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REFLEXÕES SOBRE

O HIPERCONSUMISMO

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José Carlos Carles de Souza Mário Cesar dos Santos
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Liton Lanes Pilau Sobrinho
Rogerio da Silva
(orgs.)

REFLEXÕES SOBRE
O HIPERCONSUMISMO

2013

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Sumário

Apresentação .......................................................................7
Reflexões sobre o hiperconsumismo
Liton Lanes Pilau Sobrinho; Rogerio da Silva

A (in)constitucionalidade na interrupção de serviços


públicos essenciais e contínuos pela inadimplência dos
consumidores ...................................................................... 9
Pedro Henrique Kaiper Cruz; Rogerio da Silva

Ações coletivas de direito Bancário .................................. 37


Francisco Carlos Duarte; Luciana de Quadros

O CDC e o direito de proteção contra publicidade enganosa


e abusiva na oferta de alimentos e bebidas destinados às
crianças e aos adolescentes ............................................. 72
Júlio César de Carvalho Pacheco; Vinícius Borges Fortes

Direito de informação sobre a sustentabilidade do


produto ................................................................... 100
Marina Neuhaus

As relações de consumo e o princípio do acesso à justiça


na sua dimensão prestacional ............................................. 112
Alcindo Batista da Silva Roque

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O papel das Comissões Parlamentares na defesa do
Consumidor: as audiências públicas como forma de pressão
popular ....................................................................... 130
Filipe Madsen Etges

A rotulagem dos alimentos transgênicos: uma questão de


transparência e dignidade ao consumidor ..................... 149
Claudia Alves Cerri; Camila Alves

O fetichismo da subjetividade e a sociedade de


consumidores no pensamento de Zygmunt Bauman ..... 181
Rafael Padilha dos Santos; Liton Lanes Pilau Sobrinho

A possibilidade da utilização da mediação nas relações de


consumo: considerações a partir da arquitetônica da ética
do discurso ...................................................................... 206
Marcio Renan Hamel

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Reflexões sobre
o hiperconsumismo

O trabalho ora apresentado traz em seu bojo as


ansiedades de uma sociedade complexa e marcada pelo
consumismo desenfreado, advindo pelas mudanças
tecnológicas principalmente da mídia, que estabelece
na sociedade uma verdadeira revolução no mercado de
consumo. Para Gilles Lupovetsky: Los grandes almacenes,
en el siglo XIX, inventaron el “ir de compras” como
nuevoentretenimiento y crearon en las clases burguesas
la necesidad irresistible de consumir. Más tarde seconcibió
que el célebre five dollars day de Ford fuese la puerta por
la que el obrero accediera a la categoríade consumidor
moderno. En los años veinte, la publicidad estadounidense
se dedicó a dar forma a unconsumidor adaptado a las nuevas
condiciones de la producción en serie. El sistema de créditos,
en estosmismos años y luego en la posguerra, permitió
desarrollar una nueva moral y una nueva psicología por
lasque ya no era necesario economizar primero y comprar
después. Nadie opinó en contra: el éxito fue total, yaque la
“domesticación” para el consumo moderno fue más allá de
todas las previsiones1. Assim, observamos que este modelo
foi exportado a toda sociedade dita globalizada, ou seja,
ascendente ao mercado, a qual não possui limites geográficos
para os produtos e para os desejos da sociedade de consumo.
Esta mudança paradigmática possibilitou uma mudança
radical na vida social, em que as pessoas são ditas “mais
importantes” pelo que aparentam do que realmente são.
1 LIPOVETSKY, Gilles. El consumo sin freno. Publicado en el suplemento
cultural “el Ángel” del periódico Reforma (Distrito Federal, México) 02
dediciembre. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/835025/El-consumo-
sin-freno-Gilles-Lipovetsky. Acesso em: 20/11/2013.

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Assim, a comunicação ganha um grande destaque de levar
a informação, criando verdadeiros modismos e mascarando
a realidade da sociedade extremamente refém dos desejos
pelo consumismo, consumir por consumir... Onde iremos
parar? Necessitamos de uma guinada de direção, na qual
a sociedade não pode ser apenas objeto do mercado, mas
sim livrar-se das amarras para um consumo consciente e
sustentável.
A presente obra foi viabilizada por meio de recursos
obtidos no Fundo Estadual do Consumidor do Rio Grande
do Sul, à qual que cabem nossos agradecimentos.
Os presentes textos trazem uma reflexão para outra
via: a do consumo consciente.

Boa leitura a todos!

Liton Lanes Pilau Sobrinho e Rogerio da Silva


Organizadores

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A (in)constitucionalidade
na interrupção de serviços
públicos essenciais e
contínuos pela inadimplência
dos consumidores
Pedro Henrique Kaiper Cruz1∗
Rogerio da Silva**²

Introdução
O presente artigo tem por objetivo analisar e
demonstrar a proteção do consumidor em relação aos
serviços públicos prestados sob o regime de concessão.
Para tanto, inicialmente serão demonstradas as definições
de consumidor e fornecedor, bem como as teorias aplicadas
ao tema. Posteriormente, passa-se a analisar os serviços
públicos essenciais, contínuos e emergenciais, verificando
o posicionamento do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul e também do Superior Tribunal de Justiça frente à
interrupção por inadimplência dos consumidores.

Definições: consumidores e
fornecedores
O Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078/90,
estabelece normas de ordem pública e interesse social,
1 Graduando do IV nível da Faculdade de Direito da Universidade de Passo
∗¹

Fundo.
**²Professor orientador. Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz
(2008). Doutorando da Universidade de Santa Cruz.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 9

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possuindo suas origens nos arts. 5º, inciso XXXII, 170, inciso
V, da Constituição Federal2 e art. 48 dos Atos das Disposições
Constitucionais Transitórias3. Trata-se de um microssistema
jurídico, no qual se encontram inseridas questões de Direito
Constitucional, Civil, Penal, Processual Civil, Processual
Penal e Administrativo, tendo como foco a vulnerabilidade
do consumidor. O Código de Defesa do Consumidor dispensa
tratamento desigual aos desiguais, buscando com isto
estabelecer o equilíbrio das relações de consumo.
O Código é considerado uma lei principiologica, na
definição de Rizzatto Nunes, entende-se como aquela “que
ingressa no sistema jurídico, fazendo, digamos um corte
horizontal, indo no caso do CDC, atingir toda e qualquer
relação jurídica que possa ser caracterizada como de
consumo e que também esteja regrada por outra norma
jurídica infraconstitucional”4.
Para Sérgio Cavalieri Filho, “mais do que qualquer
outra lei, uma lei principiológica não pode ser interpretada
em tiras, nem aplicada aos pedaços. Exige interpretação
harmoniosa com todo o sistema; funciona como o fio
condutor para o intérprete e aponta os rumos a serem
seguidos por toda a sociedade.”5.
2 “Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor;”
“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e
na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme
os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
[...]
V - defesa do consumidor;”.
3 “Art. 48. O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação
da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor.”.
4 NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Curso de Direito do Consumidor. São
Paulo: Saraiva, 2004. p. 65-69.
5 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Direito do Consumidor. 2. ed.
São Paulo: Atlas. 2010.p.15

10 Balcão do Consumidor

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Já no art. 1º, do Código de Defesa do Consumidor, o
legislador deixou claro que se trata de uma lei de ordem
pública e interesse social. A expressão “ordem pública”
significa que se está diante de normas consideradas
cogentes, ou seja, são normas que não aceitam renúncia,
portanto são inválidos possíveis contratos ou acordos
que busquem afastar a incidência do Código. A lei visa
garantir o equilíbrio aos consumidores, parte vulnerável
da relação.
Passa-se a tratar da definição de consumidor e
fornecedor conforme previsto no CDC.

Consumidor
O conceito de consumidor no CDC está exposto no art.
2º, caput e seu parágrafo único6, completado pelo art. 17
e 297, sendo consumidor toda a pessoa física ou jurídica,
que adquire produtos (bens móveis, imóveis, materiais
ou imateriais) ou serviços (atividade fornecida mediante
remuneração) como destinatário(s) final(s), bem como
a coletividade de pessoas que possam ser afetadas pela
relação de consumo, as vítimas de acidente de consumo,
que mesmo não sendo diretamente consumidoras, foram
atingidas pelo evento danoso e também todas as pessoas
determináveis ou indetermináveis que estão expostas às
práticas comerciais.
De acordo com José Geraldo Brito Filomeno, um
dos integrantes da comissão de juristas que elaborou o
6 “Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza
produto ou serviço como destinatário final. Parágrafo único. Equipara-se a
consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja
intervindo nas relações de consumo.”
7 “Art. 17. Para os efeitos desta Seção, equiparam-
se a consumidores todas as vítimas do evento.”
“Art. 29. Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos
consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas
nele previstas.”

Reflexões sobre o hiperconsumismo 11

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anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor, o conceito
de consumidor adotado pelo código é de caráter econômico,
pois consumidor é todo aquele que adquire no mercado
de consumo bens ou contrata prestações de serviço, como
destinatário final, presumindo-se que agiu para atender
uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de
outra atividade lucrativa.8
Para Othon Sidou,
(...) definem os léxicos como consumidor quem compra
para gastar em uso próprio, concluindo que, consumidor
é qualquer pessoa, natural ou jurídica, que contrata,
para utilização, a aquisição de mercadoria ou prestação
de serviço, independentemente do modo de manifestação
de vontade, isto é, sem forma especial, salvo quando a lei
expressamente a exigir. 9
Contudo, os autores do anteprojeto do CDC discordam
da definição concebida por Othon Sidou, pela constatação
de que as pessoas jurídicas dispõem de forças suficientes
para sua defesa, enquanto os consumidores isolados ou
em coletividade ficam desprotegidos e imobilizados pelos
elevados custos e pela lentidão do sistema judiciário. 10
Entretanto, prevaleceu a inclusão das pessoas jurídicas
como consumidores de produtos e/ou serviços, porém, com o
requisito de serem destinatárias finais, ou seja, não devem
adquirir como insumos ou bens de produção necessários ao
desempenho de suas atividades econômicas. Ressalta-se
ainda que, nas relações de consumo, embora haja uma pessoa
jurídica em relação à outra, deve haver entre consumidor e
8 GRINOVER, Ada Pellegrini. et al. Código Brasileiro de Defesa do
Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2001.
9 Apud GRINOVER, Ada Pellegrini. et al. Código Brasileiro de Defesa
do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 27
10 GRINOVER, Ada Pellegrini. et al. Código Brasileiro de Defesa do
Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2001.

12 Balcão do Consumidor

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fornecedor um desequilíbrio que favoreça o primeiro, pela
razão de que o consumidor geralmente vulnerável, defronta-
se com o poder econômico dos fornecedores e, que possuem
maiores informações e meios de defender-se quando houver
impasses e conflitos de interesse.
Como explica Leonardo de Medeiros Garcia:
Para identificarmos o consumidor, devemos analisar
três elementos que compõe sua conceituação: (i) elemento
subjetivo (pessoa física ou jurídica); (ii) elemento objetivo
(adquire ou utiliza produto e serviço); (iii) elemento teleológico
(destinatário final – finalidade pretendida com a aquisição do
produto ou serviço). 11

Contudo, o conceito legal, ainda que amparado pela


análise dos três elementos (elemento subjetivo, objetivo
e teleológico) se mostra insuficiente na definição de
consumidor. Assim, passa-se, então, a verificar as teorias
e/ou as correntes que auxiliam em tal definição.

Teorias aplicadas na definição de


consumidor
Na definição de consumidor existem duas teorias
ou correntes que buscam identificar o campo de atuação
do Código de Defesa do Consumidor: os finalistas e os
maximalistas.
Para a corrente finalista, a interpretação da expressão
destinatário final deve ser restrita, sendo consumidor
apenas o que adquire ou utiliza o produto ou o serviço,
colocando fim na cadeia de produção. Para esta teoria,
quem utiliza o produto ou o serviço como insumo para
continuar a produzir, obtendo o mesmo para revenda ou
para uso profissional, não é considerado consumidor, visto
que não se enquadra na definição de destinatário final.
11 GARCIA, Leonardo de Medeiros. Código Comentado de Direito do
Consumidor. 4. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008. p. 13.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 13

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Como ensina Claudia Lima Marques:
Para os finalistas, pioneiros do consumerismo, a definição
de consumidor é o pilar que sustenta a tutela especial, agora
concedida aos consumidores. Esta tutela só existe porque o
consumidor é a parte vulnerável nas relações contratuais no
mercado, como afirma o próprio CDC no art. 4.º, inciso I12. Logo,
convém delimitar claramente quem merece esta tutela e quem
não a necessita, quem é o consumidor e quem não é. Propõem,
então, que se interprete a expressão “destinatário final” do art.
2.º de maneira restrita, como requerem os princípios básicos
do CDC, expostos nos arts. 4.º e 6. 13

Conclui ainda que “esta interpretação restringe a


figura do consumidor àquele que adquire (utiliza) um
produto para uso próprio e de sua família; consumidor seria
o não profissional, pois o fim do CDC é tutelar de maneira
especial um grupo da sociedade que é mais vulnerável.”14
Já para a corrente maximalista, a interpretação da
expressão destinatário final deve ser a mais ampla possível,
não importando a finalidade com que a pessoa física ou
jurídica adquiriu ou utilizou o produto ou o serviço, ou seja,
não se leva em conta se será utilizado com fim de obter
lucro ou não, como, por exemplo, o advogado que adquire
computadores para seu escritório.
Quanto aos maximalistas, pondera a autora já citada,
“veem nas normas do CDC o novo regulamento do mercado
de consumo brasileiro, e não normas orientadas para
12 “Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo
o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua
dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a
melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia
das relações de consumo, atendido os seguintes princípios: (Redação dada
pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)
I – reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de
consumo.”
13 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor
– o novo regime das relações contratuais. 5.ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2006.p. 303-305.
14 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor
– o novo regime das relações contratuais, 2006. p. 303-305.

14 Balcão do Consumidor

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proteger somente o consumidor não-profissional”. Porém,
merece destaque o ponto a seguir tratado:
O CDC seria um Código geral sobre o consumo, um Código
para a sociedade de consumo, o qual institui normas e princípios
para todos os agentes do mercado, os quais podem assumir os
papéis ora de fornecedores, ora de consumidores. A definição do
art. 2º deve ser interpretada o mais extensivamente possível,
segundo, esta corrente, para que as normas do CDC possam ser
aplicadas a um número cada vez maior de relações de mercado.
Consideram que a definição do art. 2º é puramente objetiva,
não importando se a pessoa física ou jurídica tem ou não fim
de lucro quando adquire um produto ou utiliza um serviço.
Destinatário final seria o destinatário fático do produto, aquele
que o retira do mercado e o utiliza, o consome, por exemplo,
a fábrica de toalhas que compra algodão para transformar, a
fábrica de celulose que compra carros para o transporte dos
visitantes, o advogado que compra uma máquina de escrever
para seu escritório, ou mesmo o Estado quando adquire canetas
para uso nas repartições e, claro, a dona de casa que adquire
produtos alimentícios para a família. 15

Além das teorias já citadas, ressalta-se que vem sendo


aplicada uma terceira, a qual será exposta e exemplificada a
partir de decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Posicionamento do superior tribunal de


justiça
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), a partir de
2003, vem aplicando uma terceira teoria, que seria uma
subdivisão da primeira, denominada “finalismo mitigado”, que
demonstra maior razoabilidade e prudência na interpretação
da expressão “destinatário final”, que deve ser comprovada
a inegável vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica da
parte consumidora da relação, mesmo que pessoa jurídica.
Conforme se pode verificar pelas decisões que
seguem:
15 Idem, 2006.p. 303-305.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 15

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DIREITO DO CONSUMIDOR. PESSOA JURÍDICA.
NÃO OCORRÊNCIA DE VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC.
UTILIZAÇÃO DOS PRODUTOS E SERVIÇOS ADQUIRIDOS
COMO INSUMOS. AUSÊNCIA DE VULNERABILIDADE.
NÃO INCIDÊNCIA DAS NORMAS CONSUMERISTAS.
1. Inexiste violação ao art. 535 do CPC quando o Tribunal
de origem, embora sucintamente, pronuncia-se de forma
suficiente sobre a questão posta nos autos, sendo certo
que o magistrado não está obrigado a rebater um a um os
argumentos trazidos pela parte se os fundamentos utilizados
tenham sido suficientes para embasar a decisão. 2. O art.
2º do Código de Defesa do Consumidor abarca expressamente
a possibilidade de as pessoas jurídicas figurarem como
consumidores, sendo relevante saber se a pessoa - física ou
jurídica - é “destinatária final” do produto ou serviço. Nesse
passo, somente se desnatura a relação consumerista se o bem
ou serviço passa a integrar a cadeia produtiva do adquirente,
ou seja, torna-se objeto de revenda ou de transformação por
meio de beneficiamento ou montagem, ou, ainda, quando
demonstrada sua vulnerabilidade técnica, jurídica ou
econômica frente à outra parte. 3. No caso em julgamento, trata-
se de sociedade empresária do ramo de indústria, comércio,
importação e exportação de cordas para instrumentos musicais
e afins, acessórios para veículos, ferragens e ferramentas,
serralheria em geral e trefilação de arames, sendo certo que
não utiliza os produtos e serviços prestados pela recorrente
como destinatária final, mas como insumos dos produtos
que manufatura, não se verificando, outrossim, situação de
vulnerabilidade a ensejar a aplicação do Código de Defesa do
Consumidor. (STJ, REsp. 932.557 – SP, Ministro Luis Felipe
Salomão. 07-02-2012).

O Ministro Luis Felipe Salomão, relator do acórdão


referido, explicou que “o conceito de consumidor foi
construído sob ótica objetiva, porquanto voltada para o ato
de retirar o produto ou serviço do mercado, na condição de
seu destinatário final. Nessa linha, afastando-se do critério
pessoal de definição de consumidor, o legislador possibilita
às pessoas jurídicas a assunção dessa qualidade, desde que
adquiram ou utilizem o produto ou serviço como destinatário
final. Sob esse enfoque, desnatura-se a relação consumerista

16 Balcão do Consumidor

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se o bem ou serviço passar a integrar a cadeia produtiva do
adquirente, ou seja, for posto à revenda ou transformado
por meio de beneficiamento ou montagem.” Porém, apontou
que “não se olvida que o dinamismo e a complexidade
das relações sócio-econômicas levaram à necessidade de
aprofundamento desses critérios, criando uma tendência
nova na jurisprudência, concentrada não apenas na figura
do consumidor final imediato, mas também na noção de
vulnerabilidade”, ponderou também o Relator que “nesses
casos, este Tribunal Superior tem mitigado o rigor da
concepção finalista do conceito de consumidor”. Completou
que “verifica-se, assim, que, conquanto consagre o critério
finalista para interpretação do conceito de consumidor, a
jurisprudência do STJ também reconhece a necessidade
de, em situações específicas, abrandar o rigor do critério
subjetivo do conceito de consumidor, para admitir a
aplicabilidade do CDC nas relações entre fornecedores e
consumidores-empresários em que fique evidenciada a
relação de consumo”.
Contudo, no caso concreto verificou-se que a recorrida
não se insere em situação de vulnerabilidade, pois não
se apresenta como sujeito mais fraco da relação, com
necessidade de proteção estatal, sendo confirmado que não
utiliza os produtos e os serviços prestados pela recorrente
como sua destinatária final, mas como insumos dos
produtos que manufatura.
Segue o posicionamento do Superior Tribunal acerca
de um Recurso Especial, cuja recorrente, inconformada
com a decisão colegiada, interpôs o mencionado recurso,
com fundamento no art. 105, inciso III, alíneas “a” e
“c”, da Constituição Federal, sustentando divergência
jurisprudencial e violação ao art. 3º, § 2º, do Código de
Defesa do Consumidor, afirmando, que com base nestes
artigos do CDC, havia relação de consumo.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 17

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CONTRATO DE FACTORING. RECURSO ESPECIAL.
CARACTERIZAÇÃO DO ESCRITÓRIO DE FACTORING COMO
INSTITUIÇÃO FINANCEIRA. DESCABIMENTO. APLICAÇÃO
DE DISPOSITIVOS DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
À AVENÇA MERCANTIL, AO FUNDAMENTO DE SE
TRATAR DE RELAÇÃO DE CONSUMO. INVIABILIDADE. 1. As
empresas de factoring não são instituições financeiras, visto que suas
atividades regulares de fomento mercantil não se amoldam ao conceito
legal, tampouco efetuam operação de mútuo ou captação de recursos
de terceiros. Precedentes. 2. “A relação de consumo existe apenas no
caso em que uma das partes pode ser considerada destinatária final do
produto ou serviço. Na hipótese em que produto ou serviço são utilizados
na cadeia produtiva, e não há considerável desproporção entre o porte
econômico das partes contratantes, o adquirente não pode ser considerado
consumidor e não se aplica o CDC, devendo eventuais conflitos serem
resolvidos com outras regras do Direito das Obrigações”. (REsp
836.823/PR, Rel. Min. SIDNEI BENETI, Terceira Turma, DJ de
23.8.2010). 3. Com efeito, no caso em julgamento, verifica-se que a
ora recorrida não é destinatária final, tampouco se insere em situação
de vulnerabilidade, porquanto não se apresenta como sujeito mais
fraco, com necessidade de proteção estatal, mas como sociedade
empresária que, por meio da pactuação livremente firmada com a
recorrida, obtém capital de giro para operação de sua atividade
empresarial, não havendo, no caso, relação de consumo. 4. Recurso
especial não provido.” (STJ, REsp. 938.979 - DF, Ministro Luís Felipe
Salomão. 19-06-2012).

Em seu voto, o Ministro Luís Felipe Salomão justificou


que “as empresas de factoring não são instituições
financeiras, visto que as empresas que exercem atividade
de fomento mercantil não se amoldam ao conceito legal”
e que “a ora recorrida não se insere em situação de
vulnerabilidade, porquanto não se apresenta como sujeito
mais fraco, com necessidade de proteção estatal, mas como
sociedade”, salientando ainda que “embora o contrato em
apreço não se caracterize como mútuo e a recorrida não seja
instituição financeira, mutatis mutandis, este Colegiado,
em recente precedente, decidiu que nas operações
para obtenção de capital de giro, não são aplicáveis as
disposições da legislação consumerista, visto que não

18 Balcão do Consumidor

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se vislumbra na empresa que obtém o aludido capital a
figura do consumidor”. De tal sorte, o acórdão sentenciou
que contrato de factoring para aquisição de créditos não é
coberto pelo direito do consumidor.
Já o caso a seguir trata-se de um Recurso Especial de
um caminhoneiro que buscava a proteção do CDC, porque
o veículo adquirido apresentou defeitos de fabricação,
porém o caminhão era utilizado para prestar serviços que
lhe possibilitariam economias para sustento próprio e de
sua família. O recurso foi atendido.
CIVIL. RELAÇÃO DE CONSUMO. DESTINATÁRIO
FINAL. A expressão destinatário final, de que trata o art.
2º, caput, do Código de Defesa do Consumidor abrange quem
adquire mercadorias para fins não econômicos, e também
aqueles que, destinando-os a fins econômicos, enfrentam o
mercado de consumo em condições de vulnerabilidade; espécie
em que caminhoneiro reclama a proteção do Código de Defesa
do Consumidor porque o veículo adquirido, utilizado para
prestar serviços que lhe possibilitariam sua mantença e a da
família, apresentou defeitos de fabricação. Recurso especial não
conhecido. (STJ, REsp 716877 / SP, Ministro Ari Pargendler,
22/03/2007).

Para o relator, Ministro Ari Pargendler, “A noção de


destinatário final não é unívoca. Pode ser entendida como
o uso que se dê ao produto adquirido. Sob esse viés, seria
consumidora a pessoa jurídica que utilizasse o produto
para fins não econômicos. Isso poderia reduzir a proteção
legal do consumidor a pessoas jurídicas sem finalidade
lucrativa”. Porém, completou afirmando que “a doutrina e a
jurisprudência, por isso, vêm ampliando a compreensão da
expressão ‘destinatário final’ para aqueles que enfrentam
o mercado de consumo em condições de vulnerabilidade.”
Concluindo em seu voto, “uma pessoa jurídica de vulto que
explore a prestação de serviços de transporte tem condições
de reger seus negócios com os fornecedores de caminhões
pelas regras do Código Civil. Já o pequeno caminhoneiro,

Reflexões sobre o hiperconsumismo 19

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que dirige o único caminhão para prestar serviços que lhe
possibilitarão sua mantença e a da família, deve ter uma
proteção especial, aquela proporcionada pelo Código de
Defesa do Consumidor”.
Na mesma linha de entendimento foi o voto da Ministra
Nancy Andrighi no Recurso Especial nº 1080719/MG.
PROCESSO CIVIL E CONSUMIDOR. RESCISÃO
CONTRATUAL CUMULADA COM INDENIZAÇÃO.
FABRICANTE. ADQUIRENTE. FRETEIRO.
HIPOSSUFICIÊNCIA. RELAÇÃO DE CONSUMO.
VULNERABILIDADE. INVERSÃO DO ÔNUS PROBATÓRIO.
- Consumidor é a pessoa física ou jurídica que adquire produto
como destinatário final econômico, usufruindo do produto
ou do serviço em beneficio próprio. - Excepcionalmente, o
profissional freteiro, adquirente de caminhão zero quilômetro,
que assevera conter defeito, também poderá ser considerado
consumidor, quando a vulnerabilidade estiver caracterizada
por alguma hipossuficiência quer fática, técnica ou econômica.
- Nesta hipótese esta justificada a aplicação das regras de
proteção ao consumidor, notadamente a concessão do benefício
processual da inversão do ônus da prova. Recurso especial
provido.” (STJ, REsp 1080719 / MG, Ministra Nancy Andrighi,
10/02/2009).

A terceira turma também reconheceu, no julgamento


que segue, a possibilidade de aplicação da norma
consumerista a uma costureira que propôs ação contra
uma empresa fabricante de máquinas e fornecedora de
softwares, suprimentos, peças e acessórios para atividade
confeccionista. A costureira havia comprado uma máquina
de bordado em 20 prestações e protestava contra uma
cláusula do contrato que elegia o foro de São Paulo, sede
da empresa, para dirimir eventuais controvérsias.
PROCESSO CIVIL E CONSUMIDOR. CONTRATO
DE COMPRA E VENDA DE MÁQUINA DE BORDAR.
FABRICANTE. ADQUIRENTE. VULNERABILIDADE.
RELAÇÃO DE CONSUMO. NULIDADE DE CLÁUSULA
ELETIVA DE FORO. 1. A Segunda Seção do STJ, ao julgar o
REsp 541.867/BA, Rel. Min. Pádua Ribeiro, Rel. p/ Acórdão o

20 Balcão do Consumidor

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Min. Barros Monteiro, DJ de16/05/2005, optou pela concepção
subjetiva ou finalista de consumidor. 2. Todavia, deve-se
abrandar a teoria finalista, admitindo a aplicação das normas
do CDC a determinados consumidores profissionais, desde
que seja demonstrada a vulnerabilidade técnica, jurídica ou
econômica. 3. Nos presentes autos, o que se verifica é o conflito
entre uma empresa fabricante de máquinas e fornecedora de
softwares, suprimentos, peças e acessórios para a atividade
confeccionista e uma pessoa física que adquire uma máquina
de bordar em prol da sua sobrevivência e de sua família,
ficando evidenciada a sua vulnerabilidade econômica. 4. Nesta
hipótese, está justificada a aplicação das regras de proteção
ao consumidor, notadamente a nulidade da cláusula eletiva
de foro. 5. Negado provimento ao recurso especial.” (STJ,
REsp 1010834 / GO, Ministro Nancy Andrighi, 03/08/2010).

Em seu voto a Ministra relatora salientou que “o


consumidor foi conceituado como o destinatário final no
sentido econômico, ou seja, aquele que consome o bem
ou o serviço sem destiná-lo à revenda ou ao insumo de
atividade econômica.”. Afirmando, também, que “ainda
que o adquirente do bem não seja o seu destinatário final
econômico, poderá ser considerado consumidor, desde que
seja constatada a sua hipossuficiência, na relação jurídica,
perante o fornecedor. No processo em exame, o que se
verifica é o conflito entre uma empresa fabricante de
máquinas e fornecedora de softwares, suprimentos, peças
e acessórios para a atividade confeccionista e uma pessoa
física que adquire uma máquina de bordar em prol da sua
sobrevivência e de sua família, ficando evidenciada a sua
vulnerabilidade econômica.” Por fim, a Ministra explicou
e concluiu que está plenamente justificada a aplicação
das regras de proteção ao consumidor à costureira e,
notadamente, a nulidade da cláusula eletiva de foro.
Nota-se que, em determinadas situações, tem havido
um abrandamento por parte do Superior Tribunal de
Justiça com relação à definição de consumidor pessoa
jurídica, tendo como requisito a vulnerabilidade.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 21

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Fornecedor
Quanto ao outro polo da relação de consumo, o
Código traz a definição em seu art. 3º16, sendo fornecedor
qualquer pessoa física, que atua mediante desempenho de
atividade mercantil ou civil de forma habitual, oferecendo
no mercado de consumo produtos ou serviços, e qualquer
pessoa jurídica, da mesma forma, porém, em associação
mercantil ou civil de forma habitual.
Aborda também o art. 3º do CDC que o fornecedor
pode ser público ou privado, sendo no primeiro caso
o Poder Público, por si ou por suas empresas que
desempenham atividades de produção, bem como as
empresas concessionárias de serviços públicos, mediante
remuneração, salientando, porém, que nesse aspecto
encontra-se consagrado o direito dos consumidores no art.
6º do CDC, principalmente em seu inciso X17, que trata da
adequada e da eficaz prestação dos serviços público.
Abrange ainda o dispositivo citado, tanto os fornecedores
nacionais quanto os fornecedores estrangeiros que exportam
produtos ou serviços para o nosso País, sendo assim, arcam
com as consequências e as responsabilidades por danos ou
reparos o importador, que, posteriormente, poderá cobrá-las
dos exportadores, conforme disposto no art. 12 do CDC18. Já
os entes despersonalizados, que trata o art. 3º, exemplifica-
16 “Art. 3º Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada,
nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que
desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção,
transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização
de produtos ou prestação de serviços.”
17 “Art. 6º São direitos básicos do consumidor:
X - a adequada e eficaz prestação dos serviços públicos em geral.”
18 “Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e
o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela
reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes
de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação,
apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por
informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos.”

22 Balcão do Consumidor

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se com a massa falida, pois mesmo que uma pessoa jurídica
venha a falir, os serviços ou os produtos que ela ofereceu
permanecerão sob a proteção do CDC.
Também se enquadram como entes despersonalizados
as pessoas jurídicas que não adquirem personalidade
jurídica (sociedade em comum e sociedade em conta de
participação).
Já as atividades desempenhadas pelos fornecedores,
o Código define como “produção, montagem, criação,
construção, transformação, importação, exportação,
distribuição ou comercialização de produtos ou serviços”,
ou seja, a condição de fornecedor está ligada diretamente
com a atividade que cada um realiza, nascendo disto a
responsabilidade por danos causados aos consumidores, ou
pelo fato do produto, termo utilizado pelo próprio CDC.
Ressalta-se, porém, que fornecedor é gênero e que
o fabricante, o produtor, o construtor, o transformado, o
importador, o exportador, o distribuidor, o comerciante e o
prestador de serviços são considerados espécies, contudo,
todos são responsabilizados solidariamente pela lei
consumerista, que os define como “fornecedor”.
Conforme Rizzatto Nunes:
Não há exclusão alguma do tipo de pessoa jurídica, já que
o CDC é genérico e busca atingir todo e qualquer modelo. São
fornecedores as pessoas jurídicas públicas ou privadas, nacionais
ou estrangeiras, com sede ou não no País, as sociedades anônimas,
as por quotas de responsabilidade limitada, as sociedades civis,
com ou sem fins lucrativos, as fundações, as sociedades de
economia mista, as empresas públicas, as autarquias, os órgãos
da Administração direta etc. 19

Após a definição dos conceitos de consumidor e


fornecedor, bem como das teorias aplicas no auxílio da
definição de consumidor e das decisões do Superior Tribunal
de Justiça, nas quais ficam evidentes a preocupação e a
19 NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor, 2004.
p. 86.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 23

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utilização da vulnerabilidade para demonstrar quem são
efetivamente consumidores, será tratado dos serviços
públicos essências e contínuos prestados por empresas
concessionárias, bem como a possibilidade de interrupção
desses serviços pela inadimplência dos consumidores.

Serviços públicos essenciais e


contínuos
Neste tópico se dará ênfase aos serviços públicos que
são exercidos sob a modalidade de concessão, para tanto,
inicialmente, deve-se destacar que não restam dúvidas
da existência de uma relação de consumo nos serviços
públicos prestados por empresas concessionárias, ou seja,
aqueles oferecidos sob o regime de concessão. Pois, como
já exposto, o próprio Código de Defesa do Consumidor, em
seus art. 2º e 3º, que tratam dos conceitos de consumidor
e fornecedor respectivamente, nos impõe a existência da
relação de consumo.
Serviços públicos concedidos são todos aqueles que
um particular executa em seu nome e por sua conta e
risco, sendo remunerado mediante delegação contratual
do Poder Público concedente. Ressalta-se, contudo, que o
serviço concedido é serviço do Poder Público, que apenas é
executado por particular em razão do contrato de concessão.
Já serviços essenciais são todos aqueles em que se atribui
o desenvolvimento de uma sociedade, ou seja, aqueles
que são necessários para que se possa ter uma vida com o
mínimo de dignidade, para Rizzatto Nunes “há no serviço
considerado essencial uma perspectiva real e concreta
de urgência, isto é, necessidade concreta e efetiva de sua
prestação.”, explica ainda o citado autor, “o serviço de
fornecimento de água para uma residência não habituada
não se reveste dessa urgência. Contudo, o fornecimento

24 Balcão do Consumidor

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de água para uma família é essencial e absolutamente
urgente, uma vez que as pessoas necessitam de água para
sobreviver, esta é a preocupação da norma.”20.
Por falta de uma legislação específica que defina
e regulamente os serviços públicos essenciais, vem-se
utilizando analogamente a Lei de Greve, Lei nº 7.783, de
28 de junho de 1989, para defini-los. Tal lei, em seu art.
1021, trata dos serviços que podem ser considerados como
de caráter essenciais.
Contudo, além de essenciais, tais serviços elencados
são, na verdade, indispensáveis para a vida, sendo pilares
de sustentação de uma sociedade.  Dessa forma, nenhum
dos serviços mencionados pode ser interrompido. O CDC
é taxativo e não exemplificativo, sendo assim, não abre
exceções, todos os serviços essenciais são contínuos.
Cuidou o CDC de estabelecer, em seu art. 2222, que
os órgãos públicos, ainda que por si ou por suas empresas
concessionárias, devem fornecer serviços adequados,
20 Idem., 2004. p.104 .
21 Art. 10. São considerados serviços ou atividades essenciais:
I ­ Tratamento e abastecimento de água; Produção e distribuição de energia
elétrica, gás e combustíveis.
II ­Assistência médica e hospitalar;
III ­Distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos;
IV ­Funerários;
V ­Transporte coletivo;
VI ­Captação e tratamento de esgoto e lixo    
VII ­Telecomunicações;
VIII ­ Guarda, uso e controle de substâncias radioativas, equipamentos e
materiais nucleares;
IX ­Processamento de dados ligados a serviços essenciais;
X ­Controle do tráfico aéreo;
XI ­Compensação bancária.
22 “Art. 22. Os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias,
permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são
obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos
essenciais, contínuos. Parágrafo único. Nos casos de descumprimento,
total ou parcial, das obrigações referidas neste artigo, serão as pessoas
jurídicas compelidas a cumpri-las e a reparar os danos causados, na forma
prevista neste código.”

Reflexões sobre o hiperconsumismo 25

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eficientes, seguros e, quando essenciais, devem ser contínuos,
e em caso de descumprimento, ainda que total ou parcial,
fixou-se a “pena” de cumprir as obrigações estabelecidas
em contrato, bem como a de reparar os danos causados aos
consumidores lesados. Além do já referido art. 22 do CDC, o
art. 37, § 6º 23 da Constituição Federal fixou que as pessoas
jurídicas públicas ou privadas que prestam serviços públicos
devem responder pelos danos causados a terceiros.
Portanto, com a interrupção do fornecimento de um
serviço público essencial pela prestadora, não estará
ela ferindo somente os arts. 22 e 4224 (no que tange aos
paradigmas de cobranças) do CDC, estará ela desrespeitando
a Constituição Federal; pois nenhuma lei ou norma pode
ter validade maior que a Constituição, sendo que nesta
existem ainda as cláusulas pétreas, as quais não podem
ser modificadas. Dentre esses princípios, destaca-se o art.
1º, inciso III, que define a dignidade da pessoa humana
como princípio fundamental; o art. 5º caput, que garante a
segurança e a vida, que dever sadia e de qualidade; o art.
225, que traz a garantia do meio ambiente ecologicamente
equilibrado; e o caput do art. 6º, o qual fixa o direito
necessário à saúde.
Ocorre que a Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995,
que dispõe sobre o regime de concessão e permissão da
prestação de serviços públicos, prevê a possibilidade de
interrupção dos serviços essenciais, com base em seu art. 6º,
§ 3, inciso II25, o qual não caracteriza como descontinuidade
23 “Art. 37, § 6º. As pessoas jurídicas de direito público e as de direito
privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus
agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de
regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”
24 “Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor não inadimplente não será
exposto ao ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento
ou ameaça.”
25  “Art. 6o  Toda concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço
adequado ao pleno atendimento dos usuários, conforme estabelecido nesta
Lei, nas normas pertinentes e no respectivo contrato.

26 Balcão do Consumidor

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a interrupção em situação de inadimplemento do usuário;
considerado o interesse da coletividade e a partir do referido
artigo, as concessionárias de serviços vêm alegando que
estão agindo dentro de uma permissão legal.
Convém lembrar que a energia elétrica, por exemplo,
é um serviço público essencial à saúde e à segurança dos
consumidores, previsto no art. 10, inciso I, da Lei n°
7.783/8926, conforme já mencionado, e reconhecido pela
Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) no art. 11,
inciso I, da Resolução n° 414/201027. Com isso, o acesso à
energia é parte do direito a uma vida digna, como condição
fundamental para o bem-estar e para que o cidadão tenha
o mínimo de conforto.

Taxa ou tarifa
A definição de taxa estabelece que a mesma é um
tributo, instituída unilateralmente pelo Estado, com o
intuito de o particular efetuar seu pagamento, seria, então,
uma contraprestação de serviço público ou de benefício feito.
De acordo com o Código Tributário Nacional, em seu art.
7728, serão objetos de taxas os serviços, quando utilizados

§ 3o Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em


situação de emergência ou após prévio aviso, quando:
I - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e,
II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da
coletividade.”
26 “Art. 10 São considerados serviços ou atividades essenciais:
I - tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia
elétrica, gás e combustíveis;”
27 “Art. 11. São considerados serviços ou atividades essenciais aqueles cuja
interrupção coloque em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a
segurança da população:
I – tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia
elétrica, gás e combustíveis;”
28 “Art. 77. As taxas cobradas pela União, pelos Estados, pelo Distrito
Federal ou pelos Municípios, no âmbito de suas respectivas atribuições, têm
como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização,

Reflexões sobre o hiperconsumismo 27

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de forma efetiva ou potencial e quando forem específicos e
divisíveis. Taxa é então o tributo cobrado pela utilização
de serviço posto à disposição ou até mesmo custeado pelo
Estado em favor de quem paga, o conceito legal de tributo
encontra-se no art. 3º29 do Código Tributário Nacional, Lei
nº 5.172 de 25 de outubro de 1966.
Ocorre o uso efetivo quando o serviço ou a atividade
é provocado pelo contribuinte, como, por exemplo, o
fornecimento de certidões ou da prestação de atividade
jurisdicional. Se o serviço não é de utilização compulsória,
somente o seu consumo irá ensejar a cobrança de taxa.
Já usar um serviço de forma potencial significa que
a mera disponibilidade já autoriza a tributação, ou seja,
a taxa por serviço fruível. Como, por exemplo: o serviço
de coleta de lixo, em que mesmo que o contribuinte não
faça uso, terá que pagar por ele. Porém, se a utilização é
compulsória, ainda que não ocorra efetivamente o uso, a
taxa poderá ser cobrada.
O outro ponto a ser analisado a respeito de taxa são os
serviços específicos e divisíveis. Serviços Públicos Específicos
são todos aqueles que são prestados a uma categoria
delimitada de usuários. Em contrapeso, Serviços Públicos
Divisíveis são aqueles em que os benefícios da prestação
se irradiam para toda a coletividade, indistintamente,
impossibilitando a sua fruição estritamente individual.
Para Aliomar Baleeiro, taxa é “o tributo cobrado de
alguém que se utiliza de serviço público especial e divisível,
de caráter administrativo ou jurisdicional, ou o tem a sua
disposição, e ainda quando provoca em seu benefício ou por

efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao


contribuinte ou posto à sua disposição.”
29 “Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou
cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito,
instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente
vinculada.”

28 Balcão do Consumidor

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ato seu, despesa especial dos cofres públicos.”30
Ressalta-se que a taxa, por ser tributo, é compulsória,
por isso pode ser cobrada, mesmo que não exista efetiva
utilização do serviço, basta unicamente a sua oferta ao
público (utilização potencial).
Passa-se, então, à definição de tarifa, que é o valor
cobrado pela prestação de serviço público por empresas
públicas, sociedades, concessionárias ou permissionárias.
As tarifas são preços praticados pelo Estado por meio de
suas empresas que receberam a delegação contratual para
executar algum serviço público. Tarifa é uma remuneração
pela utilização de um serviço regido pelo regime contratual
de direito público.
Ao se verificar quais espécies de serviços públicos
estão submetidas ao disposto no Código de Defesa do
Consumidor, depara-se com três correntes, de acordo com
Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer:
A primeira corrente delas entende que o CDC aplica-
se a qualquer serviço público, seja próprio ou impróprio,
pois o Estado, ao prestá-los, pode ser conceituado como
fornecedor, nos termos do art. 3º do CDC. 31
Já a segunda corrente, no ponto de vista do mesmo
autor,
(...) entende que o CDC aplica-se apenas aos serviços
públicos específicos e divisíveis remunerados por taxa ou preço
público (tarifa). Os serviços públicos gerais, custeados pelos
impostos, não comportando remuneração específica, não se
incluem nas relações de consumo. 32

Por fim, a respeito da terceira corrente, pontua o


autor,
30 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. atualizada por
Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense. 1997. p. 540.
31 Roberto Augusto Castellanos Pfeiffer. Aplicação do Código de Defesa
do Consumidor aos serviços públicos. Revista de Direito do Consumidor
vol.65. São Paulo: RT - Revista dos Tribunais, 2008, p. 230-231.
32 Idem, 2008, p. 230-231.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 29

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Para terceira corrente, o Código de Defesa do Consumidor
aplica-se exclusivamente aos serviços públicos remunerados
mediante tarifa ou preço público e prestados uti singuli. Não
estão abarcadas pela proteção do CDC os serviços públicos
gerais remunerados por taxa ou imposto. 33

Acompanhando o entendimento de Roberto Pfeiffer


acerca da terceira corrente, o CDC define como serviço
qualquer atividade fornecida no mercado de consumo
mediante remuneração, sendo assim, os serviços que são
custeados por meio de tributação (arrecadação de impostos)
não estão submissos ao disposto no CDC, visto também que
o Estado não deve ser considerado consumidor por receber
uma remuneração advinda de tributação.
Para Rizzatto Nunes, “a remuneração do serviço
público, adotando o regime tarifário, tem a mesma
concepção de preço, mas, evidentemente, não se confunde
com o preço privado, cuja amplitude nasce num contexto
de fixação pelo fornecedor, dentro dos parâmetros e com
os limites constitucionais.”, ressaltando que “com ou sem o
pagamento do preço (tarifa), o Estado não pode eximir-se
de prestar o serviço público, como determina a lei.”34
Ainda sob o pensamento doutrinário do referido autor,
“só há um caminho para o prestador do serviço essencial
suspender o fornecimento desse serviço: é ele propor ação
judicial para cobrar seu crédito e nessa ação comprovar que o
consumidor está agindo de má-fé ao não pagar as contas.” 35
Com isso, fica claro que, quando a relação se tratar de
cobrança mediante tarifa, existe incidência do Código de
Defesa do Consumidor, como, por exemplo, fornecimento
de água, esgoto e energia elétrica. Por outro lado, quando
a relação refere-se a taxas e impostos, não se terá
caracterizada a incidência do CDC.
33 Idem, 2008, p. 230-231.
34 NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Curso de Direito do Consumidor, 2004.
p. 109-111.
35 Idem, 2004. p. 109-111.

30 Balcão do Consumidor

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Decisões do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul
A jurisprudência do egrégio Tribunal do Estado do
Rio Grande do Sul não possui um posicionamento pacífico
acerca da interrupção dos serviços públicos essenciais
pela inadimplência dos consumidores. Dentre os três
casos analisados abaixo, dois defendem que os serviços
essenciais não podem ser interrompidos e um demonstra
que a continuidade na prestação do serviço é condicionada
ao seu regular pagamento.
A Desembargadora Marilene Bonzanini Bernardi,
na Apelação Cível nº 70050225770, que segue abaixo,
fundamentou seu voto demonstrando que “o serviço prestado
pela demandada tem caráter essencial, imprescindível
hodiernamente à dignidade do cidadão, estando as
prestadoras de serviço público obrigadas a oferecê-lo de
maneira adequada, contínua, eficiente e segura.”
APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL.
DANOS MORAIS. CORTE NO FORNECIMENTO DE
ENERGIA ELÉTRICA. EXISTÊNCIA DE INADIMPLÊNCIA
POR PARTE DO AUTOR. PAGAMENTO DO DÉBITO.
EXIGÊNCIA DE PACTUAÇÃO DE CONFISSÃO DE DÍVIDA
DE VALOR AINDA NÃO VENCIDO, COM PARCIAL
PAGAMENTO DESTE. DEMORA NO RESTABELECIMENTO
DO SERVIÇO. PRAZO RAZOÁVEL. RESOLUÇÃO Nº 456/00
DA ANEEL. DANOS MORAIS DECORRENTES DA MÁ
PRESTAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO ESSENCIAL. DEVER
DE INDENIZAR. DANOS MORAIS CONFIGURADOS.
DANOS IN RE IPSA. QUANTUM INDENIZATÓRIO.
CRITÉRIOS PARA FIXAÇÃO. APELAÇÃO PROVIDA.”
(Apelação Cível Nº 70050225770, Nona Câmara Cível, Tribunal
de Justiça do RS, Relator: Marilene Bonzanini Bernardi,
Julgado em 10/10/2012).

Já no Agravo nº 70050713742, o Desembargador


Carlos Roberto Lofeno Canibal fundamentou seu voto
falando que a pretensão de corte de fornecimento de energia

Reflexões sobre o hiperconsumismo 31

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elétrica não encontra amparo na lei e na lógica razoável.
Mencionou que, de fato existe, uma legislação que é
previsto o corte no fornecimento de energia quando houver
inadimplemento do consumidor, porém, ressaltou que a
lei veda práticas abusivas, uma vez que tal ato se traduz
em coação ilegal para pagamento do débito. Nas próprias
palavras do Desembargador, “a negativa ao fornecimento
de energia elétrica como coação ao pagamento de débito
antigo, mostra-se ilegal, injusto e irrazoável, devendo ser
afastado, mormente porque possui a concessionária, meios
próprios para a cobrança de seus créditos.
AGRAVO EM APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO
PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO DECLARATÓRIA.
RECONVENÇÃO. CORTE NO FORNECIMENTO DE
ENERGIA ELÉTRICA COMO MEIO DE COAÇÃO AO
PAGAMENTO DE DÉBITO ANTIGO. PRECEDENTES
DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. CRITÉRIO DE
CÁLCULO. EXAME DA PROVA. DÉBITO RECALCULADO.
CUSTO ADMINISTRATIVO. 1. Mostra-se ilegal, injusto e
irrazoável o procedimento da fornecedora de energia elétrica,
por meio do seu preposto, em cortar o fornecimento deste bem
essencial em propriedade do consumidor. A energia elétrica é,
na atualidade, um bem essencial à população, constituindo-
se serviço público indispensável subordinado ao princípio da
continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível
a sua interrupção. Os artigos 22 e 42, do Código de Defesa
do Consumidor, aplicam-se às empresas concessionárias de
serviço público, permissionárias ou sob qualquer outra forma
de empreendimento. O corte da eletricidade, como forma de
compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola
os limites da legalidade. Não há de se prestigiar atuação da
justiça privada no Brasil, especialmente, quando exercida
por credor econômica e financeiramente mais forte, em largas
proporções, do que o devedor. Afronta, se assim fosse admitido,
aos princípios constitucionais da inocência presumida e da
ampla defesa. O direito do cidadão de utilizar-se dos serviços
públicos essenciais para a sua vida em sociedade deve ser
interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se utiliza.
IMPOSSIBILIDADE DE SUSPENSÃO DO FORNECIMENTO
DE ENERGIA ELÉTRICA, EM FACE DA PROPOSITURA

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DE RECONVENÇÃO. VOTO DIVERGENTE DO RELATOR
QUANTO AO FUNDAMENTO. 2. O cálculo adotado para a
elaboração do valor devido, conforme entendimento adotado
por este órgão fracionário, será aquele previsto no art. 130,
inc. III, da Resolução Normativa nº 414/2010, da ANEEL:
“utilização da média dos 3 (três) maiores valores disponíveis de
consumo mensal de energia elétrica, proporcionalizados em 30
dias, e de demanda de potências ativas e reativas excedentes,
ocorridos em até 12 (doze) ciclos completos de medição regular,
imediatamente anteriores ao início da irregularidade”. 3.
O adicional de custo administrativo deve ser cobrado na
forma estabelecida na Resolução Homologatória nº 1.058, da
ANEEL, de 9 de setembro de 2010. 4. Mediante demonstração
de situação econômica que não lhe permita pagar as custas do
processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento
próprio ou da família, será concedido ao interessado o benefício
da gratuidade da justiça. RECURSO DESPROVIDO. VOTO
DIVERGENTE DO RELATOR QUANTO AO FUNDAMENTO.
(Agravo Nº 70050713742, Primeira Câmara Cível, Tribunal
de Justiça do RS, Relator: Carlos Roberto Lofego Canibal,
Julgado em 26/09/2012).

