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©2016 Leandro R. Pinheiro (Org.)


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em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a
permissão da editora e/ou autor.

P6551 Pinheiro, Leandro R.


Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano/Leandro
R. Pinheiro (Org.). Jundiaí, Paco Editorial: 2016.

400 p. Inclui bibliografia.

ISBN: 978-85-462-0355-0

1. Periferia 2. Cotidiano 3. Ativismo 4. Porto Alegre-RS I. Pinheiro, Leandro R.

CDD: 300
Índices para catálogo sistemático:
Processos sociais 303
Problemas sociais 304
Grupos sociais 305

IMPRESSO NO BRASIL
PRINTED IN BRAZIL
Foi feito Depósito Legal

Av. Carlos Salles Block, 658


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Àqueles que, generosamente, aceitaram partilhar suas
experiências conosco.
Realização junto ao projeto ‘Para enunciar cotidianos, imagens da pe-
riferia (FACED/UFRGS)’. Iniciativa realizada com apoio do Programa
de Extensão Universitária (PROEXT 2015 – MEC/Sesu).
Sumário

Apresentação.........................................................................7

Parte 1 – Questões... perspectivas e inspirações no


itinerário......................................................................................15

Entrevista com Enzo Colombo


Diferença, cotidiano e pesquisa reflexiva..............................17

Entrevista com Danilo Martuccelli


Sociologia, singularização e individualismo latino
americano.............................................................................49

Parte 2 – Sintonias... Aproximações em contextos de


periferia......................................................................................71

Alicia Lindón
A periferia metropolitana da Cidade do México: do
cronotopo fundacional vallechalquense às identidades
do e com o lugar..................................................................73

Ana Maria Loforte


Mulher, poder e tradição: reflexões sobre gênero e
percepções de pobreza em Moçambique............................115

Liliane Leroux
Anne Clinio
Produção audiovisual com celular – periferias, gambiarras
e deslocamentos estéticos....................................................141

Mônica Peregrino
Juliana Prata
Juventude, políticas de correção de fluxo escolar e direito
ao uso da condição juvenil – o caso dos jovens estudantes
da EJA no município de Mesquita/Rio de Janeiro.............159
Parte 3 – Narrativas... Singularidades e reverberações nos
encontros.................................................................................183

Leandro R. Pinheiro
Bruna D. Junqueira
Conversando com elas: itinerários possíveis no reverberar
das memórias.......................................................................187

Márcio Amaral
Maurício Perondi
Nos labirintos da vida, os arranjos de se viver: a experiência
de jovens numa periferia.....................................................225

Leandro R. Pinheiro
Carla B. Meinerz
Entre jovens e adultos na escola, reflexões de uma
aproximação inconclusa......................................................249

Leandro R. Pinheiro
Bruno H. S. de Castilhos
Rodrigo S. F. A. Teixeira
Do contraste de narrativas, o ensaiar de um inventário.....289

As imagens na Restinga.......................................................313

Referências .........................................................................353

Apêndice.............................................................................363

Sobre os autores.............................................................395
Apresentação

Ao final de um percurso, situados neste lugar onde se assen-


tam algumas proposições e outras nos invadem e provocam a se-
guir, contemplamos nossas atividades e vemos alguns encontros.
Vemos momentos construídos para estar e perguntar juntos,
interpelados pelas alteridades que nos mobilizavam, lançados
ao desafio de compreender o que admiramos e nos inquieta.
Não muito mais podemos narrar aqui, senão o que estivemos
a produzir juntos em campo e o esforço de interpretação em-
preendido aí, para o qual dispusemos das proposições e escritas
provocadoras de pesquisadores que, invitados, colaboraram co-
nosco na composição dos alinhavos desta coletânea.
Nossos projetos têm sido realizados em localidades reco-
nhecidamente vulnerabilizadas de Porto Alegre/RS e, por
ocasião desta produção, no bairro Restinga especificamente,
no extremo sul da cidade. Neste caso, as discussões que im-
pulsionaram nossas articulações foram gestadas na realização
de duas iniciativas interligadas: a pesquisa “Quando as iden-
tidades enunciam cotidianos” e o projeto de extensão “Para
enunciar cotidianos, imagens da periferia”. O primeiro obje-
tivava conhecer a vida cotidiana em realidades consideradas
periféricas e, a partir daí, elaborar interpretações sobre as
identidades-diferenças construídas. O segundo se orientava à
produção de imagens junto a moradores das mesmas, toman-
do fotos e vídeos como motes para promoção de narrativas
reflexivas e para a aproximação entre as produções de nossos
interlocutores nos projetos e o público acadêmico, sobretudo
os graduandos da universidade1.

1. É preciso mencionar, o projeto de pesquisa contava com fomento da Fundação


de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs) e a ação de ex-
tensão com apoio do Programa de Extensão Universitária (Proext/MEC - 2015).

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

Contudo, essas diferenciações se esmaeceram nos diálogos


em campo. O desejo de conhecer e compreender não se sepa-
rava de nossa intencionalidade educativa. Configurava-se já a
intervenção pela circunstância de estarmos lá, compartilhando
momentos e estabelecendo perguntas como pesquisadores. De
outra parte, nossa prática de extensão apostava justamente na
apresentação de propostas que estimulassem diálogos e tomadas
de posição (e não exatamente capacitações). Cremos que nos
achegarmos à vida cotidiana carrega tal potencialidade: partici-
par dos enunciados sobre as realidades desde a pergunta sobre
o trivial, sobre as pertenças e os agenciamentos construídos aí.
Ir ao cotidiano, essa esfera analítica que inventamos no
contraponto ao histórico ou às estruturas macrossociais, levou-
-nos ao rotineiro, ao sequencial dos ciclos que atualizamos dia-
riamente, mas também, como já é reconhecido nas ciências
humanas, ao disruptivo, às fugas e às astucias produzidos pelos
sujeitos. Aí dedicamos nossas energias, no tensionamento entre
as “grandes categorias” e a “concretude irredutível”, fazendo
o esforço (difícil, inacabado) de dispor nossas interpretações às
sutilezas e às “insignificâncias”. Lefebvre lembra-nos da inspi-
ração dos músicos aos filósofos: “na música tudo é número e
quantidade (os intervalos, os ritmos, os timbres) e tudo é liris-
mo, orgia ou sonho. Tudo é vital e vitalidade, é sensibilidade,
e tudo é igualmente análise, precisão, fixidez”2.
Considerando, ademais, certo redimensionamento da vida
cotidiana na atualidade como arena para produção de senti-
dos da ação, dada a ampliação das possibilidades de perten-
ça, a intensificação da circulação de informações e o relativo
descentramento de aparatos institucionais nos processos de
socialização, parece-nos pertinente levar a pesquisa ao quefazer
cotidiano. Mais além, quando “lá”, fazer da interlocução um

2. Lefebvre, Henri. Filosofia e conhecimento do cotidiano. In: ______. A vida


cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991. p. 17-33 (p. 26).

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

processo permeável a alterações de curso, sensível às oscila-


ções na tessitura das relações. Ao estar com as pessoas e com-
por parte de seus dias, as interações que constituímos descon-
certavam nossos interesses originais e a tarefa de compreender
suas experiências se fazia mais complexa.
Nesse caso então, seja por efeito da abordagem metodoló-
gica, relativamente aberta às interações em campo, seja pelo
encontro com novas referências, as interpretações que grada-
tivamente produzíamos tensionaram nossas problematizações
sobre as identidades rumo às condições de individuação. A
ação dos sujeitos, os sentidos e os agenciamentos com que ope-
ram no cotidiano demandavam atenção e, da mesma forma,
lançavam-nos à busca por análises que apoiassem a compre-
ensão de algumas das dimensões do vínculo social que perpas-
savam os itinerários de vida que conhecemos em campo.
E fizemos de nossos esforços de interpretação contextua-
lizada também o vetor de nossas escolhas quando do convite
aos autores que compõem este conjunto de artigos. A cole-
tânea tem o cariz do processo e das tessituras em curso. Os
pesquisadores que contribuíram conosco constituem referen-
tes ao nosso trabalho, apresentando abordagens e/ou temati-
zações que atravessam nossas análises adensando-as. A uma só
vez, cada escrita se mostra peculiarmente provocante e gesta
inferências que podemos apropriar, conforme os contextos em
que realizamos incursões de pesquisa e extensão.
Organizamos a coletânea em três seções. A primeira,
Questões – perspectivas e inspirações no itinerário, é composta por
entrevistas com autores cujas abordagens nos aproximamos
em busca de inspirações. Desta maneira, atenderam às nossas
perguntas pelas especificidades de seus enfoques e por temas
com os quais temos trabalhado, como identidades-diferenças,
individuação, cotidiano, periferias e narrativas. Em Diferen-
ça, cotidiano e pesquisa reflexiva, Enzo Colombo nos resume sua
trajetória à medida que nos apresenta a abordagem a que se

9
Leandro R. Pinheiro (Org.)

filia, que conhecemos também pela obra de Alberto Melucci.


Assim, discute a compreensão de uma “realidade socialmente
construída” e expõe as condições para apropriação deste en-
foque, associadas aos legados da modernidade e à produção
histórica de uma sociedade informacional e globalizada. No
deslindar de sua interpretação, traz também considerações
sobre seus estudos acerca dos usos contextualizados da “dife-
rença” e comenta a relevância da vida cotidiana como arena
para pesquisas nas relações sociais contemporâneas. Ao final,
discute o lugar da escrita sociológica entre outras formas de
produção social de conhecimento.
A entrevista de Martuccelli, Sociologia, singularização e indivi-
dualismo latino americano, inicia com sua tese acerca do proces-
so de singularização que vivenciamos contemporaneamente,
para trazer, depois, os operadores analíticos que desenvolve
no marco de sua sociologia do indivíduo. Então, explora os
limites e potencialidades dos temas “cotidiano” e “identida-
des” para investigações sensíveis às mudanças gestadas nas
interações sociais da atualidade e nos processos de individu-
ação que ambientam. Discute, ainda, suas inferências sobre
o “individualismo agêntico latino-americano” e as potenciais
repercussões éticas para a prática educativa.
Para a seção seguinte, Sintonias – aproximações em contextos de
periferia, convidamos autores cujas análises guardassem relação
com os contextos em que pesquisamos e/ou que abordassem
temas que pudessem, a uma só vez, enunciar conexões entre
cotidianos de diferentes localidades e nos apoiar na problema-
tização dos itinerários de vida dos sujeitos com quem estive-
mos dialogando. Uma forma de sinalizarmos para as tessituras
que podemos compor nas incursões que fazemos e quando mi-
ramos os arranjos que contribuem para singularizar cenários
e sujeitos. Começamos, neste sentido, com o artigo de Alicia
Lindón, A periferia metropolitana da Cidade do México: do cronoto-
po fundacional vallechalquense às identidades “do e com” o lugar, que

10
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

analisa em escrita detalhada a construção sócio espacial do


território, abordando a formação de cronotopos em Valle de
Chalco, bairro de periferia da Cidade do México. Ao longo
do texto, a autora associa fabricação do lugar e produção de
identidades, articulando referências biográficas à narrativi-
zação do discurso social que enuncia a apropriação do locus
como espaço experiencial.
Em Mulher, poder e tradição: reflexões sobre gênero e percepções de
pobreza em Moçambique, Ana Maria Loforte discute a atuação da
mulher em contextos empobrecidos de Moçambique, conside-
rando as mudanças políticas e econômicas ocorridas no país a
partir das últimas décadas do século XX. Analisa diferentes as-
pectos dos vínculos sociais, incluindo relações de parentesco, se-
xualidade e religião, e destaca a conservação de relações de po-
der e valores tradicionais na configuração da posição feminina.
A partir daí, aborda as concepções de pobreza em integração
às dinâmicas familiares e às formas de participação construídas
pelas mulheres, sinalizando-nos para estratégias de manutenção
da vida em situações de elevada vulnerabilidade social.
O artigo de Liliane Leroux e Anne Clinio, Produção au-
diovisual com celular - periferias, gambiarras e deslocamentos estéticos,
traz considerações sobre os usos e produções de imagens com
tecnologias móveis e ubíquas realizados por moradores de
periferias. Inicialmente, tecem reflexões sobre a elitização da
produção cinematográfica para ambientar sua discussão sobre
diferentes tentativas de representação audiovisual em contex-
tos vulnerabilizados. Comentam, neste ínterim, as buscas por
“dar voz” aos que antes eram apenas retratados e as iniciativas
de formação em cinema, cujas práticas, ao final e ao cabo, não
deixavam de pautar o que seria “assunto de periferia”. Este
será o cenário para as autoras destacarem as potencialidades
estéticas e políticas da produção audiovisual possibilitada pelo
acesso crescente a dispositivos móveis de gravação e socializa-
ção de imagens, quando os sujeitos interpõem modos de atu-

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

ar, destacadamente o “faça-você-mesmo” e a “gambiarra”, e


exercem o direito de perspectiva.
O último texto nesta parte, Juventude, políticas de correção de flu-
xo escolar e direito ao uso da condição juvenil – o caso dos jovens estudantes
da EJA no município de Mesquita/Rio de Janeiro, problematiza os
processos de ingresso, permanência, correção de fluxo escolar e
o direito ao uso da condição juvenil. Mônica Peregrino e Julia-
na Prata abordam, primeiramente, as condições de acesso à es-
colarização e à educação de jovens e adultos no Brasil nos anos
1990 e 2000, sinalizando para as desigualdades sociais que as
perpassam. Então, discutem a “separação” operada pelo pró-
prio sistema escolar, entre alunos de grupos etários diferentes
que se encontram nas salas de aula da EJA. As autoras aventam
a hipótese de que a expansão do ensino fundamental, iniciada
a partir de meados da década de 1990, demarca a linha di-
visória entre as gerações que frequentam hoje a modalidade.
Consideram-na tomando dados de pesquisa realizada em es-
colas públicas da cidade de Mesquita, na região metropolitana
do Rio de Janeiro, analisando os efeitos da ampliação de acesso
à escola e das políticas de correção de fluxo para a vivência da
condição juvenil por alunos de grupos populares.
Na seção Narrativas – singularidades e reverberações nos encontros,
as escritas apresentadas acima configuram discussões que pro-
curamos apropriar ou, em alguns casos, tomamos como pro-
vocações e inspirações reflexivas. Nela, procuramos elaborar
o que produzimos em campo, fazendo da exposição de itine-
rários biográficos o meio para trazer um pouco da dramatici-
dade dos contextos que estivemos a conhecer. Configura-se aí,
ademais, uma opção político-estética por sinalizar as contin-
gências do encontro, os limites das tessituras que conseguimos
estabelecer juntos a nossos sujeitos de diálogo.
São quatro textos na seção. O primeiro, Conversando com
elas: itinerários possíveis no reverberar das memórias, que escrevemos
Bruna D. Junqueira e eu, apresenta o bairro de nossas inter-

12
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

locuções recentes, a Restinga, e, então, narra os percursos


biográficos de mulheres idosas que residem e atuam naquela
localidade, e às quais chegamos por contatos com uma das
escolas de samba de lá. Nossa “narrativa intencionada” des-
taca aspectos das condições materiais e culturais de vida, as
diferenciações de gênero e étnicas e as pertenças ao trabalho e
ao lugar. Desta forma, esboçamos inferências sobre as condi-
ções de produção de suas experiências e sobre as formas como
constituíam seus processos de individuação.
No segundo artigo, Nos labirintos da vida, os arranjos de se viver:
a experiência de jovens numa periferia, dos colegas Márcio Amaral e
Maurício Perondi, são abordadas as práticas do cotidiano de
dançarinos de breaking do Restinga Crew. Ao analisar suas expe-
riências do território, da produção artística e dos laços de amiza-
de, conduzem-nos ao cenário das culturas juvenis contemporâ-
neas, indicando formas de conformação desta em contextos de
periferia. Depois, discutindo as relações que estabelecem com a
escola, o trabalho e o consumo, levam-nos às trilhas construídas
pelos jovens no confronto e produção de suas trajetórias, para as
quais a metáfora do “labirinto” pode ser expressiva.
Em Entre jovens e adultos na escola, reflexões de uma aproximação
inconclusa, Carla Meinerz e eu narramos os itinerários de vida
de educandos da modalidade EJA de uma escola pública se-
diada na localidade em foco. Adultas e jovens que aceitaram
partilhar conversações conosco e cujas experiências procura-
mos interpretar, a exemplo do que fizemos no primeiro artigo
da seção. Assim, uma vez mais, condições materiais e culturais,
as diferenciações de gênero e étnicas e as relações com traba-
lho e o território compuseram nossas análises, acrescidas ain-
da de menções às filiações religiosas de nossas interlocutoras.
Neste texto, ainda, reservamos espaço para ponderações sobre
relação daqueles sujeitos com a escola. Partindo dos percursos
narrados, ousamos algumas inferências sobre os sentidos da
escolarização no contexto em que situamos nossos diálogos.

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

Encerramos nossas escritas com o ensaio Do contraste de nar-


rativas, o ensaiar de um inventário, escrito por mim, Bruno H. S.
de Castilhos e Rodrigo S. F. A. Teixeira. Trata-se de um es-
boço analítico elaborado a partir dos textos que o antecedem
na seção. De uma parte, visávamos inventariar experiências e
condições de individuação em contextos de periferia, conside-
rando os desafios e os suportes que constituíam itinerários e
cotidianos. De outra, intentamos novas bases para continuida-
de em pesquisas. Foi este o texto em que formulamos algumas
considerações sobre as produções narrativas, refletindo sobre
suas potencialidades para compreender formas de configura-
ção identitária.
Assim partilhamos as problematizações de nossos encon-
tros, visando discutir as condições de produção das experiên-
cias e, modestamente, apoiar iniciativas de educação em peri-
ferias urbanas.

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Parte 1
Questões... perspectivas e inspirações no itinerário
Diferença, cotidiano e pesquisa reflexiva

Entrevista com Enzo Colombo

Quando começamos a organização desta coletânea, desejá-


vamos compartilhar reflexões resultantes de nossas incursões em
campo e, assim, pensamos que seria importante abri-la apresen-
tando contribuições de autores de nos inspiram. Mas queríamos
que estas fossem apresentadas na forma de uma conversação,
para indicar já de início nossa forma de relação com o que estes
pesquisadores nos propõem: um diálogo que instiga questões e
faz pensar sobre como apropriar noções à compreensão de con-
textos que precisamos conhecer em suas peculiaridades.
Então, contatamos Enzo Colombo, professor do Departa-
mento de Ciências Sociais e Política da Università degli studi di
Milano, que pronta e generosamente aceitou participar da en-
trevista de que dispomos abaixo1. Colombo trabalhou com Al-
berto Melucci e construiu uma trajetória de pesquisa atenta ao
tema da diferença nas relações sociais contemporâneas, com
ênfase às apropriações contextualizadas destas. Nas linhas que
seguem, ele nos apresenta sua abordagem e trata, ainda, de
questões sobre cotidiano, pesquisas reflexivas e narrativas.

O itinerário e as escolhas como pesquisador

Primeiramente, a modo de introdução, gostaríamos de lhe solicitar a genti-


leza de uma breve apresentação de seu itinerário como pesquisador, desta-
cando suas escolhas teórico-metodológicas.

1. Entrevista realizada por e-mail, em inglês. Versão para o português: Leandro


R. Pinheiro.

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

Os meus primeiros passos em sociologia, no final dos anos


1980, foram dados em um contexto altamente educativo, o
“Laboratorio di ricerca sul Mutamento Sociale (LAMS)”, con-
duzido por Alberto Melucci, que reuniu vários estudiosos, com
diferentes habilidades e interesses de pesquisa e em diferentes
fases da carreira acadêmica. Em seminários mensais, professo-
res, pesquisadores e estudantes de doutorado discutiam ques-
tões metodológicas e epistemológicas com igual intensidade.
Nesse contexto desafiador, nós trabalhamos no que eu cha-
maria, agora, “construcionismo factual e radical”, tentando
vincular, de um lado, os interesses teóricos pela relação recur-
siva entre estrutura e agência e, de outro, questões metodoló-
gicas e epistemológicas concernentes ao trabalho do pesquisa-
dor, entendido como produtor de conhecimento social.
Nós estávamos interessados em desenvolver uma perspec-
tiva construcionista que fosse além da concepção em voga,
pelos menos no final do século passado, que reconhecia as
realidades como socialmente construídas enfatizando a “oni-
potência criativa dos indivíduos” envolvidos na produção de
novos sentidos, tendo suas preferências estéticas e sua inven-
tividade como as únicas restrições. Nossos interesses residiam
em reconhecer a relevância – tanto como condicionamento
quanto como recurso – de contextos, estruturas sociais e ca-
pacidades pessoais2. Focávamos não só nas capacidades sub-
jetivas para criar novos sentidos e práticas e resistir a poderes
hegemônicos; considerávamos também as condições sociais e
as capacidades individuais que permitiam a algumas constru-
ções específicas se tornarem “fatos sociais”, enquanto outras
permaneciam tentativas transitórias meramente individuais
e localizadas. Interessava-nos a relevância dos contextos, da
disposição social e das hierarquias de poder: as capacidades

2. Conforme: Melucci, Alberto. The playing self. Cambridge: Cambridge Uni-


versity Press, 1996.

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

para produzir e gerir novos códigos, significados, categorias


e as condições sociais que as impediam ou suportavam. Nós
não considerávamos suficiente reconhecer a realidade como
construção e, então, denunciar sua parcialidade e desconstruir
suas bases. Orientávamo-nos ao como a realidade social é cons-
truída, aos processos e condições de possibilidade que transformam
algumas construções – e não outras – em realidade social, isto
é, concentrávamo-nos sobre aquilo que informa, circula e é
institucionalizado. Desde um ponto de vista epistemológico,
nós estávamos interessados em transformar o que usualmente
servia como explicação em algo a ser explicado.
Com essas premissas em mente, nós tentamos desenvolver
uma forma de construcionismo histórica e socialmente embasada, re-
alista em sua dimensão substantiva, radical em sua dimensão
epistêmica.
Histórica e socialmente embasada porque a construção social da
realidade é uma característica da sociedade contemporânea.
Nossos interesses atuais pela construção social da realidade
não se tornaram importantes porque os processos de cons-
trução representariam uma característica “objetiva”, “univer-
sal” ou “perpetua” da realidade humana. Ao contrário, ela
se tornou uma questão, uma chave para conduzir e compre-
ender ações sociais, por causa de alguns atributos específicos
das sociedades globais da atualidade, nas quais a centralidade
da informação, a necessidade de escolha e a capacidade para
atuar como subjetividades autônomas se tornaram necessida-
des estruturais para produzir, manter e transformar relações
sociais. É somente neste contexto histórico que a perspectiva
de construção social da realidade se torna plausível e útil. Por-
tanto, não representa uma “descoberta” de um aspecto da re-
alidade social previamente ignorada; ao contrário, representa
um exemplo de produção de uma interpretação da realidade
que tem consequências sociais. É com a modernidade e, mais
rápida e radicalmente, com o fluxo de ideias, imagens, imagi-

19
Leandro R. Pinheiro (Org.)

nários, bens, tecnologias e pessoas – o que, muitas vezes, resu-


mimos sob o termo “globalização”3 –, que a atenção para os
processos da construção social da realidade torna-se crucial.
Como Melucci coloca, com o desenvolvimento do poten-
cial da modernidade, nossas vidas estão se tornando cada vez
mais presas em uma realidade construída por informação; a
nossa experiência mais pessoal:

Tanto em suas rotinas quanto em seus momentos mais


dramáticos, é criada por informações da mesma maneira
que depende delas. [...] Uma sociedade que usa informa-
ções como seu recurso vital altera a estrutura constitutiva
da experiência. O modo como concebemos a realidade
e a nós mesmos é alterada em suas dimensões cognitivas,
perceptivas e emocionais: a representação do espaço e do
tempo, a relação entre possibilidade e realidade, a ligação
entre os fenômenos naturais e sua elaboração simbólica
são afetados. A experiência se torna uma construção “ar-
tificial”: o produto de relações e representações, e não de
circunstâncias, leis da natureza ou “contingências”.4

Em uma sociedade tradicional, na qual discursos e prá-


ticas compartilhados privilegiam estabilidade à mudança, a
ideia da construção social da realidade não é muito útil e soa
implausível inclusive. Num mundo globalizado, todos os dias
nos confrontamos com diferença, mobilidade, mesclas e a ne-
cessidade de nos movermos de um contexto a outro; e, em
cada um destes contextos:

há uma cultura, uma língua e um conjunto de regras em


relação aos quais nós precisamos nos adaptar sempre
que migramos de um para o outro. Assim, nós estamos

3. Appadurai, Arjun. Modernity at Large: Cultural Dimensions of Globalization.


Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996.
4. Melucci, Alberto, op. cit., p.

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

sujeitos a uma pressão crescente para mudar, transferir,


traduzir o que nós éramos há apenas um momento atrás
segundo novos códigos e novas formas de relação.5

Esta experiência fenomenológica torna crucial a atenção


para a produção social da realidade, tanto como indivíduos
frente aos processos de globalização quanto estudiosos engaja-
dos na interpretação da realidade social.
Realista porque estávamos interessados em nos distanciar
de certa postura pós-moderna superficial que considerava a
realidade (porque construída) como “falsa”, “enganosa” ou
“frágil”. A capacidade social para construir a realidade torna-
-se efetiva apenas quando o que é construído torna-se “fato”,
produz efeitos, disciplina comportamentos e cria poder. Tal
realidade não é apenas um “truque” que deve ser denunciado
e desconstruído; ao invés disso, ela representa o ambiente ne-
cessário para qualquer ação possível e para interpretação da
experiência social; sua construção é o que está realmente em
jogo na corrente capacidade/necessidade/esforço para dar
sentido à existência humana.
Ao sugerir que a ideia de construção social da realidade é
o produto de uma situação sócio histórica específica, a análise
evita a armadilha de uma contraposição binária absoluta en-
tre “natureza” e “cultura”, “real” e “produzido”, bem como
“material” e “social”.
Destacar a importância da construção coletiva de senti-
dos compartilhados não implica um solipsismo radical que
nega à realidade externa qualquer consistência autônoma. Ao
contrário, sublinha o fato de que, em situações significativas
da sociedade contemporânea, questões relevantes e disputas
expressivas estão relacionadas com certa “realidade grau n”,
sempre vista através de lentes socialmente construídas, uma
realidade que está cada vez mais distanciada de qualquer re-

5. Ibidem, p. 43.

21
Leandro R. Pinheiro (Org.)

ferência a uma condição pré-social que impõe o seu domínio


sobre a capacidade humana para a ação.
Esse último ponto sugere a necessidade de um construcio-
nimo radical para compreendermos as sociedades contempo-
râneas: se compreendermos a ação social nas sociedades glo-
balizadas da atualidade como a necessidade/capacidade dos
atores sociais construírem os sentidos de suas ações dentro das
redes que os permitem partilhar a produção de significados,
então a ação social não pode ser reduzida ao comportamento.
Ao contrário, esta se torna produção continuada de sentidos
intersubjetivos através de interações sociais. Dadas as caracte-
rísticas estruturais de uma sociedade baseada na informação,
a liberdade de escolha e capacidade individual de agir como
sujeitos autônomos, a nossa interpretação possível da experi-
ência social é sempre e inevitavelmente emoldurada por cate-
gorias sociais, línguas e significados institucionalizados, bem
como por hierarquias específicas de poder. Conhecimento e
compreensão da realidade social requerem uma análise dos
processos sociais de produção de sentidos e sua interpretação
só pode se basear em categorias sociais: entidades extra ou
pré-sociais tendem a não ser mais usadas na feitura dos senti-
dos da realidade social em um mundo informacional e globa-
lizado. Um dos legados da modernidade é que não podemos
agir sem alguma representação social da sociedade em que nós
vivemos. Nossas práticas cotidianas precisam alguma compre-
ensão da realidade que é socialmente construída e transmiti-
da. Logo, os modos pelos quais representamos o mundo social
se tornam parte de nossa realidade; eles são incorporados a
expectativas compartilhadas, são institucionalizados, tomados
por certo e se tornam fatos sociais.
Sociólogos e pesquisadores interessados em temas sociais
estão entre os principais contribuintes para a produção da re-
presentação do ‘social’. Este tópico caracteriza um segundo im-
portante percurso de reflexão trilhado no curso das reuniões do

22
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

LAMS, e foi o foco de nosso trabalho coletivo Verso una sociologia


riflessiva6. Orientamo-nos ao “fazer” da pesquisa social: como um
pesquisador produz conhecimento através de interpretações
de interpretações, narrações de narrações? Observamos o pes-
quisador como sujeito personificado, envolvido na construção
de uma narração significativa do social e imerso em redes es-
pecíficas de relações – com os temas em estudo, os colegas, o
público – que constituem os limites e oportunidades à capaci-
dade do pesquisador para compreender e narrar o campo de
pesquisa. Nossos interesses sobre como sociólogos produzem seu
conhecimento e como os contextos influenciam a este não era
direcionado a “desmascarar” o que dificulta a compreensão, a
fim de produzir um conhecimento verdadeiro. Ao invés disso,
nós estávamos interessados em destacar a pesquisa como uma
prática social não radicalmente diferente de outras práticas cujo
propósito é produzir interpretações significativas e viáveis – par-
ciais e incompletas, mas efetivas – das experiências humanas.

Ainda sobre as escolhas, o tema da “diferença”

Considerando o que assinalas acima, gostaria que explicasse a apropria-


ção contextualizada com que você tem abordado a noção de “diferença”.
E, ousando uma aproximação a pesquisas realizadas em/sobre comuni-
dades de periferia, solicito ponderações suas acerca das experiências da
“diferença” conforme estas se articulam a distintas condições econômicas
e culturais de vida.

Nos limites do quadro esboçado acima, a minha contri-


buição tem sido a de desenvolver uma perspectiva reflexiva e
construcionista da produção social da diferença cultural.

6. Melucci, Alberto (ed.). Verso una sociologia riflessiva. Bologna: Il Mulino, 1998.
(Publicado em português: “Por uma sociologia reflexiva” – Editora Vozes, 2005).

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

O interesse pelo tema da “diferença” tem sido uma marca


da teoria social nos últimos cinquenta anos. A “virada linguís-
tica”, a semiótica7, a desconstrução8, os estudos feministas9,
estudos pós-coloniais10, o pós-estruturalismo11, os estudos cul-
turais12 e o multiculturalismo13, todos enfatizaram a importân-
cia das diferenças. De formas diversas e específicas, concen-
traram-se nos limites sócio epistemológicos do trabalho e da
produção de categorias, desconstruindo o que era entendido
como dicotomias básicas e expondo o poder que estas estabe-
leciam, legitimavam e reproduziam.
Uma das mais poderosas dicotomias é a distinção entre
“nós” e “eles”. A produção da diferença é uma forma de criar
identidade social; considera e explora alguns traços e desconti-
nuidades como marcadores de uma pertença social, enquanto
ignora e desconstrói outras.
Nós precisamos construir diferença afim de dar sentido
para a realidade social. De acordo com Max Weber14, nós po-
demos dizer que a diferença é o “material bruto” para a cons-
7. Mais especificamente: Barthes, Roland. Mythologies. Paris: Seuil, 1957; Eco,
Umberto. Trattato di semiotica generale. Milano: Bompiani, 1975.
8. Derrida, Jacques. De la grammatologie. Paris: Minuit, 1967.
9. Bell Hooks. Ain’t I a woman? Black women and feminism. Boston: South End
Press, Boston, 1981.
10. Fanon, Frantz. Les damnés de la Terre. Paris: Maspero, 1961; Said, Edward.
Orientalism. New York: Pantheon Books, 1978.
11. Foucault, Michel. Naissance de la clinique. Une archéologie du regard médical.
Paris: Presses Universitaires de France, 1963; Foucault, Michel. Surveiller et punir.
Naissance de la prison. Paris: Gallimard, 1975.
12. Hall, Stuart (ed.). Representation: cultural representations and signifying prac-
tices. London: Sage, 1997.
13. Taylor, Charles. The politics of recognition. In: Gutmann, Amy (ed.). Mul-
ticulturalism: examining the politics of recognition. Princeton: Princeton Univer-
sity Press, 1994.
14. Weber, Max. Die “Objektivität” sozialwissenschaftlicher und sozialpoli-
tischer Erkenntnis. Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, xix, 1904, p. 22-87;
Weber, Max. Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologies. Tübingen: Mohr, 1920.

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

trução da cultura: produzir a diferença é selecionar e cortar


um segmento finito da infinidade sem sentido dos processos
do mundo, um segmento ao qual os seres humanos conferem
sentido e significado. Como observa Gregory Bateson15, a ca-
pacidade humana para produzir informações está baseada na
capacidade de produzir diferença que gesta diferença. Seguin-
do Emile Durkheim16, nós podemos acrescentar que a produ-
ção de diferença é sempre a expressão de um julgamento mo-
ral: não só se reconhecem diferenças objetivas, funda-se uma
lógica de ordenação hierárquica. Produzir diferença nunca é
um ato inocente; gera um espaço para o sagrado – carregado
com valor positivo – excluindo, minimizando, silenciando e
culpando o que serve como uma referência negativa para de-
finir outro espaço – o profano.
Ao invés de olhar para a diferença como um “fato”, meu
campo de interesse reside em observar a diferença como um
processo social de construção de distinções; um processo de
“delimitação” que produz identidade e poder, recursos para
ação e exploração, pertenças e exclusão.
Diferença, em minha perspectiva, não é somente um obje-
to de pesquisa – uma categoria da prática –, mas também um
ponto de vista epistemológico – uma categoria de análise –
que se presta a uma análise crítica do real, bem como das lutas
que tomam forma em torno desta construção da realidade.
O debate atual sobre a relevância deste tema na sociedade
contemporânea frequentemente define dois sentidos opostos
para a diferença. De uma parte, a diferença é concebida como
um tipo de essência que determina a existência de indivíduos
e grupos. Diferença é, assim, vista como o núcleo autêntico e
“natural” da identidade pessoal ou como a herança forjada

15. Bateson, Gregory. Steps to an ecology of mind. Chicago: University of Chicago


Press, 1972.
16. Durkheim, Émile. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Paris: Alcan, 1912.

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

por longos períodos de história comum, consistindo nas “mais


sagradas verdades” do grupo.
De outra parte, a diferença é vista como uma pura con-
tingência, uma construção continuada com uma existência
temporária, efêmera e enganosa. Uma ênfase demasiada
na capacidade de mesclar e produzir híbridos (com seu foco
sobre a capacidade humana de criar distinções e seu esfor-
ço para desconstruir qualquer reivindicação da diferença em
se apresentar como natural e inevitável) arrisca dissimular as
dinâmicas de poder envolvidas na produção de qualquer dife-
rença. Concentrando-se na capacidade humana para mesclar,
resistir e produzir novas distinções, arrisca-se desconsiderar a
relevância dos processos de institucionalização das diferenças
produzidas. Assim, acaba-se favorecendo uma imagem exces-
sivamente fluida e contingente destas, uma imagem em nítido
contraste com a observação empírica que mostra até que pon-
to elas são percebidas pelos atores sociais como um elemento
concreto que molda as percepções e as ações.
A fim de dar consistência sociológica para a ideia de di-
ferença, penso ser importante assumir uma perspectiva cons-
trutivista informada e analisar como, por quem, em quais
contextos e com que propósitos, a diferença é apropriada con-
cretamente nas interações sociais. Um primeiro passo nesta di-
reção poderia focar no que eu, junto a outros colegas (Giovan-
ni Semi, numa elaboração compartilhada17; Anita Harris18,
Amanda Wise e Selvaraj Velayutham19, seguindo em experi-
ências de pesquisa autônomas), chamo multiculturalismo cotidia-
no (everyday multiculturalism). Refere-se a situações concretas de

17. Colombo, Enzo; Semi, Giovanni (eds). Multiculturalismo quotidiano. Le pratiche


della differenza. Milano: Franco Angeli, 2007.
18. Harris, Anita. Young people and everyday multiculturalism. New York: Routledge,
2013.
19. Wise, Amanda; Velayutham, Selvaraj (eds). Everyday multiculturalism. Basing-
stoke: Palgrave, 2009.

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

interação onde a diferença se torna, para pelo menos alguns


dos atores envolvidos, um importante elemento na construção
da realidade social e no sentido atribuído a ela.
Em meu ponto de vista, o multiculturalismo cotidiano nos
convida a ir além da simples observação de que a diferença é
construída socialmente para considerar os modos pelos quais
tal construção é possível e efetiva. Sugere considerar a diferen-
ça como uma prática, uma performance em curso, na qual o
que está em jogo é a produção de sentidos compartilhados de
uma experiência contextual. A diferença é concebida, então,
como uma “ferramenta” política: algo que as pessoas podem
usar para produzir uma realidade social específica, caracteri-
zada por uma ordem específica e por fronteiras que produzem
hierarquias de poder particulares, regras para inclusão e exclu-
são, formas de pertencimento e identidades. Como ferramen-
ta política, a diferença é sempre caracterizada por ambivalên-
cia, é tanto restrição quanto recurso. Uma restrição quando
é externamente imposta, como um rótulo restritivo difícil de
remover ou ignorar e que pode ser usado para justificar exclu-
são, discriminação e exploração. Um recurso quando pode ser
usado para promover identificação e ação social. Neste caso, a
diferença pode promover estratégias orientadas à aquisição de
visibilidade, respeito, justiça ou privilégios ou, o mais comum,
é base para táticas que suportam formas de resistência tempo-
rária, atos que não são completa e conscientemente subversi-
vos e tentam tirar vantagem de situações favoráveis.
O multiculturalismo cotidiano pode ajudar a conceber a
diferença como um trabalho de produção, tradução e supe-
ração de distinções constante e situado. A produção de dife-
renças requere um certo grau de credibilidade, autoridade e
estabilidade para ser persuasiva e eficaz, mas arrisca perder
sua efetividade se não conseguir se ajustar continuamente às
especificidades dos contextos em que é usada. A capacidade

27
Leandro R. Pinheiro (Org.)

de produzir socialmente a diferença não depende somente da


vontade, da criatividade ou da sensibilidade do indivíduo. Ao
contrário, ocorre sob constrangimentos estruturais e hierar-
quias de poder específicas que transcendem as habilidades ra-
cionais e as estratégias dos sujeitos.
Isso nos permite trazer a dimensão do poder à tona: preci-
samente porque é construída, e porque é um recurso político
para definir a realidade, a diferença inclui uma visão particular
e situada de mundo, inclui regras específicas para mirar a rea-
lidade e configurar restrições, modelos e expectativas alinhados
aos pontos de vista e interesses de grupos sociais específicos.
Uma perspectiva construcionista que não se contenta em
apenas assinalar a natureza socialmente construída da reali-
dade, permite-nos trazer a questão das fronteiras e distinções
concretas: dentre as muitas igualmente possíveis e plausíveis,
quais são efetivamente “desenhadas”, por quem e por que. Su-
blinha o fato de que o interesse sociológico não é só capturar
a dinâmica de produção contínua da diferença, mas também
as formas pelas quais esta construção é representada como le-
gítima e estável, bem como as condições contextuais históricas
que fazem hegemônica uma diferença particular: o resultado
de uma luta de poder que tende a impor um ponto de vista
particular, embora sempre de uma forma parcial e temporá-
ria20. E é essa luta incessante entre o estabilizar e o contestar
de uma diferença específica, em um contexto de continuado
conflito entre distintos interesses e visões de mundo, que re-
presenta o principal foco da análise sociológica da diferença.
Concebida como uma ferramenta política para dar senti-
do à experiência social, a diferença se configura tanto como
uma construção social situada quanto como um fato que im-
põe sua lógica e organiza interações sociais. Como observou
20. Gramsci, Anthony. Selections from the prison notebooks. London: Lawrence &
Wishart, 1971.

28
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Gerd Baumann21 em seu estudo sobre bairros de periferia em


Londres, as pessoas não são nem totalmente livres para usar
como desejam a diferença, nem totalmente tolhidas por dife-
renças fixas externamente impostas. Elas são capazes de usar
uma dupla competência: elas as consideram tanto como um
dado constitutivo, reificado e essencial quanto como um cons-
truto processual, em constante mudança.
O multiculturalismo cotidiano pode ser particularmente útil
se observarmos contextos de periferia. É aí que se torna eviden-
te a coexistência de representações hegemônicas da diferença,
produzidas no nível macro dos discursos políticos e de mídia, e
de discursos populares que adaptam e traduzem tal representa-
ção reificada em ferramentas para interação ordinária.
A periferia é um ponto de partida privilegiado para ana-
lisar os processos de construção social da realidade. Contudo,
desde um ponto de vista sociológico, creio importante consi-
derar a “periferia” como uma forma cultural topológica ao
invés de uma disposição topográfica. Isto reforça a importân-
cia das relações e sentidos; ajuda a levar a diferença de uma
categoria ‘a priori’ para uma ‘a posteriori’22. Periferias, desde
uma perspectiva topológica, são locais de sentidos, poder, ex-
ploração, disciplina, emoções, pertencimentos, proteção, gue-
tização e resistências23. Elas não são nem exclusivamente luga-
res de marginalização e de subordinação, nem o espaço para
escapar do poder e produzir perspectivas novas e autônomas.
Periferias topológicas são lugares de ambivalência, onde o que
está claro no centro torna-se turvo, impreciso e distorcido. Elas
mostram o contraditório da existência social, sempre marcada
por, de um lado, poderes preexistentes, certezas estabelecidas e

21. Baumann, Gerd. Contesting culture. Cambridge: Cambridge University Press,


1996.
22. Lury, Celia; Parisi, Luciana; Terranova, Tiziana. Introduction: the beco-
ming topological of culture, Theory, Culture & Society, 29, (4/5), 2012, p. 3-35.
23. Bell hooks, op. cit.

29
Leandro R. Pinheiro (Org.)

a penetração de disciplinamentos instituídos e, de outro, a ca-


pacidade para traduzir, transformar, imaginar e ver de modo
distinto24. Periferias topológicas não são apenas um possível
objeto de pesquisa; elas são também um modo de olhar para
as interações sociais, concentrando-se nas relações recursivas
entre a realidade em sua dimensão ontológica – como um fato
social que, simultaneamente, oportuniza e oblitera ações – e a
realidade em sua dimensão epistemológica – como o contínuo
e interminável processo de produção e crítica de sentidos e
saberes. Elas não são nem o lugar em cujo interior realidade e
poder assumem a consistência de algo determinado, a solidez
de um fato dado e/ou a evidência que oculta qualquer possi-
bilidade de pensar de forma diversa, nem a exterioridade onde
tudo é possível, imaginação e ações são livres e as pessoas estão
liberadas de qualquer obrigação social.
No entanto, não podemos ser ingênuos. Periferias são tam-
bém lugares de privação, falta e marginalização. Imaginação,
capacidade de aspirar25 e de ser protagonista ativo de mudan-
ças sociais requerem capacidades pessoais adequadas, que, de
acordo com Melucci26, podem ser definidas como um conjun-
to de recursos disponíveis para se pensar sobre si mesmo e
atuar como um indivíduo, ser reconhecido como tal pelos ou-
tros e investir na autorrealização como um ser humano. Estes
recursos nunca são distribuídos em igualdade de condições.
As intercecções específicas entre recursos econômicos e cultu-
rais, gênero, religião, etnias, deficiências, disposição espacial
desempenham um importante papel na definição de capaci-
dades para produzir a realidade social de forma “original” e,

24. Castoriadis, Cornélius. L’institution imaginaire de la société, Paris: Seuil, 1975.


25. Appadurai, Arjun. The Capacity to Aspire: culture and the terms of recog-
nition. In: Rao, Vijayendra; Walton, Michael (eds.). Culture and Public Action. Palo
Alto: Stanford University Press, 2004, p. 59-84.
26. Melucci, Alberto. The playing self. Cambridge: Cambridge University Press,
1996.

30
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

além disso, para transformar o que tem sido produzido em um


“fato social”. Então, ater-nos à discriminação e à exclusão é
necessário quando se trata de periferias.

Cotidiano, relações sociais contemporâneas e pesquisa

Atualmente, construímos experiências pessoais sob intensificada produção


de apelos e vivemos a necessidade de escolhas e renúncias regulares. Situ-
ação que pode engendrar fragmentação social, mas também pode instigar
os sujeitos à criação de sentidos para suas ações. Considerando estas cir-
cunstâncias, como você analisa a relevância da vida cotidiana nas rela-
ções sociais contemporâneas? Ademais, lembrando a tradição da área em
pesquisas sobre o cotidiano, que contribuições poderíamos aventar, hoje, a
partir de pesquisas sociológicas baseadas nas relações cotidianas?

“Cotidiano” é outro conceito reforçado quando concebi-


do em termos topológicos. Classicamente, tem sido considera-
do desde dois modos diferentes, frequentemente vistos como
contraditórios. De um lado, estudiosos como Alfred Schütz27
e Anthony Giddens28 sugeriram que a natureza repetitiva e
recursiva da vida cotidiana fornece uma forma de seguran-
ça ontológica. As rotinas cotidianas asseguram uma forma de
normalização que, muitas vezes inconscientemente, reproduz
o tecido do mundano. Categorizações e rotinas não problema-
tizadas constituem ponto de partida fundamental desde o qual
suposições, comportamentos e práticas são vistos como auto
evidentes e tidos como certos. De outro lado, pensadores como
Michel de Certeau29 e Henri Lefebvre30 conceberam a vida

27. Schütz, Alfred. The Phenomenology of the Social World. Evanston: Northwestern
University Press, 1967.
28. Giddens, Anthony. Modernity and self-identity. Cambridge: Polity, 1991.
29. De Certeau, Michel. L’invention du quotidien. I Arts de faire. Paris: Gallimard,
1990.
30. Lefebvre, Henri. La vie quotidienne dans le monde moderne. Paris: Gallimard,
1968.

31
Leandro R. Pinheiro (Org.)

cotidiana como um lugar de possibilidades, o reino das ações


práticas que não se reduzem à disciplina. A vida cotidiana não
é apenas um locus de derrota ideológica e conformidade, gera
oportunidades e deixa espaço para a capacidade humana de
se adaptar. Assim, o cotidiano é um lugar onde questões se ori-
ginam, um possível espaço para crítica do estabelecido31. Nes-
ta perspectiva, é uma ambiência para transformação, adapta-
ção, tradução, improvisação e resistência; o local para arranjos
criativos e rearranjos da bricolagem32.
O “lugar” do cotidiano não pode ser concebido com base
somente em uma metáfora espacial. Não se limita a referir o
lugar da privacidade, da intimidade e da familiaridade. Pode
ser melhor compreendido relacionalmente: as práticas ordi-
nárias partilhadas e mutuamente inteligíveis, ações ordiná-
rias e rotinas que “demandam”, “preocupam”, “engajam” e
“tocam”. O domínio analítico do cotidiano é a experiência
situada, mas tal domínio nunca é definido, numa sociedade
globalizada e informacional, por proximidade, área comunitá-
ria, limites de bairro ou relações familiares. Ao contrário, nas
sociedades contemporâneas a arena cotidiana é mais e mais
aberta e conectada a dimensões, símbolos e experiências que
vão além do aqui e agora de um contexto imediato, transfor-
mando as relações e práticas ordinárias de forma inovadora33.
Visto ao nível do cotidiano, as ações humanas parecem
fragmentadas, multiformes, não sistemáticas e em constante
evolução34. Elas parecem um esforço sem fim para adaptar o
que temos à mão às necessidades específicas da situação. Aten-

31. Smith, Andrew. Rethinking the “everyday” in “ethnicity and everyday life”.
Ethnic and Racial Studies, 38 (7), 2015, p. 1137-1151.
32. Highmore, Ben. Everyday life and cultural theory: an introduction. London:
Routledge, 2001.
33. Beck, Ulrich. Risk society: towards a new modernity. London: Sage, 1992.
34. De Certeau, Michel. L’invention du quotidien. I Arts de faire. Paris: Gallimard,
1990.

32
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

tar às micro práticas cotidianas nos possibilita resistir à tenta-


ção para reificar ações, relações e categorias35, e trazer à tona a
dimensão performativa que caracteriza tanto a criação quanto
a estabilização de diferenças capazes de gerar diversidade.
Além disso, o foco analítico orientado ao cotidiano nos
permite “levar a sério os atores”36, escutar atentamente suas
narrativas e fazer observações detalhadas de como eles cons-
troem e justificam suas ações em termos concretos. De outra
parte, como De Certeau37 salienta, analisar práticas cotidianas
não implica atomismo ou reduzir as coisas a um nível indivi-
dual. Permite-nos considerar o jogo entre agência e dimensões
estruturais e destacar como as pessoas podem jogar entre a
rigidez das estruturas sociais – que raramente podem con-
trolar as ações humanas desde padrões inflexíveis e imutáveis
sem permitir alguma liberdade de ação – e a originalidade da
agência – que dificilmente pode se expressar sem considerar
restrições externas e os recursos disponíveis numa situação es-
pecífica. A dimensão cotidiana contribui, assim, para assinalar
três elementos importantes para se compreender os processos
de construção social da realidade: as práticas, os contextos e as
experiências subjetivas.
Em suas práticas diárias, os sujeitos parecem comprome-
tidos em “ajustar as coisas”, produzir justificações e sentidos
plausíveis, “traduzir” o que está disponível para eles em re-
cursos passíveis de uso conforme as exigências do contexto.
A “tradução”, como prática diária chave, refere-se à ideia de
Latour38: uma contínua produção de evidência, baseada na
transformação do que as pessoas têm à disposição em “apre-

35. Revel, Jacques (ed.). Jeux d’échelles. La micro-analyse à l’expérience. Paris:


Seuil, 1996.
36. Touraine, Alan. Le Retour de l’acteur. Paris: Fayard, 1984.
37. Op. cit.
38. Latour, Bruno. Science in action: how to follow scientists and engineers through
society. Milton Keynes: Open University Press, 1987.

33
Leandro R. Pinheiro (Org.)

ciações”, “exemplos”, “verificações” apropriados ao trabalho


que está sendo realizado. Também recorre à ideia de Gerd
Baumann39 de uma competência cultural caracterizada por
diferentes registros gramaticais e semânticos dentro dos quais
as partes sabem se mover competentemente para adaptar as
macro representações – que caracterizam o contexto da ação
e que evitam uma possibilidade de mudança imediata basea-
da na vontade individual – em representações demóticas, isto
é, ferramentas e recursos relacionais usados no conjunto das
ações. Em vez de “criatividade” ou interesses individuais, o
trabalho de tradução que caracteriza as práticas cotidianas
parece voltado para a produção de “ajustes”, discursos e ações
justificáveis. O elemento central do processo de construção
social de realidade se torna, portanto, a habilidade para se
adaptar aos contextos, estabilizar e normalizar o que é produ-
zido, considerando o público e suas expectativas, e não a su-
posta capacidade dos indivíduos para criar sentidos originais
(ex novo), conforme vontades individuais únicas. Tornar real a
realidade – ou seja, publicamente reconhecida como real – é o
ponto central do processo de construção.
A importância da tradução está articulada a característi-
cas específicas da sociedade contemporânea. A variedade de
situações e possibilidades e a margem de “jogo” possibilitada
pela pluralidade de regras requer um esforço comprometido
de interpretação que necessita sujeitos ativos, capazes de ação
autônoma. Como observa Melucci:

os terminais das redes devem ser relativamente autôno-


mos, capazes de percepção e dotados da faculdade para
codificar, decodificar e desenvolver linguagens. Deve ha-
ver uma quantidade de recursos socialmente distribuídos
para garantir que os indivíduos possam funcionar como
emissores e receptores de fluxos de informação40.

39. Baumann, Gerd. Op. cit.


40. Melucci, Alberto. Culture in gioco. Milano: Il Saggiatore, 2000, p. 35.

34
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

A construção de realidade em sua consistência sociológi-


ca – como “fato social” – é possível hoje em dia através de
atribuição de sentidos situados em ações-hora, em práticas or-
dinárias, nas relações mais pessoais e íntimas. No entanto, isto
não ocorre porque os sujeitos se sobressaíram a uma socieda-
de coercitiva e eliminaram as restrições e limitações que opri-
miam sua capacidade de ação e sua liberdade – não porque
a “sociedade não existe” ou “não existe mais”, como alegado
por parte do pensamento liberal contemporâneo, neste ponto
não muito distante de um pós-modernismo radical e sua exal-
tação dos indivíduos. Mais precisamente, isto é viável porque
a condição social atual faz com que a capacidade de ação e
escolha independente seja possível, de fato necessária.
No cotidiano, os indivíduos são cada vez mais chamados
a criar ativamente significados para as ações em seus mundos;
significados que não são mais mecanicamente designados por
estruturas sociais nem sujeito a restrições rígidas da ordem es-
tabelecida41. De outra parte, o hiato entre constrangimentos
externos (gerados em dimensões crescentemente distantes da
experiência e controle pessoal) e desejos internos (dirigidos por
um contínuo anseio de afirmação como sujeitos nas interações
cotidianas) cresce, favorecendo uma percepção generalizada
de incerteza42.
De um modo cada vez mais direto e generalizado, estamos
vivendo a experiência de sermos os arquitetos de nosso pró-
prio destino – de ter que escolher quem nós somos e como vi-
vemos – e, ao mesmo tempo, sem garantias e certezas da qua-
lidade das escolhas ou da solidez do que está sendo construído.
Finalmente, a atenção à dimensão cotidiana é também útil
quando se trata de conhecer espaços de resistência e poder.
Resistência não é sinônimo de oposição, mas refere a algo que
41. Colombo, Enzo; Rebughini, Paola. Children of immigrants in a globalized world.
A generational experience. Basingstoke: Palgrave, 2012.
42. Beck, Ulrich. Op. cit.

35
Leandro R. Pinheiro (Org.)

obstrui e dispersa o fluxo de energia da dominação, e interfere


no fluxo “acrítico” e “natural” das representações. A resistên-
cia é algo mais do que a oposição, é uma maneira de conservar
e criar; em vez de apresentar o oposto do poder, ela oferece
uma explicação diferente, plural de poder43.
Periferias são tipicamente espaços para resistência44; a po-
sição nas “margens” favorece a resistência, que pode se mani-
festar na forma de estratégias ou, o mais frequente, na forma
de táticas45. Estratégias implicam consciência, ações planeja-
das e guiadas por um modelo. Táticas exploram e dependem
das oportunidades, e o que elas conquistam não podem ser
mantidas por muito tempo. Elas residem em “pontos cegos”,
áreas de silêncio, brechas que se abrem no controle e na vigi-
lância do poder, sem mudar radicalmente tais condições, mas
“deslizando”, conquistam certo espaço de independência.
Reconhecer a importância da resistência significa admitir
a persistente recusa dos atores sociais a se submeterem a ca-
tegorias sociológicas, e em particular, à sua habilidade para
construir fronteiras aparentemente rígidas que eles, então,
dispõem-se a desfazer sem pensar duas vezes. Do punk que re-
futa ser categorizado como um “fenômeno social” ao jovem
de banlieue46 que rejeita o rótulo de “imigrante”, ou ao líder
de minorias comunitárias que constantemente erige barreiras
retóricas, este contínuo processo de derrubar e construir fron-
teiras não pode ser ignorado ou simplesmente rejeitado.

43. Highmore, Ben. Op. cit.


44. Bell hooks. Yaerning: race, gender and cultural politics. Boston: South End Press,
1991.
45. De Certeau, Michel. L’invention du quotidien. I Arts de faire. Paris: Gallimard,
1990.
46. Na França, expressão que designa subúrbios de grandes cidades.

36
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Reflexividade contemporânea e pesquisa

Entre outros aspectos, as relações sociais da atualidade têm se organizado


desde um fluxo intensivo de informações, frequentes interações com perten-
ças múltiplas e a “dissolução” de alguns pontos de referência modernos,
influenciando nossas possibilidades reflexivas. Sua pesquisa destaca certa
apropriação prática da “diferença”, que pode ser observada como um re-
curso situado e concernente às ações dos sujeitos. Neste sentido, a noção de
reflexividade (ou autorreflexividade) teria alguma relevância para compre-
endermos as relações sociais contemporâneas?

O sentido e a interpretação produzidos, quando efetivos,


tornam-se parte do mundo, constituem a realidade e orientam
percepções, atitudes e ações. Em minha opinião, a reflexivida-
de se refere, principalmente, ao processo recursivo de incorpo-
rar significado socialmente construído na facticidade do real.
Nesta perspectiva, a reflexividade não equivale à “intros-
pecção” ou “autoconsciência”. Não é uma característica racio-
nal individual: ela deve ser contemplada como uma conquista
social e relacional, um efeito da capacidade compartilhada
para produzir significados sociais. Enfatizar a importância da
reflexividade, então, significa concentrar-se nos processos so-
ciais de construção da realidade em que vivemos, e não no
autoconhecimento. Em vez de destacar a racionalidade indi-
vidual e a autoconsciência, sugere qualificar nossa capacidade
para reconhecer a produção compartilhada da realidade so-
cial: uma produção que se tornou crucial e inevitável em uma
sociedade globalizada e informacional.
A reflexividade sinaliza para a natureza construída da re-
alidade social, provoca-nos a ter em conta a responsabilidade
decorrente da nossa capacidade/necessidade de escolher, de
tomar uma posição frente ao mundo. É uma resultante espe-
cífica de um mundo globalizado e informacional. Nossas ex-
periências de múltiplas pertenças, a necessidade recorrente de

37
Leandro R. Pinheiro (Org.)

mudar os códigos a cada vez que nos deslocamos de um con-


texto a outro e a obrigação de escolher entre diferentes opções
(e, junto, vivenciar as renúncias que as escolhas implicam),
revelam que as condições para a ação humana são definidas
principalmente por elas próprias, e menos determinadas por
fatores externos e extra sociais imutáveis. Ela convida a olhar
para uma imanente (não transcendente) compreensão da ação
social e da realidade social.
Assim, a reflexividade não pode ser reduzida a um apelo
para mais racionalidade individual. Se assim for, a reflexivida-
de continuaria a ser um instrumento muito frágil para a com-
preensão da realidade social. Como uma ferramenta crítica
erige-se ao questionar a natureza e as bases de poder, e somen-
te um ator “marginal” pode apresentar este tipo perguntas.
É raro que as pessoas dispostas em posição dominante sejam
capazes de desconstruir criticamente e francamente a base e a
origem da sua posição privilegiada. A ativação do processo de
reflexividade social requer a capacidade de colocar a questão
indesejada, problematizar o estabelecido e contestar a legiti-
midade do estado atual do mundo. Esta capacidade só pode
ser ativada de fora da posição dominante; precisa de um “dis-
sidente”, alguém que contraria as categorizações hegemônicas
e as fronteiras existentes.
A capacidade de fazer as perguntas indesejadas, a interro-
gação “irritante” que discute o naturalizado das categorias e
hierarquias existentes não é prerrogativa apenas do indivíduo.
Sempre exige um sujeito que aceita a responsabilidade de di-
zer o que os outros preferem não ouvir, mas esta voz continua-
ria a ser uma “voz no deserto” sem as condições sociais neces-
sárias para que seja escutado, discutido e para que se torne um
discurso alternativo crível e legítimo. A reflexividade precisa
tanto de um sujeito criativo, profético e iconoclasta quando de
um contexto adequado, capaz de propiciar os processos sociais

38
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

que permitem à construção individual e local se tornar uma


realidade social compartilhada.
A reflexividade é o resultado da pluralidade de opções e a
“dissolução” de pontos fortes de referência; apenas a pluralida-
de pode realmente apoiá-la e transformá-la em um dispositivo
crítico para a compreensão da realidade social atual. Este tipo
de reflexividade requer condições públicas para que seja total-
mente ativada; é o resultado do questionamento público do po-
der desencadeado pelo “marginal”. Em uma realidade em que
os sentidos construídos socialmente se tornam cada vez mais
relevantes na definição do que é “real”, ser capaz de assegurar
um espaço para o dissidente é, de certa forma, uma garantia
para se evitar a interposição de uma construção parcial espe-
cífica como a única realidade possível. Se reconhecermos que
a nossa capacidade/necessidade de construir a realidade social
é sempre parcial, interessada e com base em alguma forma de
exclusão, então deixar espaço para a crítica das construções he-
gemônicas constitui uma garantia comum contra a reificação
das – sempre desiguais e injustas – relações de poder existentes.
Uma sociedade engajada em garantir espaços institucionais
para questionar a realidade existente define as bases para o de-
senvolvimento de uma reflexividade pública que tem inclusão
e universalismo como seus – inatingíveis, mas valiosos – objeti-
vos. Promove a consciência de que o mundo em que vivemos é
o resultado de relações e disputas sociais que produzem privi-
légios e exclusões; que a total igualdade é improvável, mas que
as desigualdades atuais são sempre o resultado da ação social
e exigem o reconhecimento da responsabilidade por parte dos
que estão em uma posição privilegiada.
Este tipo de reflexividade social é também a base para uma
compreensão coerente e informada das relações sociais con-
temporâneas. Tomemos o exemplo de sociedades multicultu-
rais. Normalmente, o multiculturalismo refere-se a situações
em que as pessoas com hábitos, costumes, tradições, línguas e/

39
Leandro R. Pinheiro (Org.)

ou religiões “diferentes” vivem lado a lado no mesmo espaço


social, estando dispostos a manter os aspectos relevantes da sua
própria diferença e a conquistar para esta o reconhecimento
público. Quando assumimos uma perspectiva construcionista e
reflexiva, podemos colocar a “diferença” sob investigação, em
vez de tomá-la como um fato que determina identidades, ideias
e ações. Uma postura reflexiva ajuda a olhar para a diferen-
ça como um trabalho constante e situado de produção, fuga e
apagamento de distinções, como uma espécie de trabalho de
fronteira contínuo e conflituoso. Um instrumento político ca-
racterizado pela ambivalência e que, portanto, deve ser julgado
não no termo abstrato de uma suposta “diferença” existente
– como uma grande parte da discussão normativa sobre o mul-
ticulturalismo tem feito nas últimas décadas –, mas nas condi-
ções empíricas de sua utilização. A reflexividade pode ajudar
a analisar a diferença como um produto social, questionando
o seu fundamento supostamente “natural” ou “extrassocial”;
pode evitar que a diferença seja usada como uma “explicação”
das relações sociais, transformando-a em algo que precisa ser
explicado e criticado, compreendendo a forma como é cons-
truída socialmente e como se torna um forte ponto de referên-
cia para avaliar situações e orientar relacionamentos e ações.
Dando espaço para vozes diferentes, orientando-se aos
processos em que a “diferença” se torna uma ferramenta plau-
sível e útil e concentrando-se em situações cotidianas (e seu
conjunto específico de restrições e recursos), a reflexividade
pode ajudar a tornar explícito o tecido das sociedades infor-
macionais globalizadas contemporâneas, cada vez mais cons-
tituídas por produtos de relações e representações (em vez de
leis da natureza ou requisitos extra sociais).
A inclusão contínua dos produtos da ação social como ele-
mentos da realidade social e a capacidade de ter em conta
os efeitos do que é produzido em ações futuras – o que eu
defini, aqui, como reflexividade social – pode ser decisivo. Se

40
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

nós somos os construtores da nossa realidade, agir e escolher


se torna uma necessidade. A consciência dos possíveis efeitos
da nossa ação e de nosso papel na formação do nosso próprio
futuro destaca a importância de nossas escolhas, bem como a
sua inevitabilidade. Melucci chama a atenção para o que ele
define como “o paradoxo da escolha”:

a ampliação de nossas chances de vida, portanto do espa-


ço de autonomia individual que se expressa nas escolhas
– sempre associada à ideia de vontade e de liberdade –
implica também a inevitável necessidade de escolher. Até
mesmo a não-escolha nos é apresentada como escolha,
porque significa a renúncia a alguma oportunidade [...]
O paradoxo da escolha cria, dessa maneira, um novo tipo
de pressão psicológica e nos sujeita a novos problemas.
Escolher entre tantas possibilidades é uma tarefa difícil,
e o que fica de fora é sempre maior do que o escolhi-
do. Não podemos evitar o sentimento de perda, e muitas
formas de sofrimento psicológico contemporâneo podem
decorrer daí.47

A conscientização individual sobre a importância da refle-


xividade social pode gerar desconforto, bloqueando qualquer
capacidade de ação diante da possibilidade de estar errado,
ou levar os indivíduos a um hiperativismo cuja espiral sem
fim pode esgota-los eventualmente. Contudo, penso que, em
nossa situação histórica não podemos deixar de promover a
reflexividade social. A atual capacidade social para produzir
as condições para a existência humana impõe atenção coletiva
constante para os processos de construção social da realida-
de, a fim de trazer para o primeiro plano as responsabilidades
pelos efeitos das construções que vamos gestar. Como Stuart
Hall observa, reconhecer que nossas categorias são construí-

47. Melucci, Alberto. Identity and difference in a globalized world. In: Werbner, Pni-
na; Modood, Tariq (eds). Debating cultural hybridity. London: Zed Books, 1997, p. 63.

41
Leandro R. Pinheiro (Org.)

das socialmente inibe que estas realizem a função que lhes é


demandada geralmente – fornecendo a verdade e estabelecen-
do esta verdade para além das sombras da dúvida. Ficamos
sem garantias acerca do que fazemos. Isso pode ser difícil de
enfrentar, mas reconhecê-lo publicamente pode ser um modo
de contrariar um poder que promete garantias e certezas à
custa de que ignoremos sua parcialidade e sua produção ine-
vitável de privilégios e exclusões. Eu só posso concordar com
Hall quando diz:

de fato, eu acredito que precisaríamos começar de novo


sem esse tipo de garantia, começar de novo em outro
espaço, começar de novo a partir um conjunto diferente
de pressupostos para tentar nos perguntar o que deve
existir, na identificação humana, na prática humana,
na construção de alianças humanas, que sem qualquer
garantia, sem as certezas da religião ou da ciência ou
da antropologia ou da genética ou da biologia ou da
aparência diante os olhos, que sem quaisquer garantias
enfim, poderia nos conduzir a discursos e práticas huma-
nos eticamente responsáveis48.

Pesquisa, escrita e narrativa

No livro ‘Por uma sociologia reflexiva’, organizado por Alberto Meluc-


ci, no capítulo ‘Descrever o social’, você nos apresenta uma discussão
interessante sobre estilos narrativos da escrita (elaboração) científica.
Poderia explorar um pouco mais estas ideias e, solicitando-lhe um pouco
mais, derivar sua apreciação para a apropriação de narrativas como
recurso metodológico? A produção de narrativas poderia configurar uma
mediação reflexiva visando contribuições políticas e educativas durante
os diálogos de pesquisa?

48. Hall, Stuart. ‘Race, the floating signifier’. Media Education Foundation, p.
17. In: <https://www.mediaed.org/assets/products/407/transcript_407.pdf>.
1997.

42
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Antes de qualquer coisa, penso que é importante questio-


nar a visão de que método é um conjunto de técnicas pré-
-determinadas e neutras, que podem ser aplicadas a diversos
objetos sem alterar fundamentalmente a maneira pela qual
elas são construídas e compreendidas. Método é tanto algo
sobre o agir no mundo como é sobre conhecê-lo.
Em minha opinião, o método sociológico é uma manei-
ra específica de narrar a experiência social, nem melhor nem
pior do que a filosófica, a política, a religiosa, a biológica, a de
senso comum ou qualquer outro tipo de método possível. To-
davia, permanece particular e tem sua própria lógica. Destina-
-se a promover o que Wright Mills chamou de “imaginação
sociológica”, isto é, o conceber da integração da experiência
pessoal ao horizonte mais amplo dos processos sócio históri-
cos. Enquanto outros tipos de métodos – políticos, filosóficos e
religiosos – podem ser orientados por preocupações normati-
vas e seus interesses ao narrar a realidade social podem repre-
sentar certo “dever” de organizar, julgar ou mudar o mundo, o
método sociológico, na minha opinião, objetiva produzir uma
representação plural, complexa e crítica do real. Interessadas
em assinalar os processos de construção da realidade social, as
narrativas sociológicas visam apresentar a variedade de inter-
pretações possíveis do real, a diversidade de vozes, interesses,
expectativas e vontades das diferentes pessoas quando dialo-
gam e/ou disputam os sentidos de suas experiências sociais.
Colocar em cena questões sobre o método no âmbito so-
ciológico envolve “suspender” – recordando uma categoria fe-
nomenológica – o conjunto de práticas disciplinares que apre-
sentam os objetos do conhecimento como já dados, e investigar
os processos desde os quais tais objetos são constituídos.
Entretanto, salientar a importância do processo de constru-
ção da realidade não significa incidir apenas sobre o método
ou questões metodológicas. Destaca-se, aí, o caráter “político”

43
Leandro R. Pinheiro (Org.)

de qualquer construção e conecta-se política e epistemologia,


porque conhecer e regular-controlar são parte de um mesmo
processo, como Foucault49 (1980) nos sinalizou com o conceito
de saber-poder.
Coerente com esse cenário, a reflexividade não é apenas
um adorno que se pode adicionar aos textos sociológicos. Eu
diria que ela representa uma das “marcas” da escrita socio-
lógica: a produção de discursos que se abrem para outros
discursos, que têm como objetivo destacar complexidade ao
longo da síntese, que aspiram expandir vozes, perspectivas e
interpretações.
Sociólogos produzem uma narração específica do ‘social’.
Eles produzem narrações de narrações, que visam produzir
outras narrações. Um texto sociológico reflexivo é baseado
principalmente em uma triangulação entre as narrações que
os sujeitos estavam a construir em/sobre suas práticas, a nar-
ração que o sociólogo produz em sua pesquisa então, e as nar-
rações que os leitores produzem ao conhecer as “narrações
de narrações” nos textos sociológicos. Todas estas produções
estão inter-relacionadas, embora elas mantenham certos graus
de autonomia. A reflexividade se refere ao diálogo dinâmico
entre estas diferentes narrações; como Bakhtin50 observa, o co-
nhecimento social decorre mais da capacidade para suportar e
promover o diálogo entre diferentes vozes do que da apresen-
tação de uma verdade exata, última e única.
Então, narrativas reflexivas sociológicas objetivam conec-
tar diferentes narrações e diferentes vozes, sem impor a visão
do autor sobre outros pontos de vista, sem alegar uma suposta
“prioridade” da interpretação do autor, mas sem renunciar à
proposição de uma versão própria. Isso implica reconhecer a

49. Foucault, Michel. Power/Knowledge: selected interviews and other writings,


1972-1977. New York: Pantheon Books, 1980.
50. Bakhtin, Mikhail. The dialogic imagination: four essays. Austin: University
of Texas Press, 1981.

44
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

autonomia relativa das várias narrações e as diversas posições


de poder dos diferentes indivíduos que narram.
Alguns pontos importantes advêm dessa perspectiva. Pri-
meiramente, as narrações sociológicas estão interessadas em
ampliar o vocabulário para descrever as formas desde as quais
seres humanos constroem sentidos para suas experiências.
Isto significa levar a sério os sujeitos de diálogo, deixando que
eles falem por si e evitando “falar em seu nome” (silencian-
do aqueles a quem fingimos dar voz). Em segundo lugar, esta
prática implica o reconhecimento de assimetrias de poder. As
narrativas sobre nossos temas de estudo são sempre o resul-
tado de um diálogo – às vezes, uma interrogação – gerado
desde propósitos específicos. Propósitos estes que, mesmo se
inspirados por empatia sincera e pela vontade de promover os
mais vulnerabilizados, são questões do pesquisador sobretudo.
A investigação é uma arena social construída e o pesquisador
está em uma posição de poder que lhe é favorável, podendo
definir o sistema que orienta percepções, pensamentos e ações
viáveis no contexto da pesquisa. Em terceiro lugar, reconhecer
tal posição privilegiada não implica deixar de lado a ambição
do pesquisador de produzir uma interpretação substantiva, in-
formada e valiosa da realidade. Um dos objetivos de qualquer
texto sociológico é ser considerado relevante e gerar discus-
são, constituir uma forma efetiva para compreender e falar
sobre determinada realidade social. E, finalmente, narrações
sociológicas reflexivas almejam promover o diálogo. Ao invés
de buscar ter a última palavra, procuram iniciar um novo
debate em que a interpretação proposta é considerada como
uma narrativa plausível da realidade social, tornando-se, as-
sim, parte da realidade social compartilhada. Para dar alguns
exemplos de narrativas sociológicas reflexivas, cito etnografias
como Contesting culture, de Gerd Baumann51, In search of respect,

51. Baumann, Gerd. Contesting culture. Cambridge: Cambridge University Press,


1996.

45
Leandro R. Pinheiro (Org.)

de Philippe Bougois52, Sidewalk, de Mitchell Duneier53 ou, o


mais recente, Illegality, Inc., de Ruben Andersson54. Em geral,
aprecio trabalhos de pesquisa qualitativa que relatem extensi-
vamente a realidade a partir do material coletado em campo,
permitindo que os sujeitos envolvidos falem diretamente, sem
com isso abrir mão das interpretações do autor, e, ao mesmo
tempo, estimulando os leitores a encontrar a sua própria inter-
pretação através das diferentes vozes apresentadas.
O ímpeto para produzir narrativas reflexivas está historica-
mente ligado ao desenvolvimento da academia como uma co-
munidade treinada para o debate filosófico e a controvérsia sob
a proteção do poder e, logo, sem exposição às demandas ur-
gentes, duras e arbitrárias vivenciadas e interpostas por outras
comunidades (comerciais, religiosas ou políticas). Ela decorre
de uma posição privilegiada, que permite aos pesquisadores
abstraírem-se das urgências e restrições do envolvimento direto
no resultado das ações para se concentrarem em como as ações
são conduzidas. No entanto, qualquer pesquisa, como “narra-
tiva de experiências”, é também uma oportunidade aos sujei-
tos envolvidos para criar um espaço de reflexão junto ao fluxo
das ações. Quando convidados a produzir narrativas reflexivas,
os sujeitos são convocados a se distanciarem de suas próprias
experiências, para se tornarem etnógrafos de si mesmos, para
iniciarem um diálogo consigo desde/entre as posições de ator
e narrador de suas próprias ações. Este é um importante ponto
de partida para produzir informações sobre o “social” e um
espaço potencial de resistência e empoderamento.
Promover uma narração reflexiva, uma narração aberta à
multiplicidade de vozes, aberta a desenvolvimentos inespera-

52. Bourgois, Philippe. In search of respect. Selling crack in el barrio. Cambridge:


Cambridge University Press, 1996.
53. Duneier, Mitchel. Sidewalk. New York : Straus and Giroux, 1999.
54. Andersson, Ruben. Illegality, Inc.: clandestine migration and the business of
bordering Europe. Oakland: University of California Press, 2014.

46
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

dos podem ser uma forma de gerar uma situação artificial em


que os indivíduos possam se distanciar de seu envolvimento na
ação e olhar para si enquanto agem. Observado a partir do
“exterior”, aquilo que a partir do interior aparece como dado,
inevitável, urgente e sem alternativas, revela a sua parcialida-
de e sua característica imanente. Convidadas a produzir suas
próprias narrativas, sendo escutadas e tendo a oportunidade
de ouvir a si mesmas ao narrar sua interpretação do mundo,
as pessoas podem ocupar interinamente a posição privilegiada
do pesquisador. Há uma potência: eles podem se concentrar
no “como”, ao invés de se manifestarem apenas sobre “o que”.
Esta não é uma garantia de uma maior liberdade, nem
tampouco de superação de hierarquias de poder ou de promo-
ção de equidade e mudança progressiva. No entanto, continua
a ser uma poderosa forma de desafiar as certezas, um passo
para enfatizar que a realidade é construída socialmente, um
convite para pensar e imaginar de formas diferentes e para
examinar as relações de poder existentes.

47
Sociologia, singularização e individualismo latino americano

Entrevista com Danilo Martuccelli

A entrevista1 com Danilo Martuccelli seguiu o mesmo pro-


pósito da anterior. Buscávamos diálogos que nos inspirassem
e apropriassem noções para a interpretação do que encontrá-
vamos em nossas interlocuções em campo. E o formato de en-
trevista parecia a melhor forma de trazer a esta coletânea uma
aproximação teórico-metodológica que nos era mais recente
que aquela à obra de Alberto Melucci e Enzo Colombo. Uma
aproximação que, entretanto, tem sido bastante instigadora
para pensarmos as relações entre experiências individuais e
condições sócio estruturais.
Martuccelli é professor na Faculdade de Ciências Humanas
e Sociais da Universidade Paris-Descartes (Université Paris-
-Descartes – Université Sorbonne Paris Cité/USPC) e pesqui-
sador no Cerlis – CNRS (Centre de Recherche Sur Les Liens
Sociaux – Centre National de la Recherche Scientifique). Nas respostas
às nossas questões, provoca-nos a pensar a partir de sua tese
do “processo de singularização contemporâneo” e apresenta
operadores analíticos para tanto. Suas contribuições nos pare-
cem particularmente interessantes quando desejamos trazer à
discussão reflexões sobre as formas de produção social do que
protagonizamos como indivíduos em nossos cotidianos.

1. Entrevista realizada por e-mail, em espanhol. Versão para o português: Le-


andro R. Pinheiro.

49
Leandro R. Pinheiro (Org.)

Sociologia do indivíduo, identidades e cotidiano

Para começar nosso diálogo, e estabelecer uma introdução de alguma ma-


neira, gostaria de lhe perguntar sobre a “sociologia do indivíduo” que
vem desenvolvendo. Neste sentido, poderia expor sua análise do “processo
estrutural de singularização”? E, considerando os desafios teóricos e me-
todológicos significativos à sociologia neste cenário, poderias traçar ponde-
rações sobre que lugar teriam os temas do “cotidiano” e da “identidade”
nas práticas de pesquisa?

