Você está na página 1de 14

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – UFRJ

INSTITUTO DE HISTÓRIA – IH
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA – PPGHC

Cristianismo, direito e finanças: uma história cruzada do crédito no livro II do Código


Teodosiano

Ian Ferreira Bonze

Poder e discurso

Orientador: Prof. Dr. Deivid Valério Gaia

Rio de Janeiro

2021
I. Apresentação do objeto e da problemática da pesquisa
A proposta deste projeto de pesquisa é analisar o impacto da progressiva cristianização
do Império Romano sobre as relações financeiras ligadas ao crédito, especialmente o
empréstimo de dinheiro a juros. Dessa forma, o objeto desse estudo é o cruzamento entre as
ideologias cristã e da elite romana, entre os séculos IV e V d.C.1, a partir das leis compiladas
no livro II do Código Teodosiano, tendo em vista o caráter pragmático do direito romano.2 Não
nos restam dúvidas de que o termo “ideologia” é problemático no que concerne à sua aplicação
nos estudos históricos, tendo em vista os múltiplos significados que podem ser conferidos a este
conceito, desde a sua criação durante a Revolução Francesa, com Antoine Destutt de Tracy, até
sua reinterpretação a partir das obras de Karl Marx e os estudos sociológicos subsequentes. 3
Contudo, no que se refere ao objeto de nosso estudo, compreendemos como ideologia a
estrutura mental, o modelo de sociedade e de poder que é globalmente aceita. 4 Para essa
pesquisa, porém, aplicaremos o conceito de ideologia seguindo o modelo do historiador Jean-
Michel Carrié em seu artigo intitulado Pratique et Idéologie Chrétiennes de L’Économique (IVe
– Ve Siècles)5, no qual ao discutir a transformação da ideologia econômica da sociedade tardo-
antiga, apresenta o conceito como um modelo cultural que é compartilhado entre a elite, do qual
exclui qualquer conhecimento que não seja moral e técnico.6

Ao se estudar os fenômenos econômicos, o historiador precisa estar atento para o fato


de que, no que concerne à documentação da Antiguidade que chegou até os dias atuais, as
informações quantitativas são raras e as qualitativas exigem uma atenção especial. A
documentação da “vida prática” de cunho econômico, tais como os arquivos financeiros, as
tabuinhas dos banqueiros etc., em sua maioria não chegou até nós. As fontes disponíveis, por
sua vez, estão diretamente relacionadas com os contextos nos quais foram concebidas e
conhecidas, de forma que estão permeadas da perspectiva de cada autor, que pode variar de
acordo com a condição política, o tempo, o espaço, o sistema filosófico e suas referências

1
Todas as datações apresentadas nesse projeto de pesquisa correspondem ao período depois de Cristo.
2
Uma das principais características do direito romano era seu pragmatismo, isto é, em geral não havia uma
discussão jurídica teórica em Roma, pois as decisões legais eram o resultado de questões práticas. Para o debate
sobre o pragmatismo do direito romano, ver SPAGNOLO, Benjamin; SAMPSON, Joe. Principle and Pragmatism.
In: SPAGNOLO, Benjamin; SAMPSON, Joe. (eds.). Principle and Pragmatism in Roman Law. Oxford: Hart,
2020. p. 1 – 26.
3
Ver EAGLETON, Terry. Ideology: An Introduction. Londres: Verso, 1991.
4
INGLEBERT, Hervé. Introdution. In: INGLEBERT, Helvé. (org.). Ideólogies et valeurs civiques dans le Monde
Romain. Hommage à Claude Lapelley. Paris: Picard, 2002. p. 21.
5
CARRIÉ, Jean-Michel. Pratique et Idéologie Chrétiennes de L’Économique (IV e – Ve Siècles). AnTard, 14 : 17
– 26, 2006.
6
Ibidem. p. 18.
1
culturais. Isso é um dado importante nos estudos de História Econômica, porque permite ao
pesquisador conhecer os elementos que formavam a ideologia de determinados grupos sociais
e nos oferecem uma ideia, com maior precisão, das próprias relações sociais entre os diferentes
grupos na Antiguidade.

