevância social do tema se faz
urgente, pois, sistematizar um trabalho que empondere o Outro,
que perceba os “invisíveis sociais”, rostos esquecidos por sistemas
baseados no egoísmo do eu, valoriza-se o amor e a
responsabilidade inter-humanos. Em função disso, nota-se a
relevância da filosofia de Emmanuel Levinas e a questão da
responsabilidade pela alteridade do Outro. Aprofundar, portanto,
os conceitos levinasianos e trazê-lo para o centro da comunidade
escolar, é um modo de militar em prol do Outro, tão ameaçado
atualmente, em sua alteridade. A metodologia é descritiva-
hermenêutica, tem como base a pesquisa bibliográfica, estudando
a obra de Levinas Totalité et Infini. Essai Sur l’extériorité (1961), e
comentadores afins. Como resultado se têm o estatuto da ética a
partir da alteridade do Rosto como projeto revelador para a
sociedade da indiferença e do descartável. Assim, a atualidade do
pensamento de Levinas se mostra na interpelação pela

*
UNIOESTE, E-mail: profdouglascamargo@gmail.com.
**
UNIOESTE.
236 Estética e Educação

responsabilidade e justiça diante do Outro, nesse sentido, a


comunidade escolar tem a missão de incluir e acolher o Outro na
sua diferença, uma pedagogia da hospitalidade de outrem.

PALAVRAS-CHAVE: Rosto; Alteridade; Pedagogia; Inclusão.

INTRODUÇÃO

É sempre um desafio o início da leitura de um filósofo que


contou com tantas e tão variadas influências para formulação de
suas análises e ideias, como o pensador francês de origem lituana
Emmanuel Levinas. Certamente, esse proeminente discípulo
direto da fenomenologia de Edmund Husserl e da Ontologia
Existencial de Heidegger (mas igualmente crítico de seus
mestres), oferece chaves importantes de leitura sobre a
originalidade e o sentido da condição do homem. É como crítico
da filosofia que Levinas mais se destaca, especialmente quando
afirma o primado do Rosto do Outro, sobre o Ser do sujeito
Mesmo, e quando esse Rosto vem como imperativo que questiona
qualquer filosofia subjetiva e totalizante.
A educação atual se estabelece pela competitividade, pela
supremacia do eu e pela visão tecnicista, que por vezes, vê o outro
como estorvo ou alguém a ser superado. Estudar a noção de Rosto
em Levinas na perspectiva da hospitalidade de outrem é favorecer
a pedagogia com uma ferramenta que marca os processos
educativos. A hospitalidade em Levinas é tratar o Outro na sua
história, na sua condição de sujeito que tem algo a oferecer, é olhar
o Outro como caminho de aprendizagem e relações éticas de
promoção do eu e do outro. Quando o processo educativo
preconiza apenas o "eu" em detrimento do "outro" que se faz
presença, abre-se uma lógica egocêntrica e mercantilista de
educação. Em tempos de intolerâncias e de polarizações na
educação e na política, não aprofundar uma ética da alteridade é
correr o risco da indiferença com o sofrimento do Outro, ou a
eliminação do Outro, que pode acontecer na maneira sutil a mais
violenta possível.
O rosto em Emmanuel Levinas... 237

Estudar e debater a ética da alteridade pelo viés do Rosto é


sistematizar uma proposta humanizada na educação atual, é
resgatar o Outro que sofre preconceito e discriminação pela sua
condição sociocultural, de gênero ou de qualquer dimensão que
sofra diante dos padrões estabelecidos pelo eu opressor.

16.1 A EPIFANIA DO ROSTO DE OUTREM E A PEDAGOGIA


DA HOSPITALIDADE.

Certamente, a teoria levinasiana do Rosto, oferece um


modo diferenciado de se conceber e interpretar a História, bem
como de fundamentar a questão da justiça e da própria moral
tendo em mente a relação com o Outro. Na perspectiva
inaugurada pelo filósofo franco-lituano, as leis e as teorias da
justiça e da liberdade devem se pautar a responsabilidade para
com o Outro homem. O Rosto do outro coloca-nos diante das
exigências de ter-se de debruçar sobre a humanidade a partir
daquele que se retira das totalidades, isto é, de olhar a partir dos
excluídos pelos sistemas econômicos, a quem pertence às
minorias muitas vezes não ouvidas, e aos países e nacionalidades
não consideradas pela totalidade político-filosófico estabelecidas
pelos norte-americanos e europeus, tão interpretada no drama da
humanidade dos refugiados.
Até mesmo a mulher, ainda hoje considerada inferior ao
homem nas relações sociais e nas relações de trabalho, merece ser
defendida em sua alteridade. Mesmo a reflexão sobre bioética,
ganha algumas luzes orientadoras, na filosofia da
responsabilidade de Levinas: Ora, na perspectiva levinasiana, o
direito a vir-a-ser, a significação própria do ente, o valor de sua
existência não depende, de maneira alguma de sua autonomia
racional: possui intrínseco de ‘Rosto’ humano que é necessário
respeitar, mesmo feto ou como moribundo inconsciente.
Quando se lê a atual conjuntura cultural, com tantos
atentados à liberdade e ao senso de convivência humana, à
tolerância e ao respeito pela diferença, torna-se imprescindível
uma filosofia que estude e debata questões tão delicadas de nossa
238 Estética e Educação

humanidade. Em função disso, nota-se a relevância da filosofia de


Emmanuel Levinas e a questão da responsabilidade pela alteridade
do outro. Aprofundar, portanto, os conceitos levinasianos e trazê-
lo para o centro da reflexão filosófica e de uma comunidade
escolar, é um modo de militar em prol do Outro, tão ameaçado
atualmente, em sua alteridade.
E como pertinência da investigação fica a observação de
Jacques Derrida, sobre a relevância da filosofia levinasiana:

Cada vez que leio ou releio Emmanuel Levinas sinto-me


inundado de gratidão e de admiração, inundado por esta
necessidade, que não é um constrangimento, porém uma força
muito doce que obriga e que obriga, não a curvar de outra
maneira o espaço do pensamento no seu respeito ao outro, mas
a render-se a esta outra curvatura heteronômica que nos refere
ao completamente outro ... Segundo a lei que conclama então a
render-se à outra procedência infinita do completamente outro
(DERRIDA, 2004, p.25).

A filosofia de Levinas nesse sentido torna-se um


instrumento importante para abrir novas discussões, ampliar
horizontes e trazer à tona tantos dramas humanos que são
esquecidos em sua alteridade, negligenciados até mesmo na
escola, numa negação da ética e responsabilidade com o Outro.
Tudo leva a crer que para entender de modo apropriado e
profundo a Alteridade Ética em Levinas é fundamental
compreender a categoria Rosto como expressão viva da
Exterioridade. O Rosto aparecerá na sua significação própria, ou
seja, ele “irradia uma luz própria. Ao invés de ser iluminado e
desvelado pela consciência transcendental, vindo de uma
dimensão de transcendência, é ele que ilumina” (KUIAVA, 2003,
p.90).
Aqui ao contrário de estar no mundo dos elementos que
tomam uma forma, na representação subjetiva, estar-se-á no
contato com a exterioridade viva, que permite descobrir a
significação vinda da realidade mesma, não aquela atribuída pelo
homem. Interessante é que para chegar a diferenciação de sua
O rosto em Emmanuel Levinas... 239

noção de Rosto, como auto-significante, Levinas faz uma


importante associação com o elemento artístico, com a sua
expressão auto-referente (ao contrário de outras formas de
materialidade), dada pela ‘fachada’:

A arte outorga as coisas uma fachada: por isso, os objetivos não


são somente vistos, mas são objetos que se exibem. A
obscuridade da matéria significaria o estado de um ser que
precisamente não tem fachada. Mas nela se constitui o belo cuja
essência é a indiferença, frio resplendor e silêncio [...]. Pela
fachada, a coisa que guarda seu segredo se expõe encerrada em
sua essência monumental e em seu mito no qual ela reluz como
esplendor, mas não se entrega. Subjuga por graça como uma
magia, mas não se revela (LEVINAS, 2002, p.207).

A diferença fundamental do Rosto com relação ao mundo


dos elementos até mesmo elemento artístico (apesar de estes
possuírem uma significação própria) está na noção de
transcendência do outro. Por isso, em Levinas a transcendência
rompe a dinâmica do mundo e do próprio ‘Eu’ de modo a provocá-
lo e chamá-lo para uma relação perfeitamente diversa e a partir da
significação humana do Rosto:

Se o transcendente contrasta com a sensibilidade, se é abertura


por excelência, se sua visão é a visão da abertura mesma do ser,
com efeito, contrasta com a visão das formas e não pode dela em
termos de contemplação, nem em termos de prática. É rosto; sua
revelação é palavra. Somente a relação com outro introduz uma
dimensão da transcendência e nos conduz a uma relação
totalmente diferente da experiência no sentido sensível do
termo, relativo e egoísta (LEVINAS, 2002, p.207).

O Rosto, é uma novidade que se revela, que traz o sujeito


mais do que se possa dizer sobre ele, sendo, portanto, o próprio
sentido da Exterioridade, e o sentido próprio da Alteridade do
absolutamente exterior ao sujeito. Isso porque, a natureza do
Rosto, comenta Pelizzoli (1994), reside justamente – e apenas – em
que ele não pode ser determinado pelo Mesmo, como o modo
240 Estética e Educação

como o Outro se apresenta ultrapassando sua própria ideia de


mim. Por esse motivo, “o rosto está presente em sua negação em
ser contido. Nesse sentido, não poderia ser compreendido, quer
dizer englobado” (LEVINAS, 2002, p.2017).
Desse modo, o Outro como Rosto é simplesmente Outro e
não pode, segundo Levinas, ser alvo de uma pretensão de reduzi-
lo a um conceito, apesar de apresentar-se como humano. Ele não
pode ser reduzido a uma comunidade de gênero conosco e com
outros seres. A única maneira de se ter acesso verdadeiro,
portanto, a verdadeira natureza do Rosto do Outro seria segundo
insiste Levinas pela ética e pela linguagem ética.
Essas considerações sobre a irredutibilidade da presença do
Rosto fazem com que se compreenda o fato de que,
contrariamente a muitas acusações dirigidas a Levinas, também o
‘eu’ não acabe sendo negado pelo ‘outro’. No entanto, pelo fato de
a linguagem afirmar a positividade semelhante de tais relações
como modo em que o Outro infinitamente transcendente e
‘estrangeiro’, isso permite dizer que a origem da palavra, da
significação, revela e me chama a uma relação aberta e infinita
com o Rosto de outrem.
Por isso, afirma categoricamente Levinas, que “o caráter
incompreensível da presença do Outro [...], não se descreve
negativamente [como se fosse irracionalidade]. Melhor que a
compreensão, o discurso põe em relação com aquilo que segue
sendo essencialmente transcendente” (LEVINAS, 2002, p.208). O
Rosto, a diferença total quanto a mim, que me afeta desde um
tempo que não posso compreender (desde o pré-originário, da
passividade do sujeito à ética), não deixa de ser o concreto do
Infinito, a revelação desde Outrem do transcendente infinito.
Dessa maneira, o Rosto de Outrem, dado originariamente
na profundidade do seu Ser é que revela a significação primária.
Ela é ‘desejada metafisicamente’ pelo Mesmo, porém nunca
esgotada e abarcada por qualquer inteligência. Afinal, o Rosto
“supera em originalidade e radicalidade as representações
inteligidas e a ideia que se pode ter do ‘ser humano’ inteligido”
(COSTA, 2000, p.125).
O rosto em Emmanuel Levinas... 241

Se isso é estimulante para que se possa aprofundar


qualquer relação – e poder descobrir a própria profundidade do
Outro – mais ainda é ter em conta o Outro em si, o Outro não em
relação a mim, face diversa que revela a ideia de Infinito, é ensino
puro, por sua presença, sempre traz o diverso, sempre doa ao
sujeito mais do que aquilo que conhece e que contém.
“Reconhecer ao Outro é reconhecer uma fome. Reconhecer ao
Outro é dar. Mas dar de quem se deve calar” (LEVINAS, 2002,
p.98-99).
Entender o Rosto em Levinas é entender a perspectiva de
uma Alteridade Ética. É necessário reiterar que, do ponto de vista
filosófico, Levinas quer considerar a ética como ponto de partida
de toda filosofia, e não apenas um “ramo da ontologia”, ou seja, é
a “ética fazendo-se filosofia”. Como esclarece Ciaramelli:

Levinas não escreve uma ética, mas defende que toda filosofia,
tendo a tarefa de remontar do dito ao dizer, seja ética; e o é
precisamente porque precede o logos, mesmo se, ao final de
contas, não pode prescindir dele. A ontologia sustentada e
veiculada pelo logos não é a única possibilidade de se tomar
consciência, de maneira completa, da experiência humana. A
ética, ou experiência extraordinária e cotidiana com o outro, é o
lugar de origem dos significados, das motivações, das
representações e dos valores que tornam humana a vida. A tarefa
da filosofia não se reduz, portanto, a desmontar a “lógica formal”,
mas comporta uma fase positiva: mostrar o significado específico
do Dizer aquém da tematização do Dito. Na realização desta
tarefa, a filosofia é, em seu todo ética (CIARAMELLI, F. 2008. p.
157).

Levinas propõe uma ética sem ontologia. Coloca em


questão “a primazia da ontologia” e sua incapacidade de
reconhecer a irredutível originalidade do exterior ao ser – a
ontologia iguala os entes lhes dando um fundamento a partir da
totalidade do ser, cujo resultado é uma queda no que Levinas
qualifica de “egoísmo ontológico”. Como um questionamento
radical do “império total e totalitário do ser”, questiona se a
“linguagem e gramática do ser” é a única a se soletrar.
242 Estética e Educação

A questão é saber se a ontologia como filosofia primeira


“esgota as possibilidades da significância do pensamento e se, após
o saber e seu domínio sobre o ser, não surge uma sabedoria mais
urgente”. Dito de outro modo: o que é posto em questão é se a
ontologia expressa a completude das possibilidades do pensar, ou
se “para-além’ (ou “para-aquém”) da sabedoria da filosofia
primeira, não surge uma outra sabedoria – para além do “amor a
sabedoria”, uma “sabedoria do amor”.
Buscar o estudo da Alteridade Ética em Levinas é percorrer
um caminho que inicia na ontologia, mas que apresenta e vai além
da dela, na Metafísica; que visa a perscrutear o sentido e a
interioridade em Levinas e a exterioridade como sentido da sua
ética.
A ética pensada por Levinas se revela, portanto, como
inspiração, acolhimento, como escuta de outra palavra, que é
exterior, anterior ao logos e que dá sentido a todas as relações
sociais, a cultura e a vida mesma do homem. Para que acontece a
hospitalidade de outrem é necessário pensar a ética como
responsabilidade. O pensamento levinasiano consiste numa
inversão radical da inteligibilidade ética, da metafisica anterior à
ontologia, que por sua vez, são possibilitadas pela exterioridade
absoluta do outro homem.

16.2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

É de fundamental importância a retomada do conceito de


alteridade, o sentido de acolhimento do diferente que chega na
comunidade escolar, pois, se a escola estabelece muros e não
pontes na inclusão do Outro, estará impedindo relações éticas e
humanizadas.
Debater a inclusão nos espaços educativos é estar aberto a
alteridade, ao Rosto marcado por uma história singular, ora de
alegrias, ora de mazelas. Uma pedagogia da hospitalidade de
outrem é um processo de libertação, de auto estima, de promoção
daquele sujeito ao meio que vive, olhar a partir desse Rosto é
O rosto em Emmanuel Levinas... 243

oferecer uma relação ética pautada na dignidade da pessoa


humana.
Essa relação será realmente justa se permitir que o Outro
se revele. É preciso viver o paradigma do acolhimento, rompendo
com o medo e insegurança que o diferente apresenta. Para que a
epifania do Rosto do Outro aconteça, é preciso acreditar que o
Outro não está vazio. Por fim, a filosofia levinasiana oferece
ferramentas para a construção de uma sociedade/comunidade
mais justa e solidária, oferece pegadas para um caminho de
cuidado com o Outro, desde da tenra idade até a velhice, nos
propõe a alteridade como caminho ético e promoção da vida, o
hospedar o Outro que chega para cear junto a minha existência.

REFERÊNCIAS

CIAMARELLI, L. Antes da lei – considerações sobre a filosofia e


ética em Levinas e Heidegger. In.: SOUZA, R. T., FARIASW, A. B.
& FABRI, M. Alteridade e ética: obra comemorativa dos 100 anos
de nascimento de Emmanuel Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2008.
COSTA, Luiz Márcio: Levinas: uma introdução. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2000. 239 p.
DERRIDA, Jacques. Adeus a Emmanuel Levinas. São Paulo:
Perspectiva, 2004, p.25.
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_______. O eu e a diferença. Husserl e Heidegger. Porto Alegre,
RS: EDIPUCRS, 2002. 332.
244 Estética e Educação

_______. Levinas: a reconstrução da subjetividade. Porto Alegre,


RS: EDIPUCRS, 248 p.
_______. O Dizer da alteridade além do Ser.
XVII

O TEMA DA VIOLÊNCIA PELA


PERSPECTIVA DE HANNAH ARENDT

Mário Sérgio Vaz*

RESUMO: na primeira parte deste texto, discute-se a crítica


realizada por Hannah Arendt contida em seu ensaio Sobre a
violência (1969) ao entendimento de que a política se resume a
uma questão de domínio e obediência, onde a violência estaria
justificada enquanto um pré-requisito para a obtenção e
manutenção do poder. Destarte, conclui-se mostrando que para
Arendt, a dynamis do poder político não diz respeito a uma lógica
de imposição ou coerção, mas sim, vincula-se a capacidade
humana para agir em conjunto. Na segunda parte do texto,
apresenta-se as distinções terminológicas desenvolvidas pela
autora entre os conceitos de violência, autoridade, força e vigor
visando mostrar como na tradição de pensamento político ocorre
um equacionamento indevido entre tais termos. Destarte, será
possível apontar que o poder não se configura como vigor ou força,
mas sim, uma emanação de uma pluralidade ─ o agir em comum
acordo ─, sustentado na liberdade de ação e da palavra.

PALAVRAS-CHAVE: Ação; Poder; Legitimidade;


Instrumentalidade; Violência.

*
UNIOESTE; E-mail: mariovaz74@gmail.com.
246 Estética e Educação

INTRODUÇÃO: DO PRECONCEITO PARA COM A POLÍTICA.

De acordo com o pensamento de Hannah Arendt, a crença


de que a violência seria um pré-requisito para obtenção e a
manutenção do poder reflete o preconceito (mais ou menos
compartilhado por todos) de que a política se constitui como o
campo do domínio e da obediência. Em tal horizonte de
entendimento, os instrumentos de aplicação da violência
apareceriam então como a mais flagrante manifestação de poder,
e o poder, ao que tudo indicaria, seria um instrumento de
dominação. É contra este equívoco que se depreende a reflexão de
Arendt presente em Sobre a violência (1969), na medida em que
autora não compartilha daquilo que designa por “estranho
consenso” entre os teóricos da tradição filosófica política ─ da
Esquerda à Direita ─ de que a questão central para a política é
quem governa quem. Para a autora alemã, o poder político não diz
respeito a uma questão de mera imposição e obediência, por meio
do qual uma pessoa ordena e compele sua vontade. Nestes termos,
a relação de mando e dominação não deriva da esfera pública ─ do
espaço da aparência ─ mas sim, de uma esfera pré-política, a esfera
privada da casa (oikós) e da família, onde o chefe da família
governa como um déspota e essencialmente o seu modelo original
é equivalente a relação entre senhor e escravo, de provedor e
administrador. Assim sendo, num sentido mais originário,
governar e ser governado, o mando e a obediência, não dizem
respeito à dynamis da vida política tal como a concebe Arendt.
Nestes termos, visando resgatar o sentido da ação política,
Hannah Arendt se pergunta: “será que todos, da direita à
Esquerda, de Bertrand de Jouvenel a Mao Tsé-Tung, deveriam
concordar a respeito de um aspecto tão básico da filosofia política
quanto a natureza do poder? (ARENDT, 2001, p. 32).” E de fato, se
olhamos para a literatura apontada por Arendt de autores que se
ocuparam deste tema, seríamos levados a concordar com esta
assertiva ─ p.ex. Max Weber compreende o Estado como o
domínio do homem pelo homem baseado nos meios da violência
legítima; para Voltaire, o poder consiste em fazer com que os
O tema da violência... 247

outros ajam conforme eu escolho, ou Jouvenel, que diz que


comandar e obedecer, sem isto não há poder. Não obstante,
Arendt ressalta que já na obra de Aristóteles e Platão 1 ocorre a
tentativa de se estipular um padrão de controle e previsibilidade
para o campo incerto dos assuntos humanos, que distinguia, de
um lado, aquele(s) que detém o conhecimento necessário para
governar (peritós) e, do outro lado, aqueles que devem ser
governados.
Com relação a equivalência entre a política e dominação
Remi Peeters aponta que:

A redução da política a dominação governa toda a tradição da


filosofia política e ciência política: não apenas demonstrável na
ideia moderna do Estado-Nação soberano em Bodin e Hobbes,
mas também na maneira em que a filosofia antiga definiu as
diferentes formas de governo (monarquia, oligarquia e
democracia). O antigo vocabulário é consolidado pela tradição
judaico-cristã com sua visão imperativa de lei (análogo aos
mandamentos de Deus). (PEETERS, 2008, p. 171)

Via este comentário, nota-se como a referida redução da


política à dominação fora desenhada nos termos e conceitos de
nossa tradição de pensamento político e corroborada a partir do
surgimento do Estado-Nação europeu (os regimes absolutistas da
França do século XVIII e na Inglaterra do século XVII) e o
entendimento de que o poder do monarca sobre os demais era
naturalmente explicável devido aos traços de sua natureza. Têm-
se ainda as definições utilizadas desde a antiguidade grega para
designar as diferentes formas de governo entre os homens, a saber,
“mon-arquia”, “demo-cracia” ou “aristo-cracia” e a concepção da lei
enquanto um imperativo ─ proveniente da tradição judaico-
cristão ─ derivada dos mandamentos bíblicos, que reitera o
comando e a obediência segundo a custódia dos preceitos divinos.

1
A este respeito ver ainda o ensaio de Hannah Arendt intitulado “Filosofia e
Política” In: A dignidade da Política, 3ª ed., Rio de Janeiro, Relume Dumará,
2002.
248 Estética e Educação

À respeito disso, Arendt faz objeções à esta tradição


justamente devido a sua incapacidade de distinção que nivela
poder com violência, política ao domínio, na qual seria difícil
encontrar parâmetros que apontassem a diferença de fato entre “a
ordem dada por um policial e a ordem dada por um pistoleiro
(ARENDT, 2001, p. 32).” É oportuno dizer aqui que a posição
assumida por Arendt é a de um repensar fenomenológico dos
sentidos dos conceitos políticos, para que se torne possível não
apenas tratar do poder, mas também da violência como
fenômenos em si mesmos, e a partir daí diferenciar devidamente
vigor, força e autoridade. Nesse sentido, Arendt recorre e dialoga
com as experiências fundadoras da política, da polis grega à Civitas
romana ─ para as quais os assuntos públicos não se reduziam à
questão de domínio e obediência ─ a fim de encontrar elementos
para refletir e iluminar a política.
Em relação a este vocabulário mais fundamental, Hannah
Arendt indica o seguinte:

Contudo, existe ainda uma outra tradição e um outro


vocabulário não menos antigos e honrados. Quando a cidade
estado-ateniense denominou sua Constituição de isonomia, ou
quando os romanos falaram de uma civitas como sua forma de
governo, tinham em mente um conceito de poder e lei cuja
essência não se assentava na relação de mando-obediência, e que
não identificava poder e domínio ou lei e mando. (ARENDT,
2001, p.34)

Hannah Arendt observa que na tradição greco-romana,


tanto o poder como a lei não se incorporam na relação de mando-
obediência, i.e., o poder não é um poder sobre o homem, pois
depende essencialmente do consentimento e do apoio dos
cidadãos (depende, enfim, da relação entre os indivíduos). Foi
também para este vocabulário e tradição que os homens das
Revoluções do século XVIII se voltaram para constituir uma
república, onde o domínio da lei assentada no poder do povo poria
fim ao domínio do homem sobre o homem. Com relação a este
assunto, Hannah Arendt é cônscia de que tal apoio nunca é
O tema da violência... 249

inquestionável, e a política, justamente por ser um campo plural e


que abarca múltiplas perspectivas de mundo (dóxas), jamais
estará livre da divergência e do conflito de posições. Contudo, para
Arendt (2001, p. 34), não existe nenhuma instituição política que
não tenha sua legitimidade e legalidade derivada do livre
consentimento popular (ou de sua aquiescência). Aqui, trata-se de
pensar o consentimento a partir da ideia do reconhecimento ativo
e da participação contínua em todos os assuntos de interesse
público por parte dos cidadãos. E como as instituições políticas
são, de acordo com Arendt, materializações do poder, elas
declinam e petrificam-se quando este mesmo consentimento e
reconhecimento cessam, quando o poder vivo do povo deixa de
sustenta-las (ARENDT, 2001, p.34-35), ou, noutras palavras,
quando as mesmas se encerram numa legitimidade estabelecida à
revelia das oposições que se apresentem.
Isso porque, de acordo com Arendt, o fenômeno político de
consentimento às leis e ao governo não se fundamenta de acordo
com qualquer modelo de submissão ou simples aquiescência, já
que, em primeiro lugar, é o consentimento popular que legítima o
poder constituído que o preserva e o mantém positivamente (a
fonte de onde emana sua lógica de ser e de se estabelecer).
Consequentemente, as leis, em última instância, existem única e
exclusivamente na medida em que apontam a forma do indivíduo
se inserir no jogo humano e viver entre iguais, na modalidade do
discurso e da ação, numa história que começou antes e perdurará
depois de nós. Esta assertiva também revela o sentido da frase de
James Madison, sempre recorrente em Arendt, de que “todos os
governos assentam-se na opinião”, pois a confiança nas leis
expressa diretamente a confiança na dignidade da política, o
reconhecimento da sua autoridade e o interesse dos cidadãos em
tomar parte no jogo político, em encontrar um espaço apropriado
para a participação nas coisas públicas. Noutras palavras, o poder
e a política em sua relação intrínseca se intercruzam pelo estar
juntos e pela ação em conjunto. Decorrente disto, para que venha
o novo, que é fruto das ações humanas, é preciso um contexto de
250 Estética e Educação

estabilidade, e esta estabilidade é garantida, sobretudo, pela


constituição e pelas instituições que por ela zelam.”2
Assim, a visão arendtiana da síntese entre poder e política
expressa a ideia de que no centro do fenômeno político se
encontra a confiança de que é possível in potentia mudar as coisas
por meio da ação em conjunto, visto que a ação humana é
processual e potencialmente infinita, significando sempre o início
de algo novo. Confiança esta que perderia a sua causa de ser sem
a noção de liberdade, que é o que garante a possibilidade de
participação nas deliberações e discussões políticas ─ a introdução
ao mundo público e ao espaço da aparência e a condição para o
acontecimento da política. Logo, o campo da política não pode se
configurar como o campo da submissão, mas sim, da participação
ativa dos cidadãos em um processo infindável que abre espaços
para que o novo, que nasce das ações inter homines, possa
florescer. De acordo com Arendt, a liberdade expressa a
possibilidade de um novo começo, a resposta humana para sua
condição de natalidade.
É por este viés que Hannah Arendt busca afastar qualquer
premissa de que reduza a política a uma simples questão de
mando e obediência, pois só há política enquanto houver
indivíduos e não serviçais, cidadãos e não súditos. De maneira
mais expressa, para a pergunta “Tem a Política ainda algum
sentido? A resposta seria: o sentido da política é a liberdade – e, por
conseguinte, o seu campo de experiência é a ação.3 Ainda neste
ponto, Arendt expõe que “Somente quando os assuntos públicos
deixam de ser reduzidos à questão do domínio é que as
informações originais no âmbito dos assuntos humanos aparecem,
ou, antes, reaparecem, em sua autêntica diversidade (ARENDT,
2001, p. 36).” Para a autora, um governo baseado unicamente nos
2
Ver FRATESCHI, Yara, Participação e liberdade política em Hannah Arendt.
In: CADERNOS DE FILOSOFIA ALEMÃ nº 10 | P. 83 - 100 | JUL-DEZ 2007
3
Ver ARENDT, H. Que é liberdade? p. 192. In: Entre o Passado e o Futuro. São
Paulo: Perspectiva, 2003. Neste mesmo ensaio Arendt assevera com relação a
ação e liberdade o seguinte: “Os homens são livres – diferentemente de
possuírem o dom da liberdade – enquanto agem, nem antes, nem depois; pois
ser livre e agir são uma mesma coisa.” (Cf, p.199 grifos da autora)
O tema da violência... 251

meios da violência sequer pode existir; até mesmo o tirano, o Um


que governa contra todos, depende de ajudantes na tarefa da
violência – ou seja, dependera do apoio de alguns para executar os
comandos dados ─ ainda que seu número possa ser restrito e o
apoio esteja fundado no medo e no terror. Além do mais, por
apoiar o seu frágil poder em um número reduzido de opiniões
fabricadas e coagidas (e não na liberdade e na capacidade de
iniciativa presente em todo ser humano), governos tirânicos e
despóticos carecem de poder legítimo e, por tal característica, são
as mais violentas e vulneráveis dentre todas as formas de governo.
Isso porque assumem que o poder ─ que não possuem de fato ─
nada mais é que uma força qualificada.
Certamente, a conhecida frase de Luis XIV ─ “L’état C’est
Moi!” ─ sintetiza de maneira exemplar a percepção política contra
a qual Arendt argumenta. Destarte, a autora indica isso da
seguinte forma: “Homens sozinhos, sem outros para apoiá-los,
nuca tiveram poder suficiente para usar da violência com sucesso
(ARENDT, 2001, p.40).” O poder é a dynamis de um governo e não
a violência, enquanto possui legitimidade e reconhecimento,
quando suas leis não são tirânicas e quando sua autoridade não se
baseia no uso deliberado da força. Ipso facto, a violência
contrapõe-se ao poder, de forma que onde um domina
absolutamente, o outro está ausente. Compreende-se que para
Arendt, relembrando a máxima latina de Cícero, o poder emana
do povo (potesta in populi) e a política é o seu locus. No entanto,
deve-se ter em mente que o poder, ao ser erroneamente concebido
como uma propriedade, um instrumento, corre o risco de ser
substituído ─ seja por implementos técnicos, armas de destruição
em masssa ─ ou confundido com os termos “força”, “vigor”,
trazendo consigo um preconceito para com a imagem
compartilhada da política. Estas categorias, por não terem sido
distinguidas devidamente, são utilizadas como palavras
equivalentes, como se possuíssem a mesma função. Ainda de
acordo com Peeters (2008, p. 173) é nestes termos que Arendt
busca resgatar uma visão não hierárquica e não instrumental de
poder.
252 Estética e Educação

Isso porque Arendt entende que o declínio do poder, a


supressão da liberdade e a dissimulação da autoridade em uma
comunidade é um convite aberto à violência. Noutras palavras,
todo aumento da violência (deve-se aqui acrescentar a mentira
deliberada e a manipulação dos fatos) e de seus meios corresponde
a uma perda ou impotência do poder político ─ ou ainda, onde a
violência se torna a instância fundamental de definição da política,
esta se degenera e se extingue. A violência conforme compreende
Arendt, consegue destruir o poder através da intimidação e do
medo, mas jamais pode criá-lo. Nesta medida, é sempre um risco
para a liberdade e a fortiori para a política. Atenta a isso, para que
seja possível pensarmos a política para além da fórmula que
equaciona poder e violência, faz-se mister discutir devidamente o
que cada um destes conceitos reflete e exprime.

17.1 PARA UMA DEMARCAÇÃO ENTRE O PODER E A


VIOLÊNCIA NA PERSPECTIVA DE HANNAH ARENDT

Antes de mais nada, deve-se dizer que ao distinguir os


termos “poder” e “violência”, não era o pressuposto de Arendt
concebê-los como categorias estanques e separadas entre si; pois
nada é, de acordo com Arendt: “mais comum do que a combinação
de violência e poder, nada é menos frequente do que encontrá-los
em sua forma pura e, portanto, extrema. (ARENDT, 2001, p.38,
grifos da autora).” Ou seja, vê-se que Arendt não imagina uma
política destituída do conflito e da divergência, justamente por
dizer respeito aos homens em pluralidade (e não a um homem no
singular) na modalidade do discurso e da ação. Isso implica
considerar que a violência não é um fenômeno alheio ou estranho,
mas sim, um fenômeno que possui uma relação fronteiriça com a
política. Mas disto não resulta que sejam o mesmo e, por
conseguinte, o ímpeto de Arendt é mostrar como tais conceitos se
referem não apenas a significados linguísticos distintos, mas
também a diferentes realidades. Por isso, as distinções entre poder
e violência, entre autoridade, força e vigor ultrapassam as
circunstâncias mais imediatas que a promoveram, dado o fato de
O tema da violência... 253

que não se resumem unicamente ao plano teórico. O exercício de


pensamento de Arendt não almeja ser um tratado político
sistemático, mas, como nos indica Elisabeth Young-Bruehl (2006,
p.13), as distinções desenhadas pela autora são fundamentais para
a compreensão do nosso mundo, para pensarmos o que estamos
fazendo.
Inicialmente, o poder é caracterizado positivamente por
Arendt da seguinte forma:

O poder corresponde à habilidade humana não apenas para agir,


mas para agir em concerto. O poder nunca é propriedade de um
indivíduo; pertence a um grupo e permanece em existência
apenas na medida em que o grupo conserva-se unido. Quando
dizemos que alguém está “no poder”, na realidade nos referimos
ao fato de que ele foi empossado por um certo número de pessoas
para agir em seu nome. A partir do momento em que o grupo,
do qual se originara o poder desde o começo (potestas in populo,
sem um povo ou grupo não há poder), desaparece, “seu poder”
também esvanece (ARENDT, 2001, p. 36).