Contudo, segue uma decisão monocrática da Vigésima


Segunda Câmara Cível, proferida pelo Desembargador
Carlos Eduardo Zietlow Duro, que em seu voto ressaltou
que “a continuidade da prestação do serviço é condicionada
ao regular pagamento das tarifas”. Explicou ainda que
“existente débito, lícita a suspensão do fornecimento
de água enquanto não pago”, fundamentando que “não
pode ser admitido é que o demandado, responsável pelo
fornecimento de água, que necessita dos recursos advindos
da cobrança da tarifa para manter e melhorar a prestação
dos serviços, fique privado do numerário e seja compelido a
prestar o serviço, sem receber a devida contraprestação”.
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PÚBLICO NÃO
ESPECIFICADO. FORNECIMENTO DE ÁGUA.
DÉBITO DEVIDO. CORTE NO FORNECIMENTO.
INADIMPLEMENTO. EXERCÍCIO REGULAR DE DIREITO.
Não obstante o fornecimento de água seja essencial, a
continuidade de prestação do serviço é condicionada ao regular

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pagamento das tarifas, sob pena de supressão de recursos
necessários para a prestação do serviço, agindo a demandada
em exercício regular de direito. Interpretação do artigo 22 do
CDC. Precedentes do TJRGS e STJ. Apelação a que se nega
seguimento. (Apelação Cível Nº 70051156461, Vigésima
Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator:
Carlos Eduardo Zietlow Duro, Julgado em 27/09/2012).

Como se pode notar, ainda é divergente o posicionamento


adotado no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul com
relação à interrupção dos serviços essenciais em decorrência
da inadimplência dos consumidores. Para que se possa
aprofundar a discussão, passa-se a analisar as decisões do
Superior Tribunal de Justiça frente a este assunto.

Entendimento do Superior Tribunal DE


Justiça
O posicionamento do Superior Tribunal de Justiça
acerca da interrupção de serviços públicos essenciais, tais
como água e energia elétrica, encontra-se consolidado no
sentido em que não se pode suspender o serviço quando tal
interrupção pressupõe o inadimplemento de conta regular,
relativa ao mês de consumo, sendo inviável a suspensão do
abastecimento do serviço em decorrência de débitos antigos
e também de faturas que estão sendo discutidas no Poder
Judiciário, como se pode observar no acórdão:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO
REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL.
AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211/
STJ. SERVIÇO DE ÁGUA E ESGOTO. TARIFA SOCIAL.
SÚMULAS 7/STJ E 280/STF. INVIÁVEL INTERRUPÇÃO DO
FORNECIMENTO. DÉBITOS PRETÉRITOS. 1. Trata-se na
origem de Ação de Obrigação de Fazer que visa à manutenção de
fornecimento de serviço essencial, com emissão mensal de fatura
com valor de tarifa social. A sentença de procedência parcial
foi mantida pelo Tribunal a quo. 2. É inadmissível Recurso
Especial quanto a questão não apreciada pelo Tribunal local, a

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despeito da oposição de Embargos Declaratórios. Incidência da
Súmula 211/STJ. 3. Inexiste contradição em afastar a alegada
violação do art. 535 do CPC e, ao mesmo tempo, não conhecer do
mérito da demanda por ausência de prequestionamento, desde
que o acórdão recorrido esteja adequadamente fundamentado.
4. Sobre a verificação dos requisitos necessários à inserção no
programa de tarifa social, identifico que o acórdão recorrido se
vale do Decreto 25.438/1999 e da prova dos autos para acolher
a pretensão do agravado. Aplicam-se, na hipótese, as Súmulas
280/STF e 7/STJ. 5. A jurisprudência do STJ se firmou no
sentido da impossibilidade de suspensão do fornecimento de
serviços essenciais, como a água, para cobrança de débitos
pretéritos. 6. Agravo Regimental não provido. (STJ, AgRg no
AREsp 177397 / RJ, Ministro Herman Benjamin, 18.09.2012)

Em seu voto o Ministro Herman de Vasconcellos e


Benjamin reiterou que é firme a jurisprudência da Corte
Superior de Justiça no sentido da impossibilidade de
suspensão de serviços essenciais, tais como o fornecimento
de energia elétrica e água, em função da cobrança de
débitos pretéritos.

Considerações finais
A opção do legislador constituinte em proteger
o consumidor, com status de direito fundamental e
determinar que a elaboração de um Código de Proteção e
Defesa do Consumidor se deve a uma presunção de que
todo o consumidor é vulnerável, é ele a parte mais fraca
na relação jurídica de consumo e que precisa ser protegido
pelo Estado.
Com relação ao fornecimento de serviços públicos
essenciais, o entendimento é que estes devem ser
disponibilizados de forma contínua, mesmo no caso de
inadimplência de débitos pretéritos do consumidor. A
interrupção não pode ser feita de maneira ex-abrupto
como forma de constranger o consumidor e forçá-lo ao
pagamento da conta, sob pena de, mais uma vez, ferir o

Reflexões sobre o hiperconsumismo 35

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CDC, o qual estabelece que o consumidor não pode ser
exposto ao ridículo nem submetido a qualquer forma de
constrangimento ou ameaça. O fornecedor deve utilizar
dos meios legais para fazer a cobrança quando houver a
inadimplência do usuário como estabelece próprio o CDC.

Referências
BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. atualizada
por Misabel Abreu Machado Derzi. Rio de Janeiro: Forense. 1997.
BRASIL, Código de Defesa do Consumidor, Lei nº 8.078 de 11 de setembro
de 1990.
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL, Lei nº 7.783 de 28 de junho de 1989.
BRASIL, Lei nº 8.987 de 13 de fevereiro de 1995.
CAPUCHO, Fábio Jun. O Poder Público e as Relações de Consumo. Revista
de Direito do Consumidor vol. 41. São Paulo: RT – Revista dos Tribunais.
2002.
FILHO, Sérgio Cavalieri. Programa de Direito do Consumidor. 2. ed.
São Paulo: Atlas, 2010.
GARCIA, Leonardo de Medeiros. Código Comentado De Direito Do
Consumidor. 4. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2008.
GRINOVER, Ada Pellegrini... [et al.]. Código Brasileiro de Defesa do
Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2001.
MARQUES, Claudia Lima. Contratos No Código De Defesa Do
Consumidor: O Novo Regime das Relações Contratuais. 5. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2006.
NUNES, Luiz Antonio Rizzatto. Curso De Direito Do Consumido: Com
Exercícios. 2. ed. Ver., modif. E atual. São Paulo: Saraiva, 2004.
PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Aplicação do Código de Defesa
do Consumidor aos serviços públicos. Revista de Direito do Consumidor
vol.65. São Paulo: RT - Revista dos Tribunais, 2008.
PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Serviços públicos concedidos e
proteção do consumidor. Revista de Direito do Consumidor vol. 36. São
Paulo: RT - Revista dos Tribunais, 2000.

36 Balcão do Consumidor

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Ações coletivas
de Direito Bancário

Ref.: – Processo movido por idosos, que exige


tramitação preferencial e prioritária sobre as ações
individuais e deve ter duração razoável, por força
dos arts. 5º, LXXVIII, da CF/88, art. 1.211-A, do CPC
e art. 71 da Lei nº 10.741/03 (Estatuto do Idoso).
INSTITUTO DE DEFESA DO CIDADÃO,
associação civil sem fins lucrativos, inscrita no CNPJ
sob o nº 05.499.419/0001-53, com sede na Rua Leoberto
Leal, 291, bairro São Pedro, Porto União – SC, neste
ato representado por seu Presidente, por meio de seus
procuradores legalmente habilitados, vem à presença de
Vossa Excelência propor a presente
AÇÃO COLETIVA DO CONSUMIDOR
COM PEDIDO DE TUTELA INIBITÓRIA DE
URGÊNCIA,
com fulcro nos arts. 1º, I e III, 7, X e 170, todos
da Constituição da República Federativa do Brasil; arts.
122, 187, 373, II, 421, 422 e 423, todos do Código Civil;
arts. 6º, VIII, 51, 81, II e III, 82, IV, §1º, 91, todos do
Código de Defesa do Consumidor e, ainda, 649, IV do
Código de Processo Civil, em face de:
BESC – BANCO DO ESTADO DE SANTA
CATARINA, inscrito no CNPJ sob o nº. 00.000.000/0001-
91, com endereço na Rua Lauro Linhares, nº 1137, CEP
88.036-002, Florianópolis/SC;
HSBC BANK BRASIL S/A – BANCO MÚLTIPLO,
inscrito no CNPJ sob o nº. 01.701.201/0001-89, com
endereço na Rua Esteves Junior, nº 711, CEP 88.010-001,
Florianópolis/SC;

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BANCO ABN AMRO REAL S/A, inscrito no CNPJ sob o
nº. 60.701.190/0001-04, com endereço na Praça 15 de novembro,
nº. 298, Centro, CEP 88.010-100, Florianópolis/SC;
BANCO DO BRASIL S/A, inscrito no CNPJ sob o nº.
00.000.000/0001-91, com endereço na Rua Felipe Schmidt,
576, Centro, CEP 88.010-100, Florianópolis/SC;
BANCO BRADESCO S/A, inscrito no CNPJ sob o
nº. 60.746.948/0001-12, com endereço a Rua Álvaro de
Carvalho, 267, CEP 88.010-040, Florianópolis/SC;
BANCO ITAÚ S/A, inscrito no CNPJ sob o nº.
60.701.190/0001-04, com endereço a Rua Tenente Silveira,
391, CEP: 88.010-301, Florianópolis/SC;
UNIBANCO - UNIÃO DE BANCOS BRASILEIROS
S/A, inscrito no CNPJ sob o nº 33.700.394/0001-40, com
endereço na Praça 15 de novembro, 163, CEP 88.010-400,
Florianópolis/SC;
BANCO MERCANTIL DO BRASIL S/A, inscrito
no CNPJ sob o nº. 17.184.037/0001-10, com endereço
na Rua Arcipreste Paiva, 57, Centro, CEP 88.010-100,
Florianópolis/SC;
BANCO SANTANDER S/A, inscrito no CNPJ sob o
nº. 90.400.888/0001-42 – com endereço na Rua Jerônimo
Coelho, 280, CEP 88.010-030, Florianópolis/SC;
BANCO BMG S/A, inscrito no CNPJ sob o nº.
61.186.680/001-74, com endereço na Rua Cristóvão
Nunes Pires, 110 – sala 1101, Centro, CEP 88.010-100,
Florianópolis/SC;
BANCO SAFRA, inscrito no CNPJ sob o nº.
58.160.789/0001-28, com endereço a Rua Arcipreste
Paiva, 187, Centro, CEP 88.010-100, Florianópolis/SC;
BANCO SUDAMERIS BRASIL S/A, inscrito no CNPJ
sob o nº. 60.942.638/0001-73, com endereço a Rua Jerônimo
Coelho, 280, Centro, CEP: 88.010-100, Florianópolis/SC;
e todos os bancos que foram sucedidos ou adquiridos
pelos demandados acima referidos, pelos fundamentos de
fato e de direito a seguir expostos:

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Síntese do caso
Trata-se de Ação Coletiva do Consumidor com o objetivo
geral de garantir a sustentabilidade socioeconômica dos
consumidores de todo o Estado de Santa Catarina, tendo em
vista que estes são obrigados a perceberem seus vencimentos,
proventos, salários, aposentadorias e pensões, e todas as
verbas de natureza alimentar por meio de conta bancária.
Certos da liquidez das referidas verbas, os bancos
cada vez mais oferecem produtos pré-aprovados, tais
como cheque especial, cartão de crédito, empréstimo
pessoal, dentre outros serviços e, posteriormente, de forma
unilateral e completamente ilegal, apropriam-se das verbas
salariais depositadas na conta dos consumidores, a fim de
garantir seus créditos, ignorando por completo a garantia
constitucional que permeia as verbas alimentares.
Esta prática vem acarretando um superendividamento
em massa e, consequentemente, um enorme e desmedido
desequilíbrio social, uma vez que diminui de forma radical
o poder aquisitivo dos cidadãos atingidos.
O salário, nele compreendido vencimentos, proventos,
soldos, aposentadorias e pensões, é verba alimentar
protegida constitucionalmente e esta proteção se dá em
função da garantia de que todo cidadão deve ter acesso ao
mínimo para sua subsistência e de sua família. Isto é, os
referidos proventos são responsáveis pela manutenção da
sobrevivência básica familiar, a qual deve compreender
vestuário, alimentos, despesas de água, luz, telefone,
tratamentos de saúde, dentre outros.
Inobstante as garantias previstas na Constituição
Federal, ainda há a proteção da legislação infraconstitucional,
consubstanciada no Código de Proteção do Consumidor,
Código Civil, bem como a Lei Adjetiva Civil, que também
delineia o assunto de forma clara e expressa.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 39

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Sumário
PRIMEIRA PARTE (questões prévias).
I - Da facilitação do acesso à justiça;
II - Da legitimidade ativa da associação civil para a
presente ação coletiva;
SEGUNDA PARTE
III - Introdução;
IV - Da prática ilegal das instituições bancárias e da
proteção ao salário;
V - Da violação ao princípio da boa-fé;
VI - Da violação ao princípio da proibição do excesso;
VII - Da violação aos princípios fundamentais da
Carta de 1988;
VIII - Da violação à política nacional das relações de
consumo;
IX - Do abuso do direito cometido em detrimento do
consumidor;
X - Dos danos sofridos;
XI - Dos requisitos autorizadores do pedido de
antecipação de tutela (CDC, art. 84);
XII - Dos pedidos.
XIII - Notas.

PRIMEIRA PARTE (questões prévias):

I – Da facilitação do acesso à justiça


Cumpre destacar que a autora, por força do caput do
artigo 87, da Lei nº. 8.078/90, é isenta do pagamento de
despesas judiciais lato-sensu:
Art. 87. Nas ações coletivas de que trata este Código não
haverá adiantamento de custas, emolumentos, honorários

40 Balcão do Consumidor

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periciais e quaisquer outras despesas, nem a condenação da
associação autora, salvo comprovada má-fé, em honorários de
advogado, custas e despesas processuais.

Infere-se da letra legislativa colacionada que, em se


tratando de ações coletivas, foi da intenção do legislador
facilitar o acesso à justiça e à defesa dos direitos fundamentais
dos consumidores, pelo o que se deixa de recolher as custas
iniciais da presente Ação Coletiva do Consumidor.

II - Da legitimidade ativa da Associação para


a presente ação coletiva
A presente ação tem por escopo a tutela jurisdicional
dos interesses e dos direitos coletivos e individuais
homogêneos dos consumidores, assim considerados todos
aqueles que recebem seus proventos alimentares por meio
de conta-corrente (conta-salário) junto às instituições
financeiras ora demandadas.
Referida categoria de consumidores é titular de
direitos e interesses definidos pelo art. 81, parágrafo único,
II e III, do CODECOM, denominados interesses ou direitos
individuais homogêneos, os quais possuem origem comum,
são individuais e divisíveis. Em razão disso, é considerado
espécie de direito coletivo, cuja finalidade é facilitar a
defesa dos consumidores e evitar decisões controversas:
Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores
e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente,
ou a título coletivo.

Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando


se tratar de:

[...]

II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos,


para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza
indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de

Reflexões sobre o hiperconsumismo 41

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pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma
relação jurídica base;

III - interesses ou direitos individuais homogêneos,


assim entendidos os decorrentes de origem comum.
(Grifo nosso)

Neste sentido, e conforme se depreende do estatuto da


IDC em anexo, não há dúvidas de que esta se enquadra nos
parâmetros estabelecidos pela lei, o que a torna legítima
para a propositura da presente ação coletiva nos termos do
CODECOM, in verbis:
Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são
legitimados concorrentemente:

[...]

IV - as associações legalmente constituídas há pelo menos


um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa
dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada
a autorização assemblear.

§ 1 - O requisito da pré-constituição pode ser dispensado


pelo juiz, nas ações previstas nos arts. 91 e seguintes, quando
haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou
característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser
protegido.

E ainda, o capítulo segundo do mesmo diploma legal


dispõe expressamente sobre Ações Coletivas para a Defesa
de Interesses Individuais Homogêneos, senão veja-se:
Art. 91. Os legitimados de que trata o art. 82 poderão
propor, em nome próprio e no interesse das vítimas ou seus
sucessores, ação civil coletiva de responsabilidade pelos danos
individualmente sofridos, de acordo com o disposto nos artigos
seguintes.

Do exposto, emerge a legitimidade da associação ora


requerente para demandar ações coletivas no intuito de
garantir a tutela dos direitos denominados metaindividuais,

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sobretudo por restar configurado interesse social relevante.
Neste sentido, consigna-se o entendimento de Hugo
Nigro Mazzili nos seguintes termos:
O interesse em ver reconhecida a ilegalidade do aumento
é compartilhada pelos integrantes do grupo de forma indivisível
e não quantificável: a ilegalidade do aumento não será maior
para quem tenha mais cotas: a ilegalidade será igual para
todos (interesse coletivo)1. (Grifo nosso)

Importante salientar que todos os consumidores que


têm suas verbas alimentares apropriadas para compensar
os Demandados com dívida bancária são legítimos titulares
do direito coletivo em tela, uma vez que somente a eles
interessa o pedido elaborado nesta ação, qual seja, a inibição
da compensação indevida que os induz à repactuação de
dívidas que, por vezes, tornam-se impagáveis.
Em suma, se o direito é indivisível, se o grupo é
determinável, estando ligado à parte demandada por uma
relação jurídica básica comum, está-se, pois, diante de
interesses coletivos2.
Ressalta-se que a presente ação TEM CARÁTER PREVENTIVO,
pois não há como delinear com suficiente certeza um fenômeno capaz
de afetar toda a coletividade de consumidores de crédito, haja vista que
o superendividamento destes poderá até mesmo excluí-los da sociedade
econômica. Entretanto, também possui caráter REPRESSIVO, pois
permitirá aos consumidores já lesados o acesso à sua verba alimentar
que de ultraje é apropriada ilegalmente3.
A ação ora manejada se revela, neste particular, um remédio
hábil para solucionar todas as situações fáticas que se enquadrem
no decisum a ser proferido, a fim de conferir aos consumidores
brasileiros a certeza de que sua verba salarial não será indevidamente
apropriada, evitando, assim, o superendividamento em razão de
créditos mal concedidos.
1 MAZZILI, Hugo Nigro. Op. Cit. p. 47.
2 MAZZILI, Hugo Nigro. Op. cit. p. 49.
3 Possibilidade de cumulação de demandas em ação coletiva de proteção ao
consumidor – vide STJ – Resp. 105215/DF.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 43

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SEGUNDA PARTE

III – INTRODUÇÃO
Os substituídos possuem contas bancárias junto às
instituições financeiras Demandadas, pelas quais recebem
seus vencimentos salariais. Estes montantes são protegidos
legal e constitucionalmente, em razão do caráter alimentar
que possuem, por gerirem o sustento da família, conforme
bem determina o artigo 649, IV do CPC e artigo 7, X da
CF/88, de forma que não podem ser descontados para o
pagamento de empréstimos ou quaisquer débitos que o
correntista possua junto à instituição financeira.
Ocorre que as instituições financeiras demandadas
efetuam a cobrança de débitos sobre os salários dos
substituídos depositados em suas agências e referida prática
é recorrente em relação a todos os vencimentos. Assim, no
momento em que o salário dos correntistas é depositado,
a instituição efetua débitos de valores correspondentes a
saldos devedores destes e o faz por iniciativa unilateral e
contrária aos termos da lei.
Destaca-se, desde já, que a Constituição Federal de
1988, em seu artigo 7, X, proíbe a retenção dolosa de verbas
salariais nos seguintes termos:
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais,
além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

[...]

X - proteção do salário na forma da lei, constituindo crime


sua retenção dolosa.

Não obstante, é determinação expressa do artigo 649,


IV do CPC:
Art. 649. São absolutamente impenhoráveis:

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[...]

IV - os vencimentos, subsídios, soldos, salários,


remunerações, proventos de aposentadoria, pensões, pecúlios
e montepios; as quantias recebidas por liberalidade de terceiro
e destinadas ao sustento do devedor e sua família, os ganhos de
trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal,
observado o disposto no § 3º deste artigo.

Neste sentido, em recente julgado, o STJ destacou


que o artigo supracitado não possui outra finalidade senão
resguardar de forma mais eficiente e técnica a pessoa do
devedor na fase executiva do processo judicial e assim
ementou o seguinte entendimento:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO PROCESSUAL CIVIL.
UTILIZAÇÃO DE VALORES MANTIDOS EM CONTA
CORRENTE PARA A QUITAÇÃO/AMORTIZAÇÃO
DE DÍVIDAS PRETÉRITAS CONTRAÍDAS PELO
CORRENTISTA COM A INSTITUIÇÃO FINANCEIRA.
IMPENHORABILIDADE DE VENCIMENTOS - ART.
649, IV, CPC. RELEVÂNCIA PARA O SEU TITULAR
E CORRESPONDENTE ENTIDADE FAMILIAR.
NEGATIVA DE AUTORIZAÇÃO PELO MUTUÁRIO.
IMPOSSIBILIDADE DE VERIFICAÇÃO, NA VIA ESTREITA
DO RECURSO ESPECIAL. APLICAÇÃO DA LEI,
SEGUNDO OS FINS SOCIAIS E AS EXIGÊNCIAS DO
BEM COMUM. DIFERENCIAÇÃO ENTRE A ESPÉCIE
E A HIPÓTESE DE DÉBITOS, MEDIANTE DESCONTO
EM FOLHA DE PAGAMENTO. IMPOSSIBILIDADE
DE RETENÇÃO DE VALORES PELA INSTITUIÇÃO
FINANCEIRA, A SEU EXCLUSIVO NUTO. RECURSO
ESPECIAL NÃO CONHECIDO.4 (Grifo nosso)

Resta claro, portanto, que a prática recorrente das


instituições financeiras em apropriar-se dos valores
referentes a salários e demais vencimentos depositados
na conta de seus correntistas é ilegal. Desta forma, para
efetuar tais cobranças devem as instituições usar de meios

4 STJ - REsp. 901.651 – SC - Acórdão COAD 0247671-9 - Rel. Min. Hélio


Quaglia Barbosa – Publ. em 01-09-2008.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 45

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legais a elas conferidos como, por exemplo, lançar mão das
medidas processuais que lhes assistam.
Neste diapasão, colaciona-se o seguinte entendimento
sedimentado pelo STJ:
CONSTITUICIONAL. PROCESSO CIVIL. CONTA.
CORRENTE. DEPÓSITO DE SALÁRIOS. IMPOSSIBILIDADE
DE RETENÇÃO PELA INSTITUIÇÃO FINANCEIRA.
A instituição financeira não pode transferir,
compulsoriamente, total ou parcialmente, o salário
de seus correntistas para o fim de amortizar débito
contraído por este. Se for o caso, deve a instituição
bancária lançar mão das medias judiciais cabíveis para
receber os valores que entende devidos.5 (Grifo nosso)

Salienta-se que em decisão proferida no REsp nº


831.774, o ministro Humberto Gomes de Barros ponderou
a ilicitude da ação da instituição financeira que, ao valer-
se do salário do correntista que lhe é confiado em depósito
pelo empregador, reteve o pagamento a fim de quitar
saldo devedor de conta-corrente. Referida medida, como
bem destaca o julgado, ressalta o exercício arbitrário das
próprias razões, uma vez que os bancos têm a sua disposição
medidas legais para o recebimento dos seus créditos.
Acerca do tema, uma vez mais, posicionou-se o
Superior Tribunal de Justiça:
BANCO - RETENÇÃO DE SALÁRIO PARA COBRIR
SALDO DEVEDOR – IMPOSSIBILIDADE. Não é lícito ao
banco valer-se do salário do correntista, que lhe é confiado
em depósito, pelo empregador, para cobrir saldo devedor de
conta corrente. Cabe-lhe obter o pagamento da dívida em ação
judicial. Se nem mesmo ao Judiciário é lícito penhorar salários,
não será instituição privada autorizada a fazê-lo.6

AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - DANO MORAL - RETENÇÃO


DE SALÁRIO PARA PAGAMENTO DE CHEQUE ESPECIAL
5 STJ - REsp. 901.651 – SC - Acórdão COAD 0247671-9 - Rel. Min. Hélio
Quaglia Barbosa – Publ. em 01-09-2008.
6 STJ - REsp. 831.774-RS – Acórdão COAD 123590 - Rel. Min. Humberto
Gomes de Barros – Publ. em 29-10-2007.

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VENCIDO – ILICITUDE. Mesmo com cláusula contratual
permissiva, a apropriação do salário do correntista pelo banco
credor para pagamento de cheque especial é ilícita e dá margem
a reparação por dano moral.7

Ora Excelência, é público e notório que nosso país


vive hoje numa “bancocracia”, na qual as instituições
financeiras têm uma liberdade ilimitada, que as leva a
cometer, abertamente, o esbulho do patrimônio dos seus
correntistas, uma vez que estes são vítimas de apropriação
indevida em suas verbas alimentares de modo ilegal e
abusivo, muitas vezes sob a ameaça de ter seus nomes
remetidos aos serviços de proteção ao crédito (SERASA), os
quais também acabam sendo usados de forma manipuladora
pelas instituições financeiras que usam destes serviços
como verdadeiros instrumentos de coação a seu favor.
Trata-se, pois, de paradigma de violenta e ilegal
usurpação do patrimônio dos correntistas que têm seus
salários, vencimentos, soldos, aposentadorias ou pensões
depositadas nas instituições financeiras demandadas. Por
conta disso, são obrigados a pagar para receber as verbas
alimentares, pagar pela manutenção da conta que gera lucro
para o banco e, enfim, pagar por todos e quaisquer serviços
ou transações que venham a contratar com a instituição.
Em resumo, a questão posta em testilha constitui
exemplo emblemático do descomunal desequilíbrio em que
se encontram os consumidores em relação às instituições
financeiras. Com efeito, enquanto os bancos estão no ápice,
em desmedida situação de força econômica, no outro polo da
relação de consumo estão os consumidores, entes vulneráveis,
sobretudo em decorrência da sua evidente hipossuficiência
técnica e econômica, o que vem a intensificar o desequilíbrio.
Desta forma, as instituições demandadas utilizam-se
da vulnerabilidade de seus correntistas para se apropriar
7 (STJ - REsp. 507.044-AC – Acórdão COAD 110353 - Rel. Min. Humberto
Gomes de Barros - Publ. em 3-5-2004).

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indevidamente de seus vencimentos para o pagamento de
produtos colocados a sua disposição de forma unilateral, o
que lhes usurpa o poder de escolha e fere frontalmente a
proteção salarial que lhes é garantida na forma da lei.
Assim, o atual estado de endividamento em que se encontra
a maior parte dos consumidores ora substituídos resulta da
manipulação das instituições bancárias sobre os correntistas,
em especial aposentados e pensionistas, haja vista que
concedem seus produtos de forma obscura e desmedida e geram,
por conseguinte, um volume de contratos de empréstimos e
financiamentos, dentre outros, impagável pelos consumidores.
Importante destacar que os substituídos são obrigados
a abrir conta bancária (conta - salário) para receber seus
vencimentos e, sem qualquer consentimento expresso na
forma legal, acabam por aderir inúmeras “facilidades”, tais
como cartão de crédito, cheque especial, linhas de crédito
para desconto, financiamentos, etc., pois é praxe a maioria
dos produtos oferecidos gerarem contratos de adesão “pré-
aprovados” que, em grande parte, sequer são devidamente
entregues ao consumidor. E, posteriormente, de forma
unilateral, os bancos se utilizam dos salários (VERBA
DE CARÁTER ALIMENTAR) depositados nas “contas-
salário” dos correntistas para satisfazerem seus créditos.
A instituição financeira possui o interesse de conceder
empréstimos de toda ordem, até porque todas as operações
de créditos efetuadas em “contrato de adesão” vinculam
sorrateiramente cláusula especial, que determina
a autorização para o desconto de todos e quaisquer
empréstimos e encargos na conta-corrente salarial.
É clara a má-intenção das instituições bancárias ao
concederem seus produtos aos consumidores que recebem
seus proventos depositados em conta, pois é sabido que os
valores estarão disponíveis para cobrança todos os meses.
Desta forma, as referidas instituições comprometem
sensivelmente as verbas salariais dos correntistas na
intenção maléfica de impor estado de necessidade,

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uma vez que na ânsia e obrigação de amparar a si e as
suas famílias, acabam por assumir vários contratos
de empréstimos, inclusive para quitar empréstimos
anteriores, o que acarreta claro superendividamento e lhes
torna verdadeiros escravos das instituições financeiras.
O superendividamento, por sua vez, constitui-
se mazela social de grandes proporções, haja vista que
prejudicial à sobrevivência e à dignidade de consumidores
e de suas famílias, pelo simples fato destes se verem
privados do acesso as suas verbas alimentares por
serem estas alvo de apropriação ilegal perpetrada pelas
instituições financeiras. Frise-se que, enquanto os bancos
continuam a lucrar bilhões, o poder aquisitivo da população
é drasticamente reduzido, o que afeta diretamente
a economia do país. Ademais, há inúmeros remédios
jurídicos que protegem a pessoa jurídica e, sendo assim,
por óbvio que se deve dar guarida ao consumidor que é
leigo e de boa-fé, a fim de que exista um real equilíbrio
econômico entre as partes.
Por óbvio não se vislumbra lesão alguma do consumidor
ao banco, ao contrário, o consumidor passa a uma condição
de escravo-pagador, reduzindo sua vontade a um ciclo
vicioso, manipulado pela instituição financeira que enche
seus cofres com o dinheiro obtido pelos empréstimos, cujos
montantes são a ela devolvidos, em forma de prestação, bem
como utilizando de forma inescrupulosa da necessidade
e da falta de experiência dos consumidores para manter
tantas obrigações financeiras em dia!
Da prática ora hostilizada, percebe-se a inaceitável
violação ao princípio da dignidade da pessoa humana,
cujo entendimento manifestado pela Suprema Corte é no
seguinte sentido:
EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos

Reflexões sobre o hiperconsumismo 49

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fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações
entre cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações
travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado.
Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição
vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando
direcionados também à proteção dos particulares em face dos
poderes privados.8

No mesmo norte, colaciona-se o seguinte precedente:


Princípio Constitucional da dignidade da pessoa
humana. Direitos fundamentais de igualdade e
liberdade. Cláusula geral dos bons costumes e regra de
interpretação da lei segundo seus fins sociais. Decreto de prisão
da devedora que deixou de pagar dívida bancária assumida com
a compra de um automóvel-táxi, que se elevou em menos de 24
meses, de R$ 18.700 para R$ 86.858,24, a exigir que o total
da remuneração da devedora, pelo resto do tempo provável de
vida, seja consumido com o pagamento dos juros. Ofensa ao
princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, aos
direitos de liberdade de locomoção e de igualdade contratual e
aos dispositivos do LICC sobre o fim social da aplicação da lei
e obediência aos bons costumes. 9

Conforme se pode verificar pelo julgado acima


colacionado, o Judiciário já se manifestou e vem proibindo
a retenção de verba salarial, sendo assim, não resta dúvida
que, por muito mais razão deve fazê-lo em sede coletiva, em
decorrência e devida aplicação do princípio constitucional
da igualdade.
Não obstante a proteção constitucional do salário
constante no artigo 7º, X, da CF/88 e legal do art. 649,
IV, do CPC; o art. 373, II, do CC, também milita pela
impossibilidade da compensação de uma obrigação
creditícia bancária com obrigação alimentar10, sob pena de
8 STF – RE 201819/RJ, REL. Min. ELLEN GRAICE, Rel. P/ o acórdão Min.
Gilmar Mendes, j. 11/10/2005.
9 STJ – HC 12547, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar. DJ 12/02/2001.
10 “Ilegalidade da cláusula inserida em contratos bancários que autorizam
desconto em conta-corrente do valor do salário devedor: JTA 180/93”, (in
Código Civil Comentado – Hamid Charaf Bdine Jr – orientador Ministro
César Peluzo – pág. 269 – Editora Manole - 2007)

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inviabilizar a subsistência do correntista, pois na maioria das vezes
a verba depositada se trata de garantia da subsistência familiar.
Esclareça-se, desde já, que a presente ação não tem de forma alguma
o escopo de estipular a mora, ante a iliquidez de qualquer saldo bancário
positivo ou negativo11, mas sim de garantir um direito CONSTITUCIONAL
que está sendo violado de forma desmedida e irresponsável.
Necessário ressaltar, ainda, que é obrigação das instituições
financeiras realizar uma análise dos riscos das operações de crédito
antes da concessão dos empréstimos, evitando-se, assim, a retenção
ilegal das verbas alimentares de seus clientes.
Todavia, por conta da prática hostilizada, os consumidores se
tornam, na grande maioria, inadimplentes em obrigações necessárias
a sua sobrevivência12, tais como pagamento de alimentos, de luz,
telefone, despesas médicas, farmacêuticas, vestuário, etc., haja vista
que o banco de forma unilateral se autoprioriza no recebimento dos
créditos depositados em suas contas.
Por força do art. 51, IV do CODECOM, os contratos que
estabelecem os descontos em conta-corrente são imbuídos de
cláusulas nulas e abusivas:
Art. 51 – São nulas de pleno direito, entre outras, as
cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos
e serviços que:

[...]

IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas,


abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem
exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a
equidade.

Destaca-se, ainda, a redação constante no art. 51, § 1º,


I do Código de Defesa do Consumidor, in verbis:
11 “[...] existe a descaracterização da mora em razão de encargos abusivos
no contrato, admitida pela jurisprudência deste Superior Tribunal” (REsp
163.884-RS, DJ 24/09/2001).
12 “A remuneração do trabalho pessoal, de maneira geral, destina-se ao
sustento do individuo e de sua família. Trata-se, por isso, de verba de
natureza alimentar, donde a sua impenhorabilidade” (Humberto Theodoro
Junior in, Processo de Execução – LEUD – 21ª edição – 2002 – p. 303).

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Parágrafo 1º - Presume-se exagerada, entre outros casos,
a vantagem que:

I – ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico


a que pertence;

II – restringe direitos ou obrigações fundamentais


inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu
objeto ou o equilíbrio contratual;

III – se mostra excessivamente onerosa para o consumidor,


considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse
das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso”.

Diante do espírito de equilíbrio que permeia o


CODECOM, o desequilíbrio entre fornecedor e consumidor
é exorcizado de tal modo que a onerosidade excessiva
para este - espécie presumida do gênero “desvantagem
exagerada” (art. 51, § 1o, do CODECOM) - por si só motiva
a revisão contratual, com a modificação da prestação
desproporcional (art. 6o, inc. V, primeira parte, do
CODECOM), ou com a declaração de nulidade da cláusula
abusiva (art. 51, § 4o).
Repleta de precedentes, a jurisprudência do STJ, cuja
defesa principal neste sentido é do Ministro Ruy Rosado
Aguiar, esclarece:
BANCO. COBRANÇA. APROPRIAÇÃO DE
DEPÓSITOS DO DEVEDOR. O banco não pode apropriar-
se da integralidade dos depósitos feitos a título de salários,
na conta de seu cliente, para cobrar-se de débito decorrente
de contrato bancário, ainda que para isso haja cláusula
permissiva no contrato de adesão. Recurso conhecido e
provido. 13 (Grifo nosso).

E ainda:
ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. UTILIZAÇÃO DE
SALÁRIO DEPOSITADO EM CONTA-CORRENTE PARA
COBRIR SALDO DEVEDOR. Precedentes da Corte indicam
13 STJ – Resp 492777/RS – 4ª T – DJ 01/09/2003. p. 298.

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que o valor do salário não pode ser utilizado para cobrir saldo
devedor em conta-corrente, revelando os requisitos necessários
para o deferimento parcial da antecipação de tutela. 2. Recurso
Especial conhecido e provido, em parte. 14

Também merece destaque o julgado proferido pelo


Ministro Aldir Passarinho, ipsis literis:
[...] Não pode o banco se valer da apropriação de salário
do cliente depositado em sua conta corrente, como forma de
compensar-se da dívida deste em face de contrato de empréstimo
inadimplido, eis que a remuneração, por ter caráter alimentar,
é imune a constrições dessa espécie, ao teor do disposto no
art. 649, IV, da Lei adjetiva civil, por analogia corretamente
aplicado a espécie pelo Tribunal a quo. III. Agravo improvido.
15
(Grifo nosso).

Pelos argumentos já aduzidos, torna-se imperiosa a


intervenção do Poder Judiciário na prática ora hostilizada
ABUSIVA e ILEGAL, para que seja declarada a manutenção
da impenhorabilidade de qualquer depósito em conta-
corrente de natureza alimentar, a fim de impossibilitar a
compensação de obrigações alimentares e financeiras, bem
como tornar sem efeito a cláusula de retenção/compensação,
que determina o desconto em verba alimentar depositada
em conta bancária dos consumidores, independentemente
dos contratos firmados entre as partes, permitindo-se
saque integral do depósito alimentar.

IV – Do Direito de Informação
A conta que os correntistas possuem junto às
instituições financeiras demandadas, onde recebem seus
vencimentos, trata-se, antes de tudo, de uma “conta-
salário”. Isto é, a conta-salário é uma modalidade de conta

14 STJ – Resp 469743/PR – Rel. Min. CARLOS ALBERTO MENEZES


DIREITO – 3ª T. DJ 25/08/2003 P. 301 - RSTJ vol. 181 p.276.
15 STJ – AgRg no Ag 353291/RS, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, 4ª T.
julgado em 28/06/2001, DJ 19/11/2001 p. 286.

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bancária que abrange várias vantagens ao seu titular,
mas que, no entanto, as informações a seu respeito não são
repassadas de modo satisfatório aos correntistas.
A “conta-salário” é um tipo especial de conta de
registro e controle de fluxo de recursos, destinada a receber
salários, proventos, soldos, vencimentos, aposentadorias,
pensões e similares. A referida modalidade de conta não
admite outro tipo de depósito além dos créditos da entidade
pagadora e não é movimentável por cheques. É regulada
pela Resolução 3.424 do Conselho Monetário Nacional
(CMN), de 21 de dezembro de 2006.
Um dos benefícios incorporado pela “conta-salário” é a
possibilidade de o empregado transferir o seu salário para
outra conta diferente daquela aberta pelo empregador, sem
precisar pagar tarifa por isso. Caso o empregado formalize
o pedido no banco contratado pela empresa pagadora, os
recursos devem ser transferidos para o banco escolhido
pelo empregado, no mesmo dia do crédito, até às 12h que se
seguem. O empregado também pode optar pelo saque dos
recursos da própria “conta-salário” ou pela sua transferência
para conta-corrente de depósitos aberta no mesmo banco.
Na transferência parcial do crédito para outra
instituição financeira pode ser cobrada tarifa, mesmo que
seja uma só transferência.
Se a transferência for para outra conta na mesma
instituição financeira, é vedada a cobrança de tarifa nas
transferências pelo valor total ou parcial dos créditos.
Também não podem ser cobradas tarifas por:
* fornecimento de cartão magnético, a não ser nos
casos de pedidos de reposição decorrentes de perda, roubo,
danificação e outros motivos não imputáveis à instituição
financeira; * realização de até cinco saques, por evento de
crédito; * acesso a pelo menos duas consultas mensais ao
saldo nos terminais de autoatendimento ou diretamente
no guichê de caixa; * fornecimento, por meio dos terminais

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de autoatendimento ou diretamente no guichê de caixa, de
pelo menos dois extratos contendo toda a movimentação
da conta nos últimos trinta dias; * manutenção da conta,
inclusive no caso de não haver movimentação.
Estas informações deveriam ser repassadas para
os correntistas, todavia não o são e o banco, além de não
informar, ainda ignora as regras supracitadas e com isso
transforma de forma unilateral e ilegal conta-salário em
conta corrente sem nem ao menos fornecer a opção de
escolha aos seus titulares que, frise-se, desconhecem o
direito que lhes assiste.
E, ainda, com a perpetuação desta prática, as
instituições financeiras oferecem diversos produtos
valendo-se da garantia de que todo mês o correntista
receberá seus vencimentos em determinada conta, o que
garante a quitação do débito e, por conseguinte, mantém
a vantagem da instituição financeira sobre o consumidor
hipossuficiente.
Neste sentido, destaca-se:
No caso dos autos, a parte autora logrou demonstrar que
o débito lançado em sua conta-corrente foi efetivado
sem qualquer autorização sua, por iniciativa da própria
CEF, e que o crédito posteriormente havido, que em
boa parte foi absorvido por tal débito, correspondia ao
pagamento de salários que lhe eram devidos: vale frisar,
aliás, que o débito foi lançado precedentemente à efetivação do
crédito dos salários.16 (Grifo nosso)

Em face desta prática, os correntistas não só são banidos


de quaisquer informações sobre como poderiam administrar
suas contas-salários antes destas serem, de forma unilateral,
alteradas para contas- correntes pela instituição bancária,
como também não são informados de que serão efetuados
descontos em seus salários, uma vez que a instituição
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financeira sequer emite boletos, ou se utiliza de quaisquer
outras formas para dar ciência ao correntista de que seus
vencimentos serão descontados, ressaltando que isso não
afastaria a ilegalidade de tal prática, uma vez que salários,
vencimentos, proventos, soldos, aposentadorias e pensões –
verbas alimentares – são protegidos constitucionalmente.

V - Violsção ao princípio da boa-fé


A relação jurídica, base estabelecida entre os
consumidores e as instituições financeiras demandadas,
compreende a prestação de serviços bancários. Trata-se,
portanto, de direito  coletivo por excelência, uma vez que,
na condição de consumidores, é possível encontrar inúmeros
correntistas vinculados às referidas instituições demandadas
por um liame jurídico, claramente definido em virtude do
contrato de prestação de serviços firmado entre ambos.
É natural e coerente conceber que o consumidor espere
que o serviço seja prestado de modo apropriado e seguro,
sem quaisquer surpresas desagradáveis ou prejuízos que
não deva ou não possa suportar. Esta afirmação encontra
correspondência no art. 6º, inciso IV, do CODECOM,
que dispõe como direito básico de todos os consumidores
“a proteção contra a publicidade enganosa e abusiva,
métodos comerciais coercitivos ou desleais, bem como
contra práticas abusivas ou impostas no fornecimento de
produtos e serviços”.
Como consequência lógica do que se afirma, é
pertinente inferir que o consumidor, ao contratar a
prestação do serviço bancário, o fez de boa-fé, na crença
de que a instituição financeira teria condições de atender
às suas expectativas quanto à qualidade e à segurança
do serviço pretendido - não lhe impondo, em qualquer
circunstância, situação de onerosidade indevida.

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Em outras palavras, em sede de matéria consumerista,
o princípio da boa-fé esteia-se na premência de harmonizar
os interesses dos protagonistas das relações de consumo
quanto ao seu objeto, vale dizer, dos fornecedores de
produtos e serviços face aos consumidores, tendo como
fundamento os princípios da isonomia e da solidariedade.
Ao que se afigura evidente, a circunstância em tela
torna-se tanto mais grave quando se dirige o foco do
problema aos pensionistas, aposentados, ou servidores de
baixa remuneração. Nesse caso, além da evidente falta
de ética empresarial, a retenção de valores retirados dos
vencimentos dos correntistas para pagamento de saldo
devedor junto às instituições financeiras demandadas, sem
parâmetros concretos e justos, mostra-se como grave violação
ao patrimônio de quem já ganha pouco, bem como explicita
negação de princípios constitucionais de grande relevância.
Na esteira deste raciocínio, há que realçar que o
CODECOM estabelece como regra a boa-fé objetiva. Por
esse critério de averiguação da responsabilidade, resta
claro que o dano causado aos consumidores não será
mensurado mediante avaliação da ocorrência de culpa
(negligência, imprudência ou imperícia). Isso ocorre em
virtude do CODECOM delinear um dever de conduta, de
fidelidade, compreendidos como parâmetros de honestidade
e lealdade entre as partes, de modo a estabelecer - e manter
- o equilíbrio das relações de consumo.
Na avaliação de Rizzatto Nunes, a boa-fé objetiva,
funciona, então, como um modelo, um standard, que não
depende de forma alguma da verificação da má-fé subjetiva
do fornecedor ou mesmo do consumidor. Desse modo,
quando se fala em boa-fé objetiva, exige-se comportamento
fiel, leal, na atuação de cada uma das partes contratantes,
a fim de garantir o respeito mútuo. É um princípio que visa 
garantir a ação sem abuso, sem obstrução, sem causar
lesão a ninguém, cooperando sempre para atingir ao fim

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colimado no contrato, qual seja, a satisfação dos interesses
das partes[1].
Diante das considerações acima expostas, é pertinente
concluir que, nas hipóteses em que o consumidor bancário
é alvo de ação desleal e oportunista, tal como a que ora
empreende as instituições financeiras demandadas, torna-
se evidente a violação da boa-fé objetiva depositada pelo
ente vulnerável quando se vinculou  ao serviço bancário.
Neste contexto, é necessário não olvidar que o princípio
da boa-fé há de ser reconhecido como cláusula contratual
geral, isto é, a violação ao princípio em questão constitui
transgressão a todas as demais cláusulas do contrato, isto
porque a aplicação da cláusula geral de boa-fé exige, do
intérprete, uma nova postura, no sentido da substituição do
raciocínio formalista, baseado na mera subsunção do fato à
norma, pelo raciocínio teleológico ou finalístico, com ênfase à
finalidade que os postulados normativos procuram atingir.