Nossa compreensão acerca da economia, nesse caso, não está restrita às relações de
mercado. Consideramos como econômico qualquer sistema que envolva a sociedade em suas
relações produtivas – distribuição de bens voltados ao bem estar e à sobrevivência do homem
em sociedade. Assim, toda relação que compreenda os conceitos de produção, distribuição,
compra, venda, gestão, lucro, preço, moeda, crédito, oferta versus demanda, entre outros, é uma
relação econômica.7 Precisamos considerar que a formação do homem mediterrânico, em
especial o grego e o romano, estava mais voltada para a retórica, a filosofia, a história, a
literatura e para a filologia. Teorizar sobre preço, contabilidade e comércio não era, portanto,
uma prioridade dos antigos.8 Dessa forma, consideramos que todo e qualquer texto antigo pode
apresentar importantes informações sobre a economia no mundo antigo, basta um olhar atento
e treinado, pelo que elencamos o texto jurídico para nossa análise.

Um elemento que não deve ser negligenciado é o fato de que as atividades financeiras
faziam parte da vida da elite romana. Tanto as questões intrínsecas às finanças – tipos de
empréstimo e pagamento, endividamento, dentre outros – quanto externas a elas – questões
regionais, crise financeira, empreendimentos etc. – faziam parte da ideologia da elite imperial
e estavam relacionados com a oferta e demanda do mercado de crédito responsáveis por
estabelecer o preço da moeda, que é a taxa de juros.9 É importante ressaltar, ainda, que há
outros elementos capazes de promover alterações nas taxas de juros: a conjuntura política
existente10, bem a própria a vida social e econômica da elite – que nesse estudo chamamos de
ideologia.11 Quando a riqueza patrimonial da elite romana não era suficiente para a manutenção

7
GAIA, Deivid Valério. Les sources, Tome II. Les crises financières et le taux d’intérêt dans le monde romain,
Ie siècle av. J.-C. – IIe siècle ap. J.-C. (tese de doutorado), Paris, EHESS, 2013. p. 40 – 68.
8
Para um entendimento mais aprofundado, ver a discussão sobre otium e negotium em GAIA, Deivid. Profissionais
das finanças na Antiguidade romana: os faeneratores no final da República e no início do Império. História
Unisinos. 22 (4): 651 – 660, 2018.
9
ANDREAU, Jean. A economia romana era uma economia de mercado? Phoînix, Rio de Janeiro, 21-2: 99-116,
2015. p. 111.
10
Ibidem. p. 112.
11
Para compreender o impacto das bases ideológicas da elite sobre a vida financeira, ver GAIA, Deivid V.
Questões para o estudo da economia antiga: notas para uma discussão. Mare Nostrum, v. 1, 2010. p. 85.
2
de seu status nas cidades, recorriam, então, ao crédito, o que descreve bem a ligação entre as
relações financeiras e as bases ideológicas da vida político-administrativa dessa elite.12

Uma vez que a lei era a ferramenta utilizada para estabelecer as balizas das relações
econômicas e financeiras na Roma Antiga, o texto jurídico é a documentação que será analisada
nessa pesquisa. Ademais, tendo em vista que os aspectos econômicos também estão ligados aos
julgamentos morais, investigaremos se a mudança no Império Romano a partir da incidência da
ideologia cristã alterou a ideologia da elite acerca das relações financeiras, a partir da
documentação jurídica. Como o direito romano era pragmático, isto é, não teorizava acerca da
vida prática, mas que era por ela determinado, temos no texto jurídico uma próspera e
importante fonte para o estudo da História Econômica. É na jurisprudência, por exemplo, que
encontramos a conceituação e definição das relações financeiras ligadas ao crédito, tais como
os diversos tipos de empréstimo de dinheiro, as taxas de juros, as limitações das taxas pelos
poderes públicos, dentre outros.13 Também podemos encontrar uma forte tendência de
sistematização – mais empírica do que abstrata – dos fenômenos econômicos, etc.14 Além disso,
era por meio da promulgação de leis que os poderes públicos romanos resolviam os conflitos
referentes à vida financeira, embora devemos frisar que isso não implica em um Império que
intervinha na economia, mas que atuava na resolução de conflitos entre credores e devedores.15
Eram as cidades, com sua autonomia garantida pelos romanos, que eram responsáveis por mais
restrições, sobretudo na regulação do mercado, controle dos preços de produtos básicos etc.16