A tese da singularização é um diagnóstico de época. Ou


seja, é uma interpretação que, através da acentuação de cer-
tos fatores, procura dar conta de uma tendência considerada
significativa em um dado período. A tese da racionalização
weberiana é sem dúvida um dos melhores exemplos de um
exercício deste tipo – a saber, a expansão de uma lógica de ra-
cionalidade instrumental por todos os âmbitos da vida social.
E também é possível pensar, certamente, como diagnóstico
de época a mercantilização das relações sociais proposta pelo
marxismo. Todos estes diagnósticos são unilaterais; propõem-
-se como olhares complementares, que vão, portanto, lado a
lado com os de outros fenômenos, mas que sublinham, cada
um deles, uma tendência julgada como particularmente signi-
ficativa no momento de compreender um coletivo.
No que concerne especificamente à tese estrutural da sin-
gularização, trata-se de afirmar que a sociedade contempo-
rânea se confronta com uma tensão fundamental entre um
processo cada vez mais ativo e estrutural de singularização e
outros paralelos, porém opostos, de padronização. Aparente-
mente, não se trataria de algo novo, salvo que a tensão entre
o singular e o padronizado me parece converter-se em um dos
grandes dilemas contemporâneos.
O que é uma instituição injusta para muitos de nós? Uma
instituição que é incapaz de nos tratar com o grau de singula-

50
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

rização que desejamos. A reflexão é reiterada nas entrevistas:


“como é possível que não levem em conta minhas condições
particulares?!”. A “boa” instituição (a justiça, o hospital, a es-
cola, certamente) é aquela que é capaz de tratar individual-
mente, isto é, diferencialmente a cada ator particular. Esta de-
manda tende a se converter numa utopia institucional, ou seja,
não está garantida hoje em nenhum lugar. Porém, isso não
impede que este ideal tenha já formulações bastante desiguais.
Com efeito, é já uma verdade institucional para os atores mais
ricos, que possuem um tratamento altamente individualizado,
tanto pelos serviços oferecidos pelo mercado quanto pelo tra-
tamento dispensado pelas instituições, ou pelas proteções das
quais usufruem. Contudo, mais além desta experiência parti-
cular, e o mais importante, o desejo de singularidade atravessa
hoje a muitos atores sociais.
É nesse sentido que se pode entender que a singularidade
é um horizonte crescente de justiça e um anseio pessoal. Este
anseio é fabricado dinamicamente na história de nossa socie-
dade: o fato, por exemplo, de que a indústria produza cada vez
mais bens individualizados e, portanto, bens e serviços singu-
lares, gera uma sociedade onde a singularidade é a evidência
do mundo; e, ao mesmo tempo, e por isso mesmo, vive-se em
uma sociedade onde, cada vez mais, tem-se a experiência de
que a singularidade é “maltratada” pelo padronizado. É o cru-
zamento entre estas duas dimensões que explica o sentimento
de que há um grau insuficiente de progresso social no interior
de certas instituições. E esta tensão tem se convertido em um
problema maior nas sociedades atuais.
Que consequências isto gera? A principal e a mais grave
é que o anseio por singularidade pode levar – pode, não digo
que leve – a colocar em questão as inevitáveis e necessárias
bases da igualdade da sociedade. Entre a igualdade e a singu-
laridade pode haver um círculo virtuoso, mas também pode
haver muitas contradições perigosas. O desejo de singulariza-

51
Leandro R. Pinheiro (Org.)

ção pode, às vezes, levar as pessoas a ter aspirações que vão de


encontro à indispensável igualdade republicana. Isto é um ris-
co enorme. E isto se vê por todos lados, com formas políticas
diferentes conforme os países. O neoliberalismo, a competição
generalizada de todos contra todos e a extensão ilimitada do
domínio da luta em toda a vida social é uma das traduções-
-traições desse desejo de singularidade, entre muitos outros
(sem esquecer, evidentemente, formas de abuso ou verticalis-
mos hierárquicos, como é o caso de muitos países da América
latina). Entretanto, há também traduções legítimas do anseio
por singularidade. Quando, por exemplo, um indivíduo soli-
cita a uma instituição que o trate de maneira diferencial em
função de suas aptidões ou dificuldades, esta aspiração é le-
gítima. Neste âmbito, não se trata somente de formular uma
demanda de não discriminação (ou seja, de um tratamento
igualitário), nem de uma demanda propriamente identitária
(reclamar direitos especiais para um grupo social), mas sim,
que é sem dúvida o mais importante porque mais universal,
exigir um tratamento mais singularizado para todas e cada
uma das experiências particulares. A singularidade é um di-
reito que os indivíduos passam a se outorgar reciprocamente.
Chego, por esse caminho, a tua segunda pergunta, concer-
nente à “identidade” e à “vida cotidiana”. Comecemos pela
identidade. O processo estrutural de singularização pode ser
lido de duas grandes maneiras. A primeira é, em geral, a mais
habitual na sociologia e consiste em partir de características
dos atores, tais como: classes; identidades de gênero; grupos
étnicos; situações geracionais. Esta leitura propõe, logicamen-
te, uma dialética particular entre aspectos coletivos e pesso-
ais (que é justamente o próprio da identidade, estabelecer um
vínculo entre ambas as dimensões), mas como a história social
das últimas décadas mostra, isto não se fez sem certo perigo
de “balcanização”, digamos, de fragmentação no que tange
à sociedade. Certamente, os homens, as mulheres, os traba-

52
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

lhadores, os executivos não têm a mesma trajetória social – a


sociologia, como enfoque disciplinar, nasceu em relação com
esta evidência. Porém, se alguém faz da identidade e de sua
afirmação política o principal eixo de análise ou o principal
operador da questão social, participa, voluntária ou involun-
tariamente, da “balcanização” do conjunto. No fundo, qua-
se poder-se-ia dizer que, no marco do processo estrutural de
singularização, a sociologia deve nos ajudar a compreender
as experiências sociais “aquém” e “além” da identidade, pro-
pondo uma articulação analítica distinta entre o coletivo e o
individual. É o que propõe a noção de “prova-desafio” (e a
qual regressaremos mais adiante).
Quanto ao “cotidiano”, sua importância é patente, mas
não tanto como perspectiva de estudo propriamente dita (como
o fizeram, e com talento, as sociologias da vida cotidiana desde
os anos 1960), mas como exigência analítica. Para dar conta
do processo de singularização em curso, é indispensável com-
preender a transformação que se tem produzido em relação à
percepção que os indivíduos têm da vida social. Durante muito
tempo, as categorias de “classe social” e de “povo”, mais tarde
as de gênero ou étnicas, foram as principais ferramentas desde
as quais os atores entenderam a si mesmos e entenderam suas
sociedades. Sem que estas dimensões tenham desaparecido, é
possível considerar a hipótese de que, progressivamente, uma
nova demanda de compreensão social se afirma: é preciso que
o social faça sentido a escala dos atores individuais. Mais sim-
ples: ou os atores são capazes de compreender os fenômenos
sociais a sua escala ou o social permanece opaco para eles. É
neste sentido que o “cotidiano” aparece como algo particular-
mente relevante no mundo de hoje: trata-se de um horizonte
de inteligibilidade desde o qual é imperioso dar conta dos pro-
cessos estruturais ativos na vida social.
Trata-se de um processo comum a muitas sociedades, mas
que toma um cariz particularmente importante na América

53
Leandro R. Pinheiro (Org.)

Latina. Com efeito, durante o essencial de sua história, a polí-


tica foi o principal eixo de estudo das sociedades latino-ameri-
canas. As principais interpretações de conjunto que foram fei-
ras destas sociedades sempre foram feitas a partir de grandes
matrizes sociopolíticas (ordem oligárquica, modelo nacional-
-popular, Estados burocrático-autoritários...), o que conduziu,
em geral, ou a descuidar aspectos “cotidianos” ou a lê-los ex-
clusivamente em referência a políticas públicas ou movimen-
tos sociais (questões de gênero, experiências urbanas...). Certa
autonomização do cotidiano e, depois dela, da vida social pes-
soal, como questão maior da sociedade, convida a sociologia a
transformar alguns de seus operadores analíticos.

Singularização, provas e periferia

Em suas problematizações, você propõe as noções de “prova-desafio” e


“suporte” como ferramentas heurísticas para análise de processos de indi-
viduação. Assim, convida-nos a observar e compreender mudanças estru-
turais rumo à singularização social e, também, às diferentes apropriações
feitas biograficamente. Como pensá-lo em contextos de periferia urbana,
onde as condições estruturais são analisadas normalmente em relação
aos limites impostos aos indivíduos, conforme suas posições sociais? Que
exemplos poderíamos tomar neste sentido?

No contexto da tese da singularização, a pergunta que se


impõe é saber como lograr, sem menosprezar as dimensões
estruturais, a compreensão das experiências individuais. Há
obviamente diferentes maneiras de fazê-lo. Alguns autores
preferem analisá-lo a partir da ideia de socializações plurais,
outros preferem fazê-lo por intermédio das construções identi-
tárias. A mim, parece que o que melhor define a “imaginação
sociológica”, como já o afirmou Wright Mills, é a capacida-
de de articular uma história com uma biografia. Certamente,
esta articulação se pode fazer, como o fez o próprio Mills, por

54
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

formas de socialização e formação de caráteres. No entanto,


também se pode fazer, e é o que trato de fazer em minhas
pesquisas, por intermédio da noção de prova ou desafio estrutural.
Com noção de “prova-desafio” se parte do que é estru-
turalmente comum a todo indivíduo como membro de uma
sociedade – modernidade racionalizadora, diria Weber –;
uma sociedade em que cada qual está obrigado, porque vive
relações marcadas por uma forma extrema de mobilização
generalizada permanente, a enfrentar certas provas. Eviden-
temente, um ator pode não querer trabalhar, mas a relação
estrutural capital-trabalho vai seguir sendo operativa e coer-
citiva em sua vida, porque é uma prova estrutural no mundo
de hoje. Todos os indivíduos estão inscritos estruturalmente
numa sociedade; estão intimados a enfrentar um conjunto de
provas porque são membros desta. Provas-desafios são, pois,
comuns, estruturais e históricas.
Contudo, em função dos diferenciais de recursos e das di-
versas capacidades que têm os indivíduos para enfrentar as
provas, a resposta obtida por uns e outros será radicalmente
distinta. É, pois, por intermédio deste conjunto de recursos e
capacidades que os atores vão construindo experiências e situ-
ações singulares e desiguais. Quer dizer, um indivíduo se forja
enfrentando um conjunto comum de provas numa sociedade.
No caso das provas, o interesse principal não é, pois, construir
necessariamente estudos biográficos. O objetivo não é o estudo
da vida dos indivíduos estritamente como indivíduos. O que in-
teressa é utilizar as experiências como elementos (ou “matéria-
-prima”) para construir as provas estruturais de uma sociedade.
A referência aos trabalhos de Sartre pode nos servir para
demonstrar este ponto. Para Sartre, como o escreveu em mui-
tos dos estudos biográficos que realizou ao longo de sua vida
(sobre Baudelaire, Genet ou Flaubert), o importante não era
“o que tinham feito com determinada pessoa”, mas sim o que
esta “fazia com que tinham feito conosco”. A dimensão exis-

55
Leandro R. Pinheiro (Org.)

tencialmente solitária da resposta acaba evidente – e a partir


dela as conotações propriamente morais e éticas do existen-
cialismo. No marco das provas-desafios o processo é distinto.
O que se tem feito a alguém – ou seja, os processos estruturais
da individuação – são tão importantes como os diferenciais de
resposta dos indivíduos. É, provavelmente, a principal exigên-
cia deste enfoque analítico. Por um lado, estudar os aspectos
macro estruturais que condicionam as provas-desafios pesso-
ais; por outro lado, estudar os diferenciais de resposta que os
atores dão a estas provas a partir de suas experiências e posi-
ções sociais particulares.
Nesse sentido, regresso à pergunta anterior sobre as iden-
tidades. A análise a partir das provas-desafios nunca atribui
papel central às identidades. Pelo contrário, dá às diferentes
identidades um papel subalterno na interpretação do que é
uma sociedade. A unidade de análise da sociedade se constrói
em relação ao caráter estrutural e comum das provas, e só em
um segundo momento de análise dá conta das singularidades
das trajetórias. A análise identitária parte, ao contrário, das
identidades para reconstruir a análise da sociedade.
Ou seja, conhecer o conjunto comum de provas próprio
a uma sociedade em um período histórico é conhecer essa so-
ciedade estruturalmente a escala dos indivíduos. O objetivo é,
pois, compreender o trabalho das estruturas a escala dos indi-
víduos e sob nenhum ponto de vista propor uma sucessão de
histórias de vida ou uma diversidade de casos biográficos indi-
vidualizados. O que ontem se fez conhecendo a divisão de po-
der e riqueza em termos de classe social, hoje em dia, para ter
uma capacidade de comunicação com os atores, deve-se também
fazer por intermédio da noção de provas-desafios estruturais.
Isto leva a tua pergunta sobre as posições sociais e sua
possível especificidade em situações de periferia urbana. Para
descrevê-las é indispensável fazer trabalhos empíricos; limitar-
-me-ei, por isso, a considerações gerais. Se alguém parte de

56
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

uma definição dada de antemão pela diferenciação social ou


por uma teoria da estratificação social, termina afirmando ou
que as provas coincidem com os sistemas sociais ou as institui-
ções, ou que as posições de classe “determinam” as situações
dos atores. É uma resposta aceitável em alguns casos. Porém,
caso se parta da ideia de que o que define as estruturas é aqui-
lo que faz problema ou que é problematizado pelos indivíduos
mesmos, a compreensão efetiva das coerções estruturais deve
se dar a partir das experiências dos indivíduos e isto leva a re-
conhecer que os desafios estruturais vividos pelos atores as ve-
zes coincidem com perímetros institucionais, e muitas outras
vezes não coincidem com eles. O que interessa não é descrever
o “organograma” da sociedade (ou das classes sociais), mas
sim compreender aquilo que faz trabalhar e cria problemas
aos atores sociais. Portanto, o perímetro das provas e das posi-
ções sociais dos indivíduos se complexifica.
Nesse sentido, e sem menosprezar a importância de cer-
tas posições de classe, há que se cuidar para não reduzir a
identidade ou a posição de um ator a uma hierarquia unidi-
mensional. Ao contrário, a análise deve alcançar descrições
muito mais finas das relações entre os fenômenos estruturais e
as experiências individuais a fim de extrair os diferenciais de
margens de ação que aí se permite. As entrevistas possibilitam,
muitas vezes, desenhar “outra” geografia social, mais próxima
das vivências pessoais. Para isso, é necessário tomar em conta,
além da grande preocupação com as posições sociais, um con-
junto de ajudas, de recursos, de direitos sociais, de suportes aos
quais um indivíduo tem acesso e aos quais recorre.
Amartya Sem mostra, por exemplo, o fato de que as desi-
gualdades sociais têm variações interindividuais importantes
dentro de uma mesma classe social, porque as desigualdades
têm significações diferentes em função das heterogeneidades
individuais. O fato de ser deficiente, por exemplo, significa uma
modificação importante das desigualdades sofridas. A sociolo-

57
Leandro R. Pinheiro (Org.)

gia, insisto, sem menosprezar o papel das grandes posições de


classe, deve descrever mais diligentemente as posições efetivas
dos atores. E isso exige não esquecer a análise dos contextos de
ação dos indivíduos estudados, as ajudas de que dispõem ou
não, para responder aos imperativos de flexibilidade, de mobi-
lidade, para suportar as precariedades do emprego: ter acesso
a seguridade social; ter uma família que possa prestar ajuda;
ter um emprego estável; ter vínculos a um lugar. Todo indiví-
duo está inserido em um sistema complexo de interdependên-
cias: daí a necessidade de compreender como indivíduos que
vivem em contextos muito diferentes podem ter experiências
similares e como, a sua vez, indivíduos que vivem situações
supostamente semelhantes enfrentam provas-desafios a partir
de contextos muito diversos.
Se as grandes posições de classe são sempre essenciais para
dar conta da distribuição desigual de um grande número de
recursos, elas não devem ocultar tudo o que as escapa em ter-
mos de possibilidades e suportes. E ali onde um estudo pre-
dominantemente estatístico estabelece grandes constelações,
um estudo realizado mediante entrevistas tende a sublinhar as
passarelas, a hibridação e a inconsistência das classificações.
Por um lado, reforça-se, no que tange às fronteiras, uma vi-
são fortemente estratificada da sociedade; de outro, acentua-se
uma visão mais complexa da vida social, porque se constrói
mais “próxima” das experiências efetivas dos indivíduos.
Não é algo anedótico. Nas sociedades contemporâneas,
salvo verdadeiramente para algumas posições extremas, nas
quais a programação das etapas da vida é sempre rigorosa, a
maior parte das trajetórias tendem hoje a se singularizar. Se
as semelhanças posicionais estão sempre presentes, o processo
de fabricação dos indivíduos é irredutível a esta única conside-
ração. Deve-se reconhecer que existe, por detrás da aparente
semelhança estrutural das posições, uma grande diversidade
de situações e contextos reais cuja observação, durante muito

58
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

tempo, foi impedida por uma visão muito piramidal da ordem


social. Sempre é necessário considerar a existência de grandes
fatores estruturais que ordenam o essencial da distribuição de
oportunidades e recursos. Porém, estes não explicam, senão
de maneira sobretudo indicativa, os estados reais nem as múl-
tiplas variações através das quais se desenvolvem efetivamente
as vidas pessoais. Tudo depende, pois, do que se busca. Sem-
pre é possível colocar num extremo a todos os que desfrutam
de “boas” conexões (em termos de emprego, lucros, proteções
institucionais) e que mantém, sobretudo, um controle ativo de
sua situação, tanto do ponto de vista econômico como políti-
co. No outro extremo, todos os que se definem por ter cone-
xões “ruins” (ganhos escassos), “instáveis” (pobre densidade
relacional), “perversas” (ligadas a atividades informais ou ile-
gais) e, sobretudo, sem o exercício de um controle ativo sobre
elas (porque são amplamente dependentes de decisões sobre
as quais estes atores têm frágil incidência). Em um alto nível
de generalidade, seria possível encontrar, aparentemente sem
grande dificuldade, um laço hierárquico pouco problematiza-
do entre as diferentes posições.
Todavia, uma análise mais detalhada corrige de imediato
esta primeira leitura. Exceto para uma minoria durável e glo-
balmente protegida, a maior parte dos indivíduos – na maior
parte das sociedades – sente que sua posição já não é imper-
meável à mudança nem à deterioração social: o que exige um
desenho posicional sob a forma de verdadeiras ecologias so-
ciais personalizadas.

Especificidades do individualismo latino-americano

Sua produção acadêmica inclui uma tese bastante interessante sobre a es-
pecificidade dos processos de individuação na América latina, cuja configu-
ração se distingue daquela produzida a partir da elaboração de um marco
associativo e contratualista, mais comum ao contexto europeu. Poderias

59
Leandro R. Pinheiro (Org.)

explorar mais esta proposição e, se possível, articulá-la às repercussões que


entende prováveis para o fazer educativo?

Existe uma profunda unidade latino-americana no que diz


respeito ao processo de individuação – ou seja, ao processo
de fabricação estrutural de um indivíduo. Nas sociedades do
“Norte” – se me permite a simplicidade da expressão –, os
indivíduos são formados por verdadeiros programas institu-
cionais. Daí que o termo que se impôs para descrever este pro-
cesso de individuação foi o de “individualismo institucional”.
Quer dizer, as instituições fazem de cada indivíduo um mode-
lo, dão-lhe insumos, suportes, recursos e o indivíduo tem que
se fabricar como indivíduo sob uma prescrição institucional.
As instituições interpelam os indivíduos como sujeitos, dizia
Althusser ou Foucault, e cada um deles tem que se fabricar
como indivíduo sob esta diretiva. Isso foi – e é – o coração do
programa institucional nos países do Norte.
Na América Latina é curioso porque, apesar de que tenha
havido uma forte marca institucional por parte das constitui-
ções no momento de implantar o ‘direito individual’ como
princípio base da vida social, o individualismo não tem sido
uma perspectiva de estudo importante. É uma ausência sur-
preendente, porque o direito individual indica que o indiví-
duo foi muito cedo reconhecido na história da região como
sujeito de direito e de responsabilidades. Neste sentido, o indi-
víduo está construído institucionalmente na América Latina.
No entanto, curiosamente e apesar deste importante elemen-
to institucional, tem havido uma escassíssima produção neste
sentido na região. Ainda mais: em geral, o individualismo foi
percebido como um termo negativo que se acentuou muitíssi-
mo na última fase, dada a maneira como o neoliberalismo ins-
trumentalizou certos signos individualistas contra o coletivo.
Contudo, tomando-se distância das transformações ideo-
lógicas das últimas décadas, há que reconhecer que as socie-

60
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

dades latino-americanas são profundamente “individualistas”.


Entendamos bem a configuração deste último termo: trata-se
de um aspecto que resulta do fato que as instituições não ofere-
cem necessariamente aos indivíduos os insumos que requerem
para existir como tais. Assim, os indivíduos têm que desenvol-
ver competências para poder existir e é isto o que está na base
do “individualismo agêntico” latino-americano. Quer dizer, o
indivíduo é um “hiper ator” que tem que resolver por ele mes-
mo, por intermédio de suportes que ele mesmo constrói, como
um conjunto de proteções indispensáveis para poder existir na
sociedade. Aquilo que no Norte transmitem as instituições
(sobretudo, através de políticas públicas), na América Latina,
muitos indivíduos têm que obter por si mesmos. Ou seja, no
Sul, todo o tempo os indivíduos estão desenvolvendo capaci-
dades para “arranjar-se” frente à instabilidade e os desafios
plurais da vida social. Isso faz da América Latina um conjunto
de sociedades nas quais os indivíduos estão acostumados a ser
indivíduos para poder funcionar. Dada a maneira usual como
funcionam as instituições, os atores têm que se encarregar de
um número assombroso de coisas, e isso faz com que os indiví-
duos sejam hiper atores particularmente ativos.
E aqui está o fundamental. Esse indivíduo “hiper ator”,
que depende, certamente, de muitos insumos coletivos, tem o
sentimento de que tudo se deve somente a si próprio. Apare-
cem as astúcias, a desconfiança coletiva, a relação muito laxa
com as normas, porque o indivíduo tem o sentimento de que
na “selva social”, onde não se deve nada a ninguém e onde
todo mundo busca oprimi-lo, para existir como indivíduo tem
que fazer uso de todas as estratégias. Disso resulta um indivi-
dualismo particular que é uma marca muito forte da socie-
dade latino-americana. Nada exemplifica melhor este traço
estrutural da individuação latino-americana que o fato de que
tantos latino-americanos sempre se creem infinitamente mais
astutos que a pessoas do Norte. Estas não precisam ser “astu-

61
Leandro R. Pinheiro (Org.)

tas”, porque suas sociedades repousam em instituições coleti-


vas. Na América Latina, é imprescindível ser astuto, porque, se
não, tem-se a impressão de que a “selva social” vai te devorar.
Consequência maior: na América Latina, muita gente não
tem confiança nas instituições, desconfia radicalmente delas e
pensa que a única maneira para enfrentar as adversidades é se
apoiando somente em suas capacidades pessoais (na verdade,
em suas redes familiares ou sociais mais estreitas). Esta confian-
ça inusitada em si mesmo, que no fundo minimiza obviamente
tanto a existência de bens públicos coletivos na região quanto os
apoios institucionais ou sociais que de fato recebem, é um dos
grandes traços das sociedades latino-americanas. A trapaça, a
esperteza, a malandragem participam deste mesmo fenômeno.
E existe uma espécie de admiração muito forte pela proeza in-
dividual, inclusive quando vai de encontro às regras coletivas.
Deve-se entender o objetivo da escola, em parte, em vín-
culo com esta realidade. Se as diferenças entre os países são
a este respeito importantes, não é, no entanto, de todo in-
justificado generalizar dizendo que América Latina possui
uma particular “cultura da transgressão” frente à qual deve
se posicionar o ensino escolar. Esta cultura da transgressão é,
em realidade, um fenômeno profundo, com dois rostos. Por
um lado (como não o destacar?), esta atitude generalizada de
transgressão testemunha a presença de uma série de elemen-
tos perversos da vida social: uma tradição legalista; um poder
que menospreza aos cidadãos; uma tolerância – às vezes, in-
clusive, uma verdadeira legitimidade coletiva – à transgres-
são das regras. Por outro lado (como o desconsiderar?), esta
cultura aparece como uma das maneiras, às vezes a única,
pelas quais os indivíduos são capazes de resistir aos abusos e
às desigualdades, construindo um espaço de autonomia em
meio a sociedades ainda profundamente hierarquizadas. O
ensino escolar na América Latina não pode, em todo caso,
fazer pouco de uma reflexão sobre esta realidade.

62
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Existe, pois, no continente, uma “cultura da transgressão”;


mistura de atitudes de arbitrariedade e de “vista grossa”; da
severidade no castigo para uns e da “lei do embude”2 para ou-
tros (que dizer: “o muito para mim; o pouco para os outros”;
ou, se prefere, “para meus amigos, tudo, para meus inimigos,
a lei”). Existe, em verdade, um duplo sistema de escusação da
transgressão: em relação aos poderosos, porque para muitos
o poder é inseparável do abuso; em relação aos outros cida-
dãos, porque, como a vida se desenvolve numa “selva”, “ou
te impões ou te oprimem”. Em todo caso, a lei não se aplica
a todos de forma igual: para alguns, tem uma função “indi-
cativa”; para outros nem sequer isso, posto que sua interpre-
tação se leva a cabo através de um duplo padrão. Mas uma
leitura unicamente negativa desta realidade oblitera sua outra
dimensão. Estas atitudes são também formas de afirmação hori-
zontal em sociedades onde o menosprezo e o abuso aparecem
como formas prediletas do exercício do poder. Basta pensar
nas relações sociais para atestar até que ponto as interações
estão marcadas por uma tensão constante entre a aspiração à
horizontalidade normativa e a remanência de formas de ver-
ticalidade prática. É em meio a este espaço dual que se de-
senvolve o maior número de intercâmbios sociais, o que exige
um conjunto muito importante de habilidades relacionais, tão
mais necessárias já que o abuso pode emergir a todo momento
e em todo tipo de relação. Através destas atitudes, o indivíduo
se afirma sobre o coletivo, sobre, principalmente, o sistema
injusto que o “esmaga”.
Daí que a pura condenação destes atos muitas vezes não
logre chegar ao cerne da questão. O paradoxo da América
Latina nas últimas décadas é que houve por trás, ou por baixo,
da restauração da democracia e a instauração da alternância

2. No original, ley del embudo: expressão popular para designar situação de injus-
tiça, aludindo o formato de um funil (lo estrecho para otros; lo largo para uno).

63
Leandro R. Pinheiro (Org.)

política entre partidos, um duplo processo contraditório. Por


um lado, assiste-se a uma democratização ainda insuficiente,
mas real e profunda dos vínculos sociais. Por outro lado, esta
democratização relacional e cotidiana se deu em meio a uma
deslegitimação crescente das instituições. Esta tensão define
hoje um dos maiores desafios da região e sem dúvida da escola
na América Latina. Para o enfrentar, a escola deve reconhe-
cer as características especificas do individualismo agêntico
e interpretá-lo em sua ambivalência essencial. O que fazer?
Limitar-me-ei a explorar três pistas.
A primeira: a escola deve transmitir uma aprendizagem
que permita aos indivíduos ir contra a esta cultura “dita-bran-
da” da transgressão, o que supõe o reforço da autoestima. Pos-
to que a Lei não é forte, a transgressão é uma mistura de cinis-
mo e de humilhação, de gozo perverso e de menosprezo de si.
Entende-se, então, que a afirmação da dimensão propriamen-
te moral das regras deve ser acompanhada por uma preocu-
pação de índole ética e cívica. Quando o cidadão invoca a lei,
deve ter a capacidade de suportar o olhar de estranheza dos
outros ou inclusive sua hostilidade. No final das contas, querer
fazer respeitar a lei é indicá-la aos outros, a todos os outros,
que a transgrediam em proveito próprio ou que consentiam –
com maior ou menor cumplicidade – em ser abusados. O que
supõe de maneira muito concreta “preparar” os alunos para
uma forma de civismo que lhes permita resistir às marcas do
conformismo grupal.
Em segundo lugar, é preciso estimular a partir da escola
uma confiança num sistema de reconhecimento coletivo ao
mérito. Certamente, este ponto excede em muito o âmbito es-
colar, tanto mais porque, em muitas partes, o reconhecimento
ao mérito é quase inexistente na América Latina. A escola não
pode pretender transformar toda a injustiça social que a rodeia,
mas tem a obrigação de mostrar que uma instituição pode ser

64
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

justa, ou pelo menos decente no tratamento que ela pactua com


os indivíduos. Que nela se trata de recompensar de maneira
equitativa o esforço, e que as instituições podem ser capazes de
fazer justiça, se não sempre nas notas obtidas, pelo menos no
reconhecimento dos professores ao trabalho realizado.
Em terceiro lugar, e com prudência, é necessário que a
escola, como instituição, não se limite a uma pura lembrança
da necessidade imperiosa de acatar a “lei”, dado que a “infor-
malidade”, os que estão “à margem da lei” são, por diversas
razões, muito numerosos. Para assegurar a dimensão educa-
tiva, não basta então “condenar” estas atitudes – é preciso
confrontar a legitimidade que as sustenta e os abusos que as
justificam. Sobre este ponto, uma das insuficiências da escola
seria que se limitasse a um papel de enunciação normativa,
desconhecendo os contextos sociais e culturais, nos quais estas
atitudes de desenvolvem. As normas que devem ser respeita-
das devem poder ser respeitadas. Esquecê-lo condena que a
mensagem “resvale” sobre os alunos e isto tanto mais porque
a mesma escola não está isenta deste tipo de relações. Sem esta
vigilância institucional interna, a escola terminará por repro-
duzir o mal a que deve se opor. A saber, em uma sociedade de
abuso, onde as normas institucionais podem ser transgredidas
à vontade pelo superior, os acordos informais, apesar de seus
limites, aparecem como mais fidedignos – não por serem ne-
cessariamente mais “horizontais”, mas sim por se basearem
em uma prática consuetudinária. E a escola deve mostrar a
possibilidade prática de se fazer respeitar as regras para todos,
o que supõe a existência de normas coletivas realistas. É reco-
nhecendo os principais traços do individualismo agêntico, e
sua particular relação com as instituições, que a escola deve,
como instituição, pensar sua relação com os atores sociais.

65
Leandro R. Pinheiro (Org.)

Juventudes e educação

Para finalizar, gostaria de seguir no campo da educação e propor perguntas


acerca da relação entre instituições educativas e práticas juvenis. Perce-
bo que estes sujeitos expressam de maneira mais contundente a vivência
da singularização social e, em alguns casos, ancoram-nas em formas de
reflexividade concernentes às atividades artísticas e narrativas que desen-
volvem. Na sua apreciação, como os processos de individuação protagoni-
zados pelos jovens mudam sua relação com a escola e com a autoridade
do educador? Que articulação há entre a tendência à singularização, as
possibilidades reflexivas juvenis e a atuação escolar? Que desafios se apre-
sentam ao diálogo educativo em sua opinião?

Nas sociedades atuais, a escola tem três grandes tarefas.


Uma função de socialização, quer dizer, do aprender certas
regras mínimas para poder ser membro de uma sociedade.
E, para isso, no fundo, não se “necessita” imperiosamente da
escola, porque as pessoas se socializam na vida cotidiana e pe-
las indústrias culturais. A segunda missão: a escola tem um
papel de distribuição de diplomas, quer dizer, na seleção de
pessoas. Esta dimensão tende a se converter no verdadeiro e,
às vezes, no único objetivo da escola; em diferentes sociedades
há uma pressão muito forte para que os jovens se insiram no
universo social por intermédio de uma lógica de carreiras que
se chama curiosamente “igualdade de oportunidades”. Por úl-
timo, existe uma terceira função, que é a mais antiga e a mais
importante, e que a escola faz cada vez menos: sua função
propriamente “educativa”. Isto quer dizer que a escola forja-
va caráteres, como diziam os antigos, forjava personalidades,
transmitia, não valores morais (a “catequese” da socialização),
mas sim verdadeiras capacidades para forjar atitudes morais
ou éticas que davam conta de certa concretude, concisão e
consistência pessoal. A escola foi isso desde o mundo grego,

66
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

passando pelo longo período medieval, e as escolas de elite da


atualidade preservam esta dimensão educativa.
Cada uma dessas dimensões gera tensões específicas hoje
em dia. Em primeiro lugar, no marco do processo de socializa-
ção, a maior parte dos agentes de socialização (e, em primeiro
lugar, os pais e os educadores) vê seu trabalho dificultado pelas
transformações gestadas nas relações de poder intergeracio-
nais. Sem cair em imagens idílicas do passado, é óbvio que
tem havido não só um incremento do poder (cultural e social)
dos adolescentes no mundo de hoje, mas que este processo tem
sido acompanhado por um profundo questionamento da for-
ma escolar e, junto dela, de formas tradicionais de exercício da
autoridade docente. Isto não quer dizer, evidentemente, que a
“socialização” não opere; os adolescentes seguem adquirindo
as destrezas sociais para desenvolverem-se na sociedade, mas
este trabalho se faz em muito fora da escola, por intermédio
de outras experiências, que vão desde o consumo cultural (e a
legitimidade crescente das mensagens transmitidas pelas in-
dústrias culturais) até experiências laborais, sem desconsiderar,
logicamente, as diversas vivências nos bairros ou as experiên-
cias em grupos de pares. Ou seja, para muitos adolescentes, o
mais importante, o que realmente socializa para a vida social,
não tem lugar na escola, mas fora dela, na “vida social”: o
bairro, os amigos, a família, o trabalho. Frente a estes, afirma-
-se a importância da “independência” pessoal, da capacidade
de sobrepujar as dificuldades da vida por si só; um traço que,
vale dizer, possui mais de um vínculo com o individualismo
agêntico próprio à América Latina (como o acabamos de evo-
car na pergunta anterior).
A isto se acrescenta uma tensão distinta que tem a ver com
as expectativas familiares em relação à escola. Também na
América latina, com e sem razão, expandiu-se a ideia da es-
cola como fator chave de mobilidade social. Em alguns países
da região, hoje em dia, assevera-se que cada ano suplemen-

67
Leandro R. Pinheiro (Org.)

tar de escolaridade tem incidências importantes no que tange


aos salários. Contudo, e apesar disto, há uma frustração que
se coloca porque em sociedades tão divididas e marcadas em
termos de oportunidades de vida (não se pode esquecer que
América latina é a região com maiores desigualdades sociais
do mundo), os efeitos dos diplomas tendem a ser menores que
o esperado. Pouco importa. Para os pais de família de classes
populares ou de classe média, apesar disso, e contra tudo, a
escola é a única via legítima de ascensão social. Por isso, apos-
tam na escola, inclusive se sabem que as chances não são mui-
to grandes. Tal apego familiar como chave do êxito individual
é muito forte na região e cria desafios novos à escola.
Por último, e o que me parece o mais significativo, um dos
dramas da escola hoje se refere a sua função educativa. Esta
supõe e exige a capacidade de cuidar e transmitir ideais de
indivíduo relativamente consensuais na sociedade, que, como
ideais, nunca coincidem exatamente com os preceitos da so-
cialização. Em toda sociedade existe uma tensão entre os ide-
ais (os “modelos”) de indivíduos e o que são os atores sociais
ordinários, reais. A desaparição dessa inquietação educativa
faz com que, cada vez mais, a escola se converta somente num
abrigo infanto-juvenil que socializa e numa máquina de sele-
ção de pessoas. Entre estas duas funções, a dimensão educati-
va está desaparecendo dos centros de ensino. Parece-me que
esse é o “coração” da crise da educação hoje em dia.
Insisto para ser claro. Trata-se da dimensão propriamente
ideal da escola e da educação: a transmissão de um modelo de
sujeito à distância das experiências efetivas dos indivíduos. No
mundo grego, por exemplo, um dos grandes ideais educativos
foi o herói. Nem todos foram heróis certamente. No mundo
cristão, o ideal foi o santo; nem todos foram santos. Na Itália do
Renascimento, foi o gênio (o uomo universale) e nem todo mundo
encarnou esta figura. Mais tarde, no Estado-Nação, o ideal foi
às vezes o patriota. Ou seja, o ideal coletivo é o lugar desde o

68
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

qual uma sociedade tensiona a si mesma, onde se encontram


condensados os grandes valores desta. Logo, existem normas,
regras, atores, organizações sociais que fazem com que a socie-
dade funcione. Mas sempre há uma distância entre o ideal e a
sociedade que é consubstancial à educação. A consciência desta
distância, hoje em dia, está desaparecendo, por que a socieda-
de tem cada vez mais dificuldades em definir ideais educativos.
O que faz com que os docentes restrinjam sua atividade, por
um lado, a transmitir normas morais de funcionamento sobre
o “bem e o mal” e, por outro, a selecionar candidatos.
Essa obliteração da educação é absolutamente fundamen-
tal para entender o que acontece na crise do professorado. Se
deixamos de lado as questões – maiúsculas – ligadas à auto-
ridade das aulas, é importante também compreender o que
esta situação comporta de mal-estar no quefazer docente. Du-
rante muito tempo (ainda que a imagem possa parecer exage-
rada), quando um docente ditava sua classe, fazia duas coisas
simultaneamente: transmitia ensinos pontuais numa matéria
e transmitia uma função educativa, quer dizer, a importân-
cia que dava à ciência, ao saber, ao progresso, por exemplo.
Para exemplificar com termos da tradição escolar republica-
na francesa, tratava-se de “arrancar” a criança dos saberes
“obscurantistas” familiares, do bairro ou do povo, com o fim
de introduzi-la à Razão, à República e à Ilustração. Esta fun-
ção educativa, no sentido forte do termo, que foi a “alma”
da escola num período, hoje em dia está se perdendo (e não
estou julgando sua pertinência, apenas indicando os tensio-
namentos resultantes da mudança). Esta dimensão educativa,
curiosamente, só a exercem as escolas de elite ou os colégios
tradicionais ou religiosos. A dificuldade para assumir essa fun-
ção educativa nas instituições educativas públicas massificadas
está, reafirmo, no coração da crise da escola hoje.
Os atores, tanto os adolescentes quanto os pais de família,
veem-se compelidos a forjar um projeto frente à escola, que

69
Leandro R. Pinheiro (Org.)

seja capaz de ter em conta todas e cada uma dessas três di-
mensões. Certamente, conforme primam os objetivos familia-
res, a “crise” da escola varia em sua significação, assim como a
reflexividade que se exige ao ator. Mas há uma tendência que
se impõe cada vez mais, que leva a fazer uso da escola princi-
palmente como máquina de mobilidade social e outorgadora
de diplomas. O primado cada vez mais exclusivo desta dimen-
são, ao corroer a importância propriamente educativa (e ideal)
da escola, reforça sua agonia.

70
Parte 2
Sintonias... Aproximações em contextos de periferia
A periferia metropolitana da Cidade do México: do
cronotopo fundacional vallechalquense às identidades
do e com o lugar

Alicia Lindón

Este texto1 traz reflexões sobre a periferia vallechalquense,


no que tange ao processo que denominamos a “construção
sócioespacial” do território. Em outras palavras, perguntamo-
-nos pela representação e construção que os habitantes fazem
desse lugar atualmente.
A expressão “construção socioespacial” é multicitada atu-
almente, e isso a atribui certa ambiguidade ou, então, constitui-
-a como uma expressão guarda-chuva, que se refere a proces-
sos e problemáticas territoriais muito diferentes. A polissemia
de certos termos dá conta da multiplicação de aproximações
heterogêneas, que compartilham preocupações fundamentais
e ao mesmo tempo tratam aspectos não compartilhados. Neste
contexto, fazemos eco ao amplo interesse em decifrar proces-
sos de construção social de periferias metropolitanas, centran-
do-nos, nesta ocasião, em certas dimensões analíticas e no ter-
ritório do Valle de Chalco, no oriente da Cidade do México2.
1. Texto escrito originalmente em espanhol. Versão para o português: Kétina
Timboni e Leandro R. Pinheiro.
2. Cabe aqui lembrar que esta zona começa a se dividir e ocupar para uso
urbano na segunda metade dos anos setenta do século XX. O fracionamento
foi irregular, dado que eram terras rurais na forma de logradouro (ejidal), quer
dizer, áreas de usufruto comum pertencentes a certos conjuntos de famílias e
que não poderiam ser comercializadas nem divididas (apesar de ter sido o que
de fato ocorrera). Poucos anos depois de iniciar sua ocupação urbana, as tramas
políticas clientelistas e as demandas vicinais aceleraram a extensão dos serviços
e infraestruturas na região e, posteriormente, foi se dando o processo de regu-

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

Dentro deste amplo interesse, e ainda bastante difuso, so-


bre a construção socioespacial do território, nossa aproxima-
ção articula três fenômenos centrais que entrelaçam os sujeitos
com certas espacialidades e temporalidades: o primeiro deles
é o habitar os lugares; o segundo é a fabricação do território
que os sujeitos vão produzindo cotidianamente em seu habi-
tar. Isso implica eliminar certas formas espaciais, assim como
objetos particulares, e integrar outros, tudo de acordo com o
tipo de modo de vida do sujeito e as práticas que integram esse
modo de vida. E o terceiro é a transformação dessas formas
espaciais em espaços de vida: fazer um espaço de vida do que
antes era um locus, ao apropriá-lo e preenchê-lo de experiên-
cias. Consideramos as três dimensões a partir de um ponto de
vista experiencial.
Esta estratégia carrega consigo o desafio de não invisibili-
zar a complexidade própria do processo de construção sócio
espacial dos lugares que se pretende decifrar. Em outras pala-
vras, tenta-se não obscurecer a densidade do próprio fenôme-
no periférico e sua habitação.
Para isso, a perspectiva integra as biografias dos habitantes
do lugar, entendidas como um quadro de experiências e sabe-
res com os quais os sujeitos enfrentam a cada nova situação.
As biografias vão entrelaçando as vivências espaçotemporais
dos sujeitos, que, por sua vez, constroem o território vallechal-
quense. Ao mesmo tempo, essas experiências socioespaciais
vão dando forma e sentido a cada vida, sempre territorializada.
Propõe-se, desta forma, uma aproximação à construção socio-
espacial da periferia vallechalquense por referência biográfica.

larização da posse da terra, outorgando a propriedade dos lotes e habitações


autoconstruídas anos antes. De acordo com o Censo de Población y Vivienda de
2010, o atual município Valle de Chalco-Solidaridad (que coincide com o ter-
ritório analisado do Valle de Chalco), criado em 1994 por cisão dos municípios
vizinhos, reunia 357.000 habitantes em seus 44 quilômetros quadrados.

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

A construção socioespacial da periferia vallechalquense não


é um processo único, nem um processo individual realizado por
cada habitante. Ao contrário, concebemo-lo como um proces-
so coletivo e multidimensional, ao qual os diversos habitantes
vão dispondo fragmentos de suas próprias biografias e, ademais,
vão se reconhecendo/identificando com alguns fragmentos da
construção sócio espacial, e não com o todo, que indubitavel-
mente contém contradições e heterogeneidades. Em suma, as
biografias vão se entrelaçando umas com as outras enquanto
se territorializam, inscrevem-se nos lugares; dão identidade aos
lugares e permitem que as pessoas se identifiquem com eles.
Assim, essa construção socioespacial comporta duas par-
ticularidades: uma é a condição de incompleta e a outra é o
caráter narrativo. É incompleta porque as vidas sempre estão
em curso, são essencialmente devires. A segunda particulari-
dade é que o biográfico em si mesmo é impossível de apreen-
der para a pesquisa social. Só é possível ter acesso a uma parte
e a uma versão do biográfico, que é aquela que for narrada
ou posta no registro discursivo. Os fragmentos da biografia
narrados têm o valor da densidade do seu conteúdo, porque
remetem a outros fragmentos vividos e também ao presente.
Por essa referência a fragmentos passados, o biográfico que se
narra sempre contém saberes que fazem parte das vidas e que
se instauram nos territórios vividos. O biográfico que se narra
também tem o valor adicional da interpretação, da recriação,
já que toda narrativa volta a construir o fenômeno que narra
e, assim, as práticas cotidianas costumam se condicionar por
essas narrativas do lugar, e não somente pelos acontecimentos.
Uma parte dessas biografias que modelaram a periferia
não foi colocada no circuito da discursividade. Por essa circuns-
tância quase inapreensível, tais fragmentos biográficos não são
considerados em nossa abordagem, e isso se relaciona com seu
caráter necessariamente incompleto. Desta forma, mais que
diferenciar os habitantes em termos de grupos sociais diversos,

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

homens e mulheres, jovens ou adultos, para nomear algumas


categorias, interessam-nos as biografias que têm sido narradas,
que circulam e assim se encarnam em um ou outro sujeito,
em circunstâncias particulares. Em outros termos, o vivido hoje
por certo sujeito e em certo lugar, quando se narrativiza é re-
vivido por outro sujeito em outro momento e em outro lugar3.
Essas duas características – o incompleto e o biográfico
do que se narra – estão articulados entre si, porque cada nova
narrativa que um sujeito gera pode integrar outros fragmentos
do que se viveu, que previamente não haviam sido contados,
ou integrar novos elementos na narrativa que acaba de se ex-
perenciar. Além disso, o incompleto e o biográfico que se nar-
ra também estão vinculados entre si porque a biografia sempre
vai extrapolar a possibilidade de apreendê-la narrativamente
de forma completa, mesmo para o protagonista: ninguém po-
deria contar tudo o que viveu. Mais impossível ainda porque
a biografia continua se desenvolvendo (como o inexorável de-
vir), segue se acumulando e se entrecruzando com outras bio-
grafias a luz dos encontros e das experiências compartilhadas.
Pela mesma razão, a construção socioespacial deste território
sempre será inconclusa, porque continua sendo feita no coti-
diano, como são inconclusas as formas de identificar a perife-
ria e como são as identidades de seus habitantes.
Em termos metodológicos cabe destacar que a aproxi-
mação a este processo de construção socioespacial do lugar
foi possível através da interpretação das “narrativas de vidas
espaciais”4 de habitantes do lugar. Optamos por evitar as apre-
sentações sistemáticas e tradicionais do trabalho de campo no
qual foram obtidas essas narrativas, porque seu maior valor
3. Desta forma, a narrativização do vivido não só o faz circular e lhe dá vigência
através do tempo, mas, em termos metodológicos, é uma forma de manejar o
problema do intergeracional.
4. Utilizamos o conceito de “narrativas de vida espaciais” tal como se apresenta
em Lindón (2011).

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

emana da narrativização de que esses discursos foram objetos:


ou seja, esses discursos circularam mais além da voz de uma
ou outra pessoa que os protagonizou5. No entanto, pode se
destacar que em todos os casos nossa aproximação com os su-
jeitos se realizou desde uma abordagem interacional, na qual
o habitante foi elaborando narrativas não estruturadas, não
dirigidas e ancoradas nas próprias experiências de vida no lu-
gar. Inevitavelmente toda experiência vivida ali foi conectada
pelo narrador com outras experiências, vividas em outros lu-
gares. Em todo caso, pelo tipo de processo que nos interessou,
nossa aproximação sempre foi com habitantes que têm longos
anos de residência naquela localidade; aqueles que chegaram
ao final dos anos setenta e início dos oitenta6. Vale insistir, o
mais relevante é que trabalhamos com discursos narrativiza-
dos e que, por isso mesmo, estão presentes em outros sujeitos,
que chegaram ao lugar anos mais tarde ou, inclusive, naqueles
que nasceram na localidade.

5. A narrativização é um recurso literário que consiste em omitir a atribuição


do que é dito por uma voz ou um ator em particular. Ao se omitir que algo do
que está se tratando foi dito por alguém em particular, o efeito que se alcança é
que o dito aparece como “algo dado” para além de uma voz ou de outra. Esta
estratégia discursiva apaga ou omite um aspecto importante, como é o reconhe-
cimento que o dito não é algo dado, mas sim algo que foi dito dessa forma por
alguém e em certas circunstâncias. Quando em um discurso se faz referência a
um ator a que se atribui o dito, de certa maneira, o dito perde força porque entra
no terreno do nível de credibilidade que possa ter o ator que disse, ou a falta de
credibilidade ou sua relativização ao dito por outra voz” (Lindón, 2008, p. 128).
6. A produção de narrativas de vida espaciais na localidade se realizou em di-
versas etapas, que iniciaram em 1993, ainda que nossas primeiras aproximações
à região sejam de 1990. As narrativas de vida espaciais que dão sustento a este
texto correspondem a uma fase de trabalho de campo que se realizou entre
2009 e 2011. Não obstante, alguns destes discursos já tinham se apresentado,
em outras vozes, em etapas prévias de trabalho de campo específico. A interpre-
tação foi a busca de núcleos de sentido latentes nas narrativas e sua ligação com
práticas espaciais específicas e em lugares particulares.

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

Dessa forma, o texto se organiza em quatro seções. Na pri-


meira, abordam-se alguns dos saberes espaciais daqueles que
fizeram parte dos tempos de fundação do Valle de Chalco.
Trata-se de saberes em muito relacionados com o tipo de tra-
jetória biográfica que carregam os sujeitos ao habitar o Valle
de Chalco, em seu início como território em urbanização. O
interesse nas trajetórias biográficas se orienta à reconstrução
dos tipos de acervos de conhecimento sócio espacial com os
quais se inicia o processo de construção do lugar através de
sua fabricação (com toda a materialidade que a expressão traz
consigo) e, também, de dotação de sentidos7. No momento
fundacional por exemplo, os primeiros habitantes se encontra-
vam em um lugar que interpretavam como “vazio”, tanto em
relação à materialidade da vida urbana e suburbana, quanto
ao que concerne as suas vivências e histórias.
Toda forma de habitar um lugar sempre leva consigo me-
diações entre este e o sujeito. Essas mediações podem ser de
diversos tipos, desde os objetos de que as pessoas dispõem ou
que estão no lugar, até questões imateriais, como, por exem-
plo, os saberes práticos que possuem os habitantes. Nesse sen-
tido, no momento fundacional vallechalquense, os primeiros
habitantes ativavam os saberes espaciais de suas experiências
em outros lugares. Os saberes foram emergindo em cada prá-
tica cotidiana e assim foram se incrustando no território valle-
chalquense, ao mesmo tempo em que se modelava o dito saber
na função do aqui e agora.
A segunda seção se orienta a uma dimensão que também
é muito relevante no processo de construção sócio espacial do
território: a identificação dos núcleos duros da memória do
lugar. Estes vão se configurando como tais no processo de ha-
bitar o território vallechalquense, incluindo-se, aí, o outorgar
7. De modo que toda vez que fazemos referência a trajetórias biográficas não
nos referimos ao sentido que usualmente se outorga aos perfis sociodemográfi-
cos dos sujeitos.

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

sentidos e identidade ao lugar que, ademais, convertem-se em


modeladores da identidade de seus habitantes.
Na terceira parte, explora-se as diversas ancoragens locais
das biografias que se desenvolveram naquele lugar e que se-
guem o construindo.
Por último, na quarta seção, apresenta-se a construção social
do significado do território vallechalquense por parte de seus
habitantes, como resultado da tessitura consolidada ao longo de
quatro décadas entre os três aspectos previamente analisados.
Todas as seções articulam as experiências dos sujeitos-ha-
bitantes dessa periferia, seus espaços de vida e as temporali-
dades biográficas, que vão se constituir como a fonte para a
conformação da temporalidade do lugar.

1. O momento fundacional: campo de enunciados e de saberes


espaciais

A construção socioespacial da periferia vallechalquense é


um processo que foi sendo feito dia após dia, mas, ao mesmo
tempo, possui um momento fundacional: em termos práticos,
esse momento é identificado pela divisão das áreas de logra-
douro (ejidales) e a chegada dos primeiros colonos para ocu-
par terras que, anteriormente, eram rurais e passariam a se
prestar, então, ao uso habitacional, mediante a incorporação
cotidiana do trabalho para a vida urbana ou de aspirações
urbanas naquele locus.
A chegada desses pioneiros não ocorreu em uma data pre-
cisa, nem em um lapso de tempo que tenha um início e um fim
claramente definidos. Tampouco chegaram como contingen-
tes organizados, como aconteceu com processos de invasão de
outras áreas da Cidade do México, anos antes e, inclusive, em
períodos posteriores. Esse momento fundacional de grande re-
levância futura se estendeu entre o final dos anos setenta e a
segunda metade dos anos oitenta do século XX.

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

A análise do momento fundacional desde o clássico olhar


geográfico aéreo e externo, tão frequente nos estudos territo-
riais e urbanos, costuma resumi-lo ao período de uma década,
desenvolvida mediante o assentamento disperso dos primeiros
colonos em uma demarcação não definida, que se desenhava
e alterava cotidianamente pela conjunção de certas condições
naturais, pela falta de infraestrutura que se imprimisse como
limite não ultrapassável e também pelas práticas espontâneas
de apropriação de terra mais ou menos alheias à lógica geo-
métrica. No discurso daqueles pioneiros, aparece a dispersão
das habitações e a referência ao território “vazio”, mas não
como na versão da foto aérea dos urbanistas, e sim nos termos
de suas próprias experiências ao habitá-lo:

Quando nós chegamos víamos uma casinha por aqui e


outra por lá, e as condições da construção eram más, as
pessoas de alguma maneira tinham que viver ou sobrevi-
ver e construíam suas casas de papelão, de madeira, da
maneira que conseguissem. (Georgina, 38 anos)

Nós chegamos em 1985 no Valle del Chalco, quando


tudo isso era virgem, aqui fazia uns redemoinhos como
tornados, não tinha luz, não tinha drenagem, tudo isso
parecia um deserto, a luz nós roubamos daqui, de San-
ta Catarina. Alguns tinham velas em suas casas, outros
lampião, outros baterias de carro, e daí quem queria ver
televisão tinha que roubar a luz e ir até Santa Catarina.
Era um deserto. Eu acho que todos tinham muito medo.
(Abraham, 55 anos)

Assim como não é possível definir cronológica e precisa-


mente o início nem o final desse momento fundacional da
periferia vallechalquense, também não podemos dizer que se
reduz ao momento particular das divisões das terras rurais de
origem e aos primeiros assentamentos habitacionais. O mo-

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

mento fundacional, teve uma temporalidade mais complexa


que a linear das cronologias e ultrapassou o nível do factu-
al; trouxe consigo a configuração de um campo de enunciados8,
no qual começaram a circular conceitos de sentido comum
que se materializavam nas práticas espaciais. Dessa maneira,
o momento fundacional também exige uma reconstrução da
arqueologia dos saberes espaciais. Alguns desses conceitos de
sentido comum que começam a circular são o de lodaçal9, va-
las, poças, redemoinhos de vento e terra10, caminhadas, so-
frimento cotidiano, dificuldade de conseguir água (potável) e
convívio com as águas paradas das inundações (Lindón, 2007).

No fim dos anos oitenta, estava totalmente desurbaniza-


do, não tinha pavimento; quando cheguei tinham umas
poças grandes horríveis, os carros ficavam atolados, era
inacessível para entrar no Valle. (Salvador, 37 anos)

Estava cheio de valas, tinha muito pasto, não tinham ruas


definidas, eu atravessava pelo terreno que ficava do lado
do nosso, como não tinha nada ali, esse era o caminho.
Atravessava muitos terrenos, que depois já se colocavam
suas localizações. Então dizia, ah já vai chegar alguém para viver
ali e já começaram a tirar todo o pasto. Quando começou a
se povoar, foi quando começaram a tirar os pastos, e fazia
uma poeirada impressionante, os redemoinhos de terra es-
tavam terríveis aqui, muito feio. (Gabriela, 35 anos)

Da mesma forma, este campo de enunciados integra mar-


cos topológicos, os quais conferem grande parte de sua singulari-
dade. Os marcos mais relevantes – e que não desapareceram

8. Retoma-se a expressão campo de enunciados no sentido foucaultiano (Fou-


cault, 1968).
9. A acumulação de lodo (ou barro) na estação chuvosa.
10. Esses redemoinhos de vento e terra são conhecidos localmente como “talva-
neras” e eram intensos durante a estação seca.

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

até a atualidade – são o canal e a Puente Rojo. Ambos eram as


referências topológicas mais claras da precariedade material
e também da condição de fronteira própria do lugar. Aqui o
fronteiriço expressa diferenças entre dois territórios, mas tam-
bém se refere à possibilidade de passar de um lado a outro. O
canal se estende ao longo de uma grande distância, demar-
cando-os. Em contrapartida, a Puente Rojo está localizada em
um “lugar concreto”, um ponto situado experiencialmente.
No entanto, o canal se converte em lugar concreto – como à
ponte – quando se considera o ponto de vista do sujeito. Isto
é, o canal era visto desta forma porque só era possível cruzá-lo
em certos pontos.
Além disso, a extensão própria do canal, em seu sentido es-
trito, referia-se a mais de um lugar: era tanto o Canal de Chal-
co no sul da área, que marca a conexão ou a separação com a
zona de Tláhuac, como também era a referência ao Canal rio
da Compañía, pelo norte da região, junto à estrada México-
-Puebla. Inclusive, chegava a ser a forma de se referir a outros
canais menores11. Assim, este marco (com sua dupla e/ou tri-
pla referência) tomava o sentido de uma fronteira que cotidia-
namente devia ser atravessada para resolver questões básicas,
como, por exemplo, o acesso à escola. O canal também se re-
feria à água, onipresente na região. A peculiaridade consistia
no fato de que ultrapassar essa fronteira se tornava um desafio
cotidiano para os habitantes, tanto pelas condições rudimenta-
res para fazê-lo, como pelo aspecto de suas águas escuras, que
transbordavam reiteradamente e eram, ademais, o contentor
de diversos resíduos, incluindo miasmas, animais mortos e, até
mesmo, corpos de pessoas. O canal corria também em lixão
particular, onde se jogava diversos detritos. Um dos habitantes
rememora o seguinte:

11. Cabe lembrar que o atual território vallechalquense era uma antiga bacia
lacustre que foi dessecada.

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

me lembro que aos 8 anos eu andava sempre por todos os


lados no Valle de Chalco e no canal que estava aqui per-
to, jogavam carros, jogavam pessoas, de repente via boiar
uma cabeça humana. (Erick, 25 anos)

Nesse campo de enunciados, a Puente Rojo, localizada ao


norte da área, também se caracterizava pelo aspecto frontei-
riço e pela precariedade material, que necessariamente trazia
consigo o desafio de cruzá-la:

o que agora é a Puente Rojo, a ponte veicular, era uma


ponte muito rudimentar, tinha que passar uma pessoa de
cada lado para que passasse um carro deste lado e outro
do outro lado. Na realidade, era uma ponte que havia
sido feita para o gado, não tinha sido feita como ponte
veicular. (Salvador, 37 anos)

Além da precariedade material, a Ponte Rojo, foi também


a marcação da distância a recorrer. Por esses dois conteú-
dos semânticos, a Ponte – a semelhança do canal – assumiu
a característica de uma topologia do sofrimento cotidiano: a
dificuldade para cruzá-la por sua precariedade e a distância
a percorrer para chegar ali. Porém, sua peculiaridade é que
também representava o lugar que permitia a conexão com o
mundo exterior àquelas terras quase isoladas; era o lugar em-
blemático para acessar o cobiçado transporte e certos serviços.
Em síntese, os principais marcos topológicos que integram
o campo de enunciados do momento fundacional – o canal e
a Ponte Rojo – falam do que separa e do que comunica e da
água onipresente no lugar. Explicitam, além disso, narrativas
do sofrimento territorializado:

A pessoa tinha que sofrer para estar aqui, tinha que so-
frer, primeiro com velas, porque que televisão iríamos
ter? Só velinhas. Minha esposa é a que sofreu mais. Tam-

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

bém meus filhos, desde pequenos sofreram aqui, eles fo-


ram à escola, era um sofrimento chegar à escola, tinha
que cruzar o canal e cruzar de novo ao voltar para a casa.
(Gregorio, 65 anos)

O campo de enunciados, seus conceitos de sentido comum


e seus marcos topológicos seriam insuficientes para compre-
ender o momento fundacional se não se integrasse a outra
dimensão chave, como são as biografias dos pioneiros. No
entanto, as biografias também não deveriam ser reduzidas a
cronologias e fatos. As biografias nos interessam por conta dos
saberes espaciais e a memória de outras experiências espaciais prévias,
com os quais esses sujeitos começaram a habitar o lugar e a
construir tal campo de enunciados.
Esses saberes espaciais e a memória de outros lugares vão
fazer parte de imediato do território vallechalquense: irão se
implantando e reconfigurando localmente a cada vez que, em
uma nova situação cotidiana problemática, o sujeito recorre aos
saberes que dispõe e, de alguma maneira, ainda que por oposi-
ção, integra-os em uma prática espacial no território de então.
Entre os primeiros habitantes, eram frequentes as bio-
grafias que integravam experiências prévias de habitação em
espaços domésticos particularmente limitados quanto as suas
dimensões. E essas experiências espaciais foram interpretadas
pelos vallechalquenses como expressões da restrição cotidiana
no espaço residencial. Esse tipo de vivências quase sempre se
entrelaçava com outras, frequentemente naturalizadas (como
a presença de conflitos e disputas familiares pelo uso dos es-
paços domésticos e, às vezes, pela aglomeração de pessoas),
e que eram parte intrínseca da vida doméstica dos pioneiros
em seus lugares de residência anteriores ao Valle de Chalco.
Quando a habitação era alugada, a restrição espacial se dupli-
cava porque vinha acompanhada de uma restrição econômica
resultante do pagamento do aluguel. E, quando era uma ha-

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

bitação compartilhada com os familiares, a restrição espacial


se duplicava no conflito familiar constante. Assim, nos acer-
vos de experiências espaciais foi se sedimentando a estratégia
da mobilidade residencial à periferia vallechalquense “vazia”,
como a opção para dar uma “casa ao lar” (Lindón, 1999). As
seguintes narrativas dizem respeito a isso:

Meus pais e eu, ainda não tinha nascido meu irmão, vi-
víamos em Iztapalapa12, na colônia Vicente Guerrero, na
casa de meus avós, mas vivíamos de favor. Todos nós está-
vamos bem amontoados e um tio tinha ido morar longe,
então um dia ele disse para o meu pai que fosse viver lá,
para que tivéssemos uma casa nossa e que não pagásse-
mos aluguel nem estivéssemos de favor com meus avós,
que os terrenos eram muito grandes, muito baratos [...].
(Mario, 31 anos)

Antes de chegar aqui tínhamos um espaço onde viver,


mas não era completamente nosso. Ao chegar aqui, a
vida muda porque você já tem seu próprio espaço, já não
divide o pátio com outras crianças, então é diferente, ain-
da que estivesse feio aqui, é nosso. (Isabel, 32 anos)

Meus pais me comentavam que alugavam lugares peque-


nos, eu não me lembro, me lembro de um espaço grande,
era aqui, no Valle de Chalco; cheio de terra, cheio de
pasto, cheio de delinquência. (Erick, 25 anos)

Habitar este novo espaço de vida “vazio” com o acervo de


saberes de que dispunham esses sujeitos os colocava frequen-
temente em situações problema, por não saberem como en-

12. Cabe destacar que Iztapalapa não somente integra a Cidade do México,
mas também constitui uma extensa e muito povoada demarcação do Distrito
Federal. No entanto, Valle de Chalco é um município do Estado do México,
circundante ao Distrito Federal e sobre o qual a área metropolitana da cidade
se estendeu.

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

frentar e como resolver as dificuldades cotidianas. A maioria


dos pioneiros era da Cidade do México e seu deslocamento foi
centrífugo. Portanto, seus saberes espaciais partiam de um fato
dado – um taken for granted13: a existência dos serviços urbanos
e as infraestruturas urbanas básicas. No entanto, o novo espa-
ço da vida desses sujeitos, não tinha transporte e as distâncias
eram extensas pela própria morfologia do Valle. Não existia
pavimentação e as ruas tênues14, quase imperceptíveis, eram
lodaçais. Também não existia energia elétrica, e esses sujei-
tos procediam de cotidianidades que já tinham integrado di-
versos objetos elétricos como algo natural. Da mesma forma,
não existia rede de água potável, nem sistema de drenagem. À
diferença dos migrantes de áreas rurais, com experiência coti-
diana em carências de serviços e infraestrutura, que chegam à
cidade e que não possuem saberes práticos para incorporá-los
em sua cotidianidade, neste caso, tratava-se de sujeitos para
quem era muito difícil dar conta do cotidiano sem os aparatos
que já faziam parte de suas vidas anteriormente. Isso gerava
aos novos habitantes do lugar situações problema ou situações
de dissonância cognitiva, já que seus saberes práticos não lhes
permitiam atender às novas circunstâncias, porque seus co-
nhecimentos estavam fundados em condições urbanas que já
não tinham à mão. Isso gerava constantes exercícios de ana-
logia e contraste entre suas experiências espaciais de habitar
outros lugares e as que eram presentes. O fragmento seguinte
mostra uma expressão deste desajuste entre os saberes dispo-
níveis e as novas circunstâncias de vida:

13. No sentido etnometodológico da expressão.


14. A qualificação das ruas como tênues responde à ideia de que seu traçado era
improvisado e, as vezes, nem sequer se podia reconhecer visualmente. A isso se
somavam o apagar das ruas na estação seca, por efeito do vento, e na estação
chuvosa, pelas precipitações.

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Foi espantoso, porque nós vínhamos de uma zona onde


tinha todos os serviços, tinha pavimentação. Não é por
nada, mas na minha casa sempre teve ainda que fosse um
carro pequeno e aqui, o carro não entrava, tudo era ca-
minhando, até o armazém estava longe, então foi difícil,
mas a gente se adapta [...] Cheguei aqui para terminar
meu quinto ano do primário. Era difícil porque as crian-
ças daqui estavam acostumadas com outras coisas, que eu
não, então sim foi difícil estar com eles [...] No sentido de
que eu trazia outros costumes, diferentes, por exemplo,
para eles não tinha problema se meter no lodo para che-
gar à escola, já para mim sim. (Isabel, 32 anos)

Diante da falta de harmonia entre os saberes e as circuns-


tâncias práticas, o contraste levava à reiterada desqualificação
do novo espaço de vida, pelo que faltava e pelos esforços ne-
cessários para superar as novas carências e resolver proble-
mas cotidianos básicos. Isso pode ser compreendido à luz do
que Bégout denominou a experiência de “estrangeiridade”
(extranjería)15, caracterizando o cotidiano como uma constante
tensão e conflito entre a repetição e a diferença própria da
vida cotidiana (2005). Nesse caso, a experiência de estrangeiri-
dade surge diante da nova cotidianidade, que os habitantes do
lugar tinham dificuldades para “resolver”, porque seus saberes
espaciais supunham existência de serviços básicos.
No entanto, a reprodução cotidiana em um contexto de
carências começou a introduzir outros elementos de contras-
te. Um deles foi o reconhecimento da amplitude espacial, da
extensão do território no novo espaço de vida. Na situação
anterior (com serviços e infraestrutura urbana), predominava

15. Optou-se por dispor as palavras originalmente utilizadas entre parênteses


quando, para a versão em português, encontramos expressões com significa-
dos apenas aproximativos. Além da opção da autora (extranjería), encontramos
o uso do termo extranjeridad, ou, na língua original da obra citada, extranéité.
Nota de tradução.

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

a restrição e a limitação espacial, desaparecida diante à exten-


sa planície vallechalquense quase sem demarcações internas.
Essas formas de comparação entre o que se tinha nos espaços
de vida prévios e o espaço de vida vallechalquense fundacional
vão produzir valores favoráveis a um e outro de acordo com
o perfil de cada sujeito16, mas também de acordo com as tra-
jetórias biográficas e as metas e aspirações de cada um. Além
das diferenças entre uns e outros sujeitos-habitantes, também
começou a operar em todos eles o processo de familiarização
com essas carências, que trouxe, de outra parte, a valorização
crescente da amplitude espacial.
Assim como esse momento fundacional extrapola as cro-
nologias, os acervos17 de conhecimento prático daqueles pri-
meiros habitantes rapidamente seguiram se modelando com
novos saberes, procedentes da sedimentação18 de cada nova
experiência vallechalquense. O discurso de Ofelia é um exem-

16. Por exemplo, Martha chegou com um ano de idade. E, 29 anos mais tarde,
recorda nestes termos sua experiência no lugar quando era criança: “pois mi-
nha infância aqui foi muito bonita, muito tranquila apesar de tudo. Como quase
não tinha gente era uma vida muito tranquila, também não tinha vizinhos, mui-
to solitário, se podia correr para onde você queria sem que ninguém te dissesse
nada. Caminhávamos como se fosse um campo porque realmente era assim,
tinha muito pasto” (Martha, 25 anos).
17. Neste contexto, toda vez que se faz referência aos acervos de conhecimento
prático, é na perspectiva fenomenológica. Por isso, os acervos de conhecimento
de sentido comum ou prático são sinônimos do que a fenomenologia denomi-
nou Wissensvorrat (Berger e Luckmann, 1997). Essa expressão foi traduzida de
diversas formas, a de acervos é uma das mais conhecidas, ainda que também
seja frequente a de “depósitos históricos” de conhecimento ou de sentido, “re-
servas” sociais de sentido, “repertório de conhecimento” ou mesmo a de “stock”
de conhecimento ou “stock de competências”.
18. A sedimentação é o processo pelo qual as experiências vividas são despro-
vidas de sua particularidade para ser “armazenadas” e ficar disponíveis como
conhecimento a mão, por isso supõe objetivações reiteradas. O conceito de “se-
dimentação” se retoma de Schütz e Luckmann (1977) e Berger e Luckmann
(1968 e 1997), que, por sua vez, retomam de Husserl (1984).

88
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

plo desse processo de reconstrução permanente do acervo de


conhecimento prático:

Quando chegamos, foram tempos muito difíceis, mas ao


mesmo tempo muito reconfortantes para nós. Por exem-
plo, eu que vivi com a família do meu esposo, quando
vim para cá, para mim foi a glória, apesar de todas as
carências, apesar de todas as necessidades, foi o melhor
que pude ter feito, vir até aqui para viver. As carências,
com o tempo, já foram melhorando. As ruas já mudaram
um pouquinho, já podemos ter uma casa um pouco me-
lhor. Também temos os serviços que nos faziam falta [...].

Isso nos leva a interpretar o momento fundacional valle-


chalquense como uma peculiar versão do cronotopo bakhti-
niano. Para isso recordemos que para Bakhtin:

No cronotopo [artístico literário] tem lugar a união dos


elementos espaciais e temporais em um todo inteligível e
concreto. O tempo se condensa aqui, se comprime [...];
e o espaço, por sua vez, se intensifica, penetra no movi-
mento do tempo [...], da história. Os elementos do tempo
se revelam no espaço, e o espaço é entendido e medido
através do tempo. (Bakhtin, 1989, p. 237)

A perspectiva bakhtiniana nos permite enfatizar que no


momento fundacional vallechalquense narrativizado se funde
o espaço, o tempo e o herói: o tempo (essa longa década funda-
cional) se comprime e se imprime nessa periferia. O espaço val-
lechalquense se intensifica com sua desolação, vazio, extensão e
lodaçais. Esse espaço penetra no tempo fundacional e configu-
ra-o ao mesmo tempo em que também modela as histórias que
lá vão se desenvolvendo. Nesse sentido, o momento fundacional
não pode ser reduzido a uma etapa e uma cronologia, menos
ainda às ações e decisões dos proprietários dos logradouros que
sairiam do lugar (ejidatarios), nem aos divisores de terras que não

89
Leandro R. Pinheiro (Org.)

seriam habitantes do lugar, mas sim simples especuladores de


um breve momento. Esse longo momento constitui um cronoto-
po fundacional que marcará certa modelagem que fez, e segue
fazendo, o espaço do tempo e que será decisivo na configuração
identitária dos habitantes. Esse cronotopo pode ser qualificado
como fundacional, porque se reconfigurará no devir para gerar
outros múltiplos cronotopos vallechalquenses que, de alguma
maneira, contém características daquele inicial. Ele encontra
parte de sua força na transmissão intergeracional de imagens
da espacialidade que configurou o tempo e a vida social. Mes-
mo sendo imagens fragmentadas, entraram na circulação dos
saberes espaciais intergeracionais, e em boa medida porque esse
território hostil só pôde ser habitado coletivamente: do núcleo
fundamental das famílias aos pequenos grupos juvenis, de vizi-
nhos, de jovens ou, inclusive, de grupos criminosos.

2. Um núcleo duro da memória coletiva do lugar: o vazio que


se preenche gradualmente

A persistência de algumas características do cronotopo


fundacional vallechalquense em outros cronotopos locais pos-
teriores, em boa medida, relaciona-se com os acervos de co-
nhecimento prático e a memória de lugares dos habitantes da
região. Ambos, acervos e memória, são individuais e sociais:
cada sujeito vai fazendo ao longo de sua biografia um reper-
tório de saberes espaciais e uma determinada memória dos
lugares. Estes não coincidem totalmente de um sujeito a outro,
porque se relacionam com as especificidades de cada biogra-
fia, mas se ajustam parcialmente. A expressão mais evidente
dessas coincidências parciais se encontra em que, às vezes, po-
demos compreender uns e outros, e também somos capazes,
em certos momentos, de trocar pontos de vista. Isso indica que
todos nossos saberes e a memória dos lugares que possuímos

90
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

fazem parte do conhecimento social, quer dizer, que os ou-


tros19 também o possuem (ainda que não completamente).
Desde o contexto prévio, percebemos que um dos núcleos
duros e profundos daquele cronotopo fundacional foi se en-
raizando na memória do lugar, compartilhada por numerosos
habitantes e não somente por aqueles pioneiros, mas também
por outros que não tiveram essas experiências e que, ao mes-
mo tempo, fazem parte da circulação das narrativas do lugar.
Esse núcleo duro e profundo do cronotopo fundacional é uma
identidade de tipo bifronte. Por um lado, o lugar é identifica-
do como um território amplo e “vazio” no início. De outro,
reconhece-se que esse território foi se “enchendo” de materia-
lidades, de pessoas e também com as carências e o sofrimento
de seus habitantes. Essa imagem do lugar foi se construindo
coletivamente em um processo no qual a pedra fundamental
não se perdeu (o vazio e a extensão) e mantém visibilidade
mesmo que seja apenas de uma maneira rememorada dis-
cursivamente. Por isso, a concepção do vazio segue sendo o
ponto de analogia e contraste com o atual20. Sobre esta foi se
integrando sucessivas camadas de espaço-tempo, que tiveram
a capacidade de não ocultar a imagem inicial. Um aspecto
relevante é que essa imagem bifronte do lugar tem vigência,
não apenas para aqueles que habitaram o espaço fundacional,
mas também para aqueles que chegaram posteriormente. Isso
foi possível porque aquela identidade se narrativizou, circula
entre uns e outros e todos rememoram aquilo, mesmo sem tê-
-lo vivido. Desta forma, a identidade do lugar terminou por
modelar a identidade de seus habitantes.

19. O processo de apropriação e sedimentação de saberes é realizado por um


sujeito, a cada experiência, mas em cada situação estão sempre presentes outros.
20. A extensão se mantém e existem pontos panorâmicos desde os quais se apre-
cia a extensão de uma visão geral, em boa medida, por se tratar de um longo
vale formado no antigo lago. O vazio já não existe no nível do factual. Contudo,
o vazio se rememora, e essas imagens circulam oralmente e também emergem
nas fotos de família.