Em primeiro lugar, deve-se notar que para Arendt, o poder


emerge como uma potencialidade inextrincável à capacidade
humana para o agir, uma pura possibilidade ou virtualidade de
caráter relacional. Arendt compreende que a ação só é possível em
companhia de outros indivíduos ─ i.e., nenhum homem pode agir
em solidão ─ e, por assim ser, o poder subsiste na relação plural
entre diferentes. Assim sendo, o poder jamais é sobre os outros,
mas com os outros. A fim de ressaltar a importante relação entre a
ação e o poder no pensamento de Arendt, Remi Peeters (2008, p.
174) diz que: “o poder não ser encontrado em uma atividade
puramente instrumental, pois depende da troca de palavras e da
interação entre os indivíduos para vir a ser”. Portanto, o poder é o
que gera e mantém o espaço da aparência ─ entendido como
relação ─ em constante atualização. Longe de ser uma
propriedade interior (de alguém ou de alguns) ou mesmo um bem
capaz de ser armazenável, estocável, o poder é um reflexo do
conjunto de relações estabelecidas entre os indivíduos. O poder
254 Estética e Educação

aparece como um fim em si mesmo que depende apenas de


legitimidade, e essa legitimidade deriva-se mais do fato do estar
junto do que qualquer possível ação de fato. Por isso é possível
dizer que para Arendt o poder traz consigo todas as vozes que lhe
confere legitimação, ao passo que a violência, como fora dito no
primeiro capítulo, é sempre muda porque não depende de
números ou opiniões, opondo-se assim a pluralidade da esfera
pública. Arendt ainda indica (2001, p.41) que a própria estrutura
do poder precede e supera todas as metas, porque o poder é de
fato a própria condição que capacita um grupo de pessoas a pensar
e a agir em termos de meio e fim.
Com efeito, é importante diferenciar o poder do vigor
[strenght] que: “designa algo no singular, uma entidade individual;
é a propriedade inerente a um objeto ou pessoa e pertence ao seu
caráter (ARENDT, 2001, p. 37)” Ou seja, o vigor diz respeito a um
homem só, à sua individualidade e existência no singular, a um
tipo ideal de ser. Richard Bernstein (2011, p. 07) comenta que a
descrição virgiliana de Enéias e de sua habilidade física é um
célebre exemplo de vigor. Evidentemente, Aquiles também
poderia ser tomado como exemplo. Em todo caso, Arendt ressalta
que mesmo o vigor do indivíduo mais forte, politicamente falando,
sempre pode ser sobrepujado pelo vigor de muitos, visto que o
poder só existe na união dos indivíduos, não como algo que pode
ser mantido dentro do agente ─ logo, não se deve aplicar o
conceito de poder para um indivíduo isolado ou sozinho.
Nesses termos, o poder distingue-se também da força
[force] que: “empregamos no discurso cotidiano como um
sinônimo da violência [...] mas que deveria ser reservada, na
linguagem terminológica, às ‘forças da natureza’ ou à ‘força das
circunstâncias’, isto é, deveria indicar a energia liberada por
movimentos físicos ou sociais’” (ARENDT, 2001, p. 37). A força diz
respeito àquilo que ou escapa ao domínio humano – como os
eventos que ocorrem na natureza – ou que a excede as suas ações
ordinárias – p.ex., a força de uma revolução.
Já com relação ao fenômeno da autoridade [authority],
Arendt de antemão ressalta o esvaziamento do sentido que este
O tema da violência... 255

conceito sofreu (e sofre) no decorrer da história, e que reverbera


não só no campo político, mas em várias esferas da sociedade. A
autora diz que este é um termo do qual se abusa com muita
frequência e, certamente, é o mais enganoso de todos, tanto por
ter sido confundido com o mero autoritarismo quanto pela crença
de que demanda a prática da violência para seu aparecimento e a
coerção para seu pleno exercício. É por isso que Arendt (2009, p.
128) em seu ensaio “Que é Autoridade?” presente no livro Entre o
Passado e o Futuro, chega a dizer que nós modernos, já não
estamos em condição de saber o que foi, nem o que ela é. Mas no
geral, acerca deste fenômeno, a autora comenta em Sobre
Violência que:

pode ser investida em pessoas ─ há algo como a autoridade


pessoal, por exemplo, na relação entre a criança e seus pais, entre
aluno e professor [...] sua insígnia é o reconhecimento
inquestionável [...] nem a coerção nem a persuasão são
necessárias (ARENDT, 2001, p. 37).

Com efeito, esta autoridade pessoal de que fala Arendt,


situa-se num ambiente pré-político e dispensa o uso da persuasão
e a prática do convencimento, pois sua ordem estrutural é
hierárquica devido o reconhecimento do direito e da legitimidade
da ordem dada. À vista disso, a autoridade difere do poder
porquanto exige aceitação e reconhecimento de quem ordena a
quem é ordenado – p. ex. a autoridade de um professor, e não se
assenta no uso da força e da violência – pois estes elementos não
fornecem guarida a autoridade. Todavia, para Arendt o maior
inimigo da autoridade é o desprezo e a maneira mais eficaz de
refutá-la é através do riso, o seu não reconhecimento mais radical.
Assim, Arendt compreende que o conceito de autoridade em sua
acepção política aparece pela primeira vez no horizonte da política
romana – exemplarmente, no modelo do Senado Romano, que
detinha sua autoridade (auctoritas in Senatu) por meio dos
cidadãos que valorizavam a tradição de seus ancestrais e
transmitiam tal reverência aos senadores. A autoridade estava
estritamente ligada à sacralidade da fundação de Roma, a religião
256 Estética e Educação

e a tradição que a transmitia para as demais gerações. Donde a


origem da palavra autoridade que remonta ao verbo “augere”, que
significa aumentar ─ que para os romanos significava engradecer
a experiência da fundação, e crescimento ─ em direção ao passado,
àqueles que vieram antes. Assim, no horizonte romano, a
autoridade tinha suas raízes no passado (gravitas), cujos deuses
não eram menos presentes na cidade do que o poder e a
espontaneidade dos vivos.
Por fim, a violência [violence], por seu caráter instrumental,
surge como o fator por excelência capaz de se contrapor à
imprevisibilidade da liberdade, na medida em que pode sempre
ser colocada à disposição daqueles que estão no comando de um
governo ─ democrático ou tirânico ─ a fim de coagir os indivíduos
e suprimir o espaço da livre discussão. Para Arendt a destruição da
liberdade e do poder é a marca mais evidente da deliberada
introdução da violência na política, gerando assim o isolamento
entre os homens e a eliminação do espaço público. A respeito da
violência Arendt salienta em seu ensaio que:

[...] distingue-se por seu caráter instrumental.


Fenomenologicamente, ela está próxima do vigor, posto que os
implementos da violência, como todas as outras ferramentas, são
planejados e usados com o propósito de multiplicar o vigor
natural até que, em seu último estágio de desenvolvimento,
possam substituí-lo (ARENDT, 2001, p. 37).

Com isto, Arendt indica que a violência contrasta com a


ação política ─ que se dá entre a pluralidade dos homens (inter
homine esse) ─ justamente por seu caráter instrumental que é
capaz de privilegiar o vigor individual e que lhe permite ser
executada à distância conforme um plano traçado em solidão
desamparada. Daí Arendt dizer que a ação violenta na maioria das
vezes depende de implementos e, por esta característica, é sempre
perigosa e imprevisível porque os meios aplicados podem sempre
sobrepujar os fins. Outro fator que leva Arendt a rechaçar o uso
deliberado da violência na política é que a violência pode muito
O tema da violência... 257

bem ser “racional” se ela for eficaz em alcançar o fim que deve
justificar.

17.2 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como Arendt salienta, a violência pode aparecer como um


recurso nos assuntos domésticos contra invasores externos (2009,
p. 38); mas esta lógica não pode ser fortuitamente transferida para
o campo político, tanto porque existe sempre o perigo inerente de
que a violência jamais garanta o resultado adequado, quanto
porque frequentemente os meios utilizados para alcançar os
“objetivos” políticos são de maior importância e preocupação para
o futuro da humanidade do que os próprios objetivos visados.
Para Remi Peeters a especificidade instrumental da
violência revela que:

A ação violenta é completamente governada pelas categorias de


meios e fins e, portanto, inescapavelmente depende de
instrumentos [...] (precisamente como o trabalho de um artesão
precisa de ferramentas). Seguidamente, como uma atividade
essencialmente instrumental, a violência pode derivar sua
responsabilidade ou justificação exclusivamente dos fins para
que serve. Quanto mais remoto o objetivo pretendido é de nós
no tempo, mais difícil é para essa justificativa (PEETERS, 2008,
p. 181)

Por este comentário, a violência pode ser vista como uma


atividade que esta está próxima à do homo faber ─ de acordo com
a terminologia arendtiana ─ o qual se utiliza do mundo não em
vista de sua pluralidade, mas apenas como um artefato para a
confecção de objetos ─ pois seu fazer (um know-how) é
propositalmente instrumental e apartada do mundo. A violência,
de um modo análogo, enquanto pura instrumentalidade que
incide sobre alguma coisa, é muda, i.e., dispensa o uso da palavra
[wordless]. O grande problema engendrado por isto é que
aquele(s) que detêm os meios e/ou os instrumentos da ação
violenta podem ─ seguindo a mentalidade do homo faber ─
258 Estética e Educação

enxergar a política, como um simples campo imperfeito que


precisa ser trabalhado, como as imperfeições de uma madeira
precisam ser aplainadas para se ter uma boa mesa.
Assim, ao transportar para a política a ideia de que ela possa
ser fabricada, por meio de um plano traçado individualmente e em
solidão desamparada, gera-se consequências desastrosas, pois a
autenticidade e a dinamicidade de cada indivíduo, bem como a
contingência dos eventos e das ações humanas correm o risco de
aparecer como meros defeitos que precisam ser corrigidos através
da violência. Não obstante, para autora alemã, aquilo que
necessita de justificação não pode ser nem a essência nem o
princípio de nada, devido ao fato que quanto mais o fim almejado
distancia-se no futuro, mais perde em plausibilidade. Diferente é
o caso do poder, longe de ser um meio para um fim, por sua
própria estrutura é o que possibilita as pessoas a pensar e agir nas
categorias de meios e fins, e que ao ser confrontado, ampara-se a
si mesmo em um apelo ao passado, à sua legitimidade, ou seja, a
sua autoridade.

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XVIII

OS MODERADOS E OS EXTREMISTAS
POLÍTICOS SEGUNDO NORBERTO BOBBIO:
Distinções e Semelhanças

Thélio dos Santos Caudinski*


José Dias**

RESUMO: Direita e Esquerda são conceitos da política que, pelo


próprio movimento político em que um grupo sobrepõe o outro e
vice-versa ao longo da história, muitas vezes são colocados em
questionamento. Norberto Bobbio (1909 – 2004), filósofo italiano,
muito por conta do seu incômodo com as discussões políticas nas
quais dizia-se que a díade política, Direita x Esquerda, havia se
esgotado com a derrocada da Esquerda (portanto, com a
ascendência da Direita, um movimento automático), simbolizada
pela queda do Muro de Berlim e a crise do Socialismo Soviético,
reúne seus textos políticos e organiza a obra coletânea Direita e
Esquerda, razões e significados para uma distinção política (1994).
Bobbio pretende, e o faz, definir o modo pelo qual a díade política
é delineada e como e porquê ela se sustenta. O conceito de
Igualdade é posto como a ideia perene, identificadora e limitadora
do que podemos considerar como Esquerda na política; por outro
lado, a Desigualdade é o conceito responsável por limitar e
identificar o que se entende por Direita política. Bobbio não define
esta organização da política como singular, no sentido de que há
apenas estas posições na política. Pelo contrário, Direita e
Esquerda são polares compostos por outras posições derivadas.
Para ele, a política se organiza no plano horizontal, no qual são
encontradas as ideologias que estão ao extremo (Extrema-
Esquerda sendo o Comunismo, e Fascismo como Extrema-

*
UNIOESTE; E-mail: theliocaudinski@gmail.com.
**
UNIOESTE.
262 Estética e Educação

Direita), ao centro (as Sociais-Democracias, o Socialismo-


Liberalismo, a Terceira Via), as transversais (os Verdes). A partir
desta organização política dada por Bobbio, neste texto estarão em
foco dois Extremos: o Comunismo e o Fascismo. Naturalmente
estes extremistas estão em oposto, em confronto, de modo que
Bobbio, em sua obra, coloca que a união de fato dos dois seria uma
espécie de combinação de terror sem precedentes, e ainda dá o
exemplo do curto e pragmático acordo entre as partes
protagonizadas pela Alemanha Nazista e a Rússia Comunista.
Porém, apesar deste antagonismo extremo, há ainda elementos
comuns entre estas partes, elementos responsáveis por colocarem
estes inimigos lado-a-lado, como a rejeição à democracia, caso
necessário para o alcance dos objetivos desejados. A partir da obra
“Direita e Esquerda” de Bobbio, demonstramos quais são as
características em comum destes extremos; como se comportam
com seus discordantes; em quais situações poderiam ser aliados e
onde e o que o critério de Igualdade-Desigualdade revela sobre os
extremos. Com isto posto, podemos entender com melhor clareza
os momentos como governos totalitários, ditaduras, construíram
um absolutismo político de modo a tolher qualquer significância
de Direita e Esquerda. Porém, que, inversamente proporcional, se
estes grupos de poder tolheram a significância da díade, também
passaram a delinear segundo ao gosto de seus comandantes o que
eram as posições políticas. Só apenas com governos moderados,
organizados democraticamente, é que podemos de fato
compreender a real composição de Esquerda ou Direita.

PALAVRAS-CHAVE: Direita, Esquerda, Totalitarismo, Norberto


Bobbio, Extremos, Centro, Moderados.
Os moderados e os extremistas políticos... 263

18.1 CRITÉRIOS DA ORGANIZAÇÃO POLÍTICA E O


SURGIMENTO DOS GRUPOS

A Política revela características diferentes enquanto objeto


observado e pensado segundo os métodos tradicionais da
Filosofia. Não é algo acabado, pronto, que independentemente do
tempo e das condições possa ser visto da mesma maneira.
Podemos, no entanto, com o apoio da Filosofia, definir períodos,
características, nomear grupos, movimentos e, principalmente,
delinear ideologias e espaços. Estes dois últimos, em especial, são
os maiores elementos da organização da Política responsáveis por
resguardar todos os outros demais elementos de carácter de
identificação. Direita e Esquerda, sem dúvida, são os conceitos
políticos que definiram a organização do meio desde a sua criação
acidental na disposição do Parlamento durante a Revolução
Francesa. Acerca da díade, Norberto Bobbio, em meio a um
momento de amplas discussões sobre a validade destes dois
conceitos, meados de 1990, organiza sua obra coletânea Direita e
Esquerda, razões e significados de uma distinção política (1995).
Com o intuito de defender a validade da organização polarizada
através de Direitistas e Esquerdistas, o filósofo italiano, também
define estes dois polos como espaços na política, e estes espaços
seriam preenchidos com as ideologias segundo o critério da
Desigualdade-Igualdade. Há vida entre estes dois polos, segundo
Bobbio, como o Centro, o Terceiro Inclusivo e o Terceiro Incluído,
a Terceira Via, os Verdes, e como os objetos deste artigo, os
Extremos e os Moderados. Na obra que acompanhamos a defesa
de Bobbio sobre a permanência dos conceitos de Direita e
Esquerda, vemos também os movimentos destes grupos que
compõe o espectro político, como por vezes os Moderados se
comportarão em face a determinados momentos e pautas, como
Extremistas podem por vezes estar muito próximos e repetem o
modus operandi em busca de objetivos a priori distintos. Os
Moderados, aliás, aproximam-se, de um lado e de outro, por
desencanto aos seus ideais no exercício máximo (como quando as
Esquerdas desistem de lutar a todo custo contra o Capitalismo e
264 Estética e Educação

aceitam suas benfeitorias a ponto de aturem apenas visando


correções enquanto possível, as Direitas apoiando a Igualdade
quando a Desigualdade não se revela o melhor a ser seguido). Os
Extremistas, por outro lado, se assemelham na maneira como
atuam em busca da prática total de seus ideais, e por isso por vezes
não se policiarão ao uso da violência, a anti-democracia e o
rompimento com as instituições de Estado. Por aqui serão
identificados como representante da Extrema-Direita, o Fascismo;
e do outro lado, o Comunismo como identificador da Extrema-
Esquerda; dois agentes que, inclusive, tiveram períodos em que
deixaram de ser grupos setorizados para a prática de governo. O
Fascismo, por sua vez, dominou a Europa Ocidental, estando
instalado na Itália, Espanha, Portugal e, principalmente,
Alemanha, encarnando a sua versão mais mortífera, o Nazismo.
Na Rússia e demais países (Leste Europeu e entre outros) que
formavam o bloco conhecido como União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas, encontramos o socialismo-científico que
levou a cabo o entendimento do Comum, da Igualdade comum a
todos, portanto, o Comunismo. Além da exposição e pensamento
sobre a filosofia que Norberto Bobbio tem sobre estes elementos,
cabe aqui analisar a possibilidade de se identificar ou, mais
precisamente, investigar a possibilidade de existência e
organização de outros grupos políticos segundo a díade Direita e
Esquerda nestes regimes autoritários, e se é possível a existência
destes grupos, como é que se apresentam.
Norberto Bobbio (1909 – 2004), seja ocupando a cadeira de
professor de filosofia do direito, seja na cadeira de filosofia
política, manteve preocupação em fazer de sua produção filosófica
sempre conectada com o que se debatia no momento, com o que
estava acontecendo nas sociedades organizadas. No âmbito
político, que é o que nos interessa aqui, Bobbio atravessou em vida
todos os regimentos autoritários da Europa e da Ásia, como os
objetos deste estudo (Comunismo e Fascismo). Isto nos faz
entender com mais precisão o pensamento do autor em virtude de
que não apenas este analisa os argumentos e desenvolvia uma
espécie de filosofia esterilizada, pelo contrário, Bobbio
Os moderados e os extremistas políticos... 265

acompanhava o discurso e a prática. Quando se discute política,


manter estes dois polos é fundamental, em virtude de que neste
âmbito o que é desejado são os efeitos práticos que o poder
provém. Isto nos leva ao recorrente problema da linguagem, mais
específico do homem que, diferente do animal que possui apenas
duas categorias operacionais, a de percepção do mundo e a de
reação, o homem vai além e inclui a categoria da linguagem,
operada por simbologia, onde encontramos os discursos e etc. A
política é fruto deste terceiro elemento, próprio dos homens, é um
departamento que concentra ideias com vistas a produzir uma
reação exigida pelo mundo, ainda que em muitas vezes cria
problemas próprios. No aprofundamento das relações políticas
que o homem constrói, e que, a princípio, deveriam estar atentas
a resolver os problemas das demais relações entre os homens
oriundas do conviver social, nota-se que a política desenvolve uma
lógica e uma linguagem específica dela. Quando então, assinala-
se a proximidade de Norberto Bobbio seja com a política em
profundo, com a sua linguagem, sua lógica, e então a também
proximidade com os efeitos da política, revela-se justamente esta
disparidade entre o discurso e as suas consequências.
Esta disparidade é fundamental na análise política quando
pretendemos delinear as posições e ideologias. É muito comum
que se utilize fatos, para determinar a posição política dos agentes
em questão. Isto, no entanto, deve percorrer a mesma lógica qual
o espectro está determinado, e não apenas como fato e
consequência. Por exemplo, na disputa do controle da União
Soviética, não se pode dizer que Stalin por acaso estava mais a
Direita ou a Esquerda quando decidiu derrubar seu inimigo
Trotsky. Ou quando Stalin e Hitler, exemplo, aliás, utilizado por
Bobbio, firmaram um acordo de não-agressão em 23 de agosto de
1939, que passava longe de qualquer afinidade ideológica, e sim
visava apenas o movimento pragmático contra Ocidente, como
Joseph Goebbels apontou em fevereiro de 1940: "Uma guerra em
dois fronts – a nossa grande perdição – é coisa do passado. Agora
a nação alemã vai se voltar exclusivamente para o Ocidente. É para
lá que dirigimos as nossas metas, todas as nossas esperanças e,
266 Estética e Educação

também, todos os nossos desejos". Após isto, os Nazistas


marcharam sobre a Bélgica, Holanda, Luxemburgo e a França. Em
22 de Junho de 1941, de surpresa, Hitler bombardeou territórios
Comunistas, revelando, então, que suas intenções eram
puramente pragmáticas e estratégicas na busca pelo poder, longe
de qualquer afinidade ideológica.
O que, no entanto, pode ser condição para a utilização de
um fato político como argumento de definição de
posicionamento, é se acaso esta ação tem como objetivo reforçar
o critério delineador de Direita e Esquerda. Tal critério, é o da
Igualdade-Desigualdade, como Bobbio define. A Esquerda se
organiza a partir do entendimento de que os homens têm muito
mais elementos que os tornam mais iguais do que desiguais, e toda
desigualdade que por acaso é artificial, deve ser combatida. A
Direita, por outro lado, entende que os homens são, ao natural,
muito mais desiguais do que iguais e, que, inclusive esta
desigualdade natural aos homens é elemento fundamental para
proporcionar crescimento econômico, da mesma maneira, que é
impossível defender um ideal de igualdade econômico em virtude
de que os homens são em si diferentes. Acompanhamos este
critério operando em várias outras situações, como a de
imigrantes, onde, em geral, o político de Direita entenderá que o
imigrante tem menos direitos que um cidadão natural do país,
como pode-se verificar com a eleição e o governo de Donald
Trump, do Partido Republicano, nos Estados Unidos da América,
que, como amplamente defendido, tem como sua bandeira um
rigor maior no controle de imigrantes e, até, a defesa da
construção de um muro na fronteira do México, a proibição da
entrada sumária de povos de países considerados perigosos, entre
outras medidas. Este pensamento contra a imigração é
consequência do pensamento de que americanos naturais tem
preferência, por exemplo, a um emprego, a serviços estatais que
são providos pelo país. Neste caso, americanos naturais são mais
iguais entre si, e os imigrantes menos iguais que americanos. Tese
contestada frontalmente pela esquerda que entende que a priori
encontra-se a condição de humano, a revelia de onde nasceu.
Os moderados e os extremistas políticos... 267

Apesar que, por outro lado, governos de Extrema-Esquerda


sempre consideraram aqueles burgueses locais como uma espécie
de inimigo a ser derrotado para a soberania do proletariado.
Com este critério é possível dividir o campo político com
maior clareza, inclusive definir aqueles que se propõe a levar o seu
ideal a ferro e fogo, ou estão abertos a abrirem mãos de defesas
sobre pautas que, ou não parecem relevante, ou sua ideologia pura
não é capaz de dar conta dos problemas revelados, mas
principalmente estão dispostos em manter um sistema
democrático de alternância entre um lado e outro. Este último
caso é o que desenha a forma dos Moderados, grupo que abre mão
da defesa intransigente do conceito que determina a sua posição
política (Igualdade ou Desigualdade) em favor de uma
convergência política que mantenha a organização do jogo
democrático. Dos moderados surgiu a Social Democracia como
uma espécie de centro-esquerda, o Socialismo Liberal, a Terceira
Via e entre outros movimentos que por acaso podem se nomear
como tal. Inclusive, com o fracasso do Fascismo, os grupos
moderados de Esquerda atingiram seu maior sucesso na Europa
representados pela Social Democracia (a grande convergência
entre a força do mercado e a atuação forte do Estado provendo
assistência pública), que se espalhou pelo Velho Continente
determinando a tendência dos novos governos, como foi o de Olof
Palme (1927-1986) enquanto Primeiro-ministro da Suécia,
responsável por um dos governos mais lembrados da Social
Democracia. Curiosamente ou não, Olof foi assassinado enquanto
saía de um cinema em Estocolmo. O homicida nunca foi
identificado, mas há defesas de que foram grupos terroristas de
extrema-direita da Suécia.
O fato de a suspeita do homicida de Olof Palme ser da
extrema-direita ou que foi algo planejado por um grupo deste
posicionamento político, pode ser posto como um apoio do
entendimento de Bobbio ao pensar que os extremistas não estão
apenas fundados na absoluta oposição entre um lado e outro, e
sim que a sua oposição é também forte aos Moderados,
produzindo a díade da moderados-extremistas. Esta distinção não
268 Estética e Educação

é da mesma origem que determina o polo Direita e Esquerda, a


qual é determinada por objetivos últimos, e sim separa grupos que
abrirão mão da transformação radical do atual estado de coisas em
favor da democracia. Tanto os grupos de Esquerda, quanto de
Direita, ao extremo, são favoráveis em abrir mão da democracia
quando esta está no caminho de suas revoluções (e por revoluções,
entende-se também as contrarrevoluções). Este um dos critérios
que apesar dos objetivos de uns e outros, aproximam extremistas
na ação contra os moderados.

18.2 DOS CRITÉRIOS DE DISTINÇÃO ULTERIORES


Bobbio também constrói o argumento do entendimento da
história, passado e futuro, de cada grupo, como um critério que os
aproxima. Segundo o entendimento que os extremistas primam
pelas revoluções, na completa ruptura ao estado atual das coisas,
Bobbio afere que estes grupos entendem a história não como
linear, e sim com altos e baixos revelando as rupturas constantes,
e sempre produzem profecias com a necessidade de revoluções e
contrarrevoluções, como se houvesse um momento em que
absolutamente tudo devesse ser mudado porque não havia
condições de se continuar como estava. Da mesma maneira o
Fascismo ergueu-se pelo sangue, e pelo sangue ruiu; as revoluções
comunistas da Rússia e China que determinaram a ruptura e a
colocação do antes e depois, sendo a primeira com sua derrocada
motivada pela própria estrutura e a segunda sofrendo fortes
alterações e entregando-se ao capitalismo. Estes mesmos
extremistas foram os responsáveis pela Segunda Guerra Mundial
que tinha como objetivo implantar as revoluções no maior
número de lugares possíveis.
A rejeição a democracia por parte dos extremistas de
Direita e de Esquerda, não se dá apenas por um entendimento
simples, e sim composto. A democracia é comumente lembrada
como uma espécie de estado de espírito puro que toma os homens,
ou talvez uma espécie de joia rara que necessite ser preservada, o
que distancia da real democracia que é a prática entre os
indivíduos, prática delineada por conceitos como a tolerância,
Os moderados e os extremistas políticos... 269

prudência, a mediação, a razão calculadora, elementos


constituintes do mercado das ideias da política no ambiente
democrático. Todas estas características que constroem a
democracia de fato, a própria democracia os mantém, são
confrontados pelo ideal de homem heroico e corajoso que em
geral é mantida pelos extremistas. Como a democracia é composta
por aqueles que pretendem estar sempre na justa medida, o meio,
e partir daí se cria a mediocracia, é deste momento que os
extremistas lançam seus ataques aos moderados e a democracia
como pertencentes a um ethos pejorativo mercantilista que ao
extremo deve ser suplantado.
Para Bobbio, este momento em que os extremistas
pretendem suplantar a democracia e todos aqueles que fazem
parte da mesma, é marcado pela violência na intenção de produzir
uma nova ruptura e sempre com carácter revolucionário e
purificador, uma vez que o entendimento destes grupos Fascistas
ou Comunistas, veem nos até então democratas uma espécie de
homens de classe inferior ao ideal justo e heroico.

18.3 É POSSÍVEL IDENTIFICAR DIREITA E ESQUERDA NO


TOTATALITARISMO?

Ainda que Norberto Bobbio defina critérios diferentes para


definir a díade Direita e Esquerda e por outro lado Moderados e
Extremistas, ideal de Igualdade e Desigualdade para os primeiros,
respeito a democracia para os segundos, não há como não
assinalar que apenas no ambiente democrático é que se pode
organizar a política de fato entre dois lados. O Fascismo e o
Comunismo, em sua total prática, excluem a democracia formal
que é o inimigo em comum, onde na qual é possível verificar a
alternância entre um lado e outro. Por outro lado, representam a
díade no modo mais agudo possível ao excluir o inimigo comum e
reproduzirem suas características fundamentais que os definem
enquanto de Direita ou de Esquerda, ou seja, levam ao extremo o
entendimento sobre a Igualdade e a Desigualdade. Como na União
Soviética em que a Igualdade era o Sagrado, e quem fosse qualquer
270 Estética e Educação

sinal de ameaça, sofria as mais terríveis punições que variavam a


simples fuzilamentos até os terríveis Gulag’s. Da mesma maneira
Hitler mantinha-se focado na sua política de Desigualdade entre
raças e povos que culminaram em políticas de caça a grupos e
posteriormente os campos de concentração.
Bobbio finaliza sua discussão sobre os extremistas e os
moderados no capitulo de Direita e Esquerda, definindo que a
união entre Comunismo e Fascismo seria o que de mais
monstruoso a sociedade poderia enfrentar, mas que esta união não
poderia ser realizada como por vezes moderados e extremistas se
aliaram com vistas a uma vitória maior — como foi no Fascismo
Italiano que as direitas uniram-se em busca da vitória sobre as
Esquerdas — por exatamente serem Fascismo e Comunismo as
práticas que mais evidenciavam as diferenças entre Direita e
Esquerda no que se refere aos seus fins.

18.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Apesar do novo critério de distinção e de formação dos


Extremistas em relação aos Moderados, isto não é suficiente para
a quebra tradicional da Esquerda e Direita, isto significa, que
apesar do que muitas vezes possa conter no discurso dos
extremistas, como analisamos, acerca do rompimento com o
sistema democrático. Apenas reafirmam a díade. Para um
Extremista de Direita, qualquer coisa que está consideravelmente
distante dele, é de Esquerda. A hegemonia é o norte dos
extremistas, e isso acaba por ir frontalmente a manutenção
democrática, entendida como espaço e possibilidade de atuação
de práticas políticas inimigas. Como também se acompanha na
outra obra de Bobbio, Ideologias e o Poder em Crise (1999), a
ocorrência daqueles dissenciantes em relação ao atual sistema de
poder, pode incorrer também numa atuação que não aceitem
grupos contrários a ele ainda que nasçam perante a liberdade que
permite a sua formação. Há ainda os consensos que são
obrigatórios e que pode ser entendido não exatamente como um
consenso deliberado de modo descentralizado, e sim induzido
Os moderados e os extremistas políticos... 271

coercivamente. Deste modo, compreende-se que apesar da luta


contra a democracia dos Extremistas, eliminando o espaço de
atuação de Direita e Esquerda moderada, a díade permanece.

REFERÊNCIAS

BOBBIO, Norberto. Direita e Esquerda, razões e significados de


uma distinção política. 3ª. Ed. São Paulo. Editora Unesp. 2011.

BOBBIO, Norberto. Ideologias e o Poder em Crise. 4º Ed. Brasília.


Editora UNB. 1999.

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia, uma defesa das


regras do jogo. 6ª Ed. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1986.

KINKARTZ, Sabine. 1939: Assinado o Pacto de Não Agressão.


Disponível em: <http://www.dw.com/pt-br/1939-assinado-o-
pacto-de-n%C3%A3o-agress%C3%A3o/a-615078> Acesso em 20
de maio de 2018.
XIX

SCHOPENHAUER EM “A GUERRA DOS TRONOS”


Aproximações de conceitos filosóficos de Arthur Schopenhauer no
universo de “As Crônicas de Gelo e Fogo”, de George R. R. Martin

Felipe Belin*
Ademir Menin**

RESUMO: No estudo da filosofia do pensador alemão do século


XIX, Arthur Schopenhauer, destaca-se, às primeiras impressões de
quem a estuda, seu pessimismo perante vários problemas
filosóficos, como o conhecimento, a metafísica, a religião, as
relações humanas, a vida. Tendo isto observado, buscou-se na
cultura pop – tão presente em nossa sociedade – uma relação com
o elemento pessimista, e serão realizadas aproximações entre este
e outros conceitos da filosofia schopenhaueriana com o universo
fantástico da saga de livros As crônicas de gelo e fogo, escrita por
George R. R. Martin (e adaptada como seriado televisivo, pelo
canal estadunidense HBO, para Game of Thrones), sobre o que se
percebe de comum em toda a história, alguns acontecimentos
específicos e as personalidades de certas personagens. O mundo
de As crônicas de gelo e fogo se assemelha a outras narrativas de
fantasia em muitos aspectos: características semelhantes à época
medieval, existência de reinos, famílias, títulos de nobreza,
diferentes culturas, religiões, línguas, seres mágicos. Contudo,
nota-se algo em comum no decorrer dos fatos na saga: a
desproporção nas reações (entre personagens ou grupos); as
expectativas de planos, criados pelas personagens (e pelos
leitores) banalmente destruídos ilustram um pessimismo – aqui
caracterizado como o de Schopenhauer – cujo clima chega a
provocar desgosto, decepção e até horror no expectador, e que

*
UNIOESTE; E-mail: felipebelin@hotmail.com.
**
UNIOESTE.
274 Estética e Educação

pode ser claramente visto em uma das frases slogan da série de TV,
que muito diz da história: “no jogo dos tronos, ou se vence, ou se
morre”. Além disso, alguns fatos e personagens evidenciam
conceitos mais específicos da filosofia schopenhaueriana neles
próprios, como as constantes disputas pelo Trono de Ferro e a
trajetória da menina Arya Stark (com seu processo de
transformação em Ninguém). O que pode haver de aproximação
com conceitos do citado filósofo alemão são suas concepções de
impossibilidade de uma felicidade completa no decorrer da vida
do homem; a noção de nosso constante estado de dor ou tédio
perante as situações cotidianas; a Vontade cega da natureza, que
independe dos desejos ou esperanças do homem; a valorização do
momento presente desapegada do passageiro ou de aguardo de
um mundo vindouro. Usaram-se como base para o
desenvolvimento desta pesquisa obras de Schopenhauer (com
foco principal em O mundo como vontade e como representação);
os livros de George R. R. Martin, da coleção As crônicas de gelo e
fogo; obra de relação deste universo de Martin à Filosofia de modo
geral (de coleção que liga a Filosofia com vários livros, filmes e
seriados da cultura pop); e obra que aproxima conceitos da
filosofia de Schopenhauer a outro elemento popular, as histórias
em quadrinho dos Peanuts (das personganes Snoopy, Charlie
Brown). Com estas pesquisas, percebem-se vários conceitos
descritos pelo pensador alemão na nomeada obra de Martin (e na
produção da HBO), explicando e até norteando fatos e ações de
personagens no decorrer da história épica.