VI - Da violação ao princípio da proibição do


excesso
Com o fito de evitar o cometimento de práticas abusivas
em desfavor dos consumidores, o legislador ordinário inseriu
um elenco de cláusulas que reputaram abusivas e mais
ocorrentes no dia a dia. Neste sentido, a relação disposta
no art. 39 do CODECOM não se trata de rol exaustivo de
práticas abusivas em detrimento dos consumidores. E nem
poderia ser, mormente porque o código, em outros artigos,
contempla a ocorrência de outros fenômenos, como quando
se faz cobrança indevida, por métodos coercitivos, vexatórios,
que exponham o consumidor ao ridículo (CDC, art. 42).
Nessa conjugação de ideias, é de se por em realce que
a prática abusiva é toda e qualquer desconformidade com
os padrões mercadológicos de boa conduta em prejuízo do

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consumidor. São - no dizer irretocável de Gabriel A. Stilitz -
condições irregulares de negociação nas relações de consumo
que ferem os alicerces da ordem jurídica, seja pelo prisma da
boa-fé, seja pela ótica da ordem pública e dos bons costumes.
As práticas abusivas nem sempre se mostram como
atividades enganosas. Muitas vezes, apesar de não ferirem
o requisito da veracidade, carreiam alta dose de imoralidade
econômica e de opressão.  Em outros casos, simplesmente dão
causa a danos substanciais contra o consumidor. Manifestam-
se por meio de uma série de atividades, pré e pós-contratuais,
assim como propriamente contratuais, contra as quais o
consumidor não tem defesas, ou, se às vezes tem,  não se sente
habilitado ou incentivado a exercê-las. Note-se que, neste
ponto, a legislação infraconstitucional mostra a sua aversão
não apenas à vantagem excessiva concretizada, mas também
em relação à mera exigência, conforme preconiza o artigo 39,
V do CDC (exigência de vantagem excessiva).
Ainda como prática abusiva, há a regra ínsita no
inciso X, do art. 39 do CDC, que veda o aumento de preço
sem justa causa. Esse preceito, bem a propósito, tem por
escopo assegurar que o Poder Público e também o Poder
Judiciário disponham de mecanismos aptos a refrear os
abusos praticados no mercado de consumo.
Se assim não fosse, o mercado livre, no qual a
interferência do Poder Público deve ser mínima, conforme
prescreve a Constituição Federal em seu art. 173, caput,
deixará de ser prática escorreita e poderá atirar os
consumidores nas garras de fornecedores inescrupulosos,
que só têm por foco a pecúnia, olvidando-se do fim social
da empresa e a boa-fé que deve permear as relações de
consumo, o que poderá agravar ainda mais a vulnerabilidade
e, em determinados casos, a hipossuficiência em que se
encontram os consumidores.
A regra, então, é que os aumentos de preços devem
sempre estar alicerçados em justa causa, vale dizer, não

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podem ser arbitrários, leoninos ou abusivos. Em princípio,
numa economia estabilizada, elevação superior aos índices
de inflação cria uma presunção - relativa, é verdade - de
carência de justa causa. Nessa matéria, pode o Poder
Público fazer uso da inversão do ônus da prova, prevista
no art. 6o, inc. VIII, do CDC.[4]
Como se vê, no caso concreto tem-se por evidente que os
descontos perpetrados pelas instituições ora demandadas
é de manifesta ilegalidade, porquanto efetuados sem justa
causa e, por conseguinte, considerados prática leonina,
arbitrária e abusiva.

VII - Da violação aos princípios funadmentais


da Carta de 1988
Sobressai evidente a importância do direito
consumerista à luz do Texto Fundamental, mormente
porque o legislador constituinte o inseriu no âmbito do
art. 5o, consagrando-o, portanto, como direito e garantia
individual, salvaguardado por cláusula pétrea, de modo
que não pode ser adequado admitir que tal direito,
consubstanciado em normas de ordem pública e interesse
social relevante (CDC, art. 1º), possa vir a ser maculado
por uma instituição financeira que se irroga ao direito
de infringir tais normas em detrimento de toda uma
coletividade de consumidores, maculando, de igual, por via
direta e imediata, o próprio texto da Constituição Federal,
que assim dispõe:
Art. 1o - A República Federativa do Brasil é formada
pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal, constituindo-se em Estado Democrático de Direito e
tem como fundamentos:

[...]

III - a dignidade da pessoa humana;

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[...]

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

Não resta dúvida de que a prática encetada pelas


instituições financeiras demandadas consiste violenta
agressão à dignidade da pessoa humana, posto que, uma
vez obrigado a permanecer vinculado às instituições
demandadas, os assalariados são usurpados em seus
proventos, de modo vil, injusto e ilegal, necessitando, por
via de consequência, da intervenção do Estado como forma
de defender seus direitos e interesses violados, ou prestes
a sofrer grave violação.
Em síntese, a prática das instituições financeiras
demandadas, ao cometer grave infração contra relação de
consumo de caráter coletivo, consiste iniludível ofensa ao
Estado Democrático de Direito, pois deixa de observar a lei
como primado de coexistência pacífica, justa e harmônica,
além de relegar a busca do estabelecimento do bem comum
como fim colimado por toda a sociedade.

X - Dos danos sofridos:


O dano material sofrido pelos correntistas é claro,
e resta vastamente demonstrado no corpo da presente,
uma vez comprovado que os descontos efetuados sobre
os salários dos substituídos para o pagamento de saldos
devedores junto às instituições financeiras é prática ilegal,
pois fere frontalmente o disposto no art. 649, IV do CPC,
bem como, o art. 7º, X da CF/88.
Não obstante a restituição dos valores pagos
indevidamente a título de dano material, o STJ determina
ainda a condenação dessas instituições a título de danos
morais sofridos pelos correntistas, como se depreende do
seguinte julgado:
Forte em tais razões, DOU PROVIMENTO ao recurso
especial, para condenar o recorrido I – a restituir ao recorrente

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os salários indevidamente descontados de sua conta-corrente,
quantia essa acrescida de correção monetária e juros legais
desde a citação; II – a compensar os danos morais
causados ao recorrente, fixando-se estes em R$ 5.000,00
(cinco mil reais), valor esse a ser corrigido desde essa
data e, ainda, acrescido de juros legais desde a data do
primeiro desconto indevido... 17 (Grifo nosso)

Infere-se do supracitado entendimento esposado


pelo STJ, que o devedor, como no caso dos substituídos,
ao ter seus salários irregularmente excutidos de forma
extrajudicial, assim que depositados em suas contas
corrente, faz jus à reparação dos danos morais sofridos.
Isto porque tal prática coloca em xeque a sobrevivência dos
devedores e dos seus familiares, sujeitando-os a condições
indignas de vida.18
Desta forma, e diante de todo o até aqui exposto, presume-
se que não há como deixar de acolher o pedido indenizatório de
reparação pelos danos morais efetivamente sofridos em decorrência
da prática hostilizada.
E, ainda, não se trata de inovação no direito pátrio à viabilidade
de reparação de dano moral de natureza coletiva, vez que tal
possibilidade se encontra explicitamente consagrada no art. 6º, VI,
da Lei 8.078/90 nos seguintes termos:
Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

[…]

VI - a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais


e morais, individuais, coletivos e difusos.

Frise-se que a falta recorrente de boa-fé contratual


empreendida pelos bancos em desfavor dos consumidores
17 STJ - REsp. 1.012.915 – PR - Acórdão COAD 0288591-9 - Rel. Min. Doracy
Grisólia Vergani – Publ. em 03-02-2009.
18 Nesses precedentes o valor da compensação tem sido fixado em R$ 5.000,00.
Confiram-se os seguintes precedentes: REsp 492.777/RS, 4ª Turma, Rel.
Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 01/09/2003; REsp 595.006/RS, 4ª Turma,
Rel. Min. César Asfor Rocha, DJ 18/09/2006.

62 Balcão do Consumidor

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fere frontalmente as regras estabelecidas pela Carta Magna
e, com isso, atinge de forma maliciosa a dignidade dos
correntistas, principalmente idosos, em claro desrespeito
ao preceito inscrito no art. 230, da CF/88.19
Em sede individual já decidiu o STJ:
DANO MORAL. RETENÇÃO DE SALÁRIO PARA
PAGAMENTO DE CHEQUE ESPECIAL. ILICITUDE –
Mesmo com cláusula contratual permissiva, a apropriação do
salário do correntista pelo banco-credor para pagamento de cheque
especial é lícita e dá margem a reparação por dano moral. 20

Importante destacar que o imenso dano moral coletivo


causado pelas agressões aos interesses transindividuais
afeta a boa imagem da proteção legal a estes direitos e
ainda mais a tranquilidade do cidadão que se vê à mercê
do mais forte. A tranquilidade e o sentimento de desapreço
gerados pelos danos sofridos coletivamente, justamente
por serem indivisíveis, acarretam lesão moral que também
deve ser reparada coletivamente e, em assim sendo,
imperioso que a justiça confira ao infrator resposta eficaz
19 Consigna-se o entendimento trazido pelo professor André de Carvalho
Ramos:
“Com a aceitação da responsabilidade do dano moral, verifica-se a possibilidade
de sua extensão ao campo dos chamados interesses difusos e coletivos.
As lesões aos interesses difusos e coletivos não somente geram danos
materiais, mas também podem gerar danos morais. O ponto-chave para
o dano moral coletivo está na ampliação de seu conceito, deixando de ser
o dano moral um equivalente da dor psíquica, que seria exclusividade de
pessoas físicas.
Pelo contrário, não somente a dor psíquica que pode gerar danos morais.
Qualquer abalo no patrimônio moral de uma coletividade também merece
reparação.
Devemos considerar que o tratamento aos chamados interesses difusos e
coletivos origina-se justamente da importância destes interesses e da
necessidade de uma efetiva tutela jurídica. Ora, tal importância somente
reforça a necessidade de aceitação do dano moral coletivo, já que a dor
psíquica que alicerçou a teoria do dano moral individual acaba cedendo
lugar, no caso de dano moral coletivo, a um sentimento de desapreço e
de perda de valores essenciais que afetam negativamente toda uma
coletividade. (...)”
20 Ag.Rg no Ag 425.113/RS, Rel. Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS,
3ª T., julgado em 13/06/2006, DJ 30/06/2006 p. 214.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 63

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ao ilícito praticado, sob pena de se chancelar ou estimular
o comportamento infringente.

XI - Dos requisitos autorizadoores do pedido


de antecipação de tutela (CDC, Art. 84)
Inicialmente, cumpre destacar que a previsão de
medidas liminares para tutela de direitos ameaçados de
dano irreparável ou de difícil reparação não se trata de
mera faculdade do legislador, mas é decorrência necessária
da garantia constitucional de ação. Do contrário, submeter
tais direitos ao procedimento previsto para as demais ações
seria o mesmo que obstar sua efetiva defesa em juízo na
forma da lei.
Ademais, é garantia constitucional expressa o
acesso ao Judiciário e a tutela efetiva do direito violado
ou ameaçado, a qual deve ser prestada em tempo hábil,
in casu, ponderando-se a hostil violação da dignidade dos
consumidores.
Destaca-se ainda que, no tocante à tutela antecipada
ora pleiteada, trata-se de questão decorrente de
relação de consumo, matéria de ordem pública, cuja
instrumentalidade utilizada decorre dos dispositivos
previstos no CODECOM.
Assim, os requisitos específicos da tutela antecipada
deverão ser analisados por meio da interpretação conjunta
e homogênea do diploma legal supra e, subsidiariamente,
do CPC, quando for o caso.
O CODECOM, em seu art. 84, traz a seguinte
redação:
Art. 84. Na ação que tenha por objeto o cumprimento
da obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a
tutela específica da obrigação ou determinará providências
que assegurem o resultado prático equivalente ao do
adimplemento.

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§ 1- A conversão da obrigação em perdas e danos somente
será admissível se por elas optar o autor ou se impossível a tutela
específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.

§ 2- A indenização por perdas e danos se fará sem


prejuízo da multa (art. 287, do Código de Processo Civil).

 § 3- Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo


justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito
ao juiz conceder a tutela liminarmente ou após justificação
prévia, citado o réu.

 § 4- O juiz poderá, na hipótese do § 3- ou na sentença,


impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do
autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando
prazo razoável para o cumprimento do preceito.

No que concerne ao fumus boni juris, emerge


inquestionável, conforme exaustivamente exposto acima,
que as instituições demandadas têm o dever de agir
com lealdade e observar de modo estrito os princípios da
vulnerabilidade dos consumidores e a boa-fé que há de
ser levada em consideração em todas e quaisquer relações
jurídicas de consumo.
A seu turno, é também inquestionável a presença do
periculum in mora, que emerge claramente em função do
risco que corre o consumidor de continuar a ser lesado ao
sofrer a aviltante violação de seus direitos e ainda suportar
prejuízos de toda sorte.
Os débitos efetuados na conta dos trabalhadores ora
substituídos, aleatória e unilateralmente pelos bancos réus,
que em regra são descontados das contas dos correntistas,
independentemente de sua vontade, certamente tem
causado e ainda causará grandes transtornos a inúmeros
consumidores, principalmente àqueles que têm baixos
salários, como aposentados e pensionistas, de forma que
a apropriação de determinados valores concernentes ao
pagamento de saldos devedores representa, em muitos

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casos, a diferença em ter ou não o dinheiro para comprar
medicamentos ou complementar um determinado
pagamento, dentre outras necessidades urgentes.
De outra banda, o Banco não arcará com nenhum
prejuízo, pois além de contar com seguro sobre operações
financeiras e eventuais prejuízos, poderá, em caso de
decisão contrária a esta ação - o que se admite por força
de argumentação -, cobrar de seus clientes os valores
correspondentes, de modo parcelado, sem que tenha que
arcar - repita-se - com qualquer prejuízo.
Repisa-se que a prática hostilizada cometida pelas
instituições financeiras demandadas esteia-se em ato arbitrário
e unilateral, realizado sem a prévia e devida informação aos
consumidores, pondo-os em flagrante prejuízo.
Ademais, conforme bem elucidado pelo STJ, a questão
posta à baila não comporta grande discussão, pois já
possui entendimento firmado no sentido de que não pode
a instituição financeira debitar valores da conta de seus
correntistas de forma a atingir o salário depositado pelo
empregador em função da sua natureza alimentar.
Por tais razões, requer desde já que este juízo
se digne a deferir a “antecipação de tutela” para a
liberação da verba alimentar de todos os correntistas
que recebem seus pagamentos em conta bancária,
evitando, assim, a continuação ILEGAL da privação
do sustento do consumidor e da sua família
Salienta-se que a continuidade dos descontos levados a
efeito pelas instituições bancárias comprometerá a própria
subsistência dos consumidores, considerando-se o fato
absurdo de as maiores vítimas serem os aposentados que
auferem rendas irrisórias e possuem comprometimento
com enormes gastos, donde emerge a prova inequívoca
do alegado, além da sua verossimilhança lastreada nos
consistentes normativos da remansosa jurisprudência
sobre a matéria.

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Diante de todo o exposto, verifica-se que tal prática
deve ser repelida em sede de antecipação de tutela, sob
pena de se permitir que os trabalhadores continuem sendo
lesados de forma flagrante, uma vez que não podem contar
com seus salários na forma da lei. Neste sentido, a concessão
da medida é essencial para fazer valer os direitos até aqui
demonstrados, os quais são insistentemente violados
pelas instituições financeiras demandadas ao arrepio da
Lei. Sem falar nas infrações aos princípios constitucionais
da dignidade da pessoa humana, da função social dos
contratos e na garantia constitucional da verba alimentar
do trabalhador!
Nessa esteira, a tutela antecipada deverá ser
concedida in limine, inaudita altera parts, para que
os Réus, imediatamente, efetuem o DESBLOQUEIO
INTEGRAL DOS SALÁRIOS, VENCIMENTOS,
PROVENTOS, PENSÕES, SOLDOS E TODO DEPÓSITO
DE NATUREZA SALARIAL DOS CONSUMIDORES,
permitindo o saque imediato e total quando do depósito
efetivado na conta bancária. Determinando-se, ainda, que
os Réus previamente se abstenham de efetuar qualquer
compensação com a verba alimentar, sob pena de multa-
diária no valor de 200.000,00 (duzentos mil reais) por dia
de descumprimento da ordem para cada contrato firmado
que não obedeça a liminar, conforme reza o art. 84, § 4º, do
CDC, sem prejuízo do disposto no art. 84, § 5º, do mesmo
diploma legal, até decisão final da lide.

XII - Dos pedidos


Diante do exposto, REQUER que se digne Vossa
Excelência determinar:
a) Que seja deferida a antecipação de tutela,
determinando-se em caráter LIMINAR, a teor do previsto
no art. 84, do CODECOM, que os Réus se abstenham de

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efetuar qualquer compensação com as verbas alimentares
dos substituídos, que venham a ser recebidas por meio de
suas contas bancárias para que tais verbas sejam livres e
desembaraçadas, fazendo valer a garantia constitucional
que assiste aos consumidores;
a.1) Que seja fixada multa de R$ 200.000,00 (duzentos
mil reais) por dia de descumprimento da antecipação
concedida; e ainda que seja deferida a tutela antecipatória
sem audiência de justificação, tendo em vista o justo
receio de que a demora na sua concessão cause danos
irreparáveis aos consumidores, conforme já aludido,
designando-se, ulteriormente, audiência de conciliação
para eventual composição via elaboração de termo de
ajustamento de conduta; ou; EVENTUALMENTE, para
que a impenhorabilidade se atenha ao montante de 01 (um
salário mínimo), permitindo-se saque integral, e que no caso
de valor superior, seja viabilizada, desde que autorizada
por cláusula em destaque e expressa, com assinatura
individualizada, do desconto em conta bancária até o
limite de 30 % (trinta por cento) do pagamento de qualquer
verba alimentar em favor do consumidor, com liberação
do saldo remanescente, observando, no entanto, perante
os órgãos gestores de pagamento do consumidor, se já não
há comprometimento da renda com outras obrigações de
ordem bancária até o referido limite, restando-se impedido
o ato de bloqueio se previamente já estiver a renda
comprometida neste parâmetro;
b) A publicação do edital a que alude o art. 94 do
CODECOM, a fim de que os interessados possam intervir
no processo como litisconsortes ou se utilizem da suspensão
das ações individuais já em trâmite, nos termos do art. 104
do mesmo diploma legal;
c) Que sejam citados os Réus, via postal, na pessoa
de seus representantes legais, nos endereços constantes

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no preâmbulo da exordial para, querendo, apresentarem
resposta aos termos da presente ação, sob pena dos efeitos
da revelia e da confissão;
d) Ao final, sejam confirmados os efeitos da
tutela antecipada deferida, julgando-se integralmente
PROCEDENTES os pedidos, para declarar-se:
d.1) A manutenção da impenhorabilidade do depósito
de qualquer verba alimentar em conta bancária dos
consumidores correntistas;
d.2) A abstenção de retenção e compensação, permitindo-
se, por conseguinte, saque imediato e total no momento
do depósito efetivado na respectiva conta, sem prejuízo
dos danos morais individuais; ou; EVENTUALMENTE,
para que a impenhorabilidade se atenha ao montante de
01 (um salário mínimo), permitindo-se saque integral, e
que no caso de valor superior, seja viabilizada, desde que
autorizada por cláusula em destaque e expressa, com
assinatura individualizada, do desconto em conta bancária
até o limite de 30 % (trinta por cento) do pagamento de
qualquer verba alimentar em favor do consumidor,
com liberação do saldo remanescente, observando, no
entanto, perante os órgãos gestores de pagamento do
consumidor, se já não há comprometimento da renda com
outras obrigações de ordem bancária até o referido limite,
restando-se impedido o ato de bloqueio se previamente já
estiver a renda comprometida neste parâmetro;
d.3) A determinação de que os Bancos passem a
advertir expressa e formalmente para os consumidores
que a contratação de empréstimos pode conduzir ao
superendividamento, sob pena de incidir em multa
diária de R$200.000,00 (duzentos mil reais) por cada
descumprimento;
e) A condenação genérica da instituição financeira a
ressarcir os  consumidores e, assim, restituir caso a caso

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os valores indevidamente descontados dos vencimentos
depositados em suas contas bancárias, acrescidos de correção
monetária e juros legais desde a citação, sem olvidar que a
tutela jurisdicional dos interesses objetivados na presente
ação está prevista no pedido de condenação dos requeridos
à reparação dos danos aos consumidores lesados, de acordo
com os prejuízos suportados por cada um, caso em que
bastará uma condenação genérica (art. 95 do CODECOM),
limitando-se a fixar a responsabilidade dos réus e a condená-
los a reparar os danos causados, os quais deverão ser
apurados e quantificados em liquidação de sentença movida
por cada uma das vítimas, com a posterior execução;
f) A condenação a título de danos morais, a serem
arbitrados por este juízo, sugerindo-se que o quantum a ser
fixado para cada caso siga o patamar já fixado pelo STJ21;
g) A aplicação da inversão do ônus da prova na forma do art.
6º, VIII, do CODECOM devido à hipossuficiência dos correntistas
face aos Réus e à capacidade destes de produzi-la;
h) A condenação dos Réus ao pagamento das custas processuais
e dos honorários advocatícios à base de 20% (vinte por cento) sobre
o valor da causa, levando-se em consideração a vantagem obtida
para os consumidores, a qualidade do trabalho desenvolvido pelos
advogados que subscrevem a presente e a extrema complexidade
jurídica da causa;
i) Seja determinada e deferida a dispensa do recolhimento de
custas nos moldes do art. 87, da Lei nº. 8.078/90;
j) Que a coisa julgada tenha eficácia erga omnes,
independentemente da competência territorial do órgão
21 Forte em tais razões, DOU PROVIMENTO ao recurso especial, para
condenar o recorrido I – a restituir ao recorrente os salários indevidamente
descontados de sua conta-corrente, quantia essa acrescida de correção
monetária e juros legais desde a citação; II – a compensar os danos morais
causados ao recorrente, fixando-se estes em R$ 5.000,00 (cinco mil reais),
valor esse a ser corrigido desde essa data e, ainda, acrescido de juros legais
desde a data do primeiro desconto indevido... (STJ - REsp. 1.012.915 – PR
- Acórdão COAD 0288591-9 - Rel. Min. Doracy Grisólia Vergani – Publ. em
03-02-2009)

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prolator, para abranger todo o território da unidade
federada.
Requer-se, por fim, seja comunicado o Conselho
Nacional de Justiça para inscrever a presente ação
no Cadastro Nacional de Processos Coletivos, com a
finalidade de permitir que os órgãos do Poder Judiciário
e os consumidores tenham amplo acesso às informações
relevantes relacionadas e ao estado das ações coletivas.
Dá-se a causa para efeitos fiscais e legais o valor de
160.000.000,00 (cento e sessenta milhões de reais).
Nesses termos, pede deferimento.
Florianópolis, 8 de setembro de 2009.
Francisco Carlos Duarte Luciana de Quadros
OAB/SC 4.418 - A OAB/SC 28.253

Notas
[1] NUNES, Rizzatto. In: Curso de Direito do Consumidor. São Paulo:
Saraiva, 2004, p. 570.
[2] NUNES, Rizato - obra citada, p 571.
[3] BENJAMIN, Antonio Herman de Vasconcelos. In:  Código Brasileiro
de Defesa do Consumidor - Comentado pelos Autores do Anteprojeto. 7.
ed. São Paulo: Forense, 2001, p. 325/326.
[4] Ob. Cit.  Pág. 334/335.
[5] NISHIYAMA, Adolfo Mamoru. In: A Proteção Constitucional do
Consumidor. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002, p. 132.
[6] NETO, Guilherme Fernandes  - in  O Abuso do Direito no Código de
Defesa do Consumidor, Brasília Jurídica, 1999.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 71

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O CDC e o direito de
proteção contra publicidade
enganosa e abusiva na oferta
de alimentos e bebidas
destinados às crianças e aos
adolescentes

Me. Júlio César de Carvalho Pacheco1


Me. Vinícius Borges Fortes2

Introdução
No presente artigo pretende-se investigar os efeitos
do excesso do consumo nas famílias brasileiras e a
necessidade de proteção das crianças e dos adolescentes,
bem como a necessidade de proteção do consumidor em
relação à publicidade veiculada nas embalagens das
bebidas destinadas às crianças e aos adolescentes. Nesta
perspectiva, discute-se a providência adotada pela Agência
Nacional de Vigilância Sanitária, visando ao atendimento
aos princípios constitucionais e aos direitos fundamentais
de defesa do consumidor para resguardar os consumidores
– e principalmente as crianças e os adolescentes – no que se
refere aos anúncios e às ofertas apresentadas nos rótulos de
bebidas e alimentos dedicados a estes públicos, orientando
1 Júlio César de Carvalho Pacheco é Mestre em Desenvolvimento, Direito
e Cidadania – UNIJUÍ/RS; Especialista em Direito Processual Civil –
Instituto Brasileiro de Processo Civil/Brasília-DF e Especialista em Direito
Constitucional – ULBRA/Carazinho-RS.
2 Vinícius Borges Fortes é Mestre em Direito pela UCS – Universidade de
Caxias do Sul/RS.

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os consumidores sobre o excesso de gordura trans, gordura
saturada, excesso de açúcar e sódio.
Ademais, a pesquisa ora apresentada elucidará a postura
regulatória consumerista em outros sistemas jurídicos que
consolidaram a premissa de proteção do bem-estar e da saúde
do consumidor a partir da obrigatoriedade informacional em
produtos que representem risco iminente.

O consumismo frente aos valores


constitucionais da família e a
necessidade de proteção das crianças
e dos adolescentes
o consumismo de hoje […] não diz mais
respeito à satisfação das necessidades […]. Já
foi dito que o spiritus movens da atividade
consumista não é mais o conjunto mensurável
de necessidades articuladas, mas o desejo –
entidade muito mais volátil e efêmera, […].
(Zygmunt Bauman3).
A família brasileira, garantida pelos princípios da
dignidade da pessoa humana, da solidariedade familiar, da
igualdade e do direito à diferença, do melhor interesse do
menor, do princípio da convivência familiar e da aplicação
do princípio da liberdade, ainda está buscando o exercício do
equilíbrio entre os seus membros e a realidade factual que não
se mostra fácil junto a uma sociedade consumista, midiática
e capitalista, pulverizada por valores que nem sempre se
coadunam com os ideais pautados pelo texto constitucional.
O direito do consumidor, compreendido como
microssistema e, consequentemente, como um ramo
autônomo do direito, por meio do Código de Defesa do

3 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução: Plínio Dentzien.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. p. 88.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 73

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Consumidor (CDC)4, traz em seu bojo diversos princípios
fundamentais que se encontram elencados nos artigos
1º a 7º, os quais têm por objeto auxiliar a realização da
hermenêutica da tutela protetiva do homem-consumidor.
Diante disso, é possível identificar na lei protetiva um elenco
de princípios fundamentais, dentre os quais o princípio da
igualdade, o princípio da liberdade, o princípio da boa-fé
objetiva, o princípio da vulnerabilidade, o princípio da
transparência, o princípio da repressão eficiente aos abusos
e o princípio da harmonia do mercado de consumo.
O CDC, no que se refere ao princípio da igualdade, veio
regulamentar de modo específico um princípio já positivado
na Constituição de 1988, concretizando, sobretudo, o
objetivo de igualar de maneira uniforme os cidadãos
brasileiros nas relações de consumo por estes estabelecidas.
De acordo com Bonatto e Moraes5, “o consumidor, no mundo
moderno, foi obrigado a estar submisso aos fornecedores de
produtos ou de serviços, como única forma de satisfazer
suas necessidades básicas […]”, sendo essa circunstância
prejudicial para o convívio harmônico nas relações de
consumo, visto que ferida constantemente a dignidade da
pessoa humana. É por esse motivo, portanto, que o CDC
possui pertinência inegável no ordenamento jurídico pátrio,
visto que muniu o consumidor brasileiro de instrumentos
de proteção e respeito de seus direitos.
O princípio da liberdade constitucional está
intimamente ligado ao livre poder de escolha ou autonomia
de constituição, realização e extinção da família, mas está
longe de representar liberdade entre os padrões sociais do
capitalismo contemporâneo, que impõe limites e condicionam
as opções de escolhas. Nessa esteira, pode-se afirmar ser

4 BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. 1990.


5 BONATTO, Cláudio; MORAES, Paulo Valério Dal Pai. Questões
controvertidas no Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2003. p. 30.

74 Balcão do Consumidor

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este um desdobramento imediato do princípio da igualdade,
visto que à liberdade está pressuposta a igualdade. Nesse
sentido, a liberdade importa na plena possibilidade de ação
social sem que sejam atingidos, para tanto, o direito de
liberdade referendado pela Carta Constitucional e estendido
a todos os cidadãos brasileiros6.
A liberdade aduzida no Código de Defesa do Consumidor
conecta-se diretamente com a problemática da agressão
à autonomia da vontade dos indivíduos consumidores. A
partir disso, o princípio da liberdade voltou-se ao CDC
como paradigma hermenêutico capaz de assegurar a plena
eficácia deste diploma legal. Há que se dizer, ainda, que o
princípio da liberdade é significativamente relevante para
a aplicabilidade eficaz da lei protetiva do consumidor,
contudo, necessariamente aliado aos princípios da
igualdade e da boa-fé objetiva.
O princípio da boa-fé objetiva traduz, por sua vez,
(...) a necessidade de que as condutas sociais estejam
adequadas a padrões aceitáveis de procedimento que não
induzam a qualquer resultado danoso para o indivíduo, não
sendo perquirido da existência de culpa ou de dolo, pois o
relevante na abordagem do tema é a absoluta ausência de
artifícios, atitudes comissivas ou omissivas, que possam alterar
a justa e perfeita manifestação de vontade dos envolvidos em
um negócio jurídico ou dos que sofram reflexos de uma relação
de consumo7.

Esse princípio traz em seu bojo, ainda, a expressa


contribuição que o CDC apresentou aos consumidores
brasileiros pela manifestação expressa do dever de
completa transparência, de integral informação ao
consumidor, da não aceitação de linguagem complexa, da
interpretação em favor do consumidor em caso de dúvida
em cláusulas contratuais (princípio da vulnerabilidade e
da hipossuficiência), do dever de cooperação, entre outros.
6 Ibidem. p. 35.
7 Ibidem. p. 37-38.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 75

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Não obstante a positivação dos princípios de igualdade,
liberdade e boa-fé objetiva, a Lei n.º 8.078/90 preencheu,
ainda, a lacuna existente no abismo de desigualdades nas
relações de consumo entre consumidor e fornecedores ou
prestadores de serviço. Todavia, isso só se fez possível pela
definição daquele como indivíduo vulnerável e hipossuficiente
perante estes. Com efeito, o indivíduo consumerista pode ser
atacado de várias maneiras, quais sejam, a pressão sobre sua
privacidade, o convencimento e a manipulação psíquicas,
principalmente por meio de técnicas e métodos de marketing
capazes de induzir o consumidor a aceitar ou simplesmente
a acatar o objetivo desses mecanismos persuasivos, ou seja,
a criação de necessidades de consumo antes inexistentes
para determinado grupo de consumidores8.
O princípio da vulnerabilidade consiste,
essencialmente, na proteção do consumidor, tendo em vista
sua fragilidade técnico-profissional diante das relações de
consumo. Nesse afã, é o indivíduo-consumidor considerado
hipossuficiente em relação ao fornecedor do produto ou
serviço, os quais, na visão de Bonatto e Moraes9, “detêm
os conhecimentos técnicos e profissionais específicos e
atinentes às suas atividades, o que induz à óbvia aceitação
de que o consumidor deve ser protegido”. Logo, o princípio
da vulnerabilidade é o instituto que representa a tutela
dos princípios da Constituição Federal10 inseridos no artigo
170, sobretudo da defesa do consumidor.
Diante da acepção vulnerável do consumidor no CDC,
surge o princípio da repressão eficiente aos abusos como
elemento agregador aos demais institutos principiológicos
na tutela do homem-consumidor. Conforme ensinamento de
Alberton11, “sempre que um titular de direito escolhe o que

8 Ibidem. p. 43.
9 Ibidem. p. 44.
10 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988.
11 Apud BONATTO; MORAES, 2003, p. 48.

76 Balcão do Consumidor

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é mais danoso para outrem, não sendo mais útil para si ou
adequado ao espírito da instituição”, ocorre aparente abuso
ao exercício de um direito. O referido princípio não visa à
exclusiva proteção do consumidor, já que este também pode
ser agente ativo no cometimento de abusos, mas à tutela de
todos os sujeitos envolvidos nas relações de consumo.
Atrelados a este princípio estão os da superioridade
ou da prepotência econômica, para os quais a abusividade
origina-se do fato de o fornecedor ser o detentor das regras
do negócio, e o princípio do estado de necessidade, que
neutraliza definitivamente a arguição de que o consumidor
assinou determinado contrato por simples e mero ato
volitivo. Resta evidente, portanto, que o princípio da
repressão eficiente aos abusos é imprescindível para a
eficácia das finalidades a que se destina o Código de Defesa
do Consumidor, sendo, ainda, instrumento de suporte aos
demais princípios que fundamentam e subsidiam o CDC e
a tutela do consumidor.
Por fim, surge o princípio da harmonia do mercado de
consumo, com a finalidade de atender aos paradigmas da
atividade econômica do país e possibilitar a obtenção de um
cenário favorável para o seu desenvolvimento. Entretanto,
para que isso ocorra há que se buscar a harmonia entre os
sujeitos das relações de consumo, visto que, reciprocamente,
necessitam uns dos outros, consumidores e fornecedores de
bens de consumo. Diante disso, afirma-se que a harmonia
do mercado de consumo deve ser reciprocamente alcançada
entre os sujeitos das relações consumeristas com o objetivo
de autoajustar o mercado de consumo, tendo em vista a
insuficiência do poder público para aplicar instrumentos
repressivos às abusividades cometidas por quaisquer partes.
Há, ainda, dois fatores relevantes que contribuem
para o desequilíbrio nas relações de consumo: a existência
insuficiente de associações e órgãos representativos

Reflexões sobre o hiperconsumismo 77

Livro-003-1-224.indd 77 28/05/2014 14:19:27


dos consumidores que postulem pela eficácia da lei
consumerista e a timidez dos fornecedores e prestadores de
serviço na defesa e proteção de seus próprios consumidores,
visto que é ainda ineficaz a implementação de unidades de
relacionamento que solucionem e conciliem efetivamente
os problemas encontrados e apontados pelo cliente.
Nesse mister, atingir a harmonia do mercado consumidor
representa a concretização da totalidade dos princípios de
ordem econômica ensejados pelo art. 170 da Carta de 1988,
oportunizando, portanto, o apaziguamento entre indivíduos
reciprocamente dependentes, ou seja, consumidores e
fornecedores ou prestadores de serviço.
Diante do exposto, indubitável é a relevância do Código
de Defesa do Consumidor e dos princípios que trouxe consigo,
visto que permitem não apenas a interpretação das normas
inseridas neste diploma legal, mas a organização de toda
a sociedade consumerista. Outrossim, o nascimento da lei
especial atendeu às expectativas do legislador constituinte,
quando, em 1988, outorgou a tutela do indivíduo-
consumidor sob a compreensão de direito fundamental. O
CDC é, sobretudo, uma lei ordinária de ordem pública e
interesse social, representando, portanto, um compêndio de
princípios e regras que fazem do direito do consumidor um
ramo autônomo da ciência jurídica nos dias atuais.
A toda a evidência, numa sociedade em que nem mesmo
o indivíduo é livre na atual sociedade, melhor sorte não se
apresenta para a família brasileira, que sofre as influências
de culturas capitalistas, consumistas e midiáticas no dia a
dia do seu desenvolvimento. Não por outra razão, Eduardo
Bittar12 adverte que,
O indivíduo pós-moderno não é livre, senão em imagens
evocadas por outdoors e propagandas televisivas; ele é
12 BITTAR, Eduardo C. B. Família, Sociedade e Educação: um Ensaio
sobre Individualismo, Amor Líquido e Cultura Pós-Moderna. In: Revista
Brasileira De Direito das Famílias e Sucessões - Porto Alegre: Belo
Horizonte: IBDFAM, 2007, p. 10.

78 Balcão do Consumidor

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controlado, monitorado, determinado e esculpido pelos fluxos
e refluxos do mercado. Sua essência está fora de si; sua
essência não é auto-consciência, mas hetero-consciência. Se
o mercado se incrementa a todo tempo, se estar no mercado
significa enfrentar a concorrência infinitamente crescente
dos competidores, o mercado só pode ser visto como lugar
de permanente projeção do novo, não importa o que seja o
do que se trate, o sucesso do novo está em sua aprovação e
consolidação como um novo aceito, ou seja, o próprio ato de
consumo se torna uma forma de mensuração plausibilidade
da novidade.

O consumismo como fenômeno contemporâneo é


algo que atinge a humanidade toda e como a família e a
sociedade estão intimamente ligadas pela vontade dos
seus agentes, a interferência do consumo nessas relações é
evidente e marcante. Esse ritmo é tão intenso e acelerado
que alguns estudiosos já estão considerando o tempo atual
como o século do hiperconsumo.
Com toda a razão, Pereira et al.13 consideram que
“foi criada uma subjetividade heterônoma, que elabora
a racionalidade cognitiva, moral e estética. Os cidadãos
se tornam predeterminados a desejarem produtos
apresentados no mercado e acreditam que a felicidade está
na aquisição desses produtos”. Com maior intensidade as
crianças e os adolescentes, cuja personalidade ainda está em
formação, tendem a desejar profundamente esses produtos
anunciados pelos meios de publicidade, considerando –
em muitos casos – que a felicidade de suas vidas depende
exclusivamente da aquisição desses produtos.
Diante disso, é possível confirmar, conforme afirmam
Pereira et al.14, que a “a base de toda nossa sociedade se
tornou o consumo”. Nesse sentido, destacam a influência
das mídias no convencimento da população e o controle que
13 PEREIRA, Agostinho Oli Kopper et al. Relações de Consumo. Meio
Ambiente. In: Hiperconsumo e ética ambiental. Caxias do Sul, RS: Educs,
2009, p. 11.
14 Ibidem, p. 13.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 79

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a mídia provoca sobre a vida das pessoas, gerando interesse
em determinados produtos:
A população passou a ser envolvida por publicidades –
inicialmente escritas, depois pela fala por meio do rádio, seguindo-
se a imagem do cinema e da televisão e, agora, num misto de
tudo, pela internet. Esse contorno publicitário que se manifestou
e se manifesta de diversos meios, implícitos e explícitos, torna a
vida do cidadão manipulada para o consumo. Tudo isso, sem que
o indivíduo perceba e, assim, colabore para que o sistema pré-
organizado decorra conforme um jogo já jogado.

É desse modo, usando mecanismos midiáticos, que


o mercado induz necessidade de consumo de produtos
supérfluos como estética, lazer, viagem, moda, academia
e tudo associado à vida de necessidades essenciais para a
família. No que diz respeito às crianças e aos adolescentes,
a gama de oferta de produtos, brinquedos e eletrônicos é
imensa, além de ofertas de bebidas e alimentos associados
à imagem de super-heróis ou temas da moda, impondo um
modo de ser dos jovens e das crianças, como se a aceitação
desses nos grupos sociais tivesse a ver com a aquisição
de determinados bens. É o mercado tentando estabelecer
um novo ritmo para a felicidade e para a afetividade das
pessoas.
Para o sociólogo polonês Bauman,15
Neste mercado da afetividade volátil, alter aparece com
um outro-mercadoria que é consumido e de quem se dispõe
transitoriamente como objeto, até quando outro produto mais
útil aparece em sua subtituição. O ritmo da afetividade vem
marcado pelo timing de mercado, pelo tempo dos produtos
que se sucateiam e se tornam obsoletos. O amor líquido é a
demonstração exemplar da capacidade dissolutória do capital,
que desarranja instituições basilares como a família. A
volatilidade do capital contemporâneo imprime ao amor uma
feição liquefeita.

15 BAUMAN, Zygmunt. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos.


Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004,
p. 210.

80 Balcão do Consumidor

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Para que a nova família não entre em crise, movida
pelo consumismo exacerbado do mercado capitalista que
impõe certas normas comportamentais, como a obrigação
de consumir bens de última geração, como carros novos
e potentes, computadores, notebook, tablet, Playstation,
iPad, palmtops, handhelds, PDAs, Jet Ski e outros bens
materiais, é fundamental buscar-se o equilíbrio nas
relações familiares, por meio do constante diálogo entre os
membros da família e da utilização da comunicação pelo
grupo e para o grupo - e não individualmente -, buscando
abertura para a prática de mediação como alternativa de
solução de conflitos. Os conflitos também se estabelecem
nas pequenas compras, como brinquedos e alimentos. Em
relação a esse último produto, o grande dilema é como as
famílias poderão enfrentar a forte mídia que impulsiona a
aquisição de alimentos da moda, mas de baixa qualidade
proteica.
A par desta necessidade, é imprescindível a discussão
de parâmetros de regulação do mercado e da importância
que o diploma legal pode representar para a harmonização
das relações familiares e de consumo.
Quando se fala em Direito do Consumidor, não se pode
limitar o estudo à noção reducionista de que as relações
de consumo são as relações factuais e jurídicas de compra
de bens e produtos ou aquisição de serviços, envolvendo
de um lado o consumidor e de outro o fornecedor.16 As
relações de consumo envolvem uma complexidade de
relações muito mais abrangentes do que os conceitos
simplificados do Código de Defesa do Consumidor. Por
trás do consumo, vislumbra-se uma cultura de consumo,
que envolve conceituações densas de conteúdos que muitas
vezes escapam aos conceitos meramente jurídicos.

16 ANDRADE, Ronaldo Alves de. Curso de Direito do Consumidor. Barueri,


São Paulo: Manole, 2006.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 81

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Para Featherstone17, “a cultura de consumo, por meio
da publicidade, da mídia e das técnicas de exposição das
mercadorias, é capaz de desestabilizar a noção original de
uso ou significado dos bens”. Isso quer dizer que o consumo,
pelo menos no mundo contemporâneo, não pode mais ser
visualizado como aquisição de valores de uso, de utilidades
materiais, mas essencialmente e fundamentalmente como
o consumo de signos.
A sociedade contemporânea está saturada de signos e
imagens e a publicidade se encarrega de formatar o paraíso
dos desejos dos consumidores e, nesse compasso, “os bens
de consumo cotidianos e mundanos passam a serem
associados a luxo, exotismo, beleza e fantasia, sendo cada
vez mais difícil decifrar seu ‘uso’ original ou funcional.”18
Conforme Featherstone19, esta superprodução de
signos e a perda de referentes é uma tendência imanente
da cultura de consumo, mas como adverte o próprio autor,
“embora o consumismo resulte numa inflação da quantidade
de bens em circulação, isso não resulta num eclipse geral
do sagrado, algo que fica evidente se focalizarmos o
simbolismo que os bens possuem na prática”.
Destaca ele, com absoluta precisão, que espetáculos
de rock televisionados para todo o mundo, como o concerto
para Nelson Mandela, no período de rompimento do cenário
de apartheid na África do Sul, também tem o condão de
invocar um sentimento de paz e solidariedade emocional
suscetível de redespertar e fortalecer preocupações morais,
como o sentido de humanidade, os direitos humanos, o
caráter sagrado da pessoa, da natureza e das espécies não
humanas. A questão é se temos maturidade suficiente
para transformar também as boas ideias relativas ao

17 FEATHERSTONE, Mike. Cultura de Consumo e Pós-Modernismo.


Tradução de Júlio Assis Simões. São Paulo: Studio Nobel, 1995, p. 160.
18 Idem, p. 160.
19 Idem, p. 160.

82 Balcão do Consumidor

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consumo e aos comportamentos em algo capaz de melhorar
e contribuir com a vida das pessoas.
Para o sociólogo polonês Bauman20, as grandes
questões em debate no mundo contemporâneo exploram
práticas constantes da humanidade: o homem trabalha
para viver ou vive para trabalhar versus é necessário
consumir para viver ou viver para consumir? São debates
interessantes, sendo que o primeiro mostra um embate
dialético do passado, e o segundo traz à tona o principal
debate filosófico da modernidade.
Dito isso, fica claro que o consumo pode não ser em si
um fator prejudicial à raça humana, podendo, ao contrário,
despertar valores éticos e morais de elevada grandeza,
desde que as relações de consumo sejam fixadas em bases
de conduta ética, concebidos por meio de princípios e valores
morais que nutrem uma sociedade, respeitando valores como
a família, a dignidade da pessoa humana, a democracia,
a boa-fé objetiva, os direitos de proteção da criança e do
adolescente, o respeito aos mais velhos, dentre outros.
Não por outra razão, a Carta Constitucional do Brasil,
ao fixar as diretrizes para o exercício das atividades da
radiodifusão e da televisão, que são os dois principais
veículos de divulgação das peças publicitárias de consumo,
define como princípios dessa comunicação o respeito aos
valores éticos e sociais da pessoa e da família (art. 221, IV).
Ressalte-se, por oportuno, que a defesa do consumidor
é direito fundamental definido assim no art. 5º, inciso
XXXII, da Constituição da República Federativa do Brasil.
Não só compete ao Estado garantir a defesa do consumidor,
positivando normas de proteção destes, mas também
é tarefa da ordem econômica a defesa do consumidor,
conforme ratifica o art. 170, V. E a efetivação da garantia
constitucional foi concretizada com a publicação do Código
20 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 83

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de Defesa do Consumidor, por meio da Lei n.º 8.078/90 e
outras leis de proteção do consumidor.21
O art. 6º do Código de Defesa do Consumidor, que
funciona como o coração do Código de Proteção nas Relações
de Consumo, destinado a irrigar todos os sistemas do CDC,
enumera direitos básicos do consumidor, dentre os quais a
proteção contra a publicidade enganosa e abusiva.
O Direito do Consumidor, por ser um direito
fundamental, insculpido no art. 5º, no rol dos direitos e
das garantias individuais, enquadra-se nas cláusulas
pétreas do art. 60, § 4º da CF/88, não podendo ser objeto
de deliberação em proposta de emenda constitucional
tendente a abolir esta categoria de direito, constituindo-se,
portanto, em patrimônio jurídico da sociedade brasileira.
Segundo Bonavides22,
(...) a garantia constitucional qualificada ou de primeiro
grau garante a inalterabilidade do preceito tanto por via
legislativa ordinária como por via constituinte derivada; a
regra constitucional é protegida simultaneamente contra a
ação dos dois legisladores: o legislador ordinário e o legislador
constituinte – este último dotado de competência para emendar
a Constituição. A garantia constitucional se apresenta tão
rígida que não consente sequer seja objeto de deliberação a
proposta de emenda sobre a matéria constante da cláusula
constitucional de exclusão sobre a qual não incide assim o
poder de reforma.

No plano constitucional, importa ainda destacar a


narrativa histórica de Bulos23. Segundo ele, a primeira
21 Também a Lei nº 8.884/94, da prevenção e repressão às infrações contra
a ordem econômica; Decreto nº 2.181/97, da organização do SNDC –
Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e que fixa as normas gerais
de aplicação das sanções administrativas previstas no CDC; Portaria nº
04/98, da Secretaria de Direito Econômico (SDE), que ampliou o catálogo
de cláusulas abusivas consideradas nulas de pleno direito, dentre outras.
22 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo:
Malheiros, 1993, p. 461.
23 BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São
Paulo: Saraiva, 2009, p. 513.

84 Balcão do Consumidor

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Constituição a acolher normas de proteção do consumidor
numa linguagem progressista foi a Carta portuguesa de
1976, seguida pela Constituição Espanhola de 1978. E
foi justamente nestas duas cartas constitucionais que o
legislador-constituinte brasileiro foi buscar inspiração
para proclamar no seu texto maior a obrigação de o Estado
promover a defesa do consumidor, além de atribuir à livre
iniciativa, como princípio da ordem econômica, a mesma
garantia consumerista, elevando o consumidor ao patamar
máximo de proteção legal-constitucional (art. 170, V, CF).
Para Bulos, o patamar constitucional do direito do
consumidor é plenamente justificável: “a vida moderna das
sociedades de massas, nas quais o ter substituiu, quase
sempre, o ser, em que a preocupação preponderante é o
lucro, a riqueza, o aumento do patrimônio, as relações
consumeristas tinham de ter condigna tutela legislativa,
como, aliás, obteve.”24
No âmbito das gerações dos direitos, o direito do
consumidor pertence à terceira geração dos direitos,
visto que o Código de Defesa do Consumidor trata estes
direitos decorrentes dos conflitos de massa como direitos
que merecem proteção coletiva, englobando-os nas
possibilidades de ações coletivas tendentes à defesa dos
direitos coletivos e difusos.

A proteção do consumidor em relação


à publicidade de alimentos e bebidas
Sendo o direito do consumidor um direito fundamental
do cidadão, há necessidade de proteção do consumidor em
relação à publicidade abusiva e enganosa. Por enganosa,
conforme define o art. 37, § 1º, do Código de Defesa do
Consumidor, entende-se toda publicidade, ou seja, qualquer

24 Idem, p. 513.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 85

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modalidade de informação ou comunicação de caráter
publicitário, que possa induzir em erro o consumidor a
respeito da natureza, características, qualidade, quantidade,
propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre
produtos e serviços; e publicidade abusiva é conceituada, no
§ 2º do mesmo artigo, como a publicidade discriminatória de
qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo
ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento
e experiência da criança, desrespeite valores ambientais,
ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar
de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.
O CDC reconhece tanto a abusividade e a enganosidade,
na forma comissiva, quanto na forma omissiva.
Como exemplo de publicidade abusiva, merece
destaque a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo,
Apelação Cível 241.337-1/0, de 199625, que condenou
o fornecedor que fez veicular na televisão propaganda
em que uma apresentadora destruiu um tênis velho,
induzindo os consumidores, especialmente as crianças, a
se comportarem da mesma maneira, para que seus pais
adquirissem um tênis novo.
Abusos como este são verificados frequentemente
nos meios de comunicação e, apesar das restrições
legais determinadas pelo Código Consumerista, a pouca
efetividade de órgãos estatais de controle da publicidade
e especialmente a falta de organização da sociedade em
Associações de Consumidores permite, ainda, a reiteração
destes abusos.
Nesse sentido, há necessidade de cuidados redobrados
por parte dos órgãos de proteção ao consumidor e das
entidades reguladoras das normas técnicas de produtos
e serviços com a forma de publicidade de produtos
relacionamentos à área alimentar, especialmente no que
25 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível
241.337-1/0. 1996.