91
Leandro R. Pinheiro (Org.)

A identificação do território vallechalquense como um


“vazio” surgiu da perspectiva de vida cotidiana dos habitan-
tes, que vinham de contextos urbanos e procuravam um lugar
para dar continuidade as suas vivências. Em sentido estrito,
não era um território vazio. Para a subjetividade social local,
o vazio conota que não havia “nada” do que as cidades nor-
malmente oferecem: não tinha comércios onde se pudesse
comprar sequer os produtos de primeira necessidade. Tam-
bém não tinha transporte para se deslocar e chegar a outros
locais para adquirir tais produtos. Da mesma forma, não tinha
serviços urbanos, nem água, nem luz, nem drenagem. Alguns
relatos destacam que não tinham cadeiras nas escolas, por isso
as crianças deviam levá-las como um material escolar.
A dimensão do “vazio” também integrou outros aspectos
de caráter experiencial. Por exemplo, esse território estava tão
ermo que estava dominado por uma visibilidade inevitável:
“via-se alguém a dois quilômetros de onde estivesse”. Outro
relato afirma que:

[...] as ruas não se distinguiam bem, porque eram puros


terrenos baldios, tu chegavas a ver daqui como meio qui-
lômetro ou um quilômetro, porque tinha poucas casas,
pouca vegetação, não tinha árvores, nada. Então, chega-
mos para viver aqui, começamos a plantar árvores para
poder nos localizar um pouco melhor. Quando chegamos
aqui, a primeira vez que desci para a rodovia não soube
para onde caminhar, porque tudo era a mesma coisa, ou
seja, era muito difícil achar as ruas, já depois, pouco a
pouco, começamos a nos localizar. (Ofelia, 50 anos)

Em qualquer cidade, por diversos motivos, que podem ser


climáticos ou ambientais, reduz-se a visibilidade; o esperado
é que seus habitantes vivam essa adversidade com incômo-
do. No entanto, as narrativas vallechalquenses fundacionais
expressam o desagrado com a ampla visibilidade cotidiana. O

92
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

mal-estar não é resultado diretamente da visibilidade, mas sim


indiretamente, porque era o resultado da falta de construções
e de objetos próprios da cotidianidade urbana.
A ampla visibilidade também contribui para identificar esse
território sem marcos materiais como uma terra inóspita para
a experiência do habitante; não só era difícil a apropriação do
lugar, mas também essa terra deserta dificultava algo tão sim-
ples como é a orientação espacial para a mobilidade cotidiana.
Os estudos sobre a memória espacial (De Castro, 1997) têm
mostrado que a orientação das pessoas é possível pela interco-
nexão das imagens dos lugares que a pessoa guardou na sua
memória espacial de longo prazo. Ao rememorar um lugar, a
memória espacial traz uma imagem do mesmo, contudo essa
imagem costuma ser lembrada encadeada em uma sequência
de imagens de outros locais que fazem parte da proximidade
do lugar rememorado. Isso permite ao sujeito reconstruir ca-
minhos para chegar ao destino imaginado. Em outras palavras,
a memória espacial e a orientação funcionam como um “re-
gistro de fotografias” de lugares no qual se reconhece qual é
a primeira, qual segue e assim sucessivamente. Assim opera a
memória espacial dos seres humanos e se possibilita algo tão
prático como orientar-se em um caminho cotidiano.
As narrativas vallechalquenses fundacionais mostram que
habitar um lugar no qual quase não havia construções, nem
um meio natural denso e heterogêneo, fez com que a memória
espacial dos habitantes apenas registrasse imagens que eram
quase iguais entre si e “vazias” (sem objetos). O resultado foi
a dificuldade para se orientar, inclusive para encontrar a pró-
pria habitação. Por isso, algumas narrativas atuais dizem “co-
locávamos árvores para poder nos localizar” (Ofelia, 50 anos).
Assim, procuraram romper com a homogeneidade, para que
a memória espacial registrasse alguns marcos com diferenças
tênues e pudesse se orientar. Sem dúvida alguma, a integração
de objetos (como as árvores ou as casas novas) foi facilitando a

93
Leandro R. Pinheiro (Org.)

orientação, mesmo que aqueles pioneiros também fossem re-


solvendo esse problema cotidiano ao começar a observar com
maior detalhe o espaço aparentemente homogêneo.
Outra forma na qual emerge o território “vazio” nas nar-
rativas do cronotopo fundacional é a escassez de ruas e o fato
de que as poucas que existiam não tinham nome, mas somente
o número de quarteirão e lote. Recordam-se disso como um
problema, e diríamos que se constituía em uma situação-pro-
blema no sentido fenomenológico da expressão. Não é difícil
compreender que as pessoas conceberam como um problema
a falta de água potável. No entanto, uma interpretação rápida
poderia não encontrar motivos de ser um problema a ideia da
falta de nomes das ruas. Talvez, para compreender o que isso
implicava experiencialmente, seja ilustrador recorrer a algu-
mas analogias. Por exemplo, é mais ou menos conhecido que
em mais de uma cidade, inclusive em capitais de países, as
ruas não têm nomes ou têm mas não são conhecidas pelos seus
habitantes. No entanto, isso não costuma gerar um problema
cotidiano, ou situações-problema para as pessoas que ali ha-
bitam, porque a orientação funciona espontaneamente reco-
nhecendo os diversos objetos que vão diferenciando o espaço
urbano. Em outras palavras, sob a constante diferenciação ur-
bana, os nomes das ruas somente representam um elemento
a mais que contribui para a diferenciação dos lugares. Toda
cidade em si mesma sempre está constituída de diferenciação
de suas formas espaciais.
Diferentemente do comum nas cidades urbanas, as narra-
tivas vallechalquenses fundacionais concebem a falta de no-
mes como um problema porque sua ausência se soma a de
outros elementos diferenciadores. Assim, a falta de nomes
contribuía para a perspectiva do espaço vazio, homogêneo e
por isso difícil de identificar e, mais ainda, de apropriar. Por
esse motivo, os moradores começam a integrar árvores na pai-
sagem desolada, a fim de criar mínimas especificidades para

94
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

criar algo heterogêneo e começar a modelá-lo em um territó-


rio. Outros relatos insistem nesta problemática, por exemplo,
Isabel (32 anos) diz: “de fato não tinha ruas, sabíamos que era
rua porque por ali passavam pessoas, mas a maioria dos terre-
nos estava baldia, então você podia passar por onde quisesse”.
Os habitantes esperavam que as ruas se reconhecessem
sensorialmente por sua característica, tal como tinha sido em
suas experiências prévias em outros lugares. No entanto, tive-
ram que se apropriar de outros saberes: as ruas se identificavam
indiretamente, através dos lugares, das coreografias do cami-
nhar das pessoas. De modo que em certos momentos do tempo
cotidiano – como as noites –, nos quais não se produziam essas
coreografias dos habitantes se deslocando até certos locais e
marcando caminhos com seus corpos, a rua praticamente dei-
xava de ser e se tornava parte do espaço vazio, sem marcas, de-
marcações nem nada que rompesse com a homogeneidade21.
Como uma derivação da falta de elementos diferenciado-
res e nomes nas ruas, alguns relatos expressam que “assim não
se podia aprender o endereço onde uma pessoa vivia” (Ofelia,
50 anos). Não era possível porque a localização era integrada
por um número do quarteirão e um do lote, quer dizer, uma
combinação de números tão abstratos que poderiam ter sido
as coordenadas geográficas da casa (latitude e longitude). E a
isso se acrescenta outra dimensão da experiência: “menos ain-
da alguém podia aprender a localização do lugar onde vivia,
porque como nunca ia ninguém para esse lugar, então não
tinha que dar o endereço pra ninguém” (Ofelia, 50 anos). Esse
problema é relevante porque nos permite compreender que

21. Muito se escreveu sobre a homogeneidade dos grandes conjuntos habita-


cionais, como uma espacialidade pouco propícia para se habitar (Relph, 1976).
No entanto, os relatos fundacionais vallechalquenses traduzem outro tipo de
homogeneidade, que se experimentava como impossível de viver, dado o terri-
tório extenso, sem marcas que o diferenciasse. Essa forma de homogeneidade
foi pouco revisada pelos estudos urbanos, geográficos e territoriais.

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

os habitantes de uma cidade não só querem casas, serviços e


infraestruturas, mas também especificidades para os lugares
que habitam, para poder diferenciá-los de outros e para que
as outras pessoas – ainda sem ser residentes do mesmo lugar –
também possam reconhecer essas particularidades. Nesse pro-
cesso de identificação e reconhecimento espacial do lugar por
parte do habitante e dos outros, os nomes possuem um papel
importante, ainda que os nomes dos lugares apenas adquiram
toda sua capacidade de identificação quando se articulam
com formas espaciais particulares, com objetos, com formas
de habitá-los e com acontecimentos que vão se gravando ex-
periencialmente neles.
Esse espaço vazio gradualmente foi se “enchendo” na me-
dida em que era habitado. O nível mais evidente deste preen-
chimento é a construção de casas. Esse processo pelo qual se
apaga o vazio que se ocupava, emerge, sobretudo, em narrati-
vas do habitar com sofrimento. A principal forma de preencher
o vazio não foi pela construção de casas, mas sim preenchen-
do-o com histórias locais de sofrimento por carências. Assim
como as casas foram se construindo a partir um padrão disper-
so no início e logo foram ocupando os espaços, as narrativas
do sofrimento iniciais remetiam a certos lugares ou marcos e,
em seguida, foram ocupando todo o território vallechalquense.
O sofrimento surgia pela precariedade da casa, isto é, pelo
que faltava em sua interioridade (o indoor residencial). Contudo,
o sofrimento também se apresentava pelas carências do que
estava fora, na exterioridade ou no outdoor. Por exemplo, não
ter acesso à água potável, ou não contar com eletricidade nos
primeiros anos, ou as distâncias que se deviam percorrer cami-
nhando para resolver necessidades para sua sobrevivência (ali-
mentação, educação, saúde). Em última análise, o sofrimento
pelo lugar surgia das carências que enlaçavam as interioridades
e exterioridades. Todos esses sofrimentos foram individuais, fa-
miliares e comunitários e os habitantes os experienciavam nos

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

espaços dentro e fora das casas. Por exemplo, o pó gerado pela


terra solta na estação seca dominava a exterioridade e assim
concedia peculiaridades ao deslocamento dos pedestres e tam-
bém entrava nas interioridades e dificultava a cotidianidade
(Lindón, 2007). A falta de água potável era parte intrínseca da
exterioridade sem redes e configurava os cenários, nos quais as
pessoas disputavam pequenas doses de água em certas ocasi-
ões ou realizavam grandes deslocamentos para chegar a ela e
transportá-la a suas casas, mas também marcava a interiorida-
de dos espaços e a vida doméstica sem água potável.

3. A ancoragem local das biografias e seus acontecimentos

O passar do tempo não somente trouxe a Valle de Chalco


mais habitantes, casas e processos de construção de sentidos
do lugar. Isso ocorria na medida em que se produziam pau-
latinamente os processos de ancoragem local das biografias,
como processos multidimensionais. Onde se situa essa multi-
dimensionalidade? No fato da ancoragem local das biografias
colocar em jogo ao menos a materialidade e o imaterial dos
lugares, a temporalidade dos acontecimentos e sua rotinização
pela qual o tempo se faz espaço. Esta ancoragem biográfica
também põe em jogo a memória do vivido e os diversos níveis
do social, desde o individual, passando pelo familiar e chegan-
do ao comunitário.
A ancoragem local das trajetórias biográficas e seus sabe-
res espaciais colocam em jogo diversas combinações do men-
cionado anteriormente, que tem como resultado a construção
de vínculos particulares entre as biografias e os lugares, assim
como a inscrição das vidas no território vallechalquense. Des-
sa forma, os diversos acontecimentos biográficos não só ficam
registrados na memória de cada sujeito, na memória familiar
dos grupos e, às vezes, na memória comunitária, mas tam-
bém vão se gravando no território. Esse processo de marcar

97
Leandro R. Pinheiro (Org.)

o território com as vidas de seus habitantes e com os cruza-


mentos de biografias outorgou densidade aos lugares. Por isso,
o território vallechalquense pode ser considerado como uma
superfície topológica, primeiramente vazia e que logo foi se
preenchendo com sofrimento e com algumas satisfações, ao
mesmo tempo nela foram sendo marcados diferentes lugares
com acontecimentos (gratos e ingratos) e rotinas, tanto pesso-
ais como familiares e comunitárias.

3.1 Sobre as formas espaciais, sua permanência e


transformações

Em certas ocasiões, a densidade do vivido manteve o re-


ferente material em formas espaciais duradouras como, por
exemplo, a rodovia. Em outros casos, os acontecimentos vivi-
dos se ancoraram em localizações cujas formas espaciais não
perduraram ou se transformaram (como ocorre com as ruas),
ainda que, nestes casos, as experiências feitas memórias reme-
tam a um locus (algumas coordenadas) que agora se apresenta
de outra forma. Por exemplo, uma das entrevistadas se refere
a uma forma espacial emblemática, um marco topológico, que
perdura mas transformada, como é o “canal”: “atravessar o
canal de desague, esse canal enorme, era terrível, era um lo-
daçal e tinha nada mais que uns tubos mal colocados e assim
passávamos todos para ir à secundária... Ali jaziam cachorros
levados pela água, era bastante terrível” (Gabriela, 35 anos).
Essas palavras mostram que a transformação material do ca-
nal não invisibiliza o que foi o lugar. Assim, apesar da atu-
al fisionomia, para os habitantes que o conheceram de outra
forma, o canal é a atual forma espacial e, ao mesmo tempo,
guarda consigo a configuração espacial prévia. De outra parte,
aquela forma espacial é recriada necessariamente a partir de
certos acontecimentos da própria biografia. Nesse caso, a nar-
radora recria o que foi o canal à luz da prática de cruzá-lo na

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

estação chuvosa para chegar à escola secundária. Em outras


palavras, essa parte de sua biografia ficou ancorada no canal,
que segue existindo, mas transformado materialmente.

3.2 Sobre a temporalidade efêmera dos acontecimentos e sua


permanência através da rotinização

Certos acontecimentos vividos – e que foram integrando


as biografias dos vallechalquenses – constituíram-se em mode-
ladores do tipo de práticas que logo o sujeito repetiria uma ou
mais vezes no lugar. Em outras palavras, alguns acontecimen-
tos biográficos rotinizaram diferentes práticas espaciais como,
por exemplo, a de caminhar por certas ruas e evitar outras,
ou então percorrer algumas ruas acompanhados por pessoas
próximas afetivamente, ou fazer isso de bicicleta para poder
atravessar certos lugares com mais velocidade do que se fosse
caminhando. O seguinte relato é enfático neste aspecto:

[...] pelas manhãs, meu trauma é que não posso sair à


avenida caminhando sozinha, me dá mais medo cami-
nhar daqui [casa] para avenida, que caminhar no Cárce-
re de Mulheres. Chego ao Cárcere de Mulheres e atraves-
so a ponte ainda que esteja escuro, não esteja escuro, de
manhã, de noite, e não me sinto assim, mas chego aqui,
ao sair de manhã, e quero chorar. Tenho que fazer isso
em algumas ocasiões, mas é horrível, muito ruim. Evito,
evito, eu não saio a não ser de bicicleta e assim também
me dá medo. É que as ruas são muito inseguras, tem mui-
ta gente louca, eu tenho muito medo dos senhores, me dá
muito medo porque não tem mais hora, pode ser qual-
quer hora do dia. Pode sair um qualquer das ruas, porque
você está muito sozinha. (Gabriela, 35 anos)

As palavras da entrevistada mostram a forma particular


com que, para ela – em sua cotidianidade –, esse território,
inicialmente homogêneo e vazio, foi se fazendo o espaço vi-

99
Leandro R. Pinheiro (Org.)

vido, sendo preenchido por acontecimentos, significados, me-


mórias, valores e intencionalidades22; surgiu um lugar denso,
muito diferente daquele espaço homogêneo, alheio, no qual
nem sequer era possível se orientar.
Nesse processo, o caráter efêmero e fugaz de certos aconte-
cimentos, como os deslocamentos cotidianos, se fez permanen-
te pela reiteração das práticas espaciais: as agressões de que foi
objeto ocorreram em um instante limitado, mas a rotinização
de certa forma de deslocamento no lugar pela lembrança da
agressão se fez permanente. As experiências de violência sofri-
das são eventos fortes da ancoragem das biografias ao lugar;
mesmo quando tenham sido atos efêmeros, permanecem na
lembrança de lugares específicos. Nestes casos, o lugar não
apenas é concebido como o locus do acontecimento, mas tam-
bém as características materiais e/ou apropriação do mesmo
por certo tipo de sujeitos costumam ser representados como
a razão de ser do ato violento e disso resultam as rotinizações
que acompanham a relação do sujeito com esse lugar ao longo
de sua biografia. E essas rotinizações expressam parte da iden-
tidade do sujeito e a identificação que o sujeito faz do lugar.
A ancoragem local das biografias também costuma inte-
grar a temporalidade relativa ao dispêndio de tempo diário
destinado a percorrer certo território e para chegar a um des-
tino, como, por exemplo, a escola dos filhos, o mercado, um
centro de saúde. Assim se marca o território percorrido em
certa etapa biográfica, com as rotinas de uma parte da vida. O
deslocamento para levar os filhos pequenos para a escola po-
deria durar duas horas, porque tinha de ser feito caminhando,
22. Esta forma de conceber o processo pelo qual, na vida cotidiana, as localiza-
ções vêm de espaços vividos, ou lugares, inspira-se nas conhecidas palavras de
Anne Buttimer: “o espaço vivido são pontos de uma superfície topológica, que
a pessoa pode conquistar, defender, explorar, utilizar, manejar [...] são pontos
específicos que respondem à intencionalidade humana, aos valores e à memó-
ria” (1976, p. 284).

100
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

dada a falta de transporte público (a memória da distancia se


associa ao tempo de duração).

3.3 Sobre a memória coletiva dos lugares

Dos conjuntos de acontecimentos vividos, entre as práti-


cas cotidianas e seus lugares de ancoragem naquele entorno
de vida, alguns foram se apagando em sua materialidade, mas
permaneceram como lembranças, como memória dos luga-
res. Alguns desses acontecimentos e seus lugares conseguiram
permanecer não somente na memória do lugar de um habi-
tante ou outro, mas foram se integrando como núcleos duros
da memória coletiva e de seus sentidos. Esses núcleos duros
da memória coletiva do lugar foram objeto de dois processos
entrelaçados: a narrativização e sua simbolização no territó-
rio. O primeiro tornou possível que certos acontecimentos
começassem a circular através do discurso e mais além das
vozes dos sujeitos que os protagonizaram. Assim, esses acon-
tecimentos entraram no circuito da narrativa social local, ad-
quirindo a força e o caráter “verdadeiro” de todo discurso
que circula omitindo a autoria.
O segundo, a simbolização, levou a que certos lugares
específicos fossem sendo reconhecidos coletivamente como
a expressão material do acontecimento narrativizado. Des-
ta forma, aquele momento – como conjunção de um aqui e
um agora denso, um cronotopo – pode ser considerado fun-
dacional pela materialidade que ali começava a se produzir,
pelas histórias que começavam a se ancorar no lugar e pelos
processos de narrativização/simbolização dos lugares que co-
meçavam a operar.
Uma lembrança amplamente instaurada nas narrativas lo-
cais é a referente aos cabos instalados clandestinamente para
acessar energia elétrica, quando Valle de Chalco ainda não
tinha sido conectado à rede elétrica. Os micro acontecimentos

101
Leandro R. Pinheiro (Org.)

de instalar uma e outra vez cabos clandestinos para obter a


energia elétrica se associam espontaneamente ao membro –
ou membros – da família que se ocupava da tarefa. Também
aludiam a distância que percorriam dentro do extenso territó-
rio vazio. Tais cabos clandestinos permitiam que a interiori-
dade doméstica fosse mais próxima ao que se concebe como a
vida urbana, e chegaram a constituir um elemento chave para
aquele território vallechalquense. E, em torno deles, tecia-se
um núcleo de sentido relevante que articula questões como as
seguintes: quem eram os encarregados de cuidar desses cabos
em cada família; como obtê-los; que características tinham e
o que faziam possível na interioridade doméstica. Desde os
anos noventa, já não há nem vestígios daquela materialidade,
porque a região foi conectada à rede elétrica oficial. No en-
tanto, tudo isso ficou integrado na memória coletiva do lugar,
outorgando densidade e profundidade histórica a cada ponto
desse extenso território (“por aqui passavam os cabos”), e as
biografias de algumas pessoas que davam conta dessas tarefas
ficaram marcadas no espaço onde se estendiam os cabos.

3.4 Sobre os acontecimentos familiares e seus lugares

A ancoragem local das biografias também está fortemen-


te imbricada com acontecimentos familiares e com o curso
da vida familiar. Assim, a constituição de família própria, os
nascimentos, as perdas de membros do núcleo, as migrações,
os acontecimentos laborais, entre outros, costumam ser revi-
sitados associados à fabricação do espaço de vida. Por exem-
plo, a construção da casa, a ampliação de certas áreas desta,
a chegada de certos serviços e a construção de alguns equi-
pamentos urbanos, todos são acontecimentos locais que cos-
tumam se rememorar à luz do familiar. Assim a ancoragem
local mostra que não se tratou simplesmente da conexão do
Valle de Chalco à rede elétrica, mas que esse evento ocorreu

102
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

ao mesmo tempo em que, por exemplo, nascia um filho. E


essa conjunção do evento local e familiar muda o rumo da
cotidianidade e ao mesmo tempo outorga densidade ao lugar
e o constrói sócio espacialmente.
Outro evento familiar que costuma ser rememorado nessa
ancoragem local e, em particular, à luz do processo de fabrica-
ção do lugar são algumas festas familiares. O seguinte relato dá
conta desta inscrição dos eventos familiares no espaço de vida:

[...] nessa época minhas irmãs iam cumprir seus 15 anos,


mas elas disseram que não queriam festa e que com esse
dinheiro queriam ter seu quarto [...]. Quando eu saí da
escola, já estava construída a casa. Então fiz uma peque-
na festa e foi muito bonita porque pude conviver com
meus amigos dentro da minha casa num lugar fechado.
Aqui as festas são nas ruas e onde se corre mais riscos,
mais insegurança, perigo, mas minha festa foi fechada,
porque já tinha casa. (Erick, 25 anos)

As narrativas espaciais da vida dos vallechalquenses tam-


bém costumam destacar circunstâncias particulares desta an-
coragem, como, por exemplo, as que “os filhos tiveram casa”,
em referência ao nascimento dos filhos que aconteceu quando
o núcleo familiar já tinha construído uma residência. Em ou-
tros momentos, também informam que os filhos menores não
só nasceram quando o núcleo familiar tinha casa, mas tam-
bém tiveram um quarto próprio dentro da casa. Ou seja, eles
observam que os filhos – daqueles que sofreram sem nada –
tiveram escolas e outros equipamentos enquanto que os filhos
menores não só tiveram escolas, como também foi possível
escolhê-la porque já existia mais de uma.
Todas estas dimensões de ancoragem territorial das bio-
grafias dos vallechalquenses mostram que aquele cronotopo
fundacional foi se desdobrando em outros múltiplos cronoto-
pos posteriores. As ancoragens são de caráter cronotópico por-

103
Leandro R. Pinheiro (Org.)

que em todos eles se constata a união do tempo e do espaço e


também a condensação do tempo pela intensificação do espa-
ço. Por exemplo, a temporalidade fugaz de um aniversário, ou
de um ato de violência sofrido, condensou-se enquanto sua es-
pacialidade se intensificou na simbolização da rua como lugar
de violência e também como o lugar no qual as práticas coti-
dianas de deslocamento devem se rotinizar de certa forma. Da
mesma maneira, intensificou-se o espaço do quarto próprio
dentro da casa e a casa mesma, como uma materialidade que
perdura e que pôde ser fabricada contornando a temporalida-
de efêmera de uma festa. Assim esse espaço que se intensificou
pôde albergar diversas festividades de uma trajetória familiar
e guardar a lembrança daquela festividade feita da porta para
dentro, como um cronotopo específico.

4. A construção do sentido do lugar

As três dimensões analíticas previamente tratadas se cons-


tituem em insumos fundamentais com os quais os vallechal-
quenses habitam seu território e constroem cotidianamente
tramas de significação sobre ele, que vão se imprimindo no
território como formas espaciais.
Mesmo admitindo que as tramas de significação não se re-
sumem a um único sentido monolítico outorgado ao lugar, con-
sideramos particularmente uma trama de significação, que se
torna relevante por estar muito difundida localmente e associa-
da aos tipos de trajetórias biográficas comentadas, assim como
ao núcleo duro de memória do lugar revisado e também às
rotinas e aos acontecimentos cotidianos que fomos abordando
nas ancoragens locais. Trata-se do sentido outorgado ao lugar
em termos de “uma conquista que, com esforço, transformou
o lugar vazio, inóspito e sofrido, em um lugar condicionado
para a vida”. Esta trama de significação foi se configurando e

104
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

emerge reiteradamente na dinâmica cotidiana, com todos os


componentes práticos e materiais implicados a ela.
Essa construção subjetiva tem como resultado um jogo
no qual o sujeito espontaneamente contrasta os núcleos du-
ros da memória individual, familiar e social do lugar (o que o
lugar era) com as condições cotidianas atuais do mesmo. Esse
emparceiramento entre ambos os registros é também o con-
traste entre o sofrimento do passado pelas carências materiais
e o conquistado no presente, daquilo que não se tinha, que
atualmente se tem e que facilita vida cotidiana. Neste proces-
so, emergem com alta valorização social as transformações
materiais do lugar, porque elas facilitaram a vida cotidiana.
Nessas transformações se integram tanto aquelas construções
que individual ou familiarmente foram se realizando – como a
construção por etapas da casa – como também aquelas outras
transformações que são produto de políticas e inversões pú-
blicas ou privadas, como tudo o que é vinculado às redes, aos
serviços e equipamentos urbanos.
Nesse jogo de espelhos que constitui o contraste entre o
antes e o agora vallechalquense, emerge o sentido do lugar
como a realização pelo esforço feito. Esse sentido do lugar
foi narrativizado pelos que o fizeram um próprio, muitos dos
habitantes do lugar que viveram aqueles anos do cronotopo
fundacional, e também por outros, que não o viveram, mas
incorporaram esta narrativização.
A base desta construção do sentido do lugar se encontra
em sua materialidade. As transformações materiais do lugar
são próprias das novas periferias. Toda periferia metropolita-
na que inicia processos rumo a certo nível de consolidação
urbana vai sendo objeto de adensamento da ocupação, de um
processo de fortalecimento das habitações e chegada progres-
siva dos equipamentos e serviços urbanos. Isso é um fenômeno
amplamente analisado pelos estudos urbanos e repetido em
um e outro caso. No entanto, o que talvez não tenha sido sufi-

105
Leandro R. Pinheiro (Org.)

cientemente abordado são os processos de construção de signi-


ficados e de narrativização que se disparam com tais mudan-
ças materiais. Em síntese, se a materialidade é o motor desse
processo subjetivo, a memória do sofrimento e o esforço pelo
lugar “vazio” é o outro componente indispensável para que a
materialidade atual possa ser valorizada tão favoravelmente.
Outro aspecto muito relevante deste processo de constru-
ção social do sentido do lugar como uma conquista é que tudo
aquilo que o confronta – o que desvaloriza a realização – é
objeto de configuração em um segundo plano e de maneira
“apagada”. Em outras palavras, se desencadeia espontanea-
mente um processo de redução simbólica do social e o espacial
que ameace ou confronte esse sentido do lugar como uma re-
alização alcançada.
Um dos fenômenos empíricos próprios do lugar que pode-
ria confrontar esse sentido do lugar de alta estima e na qual se
investiu um grande esforço é a presença e expansão local da
delinquência e da insegurança. No entanto, discursivamente,
a delinquência faz parte daquilo que se configura em segundo
plano e de maneira imprecisa. Os mecanismos subjetivos para
outorgar a este fenômeno o apagamento social relacionam-se
com a noção do conhecimento interpessoal que o habitante
tem dos “sujeitos-delinquentes” e com a proximidade com
eles: conhecê-los e ser próximo fisicamente se concebe como
um mecanismo de proteção. Portanto, a presença da delinqu-
ência e do delinquente não adquire o caráter de risco que se
poderia esperar. Assim se dá um processo de elaboração sub-
jetiva do delinquente como o vizinho próximo, o vizinho que
se conhece; e dessa forma, essas presenças não são suficientes
para apagar a valorização tão positiva do lugar. Gabriela des-
taca, por exemplo: “como sabemos quem se dedica a “isso”
[a delinquência], não acontece nada com a gente, nos conhe-
cemos”. Transfere-se, assim, o fenômeno da delinquência do
nível social ao nível individual: são pessoas particulares frente

106
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

às quais se procura um posicionamento individual favorável e,


por isso, não alteram a conquista que o lugar representa.
Outra fonte de apagamento do fenômeno da delinquência
local procede do reconhecimento da ampla difusão territorial
da delinquência na Cidade do México, no país e em qualquer
lugar do mundo. Em outras palavras, o fenômeno não é con-
cebido como uma especificidade local, como característico do
lugar, mas sim como um problema social que está presente em
diversos lugares. Assim se concebe a delinquência de maneira
onipresente e por isso perde, subjetivamente, o caráter local e
se torna apagada e, de outra forma, não elimina a alta valori-
zação social do lugar.
Um aspecto da vida local que também poderia confrontar
esse sentido do lugar muito valorizado são os conflitos entre vi-
zinhos e a fragilidade dessas relações. No entanto, ocorre algo
semelhante à elaboração subjetiva da delinquência. Os con-
flitos vicinais e a falta de solidariedade local são vistos como
resultado de personalidades particulares ou de decisões espe-
cíficas de alguns vizinhos. Em outros termos, uma vez mais
se desloca o sentido do conflito para o plano individual e, em
consequência, não se elimina a alta estima social do lugar.
Estas dimensões não se conjugam da mesma forma para
todos os habitantes do lugar, uma vez que chegaram ao Valle
de Chalco com diferentes trajetórias biográficas prévias. Da
mesma forma, os acontecimentos biográficos vividos local-
mente não foram idênticos para todas as pessoas. Tampouco
elaboraram os mesmos processos de sentido e significação do
vivido. Nem suas memórias são idênticas, nem seus proces-
sos de rememoração, como também não compartilham exa-
tamente as mesmas experiências do lugar. No entanto, pela
intersecção local de algumas das trajetórias biográficas dos
habitantes, compartilha-se certos fragmentos das experiências
e também alguns sentidos dados aos lugares, aos acontecimen-
tos e à alteridade. Desta forma a memória local de cada ha-

107
Leandro R. Pinheiro (Org.)

bitante foi guardando fenômenos que, parcialmente, também


foram registrados por outros.
Essas memórias do lugar e da vida local parcialmente com-
partilhadas começaram a gerar narrativas que se repetem, que
entraram na circulação local de ideias e imagens para mais
além das vozes dos sujeitos que protagonizaram os aconte-
cimentos que deram origem à narrativização. Este processo
complexo foi produzindo dia a dia a construção socioespacial
do lugar.

Reflexões finais

Há mais de duas décadas, começamos a discutir que se


invertêssemos o ponto de vista e passássemos a pensar a pe-
riferia do ponto de vista de seus habitantes, e não desde uma
visão distanciada como se tinha instituído então, poderíamos
fazer emergir esse território periférico com maior densida-
de. Dito de outra maneira, a inversão do ponto de vista do
pesquisador permite visibilizar o que o um olhar distanciado
pode invisibilizar (Lindón, 2012). Neste caminho, começamos
a modelar vários conceitos. Um deles é o da construção socio-
espacial da periferia – que, no nosso caso, sempre teve como
referente empírico a periferia vallechalquense – como uma vi-
são complementar da urbanização popular (Duhau, 199823).
Nesse processo de outorgar inteligibilidade a estes processos

23. A urbanização popular (ou a cidade informal) explicou os processos de


periferização, não só no caso das cidades mexicanas, mas também das latino-
-americanas, pela via da autoconstrução e da informalidade. Assim, surgiu um
conjunto de pistas para decifrar o fenômeno, como, por exemplo, o mercado de
terrenos irregulares: como se desenvolve; que agentes atuam; como operam as
relações de poder; e como foram se fabricando as periferias. Isso gerou diversas
aproximações para elucidar esses processos urbanos, às vezes por uma leitura
econômica, outras por interpretação social, outras mais voltadas ao territorial
ou ao político, muitas outras orientadas às políticas urbanas, outras integrativas
destas diferentes ênfases.

108
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

territoriais, damos centralidade ao sujeito habitante do lugar


e suas experiências espaciais cotidianas. Para isso, integramos
sucessivamente peças do quebra-cabeça que temos denomina-
do construção socioespacial da periferia.
Nas páginas anteriores, tentou-se colocar em evidência
que habitar essa periferia não só pressupôs o desenvolvimento
de práticas cotidianas do mesmo tipo que as desenvolvidas pe-
los habitantes de outros lugares da cidade, mas também outras
práticas com as quais se evitou as carências e certas condições
particulares das materialidades do lugar. Além disso, se colo-
cou em evidência que essas práticas podem ir se implemen-
tando a partir de certos acervos de saberes espaciais próprios
das biografias que para ali foram convergindo. Da mesma for-
ma, mostrou-se que a transcendência dessas práticas cotidia-
nas somente se perfila à luz da conformação dos campos de
enunciados com os quais se narrativizam, legitimam-se e se
territorializam esses afazeres, que assim circulam e perduram.
Também, essa aproximação mostrou que as tramas de
significado sobre o lugar que se habita, a periferia vallechal-
quense, são processos de hibridização contraditória de senti-
dos concedidos ao lugar, isto é, formas de identificá-lo que vão
se configurando em diálogo constante com a cotidianidade e
com outros processos sociais, como os de construção de ima-
gens e imaginários compartilhados e a configuração das iden-
tidades de seus habitantes, que levam a marca do lugar.
O sentido do lugar se carregando de contra sentidos por-
que a cotidianidade (que faz e refaz tal sentido) contém perma-
nentes tensões entre buscas e rejeições da repetição e, ao mes-
mo tempo, da diferença, da novidade. A repetição gera certeza,
ainda que também o tédio. A diferença atrai pela inovação que
promete, mas também é rejeitada pela insegurança suposta
pelo sujeito frente ao não conhecido. Desses sentidos do lugar
resultam também complexos e ambíguos processos de ancora-
gem ao território, que implicam formas de desarraigamento.

109
Leandro R. Pinheiro (Org.)

A construção social do apagamento de certos fenômenos


como o medo, os conflitos e os problemas sociais também faz
parte da periferia: reconhecem-se experiências de temor e
de insegurança, mas estas são concebidas como experiências
individuais e isoladas ou como resultado da fraqueza pessoal
para enfrentá-las; são confinadas ao âmbito do pessoal e, como
consequência, isso esmaece a interferência na construção so-
cial (tão favorável) do sentido do lugar, fundada, sobretudo,
no avanço e no progresso das formas espaciais. O processo de
construção do sentido da conquista territorializada somente
pode se sustentar quando se configura na subjetividade social
local um notório apagamento relativo às problemáticas sociais
instauradas, como a violência, o medo e o conflito entre vi-
zinhos. Em síntese, a vida cotidiana – com todo o prático e
material que traz consigo – constitui um dos principais meca-
nismos para enaltecer a realização material e invisibilizar os
problemas sociais que deterioram o tecido social.
Os marcos topológicos do cronotopo fundacional cono-
tavam, como se apresentou, as fronteiras desse território e a
precariedade no interior das ditas fronteiras. Possivelmente, a
implementação de infraestruturas e serviços urbanos, que fo-
ram apagando essas fronteiras, sejam tão valorizadas não ape-
nas pelo que em si constituem. É possível que essa alta estima
social também se funda ao que essas materialidades (as infraes-
truturas) vieram a derrubar: as fronteiras que separavam o ter-
ritório da precariedade e desolação do outro território urbano.
O atual habitar do território vallechalquense ocorre em
um presente denso, já que não somente contém os fenômenos
que estão acontecendo, mas também núcleos duros da memó-
ria do lugar, que seguem emergindo de uma e outra maneira
nas práticas cotidianas.
Em suma, o processo de construção socioespacial desta peri-
feria se funda em um núcleo duro da memória do lugar sofrido e
carente de tudo que era necessário para a vida. E essa memória

110
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

do lugar não é posse só daqueles que chegaram ao lugar como


pioneiros nos anos setenta e oitenta do século XX. Esse núcleo
duro da memória espacial se narrativizou e circulou localmente
pelo que se pôde acompanhar do processo de densificação da
ocupação e consolidação periférica. Ali radica a perdurabilida-
de, a transcendência e vigência do cronotopo fundacional como
um passado que é atualizado constantemente e que é recria-
do parcialmente nos múltiplos cronotopos atuais. O cronotopo
fundacional – decisivo para a construção sócio espacial dessa
periferia – teve um componente central no sofrimento; em um
estado emocional fortemente associado ao lugar como o entor-
no onipresente do habitante vallechalquense.
As periferias da Cidade do México, e a própria cidade,
são feitas de múltiplos processos de construção sócio espa-
cial dos lugares. Talvez, o conhecimento mais profundo e
detalhado deste tecido urbano e em urbanização requer que
sigamos enunciando esses processos, que costumam ser invi-
zibilizados sob a ideia implícita de que as formas espaciais –
sempre observáveis de fora e de um olhar aéreo – constituem
em si mesmas a periferia.

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114
Mulher, poder e tradição: reflexões sobre gênero
e percepções de pobreza em Moçambique

Ana Maria Loforte

As grandes mudanças econômicas e sociais que ocorreram


no país a partir dos anos 80 do século XX em função de novas
políticas ligadas aos projetos de reajustamento estrutural, do
impacto da guerra e consequente mobilidade populacional ti-
veram profundas repercussões na vida das populações condu-
zindo a alterações no seu modus vivendi1. Todavia, não podemos
interpretar este novo contexto como sinônimo de destruição
das instituições sociais existentes. Na verdade, conquanto mu-
tações tenham alterado o funcionamento das mesmas, novos
processos de reconstrução, de reorganização e de reintegração
são desencadeados com maior ou menor presteza, visando en-
frentar os desafios de natureza hostil, num contexto de crise.
Assiste-se, igualmente, a fatores de manutenção de certos
valores ligados à tradição fazendo uso dos recursos acumula-
dos no passado. Na verdade, perante um movimento amplo
que pretendia incutir transformações profundas nas relações
sociais, as práticas tradicionais não sofreram mutações de fun-

1. Moçambique conquistou independência em 1975. A partir de então, as ins-


tâncias de poder passam a conduzir mudanças relativas à gestão e socialização
dos recursos produtivos no país. Neste período, os conflitos entre situação (Fren-
te de Libertação de Moçambique – Frelimo) e oposição (Resistência Nacional
Moçambicana – Renamo) deflagram uma guerra civil que durara 16 anos. Em
1992, o acordo de paz ambienta melhores possibilidades para instauração de
políticas públicas, mas os conflitos entre as partes continuam compondo o ce-
nário político e social.

115
Leandro R. Pinheiro (Org.)

do nem se dissiparam, passaram simplesmente para a clandes-


tinidade para contornarem o desencorajamento contido no
discurso político (Andrade, Osório e Trindade, 2000).
O reavivar das expressões culturais num contexto em que
a tradição se havia ajustado a novas realidades resulta num
processo de agravamento da posição subalterna da mulher,
pois certos aspectos desta são sujeitos a uma filtragem e decor-
rem das habilidades e capacidades de manipulação dos que a
transmitem. A utilidade particular de uma tradição é possi-
bilitar e oferecer a todos que a enunciam e a reproduzem no
cotidiano, os meios de afirmar as suas diferenças e de assegu-
rar a sua autoridade e poder (Lenclud, 1987, p. 118). É neste
contexto que se pode entender que, em nome da tradição, se
mantenham ainda, por exemplo, em bairros da periferia da
cidade de Maputo, rígidos padrões de autoridade e domina-
ção masculina na definição das estratégias de casamento, no
controle da sexualidade e capacidade reprodutiva feminina e
nas práticas religiosas tradicionais.
Assim, a modo de contextualização, os dados que apre-
sentaremos primeiramente (baseados em pesquisas realizadas
em bairros da periferia da cidade de Maputo2), procuram de-
monstrar como, em cenário citadino de grandes mudanças
sociais, onde predominam sistemas de pensamento e práticas
heterogêneas, a continuidade em relação à tradição preten-
de assegurar o poder, a autoridade masculina e a ideologia
patriarcal dominante. Verifica-se que a tradição impõe uma
escolha resultante de um código de significados, de valores
que regem as condutas individuais e coletivas transmitidas de
geração em geração. A tradição é uma herança que define

2. Pesquisas realizadas nos bairros de Malhazine (1984 e 1985), Laulane e


Mahotas (1992 e 1993). A primeira no contexto de uma pesquisa intitulada
“Migrantes e sua relação com o meio rural” e a segunda para coleta de dados
sobre gênero e poder entre os Tsonga de Moçambique para a tese de doutora-
mento em antropologia social da autora deste artigo.

116
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

e transmite uma ordem apagando a ação transformadora do


tempo, retendo apenas os momentos cruciais pelos quais os
que a transmitem legitimam o seu poder e a sua influência
(Balandier, 1988, p. 36).
E então, na sequência, lançaremos um olhar sobre as per-
cepções da pobreza à luz das estruturas de gênero, tendo como
base uma pesquisa desenvolvida pelo DAA3. As entrevistas re-
alizadas tiveram como alvo alguns grupos focais de mulheres e
homens, agregados familiares chefiados por crianças órfãs ou
que albergassem órfãos, chefiados por homens, por mulheres e
ainda agregados de imigrantes recentes, salvaguardando sem-
pre o equilíbrio do gênero – processo intencional para integrar
diferentes níveis da estratificação.
Dando primazia ao fato de que as relações sociais têm um
efeito poderoso sobre a ação humana, teve-se como unidade de
análise o agregado familiar em toda a sua dinâmica e enquanto
espaço de tomada de decisão no contexto destas mesmas rela-
ções. Teve-se igualmente como pano de fundo a ideia de que
a forma como a família se constitui como valor tem por fun-
damento uma concepção do mundo relacional e hierárquica.
Utilizou-se a estratégia de inventariar as redes de paren-
tesco e vizinhança dos agregados, tendo em atenção o fato
de essas redes serem constituintes de formas de organização
social nos lugares estudados. Este quadro diferenciado de in-
formantes complexificou a análise e possibilitou o acesso a um
maior número de informação que permite uma construção
mais ampla do contexto onde os informantes estão inseridos.
Olhamos para as famílias no seio das comunidades e das
suas redes, no interior das quais o conceito de pobreza ganha

3. Departamento de Arqueologia e Antropologia da Faculdade de Letras e Ci-


ências Sociais, Universidade Eduardo Mondlane. Para mais informações vide
Relatório DAA, “Avaliação social combinada sobre gênero e pobreza em Mo-
çambique”, Maputo, 2007.

117
Leandro R. Pinheiro (Org.)

usos e itinerários diversos. À luz de Geertz (1998), o ato de


classificar o mundo, ao construir, por exemplo, um conceito
como o de pobreza, passa a ser um ato de traficar com as for-
mas simbólicas disponíveis nas comunidades. Pensamos que,
para explicar os usos, as idas e vindas desse tráfico, é preciso
analisar as comunidades no interior das quais as formas sim-
bólicas estão disponíveis. Esta análise, no caso proposto por
Geertz, não significa necessariamente descrever a sua estrutu-
ra social, mas estar atento às normas que as organizam e que
as põem em contato com outras.
Valorizou-se ainda a inclusão da experiência das mulheres
para revelar outras dimensões do real das quais normalmen-
te são excluídas, pois, sendo informantes relativamente mar-
ginais, refletem mais sobre a sociedade em que vivem, sobre
as suas regras sociais e os seus padrões, exatamente porque
muitas vezes os questionam. Nesta ordem de ideias, procurou-
-se desenvolver uma abordagem que buscasse entender como
homens e mulheres produzem e se apropriam de modelos ex-
plicativos para as categorias de pobreza em função da sua ex-
periência social concreta.
Do ponto de vista teórico, a abordagem é centrada no fato
de que os indivíduos agem e respondem a partir das suas per-
cepções emic4 sobre a sua posição socioeconômica, e de que
das assimetrias sociais são dimensões relevantes da estrutura e
ação (Bourdieu, 1990).
A perspectiva a partir da qual foram analisados os dados
recolhidos teve como substrato a concepção de que as relações
entre homens e mulheres são relações de poder, socialmente
construídas, constantemente negociadas, resultando em parti-
lhas, desigualdades e diferenças. Na incorporação da categoria
gênero, privilegiou-se a dimensão social e simbólica da diferen-

4. Isto é, baseadas nas distinções culturais que fazem sentido para os membros
de uma dada sociedade.

118
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

ça para dar abertura à desconstrução da polaridade masculino/


feminino e pluralizar estas noções (Butler, 2001; Scott, 1988).

1. As formas da tradição e do poder

1.1 O parentesco e as alianças

Uma vez que em certas unidades domésticas prevalece a


matriz tradicional, os homens mantêm formas de poder políti-
co cujo exercício se materializa pela imposição da sua vontade
nas decisões relativas às estratégias e alianças matrimoniais.
Por serem produtoras inseridas na divisão do trabalho e pro-
dutoras de novos produtores, as mulheres estão no centro das
estratégias protagonizadas pelos membros masculinos mais
velhos, que visam realizar “um bom casamento”, isto é, maxi-
mizar os benefícios econômicos e simbólicos associados à ins-
tauração de uma nova relação.
A cerimônia de entrega da compensação matrimonial, o
lobolo, é precedida, acompanhada e continuada por troca de
presentes e de outros produtos em diferentes momentos, que
revelam que as alianças não são apenas uma questão matrimo-
nial mas, também, de reprodução social5, reforçando o poder e
autoridade dos homens mais velhos. Associando os dois aliados,
a compensação matrimonial movimenta uma dupla circulação
em sentidos inversos e em esferas distintas, assegurando-se a
reprodução do sistema matrimonial, expresso num movimento
de troca de mulheres por bens, valores monetários e simbólicos

5. Na região norte de Moçambique e, de acordo com Nancy Horne (2000), no


campo, os casamentos são vistos como uma relação mútua de trocas econômi-
cas na qual a mulher aceita gerar filhos, tomar conta do agregado familiar e
fazer trabalho agrícola em troca do suporte financeiro do marido. Este “contra-
to”, isto é, casamento por serviços mútuos, une os dois uma vez que ambos estão
interessados em receber o que o outro tem para oferecer.

119
Leandro R. Pinheiro (Org.)

onde os anciãos estão interessados em manter o lugar cimeiro.


É neste contexto que Meillassoux (1977, p. 271) refere:

que uma vez que os jovens são os produtores de bens,


estariam em condições de tratar diretamente com o guar-
dião das mulheres que desejam desposar. Mas o ancião
de um grupo não se prestará a uma tal transação com um
indivíduo que não tem o estatuto requerido; enfraque-
ceria a autoridade do seu homólogo e na volta também
a sua. Os anciãos têm interesse solidário em respeitar a
ordem estabelecida. (p. 271)

1.2 A sexualidade

Em nome da tradição e dos seus valores, a sexualidade


também legitima através das suas regras e discursos formas
de dominação masculina e desigualdade de gênero afetando
os indivíduos em esferas distintas, designadamente nos seus
corpos, no uso destes e no controle reprodutivo. O corpo da
mulher é sujeito à contenção, mas também a uma ritualização
constante, prescrita meticulosamente pela purificação a que
os ritmos femininos obrigam periodicamente. As mulheres são
poluentes pela exposição regular à menstruação e parto en-
contrando-se assim adscritas de forma permanente à poluição
orgânica (Perez, 1996). A ideologia patriarcal advoga que a
sexualidade é o lugar da produção dos descendentes, os quais
irão dar continuidade ao grupo, enquanto súditos fiéis e forne-
cedores de mão de obra. Contudo, esta mesma ideologia que
incute à jovem a obediência como valor e a maternidade como
norma, legitima direitos e papéis diferentes de homens e mu-
lheres na procriação. Assim, é ao homem que cabe a iniciativa
de disseminar a “semente6” e a permanência da fecundidade.

6. Em algumas sociedades, o quadro simbólico da reprodução biológica é ex-


presso em metáforas. Dube (1986) mencionando o caso da Índia, afirma: “in his
body man has the seed, the woman is the earth. The child gets its status from

120
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

A mulher é o receptáculo passivo, a matriz onde se cresce a


criança gerada, sobretudo pela contribuição masculina.
Para a mulher a função mais evidente é a de reproduto-
ra do grupo. Quando contrai matrimônio, ela deve antes de
tudo, reproduzir-se como mãe, o que determina o estrito con-
trole exercido pelo coletivo em relação à sua sexualidade a fim
de assegurar o aumento de efetivos. As relações sexuais pré-
-maritais são desencorajadas, de uma forma geral, para as mu-
lheres, quer pelos parentes, quer pelas igrejas que, através dos
seus ensinamentos, as condenam. Entretanto, para os rapazes,
elas são tacitamente aprovadas e de certa forma encorajadas.
A ética sexual restringe e controla a livre expressão da sexuali-
dade feminina. Em virtude da sua função reprodutiva, limita-a
à esfera do casamento.
Algumas anomalias no desenvolvimento da criança são
atribuídas a uma sexualidade desviada das regras da tradição,
como sejam a prática de cópulas proibidas que desencadeiam
efeitos negativos.
Pelo que acabamos de enumerar, quer-nos parecer que os
homens do presente desenvolvem uma interpretação do passa-
do em função dos interesses do momento. Como afirma Len-
clud (1987, p. 116), “Il ne s´agit pas de plaquer le present sur le
passé mais de trouver dans celui-ci l’esquisse des solutions que
nos croyons justes aujourd´hui7”. Ao que poderíamos acres-
centar que, para além da justeza, a tradição procura assegurar
a autoridade e o poder dos que a transmitem.

the seed. A woman cannot give social identity and acceptance to her children
without paternal identity” (em seu corpo, o homem tem a semente; a mulher é a
terra. A criança recebe seu status a partir da semente. Uma mulher não consegue
conceder identidade e aceitação social para sua prole sem a identidade paterna).
7. “Não se trata de submeter o presente ao passado, mas de encontrar neste o
esboço das soluções que acreditamos justas hoje” (versão da autora).

121
Leandro R. Pinheiro (Org.)

1.3 A religião

Um outro aspecto ligado à continuidade em relação à tra-


dição e que procura assegurar o poder e autoridade dos ho-
mens mais velhos encontra-se nas práticas religiosas tradicio-
nais8. Os seniores das unidades domésticas, ritualmente ligados
aos antepassados que lhes transmitiram funções, privilégios e
poder, encontram nelas o fundamento e a justificação do seu
encargo. A religião reproduz a ideologia do poder patriarcal
expressando as diferenças de gênero. À exceção da tia paterna,
o poder religioso é predominantemente dos homens. No culto
dos ancestrais, o direito de oficiar é reservado aos indivíduos
mais velhos, do sexo masculino. Apresentando-se como sacer-
dotes e mágicos que asseguram a proteção dos espíritos e a
derrota das forças agressoras, eles organizam e presidem aos
rituais para a manutenção da ordem e do bem-estar.
A posição subalterna das mulheres na religião é ainda visível
entre as seitas religiosas zione9, onde estão presentes elementos
das tradições culturais locais como seja o respeito pelo culto dos
antepassados, os modelos de adivinhação, os rituais de cura, o
simbolismo das cores, etc. Com efeito, a dominância masculi-
na, baseada nos dogmas e nos rituais religiosos, está presente
nesta congregação religiosa, pois as mulheres marcadas pela
ciclicidade biológica (menstruação e parto) são normalmente

8. Lenclud (1987, p. 120) aponta que a religião é um dos grandes pilares da


tradição, sendo entendida como o depósito do sagrado.
9. Manifestações sociais religiosas de tipo pentecostal. A sua penetração em
Moçambique começou ainda no período colonial, sobretudo através dos minei-
ros e outros trabalhadores moçambicanos na África do Sul. Existe uma grande
variedade de Igrejas geralmente designadas como ziones, cujos doutrinas, li-
turgia, ritos e tabus diferem, mas que compartilham uma característica funda-
mental – a invocação do Espírito Santo e a cura divina efetuada por meio da
sua ação milagrosa. A Igreja zione é de comunidade por excelência – localiza-
da dentro da comunidade e sendo parte integrante da vida social comunitária
(Agadjanian, 1999).

122
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

excluídas dos escalões mais altos da hierarquia e dos centros


de decisão. Excetuam-se algumas, em número reduzido, que
atingiram os postos de bispos e de diáconos, mas sempre por
intermédio dos esposos que ascenderam a estes mesmos luga-
res. Mas o assumir destas posições não altera o equilíbrio das
relações de poder, pois elas não presidem aos rituais e, com a
morte ou destituição dos esposos, perdem esse estatuto.

2. Dinâmicas familiares e percepções de pobreza

A nossa preocupação até aqui, foi de identificar os elemen-


tos do passado ainda observáveis (constituindo de certa forma
um patrimônio) e procurar explicar porque a tradição ainda
se mantém e se conserva. Verificamos que a mesma cumpre
funções sociais e faz sentido para os habitantes dos bairros.
Quando se evoca a tradição de um povo ou de um grupo
social não nos referimos a qualquer instituição, ou prática, a
sociedades que visam conservar e conformar-se com os valores
do passado. Como refere Lenclud (1987) e com o qual concor-
damos, associamos à noção de tradição a representação de um
conteúdo contendo uma mensagem importante, culturalmen-
te significativa e dotada por esta razão de uma força, de uma
predisposição para a reprodução.
Com efeito, a tradição é geradora de continuidade, expri-
me a relação com o passado e seu constrangimento. Impõe
uma escolha resultante de um código de significados, de valo-
res que regem as condutas individuais e coletivas transmitidas
de geração em geração.
Embora se possa estabelecer em certas práticas uma equa-
ção tradição = conservação, ela manifesta uma capacidade
singular para a variação, e possibilita uma margem de liber-
dade aos que dela se servem. Com efeito, como afirma Gid-
dens (1994) “todas as tradições são de fato escolhas de entre um
leque indefinido de possíveis padrões de comportamento” (p.

123
Leandro R. Pinheiro (Org.)

72). Contudo, falar de uma multiplicidade de escolhas não sig-


nifica subentender que elas estão abertas a toda a gente, ou que
as pessoas tomam todas as decisões acerca de opções possíveis.
Para adentrarmos na segunda parte de nossa análise, de-
vemos resumir algumas iniciativas de combate à pobreza em
Moçambique nas últimas décadas, visando ambientar nossa
exposição das percepções de pobreza.

2.1 Os Planos de Acção de Resolução da Pobreza Absoluta10


(PARPA)

A história mais recente das iniciativas governamentais no


combate à pobreza remonta aos inícios de 1980, quando do
programa Dimensões Sociais do Ajustamento Estrutural. To-
davia, o primeiro inquérito nacional sobre a pobreza e bem-
-estar, designado por IAF, teve lugar em 1996-97 e o seu en-
foque principal foi a identificação da escassez de recursos dos
agregados familiares, num período de grande mobilidade po-
pulacional em que uma parte significativa dos deslocados e
refugiados retornavam aos seus locais de origem finda a guer-
ra, tendo verificado que aproximadamente 70% da população
moçambicana se encontrava abaixo da linha da pobreza. Um
segundo inquérito da mesma natureza (IAF 2002-2003) de-
monstrou que a pobreza nacional diminuiu para 54%.
Na verdade, todo o processo de preparação do PARPA I
surge na sequência do IAF, no âmbito de uma estratégia global
de combate à pobreza. O PARPA I constituiu um instrumen-
to de planificação de médio prazo (isto é, quinquenal), com
caráter nacional e multissetorial dando papel de relevo aos
sectores sociais. Ele emerge como complemento do Progra-
ma do Governo e de outros instrumentos a curto prazo, mas
igualmente como indicador da política econômica externa de
10. Planos conduzidos pelo Ministério da Economia e Finanças de Moçambique.

124
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Moçambique, como veículo de cooperação e diálogo visando


a mobilização de recursos junto dos parceiros internacionais e
a negociação para alívio da dívida, no contexto de estratégias
para combate à pobreza.
No entanto, apesar da feminização crescente da pobreza
derivada das desigualdades sociais, o objetivo da igualdade
de gênero ainda não se encontrava devidamente retratado no
PARPA; este documento não refletia as disparidades de gênero
e poder nas sociedades moçambicanas e não continha interven-
ções concretas que visassem reforçar os direitos das mulheres.
Mas foram feitos esforços para superar estas lacunas e algumas
organizações femininas, como o Fórum Mulher, o Grupo de
Coordenação de Gênero e o Ministério do Gênero, Criança e
Ação Social (MGCAS) procuraram influenciar na elaboração
de indicadores para incorporar aspectos de gênero.
Na concepção do PARPA II (2006-09) teve-se em vista al-
cançar o objetivo de diminuir a incidência da pobreza de 54%
em 2003 para 45% em 2009. Tal como o anterior, este Plano
estabelece como áreas prioritárias o desenvolvimento do capi-
tal humano na educação e na saúde, a melhoria da governação,
do desenvolvimento de infraestruturas básicas e da agricultura,
do desenvolvimento rural e da melhoria na gestão macroeco-
nômica e financeira. Assente em três pilares (governação, ca-
pital humano e desenvolvimento econômico) ele centra a sua
atenção no incremento do nível de vida das populações mais
carenciadas e desfavorecidas, vivendo em pobreza absoluta.
O PARPA II já apresenta a pobreza como sendo a (im)pos-
sibilidade por incapacidade ou por falta de oportunidade, de
indivíduos, famílias e comunidades terem acesso a condições
mínimas, segundo as normas da sociedade. Esta nova definição
indica uma percepção diferente, longe da visão do pobre como
passivo na ação de luta contra a pobreza, para uma redefinição
do pobre como agente e sujeito do seu próprio desenvolvimen-

125
Leandro R. Pinheiro (Org.)

to, mas que enfrenta uma falta de oportunidades11. Figuram


igualmente definições alternativas e mais latas cobrindo aspec-
tos não apenas relacionados com a carência de rendimentos,
mas também com a falta de acesso a recursos básicos como a
educação, a saúde, a água e o saneamento, a energia, etc.

2.2 Percepções sobre a pobreza e suas dimensões

Nesta parte, enfim, pretende-se explorar as percepções dos


indivíduos e os seus discursos face à pobreza. Foi possível cons-
tatar que essas percepções são várias e que as ideias são, sobre-
tudo baseadas nas suas próprias experiências de pobreza e na
forma como esta é enfrentada no cotidiano. Assim também os
discursos sobre a mesma são, consequentemente, diferentes de
indivíduo para indivíduo.
As respostas são díspares e apontam para uma distinção
entre a pobreza que afeta a comunidade onde se inserem e a
que afeta a família ou o indivíduo. Para a primeira, são real-
çados vários fatores, dos quais, prioritariamente, a falta de ser-
viços e infraestruturas básicas, que são externos e estruturais
mas que atingem os indivíduos nela inseridos. Para a segunda
são salientados fatores internos que têm a ver com a percepção
de pobreza de cada família/indivíduo, em particular.
Há ainda a registrar o fato de essas mesmas percepções
apresentarem muitas facetas: são genderizadas e têm uma di-
mensão local e regional, o que torna complexa a ideia de que
existe uma concepção coletiva de pobreza na qual nos pode-
ríamos basear.
No tocante aos indivíduos, a associação ao fato de ser po-
bre é visto como resultando de, pelo menos, quatro situações:
(i) falta de dinheiro, de fontes de rendimento e de bens es-
senciais; (ii) falta de capital social; (iii) saúde precária e fra-

11. Veja o documento do G20, 2005.

126
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

ca oportunidade na educação; (iv) falta de bens de consumo


e deficiente acesso aos recursos produtivos. Iremos analisar
apenas algumas destas percepções, mas é importante assina-
lar que esta categorização é simultaneamente marcada pelo
mapeamento de um conjunto de bens materiais, financeiros,
políticos e de serviços que, de acordo com o grau da facilidade
ou dificuldade no seu acesso, determina também, na óptica
dos entrevistados, quem deve ser entendido como pertencen-
do a uma classe rica ou pobre. O discurso sobre a pobreza é
construído em torno de um binômio rico/pobre e vice-versa.
Muitas destas características da pobreza são vistas simul-
taneamente como causa e consequência, sublinhando o seu
caráter dinâmico, complexo e inter-relacionado.

2.3 Falta de dinheiro e de fontes de rendimento e meios de vida

Na ótica dos entrevistados que constituíram alguns gru-


pos focais de homens, a ausência de meios seguros e estáveis
para se sustentar, isto é, não possuir um terreno para produzir,
não ter emprego e, consequentemente, não ter dinheiro para
desenvolver outra atividade, emerge frequentemente como in-
dicador de pobreza e enfatiza a natureza cíclica e sazonal da
pobreza. Com efeito, apesar do emprego assalariado não ser
a solução única para a obtenção de meios de sobrevivência no
meio rural, para os entrevistados a precariedade, a ausência e
a escassez de um mercado de trabalho no local torna-os po-
bres. Por outro lado, a própria instabilidade da produção agrí-
cola em função de secas e cheias, oferece poucas possibilidades
de acumulação.
Entre os jovens abordados nos grupos focais, ser pobre, de
uma forma geral, é equivalente a não possuir uma fonte de
rendimento (emprego formal ou informal). Especificamente,
enquanto jovens com sonhos, espírito empreendedor e força
característica da juventude, pobreza é sinônimo de fraca ou

127
Leandro R. Pinheiro (Org.)

total ausência de oportunidades para aplicar as capacidades


físicas e intelectuais de que dispõem.
As concepções de pobreza por parte de homens e mulhe-
res convergem no que tange, por exemplo, à associação desta
com a falta de recursos financeiros, mas foi possível identificar
alguns padrões contrastantes nas percepções/ideias sobre po-
breza. Para as mulheres separadas ou divorciadas, não obstan-
te o trabalho árduo por si desenvolvido na agricultura, a difi-
culdade em obter receitas ou o controle das terras a pobreza
está diretamente associada à falta da presença masculina, par-
ticularmente pela possibilidade dos homens poderem ter aces-
so a um trabalho remunerado e a trazer dinheiro para casa.
A função de provedor continua a ser associada ao papel
da pessoa tida como a de referência na família. E, como esse
papel é de atribuição masculina, a função de provedor conti-
nua também a expressar a figura masculina. Essa associação
contribui para que presença da mulher-cônjuge, que obtém
receitas, não tenha visibilidade. Por outro lado, a presença ain-
da pronunciada de parte do conjunto das mulheres na catego-
ria de dependentes econômicas conduz, em grande medida,
à permanência da associação entre a função de provisão, o
elemento de referência na família e a figura masculina. Para
além disso, a falta de rendimentos agrícolas deriva também
da impossibilidade das mulheres terem o controle de recur-
sos, como a terra, uma vez que elas acedem à mesma por via
masculina e têm pouco poder de decisão sobre ela. Acredita-se
que é infrutífero atribuir terras a quem vai pertencer a outro
grupo e os direitos de acesso a ela dependem da duração da
união matrimonial.
Para 30% das informantes entrevistadas nos grupos focais
de mulheres e em quatro agregados familiares em Gaza que
têm chefias femininas, a verdadeira pobreza significa ser viú-
va. Sublinham assim a dependência em relação ao provedor,

128
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

não tendo elas capacidade de prover os seus filhos com as ne-


cessidades básicas e meios de sobrevivência.
Mulheres chefes de agregado consideram-se pobres por-
que vivem sozinhas sem marido. De acordo com as suas decla-
rações, “uma mulher casada conta com a ajuda do seu marido
na busca de meios alternativos nos tempos de fome, enquanto
que uma mulher solteira e viúva faz tudo sozinha, o que lhe (a)
coloca em desvantagem”.
Por detrás desta concepção, está a ideia de que a família
monoparental materna não é nem estável nem legítima, como
aquela em que os dois cônjuges estão presentes, o que reforça
o poder masculino uma vez que o homem é o chefe do agre-
gado e o provedor.
As concepções de pobreza, em toda a sua dinâmica, inte-
ragem com construções locais e, nesse processo, as percepções
e os comportamentos sociais masculinos e femininos também
se revelam. Apesar de algumas transformações nas relações fa-
miliares, esta situação indicia a manutenção das características
hierárquicas nas famílias e a coexistência de formas assimétri-
cas de interação nas quais as relações de gênero se constituem
e se recortam.

2.4 A falta de bens de consumo essenciais

O camponês que trabalha durante todo o ano e não pro-


duz alimentos (ou seja, o que no fim da campanha não con-
segue colher quase nada por falta de chuva) ou aquele cujo
produto é comprado a preços muito baixos pelos comerciantes
locais, é tido como pobre. Na verdade, acabam ambos por não
ter o que comer, carecendo de ajuda. Ligam assim a pobre-
za à necessidade de independência social. Um pobre é aquele
que necessita da ajuda de outros, sendo totalmente incapaz
de retornar essa mesma ajuda. O pobre que não tem bens

129
Leandro R. Pinheiro (Org.)

de consumo não pode reproduzir-se socialmente, tornando-se


insignificante, também, em termos sociais.
A falta de determinados bens como motocicletas, bicicle-
tas, uma casa coberta de chapas de zinco, vestuário e calça-
do, representam, na ótica dos homens (distritos de Pebane e
Chokwé), um elemento fundamental na definição de pobre-
za. Em Pebane, um informante estabeleceu uma comparação
entre os pesquisadores e ele próprio afirmando severamente:
“Vocês trazem sapatos e nós estamos descalços e ainda per-
guntam o que é ser pobre. Será que não conseguem ver a dife-
rença? Ou vêm brincar conosco?”.
Uma mulher sem capulanas12, esteira e casa mobiliada é ci-
tada como sendo pobre. A capulana, neste contexto social, é
um produto de prestígio e o homem demonstra o seu afeto e
apreço pela esposa oferecendo-lhe capulanas com alguma re-
gularidade mesmo que ela não as use frequentemente. Nesta
ordem de ideias, a capulana aparece referenciada pelas mulhe-
res como um bem importante de diferenciação social, uma vez
que, sendo um bem de prestígio, a sua obtenção com alguma
regularidade pressupõe um certo desanuviamento em termos
financeiros. Ou seja, em primeiro lugar, perante as dificulda-
des com que se debatem para a sua sustentabilidade, o mais
importante é canalizar os parcos recursos para as necessidades
básicas e só depois, e muito remotamente, adquirir aqueles
bens. Os agregados que o fazem sem muitos constrangimentos
aparecem como pertencendo a uma categoria social elevada.

2.5 A falta de capital social

A pobreza tem uma dimensão social e a deterioração das


relações no nível das famílias, que se consubstancia na falta
12. Nome dado a um pano que, tradicionalmente, é usado pelas mulheres para
cingir o corpo, fazendo as vezes de saia, podendo ainda cobrir o tronco e a
cabeça.

130
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

do marido, é considerada como um sinal de pobreza, como já


referimos. Na percepção de pobreza que emerge das entrevis-
tas realizadas salienta-se o isolamento, o abandono motivado,
por um lado, pelas redes de solidariedade fracas no nível co-
munitário e de vizinhança, mas por outro, pela dificuldade de
usufruir de maior ajuda por parte dos serviços sociais.
A falta de solidariedade, de confiança, de valores morais e
cívicos em degradação foram também aspectos sublinhados.
Eles são percebidos como estando a minar a capacidade para
criar redes, associações e outras formas de colaboração que
possibilitariam a luta e a defesa de interesses comuns como a
disputa por preços mais justos para os seus produtos.
A solidariedade familiar expressa-se principalmente atra-
vés de ajudas de subsistência, ou seja, apoios em relação aos
serviços que possibilitam a preservação de uma autonomia mí-
nima no modo de vida e em iniciativas individuais. As infor-
mações disponíveis e as inferências possíveis permitem iden-
tificar que os apoios parecem ser constitutivos da identidade
feminina e são praticados visando garantir a proximidade
entre gerações, o que indicia uma tendência sociologicamen-
te analisada de uma relação/vínculo privilegiado entre mães-
-avós e filhas-mães.
Na vida cotidiana dos que vivem com poucos recursos, no
plano do núcleo familiar, as redes constituem setores impor-
tantes de sobrevivência e é nelas que os alimentos e favores são
obtidos e trocados, criando-se esferas cruciais de manutenção
das famílias. Mas as redes são baseadas na reciprocidade, algo
que os pobres nem sempre são capazes de oferecer.
No nível familiar, e de acordo com os informantes, a de-
gradação dos valores leva ao abandono das crianças pelos seus
progenitores. Assim, mulheres solteiras e casadas com filhos
abandonados pelos seus maridos integram também a categoria
dos que são considerados pobres. Crianças criadas em famílias
monoparentais maternas sofrem o impacto da ausência do ca-

131
Leandro R. Pinheiro (Org.)

pital social que deveria estar disponível nas relações familiares e


sociais em função da ausência física ou emocional dos pais. As-
sim, mães solteiras e mulheres chefes de agregado consideram-
-se pobres porque vivem sós, sem assistência social e financeira.
Para as comunidades, as famílias monoparentais são perce-
bidas como desviantes, pobres, porque reveladoras de processos
de inadaptação, com custos sociais significativos. A ruptura con-
jugal representa um risco de exclusão face aos comportamentos
tidos como normais, ou seja, é concebida como um comporta-
mento familiar anômalo perante os modelos familiares vigentes.
Foi interessante verificar a situação de pobreza nas famílias
recompostas. Para as mulheres com filhos abandonados pelos
maridos, uma segunda união é desejada, pois permanece a
ideia de que é melhor a criança ser educada por ambos os pais.
As famílias recompostas poderiam constituir uma alternativa,
isto é, um cenário possível de saída numa situação de debi-
lidade econômica e instabilidade social. Mas estas implicam
sempre um conjunto de transições familiares que emergem
após uma separação ou divórcio, pressupondo a presença de
crianças oriundas de uma relação anterior e um padrasto ou
madrasta. A recomposição familiar poderia implicar o suporte
econômico fazendo face ao empobrecimento após a separação.
Mas a nova união não significa necessariamente que o novo
parceiro vai assumir a responsabilidade com o cotidiano de
criação das crianças e o seu sustento financeiro. A pensão de
alimentos deve ser dada pelos pais biológicos e é tida como
um compromisso particular e do interesse estrito daqueles. Os
relatos femininos expressam o receio de que os filhos do primei-
ro casamento sejam rejeitados pelo novo companheiro, o que
pesa no momento de decidir sobre um novo relacionamento.
Os homens tendem a atribuir importância aos laços de sangue,
estabelecendo diferenças entre os filhos biológicos e os que o
não são. Na verdade, o relacionamento pai-filho é um vínculo
construído ao longo da convivência dos homens com a sua pro-

132
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

le contando com a mediação da mãe. O laço de afinidade esta-


belecido pelo novo casamento não define um tipo de compro-
metimento dos homens com filhos que não são dele e que estão
adstritos ao contexto da nova aliança conjugal. É um vínculo
circunstancial em que as lealdades são estabelecidas pelo tipo
de relação de afeto desenvolvido entre os filhos e o marido da
mãe. O processo de recomposição familiar pode ser afetado pe-
las tensões e conflitos presentes no contexto da conjugalidade.
As informantes de sexo feminino referem ainda que mulhe-
res com maridos alcoólatras enfrentam as mesmas dificuldades
que as viúvas, apelidando-se de “viúvas de maridos vivos” (que
retiram o pouco do rendimento familiar para o consumo do
álcool). Por exemplo, uma mulher portadora de deficiência e
com um marido alcoólatra e com seis filhos por cuidar, e li-
dando com situações de abuso, considerou-se pobre por ser
incapaz de fornecer aos seus um ambiente seguro, confiante e
sustentável que nutre o capital social. Ela afirmou:

O meu marido não ajuda em nada, pelo contrário, retira


os poucos rendimentos da família, que são os excedentes
de produção, para a aquisição de bebidas alcoólicas de
fabrico caseiro.

Uma das consequências óbvias deste ambiente familiar, se-


gundo a entrevistada, é o fraco desempenho escolar dos seus
filhos. As crianças recusam-se a ir à escola e a fazer os deveres
de casa. A estabilidade familiar, neste caso, é ameaçada pois
se torna difícil ter dinheiro disponível para a aquisição de ali-
mentos. Pelo não fornecimento do capital social, os parentes
inadvertidamente interferem na habilidade das crianças atin-
girem o seu potencial educacional, aumentando a probabili-
dade de enfrentar dificuldades econômicas ao longo da vida.
Uma das entrevistadas afirmou que se conforma com as
ações do seu parceiro e não denuncia os seus abusos porque

133
Leandro R. Pinheiro (Org.)

ele é o chefe da família. Escolhas sobre manter ou criar ruptu-


ra na relação estão ligadas a ideologias acerca do gênero e da
família. Os esforços desenvolvidos pela família para a manter
unida ignoram ou tornam obscuras as desigualdades estrutu-
rais. Por outro lado, vítimas da situação traumática, como esta
mulher sujeita a abusos, normalmente desenvolvem mecanis-
mos de defesa como estratégias de sobrevivência. Os mecanis-
mos acionados são a dissociação do pensamento, a negação de
sentimentos, o que exerce um efeito mutilador sobre as capaci-
dades cognitivas e sobre a capacidade de ação efetiva (Banchs,
1995, citado por Narvaz e Kollher, 2006). A vergonha de que
deveria ser portador aquele que a agrediu volta-se contra a
mulher e silencia-a, fazendo com que ela se torne parte da
rede que sustenta a dominação (Bourdieu, 1998).
A mulher estéril é também pobre pois a maternidade é o
eixo sob/através do qual as mulheres da comunidade orga-
nizam as suas vidas, num contexto de sexualidade inibida e
orientada para a procriação. A condição de mãe determina
uma mudança significativa nas relações das mulheres com a
sua família e com a sua rede de relações mais ampla. Um casa-
mento, para ser considerado estável, necessita de filhos para lhe
dar sentido. Os sacrifícios ligados ao cuidado das crianças ser-
vem para fortalecer e embelezar a imagem pública da mulher.
Alguns dos informantes trouxeram à luz a dimensão psico-
lógica da pobreza, como o estigma e perda de dignidade. Um
homem abandonado pela mulher e pelos filhos, em Xilembe-
ne, Chokwé, considerou-se como parte de uma das categorias
mais pobres do bairro, porque vivia sozinho sem ninguém que
o ajudasse nos momentos mais difíceis, isto é, em caso de doen-
ça ou na necessidade de ajuda para efetuar qualquer trabalho.
A centralidade da figura feminina e materna nas famílias
foi aqui sublinhada pois permanece a ideia de que manter
uma família unida é característica da mulher e da sua capaci-

134
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

dade de “segurar as pontas” – em vários sentidos, em termos


de afetividade ou de saberes para lidar com problemas do co-
tidiano. Na verdade, elas desenvolvem, no cotidiano, estraté-
gias de sobrevivência e de gestão dos seus parcos rendimentos,
ajustando-os aos seus níveis de consumo e de redistribuição.

2.6 Causas narradas para a pobreza

As causas da pobreza são diversas e podem ser agrupadas


de acordo com um conjunto de características predominante-
mente pessoais e sociais como sejam a morte do marido (para
as viúvas), o provedor e responsável pelo seu bem-estar, segun-
do as concepções vigentes: a pouca saúde, o alcoolismo, a falta
de oportunidades e serviços, o desemprego, a falta de crédito
e a distorção do mercado (altos custos dos insumos agrícolas,
mas baixos preços ao produtor), para além de causas ambien-
tais e naturais como seja a seca ou as cheias.
Ainda no que tange às causas da pobreza, a corrupção, o
não respeito pelos cidadãos e pelos seus direitos surgem igual-
mente com certa ênfase. Estes fenômenos limitam o acesso ao
emprego, bloqueiam o acesso aos serviços que são devidos aos
cidadãos, conduzem ao colapso das instituições estabelecidas
para o bem-estar das comunidades e criam constrangimentos
no acesso aos recursos.

Considerações finais

As pessoas não são vítimas passivas da pobreza

Não obstante as mudanças ocorridas que tendem a uma


melhoria no acesso a alguns serviços (educação, saúde, água)
estas não tiveram um impacto profundo no cotidiano das co-
munidades e na redução da pobreza. Oitenta por cento dos
chefes de agregados familiares da zona rural sustentam que a

135
Leandro R. Pinheiro (Org.)

pobreza aumentou em função do acentuado declínio da pro-


dução agrícola, da redução acentuada de postos de trabalho
devido ao encerramento das fábricas e das dificuldades de aces-
so ao crédito, o que leva a inferir que esforços redobrados de-
vem ser empreendidos para transferência de maiores recursos
e oportunidades para as comunidades estudadas. Na verdade,
elas desenvolvem no cotidiano estratégias de sobrevivência e de
gestão dos seus parcos rendimentos ajustando-os aos seus níveis
de consumo e de redistribuição. Homens e mulheres procuram
obter receitas através de trabalho sazonal, por vezes irregular,
para fazer face ao ciclo da pobreza. Contribuem assim com
o seu labor ou meios materiais para vencer as dificuldades de
sobrevivência diária, estando desta forma em posição de se in-
tegrarem de forma ativa e construtiva nas intervenções de de-
senvolvimento e de combate à pobreza absoluta.

A Lei de Família, percepções de pobreza e as relações no


agregado familiar

Ao se adequar a Lei de Família (2004) à Constituição da


República e aos demais instrumentos de Direito Internacio-
nal, eliminaram-se as disposições legais que sustentavam a de-
sigualdade de tratamento nas relações familiares.
A Lei de Família introduziu outras modalidades de casa-
mento que salvaguardam os legítimos interesses das partes e
dão mais consistência à convivência das populações. Para além
do casamento civil, ela reconhece o casamento religioso e o
casamento tradicional, desde que sejam monogâmicos, garan-
tindo assim, os direitos da mulher na constância da conjugali-
dade. Tratando das relações no interior do agregado refere que
ambos os cônjuges têm responsabilidade pela família e podem
representá-la e administrar os seus bens de modo igual. É de
salientar que a Lei de Família consagra, como fundamentos
para divórcio, a violência doméstica e o adultério. Na verdade,

136
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

se implementada largamente, pode ter efeitos significativos e


trazer mudanças cruciais para os direitos da mulher, quer a ní-
vel dos processos de decisão, como dos direitos de propriedade.
Mas os resultados apresentados acima permitem concluir
que as desigualdades de gênero e de poder continuam a determi-
nar e a estruturar as ações e os processos de tomada de decisão.
O sexo é determinante nas decisões e responsabilidades,
controle dos rendimentos, educação dos filhos. Há importantes
consequências no bem-estar das famílias provenientes destas
discrepâncias e poderes desiguais entre homens e mulheres. O
poder de decisão baseado no gênero é uma questão de direitos
e equidade, mas tem importantes consequências em termos de
desenvolvimento e combate à pobreza. As evidências mostram
como o controle dos rendimentos por parte das mães tem um
efeito nas despesas de consumo, na melhoria dos níveis de nu-
trição, no acesso à escola por parte das meninas, etc.
Por outro lado, é grande o desconhecimento da Lei de
Família e os direitos nela contidos, por parte da maioria da
população entrevistada, o que torna igualmente difícil a sua
implementação.
Devido à multiplicidade de pontos de vista sobre o que é a
pobreza e as suas causas não é possível avançar com uma sim-
ples definição de pobreza e qualquer tentativa nesse sentido
seria desvalorizar a contribuição de todos quantos se digna-
ram a dar o seu parecer.
A pesquisa revela que o conceito de pobreza é diverso, va-
riando de acordo com os informadores, com a percepção indi-
vidual no tocante à sua posição socioeconômica e à influência
do sistema social onde estão inseridos nas/as suas ações. Tudo
isto resulta na impossibilidade de avançar com uma única de-
finição de pobreza. Todavia, certos traços comuns podem ser
identificados, pois as definições ligam-se à falta de bens essen-
ciais, de dinheiro, à ausência de bem-estar, à falta de acesso a
recursos produtivos, à falta de roupas (nomeadamente de ca-

137
Leandro R. Pinheiro (Org.)

pulanas), mas igualmente a elementos não tradicionais como


a exclusão social (no acesso a serviços e infraestruturas), o in-
fortúnio, o isolamento e a solidão. Estas percepções levam-nos
a inferir que o conceito de pobreza está associado não apenas
à posse de bens materiais e rendimentos, mas, igualmente, a
relações sociais mais estáveis e a uma maior intervenção do
Estado na provisão de condições econômicas e sociais condu-
centes ao seu desenvolvimento.