A partir do século IV, com a monetização cada vez maior da economia romana, a riqueza
da elite foi aumentando ainda mais. A ordem senatorial, por ser detentora de terras e ter sido
ainda mais enriquecida com a supervalorização do ouro e a consequente desvalorização das
moedas de bronze, concentrou ainda mais riquezas.17 Esse fortalecimento de poder, no entanto,

12
GAIA, Deivid Valério. Taxas de juros e mercado de crédito no mundo romano: breves considerações. Philía, n.
46, 2013. p. 02.
13
Ver Dig. 12; Dig. 13.4.2.8 (Ulpiano); Dig.19.1.13.26 (Papiniano); Dig. 22.1.1pr. (Papiniano); Dig. 22.1.9 pr.
(Papiniano); Dig. 26.7.47.4 (Scaevola); Dig. 45.1.90 (Pomponio), dentre outros exemplos.
14
No que se refere às taxas de juros no Principado, por exemplo, é por meio da jurisprudência que podemos
constatar os juros como parte do costume local de cada região (mos regionis), de forma que o legitimus modus
usurarum, nunca se referia ao conjunto do Império. Os governadores de província observavam, primeiro, o
costume local para, então, aplicar os juros da capital, ou não. Para essa discussão, ver GAIA (2016 e 2018).
15
Ver GAIA, Deivid Valério. Os poderes públicos e o empréstimo de dinheiro a juros na Roma Antiga. Phoînix,
n. 22, v.1: 123 -133, 2016.
16
CARRIÉ, Jean-Michel. Were Late Roman and Byzantine Economies Market Economies? A Comparative Look
at Historiography. In: MORRISON, C. (ed.). Trade and Markets in Byzantium. Washington D.C.: Dumbartion
Oaks Research Library and Collection, 2012. p. 14.
17
CAMERON, Averil. Late Roman Society and Economy. In: AVERIL, Cameron. The Mediterranean World of
Late Antiquity 395 – 700 AD. Londres; Nova Iorque: Routledge, 2012. p. 87.
3
também ocorreu nas cidades, onde os bispos assumiam protagonismo.18 No século V, eles se
tornaram os principais conselheiros da administração das cidades19, e, como resultado da
expansão da própria ordem senatorial, muitos passaram a fazer parte dela, principalmente na
parte oriental do Império, a partir do estabelecimento do Senado de Constantinopla.20 Ademais,
tornaram-se participantes diretos da corte do imperador, e, portanto, das decisões imperiais.21
Contudo, no que se refere às práticas financeiras, esses líderes religiosos se posicionavam de
forma a recomendar o rompimento dos acordos legais assinados pelo credor e pelo devedor,
independentemente de serem considerados justos ou não.22 O mercado era considerado como
perigoso aos olhos desses pregadores, pois quem o frequentasse era considerado como
escravizado às necessidades às quais as ambições deram origem. Para eles, todos estavam
obcecados pela manutenção do seu status e, por causa disso, a aristocracia se endividava.23
Assim, os bispos condenavam não somente a usura, mas qualquer prática do empréstimo de
dinheiro a juros, sobretudo porque a tentativa dos menos favorecidos em emular os gostos caros
da elite fazia com que, perpetuamente, estivessem escravizados à matéria e, com isso, aos seus
próprios credores.24