86 Balcão do Consumidor

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diz respeito aos produtos direcionados para o público
infantil.
Nesse viés, é de se salientar que é dever do fornecedor,
conforme estabelece o direito básico do consumidor, art.
6º do CDC, informar claramente as características de
produtos e serviços, principalmente na embalagem, como
decorrência do princípio da transparência e da boa-fé. Para
Benjamin26, no entanto, é necessário observar dois aspectos
sobre as embalagens:
Devemos, entretanto, distinguir dois aspectos da
embalagem: seu design (tamanho e forma) e sua decoração
(as palavras e imagens impressas). Esta ultima, de cera
maneira, confunde-se com o próprio conceito de rotulo. Em
ambos a manifestação da enganosidade. Assim, por exemplo,
é enganoso surgir, mediante forma especial (design), que o
recipiente contém mais produto do que realmente tem. Do
modo, há enganosidade na rotulagem que induz o consumidor
a crer que se trata de produto natural, quando, na verdade, é
artificial.

Com o intuito de coibir a abusividade e proteger a


família, evidencia-se a necessidade de fixação de regras
limitadoras no mercado, restringindo a liberdade dos
fornecedores quanto ao marketing e visual das embalagens,
bem como se impõe como fator de garantia da efetividade
dos direitos do consumidor a vedação dos vínculos criados
pelos fornecedores entre o produto e os brindes acessórios,
que são objeto de abusividade, tais como a presença de
brinquedos como brindes de produtos alimentares de
qualidade duvidosa.
A respeito disso, a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (ANVISA) publicou a Resolução RDC n.º 24, no
dia 29 de junho de 201027, com vacatio legis de 180 dias. A

26 BENJAMIN, Antônio Herman V. et al. Manual de Direito do Consumidor.


2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 193.
27 BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução n.º 29.
2010.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 87

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regulamentação obriga, no art. 6º, III, que os fornecedores
de alimentos com baixo teor nutritivo introduzam em suas
peças publicitárias advertências com relação a estes riscos,
com inscrições do tipo: “O produto ‘x’ contém muito açúcar
e, se consumido em grande quantidade, aumenta o risco
de obesidade e cárie dentária; o produto ‘x’ contém muita
gordura saturada e, se consumido em grande quantidade,
aumenta o risco de diabetes e de doença do coração; o
produto ‘x’ contém muita gordura trans e, se consumida
em grande quantidade, aumenta o risco de doenças do
coração; o produto ‘x’ contém muito sódio e, se consumido
em grandes quantidades, aumenta o risco de pressão alta
e de doenças do coração”.
A Resolução tem o objetivo de cumprir o direito básico
de defesa do consumidor, preservando a saúde de todos
aqueles consumidores expostos à oferta, à propaganda,
à publicidade, à informação e outras práticas correlatas,
cujo teor seja a divulgação e a promoção comercial de
alimentos que contenham quantidade elevadas de açúcar,
de gordura saturada, de gordura trans, de sódio e bebidas
com baixo teor nutricional e de grande comercialização em
todo o mundo, motivadas, em grande parte, pela qualidade
da mídia destes produtos, principalmente das peças
publicitárias direcionadas às crianças e aos adolescentes.
Convém lembrar que o texto constitucional, no art. 227,
define a responsabilidade coletiva na proteção das crianças
e dos adolescentes: “é dever da família, da sociedade e do
Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à
dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar
e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma
de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão”.

88 Balcão do Consumidor

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Nesse compasso, tem a resolução da ANVISA o
caráter de proteção constitucional do público infantil.
Assim, a norma tem o intuito, no caso dos alimentos e
bebidas com pouco teor nutritivo, de proibir a propaganda
com mensagens que possam induzir a erro (publicidade
enganosa) ou a interpretação incorreta sobre a origem
destes produtos, a procedência, a natureza, a qualidade,
a composição ou que atribuam características nutricionais
superiores àquelas que realmente possuem, sendo
proibidas expressões que informem que os alimentos e
as bebidas são nutricionalmente completos, quando não
o são verdadeiramente; informem que o seu consumo
constitui garantia para uma boa saúde; desestimulem de
qualquer forma o aleitamento materno até os dois anos
de idade ou mais; informem que os produtos possuem
em suas composições nutrientes ou fibras alimentares
adicionados intencionalmente que possam atuar como
substitutos de alimentos que os possuam naturalmente
em suas composições, nutrientes ou fibras alimentares
adicionados intencionalmente que possam atuar como
substitutos de alimentos que os possuam naturalmente em
sua composição; utilizem expressões que sugiram que o seu
consumo é saudável ou benéfico para a saúde, quando eles
forem classificados com quantidades elevadas de açúcar, de
gordura saturada, de gordura trans, de sódio e de bebidas
com baixo teor nutricional.
Interessante atentar para a Lei n. 8.069/90 (Estatuto
da Criança e do Adolescente)28, que ressalta o direito das
crianças e dos adolescentes à alimentação saudável e
adequada, a teor do texto contido no art. 7º, in verbis:
Art. 7º: A criança e o adolescente têm direito a proteção
à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais
públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento
sadio e harmonioso, em condições dignas de existências.
28 BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. 1990.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 89

Livro-003-1-224.indd 89 28/05/2014 14:19:27


O Estado deve preocupar-se com a saúde das crianças
que consomem produtos de baixo teor nutricional, e para
que a reconstrução de uma alimentação saudável seja
assunto de saúde pública, evitando assim o aumento de
obesidade, de sobrepeso, de câncer e diversas outras
doenças, há necessidade de prevenir o uso da publicidade
massiva que preconiza diariamente o consumo de
alimentos que provocam um desequilíbrio na alimentação,
comprometendo a saúde da população.
Apesar dos elevados propósitos da Resolução da
ANVISA, que, a nosso ver, se coadunam com os princípios
constitucionais e direitos do consumidor, a Resolução n.º
24/2010 não pode ainda ser aplicada em razão de ações
judiciais que suspenderam a sua eficácia, conforme ementa
de AG 0017377.33.2011.4.01.0000/DF29, ajuizado pela
Associação Nacional das Indústrias de Biscoitos (ANIB),
tendo como relator o Desembargador Paes Ribeiro, da 6ª
Turma do TRF do Distrito Federal, in verbis:
ADMINISTRATIVO. AGÊNCIA NACIONAL DE
VIGILÂNCIA SANITÁRIA (ANVISA). RDC 24/2010. NORMAS
SOBRE A PROPAGANDA E PUBLICIDADE DE ALIMENTOS
POTENCIALMENTE NOCIVOS À SAÚDE. AUSÊNCIA DE
PREVISÃO LEGAL. IMPOSSIBILIDADE DE DISCIPLINA
DA MATÉRIA, POR MEIO DE ATO ADMINISTRATIVO.

1. “Não compete à ANVISA disciplinar, por meio de


resolução, a questão referente à propaganda e à publicidade de
produtos que possam ser nocivos à saúde ou ao meio ambiente,
ante a ausência de previsão legal” (Agravo de Instrumento n.
0067108-32.2010.4.01.0000/DF). 2. Agravo provido.

O Judiciário considerou que a ANVISA não tem


competência para instituir restrições na propaganda e na
publicidade de alimentos, reconhecendo a impossibilidade
de aplicação de multas e sanções pela Agência. Assim,
29 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Agravo n.º
0017377.33.2011.4.01.0000/DF. 2011.

90 Balcão do Consumidor

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nesse momento, está suspensa a eficácia da Resolução
que determina que oferta, propaganda, publicidade e
informação sobre alimentos com quantidades elevadas de
açúcar, de gordura saturada, de gordura trans e de sódio
sejam acompanhadas de alertas sobre os riscos à saúde
causados pela ingestão desses produtos.
Particularmente, discorda-se da decisão judicial que,
em sede liminar, reconheceu a incompetência da Agência
Reguladora de regular a publicidade e a propaganda.
A toda evidência, a Agência não limitou direitos dos
fabricantes de alimentos e bebidas ao determinar que
esses incluam nas embalagens dos produtos advertências
quanto aos riscos desses alimentos, mas, sim, regulamentou
dispositivos já existentes na legislação de proteção do
menor e do consumidor, dando, assim, fiel cumprimento
à lei. Entender que a obrigatoriedade de introdução de
mensagens de advertências aos consumidores quanto à
existência de quantidades elevadas de açúcar, de gordura
saturada, de gordura trans e sódio nas bebidas e alimentos
destinadas ao público infantil se coaduna com a proteção
desse público, insculpida na Constituição Federal, no
Código de Defesa do Consumidor e no Estatuto da Criança
e do Adolescente. E, no caso do Direito do Consumidor, é
necessário que se leve em consideração a hipossuficiência
e a vulnerabilidade do consumidor.
A vulnerabilidade do consumidor é insuperável no
plano factual, não sendo o mercado o instrumento capaz
de resolver essa diferença de forças, por isso, conforme
Derani30, “faz-se presente o Estado, que, no âmbito da
tutela do consumidor, estabelecerá a regulamentação de
todos os aspectos da relação de consumo. Sejam os aspectos

30 MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. Doutrinas Essenciais


Direito do Consumidor, Vol. I. In: DERANI, Cristiane. Política Nacional
das Relações de Consumo e o CDC. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2011, p. 1368.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 91

Livro-003-1-224.indd 91 28/05/2014 14:19:28


pertinentes aos próprios produtos e serviços, sejam outros
que se manifestam como instrumentos fundamentais
para a produção e circulação destes bens: o crédito e o
marketing”.
Nesse viés, não há, a nosso ver, inconstitucionalidade
na regulamentação da publicidade de alimentos e bebidas
com baixo teor nutritivo. O Código de Defesa do Consumidor
enumera como direito básico do consumidor o direito à
informação (art. 6º, III). Logo, a publicidade deve conter
precisamente as informações sobre as características e as
propriedades dos bens destinados à comercialização.
Também é direito básico, figurado no art. 8º, caput,
advertência sobre riscos dos produtos, sendo assim, o
excesso de açúcares, gorduras e sódio, como regulamenta a
Resolução da ANVISA, está adequada aos dispositivos do
Código de Defesa do Consumidor.
Há de se destacar, ainda mais, o princípio da boa-fé
na relação de consumo, que se trata de uma cláusula geral
de aplicação em todas as relações, servindo de parâmetro
decisivo no Direito do Consumidor. Contudo, essa ideia da
cláusula geral exige do juiz um comportamento diferenciado
quando trata do Direito do Consumidor, fugindo das
armadilhas de outros ramos da ciência jurídica fundados
em outras técnicas de aplicação do direito.
A respeito da boa-fé, Aguiar Júnior adverte que
“a cláusula geral, seja da boa-fé, seja da lesão enorme,
contém implícita uma regra de direito judicial, dirigida
à atuação do juiz, que lhe impõe, ao examinar o caso,
primeiramente fixar a norma de dever de acordo com a
realidade do fato e o princípio a que a cláusula geral adere,
para somente num segundo momento confrontar a conduta
efetivamente realizada com aquela que as circunstâncias
recomendavam”31.
31 MARQUES, Claudia Lima; MIRAGEM, Bruno. Doutrinas Essenciais
Direito do Consumidor, Vol. I. In: AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. A Boa-

92 Balcão do Consumidor

Livro-003-1-224.indd 92 28/05/2014 14:19:28


A boa-fé é um princípio orientador da interpretação e
“expressa fundamental exigência que está à base da sociedade
organizada, desempenhando função de sistematização das
demais normas positivadas e direcionando sua aplicação” e “um
marco referencial para a interpretação e aplicação do Código”.32
Como se vê, o afastamento da aplicação imediata
da Resolução, partindo do raciocínio de que a Agência
Reguladora não tem competência para editar regras de
conduta, sem que se avalie o conteúdo das normas, que, a
nosso ver, já estão contempladas pelas normas positivadas
no CDC e na Constituição Federal, e sem que sejam
cotejados os princípios do Código Consumerista, parece
não ser a melhor forma de decidir o direito.
A competência da agência para a expedição de normas
de conduta – dando fiel execução à lei e ao direito – é
incontroversa, logo, se as regras contidas na Resolução não
são incompatíveis com o Código de Defesa do Consumidor,
a Constituição da República e a lei, não há que se falar em
impossibilidade de disciplinar a matéria.
De outra parte, é inquestionável a obrigação dos
fornecedores, diante de todos os direitos do consumidor e
do princípio da boa-fé, de informar as características dos
produtos, logo, que direito tem os fabricantes de bebidas e
alimentos de se negarem a introduzir nas embalagens dos
produtos advertências quanto ao excesso de açúcar, gorduras
e sódio, quando efetivamente existem esses excessos?
A decisão judicial, desconectada do direito, prefere
afastar a regulamentação da Agência Reguladora,
autorizando que os fornecedores continuem omitindo
dos consumidores informações essenciais no controle
da qualidade dos alimentos e das bebidas destinadas às
crianças e aos adolescentes.
fé na relação de consumo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011,
p. 379.
32 Idem, p. 379.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 93

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Como as bebidas e os alimentos focalizados na
Resolução n.º 24 da ANVISA são destinados às crianças
e aos adolescentes, as restrições que visam preservar a
saúde deste público-alvo se coadunam com outro direito
humano fundamental-social: a proteção da criança e do
adolescente, que gerou a elaboração do Estatuto da Criança
e do Adolescente (Lei n.º 8.069/90). A criança, segundo a
Constituição, art. 227, § 3º, goza de proteção especial.
A Resolução destaca que a exigência não se aplica aos
aditivos alimentares e aos coadjuvantes de tecnologias; às
frutas, verduras e legumes (hortaliças); aos sucos de frutas;
às nozes, castanhas e sementes; às carnes e pescados in
natura, refrigerados e congelados; aos leites; aos iogurtes;
aos queijos; às leguminosas; aos azeites, óleos vegetais e
óleos de peixes, desde que o teor de sódio, açúcar, gordura
saturada e gordura trans sejam intrínsecos ao próprio
alimento, conforme teor do parágrafo primeiro do art. 3º.
De fato, as novas regras projetadas pela ANVISA
permitem um maior controle sobre uma série de produtos
objeto de publicidade intensa nos meios de comunicação,
na mídia da televisão, do rádio, das revistas e dos jornais e,
notadamente, direcionados às crianças e aos adolescentes,
prometendo muitas vezes qualidades acima daquelas que
efetivamente têm condições de fornecer aos pequenos e
indefesos consumidores. Na maior parte dos casos, estas
propagandas vinculam os produtos a heróis dos contos
infantis, o que causa estímulos exacerbados no interesse
destes pequenos consumidores.
Não por acaso, dados publicados pela ANVISA indicam
que estudos internacionais demonstram que a vontade de
meninos e meninas pesa na escolha de até 80% das compras
feitas pela família, situação que, obviamente, à luz do
texto constitucional, viola diretamente o art. 221, inciso
IV, que vincula a publicidade e a propaganda aos valores
da família. Por certo, esses valores não são contemplados

94 Balcão do Consumidor

Livro-003-1-224.indd 94 28/05/2014 14:19:28


pelos anúncios que oferecem produtos, como alimentos e
bebidas desprovidos de nutrientes capazes de colaborar
com a saúde das crianças e dos adolescentes.
O mérito da resolução da ANVISA, entretanto, se
confunde com certa frustração do consumidor em relação
à timidez destas normas protecionistas, uma vez que se
esperava que a Agência Reguladora proibisse a venda de
produtos, alimentos e bebidas, que contenham brindes
destinados a atrair os pequenos consumidores. O brinquedo
que normalmente acompanha alimentos e bebidas tem se
constituído em fator preponderante na escolha de produtos
por parte das crianças e adolescentes, situação que gera,
na prática, dificuldades enormes aos pais, que se veem
incapazes de convencer os filhos de que o produto (alimento
ou bebida) consumido sem um limite pode causar problemas
na formação do filho, ligados, sobretudo, ao consumo elevado
de açúcares, gorduras saturadas e trans, sódio, e outros
produtos que não contêm nutrientes de boa qualidade e
que, consumidos em grandes quantidades, podem causar
enfermidades, como a própria agência governamental
indica ao determinar que esses produtos contenham as
advertências já relacionadas no presente artigo.

A normatização internacional da
publicidade a partir da rotulagem dos
produtos
Satisfação garantida / Obsolescência programada
/ Eles ganham a corrida / Antes mesmo da largada
/ Eles querem te vender, / Eles querem te comprar
/ Querem te matar (a sede), / Eles querem te sedar
/ Quem são eles? / Quem eles pensam que são?
(Humerto Gessinger33)

33 GESSINGER, Humberto. Engenheiros do Hawaii: Surfando Karmas &


DNA. 2002.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 95

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Internacionalmente, a publicidade a partir de padrões
estabelecidos na rotulagem nutricional dos produtos
tem sido regulamentada por um instrumento normativo
denominado Codex Alimentarius, que constitui a reunião
de diretrizes internacionais especialmente definidas para
produtos alimentícios. Tais normativas são desenvolvidas
pela Junta formada pela Organização Mundial da Saúde
e a Organização para Alimentos e Agricultura das Nações
Unidas, com a finalidade de proteger a saúde do consumidor
e incentivar práticas justas no comércio internacional de
alimentos, embora sua aplicação seja voluntária34.
De acordo com o Hawkes35, as regulamentações
nacionais existentes adotam diferentes formatos de rótulo,
não seguindo necessariamente as recomendações do Codex
Alimentarius, sobretudo no que diz respeito às informações
relacionadas a valor energético, gordura, proteína e
carboidratos.
Assim como há a preocupação quanto à normatização de
padrões para a publicidade e informação nos rótulos dos produtos
de modo a esclarecer os riscos à saúde, o Codex Alimentarius
alerta a necessidade de estar atento a outras questões polêmicas
vinculadas a doenças. Assim, diversos países proíbem alegações
nos produtos referindo-se diretamente a doenças, preocupando-
se que elas possam sugerir de forma equivocada que os alimentos
em questão podem ser responsáveis pelo tratamento, cura ou
prevenção de doenças36.
A título exemplificativo, em razão dos elevados
índices de obesidade na população, especialmente em
crianças e jovens, os Estados Unidos da América adotaram
regras significativamente rigorosas quanto ao uso de
34 HAWKES, Corinna. Informação Nutricional e Alegações de Saúde: o cenário
global das regulamentações. Organização Mundial da Saúde; tradução de
Gladys Quevedo Camargo. Brasília: Organização Pan-Americana da Saúde;
Agência Nacional de Vigilância Sanitária, 2006. p. 06.
35 Ibidem. p. 08.
36 Ibidem. p. 09.

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alegações específicas de saúde na publicidade de produtos
alimentícios. Assim, os EUA regulamentaram a publicidade
e a informação aos consumidores quando os produtos com
cálcio na sua composição podem evitar a osteoporose,
mas também os produtos que contêm gordura saturada e
colesterol representam risco real de doenças coronárias37.
No mesmo sentido, o Canadá adotou como padrão a
utilização dos seguintes dizeres nos alimentos com alto teor
de potássio e baixo teor de sódio: “Uma alimentação saudável
contendo alimentos com alto teor de potássio e baixo teor de
sódio pode reduzir o risco de hipertensão, um fator de risco
de acidentes vasculares cerebrais e doenças do coração”38.
Nesse prisma, é possível identificar uma preocupação
cada vez mais crescente com a transparência informacional
nas relações de consumo quando da comercialização
de produtos alimentícios. Assim, é possível que os
consumidores tenham a oportunidade de decidir o consumo
de determinado produto a partir dos riscos ou dos benefícios
apresentados por sua composição nutricional.

Considerações finais
No atual momento de globalização e de intensificação
das relações de consumo – ampliadas pela força da mídia e
da comunicação de massa -, num momento em que as pessoas
humanas são tidas muitas vezes como bens descartáveis e sem
importância, sendo coisificadas pelos processos econômicos,
é necessário refundar o sentido da família, o conceito e os
princípios desta instituição essencial para a construção dos
valores morais e éticos das gerações futuras.
É preciso, enfim, compreender a importância da família
e, sob o prisma jurídico, estabelecer marcos regulatórios
capazes de apoiar as famílias, disponibilizando meios de
37 Ibidem. p. 52.
38 Ibidem. p. 53.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 97

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enfrentamento da mídia e das manobras dos fabricantes
de produtos, especialmente no ramo das bebidas e dos
alimentos dedicados ao público infantil – crianças e
adolescentes -, medidas que podem auxiliar as famílias
para o bom desenvolvimento do direito fundamental de
defesa do consumidor e dos princípios constitucionais que
asseguram os valores da família como fundamentos da
ordem econômica e dos meios de comunicação.
A relevância que se imprime aos valores familiares
brasileiros é evidenciada em outros países, que acolheram
em seus respectivos sistemas jurídicos a necessidade de
regulamentação da publicidade de produtos alimentícios,
tornando a transparência informacional uma regra,
sobretudo sobre os riscos e os benefícios proporcionados
por tais bens de consumo.
Portanto, medidas de limitação das peças publicitárias
destinadas ao público consumidor, como a Resolução n.º 24 da
ANVISA, se constituem – ao final e ao cabo –, nesse período do
hiperconsumo, como ações de proteção dos valores da família e de
defesa do consumidor, preservando a saúde e a boa alimentação
dos jovens – apesar da restrição temporária estabelecida pelo
Poder Judiciário -, devendo ser apoiadas e respaldadas pelos
operadores do direito e políticos da Nação brasileira, visto que
ao Poder Legislativo cabe, constitucionalmente, a prerrogativa
de estabelecer concretamente na lei as vedações postuladas na
Resolução da Agência Reguladora.

Referências
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São Paulo: Manole, 2006.
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Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
______. Modernidade líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 2001.
______. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Tradução de
Carlos Albertto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004.

98 Balcão do Consumidor

Livro-003-1-224.indd 98 28/05/2014 14:19:28


BENJAMIN, Antônio Herman V. et al. Manual de Direito do Consumidor.
2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
BITTAR, Eduardo C. B. Família, Sociedade e Educação: um Ensaio
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BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo:
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controvertidas no Código de Defesa do Consumidor. 4. ed. Porto
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BRASIL. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Resolução n.º 24. 2010.
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______. Constituição da República Federativa do Brasil. 1988.
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______. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Agravo n.º
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BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São
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FEATHERSTONE, Mike. Cultura de Consumo e Pós-Modernismo.
Tradução de Júlio Assis Simões. São Paulo: Studio Nobel, 1995.
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HAWKES, Corinna. Informação Nutricional e Alegações de Saúde:
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LÔBO, Paulo. Direito Civil: Famílias. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
SILVA, Jorge Alberto Quadros de Carvalho. Código de Defesa do Consumidor
Anotado e legislação complementar. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
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VILLELA, João Baptista. Família hoje. Entrevista publicada na obra.
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Janeiro: Renovar.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 99

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Direito de informação sobre a
sustentabilidade do produto

Marina Neuhaus1

Introdução
O consumo aumenta gradativamente com o passar
dos anos. Com esse aumento vem também o esgotamento
dos recursos naturais que servem como matéria-prima
na criação de bens, bens que atualmente são consumidos
de maneira exacerbada. Em decorrência disso, coube
aos governos tomarem medidas para que o meio e seus
derivados não acabem por se extinguirem, fazendo assim
com que não haja possibilidades de desenvolvimento para
nós e para as próximas gerações.
Surge assim o denominado consumo sustentável, que
prioriza a sustentabilidade, ou seja, o uso de recursos do
meio ambiente de forma consciente e quando realmente
necessária e não para a fabricação e aquisição de supérfluos.
Sabendo que os costumes de sociedades é que originam a
positivação de normas, tem-se a necessidade de proteger
o consumidor, o qual é vulnerável aos fornecedores. Para
isso, o Código de Defesa do Consumidor (CDC) vem auxiliar
a Constituição da República Federativa do Brasil (CF),
unindo ambos, cidadãos e consumidores têm seus direitos
preservados, como também da união de ambos se tem a
proteção do meio ambiente.
Para o consumidor ter condições de optar de maneira
correta ao adquirir produtos, deve ser informado sobre
1 Marina Neuhaus está graduando o V nível da Faculdade de Direito, na
Universidade de Passo Fundo.

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a origem, bem como outros elementos fundamentais,
do que compra. Ao consumir está ainda enriquecendo a
economia do país, o que deveria influenciar também no
desenvolvimento econômico da nação.
Juntando o desenvolvimento econômico com os direitos
positivados sobre o meio ambiente, o consumo e a publicidade,
vê-se ligação direta com o que tange ao consumo sustentável.
O consumo sustentável deve ser incorporado à cultura, para
assim se garantir a nossa sobrevivência, nada mais justo
então que se discutir e buscar direitos ao seu respeito.

Primórdios do Consumo Sustentável


Desde 1970 sabe-se da importância da defesa do
meio ambiente ser expressa em lei. Contudo, foi no ano
de 1992 que se reuniram 179 países na Conferência das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento,
países esses que já vinham durante dois anos discutindo
medidas para que houvesse preocupação real com a
sustentabilidade e, por consequência, o desenvolvimento
sustentável. Diz-se desenvolvimento sustentável, pois
esse tem entre suas prioridades o consumo e a fabricação
de produtos de maneira consciente, de modo que não se
agrida o Meio Ambiente e se garantam condições de vida a
gerações atuais e futuras.
Nesta conferência surgiram vários acordos de caráter
fundamental para a preservação do Planeta, dentre estes
está a Agenda 21, que aborda como um dos seus temas a
mudança do padrão de consumo. Esta mudança diz respeito
exatamente ao consumo sustentável, de forma que cada
um dos países concorda em comprometer-se em promover
padrões sustentáveis de consumo.
Destaca-se também na Agenda 21 que os “governos
devem estimular o surgimento de um público consumidor

Reflexões sobre o hiperconsumismo 101

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informado e auxiliar indivíduos e famílias a fazer opções
ambientalmente informadas”.2
Pode-se observar, assim, quando de fato o consumo
sustentável passou a ser discutido de maneira Global.
Nada mais justo, então, que a partir deste momento, o
consumidor, já que se torna personagem fundamental para
a sustentabilidade do Planeta, adquira por consequência
direitos frente aos seus fornecedores no que tange aos
produtos em sua composição, mantença e descarte junto
ao equilíbrio ecológico.

Meio ambiente e consumo na Carta


Magna
Tamanha valia tem o meio ambiente, que na Carta
Magna que nos rege há um capítulo dedicado a ele. No artigo
225 da CF, vê-se: “Todos têm direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e
essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-
lo para as presentes e futuras gerações.” (grifo nosso).3
Ao positivar isso, a Constituição da República
Federativa do Brasil demonstra que a sociedade deve
mudar padrões de consumo, mas não só para garantir a
sua vida, como para garantir a não extinção da espécie.
Ao fazer isso, garante direitos futuros, algo que em seu
conteúdo anterior em nenhum momento teve tanta
clareza. Nota-se um claro direito de terceira geração, que
tem como difusores a própria sociedade no seu sentido de
coletividade.
2 Texto completo pode ser encontrado em: http://www.ecolnews.com.br/
agenda21/.
3 Constituição Federal - Código de Defesa do Consumidor - Legislação de
Defesa Comercial e da Concorrência – Legislação das Agências Reguladoras.
Organizador: Marques, Fernando de Oliveira. 5. ed. rev. atual. e ampl. São
Paulo: RT, 2004.

102 Balcão do Consumidor

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No mesmo artigo se diz que impõem ao Poder
Publico o dever de defender o meio ambiente, mas ao se
falar em consumo, citam-se, em geral, consumidores e
fornecedores. Onde fica aí o Poder Público? É dever de
todos preservar, lutar e consumir de modo que exista a
sustentabilidade, não se pode deixar de fora exatamente
nossos representantes. O Poder Público é em sua maioria
fruto da democracia, democracia que almeja dar a
representantes o poder do povo com o intuito de maior
agilidade na defesa de seus interesses.
Agilidade. Esta com certeza é uma palavra que
deveria se dar o devido significado. O Planeta não espera,
enquanto se está resolvendo quais são as melhores
soluções e aplicações para o consumo sustentável, até por
que, enquanto se discute, não se para um só momento de
consumir, não se poupa nem mesmos as árvores que deram
origem a esse papel, ou a água que gera a energia para se
ligar nossos computadores.

O Consumo sustentável positivado


A relação de consumo está inserida na cultura dos
povos, mas assim como os
produtos que se têm por desejo e necessidade consumir,
aumenta-se gradativamente com o passar dos anos e do
poder aquisitivo, a destruição dos recursos naturais, que
ainda são usados por inúmeras indústrias de maneira
desenfreada e despreocupada.
Já os consumidores, apesar de terem por ensejo
natural a compra, passam a ter preocupações com o meio
em que vivem, tornando suas aspirações mais abrangentes,
de modo que, além de priorizarem os seus benefícios como
consumistas, passam a se preocupar realmente em manter
o Planeta em ordem para gerações futuras.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 103

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Aparece então o Código de Defesa do Consumidor,
que positiva o quanto imprescindível é que a sociedade
que consome seja informada de maneira clara sobre a
origem e o futuro dos bens que adquire. Ao ser informado,
o consumidor passa a ter a escolha em suas mãos: adquirir
produto necessário se preocupando com satisfação imediata
ou adquirir um produto que possibilite que as próximas
gerações irão ter um lugar livre de poluição e que esses, que
provavelmente venham a ser seus descendentes, também
tenham oportunidades para igualmente satisfazer seus
anseios consumistas.
Grande parte do que se consume chega até nós
por influência da publicidade, deste modo a indústria
publicitária se torna, de forma indireta, parte da relação
de consumo; tanto que existem normas no próprio Código
de Defesa do Consumidor que regulamentam este tipo de
trabalho.
Sabendo disso, deve-se fazer jus ao nosso direito e
começar a mudar o modo de trabalho desse tipo de empresa.
Pois sim, são os consumidores que podem fazer essas
mudanças: se no momento em que compra, se tornasse
quesito indispensável a sustentabilidade dos ecossistemas,
a mídia responsável pela propaganda teria que se adaptar,
dando prioridade para informações ambientais do produto,
e não mais informações que digam respeito somente à
duração e à aparência destes.
Há de se salientar aí que os fornecedores devem buscar
maior comprometimento com os clientes neste sentido, até
porque a partir do momento em que vendem produtos que
não agrediram, agridem ou ainda possam futuramente vir
a agredir o meio ambiente, estão protegendo a si próprios
das reações que o Planeta poderá sofrer.
No artigo 4º do CDC, vê-se que o consumidor é a parte
vulnerável no mercado de consumo³, é exatamente por isso que

104 Balcão do Consumidor

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as normas positivadas o protege, pois é realmente vulnerável.
Cada ser é superior a algo na cadeia natural em que vive, se
todos usufruírem de superioridade, acabarão com o que se
subordina a eles. Assim como o CDC protege o consumidor,
que é a parte frágil da relação de consumo, o consumidor deve
agir de maneira sustentável, para assim proteger quem está
vulnerável a ele, no caso em questão, o meio ambiente.
Para o consumidor proteger o meio ambiente, além de
buscar constantemente conhecimento, deve argumentar
e até mesmo exigir que se cumprem seus direitos, de
modo que tudo que se refere ao produto x natureza seja
exposto de maneira clara, para que todos, independente
do grau de instrução, tenham condições de entender e
capacidade para optar pelo o que realmente querem, que
atualmente, felizmente, é consumir, mantendo o Planeta
para as próximas gerações.
É o que se afirma no artigo 36, caput, do CDC: “A
publicidade deve ser veiculada de tal forma que o consumidor,
fácil e imediatamente a identifique como tal.”4
Ainda, o CDC, no que tange a direitos básicos do
consumidor, expõe em seu artigo 6º, IV: “a proteção contra
a publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais
coercitivos ou desleais [...]”. Eis que, tido como um direito
de caráter inclusive básico, compreende-se o quão válida
são as informações reais sobre o que é oferecido aos
consumidores. Ainda tão importante quanto usar fatos
verídicos na composição das propagandas, é não usar a
divulgação de modo que possa vir a se tornar coercitiva a
quem a vê, impondo, em vez de oferecer o bem.
No mesmo sentido, o CDC ainda traz em seu artigo
37:

4 Constituição Federal - Código de Defesa do Consumidor - Legislação de


Defesa Comercial e da Concorrência – Legislação das Agências Reguladoras.
Organizador: Marques, Fernando de Oliveira. 5. ed. rev. atual. e ampl. São
Paulo: RT, 2004.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 105

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É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.

§1º É enganosa qualquer modalidade de


informação ou comunicação de caráter publicitário,
inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro
modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro
o consumidor a respeito da natureza, características,
qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e
quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.

§2º É abusiva, dentre outras, a publicidade


discriminatória de qualquer natureza, [...], desrespeite
valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o
consumidor a se comportar de forma prejudicial à sua
saúde e segurança. (grifo nosso).5

Vê-se que, felizmente, como já mencionado


anteriormente, ao ser informado, a maioria dos consumidores
opta por produtos que desde a sua fabricação priorizam o
meio ambiente e o desenvolvimento sustentável. Contudo,
em muitos casos quem fornece o produto aos consumidores
são terceiros, e não quem de fato deu origem ao bem. Assim,
terceiros acabam por não ter certeza da real procedência e
até a passar falsas informações sobre a origem, com um
simples desejo, efetuar vendas e obter lucros.
Atualmente o mercado consumidor é altamente
beneficiado pelas tecnologias. Com o passar dos anos,
tornou-se cada vez mais fácil ter acesso a produtos,
ultrapassando inclusive fronteiras de países, ou por
viagens destinadas exatamente a fazer compras, ou pelo
uso da Internet e suas facilidades.
Por diversas vezes já se falou o quanto a sociedade
é voltada para o consumo, a vontade de consumir é tanta
que se deixa de ser cidadãos para ser mero consumidor.
Contudo, não se pode acusar esses indivíduos de nada, pois
é exatamente essa a vontade de fornecedores e produtores,
fortemente ajudados, é claro, pela publicidade.
5 Idem.

106 Balcão do Consumidor

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20% da população mundial, que habita principalmente
os países afluentes do hemisfério norte, consome 80% dos
recursos naturais e energia do planeta e produz mais de 80%
da poluição e da degradação dos ecossistemas.

Enquanto isso, 80% da população mundial, que habita


principalmente os países pobres do hemisfério sul, fica
com apenas 20% dos recursos naturais. Para reduzir essas
disparidades sociais, permitindo aos habitantes dos países do
sul atingirem o mesmo padrão de consumo material médio de
um habitante do norte, seriam necessários, pelo menos, mais
dois planetas Terra.6

Os consumidores da “nova geração” entendem que


a preservação do meio ambiente é, de maneira direta, a
conservação da humanidade, optando, assim, por empresas
que passem essa mensagem e tenham o intuito de, além
de alcançar lucros, salvar o meio ambiente por meio da
proposta de consumo sustentável.
Cátia Rejane Liczbinski Sarreta afirma:
Na tentativa de superar a concorrência entre as empresas,
a propaganda e a publicidade são ferramentas para conquistar
os consumidores. Uma empresa ou um processo, contudo,
para serem validos dentro dos conceitos atuais, devem ser
economicamente rentáveis, ambientalmente compatíveis e
socialmente justos. Cumprindo essa exigência, as empresas
estarão sendo ecoeficientes e criando as condições básicas para
a sua permanência no mercado.7

Passou o tempo em que consumidores eram meros


bonecos manuseados e influenciados por fornecedores, mas
no passado ainda se encontra a ideia de que produzir e obter
lucros esgotando os recursos naturais garantirá o sustento
de alguém. Pelo contrário, ao se ter lucro desperdiçando
e extinguindo recursos que nos são oferecidos de maneira
6 CONSUMO SUSTENTÁVEL: Manual de educação. Brasília: Consumers
International/ MMA/ MEC/ IDEC, 2005. 160 p. p. 15.
7 SARRETA, Cátia Rejane Liczbinski. Meio Ambiente e consumo sustentável:
direitos e deveres do consumidor. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo
Fundo, 2007. p. 161

Reflexões sobre o hiperconsumismo 107

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natural, está-se na verdade acabando com as possibilidades
de lucro futuro.
Muito mais útil a quem fornece seria preocupar-se com
o consumo sustentável, pois fazendo isso está produzindo
uma massa consumidora que preserva os modos de
criação futura, dando condições de se ter agora produtos
inesgotáveis, porém com outra essência, de manutenção e
reparo do que já foi consumido.
Se se pensar individualmente, não se verão resultados
significativos para o meio ambiente por meio do consumo
sustentável. No entanto, se se levar em conta a quantidade
de consumidores que existem, e por resultado a quantidade
de bens adquiridos, entender-se-á que, se todos optassem
por produtos sustentáveis, poder-se-ia, certamente, salvar
o Planeta mudando um pouco o modo de consumir.
Aí está. O modo de consumir é a grande chave que leva
à solução dos problemas. Porém, para haver uma mudança
do que já está incorporado nas atitudes dos consumidores,
é necessária muita informação. Informação que passe as
fronteiras da publicidade e se transforme em educação
sobre sustentabilidade.
Não é consumindo quantidades absurdas de produtos
sustentáveis que se irá salvar o mundo. Vai muito além
disso, a publicidade deve vir com o intuito de divulgar o
quão vantajoso para consumidores, mídia e comércio são os
produtos sustentáveis, para que se formem consumidores
que comprem entendendo que o produto sustentável que está
comprando existe, por terem sido usados recursos de produção
que já foram esgotados por uma exploração descabida.
Sobre isso fala Henrique Mioranza Koppe Pereira:
Os discursos ambientalistas estão ‘infestados” de verdades
que inflam a população de angustia, e isso se apresenta como
uma ótima oportunidade para absorção desses discursos pela
sociedade de consumo, que anuncia “compre mercadorias
ecológicas, ajude o meio ambiente”, para que assim se alivie a

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culpa do individuo diante das catástrofes ecológicas. As verdades
não são novidades, a inovação está em uma educação para
cuidar, não para profetizar; as profecias já foram proclamadas,
agora deve-se consolidar a “ fé” do cidadão em si como ser
humano, como individuo e como parte de um coletivo em que o
Outro está presente e onde a relação é regida pelo amor.

Economia aliada ao desenvolvimento


À medida que se aumenta o consumo, aumentam-se
também as desigualdades, isso porque a grande maioria,
se não a totalidade, dos países não está preparada
economicamente para dar igualdade no consumo a seus
nacionais. Isso porque, à medida que a pequena massa,
que é exageradamente superior financeiramente aos
demais, consome, faz com que as indústrias se preocupem
unicamente com esses e seus interesses. No momento
em que fabricas não precisam de mão de obra, pois estão
totalmente mecanizadas e computadorizadas, tiram o
emprego de camadas sociais inferiores, que passam, por
consequência, a deixar de consumir.
A massa menos favorecida, obviamente, consome
menos, consome somente o essencial para a sobrevivência,
não participa do mercado consumido, pois, de fato, foi tirado
dela. Quando essa massa trabalhava para fomentar a
produção de desejos de outros consumidores, era assalariada
e usava seu dinheiro para o consumo. O movimento rumo à
tecnologia total para acelerar a produção do mercado faz com
que se aumentem as desigualdades entre os polos sociais.
Enquanto alguns consomem muito, outros se afundam
na miséria em que vivem. O consumo certamente é quesito
de disparidade quando o assunto é economia. Apesar de
diversos países terem aumento econômico, esses não
conseguiram ter um controle interno da distribuição
da renda, o que faz com que se tenha miséria, pobreza

Reflexões sobre o hiperconsumismo 109

Livro-003-1-224.indd 109 28/05/2014 14:19:29


e analfabetismo, o dá para perceber claros sintomas de
descontrole de desenvolvimento.
O crescimento econômico diz respeito ao aumento do
produto interno bruto (PIB) real8. Essa renda nacional é
calculada levando em conta a população, porém não são
levadas em conta as disparidades sociais. Logo, apesar da
renda do país aumentar, esta não se distribui igualmente
entre seus habitantes.
Fala-se disso, pois, para o cálculo do PIB, que é
indicador do crescimento econômico, um dos quesitos
avaliado é o consumo. Deste modo, entende-se que, havendo
consumo em grandes proporções, há crescimento econômico,
porém as diferenças sociais continuam a existir e, levando
em conta o modo como a renda é distribuída atualmente,
essas diferenças tendem a aumentar muito mais, pois o
crescimento não se relaciona ao desenvolvimento.
Quando o crescimento econômico estiver diretamente
ligado e fomentando o desenvolvimento, ficará muito mais
fácil instituir-se o consumo sustentável. O desenvolvimento
engloba melhoria da qualidade de vida e bem-estar,
engajando-se assim ao consumo equilibrado e consciente.
Assim, o crescimento econômico + o desenvolvimento
econômico resultarão no consumo sustentável. O
desenvolvimento possibilita melhorias, melhorias gerais;
gera, dessa forma, maior possibilidade de todos consumirem
de maneira sustentável, pois diz respeito à qualidade e,
principalmente, à quantidade que cada um consome, aliado
a isso vem a evolução do direito, tanto de informação como
dos demais critérios que se relacionam ao consumo.

Conclusão
Assim como o desenvolvimento sustentável, o consumo
sustentável tem o intuito de salvar o Planeta para nossos
8 PIB: dados completos em- www.ibge.gov.br.

110 Balcão do Consumidor

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descendentes, que daqui algumas décadas, centenas, milênios
de anos, habitarão esta mesma terra que se habita agora. O
CDC, como as demais normas, visam colaborar e organizar
métodos para que isso se faça o mais rápido possível.
No dizer de Peter Singer, entende-se um pouco o
sentido disso:
[...] uma vez uma floresta derrubada ou inundada, a
sua ligação com o passado estará perdida para sempre. Este
é um custo com o qual terão de arcar todas as gerações que
nos sucederem neste planeta. É por isso que os ambientalistas
estão certos quando se referem às florestas como uma “herança
mundial”. É uma coisa que herdamos de nossos ancestrais
e que devemos preservar para os nossos descendentes, se
quisermos que eles não se vejam privados dela.9

Ao mesmo tempo em que, se se deixar florestas e um meio


ambiente preservado pelo hábito do consumo sustentável,
estar-se-á comprovando para gerações posteriores que nossas
leis foram feitas para serem cumpridas, com todos, para
todos e em beneficio de todos, e que o CDC foi fundamental
para a mantença de todo um ecossistema.

Referências
AGENDA 21 - Texto completo pode ser encontrado em: http://www.ecolnews.
com.br/agenda21/
Constituição Federal - Código de Defesa do Consumidor - Legislação de
Defesa Comercial e da Concorrência – Legislação das Agências Reguladoras.
Organizador: Marques, Fernando de Oliveira. 5. ed. rev. atual. e ampl. São
Paulo: RT, 2004.
CONSUMO SUSTENTÁVEL: Manual de educação. Brasília: Consumers
International/ MMA/ MEC/ IDEC, 2005. 160 p. p. 15.
SARRETA, Cátia Rejane Liczbinski. Meio Ambiente e consumo
sustentável: direitos e deveres do consumidor. Passo Fundo: Ed.
Universidade de Passo Fundo, 2007. p. 161
SINGER, Peter. Ética Prática; Tradução Jefferson Luiz Camargo. 3. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2002 - Coleção Biblioteca Universal. p. 285.
9 SINGER, Peter. Ética Prática; Tradução Jefferson Luiz Camargo. 3. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2002- Coleção Biblioteca Universal. Pg. 285

Reflexões sobre o hiperconsumismo 111

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As relações de consumo
e o princípio do acesso à
justiça na sua dimensão
prestacional

Alcindo Batista da Silva Roque1

Introdução
Por não desconhecer que o Código de Defesa do
Consumidor se apresenta como importante e necessário
instrumento de tutela de direitos e de proteção ao
consumidor, ou seja, pelos valores ou pelos fins, é uma norma
jurídica avançada comprometida com a humanização das
relações de consumo e, deste modo, assegura a proteção do
consumidor, qualificando e aperfeiçoando as relações entre
consumidor e comerciante, entre consumidor e prestador
de serviços. Não se trata de uma simples folha de papel,
de simples prescrições normativas, mas de um regime
jurídico de proteção e que tem o compromisso de atuar
sobre a realidade, transformando e qualificando a vida das
pessoas e da sua relação em sociedade.
Assim, se há um compromisso de concretização
dos direitos do consumidor, é porque eles têm que ser
assegurados, é preciso também compor e reconhecer que
os meios jurídicos e processuais devem ter a aptidão de
concretizar tais valores e assegurar que tais fins também
se realizem, se necessário e indispensável, pela atuação
1 Especialização pela Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
(2003). Mestre em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
Professor titular da Universidade de Passo Fundo, Brasil.

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jurisdicional. Por isso é que propor a articulação do
princípio do acesso à justiça nas suas dimensões formal e
substancial, na tutela efetiva dos direitos do consumidor,
conduz a análise sobre o caráter e a função prestacional
– concretizatora – do princípio do acesso à justiça nesta
dimensão. O presente texto se propõe a provocar e
a discutir, seja para que os meios processuais sejam
compatíveis com a concretização desses direitos, seja para
provocar a compreensão dos sujeitos do processo e o papel
fundamental da jurisdição ser concebida e comprometida
com a tutela desses direitos.

O princípio da boa-fé nas relações de


consumo e os direitos do consumidor
como fundamentais
O princípio da boa-fé2 nas relações contratuais,
marcadamente, no que tange às relações de consumo se
apresenta, no Código de Defesa do Consumidor, como
princípio máximo de orientação e fundamentação de suas
disposições3; enquanto que o princípio da confiança quanto
à qualidade e à segurança dos produtos não deixa de
expressar a base funcional daquele princípio. Ao ensejo do
princípio da boa-fé e da confiança nas relações de consumo, se
compôs um sistema normativo evidentemente de equilíbrio
nas relações entre consumidor e comerciante, ficando em
relevo e em destaque as normas e as regras de proteção do
primeiro, numa revisão da concepção meramente privada
dos contratos, para uma dimensão intimamente referida
na esfera dos direitos fundamentais.4
2 SILVA, Clóvis V. do Couto e. A obrigação como processo. São Paulo:
Bushatsky, 1976. p. 27-34.
3 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor.
4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 671.
4 MARQUES, Cláudia Lima. Idem. P.210-211.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 113

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A categorização dos direitos do
consumidor como direito fundamental
e a legitimidade formal e substancial
da jurisdição – a revisão do princípio
do acesso à justiça no compromisso
prestacional (concretizador) dos
direitos do consumidor
Disso resulta, necessariamente, a necessidade de
reconhecer e de aferir não só o reconhecimento dos direitos
do consumidor nas relações de consumo, a sua natureza e a
equivalência com os direitos fundamentais na perspectiva da
constitucionalização do direito privado, mas a efetivação pelo
acesso à justiça nas suas dimensões formais e substanciais,
exigindo o reconhecimento da dimensão prestacional deste
princípio também nas relações de consumo e no compromisso
de concretização dos direitos do consumidor pela jurisdição,
esta compreendida como tutela dos direitos fundamentais,
à tutela jurisdicional efetiva.5
Assim, a caracterização formal do Estado Constitucional
de Direito emerge da positivação constitucional dos direitos
humanos, ao passo que a legitimação substancial decorre
da efetivação e da concretização dos direitos fundamentais
como condição de possibilidade de legitimação material da
ordem jurídico-política do Estado, da proteção da dignidade
da pessoa humana e dos direitos fundamentais, sendo
inerente à atividade e à prestação substancial da jurisdição.
É nessa seara e nesse compromisso que se provoca a revisão
do princípio do acesso à justiça como instrumento formal
e de natureza processual comum, para ser submetido ao
reconhecimento como princípio formal e substancialmente
5 MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. Vol. I. 5. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p 119.