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140
Produção audiovisual com celular – periferias,
gambiarras e deslocamentos estéticos1

Liliane Leroux
Anne Clinio

1. De filmes engajados politicamente para os filmes das


periferias

A história do audiovisual – no Brasil e no mundo – tem


sido profundamente marcada pelo elitismo. Para além de as-
pectos materiais e tecnológicos, no que concerne à produção,
os recursos humanos necessários para fazer um filme frequen-
temente exigem formação profissional em onerosas escolas es-
pecializadas. No Brasil, o acesso a essas escolas, não raro situ-
adas no exterior, sempre pressupôs a necessidade de recursos
financeiros pessoais para cobrir tanto uma formação técnica
quanto cultural – de ampla base literária, teatral e cinema-
tográfica. Pouquíssimos diretores, artistas ou técnicos alcan-
çaram o sucesso somente através de seus próprios talentos e
esforços, sem contarem com recursos e acesso (usualmente de
berço) a um seleto e abastado círculo social.
Os tipos de filmes produzidos também exibem outros tipos
de exclusão, principalmente em grandes centros de produção
– com a liderança de Hollywood nessa tendência. Considere-
mos a ausência de atores negros em muitas das listas de elen-
co, ou a falta de roteiros relacionados à realidade social dos

1. Artigo publicado originalmente em inglês em: The Journal of Pervasive Media, v.


02, 2013. Versão para o português: Bruna Dalmaso Junqueira.

141
Leandro R. Pinheiro (Org.)

locais retratados. Consideremos também filmes idealizados


simplesmente como produtos da indústria do entretenimento
e as formas em que o hemisfério sul tem sido retratado na
maioria dessas produções – um mix de referências culturais dos
diferentes países, em que latinos e negros são representados de
forma genérica, amiúde próximo de caricaturas.
Esta situação foi parcialmente interrompida por movimen-
tos que surgiram após a Segunda Guerra Mundial. Tendo iní-
cio no Neorrealismo Italiano, os movimentos se espalharam
em todo o mundo, através dos “cinemas novos” de países como
Brasil, Argentina, Cuba, Alemanha, França, Portugal, Japão,
e até mesmo produções independentes dos Estados Unidos. O
objetivo comum de todas essas manifestações era romper com
a glamorosa linguagem imposta pela estética de Hollywood e
abordar o cinema como um veículo artístico e político. Ain-
da assim, os filmes do cinema novo foram feitos por e para
as classes média e alta, atingindo apenas superficialmente as
classes mais baixas. Como expressão política, esses filmes rede-
senharam fundamentalmente a estética cinematográfica. No
entanto, tal expressão era construída majoritariamente por
uma classe de produtores sensíveis às mazelas das pessoas e
lugares desfavorecidos, mas com uma voz e olhar vindos de
fora ou mesmo “de cima”. Buscava-se “revelar” as condições
de opressão que os oprimidos não seriam capazes de perceber
sozinhos sem o discurso provocador dos intelectuais. Além dis-
so, havia um propósito educacional (conscientizador), no qual
os excluídos raramente tiveram a permissão para usar sua pró-
pria perspectiva e voz.
Na década de 1970, estes movimentos se desdobraram em
iniciativas que deram voz a pessoas e grupos que anteriormente
eram apenas retratados. Mais tarde, com o aumento da aces-
sibilidade, custos decrescentes e a facilidade de uso de tecnolo-
gias de imagem, houve um encorajamento de novas iniciativas
que pareciam tentar mudar a trajetória do chamado cinema

142
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

social, propondo não somente “dar voz”, mas também “pro-


mover autoria”.
Lúcio H. Aguiar (2005) marca o ponto de partida da pro-
dução audiovisual local no Brasil com o Cinema de Rua – esti-
lo criado pelo cineasta João Batista de Andrade, que trabalhou
em A Hora da Notícia, um programa de TV produzido com
os jornalistas Fernando Pacheco Jordão e Vladimir Herzog,
diretor do Departamento de Notícias da TV Cultura, em São
Paulo. Tudo começou quando Andrade percebeu que o came-
raman que cobria um conflito entre a polícia e moradores de
uma favela não gravara entrevistas com a população local. No
dia seguinte, ele voltou para a favela, onde o fato ocorrera,
para reunir depoimentos de moradores.
O resultado final foi uma produção artesanal em preto e
branco, 16 mm e som direto, que alternava imagens da bru-
talidade policial e a narrativa dos moradores, captada pelas
entrevistas realizadas posteriormente por Andrade. Ele intro-
duziu o ponto de vista do povo em produções audiovisuais e
mudou o estilo de programas de notícias na TV. Mais tarde,
banido da TV Cultura, Andrade continuou a produzir filmes
independentes, que contrastavam o discurso oficial da ditadu-
ra com a voz do povo. Seu estilo, o Cinema de Rua, influen-
ciou a produção brasileira de documentários.
Nos anos 1980, oficinas de vídeo começaram a ser ofereci-
das em escolas, comunidades pobres de todo o país e, inclusive,
aldeias indígenas. O surgimento simultâneo dessas iniciativas foi
interpretado por Carlos Alberto Mattos (2003) como um aflo-
ramento de expressão pessoal, que combina a ação pedagógica
com interesses antropológicos e políticos, permitindo que um
grupo de pessoas excluídas produzisse suas próprias imagens.
Na década de 1990, no Rio de Janeiro, surgiu o projeto
TV Maxambomba, desenvolvido pelo Centro de Criação de
Imagem Popular (Cecip) – a primeira organização não gover-
namental (ONG) a operar na produção popular de audiovi-

143
Leandro R. Pinheiro (Org.)

sual. Liderada por um grupo de intelectuais dos campos da


educação e do audiovisual, a TV Maxambomba produziu e
exibiu, nas áreas mais pobres da cidade de Nova Iguaçu, fil-
mes que misturavam documentário, telenovela e humor, a fim
de abordar questões que os intelectuais consideravam relevan-
tes para a população local: saúde, sexualidade, desemprego,
educação, racismo, meio ambiente, direitos dos cidadãos, etc.
(Cecip, 2001).
Embora não fosse uma produção própria da comunidade,
a TV Maxambomba buscava estimular sua participação. A
equipe circulava pelas ruas em uma Kombi, com uma câmera
e um projetor, registrando experiências e problemas da vida
local, recolhendo depoimentos e relatos de moradores. Depois,
os vídeos produzidos eram apresentados, divididos em tópicos,
cada um com pausas para discussões com a audiência – uma
estratégia que buscava provocar o despertar da população para
uma maior compreensão de seus direitos (Dagron, 2001). Se a
TV Maxambomba remodelou a experiência de cinema itine-
rante, transformando espectadores em debatedores, ainda as-
sim, os membros da comunidade seguiam sujeitos aos sentidos,
informações, formatos e linguagem considerados importantes e
necessários pelos produtores, diretores e educadores.
A última entre as experiências de “dar voz” a ser men-
cionada é a “videocabine”, um experimento conduzido nos
anos 1990, pela cineasta Sandra Kogut. O trabalho consistia
na montagem de videocabines em vários pontos do Rio de
Janeiro, com o intuito de registrar os desejos de pessoas anô-
nimas de qualquer idade, sexo, raça ou classe social. No vídeo
que registra essa experiência, intitulado “Videocabines são
caixas-pretas” (Kogut, 1990), 1440 autores anônimos/atores
registraram os seus desejos em curtos vídeos, não maiores que
30 segundos, produzindo uma ampla variedade de discursos.
A variedade dos registros ia desde meras imitações de artistas

144
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

famosos ou interpretações de composições próprias até reco-


mendações, reclamações e denúncias.
No início do século XXI, o desenvolvimento e a difusão de
tecnologias de fácil acesso e baixo custo permitiram um aumen-
to das iniciativas (geralmente promovidas por ONGs) que fize-
ram da expressão cinematográfica o núcleo de sua ação social,
que já analisamos em pesquisas anteriores (Leroux, 2008, 2010,
2015). Tais iniciativas, voltadas para a camada mais pobre da
população, tomaram a forma de “escolas” e mesclavam uma
formação técnica em cinema com um certo “civismo de resulta-
dos” ao induzir as temáticas dos filmes produzidos pelos alunos
em torno de assuntos tidos como próprios a um “projeto social”
(cidadania, empreendedorismo, gravidez na adolescência, dro-
gas, saúde, exclusão social etc.). Dessa forma, optavam por uma
construção pedagógica e não pela experiência artística.
Da mesma maneira, caso esses novos cineastas intentem
entrar no mercado audiovisual, espera-se deles um tipo de
produção restrita aos “assuntos de periferia”, como violência,
drogas, etc. – o que gera uma forma mesquinha de inclusão
na qual o status socioeconômico, o local de origem ou a cor da
pele dos autores determina e impõe um gênero: os filmes de
periferia, favela movies, films from the ghettos… Fica claro que esse
tipo de iniciativa denota uma organização padronizada de ex-
periências, assim como uma ideia de uma natureza humana
organizada hierarquicamente, que corresponde à classificação
de indivíduos que representam.
Como afirma Rancière, citando Aristóteles, “[...] o destino
supremamente político do homem é atestado por um sinal, a
posse do logos, isto é, do discurso que expressa, enquanto a
voz simplesmente indica” (1995, p. 17, tradução nossa). Ou
seja, ainda que lhes seja concedida uma voz ou atribuída uma
autoria, aqueles cujas vidas têm uma posição social desvalori-
zada seriam, nesta perspectiva, apenas capazes de considerar
as necessidades da vida e expressar seu próprio sofrimento.

145
Leandro R. Pinheiro (Org.)

Neste enfoque, infelizmente bastante comum, pessoas pobres


não teriam tempo a perder com conjecturas e deambulações,
com ações e pensamentos nômades, erráticos ou desinteres-
sados. A questão “política”, no caso dos pobres, seria limita-
da a “ter voz” unicamente para reivindicar o necessário. A
voz das pessoas pobres, até em iniciativas que querem “dar a
voz”, estaria restrita ao vivenciado e ao útil, enquanto artistas
e intelectuais estariam – estes sim – autorizados a expressar o
pensamento universal.
Em outras palavras, se um indivíduo em posição social
desprivilegiada arrisca-se a fazer cinema, espera-se que a sua
produção limite-se a temas esperados de sua “vivência” nas
favelas e periferias. O fato de “morar no tema” seria a sua
credencial de entrada aceita no restrito mundo da arte. O
vídeo de Hennessy Youngman intitulado Como Ser um Artista
Negro Bem Sucedido (2010) critica este tipo de “inclusão”, dan-
do irônicas dicas para ajudar jovens negros a serem incluídos
no “Mundo Branco da Arte”. Youngman sugere que artistas
negros reforcem estereótipos, o caminho certo para a aceita-
ção da audiência branca. O vídeo sugere, por exemplo, que
negros se apresentem como “o outro exótico”, empregando
formas de falar que expressem raiva e outros clichês. Além
disso, encoraja que tirem proveito da escravidão como “o
ouro do discurso negro”, uma vez que os brancos, como um
todo, não possuem dramas universais que possam se tornar
arte (Youngman, 2010).
Nossa crítica se manifesta em dois pontos: por um lado, na
ideia de uma cultura livre para experimentação apenas para
membros de uma esclarecida elite; e, por outro, na noção de uma
cultura periférica popular sempre unitária e idêntica a si mesma.
No sentido contrário à tendência que delineamos, e den-
tro da perspectiva que desenvolvemos até o presente ponto,
nossa hipótese tem sido de que, em uma sociedade hierár-
quica, desigual e altamente especializada como a nossa, não

146
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

haveria maior transgressão do que o chamado por Rancière


(2000, p. 21) de “competência dos incompetentes” ou “o po-
der de quem quer que seja”. Tais improvisações introduzem
uma disfunção dentro do que é entendido como “normal” em
uma dada lógica social e que difere radicalmente de qualquer
ideia de “inclusão”, já que esta exige a adesão à ordem pré-
-existente. Ao invés disso, põe-se o caso de “incluir-se fora”
– algo que consideramos de maior importância. Mas fora de
quê? A resposta talvez seja: fora de forças reativas e reacioná-
rias que obstruem nosso devir; fora do que Rancière (2009a,
2009b, 2009c) define como um sistema de uma estética a
priori que delimita as modalidades do senso comum. Romper
com este senso comum e escapar das condições habituais de
nossa experiência exige uma ruptura com a estética a priori
na direção de outra estética.
Assim sendo, interessa-nos o movimento presente nas peri-
ferias, no cenário da produção artística audiovisual contempo-
rânea, que funda essas improvisações, heterotopias e rupturas
estéticas. Em nossa compreensão, tais feitos podem desestabili-
zar potencialmente modos cotidianos de existência; desfazer o
arranjo das hierarquias presentes em um mundo sensível que
é organizado e mantido pelo estado de coisas; e, quem sabe,
colocar em jogo posições novas e móveis.

2. Tecnologias móveis e rupturas estéticas

Com a recente diminuição das desigualdades sociais e a


expansão da classe média no Brasil para 90 milhões de pesso-
as, os telefones celulares equipados de câmeras fotográficas se
tornaram onipresentes. Com uma população de pouco mais
de 200 milhões de habitantes, o país tem 258 milhões de li-
nhas ativas de telefonia móvel (Anon, 2012a). De acordo com

147
Leandro R. Pinheiro (Org.)

a União Internacional das Telecomunicações (UIT)2, o Brasil


é o sexto maior mercado mundial de telefonia móvel e o quar-
to maior no uso de telefones celulares – atrás de China, Índia
e Estados Unidos.
O pagamento de aparelhos em longas prestações de menor
valor e o sistema pré-pago propiciam um crescente acesso a te-
lefones celulares e a multiplicação de registros audiovisuais. De
acordo com um artigo publicado em um grande jornal brasi-
leiro (Anon, 2012b), os novos hábitos de consumo das classes
mais baixas no Brasil incluem agora o registro de imagens com
câmeras digitais, telefones celulares e notebooks. Essas popula-
ções não são mais apenas objeto de registro, mas produtoras
do seu próprio universo de imagens em escala crescente.
Tecnologias ubíquas, portáteis e móveis, equipadas com
recursos audiovisuais – tais como celulares, notebooks, pods e
pads, todos conectados através de redes Wi-Fi – têm sido in-
corporadas no cotidiano de um número cada vez maior de
pessoas. Dentro da chamada cultura da mobilidade, essas tec-
nologias têm permitido não apenas o consumo de conteúdo
audiovisual, mas também sua produção e distribuição des-
centralizada através de plataformas de transmissão: YouTube,
Instagram, aplicativos e outras formas de mídia pós-massiva.
Elas têm engendrado um sistema transversal de produção e
distribuição que cresce vertiginosamente a cada dia.
As tecnologias móveis, especialmente os telefones celula-
res, são permeadas pelo estímulo do “faça-você-mesmo”. De
acordo com Felix Stalder (2009), a origem desse tipo de mídia
remonta ao fim dos anos 1960, em que tecnologias de infor-
mação e comunicação fáceis de manusear e econômicas che-
garam, permitindo sua apropriação para a expressão daqueles
que se consideravam pouco ou mal representados pelos veícu-
los de comunicação de massa.

2. Citada por Teleco (Anon, 2012a).

148
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Esta primeira fase foi especialmente relevante no contexto


das lutas das minorias (sociais, culturais e étnicas) e na pro-
pagação de meios de comunicação comunitários baseados no
rádio e na TV. Nas décadas seguintes (1970 e 1980), a me-
lhoria das câmeras de vídeo permitiu o surgimento de TVs
piratas em toda a Europa. Em meados dos anos 1990, surgiu
a Internet, como uma plataforma que permitiria modificar as
limitações da transmissão unidirecional de um remetente para
um receptor. As novas possibilidades da World Wide Web pro-
piciaram o aumento da experimentação de uma nova geração
de artistas e ativistas.
O “faça-você-mesmo” possui uma ética imbuída de refe-
rências da cultura do punk e da tradição anarquista de auto-
gestão. Tal ética se expressa no popular slogan “DIY3 not EMI”,
em rejeição a grandes gravadoras, aí representadas pela multi-
nacional EMI. Jell-O Biafra, vocalista do “The Dead Kennedys”,
sintetiza tal ética a partir da premissa “Não odeie a mídia, seja
a mídia”, em um incentivo para a criação de novas formas de
comunicação com o público. Fanzines também surgem nesse
sentido, com uma estética caracterizada pelo uso de máquinas
de fotocópia, esquemas de produção independente e distribui-
ção de música através de correio.
Como A. Clinio (2011) sugere, há sinais de que a indús-
tria tentou recuperar o conceito de “faça-você-mesmo” pre-
sente na ética do punk ao elaborar produtos tecnicamente
mais acessíveis ao público em geral. Dessa forma, ampliou-se
o mercado consumidor, passando de um grupo de peritos com
o conhecimento técnico necessário para um público-alvo mais
amplo, capaz de usar equipamentos simplificados. Poder-se-
-ia considerar esta como uma tática industrial do faça-você-
-mesmo, algo próximo de um “não-me-faça-pensar”.

3. A expressão Faça-você-mesmo equivale, em Inglês, a Do It Yourself (DIY). A tra-


dução literal, portanto, seria “Faça-você-mesmo, não EMI” (Nota da tradutora).

149
Leandro R. Pinheiro (Org.)

No sentido oposto, o conceito brasileiro de “gambiarra”


(Rosas, 2006) parece ser mais potente. Trata-se de um pro-
cesso e também de um produto que aumentam a capacidade
dos sujeitos não através da simplificação do aparelho, mas a
partir da amplificação do conhecimento do indivíduo sobre
o artefato. Inventar uma gambiarra requer a abertura, des-
montagem e reconstrução da caixa preta – um processo de
experimentação por tentativa e erro, que estimula o savoir-faire,
a invenção e a adaptabilidade às condições dadas. Ou seja, a
gambiarra é um duplo processo de desmistificação da tecnolo-
gia e de exploração da inventividade do sujeito. Ela mobiliza
conhecimentos pré-existentes para então expandi-los a partir
da aquisição (não transmissão) de novas informações.
Não é difícil identificar a gambiarra como parte da cultura
nacional e expressão do famoso jeitinho brasileiro. Ela se faz
presente no cotidiano das pessoas cuja necessidade e falta de
recursos são fontes de criatividade e invenção. Na cultura po-
pular, a gambiarra é sinônimo do improviso que funciona na
resolução de problemas reais, em uma sociedade em que os re-
cursos são escassos para a maioria da população. A gambiarra
não se limita a um processo inventivo de reapropriação, adap-
tação e transformação de materiais disponíveis. É, sim, uma
forma alternativa de design, que permite a criação de soluções
improvisadas – temporárias ou permanentes – a demandas re-
ais. A gambiarra consiste no oposto de uma solução projetada
a partir de métodos pré-definidos.
Produtores audiovisuais desprovidos de recursos executam
operações em seus filmes de telefone celular que podem ser
interpretadas como gambiarras. Suas improvisações demons-
tram uma apropriação especial da tecnologia, que lhes permi-
te escapar radicalmente dos requisitos de equipamentos ade-
quados, além da obsolescência artificial criada pela indústria
eletrônica, que exige constantes incrementos e substituições
de dispositivos supostamente desatualizados. Marcio Belão

150
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

(2012), por exemplo, um cineasta brasileiro de tecnologias


móveis, ressalta a acessibilidade desses dispositivos e suas van-
tagens em relação ao equipamento convencional:

Você precisa de câmera, luzes e uma parafernália para


enviar a sua mensagem? Não. Você precisa de um telefo-
ne celular, luz natural e saber como enquadrar as coisas.
Eu me identifiquei com a produção de filmes com celula-
res porque é muito fácil.

Na experiência de Belão, na qual focaremos, a limitação


inicial dos telefones celulares desencadeou a criação de novas
linguagens estéticas que agora parecem ser mais interessantes
e vantajosas:

Eu gostei do celular, porque movimentar a câmera era


fácil. Você pode fazer movimentos mais suaves, ir e voltar,
sem qualquer peso para carregar. Eu comecei a realmen-
te gostar disso... E o celular dá à imagem uma textura que
as câmeras comuns não dão.

E ele acrescenta:

Para não ficar desajeitado, eu tive que trabalhar o aspecto


estético [...] Nós desenvolvemos um processo, uma lin-
guagem, testando enquadramentos... Chegar perto da
boca para capturar um bom áudio... E, aí, de repente
você percebe que colocar a câmera perto da boca se tor-
na uma linguagem em si... E nós fizemos um vídeo muito
bom! Eu gostei do processo e comecei a filmar com um
celular porque era o que havia disponível para mim. Eu
não tinha uma câmera boa. (Belão, 2012)

De acordo com Ricardo Rosas (2006), autor do conceito,


a gambiarra consiste em uma prática endêmica no Brasil. Ele
sugere o desenvolvimento de uma teoria sobre essa práxis, o

151
Leandro R. Pinheiro (Org.)

que exige que sejam descartados o preconceito e o esnobismo


para com camelôs e favelas.

A gambiarra é, sem dúvida, uma prática política. Tal


política pode se dar não apenas enquanto ativismo (ou
ferramenta de suporte para ele), mas porque a própria
prática da gambiarra implica uma afirmação política. E,
consciente ou não, em muitos momentos, a gambiarra
pode negar a lógica produtiva capitalista, sanar uma fal-
ta, uma deficiência, uma precariedade, reinventar a pro-
dução, utopicamente vislumbrar um novo mundo, uma
revolução, ou simplesmente tentar curar certas feridas
abertas do sistema, trazer conforto ou voz a quem são
negados. A gambiarra é ela mesma uma voz, um grito de
liberdade, de protesto ou, simplesmente, de existência, de
afirmação de uma criatividade inata. (p. 47)

A rejeição de toda a escassez que lhes é imposta e a per-


cepção de que “já que ninguém fará isso por você, faça você
mesmo” são a gênese da necessidade/criatividade vitais das
periferias brasileiras em suas diversas expressões culturais. De
ocupações de terras a “puxadinhos”, de “churrascos na laje”
ao samba, funk, hip hop e, também, aos filmes recentemente
produzidos por jovens com telefones celulares.
Fica evidente que a principal motivação para o uso de te-
lefones celulares na produção audiovisual é, sem dúvida, sua
acessibilidade de preços e de operação. No entanto, estes cine-
astas têm criado novas linguagens, tirando partido dessa tec-
nologia. Este fenômeno opera às margens do sistema, despreo-
cupando-se com regras, hierarquias e gêneros, permitindo sua
constante reconfiguração.
A arte e a tecnologia não especializadas provocam uma
tensão dentro do corpo social, que se estrutura por fronteiras
entre arte, técnica e público. Trata-se de uma ruptura que,
como acima analisada, não se configura necessariamente em

152
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

outra ordem social, mas em uma libertação de sensações e sig-


nificados dominantes, incorporados como os únicos possíveis.

Considerações finais

Deslocar-se no espaço urbano, intervir na cidade, tomar


posse das palavras, desempenhar o papel de narrador e exer-
cer o direito de perspectiva, produzir uma língua minoritária
dentro de sua própria linguagem, tornar o mundo e as palavras
disponíveis para uso fora de condições ou lugares predetermi-
nados: estes, acreditamos, são os elementos mais importantes e
interessantes das expressões de periferias urbanas. Todos esses
elementos são potencializados pelo uso de tecnologias móveis.
Incorporados na vida comum como novos dispositivos
culturais, estes objetos e práticas promovem expressões do
mundo e de si a partir de perspectivas também móveis. Novos
espaços emergem em conformidade ao que Foucault (2002,
2006) chamou de heterotopias – lugares em que as posições
de determinada cultura são simultaneamente representadas,
contestadas e invertidas. Tipos de “monstruosidades” como
as de Borges, que Foucault apresenta na abertura de seu livro
“As palavras e as coisas” como capazes de arruinar o lugar-
-comum de encontros em uma desordem que – pior do que a
do absurdo – faz reluzir os fragmentos de um grande número
de possíveis ordens na dimensão, sem lei nem geometria, do
heteróclito (Foucault, 2002: XII, grifo do autor). De acordo com
Rancière (2010, p. 21), heterotopias estéticas são rupturas en-
tre um lugar no espaço e sua posição na ordem ética de uma
comunidade, que originam um espaço de indeterminação –
um lugar que pode ser ocupado por “qualquer um”.
Consideramos que muitas experiências de produção e di-
fusão de conteúdos audiovisuais que proliferam em periferias
urbanas são heterotopias de ambos os tipos. O crescimento ex-
ponencial da produção audiovisual, devido ao barateamento

153
Leandro R. Pinheiro (Org.)

do equipamento cinematográfico e à apropriação de aparelhos


não convencionais de registro de imagem, tais como telefones
celulares, câmeras e tablets, renovou velhos debates sobre os
conceitos de arte e da imagem do artista. Isto se deve ao fato
de que, nestas novas experiências e, apesar dos regulamentos
platônicos e do fatalismo sociológico – segundo os quais, os po-
bres e trabalhadores devem sempre pensar, sentir e agir como
pobres e trabalhadores e nada mais (Rancière, 2003) –, é possí-
vel ser um pedreiro, uma dona de casa, um(a) estudante, um(a)
motorista, ou o que quer que seja, e possuir a sutil sensibilidade
de “escrever com luz” através da câmera de um telefone celu-
lar. Trata-se de uma ruptura, uma falta de identidade entre um
local (ethos, status social, classe, habitus) e um horizonte de afetos
(Rancière, 1988). Trata-se da capacidade comum a qualquer
um de experienciar qualquer tipo de vida ao transcender os
limites do que se espera de um corpo e seus afetos.
Esta questão é discutida por Belão (2009), em seu filme de
telefone celular Cores p1, que mostra a imagem distorcida de
uma pessoa que diz: “Por que você não está me ouvindo? Eu
não tenho a máxima inteligência possível? Eu não sou sábio
o suficiente para que você me ouça? Você vai ouvir apenas os
intelectuais? E eu? E a minha nação?”.
A dimensão política característica da arte se baseia na sub-
versão da ordem sensível ou, como definido por Suely Rolnik
(2006), em “abrir bolsões de ar no sensível”, que nos permitam
respirar. Rupturas estéticas são sempre políticas, uma vez que
desestabilizam a configuração do mundo sensível, introdu-
zindo um suplemento que antes não estava lá. Para Rancière
(2010), esse suplemento é sempre heterotópico por pressupor
a constituição de um espaço em que a distribuição de postos e
competências, locais e habilidades, é neutralizada, dando ori-
gem a uma autotitulação daqueles que insistem em participar
– de forma autorizada ou não – na configuração do comum.

154
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

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157
Juventude, políticas de correção de fluxo escolar e direito
ao uso da condição juvenil – o caso dos jovens
estudantes da EJA no município de Mesquita/Rio de Janeiro

Mônica Peregrino
Juliana Prata

Compreender a juventude atual é desvendar o mundo de


hoje. (Novaes, 2007)

Neste texto trazemos a público um debate, que, ainda em


processo de construção, busca lançar uma outra luz acerca
da forma com que podemos abordar (e utilizar) “juventude”
como categoria de análise de nossa sociedade. Para isso tra-
çaremos brevemente o “perfil” dos jovens e adultos que hoje
constituem o contingente de educandos daquilo que viemos
chamando de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Com isso,
buscaremos identificar, na EJA, as particularidades que mar-
cam a situação dos jovens envolvidos nesta modalidade de en-
sino. Em seguida, faremos uma breve discussão de modo a
tratar “juventude” como uma ferramenta analítica, tratando-
-a como “posição social” com o auxílio de dois autores: Karl
Mannheim e Pierre Bourdieu. Por fim, indicaremos um uso
possível desta ferramenta na análise das trajetórias escolares
de jovens pobres divididos em coortes geracionais: jovens-
-adolescentes de 15 a 17 anos, jovens-jovens de 18 a 24 anos
e jovens-adultos de 25 a 29 anos – estudantes da modalidade
no município de Mesquita, Baixada Fluminense, Região Me-
tropolitana do Rio de Janeiro (RJ). Buscamos, desta forma,

159
Leandro R. Pinheiro (Org.)

desvendar a potencialidade da análise da posição dos jovens


pobres no sistema escolar no intuito de contribuirmos para a
compreensão das trajetórias, sentidos e significados da esco-
la (e da EJA) para estes sujeitos em seus modos de transição
para a vida adulta em nossa sociedade. Ainda, trataremos do
efeito das políticas de correção de fluxo e da própria EJA para
os processos de escolarização e proteção social, especialmente
para os jovens-adolescentes de 15 a 17 anos.

1. Um breve perfil do atual contingente da EJA no Brasil1

Quando tentamos traçar um “perfil” do analfabetismo no


país, constatamos que ele é efeito das desigualdades étnicas,
geracionais e regionais que marcam o país. No Brasil, havia,
em 2006, 14,4 milhões de analfabetos. Praticamente 70% des-
ses analfabetos eram negros. A taxa de analfabetismo entre ne-
gros e pardos (14%) é maior do que o dobro daquela encontrada
entre brancos (6,5%). Pessoas com mais de 60 anos formavam 1/3
do contingente de analfabetos do país. No Nordeste a taxa de
analfabetismo (20,7%) correspondia ao dobro da taxa de anal-
fabetismo do país. Na zona rural, a taxa de analfabetismo era
de 24%. Na zona urbana a taxa era 3 vezes menor: 8%. Dentre
as mulheres a taxa de analfabetismo (10,1%) era menor do que
dentre os homens (10,6%). Quando tomamos os jovens de 15 a
24 anos, o dado acima fica ainda mais evidente. É que entre
mulheres jovens a taxa de analfabetismo (1,6%) era a metade da-
quela encontrada entre homens jovens (3,2%). Mas quando to-

1. Os dados referentes a esta discussão foram retirados do documento base na-


cional preparatório à VI Confitea, de 2008, feito, por sua vez, com base nos
dados da PNAD de 2006. Ainda que entendamos que os números absolutos
colhidos no ano de 2006 já estejam defasados em relação ao quadro encontrado
hoje, insistimos na validade da utilização do documento que serviu de fonte
para a discussão que realizamos, pela importância do quadro comparativo que ele
nos permite traçar, quadro este ainda válido para análises atuais.

160
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

mamos as faixas acima dos 50 anos, as mulheres ultrapassam


os homens. Entre mulheres mais velhas a taxa de analfabetismo
era de 24%. Entre homens mais velhos, a taxa era de 21,7%.
Estes números mostram o público potencial da EJA em
sua forma “clássica”: a da educação de adultos. Mostram ain-
da que nesta modalidade, a diversidade é produto direto das
desigualdades que abarcam os direitos políticos, sociais e eco-
nômicos no país.
Façamos um exercício: com base nos dados referentes ao
“perfil” do analfabetismo no país, perguntamos: quem são os
analfabetos? Verificamos então, que eles são predominante-
mente adultos e idosos, com importante participação das mu-
lheres, mais negros do que brancos, com distinção territorial
quantitativamente mais expressiva das regiões Norte e Nordeste,
e percentualmente mais expressivos nas áreas rurais.
Mas a EJA não é hoje constituída apenas de adultos anal-
fabetos. Essa modalidade de ensino vem sendo “alimentada”
com o ingresso de jovens egressos dos sistemas públicos regu-
lares de ensino.
Em virtude dos nossos altos índices de retenção, operamos,
no conjunto do país, com baixas taxas de conclusão. No En-
sino Fundamental, nossa taxa média esperada de conclusão
era, naquele período, de 53,5%. No Ensino Médio ela era de
68,5%. Quando desagregamos os dados para as regiões do
Brasil, vemos que as taxas de conclusão acompanham as de-
sigualdades encontradas nos demais indicadores de eficácia
escolares. As taxas são mais baixas nas regiões Norte e Nor-
deste. Não conclusão e abandono são exatamente os elementos que
geram demanda por educação de jovens e adultos no país,
quando tratamos da população jovem. Se, finalmente, levar-
mos em consideração que os mais altos índices de abandono
acontecem no ensino fundamental, nos 8º e 9º anos, e se consi-
derarmos ainda que o crescimento da modalidade foi de 55%
no Ensino Fundamental e de 344% no Ensino Médio (até o

161
Leandro R. Pinheiro (Org.)

ano de 2008), então veremos que temos, na EJA, processos de


produção de demandas potenciais de alunos, originárias de dinâ-
micas sociais diferentes, na mesma modalidade.
Temos, na EJA, portanto, além daquilo que separa classes
sociais, homens e mulheres, negros e brancos, cidade e campo,
um movimento que, vindo do próprio sistema escolar, “separou”
duas gerações que se encontram nas turmas que frequentam a
modalidade. Uma geração mais velha (analfabeta, predominan-
temente negra, feminina, rural), “barrada” da escola na porta
de entrada ou quase nela, e outra, mais jovem (urbana, também
predominantemente negra, masculina, fruto de uma escolari-
zação difícil, entrecortada por breves abandonos, reprovações,
frequência a programas de aceleração de aprendizagem), pro-
duto de nossas ainda baixas e persistentes taxas de conclusão.
Ambas se relacionaram (por períodos e em épocas muito
diferentes) com sistemas escolares também muito diferentes.
Desenvolveram, consequentemente, expectativas muito dife-
rentes quanto ao que esperam e desejam da escola. E conse-
quentemente aos efeitos da escola sobre suas vidas.
O presente trabalho busca abordar a problemática acima
descrita, analisando-a naquilo que concerne aos processos de
ingresso, na EJA, de sua atual população de jovens. Operamos
com a hipótese de que ainda que a EJA seja uma modalidade
bastante estudada em sua história e em sua estrutura, havendo
base para compreensão de seus impasses e possibilidades, de
sua dinâmica, há ainda espaço para novas abordagens.
Em nosso caso buscaremos tal abordagem tomando como
objeto de compreensão os jovens pertencentes aos grupos po-
pulares e sua relação para com uma escola que, ao expandir-se,
modifica valores, hierarquias internas e modos de julgamento, re-
organizando (na verdade reestratificando) sistemas e instituições.
Neste sentido, algumas perguntas fazem-se necessárias:
que fenômeno escolar “produziu” tal distância entre gerações?
Defendemos aqui a hipótese de que a expansão do Ensino

162
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Fundamental, iniciada a partir de meados da década de 1990


demarca a linha divisória entre as gerações que frequentam
hoje a EJA. Ela demarca, sob nosso ponto de vista, uma dis-
tinção entre os modos de escolarização e as formas de relacio-
namento para com a escola, para os grupos que frequentaram
a instituição antes e depois dela, configurando experiências
distintas de escolarização, e delimitando, a partir daí, a atri-
buição de funções e de sentidos diversos para a instituição por
parte de seus discentes.
Para fundamentar este debate, discutiremos a seguir, a ju-
ventude como uma “posição social” que delimita uma “ex-
periência social” (ao mesmo tempo singular e variada e que
inclui, obviamente, a escolarização) e a expansão do Ensino
Fundamental como evento-chave que produz variações nos
modos de escolarização daqueles que o experimentam.

2. Juventude: “posição social” que delimita “experiências


sociais”

Para Karl Mannheim (1968), juventude é reserva vital das


sociedades modernas. Espécie de acúmulo energético, físico e
mental somente posto em evidência em circunstâncias singula-
res, especialmente em situações que reivindicam necessidade de
ajustamento a mudanças drásticas e imediatas. Neste sentido,
juventude é, para este autor, agente revitalizante da sociedade.
Para ele, o que torna os jovens um conjunto tão singular, é
ao mesmo tempo, o fato de não aceitar como natural a ordem
consagrada e nem possuir interesses adquiridos de ordem eco-
nômica ou espiritual. Aqui, a juventude é agente revitalizador
porque não está ainda completamente enredada no status quo da ordem social.
Trocando em miúdos, o que interessa neste caso é a margi-
nalidade da situação juvenil na sociedade. É essa liminaridade de
condição que interessa ao autor. Para Mannheim, não só a posi-

163
Leandro R. Pinheiro (Org.)

ção de “estranho” é fator mais importante do que a efervescên-


cia biológica para explicar a mutabilidade e a receptividade do
jovem ao “novo”, mas também essa disposição é coincidente
para com as atitudes de outras populações lançadas em situ-
ação de marginalidade social (mulheres, negros, pobres, etc.).
Finalmente, essa potencialidade é sempre condicionada pela
configuração social, histórica, política e econômica.
Para Mannheim, portanto, é a posição marginal da juven-
tude nas sociedades modernas, aquilo que a agrega enquanto
grupo social. É aquilo que a faz suscetível ao estranhamento
das normas e dos valores sociais, e, ao mesmo tempo, aquilo
que a predispõe à mudança.
Bourdieu (1983), por outro lado, nos chama a atenção
para o fato de que ao tomarmos os jovens como uma unidade
social, grupo dotado de interesses comuns, corremos o risco
de perder de vista as diferenças e desigualdades que marcam
as muitas formas de exercer este período da vida, marcado por
significativas diferenças relativas às condições de vida, às rela-
ções mantidas para com o trabalho e ao orçamento do tempo,
nas vidas dos sujeitos.
Comparando os estilos de vida dos jovens que já trabalham
e dos adolescentes que só estudam, o autor nos mostra que se
“de um lado, (temos) as coerções do universo econômico real, apenas ate-
nuadas pela solidariedade familiar; de outro (encontramos), as facilidades
de uma economia de assistidos, quase-lúdica, fundada na subvenção, com
alimentação e moradia a preços baixos, entradas para o teatro e para o
cinema a preços reduzidos, etc...” (Bourdieu, 1983, p. 113). Dois
extremos de um espaço de possibilidades oferecidas aos jovens.
Para este autor, a “situação de adolescente”, subvencio-
nada e assistida, decorre de sua existência escolar, estudantil,
essa existência “em separado” que os coloca temporariamen-
te (e socialmente) “fora do jogo” (social). Bourdieu aponta
ainda que é esta condição de apartação social temporária
que permite ao jovem aquela sensação de “estranhamento”

164
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

em relação às regras, normas e valores sociais já apontados


por Mannheim.
Há, portanto, distinções entre as perspectivas dos dois au-
tores quanto a este ponto. É que se em Mannheim o “estran-
geiramento” dos jovens em relação à sociedade em que vivem
advém da própria posição que ocupam na sociedade (o que
se constitui num ponto de vista ou num posto de observação),
para Bourdieu, o estranhamento das regras, normas e valo-
res sociais por parte destes sujeitos é um efeito da inserção
escolar dos mesmos. Neste sentido, para Bourdieu, é a escola
que “cria” juventude (ou, cria as condições para o exercício de
uma forma particular de transição entre a infância e a maturi-
dade, entendida de forma geral como “juventude”).
A preocupação com as clivagens que separam os jovens,
em especial as diferenciações de classe são uma marca da obra
de Bourdieu, e suas considerações acerca da juventude não
constituem exceção. Desta forma, se em Mannheim temos a
definição do que dá unidade à juventude (enquanto grupo so-
cial), em Bourdieu (presente em sua instigação “juventude é
apenas uma palavra”) encontramos destaque naquilo que a
diferencia. Naquilo que a distingue.
Mesmo assim, a partir das reflexões dos dois autores, po-
demos afirmar que juventude se constitui numa posição social,
liminar no conjunto – pela emancipação parcial da socializa-
ção primária referenciada na família e na comunidade para
inserção em novas instituições de socialização, com maior ou
menor disponibilidade para a construção de sociabilidades co-
letivas e mais autônomas – atravessada, porém, pelas divisões
que marcam o conjunto da sociedade, tornando essa posição
uma experiência conjunta (naquilo que se refere a uma certa
disposição para o “novo” e para o estranhamento das regras
sociais) e ao mesmo tempo variável e desigual (naquilo que se
refere às condições de “exercício” da condição). Aqui a ju-
ventude se caracteriza, portanto, num tipo de condição social

165
Leandro R. Pinheiro (Org.)

peculiar, na medida em que demarca processos de transição


social, e que é fundamental exatamente na medida em que
delimita, no presente, e de acordo com a maneira com que é
vivida a condição, possibilidades ou limites futuros.
Neste sentido, podemos dizer que juventude é, portanto, uma
condição geral que delimita experiências variáveis e desiguais.

3. Expansão da escola: evento-chave na produção de


experiências escolares variáveis e desiguais

Presenciamos, desde a década de 1990, a expansão da es-


colarização para grande parte dos jovens brasileiros A escola
vem se expandindo, no Brasil, desde a segunda metade da dé-
cada de 1990. Não inicia este processo sozinha. Na verdade, é
acompanhada por grande parte dos países da América Latina,
que num primeiro momento, o fazem a partir de cartilha se-
melhante, realizando aquilo o que Fanfani (2000) caracterizou
como massificação dos sistemas de ensino.
Em nosso caso, a “expansão milagrosa”, que fez “mais com
menos”, teve início durante os dois mandatos de Fernando
Henrique Cardoso (1994/2002). Aligeiramento dos conteúdos
escolares, da formação de educadores, da estrutura física insti-
tucional, e, finalmente, diminuição do investimento per capita,
foram os elementos centrais da “equação” que, a partir da se-
gunda metade da década de 1990, passou a dar sustentação à
expansão do Ensino Fundamental no Brasil (Algebaile, 2004).
Nesse âmbito, iniciou-se um processo, objetivando a “ra-
cionalização” e a “correção” do setor escolar, com o objeti-
vo de adequar a estrutura disponível a um atendimento mais
eficaz, buscando para isso tanto a diminuição dos índices de
retenção (repetência), quanto a ampliação geral da escolariza-
ção da população. O programa de “aceleração da aprendiza-
gem” foi a pedra de toque deste projeto que “produziu” vagas

166
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

pela aceleração de processos sem, contudo, criar infraestrutu-


ra (Peregrino, 2010).
A forma como este ciclo expansivo de deu, perdurando da
segunda metade da década de 1990 até a primeira metade de
2000 teve alguns efeitos importantes, dentre eles, o aligeira-
mento dos conteúdos escolares, da formação de educadores, e
fragilização da estrutura física institucional escolar; aumento
da demanda por escolarização média com expansão desregu-
lada do EM ao encargo dos governos estaduais; ampliação da
participação privada na oferta de vagas no Ensino Superior
(Peregrino, 2010).
Por outro lado, a partir da segunda metade dos 2000 co-
meça a ser construído um novo desenho para as políticas de
expansão da escola, que, sem abandonar o objetivo da “cor-
reção de fluxo” começa a apontar para outras possibilidades.
Neste outro conjunto, temos a regulação da ampliação do En-
sino Médio (a partir do Fundeb2), a ampliação da formação
técnica e profissional (com a criação dos Institutos Federais
de Educação Técnica e da construção e ampliação de progra-
mas tais como o Pronatec3), e a ampliação e democratização
das vagas na Universidades (através de programas tais como o
Prouni4, o Reuni5, e os sistemas de cotas).
Como efeitos temos tido, por um lado, a diminuição de al-
gumas de nossas mais renitentes desigualdades educacionais.
A escolarização se ampliou no Brasil, e especialmente, entre
os mais pobres, entre negros e pardos, entre mulheres e nas
regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do país (SIS PNAD,
2012). Em contrapartida, temos percebido a complexificação
do já estratificado sistema escolar brasileiro, com multiplicação

2. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica.


3. Programa Nacional do Ensino Técnico e Emprego.
4. Programa Universidade para todos.
5. Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Públicas Brasi-
leiras.

167
Leandro R. Pinheiro (Org.)

de desigualdades de rendimento entre sistemas, redes e modali-


dades de ensino, e no interior das instituições (Peregrino, 2010).
Quando tomamos especificamente os efeitos da expansão do
sistema escolar sobre a escolarização dos jovens pobres no país,
percebemos que se é verdade que temos verificado a amplia-
ção das oportunidades escolares com ampliação e diversificação
dos acessos aos patamares médio, e superior de escolarização,
é igualmente verdadeiro que esta expansão de oportunidades
tem sido acompanhada pela criação de uma espécie de “sistema
marginal de escolarização” que atravessa tanto o ensino fun-
damental quanto o médio, marcado por processos de escolari-
zação precários na infraestrutura, na formação acadêmica que
oferece e na socialização que possibilita (Peregrino, 2010).
Essas considerações, dentre outras, vêm nos permitindo
construir e investigar algumas hipóteses de trabalho, algumas
das quais compartilharemos a seguir (Peregrino, 2013).

• Em primeiro lugar, entendemos, a composição entre a


expansão da escola centrada em políticas de correção de
fluxo (e que portanto resistem, legitimamente a nosso ver,
à eliminação de massivos contingentes de crianças e jovens
pobres da instituição), articuladas à forte e persistente tra-
dição seletiva da escola brasileira, vem produzindo, dentro
dos sistemas de ensino, diferentes e desiguais “modos de
escolarização”, sendo um deles aquele ao qual temos dado,
em outros trabalhos (Peregrino, 2010; Peregrino, 2011), o
nome de escolarização “truncada” ou “acidentada” (essa
escolarização de fluxo permanentemente interrompido
por repetências, saídas da escola, entrada em projetos de
aceleração e de progressão de aprendizagem, mas que não
configura, ao contrário da tendência presente em décadas
anteriores, saídas definitivas da escola).
• Que os “jovens em situação de defasagem escolar”, aqueles
que escolarizam-se no âmbito dos modos precário, aciden-

168
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

tado ou truncado de escolarização, constituem um grupo


com algumas características comuns (são predominantes
entre as mais baixas faixas de renda, acumulam trajetórias
acidentadas de escolarização e, em alguns casos, experiên-
cia de trabalho concomitante com a experiência escolar),
agregando um grupo que exerce um “modo de ser jovem”,
diferente daquele estabelecido para os demais grupos so-
ciais, e, fundamentalmente, desigual naquilo que se refere
ao conjunto de acúmulos, experiências e passaportes para
a vida adulta que acumulam, em relação aos jovens de
classes médias e altas.
• Parte significativa destes jovens vem sendo “empurrados”
para a modalidade da Educação de Jovens e Adultos, que,
em paralelo aos sistemas regulares de ensino (tanto nos
âmbitos municipal ou estadual) opera como uma verda-
deira “margem” do sistema regular.

A pesquisa que traremos abaixo, não apenas visa ilustrar o


conjunto de reflexões que viemos tentando realizar neste tex-
to, mas também opera no âmbito das hipóteses de trabalho
acima descritas. Sua base é a dissertação de mestrado defendi-
da por Juliana Prata em 2013.

4. Juventude na EJA de Mesquita: trajetórias e grupos de


análise – ou – considerações sobre os modos precários de
escolarização

O estudo realizou-se a partir de dez escolas municipais mes-


quitenses com 1.025 questionários validados, tratado como
aquilo que Bourdieu nomeia como “caso particular do possí-
vel”. Em outras palavras, o estudo profundo de um caso espe-
cífico, neste caso uma cidade, mas realizado de maneira a des-
vendar possíveis tendências, formas e mecanismos passíveis de
generalização. A novidade desta abordagem consiste em captar

169
Leandro R. Pinheiro (Org.)

os impasses vividos pelo município a partir dos processos de esco-


larização dos jovens que nele habitam. É isso que particulariza o
ponto de vista aqui descrito. É a partir dos percursos dos jovens
na escola que as formas de desigualdade vão sendo analisadas.
A cidade de Mesquita encontra-se no centro da região me-
tropolitana do Rio de Janeiro, não é o centro das atenções
quando o assunto é pobreza, nem violência urbana, nem tam-
pouco questões de infraestrutura urbana. Contudo, é mais
uma cidade que amarga o pior da periferia: a insuficiência
latente, a negação de direitos e a escassez de equipamentos
básicos. Mesquita não é a pior cidade da Baixada, nem do
Brasil, mas é, infelizmente, mais um município que apresenta
características típicas da desigualdade social brasileira e, isso,
com extensão à educação.
Os resultados da pesquisa foram obtidos a partir da análi-
se do recorte de uma pesquisa de abrangência municipal que
discutia o perfil da EJA do município. A pesquisa realizada
pela Secretaria Municipal de Educação de Mesquita (Semed)
nas 10 escolas que oferecem EJA, com cerca de 2.300 alunos
no ano de 2012, por meio do questionário como instrumento.
Com 1.025 questionários respondidos, a partir dos dados bru-
tos fornecidos pela Semed, realizamos então o delineamento
do objeto e tratamento das informações: a definição do tema
juventude na faixa etária dos 15 aos 29 anos, com delimitação
dos coortes geracionais e análise das características de cada
grupo. Posteriormente, buscou-se comparar e distanciar os re-
feridos coortes geracionais para fins de análise mais apurada.
Das 38 perguntas do questionário, foram escolhidas 18
que tratam de critérios julgados como pertinentes a este es-
tudo. Foram classificadas três categorias para análise das res-
postas: (a) Identidade de grupo geracional, que abrange questões de
faixa etária, sexo e cor/raça; (b) Características sociais, que toca
nas questões de estado civil, cidade onde nasceu, estado onde
nasceu, estado onde a mãe nasceu, quantas pessoas moram

170
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

com você, se tem filhos, se tem, qual a faixa etária dos mesmos,
quem fica com os filhos para que você possa estudar, se realiza
trabalho remunerado e, por fim, se trabalha com carteira assi-
nada; e (c) Trajetórias escolares, que abordam: se já estudou antes,
como você chegou a essa escola de EJA, se já parou de estudar,
se sim, qual foi o motivo do afastamento, e, finalmente, qual foi
o motivo de retorno à instituição, quantos anos de habitação
escolar/conclusão das séries e se participou de algum projeto
ou política de correção de fluxo ou aligeiramento dos estudos.

5. Resultados e discussão

Para fins de análise, subdividimos o conjunto dos jovens,


no âmbito da faixa etária considerada pelas políticas de juven-
tude no Brasil (15 a 29 anos) e, 3 sub-faixas: jovem-adolescente,
de 15 a 17 anos, dentro da faixa de escolaridade obrigatória,
ainda recentemente “cobertos” pelo conjunto de direitos que
abarcam a juventude. São jovens “estreantes”, um grupo em
que a partir de anos recentes, vem realizando sua socialização
fundamentalmente a partir da escola; jovem-jovem, de 18 a 24
anos, primeira faixa de idade a partir da maioridade, configu-
ra uma linha divisória para a entrada no mundo adulto e iní-
cio da transição para esta condição, constituindo-se, no Brasil,
para o conjunto da população, faixa limite para ingresso no
mundo do trabalho; e jovem-adulto, de 25 a 29 anos, faixa
que consolida, no país, a entrada no mundo adulto, quando o
trabalho é absolutamente predominante em relação à escola.
É importante notar também, que às sub-faixas de juventu-
de delimitadas para este estudo, correspondem períodos dife-
rentes de frequência ao sistema escolar. Se tomarmos as polí-
ticas de correção de fluxo escolar como marco, podemos dizer
que a estas faixas etárias correspondem a experimentação de
um sistema escolar de “feições” também diferentes, tendendo
a faixa dos 15 aos 17 anos (nascidos entre 1998 e 1996, ini-

171
Leandro R. Pinheiro (Org.)

ciando a escolarização entre 2002 e 2004), a ter experimen-


tado a política em sua faze consolidada. Podemos dizer, neste
sentido, que os jovens-adolescentes encontram-se totalmente
cobertos pelas políticas de correção de fluxo.
Já os jovens-jovens, entre os 18 e os 24 anos, devem ter
ingressado no sistema escolar entre 1995 e 2001, no momento
de implementação da política. Finalmente, temos os jovens-
-adultos, que entre 25 e 29 anos, ingressaram no sistema esco-
lar antes da implantação da política, tendo tido provavelmente
baixo acesso a ela.
Neste sentido, a pergunta que buscaremos responder aqui,
é: se como querem autores clássicos da sociologia da juven-
tude, escola é uma das instituições que garantem o exercício
desta condição, então, quais são os efeitos da ampliação do
tempo de escolarização delineados pelas políticas de correção
de fluxo? Quais são os efeitos desta política, que aposta na
frequência e na habitação da escola, ainda que não aposte de
maneira idêntica e certamente não em sua implantação ini-
cial, na distribuição equânime dos conhecimentos que a ins-
tituição deve propagar? Em síntese, quais são os efeitos desta
política que massifica a escola mas não a democratiza, sobre a
ampliação do direito ao USO da condição juvenil pelos jovens
pobres desta periferia urbana?

Jovens-adolescentes, Jovens-jovens e Jovens-adultos

O coorte de 15 a 17 anos, o jovem-adolescente, é um grupo


bem relevante porque constitui 49,2% do público da EJA em
Mesquita. Logo, conhecê-lo é também refletir sobre a reali-
dade da modalidade no município. Este grupo tem predomi-
nância de pessoas que nunca tiveram experiência de traba-
lho remunerado (87%), o que indica um tipo de moratória6

6. Moratória social segundo Margulis e Urresti, autores que tratam da sociologia


da juventude, é o período de tolerância que a sociedade oferta aos jovens na

172
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

ofertada a eles por não precisarem trabalhar para a própria


subsistência – são sem dúvida assistidos; o grupo não possui
histórico de evasão escolar; nasceram no estado do Rio de Ja-
neiro, bem como suas mães, o que aponta para o fato de não
se constituírem como migrantes, mostrando a potencialidade
de enraizamento no local; são de maioria masculina; solteiros;
não tem filhos (somente 16% afirmam constituir prole); e são
predominantemente pardos e negros. Este grupo, dentre os
outros, é o grupo que, embora pobre, se aproxima mais dos
“jovens legítimos”7 na conceituação da juventude.
Esse grupo teve, entre os demais, um maior acesso às po-
líticas de correção de fluxo. Cerca de 8% do total dos atendi-
dos no grupo dos jovens-adolescentes, estudou em classes de
aceleração, 20% participou de atividades de reforço no turno
e no contraturno (com predominância no reforço ocorrido do

experimentação das formas de ser adulto sem seus compromissos efetivos. Essa
moratória é um espaço aberto em determinados setores sociais, para sujeitos es-
pecíficos e limitado a determinados períodos históricos (Margulis; Urresti, 1996).
Este conceito estabelece que as características de determinadas classes sociais
pertencentes a diferentes sociedades tendem a dar a este setor, a esta etapa da
vida, certos tipos de privilégios que os permitem um alargamento do período
da juventude.
7. É importante esclarecer que, neste trabalho, juventude é ao mesmo tem-
po uma condição (vivida, experimentada de maneira desigual pelo conjunto
dos jovens) e um símbolo (construído nas relações sociais e que produz uma
imagem socialmente aceitável do que é juventude e daqueles que, jovens “le-
gítimos”, estarão sujeitos aos direitos e benefícios da condição juvenil. A partir
daí, trataremos, neste texto, e para fins de análise, a divisão entre jovens “legíti-
mos” e jovens “bastardos”, em que os primeiros gozam de todos os direitos da
juventude por serem jovens, estudantes, urbanos, sem constituição de família,
das classes média e alta, enquanto os últimos são os jovens menos abastados,
trabalhadores, com família, campesinos, ou seja, jovens a quem os direitos, os
créditos e as benevolências sociais concedidas à juventude ideal ou legítima,
são negados total ou parcialmente; ou ainda, jovens que, apenas recentemente
reconhecidos como jovens pelas políticas sociais, não são reconhecidos como
jovens pelo conjunto da sociedade.

173
Leandro R. Pinheiro (Org.)

próprio turno de estudos) e 30% estudou em explicadores e


professores particulares, subsidiados pela família. Contudo, o
acesso às políticas não garantiu a aprendizagem, uma vez que
relataram continuar com fluxo truncado por repetências, até
chegarem à EJA.
O jovem-jovem, grupo etário de 18 a 24 anos, constitui
20,2% da EJA de Mesquita e é o intermediário entre os coor-
tes geracionais. O estudo demonstrou que a transição da ju-
ventude para o mundo adulto é marcada principalmente pela
constituição de família e ingresso no mundo do trabalho. O
grupo jovem-jovem, segundo os dados, já está inserido nessa
transição. Pouco mais da metade (65%), indica experiência de
trabalho remunerado, e 42% afirmam ter um ou mais filhos.
Somente por essas informações já se constata ser um coor-
te em período de mudança, de passagem para se tornarem
adultos, com mais responsabilidades e acesso cada vez menor
às moratórias sociais/familiares. Os números ainda apontam
que há um maior equilíbrio entre os sexos na EJA para este
grupo (119 homens e 84 mulheres); que são predominante-
mente pardos e pretos; 52% mesquitenses; 87% nasceram no
estado do RJ e 55% tem mãe nascida no estado do RJ, o que
aponta que quanto mais idade, mais potencialmente se pode
estar no grupo dos migrantes de 1ª e 2ª geração.
No tocante às políticas de correção de fluxo, este grupo
completou 7 anos de idade entre os anos de 1995 e 2001. Logo,
tiveram acesso às primeiras políticas de correção de fluxo após
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (9293/96). Contudo,
um acesso limitado. Do universo de 52 alunos entrevistados
pertencentes a este grupo, somente 15% participou de alguma
política e, destes, a predominância foi de atividades de refor-
ço no turno ou no contraturno estudado, oferecidos na escola
pública e seguidos de aulas particulares com explicadores e
professores pagos pelas famílias.

174
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

O grupo mais velho, o jovem-adulto, de 25 a 29 anos, é o gru-


po que indica estar em total transição, umas já concluídas e ou-
tras em processo final de entrada na vida adulta. 79% afirmam
ter filhos, e 88% têm experiência de trabalho remunerado. Esse
grupo constitui-se como apenas 3,8% da EJA de Mesquita. Os
números demonstram equilíbrio entre os sexos (19 mulheres
e 20 homens), a maioria da população é parda e negra, 40%
mesquitenses; 62% nascidos no estado do RJ e 32% com mães
nascidas no estado do RJ, apresentando, assim, indícios de pos-
síveis impactos dos movimentos de migração de 1ª e 2ª geração
bem relevantes. A região Nordeste é ainda a região de onde
saem mais pessoas para o RJ (para a cidade do Rio de Janeiro,
como objetivo inicial) e para Mesquita (quando não conseguem
moradia próxima aos centros urbanos). Contudo, há um visível
crescimento, ao longo dos anos, dos fluxos migratórios do Nor-
te e do Centro-Oeste e, um discreto movimento vindo do Sul
do Brasil. Este grupo mais velho não recebeu nenhuma política
pública de correção de fluxo. No entanto, 8% indicaram ter
participado de iniciativas particulares de reforço escolar, com
professores e explicadores particulares.
Como pontos de contato entre os grupos de coortes ge-
racionais destacam-se: a condição social menos abastada, o
contexto de desigualdade a que os grupos estão submetidos,
o fato de serem moradores de Mesquita, alunos da EJA, de
maioria solteira, oriundos de lares pouco numerosos, frutos do
fracasso escolar no Ensino Fundamental Regular (EFR) e de
modos precários de escolarização.
Comparando os grupos extremos, jovens-adolescentes e jovens-
-adultos, fica mais clara a contraposição e sua posição na con-
dição da juventude, em sentido amplo. Os jovens-adolescentes
são beneficiados com moratória. Eles estão mais próximos dos
“jovens legítimos”: estudantes, sem trabalho e distantes do pro-
cesso de constituição de família. Estes, ainda, tiveram acesso às
políticas de correção de fluxo; diferentemente da realidade dos

175
Leandro R. Pinheiro (Org.)

jovens-adultos. Este último, o grupo de trabalhadores que estudam


(jovens-adultos) afirma ter filhos e é um grupo potencialmente mi-
grante de 1ª ou 2ª geração, o que admite, ainda, um processo
mais ou menos longo de enraizamento e conhecimento da lo-
calidade, de suas formas e aparelhos sociais. Estes são inclusive
mais próximos dos “jovens bastardos”, pelos fatores família e
trabalho e, ainda, pelas trajetórias mais curtas de escolarização.
Os dados revelam que, quanto mais velhos, mais chan-
ces de abandono tanto no EFR (ensino fundamental regular),
quanto na EJA (educação de jovens e adultos). Esse coorte
também não teve acesso às políticas públicas de correção de
fluxo. Logo, se separássemos as categorias e as organizássemos
hierarquicamente por proximidade do “tipo ideal de jovem”,
os jovens-adolescentes estariam mais perto, seguidos pelos
jovens-jovens e, por último, os jovens-adultos, sendo estes, os
mais “bastardos” da juventude, ainda que todos estivessem si-
tuados em contextos de desigualdade e precariedade.

Considerações finais

Verificou-se a partir do referencial adotado e da pesquisa


empírica, que a juventude está no centro das questões situadas
na complexidade da desigualdade social e educacional. No
entanto, a juventude não é um grupo homogêneo e unifor-
me. Ao contrário, é um grupo diverso que admite inúmeras
frações menores. A classe é um fator preponderante na análise
da juventude, em que os pobres têm menos acessos e oportu-
nidades. A juventude pobre, então, por si só, estaria mais afas-
tada do tipo ideal de jovem. Essa juventude de classes popula-
res, quando categorizada em três grupos: jovem-adolescente,
jovem-jovem e jovem-adulto, indica nuances e características
que as diferenciam e as aproximam.
Ao constatar a diferença entre as categorias dos coortes
geracionais pode-se construir indagações sobre a proposta da

176
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

EJA para os jovens, seu currículo, seus marcos legisladores,


suas políticas, seus professores, gestores e alunos. A EJA, em
seu modelo atual, dedicada em seus fóruns, congressos, simpó-
sios, a pensar sobre a juventude e sobre as frações juvenis que
a compõem, como já acontece em alguns movimentos, pode
se aproximar dos objetivos e anseios desse público, que já se
configura como maioria na modalidade.
Quanto às políticas públicas de correção de fluxo, nesse
contexto, ainda que estas não tenham realizado, nos jovens
de 15 a 29 anos da EJA de Mesquita, a inserção adequada
no sistema educacional, tiveram o efeito de, nos sujeitos mais
impactados pelas mesmas – os jovens-adolescentes –, aumentar o
tempo de escolarização (ainda que truncada) e, de aproximá-
-los do tipo ideal de jovem. Logo, os jovens-adolescentes estão mais
próximos das características da condição de jovens plenos, le-
gítimos. Mesmo que os efeitos não tenham sido os esperados,
são efeitos válidos, verificados pela pesquisa.
Considerando ainda que as trajetórias escolares dos jovens
estudados são truncadas, marcadas por repetências, aban-
donos, retornos e flutuação, é um paradoxo pensar que esse
tipo de caminho (correção de fluxo) na escola poderia indicar
moratória social para os sujeitos/grupos e, ainda, conquistar
o efeito de mostrar que esse jovem, no caso, o jovem-adoles-
cente, está mais perto da legitimidade da juventude, em suas
características esperadas: urbanos, apenas estudantes, sem
constituição de família, morando com os pais e, sobretudo,
beneficiados pelas moratórias sociais, já que continuam estu-
dando, apesar da vida em contextos de desigualdade. O pro-
longamento da escolarização deu-se, portanto por caminhos
inesperados, mas fecundos.
Destaca-se, sobretudo, nessas considerações a proteção
social que o aumento do tempo de habitação na escola opor-
tuniza aos sujeitos: controle de faltas, contato com a família,
acompanhamento pedagógico, acesso a fontes de cultura, la-

177
Leandro R. Pinheiro (Org.)

zer e educação, controle do orçamento temporal, diminuição


da ociosidade, oportunidade de realizar cursos, debates, feiras,
são, por exemplo, fatores que caracterizam e demonstram a
proteção social oferecida aos jovens, que mesmo numa escola
fragilizada como é a escola de EJA, tratada como um subsiste-
ma de ensino para pobres, consegue realizar movimentos que
contribuem, e muito, para a formação social.
Logo, pensar em ações, políticas e suporte pedagógico para
esse novo grupo de presença massiva na EJA se faz urgente e
relevante no contexto da desigualdade e na busca por uma
educação de qualidade em Mesquita e no cenário brasileiro.
A pesquisa realizada no ano de 2012 demonstra ainda que
o principal motivo dos jovens e suas famílias procurarem a
EJA é a aceleração dos estudos. A possibilidade de concluir
dois períodos escolares em um ano é um atrativo aos sujeitos
que se encontram em trajetória escolar truncada e com distor-
ção idade/série.
Contudo, dados nacionais demonstram que os níveis de
conclusão na EJA em relação aos anos de estudos do Ensi-
no Fundamental (EF) não são tão diferentes. Caracterizando
assim o fato de que as trajetórias escolares truncadas e não-
-lineares continuam ocorrendo na EJA e que é uma ilusão, na
maioria dos casos, a ideia de que vai se concluir duas séries em
um ano letivo. Seja pela evasão, característica recorrente na
modalidade, inserção no mercado de trabalho, constituição de
família ou mesmo pela dificuldade de acompanhar os proces-
sos pedagógicos na/da escola.
Nesse contexto, a pesquisa municipal revelou dados signi-
ficativos quanto ao prolongamento do tempo dos estudos na
EJA. O perfil dos jovens alunos da EJA de Mesquita indicou
claramente diferenças entre os grupos geracionais que estão
contidos na categoria jovem. Jovens-adolescentes de 15 a 17
anos, jovens-jovens de 18 a 24 anos e jovens-adultos de 25 a 29
anos, têm essencialmente marcadores distintos e que precisam

178
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

ser interpretados e analisados na compreensão de algumas


questões que articulam juventude e educação, ainda que sua
condição de classe seja a mesma, bem como seus modos de
escolarização precários.
Entretanto, o estudo demonstra que essas políticas, ainda
que insuficientes e precárias, foram fundamentais por terem
tido o efeito de prolongar o tempo de estudos e consolidar algu-
mas aprendizagens e, sobretudo, fazer com que o aluno não
evadisse. E, pelo fato de o aluno estar dentro da escola, exercer
medidas protetivas de acompanhamento, oportunizando assim
a manutenção da condição juvenil e aproximar da condição do
“tipo ideal” em detrimento aos demais grupos: jovens-jovens e
jovens-adultos que, por estarem em transição mais direta com
o mundo adultos nos quesitos família e trabalho, se distanciam
das medidas protetivas familiares e institucionais, apresentando
vínculos mais frágeis em relação à escola. Apontando ainda,
que esses dois últimos grupos se consolidam como os precari-
zados dentre as precariedades, ou seja, menos protegidos em
comparação ao coorte geracional dos jovens-adolescentes.
O efeito dessas políticas é percebido como incidental e não
intencional. Os objetivos das correções de fluxo passam ao lar-
go desse efeito de ampliação do uso da condição juvenil por
jovens-adolescentes. Mas, é esse fenômeno que, de maneira di-
reta, influenciou os sujeitos pesquisados na cidade de Mesquita.
As políticas de correção de fluxo como instrumento ins-
titucional acabam dessa forma como medidas de proteção e
antievasão escolar, assim como a EJA, que por apresentar atra-
tivos que seduzem o jovem (possibilidade de conclusão de duas
séries em um ano), aumenta o tempo de habitação na escola,
especialmente dos estudantes do coorte geracional dos jovens-
-adolescentes de 15 a 17 anos, já que em grande parte dos
sistemas educacionais municipais e estaduais não há política
pública específica e adequada para esse grupo, que encontram
na EJA seu lugar, ou melhor, seu não-lugar. Os adolescentes

179
Leandro R. Pinheiro (Org.)

seriam então os “marginais na EJA”, encontrando resistências


de várias direções quanto à sua estadia na modalidade.
Pode-se então considerar o efeito da modalidade e da po-
lítica, entre os estudantes com trajetórias acidentadas, nos pri-
meiros anos da juventude, segundo as conclusões da pesquisa,
como positivos na formação de redes proteção, acompanha-
mento e socialização das gerações mais jovens. Confirmando
especialmente a premissa construída no Estatuto da Criança
e do Adolescente (ECA), no que tange aos investimentos em
processos de longa duração – de 0 a 18 anos – de preparação
de seus adultos para a vida social.

Referências

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

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www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevi-
da/indicadoresminimos/sinteseindicsociais2012>.

181
Parte 3
Narrativas... Singularidades e reverberações nos encontros
Leandro R. Pinheiro (Org.)

Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. Para


mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do
mundo e as nossas). (Manoel de Barros)

Conhecer as pessoas, estar com elas, conversar e questio-


nar. Ao cabo, podemos dizer que foi isso que estivemos a fa-
zer; desejávamos saber de suas histórias, das condições que
as circundavam e constituíam. E a tal preocupação associava-
-se também o desejo de provocar reflexivamente, dispondo a
presença e as perguntas. Então, conforme nos inquietavam os
diálogos, buscamos formas para interpretar articulações entre
experiências e contexto social e nossas análises foram ganhan-
do forma. Procuramos compreender que identidades nos co-
municavam, tomando esta noção como inspiração para inter-
pretar as pertenças e diferenciações desde as quais os sujeitos
construíam sentidos para suas ações, buscando problematizar,
em imbricação àquelas, as formas de individuação produzidas
no curso de suas relações cotidianas1.
A interlocução com mulheres idosas vinculadas a uma es-
cola de samba, com jovens bboys e bgirls e/ou com educan-
dos de uma escola pública municipal foi organizada desde a
promoção de narrativas diversas, associadas à produção de
imagens fotográficas e de vídeo2. De uma parte, buscávamos
diálogos com agrupamentos etários diferentes, de modo a con-
trastarmos suas filiações e os itinerários construídos na feitura
de suas experiências. De outra, procurávamos pessoas vincula-

1. Apreciação mais acurada dos caminhos trilhados em campo pode ser encon-
trada no apêndice desta coletânea.
2. Devemos fazer uma ressalva. O artigo que aborda o cotidiano de bboys e bgirls
do Restinga Crew, de autoria de Márcio do Amaral e Maurício Perondi, resul-
tou de pesquisa realizada no mesmo período de nossas incursões em campo,
mas em processo relativamente independente. De toda forma, o documentário
produzido com estes jovens, ao final, considerou as elaborações dos colegas au-
tores na roteirização.

184
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

das a diferentes formas de produção cultural em contextos de


periferia, sendo que a escola pública guardava o interesse es-
pecífico por conta da vinculação de nossas atividades à área de
educação. Com isso, considerávamos a possibilidade de apoiar
reflexões atentas à interlocução entre espaços educativos e a
produção socialde seu entorno.
O percurso trilhado nos mostrou que as filiações inicial-
mente consideradas expressavam diferenciações mais signifi-
cativas se ponderadas em realce às situações etárias e agre-
gando condições e vinculações outras, não sentidas de início,
como tentaremos discutir nos artigos subsequentes. Sigamos,
então, a traçar algumas inferências e hipóteses, desde o que as
singularidades que conhecemos nos provocaram a refletir.

185
Conversando com elas: itinerários possíveis no
reverberar das memórias

Leandro R. Pinheiro
Bruna D. Junqueira

A narrativa apresentada aqui resulta de nossos encontros


com quatro mulheres idosas vinculadas a uma das escolas de
samba do bairro Restinga. Tínhamos a intenção de conhe-
cer as práticas cotidianas de moradoras daquela localidade e,
desde as redes de ação e sociabilidade que produziam, saber
das pertenças naquele lugar. Entretanto, nossos diálogos, ge-
ralmente ambientados em suas residências, onde nos acolhiam
generosa e amistosamente, conduziram-nos também às singu-
laridades de seus itinerários de vida e a reflexões sobre o espa-
ço de possíveis de mulheres em localidades de periferia.
De forma geral, Luci, Helena, Nandi e Antonia1 se mostra-
vam motivadas pela possibilidade de partilhar lembranças, as
quais, dada a longevidade de suas trajetórias, consolidavam vi-
vências estendidas de quadros culturais e familiares, elaboradas
em condição existencial já menos incitada pelas demandas do
presente e as projeções de futuro (Bosi, 1994). As quatro idosas
se apresentaram a nós a partir de uma dinâmica de rodas de
conversa e entrevistas realizadas entre outubro de 2014 e agosto
de 2015 e, logo, percebemos que as atividades que propomos
foram incorporadas entre outros compromissos que procuravam
garantir para fruição de seus dias como aposentadas. Queríamos
conhecer seu cotidiano e fomos prontamente integrados a ele.
1. Cabe ressaltar que todos os nomes atribuídos aos sujeitos de diálogo nesta
seção são fictícios, com a finalidade de preservar a integridade dos mesmos.

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

Embora o mote inicial tenha sido lançado por nós, pesqui-


sadores-educadores, os encontros se tornaram momentos de
sociabilidade cuja configuração se deu pela atuação marcante
de nossas interlocutoras, constituindo momentos de partilha e
de comunhão à volta da mesa, quando comíamos e conversá-
vamos como visitas à casa de amigas. Inicialmente, falávamos
sobre imagens fotográficas que possuíam e, a partir daí, co-
nhecemos fragmentos de suas trajetórias e da história do bair-
ro. Depois de meses, passamos a realizar entrevistas narrativas
e, então, criamos a ambiência para elaboração de itinerários
biográficos. A etapa final de nossa interlocução foi dedicada
à produção de ensaios fotográficos visando ampliar as bases
de estímulo à narrativização, de forma que foram evocados,
dentre outros, hábitos, rotinas e aspectos da fruição no bairro
e das redes de sociabilidade que partilhavam.
A apropriação de imagens no processo se deu por pelo me-
nos dois motivos. Primeiramente, consideramos o apelo con-
temporâneo da produção de imagens nas elaborações identitá-
rias, tomando-o por sua contribuição para aproximação com
os sujeitos e, também, para ampliação das possibilidades de
evocação de narrativas sobre seus percursos e seus cotidianos.
Em associação a isso, dados os usos culturais das imagens foto-
gráficas, orientadas ao registro do “digno” de ser visibilizado
(Martins, 2009), aventamos a hipótese de que o comunicado
desde as fotos poderia ser não só contrastado com informa-
ções oriundas de outros motes de interlocução, como traria
um convite enfático para as pessoas se posicionarem reflexi-
vamente acerca dos cotidianos experienciados, ao escolher o
que deixar “em registro” e expor. Desejávamos saber de suas
histórias, das condições que as circundavam e em que parti-
cipavam, e lançar provocações desde nosso jeito de dialogar.
Como já aludido na introdução desta seção, consideramos
as identidades produzidas ao nível da individuação. Para tan-
to, aproximamo-nos às problematizações sobre a propensão

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

reflexiva da produção identitária individual na atualidade, que


encontramos em Melucci (2004; 2005)2 e, de certa forma, nas
palavras de Enzo Colombo, nesta coletânea. Buscamos acer-
car nossas análises também às provocações de Martuccelli
(2006; 2007)3 sobre as noções de “prova” e de “suporte”, vi-
sando interpretar condições de individuação nos espaços de
ação de nossas interlocutoras.
Não se trata de assumir a priori as contribuições desses
autores, ou mesmo de reportar diretamente o cenário por ele
esboçado às vivências dos sujeitos que viemos a conhecer no
bairro Restinga. Frente às experiências narradas pelas pessoas
que conhecemos, tais abordagens se configuraram como ins-

2. Uma citação de Melucci (2004) pode ser indicativa de sua interpretação:


“poder-se-ia definir identidade como a capacidade reflexiva de produzir cons-
ciência da ação (isto é, representação simbólica da mesma) além dos seus con-
teúdos específicos. A identidade transforma-se em reflexividade formal, capa-
cidade simbólica, reconhecimento da produção de sentido no agir, no interior
dos limites colocados em um dado momento, pelo ambiente e pela estrutura
biológica” (p. 89). Apreciação mais acurada do percurso teórico-metodológico
pode ser encontrada no apêndice desta seção.
3. As proposições de Martuccelli (2006; 2007) sinalizam que as relações sociais
contemporâneas instigam experiências diversas, contribuindo para que estas se
particularizem mesmo quando as pessoas ocupam posições sociais assemelha-
das. Sua interpretação orienta-se ao processo de singularização estruturalmente
produzido na modernidade e propõe operadores analíticos para a compreensão
das formas pelas quais os indivíduos se constituem na relação com aspectos que
perpassam a socialização na coletividade: como afirma este autor, o processo de
individuação precisa ser problematizado aquém e além das identidades. Neste
sentido, apresenta a noção de “desafio-prova” como artifício heurístico, desta-
cando os desafios sócio-históricos que os indivíduos são impelidos a enfrentar
(conforme as condições sociais em que se encontram) e que podem ser viven-
ciados singularmente. A tal conceito o autor associa também a noção de “su-
porte”, para falar das relações que amparam os indivíduos no enfretamento de
seus desafios existenciais. Aí, podemos situar laços familiares e de reciprocidade,
redes de amizade e sociabilidade, referências simbólicas ou, então, a articulação
a aparatos institucionais que garantam e/ou promovam condições para que os
sujeitos efetivem seus projetos e/ou logrem seguir em disputa.