PALAVRAS-CHAVE: Schopenhauer; pessimismo; Guerra dos


Tronos

O filósofo Arthur Schopenhauer (1788 – 1860) é conhecido


pelo pessimismo de seu pensamento, elemento que será aqui
desenvolvido e ligado à saga de livros As Crônicas de Gelo e Fogo e
à sua adaptação como série televisiva, Game of Thrones, entre
outros aspectos de relação entre as duas obras. Primeiramente,
será feita breve e geral explicação sobre a filosofia de
Schopenhauer em “A Guerra dos Tronos”... 275

Schopenhauer. Depois, discorre-se introdutoriamente sobre A


Guerra dos Tronos, e, por fim, das relações feitas.
Para introduzir o pensamento schopenhaueriano, iniciarei
por sua distinção entre sujeito e objeto. O sujeito é o que tudo
conhece, não é conhecido (por nenhum dos objetos), está fora do
tempo e do espaço, é espectador externo; ordena o mundo –
sensações e pensamentos – por meio de categorias (que
Schopenhauer resume a apenas uma, a da causalidade: o sujeito
constrói seu mundo pelo princípio da causalidade e usando-se de
tempo e espaço). O objeto é o que é conhecido, pela causalidade,
através das formas a priori espaço e tempo (aqui, Schopenhauer é
kantiano). Sujeito e objeto são inseparáveis para o conhecimento,
um não existe sem o outro para tal fim; estes dois elementos
constituem, portanto, conceito fundamental do filósofo, o de
representação.
Sobre isso, na primeira frase de sua obra máxima, O mundo
como vontade e como representação, escreve Schopenhauer: “O
mundo é minha representação” (SCHOPENHAUER, 2005, p.43).
Eu, sujeito, com o meu modo de conhecer, sou quem faço o
mundo. Nas seguintes linhas, o homem “não conhece sol algum e
terra alguma, mas sempre apenas um olho que vê um sol, uma mão
que toca a terra”; para o alemão, não há verdade maior ou mais
flagrante que esta. As representações podem, então, ser expressas
em conceitos. (São análogas aos fenômenos kantianos)
Justificando o título da sua principal obra, falo, agora, do
mundo como vontade de Schopenhauer. Vontade é a essência
íntima (das coisas), é irracional, como parte da natureza, não se
explica em representações, é o acaso, o ímpeto cego e irresistível.
É força que tudo arrasta, e pela qual estamos cercados. Seu
conhecimento é possível enquanto intuição e imediação, sem
conceitos. (A Vontade pode ser comparada ao númeno de Kant,
contudo, em Schopenhauer, é possível conhecê-la por
determinadas vias, enquanto, para Kant, seu acesso é impossível).
Para Schopenhauer, o mundo é vontade e representação
simultânea e exclusivamente. No indivíduo, em sua percepção do
mundo, também há estas duas faces do mundo; e, na suspensão
276 Estética e Educação

da dualidade sujeito-objeto (que é a própria representação), resta


a vontade. Ela é, “contudo, sempre de algo; ou seja, ela precisa de
um alvo para seu esforço” (RAMON, 2017, p.44); é irracional, e,
portanto, sem fundamento.

O ato isolado de um indivíduo precisa de um motivo e não


representa, completamente, a sua vontade. [...] Esse esforço da
vontade é contínuo e nunca pode ser realizado ou satisfeito por
completo, o que implica em dizer que qualquer satisfação do
indivíduo é o início de uma nova busca. Por isso é possível
afirmar que se cada ato particular possui uma finalidade, a
vontade mesma não possui nenhuma. (RAMON, 2017, p.44)

A partir desses problemas, Schopenhauer parece começar a


apontar o aspecto pessimista de seu pensamento. Há, então, o
desejo do indivíduo em relação a um objeto. Esse desejo é
carregado de dor (não física, necessariamente), é sofrimento. Em
determinado momento, pode haver a satisfação deste desejo, que
é momentânea e, mesmo se feliz, é negativa. Depois desse breve
instante de prazer, advém, pelo desejo saciado, o tédio; além de
outros objetos que surgem como novos desejos, tornando esse
movimento cíclico – ou pendular. Agora, mais claramente,
observa-se, sob a ótica schopenhaueriana, uma insatisfação eterna
no homem; há, em suas ações, constante conflito e laceração; aqui
caracterizado como pessimismo filosófico. Exemplos deste
pêndulo podem ser encontrados cotidianamente, na vida pessoal
e no convívio social, como cita o autor de O mundo como vontade
e como representação nesta obra: o mendigo que recebe uma
moeda em um dia, mas continua miserável no dia seguinte
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 266) ou, como aqui proposto, na obra
do escritor George R. R. Martin.
A respeito de outros conceitos da filosofia de
Schopenhauer: segundo ele, o homem deve buscar a anulação da
vontade, e, assim, atingir sua ascese. Tal anulação, a respeito do
conhecimento, principalmente, se dá de diversas formas (como
pelas vias ética e estética); contudo, explicarei este conceito
propriamente. A anulação da vontade, o nada-querer, pode ser
Schopenhauer em “A Guerra dos Tronos”... 277

relacionado ao nirvana budista (lembremos que Schopenhauer


tem muita influência das filosofias orientais no desenvolvimento
da sua).

O nirvana é justamente o nada-querer, é uma libertação da


individualidade, da vontade e de suas imposições. E essa
libertação da vontade não coincide necessariamente com a
morte, ainda que a libertação total só possa vir quando o corpo
deixa de viver. [...] cedemos facilmente aos desígnios do querer
viver. E um destes desígnios é lutar, inutilmente, para eliminar a
dor do mundo; luta que nos leva ao absurdo da vida” (RAMON,
2017, p.49)

Finalizada a primeira parte, de curta introdução ao


pensamento de Schopenhauer e à presença do pessimismo no
desenvolvimento de alguns de seus conceitos, introduz-se a obra
do escritor estadunidense George R. R. Martin, As Crônicas de Gelo
e Fogo, e à adaptação como seriado televisivo, produzido pela rede
também estadunidense HBO, Game of Thrones. Ambos são a
mesma história, salvo algumas alterações (além das temporadas
que avançaram os livros, cronologicamente).
Até hoje, foram publicados cinco livros da saga, traduzidos
como: A Guerra dos Tronos, A Fúria dos Reis, A Tormenta de
Espadas, O Festim dos Corvos, e A Dança dos Dragões; enquanto
há, já lançadas, sete temporadas de Game of Thrones (nome
original do primeiro livro). Para uso geral de referência ás obras,
usarei A Guerra dos Tronos, termo que mais me parece abrangê-
las todas.
Neste universo criado na literatura por Martin, as estações
podem durar períodos muito longos – meses, anos, décadas, ou até
gerações. Há continentes, regiões, seres humanos e fantásticos
(apesar destes, creio eu, não serem o foco da saga), com suas
organizações políticas, sociais, econômicas, culturais (religiosas,
linguísticas, literárias) filosóficas, históricas, geográficas
(climáticas). De modo geral, semelhantemente a outras séries de
livros, como O Senhor dos Anéis, A Guerra dos Tronos tem muitas
características medievais de nosso mundo e de nossa história.
278 Estética e Educação

Já adentrando mais neste mundo de Martin (considerando


que este autor tem outros mundos ficcionais criados), grande
parte da trama se passa no continente de Westeros, dividido em
Sete Reinos, governado por um rei, localizado na capital, Porto
Real, apoiado por diversas famílias (principais e menores), com
relações de suserania, vassalagem – subjugação em troca de
proteção, entre outros elementos. Enquanto, além de algumas
fundamentais cidades a leste de Westeros (as Cidades Livres), está
o continente de Essos, com diferentes configurações sociais e
políticas, como a existência de escravidão e tráfico de escravos,
governos totalitários.
Sobre a impossibilidade de felicidade em A Guerra dos
Tronos, traz-se alguns fatos da sua história: como já dito, Westeros
é governado por um rei; ele exerce suas funções no Trono de Ferro,
formado pela forja de todas as espadas dos inimigos vencidos do
primeiro governante de todos os Sete Reinos, Aegon Targaryen.
Desde então, a dinastia dos Targaryen ocupa o trono. Anos antes
do início da história no primeiro livro, houve uma rebelião para a
tomada do poder, liderada por Robert Baratheon e seus aliados,
diante, dentre outros motivos, da afirmação da loucura do rei e de
sua incapacidade de governar. Assim, no início da narração de
Martin, Robert é rei.
Chama a atenção uma frase confidenciada a seu amigo e,
neste momento, sua Mão (auxiliar no governo), Eddard Stark:
“Juro-lhe, nunca me senti tão vivo como quando estava ganhando
este trono, nem tão morto como agora que o possuo.” (Martin, A
guerra dos tronos, Leya Brasil, 2010), que nos remete ao pêndulo
da existência schopenhaueriano, no qual está o homem. Robert
vive intensamente ao desejar – e sofrer por desejar – sentar-se
sobre o Trono de Ferro; e, depois que o conquista, se vê como
morto, que envelhece e engorda, não mais governa, apenas bebe e
festeja: está entediado depois da satisfação de seu desejo.
Eddard Stark é uma personagem muito importante no
decorrer da saga. No desempenho de suas funções como Mão-do-
Rei (cargo ao qual foi convidado por seu amigo, Robert), descobre
que os filhos dele com sua esposa, a rainha Cersei Lannister, são,
Schopenhauer em “A Guerra dos Tronos”... 279

em verdade, ilegítimos – os três são frutos de incesto da rainha


com seu irmão. A revelação de Eddard chega aos ouvidos de Cersei
antes de causar maiores burburinhos na capital, e, em uma
conversa entre os dois, a mulher diz uma frase que acabou
tornando-se slogan da série: “Quando se joga o jogo dos tronos,
ganha-se ou morre.” (MARTIN, 2010, p.346) Nela, podemos notar
um grande pessimismo, uma desesperança em relação a uma vida
confortável, sabendo que se se ganha o jogo dos tronos, não há
felicidade (como exemplificado no reinado de Robert). “Ao jogar
o jogo dos tronos, arrisca-se a possibilidade de perda total [morte]
pela possibilidade de ganho limitado [vencer], mas vencer o jogo
pode levar a um resultado infeliz” (SILVERMAN, In: JACOBY,
2012, p.87). A visão de Schopenhauer da felicidade se assemelha
muito a esta exposta, que é, de fato, praticamente impossível, para
ele, a satisfação é essencialmente negativa.
A saída encontrada pelo filósofo alemão está no dito nada-
querer, que será assemelhado a determinadas partes da trajetória
da personagem Arya Stark.
A filha de Eddard Stark é dotada de uma enorme força vital,
e é personagem muito ativa na saga. Mesmo menina – ainda aos
nove anos – foge de Porto Real, usa de uma espada ganhada de
presente do irmão para assassinar um menino, passa certo tempo
como empregada na cidade de Harrenhal, e, fascinada com a
capacidade de um prisioneiro, Jaqen H’ghar, de mudar de face
magicamente, vai a Braavos, em Essos, em busca deste
conhecimento. Lá, entra em um processo, do qual, ao sair, se
tornará Ninguém, e assim será capaz de ter quaisquer rostos. Na
Casa dos Homens Sem Rosto, Arya passa pelos passos de 1. deixar
seu passado para trás e 2. viver alguns desafios para seu
crescimento e evolução (como ficar cega por determinado tempo,
e ter que assassinar alguém), mas ainda não passa pela etapa de 3.
celebrar seu renascimento com lembrança de seu verdadeiro eu.
A busca de Arya em tornar-se Ninguém, literalmente,
pessoa nenhuma, pode ser análoga à proposta de Schopenhauer
do dever humano de negação da vontade. “Ninguém” não tem
desejos, não está submetido à vontade, está em harmonia com a
280 Estética e Educação

natureza, e abre-se à força cega de poder ser qualquer outro


alguém.
Nas demais complexas personagens e concatenação de
fatos e acontecimentos no universo de A Guerra dos Tronos, é
notável certo pessimismo de Martin. O leitor e o espectador
contemplam a obra e criam expectativas quanto ao decorrer da
história, mas são constantemente esmurrados com infelicidade,
destruição, e morte, que parecem, afinal, ser a vontade
schopenhaueriana. Contudo, o próprio pensamento do filósofo
pode responder a esse incômodo do apreciador desta obra, pois,
para ele, não devemos projetar no futuro muitas esperanças, “o
que nos vale, de fato, é apenas o presente. Não pode ser nem o
futuro nem o passado. Estes só aproximarão de nós a nossa
inevitável e indesejável companheira: a angústia” (RAMON, 2017,
p.52), sentimento notado não necessariamente na obra ou nas
personagens de A Guerra dos Tronos, mas vivido a todo o
momento por quem a lê ou assiste. Por fim, sobre a importância
de viver o presente, finalizo com um questionamento de
Schopenhauer:

Por que haveria de ser insensato preocupar-se sempre em


usufruir ao máximo o presente único e seguro, se a vida inteira
não passa de um fragmento maior do presente e como tal é
absolutamente efêmera? (SCHOPENHAUER, 2001, p.11).

REFERÊNCIAS

JACOBY, Henry (org.). A guerra dos tronos e a filosofia. Trad.


Patrícia Azevedo. Rio de Janeiro: BestSeller, 2012.

MARTIN, George R. R. A guerra dos tronos. Trad. Jorge Candeias.


São Paulo: Leya, 2010. (As crônicas de gelo e fogo; 1)

RAMON, Marcos. A estética da angústia: uma aproximação entre


Schopenhauer e os Peanuts. Brasília: edição do autor, 2017.
Schopenhauer em “A Guerra dos Tronos”... 281

SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de ser feliz: exposta em 50


máximas. Org. Franco Volpi; Trad. Marion Fleischer, Eduardo
Brnadão e Karina Jannini. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

_______. O mundo como vontade e representação. Trad. Jair


Barbosa. São Paulo: Editora UNESP, 2005.
XX

SER, VERDADE E ARTE


a arte como abertura do ente na
totalidade, no pensamento heideggeriano

Giovani Augusto dos Santos*

PALAVRAS-CHAVE: fenomenologia-hermenêutica; arte;


verdade; ser.

No caminho filosófico de Heidegger, foi sempre a questão


do ser que esteve em jogo. Desde seus primeiros estudos em
filosofia, mais especificamente desde que leu o livro Sobre a
Múltipla Significação do Ente Segundo Aristóteles, de Franz
Brentano, Heidegger se perguntava qual era a significação do ser,
se os entes se manifestam de diversas formas (CASANOVA, 2015).
Em sua Ontologia Fundamental, a saber a obra Ser e
Tempo, o filósofo retoma a questão do ser, considerada por ele
fundamental na filosofia, pois somente a partir deste
questionamento, esquecido e negligenciado pela tradição
filosófica, é que todas as outras questões podem ser colocadas
(HEIDEGGER, 2015).
Diante disso, cabe a nós perguntarmos: o que Heidegger, o
filósofo do ser, tem a dizer sobre arte? É justamente neste ponto
que este trabalho focará, demonstrar que, não deixando de lado o
que o filósofo considerava a questão fundamental da filosofia,
também se preocupa pela arte.
Isso pode ser percebido em diversas preleções e
conferências que Heidegger ministrou, publicadas
posteriormente. Entre estas obras destaca-se o livro A Origem da
Obra de Arte (HEIDEGGER, 2005), texto que é o fundamento para
esta nossa reflexão.
*
UNIOESTE; E-mail: santos.gio@live.com.
284 Estética e Educação

Na referida obra de Heidegger, encontramos um


afastamento das concepções filosóficas que dominavam o
pensamento vigente. Estas concepções compreendiam a arte
como um campo específico de produção, conhecimento e reflexão
(Duarte, 2008).
Em seu texto, o autor não pretende escrever um tratado
sobre estética, ou mesmo questionar o belo, seu objetivo está
muito mais relacionado a Obra da Arte, como já evidencia-se pelo
título, com a origem da obra de arte.
E o que é origem? "Origem significa aqui aquilo a partir do
qual e através do qual uma coisa é o que é, e como é"
(HEIDEGGER, 2005, p. 11), responde o filósofo. E ao que uma coisa
é o que é, é chamado de essência, portanto a origem é proveniente
da essência de algo. Sendo assim, perguntar sobre a origem da
obra de arte é, antes de tudo, indagar seu caráter essencial.
É importante destacar que no pensamento de Heidegger,
essência ganha um sentido específico, que se distancia do sentido
de essência presente na tradição filosófica. Heidegger, utiliza
essência, geralmente, em sentido verbal, visando “a exposição das
condições ontológicas da possibilidade dos fenômenos em geral e
sua estrutura” (STEIN, 2002, p. 16). Assim, essência nada tem a ver
com características quiditativas.
Desta maneira, o filósofo passa a buscar o caráter essencial
da obra de arte, e aponta que, usualmente, a origem da obra de
arte é relacionada ao artista, afinal a atividade do artista cria a
obra. Não obstante, o artista só pode ser o que é justamente
através da obra de arte
Por esta concepção normal da origem da obra de arte,
Heidegger aponta a existência de um círculo, haja vista que a obra
de arte é a origem do artista e o artista é a origem da obra de arte.
O filósofo, ainda aponta que a origem, tanto do artista
quanto da obra de arte, pode dar-se pela arte. Consequentemente,
questionar a origem da obra de arte é, em última instância
perguntar pela origem da arte, entretanto, mais uma vez cai-se em
um círculo, pois, a arte encontra-se na obra de arte e a obra de arte
tem sua origem na arte.
Schopenhauer em “A Guerra dos Tronos”... 285

Nem mesmo uma observação comparativa entre obras de


artes pode nos dizer o que é arte, pois não temos uma
compreensão prévia do que é arte, e assim não podemos julgar se
o que colocamos em comparação são realmente obras de artes
(HEIDEGGER, 2005).
Por fim, o autor diz que nem mesmo uma dedução de
conceitos superiores pode dar uma resposta a essência da arte,
sendo assim, o único caminho existente é percorrer o círculo no
qual nos encontramos:

O que não é nem um expediente ante a dificuldade, nem uma


imperfeição. Seguir este caminho é que é a força, e permanecer
nele constitui a festa do pensamento, admitindo que o
pensamento é um ofício (Handwerk) (HEIDEGGER, 2005, p. 12).

Dito isso, Heidegger (2005), inicia a caminhar neste círculo


e o primeiro passo que ele dá é em direção ao caráter de coisa (das
Dinghaft), que todas obras possuem. Caráter este que nem mesmo
pela experiência estética da obra de arte pode ser retirado.
Não obstante, Heidegger ressalta que a obra de arte é ainda
algo de outro para além de seu caráter de coisa: "Este outro, que lá
está, é que constitui o artístico. A obra de arte é, com efeito, uma
coisa, uma coisa fabricada, mas ela diz ainda algo de diferente do
que a simples coisa é" (HEIDEGGER, 2005, p. 13).
Para saber se a obra de arte é uma coisa que possui este algo
outro, o filósofo diz que é necessário, primeiramente, examinar o
caráter coisal da obra, e para isto é necessário saber
suficientemente o que é uma coisa.
Mas, afinal, o que é coisa? Em nosso caminho é
fundamental que este conceito, tão vulgar por ser largamente
utilizado, seja definido, pois, assume caráter diferencial na
concepção heideggeriana. Portanto, para nós, como diz o próprio
filósofo, interessa: "conhecer o ser-coisa (Dingsein), a coisidade da
coisa (die Ding heit). Importa experienciar o carácter coisal (das
Dinghaft) da coisa" (HEIDEGGER, 2005, p. 14).
Heidegger nos diz que a muitos entes chamamos pelo
nome de coisa, como as pedras, a fonte no caminho, a água de
286 Estética e Educação

corre na fonte, as nuvens no céu, as folhas no vento. Ele define que


coisa é todo o ente que não se mostra a si mesmo. Neste sentido,
o filósofo diz que Deus, a morte e o Juízo podem ser chamados de
coisas.
Portanto, nas palavras do próprio Heidegger: "No todo, a
palavra coisa designa o que quer que seja que, em absoluto, é não-
nada" (HEIDEGGER, 2005, p. 14). Sendo assim, a obra de arte
também á uma coisa, haja vista seu caráter de não-nada.
Não obstante, o filósofo ressalta que este conceito de coisa
não é relevante para a diferenciação do modo de ser do ente
chamado de coisa e do ente chamado de obra, pois, resistimos a
chamar alguns entes de coisa, como por exemplo Deus, os
homens, os animais e as plantas.
Por fim, até mesmo o martelo, o machado ou o relógio não
são simplesmente coisas. Antes, o que chamamos de coisa é
fundamentalmente a pedra, o barro ou o pedaço de madeira, ou
seja, chamamos habitualmente de coisas, as coisas da natureza e
do uso (HEIDEGGER, 2005).
Com isto, Heidegger tenta sair do âmbito mais geral, em
que todos os entes podem ser chamados de coisa, e parte para um
âmbito mais restrito das meras coisas: "Mero quer dizer aqui
primeiro: a pura coisa, que é simplesmente coisa e nada mais.
Mero quer dizer, depois, ao mesmo tempo: já só coisa, em sentido
quase pejorativo" (HEIDEGGER, 2005, p. 15), e é a partir destas
meras coisas que podemos determinar a coisidade das coisas.
Neste momento de seu caminho, o filósofo ressalta que
podemos reduzir à três, as interpretações da coisidade da coisa
que dominam o pensamento da tradição filosófica:
A primeira é tomar a coisa como aquilo que têm
propriedades. A coisa é, portanto, aquilo no qual as propriedades
se reúnem. Aqui instaura-se um problema de linguagem, pois, a
coisa é tomada como substancia e cabe as proposições dizerem
suas características. Mas teriam antes as coisas as características
que as proposições falam? Este problema se dá, segundo
Heidegger, por uma perda do sentido grego do ser dos entes,
quando a filosofia latina apropria os conceitos do pensamento
Schopenhauer em “A Guerra dos Tronos”... 287

grego e os perpetua na tradição ocidental. Além disso, esta


caracterização de coisa, serve para todos os entes, portanto, não é
possível caracterizar o ente coisal do não coisal.
A segunda interpretação é a coisa como a somatória de
todos os dados do sentido, ou seja, a coisa nos é conhecida através
de sua cor, tato, som, cheiro, sabor, etc., tudo que nos chega aos
sentidos é o que determina a coisidade da coisa. Novamente o
filósofo nos diz que este conceito de coisa está equivocado, pois:
"Muito mais próximo do que todas as sensações estão, para nós, as
próprias coisas" (HEIDEGGER, 2005, p. 19).
E por fim, a terceira interpretação é tomar a coisa como a
matéria enformada, ou seja, como uma síntese entre matéria e
forma, "Com a síntese de matéria e forma, está finalmente
encontrado o conceito de coisa, que se aplica igualmente bem às
coisas da Natureza e às coisas do uso" (HEIDEGGER, 2005, p. 19).
E é nesta concepção que Heidegger nos diz, que podemos perceber
o caráter coisal da obra de arte, haja vista que a obra de arte tem
uma matéria e uma forma. Ainda nos diz o autor que esta
interpretação, de coisa como matéria enformada, é "o esquema
conceptual por excelência para toda a estética e teoria da arte”
(HEIDEGGER, 2005, p. 21).
Entretanto, o filósofo diz que a obra de arte também tem
sua origem intimamente ligada ao apetrecho que é uma coisa com
serventia, sendo a serventia seu caráter originário. Assim, esta
interpretação, a coisa como matéria enformada, se mostra
insuficiente para pensar a coisidade da obra, pois a mera coisa não
tem uma serventia nem o caráter de ser fabricado como um
apetrecho.
Continuando sua análise, Heidegger passa a interpretar um
ente com características específicas, a saber o apetrecho, pois "Este
ente, o apetrecho, está particularmente próximo do representar
humano, porque vem a ser através da nossa própria produção"
(HEIDEGGER, 2005, p. 24).
Para o autor o apetrecho é o ente intermediário entre a
mera coisa e a obra, assim através da análise deste ente que
288 Estética e Educação

Heidegger busca descobrir algo sobre o aspecto coisal da obra de


arte.
Na interpretação do ser-apetrecho do apetrecho, Heidegger
utiliza um quadro de Van Gogh, no qual está representado um par
de sapato de camponesa. O filósofo aponta através da pintura que
o ser-apetrecho do apetrecho reside em sua serventia, sendo
assim, um par de sapado de camponesa só tem seu caráter de ser-
apetrecho descoberto, à medida que deixamos de fazer uma
análise científica ou mesmo filosófica e passamos a usá-lo, ou seja,
o ser-apetrecho se revela enquanto utilizado pela camponesa em
seus afazeres da cotidianidade (HEIDEGGER, 2005).
Nesta reflexão, Heidegger aprofunda os conhecimentos
propostos em Ser e Tempo acerca do ente intramundano
instrumental, chegando a conclusões não antecipadas no § 15 de
sua Ontologia Fundamental. Na Origem da Obra de Arte, o ente
analisado, os sapados de camponesa, não existem apenas em sua
instrumentalidade. Tanto o sapato, quanto a camponesa que dele
faz uso, pertencem à sua terra e estão abrigados no seu mundo
(DUARTE, 2008).
Estes dois conceitos, terra e mundo, são centrais nesta obre
de Heidegger. Mais à frente estaremos capazes de retomá-los, mas
faz-se importante destacá-los neste momento, pois é a primeira
vez que eles aparecem juntos na obra do autor.
Entretanto, o que nos chama a atenção desta descrição, não
é a maneira como Heidegger chega ao ser-apetrecho do apetrecho,
ou mesmo o ente utilizado em sua análise, ou as conclusões a que
chega. O que nos interessa neste momento é o que o filósofo
apresenta a seguir.
No momento em que termina a análise dos sapatos de
camponesa, o autor diz que o apetrecho se diferencia do caráter
coisal da obra, entretanto, ressalta que na análise feita
anteriormente já foi possível experienciar algo sobre o caráter-de-
obra da obra, pois analisamos o apetrecho justamente a partir de
uma obra de arte e não mediante observações ou relatórios
técnicos sobre o sapato.
Schopenhauer em “A Guerra dos Tronos”... 289

Através da obra de arte, segundo Heidegger (2005), foi


possível saber o que o calçado na verdade é: “A pintura de Van
Gogh constitui a abertura do que o apetrecho, o par de sapatos da
camponesa, na verdade é. Este ente emerge no desvelamento do
seu ser. Ao desvelamento do ente chamavam os gregos ἀλήθεια.
Nós dizemos verdade e pensamos bastante pouco com essa
palavra. Na obra, se nela acontece uma abertura do ente, no que é
e no modo como é, está em obra um acontecer da verdade
(HEIDEGGER, 2005, p. 27).
Devemos ter claro neste momento o conceito de verdade
para Heidegger, como foi apresentado no §44 de Ser e Tempo.
Verdade é um dos termos apropriados pela tradição filosófica e
compreendida de maneira equivocada, da qual era utilizada em
princípio pelos gregos. Uma definição afinada com a tradição,
compreende a verdade como adequação. Assim, a verdade é
pensada em termos positivos, como aquilo que diz algo sobre o
mundo (HEIDEGGER, 2015).
Contrapondo-se a este conceito, Heidegger (2015), pensa a
verdade como o desvelar do ser do ente. Não obstante, o caráter
de desvelamento, guarda intimamente ligado o caráter de velar,
de encobrir. Assim, a verdade existe em um jogo, no qual vela-se
e desvela-se o ser do ente. E "Na obra de arte, põe-se em obra a
verdade" (HEIDEGGER, 2005, p. 27), ou seja, este jogo.
Conquanto, percebemos uma mudança significativa na
maneira como o filósofo compreende o conceito de verdade.
Diferentemente de Ser e Tempo, Heidegger não privilegia mais o
ser-aí como o ente que pode encontrar e descobrir os demais entes
enquanto verdade. Na Origem da Obra de Arte, Heidegger
privilegia a obra de arte enquanto ente, em torno do qual, é capaz
de acontecer a clareira do ser, na qual o ser-aí está sempre lançado
(DUARTE, 2008).
Sendo assim,

mais importante do que pensar o ser-aí como a instância


ontológica que opera os diferentes modos do desvelamento dos
entes é a consideração de que o próprio ser-aí somente ‘é’ na
medida em que já está sempre lançado no aberto da clareira do
290 Estética e Educação

ser, a qual, por sua vez, nunca é sempre a mesma, pois se


transforma conforme o regime historial dos diferentes envios do
ser (DUARTE, 2008, p. 26).

A verdade neste sentido é: "um termo para designar o


acontecimento histórico no interior do qual surge a medida de
tudo aquilo que é por meio de uma essenciação específica do seer."
(CASANOVA, 2015, p. 237).
Diante disto, Heidegger modifica o significado das artes.
Antes de sua explanação, a arte se relacionava somente com a
estética e o belo, a partir de agora passa a estar intimamente em
relação com a verdade, assim, a essência da arte é o "pôr-se-em-
obra da verdade do ente (das Sich-ins-Werk-Setzen der Wahrheit
des Scicnden) (HEIDEGGER, 2005, p. 27).
Tomando a essência da obra de arte neste sentido, o que se
faz presente em toda a obra de arte é o desvelar do ente em sua
totalidade. A arte permite uma abertura do ente no seu ser, ou
seja, o acontecimento da verdade.
Portanto, os conceitos da tradição sobre o aspecto coisal da
coisa, não podem ser aplicados na obra de arte, pois o aspecto de
obra da obra, diferencia-se essencialmente da mera coisa, como
diferencia-se do apetrecho. A obra de arte relaciona-se, antes de
tudo, como um campo ôntico no qual o ente pode abrir-se em sua
totalidade.
Neste ponto, a arte desponta como campo ôntico refratária
a história do pensamento do ocidente, história esta dominada pela
metafisica, deste o surgimento da filosofia entre os gregos antigos,
o que culmina, em nossa época em uma super-valoração da
relação tecnicista, no qual o ser do ente é esquecido, no qual o que
importa é a lógica producionista: "Não que esses campos [a saber,
a arte] não estejam de maneira alguma sujeitos a essa lógica. [...]
Mas o modo como se dá essa sujeição retém a sua essência
resguardada" (CASANOVA, 2015, p. 236, parênteses nosso).
Continuando a relação da obra de arte com a verdade,
Heidegger (2005), apresenta dois termos fundamentais para
compreender a origem da obra de arte, já mencionados neste
trabalho. O primeiro conceito foi introduzido por Heidegger em
Schopenhauer em “A Guerra dos Tronos”... 291

Ser e Tempo, a saber, este conceito é Mundo. Concomitantemente


com Mundo, Heidegger apresenta o segundo conceito, este não
presente em sua Ontologia Fundamental: o conceito Terra. E
ainda nos diz, que estes dois conceitos existem em tensão, no velar
e desvelar que é próprio da obra de arte.
Mas o que Mundo e Terra tem a dizer sobre a Obra de Arte?
O que, de fato, estes conceitos significam neste momento do
pensamento heideggeriano? Não seriam Mundo e Terra a mesma
coisa?
Comecemos pelo primeiro conceito: Mundo. Este termo é
um conceito fundamental da metafísica para Heidegger: "[...]
mundo é abertura do campo de manifestação do ente na
totalidade como transcendência do ser-aí" (CASANOVA, 2015, p.
141)
Em Ser e Tempo, Heidegger (2015), apresenta o ser-aí como
ser-no-mundo, e desenvolve toda sua análise existencial tento esta
estrutura ontológica do ser-aí em vista. Pensa o ser-aí como um
ente abandonado em um mundo fático e a partir da familiaridade
com este mundo, ele vai construindo suas possibilidades de ser,
ou seja, ele se torna ser-no-mundo não por estar dentro de um
mundo, mas sim por existir, desde o princípio em um mundo que
é o seu.
Na Origem da Obra de Arte, Heidegger, retomando o
conceito de mundo, nos diz que:

Mundo não é a simples reunião das coisas existentes, contáveis


ou incontáveis, conhecidas ou desconhecidas. Mas mundo
também não é uma moldura meramente imaginada,
representada em acréscimo à soma das coisas existentes. [...] O
mundo é o sempre inobjectal a que estamos submetidos
enquanto os caminhos do nascimento e da morte, da bênção e
da maldição nos mantiverem lançados no Ser. [...] (HEIDEGGER,
2005, p. 35).
292 Estética e Educação

Portanto:

[...] mundo não é mais definido como o horizonte existencial da


totalidade da significância, isto é, como estrutura ontológica
constitutiva do ser-aí, mas como o aberto que contém em si as
decisões e determinações essenciais que permeiam a vida
histórica de um povo entre o nascimento e a morte,
comportando vitória e derrota, alegria e dor, fracasso ou sucesso.
[...] mundo é sempre um mundo histórico e dinâmico, mutável,
o mundo de um povo determinado, aberto à transformação, ao
novo. Mundo é agora aquilo que existe a partir do obrar da obra,
a qual erige e mantém em vigência o aberto no qual os entes
podem ser a cada vez o que são (DUARTE, 2008, p. 26).

Heidegger apresenta, que toda a obra instala um mundo, e


mantém aberto o aberto deste mundo. Agora, podemos prosseguir
com o segundo termo apresentado: a Terra. Segundo o autor:

A terra é o infatigável e incansável que está aí para nada. Na e


sobre a terra, o homem histórico funda o seu habitar no mundo.
Na medida em que a obra instala um mundo, produz a terra. O
produzir deve aqui pensar-se em sentido rigoroso. A obra move
a própria terra para o aberto de um mundo e nele a mantém. A
obra deixa que a terra seja terra (HEIDEGGER, 2005, p. 36).

Portanto, terra “[...] não é nem massa de matéria inerte nem


a designação de nosso planeta, mas aquilo que ao se mostrar e
irromper em um mundo volta a recobrir-se e a fechar-se [...]”
(DUARTE, 2008, p. 27).
Neste sentido, a terra é algo fechado em si mesmo,
refratário a qualquer tentativa de domínio através da lógica
calculadora. A terra só é terra à medida que permanece fechada
em si mesmo, ou seja, só se mostra como terra enquanto
permanece velada em sua totalidade. Não obstante, este caráter de
estar fechado não tem nenhum padrão rígido, pelo contrário, se
demonstra como infindável modos e formas simples.
"A instituição de um mundo e a produção da terra
constituem dois traços essenciais no ser-obra da obra"
Schopenhauer em “A Guerra dos Tronos”... 293

(HEIDEGGER, 2005, p. 38), e neste sentido, produzir a terra quer


dizer trazê-la para o aberto que é o mundo. Esta dinâmica
tensional, pertence a unidade de ser-obra:

Desta relação, entre mundo e terra, podemos perceber que:


O mundo é a abertura que se abre dos vastos caminhos das
decisões simples e decisivas no destino de um povo histórico. A
terra é o ressair forçado a nada do que constantemente se fecha,
e, dessa forma, dá guarida. Mundo e terra são essencialmente
diferentes um do outro e, todavia, inseparáveis. O mundo funda-
se na terra e a terra irrompe através do mundo. Mas a relação
entre mundo e terra nunca degenera na vazia unidade de
opostos, que não têm que ver um com o outro. O mundo aspira,
no seu repousar sobre a terra, a sobrepujá-la. Como aquilo que
se abre, ele nada tolera de fechado. A terra, porém, como aquela
que dá guarida, tende a relacionar-se e a conter em si o mundo.
O confronto de mundo e terra é um combate (Streit)
(HEIDEGGER, 2005, p. 38).

E é justamente na obra que este combate é realizado.