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comprometido com o Estado Constitucional de Direito, com
a efetiva proteção dos direitos e das garantias fundamentais,
dentre os quais os direitos do consumidor.
Por necessário, é indispensável demarcar que se está
tratando de prestação em sentido amplo, como trata Alexy,
reconhecendo a necessidade de desenvolver tal abordagem
e aplicação concreta do princípio do acesso à justiça na
perspectiva sintética e evolutiva desenvolvida por este
autor, valendo registrar a utilidade para o presente estudo
o seguinte:
De acuerdo con la interpretación liberal clásica, los
derechos fundamentales “están destinados, ante todo, a
assegurar la esfera de la liberdad del individuo frente a
intervenciones del poder público; son derechos de defensa
del ciudadano frente al Estado”. Los derechos de defensa del
ciudadano frente al Estado son derechos a acciones negativas
(omisiones) del Estado. Pertenecen al status negativo em
sentido amplio. Su contrapartida son los derechos a acciones
positivas del Estado, que deben ser incluídas en el status
positivo em sentido estricto. Si se presupone um concepto
amplio de prestación, todos los derechos a acciones positivas
del Estado pueden ser calificados como derechos a prestaciones
del Estado em um sentido amplio.”.6

É sob tal pressuposto que se reconhecem como direitos


prestacionais em sentido amplo os direitos à proteção,
direitos à organização e procedimento e direitos a prestações
em sentido estrito. O primeiro, que confere ao titular do
direito fundamental de exigir do Estado a proteção em face
de violação por terceiros; o segundo, diretamente vinculado
aos escopos desta pesquisa, diz respeito à constituição de
estrutura organizacional e procedimental aptas a assegurar
a proteção jurídica efetiva; e o terceiro diz respeito à tutela
de direitos sociais fundamentais de modo a reduzir as
desigualdades e assegurar “um mínimo vital”.7
6 ALEXY. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudos
Políticos y Constitucionales, 2002. p.419.
7 ALEXY, op. cit.. p. 430-501.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 115

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Assim, quando se inaugurou este trabalho, o título
já apresentava um desafio, qual seja, o de promover a
análise do princípio do acesso à justiça segundo uma visão
prestacional, sem desconhecer todos os instrumentos
processuais de garantia de acesso aos tribunais, o direito de
petição e, naturalmente, sem desprezar – já que indevido e
impróprio – os princípios do contraditório e da ampla defesa,
até porque se destinam a assegurar os limites do Estado
e as possibilidades das partes no processo. Disso resulta a
necessidade de, compondo os paradigmas tradicionais do
processo e da jurisdição, também não se submeter ao modelo
de Marshal sobre a geração de direitos. Desse modo, para
muitos se revela adequado falar em dimensões de direito.
Sem dúvida, a pretensão é o de rever os paradigmas
formais e submeter o princípio ao modo de vê-lo e compreendê-
lo mesmo numa dimensão prestacional, marcadamente,
para os propósitos deste labor, na efetivação dos direitos
e garantias do consumidor, pelo processo. Desse labor se
desdobra a revisão de compreensão e de interpretação, logo,
de aplicação. E neste cenário a opção de referir Dinamarco
não deixa de ser um argumento para a provocação da
compreensão analítica do processo em geral, na medida em
que o fundamento de sua obra consiste em tratar o processo
como instrumento, mesmo demarcando os referenciais
formais do processo. No entanto, o que se destaca, neste
ponto, é sua afirmação de que o princípio do acesso à justiça
é a síntese de todos os princípios e garantias do processo:
Tudo quanto foi dito ao longo da obra volta-se a essa
síntese muito generosa que na literatura moderna leva o
nome de acesso à justiça. Falar em instrumentalidade do
processo ou em efetividade significa, no contexto, falar dele
como algo posto à disposição das pessoas com vistas a fazê-
las mais felizes (ou menos infelizes), mediante a eliminação
dos conflitos que as envolvem, com decisões justas. Mais do
que um princípio, o acesso à justiça é a síntese de todos os
princípios e garantias do processo, seja a nível constitucional

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ou infra-constitucional, seja em sede legislativa ou doutrinária
e jurisprudencial. Chega-se à idéia do acesso à justiça, que é
o pólo metodológico mais importante do sistema processual da
atualidade, mediante o exame de todos e de qualquer um dos
grandes princípios.8

Ainda que sob outra estrutura metodológica e com


distinto referencial teórico, Rodrigues expressa que
o “acesso à justiça” seria um “termo” vago e que, por
isso, a doutrina teria lhe atribuído diferentes sentidos.
Discordando da afirmação de que se trata de termo e de
que a doutrina atribuiu-lhe sentido, numa marca evidente
da influência dogmática e analítica na construção do
pensamento e dos argumentos, seleciona-se a contribuição
do autor no ponto em que sustenta a ideia do princípio com
referencial axiológico e do sentido diferenciado e crítico
quando relacionado com a justiça social:
O primeiro, atribuindo ao significante justiça o mesmo
sentido e conteúdo que o de Poder Judiciário, torna sinônimas
as expressões acesso à justiça e acesso ao Judiciário; o
segundo, partindo de uma visão axiológica da expressão
justiça, compreende o acesso a ela como o acesso a uma
determinada ordem de valores e direitos fundamentais para o
ser humano. Esse último, por ser mais amplo, engloba no seu
significado o primeiro. Ambos os conceitos são válidos. (...) A
busca de compreensão da problemática do acesso ao Judiciário,
vinculada portanto ao direito processual, vista dentro de um
contexto mais amplo, qual seja o da própria justiça social, dá-
lhe um sentido diferenciado e possivelmente mais crítico.9

De acordo com uma inspiração funcional, mas não


descomprometida com a efetividade do processo e a
concretização dos deveres prestacionais, Grinover alude às
novas demandas do direito processual e à dimensão que
assumiu o princípio do acesso à justiça, destacando:
8 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 3. ed.
São Paulo: Malheiros, 1993. p. 303.
9 RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Acesso à justiça no direito processual
brasileiro. São Paulo: Acadêmica, 1984. p. 28

Reflexões sobre o hiperconsumismo 117

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De um lado, temos o Estado social de direito, o Estado
prestador de serviços, o Estado intervencionista, titular,
portanto, de obrigações positivas, consistentes num dare, num
facere e num praestare, às quais correspondem os direitos
econômico-sociais. Para essas prestações positivas, o Estado
deve necessariamente aparelhar-se, não mais limitado à
esfera de não ingerência das liberdades clássicas positivas.
(...) Como programa de reforma, o verdadeiro acesso à
Justiça significa buscar os meios efetivos que façam as partes
utilizarem plenamente o Estado na solução dos seus conflitos.
E de todos os conflitos, mesmo daqueles que até agora não têm
sido levados à Justiça. Faça-se aqui menção, de passagem,
aos grandes conflitos metaindividuais, superindividuais,
que contrapõem grupo contra grupo, e para os quais o nosso
instrumental do processo ainda parece ineficiente; e, do outro
lado, aos pequenos litígios, àquelas causas que, por outras
razões, até agora também têm sido retiradas da apreciação do
Poder Judiciário.10

O aporte afirmativo da processualista na revisão do


princípio do acesso à justiça expressa a sensibilidade para
o chamamento que se exige na aplicação e na concretização
da constituição e da função que busca atribuir ao processo
na aplicação do direito, sublinhando a força vinculativa da
constituição.
Por sua vez, Canotilho, em debates travados com
pesquisadores brasileiros, quando estes se debruçavam
longamente sobre a questão da morte ou não da constituição
dirigente e compromissária, em virtude de obra escrita
pelo constitucionalista lusitano, respondeu à indagação de
Roberto Barroso e, ao final, evocou o caráter prestacional
dos direitos, inclusive de acesso à justiça, o que vem a
calhar para os fins do presente trabalho:
Uma terceira nota. É uma característica dos juristas
discutir a estrutura dos direitos sociais, econômicos e culturais,
e neste aspecto tenho dito que há aqui uma espécie de jogo de
sombras que não são meramente chinesas. Qual é o jogo de
10 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual. 2.
ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. p. 244-255.

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sombras? Quando ouvimos dizer que os direitos econômicos,
sociais e culturais não são verdadeiros direitos, porque não
há poder subjetivo de obrigar á sua realização ou porque
pressupõem sempre prestações estatais, recorta-se a priori
uma estrutura de direito subjetivo pretensamente válida
para todos os direitos e ramos de direito. Tenho discutido esta
questão com os meus Colegas mais analíticos. Eles nunca me
conseguiram explicar se, com base nestas premissas, o direito à
realização da justiça, aos tribunais e à tutela jurisdicional é um
direito social, um direito pessoal ou uma garantia individual.
Um direito que pressupõe prestações estatais, que pressupõe
juízes, que pressupõe advogados, que pressupõe procuradores
é, no fundo, um direito primacialmente prestacional.11

A propósito, não foi outro o argumento que sustentou


Canotilho quando realizou a análise garantista e
prestacional não do acesso à justiça, mas do acesso aos
tribunais, valendo-se da redação dada à Constituição
portuguesa:
A garantia do acesso aos tribunais perspectivou-se, até
agora, em temos essencialmente “defensivos” ou garantísticos:
defesa dos direitos através dos tribunais. Todavia, a garantia
do acesso aos tribunais pressupõe também dimensões de
natureza prestacional, na medida em que o Estado deve
criar órgãos judiciários e processos adequados (direitos
fundamentais dependentes da organização e procedimento) e
assegurar prestações (“apoio judiciário”, “patrocínio judiciário”,
dispensa total ou parcial de pagamento de custas e preparos),
tendentes a evitar a denegação da justiça por insuficiência de
meios económicos, (CRP, artigo 20.º). O acesso à justiça é um
acesso materialmente informado pelo princípio da igualdade
de oportunidades.12

A ideia é de que os instrumentos que assegurem o


exercício das pretensões e promovam a prestação jurisdicional,
com garantia de igualdade de oportunidades e de meios,
submetendo todo e qualquer litígio à dialética do processo
11 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Canotilho e a Constituição
dirigente. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 36.
12 CANOTILHO, Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993. p.
654.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 119

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e aos princípios estruturantes da atividade jurisdicional
estatal, não é estranha ao princípio do acesso à justiça e à
compreensão de processo, mesmo porque estes instrumentos
são indispensáveis para a concretização dos direitos
fundamentais. Veja-se que processo, seja como sucessão de
atos numa ordem preestabelecida, seja como relação jurídica
que vincula as partes e que se suportem os efeitos do mesmo,
não é um fim em si mesmo nem é a medida de tudo.
A propósito, em obra dedicada à subjetividade, à
análise da consciência humana, Kierkegaard adverte
sobre os riscos da elevação superior da solenidade, do culto
do formalismo, sustentando que, “em havendo um estilo
mais solene, o certo é que a solenidade levada a tal grau
deixa de ter sentido, e com o hábito acaba por se realizar à
insignificância.”13
Para parafrasear Nietzsche, sem ter a pretensão de assumir
postura semelhante ou próxima à dos “argonautas do ideal”, com
a pretensão de desvelar, não de “tecer véus”14, a compreensão
substancial do princípio do acesso à justiça impõe a superação dos
modelos formais, e a ideia de processo deve conduzir à assunção
dos postulados substanciais do princípio, exatamente por exigir a
concretização dos direitos e das garantias fundamentais.
Assim, quando se sustenta a dimensão prestacional do princípio
do acesso à justiça, não se está dispensando, ignorando ou ficando
indiferente aos elementos tradicionais de compreensão do acesso ao
Judiciário e da efetividade do processo – como a assistência judiciária
gratuita, o tempo razoável de duração do processo, do contraditório,
da ampla defesa, etc. -, já que é importante o que chega ou deve
chegar até o Judiciário e como ele lida com tais pretensões, sejam
individuais, sejam coletivas ou de interesses difusos. Nesse sentido
é que vem a calhar a análise conclusiva feita por Lafer, na relação
e importância dos juízos retrospectivos e prospectivos, atividade
13 KIERGEGAARD, Sören. O desespero humano. São Paulo: Martin Claret.
2002. p. 14.
14 NIETZSCHE, Friedrich. Ecce hoomo. São Paulo: Martin Claret, 2003. p.
97 e 113.

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reflexiva indispensável para a reconstrução dos direitos fundamentais,
no caso a sua efetivação e concretização prática. Veja-se:
O juízo, na sua vertente retrospectiva, é essencial, como
já foi dito, para a administração da justiça e para o escrever
da História. Para que esteja a serviço da inteligibilidade de um
momento, na sua especificidade, ele não pode perder-se no fluxo
da História, que é o que ocorre quando se parte do pressuposto
de que a História é progresso. (...) De fato, o exercício do juízo
impede o estilhaçamento do ser pelas forças opostos do futuro
e do passado, constituindo-se como ingrediente esclarecedor
do princípio da esperança, uma vez que indica, pelas histórias
julgadas e contadas, a permanente possibilidade de um novo
começo – de um initium. O juízo, em outras palavras, não justifica
o mundo, mas confirma o nosso lugar no mundo ao asseverar
a nossa conexão com a realidade através da responsabilidade
inerente à mediação entre o particular e o geral. (...) Essas
limitações são significativas, mas dizem respeito mais de perto
ao juízo prospectivo e menos ao juízo retrospectivo, uma vez que
a ponderação do instrumental é mais importante para a ação
política, que se volta para o futuro, do que para o observador que
busca avaliar a história e o significado ocorrido. Por isso entendo
que a validade exemplar é um modus operandi adequado para o
juízo retrospectivo.15 (sic)

Propõe-se, sim, o alargamento de tal compreensão para


promover o reconhecimento de que a prestação que se busca
não é a formal, mas a substancial, esta comprometida com
a realização e a concretização dos direitos e das garantias
fundamentais, como já referido.
Ampliar a noção do processo e do acesso aprofunda
as possibilidades de conhecimento e de decisão judicial
no campo dos direitos fundamentais. É nesse sentido que
sustenta Streck:
(...) a própria concepção processual não pode prescindir
de juízos de substancia: as inadequações das leis só podem
ser resolvidas pela tarefa criativa dos juízes, e os indivíduos
encarregados de conduzir os processos democráticos necessitam
15 LAFER, A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o
pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.p.
305-306.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 121

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de um espírito crítico para compreender a complexidade da própria
democracia, sob pena de, a partir de uma formação dogmática e
autoritária, construir a antítese do processo democrático. Afinal,
conforme Castoriadis, se o Estado de Direito (Rechtsstaat) é algo
de diferente de Estado de lei (Gesetzstaat), só pode sê-lo na medida
em que for para além da simples conformidade “processual” assim
que a questão da justiça for colocada e assim que se afete até as
regras jurídicas já constituídas.16

É de se reconhecer a possibilidade de haver um


sistema jurídico-constitucional legítimo num plano
normativo formal e distanciado do plano da realidade.
Nesse quadro, haveria uma legitimidade formal, não
substancial. O desafio é exatamente assegurar as
condições de correspondência e vinculação da legitimidade
formal com a substancial, já que o distanciamento resulta
na crise de legitimidade, e o mais preocupante para a
cidadania é a deslegitimação substancial do sistema: “(...)
Esta divergencia entre la normatividad del modelo en el
nivel constitucional y su ausencia de efectividad en los
niveles inferiores comporta el riesgo de hacer de aquél
una simple fachada, com meras funciones de mistificación
ideológica del conjunto.”17
Assim, a revisão do paradigma racionalista de
compreensão do princípio do acesso à justiça, reduzido à
questão funcional formal, não tem outro propósito senão o
de alargar e aprofundar o reconhecimento do princípio no
papel e na função de legitimação substancial do processo e
da jurisdição, vale dizer, da vinculação da atividade público-
estatal, por meio de seus procedimentos e de seus entes, da
concretização dos direitos fundamentais constitucionais.
O papel do Judiciário na ordem jurídica constitucional,
comprometido com os deveres do Estado Social, conduz a
novas possibilidades decisórias do julgador e à superação
dos limites formais do processo.
16 STRECK, Jurisdição constitucional e hermenêutica. Uma nova crítica do
direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 132.
17 FERRAJOLI, Derecho y razón. Madrid: Trotta, 1995. p. 851.

122 Balcão do Consumidor

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Pois o Estado social contemporâneo, que repudia a
filosofia política dos “fins limitados do Estado”, pretende chegar
ao valor homem através do culto à justiça e sabe que, para
isso, é indispensável dar ao conceito de “justiça” um conteúdo
substancial e efetivo. É preciso reduzir as diferenças sociais e
econômicas tanto quanto possível, geando oportunidades.18

Já se mencionou sobre o processo de formação e de


transformação da ideia de Estado e o alargamento das
suas atribuições e funções, notadamente no campo dos
direitos sociais. Isso exige condutas positivas do Estado e
tem imposto uma nova forma de atuação e de concepção
da atividade jurisdicional, de prescrição e de declaração,
passando este a ser corresponsável pela concretização da
dignidade da pessoa humana e pela redução da pobreza, ao
executar os direitos sociais. Como afirma Cappelletti, nos
sistemas democráticos a proteção dos direitos sociais se dá
de forma mais efetiva:
A história prova, efetivamente, que somente em
sistemas democráticos de governo os direitos sociais têm
maior probabilidade de ser respeitados. Como escreveu o juiz
Koopmans: Democracia e direitos do homem, falando de forma
empírica, são estreitamente conexos; a proteção de um às
expensas de outros (ou vice-versa) corre sempre o risco de ser
contraproducente (...) Se deseja a preservação da democracia,
os tribunais devem assumir a sua parte na tarefa.19

Na mesma esteira, mas sob outro modo de expressão e


construção do pensamento, Morais sustenta a importância
da jurisdição – logo, do processo e de seus operadores –
na concretização dos direitos humanos, o que impõe a
passagem do plano formal para o substancial, com o
compromisso permanente e constante de legitimação
da atuação jurisdicional. Ou seja, não basta normatizar
(com um conteúdo protecionista) as relações de consumo
18 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 3. ed.
São Paulo: Malheiros, 1993. p. 31.
19 CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução de Carlos Alberto
Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999. p. 94.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 123

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e não encontrar meios efetivos de proteção pelas formas
processuais e jurisdicionais.
De outro lado, é preciso, ainda, que se pense a
concretização dos direitos humanos a partir do prisma da
jurisdição, atribuindo-lhe expressão fundamental quando
estejamos frente aos direitos de terceira geração, o que
não a afasta da problemática ora enfrentada no âmbito
das liberdades positivadas, assim como não fica alheia
quando tratamos das liberdades negativas a partir de sua
interconexão com o complexo conteudístico dos direitos
humanos expressos através das interconexões que os
mesmos projetam. (sic).20

Ora, se é verdade que nos sistemas democráticos é


que se observam as melhores condições para o avanço na
proteção e na concretização dos direitos sociais, quanto mais
efetivo for o “respeito” aos direitos sociais, mais democrático
será o sistema. E nesse passo o Judiciário passa a exercer
um papel ativo na substancialização pública deste sistema
democrático, já que é Estado e é poder no campo dos direitos
fundamentais, como assevera Cappelletti:
(...) a proteção jurisdicional dos direitos fundamentais,
tornou-se parte importante e em rápida expansão do fenômeno
da justiça constitucional, (...) a justiça constitucional, em tema
de direitos fundamentais, tornou-se um dos mais potentes
instrumentos de evolução.21

Nas expressões de Ferrajoli, a proteção jurisdicional


dos direitos fundamentais impõe ao juiz o dever de
legitimação democrática de sua independência, já que este,
no exercício da jurisdição, também se encontra vinculado
à constituição: “É nesta sujeição do juiz à constituição, e,
portanto no seu papel de garantir os direitos fundamentais
constitucionalmente estabelecidos, que reside o principal
20 MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do estado e da constituição e a
transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2002. p. 75.
21 CAPPELLETTI, Juízes legisladores? Tradução de Carlos Alberto Álvaro
de Oliveira. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1999.p. 62.

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fundamento atual da legitimação da jurisdição e da
independência do Poder Judiciário (...).”22
Com base em tais premissas ou elementos, a atribuição
de sentido(s) do intérprete ao princípio do acesso à justiça
impõe a superação da compreensão meramente procedimental
e alçá-lo à compreensão substancial e comprometida com a
efetivação dos direitos fundamentais, conferindo-lhe tanto
o caráter instrumental – como veículo de proteção – como o
próprio direito material de realização.
Portanto, a revisão paradigmática encerra a
compreensão prestacional de seu conteúdo, das suas
funções e da sua finalidade, provocando a formação
contínua, não estática, do Estado Constitucional de
Direito, pela concretização dos direitos fundamentais por
meio do processo e da jurisdição constitucional, tanto os
direitos a ações negativas quanto a ações positivas – nisso
se revelando o conteúdo prestacional amplo, relacionado
ao procedimento e à estrutura do Judiciário, ampliando as
possibilidades de atuação jurisdicional.
Llamala atención el hecho de que la fórmula “realización
y aseguramiento de los derechos fundamentales a través de la
organización y el procedimiento”, que mientras tanto há sido
plenamente aceptada, es utilizada regularmente para designar
análisis em los cuales, em modo alguno, se distingue estrictamente
entre derechos a organización y derechos al procedimiento. (...)
Se extiende desde los derechos a una protección jurídica efectiva
que nadie dudaría em llamar “derechos a procedimientos” hasta
aquellos derechos a “medidas estatales (...) de tipo organizativo”
(...) Los procedimientos son sistemas de reglas y/o princípios
para la obtención de um resultado.23

Se o Judiciário é o Estado e o acesso à justiça não


se submete à compreensão limitada aos instrumentos
22 FERRAJOLI, Luigi. O direito como sistema de garantias. In: OLIVEIRA
JUNIOR, José Alcebíades de (Org.). O novo em direito e política. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 1997. p. 101.
23 ALEXY, Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudos
Políticos y Constitucionales, 2002.p. 457.

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formais de acesso por meio do processo, mas se revela
comprometido com a dignidade da pessoa humana, não se
pode negar que o acesso à justiça exige um saber e um
aplicar de efetividade e eficácia dos direitos humanos,
como bem adverte Comparato:
Os direitos humanos em sua totalidade – não só os direitos
civis e políticos, mas também os econômicos, sociais e culturais;
não apenas os direitos dos povos, mas ainda os de toda a
humanidade, compreendida hoje como novo sujeito de direitos no
plano mundial – representam a cristalização do supremo princípio
da dignidade humana. (...) Da mesma forma, é hoje inconciliável
com o princípio republicano deixar de atribuir eficácia imediata às
normas constitucionais sobre direitos e garantias fundamentais,
ou recusar a atribuição de nível constitucional às normas de
tratados internacionais de direitos humanos.24
A interpretação proposta edifica-se sobre os
fundamentos da hermenêutica filosófica, na medida em
que se sustenta na compreensão e na aplicação do princípio
como atividade criativa e referenciada com a faticidade,
com a experiência e a realidade da vida dos direitos, mas
principalmente pela indispensável atuação jurisdicional
concretizadora e não sonegadora dos direitos fundamentais
do consumidor. Não é uma atividade compreensiva
orientada por regras, mas, sim, pela experiência, como
registra a obra organizada por Kaufmann e Hassemer:
A hermenêutica filosófica mostra que aos resultados da
compreensão é sempre imanente um momento criativo. Neste
contexto, é indiferente que tal momento seja perspectivado como
a “melhor compreensão” do autor (Schleiermacher), ou que seja
visto simplesmente como “compreensão diferente” (Gadamer).

Acresce que a hermenêutica filosófica torna mais nítido


o facto de a compreensão se fundar na práxis da vida. (...)
A hermenêutica filosófica mostra, assim, que as hipóteses
apresentadas para a interpretação de um texto não são
descobertas através de um processo orientado por regras, antes

24 COMPARATO, Fábio Konder. Ética – Direito, moral e religião no mundo


moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 622-623.

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têm origem no viver cotidiano, sendo trazidas para o texto que
se pretende compreender.25
Necessário, neste aspecto, resgatar as advertências
apresentadas por Streck, no sentido de que os elementos
fundamentais da hermenêutica filosófica não se edificam
com a defesa de decisionismo decorrente de meros
subjetivismos do julgador, antes e pelo contrário, a
atribuição de sentido ao texto, na aplicação, não pode se
dar de forma arbitrária, valendo registrar:
À luz da hermenêutica de cariz filosófico, portanto,
não relativista, é necessário advertir, nesse contexto e
em cocordância com Dworkin, que a afirmação de que o
“intérprete sempre atribui sentido (Sinngebung) ao texto” nem
de longe pode significar a possibilidade deste estar autorizado
a atribuir sentidos de forma arbitrária aos textos, como se
texto e norma estivessem separados (e, portanto, tivessem
“existência” autônoma). Como bem diz Gadamer, quando o
juiz pretende adequar a lei às necessidades do presente, tem
claramente a intenção de resolver uma tarefa prática (veja-se,
aqui, a importância que Gadamer dá ao programa aristotélico
de uma praktische Wissnschaft). O que não quer dizer, de
modo algum, que sua interpretação da lei seja uma tradução
arbitrária, uma invenção.

Sendo mais claro: a hermenêutica jamais permitiu


qualquer forma de “decisionismo” ou “realismo”.26
O desafio permanente é evitar decisionismo judicial
que negue eficácia material e concreta aos direitos do
consumidor, construindo modelos e decisões que tornem
anêmicas e não efetivas as normas de proteção nas relações
de consumo, estimulando a violação e não a concretização
dos valores e fins prescritos no código consumerista,
edificando uma jurisprudência descomprometida com a
prestação substancial desses direitos.

25 KAUFMANN, Arthur; HASSEMER, Winfried. Introdução à filosofia do


direito e à teoria do direito contemporâneas. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2002. p. 385.
26 STRECK, Verdade e consenso. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 193.

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Considerações conclusivas
Sem prejuízo do que tem se sustentado, mas
reconhecida a importância das advertências referidas por
Streck, também no processo de construção e compreensão do
princípio do acesso à justiça, seja como direito fundamental
material de legitimação da atuação e aplicação da ordem
jurídica, seja como instrumento de tutela e aplicação dos
demais direitos e garantias fundamentais, não se retira
nem se subtrai o seu caráter e conteúdo prestacional
pela vinculação aos direitos fundamentais e à eficácia
normativa destes. A propósito, não se pode negar que se
tem uma das melhores legislações de proteção dos direitos
do consumidor, mas isso não é garantia de sua efetivação
se o labor jurisdicional não se conduzir no sentido de
concretização de seus valores, princípios e normas, valendo
para a espécie a advertência feita por Brito,27 de que é
imprescindível ter julgadores sensíveis e comprometidos com a
realização e a concretização dos valores fundamentais.
É nesse passo e sob tais fundamentos que a dimensão
prestacional do princípio do acesso à justiça propõe-se à
superação da compreensão eminentemente procedimental
e implica a compreensão das possibilidades de legitimação
substancial pela garantia e prestação efetiva de direitos e
garantias, ou seja, a legitimação que se opera e se efetiva
na prática cotidiana, no desafio permanente e constante de
tornar efetivos os direitos fundamentais, no caso, os direitos
do consumidor. Por isso a compreensão prestacional do
acesso à justiça remete necessária e impreterivelmente
pelo reconhecimento do caráter prestacional dos direitos
do consumidor nas relações de consumo, no sentido de
que não basta a normatividade protetiva sem uma tutela
jurisdicional concretizadora.

Referências
27 BRITO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional. São
Paulo: Forum, 2007.

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CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Tradução de Carlos Alberto
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COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Canotilho e a Constituição
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KIERGEGAARD, Sören. O desespero humano. São Paulo: Martin Claret. 2002.
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MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. Vol. I. 5. ed. São
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MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do
Consumidor. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do estado e da constituição e a
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NIETZSCHE, Friedrich. Ecce hoomo. São Paulo: Martin Claret, 2003.
RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Acesso à justiça no direito processual
brasileiro. São Paulo: Acadêmica, 1984.
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Reflexões sobre o hiperconsumismo 129

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O papel das Comissões
Parlamentares na defesa do
Consumidor: as audiências
públicas como forma de
pressão popular

Filipe Madsen Etges1

Introdução
A defesa do consumidor ocupa posição destacada
no texto da Constituição Federal de 1988, posto que,
primeiramente, é considerada um direito fundamental
e está entre os mais nobres direitos do ser humano,
pois encontrado no rol das garantias do art. 5º da ordem
legislativa máxima do Brasil. Ou seja, a garantia dos
direitos dos consumidores possui valor axiológico a nortear,
não só a interpretação constitucional, mas também os
poderes públicos constituídos na sua concretização.
Além disso, a Constituição repisou a importância da
regulação da ordem de consumo quando colocou, no art.
170, inciso V, do seu texto, a defesa do consumidor. Assim,
mais uma vez elencou a questão consumerista na parte
principiológica da ordem econômica do país, reforçando seu
caráter de direito fundamental de segunda geração (nota
dimensão do ingo).
1 Graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS), Especialista em Direito do Estado pela UFRGS, Mestre em
Constitucionalismo Contemporâneo pela Universidade de Santa Cruz do
Sul (UNISC), Consultor Legislativo na Assembleia Legislativa do Estado
do Rio Grande do Sul. Endereço Eletrônico: filipe_etges@al.rs.gov.br

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Entretanto, em que pese a força normativa dos
dispositivos citados, a realidade fática demonstra a
hipossuficiência do consumidor frente aos grandes
conglomerados comerciais que, na maioria das vezes,
transcendem fronteiras nacionais, colocando em xeque até
mesmo a tradicional noção de soberania, uma vez que não
podem ser regulados eficientemente pelos Estados. Então,
se mesmo os países, com todo seu aparato burocrático-
coercitivo, têm severas dificuldades em regular as grandes
multinacionais, que oportunidades têm o cidadão comum
nesse contexto? Como pode a ideia de cidadania e de
participação democrática atuar nesse panorama?
A tentativa de propor alternativas a esses
questionamentos é o que move o presente ensaio, ao discutir
como o poder público, no caso as Comissões Parlamentares
do Poder Legislativo, pode agregar-se à participação
popular para tentar furar a barreira do distanciamento
entre o consumidor e os centros decisórios das grandes
corporações.
Para tanto, como delimitador do tema, abordar-
se-ão algumas experiências vivenciadas pela Comissão
Permanente de Assuntos Municipais da Assembleia
Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, que debateu
com diversas comunidades gaúchas problemas reais, como
a falta de abastecimento de energia elétrica, problemas
de sinal de telefonia móvel e Internet, procurando, assim,
discutir sua eficácia na proteção do consumidor.

A problemática do consumo de
massa: a despersonalização do
indivíduo
A ampliação da importância do consumo decorre de
um modelo capitalista, trazendo, desde sua gênese, a ideia

Reflexões sobre o hiperconsumismo 131

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de afastamento entre o consumidor/trabalhador e dono
dos meios de produção (o produtor dos bens de consumo),
despersonalizando o sujeito. No modelo tipicamente
capitalista sempre se buscou a ampliação do número de
consumidores. Assim, quanto mais consumidores, maior o
número de contratos a serem firmados, o que complicava
sobremaneira a relação de consumo, pela dificuldade de
discutir a contratação individualmente.
Entretanto, com a utilização da contratação em massa,
cujos preços e todas as demais condições contratuais
eram ditados unilateralmente pelos fornecedores de
produtos e serviços, não era mais necessário o encontro
do consumidor com o fornecedor para o fechamento do
negócio. Pelo contrário, do ponto de vista do vendedor,
era indesejável. E ademais, imperava, antes da ideia de
proteção consumerista trazida pela Constituição de 1988,
a regulação civil do pacta sunt servanda, ou seja, o contrato
fazia lei entre as partes contratantes.
Essa conjuntura explica, de certa forma, a
despersonalização do sujeito consumidor, deixando-o
fragilizado na relação de consumo. Contudo, a Constituição
de 1988 obrigou o Estado a intervir para equilibrar essa
balança, no momento que escreveu em seu art. 5º, inciso XXXII,
que o Estado deverá promover, na forma da lei, a defesa do
consumidor. Assim, o Estado deixou seu papel subsidiário
e limitado de “respeito à autonomia dos indivíduos, das
famílias, associações de classe e grupos econômicos, somente
agindo indiretamente e quando necessário para criar condições
favoráveis ao livre exercício da atividade econômica”2, para
um papel ativo na defesa do consumidor.
2 ROCHA, Ana Claudia Loyola da; CASTRO, Rodrigo Pironti Aguirre
de. A proteção do consumidor como princípio da ordem econômica na
Constituição de 1988. Revista de Direito Administrativo e Constitucional,
Belo Horizonte, ano 8, n. 32, p. 11-29, abr./jun. 2008. Disponível em:
<http://www.bidforum.com.br/bid/PDI0006.aspx?pdiCntd=53673>.
Acesso em: 18 jun. 2013.

132 Balcão do Consumidor

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Para Rogério Leal, é por todo esse cenário que a
Constituição Federal de 1988 determinou ao Estado a
responsabilidade de tutelar as relações de consumo, e o fez
buscando criar estratégias de equalização das diferenças
materiais gritantes entre os sujeitos de direito que
interagem no mesmo cenário político, econômico, cultural
e jurídico, reconhecendo exatamente tais diferenças como
elementos integrantes de uma realidade que precisa ser
alterada como ordem normativa3.
Além da questão da massificação dos contratos, o
processo de monopolização das atividades comerciais
exerceu, e exerce, influência na fragilização e afastamento
do consumidor perante o fornecedor. Este fator, deflagrado
especialmente com o processo de globalização, transformou
pequenos conglomerados nacionais em verdadeiras
corporações de influência global.
Com isso, essas gigantas corporativas possuem tantos
consumidores de suas marcas que o consumidor individual
se torna, frente a sua gama de milhões ou até bilhões de
consumidores, praticamente um nada! E, como um “grão de
areia em um deserto”, ele é apenas um número sem expressão.
Desta feita, a sua inconformidade com a falta de acesso aos
centros decisórios do fornecedor, quando sujeito a uma relação
de consumo defeituosa, é irrelevante para a empresa.
Tal poderio econômico é evidente, uma vez que
nem mesmo Estados, com todo o seu aparato legal-
burocrático-coercitivo, conseguem fazer frente aos grandes
conglomerados comerciais, uma vez que estes, muitas vezes,
nem sede física possuem no território do país, realizando
suas operações exclusivamente por meio eletrônico de
sítios extraterritoriais. Tal situação, vista em um mundo

3 LEAL, Rogério Gesta. Mercado, fornecedor e consumidor: aspectos


econômicos e sociais das decisões judiciais. In: Balcão do Consumidor: 20
anos do Código de Defesa do Consumidor. (Org). Liton Pilau Sobrinho.
Passo Fundo: Editora UPF, 2011, p. 43-44

Reflexões sobre o hiperconsumismo 133

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globalizado, gera uma crise de soberania estatal, dada a
impotência do tradicional Estado-Nação.
Zagrebelsky nos ensina sobre a fragilização do
conceito tradicional de soberania, que, desde o final do
século XIX, atuam forças corrosivas, tanto interna como
externamente, a saber: o pluralismo político e social interno,
que se opõe à ideia de sujeição; a formação de centros
de poder alternativos e concorrentes com o Estado que
operam no campo político, econômico, cultural e religioso,
com frequência em dimensões territoriais distintas das
fronteiras estatais; a progressiva institucionalização,
promovida muitas vezes pelos próprios Estados, de
contextos que integram seus poderes em dimensões
supraestatais, subtraindo assim a disponibilidade dos
Estados particulares; e a atribuição de direitos aos
indivíduos, que podem fazê-los valer perante jurisdições
internacionais frente aos Estado a que pertencem.
Assim, as sociedades pluralistas atuais são marcadas
pela presença de grupos sociais com ideologias e projetos
diferentes, em que nenhum tem força suficiente para
obter hegemonia no poder4.
Essa avaliação do constitucionalista italiano, de
origem russa, evidencia uma série de atores que vai
influenciar o conceito de soberania estatal, tanto interna
como externamente, no sentido de enfraquecê-lo. E, dentre
esses atores, é impossível não perceber que as corporações
têm posição destacada, senão preponderante.
Este “enfraquecimento” do Estado Nacional permite
que organismos supranacionais (multinacionais, ONU,
G8) avancem sobre parcela do poder regulatório dos
Estados, tanto no campo econômico como político. Tais
grupos, carentes de legitimidade democrática, geram
4 ZAGREBELSKY, Gustavo. El derecho dúctil: Ley, Derechos, Justicia.
Madrid: Editora Trotta, 1995, p. 11-13.

134 Balcão do Consumidor

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maiores incertezas sobre a regulação social e dificultam a
atuação das instituições nacionais5.
Segundo Leão, um aspecto tênue e perigoso
relacionado ao processo de globalização é a revolução
tecnológica ocorrida no setor da informação, que está
vinculada ao aparecimento do conceito de exclusão, ligado
à elevação das aspirações de consumo de grande parte da
população mundial. O encurtamento das distâncias entre
os diversos países do mundo e a exacerbação da mídia
global fizeram com que o modo de vida das sociedades de
consumo ocidentais, apesar de não estar acessível a todos,
nem mesmo nos países ricos, fosse tomado como padrão6.
Assim, essa relação de despersonalização, de
impessoalidade nas relações e de consumo exagerado como
símbolo de status, passa a ser vista como natural, conforme
alerta Rogério da Silva:
O consumidor que se acostumou a manter uma relação
de pessoalidade na aquisição de produtos ou serviços hoje se
depara com a impessoalidade. Não raras as vezes em que toda
uma operação de aquisição de produtos ou serviços é realizada
sem um único contato humano7.

Portanto, somente por meio de participação coletiva


efetiva, somada à mediação dos poderes instituídos, é que
se pode buscar algum caminho que permita aproximar o
consumidor dos grandes fornecedores, para que possua voz
e tenha seus pleitos considerados nas decisões empresariais
das grandes corporações.
Além disso, existe uma tendência entre os consumidores
de, mesmo sofrendo de problemas e abusos comuns entre si,
5 LEÃO, Renato Zerbini Ribeiro. Os direitos econômicos, sociais e culturais
na América Latina e o Protocolo de San Salvador. Porto Alegre: Sérgio
Antônio Fabris Editor, 2001, p. 62.
6 Ibidem, p. 61-62.
7 SILVA, Rogério da. O município e as políticas públicas de defesa do
consumidor. In: Balcão do Consumidor: 20 anos do Código de Defesa do
Consumidor. Org. Liton Pilau Sobrinho. Passo Fundo: Editora UPF, 2011,
p. 33.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 135

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buscarem soluções individuais. Ou seja, não conseguem ou
não procuram unir forças para a solução comunitária das
questões que os afetam. Cada um tenta resolver o “seu”
problema como se fosse descolado de todas as pessoas que
sofrem com a mesma situação. Uma consequência disto é
a crescente judicialização em demandas individuais de
contendas relacionadas ao consumo. Essa “individualização”
também compõe o âmago da questão de despersonalização
do sujeito consumerista, deixando-o ainda mais enfraquecido
na relação com as grandes corporações.
Pelo lado das empresas, a busca pelo lucro crescente
faz com que estas estabeleçam metas de vendas e produção.
Estas metas sempre crescentes são inversamente
proporcionais à ética esperada nas relações consumeristas.
Ou seja, o estabelecimento de metas progressivas
anualmente, ad infinitum, impulsiona práticas enganosas
e nocivas com relação ao consumidor.
Adiante de uma conduta abusiva frente ao
consumidor, também se verifica uma opressão em relação
aos empregados das grandes indústrias, que se veem
obrigados a condutas antiéticas para garantir as vendas
desejadas ou, do contrário, a meta não será atingida e este
será substituído por um novo trabalhador que a cumpra.
Nessa linha de pensamento acumulativo sem
parâmetros, não existe a mentalidade de um lucro suficiente,
em que a partir dele se ofertem melhores salários, melhor
atendimento, melhor qualidade de produto, melhores
condições trabalhistas. Pelo contrário, pois quando
ocorre a queda do lucro, as grandes empresas realizam
demissões em massa, migram para regiões ou países de
política trabalhista e tributária mais favorável, baixam
a qualidade dos produtos, pressionam para a baixa de
impostos, retirando verbas que poderiam ser utilizadas em
prol da população, entre outras práticas desapegadas com
a qualidade de vida ou com a felicidade do ser humano.

136 Balcão do Consumidor

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Essa visão da corporação, como se possuísse vida
e interesses próprios, de que por trás de suas ações não
existem seres humanos concretos, ajuda a distanciar
a “pessoa jurídica” da “pessoa humana” Além disso, o
distanciamento entre os acionistas das grandes empresas e
os destinatários dos produtos é imenso, eles são invisíveis,
dispersos, desconhecidos. Não existe a possibilidade de
que as demandas dos consumidores e dos trabalhadores
cheguem a essas esferas de poder econômico. E as pessoas
são tratadas como meros números em planilhas contábeis.
E é dentro dessa lógica, somada à individualização da
busca de soluções de problemas coletivos, que o consumidor
se torna cada vez mais hipossuficiente.
Essa introdução serve de pano de fundo, de substrato
para a abordagem sobre a atuação das comissões
parlamentares, que têm buscado reunir esses problemas
“individuais” e trazê-los para a esfera pública, para aí somar
as instituições representativas da sociedade e angariar força
coletiva em prol de uma efetiva defesa do consumidor.

O trabalho das Comissões


Parlamentares
Quando se fala em Poder Legislativo, normalmente
o pensamento se remete ao trabalho de votação de leis
em Plenário. Entretanto, as suas comissões de mérito
desempenham um importante papel prévio na discussão
e no amadurecimento das temáticas aprovadas pelos
parlamentares. Menos usual ainda é a percepção do seu papel
na discussão dos grandes temas de interesse nacional, mesmo
quando esses não são objeto de um projeto de lei específico.
Dentro das competências das comissões tem-se,
utilizando o exemplo do Regimento Interno da Assembleia
Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, a possibilidade

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Livro-003-1-224.indd 137 28/05/2014 14:19:30


de promover estudos, pesquisas e investigações sobre
problemas de interesse público; receber petições,
reclamações ou representações de qualquer pessoa contra
atos ou omissões de autoridades ou entidades públicas;
solicitar depoimento de qualquer autoridade ou cidadão
para prestar informações e, também, realizar audiências
públicas com entidades da sociedade civil.
Esta lista de atribuições não tem caráter exaustivo,
mas busca demonstrar que o trabalho dessas comissões
vai além daquilo que normalmente é esperado pelo cidadão
que não acompanha de perto o trabalho parlamentar.
Esse plus de competências possibilita a aproximação
do parlamento com o cidadão, por meio das atividades das
comissões, podendo influenciar no processo de formação
das leis e, além disso, como instrumentos de influência e
pressão política, seja sobre o próprio governo, seja sobre
entidades privadas, especialmente sobre as grandes
corporações comerciais que pouco são afetadas pelo cidadão/
consumidor isoladamente.
É destacado o exemplo de interlocução consumidor-
parlamento que ocorreu no ano de 2013, quando praticamente
todos os legislativos dos Estados da Federação, em ação
conjunta, instalaram Comissão Parlamentar de Inquérito
para apurar problemas nos serviços de telefonia fixa,
móvel, bem como sinal de banda larga de Internet. Nessas
comissões de inquérito, os consumidores, em conjunto com
a esfera pública, têm a oportunidade de trazer ao debate
aqueles agentes empresariais aos quais não teriam acesso
de forma individual. Essas chamadas CPI´s da Telefonia
têm demonstrado ser efetivas frentes de pressão diante
das grandes multinacionais que controlam o segmento,
obtendo melhorias significativas para os consumidores.
Nesse sentido, Rogério da Silva faz pertinente alerta
ao questionar o porquê de não se ter utilização plena da
legislação pró-consumidor se se tem uma das melhores

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legislações do mundo? Onde estão os entraves que levam
a que as normas não possam ser utilizadas por toda
a população e com isso contribuam para o processo de
formação da cidadania?8
Conforme dados do Departamento de Proteção e Defesa
do Consumidor (DPDC), vinculado à Secretaria de Direito
Econômico do Ministério da Justiça, apenas 10% dos 5.565
municípios do país possuem PROCON, significando que
a maioria da população brasileira está desprotegida por
não possuir, no local onde residem, sistema de defesa do
consumidor9.
Para mitigar problemas como esse, as comissões
parlamentares procuram editar publicações técnicas,
dentro de suas competências temáticas, que almejam
instruir as esferas públicas ou privadas aptas a atuarem na
questão em pauta. No caso da inexistência e, muitas vezes,
falta de efetividade dos órgãos de proteção do consumidor
no âmbito municipal, a Comissão de Assuntos Municipais
do Estado do Rio Grande do Sul, em cooperação técnico-
científica com a Faculdade de Direito da Universidade de
Passo Fundo (UPF), editou cartilha para instruir gestores
municipais sobre como criar o seu PROCON local. Essa
cartilha contém informações e orientações que devem ser
seguidas para instituir o órgão de defesa do consumidor
e “é destinada a Prefeitos, Vereadores, autoridades,
dirigentes municipais, entidades da sociedade civil e a
todos os cidadãos que tenham interesse em contribuir para
a municipalização do sistema de defesa do consumidor”10.
Assim, se percebe que o parlamento possui mecanismos
para além de sua função tradicional legislativa, podendo
8 SILVA, Rogério da. O município e as políticas públicas..., op. cit., p. 21.
9 Ibidem, p. 21-22.
10 Rio Grande do Sul. Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do
Sul. Comissão de Assuntos Municipais. A municipalização do Sistema
de Defesa do Consumidor: cartilha para criação do PROCON municipal.
Org(s): Liton Lanes Pilau Sobrinho; Filipe Madsen Etges. Porto Alegre:
CORAG, 2012, p. 9.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 139

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atuar na questão consumerista, sendo o principal deles as
audiências públicas.

A participação popular do consumidor:


audiências públicas
Conforme alguns exemplos já trazidos ao longo da
exposição, pode-se perceber que a participação popular,
quando empoderada por meio dos diversos instrumentos
coercitivos do poder público, pode obter bons resultados na
defesa do consumidor frente às corporações.
No último ponto do trabalho, o foco será em torno
das audiências públicas, realizadas pelas Comissões
Parlamentares, que têm como objetivo oportunizar que as
demandas da população sejam ouvidas diretamente nas
comunidades onde vivem, colocando em contato esferas de
poder as quais o homem comum do povo não tinha acesso,
permitindo que exponha seus problemas e que estes sejam
acompanhados pelos seus representantes.
Antes, entretanto, é necessário pontuar a estrita
vinculação dessas audiências com a implementação
da soberania participativa popular, garantida pela
Constituição de 1988.
A ideia de Estado Democrático de Direito está ligada
“à existência de uma Sociedade Democrática de Direito”,
resgatando a tese de que “o conteúdo do conceito de
democracia aqui se assenta na soberania popular (poder
emanado do povo) e na participação popular, tanto na sua
forma direta como indireta, configurando o que podemos
chamar de princípio participativo”11. Além disso, esta ideia
se coloca “como elemento informador de todo o ordenamento
jurídico, o que gera inúmeras implicações, especialmente
11 LEAL, Rogério Gesta. Estado Administração Pública e Sociedade: Novos
Paradigmas, p. 149.

140 Balcão do Consumidor

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ao agregar o requisito da participação como condição de
validade” 12.
Pela primeira vez na história política do Brasil, nos
conta José Álvaro Moisés, o texto da Constituição Federal
de 1988 alterou a célebre fórmula que alude à soberania
popular (“todo poder emana do povo e em seu nome será
exercido”) para introduzir uma formulação que, visando
tornar efetiva a expressão da vontade popular, preconiza
o exercício do poder, não só por meio de representantes
eleitos, como é típico da tradição liberal democrática mais
conhecida, mas diretamente, através de mecanismos
de participação popular nos negócios públicos, como o
referendo, o plebiscito e a iniciativa legislativa.13
Nesse ponto, é acertada a posição do autor que,
embora não cite expressamente as audiências públicas,
destaca a necessidade de que o exercício do poder popular
transborde o princípio representativo. No caso do combate
aos abusos nas relações de consumo, é necessário que haja
uma confluência entre a participação direta e indireta,
dada a hipossuficiência do consumidor frente à hegemonia
das grandes empresas.
Com a mesma razão, Haberle trata da atuação
popular afirmando que o povo “não é apenas um
referencial quantitativo que se manifesta no dia da eleição
e que, enquanto tal, confere legitimidade democrática ao
processo de decisão”. O autor entende que “povo é também
um elemento pluralista para a interpretação que se faz
presente de forma legitimadora no processo constitucional:
12 HERMANY, Ricardo. Novos Paradigmas da Gestão Pública Local e do
Direito Social: A participação popular como requisito para regularidade
dos atos da administração. Direitos Sociais e Políticas Públicas: Desafios
Contemporâneos. Org. Jorge Renato dos Reis e Rogério Gesta Leal. Santa
Cruz do Sul: EDUNISC. tomo 6. 2006, p. 1734.
13 MOISES, José Álvaro. Cidadania e Participação: Ensaio sobre o referendo,
plebiscito e a iniciativa popular legislativa na Nova Consituição. São Paulo:
Marco Zero. 1990. p. 7.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 141

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como partido político, como opinião científica, como grupo
de interesse, como cidadão”14.
Essa participação legitimadora dos processos
políticos e sociais, dentro de um Estado que pretenda se
dizer democrático de direito, deve ser entendida como
“o conjunto de atividades mediante as quais os cidadãos
de uma determinada sociedade pretendem influir tanto
na escolha dos responsáveis pelas decisões políticas que
afetam essa sociedade como um todo (e, portanto, nas
suas ações)” e também “como um processo que conduz às
próprias decisões relevantes para a coletividade”15.
As audiências públicas, então, como mecanismos
de expressão desta participação popular direta,
legitimadora de um Estado efetivamente democrático,
serão imprescindíveis instrumentos de atuação cidadã do
consumidor.
O autor Moreira Neto conceitua as audiências públicas
como canais de participação administrativa aberta aos
indivíduos e aos grupos sociais determinados, visando
à legitimidade da ação administrativa, formalmente
disciplinada em lei, com a finalidade de expressar as
preferências e as tendências dos segmentos e que seja
capaz de conduzir o poder público a uma decisão de maior
aceitação consensual para a sociedade16.
Essas audiências públicas, como forma de concretizar
o princípio participativo, não devem ser consideradas
como mera formalidade a ser cumprida pelo Estado-
Administração, mas devem ser canais de abertura
14 HABERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade aberta dos
Intérpretes da Constituição: Contribuição para a interpretação pluralista
e “procedimental” da constituição, trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto
Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1997. p. 37.
15 MOISES, José Álvaro. Cidadania e Participação... op. cit., p. 13.
16 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito de participação política:
legislativa, administrativa, judicial. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p.
129.