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

pirações. A partir delas, procuramos problematizar os itinerá-


rios biográficos e as formas pelas quais nossas interlocutoras
integraram disposições para a prática e elaborações reflexivas
no trato da incerteza e do múltiplo, ainda que estes se apresen-
tassem mais pela interposição da precariedade de condições
de vida e/ou da fragilidade das articulações com aparatos ins-
titucionais. Assim, tratamos de interpretar os percursos nar-
rados concebendo “espaços de possíveis” desde onde atuam/
atuaram como sujeitos de ações e escolhas junto a pertenças e
frente a desafios e adversidades4, e em relação aos quais cons-
truíram suas individualidades.
Desde o contraste dos itinerários contados e destes com os
fragmentos que nos chegaram nas histórias e causos enuncia-
dos nas diversas rodas de conversa, para efeito desta escrita,
procuramos manter a disposição de singularidades consubs-
tanciadas em percursos biográficos. Visamos configurar, desta
forma, experiências individuais na periferia como casos con-
textualizados para visibilização, contraste e interpretação das
condições ora comuns ora peculiares nas construções identitá-
rias. Antes, porém, faz-se necessário trazer mais informações
sobre o contexto de nossos diálogos.

1. Para ir à Restinga: breve aproximação ao contexto

Localidade do extremo sul do município de Porto Alegre,


a aproximadamente 25 km de distância do centro da cidade,
o bairro Restinga foi criado por conta de políticas tecnocrá-
ticas de higienização e de valorização de áreas urbanas cen-

4. Neste sentido, consideramos também as contribuições de Bourdieu (1996), no


apêndice “A Ilusão biográfica”, ponderando os movimentos narrados desde sua
articulação com deslocamentos no/do espaço social de ação, perguntando-nos
vez ou outra pelos capitais sociais e culturais que apoiaram a existência. Outras
vezes, observávamos as táticas e a astúcia com que as ações eram produzidas,
deixando então que De Certeau (2011) nos apoiasse nas análises.

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

trais implementadas nos anos 1960. Foram removidos para lá


contingentes que residiam nas chamadas vilas de “malocas”,
resultantes sobretudo do processo de êxodo rural iniciado a
partir dos anos 1940 (Aigner, 2012). Muitas delas eram tam-
bém comunidades que abrigavam população de etnia negra,
ocupante das atividades de trabalho precarizadas do centro
urbano (Sommer, 2011).
Os primeiros moradores da Restinga foram dirigidos a
uma área sem serviços públicos de saneamento, fornecimento
de água ou energia elétrica e com escassa frequência de trans-
porte coletivo. À época, havia a expectativa de que o poder
público construísse moradias e implantasse a infraestrutura
urbana necessária. Porém, quando isso ocorreu, já nos anos
1970, os primeiros grupos chegados ao lugar não tiveram aces-
so aos conjuntos habitacionais construídos nas proximidades,
por conta dos preços das prestações e da condição precarizada
e instável de suas ocupações laborais (Nunes, 1990). Empeça-
ram a residir na nova área, habitantes de outros bairros, que
também almejavam casas próprias.
Passou a compor o território e constituir as identidades no
bairro de então, uma divisão entre Restinga Velha, formada
por ruas estreitas, habitações vulneráveis e infraestrutura ur-
bana precarizada, e Restinga Nova, com vias largas, conjuntos
habitacionais planejados e recursos mínimos de saneamento
e fornecimento de água e energia elétrica. Nos anos seguin-
tes, muitos dos conflitos entre grupos de tráfico atualizaram tal
segmentação (Aigner, 2012).
Difícil precisar o tamanho atual da população dessa re-
gião. Os dados oficiais indicam que há cerca de 60 mil habi-
tantes (ObservaPOA, 2015), mas não estariam computados aí
os residentes em áreas irregulares. Entidades que atuam na
localidade costumam trabalhar com uma estimativa de mais
de 150 mil habitantes, o que faria deste o bairro mais populoso
de Porto Alegre.

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

Em que pese as conquistas dos moradores e a notória orga-


nização cultural e política naquela localidade, o bairro ainda
carece de melhores serviços públicos e a população ainda está
entre as mais empobrecidas da cidade5. Neste sentido, a estig-
matização das pessoas oriundas da Restinga, e em especial da
Restinga Velha, continua existindo, de forma que a população
costuma ser associada genericamente a situações de violência
e criminalidade.
Nossas interlocutoras residiam na Restinga Velha. Quando
chegávamos às proximidades de suas moradas, observávamos
as casas e, naquela variedade de formatos, nossos olhares de
passagem sentiam certa estrutura comum. Talvez o pequeno
tamanho dos terrenos, o tipo de material da alvenaria, o jeito
como estavam dispostos os muros, os pátios com poucas plan-
tas, mas com uma horta eventual, e as paredes por rebocar ou
pintadas em cores opacas, pareciam nos contar que as residên-
cias eram edificadas nas intermitências da possibilidade.
A cada encontro na Restinga, visitávamos uma das resi-
dências. Não raro, aquelas idosas nos confidenciavam suas
preocupações com os conflitos do tráfico de drogas e com a
5. O bairro contava, à época de nossas incursões, com postos de saúde, escolas
públicas, instituto federal, unidade hospitalar, parque industrial e um significati-
vo número de estabelecimentos comerciais. Quem adentra o bairro por sua ave-
nida central, poderia compará-lo a algumas cidades da região metropolitana de
Porto Alegre. Ademais, por efeitos da mobilização comunitária, há duas escolas
de samba, significativa expressão do Hip Hop e a localidade é reconhecida por
sua organização política e cultural. Contudo, apesar dos esforços dos morado-
res, os serviços públicos oferecidos ainda são insuficientes e as condições de vida
são comparativamente precarizadas. O rendimento dos responsáveis por domi-
cílio, a despeito das desigualdades internas no bairro, é de 2,10 salários mínimos
(SM) em média (sendo 5,4 SM para Porto Alegre). O analfabetismo funcional
de responsáveis por domicílio é de aproximadamente 20% (12% para a cidade).
A aprovação no ensino médio é de 44% (69% para Porto Alegre). Além disso, a
Restinga apresenta índices superiores de homicídio (especialmente para jovens
negros) e registros inferiores de aprovação na educação básica, se comparados
às médias do município (ObservaPOA, 2015).

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

violência do entorno; lamentavam também a precariedade


dos serviços de saúde, mas, de outra parte, versavam sobre as
conquistas históricas da comunidade e sobre a necessidade de
valorizar o que já fora realizado, procurando relativizar as ad-
versidades. Desta ambientação, passamos gradativamente às
suas práticas cotidianas e a seus percursos biográficos.

2. Entre fragmentos e histórias contadas, os itinerários em


narrativa

Uma característica comum entre as integrantes deste grupo,


e que primeiro se mostrou a nós como particularidade, era sua
condição etária e a situação de aposentadas. À exceção de Luci,
com 62 anos à época de nossas interlocuções, nossas colegas cir-
cundavam os 70 anos de vida. Quando não estavam ocupadas
em suas rotinas domésticas, todas elas se mostravam em buscas
por sociabilidade e atividades para fruição coletiva (coral, escola
de samba, viagens, atuação política, etc.). Era possível perceber,
inclusive, que nossos encontros foram incluídos entre suas prá-
ticas regulares. Em boa medida, as atividades de lazer vinham
sendo oportunizadas após a aposentadoria, dado que possuíam
mais tempo livre e, com os filhos relativamente independentes,
podiam dedicar também recursos pecuniários em atividades e
passeios com grupos de pessoas de sua faixa etária.
Contudo, essa situação diferia a cada caso, conforme se or-
ganizavam os arranjos familiares. Estas idosas eram referência
para as tomadas de decisão, quando não eram participantes
ativas no sustento familiar, aproximando-se da realidade na-
cional de aumento do número de famílias chefiadas por idosos,
provocado, de um lado, pela consolidação de benefícios sociais
nas últimas décadas e, de outro, pela condição instável e precá-
ria de acesso dos jovens ao mercado de trabalho (Buaes, 2015)6.
6. Buaes (2015) ressalta que “as estimativas da Pesquisa Nacional de Domicí-
lios (PNAD) de 2011 apontaram para um contingente de aproximadamente

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

Nesse cenário, é preciso ter em mente também que a


composição dos lares de nossas interlocutoras, a exemplo das
dinâmicas familiares de grupos populares (Fonseca, 2004),
organizava-se desde composições diversas. Em alguns casos,
incluía-se a existência de mais de uma casa em cada pátio,
sendo que os residentes destas viviam de maneira interdepen-
dente, e, de forma geral, havia configuração de laços de reci-
procidade construídas entre avós, filhos(as) e netos(as).
Ademais, a vivência da aposentadoria na atualidade não
se coloca mais apenas pelo processo de adaptação após con-
clusão de uma etapa alicerçada nas relações e práticas de
trabalho. A ampliação da expectativa de vida, com a possi-
bilidade de se viver de 20 a 30 anos via seguridade social, co-
loca desafios referentes à construção de um novo momento
de desenvolvimento. Estar em atividade, então, contrasta-se
com imaginário negativo vinculado à velhice, associado à inu-
tilidade, solidão e morte (Fontoura, 2015). Em que pese as ten-
tativas de diversificar suas rotinas, percebíamos reclamações
por mais atenção e atividades e o receio do adoecimento por
falta de ocupação. Luci, por exemplo, expressava significativo
desconforto em não estar trabalhando e, por algumas vezes
durante nossas interlocuções, voltou a ocupar-se como empre-
gada doméstica. Lamentava não estar entre as pessoas que via
sair para o trabalho cedo pela manhã e parecia sentir falta da
rotina e da regulação vital oferecida pela prática laboral, na
delimitação dos tempos.
Essa condição ambientou fortemente nossos encontros e con-
figurou a densidade das memórias a que tivemos o privilégio de
conhecer. Passemos aos percursos individuais e, neste ínterim,

23 milhões de pessoas com 60 anos e mais, o que representa cerca de 12% da


população brasileira, sendo que aproximadamente 15 milhões de idosos che-
fiavam famílias” (p. 107). Considerando a regularidade de ganhos de pessoas
aposentadas, o autor sinaliza ainda para a ampliação dos apelos do mercado
aos idosos, em atenção ao seu potencial de consumo.

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

também a outras condições comuns às experiências daquelas


mulheres, enunciadas gradativamente no curso das conversações.

2.1 Os itinerários em narrativa

Adiante, procuramos elaborar itinerários biográficos a


partir do que nos foi narrado. Em nossas entrevistas e rodas
de conversa, fomos apresentados às trajetórias destas mulheres
em um esforço que, vale ressaltar, consiste na construção de
uma linearidade onde não há. Consideramos que enunciar-se
significa produzir-se e, inspirados por Bourdieu (1996), lem-
bramos que há diversos fatores a influenciar tal produção –
uma preocupação com a cronologia, o postulado do sentido da
existência contada e o próprio ouvinte para quem a história é
narrada são alguns exemplos relevantes. Nesse sentido, a pro-
dução das trajetórias é sempre uma (re)invenção partilhada.
Em nossa composição, pretendemos apresentar as singu-
laridades de tais itinerários no intuito de destacar, ademais,
eixos de análise das condições e pertenças que perpassaram/
perpassam a feitura dos dias daquelas senhoras e também a
produção de suas individualidades como sujeitos. Apresenta-
mos nossa leitura do que nos chegara nos encontros, sem a
pretensão de encerrar interpretações; trata-se sim de um es-
forço de diálogo e reflexão visando uma narrativa plausível.

Helena: a família e a identidade pelo “cuidado”

“Esse professor vem aqui pra casa; passa a tarde conver-


sando e graças a Deus uma conversa boa. A gente quer con-
versar” (março/2015). Com essas palavras, principiou a en-
trevista individual que realizamos com Helena, em sua casa,
meses após o início de nossas interações. Já aí estavam estabe-
lecidos laços que transcendiam a relação educadores-educan-
da ou pesquisadores-pesquisada, e que abriam espaço para a

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

manifestação de declarações como essa, sobre a necessidade


de expressar-se e de ser ouvida.
Natural de região onde, atualmente, se localiza o municí-
pio de Barra do Ribeiro, interior do Rio Grande do Sul, He-
lena advinha de uma família de 10 filhos. Esta esteve presente
em muitas de suas falas, frequentemente representada pela
figura do pai, Lucídio, e nos enunciados sobre união entre os
familiares, orgulhosamente proferidos por nossa interlocutora.
Em nossas rodas de conversa quinzenais, a presença da filha,
Joice, e da neta, Nathália, era comum e suas vozes recebiam
acolhimento no desenrolar dos depoimentos de Helena.

Meu pai, apesar de ele ser uma pessoa boa, ele era muito
rígido. Ele não gostava de filho em praça, ele não gostava
de filho andando pra lá e pra cá... Então a gente ficava
em casa. Eu bordei, fiz crochê, fiz tricô, pintei tecido... A
gente era criada pra vida doméstica, pra dona de casa, fiz
todo o meu enxoval a mão. (Março/2015)

De uma família de agricultores com propriedade de culti-


vo, Helena iniciou sua vida laboral já na infância, colaborando
na enxada desde os seis anos. Relatou que os pais davam muita
importância à educação, mas que a mão de obra era também
necessidade, assim que ela e os irmãos davam conta do traba-
lho, incluindo-se, em seu caso, atividades e prendas domésticas.

E um rapaz, um dos colegas, me chamou de negra de


trança de gaita e eu só deitei o braço, amontoei ele em
cima da classe, e aí veio a diretora, veio a irmã, veio todo
mundo e chama a minha mãe. Veio minha mãe, minha
mãe já veio bem baixinho. “A sua filha vai ser expulsa do
colégio, porque ela bateu”. E a minha mãe disse assim:
“Dou um doce, fecho essa porcaria, mas a minha filha
fica aqui. Não foi ele que chamou? Então expulse ele, ou
eu termino com o colégio”. Acabou, ficou tudo na paz,

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

consegui me formar, se formar naquela época era fazer o


segundo grau.

Quando tinha aproximadamente 7 anos de idade, muda-


ram-se para a cidade de Tapes, onde ela iniciou os estudos em
escola pública, passando, em seguida, a uma escola particular
de freiras, com bolsa concedida pela prefeitura. Dos tempos de
escola, Helena contou-nos que, sendo a única negra no colégio,
sofreu com discriminações. Por conta de reação ao preconcei-
to, esteve perto de ser expulsa da escola, não fosse o veemente
posicionamento da mãe. Satisfeita, disse-nos que, como ela,
todos os irmãos concluíram a passagem pela escola. A mes-
ma importância deu para a educação de seus filhos – sua filha,
Junara, formou-se em Enfermagem pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul e os signos da formatura (em fotos e ade-
reços) decoravam a residência de nossa interlocutora. Escolha
de graduação significativamente ligada à trajetória de Helena.
Vale mencionar que a escolarização mantinha-se como
atividade simbolicamente valorada pela família de Helena.
Poderíamos citar exemplo de uma de nossas conversas, quan-
do vieram à tona as memórias da formatura da filha citada
acima. Mostraram-nos as fotos e contaram lembranças da
mobilização de familiares e conhecidos para viabilizar a cele-
bração do que entendiam ser uma conquista. Mencionaram
também as escolhas e as renúncias do percurso ao prioriza-
rem a conclusão do ensino superior pela parente. As falas de
Helena, da irmã e da sobrinha da formada versavam sobre
conquistas que não pareciam ser atribuídas exclusivamente à
estudante, mas ao coletivo, desde suas redes de reciprocidade
(entre familiares e amigos), num sobre-esforço que lembra os
argumentos de Lahire (1997) sobre as razões do improvável.
Sem a possibilidade de um acompanhamento regular por con-
ta das adversidades enfrentadas, a filha de Helena concluiu o
ensino superior sob os efeitos da ordem moral familiar, sendo

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

o itinerário escolar da mãe a referência normativa da perti-


nência da relação escola-emprego.
Falando sobre a constituição de seu núcleo familiar, Hele-
na narrou sua “trajetória de andanças”, conforme definiu. Aos
19 anos, “desobedecendo ao pai”, casou-se com homem 10
anos mais velho. Conforme se apresentavam oportunidades
de trabalho ao marido, migravam entre algumas cidades da
região metropolitana. Primeiramente, por indicação de um fa-
miliar, o esposo deixou o serviço no carregamento de sacas de
arroz em Tapes, para trabalhar em estaleiro em Porto Alegre7.
A esta época, Helena iniciou serviços de limpeza e como em-
pregada doméstica. Depois, mudaram-se para Guaíba, onde
administraram uma propriedade rural e um serviço de assis-
tência a dependentes químicos.
Nos anos 1980, já com três filhos, decidiram voltar à capi-
tal para que estes tivessem melhores oportunidades de escola-
rização e formação profissional. Dessa vez, estabeleceram-se
na Restinga Velha. “A gente foi para uma casa de madeira
igual a do lobo mau. Se soprasse ela caía. [...] Foi muito difícil
nossa vida aqui. Mas... a gente achou amigos” (março/2015).
Na fala sobre as adversidades de sua vida na periferia, emerge
a importância dada por Helena às amizades ali feitas, indi-
ciando-se as redes que suportaram sua existência. Neste sen-
tido, Nandi, amiga de Helena desde sua chegada à Restinga,
figurava de maneira emblemática em seus depoimentos – no
início, como referência de conhecimento da vida naquele es-
paço, e depois como parceira nos caminhos que traçaram jun-
tas, política e pessoalmente.
O envolvimento de Helena com a política poderia ser pos-
to com o seguinte trecho de sua entrevista:

7. Tratava-se do Estaleiro Só e Cia., atuante em Porto Alegre nos anos 1950 aos
1990 (Devos, 2015).

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Ah, a gente é metida. A gente se mete nas coisas dos ou-


tros, das coisas de gente grande. E a gente fala. Tem gente
que não fala. [...] Nós temos que discutir, nós temos que
brigar pelo que a gente acha que vale a pena.

Por vezes, durante o período de nossa interlocução, buscá-


vamos por Helena ou Nandi em suas casas e descobríamos não
estarem em função de eventos comunitários, nas áreas de saúde
ou educação. Sua arena política era a das lutas pelo bairro,
configurada a partir das necessidades pessoais e coletivas.
Segundo nos contou, a experiência de Helena após sua
chegada na Restinga foi organizada sobremaneira pelos cui-
dados da família, incluindo-se aí os filhos e o marido, já bas-
tante doente e a quem ela assistira mesmo depois de separada,
e pelo trabalho em enfermagem. Concorria para ocupação de
seus dias também a militância por melhores condições de vida
no bairro e a sociabilidades gestadas em vinculo à escola de
samba, ambas partilhadas com Nandi.
Há que se ressaltar, Helena afirmava com muito gosto sua
atuação como auxiliar de enfermagem. A oportunidade de
formação surgiu de contatos em um emprego de limpeza de
um colégio de freiras, na década de 1960. Animada, engajou-
-se no estudo e na prática de trabalho dentro de hospitais.
“Essa experiência de trabalhar em hospital é maravilhosa! [...]
é muito gratificante tu saber que tu contribuiu pra melhora de
alguém, é muito gratificante...”.
De uma parte, costumava enfatizar sua afeição pelo cuida-
do de outrem, sinalizando para sua pertença a atividades, não
raro, socialmente atribuídas ao feminino (Bruschini, 2007). De
outra, sua prática na enfermagem associava forte relação com
manifestação de sua espiritualidade. À medida que nos conhe-
cíamos, identificamos seu envolvimento com a religião Espíri-
ta. Em certa ocasião, contou-nos que era preciso confiar nos
médicos, mas seria necessário reconhecer que haveria quem

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

guiasse as mãos destes. Assim, apropriava reflexivamente o sis-


tema simbólico daquela doutrina ao seu cotidiano e, desta for-
ma, parecia tomar posição frente às vulnerabilidades sentidas
no trabalho de muitos anos.

Eles diziam “moça, me dá a mão pra mim não morrer so-


zinho”. Nunca me custou dar a mão, era só dá a mão pra
eles que eles ó, vão em paz. Só que eu pedia pra Deus,
bote essa criatura num bom lugar, sei lá eu aonde, não sei
se tem esse lugar, mas era só o meu pedido pra eles.

Nandi, política e lugar

Antes de conhecer Nandi, dela ouvimos falar. Referência


de liderança comunitária na Restinga, onde mora há mais de
40 anos, a nós se apresentou a partir de palavras engajadas.
Diria mais tarde que um dos maiores aprendizados recebidos
de sua mãe, sobre quem falou longamente na entrevista, foi o
de saber usar a sua voz, seu discurso político, sua sabedoria.
Prontamente dispunha-se a contar-nos passagens de sua
trajetória, iniciada em uma época em que o Hospital da Santa
Casa de Porto Alegre ainda ostentava uma “roda de expostos”.
Nascer mulher em uma família que esperava um filho homem
já seria razão para ficar na roda, disse-nos Nandi. Quando
criança, viveu com a família em Porto Alegre e, mais especifi-
camente, na região da Lomba do Asseio8. Neste sentido, recor-
dou tempos em que sua mãe abriu as portas da própria casa

8. Nessa região, no início do século XX, foi construído um trapiche para despe-
jo de resíduos domésticos levados nos cubos, recipientes fornecidos pelo poder
público às residências e recolhidos regularmente para fins de “asseio público”.
Dos anos 1950 aos 1990, a área foi ocupada pelo Estaleiro Só e, mais recente-
mente, converteu-se em espaço de disputas, dado crescimento da urbe e sua va-
lorização no mercado imobiliário. (Devos, 2015). Vale mencionar, Nandi disse
que seu pai fora cubeiro, realizando a troca dos cubos nas casas.

200
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

para alfabetizar crianças e adultos, em trabalho comunitário,


e os laços de sociabilidade do pai, envolvido com músicas em
bares ou com os amigos em casa.
Aos nove anos, após a aposentadoria de seu pai por adoe-
cimento, sua família mudou-se para a cidade de Osório, próxi-
ma da região de onde eram originários, no interior do Estado.
Então, Nandi foi deixada em um abrigo no bairro Indepen-
dência, cuja manutenção estava sob a administração de freiras
com quem a mãe tinha boa relação. A esse respeito, argumen-
tou da seguinte forma: “ela me deixou nesse abrigo porque
eu precisava; eles não queriam me levar pra fora até mesmo
na incerteza se haveria uma possibilidade de eu ser alguém
na vida” (abril/2015). Então, desde sua mirada retrospectiva,
teria se iniciado naquele momento uma trajetória permeada
por “lutas”, procurando narrar uma postura de superação de
várias adversidades – ainda criança, teria se posicionado re-
sistente à mudança e ao afastamento dos pais; e em relação à
permanência no abrigo, citou seus embates com atitudes racis-
tas que experienciara.
Permaneceu no abrigo até os 15 anos. Logrou chegar ao
quinto ano na escola e disse-nos que sua estada por lá incluía
trabalhar na limpeza das dependências, assim como a prestação
de serviços para famílias abastadas das proximidades, em la-
vanderia também mantida pelas freiras. Foi a partir de contatos
destas que, quando decidiu deixar o abrigo, conseguiu emprego
em uma casa de família. Então, iniciou um itinerário com várias
inserções laborais. A narrativa de Nandi sobre tal percurso era
perpassada também por críticas à discriminação racial, comen-
tando obstáculos do mundo do trabalho para uma jovem negra
nos anos 60. Do trabalho como doméstica, à rápida passagem
por trabalho administrativo numa emissora de TV e às vivên-
cias como funcionária de grandes hospitais de Porto Alegre, em
cada experiência, relatou situações de preconceito.

201
Leandro R. Pinheiro (Org.)

Trabalhava naquela mansão ali onde é o [Hospital] Pre-


sidente Vargas. Encontrei uma resistência de racismo
cruel. Que eu comi em prato lascado, bebia em xícara
lascada, copo rachado, pão de dois três dias antes.

Uma coisa que eu sempre notei quando eu ia pleitear


um emprego ou curso, coisas assim. Eu olhava pra ver
quantos negros tinham junto comigo ali e negro sempre
foi a minoria.

Eu consegui uma vaga mesmo, era pra trabalhar nesse


hospital através de um contato, de uma pessoa conheci-
da. Aí, lá eu inventei de tomar as dores e pegar a causa
em defesa dos meus colegas e ir contra o parente de um
paciente. Aí, eu fui, né, e a partir dali eu cavei uma briga
muito grande com o chefe da radiologia. Dele chegar a
ponto de dizer que eu deveria voltar pro balde e a vassou-
ra, porque naquele setor o negro era muito audacioso e
petulante de querer, né, chegar até lá.

À época de nosso diálogo, Nandi estava aposentada e vivia


com Ênio, que nos foi apresentado como parceiro de trajetória
desde os 20 anos, e com quem teve seus filhos. Com o esposo,
teria residido em vários bairros da cidade (Menino Deus, Bom
Jesus, São Manoel, etc.), em geral, sob condições vulnerabiliza-
das. A itinerância teria cessado quando se estabeleceu na Res-
tinga Velha. Mantinha contato com moradores do bairro, ami-
gos que residiam na Ilhota, no Areal da Baronesa e na Lomba
do Asseio e que haviam sido removidos para o extremo sul do
município. Estes a apoiaram para que encontrasse um lugar
por lá e, então, de maneira astuciosa conseguiu agenciar a ven-
da da casa onde morava9, emprestada por parente do marido,
e adquirir o espaço onde residia quando dialogávamos.

9. Nandi nos contou que morava no bairro São Manoel, em casa cedida por
parente de Ênio, que desejava vender o imóvel e precisava que o deixassem.

202
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Contou-nos que o espaço que naquele momento habita-


vam em nada se parecia com a Restinga que ocuparam 40
anos antes. Na época que chegou ao bairro, este não possuía
saneamento básico ou energia elétrica. Orgulhosa, narrou-nos
sua participação na mudança de tal cenário. Era o “[...] início
aqui da construção da Restinga [...] tava difícil, transporte,
educação, saúde. Foi aonde nós formamos o Clube de Mães.
[...] era uma das entidades fortíssimas que, que conseguia tudo
antes das associações” (abril/2015).
A arena política parece ter se configurado como um espaço
de distinção para Nandi. Já teria experienciado aproximações
em função dos interesses políticos e participações comunitárias
de sua mãe e, também, pela incursão em iniciativas de política
estudantil nos anos 1960, das quais se aproximara, inicialmen-
te, por contatos das freiras com quem vivera e das iniciati-
vas da igreja católica de que tomara conhecimento. Contudo,
quando passa a atuar na mobilização comunitária na Restinga
Velha conquista notoriedade na comunidade e, junto a outras
mulheres, se estabelece em disputas por recursos, acessando
departamentos políticos em espaços institucionais.
Entretanto, sua atuação política tendia à esfera comuni-
tária, com contatos episódicos com espaços institucionaliza-
dos, onde prepondera historicamente a atuação masculina,
em aproximação ao relatado por Sacchet (2009) acerca das
distinções de gênero na conformação de capitais sociais. Neste
Passavam por dificuldades financeiras e seu marido estava em viagem de tra-
balho quando apareceu na sua rua uma pessoa interessada em adquirir uma
residência. Tratou de oferecer a casa, estipulando um valor que lhe parecera
adequado. Depois, comunicou o proprietário, solicitou que lhe fosse pago uma
comissão e agendou uma reunião entre as partes no próprio imóvel. Como
estava com fornecimento de energia elétrica cortado, pediu que a vizinha lhe
ajudasse com uma extensão, tentando omitir a situação de pendências. Feita a
transação, recebeu a comissão e não entregou a casa sem antes pagar as contas.
Com o restante, comprou a propriedade na Restinga Velha.

203
Leandro R. Pinheiro (Org.)

sentido, quando narrou a transição de representação política


do clube de mães que coordenava para uma associação de mo-
radores, Nandi disse ter deixado a coordenação para outro ati-
vista, vizinho na Restinga Velha. Consideramos a hipótese de
que as diferenciações de gênero tenham sido fator importante
aqui. No curso do processo de mobilização popular que cul-
minou na organização e/ou fortalecimento de tais associações
entre o final dos anos 1970 e início dos 1980, em muitos ca-
sos com apoio e assessoria de militantes de esquerda (Armani,
1992; Feltran, 2007), Nandi parece ter cedido lugar quando a
arena política se estruturava aos moldes dos espaços públicos
de deliberação monopolizados por homens.
Sua atuação política e sua relação com o lugar também
se configuravam na organização de atividades da escola de
samba e pela fruição no carnaval. Nandi comentara memó-
rias da fundação da Estado Maior da Restinga e, em geral,
mostrava-se implicada com os rumos da administração des-
ta. Contou-nos que atuou por doze anos, em distintas funções
dentro daquela agremiação, nutrindo seu gosto pelo carnaval
e pelos desfiles – algo iniciado em sua adolescência, com o pai,
quando estes ocorriam ainda no centro da cidade. Em casa,
ela e Ênio ostentavam um grande mural de fotografias, indi-
cando sua sociabilidade junto às redes de produção musical
e carnavalesca: desfiles, pessoas famosas do meio, grupos de
amigos uniformizados pela escola de samba, relações de longa
data e constituintes de seu itinerário10.
A relação com o lugar se fazia presente nos depoimentos
de nossas interlocutoras e, de maneira patente, nas falas de

10. Importante destacar que as diferentes redes de pertença e ação citadas se


entrecruzam. As relações de Nandi com moradores de bairros que foram remo-
vidos para onde hoje é o bairro Restinga por exemplo, erigiram-se também pela
sociabilidade vinculada à musicalidade e às festividades associadas ao samba e
ao carnaval.

204
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Nandi. Ela enunciava conquistas da comunidade e o fazia


associando ao seu itinerário biográfico e à sua participação
em reivindicações. Não raro, posicionava-se contando acon-
tecimentos e tomadas de posição na busca de recursos para
o bairro e os ensaios fotográficos, neste sentido, guardavam
espaço especial para topos em que dizia representados poderes
da Restinga ou logros do ativismo político na conformação do
que a localidade comporta atualmente.
Como afirma Alicia Lindón em seu artigo, acreditamos
que, como uma das moradoras mais antigas na comunidade,
Nandi protagonizava um discurso narrativizado de memórias
do lugar, indicando forte articulação desta com a produção de
sua identidade. A narrativização sobre a história do locus, como
um dos aportes para construção socioespacial, tomava corpo
em nossos encontros e visibilizava, de um lado, uma produção
coletiva que nos antecedia e, de outro, se fazia operante no
próprio curso de nossas atividades com estas mulheres. Com
isso, queremos assinalar que percebemos inflexões nos depoi-
mentos das participantes durante o processo, sinalizando para
a apropriação da narrativa sobre as conquistas históricas da
população do bairro.

[...] Quando um grupo trabalha intensamente em conjun-


to, há uma tendência de criar esquemas coerentes de nar-
ração e de interpretação dos fatos, verdadeiros “universos
de discurso”, “universos de significação”, que dão ao ma-
terial de base uma forma histórica própria, uma versão
consagrada dos acontecimentos [...]. (Bosi, 1994, p. 67)

Nesse sentido, indiciava-se a adoção de uma concepção


que contrastava o início e o agora desde a indicação de ‘au-
sências’ e ‘conquistas’ respectivamente, o que guardaria rela-
ção com uma das características notabilizadas sobre o bairro,
a saber, sua organização político-comunitária. Indiciava-se

205
Leandro R. Pinheiro (Org.)

aproximações à “identidade bifronte” caracterizada por Lin-


dón acerca do território de Valle de Chalco, no México, de
forma que a identificação com o lugar e a narração topológica
do mesmo se organizava desde a atribuição de sentido a pon-
tos da comunidade mediante o evocar mnemônico dos feitos
que teriam criado a condição polarizada na história local. E
poderíamos aventar os limites de tal caracterização, dado que
não seriam somente ausências de início e que tampouco as
conquistas seriam suficientes ou satisfatórias. No entanto, para
fins de nossa análise, a construção socioespacial indicava parti-
cipação na produção identitária de nossas interlocutoras.
De forma geral, todas as participantes pareciam comun-
gar de tal compreensão ao final de nossas reuniões, tecendo
relações com suas vivências das adversidades na Restinga Ve-
lha. Contudo, havia nuances nas pertenças segundo o tempo
de moradia naquele espaço e as vivências fora daquela loca-
lidade. Luci, por exemplo, procurou visibilizar conquistas de
“lutas da comunidade” em suas fotos. Conforme nos contou
em outras ocasiões, ela não teria sido militante ativa, mas seus
ensaios mostravam que ela se sensibilizara com as buscas (ou
pelo menos com o ideário de superação). Já Antonia, embora
mencionasse também os logros da população, priorizava suas
atividades de lazer e, seguidamente, evocava memórias de si-
tuações de ócio e mais abastança da época em que vivera em
São Paulo. Estava entre suas fotos, por exemplo, a escola de
samba, mas, diferente das demais, sua frequência a este lugar
somente ocorria quando da votação do enredo do carnaval,
porque haveria parentes concorrendo. Assim, a vinculação à
escola se dava mediada por laços familiares e/ou de sociabi-
lidade, diversificando a pertença, distanciando-a do vínculo à
agremiação e do que ela representa topologicamente para as
ativistas da “fundação do bairro”.

206
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Luci e sua relação com o trabalho

Nosso diálogo com Luci consistiu em uma gradual constru-


ção de confiança e proximidade. Quando chegamos ao grupo
de mulheres, era ela também nova naquele espaço. Chegava
havia pouco tempo na “turma” e dizia sentir-se curiosa e ins-
tigada com o envolvimento cultural apresentado por Nandi.
Naquele momento, participava apenas de um grupo de dança,
algo que afirmou repetidamente ser um grande gosto. No de-
correr de nossa interlocução, no entanto, acabou desvinculan-
do-se da dança em função de demandas mais urgentes, como
o cuidado com os filhos e a própria saúde.
Caçula de oito irmãos, Luci saiu da cidade natal, Lajeado,
aos nove anos de idade. A família vivia do trabalho nas lavou-
ras, em fazendas onde acabavam também por solicitar área
para morar temporariamente. Segundo contou, este parecia
ser também o horizonte que se abria diante de si e, como não
gostava da lida na lavoura, saiu de casa para trabalhar como
babá na cidade de Quaraí, oeste do Estado. Embora fosse um
desejo seu, Luci contou-nos que teria sofrido com a mudan-
ça – ainda era pequena quando deixou a família para tomar
conta de outra criança.
Lembrava com saudosismo da infância, de brincar e tomar
banho de rio. Dizia-nos que:

[...] era muito bom; minha infância foi boa lá em Laje-


ado... é que eu que cismei de trabalhar, porque lá fora a
gente não tinha roupa, era assim, coisa que nos davam.
Desde pequena, eu era muito vaidosinha. Eu queria uma
roupa bonita. [...]. (Janeiro/2015)

Neste ínterim, Luci contou-nos que gostava do colégio na-


quela cidade. A instituição escolar se visibilizava em sua nar-

207
Leandro R. Pinheiro (Org.)

rativa como um tempo de não-trabalho; não exatamente uma


vinculação aos propósitos educacionais, mas à possibilidade de
não se onerar com as tarefas laborais precocemente assumidas.

[Em Quaraí] não recebia dinheiro; era só por comida e


roupa.
Quando a minha mãe foi lá me visitar, eu quis embora,
né. Só que eu não tinha falado nada pra patroa que eu
ia embora, mas eu tava com a malinha pronta. Falaram
Luci tua mãe ta aqui, eu já vim lá do quarto com a minha
malinha já. Ela [patroa] me batia porque eu não sabia
cuidar de uma casa. Também nem fui pra lá pra isso, né.
Mas daí ela começou a me empurrar serviço, serviço, que
eu não sabia fazer eu aprendi na marra, né. Ela disse que
lá tinha colégio perto. Não tinha nada. Aquele ano foi
perdido, eu só trabalhei.

Minhas irmãs viviam na Vila Cruzeiro, na Santa Luzia,


né. Era onde as pessoas mais pobres conseguiam arrumar
uma casinha e ficar. Que nem aqui né.
Todo mundo foi doméstica. Cozinheira de restaurante,
né. Só assim, todo mundo. As negas eram tudo boa de
cozinha né. (Janeiro/2015)

De Quaraí, onde vivera situação de trabalho semi-escra-


vo (que, astuciosamente, procurou deixar para trás), foi para
Porto Alegre. Aos 13 anos de idade, Luci seguiu os passos e
orientações de suas irmãs mais velhas que, antes dela, vieram
a Porto Alegre para trabalhar, integrando-se aos fluxos de êxo-
do rural no Rio Grande do Sul, embora antecedam o período
de crescimento ostensivo deste, nos anos 1970, por conta da
mecanização do campo (Schneider, 1994; Lageman, 1998).
Assim, iniciou uma trajetória em que trabalhava e morava em
casas de família, em diferentes bairros da capital.
Além da ajuda das irmãs, narrou o apoio de uma tia que
lhe ensinara a cozinhar. Neste sentido, descreveu sua sistemá-

208
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

tica de aprendizagem, que ia das orientações recebidas oral-


mente à experimentação das receitas e ao uso de um caderno
para anotar as alternativas que aprendia e que, inclusive, cos-
tumava utilizar como uma espécie de portfólio quando busca-
va novo emprego. Nos locais onde trabalhara, ocupava-se da
limpeza, da alimentação e dos cuidados das crianças das casas.
Apesar da rotina do trabalho, Luci compartilhou conosco
que também arrumava tempo para seu lazer. Disse-nos que,
durante sua adolescência e mesmo na vida adulta, frequentou
bailes nas vilas em que moravam as irmãs – Cruzeiro, Santa
Luzia e na própria Restinga, mais tarde. Porém, sendo mãe aos
22 anos de idade, sua rotina tornou-se mais intensificada e as
festividades foram gradativamente deixadas de lado. Tinha de
trabalhar como antes, cuidar da filha e administrar a própria
casa. Neste sentido, o cotidiano de Luci não teria se distingui-
do do tradicional papel atribuído às mulheres “[...] no que se
refere às tarefas domésticas e à responsabilidade pelo cuidado e
educação dos filhos”, como registrado por Assis (2007, p. 209).
Aliás, à exceção de Helena, nossas interlocutoras expe-
rienciaram precocemente o trabalho doméstico na casa de
outrem, em alguns casos sem remuneração, em troca de ali-
mentos e roupas. A atuação como empregada doméstica foi
narrada por todas. Situação esta que antecede, mas guarda
relações possivelmente com a bipolarização do emprego femi-
nino analisada por Bruschini e Lombardi (apud Lima, 2013)
desde o incremento da participação das mulheres, a partir
dos anos 1990, de forma que “[...] as mulheres provenientes
das classes mais pobres (majoritariamente negras) dirigem-se
para os empregos domésticos, de prestação de serviços [...]” e
à indústria, enquanto as de classe média (que têm acesso mais
regular à educação) centram-se na prestação de serviços, em
papéis administrativos e de educação ou saúde.
Uma marcante característica do trabalho doméstico como
ofício é que, salvo exceções, sua prática é condicionada a duplas

209
Leandro R. Pinheiro (Org.)

jornadas. No caso dessas quatro mulheres, a história se desen-


volveu assim. No momento de nossas conversas, questionamos
então a prática doméstica após a aposentadoria, já chegada
para todas. Oscilavam em suas respostas – ao passo que algu-
mas diziam ainda apreciar os cuidados com a casa, outras disse-
ram não quererem mais fazê-lo por já terem se cansado –, mas
se dava unânime quanto à necessidade: à sua maneira, cada
uma das mulheres seguia sendo responsável por essas tarefas.
De outra, a partir do trabalho doméstico, também, surgia
a imersão em cotidianos alheios àqueles em que foram conce-
bidas. Servir famílias abastadas garantiu-lhes eventuais aces-
sos materiais e culturais que originalmente não configurariam
seu campo de possibilidades. O efeito disso é, por vezes, uma
dura dualidade, em que, conhecendo e usufruindo recursos
que lhes agradaram, as mulheres os enunciavam preterita-
mente, condicionando-os à situação de empregadas11.
Habitar a Restinga para Luci, como para as outras três
mulheres, foi a opção possível para quem buscava moradia em
valores acessíveis em Porto Alegre. Mudou-se com o marido e
os filhos em meados dos 1980. Após dois anos de sua chegada,
a falta de estrutura e segurança da Restinga motivou a separa-
ção da família em duas casas diferentes: Luci ficou com a filha
mais velha na Restinga e o marido, com o filho mais novo.
Relatou-nos, saudosa, que manteve relação de apoio mútuo
com o ex-marido.

[...] ele ligava pro meu serviço: ‘ó domingo vamo ficar com
as criança nós dois junto’. Aí a gente ficava junto lá na

11. Para que tomemos um exemplo, segue uma citação de Helena: “eu tinha o
carro pra me buscar em casa. Quarta-feira eu tinha manicure e pedicure. E só
cozinhava, punha a comida nos pratos, arrumava direitinho e a copeira é que
levava lá dentro. Depois, eu fazia o cafezinho, a copeira levava também. Duas
horas eu estava voltando pra minha casa, a condução vinha me trazer em casa
de novo. Eu tinha uma vida de rainha, andando pra lá e pra cá” (março/2015).

210
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Redenção. Deixava eles brincar naqueles brinquedo [...]


E nós também botavam o papo em dia. [...] Eu sempre
digo, meu ex-marido, falecido, foi o melhor amigo que eu
já tive. Eu nunca mais vou ter um amigo que nem ele [...]
Tudo ele me ajudava, com dinheiro, com tudo. O material
escolar pras criança, a roupa, comida, né. (Janeiro/2015)

As adversidades e os desafios foram a tônica de sua narra-


tiva, intercalados por menções às relações com os filhos e às
preocupações do futuro destes12. Dizia-nos, certa feita: “[...]
desejo algo melhor pra eles do que o que eu vivi. Eu vivi a vida
inteira trabalhando pros outros, juntei pouco. Queria algo me-
lhor pra eles, terminar a escola, ter uma posição melhor”. A
esperança representada numa frase que poderíamos reportar
a outras pessoas (e não especificamente a Luci), indiciava, a
uma só vez, o horizonte de realização almejado, a posição sim-
bólica da escola neste sentido e as tensões concernentes à sua
trajetória de trabalho.
Ao mesmo tempo em que nos relatou ter festejado a che-
gada de sua aposentadoria, Luci contou-nos, também, estar
ansiosa para retornar ao serviço. O itinerário narrado trazia
as incursões no mundo do trabalho como garantia de subsis-
tência, mas estas parecem ter operado também na socializa-
ção de um modus operandi, pelo qual ela definia a pertinência do
que ocupava seus dias.

12. No sentido de reforçar que nossa narrativa se constitui em um recorte deli-


mitado pelos diálogos oportunizados, relatamos aqui um encontro ao acaso com
Luci, que nos trouxe mais informações sobre seu itinerário: “À época da escrita
de nosso capítulo, encontrei-me com Luci por acaso, em um ônibus no caminho
do centro da cidade. Era domingo de manhã e logo me informou que estava indo
à Igreja Universal. Levava consigo duas garrafas de água para serem ungidas na
igreja. A água seria bebida por ela e por membros da família que esperava serem
abençoados com melhoras de saúde... Por acaso, ‘descobri’ a religiosidade de
Luci, ainda não enunciada em nossos encontros quinzenais: contou-me ir todo
domingo nos cultos” (Diário de campo de Bruna, agosto/2015).

211
Leandro R. Pinheiro (Org.)

Às vezes, eu me levanto; eu sento aqui com um cafezinho


de manhã. Eu, sete horas já to aqui sentada. Aí eu vejo a
mulherada passando, indo trabalhar. Tenho muita sauda-
de de trabalhar, não sei nem porque eu parei.

Ao cabo de nossa interlocução, Luci já havia arranjado um


novo emprego como empregada doméstica, o que a satisfazia
explicitamente.

Antonia, a fruição e a pergunta pelo racismo

“Não tenho joias, não tenho terreno, não tenho casa na


praia... Mas pra mim, eu sou contente com o que eu tenho.
Sou feliz.” (janeiro/2015). O “balanço” de Antonia sobre sua
vida foi-nos feito em um momento de reflexão sobre seu lazer,
sobre como aproveitou o tempo livre com viagens e passeios
em diferentes ocasiões de sua trajetória. De fato, a convivência
com ela apresentou-nos uma intensa apreciadora das alterna-
tivas de fruição e entretenimento.
Em Santa Cruz do Sul, Antonia nasceu em uma família de
muitos filhos e de uma avó muito presente. Ao invés de mãe e
avó, contou-nos ter tido a “Mãe Nova” e a “Mãe Véia”, que
cuidava dos netos enquanto os pais trabalhavam. Também as-
sim, desde a infância, teria sido ensinada sobre como cuidar de
outras crianças, da casa, da alimentação. Já aos doze anos, au-
xiliava a mãe no cuidado de uma casa na qual, anos mais tarde,
tornar-se-ia a empregada – vivendo, inclusive, com a família
que atendeu por quase 10 anos após a morte de sua mãe13.

13. Retomando a questão de gênero, podemos estabelecer um paralelo em re-


lação às diferenciações no acesso à escolarização. O acesso à educação não se
dava uniforme e obrigatório para todas as crianças; dessa forma, por vezes as fa-
mílias faziam opções, priorizando o estudo de alguns de seus filhos. É o caso da
história de Antonia, por exemplo. Com a morte da mãe, o pai toma a decisão de
doar os filhos, por não enxergar condições de criá-los sozinho. Os filhos homens
encaminhou para orfanatos, em que receberiam cuidados e educação: “um de-

212
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Sua família já tinha se mudado para a cidade de Viamão


quando, aos 19 anos, a partir de contatos do pai14, Antonia con-
seguiu um emprego como babá na cidade do Rio de Janeiro.
Deixava Porto Alegre para conhecer outros lugares e pessoas.
Inicialmente cuidando de crianças e, depois, como cozinheira,
trabalhou o suficiente para manter-se e poder contribuir ativa-
mente na renda da família que havia ficado em Porto Alegre.
Após dois anos, voltou à capital gaúcha para o casamento da
irmã. Ali ficou – o pai havia adoecido e requeria cuidados.
Refletindo sobre essa época de sua vida, Antonia recordou
a certeza que tinha em relação ao “seu lugar”. Compartilhou
conosco o que sentia e os meios de que usou para deixar, nova-
mente, sua vida em Porto Alegre e retornar ao centro do país:
“[...] eu sabia que eu não ia ficar mais em Porto Alegre. Eu ia
embora. Eu queria ir. E aí eu arrumei: eu comprei um jornal, vi
um outro emprego de babá, pra ir pra São Paulo”. Então, tra-
balhando como babá para diferentes famílias, Antonia vivenciou
distintas experiências – houve lugares em que foi contratada for-
malmente, acolhida e bem tratada. Houve também, no entanto,
momentos a que referiu dificuldades, em que se viu forçada a
deixar o trabalho diante de maus tratos e abuso dos patrões.
Dentre suas experiências de trabalho, aquela que mais re-
feria era a de empregada em serviços gerais em um grande
escritório na Avenida Paulista. Esta atividade a levaria a aten-
der, depois, a família proprietária do negócio. Durante muitos
les foi pro Ana Jobim, que ainda tem lá em Viamão; outro foi pro Pão dos
Pobres. E as gurias, ele arrumou casas de família, né” (Antonia, janeiro/2015).
14. Segundo contou Antonia, seu pai trabalhara nas lavouras de fumo da região
de Santa Cruz do Sul e, mantinha relações próximas com famílias abastadas da
cidade, seus patrões. Ademais, quando criança ainda, teria sido tomado por um
casal de alemães para que falasse português com seus filhos, tornando-se empre-
gado da residência enquanto estivera solteiro. Tal condição singular parece ter
oportunizado uma rede de relações diferenciada e, então, algumas possibilida-
des de trabalho por indicação para ele próprio e para seus filhos.

213
Leandro R. Pinheiro (Org.)

anos, trabalhou na residência desta e, disse-nos com satisfação,


ter usufruído da infraestrutura da casa. A uma só vez, a diver-
sificação de experiências ensejadas pela inserção de trabalho
e a ambientação da “captura em voo”, conforme assinala Mi-
chel De Certeau (2011) em relação ao “cálculo que não pode
contar um próprio” (p. 44).

Quando eu ia embora, a dona falava: “leva comida pra


você e pra sua amiga”. Tudo que era bom, eu nunca ti-
nha comido coisas que eu comi lá; que eu conheci lá. Foi
muito bom. E eu fiquei até me aposentar, depois que me
aposentei.
Quando eles viajaram uma vez, ficaram bastante tempo
no Japão. E a Adriana, minha sobrinha, tirou férias e o
outro sobrinho. Eles foram pra lá e ficaram lá, na casa,
na mansão. E tinha guarda, guarda na rua e guarda den-
tro, e caseiro, e mais eu e tinha uma casa lá; todo mundo
tomava banho de ofurô.

Antonia estava aposentada, morando em uma casa por


ela comprada na Restinga havia oito anos. Tinha a adquiri-
do antes mesmo de retornar a Porto Alegre, por intermédio
de sobrinhos. Chegou à Restinga com uma rede de contatos
que se resumia aos familiares, após anos afastada. Motivada a
expandi-la e a recomeçar os estudos, retomou o ensino funda-
mental, interrompido por conta de seu trabalho, ainda em São
Paulo: “[...] fui estudar; estudei no Paulo Freire dois anos. Ah,
foi tão bom, fiz amizades”.
Não hesitava em expressar contentamento com nossos ca-
fés quinzenais, com os momentos de descontração que com-
partilhávamos. Da mesma forma relacionou-se com a propos-
ta das fotografias e das posteriores intervenções. Demonstrou
gosto e curiosidade pela ideia, dizendo-nos que nunca havia
feito nada parecido: trabalhar com materiais de artesanato lhe

214
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

remetia a atividades escolares, algo que lhe teria sido impossi-


bilitado na infância, segundo contava.
Ademais, com prazer, compartilhou conosco as memórias
dos lugares que já havia conhecido no Brasil. Gosto iniciado
enquanto vivia em São Paulo, viajar seguiu sendo uma prática.
Narrava suas atividades de lazer e entretenimento como fun-
damentais. A prática da hidroginástica, por exemplo, foi-nos
ressaltada mais de uma vez como algo indispensável – apesar
das concessões financeiras que tinha de fazer, não abria mão
do lazer, dos cuidados com a saúde e da sociabilidade com o
grupo de senhoras que lá se exercitava.
Antonia procurava diversificar suas ocupações cotidianas.
À época de nossa interlocução, participava de um coral e de
uma Pastoral Afro em que se engajara por convite de amiza-
des feitas em seus passeios. Disse-nos que nos debates iniciais
sobre etnia, sentia-se distante por não haver identificado em
sua história situações de racismo. Mesmo em nossos encon-
tros, em que debatíamos os mais diversos assuntos, quando
o racismo era tema, ela dizia se surpreender por ser a única
dentre as quatro que não recordava de ter sido discriminada.
À medida que seguiu sendo provocada a refletir por seus pa-
res, no entanto, contou-nos ter mudado de ideia, repensando
experiências. Então, certa vez, narrou circunstâncias em que
referir-se a alguém como “negra de alma branca” teria sido
considerado elogio.
Conforme procuramos assinalar, a questão étnica e, mais
especificamente, as vivências de discriminação racial se colo-
cavam de maneira manifesta em nossas conversações, em meio
ao relato de casos de segregação e exploração nos percursos
biográficos de nossas interlocutoras. Aproximamo-nos, neste
sentido, às inferências de Lima (2013) acerca da condensação
de raça e gênero como uma histórica marca de desvantagem
social, de forma que tais atributos “[...] atuam de maneira de-
cisiva na definição da posição social dos indivíduos” (p. 53).

215
Leandro R. Pinheiro (Org.)

Havia relatos mais reflexivos, mesmo engajados, como os


de Nandi, e havia também aqueles reinterpretados à medida
que eram narrados ou interpelados pelas questões do outro.
Em nossos encontros, não raro, sentíamo-nos inquietos com as
relações de exploração relatadas e lançávamos perguntas sobre
as condições de preconceito e discriminação. De certa forma, é
preciso salientar que, dispondo-nos aos diálogos, participamos
das disputas por enunciação junto às nossas interlocutoras e,
neste ínterim, problematizamos as pertenças étnicas em jogo.
Como nos lembra Hall (2003), a cultura é um campo de
disputa. O que a interação com essas mulheres nos sinaliza é
que a condição étnica não poderia ser caracterizada de ma-
neira uniforme. A apropriação de elementos afirmados como
herança afrodescendente variava a cada pessoa neste micro
espaço de relações: ora presenciávamos explicações sobre divi-
sões existentes entre os grupos de escravos vindos para o Bra-
sil; ora encontrávamos pessoas que haviam recebido o título
de griot sem compreender claramente que relação guardava
com o que faziam; ora, como já mencionado, situações de ra-
cismo eram criticadas, noutras vezes, o preconceito não era
visibilizado nos enunciados. Na maioria das vezes, a herança
étnica parecia ser vivenciada como condição; noutras vezes,
experienciada como identificação cultural e, em algumas pou-
cas, como reivindicação de identidade política.
É relevante o destaque de que, ainda que familiarizadas
com o trabalho desenvolvido pelos grupos de militância da
causa negra na cidade de Porto Alegre, essas mulheres não os
integrassem. Helena e Nandi, as mais articuladas politicamen-
te dentre as quatro, reclamavam um processo de elitização do
movimento, tornando-se “acadêmico” e distanciando-se dos
negros das periferias. Nandi nos relatou, inclusive, uma parti-
cipação em um evento que se propunha a debater a questão
étnica e que, para sua insatisfação, apresentava mais partici-

216
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

pantes brancos do que negros; mais do que isso, disse-nos esta-


rem os negros sentados ao fundo do salão.
Não obstante os ganhos de reconhecimento do debate so-
bre a questão racial, visualizado, por exemplo, na ampliação
da autodeclaração entre pardos e negros (Lima, 2013), as rei-
vindicações políticas mais contundentes entre nossas interlo-
cutoras eram aquelas narradas em associação às conquistas
de recursos e acessos materiais e culturais para sua localidade.

3. Desde os percursos, considerações sobre as condições para


individuação

É mister reavivar o já dito: as análises aqui resumidas não


pretendem encerrar a vastidão de elementos que constituem
as experiências das pessoas que viemos a conhecer. Os itinerá-
rios apresentados comportam narrativas intencionadas, com
realce a aspectos que desejamos problematizar na configura-
ção de um espaço de possíveis para mulheres em bairros de
periferia e, neste cenário, na análise das pertenças que desen-
volvem e/ou agenciam e das condições de individuação que
condensam. Desta forma, seguiremos em nossos argumentos
destacando algumas das redes e dos capitais que suportaram a
existência de nossas interlocutoras e as provas-desafios que se
entrelaçavam aí, numa aproximação às provocações de Mar-
tuccelli (2006; 2007).
O primeiro ponto a realçar diz respeito à recorrente valo-
rização de passagens com familiares em nossas interlocuções.
As fotografias trazidas ao diálogo no início ou mesmo as ima-
gens geradas nos ensaios traziam o tema à baila e sinalizavam
para laços de reciprocidade a sustentar o passar dos dias.
Os itinerários narrados acentuavam a importância de la-
ços familiares na viabilização de apoios eventuais e, sobretudo,
foram as redes gestadas a partir daí que configuraram as possi-
bilidades e/ou contingências de trânsito no início dos percur-

217
Leandro R. Pinheiro (Org.)

sos biográficos. Neste sentido, as dinâmicas familiares ambien-


tam provas associadas à subsistência, interpelando em certo
“fazer por si” e, neste ínterim, instigando individuação. À ex-
ceção de Helena, cuja juventude foi vivenciada na passagem
de seu núcleo familiar originário para a composição de outro
mediante casamento, estas mulheres cedo foram lançadas à
responsabilização em atividades laborais e ao trânsito por dife-
rentes espaços (residências ou, no caso de Nandi, um interna-
to), conforme possibilitaram as redes formadas por seus pais.
Poderíamos citar como exemplo as lembranças de Antonia:
segundo recomendava seu pai, “pobre tem que procurar uma
árvore que tenha bastante galhos e que dê bastante sombra”.
Referia-se à tática de distribuir as filhas entre as famílias abas-
tadas com quem estabelecera relações. Rede esta associada, de
outra parte, a interações pessoalizadas, de exploração e discri-
minatórias, onde se situavam as artimanhas de quem não tem
um “próprio” (De Certeau, 2011).
As relações na família também condensam provas se ob-
servarmos a atuação presente e as projeções daquelas mulhe-
res quando versavam, sobretudo, sobre seus filhos. Aqui, as
diferenciações de gênero dispõem desafios relativos à manu-
tenção e coesão dos núcleos e à proteção e promoção daqueles
que criaram e com quem procuram manter laços de reciproci-
dade, compondo um espaço de ação, de disposições naturali-
zadas e, ainda, de compromissos delimitadores/tensionadores
de êxitos e fracassos15. E, vale assinalar, atualizadas junto às
redes familiares, estavam as referências simbólicas a paren-
15. Guardadas as consideráveis diferenças culturais em relação às periferias em
Moçambique, os arranjos relacionais analisados por Ana M. Loforte em seu
artigo parecem sinalizar também para a configuração de um espaço de ação
estruturado por diferenciações de gênero, atribuindo à atuação feminina em
localidades vulnerabilizadas, a uma só vez, papel importante na garantia da
subsistência e uma condição de exploração naturalizada. De outra parte, vale
frisar, a caracterização que apresentamos aqui precisaria ser ponderada desde
um coorte etário.

218
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

tes (pais, mães, irmãs...), a significar e suportar as tomadas de


posição de nossas interlocutoras pela coesão em relações que,
para elas, vinham sendo relevantes na garantia de acolhida e
de subsistência frente ao precário.
Redes de outras ordens parecem ter configurado também o
espaço de possíveis de nossas interlocutoras, convertendo-se em
uma espécie de capital social muitas vezes. A qualidade deste
capital parece ter sido um dos fatores de distinção dos itinerá-
rios. Se Antonia e Luci tiveram oportunidades contingenciadas
pelas condições e relações de seus familiares e, então, fizeram
do trabalho um espaço importante de aprendizagens e sociabi-
lidades até a aposentadoria, Helena e Nandi integraram redes
mais diversas, incluindo-se as sociabilidades vinculadas à con-
dição e territorialidade étnica e/ou cultural16 (negra, musical e
carnavalesca) e as articulações políticas, que, por sua vez, eram
moduladas uma vez mais pelas diferenciações de gênero: seja
na delimitação do espaço de ação, seja na configuração de la-
ços de apoio entre mulheres, que, inclusive, presenciamos nos
cuidados mútuos em nosso próprio grupo de encontros.
Então, a relação com o território se configura como outro
espaço de provas. Seja na consolidação de moradias (e da es-
tabilidade que representam), seja nas reivindicações por me-
lhorias infraestruturais no bairro, as lidas com espaço citadino
conformou uma das arenas de disputas no qual precisavam e
procuraram se afirmar17, desde o qual algumas alicerçaram

16. Referimos tanto os espaços citadinos em que estivera/está situada (ou a que
estivera/está relegada) a população negra, quando as redes de sociabilidade e
circulação gestadas junto às práticas musicais, carnavalescas e religiosas que
desenvolvem (Sommer, 2005; 2011).
17. E a relação com o território remonta a situações de migração campo-cida-
de. Neste caso, indica-se que os deslocamentos ocorreram não necessariamente
como decorrência direta da mecanização do campo, mas pelo efeito articulado
de concentração de recursos na região metropolitana da capital do Estado (via
industrialização e urbanização), e as promessas de alternativas ampliadas de
subsistência e mobilidade social que são atreladas a estes contextos, ainda que

219
Leandro R. Pinheiro (Org.)

processo de identificação e lograram certa distinção ao inte-


grar a narrativização dos feitos e conquistas da comunidade.
Em que pese a estigmatização dos moradores da Restinga Ve-
lha, as insuficiências estruturais ainda existentes lá e o distan-
ciamento da localidade de espaços centrais e mais valorizados
da cidade, aquelas mulheres procuravam sobrepor as conquis-
tas para assentar o reconhecimento de suas experiências18.
Concorre para a diferenciação em foco, também o domí-
nio de capital cultural. As incursões pela escola, à exceção de
Helena, foram fragmentadas, de forma que o campo educa-
cional não configurou espaço de disputas efetivo nas trajetó-
rias. Na maioria dos casos, contudo, era enunciado por sua
valorização simbólica; erigia-se nas narrativas por funcionali-
dade às oportunidades laborais e possibilidades de ascensão e
era referido sobretudo em relação aos filhos.
O lugar da escola como espaço de provas precisa ser pon-
derado em relação aos demais elementos do espaço de possí-
veis daquelas mulheres. Para Helena a escolarização se esten-
deu até a formação técnica em enfermagem, oportunizando
melhor condição de empregabilidade, por conta da constitui-
ção de uma moral familiar neste sentido. Já Nandi, relatava o
aprendizado de códigos formais na socialização das redes de
ação política e do trabalho (e não só na educação básica, con-
cluída somente depois dos 40 anos), onde teria se sentido esti-
mulada a ouvir, ler e aprender a falar “corretamente”. Entre-

os acessos aos recursos se erija de maneira ostensivamente desigual. O período


reconhecido como de “substituição de importações” (1930-80), que acaba por
compreender a migração de nossos interlocutores, foi caracterizado pela forma-
ção de áreas geograficamente periféricas nos principais polos metropolitanos do
país (Ribeiro, 2006).
18. Não há como não assinalar os tensionamentos neste quesito. A relação com
o território era experienciada entre a angústia da comparação com outras lo-
calidades e as memórias das mudanças produzidas no bairro, a indiciar parâ-
metros de distinção e mobilidade e, ademais, uma maneira de se viver e erigir
a prova-desafio.

220
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

tanto, no caso desta, para além da aprendizagem da escrita e


da aritmética para fins instrumentais, há que se registrar que a
escola suportou a militância de nossa interlocutora em função
da sociabilidade oportunizada, destacadamente pela inserção
política que instigara.
De outra parte, a partilha de saberes vinculados à vivência
musical e artística (neste caso, sobretudo carnavalesca) ambien-
tava capital cultural específico e, partir deste, erigiam-se rela-
ções que poderiam convertê-lo em novo capital social. Não raro,
contavam-nos relações que oportunizavam momentos de frui-
ção e entretenimento e traziam ao cotidiano experiências distin-
tas da estrita busca de subsistência. Também a sociabilidade en-
gendrada pela fruição musical e festiva ambientava situações de
apoio e reciprocidade, quando não de protagonismo político19.
Ademais, devemos mencionar as referências simbólicas e
as relações construídas na associação a igrejas ou na integra-
ção a grupos de sociabilidade e lazer. Na narrativa de Helena,
a expressão de religiosidade se indiciava como base no con-
fronto das adversidades do trabalho na enfermagem, destaca-
damente nos anseios do convívio com a finitude da vida. As
demais também a verbalizavam recorrentemente nas conver-
sas e nos causos, numa apropriação que nem sempre indica-
va filiação institucional, mas refletia referências e justificação
para as ações frente ao imponderável.
E a integração a grupos de sociabilidade e lazer compõem
um suporte vinculado mais enfaticamente à condição presente
de idosas e aposentadas. O desafio posto de encontrar arenas
19. Vale lembrar que a ida de Nandi para a Restinga, por exemplo, para além
da forma astuciosa com que protagonizou a conquista de recursos para tanto,
contou com a orientação e apoio de amigos que já residiam por lá, com quem
mantinha laços também pela sociabilidade em festividades de carnaval. Noutro
exemplo, cabe citar o envolvimento de Nandi (e seu esposo) na organização
da escola de samba do bairro e, mais recentemente, na participação deles e de
Helena nas disputas por delimitação do local da sede da mesma.

221
Leandro R. Pinheiro (Org.)

de atuação e sentidos para a ação parece fazer da integração


a novos coletivos a possibilidade de amparo e a busca por ga-
rantir lugar ao que sabem e gostariam de partilhar e/ou re-
compor a experiência do tempo quando as rotinas laborais já
não organizam mais as rotinas. Torna-se muito significativo
encontrar quem as escute ou, então, com quem compartilhar
atividades novas quando as possibilidades criadas por certa es-
tabilização de ganhos e acesso a crédito permitem que ecoem
as interpelações pelo consumo do supostamente distinto (Fon-
toura, 2015).

***

Considerando as esferas de atuação e as provas e suportes


que procuramos esboçar acima, tentamos destacar a impor-
tância das redes de reciprocidade e de sociabilidade, das per-
tenças e de algumas referências simbólicas para a subsistência
em contextos onde os aparatos estatais são insuficientes ou tem
presença marcada mais regularmente pela força e repressão.
Além disso, procuramos indicar suas contribuições para o en-
fretamento de provas e, então, para a disposição de condições
de individuação.
De forma geral, as arenas de atuação carregavam con-
dicionamentos de gênero e étnicos (associados a materiais) e
os trabalhos logrados eram aqueles de remuneração inferior.
Ratts (2003) traz, neste sentido, análise pertinente das relações
entre gênero, raça e espaço nas trajetórias de mulheres negras
e acaba por reportar um histórico de migrações e inserções
laborais precarizadas, delimitando territórios de circulação e
tipos de trabalho na cidade, referindo a recorrência dos servi-
ços como empregada doméstica. Um cenário que parece com-
por parte da realidade narrada aqui. A origem e o trânsito em
situação bastante precarizada (que se atualiza na vivência do
racismo e da inculcação de ofícios generificados) faz perdu-

222
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

rar a segmentação e a desigualdade mesmo quando se tem


conquistas históricas notórias (casa de alvenaria em área com
saneamento, fornecimento de energia elétrica e água; a condi-
ção formal de aposentadoria)20.
As provas em jogo nas trajetórias narradas direcionavam-
-se sobremaneira às buscas por subsistência e, por conseguin-
te, ao mundo do trabalho. A conquista de vínculos formais e,
em alguns casos, estabilidade funcional ou o que era narrado
como certas “regalias” resultantes dos laços de emprego, eram
mencionados em narrações reiteradas das superações e pro-
ezas. Diríamos mesmo que o fio condutor das narrações se
orientava pelo contar do percurso das realizações protagoni-
zadas e, aí, as ocupações laborais tinham lugar expressivo.
Nesse cenário, consideramos a hipótese de que as condi-
ções de individuação eram perpassadas por dois modos de
ação principais. De um lado, temos o efeito de uma respon-
sabilização precocemente vivida e visibilizada nos itinerários
biográficos, quando precisavam trabalhar para famílias mais
abastadas em atividades domésticas e de cuidado, ou mesmo
quando exerciam tais atividades nas casas de seus próprios nú-
cleos familiares. E este é o cenário também de instauração do
trânsito e da astúcia na feitura dos dias21: a diversidade de ex-

20. Em nosso entendimento, os diálogos em campo fazem reforçar que ganhos


econômicos efetivos venham mesmo com crescimento estrutural, aumento real
de salários e valorização dos trabalhadores e/ou com o ingresso em condições
laborais mais qualificadas. As redes sociais em análise e os capitais que consoli-
dam garantiram a sobrevivência e tornaram os dias mais confortáveis e alegres,
mas prescindir de investimentos vultosos de recursos seria ignorar as substan-
ciais desigualdades em jogo.
21. O estabelecimento de redes de contatos, por exemplo, aparece nas referidas
narrativas como um recurso potente: [...] eu cavei uma briga muito grande com
o chefe da radiologia. [...] E a minha equipe, covardemente, lá pelas tantas,
quando viu que ia, que se ficasse do meu lado ia perder o emprego, eles começa-
ram a se aquietar num canto e eu fiquei sozinha. [...] eu me queixei uma vez só
pros meus padrinhos, aquelas pessoas que me conduziram praquele local. [...]

223
Leandro R. Pinheiro (Org.)

periências a configurar itinerários construídos desde a neces-


sidade de “fazer por si”, quando as condições de suporte não
garantem existência estável e segura, parece operar na forma-
ção dos indivíduos, conforme estes precisam produzir táticas e
agenciar redes no enfretamento dos desafios interpostos pela
precariedade de condições de vida. Aqui, aproximamo-nos da
concepção de um “individualismo agêntico”, como proposto
por Danilo Martuccelli.
De outro lado, temos a individuação em casos de distinção
relativa, por conta da inserção em campos de ação específicos,
conquistando certa notoriedade conforme os capitais sociais
de domínio. Referimo-nos às arenas política e cultural, onde
Nandi e Helena atuavam, logrando reconhecimento pelo me-
nos nos limites de sua comunidade. Neste caso, o efeito da
narração se faz presente de maneira manifesta, dado que as
posições de proeminência ocupadas parecem ter ensejado a
comunicação dos feitos e, então, das memórias da atuação
pessoal. Então, a narrativização se mostrava de forma patente
como artifício não só de expressão da singularidade conce-
bida, como personagem das realizações, mas como processo
próprio da gestação do identitário e individual.
De certa forma, inclusive, alimentamos a expectativa de
que tenhamos participado desse processo, com nossa presen-
ça e com as perguntas que lançamos quando as convidáva-
mos a narrarem-se.

ele era o todo-poderoso, que era inclusive o meu padrinho. Aí, ele disse “Não,
Nandi, vamos fazer o seguinte: tu, só, tu aguenta um pouquinho mais lá” [...]
Aí, eu fui deslocada pro sexto andar” (Nandi, abril/2015).
Conhecia as mulheres até no supermercado: “não, eu trabalho com os donos,
a senhora assim e assim”. “Bah, quanto é que tu ganha? Eu to pagando tanto”.
“Ah, se me quiser eu já vou [risos]; me dá o endereço”. Quando via, já fazia
minhas trouxinhas, já ia lá pra outra. [...] Eu aprendi a viver a viver sozinha, né
(Luci, janeiro/2015).

224
Nos labirintos da vida, os arranjos de se viver: a
experiência de jovens numa periferia

Márcio Amaral
Maurício Perondi

Refletir sobre as trajetórias dos jovens em nossa sociedade


exige olhar para as diferentes formas como estes vivenciam
sua situação juvenil nos espaços sociais onde estão inseridos.
As formas como cada sujeito experiencia sua juventude está
associada ao contexto social, cultural, político e econômico,
o que produz uma multiplicidade de expressões e contornos
que pluralizam as juventudes. Miguel Abad (2002) aponta que
existe uma condição juvenil,

o modo como uma sociedade constitui e significa esse


momento do ciclo da vida que entendemos por juventu-
de, mediada pelas relações de incorporação à ‘vida adul-
ta’, principalmente pela vinculação funcional dos jovens
com as instituições de transição. (p. 129)

Como o trabalho, o casamento, a moradia individual, en-


tre outros. Porém, este trânsito pelo circuito “família-escola-
-trabalho/emprego-mundo adulto” tem apresentado formas
cada vez mais assimétricas e não-lineares, sendo um equívoco
generalizar estes aspectos para todos os jovens, uma vez que
são distintas as possibilidades de se viver tal condição e são
múltiplas as estratégias encontradas por esses sujeitos para vi-
ver este período.
Dessa maneira, somente a partir das próprias trajetórias ju-
venis que encontramos pistas para compreender os diferentes
modos de ser jovem em suas diversidades de expressões, ma-

225
Leandro R. Pinheiro (Org.)

nifestações e sentidos produzidos. Uma forma de pensar essas


relações é apresentada por José Machado Pais (2001; 2003) a
partir de três metáforas que podem ser relacionadas às trajetórias
juvenis: as viagens de trem, as viagens de automóvel e o labirinto.
Nas décadas subsequentes ao pós-guerra, à transição dos
jovens para a vida adulta assemelhava-se às viagens de trens, onde
as estradas de ferro e as estações determinavam os percursos
dos jovens de acordo com sua classe social e gênero, consti-
tuindo comboios com destinos e oportunidades previamente
determinados e com limitadas possibilidades de transformar
os trajetos. No curso do desenvolvimento das sociedades capi-
talistas, as transições passaram a se assemelhar com as viagens
de automóvel, onde o condutor encontrava-se em condição de
selecionar seu itinerário, tendo em vista uma diversidade de
alternativas que se apresentavam em função de sua experiên-
cia ou intuição. As estradas marcavam certa delimitação, mas
a condução permitia variar os destinos, experimentar percur-
sos diferenciados, ir e voltar e com certo esforço, chegar a des-
tinos não imaginados.
Entretanto, na contemporaneidade, com o capitalismo pós-
-industrial e as relações de uma sociedade globalizada, um novo
contexto emerge para se pensar as trajetórias juvenis: então.
Ganharia lugar a metáfora do labirinto. A variedade de possi-
bilidades e de situações, a pluralidade de caminhos e condições,
a falta de linearidade e a assimetria nos trânsitos sociais fazem
com que os jovens vivenciem uma condição labiríntica, onde ca-
minhos precisam ser descobertos a partir da experiência pró-
pria, perigos enfrentados com as ferramentas disponíveis, es-
tratégias e soluções buscadas em suas próprias biografias. O
labirinto, conforme reflete Pais (2001), opera a partir de uma
complexidade inteligente: mostra-se arriscado pela possibilida-
de de perder-se, exigindo astúcia e preparo daquele que tran-
sita por seus caminhos e, em certa medida, apresenta o prazer
em perder-se, em descobrir novas possibilidades, experimentar,

226
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

compor outros percursos possíveis. Por outro, a expectativa de


se sair do labirinto, de vencê-lo usando de astúcia (da razão e
de sentido), produz insegurança e ansiedade, torna mais difícil
e arriscado os trânsitos na tentativa de superá-lo. A modernida-
de recente apresenta-se como um terreno labiríntico, onde pla-
nos e rumos referentes à vida ou à sociedade criam realidades
que são sombras de realidades antagônicas, onde em alguns
casos, o improvável torna-se provável.
Na mitologia grega, a narrativa sobre o labirinto comple-
menta metaforicamente os sentidos produzidos acerca das tra-
jetórias juvenis contemporâneas. A pedido do Rei Minos, o
notável arquiteto e inventor Dédalo constrói um labirinto ha-
bilmente projetado de modo que quem se visse ali encerrado,
não conseguiria sair sem auxílio. Como se sabe, no labirinto
vivia o Minotauro, ser híbrido, corpo de homem e cabeça de
touro, forte e feroz, que perseguia aqueles que transitavam por
esses caminhos. O mito nos narra que uma vez ao ano, quator-
ze jovens, sete rapazes e sete moças eram entregues para serem
devorados no labirinto pelo monstro, como tributo e homena-
gem ao Rei que havia perdido seu filho (Bulfinch, 2002). Para
livrar seu povo desta calamidade, o herói Perseu se propõe a
enfrentar o labirinto e seu monstro. Recebe de Ariadne, filha
do rei, uma espada e um novelo de linha para que marcasse os
caminhos por onde andasse. Fino e resistente, o fio demarcava
a trajetória de Perseu nesse espaço, possibilitando-lhe melhor
conhecer o caminho percorrido, mapear seus desafios, encon-
trar saídas e, a partir disso, vencer o monstro que ali habitava
e livrar o povo desta ameaça. Ao ter seu caminho marcado, o
labirinto se desvela, permitindo que os perigos sejam enfren-
tados de outro modo, conferindo-lhe segurança no seu ir e vir.
Em certo sentido, percebemos que os jovens contemporâ-
neos habitam em um labirinto de possibilidades, mas sem um
“fio de Ariadne” que demarque o lugar de saída e de chegada,
que sirva como orientação e traga certa segurança no cami-

227
Leandro R. Pinheiro (Org.)

nho. Caminham sem uma predefinição ou trajetória segura


que pudesse garantir a segurança no trânsito para a vida adul-
ta e para o reconhecimento de seu papel social. O que a maio-
ria destes jovens vivencia são contextos diversificados de expe-
rimentação, onde vivenciam determinadas situações e ensaiam
alternativas, em alguns casos sem fazer escolhas definitivas,
pois há possibilidade de reversibilidade destas decisões. Desco-
brem possibilidades sem que estas se concretizem; constroem-
-se interações que são ressignificadas pelos contextos sociais;
abrem alternativas que, por vezes, não podem/são impedidos
de abarcar. Por conta e risco, aprendem por onde circular, que
passagens existem mas sem saber para onde elas levam. Pre-
cisam criar arranjos sempre novos como alternativa às arma-
dilhas que encontram nesse labirinto, sabendo que cada vez
mais esta condição torna-se permanente. E os “monstros” es-
tão sempre à espreita, traduzidos no desemprego, na violência,
na morte prematura entre outros fenômenos que “perseguem”
e “devoram” os jovens.
Esses aspectos relacionados aos modos de ser jovem e os
itinerários percorridos por esses sujeitos ganham cores, con-
tornos e sentidos quando acompanhamos as trajetórias de
sujeitos que vivem concretamente esses dilemas da vida no
labirinto e as expressam em suas biografias. De um modo pe-
culiar, jovens moradores de periferia apresentam singularida-
des que exigem um olhar aprofundado, uma vez que viver no
labirinto é uma condição marcante para estes sujeitos, pois em
sua situação juvenil expressam diferentes arranjos e estratégias
que desenvolvem devido às características de seu contexto so-
ciocultural, que tornam seus modos de vida juvenis comple-
xos e diversificados. Em sua experiência no labirinto da vida,
buscam soluções biográficas para questões que derivam dos
problemas estruturais e sociais dos espaços em que vivem: é
necessário dar um jeito de se viver.