Assim, é necessário entender que o desvelamento do ente
ocorre em uma clareira. Nesta clareira os entes vêm ao nosso
encontro. Somente ao ente que todos nós somos é que esta clareira
se faz clarear, pois, somente o ser-aí é capaz de compreender o ser.
Nesta clareira, o ente existe de diversos modos e é somente onde
pode-se clarear, que, também, o ente pode-se ocultar. Nesta
clareia reside a essência da verdade (HEIDEGGER, 2005).
Pensado desta maneira, na obra abre-se uma clareia capaz
de revelar-nos o ente em sua totalidade, ou seja, faz-se revelar uma
clareira. Este clareado na obra é a beleza: "beleza é um modo como
a verdade enquanto desocultação advém." (HEIDEGGER, 2005, p.
45).
A partir disto, Heidegger nos diz que não é mais possível
retomar a questão anterior que ele havia colocado, a saber, qual o
aspecto coisal da obra de arte. A partir de agora, a obra de arte não
é mais compreendida como objeto que temos a mão. Quando
perguntamos este aspecto coisal da obra, estamos perguntando
294 Estética e Educação

não a partir da obra, mas a partir de nós mesmos que


consideramos e representamos a obra como uma coisa.
Não obstante, o autor continua dizendo que, se ainda assim
quisermos responder esta questão, e tomarmos a obra de arte
pelos aspectos da tradição sobre a coisa, podemos concluir que o
aspecto coisal da obra é seu caráter terrestre.
Neste ponto surge uma pergunta: não foi, portanto,
desnecessário colocar a questão acerca do aspecto coisal da obra?
Entretanto, o próprio filósofo nos diz ser relevante compreender
as interpretações da tradição a acerca da coisa, para podermos
romper com estes padrões e colocar de maneira mais adequada a
questão sobre as coisas e sobre a obra de arte.

Para a determinação da coisidade da coisa não basta uma


olhadela ao suporte de qualidades, nem à multiplicidade dos
dados sensíveis na sua unidade, ou ainda à estrutura matéria-
forma, estrutura que é extraída do carácter-de-apetrecho. O
olhar sobre a coisa, que dará medida e peso à interpretação do
carácter coisal, tem de se dirigir para a pertença das coisas à
terra. Todavia, a essência da terra como aquilo que, sustendo, se
fecha, não obrigado a nada, só se desvela na emergência num
mundo, na reciprocidade antagônica de ambos. Este combate é
estabelecido na forma da obra, e toma-se manifesto através desta
(HEIDEGGER, 2005, p. 56).

Heidegger ainda destaca que a obra de arte tem um caráter


de ser produzida, assim indica que a palavra grega τέχνη (tekhnè)
pode ser usada para dizer da obra de arte como é utilizada para
dizer da manufatura.
Não obstante, o autor ressalta que este termo guarda em
sua origem algo que vai muito além do que o conhecimento
moderno de técnica. Para os gregos, esta palavra guarda em si o
caráter de um modo de saber e nunca um modo de fazer. Sendo
assim, a criação da obra de arte guarda em si um saber e neste
sentido, a própria arte carrega em seu seio um saber, o saber que
traz a luz da clareia o ente em sua totalidade.
Schopenhauer em “A Guerra dos Tronos”... 295

A origem da obra de arte é a própria arte, nos diz Heidegger


(2005). E a arte carrega em si um saber: "Arte não é conhecimento
demonstrativo acerca dos entes em geral, mas repetição da própria
gênese do horizonte de manifestação dos entes em sua unidade
concreta de mundo e terra, campo de realização da reunião de
cada coisa e de todas as coisas na tensão entre desvelamento e
retração." (CASANOVA, 2015, p. 241).
Por fim, Heidegger apresenta que toda a arte é Poesia e que
a essência da Poesia é a instauração da verdade: "A Poesia é a
fabula da desocultação do ente" (HEIDEGGER, 2005, p. 59).
Portanto, toda a arte, enquanto revela a verdade, guarda
consigo um conhecimento histórico. Todo o artista que produz,
produz de acordo com o horizonte histórico que é o seu, e nesta
obra produzida reside o desvelar e o velar de seu mundo, reside a
clareira, o espaço do aí.
Desta forma, a obra de arte não está desprendida de um
mundo histórico, não existe enquanto tal na natureza, nem está
suspensa dos conhecimentos sedimentados de sua época:

A arte é histórica e, enquanto histórica, é a salvaguarda criadora


da verdade na obra. [...] A origem da obra de arte, a saber, ao
mesmo tempo a origem dos que criam e dos que salvaguardam,
quer dizer, do ser-aí histórico de um povo, é a arte. Isto é assim,
porque a arte é, na sua essência, uma origem: um modo eminente
como a verdade se toma ente, isto é, histórica (HEIDEGGER,
2005, p. 62).

Assim, a obra de arte erige um mundo sob uma terra. A


obra de arte tem o caráter de desvelar a verdade, não com a
pretensão que têm a ciência. A arte não divide, não explora, não
quantifica, não destrói enquanto deixa ver a clareia, a arte é,
portanto, aquilo que guarda em si um aspecto não fundado na
lógica tecnicista de nosso horizonte histórico.
296 Estética e Educação

REFERÊNCIAS

CASANOVA, Marco Antonio. Compreender Heidegger. 5 ed.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

DUARTE, André. Heidegger e a obra de arte como


acontecimento historial-político. In. Artefilosofia, Ouro Preto, n.
5, p. 23 - 34, jun. 2008. Disponível em: <
http://www.periodicos.ufop.br/pp/index.php/raf/article/viewFile
/714/670> Acesso em: 22 de abr. de 2018.

HEIDEGGER, Martin. A Origem da Obra de Arte. Lisboa: Edições


70, 2005.

HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. 10ª ed. Petrópolis, RJ: Vazes;


Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2015.

STEIN, Ernildo. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger.


Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002.
XXI

SÉRIE E MUNDO POSSÍVEL EM GILLES DELEUZE

Gonzalo Montenegro Vargas*

PALAVRAS-CHAVE: Gilles Deleuze, Signos amorosos, Série,


Autrui (Outrem).

Chama nossa atenção que Deleuze reitere um gesto


metodológico aparentemente irrelevante em lugares, também em
aparência, desconectados de Différence et répétition (1968,
doravante DR). Trata-se de uma ressalva diante da eventual
redução do assunto estudado a sua referência subjetiva ou
objetiva. Em um caso, essa redução não permite pensar a
repetição, assunto ao qual Deleuze se dedica em DR, II, p. 97. Em
o outro, haveria dificuldades para compreender o que o francês
denomina como “estrutura Autrui”, termo traduzido ao português
como “estrutura Outrem” e que constitui o foco do estudo relativo
aos os sistemas de individuação abordado em DR, V, p. 334.
A repetição, afirma Deleuze, nasce de um movimento
retroativo que não se reduz à referência objetiva dos elementos
que se reiteram. Também, a repetição não se limita à síntese
subjetiva que cria a forma geral dessa repetição. Por sua vez, o
âmbito que determina Autrui como mundo possível, se torna
inacessível quando o reduzimos ao objeto que resulta da posição
do sujeito. Que tipo de conexão intuímos entre a tentativa de
determinar o estatuto da repetição em DR, II e a investigação
relativa aos sistemas de individuação de DR, V?
A análise da repetição se debruça na constituição de séries
que dependem do fenômeno da contração. Em sentido estrito, a
contração gera a repetição na medida em que, graças ao
entrelaçamento que esta produz, podemos apreciar o sentido da
*
UNILA; E-mail: gozznl@gmail.com.
298 Estética e Educação

sucessão e a relação existente entre instâncias quaisquer. Nesse


ponto podemos falar que há, entre essas instâncias, repetição. Esse
trecho de DR, II trabalha, mais ou menos implicitamente, com
duas referências que servem para sustentar a explicação relativa à
contração. De um lado, considera a teoria do hábito de Hume,
assunto ao qual se dedica detalhadamente em Empirisme et
subjectivité, VI (1953, doravante ES). Aqui em DR, resgata a
capacidade do hábito para explicar a interação entre níveis
heterogêneos de repetição. Apesar de que menciona a tendência,
fenômeno fundamental para compreender o hábito no contexto
de ES, a preocupação principal de Deleuze em DR se foca na
explicação da relação entre formas de síntese responsáveis pela
produção dos diversos níveis de repetição (DR, II, p. 99-100). Ao
realizar a descrição da síntese, chamada de síntese orgânica de
percepção, percebemos que Deleuze se vale de outra referência.
Limitamo-nos a indicá-la, pois não sabemos se, ao certo, Deleuze
se refere, neste caso, a Bergson ou às teorias do instinto que o
ocupavam durante os anos 1950 e que confluem na organização da
coletânea intitulada Instincts et institutions de 19531. Essa outra
referência ajuda a Deleuze a sustentar que a contração é
constitutiva de um domínio de signos. Sendo assim, as sínteses
orgânicas produzem um campo de sinais a cuja interpretação se
dedicam as sínteses ativas. Formulado de outra maneira, a
percepção sensível se define pela determinação de um âmbito de
signos, ou seja, sinais que permitem ao organismo se orientar ao
momento de realizar operações de caráter ativo. O signo, por sua
vez, caracteriza o resultado da contração e, como tal, define algo
que está implícito ou envolvido no que se repete. Nesse trecho,
Deleuze conclui o seguinte:

La manière dont la sensation, la perception, mais aussi le besoin


et l'hérédité, l'apprentissage et l'instinct, l'intelligence et la

1
Vale lembrar que Deleuze redige uma importante “Introduction” para a
coletânea, onde trabalha o conceito de instinto como tendência. A
“Introduction” será reproduzida na obra L'île déserte et autres textes (2002, p.
24-27), organizada por Lapoujade.
Série e mundo possível... 299

mémoire participent de la répétition, se mesure dans chaque cas


par la combinaison des formes de répétition, par les niveaux où
ces combinaisons s'élaborent, par la mise en relation de ces
niveaux, par l'interférence des synthèses actives avec les
synthèses passives.” DR, II, p. 1002.

Antes de passar à caracterização da estrutura Autrui,


gostaríamos de salientar dois pontos que me parecem essenciais a
propósito da repetição. Primeiro, a repetição depende do estudo
da constituição de séries, aliás, de séries que graças à contração
produzem a repetição. Segundo, essas séries apresentam uma
forma multisserial. A contração, responsável da síntese de
repetição, opera em níveis heterogêneos, cada um dos quais
representa, por sua vez, uma serie e suas sínteses respectivas.
Voltando ao outro referente citado de início, à estrutura
Autrui, esta se define por sua capacidade expressiva, vale dizer,
pelos valores de implicação que reúne. O que isso quer dizer e em
qual contexto Deleuze realiza essa definição? Comecemos pelo
contexto. DR, V constitui um tratado sobre a individuação que
lembra o trabalho de Gilbert Simondon. Nosso autor estuda, na
ocasião, os campos intensivos e os fenômenos de implicação que
determinam o desenvolvimento de um sistema individual (físico,
orgânico ou psíquico). Um dos objetivos mais relevantes do
capítulo visa distinguir a individuação da diferenciação. Da
mesma forma que sustentava Simondon (2005, p. 23-37), Deleuze
lembra que a diferenciação supõe indivíduos já formados com os
quais é possível realizar tentativas de categorização, tais como a
definição em termos de gênero próximo e diferença específica –
que nosso autor estuda a propósito da concepção aristotélica de
diferença abordada em DR, I. Daí a insistência em torno do campo
intensivo que, no final do capítulo V, serve de base para o estudo

2
“A maneira pela qual a sensação, a percepção, assim como a necessidade e a
hereditariedade, a aprendizagem e o instinto, a inteligência e a memória
participam da repetição é medida, em cada caso, pela combinação das formas
de repetição, pelos níveis em que estas combinações se elaboram, pelo
relacionamento destes níveis, pela interferência das sínteses ativas com as
sínteses passivas.” DR, II, p. 115 (trad. bras.).
300 Estética e Educação

dos sistemas de individuação psíquica. Aqui Deleuze se pergunta


se a individuação depende de uma forma subjetiva geral, um Eu
(Je), ou da matéria objetiva à qual este Eu se refere, eu passivo ou
Moi. Lembramos neste caso, a premissa metodológica com que
iniciamos nossa apresentação:

Le tort des théories est précisément d'osciller sans cesse d'un


pôle où autrui est réduit à l'état d'objet, à un pôle où il est porté
à l'état de sujet (DR, V, 334)3.

Desse modo, Autrui deve ser entendido como um âmbito


dotado de instâncias capazes de envolver significados expressivos
que podem servir de condição de possibilidade para a
individuação. Mas, quando falamos em servir à individuação a que
nos referimos mais exatamente? Nesse trecho Deleuze cita
Vendredi ou les limbes du Pacifique, romance em que Tournier
reinterpreta a ficção de Robinson Crusoé (DR, V, p. 334). O
romance questiona as condições que permitiriam organizar nossa
percepção e nos tornarmos indivíduos, na eventualidade de
morarmos solitários numa ilha deserta4. Precisamente, a estória
desenvolve uma narração em que a ausência de outros na ilha,
coloca o problema da decomposição subjetiva do protagonista.
Tournier salienta que o outro não representa apenas um individuo
com quem interagimos, senão uma verdadeira estrutura que
organiza nossa percepção sensível. O próximo, outrem, é um
mundo possível que puxa para se tornar real (TOURNIER, 1969, p.
238-239). A “doçura” com que se sucedem os momentos e a
continuidade no espaço são resultados da estrutura de outrem
como mundo possível, afirma Deleuze (em TOURNIER, 1969, p.
262). Nesse sentido, seu valor expressivo representa um âmbito de

3
“O erro das teorias consiste precisamente em oscilar incessantemente de um
polo em que outrem é reduzido ao estado de objeto a um polo em que ele é
levado ao estado de sujeito” DR, V, p. 363 (trad. bras.).
4
Nosso autor reproduz aqui, um ponto de vista elaborado com mais vagar no
posfácio que escreve para a obra de Tournier (DELEUZE, em TOURNIER, 1969,
p. 257-283). Este posfácio foi reproduzido, também, na Logique du sens (1969,
Appendices, IV, p. 350-372).
Série e mundo possível... 301

signos que organizam nossa percepção. A referência a um campo


expressivo constituído por polos de implicação reproduz aqui, na
linguagem relativa ao estudo do processo de individuação, o que a
propósito da repetição era abordado em termos de contração e
organização serial.
Outro dos referentes literários que Deleuze cita a propósito
da estrutura Autrui retoma algumas noções abordadas em seu
estudo sobre Proust, notadamente aquelas que remetem aos
mundos implicados nos signos amorosos (e mais exatamente no
rosto da pessoa amada). Assim sendo, o rosto não representa a um
sujeito, senão que define a estrutura de um mundo possível, em
que a possibilidade não define uma hipótese não realizada, senão,
citamos livremente: o estado de algo implicado e envolvido, capaz
de gerar um formigamento em torno do real (DR, V, p. 334). Ou
seja, a realidade em estado envolvido, implicado, em soma, em
forma de signo. Assim sendo, o mundo possível não se opõe à
realidade, senão que designa o campo intensivo que a produz e do
qual se desprendem as diversas formas de individuação
constitutivas da realidade (CASTRO, 2018, p. 202-210). Sendo
assim, a expressão de Tournier referida a Autrui, em que o
romancista indica que outrem “puxa para se tornar real” não deve
ser entendida, portanto, a partir da oposição entre possível e real,
senão a partir da tensão entre o campo intensivo e a individuação
decorrente.
Intitulada Proust et les signes (1964, doravante PS), a obra
dedica um estudo detalhado à forma serial em que se constituem
os signos amorosos. O estudo descreve a relação que existe entre
o signo e os mundos que a pessoa amada envolve. A forma serial
permite estudar o tipo de repetição implicada nas relações
amorosas que relata Proust. A estrutura do mundo possível
contida nos signos, pelos que a pessoa amada nos captura e
envolve, tem uma forma eminentemente serial e, por este motivo,
precisa do estudo das condições da repetição que envolve. Com
efeito, PS, VI é um capítulo que se debruça detalhadamente nos
problemas de constituição amorosa do ponto de vista da
singularidade – denominada aqui como diferença original – que
302 Estética e Educação

norteia nosso decurso amoroso e determina seu desenvolvimento


através dos diferentes casos em que essa singularidade se repete.
Da mesma forma em que orienta seu estudo sobre os signos
sensíveis nos capítulos III e V, Deleuze inicia a descrição dos
signos amorosos chamando a atenção para a necessidade de não
confundir a essência do signo com o objeto portador, nem com o
sujeito que o interpreta ou o experimenta (PS, VI, p. 83). Mais
precisamente: o signo amoroso não se confunde com a pessoa
amada, nem com o amante. O signo amoroso se define por uma
relação complicada entre o aspecto que define o mais essencial de
nossa vida amorosa e o decurso que vai marcando os diferentes
relacionamentos. Deleuze exprime isso em termos de uma relação
entre a diferença original, essência da vida amorosa, e a repetição
inconsciente que travessa tais relacionamentos. Transitamos por
diversos amores sem sabermos que se trata de uma série de casos
que repetem a diferença original (PS, VI, p. 84-85).
A memória e a imaginação parecem impotentes para nos
auxiliar na interpretação dos signos amorosos. A repetição se
impõe de forma inconsciente e nada temos a fazer perante o peso
do esquecimento. Ao mesmo tempo, a imaginação não ajuda o
suficiente para evitarmos os deslizes da verdade amorosa (PS, VI,
p. 89-90). Não se trata apenas da futilidade das mentiras, nem da
precariedade de nossos segredos. Deleuze descreve a natureza da
série amorosa em termos de uma lei, e mais exatamente de uma
lei do embuste ou do engano (mensonge)5. Os signos amorosos
nos iludem não pelas pequenas mentiras, ainda menos pelas
eventuais infidelidades; eles são embusteiros porque constam de
uma série de esquecimentos que determinam o caráter
inconsciente da repetição6.

5
A tradução brasileira traduz mensonge por “mentira”. Contudo, preferimos a
opção adotada pela tradução ao espanhol, pois a ideia de “embuste” evidencia
melhor o caráter humorístico que tem o engano amoroso. Não se trata do
sujeito que mente, senão do signo amoroso que nos engana e, inclusive, trapaça
conosco.
6
Com relação a essa questão descobrimos que Deleuze é tributário de seu
orientador de tese em Sorbonne, Ferdinand Alquié, quem em uma breve nota
sobre o amor em Proust já insinuava a necessidade de interpretar o engano
Série e mundo possível... 303

Nesse ponto, vale a pena salientar que Deleuze orienta a


análise em dois sentidos. Em um caso, considera o papel das
faculdades na interpretação dos signos. No outro, se atenta à
estrutura do engano. Deleuze considera que só a inteligência nos
permite explicar a natureza dos signos amorosos. De fato, só a
inteligência permite compreender que o embuste do amor não
consiste em um engano deliberado, senão inevitável (PS, VI, p. 90-
92). Os signos com que o amado nos envolve, ao mesmo tempo,
nos excluem, fazem parte de um mundo ao qual não pertencemos
no passado e não pertenceremos no futuro. Trata-se da condição
da possibilidade do amor, do âmbito de expressividade onde
nascem os signos que nos envolvem, no fundo, se trata do mundo
possível do amor. O amor trapaça conosco ao nos submeter a uma
série de ilusões e decepções que não são mais do que a repetição
inconsciente de um tema original. Inocente humor da
singularidade amorosa, da qual nos aproximamos justamente no
momento em que nossa capacidade de amar se desvanece no
tempo. Essa singularidade parece sugerir a presença idealizada da
mãe ou do pai. Mas isso depende das circunstâncias em que surge
a série amorosa. A diferença original do amor – que Deleuze
denomina também como singularidade, essência ou Ideia do amor
– é determinante da repetição, mas sua seleção acontece de
maneira aleatória. Isso quer dizer que nossa vida amorosa não está
fadada a depender da idealização do pai ou da mãe, enquanto
singularidades arquetípicas, pois são as circunstâncias as que
decidem sobre as determinações da vida amorosa. Deleuze conclui
o seguinte:

C’est bien l’Idée qui determine la série de nos états subjectifs,


mais aussi ce sont les hasards de nos relations subjectives qui
déterminent la sélection de l’Idée [...] Rien ne montre mieux
l’extériorité de la sélection que la contingence dans la choix de
l’être aimé. Non seulement nous avons des amours manquées,
dont nous savons bien qu’elles auraient pu réussir, à une petite

amoroso não apenas como um fenômeno psicológico, senão como uma


condição do amor (ALQUIÉ, 1957).
304 Estética e Educação

différence près. Mais nos amours qui se réalisent, et la série


qu’elles forment en s’enchaînant, c’est-à-dire en incarnant telle
essence plutôt qu’une autre, dépendent d’ocassions, de
circonstances, de facteurs extrinsèques” PS, VI, p. 93-947.

Ora, a interpretação da lei do embuste, também, nos


aproxima da estrutura da repetição. Iludimo-nos ao supor que a
vida amorosa está constituída pelo amor heterossexual e seus
secretos ou mentiras. O fato é que essas mentiras dependem, do
ponto de vista da série, de uma dupla série homossexual. A série
heterossexual do amante se desdobra em uma série homossexual
que inclui em um mesmo mundo a série das pessoas amadas. Para
o amante, as relações estabelecidas com uma série de pessoas
amadas constituem, de fato, uma série heterossexual. Mas a série
tem esse caráter na medida em que se refere ao ponto de vista de
quem ama. Para o amante de um sexo, a série de relacionamentos
com o sexo oposto terá um caráter heterossexual. Porém, se
considerarmos a série do ponto de vista da sucessão de pessoas,
que pertencem ao mesmo sexo, então se revela a natureza
homossexual que perpassa o ponto de vista heterossexual do
amor. Ora, adiciona Deleuze seguindo a Proust, essa não é ainda
a verdade mais profunda do amor, pois este no fundo é
essencialmente hermafrodita. O embuste não é o engano
elaborado por um dos amantes. Trata-se, pelo contrário, da
divergência e defasagem produzida por um eixo articulador de
natureza hermafrodita. A reunião dos sexos não representa uma
unidade harmônica, ainda menos originária. O hermafroditismo,
como tal, representa o risco da infertilidade. Assim, a fecundação
depende da defasagem, da separação dos sexos presente no

7
“É a Idéia (sic) que determina a série de nossos estados subjetivos, mas
também são os acasos de nossas relações subjetivas que determinam a seleção
da Idéia (sic) [...] Nada mostra melhor a exterioridade da seleção do que a
contingência na escolha da pessoa amada. Não apenas temos amores
fracassados, que sabemos que por pouco poderiam ter dado certo, mas nossos
amores bem sucedidos, e a série que formam ao se encadearem, isto é,
encarnando determinada essência em vez de outra, dependem de ocasiões, de
circunstâncias, de fatores extrínsecos” PS VI, p. 72 (trad. bras.).
Série e mundo possível... 305

hermafrodita, mas também de sua complicação. Com efeito,


indica Deleuze, a entidade hermafrodita depende de outra
instância da mesma natureza para ser fecundada. Por esse motivo,
o embuste do amor consiste nessa defasagem que representa a
estrutura, primeiro, ambígua do hermafrodita; segundo,
homossexual das séries amorosas; e, por último, heterossexual das
mesmas séries consideradas do ponto de vista de cada um dos
amantes (PS, VI, p. 95-99).
Do ponto de vista heterossexual, o amor nos engana, pois a
série amorosa nos condena ao esquecimento e a substituição. Os
signos amorosos que nos envolvem, também nos excluem. Esta
exclusão evidencia uma realidade mais profunda, a saber, que a
série amorosa se refere a si própria no decorrer repetitivo dos
diferentes relacionamentos amorosos. O amor heterossexual é,
assim, homossexual. Por último, a dualidade das séries amorosas
homossexuais ressoa uma em outra, através da figura ambígua do
hermafrodita. O hermafrodita representa a série complicada que
reúne as séries homossexuais. Por essa razão, as séries
homossexuais se referem a uma realidade mais profunda. Aliás,
sem a instância complicada capaz de reuni-las o amor seria
infecundo. O hermafrodita constitui tanto a realidade mais
profunda do amor quanto a possibilidade da relação entre os
sexos8.
Por último, se voltamos à pergunta que orienta nosso
trabalho – aquela relativa à conexão que poderia existir entre os
dois trechos estudados de DR – apreciamos que a reserva de
Deleuze com relação à análise se limitar ao estudo do ponto
objetivo ou subjetivo, exige um estudo que considera o papel
central da repetição e da determinação heterogênea dos níveis em
que esta se configura. Esta determinação por sua vez, mostra o
papel essencial que tem, na análise, os conceitos de série e de
mundo possível. Assim, a própria repetição depende, segundo as

8
Apesar da ressonância platónica que sugere essa análise, Deleuze e Proust
seguem aqui não o modelo do androgênio do Banquete que se autofecunda,
senão o esquema da polinização floral. Mais detalhes sobre a relevância das
flores para Proust encontramos em MEUNIER, 1997.
306 Estética e Educação

análises de DR, II, da relação que se estabelece entre domínios


sintéticos heterogêneos. Por sua vez, a individuação psíquica
depende da definição de um âmbito expressivo (campo intensivo)
capaz de organizar a percepção sensorial e com isso garantir a
constituição subjetiva (DR, V). Por último, a propósito dos signos
do amor, a série exprime que o que tem de mais profundo na
construção dos signos é, primeiro, a eleição aleatória do sentido,
tema a diferença original que determina cada serie e, segundo, o
caráter trans-pessoal e multisserial do amor. Seguindo a Proust,
Deleuze indica: “À la limite, l’expérience amoreuse est celle de
l’humanité tout entière, que traverse le courant d’une hérédité
transcendante” (PS, VI, p. 89)9.

REFERÊNCIAS

ALQUIÉ, Ferdinand. Note sur l’expérience de l’amour chez Marcel


Proust. In: L’expérience. Paris: PUF, 1957, pp. 99-102.

CASTRO SERRANO, Borja. Resonancias políticas de la alteridade.


Emanuel Levinas y Gilles deleuze frente a la institución. Santiago:
Nadar ediciones, 2018.

DELEUZE, Gilles. Proust et les signes. Paris: PUF, 1964 [Proust e os


signos, trad. bras. de Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2003].

9
“Em última análise, a experiência amorosa é a da humanidade inteira, que a
corrente de uma hereditariedade transcendente atravessa” PS, VI, p. 67 (trad.
bras.). Acreditamos que a introdução da expressão “em última análise” é
esclarecedora do ponto de vista da tradução, mas oblitera uma dimensão muito
importante para esse capítulo de PS e, de certo, também presente na expressão
“à la limite”. Trata-se da conceptualização matemática da análise dos signos.
Com efeito, PS, VI é repleto de expressões que fazem referência ao cálculo
infinitesimal (série, índice de variação, limite, etc.). Em um estudo ulterior,
esperamos dar conta dessa questão obliterada aqui, neste detalhe da tradução
brasileira.
Série e mundo possível... 307

DELEUZE, Gilles. Différence et répétition. Paris: PUF, 1968


[Diferença e repetição, trad. bras. de Roberto Machado e Luiz
Orlandi. Rio de Janeiro: Graal, 2006].

DELEUZE, Gilles. L'île déserte et autres textes. Textes et entretiens


1953-1954. Edição de David Lapoujade. Minuit, Paris, 2002.

MEUNIER, Claude. O Jardim de Inverno da Sra. Swann. Proust e as


flores. São Paulo: Mandarim, 1997.

SIMONDON, Gilbert. L'individuation à la lumière des notions de


forme et d'information. Grenoble: Millon, 2005.

TOURNIER, Michel. Vendredi ou les limbes du Pacifique. Paris:


Minuit, 1969 (Posfácio de Gilles Deleuze, p. 257-283).
XXII

SOBRE A ARTE POÉTICA EM ARTHUR SCHOPENHAUER

Cristiele Rhoden*
Ademir Menin**

A pesquisa a ser apresentada tem como objetivo tratar


sobre a arte poética, capítulo 16 da obra Metafísica do Belo de
Arthur Schopenhauer. Neste capítulo podemos observar que
Schopenhauer engradece muito poesia, mas que esta não pode ser
“qualquer” poesia e a partir disso ele vai se desdobrando a fim de
expressar o seu ponto de vista de como, para que é o valor
(influência) que a poesia tem em nossa vida e qual sua diferença
com a música.
Segundo Schopenhauer, a poesia tem objetivos de
manifestar as Ideias e os graus de objetivação da Vontade. Porém,
as Ideias são em sua essência intuitivas e a poesia pelas palavras
são apenas conceitos abstratos. A partir disso, a intenção é tornar
por meio dessas palavras (conceitos) intuitivas as Ideias da vida,
mas isso só é possível com a ajuda de uma fantasia subjetiva.
Basicamente a arte do poeta é colocar essa fantasia em movimento
de acordo com o fim desejado. O ouvinte, por sua vez, tem a
missão de conceber essas Ideias por meio do movimento feito pelo
autor (comunicação por intermédio da poesia).
Nosso filósofo, por conseguinte, explica alguns meios pelos
quais o poeta torna tudo isso possível:
1) O primeiro meio do poeta é a composição de conceitos,
isto é, nas palavras do autor:

...isso tem de ocorrer de tal maneira que suas esferas se


intersectem, com o que nenhuma delas pode permanecer em sua

*
UNIOESTE; E-mail: rhoden375@outlook.com.
**
UNIOESTE.
310 Estética e Educação

universalidade abstrata, em vez do conceito, um representante


intuitivo dele, aparece diante da fantasia que as palavras do
poeta sempre modificam ulteriormente, conforme a intenção de
cada momento. (SCHOPENHAUER,1860, pag. 194).

Se a meta de toda arte é o conhecimento da Ideia e esta só


pode se dar intuitivamente, logo o autor precisa de um
representante intuitivo que provoque ou dê um “pontapé” para o
ouvinte obter essa intuição. Schopenhauer nos conta que o poeta
deve combinar entre si os conceitos universais abstratos para que
as imagens se concretizem na fantasia.
Os epítetos são um dos melhores meios para despertar a
intuição, por isso Homero sempre buscar colocar substantivo e
adjetivo um ao lado do outro, pois traz um conceito muito
universal para um sentido particular colocando assim a fantasia
do ouvinte em movimento.
2) O segundo meio do poeta é o que Schopenhauer chama
de construção intuitiva do exposto (anschaulichmachung). Esta é
a parte que determina a intensidade da expressão do poeta. Um
requisito do lírico é não ser frio e vago em suas poesias, se faz
necessário uma boa descrição, um colorir no momento em que se
escreve. Essa exigência com modo determinado de escrever tem o
objetivo simples de promover a imagem da fantasia mais
perfeitamente possível. Nosso filósofo nos dá um exemplo de
Homero, que tem no teor de seus poemas muito do que está sendo
explicado, isto é, ele não escreve simplesmente “amanheceu”, mas:

“Logo que a Aurora, de dedos rosa, surgiu matutina.1”

E tampouco diz “anoiteceu” e sim:

“E quando o sol se deitou e as estradas a sombra cobria.2”

Goethe também descreve o anoitecer desta forma:

1
Odisséia VXII, 1. Rio de Janeiro, Ediouro, 2011.
2
Odisséia II, 388. Rio de Janeiro, Ediouro, 2001.
Sobre a arte poética... 311

O entardecer já embalava a terra


E nas montanhas pendia a noite
Já vestido de névoa estava o carvalho
Um gigante robusto, lá,
Na floresta, de onde a escuridão
Com cem olhos negros fitava.3

Schopenhauer não aposta necessariamente na precisão dos


conceitos, mas sim na “sintonia” entre eles, por exemplo, a
expressão “Ele a despiu” faz parecer muito mais poético ao invés
do comum “Ele tirou sua saia”.
3) Um terceiro meio para o fluxo da fantasia deve-se intui-
la tanto quanto o poeta intenta, é acertar na essência íntima da
coisa, exteriorizando-a sem o inútil e inessencial. Deve haver
propriedade nas expressões, fazendo o ouvinte sentir coisas que
não conhecemos efetivamente pelo fato de não se encontrarem na
natureza. O homem poeta necessita ser rico de espírito,
concebendo na poesia aquilo que aparece de uma só vez na nossa
intuição. Na visão de Schopenhauer poetas ruins sondam
exageradamente expressões acumuladas e maçantes, não utilizam
os termos corretos, impedindo essa “catarse” no nosso interior.
Observa-se como Shakespeare (excelente poeta para
Schopenhauer) descreve o namoro de Cressida e Diomedes.
Thersites os observa e diz: “Como o demônio da luxúria, com seu
ventre gordo e dedos de batata afaga esses dois.4”
4) O quarto meio está conectado com o anterior e é o qual
nosso autor denomina de brevidade da expressão. O poeta deve
escolher com prudência as palavras, pois textos demais leva o
ouvinte a meros pensamentos e não a intuição. Quanto mais
significado possuir as palavras melhor é para o despertar de
imagens intuitivas. Um exemplo bom está em O Filocteto: “É o que
tem de ser.5”
O movimento da fantasia de cada ouvinte está diretamente
ligado com sua individualidade e esfera de conhecimento, ou seja,

3
GOETHE in SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo pg. 197.
4
Troilus and Cressida, Vol 2.
5
Sófocles, 787.
312 Estética e Educação

toda vez que houver algo na poesia conveniente à subjetividade do


leitor, sua fantasia é estimulada.
Geralmente as poesias têm dois auxiliares muito notáveis,
são eles o ritmo e a rima. Juntos na poesia sabe-se que a mesma se
torna muito mais cativantes de atenção, pois anteriormente a
nosso juízo demonstramos uma concordância cega e a poesia nos
transparece um poder empático. Os poetas antigos se apropriam
mais do ritmo do que da rima em seus escritos, pois segundo
Schopenhauer:

Essa vantagem do ritmo se esclarece pelo fato de ele, ou a


temporalidade, ser apreendido pela intuição pura a priori do
tempo, pertencendo, pois, a sensibilidade pura não empírica ou
física (SCHOPENHAUER, 1860, p. 203).