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democrática, com finalidade de qualificar a gestão pública,
visto serem um instrumento de consulta aos cidadãos
administrados, em que o governo possa visualizar o que
pretende a sociedade17.
As audiências públicas, legislativamente, são
decorrência do art. 58, §2º, inciso II da Constituição Federal18,
que estabelece a sua utilização dentro das competências
das comissões tanto do Senado Federal quanto da Câmara
dos Deputados. Este dispositivo é, consequentemente,
reproduzido também nas competências das Assembleias
Legislativas dos Estados, por meio de suas comissões.
A legislação infraconstitucional também se espelhou
nessa prerrogativa para dar mais algumas utilizações às
audiências públicas. Como exemplos, tem-se: a) Lei 8.666/93,
que prevê no seu art. 39 a obrigatoriedade da realização
da audiência pública nas licitações de grande valor
pecuniário; b) a Lei Complementar 101/00, que dispõem
sobre a responsabilidade fiscal; c) a Lei n.º 10.257/01, que
determina que o Poder Executivo demonstrará e avaliará o
cumprimento das metas fiscais de cada quadrimestre, em
audiência pública e que a transparência será assegurada
pela participação popular e a realização de audiências
públicas durante os processos de elaboração e discussão
de planos, lei de diretrizes orçamentárias e orçamentos;
d) o Estatuto das Cidades, que dispõe, ainda, no art. 40,
§4º, que “no processo de elaboração do plano diretor e na
fiscalização de sua implementação, os Poderes Legislativo
17 HERMANY, Ricardo. FRANTZ, Diogo. Modernização da Administração
Pública Local: audiências públicas eletrônicas. In: Empoderamento Social
Local. Porto Alegre: CORAG, 2010, p. 379.
18 Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes
e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no
respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação.
(...)
§ 2º - às comissões, em razão da matéria de sua competência, cabe:
(...)
II - realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil;

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e Executivo municipais garantirão: I - a promoção de
audiências públicas e debates com a participação da
população e de associações representativas dos vários
segmentos da comunidade”.
O próprio Poder Judiciário também tem utilizado a
figura das audiências públicas para tratar de seus temas
mais polêmicos19.
Embora a experiência brasileira, conforme alerta
Rogério Gesta Leal, envolvendo estes institutos formais,
como as audiências, regra geral, não tenha sido muito
exitosa, “tanto em face da cultura centralizadora que marca
a história das administrações públicas nacionais, como em
razão da passividade cívica que identifica a maior parte de
sua cidadania”20, não se pode negar o fato de que alguns
avanços foram obtidos.
Para exemplificar, tomam-se como ilustração alguns
trabalhos desenvolvidos pela Comissão de Assuntos
Municipais do Legislativo Estadual Gaúcho, dentro das
temáticas das audiências públicas desta Comissão. Em
que pese esses temas sejam inúmeros, pois albergam todo e
qualquer problema que ocorra nos municípios, analisar-se-
19 As audiências públicas no Poder Judiciário foram previstas, inicialmente,
pelas Leis 9.868/99 e 9.882/99, que disciplinam processo e julgamento
das ações diretas de inconstitucionalidade, ações declaratórias de
constitucionalidade e arguições de descumprimento de preceito
fundamental. No âmbito do Supremo Tribunal Federal, as audiências
públicas foram regulamentadas pela Emenda Regimental 29/2009, que
atribuiu competência ao Presidente ou ao Relator, nos termos dos arts. 13,
XVII, e 21, XVII, do Regimento Interno, para “convocar audiência pública
para ouvir o depoimento de pessoas com experiência e autoridade em
determinada matéria, sempre que entender necessário o esclarecimento
de questões ou circunstâncias de fato, com repercussão geral e de
interesse público relevante”, debatidas no Tribunal. O procedimento a
ser observado consta do art. 154, parágrafo único, do Regimento Interno.
A primeira audiência pública realizada pelo Tribunal foi convocada pelo
Min. Ayres Britto, Relator da ADI 3510, que impugnava dispositivos da
Lei de Biossegurança (Lei 11.105/2005), e ocorreu no dia 20 de abril de
2007. Disponível em www.stf.jus.br. Acesso em: 19 de junho de 2013.
20 LEAL, Rogério Gesta. Estado Administração Pública... op. cit., p. 155.

144 Balcão do Consumidor

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ão dois eixos que dizem respeito à proteção do consumidor:
energia elétrica e telefonia.
Cabe esclarecer, caso se questione acerca do fato de que
a regulação de energia e telecomunicações são competências
federais e não estaduais que, primeiramente, produção e
consumo possuem competência concorrente entre Estado e
União. E mais, o parlamento possui uma função fiscalizatória
e especialmente de representação, de buscar os problemas
junto às comunidades e levar às esferas competentes.
Com isso, a Comissão de Assuntos Municipais foi
verificar, in loco, as reclamações da população dos Municípios
Gaúchos de Dois Irmãos21 e Sananduva22 sobre os frequentes
cortes de energia elétrica, problemas na manutenção de
postes que sustentam as redes elétricas e a ampliação
de capacidade da rede. Ambas as localidades relataram
dificuldades de comunicação com a empresa concessionária
(AES Sul), uma vez que o único acesso era pelo do call center
do serviço de atendimento ao consumidor.
A convite da Assembleia Legislativa, estiveram
presentes nas audiências públicas citadas técnicos e
representantes da diretoria da concessionária, a Secretaria
Estadual de Infraestrutura e Logística - RS, a Secretaria do
Planejamento, Gestão e Participação Cidadã - RS, a Agência
Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados no
Rio Grande do Sul, bem como prefeitos, vereadores e uma
imensa gama de pessoas da comunidade.
Na ocasião, a empresa concessionária realizou uma
apresentação sobre os projetos de melhoria previstos
para a região, firmando compromisso de aumentar os
investimentos naquelas localidades e realizar uma
manutenção mais periódica da rede elétrica. E, por meio de
acompanhamento posterior, a comunidade relatou que os
investimentos foram feitos e houve melhora nos serviços.
21 A Audiência Pública foi realizada em 15 de abril de 2011 e teve como
proponente o Deputado Estadual Luis Lauermann.
22 A Audiência Pública foi realizada em 25 de maio de 2012 e teve como
proponente o Deputado Estadual Aldacir Oliboni.

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A questão dos problemas na telefonia também foi
tratada, localmente, junto às comunidades, pela Comissão.
Como exemplo, tem-se a visita aos municípios de Canguçu23
e Presidente Lucena24, ambos no Estado do Rio Grande do
Sul. Nessa ocasião, as comunidades também relataram
problemas de sinal de telefonia móvel e de acesso à Internet
banda larga, bem como extrema dificuldade de um contato
efetivo com as grandes multinacionais de telefonia. Mesmo
a Comissão de Assuntos Municipais teve obstáculos para
viabilizar contato eficiente com centros minimamente
decisórios destas grandes corporações. Entretanto, à medida
que se conseguiu a confirmação de uma das empresas, as
demais se sentiram compelidas a comparecer.
Assim, sucederam-se as audiências públicas com a
presença das Empresas OI, TIM, VIVO e CLARO. Além
destas, é destacada a presença da Agência Nacional de
Telecomunicações (ANATEL), órgão responsável pelo
regramento das concessões de telecomunicações no país, bem
como de representantes do Ministério das Comunicações,
Ministério Público, Poder Judiciário, PROCON/RS,
prefeitos, vereadores e comunidade em geral.
Nessas audiências foi anunciada, pelas empresas, a
instalação de novas torres de telefonia móvel, bem como
a assunção de compromisso de diagnosticar e realizar
melhorias na qualidade do sinal daquelas regiões.
Com o relato de alguns trabalhos da Comissão
de Assuntos Municipais no que pertine à defesa do
consumidor, o que se quer ressaltar não são as melhorias
que decorreram das audiências públicas (em que pese sua
importância prática), mas sim o fato de que, pela primeira
vez, por meio da audiência pública, se pôde colocar, frente
a frente, o consumidor com os reais detentores de poder
decisório das grandes corporações, mesmo que possuidores
de uma competência apenas regional.
23 A Audiência Pública foi realizada em 14 de maio de 2012 e teve como
proponente o Deputado Estadual Pedro Pereira.
24 A Audiência Pública foi realizada em 23 de abril de 2012 e teve como
proponente o Deputado Estadual Luis Lauermann.

146 Balcão do Consumidor

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Ou seja, o cidadão foi ouvido pessoalmente acerca das
reclamações cotidianas que lhe afligem, gerando um sentimento
de pertencimento e de participação na solução dos problemas,
nesse caso, relativos à sua condição de consumidor.

Conclusão
A questão do consumidor no país, conforme elencado
ao longo do trabalho, sofre direta influência de fatores como
despersonalização do sujeito consumidor, contratos massivos
e por adesão, falta de eficácia do Estado na proteção do
consumidor, política empresarial opressora de metas e lucro
infinito, individualização das ações dos consumidores, entre
outros fatores e práticas abusivas que surgem à medida que
o processo do consumismo se desenrola.
Todas essas questões afastam o consumidor
da possibilidade de ter as suas queixas individuais
contempladas pelas grandes corporações, uma vez que este
não tem acesso aos seus centros decisórios, exceto por call
centers impessoais e informatizados.
Nesse contexto, a aproximação entre a esfera pública
e a privada tende a ser um agregador de forças que
possibilita uma ingerência nessas corporações, no sentido
de defesa dos interesses dos consumidores. As comissões
parlamentares podem, assim, realizar essa aproximação
consumidor-fornecedor de forma mais eficaz.
Assim, esse importante instrumento permite puxar os
consumidores para dentro da esfera decisória das empresas,
evitando a frustração de, individualmente, contentar-se em
reclamar diante de uma gravação em um 0800 ou obrigar-se
a arcar com os custos, o desgaste e o tempo despendido em
uma ação judicial, nem sempre vitoriosa, dada a dificuldade
de obtenção de provas junto a essas grandes multinacionais,
nem sempre suprida pela inversão do ônus da prova facultado
pelo Código de Defesa do Consumidor.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 147

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Referências
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Madrid: Editora Trotta, 1995.

148 Balcão do Consumidor

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A rotulagem dos alimentos
transgênicos: uma questão
de transparência e dignidade
ao consumidor

Claudia Alves Cerri1


Camila Alves2

Introdução
O presente trabalho versa sobre o princípio de
transparência e o dever de informação no que concerne à
rotulagem nos alimentos transgênicos, tendo como foco o
direito consumerista consagrado pela Lei 8.078 de 11 de
setembro de 1990, especialmente o previsto no artigo 6º,
inciso III. Muito embora a legislação específica exija, o que
ainda se observa é uma deficiente prestação de informação
por parte dos fornecedores que disponibilizam os produtos
geneticamente modificados no mercado de consumo.
Entende-se que a informação deve constar do rótulo de
quaisquer produtos, em especial aqueles que contenham
transgênicos em sua composição. Tal afirmação é feita à luz
do dever de informação e do princípio da transparência, eis
que o mercado consumerista e os itens nele disponibilizados
atingem uma vasta gama de consumidores, que, por
definição, são a parte vulnerável da relação de consumo.
1 Mestre em Direito pela UNISINOS; professora da Universidade de Passo
Fundo; Coordenadora do projeto Balcão do Consumidor – UPF Campus
Lagoa Vermelha; Advogada.
2 Acadêmica do curso de Direito da Universidade de Passo Fundo – Campus
Lagoa Vermelha; Estagiária no Balcão do Consumidor – Campus Lagoa
Vermelha.

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O estudo compreenderá o debate sobre a segurança
alimentar versus os transgênicos, utilizando para tanto
posicionamentos jurisprudenciais junto aos Tribunais de
Justiça, apontamentos doutrinários, dispositivos legais,
Constituição Federal e uma breve alusão à ciência face aos
organismos geneticamente modificados.
Diante dos elementos que compõem os produtos, é
necessário que os rótulos contenham informações claras
e precisas acerca dos riscos e das consequências relativas
à ingestão desses alimentos que requerem mais atenção,
mais pesquisas e estudos, além de acompanhamento em
longo prazo. Seus possíveis efeitos causam receio aos
consumidores, pelo fato de que há ainda uma zona gris,
que acarreta certa insegurança ao consumidor no que se
refere ao consumo prolongado de produtos transgênicos.
Assim, o trabalho tem a finalidade de demonstrar
a necessidade da devida prestação de informação no que
tange à rotulagem dos alimentos transgênicos colocados
à disposição dos consumidores, buscando refletir
positivamente em âmbito social.

Breve Histórico do Direito do


Consumidor
Relativamente novo, o direito do consumidor visa proteger
o sujeito em suas relações jurídicas de consumo em face de um
fornecedor que pode ser um empresário ou um comerciante.
Esse novo ramo do direito surgiu após a Constituição Federal
de 05 de outubro de 1988, mais precisamente em 1990,
quando foi elaborado o Código de Defesa do Consumidor, Lei
nº 8.078 de 11 de setembro de 1990. Isto não quer dizer que
antes desta data não houvesse tutela jurídica ao consumidor,
apenas não havia uma proteção tão específica e direta como
modernamente ocorre.

150 Balcão do Consumidor

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No final do século XIX e início do século XX, surgiram
os primeiros movimentos pró-consumidor nos países que
estavam no auge do desenvolvimento industrial, como a
França, Alemanha, Inglaterra e, principalmente, Estados
Unidos. Com isso, em Nova Iorque, Josephine Lowell
criou a New York Consumers League, uma associação de
consumidores que tinha por objetivo a luta pela melhoria
das condições dos trabalhos locais e contra a exploração do
trabalho feminino em fábricas e comércios (CAVALIERI,
2011, p. 04). Essa associação elaborava “listas brancas”,
contendo os nomes dos produtos que os consumidores
deveriam escolher, assim as empresas que produziam e
comercializavam respeitavam os direitos dos trabalhadores.
Acreditava ser uma forma de influenciar a conduta
das empresas pelo poder de compra dos consumidores
(CAVALIERI, 2011, p. 04).
Partindo desta visão, os consumidores nos Estados
Unidos constituíram o mais importante grupo econômico e
organizado, por isso o Presidente Kennedy primeiramente
enumerou os direitos básicos do consumidor como o direito
à saúde, à segurança, à informação, à escolha, sendo de
suma importância dentre outros direitos.
No Brasil, a defesa do consumidor começou a ser
discutida nos primórdios dos anos 70, com a criação das
primeiras associações civis e entidades governamentais
voltadas para esse fim. Mas o consumidor brasileiro
só despertou para seus direitos na segunda metade da
década de 80, após a implantação do Plano Cruzado e a
problemática econômica por ele gerada (CAVALIERI, 2011,
p. 07). A Constituição de 1988, em seu artigo 5º inciso XXXII,
finalmente estabeleceu como dever do Estado promover a
defesa do consumidor e hoje é largamente difundida.
A partir de 1985, a ONU estabeleceu diretrizes para
a legislação consumerista, consolidando a ideia de que se
trata de um direito humano de nova dimensão (no Brasil

Reflexões sobre o hiperconsumismo 151

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elencado no artigo 5º, XXXII, da CF/88)3, um direito social
e econômico. Assim a defesa do consumidor é direito e
garantia individual no Brasil e um direito fundamental,
direito humano de nova geração, positivado na Constituição
Federal (CAVALIERI, 2011). Um princípio de ordem
econômica da Constituição Federal, princípio limitador
da autonomia da vontade dos mais fortes em relação aos
mais fracos, princípio este que construiu um novo direito
privado mais consciente de sua função social; direito esse
que mudou o mercado brasileiro, estabelecendo um novo
patamar de boa-fé, qualidade e segurança nas relações
privadas, especialmente na proteção dos mais vulneráveis
nas relações econômicas (MARQUES, 2007). Hoje, pode-se
dizer que o Brasil obteve um grande avanço no que tange à
tutela do consumidor.
Direitos Básicos do Consumidor: Proteção à vida, à
saúde e à segurança
Se nos Estados Unidos desde a década de 60 os
consumidores tiveram amparo específico, no Brasil
esta tutela tardou um pouco mais. O Código de Defesa
do Consumidor, Lei nº 8.078/1990, traz o conceito de
consumidor e fornecedor, regulamentado no artigo 2º,
caput do CDC e o conceito de fornecedor expresso no artigo
3º. Em poucas palavras, pode-se dizer que consumidor é
toda pessoa física ou jurídica que adquire um produto ou
serviço para uso pessoal como destinatário final.4 Direitos
básicos são aqueles interesses mínimos, instrumentais
ou materiais, relacionados aos direitos fundamentais,
3 Art. 5º CF - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança
e à propriedade, nos termos seguintes: XXXII – o Estado promoverá, na
forma da lei, a defesa do consumidor.
4 Art. 2º CDC - Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire
ou utiliza produto ou serviço como destinatário final; Parágrafo
único – Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que
indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo.

152 Balcão do Consumidor

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expressamente tutelados e protegidos pelo legislador.5
Por um lado, a legislação prevê direitos básicos
para os consumidores, por outro, cria também deveres
para alguém, assim se forma a relação jurídica entre
consumidor e fornecedor. Eis, aí, algo de fundamental
importância, dentro da sistemática de proteção e defesa
do consumidor, se o fornecedor possui deveres jurídicos
básicos em relação ao consumidor, estes são decorrentes
não da vontade de ambas as partes, mas de mandamento
legal. A não observância de um desses deveres caracteriza
ilícito absoluto, o infrator fica sujeito às responsabilidades
civis, administrativas e penais, conforme cada caso
concreto (CAVALIERI, 2011, p. 92). Nesse ínterim, já se
percebe que o fornecedor tem a responsabilidade legal de
repassar informações acerca dos produtos e dos serviços,
que se fazem necessários aos consumidores, oportunizando
que o consumidor não venha a sofrer prejuízos em sua
saúde ou até mesmo em sua vida por ingerir alimentos ou
5 Art. 6º CDC - São direitos básicos do consumidor: I – a proteção da vida,
saúde e segurança contra os riscos provocados por práticas no fornecimento
de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos; II – a educação e
divulgação sobre o consumo adequado dos produtos e serviços, asseguradas
a liberdade de escolha e a igualdade e segurança nas contratações; III – a
informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com
especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade
e preço, bem como sobre os riscos que apresentem; IV – a proteção contra a
publicidade enganosa e abusiva, métodos comerciais coercitivos ou desleais,
bem como contra práticas e cláusulas abusivas ou impostas no fornecimento
de produtos e serviços; V – a modificação das cláusulas contratuais que
estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos
supervenientes que as tornem excessivamente onerosas; VI – a efetiva
prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos
e difusos; VII – o acesso aos órgãos judiciários e administrativos com vistas
à prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais,
coletivos ou difusos, assegurada a proteção jurídica, administrativa e técnica
aos necessitados; VIII – a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com
a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério
do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo
as regras ordinárias de experiência; IX – (Vetado); X – a adequada e eficaz
prestação dos serviços públicos em geral.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 153

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utilizar produtos que o prejudiquem. Somente por meio
do cumprimento deste dever legal haverá equilíbrio e
harmonia na relação de consumo. Tal dever do fornecedor
está ordenado no artigo 6º, inciso I, do CDC, garantindo
ao consumidor a proteção à vida, à saúde e à segurança
contra os riscos provocados por práticas no fornecimento
de produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos
à sua saúde (DENSA, 2011, p. 35), consubstanciando-se
no dever de segurança em relação aos produtos ou aos
serviços colocados à disposição do consumidor no mercado
de consumo. Não basta que os produtos ou serviços sejam
adequados aos fins a que se destinam, ou seja, que tenham
uma boa qualidade, mas é de suma importância que sejam
seguros e que não venham a causar riscos à saúde e à
segurança do consumidor, consoante ao artigo 12 e 14 do
Código de Defesa do Consumidor.6
Pelo Princípio da Prevenção, o Código de Defesa
do Consumidor, em seus artigos 8º e 10, garante que os
produtos e os serviços colocados no mercado de consumo não
acarretem riscos à saúde ou à segurança dos consumidores,
exceto aqueles considerados normais e previsíveis. Daí a
importância de sinais ostensivos, de informações claras
e precisas nos rótulos, nas embalagens, nos invólucros,
nos recipientes, no caso de produtos, e nos locais onde
são desenvolvidos serviços potencialmente perigosos
(CAVALIERI, 2011, p. 93). 7
6 Art. 12 CDC – O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou
estrangeiro, e o importador respondem independentemente da existência
de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos
decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas,
manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem
sobre sua utilização e riscos. Art. 14 CDC – O fornecedor de serviços
responde independentemente da existência de culpa, pela reparação dos
danos causados aos consumidores por defeitos relativos á prestação de
serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre
sua fruição e riscos.
7 Idem à nota 3. Art. 10 – O fornecedor não poderá colocar no mercado de
consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto

154 Balcão do Consumidor

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Portanto, o fornecedor tem o dever de colocar na
rede consumerista produtos que, além de beneficiarem o
consumidor, não ofereçam riscos evitáveis à sua saúde ou
à sua vida. Hoje o Código de Defesa do Consumidor prevê
sanções administrativas e penais quando da omissão de
informações por parte do fornecedor, conforme tratam os
artigos 63 e 64 do CDC.8 As exigências da lei têm contribuído
para que haja melhor qualidade de vida e respeito ao cidadão
que outrora era destituído de qualquer segurança.
Direito à informação e à transparência: a
vulnerabilidade do consumidor
Expresso no artigo 6º, inciso III do Código de Defesa do
Consumidor, o direito à informação é um dos direitos mais
importantes trazidos pela lei de amparo ao consumidor,
“informação adequada e clara sobre os diferentes produtos
e serviços bem como sobre os riscos que apresentam”.9
Conforme Fernanda Nunes Barbosa, “a informação assume
a função de esclarecer ao receptor algo de que ele não possui
conhecimento, faz-se necessário a observância de alguns
requisitos, a saber, como: a clareza, precisão, completude,
veracidade e compreensibilidade”. 10
Cavalieri acredita que a informação:
Não se exaure em si mesmo. Na verdade, tem por
finalidade garantir ao consumidor o exercício de outro direito
ainda mais importante, que é o de escolher conscientemente.
Essa escolha consciente propicia ao consumidor diminuir os

grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança.


8 Art. 63 CDC– Omitir dizeres ou sinais ostensivos sobre a nocividade ou
periculosidade de produtos, nas embalagens, nos invólucros, recipientes
ou publicidade: Pena – Detenção de seis meses a dois meses e multa; Art.
64 – Deixar de comunicar à autoridade competente e aos consumidores a
nocividade ou periculosidade de produtos cujo conhecimento seja posterior
à sua colocação no mercado: Pena – Detenção de seis meses a dois meses e
multa.
9 Idem a nota 6.
10 Disponível em: <http://direitoparatodos.com/
produtostransgênicosrotulagem-direito-A-informação-consumidor/>.
Acesso em: 02 de junho de 2012.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 155

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seus riscos e alcançar suas legítimas expectativas. Mas sem
informação adequada e precisa o consumidor não pode fazer
boas escolhas, ou, pelo menos, a mais correta. É o que se tem
chamado de consentimento informado, vontade qualificada ou,
ainda, consentimento esclarecido. (CAVALIERI, 2011, p. 96).

O direito à informação pode ser analisado sob três


aspectos: o primeiro como sendo o direito de informar, o
segundo direito de se informar e o terceiro o direito de
ser informado. O Direito de informar é uma prerrogativa
constitucional concedida aos consumidores, ou seja, às
pessoas físicas ou jurídicas, no que se refere ao artigo 220
da Carta Magna. [...] “a manifestação do pensamento, a
criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma,
processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição,
observado o disposto na Constituição”. 11 (RIZZATTO,
2005, p. 49). O direito de informar encontra limites no
próprio texto constitucional, em seu artigo 5º, inciso X, que
expressa que “são invioláveis a intimidade, a vida privada,
a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua
violação”. Por isso, é um direito de interesse público, tendo
relação com o direito de ser informado. 12
O segundo direito é o direito de se informar, também é
uma prerrogativa concedida às pessoas decorrente do fato
da existência da informação. O texto constitucional, em seu
artigo 5º, inciso XIV da Constituição Federal, traz consigo o
acesso à informação e resguarda o sigilo da fonte quando se
fizer necessário.13 Quando a constituição garante a todos o
acesso à informação, entende-se que esta informação deve
11 Art. 220 CF- A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a
informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer
restrição, observado o disposto na Constituição.
12 Idem nota 1, X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a
imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material
ou moral decorrente de sua violação;
13 Idem nota 1, XIV – É assegurado a todos o acesso à informação e
resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.

156 Balcão do Consumidor

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estar com alguém, neste caso, o fornecedor, o qual terá o
dever de fornecê-la, mas nada impede que o consumidor
busque as informações que considerar necessárias, não
aguardando apenas pelo fornecedor. O terceiro direito
é o direito de ser informado, como se observa no sistema
infraconstitucional de Defesa do Consumidor, ficando claro
que informar é não faltar com a verdade ou causar dúvidas
quanto à forma de utilização e de composição do produto.
Faz-se necessário qualidade nas informações, sendo elas
precisas, claras, verdadeiras e atualizadas e que transmitam
tranquilidade, certeza e segurança ao consumidor. Assim a
lei exige, assim deverá agir o fornecedor.
Desse modo o consumidor vem sendo também
amparado pelo STJ:
Ementa:  APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
CONSUMIDOR. VIOLAÇÃO AO DIREITO BÁSICO À
INFORMAÇÃO DE FORMA COMPLETA E CLARA. Embora
a questão relativa a danos morais coletivos não se trate de
ponto pacífico na doutrina, muito menos na jurisprudência
pátria, merecendo, em razão disso, a apreciação casuística,
no caso dos autos, partindo do pressuposto de que se
admitem os danos morais coletivos, verifica-se que a conduta
praticada pela ré ocasionou lesão a um determinado grupo
de pessoas, já que houve a comercialização indiscriminada
de produtos alimentícios, com embalagens padronizadas
contendo informações nutricionais inverídicas. Nesse sentido,
a manutenção da sentença é medida imperativa. NEGARAM
PROVIMENTO AO APELO, POR MAIORIA. (Apelação Cível
Nº 70033012477, Décima Sexta Câmara Cível, Tribunal de
Justiça do RS, Relator: Ergio Roque Menine, Julgado em
09/08/2012. Disponível em: www.stj.jus.br. Acesso em: 09 de
outubro de 2012).

Esta decisão vem ratificar a importância dos


rótulos, informando a composição do produto, já que
diferente atitude traduz culpa ou dolo do responsável pela
industrialização e colocação no mercado de consumo. O
princípio mencionado no artigo 4º inciso I, do CDC, reconhece

Reflexões sobre o hiperconsumismo 157

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essa vulnerabilidade.14 Significa dizer que o consumidor é
o elo mais fraco na relação jurídica de consumo. Por isso,
Rizzatto traz dois aspectos consideravelmente importantes
para tratar da fragilidade do consumidor no que relaciona
ao princípio da vulnerabilidade, como segue:
O primeiro está ligado aos meios de produção, cujo
conhecimento é de monopólio do fornecedor. Isso significa dizer
que é o fornecedor que escolhe o produto ou serviço que vai
produzir e consequentemente colocar á disposição e a mercê
do consumidor. O segundo aspecto é o econômico, que se refere
à capacidade econômica que o fornecedor tem em relação ao
consumidor. (RIZZATTO, 2005).

Se o fornecedor reconhecidamente é o elo mais forte da


relação de consumo, é porque ele é portador de conhecimentos
acerca dos produtos que produz ou revende e, além disso,
possui maior capacidade econômica. Somente essas
duas características já o colocam num patamar superior,
resultando daí a vulnerabilidade da outra parte que não
detém tais vantagens, pois não detém conhecimentos técnicos
sobre os meios de composição e a utilização dos produtos.
Moraes, ao tratar da vulnerabilidade, afirma que:
A vulnerabilidade técnica configura-se por uma
série de motivos, sendo os principais a falta de informação,
informações prestadas incorretamente e, até mesmo, o excesso
de informações desnecessárias, esta última muitas vezes tendo
o condão de impedir que o consumidor se aperceba daquelas
que realmente interessam. (MORAES, 2001 p. 116).

Muito maior será esta condição de vulnerabilidade


quando há deficiência ou mesmo ausência completa de
informações, motivos que se traduzem em consumidores
enganados e insatisfeitos, negócios mal feitos e produtos
sem utilidade, indesejados ou prejudiciais à saúde ou à
própria vida do consumidor.

14 I - Reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de


consumo;

158 Balcão do Consumidor

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Alimentos transgênicos: novo desafio
consumerista
O grande progresso biotecnológico possibilitou a
criação de novas formas de alimentos. Em se tratando
de alimentos transgênicos, faz-se necessário em primeiro
momento conceituá-lo, uma vez que este se constitui o
cerne do estudo em questão e ainda não é um assunto muito
conhecido dos consumidores em geral. Tasca conceitua
estes produtos da seguinte forma:
Transgênico ou Organismos Geneticamente Modificados
(OGM) são plantas, animais ou micro-organismos cujo código
genético foi mudado através da transformação”. Como o código
genético é universal, isto é, idêntico para todos os seres vivos,
os genes transferidos de uma espécie para outra, vão produzir
as mesmas características que produziam na espécie doadora.
(TASCA, p. 23).

A palavra transgênico indica transformação, ou seja,


tecnologia genética oriunda da Lei Federal sob nº 8.974
de 05 de janeiro de 1995, revogada pela Lei 11.105 de 24
de março de 2005, que regulamentou os incisos II e V do
art. 225 da Constituição Federal, estabelecendo normas
para o uso da engenharia genética e para a liberação aos
organismos geneticamente modificados. Conceituando
mais simplificadamente, pode-se dizer que são “organismos
geneticamente modificados (OGM), em cujas células foram
adicionadas células de outros seres vivos, para que sejam
mais resistentes a pragas e insetos e para que se conservem
mais facilmente, tendo uma maior durabilidade”. 15
15 Art. 225 C.F – Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de
vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo
e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. §1º - Para assegurar
a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: (...) II – preservar
a diversidade e a integridade patrimônio genético do País e fiscalizar as
entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; (...) V
– controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnica, métodos

Reflexões sobre o hiperconsumismo 159

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Dentre vários conceitos referentes aos transgênicos,
pode-se também conceituá-lo como sendo, um “organismo
geneticamente modificado (OGM) cujo material genético
foi alterado por técnicas da engenharia genética”. Se,
por exemplo, o organismo geneticamente modificado for
uma planta comestível, ela é o que se chama de alimento
transgênico ou geneticamente modificado. 16
Depois de conhecer o significado da palavra transgênico,
o próximo ponto para que se compreendam as questões
relativas aos organismos geneticamente modificados é ter-
se a ideia de que a ciência descobriu que o código genético
do ser humano, dos animais e das plantas é o mesmo.
Esse código genético permite que os genes que comandam
a síntese química de um produto específico possam ser
transferidos e se expressar em outras espécies totalmente
diferentes. Essa transformação se dá da mesma forma que
se pode substituir, acrescentar ou retirar um objeto de
uma casa, para torná-lo mais confortável; a biotecnologia
permite introduzir no projeto arquitetônico de um animal,
planta, pessoa ou microrganismo um comando químico ou
gene que fará o organismo produzir, fabricar um produto
novo (TASCA, p. 21).
A primeira planta liberada para o consumo no Brasil
foi a soja Roundup Ready (RR), com tolerância ao herbicida
glifosato, desenvolvida pela empresa Monsanto, que em 1998
obteve da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança
(CTNBio) parecer técnico, conclusivo favorável à liberação e
gerou uma disputa judicial ainda não resolvida. Existem por
volta de oitocentos alimentos transgênicos em fase de estudos
no país, mas somente o mamão transgênico com resistência
a vírus da Embrapa foi permitido para estudo em campo.

e substâncias que comportem risco à vida, qualidades de vida e meio


ambiente.
16 Disponível em: <http://www.fiocruz.br/ccs/cgi/cgilua.exe/sys/start.
htm?infoid=943&sid=12>. Acesso em: 07 de outubro de 2012.

160 Balcão do Consumidor

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Mesmo antes da descoberta das técnicas de manipulação
genética que permitiram o desenvolvimento dos alimentos
transgênicos, nem todos os alimentos consumidos eram
encontrados em estado “natural”.
Acerca disso, o Tribunal do Estado do Rio Grande
do Sul entende que:
Ementa:  Administrativo. Meio Ambiente. Saúde. Cultivo
De Organismo Geneticamente Modificado. Omg. Ctnbio. Soja
Transgênica Roundup Ready. Lei N° 8.974/95. Notificação.
Autoridade Estadual. Interdição Da Atividade. 1. O Uso De
Técnicas De Engenharia Genética Na Construção, Cultivo,
Manipulação, Transporte, Comercialização, Consumo, Liberação
E Descarte De Organismo Geneticamente Modificado Depende
(I) De Autorização Do Poder Publico Federal (Ministérios Da
Saúde, Do Meio Ambiente, Da Agricultura E Da Reforma Agraria)
E De (Ii) Licenciamento Pelo Órgão Ambiental Competente.
Art.7° Da Lei Federal N° 8.974/95 E Art.11 Do Decreto N°
1.752/95. 2. O Parecer Técnico Conclusivo Sobre Registro, Uso,
Transporte, Armazenamento, Comercialização, Consumo,
Liberação E Descarte De Organismo Geneticamente Modificado
Ou Derivados Da Competência Da Comissão Técnica Nacional
De Biossegurança - Ctnbio - Órgão Do Ministério Da Ciência E
Da Tecnologia - Destina-Se A Instruir O Pedido De Autorização
Dirigido Aos Ministérios Da Saúde, Do Meio Ambiente E Da
Agricultura, Suprindo A Exigência Do Licenciamento Ambiental A
Cargo Da Autoridade Competente. Por Isso, O Parecer Conclusivo
Favorável Da Ctnbio Não Faculta O Exercício De Atividade
Relacionada Com Organismo Geneticamente Modificado. Art.7°,
Incisos Iii E Iv, Da Lei Federal N° 8.974/95 E Art.2°, Inciso Xii,
Do Decreto N° 1.752/95, Lei N° 6.938/81 E Resolução 237/97 Do
Conama. 3. O Cultivo De Organismo Geneticamente Modificado
Para Comercialização Sem Expressa Autorização E Registro Do
Produto Pelo Poder Publico Federal, Licença Ambiental Do Órgão
Competente E Notificação Prévia Do Executivo Exigida Pela Lei
Estadual Constitui-se Em Atividade Ilegal Sujeita A Interdição.
Hipótese Em Que A Sanção, A Par De Legal, Evidencia-Se
Indispensável Para Fazer Cessar A Ilegalidade Que Poe Em Risco
A Saúde E O Meio Ambiente. Recurso Do Impetrante Desprovido.
Recurso Do Estado Provido. (14 Fls) (Mandado de Segurança Nº
70000027425, Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça
do RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Julgado em
06/10/1999.).

Reflexões sobre o hiperconsumismo 161

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Para entender a conotação da palavra transgênico,
Filomeno faz uma brincadeira. “[...] o que é que dá
cruzamento de porco-espinho com arame”? “Arame
farpado”! “E cruzamento de elefante com nuvem”? “tromba
d’água”! [...]”. Esta brincadeira já prenunciava o cruzamento
de espécies diferentes para fins de produção de alimentos
em abundância, utilizando-se menos defensivos agrícolas.
Portanto, a transgenia pode criar alimentos personalizados
(FILOMENO, 2007, p. 93). Diversos são os conceitos que
poderão surgir a respeito dos transgênicos, mas ambos com o
mesmo significado, como sendo organismos geneticamente
modificados em cujas células foram adicionadas células de
outros seres vivos. Esse novo produto passa a se chamar de
Organismo Geneticamente Modificado (OGM).
Em se tratando de transgênico, também se faz
necessário conceituar “transformação e código genético”
“[...] como sendo uma técnica que interfere
quimicamente no código genético das plantas,
animais ou microrganismos, dando novas
características ou funções ao organismo. Já
o código genético é uma informação genética
que comanda as instruções dentro das células
de todos os seres vivos, para sua reprodução,
desenvolvimento e crescimento” (TASCA, p. 23).
O objetivo primordial da manipulação genética dos
produtos foi melhorar a produção agrícola sem o auxílio de
pesticidas. Isto causou grande preocupação e polêmica na
população que acreditou serem tais produtos prejudiciais
à saúde. Desse objetivo primeiro surgiu o receio de que
haveria supostamente riscos à saúde da população. Filomeno
acredita que ainda não existe estudo comprovando que
alimentos transgênicos fazem mal à saúde. Afirma que
não existe nenhum alimento que não tenha sido melhorado
geneticamente. Explica que faltam condições e informações
claras à sociedade para a aceitação dos produtos transgênicos,

162 Balcão do Consumidor

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ou seja, é de fundamental importância saber o que significa
a transgenia, porque, enquanto isso não acontece e as
informações são deficientes ou inexistentes, outros se
aproveitaram dessa falta de informação para colocar medo
e resistência nos consumidores (TASCA, p. 23).
Em vista deste receio e para melhor conhecimento pelos
consumidores, é necessário e obrigatório que o fornecedor
repasse para os consumidores informações básicas do produto.
Documentos obtidos junto à Consumers International
(CI), via Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor
(IDEC), informam que uma das maiores preocupações dos
consumidores, neste início de novo século, diz respeito aos
alimentos modificados geneticamente, pois todos os seres
humanos estão sujeitos ao consumo de produtos alimentícios
de diversas origens, principalmente no que se refere aos
alimentos geneticamente modificados (FILOMENO, 2007,
p. 95). Ao mesmo tempo em que os alimentos transgênicos
beneficiam a produtividade e mesmo que não acarretem
riscos à saúde do consumidor, este consumidor quer e deve
ser informado, porque pode não desejar fazer uso de tais
alimentos por questões as mais diversas e tem o direito de
ser informado quanto aos componentes dos alimentos que
vai utilizar, sendo ou não transgênicos.

Riscos, Benefícios e polêmicas acerca dos


Transgênicos: o risco inerente e a segurança
alimentar
Entende-se por inerente o risco da própria natureza
da coisa ou do produto ou do modo de funcionamento,
que se mostre capaz de causar acidentes em decorrência
de sua própria natureza. Benjamin preleciona que: risco
inerente ou periculosidade latente é o risco intrínseco,
atado a sua própria natureza como, por exemplo, uma
faca, uma arma, medicamentos com contraindicação,

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agrotóxicos (BENJAMIN, 1991, p. 49-51). Normalidade e
previsibilidade são as características do risco inerente, pelo
qual não responde o fornecedor por não ser defeituoso um
bem ou serviço. Cabe, entretanto, informar o consumidor
a respeito desses riscos inevitáveis, podendo por eles
responder caso não cumpra seu dever de informação sobre
a periculosidade do produto ou serviço, bem como sua
qualidade e composição. Assim, as características do risco
adquirido são a imprevisibilidade e a anormalidade, que são
aqueles produtos que se tornam perigosos em decorrência
de um defeito, ou seja, são bens e serviços que, sem o defeito,
não seriam perigosos (CAVALIERI, 2011, p. 294).
O Código de Defesa do Consumidor não proibiu a
circulação de produtos considerados perigosos e nocivos
aos consumidores, pelo contrário, existem vários produtos
com menor ou maior grau de periculosidade no mercado
de consumo. Cavalieri traz distinção entre perigosidade
inerente de perigosidade adquirida como sendo [...] “a
perigosidade inerente, é o risco intrinsecamente atado à
própria natureza da coisa, a sua qualidade ou modo de
funcionamento, e os com perigosidade adquirida, que se
tornam perigosos em razão de algum defeito que não é da
sua própria natureza.” (CAVALIERI, 2011, p. 294).
Embora o fornecedor não responda pelos danos
decorrentes do risco inerente ao produto não sendo
este defeituoso, esses riscos obrigatoriamente criam ao
fornecedor o dever de informar, conforme artigo 9º do
Código de Defesa do Consumidor.17 Caso o fornecedor venha
a se omitir a respeito de tal informação ao consumidor,
responderá pelo risco inerente.
Sendo assim, o Superior Tribunal do Estado do
Rio Grande do Sul vem se posicionando no sentido de
17 Art. 9º do CDC – O fornecedor de produtos e serviços potencialmente
nocivos ou perigosos à saúde ou segurança deverá informar, de maneira
ostensiva e adequada, a respeito de sua nocividade ou periculosidade, sem
prejuízo da adoção de outras medidas cabíveis em cada caso concreto.

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responsabilizar o fornecedor por vícios que possam ocorrer
em decorrência do produto ou do serviço, que posto à
disposição do consumidor, venha acarretar risco a sua
saúde, não havendo a informação necessária. Mas quando
a informação existe ou quando é notório o risco, torna-se
inerente ao produto e o STJ entende que:
RECURSO INOMINADO. CONSUMIDOR. ACIDENTE
DE CONSUMO. RISCO INERENTE E ACEITÁVEL. NEXO
DE CAUSALIDADE. CULPA EXCLUSIVA DA VÍTIMA que
afasta a responsabilidade do fornecedor.

1 – Recurso adesivo não conhecido porque ausente a


previsão de cabimento no procedimento dos Juizados Especiais.
2 – O Juizado Especial Cível é competente para analisar casos
de acidente de consumo quando desnecessária a produção de
provas complexas. A realização da perícia, ainda que não seja
comum, não é vedada pela Lei 9.099/95 e não indica, por si só,
complexidade da causa. 3 – Acidente de consumo envolvendo
o manuseio e utilização de caixa de fósforos que teria
causado pequeno incêndio e atingido a incolumidade física da
recorrida. 4 – Risco inerente do produto. Informações sobre
os cuidados necessários ao manuseio contido de forma clara
na embalagem (caixa de fósforos) e que não foram observadas
pela consumidora. Culpa exclusiva da vítima que afasta o nexo
de causalidade e responsabilidade do fornecedor. 5 – Sentença
reformada para julgar improcedente a demanda. RECURSO
PROVIDO.

O TJRJ julgou recurso trazendo o risco inerente como


ensejador do dever de informar, como segue:
TJRJ - RESPONSABILIDADE CIVIL. CONSUMIDOR.
FATO DO PRODUTO. RISCO INERENTE. INFORMAÇÃO
INSUFICIENTE. DEVER DE INDENIZAR. VERBA FIXADA
EM R$ 8.000,00. CDC, ARTS. 12 E 14, § 3º, II. CCB/2002, ART.
186. CF/88, ART. 5º, V E X. «Se o produto é potencialmente nocivo
ou perigoso (risco inerente), o fornecedor tem o dever de informar
de maneira ostensiva e adequada a respeito da sua nocividade
ou periculosidade, sob pena de responder pelos danos que vier a
causar ao consumidor”. O produto, no caso, embora apresentado
na embalagem, com letras grandes e coloridas, como amaciante e

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relaxante capilar; fórmula suave, totalmente sem cheiro, que não
agride os cabelos; dispensa-se o uso de neutralizante, estimula o
crescimento; cabelos macios, soltos e naturais; os resultados da
beleza você pode tocar e sentir surpreendeu a consumidora, pois,
após ser aplicado, houve uma grande irritação do couro cabeludo
e a respectiva queda de cabelos. A toda evidencia tratava-se
de risco inerente e as instruções sobre o seu uso correto não
atenderem a o que dispõe no CDC.

Assim, veja-se a importância do rigor na advertência


mostrando ostensivamente que o produto pode oferecer risco
à saúde e ainda a informação acerca da responsabilidade
civil do fornecedor, já que sem a informação adequada
responderá civil e criminalmente, não por defeito do produto,
mas apenas por ter deixado de advertir sobre os riscos que
os produtos poderão ocasionar. Importa não haver omissão
se o produto ou o serviço é potencialmente perigoso. Já os
produtos químicos em geral, cosméticos ou farmacêuticos,
exigem minuciosa advertência aos consumidores, que
não podem prever o grau de danosidade que se associa ao
manuseio e à utilização do produto (TEPENTINO, 2004, p.
269/270). Quanto aos produtos transgênicos, essa rotulagem
de advertência é de extrema importância, já que a tecnologia
utilizada possibilita grande temor dos consumidores quanto
a efeitos colaterais que possam surgir.
Filomeno entende que,
Da manipulação genética podem surgir toxinas mortais e
traz um exemplo de trabalhadores em uma quitanda que, após
terem cortado aipos, que já naturalmente contêm substâncias
tóxicas, o psolarem, o que os torna suscetíveis a raios
ultravioletas. Essa substância poderia ser fatal, caso o aipo
estivesse potencializado, o que aumenta sua potencialidade
lesiva. (FILOMENO, 2007, p. 95).

Neste caso, a manipulação pode acarretar a sensibilização


nas pessoas, ocasionando inúmeros tipos de alergia. Vários
alimentos podem e costumam causar alergias, como
amendoins, soja, leite, trigo, morango, laranja, melancia ou

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kiwi, é o que na relação de consumo chama-se de risco inerente.
Daí que toxinas, alergênicos, valor nutritivo e resistência
antibiótica são as principais preocupações com a segurança
relativa aos alimentos manipulados. Acredita-se que para
garantir a segurança ao consumidor é importantíssimo
o registro pré-comercialização e a rotulagem adequada
contendo informações rigorosas para que o fornecedor não
responda pelo risco inerente, já que este é inevitável.
O mesmo autor esclarece que, ainda, existem teorias
que são a favor e contra os alimentos geneticamente
modificados, como segue:
A teoria a favor se refere que, não há casos comprovados
da associação entre consumo de produtos transgênicos e danos
à saúde; a possibilidade de cruzamento entre a variedade
convencional e a geneticamente modificada pelo transporte
do pólen pelo vento é reduzida; Já para a teoria contra diz
que, a biotecnologia para transgênicos é muito recente e
ainda não foi possível fazer estudos que mostrem, com rigor,
que esses produtos não causam problemas à saúde no longo
prazo, pode haver cruzamento entre a cultura convencional
e geneticamente modificada, principalmente dentro de uma
mesma propriedade, podendo acarretar o fim da espécie pura.
(FILOMENO, 2007, p. 99).

No que se refere às vantagens dos transgênicos, eles


podem ser enriquecidos com componentes nutricionais,
como, por exemplo, um arroz que foi geneticamente
modificado, poderá produzir vitamina A, o alimento pode
ter várias funções como a de prevenir e evitar riscos e
doenças por meio das plantas geneticamente modificadas
para produzir vacinas, iogurtes fermentados com
microrganismos geneticamente modificados que estimulem
o sistema imunológico, assim como também as plantas
podem resistir ao ataque de insetos, da seca e da geada,
garantindo uma estabilidade nos preços de produção.18
18 MENDONÇA, Gilson Martins; COELHO, Sérgio Reis. A ética da
Informação e o Direito de escolha na questão da Rotulagem dos

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São várias outras as vantagens oriundas dos alimentos
transgênicos, como o aumento na produtividade agrícola
por meio do desenvolvimento de lavouras mais produtivas
e menos onerosas, cuja produção agrida menos o meio
ambiente e tem o intuito de dar maior durabilidade aos
produtos, fazendo com que o consumidor adquira mais com
um menor gasto econômico.
Como pontos negativos e as desvantagens acerca dos
alimentos transgênicos, Mendonça e Coelho trazem que:
O lugar em que o gene é inserido não pode ser controlado
completamente, o que pode vir a causar resultados inesperados,
uma vez que outras partes do organismo pode ser afetado,
ou seja, são genes como, por exemplo, de animais inserido
em vegetais, genes de humanos em animais. O ponto mais
enfatizante seria de que os alimentos transgênicos causariam
alergias alimentares em muitas pessoas, em virtude das
proteínas que produzem.