228
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

As indagações e reflexões que fundamentam esse texto


emergem de uma experiência de pesquisa de mais de dois anos
com jovens moradores de Porto Alegre – no bairro Restinga
– ligados a um grupo de Hip Hop relacionado às práticas de
dança de rua. Mais especificamente, referimo-nos ao Restinga
Crew1, que ao longo de sua história, contou com a participação
de diversos jovens, e hoje é espaço de encontro, de aprendiza-
do e de produção artística para cerca de oito integrantes. Com
encontros semanais para treinos, ensaios e desenvolvimento
de coreografias, aproveitam este espaço de sociabilidade para
iniciar outros jovens que se identificam com essas práticas na
cultura Hip Hop. Emerge um espaço de referência para estes,
a partir do encontro com os pares que se tornam amigos, do
cultivo de uma arte (a dança de rua) que tem uma produção
simbólica que ressignifica seu modo de viver na periferia ao
produzir novos sentidos para seu cotidiano.
Entretanto, para melhor compreender os modos de vida
desses jovens foi preciso, metodologicamente, acompanhar
suas ações e práticas no contexto em que aconteciam, operar
com o cotidiano desses sujeitos. É no “desenrolar” desse tem-
po – o cotidiano – que a vida acontece; é nos desdobramentos
dos espaços em que circula no seu dia a dia que o indivíduo
elabora os sentidos de sua própria existência, constitui manei-
ras de ser e formas de agir na sociedade, a partir das diferentes
relações que estabelece, das produções sobre si, dos contornos
que demarcam sua própria experiência. A partir da emergên-

1. O grupo de street dance Restinga Crew surgiu no ano de 2002 no bairro Res-
tinga, zona sul de Porto Alegre a partir de uma oficina de dança. De lá pra
cá, o grupo se tornou uma referência no cenário Hip Hop local e nacional,
participando de diferentes eventos de dança de rua, construindo uma trajetória
reconhecida pela qualidade de seu trabalho e pelo envolvimento de seus ato-
res. E nesse período o grupo manteve sua identidade própria, uma iniciativa
de jovens, sem relações de institucionalidade relevantes, nem mesmo para sua
manutenção.

229
Leandro R. Pinheiro (Org.)

cia do cotidiano como arquitetura do espaço social no qual os


sujeitos constroem seus modos de ser, desloca-se a atenção das
grandes estruturas sociais para a particularidade dos detalhes
e a unidade dos acontecimentos, acentuando o interesse em
analisar processos sociais, sob uma ótica mais próxima à expe-
riência dos sujeitos. Assim:

Na vida cotidiana, os indivíduos constroem ativamente


o sentido da própria ação, que não é mais somente indi-
cado pelas estruturas sociais e submetido aos vínculos da
ordem construída. O sentido é sempre mais produzido
através de relações e esta dimensão construtiva e relacio-
nal acresce na ação o componente de significado na pes-
quisa. (Melucci, 2005, p. 29)

O cotidiano, desta maneira, emerge como um espaço epis-


temológico, uma possibilidade de pensar e questionar acerca
das diferentes composições que circunscrevem e situam o su-
jeito social. Essa compreensão busca não uniformizar os sujei-
tos, mas pensar na especificidade de sua própria existência, ex-
periência sempre inédita. Este processo exige uma prática de
pesquisa “aberta ao caminho que se faz”, produzindo mudan-
ças nos velhos limites dualistas que herdamos: sujeito/objeto,
fatos/representações, realidade/interpretação. Uma pesquisa
mais sensível às peculiaridades, mais próxima das experiências
da vida cotidiana, mais presente na prática social e suas for-
mas de ação, atenta às diferentes tonalidades da própria vida.
Ao conhecer melhor a vida e o cotidiano desses jovens,
ao participar de suas atividades e encontros, ao criar laços de
amizade e fraternidade que permitiram, na gratuidade das re-
lações, ouvir suas narrativas, conhecer suas histórias de vida
com seus conflitos e dilemas, conquistas e descobertas é que
pudemos melhor compreender as significações produzidas
por esses sujeitos sobre sua própria juventude, a forma como
a vivem e como se relacionam nos diferentes espaços sociais

230
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

em que circulam. Pensando na singularidade dessas trajetórias


e em suas experiências de vida é que escrevemos, no intuito
de, além de dar a conhecer (e compreender) fragmentos das
biografias desses sujeitos, refletir sobre os diferentes modos de
viver a juventude em nossa sociedade. Certamente, este texto
não dá conta da complexidade dessas relações, porém, acre-
ditamos que os elementos que aqui apresentamos contribuem
para contextualizar os modos de vida desses sujeitos na peri-
feria. Iniciamos contando acerca de sua relação com o territó-
rio, os vínculos de amizade desenvolvidos, a relação com a es-
cola, o trabalho e o consumo, além das práticas e significações
vividas enquanto grupo de dança associado ao hip hop.

1. As configurações do labirinto: os sentidos produzidos


sobre a periferia

“Só conhece a realidade quem vive aqui”

Palavra comum, a epígrafe nos revela algo comum na ex-


periência de se pensar os modos de vida em espaços de perife-
ria. Estes devem ser compreendidos a partir dos contextos em
que estão inseridos, pois ao contrário do que o senso comum
nos aponta, a periferia é um território de diversidades. Com-
preender as relações em um território é uma experiência de
conhecimento que exige atitudes mais sensíveis ao olhar, escu-
tar, dialogar, interagir, compreender. A relação entre território
e seus ocupantes pressupõe a capacidade de instaurar vínculos
entre espaço e sociedade, vinculação que se consolida, prin-
cipalmente, em termos simbólicos que aportam elementos
relacionados à ordem e as relações de poder, visíveis a seus
ocupantes, que as reconhecem e delas participam, uma forma
de ligação na organização social e sua institucionalização. A

231
Leandro R. Pinheiro (Org.)

construção social do território não é alheia à sua composição


física nem às suas marcas culturais (Solinís, 2009). O conjun-
to destas vinculações e caracterizações referenciam o processo
de construção de uma identidade territorial, em função das
vinculações de pertencimento, da apropriação e enraizamento
em relação ao espaço, dos significados evocados no exercício
da experiência humana do habitar e da constituição do lugar,
e também de seus aspectos materiais, sua arquitetura e sua
estética. O território é marcado por signos materiais, estéticos
e sociais que compõem uma extensão do corpo social.
Poderíamos questionar acerca da construção do que com-
preendemos por periferia enquanto território, noção que carre-
ga uma série de antagonismos e ambiguidades. A dificuldade
em se operar com esta noção se deve à multiplicidade de seus
usos, principalmente nas grandes mídias, que tendem a cons-
truir representações unilaterais e estereotipadas, destacando
mais os problemas que a envolvem (pobreza, tráfico de drogas,
entre outros) do que a visibilidade de suas múltiplas práticas e
sentidos. Assim, uma das maneiras de se conhecer o território
e suas configurações é percebê-lo na significação dos próprios
sujeitos, nesse caso jovens moradores de periferia, a partir de
suas experiências.
Ao circular com esses jovens neste território se desvelam
singularidades e especificidades que produzem sentidos usu-
almente não percebidos. Inicialmente, pela questão da cir-
culação em relação à cidade: o território em que a maioria
deles habita, a Restinga, é distante cerca de 25 km do centro
da cidade, com um transporte público bastante precarizado,
com um deslocamento que pode ultrapassar 90 minutos (de-
pendendo do horário). Ônibus lotados (pois esse é o meio de
transporte mais utilizado), sem ar-condicionado, atravessando
praticamente a cidade em sua extensão. Apesar de ser uma
reivindicação histórica de seus moradores e a população atu-
al do bairro superar os 100 mil habitantes, os problemas de

232
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

mobilidade urbana deste território apontam para o quanto


bairros empobrecidos da cidade tem uma relação de exclusão
e afastamento em relação a outros territórios, uma vez que
transporte é um direito básico para garantir o fluxo das pesso-
as e o acesso à cidade e aquilo que ela pode oferecer em ter-
mos de acesso à determinados serviços e aparelhos públicos,
principalmente em termos de cultura.
Nos múltiplos deslocamentos de ônibus até o bairro fomos
percebendo, ao estranhar aquilo que por vezes naturalizamos,
a diversidade de identidades que circulam nesse território. As
pessoas falam alto dentro do ônibus, contam histórias de suas
vidas que podem ser acompanhadas por quem quer ouvir.
Socializam-se com conhecidos que costumam fazer o mesmo
trajeto, vizinhos e outros companheiros desse cotidiano. Para
alguns, o smartphone é a maior companhia, imersos nas redes
sociais, as pessoas fecham-se ao que está a sua volta. Os fones
de ouvido ajudam a criar uma realidade à parte; com exceção
daqueles que resolvem compartilhar sua música – em geral o
funk – com os demais através dos alto-falantes do celular, práti-
ca comum principalmente entre os adolescentes.
Alguns se recostam nos bancos e dormem – trabalhadores
cansados da jornada – que aproveitam o ônibus para esticar
o tempo de sono. As reclamações sobre o transporte são cons-
tantes, assim como os elogios e críticas ao motorista que tra-
fega – “Hoje está bom, ele está com pressa. Vamos chegar mais cedo”;
“Oh motora... por que a lerdeza? Chega hoje?”; “Esse aí [o motorista]
acha que está levando gado aqui atrás”. São falas que revelam rela-
ções: dividindo o apertado espaço, as pessoas compartilham
mais do que desejam: o calor do corpo, os cheiros e suores,
os hálitos, as telas dos celulares. Tudo parece comum, como
parte da cotidianidade que os constitui. Pelo tempo que as
pessoas ficam nos transportes públicos para se deslocar para
suas atividades, principalmente para trabalhar, e pelas formas
de se relacionarem-se nesse espaço, o ônibus por si mesmo já

233
Leandro R. Pinheiro (Org.)

se apresenta como campo privilegiado de observação de um


imaginário popular.
A janela do ônibus emoldura uma realidade que se apre-
senta materialmente ainda mais heterogênea, característica
marcante da Restinga: sua diversidade enquanto espaço so-
cial. Convivem, lado a lado, signos marcantes do crescimento
das populações empobrecidas dos últimos anos – reconhecidas
recentemente como “consumidores”, da chamada “nova clas-
se média brasileira”, ou nas palavras de Jessé de Souza (2010),
os batalhadores –, materializados em lojas como a Subway na
entrada do bairro, academias de ginástica, agências bancárias,
lojas de departamento entre outros comércios locais que pros-
peram nas principais avenidas. Nas ruas laterais, conjuntos
de casebres e casas improvisadas, conjuntos habitacionais in-
teiros ocupados antes de serem concluídos, de estruturas pre-
carizadas. Ruas de “chão batido”, com esgoto a céu aberto;
instalações elétricas irregulares; carros abandonados nas ruas;
crianças e jovens circulando por todo o espaço, alguns visivel-
mente “malvestidos”, expressão de uma condição de pobre-
za. O trânsito de pessoas na rua é sempre muito intenso nas
principais vias, mesmo à noite. Nas vias secundárias, em geral
pouco iluminadas e com calçamento irregular, a circulação é
mais restrita. Cenários que marcam um mosaico de contradi-
ções e complexidades.
A maioria dos participantes do grupo de dança reside na
Restinga; outros já residiram e se mudaram para outros bair-
ros, mas sem perder a referência com o território. Uma série
de arranjos envolve as opções de moradia desses jovens, em
geral, associados às trajetórias biográficas. Inicialmente, mo-
rar na Restinga se dá por uma condição de migração urbana
do interior para a capital, muito comum nas gerações de pais
e avós desses jovens, que mudam de cidade na perspectiva de
melhores condições de vida. Em segundo plano, mais presente
na geração dos pais, por “migração” dentro da própria cidade

234
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

(moravam em outras vilas e bairros e vieram para a Restinga),


em geral, associado às ações de remoção de vilas e famílias
pelo poder público2 ou ações de despejo de ordem pessoal. No
caso dos jovens, mais especificamente, o fluxo ou permanên-
cia nos locais de moradia dependem de arranjos, tais como
namoro ou constituição de família, possibilidade de emprego,
mudança da família, ações de despejo ou desalojamento da
residência. Alguns jovens acabam residindo em outros bairros
e vilas, mantendo os vínculos na Restinga. Além do próprio
grupo de amigos, que já é um vínculo valorizado, alguns pos-
suem familiares que ali residem.
Quando relatam sobre como é habitar nesse espaço, a
maioria desses sujeitos afirma que “gostam de viver” na Restinga.
Em unanimidade, ressaltam que “é bom morar lá”, reconhecen-
do que há problemas como em qualquer outro lugar da cida-
de. Destacam que a relação com o território se dá porque há
muitos amigos e familiares nesse território, ou seja, possuem
laços que de certa maneira os vinculam entre si. Entretanto,
reconhecem que precisam operar com as representações que
são produzidas e que caracterizam seus moradores.

Eu vivi minha vida toda em vila [periferia], sempre mo-


rei nesse pedaço. Nunca morei em outro lugar. Minha
mãe sempre batalhou muito pra gente ter as coisas, pra
poder estudar, pra não passar necessidade. Sempre fo-
mos pobres. Mas quem mora por aqui, sabe como é... É
visto como “bandido”. Acham que quem mora aqui, é

2. A remoção de famílias populares de áreas públicas ou privadas é fato ainda


recorrente nos dias de hoje. Se analisarmos o crescimento da cidade de Porto
Alegre, percebemos uma maior incidência de construção de residências na zona
sul da cidade que historicamente recebia muitas dessas populações, “empurran-
do-as” para o extremo-sul da cidade. Conforme a urbanidade se desenvolve,
populações carentes fixam suas residências em lugares mais afastados, sem in-
vestimento urbano necessário, reproduzindo modelos de habitação precariza-
dos: um fenômeno de periferização.

235
Leandro R. Pinheiro (Org.)

bandido. E isso aparece muito quando a gente sai daqui.


Maluco já vai pensando que a gente é marginal. (Rochi-
nha, 19 anos)

Habitam um território com múltiplas restrições, atravessa-


dos por diferentes formas de violência, em especial a presença
(e domínio, em algumas regiões) do narcotráfico, que estabele-
ce uma série de restrições e proibições: de circulação no espaço,
de convivência com moradores de outras regiões, de ameaças
e perigos constantes. “Claro que a gente sabe onde estão os esquemas,
quem está onde e quem não está. Às vezes estão na porta da tua casa” (Ju-
linho, 28 anos). Além disso, há a relação com a polícia que faz
patrulhamento no território: “Não tem aqui um que não tenha levado
uma revista da polícia. Nem no ônibus o cara escapa” (André, 28 anos).
A violência emerge não somente nos números de homicídio
que caracterizam o território, mas numa relação cotidiana des-
ses indivíduos com a perspectiva da morte, uma possibilidade
iminente, seja como vítimas da competição violenta entre tra-
ficantes, seja pelo envolvimento direto como agentes no tráfico
de drogas ou no próprio consumo, seja pela repressão policial
ou ainda pela disputa de território entre gangues. Não são ra-
ras as narrativas de situações do dia a dia relacionadas com o
narcotráfico: pela proximidade dos pontos de venda de suas
residências e lugares onde transitam; pelo contato com algum
conhecido, amigo ou familiar que se envolvem nesse meio, al-
gumas vezes como usuário, outras como agente do tráfico; pelo
cotidiano da vizinhança que por vezes é alterado devido a al-
gum conflito entre grupos rivais ou com a própria polícia. Sem
exceção, todos os jovens do grupo conhecem algum amigo ou
parente próximo que teve uma morte violenta, sendo essa uma
situação que não raras vezes compõe seu cotidiano.
Mas de que forma operam cotidianamente nesse contexto
de restrição e violência? “Ah, basta saber se cuidar, afastar-se dos
caras que são ‘encrenca’ e ficar na sua, respeitar os outros” (Julinho,

236
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

28 anos). Parece ser uma fórmula simples, narrada com certa


naturalidade, mas desvela alguns arranjos destes jovens na re-
lação com o território. Primeiro, parecem adaptar-se a esse co-
tidiano: aprendem a viver com a demora nos deslocamentos,
com a precariedade da infraestrutura das vilas onde moram,
dos direitos sociais negados; (sobre)vivem da mesma maneira
que seus pais, da mesma forma como viveram, na maioria dos
casos, desde a infância.
Um segundo arranjo refere-se ao reconhecimento de sua prática
artística. O hip hop oportuniza a esses sujeitos uma diversidade
de apresentações públicas, muitas delas na própria Restinga,
que os diferencia. A visibilidade enquanto artista local amplia
o leque de relações, possibilitando conhecer outros jovens per-
tencentes às outras redes de sociabilidade (de times de futebol,
de gangues, entre outros, inclusive pertencentes ao narcotráfi-
co). Ser conhecido, respeitar os “manos” para ser respeitado, não
envolver-se “onde não se deve” emerge nas narrativas desses jovens
como atributos necessários para viver e circular na periferia. “O
pessoal respeita a gente. Sabe que o nosso lance é outro. Em geral, a gente
não tem problemas” (Marcos, 26 anos). Na relação com o grupo de
dança, nos vínculos de amizade estabelecidos e na convivência
que se aprende códigos inscritos nas formas que estabelecem de
circulação: “Eu aprendi a andar na rua com esses caras [com os parti-
cipantes do Restinga Crew]” (Marquinhos, 14 anos).
Entretanto, mesmo que suas práticas artísticas lhes possibili-
tem uma inserção social de maior amplitude e reconhecimento,
manifestado inclusive na identificação com o território, ao cir-
cularem pelo restante da cidade, não deixam de “escapar” das
marcas e representações atribuídas aos habitantes deste espaço.

Uma vez fomos convidados para nos apresentar num


evento de dia inteiro que tinha camarim. Não éramos
os únicos, tinham muitos outros dançarinos e grupos de
dança por lá dividindo o espaço. Nós éramos os únicos

237
Leandro R. Pinheiro (Org.)

de hip hop, de dança de rua. Quando chegamos, vesti-


dos desse jeito, com mochila nas costas, boné, tatuagem,
brinco... Com essa pinta de pobre, alguns negros, já nos
olharam diferente. Na metade da manhã já estávamos
sozinhos no camarim: todo o resto sumiu, foram pra ou-
tros camarins, juntaram as coisas e levaram pra outros
lugares, vazaram. Pensaram que essa galera de vila [da
Restinga], só podem ser bandidos. “Vão nos assaltar”.
É essa a imagem que fazem da gente. Mas na hora da
apresentação, arrasamos. Foi legal ver todo mundo nos
aplaudindo, gritando... Acho de desmanchamos um pou-
co essa imagem. (Julinho, 28 anos)3

Para estes jovens, essa possibilidade de transitar4 em outros


espaços urbanos contribuiu para uma apropriação dos recur-
sos materiais e simbólicos da cidade, ampliando a construção
de sua identidade e das suas relações com o território para
além das caracterizações do espaço onde vivem (Carrano,
2008). Tornam-se vistos e reconhecidos de uma maneira dife-
rente nesses espaços do que na Restinga. Além disso, acabam
ressignificando as representações relativas ao próprio espaço
onde vivem.

3. Essa mesma história fez parte de uma entrevista realizada pelo jornal Zero
Hora (19 de outubro de 2013) sobre a produção cultural na Restinga, com par-
ticipação do Restinga Crew. O fato de estarem vinculados a uma matéria domi-
nical em um jornal de grande circulação demarca o reconhecimento do grupo
para além dos limites do território. Disponível em: <http://zh.clicrbs.com.br/
rs/entretenimento/noticia/2013/10/cultura-na-restinga-hip-hop-que-leva-o-
-nome-do-bairro-4305658.html>. Acesso em: 20 nov. 2014.
4. Convém destacar que uma das dificuldades para o trânsito dos jovens na
cidade refere-se ao valor da passagem de ônibus. Em muitos casos, os jovens
que moram em outros bairros deixam de participar dos treinos por não terem
dinheiro para a passagem. Da mesma forma, algumas apresentações que fazem
em alguns espaços são gratuitas (em algumas escolas, por exemplo), pedindo
como contribuição o valor das passagens para deslocamento do grupo. Aqueles
que recebem algum tipo de auxílio como o vale-transporte, por exemplo, em-
prestam e/ou utilizam as passagens que sobraram do mês para estas finalidades.

238
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

2. Andar só, mas nunca sozinho: as relações com os manos e


as minas de labirinto

Outro aspecto fundamental nos modos de vida desses jovens


refere-se aos vínculos de amizade e solidariedade que desenvol-
vem com diferentes sujeitos: família, amigos, vizinhos, compa-
nheiros. A provisoriedade e precariedade do habitar, associadas
às necessidades cotidianas de sobrevivência, acabam por esti-
mular o desenvolvimento de laços de solidariedade e vínculos
de filiação (redes de amizade) envolvendo pessoas que compar-
tilham de suas experiências. Em suas narrativas, se remetem às
pessoas que conhecem desde a infância, dos “manos e minas que
são parceria”, dos vizinhos que se apoiam, e estas justificam, entre
outras coisas, a positividade em se habitar esse território, cul-
tivar esses e manter esses vínculos, mesmo que se distanciem.
Encontram nesses vínculos uma forma de suporte para superar
os dilemas que a vida cotidiana lhes apresenta, apoiam-se nas
redes de amizade para encontrar soluções para problemas que
vivem (falta de dinheiro, moradia, trabalho, entre outros).
De modo especial, cabe destacar a potência do vínculo
que esses jovens desenvolvem enquanto grupo de amigos. A
amizade emerge como uma possibilidade de firmar laços mais
livres, sem a obrigatoriedade da manutenção das relações,
como nos vínculos familiares. Francisco Ortega (1999) destaca
que a amizade constitui uma alternativa às rígidas formas de
relação institucionalizada, possibilitando a criação de víncu-
los interpessoais, diferenciados daqueles do espaço familiar e
parental. Tendo em vista as mudanças no contexto social con-
temporâneo (crise das instituições socializadoras, dificuldades
de ascensão social, fluidez das relações, entre outros), o indi-
víduo passa a contar consigo próprio para superar as novas
condições de exigências desse cenário. A amizade seria, então,
uma saída para os dilemas vivenciados na saturação das rela-
ções institucionalizadas, que levam a processos de individua-

239
Leandro R. Pinheiro (Org.)

ção e inclusive a experiências radicais de certa solidão. Essa


liberdade nos vínculos, proporcionada pela amizade, torna
possível ampliar as interações dos jovens para além de seus es-
paços tradicionais de vinculação, resultando em outras formas
de sociabilidade5. A amizade, destaca o autor, é transversal à
ordem da instituição, uma forma de esquivar-se das conven-
ções sociais e de gerar espaço próprio, inclusive como forma
de resistência ou desvio. “Toda a amizade, por conseguinte, é
um ponto de resistência social” (Ortega, 1999, p. 157).
E o que caracteriza a amizade deste grupo? Qual a im-
portância dos laços que desenvolvem? Inicialmente, compar-
tilham modos de vida semelhantes: frequentam os mesmos
espaços e territórios (a rua, a escola); possuem interesses em
temas e práticas ligados à cultura Hip Hop (música, dança,
grafite, estilo); compartilham experiências de vida em comuns
(vivências e dilemas muito semelhantes); reconhecem-se atra-
vés de outros amigos, conhecidos e parentes; praticam as mes-
mas atividades: a dança de rua, as festas, o futebol. Mas, além
disso, reconhecem-se como iguais, instauram laços de con-
fiança e compromisso, de cuidado mútuo e, em certa medida,
de ternura. O amigo é aquele que está junto, com quem se
pode contar quando precisar, que participa da sua vida, que
compartilha interesses e, acima de tudo, partilha dos mesmos
acontecimentos, de experiências que se tornam histórias a se-
rem contadas.

5. Para Simmel (2006), a sociabilidade configuraria uma forma lúdica da ética


da sociedade concreta, ou seja, ao inserir-se em práticas de sociação, o indiví-
duo, em um plano simbólico, experienciaria os conteúdos éticos da vida social
num plano reduzido, adequando-se aos contextos comuns das relações, redu-
zindo a dimensão do conflito e exercitando sua alteridade. O grupo manifesta
em suas convergências e divergências, fenômenos proporcionais que revelam
“esteticamente a mesma proporção que a seriedade da realidade exige em termos
éticos” (Simmel, 2006, p. 78). Assim, o grupo de amigos configuraria uma expe-
riência ética da vida em sociedade.

240
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

O que acontece é que eles [os jovens] vem aqui por curio-
sidade, para conhecer, e aí decidem tentar. Quando você
vê o cara está “se jogando no chão”, tentando o passo,
perguntando, treinando [...] Aí você reconhece o esfor-
ço dele e incentiva convidado para participar de alguma
apresentação, ensinando as coreografias. E eles apren-
dem mesmo. E depois que criam vínculo, não querem
mais sair. (Julinho, 28 anos)

Meus amigos são minha verdadeira família. Meus ver-


dadeiros irmãos estão aí no Restinga Crew, essa galera,
por tudo o que a gente já viveu junto, a gente sabe que
pode contar com eles. É uma família que se escolhe.
(Lucas, 25 anos)

A disponibilidade, acolhida e abertura do grupo, as dinâ-


micas de suas relações internas que tendem a valorizar a parti-
cipação dos jovens, as possibilidades de inserção e a visibilidade
proporcionada por sua produção artística, relacionados com a
identificação que produzem entre si, transforma este grupo de
dança em um grupo de amigos, experiência singular em suas
vidas. Trata-se de um espaço que opera num sistema simbóli-
co diferenciado de outros espaços em que circulam, pois parti-
cipam de modo ativo na construção das próprias significações
que os regem. Não aprendem simplesmente técnicas de dança
de rua, mas sim modos de ser, valores de amizade e solidarie-
dade; enfim, identificam-se com a experiência coletiva.

No grupo o pessoal era legal, não era de arrumar con-


fusão, de sair por ai brigando. A gente curtia o nosso es-
paço, a nossa dança, não ficava desafiando os outros por
aí. Dizem que a dança afasta o pessoal da droga e isso é
verdade, porque aproxima gente que está interessada em
outro lance. Vi muito molequinho que vinha participar
com a gente e se afastava desse caminho. (André, 27 anos)

241
Leandro R. Pinheiro (Org.)

Nesses arranjos, a relação com os amigos do grupo produz


uma tensão nas próprias escolhas de vida individual, levando-
-os a avaliar suas próprias práticas. Por estarem inseridos em
um campo simbólico mais amplo – a cultura Hip Hop –, o gru-
po acaba por reproduzir discursos e atitudes nem sempre as-
sumidos pelos jovens, principalmente quando no início de sua
vinculação com os demais. Os amigos do grupo tornam-se re-
ferência uns para os outros e, ao se apoiarem, tornam possíveis
a vivência de inúmeras práticas que, para além dos cenários de
exclusão e violência que os cercam, das restrições e tutelas que
os assujeitam, propiciando novas maneiras de ser e viver.

3. Em busca de caminhos e soluções: algumas perspectivas de


saída do labirinto

Pensando nos trânsitos dos jovens para a vivência e reconhe-


cimento de uma condição adulta, escola e trabalho apresentam-se
como eixos principais de entrada na vida social. Nesse sentido,
observar a relação nestes dois eixos revelam múltiplos arranjos
desses sujeitos, que apresentam características de sua situação
juvenil, efeitos dos contextos sociais nos quais estão inseridos.
Em relação à escola, há um cenário bastante diversificado
entre eles, pois alguns ainda estão estudando (finalizando o
Ensino Fundamental); outros já estão no Ensino Médio; dois
fazem curso profissionalizante, ninguém está na faculdade e
alguns trabalham como educadores em escolas. São muitos
os jovens associados ao grupo que apresentam uma trajetória
escolar fragmentada e interrompida, não tendo concluído os
níveis esperados de escolaridade. Semelhante aos dados sobre
escolarização em nosso país, cerca de metade desses jovens
não chegou a concluir o Ensino Médio. Apesar de destacarem
a importância da escola para a vida das pessoas – principal-
mente entre os mais jovens, os quais são incentivados a estuda-
rem –, a maioria deles teve uma trajetória irregular no quesito

242
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

escolarização. Narram que a escolarização não representa,


necessariamente, uma melhor condição de vida e a necessida-
de de se ter renda para viver emerge como desafio constante.
Alguns fatores recorrentes justificam o afastamento da escola:
dedicação ao trabalho como forma de garantir renda, prin-
cipalmente quando passam a ter filhos e a constituir família;
multirrepetência em uma mesma série; percepção de si mesmo
como alguém que já teria chegado a uma etapa satisfatória de
escolarização, acima do nível alcançado pelos pais (em geral,
estes também apresentam trajetórias escolares truncadas); ou
ainda, de forma mais preocupante, o fato de não encontrarem
sentido nas práticas escolares, o que desmotiva os processos de
continuidade, principalmente frente às dificuldades concretas
que vivenciam. As escolas da Restinga, nesse sentido, não re-
presentam um incentivo: estruturas deficitárias, falta de pro-
fessores nos quadros técnicos e apresentam os indicadores de
avaliação escolar mais baixos do município.
Porém, não deixa de ser um paradoxo o retorno desses jo-
vens à escola como educadores e oficineiros. Sendo o trabalho
profissional com a dança um desejo narrado por muitos desses
jovens, o trabalho nas escolas emerge como uma possibilida-
de de somar a identificação com uma prática cultural (Hip
Hop) com uma relação de profissionalização e sustento. Como
educadores, fundamentam suas práticas pedagógicas em suas
próprias experiências de vida, no que vivenciaram na dança,
práticas que os aproximam da realidade social de seus alunos,
produzindo um nível de identificação incomum para a maio-
ria dos professores. Como valorizam mais o processo do que
o resultado, a prática que o conteúdo, sensibilizam-se com a
vida e a trajetória de seus alunos e procuram, de alguma for-
ma, proporcionar a eles as mesmas oportunidades e suportes
que conseguem/conseguiram acessar.
Em relação ao trabalho, a realidade desses jovens apresenta
uma condição peculiar: apresentam um leque muito diversi-

243
Leandro R. Pinheiro (Org.)

ficado de atividades profissionais que desenvolvem, a grande


maioria sem vínculos formais de contrato, sendo atividades
provisórias e temporárias. Ao comentarem sobre sua relação
com o trabalho, impressiona a variedade de funções que al-
guns desses jovens já desempenharam: auxiliar de pedreiro,
soldador, serviços gerais de limpeza, atendente em comércio,
chapista, vendedor, office boy, distribuidor de panfleto, manicu-
re (caso das meninas) entre outros citados. “Eu já fiz de tudo”,
fala um de nossos interlocutores, expressando uma relação
multifacetada com o trabalho6.
O trabalho está associado ao sustento, uma forma de se
obter renda, garantindo a sobrevivência e permitindo vivenciar
a própria condição juvenil (Carrano, 2003), principalmente no
que se refere às formas de acesso ao lazer e consumo. Aca-
bam por não vivenciar períodos de moratória social (Margulis;
Urresti, 1996), de tempo exclusivo ao estudo em preparação
ao trabalho, pois são impossibilitados pelas necessidades que
emergem desde muito cedo em suas vidas. Contudo, mesmo
que considerem que “qualquer trabalho é trabalho” para se garantir
renda, tendem a optar por atividades que não os impossibilite
de viver sua dança e suas práticas: sair com os amigos, ir para
festas e, principalmente, participar dos treinos e do grupo. Este
critério é mais importante que o próprio valor da renda:

Eu não reclamo no trabalho. Eu preciso dele, é o trabalho


que me sustenta. Não falto, não chego atrasado. E ten-
to ser compreensível. Mas não deixo de participar aqui
[referindo-se ao grupo]. (Lucas, 25 anos)

6. Outro elemento presente na perspectiva desses jovens refere-se ao que Regina


Novaes (2006) denomina de exclusão por endereço: afirmam que nas entre-
vistas de emprego mais formalizados percebem por parte dos entrevistadores
expressões de admiração, negação e contrariedade quando se apresentam como
jovens moradores da Restinga.

244
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Essa multiplicidade de experiências de trabalho lhes pro-


porciona diferentes habilidades e aprendizados que vão sendo
utilizados ao longo de sua trajetória de vida. Então, trabalhar
como auxiliar de pedreiro possibilita construir e reformar suas
próprias residências (construção do “puxado” onde moram;
casa construída para morar com a namorada, no fundo da
casa da mãe; reforma dos quartos que são vagos pelos irmãos
que deixam a casa, entre outros exemplos que são citados);
trabalhar com serigrafia possibilita imprimir e desenhar ca-
misetas relacionadas ao Hip Hop; ser manicure permite fazer
trabalhos autônomos, e assim por diante. Além disso, possibi-
lita “arranjar um bico”, um trabalho temporário para conseguir
uma renda extra e temporária.
Todavia, essa variação de atividades, associada à fragmen-
tação e provisoriedade, resulta em uma falta de identificação
com o trabalho profissional que realizam, não construindo
uma identidade a partir de sua profissionalização, como parece
ser uma referência para as gerações passadas, para as quais o
trabalho era considerado a principal atividade de vida. Como
suas experiências de trabalho tendem a ser, em geral, efêmeras
e ocasionais, não chegam a produzir esse tipo de vinculação.
A relação destes jovens com a questão do consumo tam-
bém é um fator que se destaca por usas possibilidades e arran-
jos. A roupa de marca, o celular de último modelo, os adornos
e estilos adotados, como formas simbólicas de uma inserção
social, acabam por colocar em contraponto os discursos acer-
ca da produção da pobreza em nosso país, segundo os quais
tais formas de consumo não correspondem à escala de priori-
dades “próprias” a essas pessoas. Mesmo vivendo num espaço
caracterizado por tais condições sociais, os jovens não deixam
de desejar bens de consumo que os diferencie em seu espaço
social e os aproxime, de certa forma, da condição de vida de
outros jovens da cidade. Objetos como o tênis, o boné, a rou-
pa, o smartphone, entre outros, ganham um sentido simbólico

245
Leandro R. Pinheiro (Org.)

que extrapola o valor material. Simbolicamente, buscam um


reconhecimento que é diferenciado, compondo parte do estilo
manifestado nas formas de se vestir e dos objetos utilizados.
Entretanto, como as condições de consumo são restritas pela
condição financeira e, por vezes, os objetos têm um valor que
ultrapassa as possibilidades, cuja garantia de aquisição acaba
exigindo deles a criação de diferentes arranjos.
A mais usual é a compra por prestação, a divisão do valor
do produto no maior número de parcelas possíveis, garantin-
do certa “ilusão” de um valor menor para pagamento mensal
(em alguns casos, preferem comprar com o acréscimo de ju-
ros, porque aumenta o número de vezes em que se é possí-
vel parcelar). O problema dessa forma é que a maioria não
possui vínculos de trabalho formal que garanta esta forma de
financiamento nas lojas e centros comerciais. Assim, precisam
contar com o apoio de familiares e/ou amigos que “emprestem o
nome” para poderem comprar. Nesse sentido, “manter o nome
limpo”, ou seja, “pagar as contas em dia”, a fim de impedir o
bloqueio ao acesso ao crédito, é uma condição fundamental
que deve ser garantida, pois é a “chave de acesso” às possibili-
dades de consumo.
Outra forma de acesso ao consumo que emerge é apelar
ao comércio alternativo e informal. Nessa categoria, apresen-
tam-se opções como os produtos similares e falsificados, mui-
tos deles vendidos em bancas e lojas locais por um preço mais
acessível e com promessas de funcionamento iguais aos origi-
nais, mas que tem um grau de reconhecimento e valorização
menor (ou seja, não garantem o mesmo status que os produtos
originais); ou ainda de produtos de origem desconhecida ou
duvidosa: sempre conhecem “um amigo de um amigo” que vende
determinado produto ou mercadoria “quente” (original) por um
preço melhor pra quem quiser ou encomendar (uma referên-
cia velada à venda de produtos que tem sua origem no furto).

246
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Estes diferentes arranjos em relação ao consumo suge-


rem que o morador de periferia também é um consumidor.
Como aponta Canclini (2008), consumir, em uma sociedade
pós-capitalista, constitui parte da condição de cidadão, de
sua cidadania. O consumo associa-se ao reconhecimento do
espaço social que se ocupa: consumir é reconhecer-se e ser
reconhecido numa relação simbólica. A lógica, segundo o
autor, que rege a apropriação dos bens enquanto objetos de
distinção não está ligada à satisfação das necessidades ma-
teriais, mas à escassez desses bens e da impossibilidade de
que outros os possuam, diferenciando-os. Para esses jovens,
possuir tênis de marcas, smartphones, bonés, entre outros, re-
presenta operar com signos de pertencimento e de inserção
em um sistema social. Consumir, na periferia, também é uma
forma de incluir-se socialmente.

Considerações finais: os efeitos de uma vida no labirinto

Compreender os modos de vida desses jovens envolve pen-


sar no fluxo de suas relações, dadas a conhecer pela convivência
e participação em suas práticas, pela observação dos espaços
em que circulam e, principalmente, por suas narrativas. Na plu-
ralidade desses arranjos, reflexões que buscam exercitar pensa-
mento, não na intenção de construir sistemas analíticos “duros”,
mas de compreender dinâmicas de interação. Assim, associar os
percursos vividos por esses sujeitos às trajetórias labirínticas é uma
forma de destacar o quanto suas vidas são impregnadas de res-
trições por sua condição social, de imprevisibilidades, sendo de-
marcadas mais pelos “saltos” que os conduzem entre patamares
do que pela linearidade de suas escolhas. Constroem suas vidas
no tempo presente, considerando os arranjos e possibilidades,
os apoios e suportes que tem à sua disposição.
Bauman (2009) afirma que viver exige a arte da vida, pois,
assim como o artista, devemos estabelecer desafios difíceis de

247
Leandro R. Pinheiro (Org.)

confrontar, alvos que estão distantes de nosso alcance e pa-


drões, que muitas vezes de modo perturbador parecem estar
acima de nossa capacidade. É preciso tentar o impossível, até que
sejamos capazes de, algum dia, alcançar esses padrões e atingir
esses alvos. Em certa parte, é o que esses jovens fazem cotidia-
namente em suas vidas: buscam viver de forma artística, sem
uma intencionalidade de percurso muito definida, mas que em
virtude do campo simbólico do qual pertencem, ressignificam
suas trajetórias, construindo formas de ser e estar no mundo.
O fato de viverem em territórios e contextos que os limitam
em certo sentido, não os impedem de ampliar suas relações e
possibilidades frente ao mundo.
Por fim, cabe destacar o pertencimento ao grupo Restinga
Crew e a centralidade deste espaço de sociabilidade na consti-
tuição de modos de ser sujeitos. Como seria a biografia desses
jovens sem o Restinga Crew? Para além dos mecanismos que vi-
sam determinar um papel ou posição social (função que ainda
se espera de algumas instituições sociais), esses espaços propi-
ciam aos sujeitos dar um sentido a suas trajetórias e a possibi-
lidade de construírem ações próprias, formas (criativas e alter-
nativas) de configurarem sua relação com o social, ampliando
horizontes de inserção em outros espaços da sociedade. Com
os amigos e companheiros de labirinto é que aprendem e (re)
significam o que é (sobre)viver.

248
Entre jovens e adultos na escola, reflexões de
uma aproximação inconclusa

Leandro R. Pinheiro
Carla B. Meinerz

Como nos anteriores, o texto que segue problematiza di-


álogos construídos durante a realização de atividades de pes-
quisa e de extensão no bairro Restinga, mas, desta vez, nas
dependências de uma escola pública municipal do bairro. Re-
alizamos encontros com educandos da modalidade Educação
de Jovens e Adultos (EJA) no turno da noite, e promovemos
a produção de ensaios fotográficos e rodas de conversa sobre
seus cotidianos e os temas que gostariam de tratar.
Nossas buscas em campo foram organizadas desde uma
sequência de encontros quinzenais, no primeiro semestre de
2015, depois de um período de imersão na localidade por con-
ta de atividades junto a outros moradores e ativistas do bairro.
A geração de imagens fotográficas visava estimular a produção
de narrativas, de forma que fossem evocados hábitos, rotinas,
aspectos da fruição no bairro e das redes que partilhavam.
Nossa interação foi composta, ainda, por entrevistas narrati-
vas com os participantes e pela a observação de práticas de
professores e alunos, especialmente nos horários de intervalo.
Tínhamos como objetivo compreender como aquelas pes-
soas vinham construindo suas identidades, com destaque as
suas redes de pertencimento e sociabilidade no lugar, para,
desde este cenário analítico, interpretar suas tomadas de posi-
ção em relação à escola. Uma vez mais, consideramos a iden-
tidade produzida ao nível da individuação, acercando nossas
análises a discussões sobre as condições de individuação das

249
Leandro R. Pinheiro (Org.)

experiências (Martuccelli, 2007) 1 e, da mesma forma, a pro-


blematizações sobre a propensão reflexiva da produção iden-
titária individual na atualidade (Melucci, 20042; Colombo,
nesta coletânea).
A exemplo dos artigos anteriores, vale insistir, não se tra-
ta de assumir tais referências de maneira apriorística. Nossa
atenção se voltou aos percursos construídos pelos sujeitos e
às formas pelas quais integraram disposições para a prática
e elaborações reflexivas no trato de adversidades e desafios e
das incertezas que interpõem. Para reconhecer tais produções,
estivemos a saber de algumas das táticas dos sujeitos (De Cer-
teau, 2011) no confronto às condições que os circundavam e

1. As proposições de Martuccelli (2006; 2007) sinalizam que as relações sociais


contemporâneas instigam experiências diversas, contribuindo para que estas se
particularizem mesmo quando as pessoas ocupam posições sociais assemelha-
das. Sua interpretação orienta-se ao processo de singularização estruturalmente
produzido na modernidade e propõe operadores analíticos para a compreensão
das formas pelas quais os indivíduos se constituem na relação com aspectos que
perpassam a socialização na coletividade: como afirma este autor, o processo de
individuação precisa ser problematizado aquém e além das identidades. Neste
sentido, apresenta a noção de “desafio-prova” como artifício heurístico, desta-
cando os desafios sócio-históricos que os indivíduos são impelidos a enfrentar
(conforme as condições sociais em que se encontram) e que podem ser viven-
ciados singularmente. A tal conceito o autor associa também a noção de “su-
porte”, para falar das relações que amparam os indivíduos no enfretamento de
seus desafios existenciais. Aí, podemos situar laços familiares e de reciprocidade,
redes de amizade e sociabilidade, referências simbólicas ou, então, a articulação
a aparatos institucionais que garantam e/ou promovam condições para que os
sujeitos efetivem seus projetos e/ou logrem seguir em disputa.
2. Uma citação de Melucci (2004) pode ser indicativa de sua interpretação:
“poder-se-ia definir identidade como a capacidade reflexiva de produzir cons-
ciência da ação (isto é, representação simbólica da mesma) além dos seus con-
teúdos específicos. A identidade transforma-se em reflexividade formal, capa-
cidade simbólica, reconhecimento da produção de sentido no agir, no interior
dos limites colocados em um dado momento, pelo ambiente e pela estrutura
biológica” (p. 89). Apreciação mais acurada do percurso teórico-metodológico
pode ser encontrada no apêndice desta seção.

250
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

os limites que impunham, que, ademais, enunciavam em uma


construção narrativa de si, ao explicar e justificar escolhas ar-
ticulando pertenças que orientavam seus enunciados.
O artigo discute, assim, inquietações e inferências que a
aproximação àquela realidade escolar provocou. Fizemos a
opção por apresentá-las partindo dos itinerários biográficos
das personagens de nosso trabalho, articulados a ponderações
sobre o espaço de possíveis que os constituíam. Neste cenário
então, situamos questionamentos que nos tomaram como edu-
cadores e que são concernentes à relação que jovens e adultos
estabelecem com a instituição escolar (e, mais especificamente,
com a EJA) na atualidade.

1. O contexto dos encontros

A escola a qual nos referimos está localizada na Restinga


Velha. Foi fundada no final dos anos 1980, sendo que a EJA foi
criada por volta de 2000. Os estudantes que a frequentam são
moradores do bairro, oriundos dos arredores da unidade esco-
lar. À época de nossas interlocuções, esta recebia 924 alunos
matriculados e contava com um quadro de aproximadamente
80 professores para os três turnos (manhã, tarde e noite), sendo
que este vinha se reconfigurando repetidamente, em função
da rotatividade dos docentes, desejosos de um local de traba-
lho menos suscetível a situações de precariedade e violência.
A EJA, no período da noite, tinha em torno de 150 es-
tudantes matriculados no início de 2015, mas não chegava
ao número de 40 os alunos com frequência regular no mês
de agosto. Segundo comentava o vice-diretor, a evasão vinha
sendo bastante elevada no correr dos últimos seis anos e, em
muitos casos, associava-se à necessidade de priorizar as possi-
bilidades de trabalho. Neste sentido, a relação entre instituição
escolar e alunos nos remetia à caracterização feita por Zago
(2012) acerca da escolarização nos meios populares, em geral,

251
Leandro R. Pinheiro (Org.)

tensionada pela demanda precoce por ocupações remunera-


das e, além disso, perpassada por uma expectativa de que a
escola amplie ou qualifique as condições laborais.
Ademais, nos últimos 10 anos, o perfil dos estudantes dessa
escola tem se alterado, articulando-se a um processo de juve-
nilização da EJA iniciado no Brasil já nos anos 1990. Neste
cenário, a redução da idade mínima para conclusão dos En-
sinos Fundamental e Médio (18 para 15 anos e 21 para 18
anos, respectivamente) ambientou um processo de migração
interna de jovens que, por um lado, associa-se às buscas da ins-
tituição por regularizar o fluxo escolar dos estudantes ou por
reencaminhar alunos considerados “indisciplinados” e, de ou-
tro lado, integra-se à demanda dos educandos por aceleração
da carreira escolar, motivados pelas situações de “fracasso” na
escola regular, pelo constrangimento de estar entre estudan-
tes menores e pelas urgências cotidianas a que a escolarização
não consegue responder (Andrade, 2008; Silva, 2010).
Tal condição tem repercussões no cotidiano institucional.
Não raro, os professores e os alunos adultos da escola onde
atuamos manifestavam descontentamento com os comporta-
mentos dos jovens, denominando-os como “bagunceiros” e
“desinteressados”. De outra parte, as juventudes pareciam re-
querer espaços para suas formas de sociabilidade e expressão
cultural. Nas ocasiões em que aguardava pelos educandos no
pátio, observava as movimentações do intervalo e a presença
massiva de jovens. Ficavam pelo pátio conversando e comen-
tando o que viam nos celulares. Quando tocava o sinal para
que retornassem às salas de aulas, ninguém se movia e era
preciso que o vice-diretor se posicionasse a exigir o retorno.
Segundo me contou, esta situação teria se tornado rotina.
Entendemos que tal situação se aproximava do relatado
por Schneider (2013) acerca das dinâmicas de inclusão/exclu-
são na EJA. Afirma ela que as posições relacionais ocupadas
por alunos adultos e jovens na escola associam-se a um mode-

252
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

lo cuja ênfase está em reconhecer aquele que “quer estudar”,


articulando apelos por obediência e críticas à indisciplina. Os
jovens seriam associados normalmente a esta, ao passo que
os mais velhos teriam assento entre os que desejam o estudo.
“Lugar” e “não-lugar” na escola se estabelecem de maneira
relativa, contudo, um bom resultado obtido por jovens em
uma atividade avaliativa poderia colocar em tensionamento
a hierarquia de reconhecimento. Assim, um cenário de confli-
tos que vale problematizar não pela assunção dos propósitos
institucionais, mas pelo reconhecimento do arbitrário e con-
tingencial de um modelo social e pela compreensão das buscas
operadas pelos sujeitos nos espaços educacionais.
Nesse sentido, antes de julgar a postura dos jovens alunos,
vale identificar que experiências e que sentidos estão em jogo
e como estes podem provocar nossa compreensão.

2. Os sujeitos em narrativa: itinerários e espaços de possíveis

Nos parágrafos anteriores, apresentamos uma narrativa


do contexto de nossas incursões. Agora, procuraremos resumir
os itinerários biográficos de nossos interlocutores3, para, em
consonância, analisar o cenário de suas práticas e os vetores
das pertenças que integram e/ou agenciam, que nominamos
por hora “espaço de possíveis”. Este será também um esfor-
ço por assinalar as condições de existência e individuação das
pessoas com quem dialogamos, para, neste sentido, situarmos
suas tomadas de posição na escola.

3. Durante a realização do projeto, além das quatro pessoas apresentadas neste


texto, tivemos a participação episódica de outras alunas, jovens entre 16 e 22 anos
que oscilaram em sua presença conforme conduziam sua frequência à escola.

253
Leandro R. Pinheiro (Org.)

2.1 Itinerários narrados, espaços enunciados

2.1.1 Eva: trânsito, trabalho e religiosidade

Já em nosso primeiro encontro, Eva se mostrou bastante


interessada nas atividades que propúnhamos. Foi aquela que
se dedicou a realizar todas as atividades, cumprindo todos os
prazos combinados inclusive, comportamento que parecia ex-
tensivo a sua relação com a instituição escolar.
Natural de Santa Maria, no interior do estado, veio para
Porto Alegre com aproximadamente 17 anos. Antes de vir
para a capital, já tinha vivenciado distintas situações de mo-
radia e trabalho. Até os sete anos de idade, quando sua mãe
falecera, teria vivido com os pais, as duas irmãs e um irmão.
Então, as três filhas foram deixadas em residências de famílias
abastadas da cidade com quem o pai tinha contatos, onde re-
cebiam alimentação e morada enquanto eram encarregadas
de serviços domésticos. Eva iniciara sua escolarização em es-
cola católica onde sua mãe conseguira vaga, mas precisou sair
logo que começou a trabalhar.
Segundo contou, teria passado por diversas casas. Procu-
rava retornar ao convívio com sua família e tentava fugir das
situações de preconceito e exploração que vivenciava. Contudo,
quando chegou aos dez anos, o pai a levou para residência onde
permaneceria até os 17 anos. Somente teria saído de lá quando
a família se mudou para Porto Alegre e não pode levá-la.

E aí, foi, então quando ele me trouxe pra madrinha. Ele


disse “Agora tu vai ficar aqui.”. Daí, eu digo “Ta, pai, mas
e que que eu vou fazer aqui? Quanto tempo vai dar?”.
Aí, ele diz assim “Ah, eu não sei, tu vai ficar aí.”, né. E aí,
quando ele saiu, eu perguntei “Pai, como é que o nome
dela?”, ele disse “Chama ela de madrinha”. E aí, eu não
sabia o nome, né, comecei a chamar de madrinha. Era
Diná o nome dela, né. [...] Depois, ela veio embora pra

254
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Porto Alegre e eu fiquei com o meu pai. Porque assim, a


gente, eu ficava na casa dela, mas assim, quando a gente
quebrava os prato as duas, e eu me mandava embora pra
casa do pai. E eu era muito rebelde. (Maio/2015)

Em entrevista, a narrativa de Eva teve início destacando


justamente sua “proeza” ao vir para Porto Alegre. Indiciando
a astúcia de quem não tem um “próprio”, como assinalava
Certeau (2011), ela narrou uma passagem de seu itinerário em
que a criação de táticas e uma rede de apoio relativamente
precária parecem ter sido as bases para tentar mudar circuns-
tâncias de vida no final dos anos 19704.

E aí, com 16 pra 17 anos, eu tive um desentendimento


com o meu pai, né? E aí, não tinha mais lugar pra morar
em casa, e eu digo “Eu vou-me embora, né?”. Aí, peguei
um saquinho, assim, de papel e botei duas peças de rou-
pa, né. [...] Aí, passei aquela noite num albergue, né? E
aí, chegou no outro dia, e eu fui na na Matriz lá, da Igre-
ja de Santa Maria, né? E aí, falei com o padre. Eu digo
“Olha, eu não sou daqui de Santa Maria e eu moro em
Porto Alegre”. Aí, ele me deu passagem, né? Ele botou
ali, escreveu ali, né, pra mim levar pra rodoviária.
Eu já tinha estado aqui uns dois meses, né, tinha ficado
aqui com a minha irmã que já morava aqui, né? E eu
meio que me lembrava, mais ou menos assim, né, das
ruas. E também a “madrinha” tinha vindo embora pra
cá – uma senhora que eu me criei, um casal de judeus ti-
nham vindo embora pra cá. E aí, eu sabia que ela morava
na Barão do Amazonas. E aí, quando eu cheguei na ro-
doviária, já perguntava pra um e pra outro “Onde é que

4. A narrativa de Eva mencionava diversas situações em que destacava suas


astúcias no cotidiano. Assim foi quando, tentando assar carne sem admitir à
patroa que não sabia, salgou a comida e precisou lavá-la e devolver ao forno.
Segundo contou, seus patrões a elogiaram pela qualidade do prato. Noutra oca-
sião, por exemplo, teria se vestido de menino para poder participar de um baile.

255
Leandro R. Pinheiro (Org.)

fica a Barão do Amazonas?” “Ah, vai reto que tu acha!”.


Tinha medo horrível de pegar ônibus, né? Eu tinha medo
de me perder. Aí, foi indo, indo. E quando chegava na
metade do caminho, eu perguntava “Onde é que é a Ba-
rão do Amazonas?” “Ah, segue reto.” E eu, seguindo reto
Protásio afora, né?

Em Porto Alegre, seguiu realizando serviços na residência


de sua “madrinha” até que decidiu encontrar trabalho fora.
Até seu casamento, morava nas casas onde labutava como em-
pregada doméstica. Por volta dos 20 anos conheceu seu esposo
e, em seguida, teve o primeiro dos seis filhos. Disse ter ficado
casada por 32 anos, mas também mencionou que seu relacio-
namento foi perpassado por desentendimentos e rupturas ao
longo do período.
Depois de quatro anos de casada, foram para Santa Maria
e, então, para General Câmara, cidade natal de seu marido,
em busca de sustento. Trabalharam em fazendas fazendo corte
de mato. Quando os filhos se aproximavam da idade escolar,
segundo conta, decidiram retornar à capital e ela voltou aos
serviços domésticos. Então, foi a rede familiar que viabilizou
a mudança novamente. Foram para o bairro Restinga e, de
início, residiram em casa no pátio da morada da irmã.

Aquela época ainda era a época em que a gente tava indo


nas reuniões pra conseguir, né, terreno e casa, tudo. E ali,
não sei por que motivo, eles desativaram, né. Porque an-
tes faziam, faziam muitas festa e aniversário e coisa assim
[...] E aí, então, um dia, eu morava ainda nos fundos da
casa da minha irmã, né? E o Gilvan disse pra mim “Eva,
tão invadindo a associação”. Eu digo, ele disse assim “Va-
mos invadir também?”. Eu digo “Não, não vamos inva-
dir nada”, eu digo “Vamos esperar”. Daí eu disse assim:
“não, Gilvan, vamos colocar na mão de Deus. Eu vou
orar. Se até o amanhecer, aquele outro lado tiver vazio, é
uma resposta de Deus que é para nós”. E aí, dito e feito.

256
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Eu orei, coloquei na mão de Deus, no outro dia, ele olhou


e disse assim: “Eva, o outro lado tá vazio!”, eu digo “En-
tão, a gente vai se mudar pra lá!”.
Aí, eu tava limpando com a mangueira, lavando tudo.
Nisso, chegou o presidente da associação, que era o Beto.
Ele chegou e disse “Quem é que ta aí?”. Eu digo “Sou eu,
Beto”. Ele disse: “ah, Eva, graças a Deus, esse lugar aqui
era guardado pra senhora”.

Ficaram por lá até encontrarem espaço numa associação


de moradores que fora desativada. Quando de nossas conver-
sas, Eva e sua família residiam neste local há aproximadamen-
te 25 anos. Por lá, constituiu laços de reciprocidade com os
vizinhos e partilhava o cuidado de crianças que não seus filhos,
em arranjo relacional que se orienta ao problematizado Fon-
seca (2004) acerca das dinâmicas familiares e da circulação de
crianças em bairros de periferia.
No período de nossos diálogos, disse trabalhar somente na
casa de duas “irmãs em Cristo”. Morava próximo à escola
onde estudava e sua circulação pela cidade estaria organizada
sobretudo pela pertença a uma igreja evangélica, incluindo a
frequência a cultos e os trabalhos de doméstica que segue re-
alizando mesmo depois de aposentada. Disse que gostava de
ver novelas na televisão, mas parece ter deixado o costume por
contrariar seus preceitos religiosos. Assistiria TV no canal de
sua igreja apenas.
A filiação à igreja se mostrava uma pertença bastante en-
fática. A narrativa de seus trânsitos era perpassada por men-
ções à busca de vínculos religiosos em diferentes momentos.
As vivências de festas ou as ocasiões de conflito no itinerário
teriam sido passageiras e superadas quando nos apresentava
seu olhar retrospectivo, quando a identificação religiosa pare-
cia ser a preferencial.

257
Leandro R. Pinheiro (Org.)

Eu fui pra casa deles, eu tinha dez anos, né. E eu dizia


pra ela: “Madrinha, eu quero terminar os estudos”. E ela:
“Tu não precisa estudar. Negro não precisa estudar, pra
que que tu quer estudar?”. Aí, eu dizia: “Então, deixa eu
fazer um corte e costura, que eu gosto muito de costu-
rar?”. “Não, tu não vai ser costureira, tu não precisa es-
tudar”. Aí, então, o que que eu fazia? Eu lavava, passava,
cozinhava, limpava a casa, né.
Olha, aqui na escola, eu já tô há um bom tempo. Porque
foi assim, nesse tempo todo, já era pra mim ter me forma-
do na Enfermagem. Eu não conseguia chegar no horário,
porque eu trabalhava, daí, né, de segunda a segunda, né?
Os filhos eram pequenos, aí eu tive que parar.

O retorno à escola depois de adulta era mencionado como


realização de um desejo antigo e que sua condição não per-
mitiu quando criança ou jovem. Pretendia concluir o ensino
fundamental na modalidade EJA, no ano de nossa interlocu-
ção. Dentre os participantes de nossa iniciativa, era aquela que
mais visivelmente associava a escolarização à realização de um
projeto pessoal.

2.1.2 Nadir, rede familiar e trabalho

Originária do interior de Rio Pardo, Nadir era a caçula de


uma família com doze filhos, que residia e trabalhava na fa-
zenda de arrozeiro da região. Prestavam serviço na monocul-
tura e, além disso, mantinham alguns animais e uma pequena
plantação para consumo familiar. Contou-nos que, para uso
da terra, precisavam pagar percentual sobre o produzido ao
proprietário5.

5. A exemplo da maioria dos itinerários narrados no primeiro artigo da seção,


Eva e Nadir compuseram os fluxos de êxodo rural no Rio Grande do Sul. Po-
rém, os diferentes casos indicam que a migração ocorreu não necessariamente
como decorrência direta da mecanização do campo, mas pelo efeito articulado

258
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Perdeu a mãe aos seis anos e fora criada com a ajuda de


uma das irmãs mais velhas. Mencionou que chegou a tra-
balhar na lavoura, mas não por tanto tempo quanto seus ir-
mãos e irmãs. Quando tinha pouco mais de 20 anos, o pai
adoeceu e resolveram morar na cidade de Rio Pardo. Lá,
passou a trabalhar como empregada doméstica, sendo que
a primeira oportunidade se deu por contatos de irmã que já
exercia a atividade.

Quando o meu pai ficou com uns setenta e poucos anos


[...] Ele ganhava aposentadoria de rural e era pouco. Ele
já quase não trabalhava e ficou nós dois em casa. Então
tinha que trabalhar.
Acho que eu tinha uns vinte dois, vinte três quando meu
pai adoeceu. Aí nós viemos para Rio Pardo mesmo. Eu
comecei a trabalhar em casa de família [...] Eu consegui
por indicação dessa irmã que me criou. Ela trabalhava
não sei quanto tempo em uma casa e aí ela foi me in-
dicando. Eu comecei como diarista e foi pegando con-
fiança e foi [...] Sempre trabalhei em casa de família.
(Junho/2015)

Viveu naquela cidade por pouco menos de dez anos. Lá,


parece ter ampliado sua rede de sociabilidade e, também, suas
opções para festividades e lazer. Em relação a este contexto,
fez sua primeira menção a situações de segregação, dizendo
que, diferentemente do interior, já havia bailes mistos, nos
quais iam “brancos e morenos”.

de concentração de recursos na região metropolitana da capital do Estado (via


industrialização e urbanização), e as promessas de alternativas ampliadas de
subsistência e mobilidade social que são atreladas a estes contextos, ainda que
os acessos aos recursos se erija de maneira ostensivamente desigual. O período
reconhecido como de “substituição de importações” (1930-80), que acaba por
compreender a migração de nossos interlocutores, foi caracterizado pela forma-
ção de áreas geograficamente periféricas nos principais polos metropolitanos do
país (Ribeiro, 2006).

259
Leandro R. Pinheiro (Org.)

Nessa época eu conhecia famílias, moças e a gente saía.


Ia a festas, saía de noite pra dançar, saía em festa de dia,
ia à praia. Aí já tinha... Como é que eles diziam... Os
“bailes mistos”. Que hoje não é mais misto, é tudo mis-
turado. “Junto e misturado”. Mas na época a gente cha-
mava baile misto. E tinha aquele que não queria, que se
achava mais clarinho e não queria ser negro, queria ser
branco e não entrava porque tinha negro junto. Na época
assim eu não tinha essa visão. Eu sentia... O pobre fica
pra lá, o negro mais pra lá e era assim lá e o que tinha
mais poder. De uns tempos pra cá, que eu comecei a abrir
mais a cabeça, a enxergar mais. [...] É escola, contexto de
trabalho, é ver que em Porto Alegre eu não vivo aquele
mundo que eu vivia em Rio Pardo. A própria adaptação
é diferente. Eu convivo com tipos de pessoas diferentes.

Após o falecimento de seu pai, decidiu vir para Porto Ale-


gre, residindo, inicialmente, com uma de suas irmãs. Com aju-
da desta, conseguiu novo emprego como doméstica e, então,
passou a morar onde trabalhava. Então, mencionou que aca-
bava por criar vínculos com as famílias para as quais trabalha-
va. Narrou que foi por incentivo de patrões que decidiu estu-
dar, depois dos 40 anos de idade. Mas mencionou que, também
por conta das mudanças de local de trabalho (e de moradia,
por conseguinte), interrompeu os estudos várias vezes.
À época de nossos diálogos, morando com a irmã no bair-
ro Restinga e trabalhando numa casa no bairro Assunção,
afirmava gostar da escola onde estudava então; também apre-
ciava a atenção dispensada a ela pelos professores, mas assina-
lou que, conforme fosse seu desempenho naquele ano, poderia
suspender uma vez mais a escolarização. Dizia ter dificuldades
para aprender e reclamava, neste sentido, que os comporta-
mentos dos jovens dificultavam sua concentração nas tarefas.
Inclusive, considerava a possibilidade de buscar um curso na
área de costura e confecção, onde pudesse estar entre pessoas
de sua idade e com quem comungasse propósitos.

260
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Como Eva, ela se filiava a uma igreja evangélica. Sua circu-


lação parecia bastante organizada desde esta pertença. Segundo
contou, teria ingressado em momento de perdas na família, por
indicação de uma vizinha do bairro Restinga. Além das rotinas
associadas ao trabalho6 e à escola, mantinha frequência regular
aos cultos e, por vezes, saía em viagens para outras cidades, em
eventos organizados pela igreja. Esta era também o cenário de
uma rede de apoio mútuo, a partir da qual promoviam cola-
borações na forma de custeio financeiro, buscas por emprego,
acolhida espiritual, partilha de trabalhos manuais, etc7.
Percebemos que as experiências em análise até aqui guar-
dam semelhanças no que tange às atribuições cotidianas e
ocupações de trabalho, levando-nos a reflexões sobre as dife-
renciações de gênero em seus espaços de ação. Para Nadir e
Eva, os itinerários possuem passagens por atividades agríco-
las ou extrativistas, ladeando homens na labuta, combinadas,
ademais, com tarefas de cuidado de familiares. Esta atribuição
não era exclusividade destas, perfazendo as trajetórias das se-
nhoras vinculadas à escola de samba e a rotina de Sofia (como
narraremos adiante) e, como extensamente argumenta a lite-

6. Nadir mencionou que sua patroa atual, professora, costumava a levar para
atividades culturais. Cabe fazer tal registro para enfatizar alternativas de fruição
que chegaram a ela em seu espaço de ação. Um itinerário em muito articula-
do à subsistência e ao trabalho faz deste um lugar privilegiado das vivências e
aprendizagens e, por vezes, pode ambientar a formação de redes que suportem
a produção de experiências diferenciadas.
7. Cabe registrar que as igrejas evangélicas vêm tendo crescimento expressivo
no Brasil desde os anos 1990. Entre elas, as evangélicas neopentecostais (os ca-
sos de Eva e Nadir), cujo crescimento em número de igrejas e de adeptos se ini-
cia nos anos 1970, caracterizam-se por serem autóctones, pela recorrência das
cismas (o que leva a certa diversificação de opções), pelo uso intensivo de mídias
eletrônicas, pela forte expressividade emocional nos cultos e pela apropriação
de discursos em prol da prosperidade terrena. Siqueira (2006), afirmará, ainda,
que estas comunidades têm crescido junto a populações mais vulnerabilizadas e
que se organizam rumo a uma apropriação flexível e reflexiva da religiosidade.

261
Leandro R. Pinheiro (Org.)

ratura sobre o assunto, configura disposição culturalmente di-


rigida às mulheres (Ieso, 2010).
Observamos, além disso, a manutenção de um quadro de
imputação de tarefas iniciado precocemente na socialização
dessas mulheres, interpondo a ocupação em atividades domés-
ticas. Nos casos daquelas com mais idade, nas circunstâncias
em que produziram sua subsistência, tais atribuições ambien-
taram a formação de disposições, converteram-se em possibi-
lidade de trabalho remunerado e, fluir dos dias, tornaram-se
um ofício naturalizado. Situação esta consonante à tradicional
conformação do trabalho doméstico como “gueto” profissio-
nal feminizado (Bruschini, 2007).
Nesse cenário, o espaço de realização do ofício se consti-
tuía como possibilidade de moradia e, em associação, opor-
tunidade para sociabilidade e eventuais acessos culturais por
aproximação a núcleos familiares diferentes e mais abastados
que os de origem. E, no curso de itinerários permeados por
instabilidade, trânsito e mudanças de locais de labuta, o ofício
também ambientava a produção de saberes, construídos por
observação, partilha oral com colegas e patrões e certa expe-
rimentação, como algo ensaístico e tributário do que se faz no
desenrolar da experiência de quem precisa encontrar meios
para fazer mesmo quando não houve prévia preparação.

Eu tinha oito anos, eu fui pra lá pra cuidar do menino


de cinco, né? Mas eu via como é que ela [empregada
doméstica] fazia, como é que ela limpava, né? Como é
que ela passava a enceradeira, como é que ela tirava o
pó, passava roupa.

A gente vai aprendendo assim. Eu vi, assim, o jeito que


a minha madrinha fazia, né? Então, eu gostava muito do
feijão que ela fazia. Aí, eu via que ela botava primeiro
o alho, né, deixava fritar.. Então, quando eu comecei a
fazer feijão, eu fazia assim, né?

262
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Aqueles anos todos com a madrinha, né... As coisas que


ela fazia, pra eu fazer. Quando eu comecei, aqui em Por-
to Alegre, a me sustentar mesmo foi fazendo faxina, né. E
é uma coisa que eu gosto de fazer, né. [...] Então, eu digo
“Eu devo isso a ela”.

E aí, eu fui trabalhar na casa duma senhora, Morava com


ela, morava com o casal, né? Aí, eu cheguei lá e disse pra
ela: “olha, eu não sei cozinhar.” E ela disse: “não, não
tem problema. Eu te ensino, né, que é pra reparar os me-
ninos, cuidar da casa, tudo”. (Eva, maio/2015)

Ainda que possamos admitir que os saberes produzidos


se converteram em capital, cabe realçar que, por outro lado,
os enunciados de Eva, de outra parte, esmaecem a restrição
de alternativas impostas pelo arbitrário da condição social-
mente produzida. A situação étnica e de gênero dispuseram
caminhos possíveis e, neste sentido, também limites ao por-
vir. Configura-se uma produção argumentativa que enuncia
as aprendizagens de um campo de possíveis como alternati-
va, ignorando os limites impostos pelo próprio campo; uma
elaboração da condição como providência (ou quase destino),
que ignora a produção social das possibilidades em todas suas
restrições ao efetivamente alternativo.

Seriam, então, as ocupações do cuidado (care), a melhor


síntese da coextensividade das relações de gênero, raça e
classe, à medida que explicitam conflito de classe entre
mulheres, sem mediações masculinas, a partir dos papéis
de gênero delineados e assumidos – execução e controle
do cuidado. Trata-se de relações de trabalho e de ativa-
ção das mulheres em pontos diferentes da hierarquia so-
cial, em que a condição precária de trabalho das empre-
gadas domésticas é naturalizada em decorrência de seu
pertencimento racial, que, por sua vez, inscreve seu papel
junto a mulheres de outra classe. (Silva, 2013, p. 111)

263
Leandro R. Pinheiro (Org.)

Agregando à análise as diferenciações étnicas e os efeitos


da discriminação vivenciados por nossos interlocutores, a con-
figuração da desigualdade no espaço de possíveis se adensa.
Em nossos diálogos, citavam situações de preconceito viven-
ciados recentemente8 e experiências de segregação e discrimi-
nação contundentes passadas no interior do estado, como cir-
cunstâncias de trabalho semi-escravo e de explícita interdição
aos estudos.
As realidades relatadas, aqui, trazem casos articulados à
conformação histórica de desigualdades no acesso à renda,
vínculos formais de trabalho e escolarização observados, no
Brasil, entre a populações branca, de um lado, e preta e parda,
de outro9. E registre-se o incremento das desvantagens para
as mulheres desta, em muitos casos condicionadas ao ingres-
so precoce em atividades informais e precarizadas, sendo o
serviço doméstico ocorrência frequente neste sentido, o que
poderia nos remeter à hipótese de articulações com herança
escravocrata, na manutenção da população negra em traba-
lhos manuais, sem perspectiva de ascensão e permeado por
pessoalidade (Lima, 2013).

2.1.3 Marcos e a busca por um lugar

Durante a realização de nosso projeto, a rotina deste edu-


cando se concentrava na escola, como monitor durante o dia

8. Entre os participantes, Eva, Marcos e Nadir se autodeclaravam negros.


9. Cabe lembrar que a formação do bairro Restinga e, especialmente, a região
conhecida como Restinga Velha, teve sua formação iniciada pela remoção de
populações empobrecidas de regiões centrais da cidade a partir dos anos 1960.
Áreas estas então cobiçadas pelo mercado imobiliário, alvo de políticas higienis-
tas do poder público e onde residia maioria populacional negra (Nunes, 1990).
Este bairro segue entre aqueles com maior contingente de pessoas autodeclara-
das negras na cidade. Segundo dados do Censo 2010, este representa 38,5% do
total da população da localidade; para Porto Alegre, o percentual é de 20,2%
(ObservaPOA, 2015).

264
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

e aluno à noite. Morava há três quadras dali e, além desta mo-


vimentação pendular, contou-nos que circulava pela cidade e
frequentava festas fora do bairro, onde pudesse escutar reggae
ou rap nacional. Disse ainda que pouco assistia TV e que não
acessava internet.
Em sua entrevista, narrou vivências de intensa precariza-
ção e considerável violência10. Contou que tinha 34 anos de
idade e que morou a maior parte de sua vida na Restinga,
no mesmo terreno onde vivia quando de nosso diálogo. Ali,
residiam também suas irmãs, em três casas diferentes no mes-
mo pátio. Seria o mais jovem de seis de filhos; perdera a mãe
aos 22 anos e não conhecera o pai. A respeito disso, procurou
explicar que a deficiência em sua mão e perna direitas era
resultado de um parto prematuro, quando a mãe soube da
morte do esposo.
A mãe trabalhava como empregada doméstica. Disse-nos
que, por falta de recursos, ela partilhava o cuidado dos filhos
com outras famílias e ele, especificamente, teria residido até
os oito anos de idade em um educandário, indo para casa so-
mente aos finais de semana. Em seguida, teria ingressado na
escola. Narrou um itinerário conflituoso e fragmentado pela

10. Segundo o Waiselfisz (2015), em que pese a diminuição da participação


das capitais no total de mortes por armas de fogo no país, esta continua sendo
seletiva e, inclusive ampliou os efeitos sobre a população negra: “As taxas de
homicídios por AF de brancos caem 23%: de 14,5 em 2003 para 11,8 em 2012;
enquanto a taxa de homicídios de negros aumenta 14,1%: de 24,9 para 28,5.
Com esse diferencial, a vitimização negra do país, que em 2003 era de 72,5%,
em poucos anos duplica. Em 2012 é de 142%: morrem 2,5 vezes mais negros
que brancos vitimados por arma de fogo” (p. 101). O relatório associa esta situ-
ação à histórica desigualdade de acesso a recursos e à insuficiência de serviços
públicos, incluindo-se aí as diferenças de usufruto dos aparatos de segurança
(públicos e privados). Os dados indicam, ainda, que a mortes por armas de fogo
são mais elevadas para jovens negros. O percentual de mortes por homicídio de
jovens negros do sexo masculino em Porto Alegre era de 70% em 2012. Para o
bairro Restinga, chegava a 84,6% (ObservaPoa, 2015).

265
Leandro R. Pinheiro (Org.)

alternância entre unidades escolares do bairro Restinga. Men-


cionou que resistia a permanecer nas aulas e que participava
de brigas com colegas. Associava-se a isso as disputas entre tra-
ficantes, dado que possuía familiares nesta atividade e, muitas
vezes, era interpelado por isso.

Começou assim... Hoje não, mas eu só brigava. Só queria


fugir da sala de aula [...] Mentia pra minha mãe que não
tinha aula e voltava pra casa.
Fiquei até a quarta série no Pessoa de Brum. Meus primos
trabalhavam com o tráfico, eram de uma gang. Aí, ficavam
dizendo: “Tu é primo,... tu é Bico de luz”. Aí minha mãe
me tirou da escola pra me proteger. Uns 12 anos, fui pra
outra escola. Na outra escola também, a mesma coisa.
Ficava em casa; gostava de escuta música. Meus irmãos
tinham aqueles hininhos ali. Escutava ‘Negritude Júnior’,
‘Só pra contrariar’... (Julho/2015)

Teria frequentado a escola até os 14 anos de idade apro-


ximadamente, quando teria saído de casa, passando a viver
na rua. Argumentou que seus irmãos bebiam em demasia e
acabavam o agredindo muito e, então, decidiu fugir. Teria
vivido em situação de rua por dois anos, circulando entre a
Restinga e o centro da cidade. Segundo contou, dormia em
lugares vazios e conseguia o que comer pedindo. Por uma vez,
tentara roubar um supermercado do bairro, mas foi pego em
flagrante. Retornou a casa por pedido de sua mãe, quando ela
o encontrou no centro de Porto Alegre.
Não ficou por muito tempo residindo com sua família e
encontrou trabalho em um haras, cuidando de animais. Era
trabalho bastante solitário, permanecendo longos períodos
no estabelecimento, sem colegas por perto e sem que visitasse
seus familiares. Ficou por lá por aproximadamente seis anos,
até que o lugar foi assaltado e Marcos decidiu deixar a ativida-
de por receio de que ocorresse novamente.

266
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Então, retornou a casa de novo e, tempos depois, passou a


estudar à noite na modalidade EJA, na mesma escola que fre-
quentava durante nossa interlocução. Ali, foi convidado a tra-
balhar como monitor, de forma que sua rotina passou a contar
com extensa imersão nas atividades escolares. Certa feita, o
vice-diretor da instituição definiu a relação de Marcos com a
escola como um “estar sempre voltando” e, afirmou, ainda,
que ele teria conseguido criar vínculos depois que passou a ter
atribuições durante o dia.

Bem melhor, porque eu conheci várias pessoas. Essa pes-


soa que eu conheci me deu o motivo de estar aqui hoje,
de tarde e de manhã. Eu vi a Silvana. Ela era do SOE.
Eu tenho um jeito bom de ser. Um cara sério. Ela que
disse: “Vou te botar num projeto aí; depois tu vai estu-
dando”. Como ela sabia que eu não podia trabalhar, ela
me convidou para o projeto.

Em que pesem as “idas e vindas” de Marcos e suas difi-


culdades em seguir a carreira de estudos, a escola acabou por
representar neste caso um espaço de proteção, sociabilidade e
reconhecimento, antes de um lugar para avanços estritamente
cognitivos. Uma relação, contudo, que não deixa de guardar
tensões gestadas pelo discurso comum ao campo educacional
e a forma de olhar retrospectivo que sugere.

Na escola tem que aprender, tem que estudar. Então, não


adianta ir pra escola e não ser ninguém na vida. Então,
a gente tem que bota na cabeça que a gente tem que ser
alguém na vida. Como eu nasci assim, não posso dize
que sou alguém na vida, porque eu só queria brincar, só
queria brincar, tanto que eu tô estudando hoje, porque
na minha infância eu não estudei. Senão era alguém na
vida; era advogado, era promotor.