Considerando a convergência política da igreja ao sistema imperial25 e a perspectiva


cristã ensinada pelos bispos acerca da condenação da prática do empréstimo de dinheiro a juros,
nossa problemática se desdobra nos seguintes questionamentos: teria o encontro entre a
ideologia cristã e a ideologia da elite romana acerca das finanças no processo de cristianização
influenciado o empréstimo de dinheiro a juros? Até que ponto teria ocorrido essa influência?
Dado que a legislação como produto dessa elite estava se cristianizando, teria havido uma
mudança no pensamento jurídico acerca do empréstimo de dinheiro a juros? Destarte, nossa
problemática busca analisar o conjunto de leis produzidas no período entre Constantino e

18
Nos séculos IV e V, fazer parte da ordem dos curiales facilitava a ascensão social, e muitos bispos faziam parte
dela. Além disso, alguns bispos eram herdeiros da antiga elite latifundiária romana e, portanto, deram continuidade
à mentalidade característica das ordens dirigentes (RAPP, 2000, p. 387).
19
RAPP, Claudia. The Elite Status of Bishops in Late Antiquity in Ecclesiastical, Spiritual, and Social Contexts.
Arethusa, vol. 33, n. 3: 379 – 399, 2000. p. 391.
20
Ibidem. p. 392.
21
Ibidem. p. 396.
22
SAMELLAS, A. The Anti-Usury Arguments of the Church Fathers of the East in their Historical Context and
the Accomodation of the Church to the Prevailing “Credit Economy” in Late Antiquity. Journal of Ancient History,
vol. 5, n. 1: 134 – 178, 2017. p. 135.
23
Ibidem. p. 139.
24
Ibidem. p. 145.
25
Que pode ser exemplificada com a convocação do Concílio de Nicéia, em 313, por Constantino, ou pela
interferência do poder político na escolha de bispos, etc. Ver HUNT, D. The Church as a Public Institution. In:
CAMERON, A.; GARNSEY, P. (eds.). The Cambridge Ancient History – Volume XIII: The Late Empire, A.D.
337 – 425. New York: Cambridge University Press, 2007. p. 238 – 276.
4
Teodósio II, compiladas no Código Teodosiano, mais especificamente o livro II, sem
desconsiderar a dificuldade intrínseca ao estudo da documentação jurídica da Antiguidade.
Com relação à metodologia de análise a ser empregada em nossa pesquisa, mobilizaremos a
história cruzada, que nos fornecerá subsídios para compreender o cruzamento entre o
cristianismo e as práticas da vida econômica e financeira, no âmbito da própria cristianização
da elite.

Justificativa
No que se refere à relação entre a cristianização e a economia na Antiguidade Tardia,
houve uma mudança na ideologia da elite tanto de Roma quanto das cidades. O historiador
Jean-Michel Carrié discute que a perspectiva econômica moral do cristianismo apresentava-se
contrária à obtenção do lucro com base na exploração dos menos favorecidos, sobretudo a partir
das práticas usurárias.26 No entanto, embora haja na historiografia recente diversas discussões
relacionadas às finanças na Antiguidade Romana, à cristianização da elite e ao papel social
desempenhado pelos bispos cristãos nos séculos IV e V, não há um trabalho específico acerca
da relação existente entre esses fenômenos no período tardio.

Ao observar a conversão de muitos indivíduos da elite romana e considerando que


alguns se tornaram bispos, influenciando, em alguns casos, decisões de governantes – locais,
ou o próprio imperador –, podemos inferir que houve uma tentativa de cristianizar, também, as
relações financeiras do Império Romano tardio. Esse esforço de “cristianizar as finanças”, por
assim dizer, pode ser verificado no próprio discurso dos bispos que buscavam coibir as práticas
do empréstimo de dinheiro a juros nos séculos IV e V.27 Haja vista que o meio utilizado pelos
poderes públicos para estabelecer as balizas das relações econômicas e financeiras era a lei,
nossa pesquisa se dedicará a verificar as mudanças na ideologia a partir da legislação compilada
do Código Teodosiano. Como recorte da documentação, o livro II terá maior ênfase por conter
um capítulo exclusivamente sobre essas relações.