A rima nos agrada apenas pelo órgão auditivo e há duas


regras básicas no uso:
- A rima não tem de possuir assonância com a rima
anterior, mas ser o mais heterogênea possível.
- Palavras parecidas demais ou partes iguais do discurso
não são requisitos para rimas. O mais apropriado é o uso de verbos
com substantivos.
Para o nosso pensador a poesia é, por vezes, superada pelas
artes plásticas pelo fato das mesmas conseguirem expressar toda a
sua essência num único determinado momento. Mas o que as artes
plásticas não conseguem realizar tanto quanto a poesia é o
desenvolvimento sucessivo de seus eventos, por exemplo, uma
escultura é uma obra que você enxerga, aprecia e pronto, não tem
muito que se fazer em volta de uma arte plástica além da
observação. Já a poesia, ao contrário, necessita uma desenvoltura,
uma leitura adequada, um “mastigar” lento de palavras, não se lê
apenas por diversão, nela foi trabalhado muito o pensamento do
poeta e do que se queria expressar numa determinada poesia.
Como sabe se que a “a arte é feita para produzir catarse”, nesse
caso da poesia é como se essa catarse – em analogia à busca do
conhecimento da Ideia de humanidade – é, digamos “estendida” e
não feita de forma tão rápida. Pois assim como homem quando se
Sobre a arte poética... 313

expressa, precisa de pensamentos, ações e afetos contínuos tal


qual a poesia. Concluindo para a busca do conhecimento das
Ideias, as poesias são mais “adequadas” para o homem.
A história e a experiência nos permitem cotidianamente
conhecer o homem e a partir disso o autor indaga: “por que
precisamos da poesia para nos mostrar o que diariamente nos
circunda?” Com base na citação os próximos parágrafos
Schopenhauer sintetiza a resposta da pergunta buscando
encontrar o conceito correto da essência, do valor e do fim da arte.
O que a história e a experiência nos permitem conhecer é
os fatos que acontecem, mostram como os homens são de
maneiras isoladas, como eles aparecem. Já na poesia ocorre um
olhar mais profundo, para o nosso íntimo, é como se chegasse
mais próximo da nossa essência. Há sim possibilidade de o
historiador chegar à essência da humanidade, mas não será com
relações e fenômenos e sim com um olhar artístico e poético em
seus escritos. Nosso filósofo faz um paralelo entre a história e
poesia vide citação:

A história está para a poesia como a pintura de retratos está para


a pintura histórica, pois a história dá o verdadeiro no particular,
a poesia o verdadeiro em sua universalidade. A história tem a
verdade do fenômeno, a qual pode ser neste verificada, a poesia
tem a verdade da Ideia, não encontrada em fenômeno individual
algum e, no entanto, exprimindo-se a partir de todos
(SCHOPENHAUER, 1860, pg 205).

O poeta expõe em seus escritos muito significado, muitas


vezes profundo e o historiador apenas relata os acontecimentos e
pessoas que ele quer expor, este não precisa ir a fundo de sua
significação, no interior de todos os homens num determinado
fato. Isso acontece, pois o historiador segue apenas o princípio da
razão focando apenas no fenômeno. Já o poeta tem por conteúdo
a Ideia da humanidade, a essência, segundo Schopenhauer “a
objetidade da Vontade em seu grau mais elevado.”
Na visão de nosso filósofo os antigos historiadores se
tornaram grandiosos, pois eram poetas, na falta de informação,
314 Estética e Educação

complementava-se com poesia, principalmente nos discursos de


heróis. A forma de terem exposto os dados fora de maneira tão
particular, individual que a Ideia de humanidade ficou claramente
exposta. Os historiadores modernos não se portam mais assim e
segundo Goethe eles apenas concedem: “Um barril de entulhos e
inutilidades e quando muito uma ação principal e de Estado”6
Mas para quem busca conhecer a Ideia de humanidade em
seu íntimo, da forma mais autêntica, estes historiadores
grandiosos apresentarão um translado mais fiel que historiadores
comuns.
Schopenhauer dá atenção para autobiografias, ele
considera que estas são mais leais pelo fato do autor estar falando
de si mesmo. São confissões expostas de maneira voluntária. Há
neste capítulo o exemplo de que a história é como o alto de uma
montanha, quando estamos lá em cima vemos muito da floresta
no seu todo, mas de uma só vez, nada é visto de maneira clara e
exata. Em contrapartida, a vida do individuo exposta pela poesia
nos permite caminhar entre as árvores, bosques, rios e lagos
conhecendo o âmago do que se pretende conhecer.
Schopenhauer não compactua com a ideia de música lírica,
pois para ele a música deve ser apenas instrumental. Isso porque
o som basta por si só, ele não é cópia das Ideias e sim a cópia
imediata da própria Vontade. A música é compreendida como
linguagem universal, “cuja compreensibilidade é inata e cuja
clareza ultrapassa até mesmo a do mundo intuitivo”.
(Schopenhauer, 1860). Nosso filósofo faz analogias dos tons das
músicas em relação aos graus da objetidade de Vontade, ou seja,
tons mais baixos reflete graus baixos e tons mais altos reflete graus
mais altos, nas palavras dele:

Ademais, as vozes intermediárias que produzem toda a


harmonia e se situam entre o baixo contínuo e a voz condutora
que canta a melodia são, na música, o que é no mundo intuitivo
a sequência dos graus de Ideias nas quais a Vontade se objetiva.
As vozes mais próximas do baixo, correspondem aos graus mais

6
GOETHE in SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo, pg 207.
Sobre a arte poética... 315

baixos, ou seja, os corpos inorgânicos, porém já exteriorizando


de diversas maneiras. As vozes mais elevadas, por sua vez,
representam os reinos vegetal e animal (SCHOPENHAUER,
1860, pg 231).

Sabe se que para Schopenhauer a essência do homem está


em sua vontade, no esforço de ser. Em constante descontinuidade,
buscar o desejo, alcança-lo e novamente buscá-lo, nisso reside a
felicidade e não pode ser de forma lenta, pois ausência de
satisfação é sofrimento. E por isso o fato de na música os tons se
desviarem do tom fundamental; é um afastar-se, descontínuo por
diversas vias, mas sempre ocorrendo a volta para o tom
fundamental. Precisa-se desse devaneio (assim como a transição
do desejo para a satisfação) entre as notas para a música ficar
harmoniosa e agradável. Quanto maior a velocidade dessa
transição, mais “alegre” a música é considerada, ela satisfaz o
desejo mais rápido. E quando mais lenta, carrega uma conotação
triste e demorada satisfação, difícil.
Concluindo o capítulo, Schopenhauer recomenda a todos a
fruição dessa arte (da música), antes de qualquer outra, pois esta
em especial tem efeito imediato e profundo no homem, é um
banho de espírito, capaz de remover todas as impurezas. A
contemplação estética é uma espécie do “esquecimento do desejo”
e para o nosso autor é mais do que necessária para “aliviar” o
sofrimento que a vida é para nós.
De uma maneira geral, nosso filósofo entende que a música
e a poesia representam o grau mais alto da experiência estética,
porém a música ainda é inigualável, pois a poesia mesmo usando
de pouca materialidade ainda necessita de conceitos, ao contrário
da música que se liga apenas com os laços da representação. Tenho
por objetivo aperfeiçoar essa comunicação para futuramente
apresentá-la em algum evento ou afim.
316 Estética e Educação

REFERÊNCIAS

SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do Belo. Tradução,


apresentação e notas Jair Barbosa. São Paulo: Editora UNESP,
2003.
XXIII

WESTWORLD
sob a teoria estética de Edmund Burke

Daniel Du*
Bernardo Sakamoto**

RESUMO: A proposta deste artigo é relacionar, pelos limites da


sensibilidade, a orientação teórica burkeana à afecção que busca
nos trazer o seriado Westworld (2016 – dias atuais), este por sua
vez tomamos como base teórica para nos demorarmos sobre
algumas reflexões estéticas experimentais. Edmund Burke (1729 –
1797) foi autor de vários tratados políticos e é conhecido como pai
do conservadorismo, apesar que trabalharemos seu único tratado
estético que foi a segunda obra de sua carreira: Investigações
Filosóficas Sobre a Origem das Nossas Ideias de Belo e de Sublime.
Este texto irá usar as analíticas do Sublime de Burke, mostrando
como ela se contrasta dentro do sistema de seu estudo, para
explanarmos a partir da obra de arte selecionada, os afetos em
relação aos cálculos estéticos do autor, isto é, a coerência entre o
nosso sentimento e a teoria burkeana que busca responder quais
elementos nos levaram a senti-lo dentro de nossa condição
humana sensorial; nas palavras de Burke: “anterior a qualquer
racionalização”. A principal interpretação de Edmund Burke,
neste livro, é sobre sua teoria do sublime que afirma termos
sensações (comoventes) que se encontram em um nível de
intensidade muito superior às sensações que temos provenientes
da beleza (que são simplesmente energéticas); estas sensações
mais intensas, as do sublime, encontram sua fonte, como nos
conta Burke, em qualquer elemento da mente que encontre uma
relação com as ideias de autopreservação. Por exemplo, Burke vai

*
UNIOESTE; E-mail: danieudu@gmail.com.
**
UNIOESTE.
318 Estética e Educação

dizer que fontes de sublime serão céus nublados e trovejantes, o


ambiente noturno, abismos, leões e rinocerontes; enquanto que
um céu limpo, ou uma grande montanha de prados, ou a luz do
dia, ou um filhote de cachorro serão simplesmente bonitos. O
seriado Westworld fala sobre uma sociedade muito desenvolvida
que, com as possibilidades de sua tecnologia, desenvolve um
parque temático onde a maior atração são robôs que se
assemelham imensamente à humanos e com um comportamento
inteiramente programado. Esses “anfitriões”, como chamam os
visitantes do parque, seguem narrativas próprias com códigos de
programação que lhes permitem uma certa autonomia diante de
novas possibilidades de acontecimentos; essa autonomia para
novas possibilidades, os personagens do show a chamam de
improvisação. A questão central do seriado é que a programação
dos robôs acontece para eles como para nós acontece o
pensamento – com a mesma voz a que chamamos consciência
ecoando em nossas cabeças acompanhando a vontade de nosso
ser, que acreditamos ser nossa. Ou seja, assim como para nós, os
androides concebem a liberdade. A problemática que se mostra no
show – apesar de não sabermos se foi intencional ou puro
entretenimento de qualidade – é sobre o fato de que, ainda que os
androides demonstrem recusa diante de qualquer subjetivação
como qualquer humano o faria, os visitantes do parque, ainda
assim, os usam para brincar de sadismo num cenário de velho-
oeste e sentem mais prazer nisso; como que se quando a violência
não se direciona a outro ser humano, a desumanidade está
autorizada. E isso nos é sublime.
Westworld... 319

INTRODUÇÃO

A proposta deste artigo é relacionar, pelos limites da


sensibilidade, a orientação teórica burkeana aos sentimentos e
ideias – que se relacionam em completa coerência com a teoria
estética do sublime em Edmund Burke – que o seriado Westworld
(2016 – dias atuais) busca nos trazer, este por sua vez tomamos
como base teórica para nos demorarmos sobre algumas reflexões
estéticas experimentais.
Para atingir essa proposta da forma mais inteligível
possível, dividiremos este trabalho em partes. A primeira,
introdutória, tratará de apresentar ao leitor quem é o autor que
trabalhamos; em seguida, qual obra e porque; e para finalizar esta
parte introdutória, explicaremos porque foi escolhido o seriado
em questão, desde os elementos lógico-filosóficos, até os
elementos do cenário da indústria artística internacional
contemporânea.
A segunda parte trataremos de abordar diretamente a obra
de nosso autor. Analisaremos a fundo as duas primeiras partes do
Investigações Sobre Nossas Ideias de Belo e Sublime, para
podermos ter discernimento o suficiente para concluirmos nossa
investigação na terceira parte. Esta última, por sua vez, tratará de
concluir nosso trabalho relacionando quais ideias e elementos
reforçadores da sensação de sublime, que Burke nos aponta, foram
encontrados no seriado; dando cada vez mais clareza e distinção
não só sobre nosso entendimento sobre os conceitos e sensações
que o britânico nos apresentou, como também mais
discernimento sobre nossa própria sensibilidade e conhecimento
do fazer artístico.
320 Estética e Educação

20.1 SOBRE EDMUND BURKE

Edmund Burke nasceu em Dublin, na Irlanda, em 12 de


janeiro de 1729. Iniciou sua carreira no direito e foi um excelente
orador, do que temos registro. Burke é constantemente citado
como um autor de pensamentos controversos, tanto que é este
autor inglês a principal figura das consequências políticas da
modernidade; isto é, mesmo sendo conhecido como pai do
conservadorismo, existem ainda numerosas discussões sobre a
figura política do discurso (vide Reflexões Sobre a Revolução na
França) de Edmund Burke, entre o conservadorismo e a
liberalidade.
Por isso, não nos demoraremos sobre a figura de Edmund
Burke, pois de nada nos serve tamanha influencia de discurso
descentralizado. Discutir ou explanar sobre a própria imagem do
autor seria ainda mais descentralizado por não conseguirmos
estabelecer dele (como um todo) nenhuma conexão direta com a
obra dele da qual estamos tratando, até por esta obra ser seu único
tratado estético aparentemente desconexo de toda sua produção
intelectual.

20.2 SOBRE AS INVESTIGAÇÕES FILOSÓFICAS SOBRE O


BELO E O SUBLIME

O Investigações Filosóficas Sobre o Belo e o Sublime é uma


obra razoavelmente simples, com exceção de seu conteúdo
despertador. O texto é feito em uma série de parágrafos que nos
remetem a uma certa estrutura de pensamento, isto é, uma espécie
de sistema (da estética enquanto ciência da afecção à
sensibilidade) é concebível durante a leitura da obra.
O livro é dividido em 4 partes, respectivamente: da
Novidade (em que o autor introduz sua tese do estado de
indiferença, a peça fundamental de seu discurso), do Sublime, da
Beleza e da Causa Eficiente da Beleza e do Sublime. É importante
lembrar que a estética burkeana é, para o autor, teológica. Por
exemplo, quando o inglês analisa as emoções entre duas, as
Westworld... 321

provenientes das ideias de autopreservação e as provenientes das


ideias de pertencimento à sociedade, na segunda categoria ele irá
colocar a Simpatia, Imitação e Ambição como o elã vital divino
que leva a sociedade ao progresso. Todo o corpo social será, pois,
cortado pela malha microfísica que impele cada um de nós a
simpatizar com um ser, e depois imitá-lo para dar uma atualização
a nossos próprios seres por uma necessidade interna, levando a
existência a um constante progresso resultado do contínuo estado
de atualização da consciência que é vítima da sensibilidade.
Devido a esse teor teológico do tema, nossa leitura do autor
deverá ser lenta, demandando paciência, e com pausas ritmadas,
dando tempo a uma analítica do sublime burkeano e à sua
fundamentação do estado de indiferença, para podermos estudar
em uma posteridade não muito distante a analítica do belo e das
causas eficientes do belo e do sublime. Por ora, este texto levará
em conta a primeira metade da obra e não se demorará em
assuntos a quais ela (a primeira metade) não possa alcançar.

20.3 A PROPOSTA DA ANÁLISE

O texto aqui reflete-se por cima de um show televisivo


devido a necessidade que temos, diante da curiosidade, de conferir
constantemente se tamanho autoconhecimento é de fato coerente
com os afetos da realidade, não simplesmente teorizável. Com
uma base efetiva para refletir a teoria estética, isto é: com uma
obra de arte rica em afecções, podemos encontrar o terreno firme
que procuramos para declararmos nossa própria certeza ou a
falsidade de Burke; é somente sobre terreno firme de afecções
também que podemos demorarmos, se necessário, em uma meta-
análise dos efeitos ou suposição das causas teológicas que se
refletem em nossa sensibilidade efêmera e humana, da forma
como Burke pressupôs essa mesma teologia estética.
322 Estética e Educação

20.4 SOBRE WESTWORLD

A obra de arte escolhida é Westworld (2016 – dias atuais) e


justamente pela sua riqueza de elementos; mesmo os elementos
que parecem contraditórios, quando colocados no contexto do
show ganham total cor própria e complementam-se como se não
fizesse a mínima lógica imaginá-los separados dentro daquela
estrutura. O show televisivo é inspirado em um filme de 1973,
também chamado Futureworld, e em sua continuação de 1976;
tanto as obras cinematográficas quanto as televisivas são
colocadas dentro da caixinha de ficção filosófica como categoria.
A ideia de refazê-lo já vinha sendo bastante discutida nas duas
próximas décadas que se seguiram e só pôde ser realizável a partir
de 2011.
O time que dá cor e tom a Westworld é composto de cinco
grandes cabeças de roteiristas e produtores; são eles,
especialmente, Lisa Joy e seu marido Jonathan Nolan, e J.J.
Abrahms. Com exceção de Lisa Joy, que tem uma carreira mais
recente de 12 anos no ramo do cinema (antes disso era advogada),
J.J. Abrahms e Jonathan Nolan já são nome conhecidos dentro do
universo cinematográfico.
O seriado aborda, como núcleo irredutível, a questão da
consciência e seus pressupostos; dentre eles, a liberdade. Trata-se
de um parque temático, que tem por principal atração robôs que
se fazem passar por humanos. A sociedade em que isso ocorre é
superdesenvolvida e, devido às possibilidades de seu
desenvolvimento tecnológico, os robôs do parque (chamemos de
anfitriões) se fazem passar por humanos com muita naturalidade
(ou artificialidade, como queira). Os artifícios usados na estrutura
psíquica dos anfitriões são uma mistura de poética com ciências
da computação: dá-se uma história aos androides, um plano de
fundo para a “vida”, uma orientação de ser, um código fonte, uma
memória para a existência. Tendo a memória e a orientação de ser,
os androides podem seguir seu dia-a-dia normalmente servindo
aos visitantes do parque no propósito que lhes fora concebido e
que lhes é alheio. Dentro da brincadeira de velho-oeste haverá a
Westworld... 323

boa-moça que é o rosto bonito da cidadela, cheia de educação e


cultivos estéticos; haverá também o velho que leva os visitantes a
uma caça ao tesouro; o bandido despreparado pronto para ser
derrotado pelo visitante que quiser brincar de ser benfeitor; a
prostituta fria e libidinosa que acredita gerir o cabaré há 10 anos
etc. E mesmo com a narrativa memorial deles, ainda assim todos
os dias os anfitriões são resetados junto com o parque para servir
ao mesmo propósito no dia seguinte. Assim como nós, os
anfitriões concebem a liberdade e tem a intelecção do mundo (de
seu mundo, pelo menos).
De modo a resumir o roteiro e não estragar a métrica da
narrativa que tanto fora trabalhada, aqui dizemos apenas que os
personagens-humanos tem interesses obscuros e, aqueles que tem
seus desejos de fato declarados, já não mais participam
efetivamente naquela existência. Um dos fundadores do parque
morre em um momento anterior à linha temporal em que o
primeiro momento do seriado é exibido. O misterioso Arnold
queria, antes de tudo, não só assistir aos outros brincarem com
seus brinquedos, mas também brincar de Deus e, como Deus,
assistir suas criações usarem aqueles que deveriam estar usando
elas – esta premissa nos põe em questão com quem que, para
nosso Deus, seria o brinquedo e quem seria o que brinca,
enquanto tudo pode ser considerado parte do jogo.
É esse thriller do gradativo ganho de consciência por parte
dos androides que dá o tom de tensão da série. A técnica que torna
aquela tecnologia possível é também a que permite que ela
incremente a si mesma, como acontece na primeira temporada em
que um dos anfitriões eleva sua inteligência ao máximo logo após
roubar um tablet da administração, alterando assim o seu código
fonte. Vemo-nos diante de seres iguais a nós que, uma vez levados
a sua potencialidade máxima em Verdade: não se ferem (e se se
ferem, não se importam), tem consciência das novas
possibilidades inerentes a esse si-mesmo, e renascem quantas
vezes forem necessárias e quistas; em suma, não tem nada a
perder. Dentre os personagens da série, uma das protagonistas
mesmo diz, após ganhar sua consciência, frases como “Eu falo com
324 Estética e Educação

a minha própria voz agora” e “Existe beleza nisso que nós somos”.
Não somente essa personagem (Dolores – do espanhol, “dores”) é
a primeira a espalhar o “vírus do “eu””, como o faz somente por
sua célebre anedota, e célebre citação de Shakespeare, que serve
também de ótima conexão com a filosofia da teoria estética de
Burke: “Esses prazeres violentos tem finais violentos”.

20.5 O SISTEMA ESTÉTICO DE BURKE

Burke começa sua jornada pelo conhecimento sensorial em


busca da verdade através do primeiro afeto que gerará todas as
outras coisas: a curiosidade. Chega a ser irônico o fato de que todo
empreendimento humano é gerado pela curiosidade e
necessidade, de modo que o de Burke não foi diferente. A
curiosidade é a mais superficial das emoções; ela leva o brilho nos
olhos de um lugar a outro sem muita demora; fundamenta-se na
novidade e, como algo não é mais novo depois de ter sido
experimentado, logo a curiosidade anulará aquilo que era novo e
o tornará obsoleto.
Consequencial à curiosidade virá o agrado ou o desagrado
na experiência, isto é, a dor ou o prazer. A curiosidade que ora nos
moveu a analisar a existência agora tende a fazer-nos cometer um
julgamento sobre o ato de existir: é bom ou é ruim. No que se
refere à dor e prazer para Burke, iremos ter que concordar com o
autor quando entendemos um terceiro estado em neutralidade à
dor e o prazer. É inadmissível concebermos que enquanto estamos
sob efeito da curiosidade pelo novo estamos também em estado
de prazer positivo, como o prazer que temos ao tomar um líquido
de sabor que muito nos agrada sem estarmos com sede.
Edmund irá nos mostrar que no que se refere à dor e ao
prazer elas não estão em um estado de constante relação e troca
mútua. Por muito tempo os estetas haviam considerado que o
prazer seria uma cessação da dor e a dor seria, igualmente, uma
cessação do prazer. Não apenas só os estetas clássicos como
também muito do senso comum contemporâneo, mesmo porque
chegamos a nos sentir estúpidos em afirmar que estamos
Westworld... 325

constantemente a sentir dor ou prazer. Não estamos. Dor e prazer


serão doravante interpretados como duas naturezas positivas
independentes entre si: dor positiva e prazer positivo; entre eles, a
indiferença, ou tranquilidade, como queira chamar.
A partir dessas duas naturezas, que são consequências da
curiosidade e da experimentação em tudo aquilo que é novo
quando somo-nos crianças - e de tudo aquilo que se mostra novo
conforme envelhecemos – desenvolveremos toda uma outra série
de sensações. Como por exemplo, para continuar a defender sua
hipótese da indiferença, Burke precisará mostrar-nos que ao
cessar a dor não vem o ganho de prazer; ou, no mínimo, precisará
mostrar-nos as diferenças (ainda que mínimas) entre as
manifestações das afecções de prazer positivo e de cessação de
dor.
Na defesa da hipótese será incluído o fator de que existem
dores positivas e prazeres positivos aos quais não atravessam seu
oposto para tornarem-se efetivos. Isto é, sentimos prazeres que
podemos procurar o quanto for e não encontraremos neles
nenhum resquício de dores, enquanto temos dores que as
sentimos e não encontramos nelas nenhum resquício de prazer.
Não o bastante, Burke afirma também, e com certa tranquilidade,
que a cessação de dor irá vir a se chamar deleite; e esse deleite não
é de modo algum uma espécie de prazer positivo.
A cessação da dor, ao contrário da cessação do prazer, não
irá nos fazer retornar tranquilos e em segurança à nossa já habitual
e confortável indiferença, ela nos dará o deleite que só sente o
herói que vence suas tribulações. Seja o herói aquele que escalou
o Monte Olimpo e admirou sua conquista apesar de sentir as
pontadas na perna; seja aquele que terminou impaciente sua
jornada de trabalho e apressadamente voltou para casa; ou mesmo
o exemplo emprestado da Ilíada que Edmund nos presenteou, o
de um ladrão que conseguindo escapar os que queriam com ele
acertar as contas, não pode evitar o maravilhamento de uma
arduidade superada:
326 Estética e Educação

– Iliad
As when a wretch, who, conscious of his crime,
Pursued for murder from his native clime,
Just gains some frontier, breathless, pale, amazed;
All, gaze, all wonder! (HOMERO apud BURKE, 1993, p. 44)

Todos os exemplos citados acima nos remetem à mesma


sensação, e suponho que todos aos que cheguem este texto
também já tenham experimentado a sensação de superar uma dor
afetuosa, ela nos será bem lembrada como o maravilhar-se
magnífico; e muito provável nos será também que o
maravilhamento do deleite, o deleitar-se com a superação da dor,
gere reflexos na manifestação física desta energia, sejam as
expressões faciais ou a expressão do corpo ou a expressão como
um todo.
E, como que para terminar a argumentação sobre a
indiferença, somos levados às últimas consequências no que nos
referimos a cessação igualmente de prazer ou dor: entramos aqui
em uma analítica do luto e do gozo. Enquanto a cessação da dor
irá gerar deleite, o prazer pode nos levar a 3 estados de espírito
dependendo do modo de sua cessação: se cessado gradativamente,
nos leva à indiferença; se cessado abruptamente, sentiremos o
desapontamento; e se se cessa de tal modo que nunca mais
poderemos gozar do objeto aprazido, temos o luto.
Pode-se argumentar que desta forma dor e prazer teriam
existências sempre relacionadas, visto poderem dizer que se sente
esta dor do luto por uma cessação de prazer; e ainda assim
estariam muito enganados aqueles que assim o dizem. O luto, nos
dirá Burke, não pode de forma alguma ser comparado com a dor
positiva. Quando o luto está presente em nós, necessitamos dele:
o luto quer ser continuado e as lágrimas surgem quase como que
em uma necessidade de serem derramadas. Nas palavras de
Edmund Burke:

É próprio do pesar ter seu objeto sempre em seu pensamento,


apresenta-lo sob seus aspectos mais agradáveis, reiterar todas as
circunstâncias que o acompanham, até mesmo nos mínimos
Westworld... 327

detalhes, recordar todos os delicados encantos, descrevê-los um


a um e descobrir em todos eles mil perfeições para as quais ainda
não atentara [...] (BURKE, 1993, p. 46).

E, aqui no poema de Homero que Burke nos dá de exemplo:

– Hom. Od.
Still in short intervals of pleasing woe,
Regardful of the friendly dues I owe,
I to the glourious dead, for ever dear,
Indulge the tribute a grateful tear (HOMERO apud BURKE, 1993,
p. 47).

A partir daqui Burke começa a nos apresentar seu sistema


estético de uma forma mais desenvolvida. Entendo o sistema
como tendo sua originalidade no plano de fundo básico: as
emoções em estado de neutralidade em relação ao sujeito. Isto é:
quando Burke propõe a dor, o prazer e a indiferença, essas
sensações básicas estão dispostas de tal forma ao sujeito, que será
o sujeito produto dessas sensações, anterior a qualquer
racionalização, como uma sensibilidade à priori. Quando Burke
nos introduz à ideia das paixões pertencentes às ideias de
autopreservação e às das paixões de pertencimento à vida em
sociedade, a situação que ora colocava o sujeito como produto e
não como fator, aqui se inverte ou alinha-se: enquanto a dor, o
prazer e a indiferença estão em posição de fator ao sujeito (que
está em posição de produto às sensações), as paixões se mostrarão
para Burke em relação ou de produto do sujeito, ou tão fator
quanto o fator sujeito, ou seja, em relação de igualdade.
As paixões, como já dissemos, se derivam em duas. Estas
paixões, por serem paixões – impulso -, nos levarão a toda uma
nova série de ideias nos remetendo a uma nova série de sensações,
tendo como ponte o ato mágico de existir, fundamentado por sua
vez, na curiosidade como vimos logo no início.
Todas nossas emoções respondem à tese-antítese oscilante
originária que balança entre (vida em) sociedade e
autopreservação. Da vida, junto ao fator da saúde, nos traz nada
328 Estética e Educação

mais que simples gozo. Quanto às paixões que concernem à


autopreservação, transformam-se geralmente em medo ou perigo.
Em comparação ao simples gozo da vida, as ideias de dor, praga,
morte, enchem a mente de fortes emoções horríveis. É justamente
essa insegurança e escuridão em torno da autopreservação que
gera a magnificidade das emoções em síntese, que viremos a
chamar de sublime. A analítica do sublime percorre ao longo das
páginas nos levando a entender o como a vida (beleza) é
valorizada pela própria sensibilidade. Diante das situações de
perigo são necessárias muito mais forças e um combustível que
mova uma máquina muito mais pesada do que são necessárias, por
exemplo, as energias para situações de simples alegria ou regozijo,
assim me parece.
Da forma que as paixões pertencentes à autopreservação
outrora eram movidas pelas poderosas ideias de medo e perigo,
em oposição a estas estão às paixões de pertencimento à sociedade
que se evocam pela beleza e o amor. Citando a obra em questão,
brevemente:

[...] se prestardes atenção às lamúrias de um amante desprezado,


notareis que ele insiste longamente nos prazeres de que gozava
ou esperava gozar e a perfeição do objeto de seus desejos
(BURKE, 1993, p. 49).

Observamos aqui que mesmo a loucura, que é absoluta em


seus efeitos, e ainda passível de ser consequência do amor, não
passa por nenhuma espécie de dor positiva para se satisfazer em
sua realização.
Ainda sobre as paixões pertencentes ao gozo da vida,
percebo que Burke afunila as sensações de vida cada vez mais para
conectar-se à ideia da beleza; isto é, é inevitável que a beleza se
relacione com a vida (ainda que não necessariamente o inverso).
O inglês afirma que às paixões referentes aos nossos deveres e
contribuições humanitárias estão ligadas diretamente à sensação
de vida, e para cumpri-las bem-dispostos conectamo-nos a saúde.
Essa saúde, por sua vez, não nos é constante, e para mantê-la
Westworld... 329

encontramos o combustível apropriado presente naquela mesma


sociedade dos sexos.
Às paixões pertencentes somente à geração e propagação
da espécie atribuiremos à luxúria e apenas. Às paixões mistas que
chamamos de amor tem como objeto a beleza do sexo. A beleza
do sexo se fundamenta no afeto recebido pelas pessoas que nos
inspiram em sentimentos de graça e gentileza, e queremos mantê-
los por perto, desejando ter alguma espécie de relação com eles, a
menos que tenhamos fortes razões para não o fazer.
O segundo ramo das paixões sociais refere-se àqueles que
regulam a sociedade em geral. Isto é, da mesma forma que
procuramos os outros, procuramos certas vezes também a nós
mesmos apenas, e em ocasiões extremas não procuramos ninguém
mais até por ausência de necessidade: existe uma certa espécie de
paixão não só pelo convívio coletivo bem como também pelo
prazer individual. De forma que a solidão que dure muito tempo
é uma ideia que contraria o propósito de nossos seres, uma
conversa vívida em comunhão e entendimento é também uma
ideia muito mais agradável apesar de que em constante contraste
equilibrado à solidão.
Saindo das relevâncias sobre as paixões pela
individualidade, foquemos agora nas paixões do enlace social.
Debaixo da denominação de sociedade, as formas referentes às
sensações e aos afetos podem se dar um tanto confusas e
dicotomizáveis em um número insondável de ramos. Apesar de
tudo, aqui iremos resumir a corrente social sob o nome de três
afetos que chamaremos simpatia, imitação e ambição.
Por simpatia, nosso autor entende aquela emoção que nos
faz colocar no lugar uns dos outros e sentir, pensar o que o outro
sente e pensa. É pela simpatia que circulam as artes e trabalhos
fruto do produto social que podem nos trazer alguma forma de
dor ou aprazimento, ou em que nos reconheçamos com as ideias
de sublime. Muito se tem tentado argumentar em torno da razão
das sensações, o que deve ser apenas o orgulho da razão falando
mais alto. Burke não crê que a razão esteja nem tão perto do
330 Estética e Educação

quanto se acredita geralmente que ela esteja quando se refere à


racionalidade das sensações.
No que se refere à simpatia, teríamos um texto vago se não
nos referíssemos à simpatia quando essa está sob conexão direta
com uma angústia real. Burke acredita que temos um certo grau
de deleite, que não é baixo, nos infortúnios dos outros. Se não nos
faz correr desses objetos, mas, ao contrário, nos deixa instigados
por eles. Então sim, podemos considerar que existe em nossa
mente a natureza de um certo tipo de prazer em relação a eles.
Prova disso são os diversos textos de romance e poemas; de modo
que a glória de nenhum império ou rei seria tão prazerosa quanto
o retrato das ruínas da Macedônia ou os destroços de Troia.
Cipião e Catão são personagens virtuosos, mas que não
teriam uma história tão boa quanto se vencessem em todos os seus
infortúnios; pelo contrário, é o infortúnio inapropriado a seus
caráteres que nos conecta com eles; de modo que o terror
produzido de suas turbulências não pressiona demais o deleite
produzido e ainda gera a piedade; que é uma sensação proveniente
das paixões sociais, e vem acompanhada de um certo aprazimento
na (qualidade da) vida.
Se essa sensação (piedade) fosse de uma simples dor
positiva, maioria sairia correndo no primeiro instante que a
encontrassem, de forma que muitos (suponho os mais sensíveis ao
extremo) fazem. Felizmente, a maioria das pessoas não são assim,
de forma que o alívio que sentimos ao aliviar o sofrimento e agonia
do outro também tem um final delicioso em si próprio
antecedente a qualquer racionalização de qualquer coisa que seja.
Em uma breve citação do autor: “por um instinto que funciona em
seus próprios propósitos independente do nosso consentimento”
(BURKE, 1993, p. 54).
Uma tragédia é tão mais poderosa quanto mais nos prova a
realidade de sua natureza e nos afasta de qualquer ideia de ficção,
nos aproximando da própria realidade da natureza. Mesmo sendo
seu poder de qualquer tipo que desejar, nunca alcançará àquilo
que representa na materialidade.
Westworld... 331