267
Leandro R. Pinheiro (Org.)

A atividade como monitor não só o colocava entre os mu-


ros e sob a segurança que a escola representava naquela comu-
nidade, como o oferecia a ocupação de seus dias em interação
com crianças, jovens e adultos, alunos e professores. Estes con-
tavam-nos, muitas vezes, as rigorosas preocupações de Marcos
em realizar o que lhe era atribuído. Entretanto, uma vivência
narrada desde tensionamentos quando o educando era provo-
cado em sua temporalidade. Se tomarmos a entrevista realiza-
da, a busca por linearidade na trajetória de Marcos não parecia
fazer sentido e, podemos afirmar, resultava mais de uma bus-
ca interpretativa nossa, como pesquisadores. Algumas vezes, a
narrativa indiciava a noção de um “projeto”, a realçar supos-
tas escolhas equivocadas, como teria sido a de não se aplicar
aos estudos, indicando a inculcação da responsabilidade pelo
fracasso, a despeito das condições adversas de seu itinerário.
Dizia que poderia “ter sido alguém” e nos fazia pensar, sobre
as paradoxais circunstâncias de interpelação discursiva de seu
percurso: a ambiência institucional que lhe oferecia acolhida
era também aquela onde se erigiam práticas concernentes à
valoração do mérito; o lugar de proteção era também o locus de
reforço da violência simbólica (Bourdieu, 2000).

2.1.4 Sofia e as perguntas em aberto

Como muitos de seus colegas, Sofia morava nas cercanias


da escola onde nos encontrávamos. Residia com tios e um
primo, na casa da avó. Frequentava a residência também seu
irmão mais velho, que vivia não muito longe dali. Ingressara
na EJA em março de 2015, aos 19 anos de idade, depois de
diversas tentativas sem êxito no ensino fundamental regular.
Na ocasião da entrevista, contou-nos que até os cinco ou
seis anos teria vivido na Restinga Velha. A primeira alteração
de residência veio por conta de conflitos de seu pai no bairro.
Passaram a residir em Gravataí, na região metropolitana de

268
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Porto Alegre, onde foram acolhidos por uma tia. Ficaram lá


por pouco mais de um ano e retornaram à capital, segundo
alegou, por conta de novos conflitos. Passaram a morar no
bairro Lomba do Pinheiro, zona leste da capital, também em
uma localidade de periferia. Viviam em terreno de sua avó,
cujo uso era compartilhado com outros parentes, em diferen-
tes casas. Sofia disse-nos, ainda, que voltou a morar na Restin-
ga por um período de aproximadamente um ano por conta de
uma separação temporária dos pais, acompanhando sua mãe.
Depois, retornou com ela à Lomba.
Recentemente, em decorrência de seu ingresso na EJA,
a jovem passou a residir na casa onde a entrevistamos. Mas,
mesmo antes disso, disse que costumava frequentar bastante o
domicílio de sua avó, de forma que seu itinerário demonstrava
reiteradamente que crescera sob os cuidados de um arranjo
familiar extenso, lembrando, uma vez mais, as dinâmicas fa-
miliares e redes de reciprocidade que Fonseca (2004) refere em
relação aos grupos populares.

É que eu, tipo, ficava com o coração na mão. Tipo, gosta-


va de ficar aqui, mas também queria ficar perto dos meus
pais. (Julho/2015)

O cotidiano de Sofia estava organizado sobremaneira pelo


arranjo familiar. Estudava à noite e, pela manhã, ela se ocupa-
va de levar e buscar seu primo de sete anos à escola. À tarde,
ajudava a tia e a avó na preparação de alimentos que vendiam.
Sua rotina tendia a práticas usuais entre mulheres, na ocupa-
ção com tarefas domésticas e do cuidado, como extensamente
argumenta a literatura da área (Bruschini, 2007).
Além de configurar o espaço de atuação predominante de
minha interlocutora, a condição de gênero ambientava a vi-
vência de relativa moratória social (Margulis e Urresti, 1996;
Andrade, 2014), dado que permanecia sob proteção de fami-

269
Leandro R. Pinheiro (Org.)

liares e, a rigor, não tinha precisado enfrentar individualmente


as exigências do mundo do trabalho e/ou da subsistência em
incursões externas ao âmbito doméstico. Vale considerar, ain-
da, que ela integra a realidade vivenciada pelos jovens nos úl-
timos anos no país, de redução do envolvimento precoce com
trabalho e de ampliação do tempo dedicado à escolarização
(Ibase, 2010). Neste sentido, ademais, essa educanda encon-
trar-se-ia em situação assemelhada a dos jovens-adolescentes
(15-17 anos de idade) analisada por Mônica Peregrino e Julia-
na Prata em seu artigo nesta coletânea. Sofia teria tido aces-
so comparativamente mais cedo às políticas de ampliação da
escolarização e de correção de fluxo e reinserção escolar (via
modalidade EJA), iniciadas na segunda metade dos anos 1990
e requalificadas nos anos 2000. Se observados os itinerários de
pessoas com mais idade, tais medidas estariam a lhe ensejar a
ampliação do tempo de habitação da escola, com repercussões
para a experiência de sua condição juvenil.
Sofia começou os estudos quando criança, na Lomba do
Pinheiro. De maneira explícita, afirmou que não gostava de ir
até a escola. Em sua narrativa, articulava a isso algumas táticas
para evitar a frequência à instituição. As mudanças de residên-
cia teriam contribuído para “truncar” sua escolarização, mas
mencionou também que se ausentava muito e isso a teria feito
acumular reprovações, em uma carreira escolar atravessada
por intermitência e hesitação.

Eu ficava no colégio, mas não gostava de ir pro colégio.


Eu não prestava atenção. Daí eu ia rodando, rodando e
foi indo. Como eu não gostava, eu pegava o ônibus, fazia
uma volta e voltava pra casa e dizia que não tinha aula.
É que agora [na EJA] tem gente na mesma situação que
eu. Tipo, parou de estudar, são já grandes. No colégio, de
tarde ou de manhã, tem aquelas coisas das crianças: ah,
já é grande e está nessa série. Tem essa gozação, né.

270
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Na atual escola e na modalidade EJA, disse se sentir mais à


vontade. Todavia, essa educanda se mostrava uma pessoa bas-
tante tímida durante nossas dinâmicas coletivas e eram poucas
as suas palavras ao longo das conversações. Por algumas sema-
nas, assumiu a função de monitora na escola no turno da ma-
nhã. Porém, deixou a ocupação alegando receio em relação
à agressividade das mães dos alunos que, por ventura, fossem
repreendidos. Expressou, certa feita, uma intenção vacilante
de enviar seu currículo a uma loja, mas frisou que não gostaria
de atuar como atendente; preferiria envolver-se com a organi-
zação do estoque.
Comentou ser uma pessoa “caseira” e suas atividades, para
além da movimentação para a escola, resumir-se-iam a sair
com familiares, indo a festas em que houvesse música sertane-
ja. No mais, afirmou fazer uso intenso do celular e da internet,
acessando Facebook e Whatsapp sobretudo. Neste último as-
pecto, Sofia se aproximava das práticas de seus colegas jovens,
conforme observava na escola. Indiciava-se discretamente,
também, uma integração à condição juvenil contemporânea,
caracterizada, dentre outros aspectos, pela valoração da socia-
bilidade e da fruição artística e musical (Carrano, 2007).

É, mais o WhatsApp, quando alguém me chama, daí eu


respondo. [...] Geralmente coisas longe, tipo, que tu não
sabe. Tipo, tem uma prima tua que tu não vê; daí ela
posta coisas e tu vê como está indo a vida dela, assim [...]
Praticamente eu passo o dia inteiro com os fones de ou-
vido escutando música. [...]. Às vezes eu já começo de
manhã e vou até de tarde, na hora de ir pro colégio. O dia
todo escutando música. A minha vó fica, tipo, mexendo
comigo, porque eles falam comigo e eu não respondo,
porque estou ali escutando música.

Apesar da discrição e da timidez, Sofia se mostrava uma


pessoa vaidosa e fazia questão de cuidar sua aparência e suas

271
Leandro R. Pinheiro (Org.)

vestimentas antes de sair para as aulas. Sua atenção diária


aos livros, à música, ao celular e à internet, com destaque ao
acesso a redes sociais, indiciavam interesses e um tipo de re-
flexividade, na mimese mediada pelos artefatos culturais que
acessava e compartilhava em interações virtuais (Lash, 2012).
Observada como “aluna”, entretanto, parecia predominar o
silêncio e as reticências. Ficavam as perguntas pelo lugar da
escola entre os ‘possíveis’ que sua experiência esboça.

2.2 Ainda sobre os espaços de possíveis: suportes, provas e


individuação

As narrativas dos itinerários biográficos realizada acima


podem, agora, ser analisadas desde o contraste das experiên-
cias individualizadas que representam, de forma a aventarmos
hipóteses sobre os modos de individuação produzidos social-
mente em tal contexto.
Os percursos narrados expõem a precariedade de acesso
a recursos, que incluem: a existência de familiares de origem
com acesso vulnerabilizado à renda, moradia e escolarização;
trânsito por diferentes espaços (incluindo-se, aí, a migração
interior-capital em alguns casos) na busca por trabalho, re-
muneração, ou mesmo pela possibilidade de vivências menos
opressivas; intermitência e/ou hesitação na carreira escolar;
e interdições por situações de violência no cotidiano11. Ob-

11. Embora a trajetória de Marcos tenha sido aquela em que mais se visibiliza-
ra os efeitos dos conflitos entre traficantes, as demais participantes do projeto
foram bastante enfáticas em suas reclamações acerca das restrições impostas à
circulação no bairro, dada sua divisão em territórios controlado por traficantes
e os embates (com uso explícito de armas de fogo) resultantes daí. As incursões
para fotografar teriam sofrido influência desta situação inclusive. Isso não deve,
entretanto, nos levar a ignorar a complexidade destas relações. Integram o con-
texto iniciativas de proteção aos moradores no interior de cada território, sendo
possível situações de colaboração compensatória, quando o acesso a serviços
dos aparatos público-estatais é insuficiente. Por vezes, tomando o conjunto de

272
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

servando genericamente, poderíamos afirmar o mesmo em


relação aos jovens bboys e/ou às mulheres idosas que também
partilharam encontros conosco, e são foco de atenção nos ar-
tigos anteriores. Cabe o esforço, mesmo que insuficiente, de
considerar diferenciações desde os itinerários em circunstân-
cias assemelhadas.
As condições materiais e culturais em que estão ambien-
tados nossos interlocutores neste caso diferem de maneira re-
lativamente sutil em relação aos demais grupos com os quais
dialogamos no bairro Restinga. A situação de vulnerabilidade
social apresentada parece visibilizar circunstâncias partilhadas
pelos moradores do que seria a parte mais empobrecida desta
localidade. Comparativamente, os sujeitos de diálogo, aqui,
apresentavam condições de moradia e renda mais fragilizadas
e/ou dependentes e seu trânsito junto a códigos de leitura e
escrita mais deficitários, sendo a manutenção da relação com
a uma escola (mesmo que tardia) ainda uma aposta necessária
ou interessante12. A atuação político-cultural é menos expres-
siva e não apresentava casos de protagonismo em produções
coletivas nos âmbitos em que atuavam.
Em tal contexto, as redes que suportavam as práticas de
meus interlocutores tendiam a estar representadas sobretudo
nos vínculos familiares, com ocorrência de eventuais laços de
reciprocidade com vizinhos próximos, além de interações es-

interlocutores no projeto, era possível perceber que divergiam no julgamento de


que grupos seriam os mais violentos, tendendo a assumir posição favorável aos
que supostamente os protegiam.
12. Vale frisar que, observando o conjunto de nossos interlocutores no projeto, a
importância da escola era situada de forma relativa, conforme a condição etária
e os êxitos conquistados nas arenas de atuação predominantes, de forma que os
saberes escolares nem sempre se convertiam em capitais culturais pertinentes,
salvo quando falamos de aprendizagens básicas. Temos aqui um campo de ten-
sionamentos. Em geral, não se esmaeciam sua valorização simbólica e as preo-
cupações de que os mais jovens estudassem, dado que esta se apresentava como
uma alternativa de mobilidade social em função do que certifica e legitima.

273
Leandro R. Pinheiro (Org.)

pecíficas com espaços formais. Para Nadir e Eva, cujas tra-


jetórias apresentavam experiências de migração, os desloca-
mentos foram viabilizados por amparo de familiares, sendo
que, no caso da segunda, a fragilidade dos laços na infância e
na juventude era patente13. Era essa também a ambiência de
provas, consubstanciadas na responsabilização por tarefas, na
interposição do trânsito e na exigência de que “fizessem por
si”, ou representadas no cuidado dos parentes e na consecução
do papel que as diferenciações de gênero lhes demandam.
Então, o cotidiano no trabalho, para além do desafio da
subsistência familiar e dos vínculos formais logrados, sinaliza-
va para possibilidades de diversificação de vivências, conforme
lhes chegavam oportunidades que pudessem ser “capturadas
em voo”, conforme sinaliza De Certeau (2011). Aí, não só pos-
sibilidades à produção de saberes do ofício, mas alternativas
de fruição e lazer ou novas buscas de aprendizagem.
De outra parte, os vínculos com igrejas evangélicas confor-
mavam espaços de integração, pelo qual configuravam parte
de sua circulação pela urbe e vivenciavam reconhecimento
em redes de apoio mútuo e de sociabilidade; era onde encon-
travam, em congruência, um sistema simbólico desde o qual
podiam operar reflexivamente, buscando explicações para o
experienciado e atribuindo sentidos a passagens do itinerário.
Nesse sentido, poderíamos mencionar como exemplo a já cita-
da interpretação de Eva acerca da ocupação da área para sua
residência: uma tomada de posição que, não prescindindo de
justificação moral, ela elaborava apropriando reflexivamente
os códigos de sua comunidade religiosa. Ou, então, suas con-
siderações sobre o racismo sofrido no passado depois que, em

13. Se comparada ao narrado em relação aos itinerários biográficos de Luci,


Helena, Nandi e Antonia no primeiro artigo desta seção, a rede de contatos do
pai de Eva a levara a condições de trabalho mais exploratórias e limitadoras.
Da mesma forma, sua vinda à capital não parece ter sido feita mediante acordo
prévio ou por convite de sua “madrinha”.

274
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

visita à casa de uma “irmã em Cristo”, esta teria a convidado e


insistido para que sentasse no sofá da sala, acontecimento que
a fizera ponderar mais detidamente as restrições que carrega-
va desde o que não lhe teria sido permitido.
Passando à errática trajetória narrada por Marcos, a pro-
teção exercida pela família era instável e concentrada na figu-
ra da mãe. Para além das precariedades contextuais já referi-
das ao bairro e à condição étnica, a interposição de situações
de violência (em aproximação ou não ao tráfico de drogas) e as
dificuldades relacionadas à sua deficiência física teriam dificul-
tado sua permanência inicial na escola e limitado ingressos em
atividades de trabalho, quando não o colocado em situação de
risco. Então, a instituição escolar vinha sendo o espaço de pro-
teção, sociabilidade e reconhecimento, mas também do tenso
apelo por um “projeto” individual.
Com Marcos, além disso, a relação com o território se
mostrava um desafio patente, representando de maneira ex-
tremada o que indicavam os depoimentos dos demais inter-
locutores na Restinga e, sobretudo, os de alunos da escola.
Referimo-nos à circulação pelo bairro e pela cidade. Em ge-
ral, os educandos com quem dialogamos preferiam usufruir
de espaços citadinos fora daquela localidade, não só pela pre-
cariedade da infraestrutura dos aparatos públicos para lazer
e entretenimento, mas pelas restrições estabelecidas por trafi-
cantes à permanência e trânsito pela região. Se Eva e Nadir
apoiavam-se nas relações construídas em suas igrejas e Sofia
mantinha-se junto à rede familiar, Marcos transitava normal-
mente só, usando da tática de ir a festas e bares somente no
centro da cidade. Encontrar caminhos para seguir em segu-
rança pelas ruas parece ser uma aprendizagem significativa
e vital e tende a ser desenvolvida conforme as alternativas
construídas relacionalmente pelos indivíduos.
No que concerne às relações de Sofia, seu cotidiano estava
organizado sobremaneira pelo arranjo familiar e, com menor

275
Leandro R. Pinheiro (Org.)

intensidade, pela sociabilidade com amigos em redes sociais.


Seus dias eram ocupados com atividades de trabalho em casa,
junto a familiares, e a frequência à escola, sendo que a relação
com esta foi truncada no passado e, quando de nossas conver-
sas, parecia representar uma obrigação ou uma necessidade,
de forma que não estaria lá um efetivo desejo de participação.
Ela diferia de suas colegas mais velhas, para quem a escola
não era possibilidade na juventude e que, embora tivesse a re-
levância tensionada pelas urgências dos percursos (migrações,
trabalho, filhos, etc.), era narrada em concordância com seus
preceitos. Sofia gozava de acesso mais facilitado à escola, mas
parecia esboçar certa economia das formas de superação das
provas escolares. As palavras de Sofia (e, por vezes, seu silên-
cio) indiciavam que este desafio carecia de sentido (para além
da conquista de uma certificação).
Ademais, é preciso considerar sua atenção diária aos livros,
à música, ao celular e à internet, com destaque ao acesso a re-
des sociais, e, também, o contraste de sua vaidade no consumo
possível e entre gestos que, inicialmente, poderíamos caracte-
rizar pela timidez. Estes indiciavam interesses e a produção
de uma experiência que integravam reflexividade mimética e,
na interatividade, buscas por individuação, quando compar-
tilhava gostos e tomava posições cotidianamente. Parece-nos
que é na singularização de estilos, preferências e opiniões en-
tre pares e no reconhecimento destes em relações de amizade
(Ortega, 1999) que se erige as possibilidades de individuar-se.
O cenário de adversidades e redes narrados em relação
aos itinerários biográficos e, em articulação, ao espaço de pos-
síveis assinalam sobremaneira experiências interpeladas em
suas condições de subsistência. Com ocorrência menos intensa
no caso de Sofia, o processo de individuação concretizado nas
experiências de nossos interlocutores se deu na responsabiliza-
ção precoce na condução de atividades, quando não no cui-

276
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

dado a outrem, no trânsito e na astúcia frente às adversidades


em cenário instável.
Poderíamos dizer que, na escola, vivenciavam individuali-
zação no trato diário de professores, atento às peculiaridades
individuais em sala de aula14 e dispondo seus alunos a uma
dinâmica avaliativa de longo prazo, ainda que a noção e um
projeto biográfico apoiado pela escola, conforme assinala
Vieira (2012), não seja um horizonte facilmente discernível
entre nossos interlocutores. Ou seria o caso também de consi-
derarmos as interações nos diferentes locais de trabalho e nas
comunidades religiosas, onde se afirmavam desde os “olhares”
dos outros. Contudo, o apelo mais contundente, parece-nos,
estava na recorrência da produção de táticas e na reflexivida-
de que estas interpunham quando alternativas precisavam ser
encontradas15.
Um cenário, em síntese, que tende a configurar a indivi-
duação mais pela instabilidade do terreno onde se caminha e

14. Não raro, conversava com professores na escola e, quando mencionava o


nome dos educandos que participavam do projeto, geralmente respondiam com
uma caracterização dos jeitos de estar na escola e dos avanços cognitivos con-
quistados a cada aluno.
15. Tomemos mais um exemplo. Em certa ocasião na escola, foi-nos narrado
por uma educanda que vivia dos parcos ganhos como catadora, que ela teria
sido ajudada pelo “gerente da boca” (coordenador local do tráfico) nos cuidados
a sua filha menor. Esta criança teria grande afeição pelo “gerente”, um garoto
com pouco mais de 20 anos. Colocamo-nos a pensar na complexidade dessas
relações: conviver com quem vive e interpõe a violência e, ao mesmo tempo,
criar laços e depender da ajuda deste. Difícil pensar na definição de parâmetros
estáveis para delimitação das interações. Como dizer “não me relacionarei com
esta pessoa nunca”, como instaurar “julgamentos” se as circunstâncias podem
mudar e as pessoas podem trazer alternativas onde antes havia restrições? Não
afirmo uma situação de fluidez de regras e laços. Havia, por exemplo, uma forte
moral do trabalho entre as pertenças e os limitadores à ação entre meus inter-
locutores, que usavam geralmente para se diferenciar dos exerceriam atividades
ilícitas. Digo que, para manter estas disposições muitas vezes, há o estruturante
de certa “maleabilidade” quando necessário.

277
Leandro R. Pinheiro (Org.)

pela ação que demanda, do que pelos apelos à singularização


de estilos e consumos na interação (de que a jovem Sofia seria
o exemplo mais claro). Um arranjo que se assenta também em
narrações cujos eixos de elaboração realçam as proezas, a ne-
cessidade de superação das adversidades e a importância das
redes pessoalizadas na manutenção da existência: diríamos, a
condição de um “hiper-ator” conforme mencionado por Mar-
tuccelli em sua entrevista.

3. Educação de Jovens e Adultos: trajetórias intergeracionais


em lugar de fronteira

Cruzo a última cancela


Do campo pro corredor
E sinto um perfume de flor
Que brotou na primavera.
À noite, linda que era,
Banhada pelo luar,
Tive ganas de chorar
Ao ver meu rancho tapera.
Deixando o Pago,
poema de João da Cunha Vargas,
interpretado por Vitor Ramil.

Encaminhando-nos ao final deste capítulo, desejamos dis-


cutir a relação de nossos interlocutores com a escola, de modo
a problematizarmos diferentes formas de apropriação do que
a educação de jovens e adultos dispõe. Assim como, procura-
mos relacionar condições, pertenças e individuação, pensamos
que os sentidos da escolarização precisam ser buscados nas ex-
periências construídas pelos educandos. Embora não configu-
re argumento inovador, parece-nos que provocações concer-
nentes merecem destaque ainda, especialmente no contexto
de juvenilização retratado antes.

278
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Nesse sentido, pensar a Educação de Jovens e Adultos


(EJA) como lugar de “fronteira” abre possibilidades para ana-
lisar os processos de escolarização envolvidos no caso da escola
em análise. As distintas trajetórias que uniram num mesmo
espaço escolar sujeitos como Marcos, Sofia, Nadir, Eva, entre
outros, provocavam diferenças na relação dos mesmos com a
escola e causavam conflitos ou desencontros por conta disso.
Parece, porém, que é preciso compreender que existia tam-
bém algum encontro nessa conjunção de diferenças, o fato de
que todos estavam/estão cruzando cancelas – como diz o poeta,
entre a vida e o trabalho, entre as condições juvenis e adultas,
entre a família, a rua e a escola. Os estudos de juventude, na
perspectiva das relações intergeracionais, serão aqui o aporte
para pensar essas cancelas nesse lugar de fronteira – a EJA. A
fronteira será aqui entendida como espaço de limites ou de de-
limitação de diferenças, mas também como espaço de trocas e
de transgressões (Santos, 2002).
Compartilhamos com Martins (1997) a ideia de frontei-
ra como lugar da alteridade, uma vez que nela encontram-se
temporalidades diversas. Para o autor,

(...) a fronteira é essencialmente o lugar da alteridade. É


isso o que faz dela uma realidade singular. À primeira
vista é o lugar do encontro dos que por diferentes razões
são diferentes entre si, como os índios de um lado e os ci-
vilizados de outro; como os grandes proprietários de ter-
ra, de um lado, e os camponeses pobres, de outro. Mas o
conflito faz com que a fronteira seja essencialmente, a um
só tempo, um lugar de descoberta do outro e de desen-
contro. Não só o desencontro e o conflito decorrentes das
diferentes concepções de vida e visões de mundo de cada
um desses grupos humanos. O desencontro na fronteira
é o desencontro de temporalidades históricas, pois cada
um desses grupos está situado diversamente no tempo da
História. (Martins, 1997, p. 150-151)

279
Leandro R. Pinheiro (Org.)

A EJA e a escola, nessa perspectiva de análise, são espaços


de encontro de distintas temporalidades. Segundo Carmem
Brunel (2004), o fenômeno de alunos que frequentavam a EJA
para terminar o Ensino Fundamental ou o Ensino Médio, por-
que eram adultos e tinham parado há muito tempo de estudar,
com vistas a um melhor emprego ou a promoção no seu local
de trabalho, vem diminuído bastante nos últimos anos. Atu-
almente, os estudantes da EJA são mais jovens, muitos para-
ram há pouco tempo de estudar, são recém egressos da escola
regular e a maioria possui um histórico de repetência de um
ano, dois anos ou mais. E isso nos coloca novamente diante da
problematização acerca da função social da escola e da EJA
em contextos contemporâneos.
A escola como instituição pública, laica e gratuita, surge
historicamente no contexto da modernidade, tendo como um
dos deveres a transmissão e o ensinamento dos fundamentos
da ciência. O Iluminismo marca o projeto pedagógico mo-
derno, no qual a educação passou a ser o foco, por excelên-
cia, das esperanças na humanidade. Um sujeito bem educado
seria, necessariamente, a certeza de um mundo melhor. E é
justamente aí que a educação recebeu sua tarefa fundamental
e sua base normativa, qual seja, de educar para o aperfeiçoa-
mento moral da humanidade. Sob essa condição, porém, tem-
-se visto uma instrumentalização e normatização da educação
que demonstram as contradições dessas justificativas originais.
A escola tornou-se um local de transmissão de conteúdos e
uma passagem necessária para a adaptação social. Contudo,
as dinâmicas contemporâneas que provocam o questionamen-
to dos fundamentos da modernidade (Beck, 2012; Melucci,
2004) atinge e ressente profundamente a escola, que experi-
menta uma espécie de crise de sentido.

280
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

3.1 Relações intergeracionais a partir dos estudos de


juventudes: a mudança como centralidade

Historicamente, o reconhecimento de uma fase da vida,


distinta da infância e da vida adulta, nas sociedades ocidentais
cristãs, desenvolve-se com nitidez no contexto próprio em que
se insere entre o final do período moderno e a inauguração do
período contemporâneo, surgidas da revolução industrial e das
revoluções burguesas, refletidas nos novos processos dentro da
ciência e da escolarização. Até o século XVIII, confundia-se
infância e juventude, sendo que a última era sinônimo de va-
gabundagem e por isso confirmava-se a necessidade social de
impor educação e trabalho às gerações mais novas, livrando-
-as das características supostamente negativas, vinculadas ao
ócio e à libertinagem. A escola recebe a tarefa de evitar tais
vínculos, educando para a vida em sociedade, ou seja, para o
trabalho intelectual e manual, conforme a posição social ocu-
pada pelo sujeito. Somos herdeiros de um projeto pedagógico
delineado sob tal argumentação e a maneira como lidamos
com os jovens ainda hoje apresenta características desse tipo
de representação social. Aí decorre o diálogo intergeracional
precário que se estabelece nas relações pedagógicas cotidia-
nas, expresso nas dificuldades crescentes das relações entre
professores e alunos, assim como na limitada troca de saberes
entre os mesmos.
A partir do século XVIII, buscou-se definir, assim, as fron-
teiras entre o mundo infantil e o mundo adulto: a esfera do
estudo e da preparação para o futuro, de um lado, e o mun-
do do trabalho e da formação de uma família, de outro. O
mundo da liberdade de escolha, por uma parte, e das opções
sedimentadas, por outra. A passagem, no entanto, na atualida-
de está ameaçada por uma nova indefinição dos limites entre
esses mundos, agravada pela desigualdade na possibilidade de
escolher, de selecionar, de produzir trajetórias de vida, depen-

281
Leandro R. Pinheiro (Org.)

dendo da condição social do sujeito. Podemos observar que


antigos ritos ou marcas de passagem da juventude para a vida
adulta são adiados, dessincronizados e/ou revertidos hoje (Pa-
ppámikail, 2012). O serviço militar, o trabalho e o casamento
são exemplos disso, uma vez que muitos jovens (ou adultos)
casam e continuam morando com a família, ou ainda traba-
lham e possuem independência financeira, mas, mesmo assim,
permanecem na casa de parentes.
Podemos pensar que a juventude16 é um período consti-
tuído pela mudança como centralidade, em que o corpo, a
afetividade, as referências sociais e grupais se constituem num
novo patamar da experiência vital. Somos convocados a dizer
quem somos e quem poderemos ser, o que gostamos, de quem
gostamos, enfim, fazemos aprendizados que são significativos
para o resto da vida. A mudança contínua e especialmente a
capacidade de lidar com isso é o que se pede fundamentalmen-
te ao adulto em sua experiência individual e social. Há que
se deslocar, contudo, a atenção dos conteúdos da experiência
para os processos da construção de cada sujeito ou grupo. Ao
invés de descrever os conteúdos próprios dessa fase da vida e
explicar os sujeitos a partir deles, cabe buscar compreender

16. Falar em juventude é falar em diversidade, sendo que a mudança e a possibi-


lidade de pensar sobre ela são características fundamentais para a compreensão
dos jovens numa perspectiva social e histórica. A dificuldade em construir uma
definição dessas categorias vem sendo apontada por muitos autores brasilei-
ros na área da educação, que inovaram ao vislumbrar, nesse campo, o jovem
para além da categoria de aluno. A compilação desses estudos, feita por Marília
Sposito (2001), demonstra que, por algum tempo, privilegiou-se a pesquisa do
jovem em tal condição, restringindo-se a ação investigativa ao interior da escola.
Recentemente, têm crescido os estudos focados nos jovens em seus processos de
socialização, a partir do mundo da cultura, da formação de grupos musicais,
religiosos, políticos, da associação através de gangues ou tribos, enfim, das mais
diversas identificações, evidenciando a existência de uma diversidade dentro do
que podemos chamar de juventudes. Além de Marília Sposito, Juarez Dayrell e
Paulo Carrano são alguns dos autores importantes nesse campo.

282
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

os processos vivenciados pelo sujeito, envolto em seu entorno


cultural e histórico. Um exemplo desse modo de compreen-
são dos sujeitos é a importância atribuída à juventude entre os
grupos populares como tempo de opções fundamentais, uma
vez que uma escolha pelo tráfico de drogas ou pela gravidez
por exemplo, nessa época, pode resultar em situações emble-
máticas para a vida inteira.
Então, se as gerações mais novas convivem com adultos
que tampouco consolidaram suas existências socialmente, vi-
vendo a instabilidade e as incertezas em seu cotidiano, ou são
inábeis para lidar com as mudanças, cria-se um dilema. Esse
dilema é próprio do contexto contemporâneo, destacando-se
que segundo Fabrinni e Melluci:

Deve ser reconhecido então que as características atri-


buídas ao adulto maduro, que parecem referir-se a um
tipo de estabilidade adquirida e duradoura, não têm uma
resposta efetiva na experiência de nenhuma pessoa real.
Os problemas que se encontram pela primeira vez na
adolescência: escolhas, dilemas, relação com mudanças
contínuas, não são superados na adolescência, mas ini-
ciam a partir dela a fazer parte do panorama existencial
de cada um. São tensões atuais para cada adulto às voltas
com a vida [...]. (Fabrini e Melucci, 2004, p. 7)

O tema das relações intergeracionais deve ser entendido


a partir da diversidade cultural das experiências geracionais,
para então proporcionar alguns questionamentos sobre a qua-
lidade dessas relações, no sentido do respeito e da troca de sa-
beres entre si. É justamente na escola onde diferentes grupos
etários têm a oportunidade de se encontrar cotidianamente e
construir a possibilidade de um diálogo qualificado. Mas é isso
o que acontece? Jovens, adultos e velhos interagem no sentido
do respeito mútuo e da troca de saberes nesse ambiente? O
professor vê no seu aluno o jovem, o adulto ou o velho em suas

283
Leandro R. Pinheiro (Org.)

experiências concretas? Como essas questões podem ser pen-


sadas no contexto da EJA? Propomos tratar dessa interrogação
a partir de três formas de estar na EJA, a partir dos materiais
coletados na ação de extensão realizada na Restinga Velha.

3.2 As diferentes formas de relação com a EJA

Como já mencionado, o contexto em foco presenciava


um expressivo processo de juvenilização. O diretor da escola
mencionava que tal situação alterava o cotidiano escolar, de
forma que sua fala indicava um lugar de fronteira entre jovens
e adultos. Para ele,

[...] o adulto, quando vem se matricular e se propõe a


voltar a estudar, ele tem objetivo ali, claro. Ele estuda, é
um estudante profissional, vamos dizer assim, ele se inte-
ressa, ele quer saber, ele quer aprender, ele tem sede de
conhecimento. E a gurizada que, muito embora assim, a
gente tenha tido sempre bastante critério para deslocar os
caras pra noite, não tem [...]. (Julho/2015)

Em comum, entre jovens e adultos da EJA, temos o fato de


que todos experienciavam a escola como lugar que se podia es-
tar quando a vida não apresentava urgências ou contingências
outras, ou quando era possível criar pelo menos interstícios
para tanto. Parece que a EJA, ao menos no caso especifico da
análise que ora realizamos, tratava-se da escolha possível para
o momento de cada um: seja pela busca de respostas ao mun-
do do trabalho, seja pela dificuldade de adaptação ao mundo
da escola regular. A EJA e a escola podiam ser os espaços de
estar sempre voltando ou de estar sem estar, como modos diferentes
mas articulados de relação, como no caso do jovem Marcos
e da jovem Sofia. Ou ainda os espaços de voltar na vida adulta,
como nos casos de Eva e Nadir.

284
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Nesse cenário de contrastes, não seria preciso entender as


adultas igualmente como andarilhos, em busca de alternati-
vas e trabalho, em outros momentos da vida? Talvez elas já
tivessem estabilizado minimamente as urgências de sua vida,
constituindo-se capazes de, nesse momento, parar e estudar.
Ademais, sua relação com a instituição escolar não parecia se
ressentir com a crise de sentidos da proposta escolar, apenas a
situavam conforme seu espaço de possíveis.
Marcos caracterizava-se por movimentos de ir e vir aos es-
tudos e à escola como instituição; um andarilho na escola e na
vida, parece estar sempre voltando. Esteve sempre em movimento,
passou por diversas escolas e situações de vulnerabilidade so-
cial. Ele vivia o paradoxo de voltar para algo que parece não
lhe conferir sentido como resposta duradoura às exigências do
mundo da vida adulta. Já Sofia, por outro lado, contava que
ficava no colégio, mas não gostava de ir para o mesmo e não
prestava atenção. Vale retomar, segundo ela: “daí eu ia rodan-
do, rodando e foi indo. Como eu não gostava de sair, eu pega-
va o ônibus, fazia uma volta e voltava para casa e dizia que não
tinha aula” (julho/2015).
Sofia e Marcos tinham relações distintas com a escola, mas
igualmente marcadas pelo movimento e pela não fixidez. Am-
bos se caracterizavam por estar em aula mas envolverem-se
pouco com as tarefas que a escola lhes impunha. É o que po-
demos chamar de estar sem estar17, ocorrência que se refere ao
tipo de sujeito capaz de ir todos os dias para a escola, que está
fisicamente no espaço escolar, mas afetivamente18 está fora,
na medida em que não deseja ou não consegue efetivamente
compartilhar de seus rituais mais tradicionais.

17. Termo cunhado por Jaqueline Moll (2004), ao tratar das mudanças educa-
cionais que não conseguem dar conta da permanência e da aprendizagem de
milhares de crianças e adolescentes no Brasil.
18. Vale frisar, a palavra “afeto” se origina do latim “affectus”: estar disposto,
inclinado a.

285
Leandro R. Pinheiro (Org.)

Esses diferentes modos de relação com a escola precisam


ser compreendidos num espectro social mais amplo. Para
Martins (2000, 2002), a experiência da modernidade no Bra-
sil, e nos países latino-americanos em geral, tem características
específicas e diferenciadas da experiência europeia, configu-
rando-se como um processo incerto e inacabado, produzido
pelo desenvolvimento capitalista dependente e marcado pelo
acirramento da desigualdade social. Então, o tema da exclu-
são social ganha outros contornos. Ele não concerne apenas à
pobreza ou às condições materiais, embora esteja delas indis-
sociado, mas diz respeito também a “uma multiplicidade de
dolorosas experiências cotidianas de privações, de limitações,
de anulações e, também, de inclusões enganadoras” (Martins,
2002, p. 21). A sociedade que exclui é a mesma que integra,
mas de forma precária.
Os jovens, como aqueles a quem a escola representa mais
enfaticamente a pergunta pelo futuro e a interpelação por um
projeto, possuem um grau de liberdade limitado em relação às
escolhas de seus itinerários de vida quando chegamos às peri-
ferias urbanas. Isso nos remete à possibilidade de pensar a in-
clusão precária19 (Martins, 2000; 2002) na escolarização, concre-
tizada por aqueles que estão na escola, mas sua permanência
e aprendizagem são “epidérmicas” e/ou inconclusas, apesar
dos notórios avanços na massificação do acesso à escola.
Como Dayrell (2003), sugerimos caracterizar os adoles-
centes das periferias urbanas como vivenciadores de formas

19. Para Martins, “[...] as políticas econômicas atuais, no Brasil e em outros


países, que seguem o que está sendo chamado de modelo neoliberal, implicam
a proposital inclusão precária e instável. Não são, propriamente, políticas de
exclusão. São políticas de inclusão das pessoas nos processos econômicos, na
produção e na circulação de bens e serviços, estritamente em termos daquilo
que é racionalmente conveniente e necessário à mais eficiente (e barata) repro-
dução do capital” (1997, p. 20).

286
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

frágeis e insuficientes de inclusão num contexto de desigualda-


de social, representada pelo esgotamento das possibilidades de
mobilidade social para a maioria da população. São intensas
as restrições ao emprego20 e os limites em suas formas de lazer
e no mercado de consumo, com consequências às possibili-
dades de vivenciar sua condição juvenil. E, cabe considerar,
a dessincronização dos ritos de passagem dispõem tensiona-
mentos adicionais à elaboração de projetos biográficos. Como
ancorar escolhas quando as opções se diversificam (ainda que
virtualmente) ou a instabilidade e a incerteza se avizinham?
Como fazê-lo se as referências do mundo adulto parecem frá-
geis e a juventude parece tomar o horizonte da idealização?
Se, além disso, por formas e intensidades variadas, os jovens
que chegam à escola na atualidade têm na sociabilidade, na
fruição artística e simbólica e na partilha horizontalizada de sa-
beres as ambiências preferenciais de suas existências e o campo
privilegiado para vazão de suas reflexividades; se seus processos
de socialização possuem relativa autonomia em relação às ins-
tituições, com destaque aos grupos de pares, e a reversibilidade
compõe seus itinerários desde, entre outros aspectos, as insta-
bilidades do mercado de trabalho (Dayrell e Carrano, 2014), é
necessário reconhecer que a relação com a escola e com o que
pretendem os professores precisa de problematização.
Dentre as preocupações mais recorrentes entre os jovens
na atualidade estariam a violência (46%), a qualidade da edu-
cação (37%) e dificuldades relativas ao emprego (37%) (Ibase,
2010). Poderíamos considerar, a partir daí, que as juventudes
atribuem lugar relevante à escola em suas projeções. Então,
a questão relativa ao suposto “desinteresse” dos alunos (mui-
tas vezes formulada pelos professores), poderia provocar uma
interpretação diferenciada, orientando-nos a perguntas pela
20. Vale lembrar que as taxas de desemprego para jovens são geralmente supe-
riores à média geral da população, chegando a mais que o dobro muitas vezes
(Costanzi, 2009).

287
Leandro R. Pinheiro (Org.)

forma preferencial de relação com o saber e com o Outro,


a exemplo do que sugere a etimologia da palavra “interesse”
(“estar entre”), como costuma salientar em suas palestras o
professor Paulo Carrano. Aventamos a hipótese de que é a
necessidade de implicação com as experiências pessoais que
pede lugar, não como artifício de ancoragem de conteúdos,
mas como vetor de construção de participação e partilha.
Voltemos a Sofia. Em seu cotidiano, navegava entre o ins-
tigado pelo desejo, nas sociabilidades e na fruição, e as buscas
por segurança, circunstanciadas no contexto de vulnerabilida-
de em que vivia e nos apelos sociais por definição de um proje-
to. O arranjo familiar a amparava neste sentido, mas isso não
tornava menos incerta a aposta na carreira escolar e menos
difusos os possíveis efeitos da escolarização em seu contexto de
precarização. Avançar nos estudos não poderia representar, ao
contrário, um distanciamento das relações familiares (e da am-
biência sócio cultural que a acolhia)? Inquietar ou silenciar-se
podem ser reverberações do autoconfronto e do receio, ao ser
pressionado a caminhar quando o terreno parece movediço e
os anseios e/ou as necessidades exigem voos expeditos.

288
Do contraste de narrativas, o ensaiar de um inventário

Leandro R. Pinheiro
Bruno H. S. de Castilhos
Rodrigo S. F. A. Teixeira

Nos artigos que precedem os alinhavos que traremos aqui,


optamos por apresentar nossos interlocutores elaborando nar-
rativas sobre seus itinerários e/ou sobre as relações que esta-
beleciam com seus contextos na produção de experiências. A
(re)construção que operamos ao estabelecer nossa interpreta-
ção daquelas realidades visava trazer à discussão casos para
“estranhamento” e compreensão, que partilhassem um pouco
da dramaticidade dos contextos que viemos a conhecer e que,
nesse ínterim, pudessem condensar provocações às práticas
educativas desenvolvidas em periferias urbanas1.
A composição dos percursos procurou destacar a movi-
mentação dos sujeitos em seus espaços de possíveis. E, para
tanto, estivemos a saber de algumas das táticas e reflexivida-
des produzidas por eles, na forma de um autoconfronto com

1. Reconhecemos que o termo “periferia” apresenta limites como categoria


de análise, dada a condição de multicentralidade nas cidades contemporâne-
as (Santos, 2009). Da mesma forma, percebemos que se apresenta como uma
expressão consideravelmente polissêmica (como, aliás, outras destinadas a no-
minar grupos e/ou assinalar situações de forte assimetria de poder e de vulne-
rabilidade social em relação aos direitos que constituímos historicamente, como
são exemplos “exclusão social” ou “cultura popular”). Contudo, optamos por
adotá-la como sinalizador de desigualdades sociais constituintes das experiên-
cias que estivemos a conhecer, que tentamos tomar desta uma leitura topológica
do periférico. Não queremos reforçar segmentações logicamente; ocupamo-nos
de discutir as diferenciações que produzimos socialmente, tomando denomina-
ção usada como emblema por alguns de nossos interlocutores.

289
Leandro R. Pinheiro (Org.)

as condições que os circundavam e os limites que impunham:


também elementos de construções narrativas identitárias desde
as quais explicavam e justificavam escolhas, articulando uma
pertença ou outra a medida que elaboravam seus enunciados.
As análises que conduzimos se constituíram por uma apro-
ximação ao “cotidiano”, essa esfera de encontro espaçotempo-
ral que construimos socialmente, em contrapondo ao histórico
e às macroestruturas sociais, e em relação à qual articulamos
um horizonte metodológico. Uma arena de ciclos e repetições
(e da acalentadora segurança que podem representar), mas
não só; permeada também por certa inventividade no curso
nas práticas diárias, nos momentos em que desafiados, produ-
zimos alternativas ao fazer, ao conviver, ao celebrar2.
A importância do cotidiano para as iniciativas de pesqui-
sa tende a se redimensionar nas relações sociais contemporâ-
neas. Inspirando-nos em argumentos de Enzo Colombo e de
Alberto Melucci (2005), podemos afirmar que os processos de
socialização necessitam de problematização que considere a
ação de categorias definidas no sistema, mas também e cada
vez mais observe a ação dos sujeitos a partir de pertencimentos
que podem ser múltiplos, da gama crescente de informações
e apelos que constituem seus dias e, em consonância, de certo
descentramento das instituições convencionais (trabalho, esco-
la, etc.) na normatização das condutas3.

2. Nas ciências humanas e sociais, já é bastante consolidada a literatura que dis-


cute potências e limites de pesquisas alicerçadas na vida cotidiana (De Certeau,
2011; Martins, 2000; Pais, 2002), como, aliás, a entrevista de Enzo Colombo
também indica. Seria demasiado nos alongarmos sobre este assunto.
3. Nas palavras de Melucci (2005) “uma outra dimensão crucial da socieda-
de contemporânea é a importância da vida cotidiana como espaço no qual os
sujeitos constroem o sentido de seu agir e no qual experimentam as oportuni-
dades e os limites para a ação [...] Na vida cotidiana, os indivíduos constroem
ativamente o sentido da própria ação, que não é mais somente indicado pelas
estruturas sociais e submetido aos vínculos da ordem constituída. O sentido é
sempre mais produzido através de relações e esta dimensão construtiva e rela-

290
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Acercar-nos da vida cotidiana, além disso, parece-nos uma


estratégia especialmente profícua se atentarmos aos contextos
de instabilidade e precariedade das comunidades de perife-
ria, onde as astúcias podem ser bastantes efetivas quando se
avizinham adversidades diversas, ou quando as redes de pro-
teção/promoção e os aparatos estatais se apresentam ainda
de forma insuficiente (ou mais ostensivamente pela força e
pela repressão)4. Uma tomada de posição, enfim, que enten-
demos pertinente à pesquisa e à extensão na área de educação,
voltando-nos à problematização de saberes e sentidos que as
pessoas produzem na configuração de seus espaços de ação.
Estar com as pessoas em seus territórios, diversificando
as formas interlocução, aproximou-nos de seus cotidianos e
nos trouxe, gradualmente, elementos para refletirmos sobre
as condições de produção de suas experiências, a que procu-
ramos chegar mediante narrativizações identitárias e análises
dos processos de individuação nos contextos de nossas incur-
sões. A medida que aportávamos às contribuições de Danilo
Martuccelli5, a apropriação das noções de “desafio-prova” e
de “suporte” foram inspirações para isso. Para nossas elabo-
rações, consideramos os espaços relacionais em que as pessoas
se tinham como sujeitos e reconheciam feitos no enfretamento
de infortúnios e na produção do que entendiam ser conquis-
tas. De outra parte, procuramos identificar os elementos que
cional acresce na ação para as dimensões culturais da ação humana e acentua o
interesse e a importância da pesquisa de tipo qualitativo” (p. 29).
4. Alías, para partilhar uma inquietação, segue uma tarefa desafiadora para
nós, o escrutinar dos enlaces entre o cenário apresentado por Alberto Melucci e
Enzo Colombo (entre outros autores) e as realidades historicamente produzidas
nas periferias urbanas. Ficam perguntas por interpretações que não polarizem
argumentos, indo, de um lado, à afirmação de que estas últimas já se erigiam
desde a incerteza (dada a vulnerabilidade das condições de vida) ou, de outro, à
simples replicação das inferências de autores. Os argumentos de Martins (2000)
são importante contribuição neste sentido.
5. Ver nas referências: Martuccelli (2004; 2006; 2007; 2007b; 2010).

291
Leandro R. Pinheiro (Org.)

apoiavam aquelas pessoas na condução do que narraram ter


realizado em seus percursos biográficos. A ambos, tentamos
articular problematizações que contextualizassem socialmente
a construção das individualidades narradas.
Cabe, agora, ousar um olhar transversal do inventário de
casos que apresentamos nesta seção. Estes foram concebidos
como narrativas intencionadas, em que procuramos realçar
aspectos comuns identificados junto a moradores de localida-
des de periferia urbana, tomando incursões em campo que
extrapolam nossas vinculações mais recentes, no bairro Res-
tinga. Muito antes de almejar a escrita de uma síntese (que
seria inviável e infrutífera), pretendemos compartilhar um es-
boço para adensarmos na medida da continuidade de nossas
iniciativas e dos diálogos que possam ensejar.
Nossas interlocuções em campo nos possibilitam elencar
alguns dos espaços em que as pessoas experenciaram provas
e/ou constituiam suportes. Dentres eles, destacaremos na se-
quência: as dinâmicas familiares; as atividades laborais; a esco-
la; a circulação pelos territórios; as atividades e sociabilidades
vinculadas à música ou à religiosidade; e, por fim, as iniciativas
de consumo e produção de estilos. De certa forma, mesmo não
seguindo suas delimitações de maneira estrita, aproximamo-
-nos das dimensões de vínculo social que Danilo Martuccelli
comenta serem aquelas que mais frequentemente percebe
associadas à vivência de provas em suas pesquisas6. Inician-
do, então, pelas dinâmicas familiares, os casos narrados nos
trazem desafios de diferentes tipos. Assinalaríamos, principal-
mente, aqueles relacionados à criação e formação dos filhos,

6. As dimensões do vínculo social que Martuccelli (2006) menciona como ambi-


ências de provas seriam, por exemplo: a escola, a família, a cidade, o trabalho,
a relação com a história, a relação com coletivos (partidos, agremiações, etc.),
a relação com os outros e a relação consigo. Entretanto, o próprio autor não
pretende que estes sejam referentes exaustivos.

292
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

destacando-se menções daqueles nos papéis de mães e pais so-


bre a maneira de fazê-lo e a necessidade de oportunizar con-
dições distintas da sua própria quando criança. “Cuidar dos
filhos” significava oferecer especialmente melhores condições
materiais e de de acesso à educação, para que estes seguissem
caminhos de mobilidade mais exitosos que os dos pais. Cremos
que os posicionamentos identificados guardam relação com o
quadro de redução do número de filhos e, sobretudo, com as
inflexões relativas ao lugar da criança no núcleo familiar (Viei-
ra, 2012), ampliando potencialmente a dedicação a cada novo
integrante e valorizando-o como sujeito de escolhas.
E o que se dispõe como discurso comum sofre nuances
quando observamos as diferentes trajetórias por um coorte etá-
rio. A vivência da infância e da juventude para as idosas com
quem dialogamos foi perpassada por trabalho e responsabiliza-
ção precoce (incluindo a saída compulsória de casa), ao passo
que com os demais esta característica se atenuava. Entre os mais
jovens, a exigência (inclusive moral) de dedicação ao trabalho se
mostrava presente, mas era postergada até o início da juventu-
de, quando se conjugava com escolarização ou preponderava
sobre esta7. E, na condição de responsáveis, embora apresentas-
sem em comum, de um lado, a expectativa de possibilitar mo-
bilidade e, de outro, a demanda para que os filhos assumissem
7. Lembramos, aqui, dados do IBGE (2015) já bastante divulgados sobre a re-
dução das taxas de natalidade no Brasil (por exemplo, em 1960 era de 6,3%,
em 1990, 2,9%, e em 2010, 1,9%), assim como a tendência a que as mulheres
tenham filhos mais tarde. Em geral, as análises associam estes fenômenos à pro-
pagação de métodos contraceptivos e o ingresso feminino no mercado de tra-
balho, especialmente a partir dos anos 1960. Outro dado que merece ser consi-
derado é a ampliação do acesso à escolarização pública, mais marcadamente a
partir dos anos 1990, o que colaboraria para uma diminuição do tempo dedi-
cado ao trabalho. Para efeito de um contraste ilustrativo, tomemos as trajetórias
de Nandi (68 anos) e Eva (54) de um lado, e de Sofia (19), com acesso a políticas
de correção de fluxo, e dos mais jovens integrantes do Restinga Crew (em torno
de 17 anos) de outro, cuja escolarização tende à conclusão do ensino médio.

293
Leandro R. Pinheiro (Org.)

responsabilidades e se imbuissem da busca por independência,


sinalizavam que os tensionamentos entre estas tomadas de posi-
ção se alteravam rumo a uma ampliação dos recursos disponili-
zados, notadamente no investimento em anos de estudos.
A conjugalidade pode ser outro elemento para análise.
Não compunha uma referência tão importante de estabilida-
de entre os jovens. Já se considerarmos as interlocuções com
pessoas idosas essa situação muda consideralmente. Apesar de
todas dificuldades, por adoecimento ou mesmo abandono pe-
los esposos, aquelas mulheres tenderam a manter seus relacio-
namentos e, podemos afirmar, assegurá-los e afirmá-los pare-
cia ser um compromisso e um mote de reconhecimento. Neste
caso, além da distinção etária, as diferenciações de gênero se
faziam presentes, sendo a responsabilidade pelo cuidado uma
arena de ação disposta especialmente às mulheres.
Ademais, estamos falando de alterações nos ritos de passa-
gem para a vida adulta, dado que há, entre os grupos etários
analisados, diferenças nas formas de composição dos relacio-
namentos afetivos (Camarano, 2006), com ocorrência regular
entre os mais velhos, como parte da formação de um projeto
de vida (e de condições de independência a ele associadas), e
percursos reversíveis entre os mais jovens.
Ao mesmo tempo que as relações com parentes eram o
contexto da responsabilização por tarefas quando ainda eram
crianças, estas conformavam também redes de reciprocidade
que podiam se estender aos vizinhos ou patrões e duravam no
tempo, sendo a salva-guarda quando da necessidade de recur-
so, acolhida e pouso para migrações inclusive. A qualidade
de tais relações variava sobremaneira e podia interferir nas
possibilidades de obtenção de trabalho ou na gestação de refe-
rências simbólicas que acompanhassem nossos interlocutores
em seus itinerários e na relação consigo.
Outra ambiência importante na configuração de provas
é relação com o mundo do trabalho. A situação de vulnera-

294
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

bilidade das pessoas que residem em localidades de periferia


dispõe esta arena como espaço crucial de buscas. A conquista
de vínculos mais estáveis (“com carteira assinada”) era signo
disto, ao mesmo tempo que o trânsito, as oscilações e a astúcia
parecem compor percursos em que os sujeitos precisam dese-
nhar trilhas e laços para a subsistência. A maioria acabava por
trabalhar a partir do que aprendera no espaço doméstico (e as
disposições de gênero foram marcantes para as mulheres) ou
com colegas em atividades informais e/ou precárias. Impor-
tante frisar que não nos parecia haver demonstração de forte
pertença aos ambientes de trabalho; havia históricos de rela-
ções pessoalizadas (patrão-empregado) entre os mais velhos,
mas o que se sobressaía era a necessidade de se ter como indi-
víduo capaz de subsistência para si e os seus. A independência
aqui não representava uma conquista individual simplesmen-
te, e podia estar associada a buscas que incluiam o apoio a
parentes e amigos.
Apesar da condição comum de trajetórias de informalidade
e de buscas por vínculos formais, há uma mudança a ser assi-
nalada. Em que pese as obliterações da precariedade de condi-
ções materiais, as incursões em campo indiciam maior resis-
tência dos jovens a permanecerem longamente em atividades
que considerassem exploratórias ou que não dialogassem com
seus desejos de realização. Consonante com o que indicam as
pesquisas sobre as juventudes contemporâneas (Dayrell, 2007;
Bajoit, 1997), o trabalho associava-se mais à realização pessoal
e/ou à vivência da condição juvenil do que a uma referência
de pertença coletiva ou, diríamos ainda, um signo moral a que
se atribuiria suposta “dignidade” de conduta8.

8. Em relação aos jovens do Restinga Crew, vale lembrar que alguns conquista-
ram trabalho como educadores sociais, ensinando o que aprenderam em suas
relações informais na prática de dança. Poderíamos dizer que políticas públicas
federais recentes voltadas à educação integral, como o Programa Mais Educa-
ção, por exemplo, converteram-se em suportes para os dançarinos do grupo.

295
Leandro R. Pinheiro (Org.)

Passando à escola, entramos em um espaço de tensiona-


mentos. Na mesma medida em que se apresenta como uma
aposta relevante e, muitas vezes, o horizonte para as expecta-
tivas de mudança, os itinerários apresentam experiências de
escolarização truncada. Então, para idosos e adultos represen-
tava uma possibilidade após vencidas algumas das urgências
da vida (moradia, trabalho, filhos, etc.), algo a ser resgatado
para ampliar as possibilidades de circulação pela cidade e no
trabalho. Ademais, se a instituição tinha posição relativa (con-
forme o espaço de possíveis dos sujeitos), parecia ter resguar-
dado seu poder simbólico e as regras que impunha às relações,
à avaliação e ao reconhecimento eram respeitadas.
Entre os mais jovens, de outra parte, se vemos uma am-
pliação do acesso à escolarização9, temos também tomadas de
posição que parecem acentuar buscas diferentes daquelas esta-
belecidas convencionalmente para as relações professor-aluno.
A escola parecia ser apropriada desde diferentes motivações:
podia representar segurança em territórios violentos, ser a are-
na para sociabilidades entre colegas, ou, então, no desencon-
tro de interesses, um lugar para posturas voltadas mais direta-
mente à certificação que a instituição podia ofertar. Então, os
depoimentos sobre o espaço escolar não remetiam necessaria-
mente ao lugar de acesso impossibilitado pelas adversidades

Mesmo que alguns já tivessem experiência em atividades como “oficineiros”


em projetos assistenciais, houve uma ampliação das possibilidades de trabalho.
Vale considerar também a ampliação do percentual de empregos com carteira
assinada entre 2003 e 2012 por efeito, dentre outros aspectos, pelo crescimento
da economia no período (IBGE, 2012; 2013).
9. As análises de Camarano (2006), Ibase (2010) e de Mônica Peregrino e Ju-
liana Prata em seu artigo nesta coletânea são elucidativos. Há uma redução
das taxas de analfabetismo e uma ampliação dos anos de estudo se compara-
mos jovens e adultos. Contudo, devemos assinalar que há ainda um percentual
reduzido de conclusão do Ensino Médio e/ou chegada ao Ensino Superior e
desigualdade de acesso à educação conforme a condição econômica e étnica.

296
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

e em relação ao qual se tentaria uma adaptação nem sempre


possível (como com os adultos), mas a um locus de inquietação
e de reclames por reconhecimento.
A escola parecia se constituir como uma ambiência de
provas conforme se configuravam espaços de possíveis nos iti-
nerários10. Então, com as juventudes, para além da reconhe-
cida articulação com as expectativas de efetivas melhorias das
condições de trabalho e mobilidade (Zago, 2012), as possibi-
lidades representadas pelo espaço escolar podem ser conside-
radas rumo a uma ampliação (sutil) do leque de suportes. E
devemos acrescentar, neste sentido, que, organizando-se des-
de buscas pedagógicas de atendimento às individualidades e
quando oferece alternativas para que os alunos fruam o tempo
e a sociabilidade (mesmo que seja para integrá-las ao padrão
de funcionamento), a escola contribuía com alternativas que
extrapolavam o domínio de conteúdos curriculares e podiam
criar bases para escolhas e protagonismo significativos com re-
percussões que nem sempre imaginava11.
A relação com o território tem relevância também como
espaço de desafios. Primeiramente pela necessidade de cons-
tituir uma moradia em local com condições de subsistência

10. Cabe mencionar que, na maioria dos casos, a escola não era citada nas nar-
rativas dos itinerários biográficos. Apenas quando se perguntava por ela eram
elencadas algumas recordações. Os depoimentos se atinham mais claramente
a referir os feitos protagonizados, o que nos levava sobretudo às atividades vin-
culadas à subsistência e ao trabalho. Neste sentido, aqueles que lograram inde-
pendência e reconhecimento em suas arenas de atuação predominantes eram
os que menos lamentavam a fragmentação da carreira escolar, embora fosse
comum a recomendação para que os mais jovens estudassem.
11. Referimo-nos, por exemplo, a situações em que o espaço escolar oportu-
niza a fruição de dança ou música e, neste ínterim, torna-se arena de partilha,
protagonismo e reconhecimento entre pares que pode influenciar escolhas in-
dividuais e vetores de busca para os itinerários. Com vários jovens com quem
interagimos na cena Hip Hop a escola foi o espaço de contato com a “cultura”.

297
Leandro R. Pinheiro (Org.)

e/ou que oportunizasse o vislumbrar de melhoria das con-


dições de vida. Isso podia ser um “investimento” de longa
data, incluindo a participação em fluxos de êxodo rural e feito
a medida de progressos episódicos em função dos recursos
financeiros insuficientes. Poder-se-ia concretizar também na
disputa, depois, por infraestrutura e serviços urbanos bási-
cos e pela necessidade de aprender a transitar e lidar com
as insuficiências dos aparatos públicos na localidade. Então,
era com as lideranças comunitárias que podíamos vislumbrar
mais explicitamente o bairro como espaço de ação e de reco-
nhecimento, dada a notoriedade e a narrativização dos feitos
envolvidas aí, a indicar um processo de conversão do territó-
rio em lugar (Santos, 2008).
Eram uma vez mais os familiares e, sobretudo, os vizinhos
e amigos que compunham o quadro de suporte para o trânsito
e a busca de morada ou para fazer frente ao medo e apresentar
as regras do convívio frente à violência12. Tal experienciação
da cidade possui um coorte econômico e étnico, dado que as
populações negras constituem boa parte dos contingentes his-
toricamente destinados aos espaços citadinos mais precariza-
dos, como é exemplo flagrante o bairro Restinga, em Porto
Alegre. Eis que, então, as redes e territorialidades negras tive-
ram papel importante, conforme enunciam os depoimentos
relativos aos laços gestados junto a grupos musicais e de socia-
bilidade (de samba, carnaval, Hip Hop). Por estes suportes eri-
giam meios para encontrar moradia, estabelecer alianças po-

12. Vale lembrar dados já referidos sobre a violência e, especificamente, sobre


o bairro Restinga. Segundo o Waiselfisz (2015), em que pese a diminuição da
participação das capitais no total de mortes por armas de fogo no país, esta
continua sendo seletiva e, inclusive ampliou os efeitos sobre a população negra.
Os dados indicam, ainda, que as mortes por armas de fogo são mais elevadas
para jovens negros. O percentual de mortes por homicídio de jovens negros do
sexo masculino em Porto Alegre era de 70% em 2012. Para o bairro Restinga,
chegava a 84,6% (ObservaPoa, 2015).

298
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

líticas, aprender a circular pelas ruas quando estas ofereciam


perigo ou criar formas de diversificar as práticas cotidianas e
resistir ao imperativo da estrita subsistência.
A experiência da violência era mais ostensiva, ademais, en-
tre os homens mais jovens. Neste sentido, convertia-se em novo
espaço de táticas, pelas quais delimitavam espaços de circulação
no bairro e fora dele, desviando potenciais conflitos e riscos, ou
criavam formas de estar no espaço público. Andar em “galera”,
como afirmavam, podia ser uma forma de resistir ao embate
com traficantes ou mesmo com policiais. Também entre os jo-
vens, a ocupação de praças, ruas e pátios de escolas configurava
uma das formas de experenciar a cidade e o bairro, realizando
atividades artísticas e esportivas que, muitas vezes, derivavam
para práticas educativas às crianças que chegavam13. Conforme
observamos, nestas iniciativas configuravam espaço de fruição,
partilha de saberes, reconhecimento junto aos pares e, como
afirmavam, proteção aos seus educandos informais.
O território era também um signo de diferenciação, não
só imputado pela estigmatização, mas também afirmação da
periferia como emblema e identidade. Então, as redes de co-
municação (por internet e sociabilidades) criavam a ambiência
para autoafirmação. Neste aspecto, era entre os jovens, cuja
experiência era sumamente urbana, que percebíamos o enun-
ciar de tal pertença, já não mais circunscrita ao bairro Restin-
ga, mas à condição comum com moradores de outras localida-
des vulnerabilizadas na cidade, no Estado ou fora dele14.

13. Neste sentido, as pesquisas sobre juventudes há muito já sinalizam para esse
aspecto. Ver, por exemplo, Carrano (2003) e Sposito (2000).
14. As incursões em campo sinalizam que a comunicação e circulação entre
moradores de comunidades vulnerabilizadas já era prática antes mesmo das
iniciativas conduzidas por jovens, especialmente a partir dos anos 1990. O que
a internet teria amplificado tinha sustentação anterior nas redes e territoriali-
dades negras.

299
Leandro R. Pinheiro (Org.)

Antes se seguirmos para outra ambiência de provas, enten-


demos necessário trazer considerações sobre as diferenciações
de gênero e étnicas, aspectos que perpassam as práticas e re-
lações que analisamos aqui. Observando a primeira, as comu-
nidades de periferia parecem compor posições bastante mar-
cadas entre mulheres e homens, em que pese as nuances que
observamos entre os diferentes grupos etários. As atribuições
comuns (em casa e no mundo do trabalho) e sua pouca valo-
rização intensificam os desafios cotidianos para as mulheres,
que precisam conquistar melhores condições de remuneração,
um rearranjo na distribuição de tarefas e arenas mais amplas
de atuação política (Lima, 2013). Mesmo quando se consoli-
dam como lideranças há uma restrição ao âmbito comunitário
que, muitas vezes elas próprias atualizam.
Contudo, a situação de gênero ocupava lugar relativo entre
as discussões de nossas interlocutoras. Para não impormos sim-
plesmente uma categorização em busca de ‘desafios-provas’,
é preciso esclarecer que, se discursos sobre a ação feminina
e direitos das mulheres ecoavam entre nossas interlocutoras,
configurava-se mais um espaço de autoconfronto e reclama-
ções, e suas buscas não se orientavam exatamente a reivinca-
ções concernentes à peculiaridade da identidade feminina ou
por direitos específicos, e quando ocorria, não parecia interferir
enfaticamente na distribuições de incumbências cotidianas.
Se a diferenciação de gênero não era refletida como di-
mensão e arena específica de reivindicação, era fator im-
portante na delimitação de um campo de práticas. Assim, a
conquista de trabalhos remunerados andava articulado ao
reconhecimento desde o êxito no cuidado dos filhos (indepen-
dentemente da presença do pai muitas vezes) e nas demonstra-
ção de certas disposições (ao cuidado, às tarefas domésticas).
Aí, podemos falar também das redes de apoio e colaboração
mútua entre as mulheres para aprendizagens, sociabilidades e
cuidados mútuos: base para atuação e reconhecimento onde

300
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

os homens tem lugar coadjuvante, ora pela ausência, ora pela


própria exclusividade gestada por elas desde suas disposições.
Em relação à diferenciação étnica a situação parecia se-
melhante. As adversidades eram consideráveis, dada a dis-
criminação histórica de que a população negra vem sendo
alvo na cidade e no país. Ela interferia pelo menos nas con-
dições de fruição da cidade e nas possibilidades de trabalho
e remuneração. Contudo, a participação em debates neste
caso era mais comum (que em relação à situação de gênero)
e parte das pessoas com quem dialogamos na Restinga pare-
ciam assumir mais explicitamente a identidade e fazer desta
uma arena pública para discussão. Neste caso, referimo-nos
especialmente às lideranças comunitárias ou aos ativistas do
hip hop, que, regularmente, eram convidados a participar de
eventos e reuniões organizados por organizações não gover-
namentais ou iniciativas educativo-assistenciais estatais, que
tinham por foco as desigualdades raciais; não necessariamen-
te uma reivindicação protagonizada, mas uma aproximação
aos enunciados da causa15.
Retomando o curso de nossas análises, é necessário ponde-
rar o papel das redes informais de apoio mútuo, com destaque
às que se erigem pelas iniciativas de sociabilidade. Como po-
15. O levantamento realizado pelo Ibase (2010) traz análises em relação às quais
poderíamos aventar articulações. Quando perguntado sobre a frase “nos dias de
hoje, os/as jovens negros/as e indígenas têm as mesmas oportunidades”, 47,4%
dos consultados (jovens e adultos) concordavam. A pesquisa sinaliza, ainda, que
a percepção de desigualdade racial aumenta conforme a renda, a escolaridade,
a efetividade de participação em coletivos e também que ela mais comuns entre
os mais jovens. Assim, consideramos que a presença pouco expressiva desse
tipo de reivindicação em contextos de periferia guarda relação com os dados
do levantamento, sendo preciso reconhecer, no momento, avanços graduais na
instauração deste debate pelo menos. Se comparamos, desde nossa presença no
cotidiano, a participação de adultas e idosas como lideranças comunitárias e o
ativismo de jovens na cena Hip Hop da cidade, o tema racial (e especialmente o
das mortes da juventude negra) era foco de discussão mais recorrente.

301
Leandro R. Pinheiro (Org.)

deríamos depreender da literatura concernente16, em contex-


tos de precariedade e de acesso restrito aos recursos público
estatais, as redes de reciprocidade e amizade têm significativa
relevância na promoção de condições de sobrevivência. Nes-
te sentido, as relações construidas no âmbito da família e da
vizinhança, mas também em atividades associadas à arte (à
música especialmente) e à religiosidade são relevantes como
potenciais suportes à existência, seja pelas ações de apoio mú-
tuo, seja pela apropriação de referências simbólicas.
A partir de nossas incursões, interessa-nos destacar, espe-
cialmente, as contribuições das redes de sociabilidade como
ambiências na configuração de provas e suportes, com reflexos
para outras arenas da experiência. Os relatos sobre as iniciati-
vas relativas à musicalidade negra (produção de samba, rodas
de bar, carnaval) traziam menções à formação de relações re-
lativamente estáveis, de forma que estas poderiam ser o palco
de partilha a ambientar a gestação de laços de reciprocidade,
o que levava àqueles que fruiam em tais espaços possibilidades
adicionais de inserção e disputa (cultural, política e econômica).
Se contrastamos com as experiências de sociabilidades dos
mais jovens, destacamente no hip hop, podemos agregar algu-
mas nuances. Havia ali também ocorrências de produção de
capitais culturais que se convertiam em novas inserções (la-
borais e políticas) e em melhoria de condições econômicas17.
Mas três aspectos parecem se distinguir. Primeiramente, as
sociabilidades têm maior relevância no cotidiano e se tornam
arenas de dedicação que concorrem com os espaços institucio-
nalizados convencionais (trabalho, escola, etc.) na ocupação
do tempo. Segundo, como procuramos discutir em texto ante-
rior (Pinheiro, 2015), as atividades conduzidas neste caso estão
bastante associadas a dinâmicas reflexivas que privilegiam a
produção individualizada de estilos de atuação na arte como
16. Referimo-nos, por exemplo, a Zaluar (1994) ou Fonseca (2004).
17. Recordemos que, não raro, ativistas com mais experiência se tornavam edu-
cadores sociais, trabalhando em escolas e organizações assistenciais.

302
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

base para reconhecimento entre os pares. Interessaria tanto a


qualidade do que era realizado quando a singularização deste,
ou, quem sabe melhor, a qualidade do realizado se constituia
na singularização. E, terceiro, a conformação de relações de-
correntes se diferia e, embora houvesse ali a formação de laços
de reciprocidade, estas caminhavam juntos com vínculos de
amizade (Ortega, 1999) e , então, a estabilidade dos arranjos
era mais fluída, menos exigente da presença e da contraparte.
Por fim, podemos citar ainda os iniciativas de consumo
que, vislumbradas de maneira menos enfática em função das
condições econômicas em jogo, também conformava um es-
paço de atuação. As tatuagens, as roupas e os equipamentos de
interação (celulares, perfis em redes sociais, etc.) concorriam
como elementos complementares de singularização. A anco-
ragem de filiações mútliplas ou a comunicação de estilos entre
os pares parece ser uma das formas de (re)elaborar as perten-
ças e a individuação lograda nas outras instâncias. Não fala-
mos necessariamente de distinção pelo que se pode adquirir/
exercer, mas de formas interacionais de singularizar escolhas e
renúncias, o que percebíamos mais recorrente entre os jovens
de nossas interlocuções18. Para estes, o consumo poderia com-
portar signos apropriados de maneira performática, reflexiva-
mente combinados para indicação de vínculos e sinalizando o
teor individualizado destes.
***
18. Entre adultos e idosos com quem conversamos, o consumo oscilava em sua
importância. Não se configurava tão explicitamente como artifício de singulari-
zação e, em alguns casos, era a oportunidade de experienciar viagens e passeios
e de criar formas de viver a aposentadoria. Esta, por si só, era outra ambiência
de desafios existenciais em função da ampliação da expectativa de vida. Nos
casos em que observamos, algumas usufruíam de recursos resultantes da remu-
neração paga pelo sistema de previdência, com aumento de poder aquisitivo
em função de políticas de valorização do salário mínimo, e da ampliação das
alternativas de crédito oferecidas pelo sistema bancário àqueles que gozavam de
estabilidade de ganhos (Fontoura, 2015).

303
Leandro R. Pinheiro (Org.)

Encaminhando-nos ao final deste modesto inventário,


entendemos necessário lançar algumas perguntas, esperan-
do que reverberem em nossas próximas andanças. Se ousar-
mos um olhar transversal às diferentes instâncias de desafios
e suportes que analisamos acima, poderíamos considerar que
parece se estabelecer a necessidade de certo “fazer por si”,
apoiando-se em pequenas redes ou grupos de apoio frente a
uma sociedade e um Estado que demanda tomadas de posição
como indivíduos e, ao mesmo tempo, lança a estes à necessi-
dade agenciar caminhos para garantir a existência. Como é
perceptível, aproximamo-nos dos argumentos de Martuccelli
e pensamos estar frente a contextos que intensificam a confi-
guração do “individualismo agêntico” de que nos fala o autor
quando analisa a constituição histórico-social de indivíduos na
América Latina.
Vale ressaltar, entretanto, algumas das dinâmicas relacio-
nais de individuação concernentes, conforme ponderamos
cotidianos e narrativas em nossas incursões. A primeira delas
diz respeito à responsabilização precoce presente nos percur-
sos biográficos da maioria dos sujeitos com quem dialogamos.
Seja pela incumbência de tarefas quando ainda crianças, seja
pela necessidade de deixar as famílias de origem e transitar, as
trajetórias compunham a produção de táticas para se chegar
a condições de subsistência (trabalho e moradia, entre elas),
atenuar situações exploratórias, ou, então, para conquistar
possibilidades de fruição e sociabilidade.
Associada a tal condição, dispõe-se a narrativização das
proezas, pela qual se erigia a configuração partilhada dos fei-
tos e enunciação do distinto no realizado. A própria narração,
neste sentido, é um tensionamento entre a pertença, que torna
possível o compartilhar e integra o sujeito ao socialmente esta-
belecido no locus, e a tomada de posição por distinguir ali sua
participação. Isso percebíamos no que era veiculado nas falas
e na forma de produção destas: o que se afirmava como as

304
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

realizações de um sujeito que “fazia por si” vinha entrecortado


pelas interpelações sobre a manutenção de laços significativos
ao cotidiano, conforme lhes suportavam as redes de gênero, fa-
miliares, de amizade, étnicas e religiosas; e a narração assumia
versão mais corrente nos causos e anedotas das conversas in-
formais com aqueles que partilhavam as memórias dos feitos19.
Outra dinâmica que, segundo concebemos, integra a in-
dividuação no cenário que tentamos esboçar diz respeito à
forma se constitui certa apropriação reflexiva das referências
simbólicas quando se instauravam práticas astuciosas. Não
raro, percebíamos que os sujeitos construíam interpretações
que, nos moldes de uma bricolagem, capturava elementos
dos sistemas simbólicos com os quais interagiam, integrando-
-os contextualmente. A produção da tática, desta forma, era
um navegar por normas e justificações que podia se instaurar
como exigência de “tradução” individualizada das referências,
ainda que fosse produzida na partilha de um modus operandi.
E, aqui, deveríamos aventar a hipótese de uma aproximação
entre as arenas de produção da astúcia e o cenário desenhado
por Giddens (2012), de articulação entre reflexividade e au-
toidentificação20. À “captura em voo” daqueles que não tem
um “próprio”, e a negociação com a norma que poderíamos

19. Por tais constatações, cabe realçar que não se trata de conceber sujeitos indi-
vidualistas, no sentido coloquial do termo, mas de individualidades que, frente
ao insuficiente e instável dos recursos sociais em seu entorno, pode constituir-se
em desconfiança às instituições e privilegiar a mantenção das redes que lhes
garantam a existência.
20. Uma das formas possíveis para considerarmos a produção de disposições
reflexivas nos contextos de periferias é o crescimento de igrejas evangélicas
pentecostais, consideravelmente associadas à individualização da relação com a
transcendência, valorização do êxito terreno e produção de estilos de vida (Si-
queira, 2006). Outra são as frentes de ação do Hip Hop, movimento vinculado
à expressão artística e cujas práticas costumam associar pertença ao periférico,
busca de conhecimentos e reconhecimento de autorias e estilos individuais (Pi-
nheiro, 2013; 2015).