A escolha da documentação para o estudo do impacto da cristianização sobre as práticas


financeiras não ocorreu de forma arbitrária. Levamos em consideração a própria característica
da documentação e da temporalidade na qual está inserida. Os estudos acerca das relações

26
Para essa discussão, ver CARRIÉ, Jean-Michel. Pratique et Idéologie Chrétienne de L’Économie (IVe – VIe
Siècles). AnTard, 14: 17 – 26, 2006.
27
Acerca das obras contrárias ao empréstimo de dinheiro a juros, podemos citar: Gr. Nyss. Usur. 198, 21-23;
Chrys, Hom. Rom., 18, 6; Chrys. Hom. Matt., 56, 5; Chrys. Exp. Ps. 59., 4; Bas. Hom. Ps., 14, 1.; Ambr., Ep., 19;
Ambr. Tob., dentre outros.
5
financeiras no Império Romano vinham enfatizando, nas últimas décadas, as documentações
do período republicano e do início do Principado, tais como epistolografias, tratados, epigrafias
etc. No que se refere à documentação jurídica, o Digesto foi o objeto da maioria das análises.
Pesquisas sobre esse tema a partir da mobilização do Código Teodosiano, além de difíceis de
serem realizadas, são pouco conhecidas, e nenhuma foi realizada em Língua Portuguesa; as
existentes, no entanto, são realizadas por juristas e não por historiadores. É nesse campo,
portanto, que nossa pesquisa se insere, a fim de investigar as possíveis influências do
cristianismo sobre as finanças no período tardo-antigo.

II. Objetivos
O objetivo geral dessa pesquisa é analisar o cruzamento entre a ideologia cristã e a
ideologia da elite acerca da vida financeira, a partir da legislação compilada no livro II do
Código Teodosiano, com ênfase na relação entre direito romano e o mercado de crédito entre
os séculos IV e V. Nossos objetivos específicos são:

a) Discutir o funcionamento da vida financeira nos séculos IV e V;


b) Definir os elementos fundamentais do direito romano privado na Antiguidade Tardia;
c) Investigar a existência do mercado de crédito na Antiguidade Tardia a partir o direito
romano;
d) Analisar o cruzamento entre os elementos da ideologia cristã e da ideologia da elite
romana acerca das finanças, observando o ponto de interseção e os antecedentes.

III. Hipóteses
A hipótese geral dessa pesquisa é que a progressiva cristianização do Império Romano,
intensificada a partir do século IV com a chegada de Constantino ao poder, impactou a ideologia
da elite romana acerca do crédito, incidindo diretamente sobre as leis acerca das relações
financeiras. Nossas hipóteses específicas são:

a) Os séculos IV e V formam um período de intensas atividades financeiras no Império


Romano;
b) O crescente poder atribuído aos bispos possibilitou uma influência sobre os mecanismos
jurídicos imperiais;
c) O cruzamento e os entrecruzamentos entre a ideologia cristã e a ideologia da elite
romana alteraram a legislação sobre o empréstimo de dinheiro a juros.