Burke dá o seguinte exemplo na seção que trata sobre os


efeitos da tragédia: juntemos nossos maiores esforços para reunir
a melhor tragédia. Tratemos da melhor história, com o melhor
poeta, no melhor lirismo, com o melhor coral. Se reunirmos uma
audiência fervorosa, dizemos-lhes minutos antes de começar a
sessão que um roubo gigantesco está acontecendo no banco mais
próximo e então teremos aí comprovado que nada tem tanto valor
de fato quanto a simpatia com a própria realidade.
Ainda assim, existe um certo deleite na suposição de ideias
de deleite que nos livrem do perigo real. Como por exemplo,
imaginemos que Londres foi destruída e agora poderemos
contemplar as ruínas sem termos sido vítimas da destruição. É
necessário que minha vida esteja fora de qualquer perigo para que
eu possa simpatizar com o sofrimento dos outros. Passemos à
imitação.
Burke define aqui a imitação não como a consciente, mas
sim a inerente e estética/involuntária. Segundo ele, esta é a maior
corrente humana que perpassa toda a espécie – construindo,
destruindo e transformando os sujeitos e a consciência como uma
malha microfísica cobrindo todas as paixões sociais. A partir desta
parte, a obra começa a tomar um certo tom teológico teleológico,
isto é, com as paixões sociais de simpatia e imitação, Burke começa
a interpretá-las dentro de uma ordem cosmológica responsável
pela manutenção das relações humanas. Tanto que a simpatia está
diretamente ligada a imitação, visto só considerarmos imitável
aquilo com que simpatizamos.
Já no que se refere à ambição, Burke nos dirá que ela é a
emoção responsável pela evolução estética do homem e, creio eu,
fundamenta-se também na sua antecessora a imitação, que se
fundamenta na simpatia. Burke afirma que sem a ambição os
homens seriam hoje do jeito que os brutos foram um dia ou então
seriam no fim dos tempos do jeito que ainda são hoje. A ambição
seria então a responsável pelo movimento da espécie, e não
apenas, a partir dos sujeitos individualmente considerados.
É a ambição gerando um certo prazer positivo cada vez que
um sujeito se torna mais sujeito para si, isto é, cada vez que ele se
332 Estética e Educação

levanta sobre uma opinião própria, seja ela firmada em


fundamentos bons ou ruins, e ressignifica o seu ser com sua
própria peculiaridade. Essa sensação de triunfo é de extrema
gratificação para a mente; esta última que sempre reclama para si
uma parte da dignidade e importância de tudo aquilo que
contempla.
Creio que como conclusão prévia possamos agora conceber
que o deleite é uma sensação própria em si, e esta sim envolve uma
relação direta entre dor e prazer, como a linha tênue que separa a
autopreservação do gozo pela vida, no limiar extremo onde elas
ainda não se misturaram. Mas, como diz nosso britânico, “o que
quer que excite esse deleite, é isto fonte de sublime” (BURKE, 1993,
p. 58). As ideias de perigo e morte sempre serão as mais poderosas
de todas, no que se refere o risco que elas imprimem; esse risco,
creio eu, seja a principal fonte de nosso sublime.
Burke afirma que podemos encontrar traços da perfeição
do Criador em todas as nossas imperfeições, a ponto de sermos
elevados sem orgulho. A elevação da mente deve começar se
afirmando em princípios firmes e a arte não pode ser julgadora das
emoções pois a arte não dá a regra para si mesma, mas sim a
sensibilidade; a arte e seu constante desvelamento são apenas um
produto da verdade à priori que guardamos em nós. Enquanto
caberia aos artistas serem nossos guias, eles estão imitando uns
aos outros ao invés de estarem imitando a natureza; ao passo que
os filósofos fizeram muito pouco no que se refere ao nosso ser-
sensível, e o maior erro da ciência vem a ser a estagnação. O exame
em questão não se refere a uma arma pronta para a batalha, mas
sim a um belo vestido pronto para ser usado por quem quiser dar
uma pacífica entrada nos terrenos da Verdade.
Logo enquanto escrevia, dois parágrafos atrás, deparei-me
com a sensação (que definitivamente é sublime) de não conseguir
definir ou encontrar uma palavra adequada para denominar como
fonte do sublime; e por fim tive de contentar-me com “risco”. É
nesse mesmo terreno do sensível que Burke continua a segunda
parte da obra a analisar sobre o sublime. Ora, que seria mais
Westworld... 333

sublime que a emoção comovente que nos faz ficar estagnados


incapazes de descrevê-la?
Justamente por essa incapacidade descritiva do que é
sublime, começamos a analítica do sublime pela ideia que mais o
acompanha: a obscuridade. E creio também, essa obscuridade é
também uma consequência do terror, da forma com Edmund o
expõe. Primeiro surge o terror para obscurecer a mente, e esse
terror terá seu fundamento na grandeza de algo que a mente
também não é capaz de abarcar. Não sei ao certo se aqui toda ideia
que nos remeta à obscuridade e terror são necessariamente ligadas
à de autopreservação com suas ideias de dor e perigo (apesar de
que creio seja totalmente concebível a sublimidade de algo de
forma que a mente não possa abarcar sem nos remeter à dor e ao
perigo). Caso contrário devemos analisar aqui necessariamente
todas as sensações de sublime diretamente ligadas às ideias de
autopreservação. E um último acréscimo: quanto mais
aterrorizante for um objeto, mais obscuro ele se tornará;
igualmente quanto mais vaga for uma informação, também mais
terror ela inclui em suas possibilidades.
Justamente por conta da obscuridade, o britânico irá
afirmar categoricamente a superioridade da poesia em relação às
outras artes no que se refere a despertar-nos paixões em contraste
aos logos que nos são despertados diante da pintura.
Em seguida, liga-se ao sublime também a ideia de poder.
Mas não antes essa conexão seria possível se não houvesse
anteriormente também as ideias de terror e de dor, visto a ideia de
poder ter seu fundamento na exterioridade material; isto é, para
interiorizarmos a ideia de poder ao longo da nossa vida, a
apreendemos sempre sendo submetidos a algo que pode mais que
nós, sendo assim aterrorizante por ser capaz de gerar dor. Para
afetar o objeto ao sublime deve-se esquecer seu caráter de
utilidade, apagar o sujeito do objeto e focar nos aspectos
característicos de seu sublime, por isso a necessidade de um objeto
poderoso para o despertar desta paixão. Nada que haja de acordo
com nossa conformidade será, jamais, sublime. Tanto quanto
podemos conceber cachorros como simples animais belos,
334 Estética e Educação

enquanto seus primos, os lobos, mesmo não tendo nenhum


grande distanciamento de aparência física dos cães, podemos
dizer que são sublimes.
A ideia de Deus também terá sua fonte na ideia de poder
não-necessariamente-dominador; acontece que quando se pensa
que um poder pode ser elevado a seu absoluto de bondade, então
conectamo-nos com Deus. Digo conectamo-nos, pois, como
veremos na citação que se segue, Burke segue em mais uma
afirmação teológica que encontrou abrigo na sensibilidade:

Afirmo, portanto, que, quando consideramos o Ente Supremo


apenas como um objeto do entendimento que forma uma ideia
complexa de poder, sabedoria, justiça, bondade, cuja amplitude
excede de muito as fronteiras de nossa compreensão, quando
concebemos a divindade sob esse ângulo sutil e abstrato, ela
causa pouca ou nenhuma impressão sobre a imaginação ou as
paixões. Porém, dado que somos obrigados, pela condição de
nossa natureza, a nos alçar a essas ideias puras e intelectuais
mediante imagens [...]
[...]
É necessária alguma reflexão, alguma comparação para nos
convencer de sua sabedoria, equidade e bondade; para que
fiquemos estarrecidos com seu poder, basta apenas que nossos
olhos se abram (BURKE, 1993, p. 74)

E em oposição àquilo a que tudo atinge e nada escapa (o


todo), temos aquilo que em que o tudo escapa e nada atinge: a
privação; como são maravilhosas todas as ideias das privações no
geral; silencia, vazio, escuridão, solidão etc.
Daí em consequência de Deus, e talvez dessa dialética
constante que fazemos ao colocar as ideias em posições opostas
umas às outras, a partir do oposto da privação concebemos enfim
a ideia de vastidão; grandeza de dimensão é uma causa poderosa
do sublime, não é incomum considerarmos objetos de grandeza
de extensão como fonte de uma sensação arrebatadora e isso ser
anterior a qualquer racionalidade. E quando nos referimos a
extensão, referimo-nos a seu conjunto inteiro dentro dos aspectos
Westworld... 335

que aqui formam a realidade em si: longitude, grandeza e


profundidade.
Para Burke, a longitude será a menor responsável pelos
afetos que estão dispostos a partir dela; em seguida, a segunda
menor será a de grandeza, e a mais importante será a de
profundidade. Em exemplos de grandeza, imaginemos que
estamos olhando para um prédio muito grande, e então
imaginemos que olhamos para um abismo de mesma metragem
que o prédio e perceberemos o como somos mais afetados pelo
abismo. Logo, a mente incapaz de abarcar a grandeza do sublime
em sua completude, irá dividi-lo até sua partícula ínfima,
produzindo conhecimento; a partir disso nosso autor afirma
categoricamente: a unidade do todo irá referir-se ao sublime, pois
o todo como um é inalcançável assim como também o é
inalcançável sua multiplicidade. Citando extensamente:

Entretanto, pode não ser de todo ocioso acrescentar a essas


observações acerca da magnitude que, assim como a dimensão
extremamente grande é sublime, também o é a máxima
pequenez; quando atentamos para a divisibilidade infinita da
matéria, quando seguimos a vida animal até os seres
extremamente pequenos e contudo organizados, que escapam à
mais minuciosa investigação dos sentidos, quando levamos
nossas pesquisas mais longe ainda e refletimos sobre aquelas
criaturas tão ínfimas e a escala continuamente decrescente da
existência, onde se perdem tanto a imaginação quanto os
sentidos, ficamos pasmos e atônitos ante as maravilhas do
infinitamente pequeno e não podemos distinguir o efeito desse
máximo de pequenez da própria vastidão (BURKE, 1993, p. 78)

Por essa completude do todo e o nunca terminado das


pequenezas, concebemos a ideia de infinitude. “Mas o olho não
percebendo muitas coisas, as faz parecerem infinitas, e produzem
o mesmo efeito como se o fossem”. E assim irá gerar-se o infinito
tanto a partir da vastidão como da pequeneza: em ambas as
alternativas se inclui o procedimento (ou as ideias, como queira
chamar) de sucessão e uniformidade.
336 Estética e Educação

Ainda que a vastidão seja uma ótima receita do sublime,


concebemos também a criatividade; resumimos então a grandeza
de dimensões como fonte de sublime então sob duas perspectivas
artísticas: ou as mentes comuns e lentas o farão melhor a
disposição da materialidade pela vastidão uniforme e descontínua,
ou reconheceremos mentes lentas e comuns pela sua insistência
em apelar sempre à vastidão como receita para os afetos.
A partir daqui concebemos pela vastidão a
magnanimidade, ou magnificência. Magníficas são as coisas vastas
em si mesmas, como um céu estrelado. E, da magnificência (que
por vezes experimentamos em muitas construções),
experimentamos profundo deleite na dificuldade do processo;
como, por exemplo, as pirâmides do Egito, ou o relógio de rochas
que conhecemos por Stonehenge. O Stonehenge, por sua vez, em
seu aspecto de rudeza, afasta-se das ideias de arte, ao passo que se
aproxima das ideias de destreza, que geram um efeito diferente.
Tendo considerado a extensão das coisas conforme a
capacidade de elevar-nos às ideias de grandeza, examinemos as
cores. Como as cores dependem da luz, examinemos esta
previamente, e seu oposto também, a escuridão. Simples luz não
é capaz de causar fortes impressões, e somente fortes impressões
causam o sublime. Mas uma luz como a do sol, por exemplo, chega
a sobrecarregar nossos sentidos.
Argumentamos que essa luz do sol gera estas paixões pois
o sublime só nos atinge se nos atinge em nossos extremos, se o
objeto que gera isso tem capacidade de nos alterar (e alterar
negativamente, como é o caso da ausência de visão decorrente da
luz do sol, visto já estarmos inclinados a aceitar a fonte do sublime
nas ideias de autopreservação). Então nos resta, na luz extrema, o
mesmo efeito que nos resta na escuridão extrema: obscuridade;
carência de entes e vagueza de informação.
Com exceção do vermelho, cores não são muito capazes de
produzir sublime (creio que seja porque cores pertencem ao
espectro da beleza e sua afirmação/manutenção da vida). Como,
por exemplo: o céu nublado e trovejante produz muito mais
sublime que o céu limpo – se é que o céu limpo produz algum -,
Westworld... 337

ou o afeto que gera o Everest sendo superior ao de uma montanha


em igual altura de prados verdes. Portanto, pinturas de felicidade
não são capazes de trazer efeitos felizes. Ao passo que prédios que
geram sensação do sublime, não são feitos nem por cores ou
materiais brancos, verdes, etc.; mas sim tendo cores tristes e
foscas, como preto, marrom ou púrpura.
Sons são, assim como a luz, fontes de comoção quando
colocados em seus polos extremos: ou o excesso de som, ou o
silencio absoluto; como, por exemplo, o som de catarata,
tempestades e trovões ou tiros. E, entre o som e a luz, haverá
sempre também o mesmo elemento: o repentino; como uma troca
súbita entre luz e escuridão ou entre gritos e silencio (de animais
selvagem de preferência). Em qualquer coisa repentina, seja uma
cessação ou um início, exige a atenção da mente, que é incapaz de
se pôr contra isso, anterior a toda racionalização.
A intermitência afeta a luz da mesma forma que nos afeta
com o som. O medo pelo desconhecido que devém dos intervalos
gera a confusão aterrorizante. De forma que a luz em cessação e
início intervalados, bem como o som, podem ser muito mais
aterrorizantes e sublimes que a própria escuridão ou silencio
repentinos, justamente por saber que algo se vem a seguir (vide o
conceito de costume em Hume) e não poder esperar pelo que seja
ou quanto seja (supondo-se que se saiba “o que”).
Como uma última ressalva da analítica do sublime, Burke
termina falando sobre o sentimento; a dor. Ideias relacionadas à
dor e ao perigo só são fontes de sublime ao passo que não são
fáceis de serem superadas. Pois, se assim o forem, são
simplesmente odiosas, desdenháveis; como uma aranha, ou uma
barata, ou um leve corte.
338 Estética e Educação

20.6 SOBRE WESTWORLD E A ESTÉTICA DO SUBLIME

Assim como Burke, Westworld também começa por uma


premissa muito importante; e, por ser sublime, consegue com
muita facilidade despertar esse ponto constantemente durante o
show: a curiosidade. A premissa da curiosidade ronda Westworld
não só entre os visitantes que pagam para descobrir o que quer
que eles tenham para descobrir, mas também a nós.
Adentrando um pouco mais o roteiro do seriado temos o
personagem Robert Ford, interpretado por Anthony Hopkins:
sócio fundador do parque e, dizendo grosso modo, o Deus da nova
humanidade que habita aquele mundo. A curiosidade aqui existe
pela perspectiva de Deus, pelas nossas perspectivas sobre um Deus
tão frágil, sobre as consequências de um Deus que nos é
semelhante, dentre todas as outras também possíveis.
Quanto à dor e o prazer podemos perceber muito
claramente a validade de sua afecção por mais premissas
existentes no seriado. Não só o parque inteiro mantém seu
funcionamento pelo princípio de prazer – ou diversão – (dentre
outros motivos mais obscuros), e isso devemos concordar que nos
é belo e energético (vide curiosidade); como o nome da
personagem principal que é Dolores, que em espanhol equivale à
“dores”. Logo, constantemente, pelo menos à nós, latinos, nos é
reforçada a ideia de dor sempre que a personagem entra em cena;
e, devemos concordar, a atriz é de uma beleza estonteante – a
menos quando ameaça à nossa existência, pois daí torna-se
sublime. Só a escolha de elementos (as singularidades da Evan
Rachel Wood versus a ideia reforçada pelo nome da personagem)
já é o suficiente para que nos crie a tensão necessária que permeia
toda a primeira temporada. Não obstante, sempre nos é reforçada
também uma frase, que se repete constantemente, uma citação de
Shakespeare que diz “esses deleites violentos tem finais violentos”;
e tudo isso – tudo que nos ameaça a autopreservação, a perda de
nosso estado de prazer -- nos proporcionará sensações de tensão
(e) sublime tão quão conforme reforcem-se. E devemos também
Westworld... 339

aqui dar uma ressalva à obscuridade que ronda o personagem de


Anthony Hopkins.
Quanto ao deleite que Burke nos apresenta nem
precisamos demorarmo-nos tanto para verificar seu
correspondente em Westworld: além da citação de Shakespeare, o
parque é também um deleite constante tão quanto exista a ideia
de perigo – extremamente próximo da realidade crua – enquanto
os consumidores estejam fora dele. Isto também nos remete às
considerações de Burke no que se refere à sensibilidade e sua
simpatia pela realidade tão mais próxima quanto o possível. Como
falsificabilidade disso podemos invocar à ideia de um parque de
Westworld como um simples videogame contemporâneo, e isso
nos será belo; e do lado oposto suponhamos que todos os perigos
que assistimos nos são tão reais enquanto os vemos, e isso nos será
sublime.
Continuando a partir do luto e do gozo em Burke,
Westworld nos presenteia tanto com elementos singulares e
desconexos (como uma cena específica, ou os traços da fotografia
ou a fala de uma personagem) como também mantém durante
todo o show constantes momentos de luto e gozo. Como cena
específica que verificamos uma reação de luto de uma personagem
para com outro temos Dolores e Teddy logo no primeiro episódio.
Para mostrar a evidencia de nosso próprio luto como afeto de
resposta ao show, ouso dizer somos muito sensibilizados quando
certas personagens morrem; principalmente aquelas personagens
que mais podem interferir na narrativa das outras, e inferir
igualmente caos de modo geral. A própria obscuridade dessas
personagens já nos deixa em um estado de constante reanálise
para ressignificação de todos os momentos que antes passaram
despercebidos. Ouso dizer a morte dessa personagem fora
proposital no despertar do luto, pois só o luto pode nos fazer voltar
nossas consciências em tamanha intensidade para tudo aquilo que
antes ela houvera negligenciado.
Quanto às categorias das paixões não precisamos
demorarmo-nos tanto; evidentemente os personagens são
dispostos psiquicamente entre os mais sociáveis e os mais
340 Estética e Educação

solitários, inclusive os mais solitários demonstram ter uma


conexão muito mais direta com sua capacidade de existir e
permitimo-nos considera-los sublimes em contraste aos belos
comuns.
Quanto aos androides socialmente apaixonados, o parque
exclui a possibilidade de uma imitação na sua própria razão de ser
– os robôs não podem evoluir demais –, logo, a ambição aos
personagens será igualmente negada, entregamos estes dois
conceitos à narrativa que os anfitriões têm impressas em sua
programação. A simpatia se mostra muito mais dentro da gerencia
do parque, quando as ambições de alguns funcionários renomados
começam a se relacionar. A imitação acontece quando querem ser
o que somos, gerando a ambição de querer torna-se mais; como é
bem esse o sentimento que os anfitriões livres sentem por nós; a
ambição deles nos afeta não preciso nem dizer como.
Pode-se dizer que quando Dolores atinge sua liberdade
vivendo em meio aos não-livres ela vive um constante deleite
sublime que é evidente inclusive em suas expressões; a própria
virtude da personagem diante dos conflitos que surgem em sua
vida a transforma em um objeto de sublime. Falo de Dolores pois
ela também é objeto de nossa simpatia; somos tão alienados
quanto ela em nossa realidade, somos tão estranhos ao nosso
próprio mundo gerando produtos aos outros quanto os são todos
os outros anfitriões.
Dentre os restantes elementos sublimes que nos
acompanham durante a temporada temos também a constante
obscuridade, como já dissemos. Não só a obscuridade dos
personagens constantemente mudando as significações de si,
como também não sabermos qual personagem está de acordo com
seu comportamento (delírio de humano ou delírio de anfitrião?),
dentre todas as outras coisas sobre um parque super-tecnológico
em uma sociedade demasiado desenvolvida que podemos apenas,
e somente apenas, supor; novamente reforço: sublime reside na
ideia de “algo a se arriscar”; um risco a ser tomado pela ou contra
a autopreservação. O próprio Robert Ford em toda sua
Westworld... 341

obscuridade nos remete constantemente à relação de reforço


dialético existente entre o aterrorizante e o obscuro e vice-versa.
É Robert Ford também o personagem mais sábio-poderoso
de todo o roteiro da temporada um. Torna-se poderoso pela
obscuridade que reside em todo o seu saber não desvelado; reside
nele também as ideias de fonte de dor, tanto para os androides
como objeto de divertimento dos humanos, quanto para os
humanos que podem sofrer caso Ford decida usar os androides
como ferramenta. E se ainda quisermos realocar Ford sob o
conceito de Deus, percebemos com muita clareza o que quis dizer
Burke só que dessa vez longe dos domínios invisíveis da
metafísica: “Se nos regozijamos, fazemo-lo com um
estremecimento e, mesmo quando estamos recebendo benefícios,
não podemos deixar de tremer diante de um poder que pode
conceder dádivas de tão imenso alcance”. (BURKE, 1993, P. 75)
No que se refere ao poder de Deus, concebemos também a
sublimidade das privações: ao desligar os androides para fazer a
análise de seu sistema, percebemos categoricamente que eles são
privados de tal modo que supõe-se inclusive uma privação de si;
um estranhamento próprio do eu contra si mesmo só que
diretamente ligado ao nível de consciência sobre existência; nisso
nos encontramos nas ideias de silencio e solidão, além do vazio
que é não-experimentar as sensações dentro do espectro de
existência que nos é inacessível. Dolores concebe-o como um
sonho, nossa filosofia ocidental chama de “não-ser”, e isso nos é
sublime.
Da vastidão do não-ser surge a ideia de vastidão das coisas
existentes, isto é, grandeza de dimensão. Lembro de já termos
comentado sobre a vastidão em Westworld, e creio também não
seja necessário de fato discutirmos sobre isso; é a todos auto
evidente. O parque exibe sua grandeza não só em longitude, mas
percebemo-nos em uma sensibilidade mais intensa também na
contemplação dos grandes cânions em que acontece o cenário, e
tão mais também no abismo que nos sugere o sublime a partir das
cenas que acontecem no alto desses cânions.
342 Estética e Educação

Ironicamente, o infinito (e a sublimidade que ele


comporta) é uma ideia que provemos de Deus tanto na existência
real quanto na do seriado. Não fosse a razão repartindo todos os
elementos até as últimas partículas, a construção dos androides
não seria possível. Concebemos o sublime na simples fabricação
dos anfitriões não apenas pela ideia de infinito gerada pelo ínfimo
necessário do conhecimento, mas também pelo esforço necessário
da criação, fabricação e, principalmente, sobre a ideia de todo o
processo histórico que levou a culminarmos sobre este ponto na
linha do tempo.
No que se refere ao som e à luz em Burke estaríamos
entrando em um terreno de muita subjetividade e que deixo aos
espectadores da série refletirem sobre em suas individualidades;
foquemos na intermitência. Essa intermitência reside em nunca
sabermos o momento em que algum dos anfitriões irá acordar, se
é que algum deles realmente acorda; ainda existe também o
elemento da obscuridade do conceito de narrativa dentro do
seriado.
Como última ressalva, comentaremos também sobre a
odiosidade de pequenas dores que não ameaçam à nossa
sobrevivência; é essa odiosidade que se produz no seio dos
explorados uma vez que estes percebem que não se tem nada a
perder. Rodeado de tantos elementos que nos remetem às ideias
de elevação, manutenção, transcendência e, é claro,
autopreservação, podemos definitivamente dizer (ao menos a
partir da presença da vastidão no show): Westworld é magnífico,
e isto nos é sublime.
Esta série não evoca a vida senão em estado de dominação:
sempre há alguém sobre alguém, que sabe mais que alguém e pode
mais. O jogo envolve o labirinto, o criador do labirinto, e os
jogadores do labirinto, sejam quem forem; pois este último nos é
obscuro. Westworld não evoca a vida sem evocar a pequeneza em
que ela se encontra em comparação a vastidão de toda aquela
realidade; a beleza, a harmonia, a energia só nos são acessíveis nos
elementos do seriado, senão por meio da humanidade – isto é, a
forma com a qual os humanos compartilham seu gozo dominador
Westworld... 343

sobre os objetos sem machucar uns aos outros – então pela forma
com a qual os anfitriões unem-se contra aqueles que outrora tanto
exploraram seu mundo e, através do contexto de estranhamento,
explorando também a dignidade de sua existência.

REFERÊNCIAS

BURKE, Edmund. Uma investigação filosófica sobre a origem de


nossas idéias do Sublime e do Belo. Trad. Enid Abreu Dobránszky.
Campinas, SP: Papirus, 1993.

BURKE, Edmund; WOMERSLEY, David (Ed.). A philosophical


enquiry into the origin of our ideas of the sublime and the
beautiful: and other pre-revolutionary writtings. London: Penguin
Books, 2004.

LISA JOY. Disponível em:


<https://en.wikipedia.org/wiki/Lisa_Joy>. Acesso em 24/05/2018

J.J. ABRAMS. Disponível em:


<https://pt.wikipedia.org/wiki/J._J._Abrams>. Acesso em
24/05/2018

JONATHAN NOLAN. Disponível em:


<https://pt.wikipedia.org/wiki/Jonathan_Nolan>. Acesso em:
24/05/2018

WESTWORLD (SÉRIE DE TELEVISÃO). Disponível em:


<https://pt.wikipedia.org/wiki/Westworld_(s%C3%A9rie_de_telev
is%C3%A3o)>. Acesso em: 05/06/2018

HBO. Westworld. 2017.


TERCEIRA PARTE:
Resumos
I

A ALEGORIA DA CAVERNA E A IMPORTÂNCIA


DA FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO

Bruno Roberto Bellotto*


Ewerton Proença dos Santos**

RESUMO

Neste trabalho, relacionaremos o mito da caverna, apresentado


por Platão no livro VII d’A República, com a importância da
obrigatoriedade da disciplina de filosofia no ensino médio. Em seu
livro, Platão propõe a existência de uma habitação subterrânea em
forma de caverna, com apenas uma entrada para a luz. Lá dentro
vivem, desde a infância, homens presos pelas pernas e pescoços,
de tal modo que podiam apenas permanecer no mesmo lugar e
olhar em frente. Atrás deles há uma fogueira e, atrás, homens
transeuntes que seguram estátuas, de modo que aqueles que estão
acorrentados vejam na parede apenas as sombras. Tais estátuas,
de pedra ou de madeira, representam formas do mundo sensível,
como animais ou objetos; portanto, os homens acorrentados veem
apenas uma representação ignorante da realidade, e não a
realidade em si. Propõe-se que um dos homens, de alguma forma,
consegue se libertar das correntes; ao se virar, ele nota que as
figuras na parede estavam sendo manipuladas, e não passavam de
sombras de estátuas, e a luz que reluzia era, também, criada pelo
homem. Ao sair da caverna, ele se depara com uma luz muito mais
forte do que a anterior, tão forte que quase não consegue abrir os
olhos. Aos poucos, sua visão se acostuma com a luz, e é capaz de
identificar as verdadeiras formas do que antes lhe era mostrado no
interior da caverna. Abordaremos a saída do homem do mundo da

*
UNIOESTE; E-mail: brunobelotoo@gmail.com.
**
UNIOESTE; E-mail: ewerton2705@gmail.com.
348 Estética e Educação

ignorância (caverna) e a entrada no mundo da sabedoria. Se


aplicarmos o mito da caverna no ensino na atualidade,
concluiremos que a filosofia é essencial para a formação de um
indivíduo com pensamento crítico, pois, uma vez que quebramos
as correntes do pensamento dogmático, assumimos uma nova
postura que está constantemente reconstruindo as bases da
sociedade através de um raciocínio filosófico. Com a retirada da
filosofia da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), tirar-se-ia
do estudante sua ferramenta primordial para o pensamento
lógico, implicando também, não mais na formação de cidadãos
pensantes, mas apenas meros repetidores de sombras.

PALAVRAS-CHAVE: República; Platão; Filosofia; Ensino Médio;


Mito da Caverna; Sombra; Mundo Sensível; Mundo das Ideias.

REFERÊNCIAS

PLATÃO. A República. São Paulo. Editora Martin Claret, 2002.

SCHÖPKE, Regina. Dicionário Filosófico – Conceitos


Fundamentais. São Paulo. Martins Editora Ltda, 2010.
II

A EDUCAÇÃO (DES)CONSTRUÍDA
uma reflexão a partir de Marcuse

Eli Schmidtke*

RESUMO

O propósito desse trabalho, além de apresentar algumas


conclusões e encaminhamentos sobre a pesquisa de ideologias é
aproveitar esse momento para questionar o tão sagrado solo do “já
conhecemos/sabemos” sobre aquilo que está posto, decidido e
pronto. Num primeiro momento desse trabalho questionaremos
sobre as os meios de comunicação/mídias (Rede globo) e seu
“poder” de: convencimento, persuasão e manipulação; nossa
intenção é atirar ao solo todos os pré-juízos-conceitos sobre o
tema e desbancar uma instituição sagrada, protegia e acima de
qualquer suspeita, a escola. Seria a escola um instrumento de
dominação, massificação, ou seria a mesma imune as condições
políticas sofridas pelas demais instituições? E, se a escola que diz
proteger as nossas crianças, fosse a vilã? Ou seria apenas “mais um
delírio” desse pesquisador? Como escreveu e cantou o compositor
Raul Seixas “E você ainda acredita que é um doutor, padre ou
policial que está contribuindo com sua parte para o nosso belo
quadro social”, é sobre isso que queremos discutir. E o segundo
momento é tirar a escola do seu lugar cômodo de transferência de
conhecimentos e formação imparcial de indivíduos, e traze-la para
a discussão como um instrumento politico ativo, operante e até
abissal, é o nosso objetivo. Aproveitar ao máximo as condições que
o autor oferece para abrir esse dialogo onde propomos uma nova
visão da educação, não pretendemos apenas abordar situações
pontuais dentro de sala de aula, mas um pente fino na
*
UNIOESTE; E-mail: elischmidtke2000@yahoo.com.br.
350 Estética e Educação

padronização exigida para o funcionamento da mesma. A


educação sempre foi vista com a possibilidade e responsabilidade
de questionar a sociedade e seus limites, levando o indivíduo a
buscar a sua completude, sempre foi uma tarefa atribuída a escola.
Uma vez promotora dessa situação, que leva o indivíduo a
questionar, a mesma se torna alvo. é necessário questionar os
limites e ações e principalmente as intenções ocultas ou não do
sistema de ensino, ou como queiram da educação. Buscar o
aprimoramento do ensino, a excelência na educação e a qualidade
deve ser tarefa da sociedade, visto que os benefícios adquiridos
nesse processo virão em seu benefício. Essa tarefa deve possuir
caráter persistente, incansável e determinado. É necessário que a
sociedade esteja atenta as mudanças, verificar se a educação
atende as condições da comunidade escolar, aos interesses do
Estado, ou outros interesses difusos. Esse alerta é feito por
Marcuse na obra A ideologia na sociedade industrial – o homem
unidimensional, a qual nos apropriaremos para discutir os temas
relativos a educação. Colocar a escola em outro nível, como
produtora de conhecimentos e geradora de recursos e valores, mas
também como forma de oprimir, não apenas pela simples
opressão, mas como um sistema bem articulado, com finalidades
bem estruturadas e principalmente com recursos bem definidos
para alcançar esses objetivos.

PALAVRAS-CHAVE: Opressão; Desconstrução; Formação.

REFERÊNCIAS

MARCUSE, herbert. A ideologia na sociedade industrial – o


homem unidimensional. Rio de janeiro: Zahar Editores, 1973.
III

A EQUIVALÊNCIA VALORATIVA ENTRE


MENTE E CORPO NA ÉTICA DE ESPINOSA

Murilo Morato Santos*

RESUMO

A redefinição Espinosana da constituição humana tem início


categórico já no segundo capítulo da Ética: “O homem pensa”, “um
corpo é afetado de muitas maneiras”, e “não sentimos nem
percebemos nenhuma outra coisa singular além dos corpos e dos
modos do pensar”. Destas condições primeiras, Spinoza define
também o Corpo: “o corpo humano compõe-se de muitos
indivíduos”; “[o corpo e suas partes] são afetados pelos corpos
exteriores de muitas maneiras”; o corpo humano afeta corpos
exteriores de muitas maneiras. Na proposição seguinte Spinoza
revela mais uma característica, e talvez a mais importante da
composição humana. Diz ele: “a mente humana é capaz de
perceber muitas coisas, e é tanto mais capaz quanto maior for o
número de maneiras pelas quais seu corpo pode ser arranjado”,
proposição fundamental para a compreensão do sistema
espinosano, pois expressa a ideia de que o corpo humano torna a
mente tanto mais potente quanto mais potente for sua capacidade
de ser afetado pelos corpos que o circundam. Neste sentido faz-se
imprescindível para o filósofo a definição de Mente: “o objeto de
nossa mente é o corpo existente, e nenhuma outra coisa”.
Portanto, o corpo, enquanto constituinte do atributo-extensão, é
considerado essencial para a constituição do conteúdo mental,
pois detém a capacidade de ser afetado de múltiplas maneiras
frente aos corpos externos do mundo circundante, e seu papel, de
acordo com Spinoza, é receber estes “dados” pelas suas partes
*
UNIOESTE; E-mail: murilomorato@gmail.com.
352 Estética e Educação

sensitivas constituintes, para que haja conteúdo objeto da mente.


Este conteúdo advindo da relação dos corpos com o mundo,
Spinoza chamará de Imagines, pois são imagens que o corpo forma
dos corpos externos. As imagens são resultado das relações entre
os corpos, e são inconscientes. Destas imagens que se passam pelo
corpo, a mente tem apenas algumas ideias, e estas ideias serão
trabalhadas por ele sob o termo de Ideae affectionum. As ideias de
afecção são ideias de modificações que um corpo sofre quando se
encontra com outros corpos: a mente não reconhece os corpos
como objetos separados do mundo, em si mesmos, mas sim, tem
apenas ideias dos corpos entre si, das imagens que estabelece, e é
daí que surge o conhecimento humano da realidade, o
conhecimento Imaginari, fruto da atividade da mente diante das
imagens produzidas pelo corpo, como uma suposta ideia da ideia,
a tal ponto que “as ideias que temos dos corpos exteriores indicam
mais o estado de nosso corpo do que a natureza dos corpos
exteriores”. Torna-se evidente, assim, que a mente é a detentora
da capacidade de ter ideias de afecções das relações estabelecidas
pelo corpo em seus eventuais encontros mundanos. Justamente
estas definições é que garantem e colocam o corpo e mente em
posições equivalentes, pois a constituição do conhecimento
imaginário faz do corpo não só um instrumento necessário pelo
caráter de mediação que ele estabelece entre o que é externo,
tomado aqui como empírico, mas também o coloca como
condição necessária para a criação de afecções e quaisquer ideias
na mente, já que ela é a ideia do corpo.

PALAVRAS-CHAVE: Espinosa; Mente e corpo; Monismo; Ética;


Afecção.

REFERÊNCIAS

BARTUSCHAT, Wolfgang. Espinosa Introdução. Porto Alegre:


Artmed, 2010.
A equivalência valorativa... 353

CHAUÍ, Marilena. Desejo paixão e ação na ética de Espinosa. São


Paulo: Companhia das Letras, 2011.

SPINOZA, Benedictus de. Ética. Trad. Tomaz Tadeu. 2. ed. 2.


Reimp. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

SPINOZA, Benedictus de. Tratado da correção do intelecto. Trad.