Isso vem ratificar apenas que a advertência na


rotulagem dos produtos é bastante relevante, já que há o
risco inerente de que ocorra algum resultado negativo nos
seres humanos, mas não maior do que os demais que não
utilizam a transgenia. Os riscos são considerados naturais
e inevitáveis.
São inúmeros os alimentos na mesa do consumidor
que foram modificados por meio do melhoramento da
genética. E essa tecnologia vem crescendo mais e mais e
vem se mostrando a única forma capaz de futuramente
eliminar o uso dos pesticidas pela resistência genética e,
ainda, de inverter o processo atual da agricultura. Isso será
possível, pois em vez de alterar o ambiente adaptando-o
para satisfazer a planta e isso poluir o ambiente, passa-
se a alterá-la, adaptando-a ao ambiente, o que despolui
(TASCA, p. 26). Esse sempre foi o objetivo do melhoramento
genético, que evita poluir ainda mais o meio ambiente.
Transgênicos. Disponível em: <http://www.buscalegis.ufse.br>. Acesso
em: 05 de agosto de 2012.

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Em vista disto, presencia-se neste momento é que
há um consumidor mais atuante, mais interessado, que
quer decidir se utiliza ou não a transgenia, pois finalmente
está compreendendo que todas as descobertas científicas
e tecnológicas também lhe dizem respeito como parte da
cadeia consumerista que é. A grande questão é mostrar aos
consumidores benefícios reais oriundos da genética, já que
se tornou uma realidade no melhoramento dos alimentos.
Com isso, o consumidor deve e quer conhecer o que ingere.

Biotecnologia e Segurança Alimentar


A aceitação por parte dos consumidores às novas
tecnologias é lenta e, muitas vezes, difícil principalmente
quando interferem na vida humana. As pessoas são
resistentes quando há alterações em seus hábitos e
costumes. É importante reconhecer, com já frisado neste
texto, que os alimentos têm sido modificados geneticamente
há centenas de anos pelo uso de técnicas convencionais
de melhoramento, com o objetivo básico de aumentar a
produtividade. Até o momento, as modificações obtidas
têm resultado especialmente em benefícios diretos para a
agricultura, ainda que, indiretamente, também favoreçam
os consumidores, por exemplo, com a redução no uso
de pesticidas. Sem dúvida, a biotecnologia pode gerar
oportunidades novas e sem precedentes para melhorar a
vida humana por meio de avanços na produção de alimentos
tanto de origem animal como vegetal (COSTA; BORÉM,
2003, p. 131). Para isto, o conhecimento e a aceitação por
parte dos consumidores são essenciais como forma de
conhecer o produto que adquirem, ou não adquirir produtos
que lhe prejudiquem a saúde ou simplesmente evitar
produtos que não desejam consumir, quer pelos elementos
que o compõem ou por outra razão qualquer. Para Costa,

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A posição dos profissionais e da população de um grande
país não deve ser tomada com base em depoimentos alarmistas
e emocionais, mas, sim, ditada pela isenção de ideias pré-
concebidas, pelo conhecimento e pela busca de informações.
(COSTA; BORÉM, 2003, p. 131).

As principais preocupações sobre os efeitos adversos


do uso de alimentos transgênicos são as possibilidades de
transferência ao homem da resistência a antibióticos e do
potencial alergênico e de toxicidade dos produtos. Os alvos
dessa consequência seriam, por ordem de probabilidade,
os agricultores, os processadores (indústrias e alimentos),
os consumidores diretos e indiretos e o público em geral
(COSTA; BORÉM, 2003, p. 134). Sabe-se que não é de hoje,
mas há vários anos vem se discutindo a respeito, até mesmo
antes de serem comercializados e que já passaram por vários
testes em favor da segurança do consumidor, antes de estes
produtos chegarem ao mercado de consumo. No que tange
aos transgênicos, no Brasil exige que apenas os produtos
que contenham mais de 1% (um por cento) de ingredientes
transgênicos em sua composição sejam rotulados com o
símbolo T dentro de um triângulo de cor amarela.
Em 2001 apenas os produtos que continham 4% (quatro
por cento) de organismos geneticamente modificados em
sua composição é que deveriam estar rotulados com a
devida informação. O Decreto Lei nº 4.680/2003 reduziu
a porcentagem para 1%, como já frisado anteriormente,
deixando os consumidores mais seguros frente a tais
produtos.19
Informa Andrioli que:
Chegam finalmente ao mercado os primeiros produtos
rotulados como transgênicos, cinco anos após a entrada
em vigor do Decreto n 4.680, de abril de 2003, que exige à
informação ao consumidor de produtos que contenham mais de
1% de transgenia. Os defensores dos transgênicos, por sua vez,

19 Idem à nota 16.

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continuam afirmando que a rotulagem (o triângulo amarelo
com a letra “T” escrita em preto) não seria um alerta, tendo
em vista que há mais de 15 anos milhões de pessoas estariam
consumindo alimentos transgênicos sem um único registro de
dano à saúde humana. (ANDRIOLI, 2008, p. 260).

A biotecnologia oferece, com um enfoque sustentável,


uma forma responsável, em médio prazo, para aumentar
a produtividade e superar a insegurança alimentar. Isso
ocorre, porque algumas plantas modificadas geneticamente
estão se mostrando resistentes às doenças e às pragas, como
também à seca, e altas ou baixas temperaturas, resistência
a herbicidas e melhoramentos em qualidade nutricional
para obter colheitas mais precoces (TASCA. p. 67.)
Pelas pesquisas realizadas, até hoje há notícias
de que esses alimentos geneticamente modificados são
os instrumentos mais aptos a enfrentarem os desafios
alimentares dos próximos anos e os transgênicos não
vieram com o objetivo de causar dano à saúde pública.
e sim para a minimizar o trabalho físico, a eliminação
de bactérias e uma redução de custos de produtos como
maior durabilidade de plantas e sementes. A biotecnologia
tenta demonstrar ao consumidor que, além de minimizar
o trabalho físico, há melhoramento alimentar quando do
enriquecimento dos grãos, como milho, soja, trigo e frutas,
como mamão papaia, melão.
Outros benefícios também são atribuídos à modificação
da genética, como informa Tasca:
Não é explicado que a biotecnologia pode reduzir
drasticamente o uso de agrotóxicos, diminuindo a contaminação
ambiental e dos alimentos, além disso, novos produtos estão
surgindo, com melhores qualidades alimentícias. O consumidor
não tem ideia da quantidade de agrotóxicos que estão presentes
nos alimentos, se soubesse, com toda certeza, optaria pelos
alimentos geneticamente modificados. (TASCA, p. 81.).

Daí é que surge a obrigação irrecorrível de o fornecedor


informar ao consumidor a respeito dos produtos colocados

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no mercado de consumo. A pouca informação tem feito com
que os consumidores os recusem. Essa omissão acerca da
informação não é pela falta de regulamentação legal, pois há
vários regulamentos jurídicos, como, por exemplo, o Decreto
Lei nº 4.680 de 24 de abril de 2003, que veio regulamentar
a rotulagem nos alimentos e a Lei nº 11.105 de 24 de março
de 2005, Lei da Biossegurança no Brasil, que estabelece
normas de segurança e mecanismos de fiscalização de
atividades que envolvam organismos geneticamente
modificados e seus derivados, criando então o Conselho
Nacional de Biossegurança (CNBS), pelo qual está cada vez
mais se tornando uma exigência nos dias atuais, em que
se destaca o artigo 40.20 O consumidor, dessa forma, não se
encontra desamparado e, hoje, mais do que nunca, possui
mecanismos judiciais para lançar mão, caso seus direitos
sejam desrespeitados ou violados. Filomeno acredita ser
desnecessário o Decreto-Lei n.4680, pois o próprio CDC já
determina a obrigatoriedade da rotulagem:
O Decreto Lei nº 4.680/2003 foi declarado inconstitucional
pela a justiça Federal com o advento do Código de Defesa do
Consumidor Lei nº 8.078/1990, pois foi com a entrada em
vigor do CDC qual dispõe que independente de organismos
geneticamente modificados ou não, deve existir na rotulagem
à informação acerca dos produtos, seu não cumprimento viola
a Constituição Federal e o Código de Defesa do Consumidor.
(FILOMENO, 2007, p. 98).

Há um critério internacionalmente aceito quanto


aos alimentos de origem genética, a Equivalência
Substancial21, que é utilizada para a avaliação da
segurança alimentar. A Equivalência Substancial (ES),
portanto, foi introduzida para se comparar alimentos
20 Art.40º Lei 11.105/2005 - Os alimentos e ingredientes alimentares
destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam
produzidos a partir de OGM ou derivados deverão conter informação nesse
sentido em seus rótulos, conforme regulamento.
21 Disponível em: <http://www.biotecnologia.com.br/revista/bio14/
equivalencia.pdf>. Acesso em 07 de outubro de 2012.

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derivados dos recentes avanços da biotecnologia com
seus análogos convencionais. Este conceito é amplamente
utilizado nos procedimentos de avaliação de segurança
de alimentos derivados de organismos geneticamente
modificados (OGM).22 Uma vez que resultados de
laboratórios não podem simplesmente ser transferidos a
campos eventuais, os efeitos permanecem velados, sendo
apenas detectáveis quando os perigos já existem.
Conforme preleciona Andrioli, tais produtos poderiam
até mesmo produzir remédios e vacinas:
A segunda geração de plantas transgênicas traria
benefícios adicionais aos consumidores, como, por exemplo,
batatas com mais fibras, com um gene transplantado oriundo da
alcachofra; batatas ricas em proteínas, com genes do amaranto,
para preservar crianças indianas da morte precoce; batatas
com menos substâncias amargas, entre vários outros exemplos.
Assim, seriam geneticamente modificadas de tal forma que
produziriam remédios e vacinas. No mercado ainda não existe
nenhum desses remédios. (ANDRIOLI, 2008, p. 246).

Embora exista a preocupação de que os alimentos


transgênicos possam acarretar riscos à saúde humana,
não há comprovação científica. A verdade é que cada
organismo é um organismo, ou seja, um alimento poderá
prejudicar a saúde de uma pessoa e de outra não, como
qualquer alimento, transgênico ou não.
Com tudo isto, constata-se que não há harmonização
ainda e que estes conflitos quando à periculosidade ou
não dos alimentos transgênicos persistirão ainda por
algum tempo. Segundo os estudiosos, estes produtos
são tão importantes e seguros quanto aos alimentos
22 Equivalência substancial (ES) engloba o conceito de que, se um alimento ou
ingrediente alimentar derivado dos recentes avanços em biotecnologia for
considerado substancialmente equivalente a um alimento ou ingrediente
alimentar convencional, aquele alimento poderá ser considerado tão
seguro quanto esse. Para se estabelecer a ES, os alimentos derivados dos
recentes avanços em biotecnologia, devem ser comparados com as espécies
ou com os alimentos derivados destas espécies.

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não transgênicos, já que existiam antes da entrada em
vigor do decreto que regulamenta a obrigatoriedade da
rotulagem em conjunto com o símbolo referindo-se aos
transgênicos. O desafio, portanto, é demonstrar aos
consumidores os benefícios que a genética trouxe para os
produtos alimentícios, uma vez que o consumidor ainda
não está seguro quanto ao uso. Talvez, por informação
insuficiente, ainda existam resistências. Assim, os
alimentos transgênicos, para serem comercializados, terão
que garantir ao consumidor segurança alimentar, somente
assim estas tecnologias poderão alcançar o mercado de
consumo.23 Respeitar o direito básico do consumidor
é proporcionar uma informação eficaz, porque só um
consumidor bem informado poderá exercer a liberdade de
escolha e ser um consumidor consciente.
Dever de informação na rotulagem dos produtos
transgênicos e a segurança do consumidor: uma questão
de transparência.
Os rótulos que identificam as embalagens, bem como
as advertências ali contidas quanto à composição de cada
alimento, são, em vista de todo o exposto, mais importantes
e necessários, pois é por meio deles que o consumidor
tem informação adequada acerca dos componentes e das
características dos produtos quanto aos ingredientes,
quantidades, validades, riscos, instruções sobre preparo
e conservação e informações nutricionais, dentre outros.
Os rótulos contribuem para que as pessoas entendam as
diferenças entre os produtos e, principalmente, recebam
as informações úteis quanto ao uso correto, que impeçam
o uso inadequado.
O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do
Sul vem se posicionando no sentido de responsabilizar
o fornecedor de produtos e serviços no que tange à
23 Disponível em: <CONSULEX. Revista. O consumidor e as Inovações
Tecnológicas>. Ano IV – nº 39. 2000. Acesso em: 05 de julho de 2012.

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obrigatoriedade de repassar informações via rotulagem,
referentes aos produtos colocados no mercado de consumo,
com a devida informação clara e ostensiva, para ser de fácil
entendimento e o consumidor possa por sua livre escolha
adquirir ou não o produto, conforme ementa:
Ementa:  Apelação cível. Responsabilidade civil.
Responsabilidade objetiva. Preliminar contrarrecursal.
Aplicabilidade do código de defesa do consumidor. Dever de
informar. Segurança do produto. Informações falhas no rótulo
da embalagem. Bolacha recheada contendo lactose. Ingestão
por menor com alergia à proteína do leite de vaca. Nexo causal
demonstrado. Dano moral configurado. Valor da indenização
mantido.

Neste caso, a falta da advertência quanto à composição


do alimento foi prejudicial à saúde do consumidor que,
inadvertido, ingeriu substância inadequada para seu
organismo. Comprovadamente a falta de informação no
rótulo traz prejuízos ao consumidor e também ao fornecedor,
pois como demonstrado o nexo causal, a indenização ao
prejudicado é inevitável. A segurança advém da informação
adequada em relação ao produto principalmente com relação
aos transgênicos, que podem estar em qualquer produto
alimentar, nas bolachas, como também nos chocolates, por
ser derivado de leite, salsichas, pelo derivado de carne, ou
cereais derivados da soja, milho, entre outros exemplos.
Basta que o fornecedor respeite, resguardando-se de
indenizações ou multas administrativas.
Não restam dúvidas de que os fornecedores e os
agricultores estão cada vez mais preocupados, pois com a
aprovação deste decreto, todos os produtos geneticamente
modificados deverão trazer informação adequada
nos rótulos, acusando a transgenia e os fornecedores
consideram que, com isso, seus produtos poderão ser
rejeitados no mercado de consumo, mas esse é direito do
consumidor: ser informado, como exige o Código de Defesa

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do Consumidor e o Decreto. O alvo do consumo é que deverá
decidir quanto à ingestão de alimentos geneticamente
modificados, já que não pode ser excluída a existência de
um risco inerente, embora não maior do que nos demais
alimentos convencionais. Quanto a isto, há julgamentos
que já declaram tal importância:
O juiz da 3ª vara Federal do Piauí, Regis de Souza Araújo,
julgou procedente Ação Civil Pública do Ministério Público
Federal e determinou que a Bunges Alimentos coloque a
informação no rótulo. O juiz não questionou benefícios ou riscos
da comercialização dos produtos transgênicos. “Na verdade,
a celeuma trata exclusivamente do direito de informação ao
consumidor que, inquestionavelmente, deve ser comunicado
acerca do conteúdo dos produtos que adquire para, a partir
de então, individualmente, decidir se quer adquiri-lo ou não,
independentemente dos percentuais de sua composição, ainda
que seja ínfima a presença de OGMs”, afirmou. (site consultor
jurídico www.conjur.com.br Processo: 2007.40.00.000471-6.
Acesso em: 23 de novembro 2012).

Assim sendo, deixar de informar ao consumidor acerca da


composição do produto comprado constitui omissão que deverá
ser apurada em juízo se causar dano ou prejuízo de qualquer
monta ao consumidor. O que se estabelece modernamente é
o respeito primordial, indispensável principalmente em se
tratando de alimentos geneticamente modificados. Como já
frisado, maior deverá ser a atenção a esses alimentos, já que
há uma tendência de o consumidor o rejeitar. Nessa seara,
importa conhecer a lição de Filomeno, que considera que a
falta de informação fere a dignidade do cidadão:
Deixar de expor aos consumidores a quantidade, o teor
percentual das substâncias utilizadas em dado produto a
porcentagem de transgenia, baseado na Lei da Biossegurança
do Brasil, fere a dignidade da pessoa humana que corresponde
ao princípio norteador da Constituição Federal de 1988, além
do Código de Defesa do Consumidor que consagra em suas
linhas o direito de informação que deve ser assegurado a todo
consumidor. 24
24 Idem nota 16.

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O Procurador da República no Piauí, Tranvanvan
Feitosa, destaca também que a rotulagem é que é a
expressão da informação exigida pelo CDC.
A declaração de inconstitucionalidade desse dispositivo
legal é necessária para tornar eficaz e concreta a defesa do
consumidor. Evidentemente, a rotulagem é expressão do
referido direito à informação. A adequação e clareza das
informações constantes nos rótulos e embalagens dos produtos
alimentares são de vital importância para consumidores
que, por razões diversas, não desejariam consumir alimentos
geneticamente modificados, independente da porcentagem
existente nos mesmos.

Portanto, os consumidores estão cada vez mais


buscando e reivindicando seus direitos com base hierárquica
na Constituição Federal e no Código de Defesa do
Consumidor, bem como nas normas esparsas relacionadas
ao consumo, trazendo um novo modelo de consumo. Torna-
se imprescindível pensar o direito por meio de uma nova
ótica em que o consumidor e fornecedor convivam em
harmonia respeitosa, o que traz maior credibilidade e
confiança principalmente para aqueles consumidores
temerosos com a procedência de produtos novos colocado
no mercado.25
Além disso, o simples dever de informar limita os
abusos, inibindo condutas prejudiciais ao consumidor e,
ainda, protege o próprio fornecedor que, com a adequada
informação, evitará os riscos de responsabilização na
esfera civil e criminal.

Considerações gerais
A massificação do consumo, resultado da modernidade,
coloca à disposição do consumidor inúmeros produtos
e propicia grande demanda, ao mesmo tempo em que
25 FILOMENO, José Geraldo Brito, 2007, p. 230.

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aumenta os riscos do consumo. É um momento de mudanças
e acelerado progresso tanto na área tecnológica quanto
na área da biologia, o que permite variadas alterações no
modo de vida dos seres humanos, originando um crescente
receio e dúvidas acerca dos produtos colocados no mercado
à disposição do consumidor.
Diante de tantas dúvidas e problemas acerca da
transgenia que impossibilitam um consenso entre estudos
científicos e relações consumeristas quanto ao impacto na
saúde dos seres humanos, o direito do consumidor impõe
o dever de informação, que objetiva a transparência e a
dignidade, sendo ainda garantidor da segurança necessária
nas relações de consumo.
Dessa forma, dentre as vertentes teóricas sobre o
tema, podem-se destacar duas correntes: uma que defende
a utilização dos transgênicos e a outra que reputa haver
riscos relativos ao consumo de organismos geneticamente
modificados. As alegações vertidas pelos estudiosos
favoráveis aos OGM baseiam-se na ideia de que não
há casos comprovados da associação entre consumo de
produtos transgênicos e danos à saúde. Ao passo que os
críticos da utilização desses organismos aduzem que a
utilização dos transgênicos é muito recente e ainda não
foi possível realizar estudos rigorosos a respeito da não
danosidade de seu consumo.
Alguns estudiosos do assunto asseveram que os
transgênicos, na era moderna da biologia, foram bastante
estudados, sendo que mais de cinquenta mil experimentos
já teriam sido realizados. Uma das principais polêmicas
está em saber se os transgênicos trazem riscos à saúde dos
consumidores. Embora os estudos estejam informando que
não existem prejuízos, a decisão cabe ao consumidor, que
deverá, após conhecimento detalhado e minucioso, tomar
sua decisão coerente com sua vontade.

178 Balcão do Consumidor

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Nesta seara de insegurança e desconhecimento de
seus efeitos, o dever de informação vem se mostrando o
mais importante quanto à segurança do consumidor. O
Código de Defesa do Consumidor, por ser lei composta de
princípios teleológicos, pretende reparar a discrepância
existente entre o poder do fornecedor e as necessidades do
consumidor, exercendo, assim, função social e não sendo
apenas uma norma que disciplina a relação jurídica,
pois traz para a relação de consumo a ética tanto na
fase pré-contratual, na execução do contrato e ainda na
fase pós-contratual. Depreende-se daí a importância da
transparência e da ética trazidas pelas leis consumeristas,
que têm proporcionado avanços na área, como também têm
permitido que o consumidor exerça seu poder de escolha,
prevalecendo sua livre vontade.
Afirmar que não há questões prejudiciais à saúde no
que tange à transgenia talvez ainda seja muito cedo diante
da indefinição acerca dos prós e contras do consumo de
produtos geneticamente modificados. A melhor forma de
resguardar a saúde do consumidor e assegurar sua liberdade
de escolha, respeitando seus direitos assegurados em lei, é
por meio da informação transparente prestada de maneira
adequada, clara e ostensiva, a respeito das implicações
e riscos a que se expõe o consumidor quando utiliza
produtos, independente de serem ou não geneticamente
modificados.

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180 Balcão do Consumidor

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O fetichismo
da subjetividade
e a sociedade de
consumidores
no pensamento
de Zygmunt Bauman

Rafael Padilha dos Santos1


Liton Lanes Pilau Sobrinho

Introdução
Atualmente, o ciclo econômico obedece à máxima
“compre, desfrute, jogue fora.”2 Eis a roda viva em que
se insere a vida do homem dentro de uma sociedade de
consumidores. O mercado oferece sempre novos produtos,
uma grande oferta de inovações, algumas das quais são
consumidas, outras, sem encontrar um consumidor
interessado, são dispensadas aos depósitos de lixo. Há
sempre a pressão de novos produtos dinamizando e
renovando essa economia de consumo.
O ser humano, inserido dentro deste panorama, é
continuamente colocado na condição de escolher. Por
exemplo, as mensagens publicitárias estão espalhadas
por todos os lugares, na televisão, rádio, Internet, jornais,
1 O autor é Mestre em Filosofia pela UFSC (2011); tem especialização em
processo civil pela UNIVALI (2007); especialização em psicologia social
pela Universidade Estatal de São Petersburgo (2011). É Professor do
curso de Direito da UNIVALI e está cursando o doutorado em direito na
UNIVALI com dupla titulação pela Università degli Studi di Perugia.
2 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 126.

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revistas, placas e cartazes nas ruas, paradas de ônibus,
nos celulares, etc. Muitas vezes, no próprio vestuário que
uma pessoa usa há uma marca exposta. Neste cenário, a
sociedade de consumidores apregoa a ideia de separação
entre a mercadoria (algo a ser escolhido) e o consumidor
(quem escolhe), prometendo a satisfação dos desejos
humanos e apregoando como valor supremo uma vida
feliz. Porém, é preciso analisar de modo mais detido esse
cenário de vida.
Sendo assim, o objetivo geral deste estudo é entender
como a sociedade de consumidores opera em relação
à subjetividade do consumidor e como o ser humano
administra a própria vida dentro desta sociedade. Como
referencial teórico selecionado para esta pesquisa, adota-
se o pensamento de Zygmunt Bauman, a partir de quem
são buscadas as respostas para enfrentar o problema
desta pesquisa: seria ou não uma realidade que em uma
sociedade de consumidores o sujeito e sua subjetividade se
transformam ao mesmo tempo em mercadorias, em que,
sob a mensagem da felicidade, esteja escondida a redução
da dignidade do homem à objetualidade?
Perseguindo esta resposta, inicia-se tratando sobre a
obsolescência na sociedade de consumidores, inserindo o
contexto em que se firma o hábito consumista, ou seja, uma
sociedade de consumidores que atua na curta expectativa
de vida de um produto e a alta taxa de desperdício. Trata-
se, assim, dos tipos de obsolescência e do crescimento das
indústrias de eliminação, remoção e descarte de resíduos,
entrando-se na explicação sobre o tempo pontilhista e da
cultura apressada, que segue o imperativo de descartar e
substituir, é essencial à economia consumista.
Depois, trabalha-se a questão da felicidade em uma
economia de consumo, no cenário de uma sociedade de
consumidores, já que o valor supremo desta é a vida feliz.
Analisa-se, assim, a capacidade da sociedade de consumidores

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em cumprir sua promessa de satisfazer os desejos das pessoas
e o teor de veracidade ou não dessa promessa.
O argumento então avança para tratar do fetichismo
da subjetividade, que expõe uma subjetividade que é, ela
própria, uma mercadoria e, portanto, analisa-se o modo
como as pessoas, com uma tal subjetividade, constroem
a própria identidade em uma sociedade de consumidores.
Esse tema aborda o arrefecimento da fronteira entre
sujeito e objeto, o comportamento do consumidor que
atribui a si mesmo valor de mercado, a cultura do consumo,
a comodificação do consumidor, o sentimento de pertença,
o medo de inadequação e a caracterização do consumidor
como homo eligens.

A obsolescência na sociedade de
consumidores
O atual cenário da sociedade de consumidores
foi precedido pela sociedade de produtores. Conforme
Bauman3, pela transição da sociedade de produtores
à sociedade de consumidores a fonte de acumulação
capitalista transferiu-se da indústria ao mercado de
consumo. Na sociedade de produtores, os lucros advinham
da exploração da mão de obra assalariada; na sociedade de
consumidores, os lucros derivam da exploração dos desejos
de consumo. Deste modo, o mercado atualmente busca que,
por meio da oferta - oferecendo cada vez mais produtos em
escala exponencial -, seja possível criar demanda. Essa
crença, naturalmente, quer a existência perene de desejos
a serem satisfeitos, ou seja, o mercado deve evitar que
as necessidades sejam saciadas e ampliar a margem de
clientes com necessidades.
Uma sociedade de consumidores, para manter-se,
substitui continuamente objetos de consumo e estimula a

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troca de produtos, o que envolve a interiorização de um
hábito de consumo. Muitas vezes, como explica Bauman3,
o design dos produtos ou o marketing desenham essa
necessidade de obsolescência, contribuindo para consolidar
tal hábito, propagandeando novas ofertas e difamando as
antigas. Desenha-se assim a “cultura de cassino”, como
comenta Bauman4:
No que George Steiner denominou “cultura de cassino”,
cada produto cultural é calculado para o máximo impacto (ou
seja, dispersar, eliminar e descartar os produtos culturais
de ontem); e a obsolescência instantânea (ou seja, reduzir
a distância entre a novidade e a lata de lixo com produtos
culturais preocupados em não abusar da hospitalidade e
prontos a logo deixar o palco para abrir espaço aos novos
produtos de amanhã).
Então, a insatisfação do consumidor resolve-se no
descarte do objeto que causa tal insatisfação, e no consumo
de novos produtos. Assim, a curta expectativa de vida
de um produto e a alta taxa de desperdício, aliados ao
hábito consumista, são essenciais em uma sociedade de
consumidores. Tudo isso se sustenta na reciclagem das
vontades e dos desejos humanos, sempre direcionados
ao consumo, criando um impulso operativo para toda a
sociedade - eis o consumismo.
Para dar um exemplo de como o consumismo é
estimulado em uma sociedade de consumidores, vale
destacar o que Bauman denomina de vida a crédito. No
passado (na sociedade de produtores), quando uma pessoa
não ganhava dinheiro suficiente e contraía uma dívida,
tinha de gerenciar sua economia, fazer poupança, gastar
com moderação, privar-se de certos prazeres e esperar
melhorar a própria situação financeira; atualmente, a
3 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 31.
4 BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude: conversas com Ricardo
Mazzeo. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. p. 36.

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pessoa não precisa adiar seus prazeres, pois com o sistema
de crédito passa-se a seguir a máxima: “desfrute agora,
pague depois!”5 Tal promessa tinha embutida uma cláusula
que prescrevia que, no futuro, porém, seria preciso pagar
essa conta. O perigo seria a pessoa afundar-se ainda mais
em dívidas e, portanto, ficar ainda mais impossibilitada de
saciar seus novos anseios em um futuro próximo. Porém,
a ideia era justamente que a pessoa permanecesse em
estado de débito, o que exigiu que as próprias instituições
financeiras se tornassem mais flexíveis na renegociação da
dívida (mudou-se aquela antiga ansiedade dos credores em
receber no prazo certo e sem renovação)6.
A lógica é a seguinte: os bancos credores não desejam o
pagamento das dívidas, porque dívidas quitadas significam
a perda de renda que o débito confere às instituições
financeiras por meio dos juros7. Por isso, como afirma
Bauman8: “O cliente que paga prontamente o dinheiro
que pediu emprestado é o pesadelo dos credores.” Partindo
dessa lógica, implantou-se um hábito no consumidor para
o débito, fruto de um adestramento, e que evoluiu a um
vício, como aponta Bauman9: “Como poucas drogas, viver a
crédito cria dependência. Talvez mais ainda que qualquer
outra droga e sem dúvida mais que os tranquilizantes à
venda.” Com a crise financeira, no entanto, houve uma
contração do crédito e, atualmente, está sendo preciso
reorganizar essa situação. Porém, tal contração do crédito
é resultado do sucesso dos bancos em transformar as
5 BAUMAN, Zygmunt. Vida a crédito: conversas com Citlali Rovirosa-
Madrazo. 2010. p. 29.
6 BAUMAN, Zygmunt. Vida a crédito: conversas com Citlali Rovirosa-
Madrazo. 2010. p. 29.
7 BAUMAN, Zygmunt. Vida a crédito: conversas com Citlali Rovirosa-
Madrazo. 2010. p. 30.
8 BAUMAN, Zygmunt. Vida a crédito: conversas com Citlali Rovirosa-
Madrazo. 2010. p. 30.
9 BAUMAN, Zygmunt. Vida a crédito: conversas com Citlali Rovirosa-
Madrazo. 2010. p. 34.

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pessoas em devedores. Esse é um dos sinais característicos
da sociedade de consumidores.
É preciso ressaltar que na sociedade de produtores
(fase sólido-moderna da sociedade de produtores) a
satisfação das pessoas não consistia no gozo de um prazer
imediato, mas na promessa de segurança, e os produtos
eram mais duráveis justamente para cumprir a expectativa
de segurança10. Na sociedade de consumidores, por sua vez,
é preciso transformar tal desejo humano de estabilidade,
pois este seria fatal a essa sociedade. Agora, é preciso
estimular a extração de prazer do produto adquirido, os
quais devem ser utilizados, desgastados, removidos e logo
destruídos, o que implica dizer que o consumismo associa
a felicidade: “a um volume e uma intensidade de desejos
sempre crescentes, o que implica o uso imediato e a rápida
substituição dos objetos destinados a satisfazê-la.”11

A obsolescência e os depósitos de lixo


O esclarecimento do papel da obsolescência em
uma economia de consumo exige entender os tipos de
obsolescência que existem. Vance Packard12, no livro
Estratégia do Desperdício, em 1965, propõe uma classificação
da obsolescência em três tipos: a) obsolescência da função,
em que um produto torna-se ultrapassado pela introdução
de um produto novo que é mais eficiente no desempenho
da função; b) obsolescência de qualidade, em que é feito um
planejamento para que o produto deixe de funcionar ou se
gaste em um tempo predeterminado - que geralmente não
é muito longo; c) obsolescência de desejabilidade, em que
um produto, ainda que funcionando normalmente e com
qualidade, torna-se menos desejado pelo consumidor em
10 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 44.
11 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 44.
12 PACKARD, Vance. Estratégia do desperdício. São Paulo: IBRASA, 1965.
p. 51.

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razão do lançamento de um novo modelo com um estilo ou
design diferente ou outra alteração diferenciadora.
Além dessa classificação de Packard, é interessante
citar também a dos autores van Nes, Crames e Stevels13,
que falam de seis tipos de obsolescência: a) técnica - quando
o produto deixa de funcionar; b) econômica - em que novos
produtos mais baratos, aperfeiçoados e de mais fácil
manutenção chegam ao mercado; c) ecológica - quando são
introduzidos no mercado novos produtos, mais ecológicos
e sustentáveis; d) estética - quando há novos produtos
mais estéticos e conforme a moda em vigor; e) de recursos
- quando novos produtos chegam com mais ou melhores
recursos e funções; f) psicológica - quando é colocado um
novo produto que desperta uma maior ligação emocional.
A obsolescência, assim, está ligada às características
de uma economia de mercado, que são, segundo Mont14:
aumento da produção, economia de escola, produtos com
pouca durabilidade, ciclo de depreciação alto, rápida
substituição de bens, e o aumento da demanda por novos
produtos e serviços. Um bom exemplo, segundo Antunes15,
é a indústria de computadores, que segue uma tendência
depreciativa, em que softwares tornam-se rapidamente
desatualizados, forçando o consumidor à sua substituição;
reduzindo-se os ciclos de vida útil dos produtos, os capitais
veem-se forçados à inovação constante, sob o risco de serem
ultrapassados pelas empresas concorrentes. Um exemplo
13 VAN NES, N.; CRAMER, J.; STEVELS, A. A practical approach
to the ecological lifetime optimization of electronic products. In:
INTERNATIONAL SYMPOSIUM ON ENVIRONMENTALLY
CONSCIOUS DESIGN AND INVERSE MANUFACTURING, 1, Tokyo,
feb. 1999. Proceedings... Tokyo: Institute of Electrical & Electronics
Engineering, 1999.
14 MONT, O. Innovative approaches to optimizing design and use of durable
consumer goods. International Journal of Product Development, v. 6, n.
3/4, 2008.
15 ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e
a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003. p. 51-52.

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disso, conforme Antunes, é a Hewlett Packard, que pela
inovação de seu sistema computacional reduziu muito o
tempo de vida útil dos seus produtos.
Neste contexto, é interessante lembrar um artifício
utilizado pela economia de consumo: a obsolescência
programada. Segundo Slade16, a obsolescência é programada
quando há a aplicação de técnicas que diminuem
artificialmente a durabilidade normal do produto, com o
objetivo de obrigar o consumidor, em breve tempo, a ter de
comprar um novo produto. Assim, o consumidor compra um
produto que tem diminuído deliberadamente o seu tempo
de vida. Sobre este assunto, é recomendável o documentário
The light bulb conspiracy17, que mostra como essa prática
é utilizada pelo mercado dos bens de consumo (como em
impressoras, em lâmpadas, em moda, etc).
A obsolescência entra no discurso da sociedade
de consumidores, em que há o interesse de criar-se
desejos insaciáveis, bem como objetos que podem saciar
temporariamente e sempre novamente essa ânsia. Deste
modo, assinala Bauman18: “o advento do consumismo
augura uma era de ‘obsolescência embutida’ dos bens
oferecidos no mercado e assinala um aumento espetacular
na indústria da remoção do lixo.” É preciso, assim,
determinar a conduta do consumidor para aceitar de bom
grado o desfazimento de um bem, como expõe Bauman19:
“Como regra, [os consumidores] aceitam a vida curta das
coisas e sua morte predeterminada com equanimidade,
muitas vezes com um prazer disfarçado, mas às vezes com
a alegria incontida da comemoração de uma vitória.”

16 SLADE, G. Made to break: technology and obsolescence in America.


London: Harvard University Press, 2006.
17 THE LIGHT bulb conspiracy. Direção de Cosima Dannoritzer. Article Z,
2010.
18 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 45.
19 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 112.

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A indústria do lixo expande-se e, além de tudo, é
bastante lucrativa. Para contextualizar esse tema, é
importante citar que a Convenção de Basileia (concluída
na Suíça em março de 1989, entrando em vigor em 05
de maio de 1992) trata sobre o controle de movimentos
transfronteiriços de resíduos perigosos e seu depósito,
coibindo o tráfico ilegal de lixo e a sua gestão ambiental. O
Brasil, que é rota do tráfico ilegal de lixo, internalizou essa
Convenção pelo Decreto nº 875, de 19 de julho de 1993,
sendo também regulamentada pela Resolução Conama nº
452, 02 de julho de 2012. Essas legislações foram criadas
justamente por força do aumento progressivo do lixo, que
chegou a gerar um tráfico ilegal. Por exemplo, tratando-se
de lixo de materiais eletroeletrônicos (e-waste) produzido
pelos países desenvolvidos, 80% são encaminhados a países
em desenvolvimento, como China, Índia, Gana e Nigéria.
Esse é o tipo de lixo que mais cresce (uma média de 4% ao
ano), sendo que aproximadamente 40 milhões de toneladas
são produzidas a mais a cada ano20. Esse lixo consiste,
por exemplo, em geladeira, ar-condicionado, máquinas de
lavar, micro-ondas, lâmpadas fluorescentes, e produtores
eletrônicos (computadores e acessórios, celulares, etc).
Analisando no Brasil as possibilidades de lucro com o
lixo, segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea)21, o Brasil perde cerca de R$ 8 bilhões todo
ano por não reciclar os resíduos sólidos que tomam por
destino aterros ou lixões - como aço, alumínio, celulose,
plástico e vidro. Estima-se que o total de benefícios
20 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. THE GLOBAL
IMPACT OF E-WASTE: ADDRESSING THE CHALLENGE. Gebebra:
ILO, 2012. Disponível em: <http://www.ilo.org/wcmsp5/ groups/public/--
-ed_dialogue/---ector/documents/publication/wcms_196105.pdf>.
21 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA. Pesquisa sobre
pagamento por serviços ambientais urbanos para gestão de resíduos
sólidos. 2010. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/
stories/PDFs/100514_relatpsau.pdf>.

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atualmente gerados pela reciclagem dos resíduos sólidos
urbanos estaria entre R$ 1,4 bilhão e R$ 3,3 bilhões.
Os números são altos devido a grande quantidade de
resíduos sólidos que são gerados em uma sociedade de
consumidores. Esses dados advertem da importância do
lixo para o mercado, pois quando há uma nova rodada de
produtos, os velhos devem ser removidos, sendo um sinal
do que adverte Bauman22:
Em nossa sociedade líquido-moderna de consumidores,
a indústria de eliminação, remoção e descarte de dejetos é
uma das poucas atividades com garantia de crescimento
contínuo e imune aos caprichos dos mercados de consumo.
A rapidez do consumo gera o risco de que um
produto novo logo se torne obsoleto antes mesmo de ter
sido consumido, conhecendo como seu único destino o
depósito de lixo. Tal rapidez do consumo chega a mudar a
conformação do tempo que, atualmente, não é mais cíclico
nem linear, mas pontilhista23.
O tempo pontilhista caracteriza-se mais pela sua
inconstância, é fragmentado, a pessoa vive aquele ponto -
representado pelo momento -, o qual deve ser apressadamente
vivido, pois logo virá a ruptura deste momento. Portanto,
perder o momento é perder uma oportunidade possível; a
ação, a cada vez, deve ser imediata, criando-se assim uma
cultura apressada (hurried culture) e do agora (nowist
culture) (expressões de Stephen Bertman), sendo o motivo da
pressa não apenas o adquirir e juntar, mas principalmente
o imperativo de descartar e substituir24. Ontem, os objetos
dos desejos eram tais e quais, porém, quando estes deixam
de preencher a satisfação instantânea prometida, logo
devem ser abandonados. Eis que os desejos devem estar
sempre sendo reciclados.
22 BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude: conversar com Ricardo
Mazzeo. 2013. p. 40.
23 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 46.
24 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 50.

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O imperativo de descartar e substituir é essencial à
economia consumista, o dinheiro precisa mudar de mãos,
cada vez mais produtos devem ir aos depósitos de lixo,
pois assim o PIB cresce. A felicidade prometida não está
em fazer coisas, nem em apropriar, mas em remover, pois
é essencial a renovação do ardor pela compra. Nota-se que
a obsolescência é fundamental para a felicidade, pois não
se trata apenas de um impulso de comprar e possuir (pois
armazenar e usar sempre os mesmos produtos levaria toda
a economia à ruína), mas de estimular o impulso de se
desfazer e descartar25. Como elucida Bauman26: “a economia
consumista tem de se basear no excesso e no desperdício.”

A felicidade em uma economia de


consumo
Em uma sociedade de consumidores, hasteando
a bandeira da felicidade, as pessoas vivem impulsos,
compulsões e vícios: “E a felicidade, como todos devem
concordar, precisa ser paga.”27 Por isso, naturalmente, o
valor supremo da sociedade de consumidores é uma vida
feliz. Bauman, neste ponto, não quer analisar se a sociedade
de consumidores é capaz ou não de gerar felicidade, nem
entender se a revolução consumista líquido-moderna
tornou as pessoas mais ou menos felizes em comparação
à sociedade sólido-moderna dos produtores. O ponto é
entender a capacidade da sociedade de consumidores
de “cumprir a promessa que ela mesma faz - em outras
palavras, em julgar seu desempenho pelos valores que ela
própria promove ao mesmo tempo em que promete facilitar
a aquisição dos mesmos.”28
25 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 52.
26 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 53.
27 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 52.
28 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 60.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 191

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A promessa da sociedade de consumidores é a
felicidade no aqui e agora - e não depois da morte -, tendo
por características ser instantânea e perpétua. Além
disso, caracteriza-se por não justificar e/ou legitimar a
infelicidade, que é rechaçada e intolerada. Por força dessa
promessa de felicidade, segundo Bauman29, a sociedade
de consumidores é avaliada pela pergunta “Você é feliz?”.
Para Bauman, o resultado para essa pergunta foi recolhido
por pesquisas em diversos países, e não é dos melhores, por
dois motivos:
a) o sentimento de felicidade se manifesta até certo
ponto com o aumento da renda, sendo que este ponto-limite
da felicidade coincide com a satisfação das necessidades
de sobrevivência; porém, aumento do volume de renda não
representa um aumento no volume de felicidade. Em síntese:
“O que essas descobertas indicam é que, ao contrário da
promessa vinda lá do alto e das crenças populares, o consumo
não é um sinônimo de felicidade nem uma atividade que
sempre provoque sua chegada.”30 Deste modo, o consumo
pode aumentar a felicidade até um certo ponto, e este ponto
é muito modesto, ou seja, o consumo é muito desafortunado
em satisfazer as necessidades do ser ou de autorrealização
- ao falar de necessidades do ser ou de autorrealização,
Bauman reportar-se ao pensamento de Maslow31, que as
define como as necessidades que motivam o ser humano a
realizar o próprio potencial totalmente, dentro de uma ideia
de crescimento pessoal que plenifique a própria pessoa.
b) Não há provas de que o aumento no volume geral de
consumo resultará em um maior número de pessoas que se
considerem felizes. Pelo contrário, segundo Bauman32, os
fatores para a infelicidade tendem a crescer em frequência,

29 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 61.


30 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 61-62.
31 MASLOW, A. H. Motivación y personalidad. Barcelona: Sagitario, 1954.
32 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 62.

192 Balcão do Consumidor

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tamanho e força, como o “estresse ou depressão, jornadas
de trabalho prolongadas e anti-sociais, relacionamentos
deteriorados, falta de autoconfiança e incertezas enervantes
sobre estar estabelecido de maneira segura e ‘ter razão’.”
Bauman33 conclui que ainda está em aberto saber se o
consumo crescente é um aliado à maior felicidade de cada vez
mais pessoas, porém, quanto mais este fenômeno é estudado,
mais conclusões desfavoráveis à promessa de felicidade são
encontradas, de modo que uma economia para o consumo
promove a falta de lealdade, destrói a confiança, aumenta
a insegurança, de modo que tal economia torna-se fonte do
medo, medo este que ela própria havia prometido vencer.
A sociedade de consumidores quer combater
o consumidor tradicional, que não se deixa seduzir
pelas necessidades criadas pelo mercado e que vive as
necessidades da família tradicional, dentro das velhas
rotinas e preservando os bens que possui. Neste sentido,
falando dos inimigos da economia orientada para o
consumidor, expõe Bauman34:
Um baixo patamar para os sonhos, o fácil acesso a
produtos suficientes para atingir esse patamar e a crença em
limites objetivos, difíceis ou impossíveis de negociar, assim
como necessidades “genuínas” e desejos “realistas”: são
esses os mais temidos adversários da economia orientada
para o consumidor e que, portanto, devem ser relegados ao
esquecimento.
Inclusive, os consumidores devem aprender a sentir
prazer ao jogar um produto no lixo, posto que isso representa
a necessidade de renovação e, portanto, novas sensações e
alegrias35.
Os desejos não devem ser realistas, pois a sociedade
de consumidores, sob o pálio da felicidade, implanta um
embuste, já que a promessa de satisfação dos desejos
33 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 63.
34 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 63.
35 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 112.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 193

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humanos é realizada pelo estímulo da insatisfação dos
desejos, posto que é esta insatisfação que torna possível os
experimentos consumistas.
O ideal de felicidade prometido, portanto, traz
consigo um mundo de desejos sempre crescentes, porém,
tais desejos não devem ser satisfeitos totalmente, a
própria pessoa deve sentir que sua tentativa de satisfação
fracassou para ir à experiência sucessiva, o que significa
o uso instantâneo e a rápida substituição do objeto de
consumo, sendo essa a exigência da economia voltada para
o consumidor. Como explica Bauman36: “A sociedade de
consumo prospera enquanto consegue tornar perpétua a
não-satisfação de seus membros (e assim, em seus próprios
termos, a infelicidade deles).” A vida de compras oferece,
perenemente, novas ressurreições dentro desse escorrer de
tempo pontilhista. Assim, o ambiente líquido moderno tem
“como característica a desregulamentação e desrotinização
da conduta humana, já em estágio avançado [...]”37.
A economia de consumo segue dois métodos para
atingir tal intento de manipulação dos desejos: a) no
primeiro método, primeiro promove os produtos de consumo
como uma isca para atrair os desejos do consumidor e, logo
em seguida, a própria sociedade de consumidores deprecia
e desvaloriza tais produtos; b) no segundo método, atua-se
viciando o consumidor, criando-lhe uma compulsão, o que
ocorre satisfazendo toda necessidade/desejo/vontade de tal
maneira que ele se sente impelido a novas necessidades/
desejos/vontades38.
Dentro do discurso da sociedade de consumidores,
quem não se encaixa aos padrões do consumismo seria
um consumidor falho, portanto, digno de exclusão social.
Essa pessoa não deve ser favorecida com assistência,
36 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 64.
37 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 66.
38 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 64.

194 Balcão do Consumidor

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pois a cultura de consumo seria possível a todos,
dependendo apenas do empenho individual. Assim, são
os erros do indivíduo que o torna um inválido social e,
por isso, componente de uma subclasse. A mensagem
da sociedade de consumidores é que a pobreza, dentro
do contexto de excessos desta sociedade, somente
poderia ser atribuída à incompetência do indivíduo em
aproveitar as vantagens do trabalho e o investimento
destas vantagens no consumo39. Seriam pessoas mais
propensas ao não trabalho, à passividade deliberada e
ativamente escolhida, enfim, seriam pessoas sem astúcia,
sem vontade, sem esforço40. Assim, quem não se adapta
à sociedade de consumidores não é um seu membro
legítimo e sofre esse estigma, a tal ponto que o pobre
passa a se sentir constrito, para evitar a humilhação
social, a gastar seu parco dinheiro com futilidades, em
vez de investir em suas reais necessidades básicas41.
Torna-se claro, assim, que o funcionamento da
sociedade de consumidores depende de promessas falsas
ou exageradas, pois a felicidade prometida é um horizonte
inalcançável, que atrai perenemente os passos do
consumidor em sua direção, porém, o caminhar não tem
a garantia da chegada. Eis a importância da ruptura das
promessas, da frustração dos desejos e do renovamento
das esperanças, rodas que giram a economia de consumo,
como expõe Bauman42: “O domínio da hipocrisia que se
estende entre as crenças populares e as realidades das
vidas dos consumidores é condição necessária para que a
sociedade de consumidores funcione de modo adequado.”
Apesar das frustrações, portanto, o consumidor deve
manter-se confiante, e essa confiança é assegurada

39 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 75; 176.


40 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 175.
41 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 176.
42 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 64.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 195

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pelo “excesso da soma total de promessas”43. A energia
desejante do ser humano é o combustível que alimenta
essa máquina da economia.
Assim, como arremata Bauman44: “Além de ser um
excesso e um desperdício econômico, o consumismo também
é, por essa razão, uma economia do engano.” O engano,
junto com o excesso e o desperdício, tornam-se virtuoses
em uma economia de consumo. Retorna-se aqui o conceito
de fetichismo da subjetividade, posto que as pessoas são
impelidas continuamente à renovação da própria identidade,
porém, isso deve ser feito sem se sair da superficialidade
do ambiente líquido-moderno, ou seja, sem se alcançar a
autorrealização ou a verdade de si mesmo.