6
IV. Discussão bibliográfica e pressupostos teóricos
O estudo mais amplo acerca do empréstimo de dinheiro e as taxas de juros no mundo
romano ainda é, nos dias atuais, um livro em alemão datado do final do século XIX, escrito
pelo historiador Gustav Billeter. 28 Sem dúvidas, trata-se de um estudo importante para o seu
tempo. Contudo, essa obra já não responde mais aos questionamentos e exigências atuais,
principalmente porque a partir da segunda metade do século XX novas interpretações foram
desenvolvidas acerca da economia antiga que ampliaram as possibilidades de estudo. As
recentes pesquisas são devedoras, principalmente, das contribuições dadas pelas obras de
Raymond Bogaert29 – para a Grécia Antiga – e de Jean Andreau30 – para a Roma Antiga. Os
estudos desses autores são fundamentais porque renovaram a historiografia da História
Econômica, sendo Andreau, até os dias atuais, a principal autoridade no estudo dos argentarii,
banqueiros profissionais de depósitos na Antiguidade romana. Ampliando o recorte temático
das finanças, o historiador Deivid Gaia, buscou estudar outros profissionais das finanças em
Roma, cuja atividade estava fora do escopo dos banqueiros. Em sua tese de doutorado, Gaia
analisou o empréstimo de dinheiro a juros praticado pelos faeneratores, em toda a
documentação produzida em Roma, desde o século I a.C. até o século II d.C.. Nessa pesquisa,
o historiador ainda contribuiu para a temática ao apontar a diferença tácita entre os faeneratores
enquanto emprestadores profissionais de dinheiro a juros e a prática do empréstimo realizada
pelos senadores e equestres romanos.31

Nossa pesquisa buscará, nesse sentido, analisar o empréstimo de dinheiro a juros no


período ainda não estudado, mas que se demonstra como bastante fértil para a historiografia: a
Antiguidade Tardia. Para tanto, as pesquisas realizadas pelo historiador Jean-Michel Carrié32
serão fundamentais para nossa análise. Carrié tem dedicado sua carreira nos últimos anos à
pesquisa da História Econômica na Antiguidade Tardia. Embora seu objeto de análise não esteja
diretamente relacionado com a vida financeira nesse período, seus estudos acerca da economia
do período tardo-antigo como resultado das reformas realizadas, principalmente, no final do
século III e início do século IV, além do uso do texto jurídico como documentação para o estudo

28
BILLETER, Gustav. Geschichte des Zinsfusses im griechisch-römischen Altertum bis auf Justinian. Leipzig: B.
G. Teubner, 1898.
29
BOGAERT, Raymond. Banques et banquiers dans les cités grecques. Leiden: A. W. Sijthoff, 1968.
30
ANDREAU, Jean. Banking and Business in the Roman World. New York: Cambridge University Press, 1999.
31
GAIA, Deivid Valério. Les sources, Tome II. Les crises financières et le taux d’intérêt dans le monde romain,
Ie siècle av. J.-C. – IIe siècle ap. J.-C. (tese de doutorado), Paris, EHESS, 2013.
32
Dentre as obras podemos citar CARRIÉ (1999, 2006, 2007, 2012, 2018), presentes na parte destinada à
bibliografia desse projeto.
7
da Antiguidade Tardia, e, ainda, suas reflexões acerca da própria periodização desse recorte
histórico, são fundamentais para a pesquisa que pretendemos realizar.

Não ignoramos, porém, que o estudo dos fenômenos históricos e suas abordagens
sofreram diversas transformações ao longo do tempo, e o contexto no qual o historiador está
inserido é decisivo para sua opção teórico-metodológica. Sem dúvidas, a pós-modernidade
trouxe consigo profundas inovações não somente no campo tecnológico, mas também na
historiografia. Diferentemente da abordagem historiográfica característica do século XIX que,
baseada na tradição empirista, considerava a História como uma pesquisa objetiva, cuja
finalidade seria reconstruir o passado tal como ocorreu, esse novo contexto possibilitou o
surgimento daquilo que pode ser chamado de uma abordagem desconstrucionista da história,
utilizando a terminologia cunhada pelo historiador Alun Munslow.33

No que se refere ao campo historiográfico da História Econômica, o pesquisador que se


propõe a estudar a História da Roma Antiga, a partir dos pressupostos teóricos desse campo,
precisa estar atento para as peculiaridades e as dificuldades que essa temporalidade impõe. Não
podemos, nesse sentido, desconsiderar que no âmbito econômico, e até mesmo social, o crédito
e a moeda exerceram um papel fundamental. Embora a economia antiga esteja relacionada, em
muitos aspectos, com a vida agrícola, é também devido a ela que se davam as relações
financeiras. O desenvolvimento da arboricultura, ou mesmo a conquista de novos territórios
para a exploração agrícola, além do investimento na vida política, a compra de imóveis e o
sustento do luxo característico da elite romana são, dentre outros aspectos, exemplos
fundamentais de setores da vida econômica aos quais o empréstimo de dinheiro a juros estava
ligado.34