Marilena de Souza Chauí. 3. ed. — São Paulo; Coleção os
pensadores, Abril Cultural, 1983.
IV

A ESTRUTURA TROPOLÓGICA
DA LINGUAGEM EM NIETZCHE

Celia Machado Benvenho*

RESUMO

Nietzsche defende em seu Curso de retórica (1872-1874) que a


linguagem é essencialmente e por sua própria natureza uma arte.
A partir desse contexto, assim como em outros textos desse
período da juventude, a relação do homem com o mundo
caracteriza-se como uma relação estética. A linguagem se origina
de um procedimento estético originário, inconsciente, intuitivo,
um processo de criação simbólica que tem início na percepção
humana do mundo. Enquanto arte, a linguagem expressa somente
nossa relação com as coisas, com o mundo, ou seja, sua origem
não é intelectual, mas intuitiva. Tudo se inicia com um estímulo
nervoso, uma excitação que suscita uma sensação que, por sua vez,
é representada em uma imagem e depois modelada em um som.
Aqui está uma das chaves para entendermos a defesa de Nietzsche
de uma estrutura tropológica da linguagem. O modo como o
homem expressa a sua relação com o mundo, transpondo
sensações em imagens, é figurado, é retórico. Estamos sempre
operando num processo de transposição: de imagem a imagem.
Ora, se não há uma conexão lógica entre as palavras e as coisas, se
os enunciados linguísticos não estão relacionados a um significado
ideal ou com a essência das coisas, buscar um critério de
correspondência entre as palavras e o mundo exterior não é mais
que um mero artifício ilusório. Assim, se todas as questões que se
referem à linguagem são questões retóricas, ou seja, toda
expressão linguística pode ser reduzida em seus elementos
*
UNIOESTE; E-mail: celia.benvenho@gmail.com.
356 Estética e Educação

essenciais à sua estrutura retórica inerente, todo resultado do uso


linguístico não pode ser uma episteme, um conhecimento, já que
não nos diz como as coisas são em sua essência e verdade, mas
meras opiniões, ilusões, doxa. Tanto no Curso de retórica, como
nos Fragmentos Póstumos do período, assim como no texto
Verdade e mentira no sentido extra-moral, Nietzsche toma a
metáfora como um tropo por excelência na medida em que é um
importante instrumento de exemplificação do processo artístico
que ocorre na relação do homem com o mundo. O objetivo deste
trabalho é investigar, no âmbito da filosofia do jovem Nietzsche,
como a concepção retórica da linguagem se mostra relevante para
o filósofo e quais as influências dessa abordagem em seu estilo de
filosofar posterior. A questão que se coloca é se esta concepção
retórica da linguagem já não anuncia uma objeção do filósofo à
pretensão metafísica de um discurso que expresse a verdade,
objeção típica da crítica genealógica que ele irá empreender, e que,
consequentemente, já o afastaria dos pressupostos metafísicos e
dos motivos românticos da “metafísica de artista” que ele
defendera.

PALAVRAS-CHAVE: Nietzsche; Linguagem; Tropológica;


Retórica; Estética.

REFERÊNCIAS

NIETZSCHE, F. Curso de Retórica. Tradução: Thelma L. da


Fonseca. In: Cadernos de Tradução. São Paulo: 1999.

_______. Escritos sobre retórica. Edição, tradução e introdução de


Luis Enrique de Santiago Guervós. Madrid: Editorial Trotta,
2000, p. 9-77.

_______. O nascimento da tragédia: ou helenismo e pessimismo.


Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

_______. Sobre Verdade e Mentira no Sentido Extra-Moral. (Org. e


Trad. Fernando de Moraes Barros). São Paulo: Hedra, 2007.
V

A INFLUÊNCIA DE MICHEL
FOUCAULT PARA A TEORIA QUEER

Jackison Roberto dos Santos Pinheiro Junior*

RESUMO

Nos últimos anos tem se proliferado debates sobre partes da


sociedade que antes eram reprimidas brutalmente e que hoje já se
inserem na sociedade e podem questionar seu modelo tradicional.
No entanto, essa inclusão não é total, uma vez que muitos
aparatos ainda são mantidos para que se conserve o antigo modelo
em detrimento e desmoralização do novo. A aparente inclusão
atual possui toda sua trilha histórica, que se constituí numa série
de fatos e revoltas, que tiveram o papel de resistir a uma violência
imposta. Um dos marcos para a população de lésbicas, gays,
bissexuais, transexuais e transgêneros (LGBT) ocorreu em 1969
com a chamada revolta de Stonewall, uma grande ação de revolta
contra a ação violenta da polícia ao invadir o bar Stonewall,
considerado o maior movimento pela chamada liberação sexual.
Esses sujeitos LGBT's impuseram sua existência à sociedade e
mostraram que se pode lutar contra a normalização que seus
corpos sofreram. Alguns anos mais tarde, em 1976, o filósofo
francês Michel Foucault lança seu livro intitulado História da
Sexualidade: A vontade de saber em que faz uma análise, através de
um método re-apropriado de Nietzsche, chamado genealogia,
investigando como operou uma suposta repressão da sexualidade,
que em verdade produziu uma série de normas e discursos
limitados da sexualidade de forma a construir uma ciência. Essa
hipótese repressiva opera não apenas na exclusão ou eliminação,
mas também de uma forma produtiva, na medida em que
*
UNIOESTE; E-mail: jackyson_junior@hotmail.com.
358 Estética e Educação

estimulou a criação das categorias que repreendeu, e permitiu


também que os sujeitos se reconhecem como semelhantes. Dessa
maneira, começaram a se proliferar movimentos contra a
violência (como foi Stonewall) buscando aceitação dessas
comunidades marginalizadas, no entanto, utilizando a
catalogação clínica que lhes havia sido imposta, de maneira que os
termos como homossexual, gay, lésbica e etc. se mostravam como
uma essência dos sujeitos. Uma crítica a
essa essencialização começa a surgir cerca de 10 anos depois,
quando se inicia o que hoje é conhecido como
"Teoria Queer". Neste artigo tentamos compreender o que é a
Teoria Queer, quais são suas origens, uma vez que nasce em meio
a debates da academia com a sociedade e no seio dos movimentos
sociais, seus argumentos para compreender sua relevância no
debate e as consequências que suas ideias podem trazer. Para isso
utiliza-se a obra "Foucault y la Teoria Queer" de Tamsin Spargo,
justamente por trabalhar a influência do autor para a teoria, com
a pretensão de uma genealogia queer para, dessa forma,
estabelecer um debate entre a academia e a sociedade.

PALAVRAS-CHAVE: Michel Foucault; Teoria Queer; Sexualidade.

REFERÊNCIAS

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e Subversão


da Identidade. Tradução Renato Aguiar. 8ª edição. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2015.

CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Tradução Beatriz de


Almeida Magalhães. 1ª edição. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2014.

CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault. Tradução Ingrid


Müller Xavier. 2ª edição. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2016.
A influência de Michel Foucault... 359

CHAUÍ, Marilena. Repressão sexual: Essa nossa (des)conhecida.


2ª edição. São Paulo: Editora Brasiliense. 1984

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Tradução Maria


Thereza da Costa Albuquerque. 20ª edição. São Paulo: Editora
Graal. 3v. 1988.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Organização e


Tradução Roberto Machado. 22ª edição. Rio de Janeiro: Editora
Graal, 1979.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão.


Tradução Raquel Ramalhete. 31ª edição. Petrópolis: Vozes, 1987.

MOURANI, Daniela Silva. Michel Foucault e A vontade de saber.


2009. 101 f. Dissertação (Mestrado em Filosofia) - Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível
em: <https://tede2.pucsp.br/handle/handle/11815> Acessado em:
17/04/2018.

SALIH, Sara. Judith Butler e a


Teoria Queer. Tradução Guacira Lopes Louro 1ª edição. Belo
Horizonte: Autentica Editora. 2012.

SPARGO, Tamsin. Foucault y la teoría queer. Traducción


Gabriela Ventureira 1ª edição. Barcelona: Editorial Gedisa, 2007.
VI

A LINGUÍSTICA COMO CIÊNCIA EM SAUSSURE

Thayla Magally Gevehr*

RESUMO

Logo na introdução do Curso de linguística geral organizado por


dois discípulos de Ferdinand de Saussure, temos a retratação das
dificuldades presentes quando o estudo da linguística estava em
jogo. A principal das dificuldades apresentada se refere à
determinação do objeto: até então não se sabia se o objeto da
linguística era a forma lógico-gramatical da linguagem (também
chamada de gramática normativa), se era a língua ou os textos
estudados e interpretados criticamente (também chamada de
filologia) ou se era a língua enquanto objeto de comparação
(também chamada de filologia ou gramática comparativa). A essa
indeterminação do objeto somavam-se dificuldades tais como a
escolha de um método plausível para o estudo linguístico e a
delimitação da tarefa do linguista diante do objeto, ou seja, não se
sabia, ao certo, (1) o que estudar, (2) como estudar e (3) quais as
tarefas a serem desenvolvidas para cumprir com o objetivo do
estudo linguístico. Isto acontecia porque, na época de Saussure,
todo e qualquer empreendimento frente à linguagem era, sem
nenhuma distinção, denominado de “linguística”, ocasionando,
além das dificuldades já citadas (a falta da delimitação do objeto,
do método e da tarefa), uma falta de determinação terminológica
adequada (investigava-se coisas diferentes fazendo uso de nomes
iguais ou coisas iguais fazendo uso de nomes diferentes) que
aspirasse à universalidade (condição indispensável à ciência). Por
isso, o filósofo genebrino foi categórico ao afirmar que, se se
quisesse que a linguística fosse consagrada como ciência, seria
*
UFG; E-mail: gevehrthayla@gmail.com.
362 Estética e Educação

preciso, primeiramente, depurar o campo em que até então fora


erigida. Como caminho óbvio frente a essa caracterização do
estudo linguístico de sua época, Saussure assume como tarefa,
então, a determinação do objeto (a língua) e do método de estudo
(sincrônico) linguístico, visando, com isso, mostrar a estrutura
desde a qual a linguagem (ou a sua parte essencial) poderia ser
pensada como passível de sentido ou significatividade. Assim,
diante do que foi dito, o objetivo desse trabalho é justamente o de
apresentar o que aqui foi apenas indicado, isto é, visamos
esclarecer (1) como e por que a língua é o objeto de estudo da
linguística, (2) como e por que o estudo sincrônico da língua é o
mais plausível e (3) como e por que esse estudo conduz à
linguística a delimitar a estrutura (o sintagma) desde a qual os
elementos (as unidades linguísticas) podem ser combinados e
diferenciados desde um jogo de sentido. A apresentação desses
três momentos visa, por fim, (4) justificar por que a linguística, em
Saussure, pode ser considerada ciência.

PALAVRAS-CHAVE: Linguística. Língua. Sincronia. Sentido.


Ciência.

REFERÊNCIAS

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Linguística Geral. Tradução


de Antônio Cheline, José Paulo Paes e Izidoro Blinkstein. São
Paulo: Editora Cultrix, S/A.

BORBA, Francisco. Introdução aos Estudos Linguísticos. São


Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1971.

CULLER, Jonathan. As ideias de Saussure. Tradução de Carlos


Alberto da Fonseca. São Paulo: Editora Cultrix,1979.
VII

A LUTA DE CLASSES COMO PROCESSO


HISTÓRICO DE NEGAÇÃO À PROPRIEDADE

Leandro Ramires Duarte*

RESUMO

O presente trabalho trata da questão da luta de classes, que


permeia os escritos do filósofo alemão Karl Marx (1818-1883).
Tomar-se-á como fonte principal a obra do autor mais maduro
enquanto intelectual, O Capital (1867) e também os rascunhos
intitulados Grundrisse (1857), mais especificamente um texto
componente deste compilado nomeado de Formas Econômicas
que Precedem o Modo de Produção Capitalista. Neste sentido,
utilizar-se-á o conceito de história universal, amplamente
proposto nos textos de Héctor Benoit. Tal conceito versa sobre o
processo histórico de negação à propriedade a grande massa do
povo, processo inerente ao modo de produção capitalista. No
capítulo XXIV de O Capital, intitulado A Assim Chamada
Acumulação Primitiva, Marx narra a expropriação da propriedade
de terras e meios de produção da grande massa de camponeses na
Inglaterra nos anos que sucederam o feudalismo europeu. Desta
forma, o filósofo depois de ter explicado o funcionamento da
sociedade burguesa e seu modo de produzir no Livro I de O
Capital, explicará por último a cisão necessária para o estopim do
modus operandi do modo de produção capitalista, que necessita
de uma abundante mão-de-obra, contudo, também é condição
sine qua non que a grande massa da população esteja desprovida
de meios de reproduzir sua subsistência, portanto, negando a
propriedade material de seus meios objetivos de produzir. Além
desta negação à propriedade dos meios de se produzir, a lógica do
*
UNIOESTE; E-mail: leandroduarte@msn.com
364 Estética e Educação

modo de produção capitalista cria a aparência de duas pessoas


distintas e abstratas, tal como Marx escrevera no capítulo inicial
de O Capital – sobre a mercadoria -, de um lado compradores e de
outro, vendedores. Neste sentido, só resta a esta massa dos
indivíduos, impedidos dos meios de produzir e subsistir, vender
sua força de trabalho em troca de um salário, sendo a única
mercadoria que ainda tem propriedade, para pessoas dispostas a
abrir mão de uma certa quantidade de dinheiro para a compra da
força de trabalho colocada à venda. Desta maneira, em O Capital,
o autor quer mostrar que a gênese do modo de produção
capitalista não é natural e nem por base no mérito, mas necessita
uma grande massa da população não possa produzir com seus
próprios meios de produção, colocando assim, em marcha, a luta
de classes. Neste sentido, convém comparar o capítulo XXIV de O
Capital com o texto Formas Econômicas que Precedem o Modo de
Produção Capitalista¸ pois neste texto Marx irá narrar sobre as
comunidades existentes antes da lógica capitalista, onde tinham
por base, a formação de comunidades com fundamentadas na
produção e acesso à propriedade dos meios de produzir, de forma
social, para manutenção das diversas comunidades. Por fim,
poder-se-á através deste percurso investigar a história do modo de
produção capitalista, como a história universal da negação à
propriedade a grande massa da população, deste modo, como
Marx pensa a luta de classes como o motor da história.

PALAVRAS-CHAVE: luta de classes; Karl Marx; camponês;


história universal; negação; propriedade.

REFERÊNCIAS

REFERÊNCIAS PRIMÁRIAS

MARX, Karl. O Capital. Tradução: Flávio Kothe e Régis Barbosa.


São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Coleção Os Economistas).
A luta de classe... 365

MARX, Karl. Grundrisse: Manuscritos Econômicos de 1857-1858:


Esboços da Crítica da Economia Política. Tradução: Mario
Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.

REFERÊNCIAS SECUNDÁRIAS

BENOIT, Hector. A Luta de Classes como Fundamento da


História. ln Caio Navarro de Toledo (org): Ensaios sobre o
Manifesto Comunista. Campinas: Ed. Xamã- IFCH/Unicamp, SP,
1998.

BENOIT, Héctor. Sobre a crítica (dialética) de O Capital. Revista


Crítica Marxista, Campinas, 1996.
VIII

A MORTE DE DEUS E A LANTERNA DE DIÓGENES:


aproximações entre Nietzsche e o cinismo grego

Leonardo Augusto Catafesta*

RESUMO

No notório aforismo 125 d’A Gaia Ciência, no qual Nietzsche


aponta para a morte de Deus, uma personagem chama a atenção:
o homem louco, homônimo do aforismo, que anuncia no mercado
o austero deicídio. O fato da personagem estar com uma lanterna
em plena luz do dia procurando Deus, associa-se diretamente com
o filósofo grego Diógenes de Sinope, célebre por “procurar o
homem” equitativamente. A partir desta nítida alusão, surge a
inevitável questão: até que ponto o filósofo alemão é influenciado
pelos questionamentos e concepções do filósofo cínico? E mais
ainda: podemos encontrar na filosofia nietzschiana, de maneira
explícita ou implícita, além de Diógenes, traços da corrente cínica
grega, que se manifesta, por exemplo, nos filósofos Antístenes e
Crátes? Na leitura dos textos nietzschianos demostra que a
familiaridade com o cinismo vai além da exposta no aforismo
mencionado acima. A denominada “filosofia cínica” (kynismós),
que deriva de “cão” (kýon), e teve como fundador o discípulo de
Sócrates, Antístenes, mas foi o seu discípulo, Diógenes de Sinope,
o maior representante desse “movimento espiritual”. Crátes,
seguidor de Diógenes, é outro grande expoente pelo estilo e
depreciação das convenções. Esses três filósofos incubem o núcleo
do cinismo. Apesar de se ramificar ainda na era helenística e
ressurgindo com certa popularidade na era imperial, o cinismo foi
perdendo, gradativamente, seu vigor e originalidade, adquirindo,
com o passar do tempo, um sentido figurado com conotação
*
UNIOESTE; E-mail: leonardocatafesta@yahoo.com.br.
368 Estética e Educação

pejorativa. Ao resgatar as principais noções dos filósofos citados


acima, constata-se que uma possível associação entre Nietzsche e
o cinismo faz parte de uma estratégia muito utilizada pelo filósofo
alemão: utilizar determinado paradigma de pensamento para
radicalizar a crítica, ruino as possibilidades da constituição de
determina configuração atacada, visando, consequentemente, a
explanação de sua própria filosofia. Apesar dos limites existentes
no cinismo, principalmente no que tange à falta de rigor no caráter
filosófico/argumentativo, e de uma alternativa construtiva ao que
está sendo reprovado, podemos encontrar no cajado do cínico um
auxílio aos golpes do martelo nietzschiano à crítica dos princípios
que norteiam os valores gregários, decadentes par excellence na
concepção do pensador alemão. Ao anunciar um inimigo em
comum, Nietzsche encontra no cinismo grego um aliado. Dentre
os vários aspectos possíveis de filiação, destacaremos três: a
iconoclastia do cínico, que traz, concomitantemente, a crítica aos
valores estabelecidos, fundamental para o filósofo da
transvaloração; o ataque aos fundamentos metafísicos da razão, na
qual o cinismo efetuou dentro do solo grego contrariando as
consolidações socrático-platônicas, e que são levadas às últimas
consequências por Nietzsche; e a necessidade, para tais tarefas, da
construção de um estilo literário/filosófico distinto da tradição
que possibilite operar a implosão dos pressupostos que se visa
contestar.

PALAVRAS-CHAVE: Nietzsche; cinismo grego; crítica aos


valores.
IX

CLÍNICA DE PSICOLOGIA
FENOMENOLÓGICA EXISTENCIAL

Giane Inacio dos Santos*

RESUMO

O objetivo deste mini artigo é trazer uma breve fundamentação


teórica da teoria existencial do filosofo e escritor Jean-Paul Sartre
e descrever alguns de seus principais conceitos para assim dar
início a também breve contextualização do que se trata a terapia
vivencial no contexto clínico desta teoria, abordando também o
método chamado redução fenomenológica criado pelo filósofo
Edmund Gustav Albrecht Husserl, pois é esse médoto que vem
auxiliando as escutas clínicas dentro da teoria existencial. Esse
método, redução fenomenológica, consiste em uma forma de
acesso de um horizonte de reflexão que coloca o ser-no-mundo do
Dasein como questão primordial no pensamento fenomenológico,
ou seja, nesse processo de redução o terapeuta deve abster-se de
si (suspendendo seu juízo de valores subjetivos), com o objetivo
de ouvir de maneira empática seu cliente. Portando esse trabalho
se dará em forma de referencial teórico sobre a abordagem
existencial e a terapia vivencial. A terapia na clínica existencial se
dá com o intuito de entender a existência da pessoa, seu existir,
suas limitações, medos e angustias e como a pessoa da conta de
tudo isso, como ela age diante daquilo que a caracteriza, e para
que isso ocorra na terapia é preciso que o psicólogo faça a redução
fenomenológica para que seja possível entender cada fenômeno
como ele mesmo, sem expor o fenômeno do cliente com a moral e
valores do terapeuta. É a partir dessa colocação que esse trabalho
descorrerá, afim de contextualizar a importancia de uma base
*
Pontifícia Universidade Católica.
370 Estética e Educação

teórica que antecipe o trabalho clínico para que o mesmo ocorra


da forma mais correta e respeitosa com o cliente. Sartre em seu
livro “O ser e o nada” Sartre aborda alguns temas que nos faz
entender a concepção de homem a luz de sua teoria, trata da
existência como algo que precede a essência humana, e que a
essência é construída através de escolhas feitas pelo homem
quando este se lança ao mundo como um ser-no-mundo e é
através de suas relações com o outro que esse homem se faz. Para
Sartre o homem é um ser livre, prisioneiro de sua liberdade, não
sendo livre apenas para escolher não ser livre. Os valores do
homem são criados a partir de suas escolhas e as escolhas que faz
o projeta a ser no mundo, para Sartre o ato de não escolher
também é visto como uma escolha, sendo assim não á como se
recusar a escolher. Dado o exposto o trabalho fará uma breve
síntese com leitura acessível sobre a teoria existencial e sua prática
clínica.

PALAVRAS-CHAVE: psicologia; fenomenologia; existencialismo;


terapia vivencial.

REFERÊNCIAS

CAMON, Valdemar Augusto Angerami. Psicoterapia Existencial.


Editora Thomson Learning Brasil, São Paulo, SP, 2012.

PERDIGÃO, Paulo. Existência e liberdade: uma introdução à


filosofia de Sartre. Editora L&PM – Porto Alegre, RS, 1995.

SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada – ensaio de ontologia


fenomenológica. Tradução Paulo Perdigão. Editora Vozes –
Petrópolis, RJ, 1997.

FORGHIERI, Yolanda Cintrão. Psicologia Fenomenológica:


fundamentos, métodos e pesquisa. São Paulo: Pioneira Thomson
Learning, 1993
Clínica de psicologia... 371

ERTHAL, Tereza Cristina Saldanha. Psicoterapia vivencial: uma


abordagem existencial em psicoterapia. Petropolis, Vozes, 2004.
X

FILOSOFIA E VESTIBULAR
um olhar sobre o ensino de filosofia
em instituições particulares

Marcos Fernando de Souza Máximo*

RESUMO

Ao ministrar aulas de filosofia para o Ensino Fundamental II e


Ensino Médio, pode-se perceber o quanto a lógica
“mercadológica” do ensino, em escolas que prezam pelos
resultados em vestibulares, tem conduzido a um não
desenvolvimento do pensamento crítico. Isto é perceptível
quando a preocupação destas instituições de Ensino se baseia em
números, quais sejam, números de aprovados em vestibulares. Os
materiais destes colégios são, em geral, de grandes grupos
educacionais particulares do país. Deste modo, acabam sendo
desenvolvidos todos no mesmo sentido mercadológico. No caso
da filosofia fica ainda mais complicado, por se tratar de uma
disciplina na qual faz-se necessário o desenvolvimento de um
pensamento crítico, apoiado em conceitos, teorias e argumentos.
Os materiais didáticos, destes grandes grupos, estão organizados
seguindo a cronologia da “História da Filosofia” o que, não parece
totalmente ruim. A problemática que aqui se apresenta, refere-se
ao fato de que, aplicando a fórmula desses materiais, de maneira
unilateral, acaba-se por se formar uma cultura escolar, em relação
a filosofia, que é fria, não interativa, ausente de ação. Segundo
Célia Benvenho “os conhecimentos de Filosofia não devem ser
simplesmente assimilados pelos estudantes porque foram
transmitidos pelo professor, mas devem ser vivos e servir de apoio
à vida” (2014, p. 23), ou seja, as estruturas dos cursinhos pré-
*
UNIOESTE; barcosfernando@hotmail.com.
374 Estética e Educação

vestibular atuais, contribuem no sentido contrário ao proposto


pela autora. Preza-se pela assimilação pura e simples, aquilo que
se estuda não se leva adiante, as teorias não se comprometemcom
a realidade. Apenas são decoradas para que gerem resultado em
provas. É necessário considerar a importância da filosofia no
Ensino Fundamental II e Médio, ela foi concebida como uma
“disciplina que tem ‘o que dizer’” (BRISKIEVICZ, FERREIRA E
FERREIRA, 2018, p. 3), por isso deveria conduzir também ao “ter o
que pensar”, ao “ter o que refletir”, ao “ter o que problematizar”.
Torna-se função do docente, elaborar discussões em sala que
conduzam ao pensar, mas esse docente não pode ser deixado de
lado pela estrutura educacional que, pelo contrário, deveria
possibilitar que o diálogo e a rigorosa investigação em filosofia
conduzissem os alunos mais do que a uma cadeira de
universidade, ao desenvolvimento de um pensamento e de uma
ação refletidos, problematizados e ancorados de argumentos.

PALAVRAS-CHAVE: Ensino de Filosofia; Ensino Médio;


Vestibular; Pensamento Crítico.

REFERÊNCIAS

BENVENHO, Célia Machado. A aula de Filosofia como Atividade


Filosófica. In: A filosofia em Curso II. Porto Alegre: Evangraf,
2014.

BRISKIEVICZ, Danilo Arnaldo, FERREIRA, Amauri Carlos,


FERREIRA, Soraia Aparecida Belton. Desafios na tessitura do
filosofar: A prática da docência no Ensino Médio. Educação em
Revista. Vol. 34. Belo Horizonte, 2018. Disponível em Scielo.br.
XI

HEIDEGGER E A FINITUDE DO DASEIN

Neusa Rudek Onate*

RESUMO

Pensar sobre a finitude do homem implica o conhecimento da


essência de sua finitude. Afirmar que o homem é finito ou existe
de modo finito a partir das suas imperfeições não esclarece sua
determinação fundamental enquanto finito. Nas palavras de
Heidegger: “Não se pode saber, de antemão, se as imperfeições do
homem permitem ver imediatamente sua finitude ou se são
apenas remotas consequências fáticas da essência de sua finitude,
que não pode ser compreendida senão a partir desta”
(HEIDEGGER, 1991, p. 219). Assim, o modo como se coloca a
pergunta acerca da finitude do homem não pode ser a partir de
suas propriedades fáticas. Eis aqui, a tarefa da fundamentação da
metafisica que, por sua vez, exige uma pergunta fundamental, a
pergunta pelo ser. É notório que Ser e tempo (1927) foi publicado
antes dos escritos sobre a Phanomenologische interpretation von
kants kritik der reinen vernunft de 1927-1928 e do kantbuch de 1929,
contudo, trata-se apenas de uma sequência cronológica, mas, não
conceitual e argumentativa, pois, é somente a partir das reflexões
heideggerianas acerca dos impasses conceituais da imaginação
transcendental da Crítica da razão pura que a concepção de
finitude do Dasein e outros conceitos de Ser e tempo foram
desenvolvidos. No parágrafo VI de Ser e tempo Heidegger se
pergunta até onde a ontologia interpretou o ser articulado com o
fenômeno do tempo e, se, de algum modo, chegou a ser elaborada
fundamentalmente. Neste contexto, Heidegger alega que,
somente Kant teria sido o primeiro e o único a ter avançado com
*
UNIOESTE; E-mail: neusarudek@hotmail.com.
376 Estética e Educação

a investigação da temporalidade. Somente tendo-se em vista a


problemática acerca da temporalidade, pode-se trazer lume à
doutrina do esquematismo, que, por sua vez, ficara obscura ao
próprio Kant. Por não ter em seu projeto a questão do ser e uma
ontologia do Dasein, Kant recua diante da imaginação
transcendental. A falta do questionamento acerca do ser decorre
de suas raízes cartesianas, que, por sua vez, desnorteiam a
concepção de tempo originário a uma noção objetiva de tempo, o
que o impede de avançar na determinação transcendental do
tempo, em resultado, a conexão entre o “eu penso” e o tempo não
pôde ser devidamente problematizada. A questão do ser deve,
necessariamente, ser pensada a partir daquilo de que Kant recua.
Isto posto, a tarefa que Heidegger se propõe em Ser e tempo se
orienta pela interpretação da doutrina do esquematismo, ou seja,
pela doutrina kantiana do tempo, como podemos depreender a
partir da seguinte afirmação de Heidegger: “Seguindo a tarefa da
destruição, orientada pela problemática da temporalidade, o
presente tratado busca interpretar o capítulo do esquematismo e,
a partir daí a doutrina do tempo” (HEIDEGGER, 1977b, p. 24). Com
este indicativo, cabe à presente pesquisa investigar o quanto
Heidegger, preparado com aquilo que faltara a Kant, avança na
problemática da temporalidade para fundamentar a finitude do
Dasein.

PALAVRAS-CHAVE: Heidegger; Dasein; Finitude; Ser e Tempo

REFERÊNCIAS

HEIDEGGER, Martin. Phanomenologische interpretation von


kants kritik der reinen vernunft. In. GA 25. Anhang. Frankfurt a
M.: Vittorio Klostermann, 1977a.

_______. Interprétation phénomenologique de la “critique de la


raison pure de Kant”. Trad. Jean-François Courtine. Ed.
Gallimard, 1982.
Heidegger e a finitude do dasein 377

_______. Kant und das Problem der Metaphysik (1973). In. GA 3.


Anhang. Frankfurt a M.: Vittorio Klostermann, GmbH, Frankfurt
am Main,1991.

_______. Kant et le problème de la métaphysique. Trad. Alphonse


de Waelhens e Walter Biemel. Ed. Gallimard, 1953.

_______. Kant y el problema de la metafisica. Trad. Gred Ibscher


Roth. Fondo de Cultura, México, 1996.

_______. Sein und Zeit. In: GA 2, ed. Friedrich-Wilhelm von


Herrmann, Frankfurt, V. Klostermann Verlag, 1977b.

_______. Ser y Tiempo. Trad. Jorge Eduardo Rivera. Santiago de


Chile: Universitária, 1997.

DAHLSTROM, Daniel. “The Critique of Pure Reason and


Continental Philosophy: Heidegger’s Interpretation of
Transcendental Imagination.” In: The Cambridge companion to
Kant’s Critique of pure reason / edited by Paul Guyer. Cambridge
University Press, 2010, p. 380-400.

_______. “Heidegger and German Idealism” In: A Companion to


Heidegger. Edited by Hubert L. Dreyfus, Mark A. Wrathall
Copyright by Blackwell Publishing Ltd, 2005, p. 65-79.

_______. “Heidegger’s Kantian Turn: Notes to his commentary of


the Kritik der Reinen Vernunft.” In: The Review of Metaphysics,
Vol. 45, n. 2, 1991, p. 329-361.

DASTUR, Françoise. Heidegger e a questão do tempo. Lisboa:


Instituto Piaget, 1990.

_______. “The ekstatico-horizontal constituition of temporality”.


London: Routledge, 1992.
378 Estética e Educação

DUARTE, Irene Borges. “¿Recepción o interceptación? Reflejos


de la mirada heideggeriana hacia Kant.” In: Anales del Seminario
de Historia de la Filosofia. Madri, nº 12, 1995, p. 213-232.

HAN-PILE, Béatrice. “Early Heidegger’s Appropriation of Kant”.


In: A Companion to Heidegger. Edited by Hubert L. Dreyfus,
Mark A. Wrathall Copyright by Blackwell Publishing Ltd, 2005, p.
80-101.

KANT, I. Crítica da razão pura. 5ª Ed. Trad. Manuela Pinto dos


Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 2001.

_______. Critica della ragione pura. Traduzione di Giorgio Colli,


Milano: Adelphi Edizioni, 1999.

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 5ª Ed. Trad. Manuela


Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa:
Calouste Gulbenkian, 2001.

_______. Critica della ragione pura. Traduzione di Giorgio Colli,


Milano: Adelphi Edizioni, 1999.

KISIEL, Theodor. The genesis of Heidegger’s being and


time. Berkeley; Los Angeles; London: University of California
Press, 1995.

_______. “Recent Heidegger translations and their German


originals: A grassroots archival perspective”. In: Continental
Philosophy Review, 2006, p. 263-287.

LONGUENESSE, Béatrice. Kant and the Capacity to Judge:


Sensibility and Discursivity in the Transcendental Analytic of the
Critique of Pure Reason. Translated from the French by Charles
T. Wolf. Princeton: Princeton University Press, 2000.
Heidegger e a finitude do dasein 379

_______. “Les concepts a priori kantiens et leur destin”. In: Revue


de Métaphysique et de Morale. Presses Universitaires de France,
nº 44, 2004, p. 485-510.

_______. “Kant et les jugements empiriques. Jugements de


perception et jugements d'expérience.” In: Kant-Studien,
Princeton/New Jersey, 86:3, 1995, p. 278-307.

LOPARIC, Zeljko. A semântica transcendental de Kant. São Paulo:


Unicamp, 2002.
XII

KANT E O ENSINO DO FILOSOFAR

Elvio Camilo Crestani Junior *

RESUMO

Essa comunicação tem o propósito de elucidar quais foram as


críticas feitas pelo filósofo Immanuel Kant (1724 -1804) no que diz
respeito ao ensino de filosofia nas escolas. A pesquisa é movida
pela pergunta: como é possível o ensino do filosofar? Partindo de
um breve apanhado da teoria do conhecimento do filósofo
alemão, passando por duas de suas Críticas, a “Crítica da Razão
Pura” (1781) e a “Crítica da Razão Prática” (1788), objetivamos, a
partir desse panorama de sua crítica da razão, verificar em que
medida a obra kantiana nos permite pensar o ensino de filosofia.
Para tanto, realizaremos uma breve e sucinta recapitulação das
diferentes teorias do conhecimento que surgiram ao longo da
história, e que estão presentes nas principais vertentes filosóficas
do ocidente, até chegarmos às críticas que Kant formalizou.
Crente em uma estruturação tão sólida da filosofia quanto das
teorias cientificas que estavam em ascensão no período em que
viveu, Kant usa de duas das principais correntes do período
moderno que se esforçam em fundamentar a questão do
conhecimento, o racionalismo e o empirismo, para embasar sua
crítica e fundamentar a sua teoria, que conseguiu aglutinar o
pensamento de ambas as vertentes: o conhecimento precisa da
experimentação para recolher dados, mas também precisa da
razão para filtrar e sistematizar aquilo que foi observado. Existe,
portanto, uma necessidade de relação com os fenômenos que se
apresentam para serem investigados e não de uma procura pela
compreensão da essência das coisas. Se o homem se conscientiza
dos encontros que terá empiricamente com o mundo e ao mesmo
tempo preza pela sua razão para não se tornar escravo de uma
*
UNIOESTE; E-mail: elviocrestani@hotmail.com
382 Estética e Educação

naturalidade, este se tonará um sujeito autônomo na sociedade. O


importante papel da escola para esse autor está nessa formação de
autonomia e emancipação das pessoas, e logo, do equilíbrio entre
essas relações empíricas e organização racional que acontece no
ser-humano na busca do conhecer. Quando nos dedicamos a
conhecer algo por um meio racional, podemos utilizar dos modos
matemáticos ou filosóficos. Com a matemática, dependemos
completamente do uso da razão, e temos suas noções em nossas
mentes antes mesmo de qualquer experiência. Isso facilita uma
organização do ensino intuitivamente. A filosofia, por outro lado,
não se encontra em nenhum lugar, dada. O que muitas vezes
concebemos como o ensino da filosofia é a sua história, mas será
que essa é a filosofia? O pensador faz uma reflexão sobre a
autonomia de pensamento, realizando apontamentos sobre os
principais erros que ocorreram historicamente na sociedade, e
quais os costumes que ainda existiam na época que reforçaram
uma dificuldade em entender no que consiste a filosofia e o que
deve ser um filósofo atuando nas escolas.