305
Leandro R. Pinheiro (Org.)

depreender daí, tende-se a reservar apropriações individual-


mente contextualizadas e singularmente justificadas.
No enfretamento de desafios, observamos que a individua-
ção podia se consagrar também na conquista de uma distinção
relativa, lograda em um campo específico, no curso dos agen-
ciamentos e conforme as redes construídas. Menos comum
que as dinâmicas comentadas antes, a distinção significava o
atendimento dos parâmetros de êxito individual de determi-
nados sistemas de disputas, conquistando certa notoriedade.
Então, se a composição das táticas foram o esteio cotidiano
das realizações da experiência, para alguns casos, capitais acu-
mulados (em espaços políticos ou culturais, por exemplo) su-
portavam a atuação e o reconhecimento públicos. Neste caso,
o efeito da narração se fazia presente de maneira manifesta,
dado que as posições de proeminência ocupadas pareciam ter
ensejado a comunicação dos feitos e, então, das memórias da
atuação pessoal. A narrativização se mostrava de forma pa-
tente como artifício não só de expressão da individualidade
concebida, como personagem dos feitos, mas como processo
próprio da gestação do identitário e individual.
Ao contexto de produção do “individualismo agêntico”,
podemos, ainda, articular análises sobre inflexões ou, pelo me-
nos, nuances percebidas nas condições de produção de indi-
viduação. Contemplando as experiências de pessoas jovens, o
inventário acima sinaliza-nos para uma diversificação das ex-
periências, certa ampliação do leque de escolhas (mesmo que
virtual) e para a tendência a atribuir às juventudes a condição
de sujeitos. As alterações nos arranjos familiares, a ampliação
do acesso e habitação da escola21, a imersão mais recente a

21. No que tange ao acesso à educação, há que lembrar também das inicia-
tivas educativo-assistenciais que também desde os anos 1990 vem se consti-
tuindo como rede institucionalizada para permanência de crianças e jovens,
diversificando vivências (no artesanato, na música, etc.) sobretudo em contex-

306
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

possibilidades de consumo diversas22 e o realocar das redes de


sociabilidade, atribuindo-as lugar de proeminência na compo-
sição do cotidiano, configuram um cenário em que podemos
ver aproximações mais concretas ao “paradoxo da escolha”,
tal como nos propõem Melucci e Colombo, e, em congruên-
cia, ao processo de singularização de que nos fala Martuccelli.
Em que pese os limites dispostos pela precariedade e pela
iniciação ao trabalho ainda na adolescência, a fruição do tem-
po acolhia a necessidade de experienciar atividades diferentes
e jeitos diversos de estar com pares, o que podia ser construída
na partilha de práticas em espaços públicos, na “reivenção” de
estilos e modos de fazer ou mesmo na enunciação regular de
posicionamentos em redes sociais. Se os aparatos institucionais
políticos e econômicos têm presença e atuação insuficientes (e,
em congruência, são alvo de desconfiança ou descrédito), as

tos fortemente vulnerabilizados. Estes são espaços de veiculação de discursos


acerca do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e de buscas por sua
implementação. Junto à escola, podemos aventar que contribuem na instau-
ração do reconhecimento de crianças e jovens como sujeitos de direito em
contextos de periferia.
22. Embora devamos ter cuidado ao afirmar o consumo como arena de atuação
quando os recursos econômicos tendem a ser parcos, não podemos desconsiderar
as táticas de acesso a bens via mercado informal ou mesmo meios ilícitos, e as pos-
sibilidades geradas pela facilitação do crédito em prestações ou empréstimos. Vale
ressaltar os efeitos das políticas federais de crédito dos últimos anos no Brasil, que
tem facilitado o acesso ao consumo para populações de baixa renda sobretudo
via bancarização (Barone, 2008). Coadunadas com a ampliação do número de
empregos com carteira assinada (IBGE, 2013), constitui-se um cenário propício
à ampliação do consumo. Se, por outro lado, esta situação possa ser relativizada
em função da maior incidência de desemprego entre jovens, é preciso considerar
os acessos gestados nas redes de suporte (com familiares e amigos) e a prioridade
dada pelas juventudes ao consumo como forma de produção de estilos.
Nesse sentido, precisamos considerar o acesso comparativamente mais usual à
navegação de internet entre os jovens (Ibase, 2010). Nos limites das possibilida-
des de nossos interlocutores, criavam forma de adquirir dispositivos móveis e de
acessar a web para partilhas, consumo de informações e comunicação de feitos.

307
Leandro R. Pinheiro (Org.)

práticas e consumos culturais ambientavam formas de intera-


ção e produção identitária23.
As inflexões que percebemos desenham um quadro em
que, sem alterar significativamente as condições materiais
de existência, instauravam-se iniciativas e interpelações por
singularização nos processos de individuação. Isso se dava, a
uma só vez, em consonância e em conflito com os aparatos
institucionais que representavam os parâmetros de distinção
do sistema. Os caminhos da sociabilidade, do consumo cul-
tural e das interações com os pares eram, neste sentido, pre-
ponderantes e divergentes. Podiam: ambientar possibilidades
de escolha e certa auto-organização relacional (em contraste
à prescrição institucional); interpor diferenças na experiência
do tempo, passível, por exemplo, à extensão da duração na
presença (e nem sempre de acordo com o teleológica e admi-
nistrativamente programado); conectar sujeitos e apelos estru-
turais pela atuação individualizada24, mas dispor o desejo por
23. Para fazer justiça, é preciso dizer que tais inferências são tributárias das
pesquisas sobre juventudes. Reguillo (2012) nos lembra que a “juventude”, tal
como conhecemos hoje, é uma construção sócio histórica do pós-guerra nos pa-
íses do “Norte”. O rearranjo dos sistemas produtivos relacionados ao envelhe-
cimento tardio, teria contribuído para ampliar a permanência dos segmentos
mais jovens em instituições educativas e que mais tarde ingressarem no mundo
do trabalho. Também neste período, temos a emergência de uma potente in-
dústria cultural, com bens dirigidos especificamente aos jovens e à configuração
dos momentos de ócio. Junta a estes, ainda, a produção do discurso jurídico
que, embebido da universalização dos direitos humanos, concorre para que as
juventudes se convertam em sujeitos de direitos. Ademais, Carrano (2003, 2007,
2008), Dayrell (1996, 2003, 2007, 2014) e Sposito (2000, 2001), dentre outros
autores, têm pesquisado a condição juvenil contemporânea no Brasil, destacan-
do a importância do consumo cultural (indo da fruição à produção artística e
musical), das sociabilidades entre os pares e da apropriação do espaço público
para realização de suas atividades.
24. Importante ter mente as condições sociais de poder na produção do pro-
cesso de singularização. Acerca das modalidades de dominação, Martuccelli
(2007) traz provocações interessantes. Argumenta que viveríamos a individu-

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

reconhecimento do que cada pessoa traz como “próprio” (e


que os padrões institucionais podiam não dar conta).
A situação juvenil que ora descrevemos é também mais
propícia à experiência de dinâmicas reflexivas e narraciona-
is, as quais parecem integrar as condições de individuação.
Para analisá-lo, retornemos ao contraste etário e, mais espe-
cificamente, aos usos de fotografias e narrações apreendidos
em nossas incursões. As pessoas mais jovens não só pareciam
mais afeitas ao uso das imagens (em versão digital), incorpo-
ravam-nas a seu cotidiano em dinâmicas interativas virtuais
regulares, quando e se estas não eram obliteradas pela falta
de recursos. O que se mostrava como tendência era o hábito
de narrassem a si de maneira frequente, na forma de uma co-
municação de fragmentos do vivenciado. Então, a narrativa
parecia configurar-se como ancoragem identitária no fluir do
tempo, uma necessidade não compartilhada com a mesma in-
tensidade entre os adultos em nossos diálogos25.
Pessoas com acessos e reconhecimentos públicos (lideran-
ças políticas ou ativistas culturais) pareciam ter tal dinâmica
bastante presente. Mas, deixando de lado tais casos específicos,
consideramos uma intensificação da reflexividade entre os mais

ação também em decorrência da responsabilização individual pelas práticas


e suas consequências. Ao lado (e na fronteira) do sujeitamento, disciplinando
formas de se portar e comportar, as sociedades contemporâneas conclamariam
as habilidades do indivíduo na realização de um projeto para si, ao qual se as-
socia a prescrição da necessidade de participação, autonomia, independência,
autenticidade. Cremos que as dinâmicas da produção flexível e do consumo
personalizado, e os discursos que disseminam, são exemplos neste sentido.
25. As diferenciações etárias que fazemos aqui tem uma finalidade heurística.
As características que ora atribuímos a um grupo ou outro se infiltram para
além das segmentações que delimitamos para fins analíticos. Como nos provoca
Melucci (2001), acompanhar as juventudes pode nos sinalizar para as mudanças
sociais em curso, por estas vivenciarem mais dramaticamente os dilemas inter-
postos pelo curso da história.

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

jovens, na forma de um autoconfronto com a diferença que se


avizinha e da necessidade acomodar o experienciado, sem que
se configure necessariamente em verbalização: havia narração
aos fragmentos e/ou, de outra parte, outras linguagens em jogo
(imagens, gestos, etc.). Assim, caminho possível para se pen-
sar mudanças dos processos de individuação pode ser trilhado
também pelas alterações das dinâmicas de narrativização.
Se, com Ricoeur (2010), podemos lembrar que as iden-
tidades possuem uma dimensão narrativa, pela qual lidamos
com o transcurso do tempo e as descontinuidades do real na
elaboração da ipseidade, cabe considerar, por outro lado, que as
formas que a narração assume, como meio de interação com a
alteridade articulado aos possíveis do espaço social, sinalizam
para as maneiras de estar com o outro, de produzir identifica-
ção e de se ter como sujeito. Neste sentido, como é perceptível,
é preciso conceber a configuração de narrativas não só como
método de abordagem ou de veiculação de informações expe-
rienciais, mas como vetor epistemológico e tomá-la na inter-
pretação de modos de produção de si e das relações.
Dispormo-nos à escuta colocava as pessoas em protagonis-
mo, a contar histórias e professar opiniões. Mas ir ao território
delas e tomar parte em momentos compartilhando diálogos,
potencializava a aproximação às formas pelas quais preferiam
recompor experiências. Tomemos o exemplo das rodas de
conversa nas residências de nossos interlocutores. Há que se
pensar nas aprendizagens deste estar-junto, o qual nos acer-
cava de seu cotidiano na medida que conformava nossos en-
contros em articulação com seus modos de partilhar saberes:
seja pela ruptura dos tempos demasiadamente programados,
instaurando certa “expansão” do presente desde a duração
afetiva da fruição; seja pela intensidade da socialização de in-
formações e saberes, dada a diversidade, a transversalidade e
a dinamicidade com que as pessoas engendravam suas parti-

310
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

cipações (mesmo que reconheçamos ali posições e regras de


enunciação). Nesta dinâmica, o contar causos e anedotas se
infiltrava como processo naturalizado de expressão do vivido,
de forma que compunham narrativas variadas, sem linearida-
de na contação necessariamente; algo a nos sinalizar (não so-
mente pelos conteúdos das falas) para o identitário deste modo
de estar e compartilhar.
Algumas vezes, as memórias, compartilhadas que eram,
pareciam ser verbalizadas a partir da fruição conjunta da lem-
brança entre as pessoas, como se ela fosse possível porque am-
bas as pessoas estavam ali, juntas. Neste ínterim, a memória
seria outra sem a presença de um dos colegas. A recordação
era disparada por um acontecimento, trazendo em narrativa
personagens e um pequeno itinerário de atos e escolhas, em
relação aos quais se compunha juízos (e a apropriação dos dis-
cursos se insinuava). Aí, vale considerar a propensão sociali-
zadora desta dinâmica: ao narrar causos, o partilhar identifi-
cações e consolidar uma memória que passa a ser (no tempo)
daquele e para aquele coletivo. Algo que nos fala das conexões
que mantém a memória ao torna-la rede narrativizada e que,
então, precisa do outro para seguir viva, na mesma medida que
estabelece modos de protagonismo interacional aos indivíduos.
Nas partilhas dos encontros, na produção audiovisual e/
ou virtual, na escuta dos que preferem depoimentos biográfi-
cos, entendemos que a aproximação aos modos preferenciais
de narrar de nossos sujeitos de diálogo podem nos apoiar na
compreensão das formas pelas quais aquelas pessoas produ-
ziam suas experiências e se concebiam como indivíduos: no
protagonismo em feitos contados em conversas de amigos, nas
performances coreografadas de dança e/ou nas interações vir-
tuais em perfis de redes sociais há indícios a explorar sobre o
identitário e a individuação não só pelos conteúdos do comu-
nicado, mas pelas formas das narrativas.

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

Aventando a hipótese de que os modos de experienciar,


incluindo-se aí as formas de narrativização, conduzem-nos a
modos de produção e relação com os saberes, valeria a pena
a considerar as repercussões do que analisamos até aqui para
as interações em práticas educativas. As experiências em con-
textos de periferia, desde a necessidade de produzir táticas e
agenciar pertenças, erigem-se muitas vezes pelo partilhar das
vivências conforme se interpõem os desafios da instabilidade
e, além disso, de acordo com o suporte de redes e referên-
cias informais (e restritas) que conseguem estabelecer. Este nos
parece o cenário de uma produção ensaística: o desenrolar
de tentativas, escolhas e erros conforme surgem as situações-
-problema ao sujeito; a busca de alternativas entre os pares
(em redes relativamente horizontalizadas); a demonstração e a
possibilidade de certa mimese; o reconhecimento do que fora
realizado entre aqueles que participaram da realização.
No que tange ao âmbito educativo, talvez devêssemos con-
siderar que o “individualismo agêntico” configura também dis-
posições específicas ao aprender, recolocando a demanda para
que consideremos a experiência, mas não só por um inventário
de conhecimentos ou por mediações pedagógicas que possi-
bilita, mas também pela dinâmica de produção e partilha de
saberes que é própria ao protagonizado pelos sujeitos em seus
espaços de ação. E, ao que parece, tendendo a um processo de
singularização, o reconhecimento de tal configuração pode ser
demandada em alinhavo à valorização do experienciado indi-
vidualmente. As vivências “labirínticas” das juventudes, para
usar a metáfora proposta por José M. Pais, tem parte numa
produção ensaística de saberes, intensificando-a na reversibili-
dade e infletindo-a nas dinâmicas reflexivas e singularizantes.
Em espaços educacionais, fica a pergunta pelas possibili-
dades de (re)construção do comum entre nós; algo que, talvez,
a presença, sensível e tributária de questões e sintonias, pode
apoiar constituindo novos encontros e narrativas.

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As imagens
na Restinga
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Antonia

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Helena

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Luci

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Nandi

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Eva

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Marcos

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Nadir

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Sofia

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

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Foto de Helena
Bboy Cko

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

Foto de Nadir

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Luis Flávio Trampo

Foto de Nadir

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Leandro R. Pinheiro (Org.)

Foto de Marcos

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Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Foto de Sofia

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362
Apêndice

Ao encontro das singularidades: o percurso


entre imagens e narrativas

Leandro R. Pinheiro

O itinerário metodológico construído merece uma apre-


sentação minimamente detalhada, para que possamos com-
partilhar nossas veredas na interpretação do que produzimos
nas incursões em campo ou, como nos inspira Enzo Colom-
bo, na configuração de nossas “narrações de narrações”. As
opções teórico-metodológicas sumarizadas na sequência são
uma elaboração no processo: o reconfigurar das escolhas do
percurso no fluir da textualidade; a tentativa de organizar o
experienciado pela escrita que também se faz pesquisa, ao su-
marizar, articular de alguma forma e enunciar o partilhado
nas interlocuções.
Nosso trabalho procurou fazer das incursões em campo
a possibilidade de conhecer e, também, de provocar reflexi-
vamente. Daí o intento inicial de trabalhar na fronteira entre
pesquisa e extensão, percorrendo itinerários metodológicos
que instigassem nossos interlocutores a tomarem posição em
suas narrativas sobre o cotidiano. No entanto, neste momen-
to de olhar retrospectivo, ponderando práticas desenvolvidas
entre as áreas de ‘sociologia da educação’ e de ‘educação em
periferias urbanas’, cremos melhor considerar nossas interlo-
cuções independentemente de classificações institucionais que
delimitam e segmentam atividades no ambiente acadêmico.

363
Leandro R. Pinheiro (Org.)

Quem sabe, caminho mais profícuo seja problematizar a pre-


sença e suas formas, suas repercussões e o explicitar destas, os
jeitos de dialogar e o que se infiltra nas experiências1.
Seguiremos, então, a discutir as condições teórico-meto-
dológicas de nossa prática em campo. Problematizaremos o
percurso conforme as variações construídas com cada grupo.
Mas, antes, queremos trazer mais de nossas escolhas, elucidan-
do propósitos e noções que nos referenciaram.

1. Entre narrativas e imagens, um intento

A promoção de narrativas em campo atribuía um sentido


amplo a estas. Não estávamos promovendo necessariamente a
elaboração de enredos com funcionalidade e deliberado agen-
ciamento de fatos. Ocupávamos de estar com as pessoas e pro-
vocar conversas e, ali, surgiam ocorrências de narração; fatos
eram contados e, gradativamente, tomávamos conhecimento
de acontecimentos e circunstâncias experienciadas. Noutras
ocasiões, os itinerários eram elaborados em entrevistas e histó-
rias protagonizadas por nossos interlocutores de maneira mais
explícita. Para além de uma técnica, estávamos a conceber
a narrativa como parte constituinte das existências daquelas
pessoas e como meio de elaboração da ipseidade, aproximando-
-nos da noção de “identidade narrativa”, de Paul Ricouer.
Ricouer (2010) situa a prática narrativa como produção
cultural identitária, que se faz desde e para uma organização
necessária do vivenciar, do existir no tempo em transcurso e
nos acontecimentos a tocar nossas sensibilidades. A narrati-
va seria um dos artifícios culturais de nossa historialidade e o

1. Com isso, não estamos negligenciando as disputas e as assimetrias de poder


entre as modalidades de ação universitária. Pelo contrário, não só reconhece-
mos que a área de extensão é historicamente menos privilegiada com recursos,
como entendemos que as premissas desta deveriam ser mais consideradas na
pesquisa e no ensino.

364
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

artefato de uma busca pela unidade, linearidade e/ou siste-


maticidade de experiências imersas nas descontinuidades do
real. Busca esta que, se contemplamos a formação dos sujeitos,
concretiza-se na elaboração de histórias de vida ou mesmo no
contar eventual das anedotas, causos e lembranças do inusi-
tado, as quais realizam/atualizam/criam sentidos coletivos
e sociais. Dessa forma, mesmo que o enredo constituinte da
narrativa explicite certa imitação do real, segundo esse autor,
narrar também exige e expressa competências complementa-
res: a possibilidade de realizar uma “semântica da ação” e a
capacidade de identificar as “mediações simbólicas” da mes-
ma. Elaborar e/ou entender a intriga nos remete, dessa forma,
à compreensão dos códigos desde os quais ela se erige e cons-
titui, condição que se efetivaria por intermédio do pertenci-
mento sociocultural.
Partimos da hipótese, assim, de que estimular práticas
narrativas, para além de uma forma de conhecer sujeitos e as
condições em que vivem, configura uma forma de integrar as
experiências destes com a presença e a questão que interpelam
pela (re)elaboração do experienciado, considerando-se, assim,
possíveis repercussões reflexivas quando nós, pesquisadores-
-educadores, assumimos a posição de quem chega e instiga
a tensão identidade-diferença. Conforme Melucci (2004), a
sociedade contemporânea vive o paradoxo de intensificar si-
multaneamente o estímulo às práticas autonomizantes e a am-
pliação dos artifícios de controle, de maneira que os sujeitos vi-
vem suas experiências na disputa por caracterizarem sentidos
para suas práticas, narrando sistematicamente os fragmentos
das identidades frente às provocações e alteridades que se lhes
apresentam. O ato de narrar ganharia “fôlego” então, como
artifício na delimitação provisória do “eu/nós”, na configura-
ção interpretativa de sentidos às práticas. E, então, neste ce-
nário, é forçoso dizer que na reflexividade que venhamos a
integrar/provocar reside uma potência política.

365
Leandro R. Pinheiro (Org.)

Considerávamos que ter à mão instrumentos para enun-


ciar cotidianos caracterizava a oportunidade de objetivar
memórias, de elaborar artefatos que explicitassem aos outros
as histórias que se desejava fazer conhecer. A diversificação
das narrativas jogava papel importante aqui. Começando, de
um lado, pelo apelo evocativo das fotografias e o redimensio-
nar das narrativas mediante intervenções sobre as próprias
imagens fotográficas, ou, de outro, na confecção conjunta de
um roteiro de filmagem para chegar a uma história documen-
tal, procuramos nos lançar a um processo criativo junto com
nossos interlocutores.

1.1 As imagens

As imagens foram os principais artefatos de evocação e


produção de narrativas ao longo do processo. Partíamos da
constatação de que vivemos uma sociedade constituída em in-
tensa circulação de informações e que faz da profusão imagéti-
ca um significativo componente na produção de realidades. A
ampliação e fragmetação do “real” operada pela indústria da
imagem acaba por converter ou tensionar o cotidiano desde
as fabulações do espetáculo. Diariamente, as pessoas são sub-
metidas a uma enxurrada de imagens que se sucedem em rit-
mo frenético. E nesse presente contínuo-descontínuo, onde as
imagens são consumidas sem que haja necessariamente tempo
para o estabelecimento de vínculos, a memória pode esmae-
cer-se (Martins, 2009). Nas palavras de Berger:

El espectáculo crea un presente eterno de expectacion


inmediata: la memoria deja de ser necesaria o deseable.
Con la perdida de la memoria perdemos asimismo las
continuidades del significado y del juicio. La cámara nos
libra del peso de la memoria. (Berger, 2001, p. 60)

366
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Nesse cenário, Barthes nos apresenta um argumento perti-


nente quando afirma “a imagem é aquilo que eu entendo que
o outro pensa sobre mim” (2004, p. 440). Lembra-nos que ao
criarmos uma interpretação sobre nós mesmos o fazemos na in-
teração com outras pessoas e nas conformações da linguagem;
além disso, assinala-nos que a produção de imagens pode ser
concebida como objetivação de identidades e, então, palco de
confrontos e buscas. Imaginar admite, assim, a dupla via pro-
dutiva da relação “sujeitos-contextos”, de modo que se cons-
titui como processo em que se apreendem signos do entorno,
interpretando-os experiencialmente na produção do real, o que
supõe uma tomada de posição do sujeito nos usos cotidianos do
imaginado-imagem. Portanto, imagem não é só um artefato ou
uma forma de “registro”, mas sim o resultado de uma capacida-
de cognitivo-estética e de uma produção identitária e cultural.
Martins (2009) afirma, nesse sentido, que:

a definição de pessoa e as relações sociais na modernida-


de se tornaram dependentes de imagens e do enquadra-
mento do visto no imaginado. O quanto a imagem é este-
reotipada é hoje mediação essencial da vida social. (p. 47)

Congruente, Sontag (2008) afirma que a “fotografia é, antes


de tudo, um modo de ver” (2008, p. 137). Nas fotos, o “real”
constitui-se multifacetado, inesgotável, inapreensível. A uma só
vez, “a câmera define para nós o que permitimos que seja ‘real’
- e empurra continuamente para adiante as fronteiras do real”
(Sontag, 2008, p. 138).
Os artefatos imagéticos, concebidos como um sistema de
elaboração de realidades, trazem consigo dois processos cru-
ciais, o de construção e o de interpretação. A relação do autor
com a realidade possui por moldura a mediação de suas cren-
ças, referências e intenções, fatores, aliás, presentes também
em toda e qualquer interpretação (Andrade, 2002). A imagem

367
Leandro R. Pinheiro (Org.)

não é produzida apenas pela câmera: as escolhas feitas pelo


fotógrafo ou pelo cinegrafista podem delimitar o que está em
primeiro plano, o que compõe o fundo, qual o ângulo, a luz,
os enquadramentos, entre outros aspectos que determinam a
captura da imagem. Tais escolhas impõem normas e valores
a tudo aquilo que é narrado. Embora alguns pensem que ao
produzir imagem estão retratando a realidade, o que se ex-
pressaria aí seria a capacidade de verossimilhança do artefato
visual, esmaecendo a interpretação do autor sobre o real.
Sobre nossa interação com esse tipo de artefato, Manguel
(2001) nos diz que tendemos a ver o que, de alguma forma, já
vimos antes, isto é, reconhecemos coisas para as quais já temos
imagens identificáveis. E quando conseguimos fazê-lo, quali-
ficamos o que vemos situando-o em nossas narrativas. Narrar
desde artefatos imagéticos cria a oportunidade de falar sobre o
que gostamos, sobre o que desejamos, sobre o que admiramos
e, assim, sobre o pessoalmente imaginado, “navegando” e am-
pliando as fronteiras do marco fotográfico, fílmico e da imagi-
nação (Manguel, 2001). Discutir sobre o que nos encanta ou
não nos leva às normatizações e conceitos que nos orientam
e, sem falar deles especificamente, podemos nos aventurar ao
diálogo com o diferente: o outro é quem pode nos mostrar o
limite de nossas interpretações.

2. Sobre o que estivemos a fazer

Por intermédio da produção de imagens torna-se possível


conhecer, ainda que de forma parcial, os diferentes padrões
de deferência mediante os quais os sujeitos seccionam as re-
alidades com as quais interagem e em relação as quais se si-
tuam: escolhem coisas e pessoas e as destacam em primeiro
plano, conferindo-lhes visibilidade, ao mesmo tempo em que
excluem deste todo um resto, tornando-o invisível, quiçá ine-
xistente. Além disso, elas permitem apreender também um

368
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

pouco da dramaticidade inerente a essas realidades, quando


os artefatos são dispostos para o encontro a a comunicação do
outro, de forma que o uso de artefatos imagéticos se configura
como recurso potencialmente sensibilizador e provocante.
Contudo, a produção imagética e as conversas que gera-
mos foram a culminância do processo que levamos ao cotidia-
no de nossos interlocutores. Antes, tivemos períodos mais ou
menos longos de diálogos, quando frequentávamos as casas e/
ou as atividades destes sujeitos, buscando nos familiarizar com
as rotinas e com os temas que desejavam partilhar com quem
chegava. Assim, também podíamos observar práticas e relações
que produziam: bboys e bgirls em seus ensaios e apresentações;
as mulheres nas conversações à mesa durante nossas visitas; os
educandos em seu envolvimento com as atividades escolares.
Nessa fase das interlocuções, muitas informações nos chega-
vam aos “fragmentos”, isto é, em causos, anedotas e passagens
de vivências evocadas conforme transcorriam as conversa-
ções e que, no curso de uma aproximação ainda incipiente,
careciam de articulação com a totalidade compreensiva que
almejávamos, que poderia ser uma interpretação acerca dos
itinerários biográficos ou o entendimento das relações e redes
mais frequentes no cotidiano daquelas pessoas2. Foi esta tam-
bém a etapa para conhecer expressões e rotinas e para ambien-
tar partilhas e laços que facilitassem as interações vindouras.
O tempo dedicado à imersão em campo foi fator impor-
tante na configuração de nossa compreensão dos itinerários
biográficos, buscando articulação a seus “espaços de possí-
veis”. Aludimos aqui às contribuições de Bourdieu (1996)
acerca da necessidade de problematizarmos as condições so-

2. Ao longo dos primeiros encontros, intercalamos ocasiões de interlocuções


abertas e espontâneas com momentos mais dirigidos, nos quais adotávamos
alguns artifícios para conformar rodas de conversa, como por exemplo, a apro-
priação de imagens fotográficas que quisessem nos mostrar ou o mapeamento
dos espaços de circulação mais recorrentes.

369
Leandro R. Pinheiro (Org.)

ciais de produção das narrativas, tomando posições e desloca-


mentos dos sujeitos no espaço social assim como as mudanças
deste, as características (a uma só vez limitadoras e potencia-
lizadoras) do contexto em que atuavam e as descontinuidades
que a linearidade do narrado pode difratar. Exemplo nesse
sentido concerniam às informações disponibilizadas em di-
ferentes momentos das conversações, dado que as pertenças
visibilizadas aí, diferiam e, por vezes, contrastavam-se. Perce-
bemos, certa feita, que a chegada de novos integrantes de nos-
sa equipe motivava modalidades específicas de fala: junto da
necessidade de se apresentarem pessoalmente vinha a expo-
sição de aspectos do bairro ou das experiências (entre adver-
sidades e superações), atualizando informações pronunciadas
no início de nossa interação. Com o convívio regulando certo
conhecimento mútuo, com códigos e acordos já sedimentados
orientando os diálogos para outros temas, a retomada de al-
guns enunciados nos sinalizam para as “imagens” de primeiro
contato, aquelas que se desejava enunciar ao recém-chegado
ou ao de presença episódica; algo a considerar e contrastar
com as partilhas de longo prazo na compreensão de cotidia-
nos, experiências e identificações.
À continuidade, passamos a realizar entrevistas narrati-
vas3. Foram momentos em que provocamos as pessoas a ela-
borarem itinerários4 biográficos e os registros da fase anterior
foram pertinentes então, dado o repertório que havíamos
3. Ver Jovchelovitch (2002). Sob esta inspiração, procuramos realizar entrevistas
abertas, em que os sujeitos pudessem versar sobre seus itinerários e, em segun-
do momento então, lançávamos questões associadas a tópicos-guia, neste caso,
direcionados sobretudo aos desafios e às redes de pertença e demais elementos
de apoio que compuseram as experiências.
4. Optamos pela expressão “itinerário” para distinguir uso da noção de “traje-
tória”, cujos usos tendem à produção de percursos orientados teleologicamente,
muitas vezes circunstanciados nos limites das arenas de educação e/ou trabalho
(Pericàs, 2001). Desta forma, procuramos considerar a diversidade, a reversibili-
dade e a descontinuidade nas experiências individuais, como sugere Pais (2001).

370
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

construído em relativa proximidade ao entrevistado e seu


contexto, com alternativas de assuntos e vivências a evocar na
interlocução. Foi um artifício relevante na busca por uma co-
municação “não violenta” e para evitar a imposição de cate-
gorias, conforme argumenta Bourdieu acerca da necessidade
de “compreender”, em A Miséria do Mundo (2008).
Só então passamos à produção de imagens, diferenciando
dois eixos de trabalho: a realização de ensaios fotográficos e in-
tervenções livres sobres estas, que conduzimos com as mulheres
vinculadas à escola de samba e os educandos da escola pública
municipal; e a geração de filme documentário com dançarinos
de breaking, cuja apropriação de vídeos no cotidiano era patente
e que, além disso, haviam demandado esta forma de expressão
audiovisual. Dessa maneira, pudemos nos aproximar dos arte-
fatos produzidos e das narrativas que evocavam, visando uma
interpretação significamente contextualizada.

2.1 A ensaiar imagens: o percurso com fotografias

Nesse eixo de trabalho, adotamos alguns passos em co-


mum com os dois grupos. Primeiramente, propomos que fos-
sem realizados ensaios fotográficos com câmeras analógicas
descartáveis, que disponibilizamos individualmente solicitan-
do que registrassem elementos do cotidiano que desejassem
partilhar com os espectadores. A opção por máquinas ana-
lógicas se deu por conta do efeito gerado pela revelação das
fotos, envolvendo a espera e a possibilidade mais efetiva de
contraste nas narrações entre o intencionado-imaginado e a
imagem objetivada em artefatos5.
Foram dois ensaios seguidos de rodas de conversa sobre as
preferências e renúncias dos fotógrafos, quando nos apresenta-
5. No uso de câmeras digitais, tal interstício é comprimido pela descartabilida-
de e pela possibilidade de reedição do registro, esmaecendo a possibilidade de
problematização dos contrastes.

371
Leandro R. Pinheiro (Org.)

vam os percursos e as motivações para registro e, também, no-


minavam suas produções. Na primeira edição, definimos tema
livre e deixamos que cada participante trouxesse suas ênfases.
Na segunda, delimitamos coletivamente os assuntos.
À continuação, propomos que os participantes fizessem
intervenções livres sobre algumas das fotografias feitas nos
ensaios. Proporcionamos um encontro de sensibilização6 e
os orientamos a tomarem como inspiração as narrativas que
produziram quando nos apresentavam as fotos nas rodas de
conversa ou, então, que projetassem ali seus desejos de mu-
dança. Foi este um caminho para ampliar as bases de narra-
ção, na medida que pudessem não só diversificar as formas de
evocação de narrativas, mas extrapolar o uso da palavra para
comunicar as realidades que se lhes indiciavam nas imagens,
personificando explicitamente os artefatos7.
6. Na sensibilização para intervenções, optamos pela seguinte sistemática. Pri-
meiramente, exibimos o filme “Lila”, de Carlos Lascano (<https://www.you-
tube.com/watch?v=sUy6WJL7wV8>), debatendo depois o que lhes chamava
a atenção. Com relativa facilidade, perceberam qual seria nosso propósito. Em
seguida, passamos à exposição de uma sequência de imagens: de pinturas sur-
realistas a impressionistas, sendo estas intercaladas por fotografias dos mesmos
cenários de referência, passando a imagens de grafites e intervenções de rua e,
por fim, a intervenções geradas em projeto semelhante, conduzido por nós no
bairro Bom Jesus, em Porto Alegre/RS (Pinheiro, 2014). Tal transição entre di-
ferentes formas de relação realidade-criação, articulando o efeito de verossimi-
lhança das fotos, foi também oportuna à provocação. Então, lançamos o desafio
considerando dois eixos para realização: expressar o que viam na imagem e
que, em parte nos contaram nos encontros; e/ou destacar aquilo que gostariam
que estivesse lá, como se representassem mudanças. Ressaltamos ainda que po-
deriam usar recursos e saberes próprios nas composições.
7. Devemos fazer uma ressalva neste ponto. Embora reconheçamos que a fo-
tografia comporta uma linguagem (Feijó, 2015) e que poderíamos explorá-la
na produção de imagens e evocação de narrativas sobre o cotidiano, dados os
nossos objetivos, optamos por propor a sobreposição de intervenções por enten-
der que estas possibilitavam que os autores trouxessem mais de suas bricolagens
e de seus improvisos, ao compor entre os materiais que disponibilizamos e os
que tinham à mão. As máquinas eram bastante rudimentares e as pessoas não

372
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Todo o trabalho culminou em exposição das imagens ge-


radas em espaço cultural reconhecido do centro da cidade.
Para além (mas também considerando) a valorização das pro-
duções dos participantes, a disposição de tal finalização aten-
dia a pelo menos dois propósitos. De um lado, instigar os po-
tenciais espectadores desde o estranhamento de se encontrar,
no locus onde normalmente se espera encontrar o artístico e o
extraordinário, os indícios do que se costuma invisibilizar e,
principalmente, uma expressão estético-cultural vinculada a
comunidades de periferia, a ser compreendida (ou, ao menos,
confrontada) em função do efeito de deslocamento simbóli-
co8. De outro, a ênfase aos sujeitos de diálogo9 em relação

possuíam capacitação para uso de câmeras, limitando o manuseio de elementos


da linguagem fotográfica. Pensamos que não conhecermos a técnica também
dispõe a potência de não nos limitarmos estritamente por ela (numa orientação
da comunicação ao que tecnicamente se produz como “belo” e “real”).
8. Uma medida tomada para colaborar nesta provocação foi a integração de
trabalhos de grafiteiros à exposição. Assim, colocamos lado a lado trabalhos dos
educandos e intervenções feitas por artistas urbanos sobre algumas das fotos
geradas no projeto, para que os espectadores pudessem perceber aproximações
estéticas e ter mais indícios de nossos propósitos ético-políticos. Foram convida-
dos Luis Flávio Trampo e Bboy Cko (Marcos R. Proença Cunha).
9. A expressão “sujeito de diálogo” é adotada como sinalizador de uma busca.
Assim, tentamos produzir dinâmicas dialógicas em campo que se aproximem
do que Enzo Colombo menciona em sua entrevista. Reconhecendo os sujeitos
como produtores de saberes e interpretações sobre suas realidades, intencio-
namos levar questionamentos a campo e elaborar narrações plausíveis sobre
as realidades que viemos a conhecer, de forma dispor nossa versão para con-
versação. Não queremos, com isso, menosprezar os efeitos das assimetrias eco-
nômicas e culturais que constituem as interlocuções entre nós e os moradores
de bairros de periferia. Apenas pensamos possível criar formas para ampliar
diálogos. O uso de imagens e a maneira como integramos o cotidiano dos su-
jeitos é também parte disso. No que tange à pesquisa e indo um pouco mais
além, a própria ideia de “devolução” se altera aqui. Não se trata de levantar
informações, sistematizar e depois levar aos sujeitos; o desafio está em explo-
rar as reflexividades possíveis no caminho para participar das experiências. As
elaborações-síntese a partir daí podem ter diversas formas (textos, exposições

373
Leandro R. Pinheiro (Org.)

à necessidade de tomarem posição quando de suas escolhas


sobre o que visibilizar em seu cotidiano, pelo ensejar da enun-
ciação de realidades.
Não propugnamos o simples reconhecimento dos saberes
populares, na forma de algum tipo de valoração das “bases”,
mesmo porque isso negaria o que tentamos argumentar até
aqui. Os resultados das iniciativas conduzidas advieram da
produção que compartilhamos; foram gestadas nos limites
dos encontros que ora narramos. O que intentamos com esse
processo, contudo, é participar com nossos interlocutores das
disputas pela enunciação das diferenças, ensejando que defi-
nam imagens a expor, mas sabendo que deixamos lá nossas
perguntas; tentando um diálogo possível, sem a ingenuidade
de procurar o essencial e o autêntico.
Voltando ao itinerário, vale frisar que, apesar da programa-
ção comum, o percurso com cada grupo se diferenciou. Com as
mulheres vinculadas à escola de samba, os encontros foram re-
alizados nas suas residências e os tempos de fruição eram esten-
didos muitas vezes. As falas sobre fotografias próprias tomaram
mais corpo na evocação de memórias e a sociabilidade cons-
truída configurou fortemente o processo. Muito rapidamente,
nossas visitas foram incorporadas às suas agendas quinzenais
e elas atuaram ativamente na conformação dos encontros, se
nem sempre com as temáticas, geralmente com delimitação
do modo de interagir. Nossas chegadas eram celebradas como
quem recebe visita de amigos, com casa arrumada e cumpri-
mentos acolhedores; havia momentos que as conversas ficavam
diversas e transversais, como que em meio às espontaneidades
de uma confraternização; e não podíamos sair sem antes parti-
lharmos à mesa alimentos, notícias e causos.
Dispormo-nos à escuta as colocava em protagonismo a
contar histórias e professar opiniões. Ir ao território delas e

fotográficas, documentários, encartes de fotos, etc.) e serem orientadas politica-


mente a diferentes sujeitos.

374
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

tomar parte em momentos compartilhando diálogos com seus


familiares inclusive, potencializava a aproximação10. E há que
se pensar na relevância metodológica deste estar-junto, o qual
acercava-nos de seu cotidiano na medida que configurava
nossos encontros em articulação com seus modos de partilhar
saberes: seja pela ruptura dos tempos demasiadamente pro-
gramados, instaurando certa “expansão” do presente desde a
duração afetiva da fruição; seja pela intensidade da socializa-
ção de informações e saberes, dada a diversidade, a transver-
salidade e a dinamicidade com que as pessoas engendravam
suas participações (mesmo que reconheçamos ali posições e
regras de enunciação). Nesta dinâmica, o contar causos e ane-
dotas se infiltrava como processo de expressão do vivido, de
forma que compunham narrativas variadas, sem linearidade
na contação necessariamente.
A dinâmica relatada assumiu configuração diferente com
o outro grupo com quem produzimos imagens fotográficas.
Quando chegamos à escola, tínhamos a expectativa de opor-
tunizar atividades em que as experiências individuais pau-
tassem os encontros. De fato, a dinâmica que produzimos foi
bastante efetiva para compreender itinerários biográficos e
para partilha de vivências cotidianas no bairro e na cidade.
Pudemos conhecer pertenças e proporcionar que os educan-
dos tomassem posição protagonizando enunciados sobre suas

10. Vale citar, ao longo do processo, fomos incluídos em suas provocações lúdi-
cas, fazendo com que nos sentíssemos mais próximos de nossas interlocutoras.
Certa feita, disseram em tom jocoso: “esses aí são uns maloqueiros; não saem
daqui”. A sentença sinalizava que nos era então destinado um lugar diferente,
não somente de acadêmicos e de pessoas “vindas de fora”. Logicamente, não es-
tamos afirmando uma situação de equivalência. Éramos situados como visitan-
tes (e diferentes) e, mesmo depois de bastante tempo de interação, mantinham-
-se os interditos e nem tudo podia ser pronunciado. Falamos de aproximação
gradual, mas que mantém limites e precisa ser lembrada como configuração das
contingências das interpretações que produzimos.

375
Leandro R. Pinheiro (Org.)

realidades11. Também foram momentos para questioná-los a


partir das experiências e perceber temas como racismo e con-
dição de gênero virarem pauta desde suas narrativas.
Mas a realização do projeto naquele locus não trouxe a
mesma intensidade de trocas. As ausências nos encontros ou
mesmo a rotatividade dos participantes foi o principal tensio-
nador de nossos propósitos. Constatamos, neste sentido, que
isso ocorria em conformidade com a frequência à escola. Os
educandos deixavam de ir às aulas e, então, a ausência se es-
tendia às nossas reuniões. De certa maneira, refletia-se em
nossas atividades a relação dos alunos com a escola e com as
dinâmicas de vida que a transcendem e escapam.
Creio que, para além dos efeitos dessa dinâmica, devemos
considerar que o próprio projeto foi interpretado como par-
te da rotina institucional, dada sua forma de apresentação e
composição. A proposta foi levada aos alunos pela direção e
os apelos por participação vieram acompanhados de chama-
das à responsabilidade e comprometimento. Agrega-se a isso o
formato previamente estabelecido e com condução atribuída a
um professor como inibidores da participação. Algo especial-
mente desinteressante às juventudes, maioria na modalidade
EJA daquela escola. A participação das adultas foi mais de-
tida, o que era congruente com sua atual relação com esco-
la; entre os jovens, tendia-se ao cumprimento da obrigação e
indiciavam-se os efeitos de não termos chegado aos seus terri-
tórios e aos tempos de sua sociabilidade.

11. Inclusive, alimentávamos a expectativa de que as discussões geradas pudes-


sem contar com a participação de professores da escola e, quem sabe, as expe-
riências narradas fossem base para proposições em aulas, facilitando o elencar
de temas geradores. De forma mais radical, o próprio formato da proposta,
desejoso do protagonismo dos educandos na produção de ensaios fotográficos,
intervenções e no trânsito pelos espaços da cidade, poderia inspirar dinâmicas
participativas que tensionassem os modos de materializar o currículo escolar.

376
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

2.2 Integrar a narrativa: o diálogo com bboys e bgirls

Neste caso, o percurso metodológico foi dirigido de for-


ma bastante distinta. Não somente por incorporar a pro-
dução fílmica, mas porque partiu de demanda do grupo (já
com 12 anos de história) e, além disso, fora concebido junto
a sujeitos com intensa elaboração autonarrativa. Já vínhamos
acompanhando o Restinga Crew desde 201312, observando o
amplo uso que faziam de vídeos para compartilhamento do
que faziam e, também, para revisão e melhoria de sua prática,
aproximando-se da realidade apresentada por Liliane Leroux
e Anne Clinio, em seu artigo nesta coletânea.
Pensamos que as práticas que desenvolviam em relação
com a dança e com o grupo ambientavam e se integravam ao
processo de singularização destacado por Martuccelli em sua
entrevista. Neste sentido, era possível perceber ali também, de
maneira candente, a propensão a uma produção individual e
reflexiva das identidades, na forma de um processo de “iden-
tização”, como sugere Melucci (2004). A produção narrativa
se erigia com regularidade neste cenário, evocada por diferen-
tes formas de ancoragem das pertenças e dos fatos no tempo:
as tatuagens, as vestimentas, as postagens em redes sociais ou
mesmo em vídeos de performances disponibilizados na rede.
Em consonância, almejávamos oportunizar a produção
da narrativa documental, mas participando desta de maneira
problematizadora. Acreditávamos que estaríamos a colaborar
na formação dos integrantes da crew ao ensejar que elaboras-
sem a biografia do grupo, ao mesmo tempo em que dispusés-

12. Devemos fazer uma ressalva. O artigo que aborda o cotidiano de bboys e
bgirls do Restinga Crew, de autoria de Márcio do Amaral e Maurício Peron-
di, resultou de pesquisa realizada no mesmo período de nossas incursões em
campo, mas em processo relativamente independente. De toda forma, o docu-
mentário produzido com estes jovens, ao final, considerou as elaborações dos
colegas autores na roteirização.

377
Leandro R. Pinheiro (Org.)

semos questões sobre o que e como desejavam enunciar suas


experiências no itinerário. Em que pese a opção pelo formato
de documentário, considerávamos possível conceber aí um
exercício de auto-ficção, uma prática de “ficcionalização”,
conforme nos inspira Leroux (2010)13. A narração de si pode-
ria ser a reflexividade no curso da escolha pelo que compor, o
debate pelo que articular na relação entre as individualidades
e destas com a imagem do coletivo e de seu contexto de ação.
Iniciamos este trabalho produzindo um pequeno storyboard
acerca da história da crew. Em encontro na casa de um dos in-
tegrantes, procuramos escutá-los perguntando primeiro sobre
o que gostariam que estivesse representado no documentário.
Em seguida, questionamos sobre as cenas que imaginavam
necessárias e, então, sobre a ordem dos fatos. Tentávamos
construir dialogicamente uma proposta, passando por obje-
tivos, fatos relacionados e um enredo. Ao longo da conversa,
buscávamos articular suas ideias com nossas provocações e,
em geral, eram receptivos.
Ao passo que nós, pesquisadores-educadores, concebía-
mos o enredo pensando simultaneamente nas cenas, eles pa-
reciam ter em mente metáforas e sentidos que gostariam de
comunicar. Neste sentido, com relação ao que desejavam ver
representado, surgiu a concepção de que as histórias individu-
ais fossem apresentadas em conexão, integradas pela chegada
e permanência na crew: histórias que se uniriam na história do
grupo. Então, apropriaram a metáfora de uma “árvore gene-
alógica”, enfatizando a importância de narrar os laços entre
eles e com o grupo. Em seguida, mencionaram contextos a
serem exibidos: queriam mostrar o trabalho, as apresentações

13. Nas palavras da autora “o termo “autoficção” foi criado por Serge Doubro-
vsky para representar a interseção entre a autobiografia e o romance. Para esse
autor, a autoficção seria “uma ficção de acontecimentos e fatos estritamente
reais”, onde “descrevo o gosto íntimo de minha existência e não sua impossível
história” (Doubrovsky, 1988, p. 67). (Leroux, 2010, p. 89).

378
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

e os ensaios. De uma parte, desejavam um histórico do grupo,


cuja ficcionalização “capturasse” excertos visibilizadores da
superação de adversidades (preconceitos sofridos, por exem-
plo) e da relevância daquele coletivo para isso; de outra, tati-
camente esperavam que o artefato resultasse em divulgação e,
desta forma, em visibilização e ganho pecuniário.
As provocações que lançamos procuraram agregar novos
elementos ou tensionar aspectos de suas narrativas. Questio-
namo-los sobre a possibilidade de visibilizar a participação e os
desafios vivenciados pelas bgirls do grupo, dado não ser comum
a prática de breaking por mulheres; perguntamos pela possibili-
dade de compor a narrativa com mais elementos de seu coti-
diano, para que seu contexto de ação fosse comunicado de for-
ma mais explícita; incentivamos que o documentário mostrasse
os conflitos no uso do espaço público, já que suas práticas como
educadores sociais seria apresentada; convidamo-los a pronun-
ciar as criatividades nos itinerários biográficos e na dança.
Na sequência, as filmagens contaram com a colaboração
de uma produtora. Então, novas peculiaridades se evidencia-
vam. Alguns dos integrantes do grupo, notadamente aqueles
que mais faziam uso de fotografias e vídeos, participam indi-
cando “cenas” e formas de compor planos de filmagem, par-
ticipando, assim, da concepção da narrativa e fazendo-o já de
forma imagética. Noutras ocasiões, o fato de termos o com-
promisso de registro de um evento ou rotina se esmaecia frente
à integração às redes de sociabilidades e à música, quando a
fruição do tempo “alargava” a estada de nossos interlocutores
no que os ocupava: a produção da narrativa cedia à imersão
presente entre os pares.
A montagem e finalização do documentário contou ainda
com a participação de integrante da crew, na forma de um
consultor para escolha de imagens de apresentações e per-
formances. Mas, como ocorrera em todo percurso, a partici-

379
Leandro R. Pinheiro (Org.)

pação de bboys e bgirls estava condicionada às intermitências


gestadas na instabilidade do precário e da necessidade de tra-
balhar e subsistir.
O documentário14 foi exibido dentro da programação da
exposição das imagens que realizamos como finalização do
projeto, contando com a presença dos participantes, de seus co-
nhecidos e de educandos da rede municipal de ensino. Tanto as
fotografias quanto o filme foram alvo de discussões com os es-
pectadores nas rodas de conversa que promovemos na mostra.

3. Reflexões do processo

O agregar da produção das imagens nas interlocuções em


campo trouxe resultados que merecem destaque, seja por seus
efeitos reflexivos, seja por suas consequências na produção de
informações sobre os contextos que viemos a conhecer.
Desde o início, quando pedíamos que partilhassem foto-
grafias próprias por exemplo, as escolhas nos lembravam os
usos de imagens para registro do especial ou do extraordinário
do cotidiano de grupos populares, do supostamente digno de
registro no tempo15, conforme ressalta Martins (2009). Nes-
te sentido, predominavam algumas personagens – familiares,
amigos, colegas e patrões no trabalho, os amados, etc. – e visi-
bilizavam-se ocasiões incomuns, festividades e signos de passa-
gens importantes do itinerário.

14. O documentário pode ser assistido em: <https://www.youtube.com/


watch?v=FRr0RPFT_NQ>.
15. Vale destacar, em nossas incursões por bairros de periferia e na promoção
de ensaios fotográficos com seus moradores, muitas vezes ocorre de surgir entre
fotos destinadas ao tema combinado, registros produzidos conforme a necessi-
dade e o interesse do fotógrafo em construir artefatos mnemônicos específicos.
Então, surgiam imagens de parentes que há muito não se via, de crianças ado-
entadas e sob risco, de lugares significativos em que antes não fora possível o
registro do ocorrido.

380
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

Não raro, os ensaios livres acabavam sendo temáticos, en-


fatizando pertenças e o que fora extensivamente envolvente no
percurso de vida narrado retrospectivamente: a relação com o
território; a família, os filhos e/ou casamento; as atribuições
profissionais; as formas de fruição artística e a sociabilidade.
Realçavam-se, em articulação, as diferenciações de gênero,
discursos sobre o bairro, narrativizações sobre as precarieda-
des e as superações de quem vive a periferia, enunciados am-
bientalistas veiculados na escola, dentre outros.
De outra parte as fotografias, como “forma de ver” (Sontag,
2008) traziam aos participantes detalhes não percebidos antes,
conforme seus enquadramentos emolduravam o real fazendo do
efeito de verossimilhança também um efeito de deslocamento
e reconstrução da realidade percebida. Foi assim com detalhes
das residências, por exemplo, que passaram a ser vislumbrados
como “belos” após o recorte operado pelas lentes, explicitando
filiações estéticas; ou com os ensaios que os fizeram elaborar
características do bairro antes não consideradas relevantes; ou,
de outro lado, quando, pela evocação do suposto caráter docu-
mental das fotografias, os participantes assumiam o dever de
mostrar o que “realmente” constitui a comunidade16.
Os contrastes entre os artefatos e aquilo que fora imaginado
também nos trouxeram reflexões. O exemplo mais contundente
se deu em função da condição peculiar de Nandi, cuja partici-
pação fora fragilizada ao longo do processo, enquanto ela en-
frentava os limites interpostos pelo adoecimento de seus olhos e
16. Seriam exemplos: o olhar renovado de Helena para o detalhe da escada de
sua casa, já há muito construída, atribuindo “beleza”; o ensaio em que Eva de-
cidiu fotografar o tema “proteção aos animais”, e as 27 poses mostravam diver-
sos cães de rua em diversas partes da comunidade, o que, segundo nos contou,
teria sido uma “descoberta” para ela, dado que não teria noção da extensão
do fenômeno no bairro; ou, então, o fato de Nadir ousar fotografar nas ruas
do bairro para mostrar as moradas precárias que compunham seu caminho de
casa até o ponto de ônibus, algo que ela afirmava ser perigoso em função da
atuação de traficantes nas esquinas.

381
Leandro R. Pinheiro (Org.)

as restrições à visão. Antes que pudéssemos considerar formas


de manter sua participação, as colegas decidiram acompanhá-
-la e apoiar a efetivação dos ensaios17. Quando nos encontra-
mos para conversar sobre as fotos produzidas, foi interessante
observar a potência da memória imagética suportando as esco-
lhas da autora. Durante a narrativa sobre as fotos, ela não as via
muito bem. Nesta disputa com a nebulosidade da vista, falava
entusiasmada sobre o referente da foto, sobre aquilo que supos-
tamente estava ali representado. Mais do que em outros casos,
interessava pouco a qualidade da foto; interessava valorizar o
referido. Obliterado o contraste entre imagem e imaginado, a
imaginação deu conta da elaboração de um discurso.
Pensamos que a solicitação para que intervissem sobre as
fotos operava também sobre tal relação (imagem-imaginado).
Frente a um artefato ao qual normalmente se atribui um “ca-
ráter documental”, as aplicações feitas sobre as imagens, de
um lado, remetiam aos referentes e alterar a foto poderia assu-
mir a potência de pensar alterações nas realidades indiciadas.
De outro, personificavam as fotografias, diferenciando-as de
um registro, em geral, associado ao operar de um mecanismo
cuja autoria é atribuída ao manuseio de elementos técnicos
e, especialmente, à escolha do enquadramento de demonstra-
ção. E tal personificar realçava as singularidades do percebido
na imagem objetivada e compartilhada com os pares: os com-
plementos, as alterações, os questionamentos concernentes
distinguiam olhares e narrativas.
As imagens enfeitadas, as realidades sutilmente alteradas ou
complementadas, por vezes, pareciam-nos o trabalho de quem
tinha um “desenho a colorir”. Noutras ocasiões, destacava-se
a simbolização do que tinham narrado em nossas rodas de
conversa ou a representação para narrativas novas: assim foi,

17. O primeiro ensaio de Nandi contou com a colaboração de Antonia, que


dispôs a circular com ela pelo bairro e enquadrar o que a colega solicitava.

382
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

dentre outros, com a fotografia do pedreiro que descansava e


que recebera colagens de ferramentas para indicar que deveria
estar trabalhando; com as imagens da escola de samba a que se
agregaram recortes de passistas; com o retrato em que procu-
raram expressar o que pensava o retratado; ou com os registros
que receberam textos explicativos, agregando informações pes-
quisadas exclusivamente para a produção das intervenções18.
Acreditamos que nossos encontros estiveram a provocar
nas conversações, no compartilhado conforme as sociabilida-
des que se erigiam. Um processo construído mais na forma
de propor (sem conteúdo previsto/previsível), ao demandar
tomada de posição e lançar questionamentos a partir daí:
discutimos os preconceitos vivenciados e nem sempre desta-
cados nas narrativas da experiência; o mesmo fizemos, por
exemplo, quando questionamos a ausência masculina nos
depoimentos sobre a militância comunitária ou a presença
ostensiva de homens no breaking.
Ademais, conversar sobre imagens representou o desafio
de elaborarem argumentos para suas escolhas (nas fotos, nos
vídeos, nas intervenções), articulando enunciados sobre o que
fora feito intuitivamente, trazendo à reflexão e à palavra as

18. Cabe trazer mais detalhes para reforçar o quanto as intervenções se articu-
lavam aos sentidos produzidos pelos participantes e aos contextos que aludem
(para não serem lidos apenas como meros enfeites). Em relação à foto do pe-
dreiro que referimos acima, Helena contou que tinha uma relação de amizade
com o fotografado. Todos os dias, antes de iniciar o trabalho, ele costumava
tomar um cafezinho vagarosamente. Ela nos contou que considerava aquilo
um exagero, mas não tinha alternativas. Dizia ser mais recomendado manter
o vínculo e limitar as pessoas com acesso a sua residência, referindo à violência
do entorno e, também, o fato de morar sozinha. Noutro exemplo, as escritas
que acompanhavam as fotografias foram elaboradas por Luci associando suas
imagens à narrativização das conquistas da comunidade, com a qual ela passou
a conviver em nossos encontros em função dos depoimentos de Nandi e Helena
e de questionamentos concernentes que dispusemos.

383
Leandro R. Pinheiro (Org.)

afeições da criação. Poderíamos dizer que estaríamos encer-


rando a criatividade nos limites da verbalização, mas acredi-
tamos ter apostado em ambos, na expressão imagética e na
simbolização pela língua falada. Procuramos privilegiar (re)
elaborações de narrativas que estavam ali de alguma forma
(dada a existência daqueles já habituados a narrar e, por isso,
já com elaborações em curso) e o exercitar de articulações no-
vas, na associação a elementos que não se conhecia antes da
chegada aos grupos de nossos diálogos.
E tal processo tem nos feito refletir acerca do criativo/in-
ventivo de nossas identidades narrativas, não exatamente pela
interposição de fatos inventados, mas pela atribuição de senti-
dos que criam funcionalidade entre os fatos. Ao criar a ambi-
ência para protagonizarem a produção imagética, acreditamos
ter participado das experiências de nossos interlocutores não só
dispondo novas atividades a serem rememoradas, mas temas e
questões diferentes a compor as narrativas do experienciado.
No caso do vídeo especificamente, tínhamos certa reorien-
tação da contemplação pelo concatenar de quadros. Ali, con-
tavam muito os sentidos configurados na sequência e, cremos,
o efeito reflexivo de nosso trabalho se situou mais na opera-
cionalização de uma concepção roteirizada e no posicionar-
-se para definir o que comporia a montagem. Nos limites da
participação de bboys e bgirls, podemos perceber que, entre a
metáfora inicial e o resultado fílmico, constituíram-se acrésci-
mos aos enunciados. Eram acúmulos condizentes ao discursa-
do pelos dançarinos, mas que, na composição final do docu-
mentário, constituíram-se em contraste quando o assistiram,
sinalizando a necessidade de acomodar nova síntese sobre si.
Eles esperavam destaque às suas proezas como dançarinos, ao
passo que realçamos aspectos de seus cotidianos como jovens
de grupos populares. Então, embora tenham reconhecido a

384
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

plausibilidade da narrativa, aguardam outras versões que nos-


sos diálogos possam oportunizar19.
No curso de nossas produções, os padrões de deferência
diferiam do que imaginávamos e procuramos respeitá-los. No
caso das fotografias, os contrastes na escolha de imagens para
exposição sinalizavam-nos para a existência de punctuns dife-
rentes (Barthes, 1984) e estes indicavam, ademais, experiências
estéticas distintas das nossas. Na consecução do documentário,
os enunciados dos jovens nos informavam e, simultaneamente,
desconsertavam-nos pela expressão de narrativas considera-
velmente elaboradas sobre as adversidades enfrentadas e sobre
suas opções cotidianas na fruição do tempo e da presença. E,
neste sentido, expor as imagens condensava, a uma só vez, a
possibilidade de visibilizarmos as opções políticas e estéticas de
nossos interlocutores e levar àqueles socializados em contextos
diversos a oportunidade de um estranhamento reflexivo.

4. E, por fim, considerações sobre o que narramos

Como já afirmamos, nosso convite para fotografar, vídeo-


-gravar e expor comportava certa convocação à tomada de
posição, à escolha do que visibilizar e o que deixar à parte,
que consistia também em “ver” e elaborar de forma relati-
vamente diferente em decorrência de nossa presença no pro-
cesso conduzido. Segundo entendemos, aí se explicitava ainda
mais os efeitos da construção enunciativa dos sujeitos quando
em diálogo com o “estrangeiro”; colocava-se de manifesto os
limites do que produzimos no encontro de pesquisa ao realçar
os efeitos da intervenção que representava nossa participação,

19. Cabe assinalar, todas as imagens geradas foram entregues ao Restinga Crew
para que pudessem elaborar outras narrativas e não precisassem se restringir ao
que produzimos juntos. Os bboys e as bgirls preferiam versão em que se ressaltas-
se mais do que entendiam ser as superações das adversidades e as realizações
em espectáculos.

385
Leandro R. Pinheiro (Org.)

trazendo mais elementos para interpretarmos os posiciona-


mentos assumidos, desde o contraste das diversas formas de
interlocução e dos diferentes momentos em campo.
Daí, a tentativa de caminhar entre formas de conhecer
e de provocar, entre interlocuções dirigidas e outras abertas,
entre “fragmentos” e narrações ciosas de linearidade. No que
tange à elaboração de nossas interpretações, os registros de
momentos formais (como a entrevista, por exemplo) e de oca-
siões de interação informal foram considerados de maneira
contrastante e complementar, dispondo informações de tipos
diferentes e em composições diversas. De um lado, indicia-
vam-se as contradições e também as contingências no que fora
partilhado20 e, de outro, compunha-se o gradual alinhavar de
nossa interpretação do que se processava em nossos encontros,
elencando condições, práticas, pertenças e, também, astúcias e
táticas (De Certeau, 2011).
Atentos às individualidades com as quais dialogávamos,
tentamos evitar a “ilusão biográfica” e, em articulação, pro-

20. Consideremos, dentre outros elementos, as ênfases dadas aos êxitos e fracas-
sos em entrevistas e, sem o constrangimento da gravação, o destaque às artima-
nhas e astúcias; ou, em relação às composições, a configuração de uma biogra-
fia, que supõe certa linearidade e causalidade entre diferentes momentos, e as
anedotas que destacavam façanhas, méritos, juízos evocados aos “fragmentos”.
A título de exemplo, poderíamos destacar narrativa de uma de nossas interlocu-
toras sobre uma festividade na cidade de Osório/RS, em que seu marido havia
dito a amigos que ela teria raízes na cidade. No meio do relato, afirmou que não
vivera lá e que as pessoas que a conheciam já teriam falecido (quando desse re-
torno, passados 50 anos). Em contradição, ao valorizar a militância de sua mãe
naquela cidade, afirmou em entrevista que ainda hoje ela era conhecida por lá,
em função dos feitos da progenitora. Então, fazemos algumas ponderações: assi-
nalava-se o caráter criativo e circunstancial da narrativa e político da entrevista,
gravada e concedida a representantes de uma instituição legitimada no locus (e
reconhecida por quem é entrevistado), de forma que poderíamos considerar o
enaltecer dos méritos como nuançar do depoimento que redimensiona os fatos
contados. É forçoso dizer que as narrativas geradas em campo são parciais e
precisam ser contrastadas com outras versões dos acontecimentos.

386
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

curamos compreender as condições sociais de produção das


experiências narradas. E o reescrever de percursos biográficos
foi, na maioria dos casos, a estratégia metodológica e narrativa
para articular “espaço de possíveis” e identidades individuadas.
Num exercício de compor, seccionar, recompor; na brico-
lagem dos diversos “fragmentos” que nos chegaram, buscamos
uma compreensão que se deixasse infiltrar pelas descontinui-
dades que, muitas vezes, a linearidade pretendida para a bio-
grafia tende a obscurecer. No entanto, optamos por manter o
tom narrativo e o delinear individualizado dos itinerários nos
textos da última seção para realçar suas características como
casos em análise, dispostos à identificação e à reflexividade.
Como sugere Pais (2001), “um caso não pode representar o
mundo, embora possa representar um mundo no qual muitos
casos semelhantes acabam por se refletir” (p. 89).
Ademais, tomando o pequeno inventário de casos apresen-
tados, procuramos esboçar um arrazoado das condições sociais
de produção das experiências em contextos de periferia. Este
indicia elementos que temos depreendido em nossas incursões
no bairro Restinga e em outras localidades vulnerabilizadas
da cidade de Porto Alegre. É ainda uma elaboração incipiente
e tem se constituído em buscas por referentes que nos apoiem
na interpretação do que construímos nos encontros em cam-
po. Aí, situam-se nossas apropriações das contribuições de Al-
berto Melucci, Enzo Colombo e Danilo Martuccelli. E, vale
frisar, referimos apropriação justamente para indicar que to-
mamos as análises destes autores para reflexão e inspiração, o
que pode indicar os limites de nossa análise para aqueles que
esperam uma aplicação estrita de referenciais. De toda forma,
procuraremos traçar algumas conexões na sequência e assina-
lar o que temos realçado em nossas leituras.
A abordagem de Melucci (2001; 2004; 2005) e Enzo (2015)
era já conhecida quando iniciamos as incursões que embasam
esta escrita e tentamos apropriá-las por pelo menos dois mo-

387
Leandro R. Pinheiro (Org.)

tivos. Primeiramente, desenhavam-nos uma forma de aborda-


gem pertinente, ao dispor a narrativa sociológica entre outras
formas de produção social de conhecimento e, também, ao dis-
cutir as consequências de se produzir pesquisa em conjunturas
de circulação intensa de informações. Isso tem nos feito refletir
sobre as condições de efetivação do diálogo em campo e sobre a
necessidade de reconhecermos a diversidade e a densidade das
bases de produção de saberes e sentidos de nossos interlocutores.
Em segundo lugar, a maneira como esses autores problema-
tizam a relação entre sociedade da informação e produção de
identidades-diferenças tem sido bastante provocativa. E, vale
destacar, as ideias acerca da contemporânea “construção social
da realidade”, sobre “paradoxo da escolha” e “identização” e/
ou sobre a análise “contextualizada da diferença”, parecem-
-nos contribuições com assento analítico significativo sobretu-
do quando contemplamos as práticas juvenis nas periferias.
As proposições de Melucci e Colombo tem nos apoiado a
problematizar a construção identitária dos sujeitos com quem
dialogamos, à medida que estes diversificam filiações e bases
informacionais e modulam suas pertenças de maneira cres-
centemente reflexiva. Mas há a necessidade de considerarmos
que, nos contextos em foco aqui, as escolhas se erigem muitas
vezes como astúcias em confronto ao instável e ao precário (a
rigor, menos opções do que contingências) e que precisamos
nuançar leituras para conformar uma interpretação plausí-
vel. Nas localidades pelas quais temos circulado, há condições
e pertenças bastante estruturadas e há, de outro lado, certo
agenciamento e reflexividade para se movimentar frente ao
instituído; as identidades-diferenças amplamente reivindica-
das (como as de gênero, étnicas ou de trabalho) muitas vezes
apenas “ecoam” e são gestadas com certo distanciamento.
As proposições de Danilo Martuccelli (2004; 2006; 2007;
2007b; 2010) nos chegaram durante as incursões. Sinalizam
que as relações sociais contemporâneas instigam experiências

388
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

diversas, contribuindo para que estas se particularizem mes-


mo quando as pessoas ocupam posições sociais assemelhadas.
Conforme indica em sua entrevista, sua interpretação orienta-
-se ao processo de singularização estruturalmente produzido
na modernidade e propõe operadores analíticos para a com-
preensão das formas pelas quais os indivíduos se constituem
na relação com aspectos que perpassam a socialização na co-
letividade: como afirma este autor, o processo de individua-
ção precisa ser problematizado aquém e além das identidades.
Neste sentido, apresenta a noção de “desafio-prova” como ar-
tifício heurístico, destacando os desafios sócio-históricos que os
indivíduos são impelidos a enfrentar (conforme as condições
sociais em que se encontram) e que podem ser vivenciados
singularmente. Tomemos uma citação do autor:

Las pruebas tienen cuatro grandes características. En pri-


mer lugar, son indisociables de un relato que les asigna a
los atores, individuales o colectivos, un papel mayor en la
comprensión de los fenómenos sociales. En seguida, las
pruebas hacen referencia a las capacidades que tienen un
actor para afrontar las prescripciones y procesos difíciles
a los cuales está sometido. En tercer lugar, toda prueba
aparece como un examen, en realidad, como un meca-
nismo de selección a través del cual, en función de sus éxitos
o fracasos, los actores forjan sus existencias. Por último,
las pruebas son inseparables de un conjunto de grandes
desafíos estructurales a los que los individuos están obligados
a responder y que difieren en función de las sociedades y
de los períodos históricos. (Martuccelli, 2007, p. 125)

A tal conceito o autor associa também a noção de “su-


porte”, para falar das relações que amparam os indivíduos no
enfretamento de seus desafios existenciais. Aí, podemos situar,
dentre outros, laços de reciprocidade, redes de amizade e so-
ciabilidade, referências simbólicas ou, então, a articulação a

389
Leandro R. Pinheiro (Org.)

aparatos institucionais que garantam e/ou promovam condi-


ções para que os sujeitos efetivem seus projetos e/ou logrem
seguir em disputa. Aqui, importante destacar que Martuccelli
(2007b) referirá necessário não só elencar os elementos que
podem sustentar as experiências dos sujeitos, mas a manei-
ra como se apropriam destes convertendo-os em suportes da
existência21. Diferentemente de um mapeamento de redes e
capitais em determinando contexto, faz-se necessário consi-
derar a atuação do sujeito. Aqui, a abordagem considera que
os processos de individuação, tomados desde a configuração
social contemporânea, estruturam-se desde a participação dos
indivíduos na organização das dinâmicas de socialização, di-
ferentemente de uma leitura que se atenha aos processos de
individualização, tendendo à identificação de um padrão re-
sultante das interpelações sociais22.
Embora Danilo Martuccelli não tome a categoria de
“identidades” como referência de análise de maneira estrita,
como refere em sua entrevista, entendemos que os operado-
res analíticos que propõe (“desafios-provas” e “suportes”) são
importantes referentes para compreensão se nos orientamos
às configurações identitárias no âmbito da individuação e em
relação aos itinerários das pessoas com quem dialogamos23. As

21. Algumas das dimensões do vínculo social que Martuccelli (2006) menciona
como ambiências de provas seriam, por exemplo: a escola, a família, a cidade,
o trabalho, a relação com a história, a relação com coletivos (partidos, agremia-
ções, etc.), a relação com os outros e a relação consigo. Entretanto, o próprio
autor não pretende que estes sejam referentes exaustivos.
Devemos destacar, além disso, que a noção de “prova-desafio” parte da consta-
tação de que somos tocados pelo ideal cultural moderno de “indivíduo’ e pelas
buscas por autonomia e de independência que representa.
22. Neste aspecto, acreditamos que a análise de Martuccelli (2006; 2007; 2007b)
se aproxima a de Castells (2013) e de Melucci (2004), em suas elaborações sobre
os processos de individuação contemporâneo.
23. No marco da ‘Sociologia do indivíduo’ proposta por Martuccelli, pensamos
que a noção de “individuação” se mostra profícua não só por conta do proces-

390
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

pertenças narradas neste cenário condensam uma das formas


de se refletir sobre as redes que sustentam e desafiam os sujei-
tos, ambiências que, por vezes, eles agenciam reflexivamente
e/ou, noutras, integram constituindo disposições no curso das
experiências. De outra parte, percebemos possíveis articula-
ções também porque as problematizações de Melucci (2004)
instigam-nos justamente à análise de um contexto de amplia-
ção das bases de individuação e, neste ínterim, de compreen-
são da diversidade de apropriações operadas no “jogo do eu”.
Assim, manter a dimensão das “identidades” tem sido um
artifício para chegar às pessoas, em seus esforços por enunciar
a si e os sentidos de suas ações desde os vínculos sociocultu-
rais que constroem. Mas, para fazê-lo, entendemos necessário
discutir movimentos, trânsitos, ações de nossos interlocutores
para a feitura dos dias e desde os quais se têm como indivídu-
os sujeitos de feitos a narrar. Então, tentando compreender o
conjunto dos casos desde uma articulação com o que interpre-
tamos ser desafios estruturais que partilham, colocamo-nos a
ponderar algumas das formas e condições sociais de produção
das experiências nos cenários de periferia que estivemos a co-
nhecer. Quem sabe assim nos aproximamos de uma interpre-
tação mais acurada do que afirmam e do que propugnam.

so de singularização analisado por ele, cuja presença em contextos de periferia


precisaríamos pesquisar e discutir em suas especificidades, mas também pelos ar-
ranjos relacionais interpostos frente à instabilidade e à precariedade, a demandar
do indivíduo a participação astuciosa na garantia da existência. O inventário de
condições, práticas, pertenças e, também, de astúcias e táticas que logramos des-
de a produção de imagens e narrativas foi proveitoso neste sentido. Elencamos
as “provas” junto às adversidades confrontadas e as conquistas relatadas em dife-
rentes arenas, e os “suportes” junto às redes de pertença e às referências simbóli-
cas, que se explicitavam nas distintas formas de narração. Tomados no conjunto,
os itinerários biográficos foram analisados em relação às características que os
perpassavam e nas peculiaridades que poderíamos associar a um agrupamento
ou outro, agregando à análise dados estatísticos secundários ou contribuições de
outros autores sobre os temas que integravam as realidades pesquisadas, para
esboçarmos os desafios e as condições de individuação.

391
Leandro R. Pinheiro (Org.)

Um caminho de compreensão recém iniciado para nós. Mas,


como nos dizia um querido amigo, “sigamos em conexões”!

Referências

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393
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sos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

394
Sobre os autores

Alicia Lindón
Doutora em Sociologia pelo Colegio de México. Possui
mestrado em Estudos Urbanos pela mesma instituição e gra-
duação em Geografia pela Universidad de Buenos Aires. É
professora-pesquisadora do Departamento de Sociologia da
Universidad Autónoma Metropolitana, campus Iztapalapa,
na área de Sociologia da cultura e no grupo de pesquisa Es-
pacio Social de la Ciudad. É membro do Sistema Nacional
de Investigadores del CONACYT no nível III. Suas linhas de
pesquisa se orientam à dimensão espacial do social desde a
perspectiva do sujeito habitante.

Ana Maria Loforte


Doutora em Antropologia Social. Professora Associada
na Universidade Eduardo Mondlane, Faculdade de Letras e
Ciências Sociais, onde exerceu funções de docente e investiga-
dora. Trabalhou como assessora técnica de gênero do United
Nations Population Fund-UNFPA. É autora de várias obras
sobre temas de gênero, poder político, sexualidade e violência.
Atualmente é coordenadora da área de formação da Women
and Law in Southern Africa Research and Education Trust-WLSA
Moçambique.

Anne Clinio
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Ciência
da Informação, PPGCI - Ibict/UFRJ. Graduada em Comu-
nicação Social com ênfase em Publicidade e Propaganda pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

395
Leandro R. Pinheiro (Org.)

Bruna D. Junqueira
Bacharel em Biblioteconomia pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS) e licencianda em Letras pela
mesma universidade. Desde 2011, atua também na área de
Sociologia, a partir do engajamento em projetos de pesquisa
e extensão. Atualmente é bolsista de extensão no projeto Para
Enunciar Cotidianos, Imagens da Periferia - 2ª ed. e biblio-
tecária da Escola Amigos do Verde. Tem interesse principal-
mente nas temáticas de gênero, movimentos sociais, identida-
des e narrativas.

Bruno H. S. de Castilhos
Graduando do curso de Pedagogia na Universidade Fe-
deral do Rio Grande do Sul (UFRGS). Bolsista de iniciação
científica UFRGS no projeto Quando as identidades enun-
ciam cotidianos. Interesse pelo tema identidades e cotidianos
de periferia.

Danilo Martuccelli
Doutor em Sociologia, possui graduação em filosofia.
Professor na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da
Universidade Paris-Descartes (Université Paris-Descartes –
Université Sorbonne Paris Cité/USPC) e pesquisador no
‘CERLIS-CNRS’ (Centre de Recherche Sur Les Liens So-
ciaux – Centre National de la Recherche Scientifique).
Seus interesses de pesquisa incluem teoria social, sociologia
política e da sociologia do indivíduo e individuação.

Enzo Colombo
Doutor em Sociologia pela Università degli studi di Mi-
lano. Graduado em Ciência Política e professor do Departa-
mento de Ciências Sociais e Política desta mesma universida-
de. Suas pesquisas se orientam aos seguintes temas: sociedades
multiculturais; relações interculturais; dimensões culturais dos

396
Itinerários Versados: questões, sintonias e narrativas do cotidiano

fenômenos da globalização; novas formas de cidadania; rei-


vindicação de pertença e reconhecimento entre jovens filhos
de imigrantes; métodos qualitativos (etnografia).

Juliana Prata
Mestre em Educação, Cultura e Comunicação em Perife-
rias Urbanas (UERJ/FEBF). Graduada e licenciada em Ci-
ências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(2007). Professora assistente da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro – Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues
da Silveira. Tem como temáticas de trabalho: Juventude-Esco-
la – Trabalho e Produção de Conhecimento.

Leandro R. Pinheiro
Doutor em Educação pela Universidade do Vale do Rio
dos Sinos (UNISINOS), possui graduação em Ciências Sociais.
É professor da Faculdade de Educação da Universidade Fede-
ral do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desenvolve pesquisas nas
áreas de sociologia da educação e de educação em periferias
urbanas, abordando principalmente as temáticas movimentos
sociais, identidades, narrativas e cotidianos em periferias.

Liliane Leroux
Doutora em Educação (UERJ), Pós-doutorado em Comuni-
cação e Cultura. Socióloga (IFCS/UFRJ), Professora e pesqui-
sadora do PPG Educação, Cultura e Comunicação em Periferias
Urbanas (UERJ), Coordenadora do Núcleo de Estudos Visuais
em Periferias Urbanas – NuVISU (CNPq/UERJ). Temas de
pesquisa: Cinema em Periferias Urbanas, Sociologia Visual.

Márcio de Freitas do Amaral


Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Educação e pedagogo
pela mesma instituição. Pesquisador em temáticas relaciona-

397
Leandro R. Pinheiro (Org.)

das às juventudes, principalmente culturas juvenis e periferias


urbanas. Atualmente é membro do Observatório Juventudes
da PUCRS.

Maurício Perondi
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), pesquisador em temáticas relacio-
nadas às juventudes, principalmente culturas juvenis, partici-
pação social e processos educativos. Atualmente é membro do
Observatório Juventudes da PUCRS.

Mônica Peregrino
Doutora em Educação pela Universidade Federal Flumi-
nense (2006). Professora adjunta da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e do Programa de Pós-
-graduação em Educação da mesma. Colaboradora do Pro-
grama de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comuni-
cação em Periferias Urbanas da UERJ. Atua principalmente
nos seguintes temas: processos e condições de expansão esco-
lar no Brasil; juventude e seus processos de socialização; desi-
gualdades sociais.

Rodrigo S. F. A. Teixeira
Graduando do curso de Teatro na Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS), técnico em comunicação
visual e bolsista do projeto de extensão Para Enunciar Coti-
dianos, Imagens de Periferia - 2ª ed. Interesse por produções
áudio visuais e temas relativos ao fazer teatral.

398
Título Itinerários Versados: questões, sintonias e
narrativas do cotidiano
Organizador Leandro R. Pinheiro
Coordenação Editorial Kátia Ayache
Assistência Editorial Augusto Pacheco Romano
Érica Cintra
Capa e Projeto Gráfico Renato Arantes Santana de Carvalho
Assistência Gráfica Wendel de Almeida
Preparação e Revisão Renata Moreno
Formato 14 x 21 cm
Número de Páginas 400
Tipografia Baskerville
Papel Offset 90g/m2 e Couché 115 g/m2
1ª Edição Março de 2016
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