A principal dificuldade no estudo da economia antiga, no entanto, reside na própria


ausência de documentação. Os fatores econômicos podem ser estudados a partir de duas
vertentes: objetivas e subjetivas. A primeira considera os fenômenos tais como se manifestaram
no tempo e no espaço. O trabalho que esteja atento para as realidades subjetivas, por sua vez,
as observa a partir da forma como foram representadas na documentação. Dessa forma,
enquanto a primeira explica os fatores econômicos com base na forma pelas quais eles se

33
A abordagem desconstrucionista se dá sobre a origem e a interpretação dos fenômenos históricos e,
consequentemente, no inevitável relativismo da compreensão histórica. Nesse sentido, não é possível, conhecer o
passado como ele foi, tal como era defendido pela historiografia precedente. Para essa discussão das abordagens
na história ver MUNSLOW, Alun. Desconstruindo a História. Petrópolis: Vozes, 2009.
34
GAIA, Deivid V. Questões para o estudo da economia antiga: notas para uma discussão. Mare Nostrum, v. 1,
2010. p. 85.
8
apresentam, as leis que os governam etc., a segunda se debruça sobre as atitudes e os
julgamentos que não só são constituintes, mas alimentam os aspectos que estão relacionados
com a vida econômica. Gaia argumenta que essa segunda vertente contribui para a explicação
dos fenômenos históricos, dependendo do peso que é atribuído pelo historiador às mentalidades
ou às suas representações.35

Nossa pesquisa se insere, portanto, no campo da História Econômica, de forma que


abordaremos a vida financeira na Antiguidade Tardia com ênfase sobre os aspectos econômicos
e sociais do mundo antigo. Não cabe em nossa análise, no entanto, investigar se as leis referentes
ao crédito nos séculos IV e V foram cumpridas, ou não. Nossa observação se dará sobre a
legislação em si, tendo o cuidado de verificar em cada legislação as possíveis alterações ou
impactos provocados pela cristianização da elite romana. Uma vez que temos como pressuposto
que a mudança na ideologia da elite teria como consequência a transformação das relações
ligadas ao crédito, consideramos que o cruzamento entre a ideologia cristã e a ideologia da elite
poderia ter produzido um impacto sobre a vida financeira no período estudado.

V. Apresentação do corpus documental e metodologia


O corpus documental dessa pesquisa trata-se de um conjunto de leis, datadas entre os
séculos IV e V, compilado no Código Teodosiano. Esta obra foi um projeto do imperador
Teodósio II com o objetivo de agrupar todas as constituições imperiais que possuíssem força
de decreto ou de aplicação geral, desde Constantino até Teodósio II, período em que o
cristianismo ascendeu no contexto imperial. O projeto de Teodósio II – que levaria seu nome –
consistia na organização das leis sob títulos, os quais demarcariam o assunto do qual cada
legislação tratava (CTh., I.1.5). Ademais, cada constituição imperial deveria vir acompanhada
da datação e local em que foi promulgada, além de obedecer à sequência na qual foi
originalmente emitida (CTh., I.1.6). No entanto, não compreendemos as leis tal como deveriam
ser interpretadas à época da codificação, no século V, ou seja, como leges generales36 (CJ.,
I.14.3). Buscaremos estudar as leis levando em consideração a situação de enunciação dos
textos, buscando restaurar, sempre que possível, as circunstâncias que as produziram. 37 Dessa

35
Ibidem. p. 88.
36
Eram assim chamadas as leis que no Império Romano tardio passaram a ser consideradas como de aplicação
geral.
37
Essa leitura do texto jurídico está baseada na metodologia aplicada pelo historiador Jean-Michel Carrié. Para
melhor compreensão da metodologia aplicada à legislação imperial romana, ver CARRIÉ, Jean-Michel. La
législation impériale sur les gouvernements municipaux dans l’Antiquité tardive. AnTard, n. 26: 85 – 125, 2018.
9
forma, analisaremos a legislação tendo em vista sua datação, os imperadores envolvidos, o
destinatário, bem como a forma das leis (rescrito, édito etc.).