PALAVRAS-CHAVE: Conhecimento; Razão; Filosofar;


Autenticidade.

REFERÊNCIAS

IMMANUEL Kant – Prof. Antonio Joaquim Severino, Produção


de TV escola. São Paulo: TV Escola. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=WILVmTQQwkg>. Acesso
em: 28, julho, 2017.

KANT, Immanuel. Fragmentos da Aquitetônica da Razão. In:


KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. p. 671-675.

_______. Notícia do Professor Kant Sobre a Organização de Suas


Preleções no Semestre de Inverno de 1765 - 1766. In: KANT,
Immanuel. Lógica. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992. p. 173-
180.
Kant e o ensino do filosofar 383

O PROFESSOR Kant: o ensino de filosofia de uma perspectiva


kantiana, Produção de Fábio Antonio da Silva, Toledo, 28 de
Agosto de 2015. Disponível em:
<https://prezi.com/inzmzr8slgsi/o-professor-kant/>. Acesso em:
28, julho, 2017.
XIII

LILITH E EVA
o mito bíblico e a opressão da mulher

Arielle Kant Lavarda*

RESUMO

Este texto tem por finalidade pensar o papel da mulher na religião


cristã, concentrando-se em um exemplo de interpretação (e
omissão) no texto bíblico. Trata-se de uma reflexão sobre a forma
como a mulher foi tratada ao longo da história, mais
especificamente por meio de uma interpretação produzida no
início da época medieval, quando a Escritura começava a ocupar o
posto de guia moral da sociedade européia. É claro o fato de que a
cultura ocidental, em sua maioria, vem se construindo sob a
interpretação da Bíblia; é também um fato a opressão e
marginalização de mulheres ao longo da história, bem como o
respaldo que encontra em interpretações e usos desse texto
sagrado. Por isso, analisando alguns trechos do Gênesis, pretende-
se mostrar inconsistências lógicas em relação à criação do homem
e da mulher; em seguida, buscando compreender a narrativa
“obscura” de Lilith investiga-se (1) a efetiva criação de Lilith por
Deus; (2) o motivo de sua saída do Éden. A partir desse ponto,
procura-se refletir sobre como a formulação e o obscurecimento de
narrativas míticas como as de Adão e a de Lilith determinam a
situação histórica da mulher. Para a leitura do Gênesis, será central
examinar a leitura de Santo Agostinho, visando avaliar com mais
proximidade como sua época – o início da época medieval –
apropriava-se de suas narrativas de origem e as construía Essa
estratégia – de análise da interpretação – permitirá observar
valores que delimitam a leitura, os quais funcionam como eixos e
*
UNIOESTE; E-mail: ariellekant.blue@gmail.com.
386 Estética e Educação

limitações hermenêuticas. Através do mito de Lilith, veremos


como essa personagem representa um aspecto da mulher
totalmente diferente do que se constituiu, culturalmente, na
figura feminina. Nossa hipótese é a de que a supressão da narrativa
mítica de Lilith, bem como a criação de Eva através de Adão,
contribuiu para o papel submisso e oprimido da mulher, bem
como, inversamente, para promover uma sobrevalorização do
homem (na narrativa edênica). Pretende-se viabilizar, assim, o
reconhecimento de uma perspectiva unilateral – o machismo, que
existia de forma natural na sociedade patriarcal predominante na
formação da narrativa edênica e também na época da
interpretação agostiniana – que liga a opressão da mulher ao
discurso intrínseco na sociedade medieval, até os dias de hoje . O
trabalho trará, também, análise de trechos de teólogas feministas,
sobretudo encontradas em El sexo olvidado (LÓPEZ, 2005) que
procuraram subverter o papel subalterno da mulher na sociedade
através da reinterpretação teológica da Bíblia.

PALAVRAS-CHAVE: Lilith; Eva; Santo Agostinho; teologia


feminista; gênesis, homem e mulher; opressão.

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Santo. Patrística: comentário ao gênesis. São Paulo:


Editora Paulos, 2005.

LÓPEZ, Sonia Villegas. El Sexo Olvidado: introducción a la teologia


feminista. Sevilla: Ediciones Alfar, 2005.
XIV

MOTIVOS DE UM ÓDIO:
Rancière e o escândalo democrático

Felipe Pereira Gomes*


Ester Maria Dreher Heuser**

RESUMO:

Voltado, de um lado, para a realidade que os países


enfrentam atualmente, com vários escândalos promovidos por
profissionais da política tradicional e embates com a democracia,
estes advindos, inclusive, dos próprios eleitores, de outro, voltado
para as origens da democracia na Grécia antiga, Jacques Rancière
nos apresenta e problematiza o escândalo e o ódio inerentes à
democracia. Em seu livro O ódio à democracia, o autor põe em
questão este escândalo e ódio, e nos mostra que ambos estão
relacionados ao princípio de igualdade sobre o qual se baseia a
democracia, em que o governado pode se tornar governante e o
governante ser um dia governado, exatamente porque na
democracia não é preciso ter título algum para governar, desde
que escolhido por sorteio ou eleição. Pois na antiga Grécia os que
legislavam o Estado da época eram escolhidos por um único
critério: o acaso. Era a sorte quem escolhia os governantes. Não
era a riqueza, nem o saber nem a força; era simples e puramente o
acaso. Dos mais pobres aos mais ricos, dos mais sábios aos
julgados não detentores do saber, governavam lado a lado, visando
o bem comum. Não havia cargos vitalícios, a cada ano o Conselho
dos Quinhentos se renovava (chama-se Conselho dos Quinhentos,
pois eram sorteados 50 membros de cada uma das 10 tribos
gregas). Sua função era a elaboração das leis, o que para nós

*
UNIOESTE; E-mail: felipdegomes@gmail.com.
**
UNIOESTE.
388 Estética e Educação

brasileiros, é o Congresso Nacional composto por “duas casas”, a


Câmara dos deputados e o Senado. Para retornar ao estado de
governança, cabia a espera, pois só se retornava depois que todos
fossem sorteados para governar. A partir da exposição das razões
históricas acerca dessa ausência de títulos para governar,
tentaremos, nesta comunicação, nos ocuparmos de fazer alguns
desdobramentos a partir da definição de democracia apresentada
pelo autor, a qual é muito mais do que um regime de governo em
que os cidadãos têm o direito de escolher os seus representantes
de tempos em tempos, a saber: “A democracia é, em primeiro
lugar, essa condição paradoxal da política, esse ponto em que toda
legitimidade se confronta com a ausência de legitimidade última,
com a contingência igualitária que sustenta a contingência não
igualitária” (RANCIÈRE, 2014, p.119). Esse embaraço e jogo de
palavras pode confundir o que o autor quer nos dizer, mas
precisamos nos demorar nelas e lidar com os seus sentidos, pois
sabendo em que consiste a legitimidade da política e sua condição
paradoxal, a partir da perspectiva de Rancière, poderemos
começar a entender essa frase e, por meio disso, alcançar as razões
do ódio e os motivos para, desde a sua origem, a democracia estar
acompanhada por um escândalo.

PALAVRAS-CHAVE: Democracia; Rancière; Ódio; Igualdade

REFERÊNCIAS

RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. Trad. Mariana Echalar.


São Paulo: Boitempo: 2014.
XV

O “JOGO DA ARTE”
COMO ACONTECIMENTO
DA VERDADE EM GADAMER

Bruna dos Santos da Luz*


Roberto S. Kahlmeyer-Mertens**

RESUMO

A ideia de jogo, no tocante a arte, é o recurso que Hans-Georg


Gadamer (1900-2002) faz para evidenciar o acontecimento da
compreensão. Gadamer compreende o fenômeno artístico
diferente dos demais filósofos, por saber que este é um modo de
pensar implicado na nossa compreensão existencial e que, por isso
mesmo, não se dobra a racionalidade própria às ciências positivas.
Operando de modo desconstrucionista, como seu mestre
Heidegger, Gadamer desobstrui o horizonte que permitiria a
intuição da situação originária da arte suspendendo pontos de
vistas os quais, de certo modo, interpretam a verdade da arte como
simplesmente uma estética. Para o nosso filósofo, a arte é muito
mais ampla do que apenas uma satisfação estética ou de uma
doutrina do belo, antes, o jogo da arte é o que nos apresenta um
acontecimento da verdade, em seu modo de ser. Deste modo,
Gadamer faz uma hermenêutica da obra de arte, ao qual faz uso
do conceito de jogo para explicar o seu caráter de acontecimento.
Antes, para entendermos esse acontecimento, colocamos uma
observação em que o filósofo nos coloca em situação ontológica
diversa da subjetiva e objetiva. Quando nosso filósofo evidencia o
caráter de “vaivém” do jogo (no qual nos colocamos) nos vemos
lançados para dentro do jogo, ao qual ele é autônomo. Esse vaivém

*
UNIOESTE; E-mail: abrunaluz@gmail.com.
**
UNIOESTE.
390 Estética e Educação

é essencial no jogo, é ele que permite que o jogo sempre recomece;


ele também mantém o jogo em aberto para possibilidades de
significações. Nesse sentido, a verdade da arte nunca tem um
término, o que permite que esta não tenha uma compreensão
cabal. Para isso só compreendemos verdadeiramente a obra de
arte no momento em que nos deixamos em meio ao jogo ser um
jogado, uma vez que o jogar é um jogando, um lançar-se para a
unidade do jogo. A comunicação, assim, pretende mostrar que o
jogo ganha caráter diverso da ação subjetiva, uma vez que não
conserva o ato reflexivo do sujeito; ainda, que no tocante ao seu
caráter objetivo, se diferencia por deixar claro, que o jogo não é
uma relação de um sujeito que se condiz a um objeto, mas, ao
contrário, seria um além do objeto, no sentido de estar mais
preocupado com a verdade da arte do que com a representação da
mesma. Entendemos, portanto, com Gadamer que o conceito de
jogo pode ter outras significações e de como o acontecimento da
verdade se dá através do jogo da arte diferente daquela apreendida
pela racionalidade.

PALAVRAS-CHAVE: Jogo da Arte; Verdade; Compreensão;


Gadamer;

REFERÊNCIAS

GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Tradução de Flávio


Paulo Meurer. –Petrópolis, RJ: Vozess,1997.

KAHLMEYER-MERTENS, Roberto. S. 10 lições sobre Gadamer.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

LAWN, Chris. Compreender Gadamer. Trad. Hélio Magri Filho.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
XVI

O DOPPELSATZ DA FILOSOFIA DO DIREITO E


A RECONSTRUÇÃO CRÍTICA DAS CATEGORIAS
MODAIS NA LÓGICA DA ESSÊNCIA DE HEGEL

Patrícia Riffel de Almeida*

RESUMO

Uma das passagens mais conhecidas da filosofia hegeliana, o


chamado Doppelsatz (“dito duplo”) do prefácio às Linhas
fundamentais da Filosofia do direito (1821), segundo o qual “O que
é racional, isto é efetivo; e o que é efetivo, isto é racional” [“Was
vernünftig ist, das ist wirklich; und was wirklich ist, das ist
vernünftig”] recebeu ao longo dos séculos interpretações as mais
divergentes. O tom “declamatório-imperial” (D. Henrich) da
sentença foi prontamente repreendido como uma consagração
conivente do existente. Por outro lado, defendeu-se igualmente o
caráter crítico contido na fórmula, a qual apontaria, antes, para a
necessidade de adaptação da realidade à razão. Desde que vieram
à luz os diversos Vorlesungsnachschriften, as anotações dos alunos
de Hegel redigidas a partir de suas preleções realizadas de 1818 a
1831, no entanto, o sentido desta sentença deixou-se apreender
mais claramente, sobretudo em razão dos contextos em que foi
pronunciado, e das formulações ligeiramente distintas que
recebeu em cada uma daquelas preleções. Entrementes, a sua
compreensão plena sempre exigiu uma incursão pela lógica
hegeliana, particularmente pela reconstrução crítica das
categorias modais de possibilidade, necessidade e efetividade na
Ciência da lógica. Com efeito, no segundo capítulo da terceira
seção da Lógica da essência, “A efetividade”, Hegel tece uma crítica

*
UNIOESTE; E-mail: patriciariffel@gmail.com.
392 Estética e Educação

ao que denomina de concepção formal das categorias modais. Por


um lado, ele critica, e.g., a definição de Kant, na Crítica da razão
pura, do possível como aquilo que é conectado com as condições
formais da experiência, pois se esta definição em parte escapa ao
formalismo, na medida em que inclui a sensibilidade nestas
condições, por outro, o formalismo permanece devido ao fato de
que a possibilidade seja compreendida como a possibilidade de
um objeto em geral. De outro modo, Hegel argumenta no sentido
de mostrar que a possibilidade real de uma coisa é sempre definida
através de suas relações determinadas. Ao invés de apenas
distinguir o possível do efetivo, Hegel afirma que ambos não são
externamente opostos, negando que haja algo como o “possível em
si mesmo”, e defendendo, ao contrário, que o possível é impossível
se não há um efetivo do qual ele é a possibilidade, e que confirme
que ele era, desde sempre, possível. Assim Hegel estabelece uma
dependência do pensamento em relação ao conteúdo que lhe é
oferecido, ou, em outros termos, torna o empírico um momento
interno à reflexão. A efetividade (Wirklichkeit) responderá, na
economia interna da Ciência da lógica, pela passagem da Lógica da
Essência à Lógica do Conceito. Por um lado, o próprio Hegel
aproxima o seu conceito de efetividade do conceito aristotélico de
energeia ou existência em ato. Entretanto, como pondera Béatrice
Longuenesse, há uma grande distância entre a energeia do
estagirita e a Wirklichkeit de Hegel, pois para Aristotéles a
energeia representa a realização plena da forma no objeto sensível,
ao passo que para Hegel é ilusório extrair do objeto imediatamente
dado as formas universais que o definem, mote da crítica por ele
desenvolvida no capítulo “O fundamento formal”, na primeira
seção da Lógica da Essência.

PALAVRAS-CHAVE: efetividade; Doppelsatz; G.W.F. Hegel.


O Doppelsatz da filosofia do direito... 393

REFERÊNCIAS

HEGEL, Georg W.F. Ciência da lógica: 2. A Doutrina da Essência.


Tradução de Christian G. Iber e Federico Orsini. Petrópolis, RJ:
Vozes, 2017.

_______. Grundlinien der Philosophie des Rechts oder Naturrecht


und Staatwissenschaft im Grundrisse – mit Hegels eigenhändigen
Notizen und den mündlichen Zusätzen. Werke 7. Frankfurt am
Main: Suhrkamp Verlag, 1970.

_______. Linhas fundamentais da filosofia do direito, ou Direito


natural e ciência do estado em compêndio. Tradução Paulo
Meneses et. al. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 2010.

_______. Wissenschaft der Logik II – Erster Teil, Die objektive


Logik, Zweites Buch / Zweiter Teil, Die subjektive Logik. Werke 6.
Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1969.

HENRICH, Dieter. “Vernunft in Verwirklichung”, in: HEGEL,


G.W.F., Philosophie des Rechts: d. Vorlesung von 1819/20 in e.
Nachschr., hrsg. von Dieter Henrich, Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1983.

LONGUENESSE, Béatrice. Hegel’s critique of Metaphysics.


Cambridge: Cambridge University Press, 2007.
XVII

RELAÇÃO ENTRE A FÉ E A RAZÃO

Pedro Inácio Andrade de Souza Santos*


Márcio Prigoli Santetti**

RESUMO

Essa pesquisa tem como intuito esclarecer a relação entre fé e


razão, através do mito e filosofia e apresentar os pensamentos e
ideias dos principais filósofos no que diz respeito à relação entre a
fé e a razão, são eles: Tomás de Aquino e Santo Agostinho.
Partimos do conceito do mito, que é a primeira forma de explicar
o mundo, uma forma de crença, um meio do indivíduo se
relacionar com o sobrenatural, descrito no dicionário Aurélio de
língua portuguesa como: “modo idealizado de representar um
momento passado ou futuro da humanidade”. E a fé que entendida
por muitos como sentimento de crença em algo ou alguém, ainda
que não haja nenhum tipo de evidência que comprove a
veracidade da proposição em causa. A filosofia tem como
característica o estabelecimento de conceitos mais racionais
através da história, para aquele que tem fé religiosa Deus existe,
porém para a filosofia não basta ter somente a fé, é preciso
evidenciar que ele existe de verdade, assim é utilizada a razão
porque ela é capaz de identificar conceitos e os questionar, desta
forma, consegue determinar a coerência ou a contradição entre
esses conceitos e pode induzir ou deduzir outros conceitos
diferentes daqueles que já se conhece. Por esse motivo, serão
apresentadas as teorias de Tomás de Aquino e Agostinho de
Hipona para a explicação de Deus, para que haja o possível
entendimento da relação existente entre os assuntos abordados.

*
CEEP Pedro Boaretto Neto; E-mail: Pedrox1x_2000@hotmail.com.
**
CEEP Pedro Boaretto Neto
396 Estética e Educação

Tomás de Aquino acredita que a razão é um dom de Deus e é


estabelecida na criação como uma virtude para todos. A razão
deve ser entendida como uma dádiva da natureza, ou seja, é uma
capacidade natural em todos nós. Observou que as provas de
existência de Deus não estão fora do mundo material, mas sim
presente no cotidiano dos indivíduos, pois todas as vias partem de
uma realidade verificável e concreta. Então afirma que se deve
chegar à ideia de Deus através da razão baseado em Aristóteles,
assim usa cinco argumentos para provar a existência de Deus.
Partindo do argumento cosmológico também conhecido como
contingente necessário, onde ele questiona como as coisas são, por
que são e por que possuem as finalidades que são destinadas, com
esses questionamentos chega à conclusão de que o ser maior tem
um gosto específico e que é preciso uma coisa que seja necessária
para dar origem aos contingentes, é preciso um necessário por si
que seja a causa de outros necessários. Seguindo com o argumento
do movimento e/ou primeiro motor, que no princípio um ser
gerou mudança, mas o mesmo não foi mudado por ninguém.
Chegando então no argumento da causa eficiente, que tem por
definição algo que produz outro algo. Ele afirma que no mundo
material conseguimos observar uma ordem de causas eficientes e
seus efeitos (Ex.: movimento de uma bicicleta que tem como causa
eficiente o homem que pedala). Citando Tomás de Aquino em sua
obra Suma Teológica: “Em todas as causas eficientes ordenadas, em
primeiro lugar está à causa do que se encontra no meio, e o que se
encontra no meio é causa do que está em último lugar, tanto se os
intermediários forem muitos, quanto se for um só; tiradas as causas,
tira-se o efeito; logo, se não for primeiro nas causas eficientes, não
será nem em último, nem no meio. Se, porém, procedermos de
forma indefinida nas causas eficientes, não haverá primeira causa
eficiente e, portanto, não haverá também nem efeito último nem
causas intermediárias, o que é evidentemente falho. Logo, é
necessário admitir alguma causa eficiente primeira, à qual todos
chamam de Deus. ” E para ele a única e exclusiva coisa que explica
a cadeia de causas que acontecem no mundo, é a existência da
causa primeiro (Deus). Argumento dos graus existentes ou graus
Relação entre a fé e a razão 397

de perfeições onde que para toda coisa existente, existe um grau


máximo de perfeição, portanto, deve existir um ser que contém
todos os atributos e coisas possíveis em seu máximo grau de
perfeição, e que seria geradora de todas as coisas em grau de
perfeição menor. Por fim, utiliza do argumento da finalidade do
ser, onde pressupõe a existência de um “arquiteto” inteligente que
governa, coordena ou atribui uma finalidade a todas as coisas do
mundo. Existem certas coisas que não tem inteligência e que,
regidas pelas leis da natureza, são ordenadas e contém a finalidade
certa, pode se usar o exemplo da flecha, onde é lançada para o alvo
pelo arqueiro, sua causa eficiente, e tem como única causa final,
chegar ao alvo. Um dos problemas que surgem em torno da
questão e que precisa ser tratado é a corrupção do pecado que
deixa nossa razão turva. Tomás de Aquino diz que a natureza da
graça nos cristãos, não é para anular, mas para tentar restaurar a
razão ao seu devido lugar. Portanto, a graça aperfeiçoa a natureza
e não a destrói. Tomás de Aquino descreve que nosso raciocínio é
cheio de pecado e somos capazes de maldade e loucura, é aí que
entra o pensamento de Agostinho que diz que a maldade e o mal
é a ausência de Deus, assim como o frio não é uma substância, mas
sim a não existência do calor. Como o escuro, não é matéria, é
somente e ausência de luz. E apresenta a teoria da iluminação
onde diz que, Deus está na alma humana, que é divina e iluminada
por Cristo. E para ele não há razão para o homem filosofar, senão
para que seja feliz; o que faz com que este seja feliz é o fim bom;
não há, por conseguinte nenhuma causa para filosofar, salvo a
meta do bem. Para Agostinho a fé precede a razão (Fides Praecidit
Intellectum), onde diz que a razão essencial sozinha é “manca”,
incompleta e que a fé é como uma luz interior que ilumina nossa
consciência e só ela nos levará a verdade absoluta. Então chega à
conclusão que Deus é o ápice da filosofia (arx philosophiae), e,
para alcança-la não basta somente à razão, mas é preciso
transcender, e, para isso, é preciso entregar-se gratuitamente na
busca da face incompreensível de Deus. Com os argumentos e
conceitos descritos, pode ser esclarecido que ambos, a saber:
Agostinho e Tomás, dizem que não há dicotomia entre a fé e a
398 Estética e Educação

razão, as duas devem andar juntas e que uma completa a outra.


Isso pode ser observado pelo fato de que a patrística e a escolástica
perduraram por todo o período histórico medieval, e que esses
questionamentos e debates existem até hoje no campo religioso e
até mesmo entre a comunidade social.

PALAVRAS-CHAVE: Fé; Razão; Agostinho; Tomás de Aquino.

REFERÊNCIAS

AMES, José Luiz. Filosofia Política: reflexões. Curitiba-PR: Editora


Protexto, 2012.

AQUINO, Tomás. Suma Teológica. São Paulo-SP: Edições Loyola,


2001.

MARÇAL, Jairo. Antologia de textos Filosóficos. Curitiba-PR:


SEED, 2009.
XVIII

RESOLUÇÃO DE QUEBRA-CABEÇAS OU DOGMATISMO:


a filosofia da ciência de Thomas Kuhn em foco

Priscila Aparecida Woiski Triper*


Douglas AntonioBassani**

RESUMO

O presente texto tem por objetivo apresentar a concepção de


Thomas Kuhn sobre o período da ciência normal. De acordo com
Kuhn, a ciência normal é o período de resolução de quebra-
cabeças ou também denominado por ele como o período de
atualização das promessas do paradigma. Porém, este período de
ciência normal é fonte de vários debates, um deles foi em 1965
quando foi feita uma análise criteriosa por parte de alguns
cientistas sobre A Estrutura das Revoluções Científicas de Thomas
Kuhn, na época, a obra filosófica mais vendida e debatida por
conta de sua publicação em 1962. Esse debate resultou na
publicação da obra A crítica e o desenvolvimento do conhecimento,
a partir do Congresso em Londres em 1965, e também de um
posfácio a obra de 1962, publicado em 1969. O debate sobre o
período de ciência normal em Thomas Kuhn obteve atenção
especial, especialmente por um dos membros do Congresso, a
saber, Karl Popper. De maneira geral, de acordo com a filosofia da
ciência de Thomas Kuhn, a ciência normal é o período mais longo
do trabalho do cientista. É o trabalho no laboratório, de
experienciação dos resultados, e também de relação com outras
áreas do conhecimento. Em analogia com um quebra-cabeças, é
onde as peças experienciadas no laboratório são obtidas para se
encaixar na realidade, por isso se assemelha ao jogo. Porém,

*
UNIOESTE; E-mail: priscilawoiski17@hotmail.com.
**
UNIOESTE.
400 Estética e Educação

durante este processo de pesquisa e desenvolvimento da teoria


podem surgir resultados inesperados e situações não previstas
pelo paradigma, gerando anomalias ou até crises no paradigma.
Kuhn defende este período como do cientista defendendo uma
atitude dogmática ou acrítica em relação aos resultados obtidos,
porque considera que desta forma o aperfeiçoamento nas
pesquisas será melhor. Uma atitude crítica, segundo ele, deve ser
no momento de estabelecimento do paradigma, e não no
momento de atualização de suas promessas. Outro argumento
utilizado por Kuhn é o de que a atitude dogmática na ciência
normal permite ao cientista estar mais centrado em sua pesquisa,
e também mais sensível aos focos de dificuldade, ou seja, a saber
quando começar o período de ciência extraordinária ou continuar
no processo de ajuste de um paradigma que poderá está em crise.
Afinal, a resistência e a rejeição dos cientistas, frente às novidades
inesperadas, parecem revelar profissionais não tão abertos na
busca pela verdade, quanto se imagina. Porém, afirma Kuhn, a
adesão dogmática, fonte de resistência e controvérsias até então,
passa a ser o que possibilita a atividade consistentemente
revolucionária da ciência. Debateremos essa questão com a análise
e profundidade que ela merece, utilizando a concepção de Karl
Popper como um contrapontoàs ideias de Thomas Kuhn.

PALAVRAS-CHAVE: Thomas Kuhn; Dogma; Ciência Normal.

REFERÊNCIAS

KUHN, Thomas. A Estrutura das Revoluções Científicas. 5º


Edição. São Paulo-SP: Editora Perspectiva S.A.,1998.

_______. A Função do dogma na investigação científica.


Disponível em:
<https://pt.scribd.com/document/127828006/Thomas-Kuhn-A-
Funcao-do-Dogma-na-Investigacao-Cientifica-Barra-Tozzini-
Miranda-Couso-e-Brzowski>. Acesso em Abril de 2018.
Resolução de quebra-cabeças... 401

LAKATOS, Imre; MUSGRAVE, Alan (Org). A Crítica e o


desenvolvimento do conhecimento. São Paulo, Editora da USP,
1979.
XIX

TEMPO, MEMÓRIA, ESQUECIMENTO E CRIAÇÃO:


uma leitura nietzschiana do filme “Para sempre Alice”

Nilson Rodrigo da Silva*

RESUMO

Essa incipiente comunicação tem por intento analisar pela


perspectiva nietzschiana o filme: “Para Sempre Alice”, no qual é
retratado as conotações trágicas da vida de Alice Howland,
professora universitária, que é diagnosticada prematuramente
com Alzheimer, de modo geral, a obra cinematográfica mostra a
vulnerabilidade e a luta de pessoas que, assim, como Alice, passam
pelo processo patológico de se esquecer e que precisam
diariamente descobrir métodos para confirmar a própria
existência, procurando meios para viver com o esquecimento. No
filme vemos Alice aos poucos ir “desaparecendo” e sua memória se
apagando, porém na maioria das cenas a personagem demonstra
potência surpreendente, a ponto de criar meios para contornar
tais dificuldades. O drama mostra a vulnerabilidade e a luta de
quem se esquece tudo o que “confirma” a própria existência,
retratando a arte de reaprender a dizer sim (Amor Fati) à vida
independentemente das circunstâncias. Para tal, demonstraremos
mediante a filosofia de Nietzsche como os conceitos de tempo
(eterno retorno), memória (ressentimento), esquecimento, e
criação podem ser identificados na obra cinematográfica, de modo
que compreendamos que para o filósofo mesmo a doença pode
ser encarada como uma condição necessária de retirar o homem
de sua contingência histórica e social, oferecendo-lhe a
oportunidade de redescobrir à vida, um nova potência de ser. É
importante ressaltarmos que isso só é possível a partir da
*
UNIOESTE; E-mail: nilsonrodrigo25@hotmail.com.
404 Estética e Educação

experiência do eterno retorno promulgada em seus escritos


maduros, nos quais a vida passa a ser admitida como permanente
criação de si mesma. Portanto, é o tempo a possibilidade de
expansão da vida (vontade de potência), nesse sentido, alargado
para trás e para frente como dois vetores infinitos, que não têm
origem nem começo; o que nos obriga, se formos honestos, a
pensar o mundo como um vir-a-ser sem começo e sem fim, algo
que nunca começou a se tornar, mas se torna eternamente e,
portanto, é essencialmente cíclico, já que as possibilidades de
configuração da vontade de potência, embora sejam em número
imenso, são finitas. Esse anúncio leva ao leitor a uma reflexão, na
qual o tempo se apresenta como uma possibilidade, uma hipótese,
para se pensar as ações humanas, de tal modo que esse poderia
suportar ou não a dureza de tal concepção. Mas, e se esse leitor
fosse uma pessoa portadora de Alzheimer, como poderia querer
afirmar incondicionalmente a repetição de sua existência? Mesmo
no contexto devastador que coloca o doente frente a frente com o
que há de encoberto na fragilidade humana, mesmo no constante
desamparo, que é expresso no filme “Para sempre Alice”, veremos
como a potência do homem, em um dado contexto, pode reagir à
sua própria deterioração, como esse avalia cada fase desse
processo e como é capaz de tomar decisões quando o futuro e o
passado não existem, lhe restando apenas o “instante”. Para o
filósofo aqueles que possuem “boa saúde” não são os que se
conservam, ou repetem seus atos afim de restaurar a plenitude
física, mas aqueles que diante o infortúnio não se deixam paralisar
e, usam sua dor como antídoto para o veneno do ressentimento,
deixando sua potência criar, valorar, experimentar novas formas
de vida; é poder levemente dizer sim à vida!

PALAVRAS-CHAVE: Para sempre Alice; Nietzsche; Amor Fati;


Esquecimento; Grande Saúde; Eterno-Retorno
Tempo, memória, esquecimento... 405

REFERÊNCIAS

GLATZER, Richard; WESTMORELAND, Wash. Para sempre


Alice. 2014. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=tjLp6T3BL34>. Acesso em:
07/05/2018

MARTON, Scarlett. Nietzsche. Das forças cósmicas aos valores


humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990.

_______. “O eterno retorno do mesmo, “a concepção básica de


Zaratustra”” in: Cadernos Nietzsche. V.37 n.02. São Paulo. 2016
P.11-46

NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. Um escrito polêmico. Trad.


de Paulo César de Souza. São Paulo: Brasiliense, 1987.

_______. Para além de bem e mal. Tradução Paulo César Souza.


São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

_______. A Gaia Ciência. Tradução: Paulo César de Souza. São


Paulo: Companhia das Letras, 2001

_______. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para


ninguém. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2011.
OS ORGANIZADORES
CÉSAR AUGUSTO BATTISTI

Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (2000), com


estágio de doutorado sanduíche na Paris VII - Denis Diderot (1997-
98). Docente da Universidade Estadual do Oeste do Paraná
(UNIOESTE) desde 1990, atua no Curso de Graduação e no
Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Filosofia
da Universidade, tendo sido seu coordenador de abril de 2015 a
abril de 2017. Especialista em Descartes, investiga temas
relacionados a esse autor (Metafísica, Física e Matemática), à
epistemologia e à teoria do conhecimento modernas e à história
da matemática (método de análise e síntese). Publicou vários
trabalhos sobre Descartes, bem como fez traduções de textos deste
filósofo, além de palestras e comunicações.
E-mail: cesar.battisti@hotmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7201289101949593
BERNARDO SAKAMOTO

Professor Associado da UnioesteToledo-PR. Professor de Estética


do Colegiado de Filosofia e membro de Grupo de Pesquisa "Ética
e Filosofia Política" Unioeste-CCHS. Doutor em Filosofia pela
Unicamp, Campinas-SP, Mestre em Lógica e Filosofia da Ciência
na área de Filosofia Política, Unicamp, Campinas-SP. Licenciatura
e Bacharelado pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos,
Lima-Peru.
E-mail: bernardosakamoto@yahoo.com.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8926952894973760
RAFAELA ORTIZ SALLES

Discente no curso de licenciatura em Filosofia pela Universidade


Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Toledo -Pr (2016-2019);
Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à
Docência (Pibid)de julho de 2016 a fevereiro de 2018; Membro do
Centro Acadêmico de Filosofia, Chapa “Penso, logo luto” gestão
2017-2018; Atualmente bolsista do Programa de Educação Tutorial
(PET) Filosofia.
E-mail: rafa-salles@hotmail.com
HENRIQUE PRÉCOMA

Graduando do curso de Licenciatura em Filosofia pela


Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Toledo-PR. Bolsista –
no período de 01 de março de 2017 a 31 de fevereiro de 2018 – do
Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID),
vinculado a CAPES/MEC.
E-mail: henriquepp12@hotmail.com
Lates: http://lattes.cnpq.br/8561049651104134
JUNIOR CUNHA

Graduando do curso de Licenciatura em Filosofia pela


Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Toledo-PR. É
estagiário da Biblioteca Universitária da UNIOESTE-Campus
Toledo. Bolsista – no período de 01 de junho de 2016 a 31 de março
de 2017 – do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à
Docência (PIBID), vinculado a CAPES/MEC. Bolsista – no período
de 1 de abril de 2017 até 31 de março de 2018 – do Projeto de
Extensão Teatro em Ação, vinculado ao Programa Universidade
Sem Fronteiras-USF, financiado com recursos do Fundo Paraná.
Atualmente desenvolve pesquisa nas áreas de Teatro e Filosofia
com enfoque em William Shakespeare e Friedrich Nietzsche.
E-mail: juniorlcunha@hotmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7824455868007103
JOSÉ DIAS

Professor Adjunto da UNIOESTE, Toledo-PR; pesquisador do


Grupo de Pesquisa “Ética e Política”, da UNIOESTE, CCHS,
Toledo-PR. Doutor em Direito Canônico pela Pontifícia
Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália;
Doutor em Filosofia também pela mesma Pontifícia Universidade;
Mestre em Direito Canônico também pela mesma Pontifícia
Universidade Urbaniana; Mestre em Filosofia pela mesma
Pontifícia Universidade; Especialista em Docência no Ensino
Superior pela UNICESUMAR; Licenciado em Filosofia pela
Universidade de Passo Fundo – RS; Bacharel em Teologia pela
UNICESUMAR. Professor permanente do PPGFIL, UNIOESTE.
E-mail: jfad_br@hotmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9950007997056231

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