Do fetichismo da mercadoria ao
fetichismo da subjetividade
Na sociedade de produtores, verificava-se o “fetichismo
da mercadoria”, falácia denunciada por Marx, em que
as relações sociais entre as pessoas recebem a ilusória
forma de uma relação de coisas, ou seja, as relações são
desumanizadas e objetificadas. Como explica Harvey45,
pelo fetichismo da mercadoria são ignoradas todas as
condições de trabalho e de vida (como frustrações, alegrias,
etc) da qual depende a produção de uma mercadoria. Então,
seguindo-se o comentário de Harvey, vê-se a mercadoria
isolada e separada das condições sociais necessárias para
a sua existência, por exemplo, pode-se tomar um café da
manhã sem se preocupar com as pessoas que trabalharam
para que fosse possível esse café, ou então, observando-se
43 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 65.
44 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 65.
45 HARVEY, David. Condição pós-moderna. 16. ed. São Paulo: Loyola, 2007.
p. 90.

196 Balcão do Consumidor

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uma mercadoria no supermercado não se preocupa com as
condições de trabalho que determinaram a sua produção.
O fetichismo da mercadoria, assim, corporifica
o trabalho abstrato na “forma mercadoria”, tornando
invisível o trabalho humano, ou seja, tal fetiche faz com
que a mercadoria objetifique e anule o elemento humano.
Marx quebra esse mito que coloca a mercadoria em primeiro
plano - ocultando ou ignorando o papel do ser humano que a
produziu com seu trabalho - e, ao fazê-lo, foca nas relações
sociais, nos significados sociais subjacentes à mercadoria,
consentindo visualizar o lado humano, a compra e a venda
da capacidade de trabalho. Deste modo, expressa Marx46:
O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto,
simplesmente no fato de que ela reflete aos homens
as características sociais do seu próprio trabalho como
características objetivas dos próprios produtos de trabalho,
como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por
isso, também reflete a relação social dos produtores com
o trabalho total como uma relação social existente fora
deles, entre objetos. [...] Esse caráter fetichista do mundo
das mercadorias provém, como a análise precedente já
demonstrou, do caráter social peculiar do trabalho que
produz mercadorias.
Bauman recupera a ideia de fetichismo de Marx,
transpondo-a à sociedade de consumidores sob a
denominação de fetichismo da subjetividade. Se no
fetichismo da mercadoria ocultava-se a capacidade de
trabalho, no fetichismo da subjetividade oculta-se o real
espírito humano por detrás de uma subjetividade que é,
ela mesma, uma mercadoria. A subjetividade é reduzida a
uma mercadoria porque os consumidores são constritos a
comprar e vender os símbolos que constroem a sua própria
identidade como sujeitos, ou seja, a pessoa é alguém apenas
se adota uma vida para o consumo, se retroalimenta o
46 MARX, Karl. O Capital: crítica de economia política. v. 1. Trad. Régis
Barbosa e Flávio Kothe. São Paulo: Nova Cultural, 1988. p. 72.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 197

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mercado, se é irracional e baseada em emoções consumistas.
Quando há um mundo de objetos descartáveis de rápida
obsolescência, a identidade passa a ser adotada e descartada
com a mesma rapidez47. As escolhas do consumidor são
objetificadas, o consumidor foi adestrado por gerentes de
marketing e redatores publicitários a ter uma determinada
identidade. Como explica Bauman48:
A “subjetividade” dos consumidores é feita de opções
de compra - opções assumidas pelo sujeito e seus potenciais
compradores; sua descrição adquire a forma de uma lista de
compras. O que se supõe ser a materialização da verdade
interior do self é uma idealização dos traços materiais -
“objetificados” - das escolhas do consumidor.
Assim, a sociedade de consumidores administra o
espírito das pessoas, começando a se enraizar desde criança,
envolvendo-as no materialismo, em imagens e mídias que
as transformam em dependentes das compras, como atores
desejantes participantes no mundo dos produtos (fala-se
em pediocularidade, que é a aplicação das estratégias de
planejamento e marketing à perspectiva infantil)49.
Para esclarecer o fetichismo da subjetividade, é
preciso entender que em uma sociedade de consumidores
é essencial a manipulação da escolha e da conduta
individuais, o que é possível separando do indivíduo da
sua capacidade de querer, desejar, almejar (assim como
a capacidade de trabalho era separada dos indivíduos na
sociedade de produtores), a fim de que esta capacidade
seja reciclada/reificada numa força externa que dinamiza
a sociedade de consumidores50.
Para a manipulação da escolha e da conduta ser
possível, os consumidores devem ser pessoas que agem
47 BAUMAN, Zygmunt. Vida em fragmentos: sobre ética pós-moderna. Rio
de Janeiro: Zahar, 2011. p. 121.
48 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 24.
49 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 84.
50 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 41.

198 Balcão do Consumidor

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de modo irrefletido, sem racionalizar a própria conduta,
e sem perder tempo sobre o real sentido da própria vida
e os meios para atingir tal sentido. A cultura consumista
atropela o sujeito que parar nestas considerações, pois o
que interessa é manter a todos aprisionados nos lindes do
ambiente líquido-moderno de consumo e, para tanto, tal
cultura expõe as condições existenciais e os preceitos de
vida dos consumidores. Para esclarecer esse aspecto, é
interessante citar a posição de Jacques Ellus51:
[...] toda atividade de nossa sociedade parece ter por
objetivo primordial impedir a tomada de consciência da
realidade, da situação de nossa vida. Divertimento no sentido
pascaliano: é preciso impedir que o olhar possa fixar neste ponto.
De ser desviado por muitos espetáculos, atrações, maravilhas.
É preciso a todo custo evitar uma tomada de consciência.
Seremos, então, enredados num bombardeamento múltiplo e
complexo: recebemos um conjunto de satisfações imaginárias,
extremamente gratificantes e valorizantes (espetáculo e viagem),
que a publicidade nos faz registrar como nossa verdadeira vida,
consumimos símbolos também valorizantes e significantes (cf.
Baudrillard), temos acesso a uma cultura (falsa, radicalmente
falsa) que nos é distribuída e que, pelo luxo dos meios, apaga
nossas próprias possibilidades de criar uma verdadeira cultura
(tão mais mesquinha, medíocre em comparação àquela que nos
é oferecida a partir de todas as direções...), temos acesso aos
poucos a uma espécie de utopia sonhada, e o menor choque (o
aumento do preço da gasolina!) aparece como um escândalo
inimaginável, um intolerável atentado neste universo de sonho
acolchoado que só pode ser o nosso se atingimos os meios
deslumbrantes das técnicas modernas.

Invertendo a frase de Maurice Blachot, afirma


Bauman52: “todos agora são livres, mas cada um é livre dentro
de sua própria prisão, prisão que livremente constrói.” E a
matéria-prima para essa construção é encontrada dentro de
um habitat estruturado nos arredores de shopping centers

51 ELLUL, Jaques. Mudar de revolução: o inelutável proletariado. Rio de


Janeiro: Rocco, 1985. p. 203.
52 BAUMAN, Zygmunt. Vida em fragmentos. 2011. p. 154.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 199

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e nas ruas, onde o público exibe a mercadoria adquirida
para conferir a si mesmo valor de mercado. Como explica
Bauman53, a sociedade de consumidores: “representa o tipo
de sociedade que promove, encoraja ou reforça a escolha de
um estilo de vida e uma estratégia existencial consumistas,
e rejeita todas as opções culturais alternativas.”
Essa sociedade não está ligada à cultura de
aprendizagem e acumulação, como era no passado, mas
a uma “cultura do desengajamento, da descontinuidade e
do esquecimento.”54 Para ilustrar o fato, Bauman fornece o
depoimento sobre a sua juventude, em que a sabedoria do
seu tempo era: “Quem aprende depressa logo esquece.”55
Esse esforço de aprender com o cuidado do estudo, hoje, foi
substituído pela facilidade do dispensar, o que leva a uma
aprendizagem rápida e superficial e, consequentemente,
a um esquecimento igualdade rápido, o que é um
comportamento totalmente conforme às exigências de uma
sociedade de consumidores.
Para que o sujeito seja um afiliado à sociedade
de consumidores deve, necessariamente, consumir. A
pessoa deve colocar-se dentro da tendência de estilo e ser
reconhecida como tal pelos demais, ou seja, as relações
humanas passam a ter como mediador os mercados de
bens de consumo, posto que o sentimento de pertença é
obtido “por meio da própria identificação metonímica do
aspirante com a ‘tendência’.”56
Vale ressaltar que o consumidor, frequentemente, é
inconsciente de sua qualidade de mercadoria vendável,
porém, atua constantemente em busca de fazer de si mesmo
uma mercadoria vendável. O exibicionismo do que consumiu
53 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 71.
54 BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude: conversas com Ricardo
Mazzeo. 2013. p. 36.
55 BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude: conversas com Ricardo
Mazzeo. 2013. p. 38.
56 BAUMAN, Zygmunt. Vida para conasumo. 2008. p. 108.

200 Balcão do Consumidor

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representa a marca de sua própria “vendabilidade” - posto
que tal sujeito é simultaneamente um objeto. Como afirma
Bauman57: “É preciso primeiro se tornar uma mercadoria
para ter uma chance razoável de exercer os direitos e
cumprir os deveres de um consumidor.” A pessoa deve
conformar a sua identidade às demandas de mercado, pois
assim está aumentando a própria atratividade e, portanto,
o próprio preço de mercado, posto que do consumo depende
seu valor social e sua autoestima. A identidade é construída
dentro de um processo de autoidentificação com as
tendências oferecidas pelos mercados de bens de consumo.
Eis o signo deste tempo: os totens das tribos primitivas
são agora substituídos pelos emblemas e marcas visíveis
encontráveis nas lojas. As pessoas devem se esforçar para
mostrar tais emblemas da tendência de estilo, para assim
obter o reconhecimento e a aceitação58. Esse processo é
assim sintetizado por Bauman59:
E no caso de um pleito amplamente reduzido à exibição
de emblemas, que começa com a aquisição de emblemas,
passa pelo anúncio público de sua posse e só é considerado
completo quando a posse se torna de conhecimento público,
o que se traduz, por sua vez, no sentimento de “pertença”.
Assim, o principal objetivo do consumo na sociedade
de consumidores, como afirma Bauman : “não é a
satisfação de necessidades, desejos e vontades, mas
a comodificação ou recomodificação do consumidor:
elevar a condição dos consumidores à de mercadorias
vendáveis.” Mais adiante, Bauman60 complementa:
“Os membros da sociedade de consumidores são eles
próprios mercadorias de consumo, e é a qualidade de
ser uma mercadoria de consumo que os torna membros
autênticos dessa sociedade.”
57 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 89.
58 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 108.
59 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 108.
60 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 76.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 201

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Nota-se que tanto a sociedade de produtores quanto a
sociedade de consumidores estão alicerçadas em ilusões61,
em que os indivíduos vivem uma mentira como verdade
até o ponto desta mentira integrar completamente a única
realidade conhecida pelo sujeito, que se perde nela62. Em
uma sociedade de consumidores, o sujeito perde sua real
identidade para viver aderido a uma vida artificial, baseado
nos símbolos representados e vendidos pelo mercado. Por isso,
afirma Bauman63: “o verdadeiro detentor do poder soberano na
sociedade de consumidores é o mercado de bens de consumo.”
Assim, o mercado produz preceitos de vida ao indivíduo,
e este acaba tendo sua vida colonizada e obediente aos
padrões impostos pelo mercado. Como explicita Bauman64:
“os membros da sociedade de consumidores são obrigados
a seguir os mesmíssimos padrões comportamentais que
gostariam de ver obedecidos pelos objetos de seu consumo.”
Tais indivíduos, ao entrarem nas lojas, buscam ferramentas
e matérias-primas hábeis em torná-los adequados à
sociedade de consumidores, adquirindo um alto valor de
mercado e a certeza do reconhecimento, da aprovação e da
inclusão. Porém, antes de tomar sua decisão, o soberano
mercado já determinou os bens a serem consumidos -
quais seriam tais ferramentas e matérias-primas - e, pelo
consumo, tais indivíduos são comodificados. O indivíduo
pode escolher qual a tendência de estilo pretende seguir,
porém, a escolha é obrigatória65.
O frenesi do consumidor é reforçado pelo medo
da inadequação, pois a inadequeção seria a dor de não
conseguir se moldar à forma que gostaria de assumir,
a falha na tentativa de permanecer se movimentando
enquanto escorre o tempo pontilhista, a dor de parar na
escolha feita66. Assim, quando o emblema de pertença sai
61 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 29-30.
62 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 89.
63 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 85.
64 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 82.
65 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 110.
66 BAUMAN, Zygmunt. Vida em fragmentos: sobre ética pós-moderna. 2011. p. 153.

202 Balcão do Consumidor

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de circulação e é substituído por outros, se a pessoa não
se renova, sofre o sentimento de rejeição, refletido na dor
da inadequação. Portanto, a pessoa deve ficar atenta, pois
para que o sentimento de pertença permaneça, precisará
logo se atualizar pela remoção do objeto de consumo e
sua substituição, ou seja, deve estar preparada para logo
“Mudar de identidade, descartar o passado e procurar
novos começos [...]”67.
Do exposto, constata-se que esse membro da
sociedade de consumidores é, acima de tudo, um Homo
eligens, um eleitor que é frustrado, insatisfeito, buscando
a felicidade como principal motivo da existência, mas sem
conseguir alcançá-la, e o próprio objeto de sua eleição foi
definido de antemão a ele. Por isso, o homo eligens é “um
eu permanentemente impermanente, completamente
incompleto, definidamente indefinido e autenticamente
inautêntico.”68

Considerações finais
Constata-se, a partir deste estudo, uma dinâmica de
mercado que chega a esmagar a diferença cartesiana entre
sujeito (consumidor) e objeto (mercadoria), condenando o homem
a uma vida em que ele próprio se reduz a objeto: o consumidor
é simultaneamente mercadoria de consumo. Neste panorama,
revisita-se em uma nova versão a máxima cartesiana, nas
palavras de Bauman69: “Compro, logo sou [...] um sujeito”.
Tudo isso ocorre dentro de um ambiente líquido-
moderno de instâncias a curto prazo, feito de desejos
instáveis e insaciáveis que devem ser sempre novamente
saciados, o que deve ocorrer pelo consumo imediato e,
depois, pelo descarte de objetos e sua troca por novos.
67 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 128.
68 “[...] un yo permanentemente impermanente, completamente incompleto,
definidamente indefinido… y auténticamente inauténtico”. BAUMAN,
Zygmunt. Vida líquida. Barcelona: Paidós, 2006. p. 49.
69 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 26.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 203

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Assim, o homem está continuamente sendo
bombardeado por promessas falsas ou exageradas, com o
fundamento no valor da felicidade, dentro de uma economia
que se alimenta da quebra das promessas, da frustração
dos desejos e da renovação das esperanças. A subjetividade
transforma-se em um fetiche dentro de um cenário de
desperdício, e tal fetichismo é alicerçado em ilusões,
ilusões essas que, acreditadas, orientam a realidade de
vida dos seres humanos, a ponto destes construírem a sua
identidade partindo dos símbolos do mercado.
Neste estudo, por meio da distinção entre o fetichismo
da mercadoria e o fetichismo da subjetividade, denunciou-
se a gravidade da modernidade líquida: enquanto na
sociedade de produtores manipulava-se e usava-se o corpo
dos trabalhadores, escondendo sua substância humana por
detrás da mercadoria - fetichismo da mercadoria; na atual
sociedade de consumidores manipula-se o espírito das
pessoas, os seus desejos e os seus anseios para as finalidades
da economia de consumo - fetichismo da subjetividade.
O consumidor, ao buscar a satisfação dos seus desejos
no consumo, está se conformando à condição de mercadoria
vendável, a ponto de Bauman afirmar que o fetichismo da
subjetividade, para ser mantido vivo e acreditado, requer
uma alta taxa de desperdício, e diminuir a distância
entre o aflorar e o arrefecer de um desejo70. Constituídas
essas considerações, é preciso destacar que, inclusive
para Bauman, esta não é uma realidade inexorável, pois
sempre existe: “a teimosia do sujeito humano, que resiste
bravamente às repetidas tentativas de objetificá-lo.”71
Neste sentido, cabe rememorar trecho da poesia de Carlos
Drummond de Andrade, intitulada Nosso tempo: “São tão
fortes as coisas! Mas eu não sou as coisas e me revolto.”72

Referências
70 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 31.
71 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. 2008. p. 30.
72 ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. 3. ed. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 2002. p. 126.

204 Balcão do Consumidor

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ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e
a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo Editorial, 2003.
BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude: conversas com
Ricardo Mazzeo. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
BAUMAN, Zygmunt. Vida a crédito: conversas com Citlali Rovirosa-
Madrazo. 2010.
BAUMAN, Zygmunt. Vida em fragmentos: sobre ética pós-moderna. Rio
de Janeiro: Zahar, 2011.
BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Barcelona: Paidós, 2006.
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Reflexões sobre o hiperconsumismo 205

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A possibilidade da utilização
da mediação nas relações
de consumo: considerações
a partir da arquitetônica da
ética do discurso

Marcio Renan Hamel1

Introdução
O presente texto apresenta uma reflexão sobre a
possível utilização da mediação nas relações de consumo,
sendo que tem como fio condutor da análise o projeto da
ética do discurso. Atualmente, tanto a conciliação quanto a
mediação são fortemente citadas e debatidas em pesquisas
desenvolvidas sobre meios alternativos de solução de
conflitos, justiça restaurativa e elaboração de políticas
públicas, apresentando-se, portanto, como caminhos
diferentes à jurisdição tradicional do Estado-Juiz.
Para encetar este propósito, na primeira parte do texto
há uma abordagem da modernidade e dos seus reflexos a
partir de uma racionalidade instrumental que culminou na
segunda metade do século XX com o cidadão-consumidor e
o consumo desenfreado com consequente caos ambiental
e social, a partir de uma lógica perversa do capitalismo
mundial. Na segunda parte, o estudo faz uma análise
dos meios alternativos para resolução de conflitos e, de
forma específica, da conciliação e da mediação voltadas
1 Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFF; Mestre em
Desenvolvimento pela Unijuí; Especialista em Direito Privado pela Unijuí;
Professor da Faculdade de Direito da UPF. E-mail: marcio@upf.br.

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para a relação de consumo. A terceira sessão aborda as
características da conciliação e da mediação frente à
relação de consumo a partir da ética do discurso de Jürgen
Habermas, no intuito de averiguar e elucidar o uso das
referidas práticas ante os pressupostos ético-discursivos de
possíveis práticas dialógicas geradoras de consensos, com
vistas a devolver a autonomia e a liberdade humanas.

A modernidade e a racionalidade
instrumental
A modernidade inventou o conceito de razão prática
e a partir daí uma crescente separação entre sistemas e
mundo da vida. Mercado, economia, religião, entre outros,
são sistemas que, segundo Habermas, colonizaram o
mundo vivido (Lebenswelt), sufocando as relações sociais
de tal forma que há um domínio pela razão instrumental e
pela técnica. De acordo com Habermas, o método científico,
o qual levava a uma dominação mais eficaz da natureza,
também proporcionou mais tarde os conceitos puros e os
instrumentos de dominação do homem sobre o homem, por
meio da dominação da natureza. Dessa forma, a dominação
se torna duradoura e amplia-se não somente mediante
a tecnologia, mas como tecnologia, a qual proporciona
legitimação ao poder político2.
Como decorrência de tal contextualização, a tecnologia
proporciona grande racionalização da falta de liberdade
do homem, demonstrando sua impossibilidade de ser
autônomo e de determinar pessoalmente a sua vida. O
referido tipo de racionalidade exige uma forma de ação
que implica dominação, quer sobre a natureza ou sobre a
sociedade, desvendando-se o conceito de “razão técnica”
2 HABERMAS, Jürgen. Técnica e ciência como “ideologia”. Lisboa/Portugal:
Edições 70. s.d. p.49.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 207

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como “ideologia”, posto que a dominação é metódica,
científica e calculante. Eis o novo tipo de dominação:
crescente produtividade e crescente domínio da natureza. Se
anteriormente, conforme o diagnóstico oferecido por Marx,
a legitimação da dominação se encontrava intrinsecamente
nas relações de produção, principalmente na compra pelo
capitalismo da força de trabalho; contemporaneamente,
a dominação não é mais como fora (tradicionalmente
política), mas sim, não só mediante tecnologia, mas como
tecnologia, cujo poder assume todas as esferas da cultura,
bem como denunciado anteriormente pela primeira geração
dos filósofos da Escola de Frankfurt.
O progresso quase autônomo da ciência e da técnica faz
depender o próprio desenvolvimento político e econômico
do Estado, sendo que se assiste, agora, a um domínio da
política e da economia pela ciência, ou seja, a questão do
progresso técnico-científico aliado à despolitização das
massas faz dele depender os outros sistemas.
Para agravar ainda mais a situação, Habermas
entende que nem o velho antagonismo de classes, tampouco
o subprivilégio de novo tipo, contém potenciais de protesto
que tendam à repolitização da opinião pública, apontando,
como possível saída para a questão, que acima de tudo passa
a ser política, pois é uma questão de dominação, somente
quando for possível a comunicação entre os homens, sem
que haja qualquer forma coação, sendo que cada um possa
se reconhecer no outro.
A concepção clássica da modernidade foi desenvolvida
sob premissas de uma filosofia da consciência, mas
com a virada linguística (linguistischen Wende), a
razão centrada no sujeito foi substituída pelo conceito
destranscendentalizado de razão situada. Com tal
empreendimento da filosofia, abriu-se o caminho para a
crítica pós-clássica da modernidade, destacando-se que
Habermas:

208 Balcão do Consumidor

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(...) parte para uma fundamentação dialógica e
procedimental do dever, o que faz que ele inevitavelmente
desloque o enfoque para dentro da Filosofia da Linguagem e
ultrapasse a filosofia da consciência kantiano-husserliana, que
privilegia a consciência individual no processo de conhecimento
e na construção de normas de ação3.

Na modernidade, com o capitalismo, cada sujeito


individual é concebido como possuidor de um plano pessoal
de ação, e a teoria da sociedade de Habermas propõe buscar
planos individuais de ação que não sejam egoisticamente
formulados. Tal empreendimento o coloca ao nível da
pragmática e, nesta tradição filosófica, Habermas busca
ofertar um conceito de razão comunicativa que abre
caminho para uma concepção neoclássica de modernidade,
defendendo que, para sociedades complexas com alto grau
de influxo democrático, faz-se necessária a instituição de
procedimentos de formação discursiva da opinião e da
vontade, de forma que:
(...) não apenas a formação política da vontade dos
cidadãos, mas também a vida privada dos cidadãos da
sociedade não pode prescindir da fonte de solidariedade gerada
discursivamente. À medida que as condições padronizadas de
vida e os planos de carreira se dissolvem, os indivíduos sentem
diante das opções multiplicadas o crescente fardo das decisões
(ou arranjos) que eles mesmos têm de tomar (ou negociar)4.

No momento em que a modernidade inventou


o conceito de razão prática, o fez por meio de uma
transposição dos conceitos aristotélicos de filosofia prática.
Tal atitude da era moderna levou a uma ligação da razão
prática à felicidade, a qual passou a ser entendida de modo
individualista. Portanto, a filosofia prática da modernidade
3 GALUPPO, Marcelo Campos. Igualdade e diferença: Estado Democrático
de Direito a partir do pensamento de Habermas. Belo Horizonte:
Mandamentos, 2002. p.107.
4 HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional: ensaios políticos.
Tradução de Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Littera Mundi, 2001.
p.198.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 209

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vê os indivíduos como pertencentes à sociedade e como
membros de uma coletividade ou partes de um todo. No
entanto, Habermas entende que as sociedades modernas se
tornaram tão complexas que essas duas figuras modernas
(sociedade centrada no Estado e sociedade composta de
indivíduos) não podem mais ser utilizadas.
Em lúcida análise acerca da descartabilidade humana
e planetária a partir do projeto moderno, sob um enfoque
sociológico, Corrêa & Corrêa expõem como decorrência da
lógica do progresso moderno que os indivíduos, em vez
de se tornarem sujeitos autônomos, tornam-se objetos
descartáveis, de forma que:
(...) o incremento de produtividade redundou em aumento
salarial e lucros mais expressivos, o que impulsionou a compra
de bens e possibilitou às pessoas adquirir os novos produtos
existentes que, posteriormente, se transformaram em bens
necessários. Diante disso, duas características adquirem
importância considerável dentro do processo de evolução
do sistema capitalista, quais sejam, a inovação tecnológica
(redução da demanda de mão de obra) e o aumento do poder de
compra por parte dos trabalhadores5.

Conforme mostram Corrêa & Corrêa, com o surgimento


do Estado de Bem-Estar, com intervenção estatal nas
relações de mercado, na segunda metade do século XX,
mesmo não interferindo na raiz da contradição fundamental
do sistema capitalista, consistente na exploração do homem
pelo próprio homem na ânsia de alcançar maior capital,
acabou propiciando avanços na relação de trabalho, como
o sistema de direitos econômico-sociais. Entretanto, com
a introdução das políticas neoliberais, houve o desmonte
do Estado Social e, consequentemente, das conquistas dos

5 CORRÊA, Darcísio; CORRÊA, Tobias Damião. O ser-no-mundo e a política


da vida: questões acerca da descartabilidade humana e planetária. Revista
Direitos Humanos e Democracia, Ed. Unijuí, ano 1, nº.1, p.88-115, jan./
jun.2013. p.100.

210 Balcão do Consumidor

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trabalhadores6. De acordo com os autores:
É nesse contexto de crise dos Estados nacionais e de
retrocesso na construção das solidariedades coletivas propostas
pelo projeto da modernidade que se deu, a partir das décadas
finais do século 20, uma nova transição de dupla dimensão:
no campo da sociedade, a ruptura do laço social em favor de
um individualismo em que o sujeito-cidadão se transforma
em cidadão-consumidor, mas abandonado a sua própria sorte;
no campo econômico, o esvaziamento dos conflitos sociais
institucionalizados em favor da total fluidez das relações
de trabalho, ficando igualmente o trabalhador assalariado
abandonado às agruras e às incertezas de um sistema de mercado
descomprometido com o próprio sentido da vida humana7.

Habermas busca apresentar o diagnóstico das


patologias da modernidade ao passo que também sugere
meios para a sua superação. É importante impedir a
colonização do mundo vivido pelos sistemas, priorizando a
liberdade, a autodeterminação, a autorrealização de todos
os membros da sociedade, por meio da participação política
permanente com a articulação de seus interesses e vontade
no interior do mundo vivido, via ação comunicativa e
discursos (teóricos e práticos)8.
A partir daí se faz necessário (re)pensar o conceito de
Estado normativo, o que pode ser levado a efeito mediante
uma reflexão sobre a arquitetônica da ética do discurso, cuja
instituição de procedimentos discursivos da opinião e da
vontade deve passar a existir com maior frequência no mundo
da vida, a fim que o mundo subjetivo, individual e solipsista
da modernidade, dê lugar ao mundo da compreensão e
6 CORRÊA, Darcísio; CORRÊA, Tobias Damião. O ser-no-mundo e a política
da vida: questões acerca da descartabilidade humana e planetária. Revista
Direitos Humanos e Democracia, Ed. Unijuí, ano 1, nº.1, p.88-115, jan./
jun.2013. p.103.
7 CORRÊA, Darcísio; CORRÊA, Tobias Damião. O ser-no-mundo e a política
da vida: questões acerca da descartabilidade humana e planetária. Revista
Direitos Humanos e Democracia, Ed. Unijuí, ano 1, nº.1, p.88-115, jan./
jun.2013. p.103.
8 FREITAG, Bárbara. Habermas e a filosofia da modernidade. Perspectivas,
São Paulo, nº16, p.23-45, 1993. p.43.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 211

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do entendimento, da viabilidade de um mundo coletivo
complexo por meio da geração de consensos.

Meios Alternativos de Resolução do


Conflito Consumerista
O excesso de individualismo da era moderna culminou
com a ocorrência de complexos problemas sociais, cujas
consequências podem ser catastróficas ao planeta e à
humanidade. Encontram-se aí problemas da ordem das
linhas de produção, do desequilíbrio ambiental, do consumo
descontrolado, contando, ainda, com o aumento significativo de
litígios judicializados provenientes das relações de consumo.
O Código de Defesa do Consumidor traz como diretriz
a linha central para a política nacional de consumo,
destacando-se aí a educação para o consumo e o incentivo aos
meios alternativos de solução de conflitos consumeristas.
Como caráter de prevenção, a questão pedagógica para o
consumo deve ser trabalhada com maior ênfase e aqui é
possível discutir sobre uma educação para a autonomia do
consumidor. No entanto, o fazer do trabalho pedagógico
somente surtirá efeito em longo prazo, em havendo política
púbica adequada para tanto. Em outro norte, a utilização
de meios alternativos de solução de conflitos consumeristas
apresenta dupla evolução: teórica e prática.
De acordo com Filomeno, o artigo 4º do Código de Defesa
do Consumidor se constitui verdadeira alma, posto que visa
atender às necessidades dos consumidores e respeito à sua
dignidade, bem como à harmonia das relações de consumo.
Em relação aos mecanismos alternativos para solução de
conflitos de consumo haverá de se entender instâncias não
oficiais ou judiciárias9.
9 FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de direitos do consumidor. 10.
ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 11-15.

212 Balcão do Consumidor

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Os estudos, as pesquisas e as propostas de soluções
alternativas de conflitos no campo extrajudicial para o
litígio oriundo da relação de consumo, evitando a jurisdição
tradicional do Estado de Direito (Estado-Juiz), passam
pelos institutos da mediação, arbitragem e também
conciliação. Conforme estudo apresentado por Splenger
e Neto, os meios alternativos de resolução de conflitos
consumeristas permitem aumentar a compreensão e o
reconhecimento dos participantes, construindo diálogos
e o comprometimento responsável para com decisões e
acordos participativos. Apontam, também, que o Judicário
é um meio de administração e resolução de conflitos, mas
não é o único, bem como não é o mais democrático na visão
dos autores10.
Spengler e Neto apontam uma classificação em dois
grupos para os meios de tratamento de conflitos: a) ordem
consensuada, na qual as partes decidem que seja o seu
acordo a pôr fim ao conflito, com autonomia. Aqui estão a
negociação, a mediação e a conciliação; b) ordem imposta,
na qual as partes delegam a uma terceira pessoa a decisão
do conflito, com heteronomia. São representantes desse
grupo a arbitragem, o juízo e a legislação11.
A conciliação tem lugar dentro do procedimento
judiciário e também fora dele, sendo também uma maneira
de tentativa de resolução dos conflitos. Há previsão da
conciliação pelo Código de Processo Civil no artigo 125,
inciso IV e artigo 447. Via poder judiciário, Spengler
10 SPENGLER, Fabiana Marion; NETO, Theobaldo Spengler. Possibilidade
de resolução dos conflitos de consumo brasileiros na jurisdição e mediante
práticas alternativas. In: SILVA, Rogério; SOBRINHO, Liton Lanes Pilau.
(Org.). Balcão do consumidor: 20 anos do Código de Defesa do Consumidor.
Passo Fundo: Ed.UPF, 2011. p.136-137.
11 SPENGLER, Fabiana Marion; NETO, Theobaldo Spengler. Possibilidade
de resolução dos conflitos de consumo brasileiros na jurisdição e mediante
práticas alternativas. In: SILVA, Rogério; SOBRINHO, Liton Lanes Pilau.
(Org.). Balcão do consumidor: 20 anos do Código de Defesa do Consumidor.
Passo Fundo: Ed. UPF, 2011.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 213

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ressalta a percepção de baixo incentivo à autocomposição
por parte dos conciliadores e juízes leigos, resultando na
inexistência de acordos. Já a mediação pode ser vista ou
compreendida como ética da alteridade, reivindicando a
recuperação do respeito e do reconhecimento da integridade
e da totalidade dos espaços privados do outro12.
Segundo demonstra Warat, a distinção entre a
mediação e o procedimento judicial se dá pelo caráter
transformador dos sentidos, pois, na mediação, se dá nas
relações sentimentalmente conflituosas, fato ignorado
no procedimento judicial. Assim, “a mediação seria uma
proposta transformadora do conflito porque não busca
a sua decisão por um terceiro, mas, sim a sua resolução
pelas próprias partes que recebem auxílio do mediador
para administrá-lo”13.
Especificamente, quanto ao direito do consumidor,
surge a controvérsia acerca da impossibilidade da
utilização do recurso da mediação para este ramo do
direito, sob o argumento de que na relação de consumo há
hipossuficiência do consumidor em relação ao fornecedor,
não havendo, portanto, equilíbrio na relação. Logo, aí a
mediação não pode ser aplicada, posto que há uma parte
menor comparada a outra parte da relação.
Conforme esclarece Splenger e Neto, a mediação é um
procedimento que vem recebendo incentivo pelo Ministério
da Justiça e também por parte da Secretaria de Reforma
do Judiciário, mas, por outro lado, ainda é vista com
resistência por setores de juristas conservadores, ainda
muito apegados ao paradigma do litígio institucionalizado,
12 SPENGLER, Fabiana Marion; NETO, Theobaldo Spengler. Possibilidade
de resolução dos conflitos de consumo brasileiros na jurisdição e mediante
práticas alternativas. In: SILVA, Rogério; SOBRINHO, Liton Lanes Pilau.
(Org). Balcão do consumidor: 20 anos do Código de Defesa do Consumidor.
Passo Fundo: Ed. UPF, 2011. p.147-150.
13 WARAT, Luís Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p.60.

214 Balcão do Consumidor

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vendo no judiciário o ente capaz de resolver conflitos.
Na seara do direito do consumidor, a mediação não
aparece com frequência como alternativa de resolução de
conflitos, utilizando-se mais a conciliação e a arbitragem.
Os autores ressalvam, entretanto, que nada impede a
utilização da mediação e das suas técnicas no cotidiano de
produtores, fornecedores e consumidores com a finalidade
de buscar a resolução dos conflitos oriundos da relação de
consumo, levando-se em consideração não haver quaisquer
impedimento para tanto14.
No entendimento de Warat, a mediação pode
se ocupar de qualquer tipo de conflito, inclusive dos
relacionados ao direito do consumidor, sendo a melhor
forma para superar o imaginário do normativismo
jurídico, de maneira que:
(...) em termos de autonomia, cidadania, democracia e
direitos humanos a mediação pode ser vista como a sua melhor
forma de realização. As práticas sociais de mediação configuram-
se em um instrumento de exercício da cidadania, na medida
em que educam, facilitam e ajudam a produzir diferenças e a
realizar tomadas de decisões, sem a intervenção de terceiros
que decidem pelos afetados em um conflito. Falar de autonomia,
de democracia, e de cidadania, em um certo sentido, é ocupar-
se da capacidade das pessoas para se autodeterminarem em
relação e com os outros; autodeterminarem-se na produção
da diferença (produção do tempo com o outro). E a autonomia
uma forma de produzir diferenças e tomar decisões em relação
à conflitividade que nos determina e configura em termos de
identidade e cidadania; um trabalho de reconstrução simbólica
dos processos conflitivos das diferenças que permite formar
identidades culturais, e nos integrarmos no conflito com o
outro, com um sentido de pertinência comum15.
14 SPENGLER, Fabiana Marion; NETO, Theobaldo Spengler. Possibilidade
de resolução dos conflitos de consumo brasileiros na jurisdição e mediante
práticas alternativas. In: SILVA, Rogério; SOBRINHO, Liton Lanes Pilau.
(Org). Balcão do consumidor: 20 anos do Código do Consumidor. Passo
Fundo: Ed. UPF, 2011. p.152.
15 WARAT, Luís Alberto. Surfando na pororoca: o ofício do mediador.
Florianópolis: Fundação Boiteux, 2004. p. 66.

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Também de acordo com Morais, por meio do processo
da mediação é permitido discutir qualquer conflito que
possa interessar às partes a sua discussão. Para o autor,
algumas circunstâncias apontam para a utilização do
recurso da mediação como complemento da atividade
jurisdicional, tais como a inadequação das estruturas
tradicionais para a resolução de conflitos e o crescimento
do contencioso judicial, principalmente no que tange às
relações de consumo e locação16.
Constata-se da leitura de Spengler/Neto, Morais e
Wart, que o instituto da mediação pode ser utilizado com
o fim de se buscar a resolução extrajudicial de conflitos
nas relações de consumo. É de se observar, entretanto,
que conforme Filomeno, tendo em vista a absoluta falta de
controle do consumidor sobre os produtos e os serviços que
lhe são colocados no mercado, e a absoluta desproporção
entre seu poder de barganha e o dos fornecedores daqueles,
é que se parte do pressuposto de que o consumidor é parte
vulnerável no mercado de consumo, justificando-se, dessa
forma, um tratamento desigual para partes naturalmente
desiguais.
Entende-se por vulnerabilidade “a fragilidade dos
consumidores, em face dos fornecedores, quer no que
diz respeito ao aspecto econômico e de poder aquisitivo,
quer no que diz respeito às chamadas informações
disponibilizadas pelo próprio fornecedor ou ainda técnica”.
Assim, a vulnerabilidade do consumidor está presente na
fase pré-contratual, na fase da contratação, no momento
da aquisição de um produto ou prestação de um serviço,
tendo em vista a massificação da produção e do crédito das
vendas, sendo a maioria dos contratos de adesão, estando
presente, ainda, na fase pós-contratual, momento em
que podem surgir os vícios ou os defeitos, que tornam os
16 MORAIS, José Luís Bolzan. Mediação e arbitragem: alternativas à
jurisdição. Porto Alegre: Livraria do Advogado. p. 162.

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produtos ou os serviços contratados inadequados aos fins
destinados17.

Conciliação versus Mediação à Luz da


Ética do Discurso
É de se notar que, quando Warat fala da mediação,
enaltecendo-a, ele o faz dizendo ser a mesma uma ética
da alteridade, ou seja, uma ética para o reconhecimento
do outro e da diferença do outro. E nesse sentido, diz
ser necessário se chegar pela mediação à outridade. Daí
se pode questionar a partir do texto de Warat a como se
chegar ao acordo e ao reconhecimento da outridade. Por
outro lado, não se pode olvidar de que as partes que estão
envolvidas em um pré-litígio, ou até mesmo em um litígio já
judicializado, em muitas situações podem estar eivadas de
rancores, decepcionadas, podem ter sido levadas a engano
ou, tecnicamente, erro, podem ter sido desrespeitadas em
sua dignidade.
De fato, parece que Filomeno acerta quando argumenta
a presença da vulnerabilidade do consumidor na fase pré-
contratual, contratual e pós-contratual, de maneira que o
consumidor sempre é vulnerável na relação de consumo,
fato este que desequilibra a relação consumerista. Por
conseguinte, buscar a mediação nestas relações nos
termos defendidos por Warat talvez, em muitos casos, não
seja possível. A prática comprova esta tese. Não se está
afirmarndo, no entanto, categoricamente, que paira sobre
a mediação uma intransponível impossibilidade de sua
utilização na relação de consumo; absolutamente, mas
para que se chegue a tal implemento, muito se precisará de
educação para o consumo e para a própria mediação, sendo
17 FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de direitos do consumidor. 10.
ed. São Paulo: Atlas, 2010. p.12.

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que está muito mais próximo do direito do consumidor o
acordo conduzido por uma terceira pessoa (conciliação),
juiz, árbitro ou conciliador, do que a livre mediação entre
as partes.
Nesse sentido, torna-se necessário maior incentivo
ao judiciário para que não somente seja espaço, mas que
possa criar espaços de diálogos, desenvolvendo também um
trabalho a partir da conciliação do conflito judicializado.
A conciliação quer, seja judicial ou extrajudical, como
meio alternativo da resolução dos conflitos, é um
importante instituto que merece maior atenção por parte
da magistratura. O acordo pela conciliação também
significa reconhecimento e alteridade, de forma que se
fosse o contrário, as partes não aceitariam o acordo, daí a
ressalva de que a conciliação é instrumento valioso, assim
como a mediação, mas que, mesmo judicializada, deve ser
valorizada. O simples fato do litígio já estar judicializado
não diminui a significação positiva do acordo obtido pela
conciliação judicial, uma vez que cabe, sim, ao judiciário,
também o papel de produzir consensos e de não castrar a
fala das pessoas no momento em que o espaço é criado para
o enfrentamento dialógico e discursivo.
Na arquitetônica apresentada por Habermas de uma
ética do discurso, o filósofo designa de comunicativas as
interações a partir das quais as pessoas envolvidas se
põem de acordo para ordenar seus planos de ação, cujo
acordo alcançado em cada caso pode ser medido pelo
reconhecimento intersubjetivo das pretensões de validez. As
pessoas, ao entrarem numa argumentação (moral) a partir
do seu agir comunicativo numa clara atitude reflexiva,
têm o objetivo de restaurar um consenso perturbado18. De
acordo com Habermas, a ética do discurso pode ser reduzida
18 HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução
de Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p.79-83.

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ao princípio ‘D’ – princípio ético-discursivo –, segundo o
qual só podem reclamar validez as normas que encontrem
o assentimento de todos os concernidos como participantes
de um discurso prático19. Em Verdade e justificação,
Habermas distingue dois tipos de agir comunicativo: um,
num sentido fraco; e outro, num sentido forte, de maneira
que há um agir comunicativo:
(...) num sentido fraco, quando o entendimento mútuo
se estende a fatos e razões dos agentes para suas expressões
de vontade unilaterais; falo do agir comunicativo num sentido
forte ao momento em que o entendimento mútuo se estende às
próprias razões normativas que baseiam a escolha dos fins. Pois
então os envolvidos fazem referência a orientações axiológicas
intersubjetivamente partilhadas que determinam sua vontade
para além de suas preferências. No agir comunicativo em
sentido fraco os agentes se orientam apenas pelas pretensões
de verdade e veracidade; no sentido forte, eles também se
orientam por pretensões de correção intersubjetivamente
reconhecidas. Nesse caso, pressupõe-se não só livre-arbítrio,
mas também autonomia no sentido de liberdade de determinar
a vontade própria com base em discernimentos normativos20.

Habermas irá mostrar que não se pode estabelecer


uma conexão precipitada entre racionalidade comunicativa
e linguagem, de forma que nem todo o uso da linguagem é
comunicativo.
Tipos de uso linguístico

PROFERIMENTOS Modo de Utilização


Proposições enunciativas e
intencionais (representação
“pura” e planejamento Não comunicativo
“monológico” da ação)

19 HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução


de Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p.116.
20 HABERMAS, Jürgen. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. Tradução
de Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2004.

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Expressões de vontade não
incrustadas em contexto
normativo Orientado ao entendimento
(imperativos simples, mútuo
anúncios)
Atos ilocucionários
completos
(normativos, constatativos, Orientado ao acordo
expressivos)
Orientado às consequências
Perlocuções (entendimento mútuo
indireto)
Fonte: HABERMAS, 2004. p. 125.
Tipos de ação
Atitude do agente
Uso da Linguagem objetivante
performativa
Não comunicativo intervenção dirigida ___ ação não social
orientado ao ___ ação comunicativa
entendimento mútuo no sentido fraco
___ ação comunicativa interações
orientado ao acordo
no sentido forte
sociais
orientado às
interações estratégicas ___
consequências
Fonte: HABERMAS, 2004. p. 126.
De acordo com Habermas, as modalidades do uso
linguístico determinam, a partir das diferentes atitudes
dos agentes, quatro tipos de ação linguisticamente
estruturada, entre as quais somente dois tipos perfazem
uma racionalidade comunicativa. Os atos de fala
podem ser distinguidos em três classes, quais sejam: a)
locucionário: cujo sentido e referência são determinados;
b) ilocucionário: permite realizar uma ação quando se
afirma algo; e, c) perlocucionário: efeito. Habermas
transforma os atos ilocucionários em pretensões de
validade. Para que seja possível a fundamentação de

220 Balcão do Consumidor

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uma ética do discurso21, Habermas lança mão de regras
de argumentação para a validade de um discurso, quais
sejam:
(1.1) A nenhum falante e lítico contradizer-se.

(1.2) Todo o falante que aplicar um predicado F a um


objeto a tem que estar disposto a aplicar F a qualquer outro
objeto que se assemlhe a a sob todos os aspectos relevantes.

(1.3) Não é lícito aos diferentes falantes usar a mesma


expressão em sentidos diferentes.

(2.1) A todo falante só é lícito afirmar aquilo em que ele


próprio acredita.

(2.2) Quem atacar um enunciado ou norma que não for


objeto da discussão tem que indicar uma razão para isso.

(3.1) É lícito a todo sujeito capaz de falar e agir participar


de Discursos.

(3.2) a. É lícito a qualquer um introduzir qualquer


asserção.

b. É lícito a qualquer um introduzir qualquer asserção


no Discurso.

c. É lícito a qualquer um manifestar suas atitudes,


desejos e necessidades.

(3.3) Não é lícito impedir falante algum, por uma coerção


exercida dentro ou fora do Discurso, de valer-se de seus direitos
21 Cabe observar dessa forma, que o presente texto não irá abordar o debate
existente acerca da fundamentação do princípio moral, quando Habermas
abandona à pretensão de uma fundamentação última, entendendo que a
fundamentação se dá na própria linguagem, diferentemente de Karl-Otto
Apel, que irá trabalhar a ideia de uma fundamentação última, portanto
transcendental, a partir de outra arquitetônica da ética do discurso a
partir da denominada pragmática universal. Nesse sentido ver: CENCI,
Ângelo Vitório. Apel versus Habermas: a controvérsia acerca da relação
entre moral e razão prática na ética do discurso. Passo Fundo: Ed. UPF,
2001.

Reflexões sobre o hiperconsumismo 221

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estabelecidos em (3.1) e (3.2)22.

O discurso, na forma defendida por Habermas,


garante a liberdade e os direitos de todos os participantes,
logo, respeita a sua dignidade. Os princípios morais
deverão ser reconhecidos por aqueles que participam do
discurso prático antes do procedimento de busca para
o entendimento de onde gera o consenso. A ética do
discurso é uma teoria capaz de sustentar um processo de
comunicação entre partes, de forma imparcial, neutra,
com respeito às regras de argumentação expostas por
Habermas, no sentido de se buscar consenso.
A denominada pragmática-universal é capaz, por
meio da arquitetônica habermasiana da ética do discurso,
de resgatar a autonomia das pessoas/participantes, como
falante e ouvintes, promover o reconhecimento do outro,
ainda que o outro queira continuar sendo um estranho,
promoção da outridade, exercício da cidadania, sendo o
locus possível da alteridade. Tais qualidades reivindicadas
por Warat dentro do processo de mediação somente serão
possíveis ao nível pragmático-universal da arquitetônica
da ética do discurso, em contextos delimitados de jogos
de linguagem, normativos, a partir da base da validade
da fala.

Conclusão
A partir da análise realizada, pôde-se observar
que, primeiro, há uma marcante diferença entre os
institutos da conciliação e da mediação, de maneira
que na conciliação o papel de um terceiro envolvido
é significativo para se chegar a um acordo entre as
partes, enquanto que na mediação o acordo deve ser
22 HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução
de Guido A. de Almeida. Tempo Brasileiro: 2003. p. 110-112.

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operacionalizado de forma mais livre e sem interferências
de uma terceira pessoa (juiz, conciliador ou árbitro).
Em segundo lugar, não se pode deixar de considerar o
fato de que na relação de consumo o consumidor possui
vulnerabilidade, daí decorrendo a sua hipossuficiência
em relação ao fornecedor/produtor, havendo, pois,
inegável desequilíbrio na relação.
Por óbvio, a constatação desse desequilíbrio já previsto
pela própria lei de consumo pode não ser impedimento
para a inclusão do exercício de mediação nas relações de
consumo, em que pese a prática afirme o contrário devido
ao excessivo tensionamento dessas relações e ao abalo
psicológico muitas vezes existentes no consumidor lesado.
Em tais condições, qual consumidor como parte na relação
de consumo irá querer mediar o conflito? Será muito difícil
a operacionalização de uma mediação nesse nível de tensão.
No entanto, mesmo que o conflito seja judicializado, há um
importante instituto a ser explorado, sim, pelo Estado-Juiz
que é a conciliação.
A análise do problema exposto à luz do projeto da
ética-discurso aponta para a possibilidade de sua aplicação
tanto na mediação quanto na conciliação. Em ambos
os institutos se pode trabalhar a partir das regras de
argumentação ético-discursivas, com a ressalva de que se
deve buscar implementar maior incentivo na conciliação,
principalmente, judicial, de forma que ao judiciário cabe
criar espaços de diálogos e não só ser espaço de resposta
(técnico-jurídica) a conflitos judicializados a partir do
mundo vivido.

Referências
CORRÊA, Darcísio; CORRÊA, Tobias Damião. O ser-no-mundo e a política
da vida: questões acerca da descartabilidade humana e planetária. Revista

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