No que se refere à metodologia que será aplicada nesta pesquisa, lançaremos mão de
uma metodologia de leitura e uma metodologia de análise. O estudo da economia antiga não
pode ser desvinculado, de forma alguma, da análise dos termos latinos que compõem seu campo
semântico. Dessa forma, é essencial para a nossa pesquisa a realização de um exame das
palavras latinas que remetem à prática financeira do empréstimo de dinheiro a juros:
fenus/faenus, usura, creditum, debitum, centesima, mutuum, cautio, commodatio,
chirographum, dentre outras, devido à dificuldade de algumas de serem traduzidas, bem como
sua relação com a temática proposta. Assim, nossa primeira análise do corpus documental tem
como objetivo identificar essas palavras-chave e seus significados no contexto de cada
legislação. Para isso, consideraremos a perspectiva metodológica da Análise de Conteúdo,
proposta por Laurence Bardin.38 Iniciaremos essa pesquisa com a realização de um dossiê
documental contendo as passagens em que essas palavras aparecem na documentação, processo
que Bardin denomina de categorização.39 Assim, será estabelecido um recorte semântico, a fim
de compreendermos não somente o sentido do vocabulário econômico em si, mas uma
classificação, articulando cada passagem catalogada ao seu contexto. Esse processo é de suma
importância para a presente pesquisa, haja vista que as traduções, em muitos casos, podem nos
levar a conclusões equivocadas acerca do sentido dos termos aplicados.40 Por fim, uma análise
qualitativa dos excertos inventariados será fundamental, de sorte que poderemos compreender
toda a relação entre significante e significado, bem como responderemos questões relacionadas
ao contexto de produção de cada lei, isto é, quem é que fala e sob que circunstâncias?41

Aliado à essa análise qualitativa, e tendo como base a categorização e o recorte


semântico, operacionalizaremos nossa metodologia de análise, a saber, a história cruzada tal
como foi proposta por Michael Werner e Bénédicte Zimmermann.42 A história cruzada expõe
as oportunidades para explorar questões mais gerais, partindo de um ângulo particular: o
cruzamento43, que é a ação de dispor duas coisas, uma sobre a outra, em forma de cruz, criando

38
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.
39
Ibidem. p. 119.
40
Utilizaremos a tradução em língua inglesa de 1952, realizada por Clyde Pharr, confrontando-a com o texto em
latim, estabelecido no início do século XX por Theodor Mommsen.
41
BARDIN, L. Op. cit.. p. 145.
42
WERNER, M; ZIMMERMANN, B. Beyond Comparison: Histoire Croisée and the Challenge of Reflexivity.
History and Theory, v. 45, n. 1: 30 – 50, 2006.
43
Ibidem. p. 32.
10
um ponto de interseção onde eventos podem ocorrer. Os eventos criados, por sua vez, podem,
inclusive, afetar os elementos do cruzamento, dependendo de sua resistência, permeabilidade
ou maleabilidade. Assim, o pesquisador deve observar tanto o ponto de intersecção, quanto os
elementos que compõem o cruzamento, os antecedentes e as consequências.44

Um dos objetos de análise da história cruzada é o cruzamento enquanto intrínseco ao


objeto de pesquisa. Isto é, esse não é um cruzamento realizado pelo próprio pesquisador, mas o
objeto já se configura como o ponto de intersecção entre dois elementos. No caso da nossa
pesquisa, tomamos o próprio processo de cristianização do Império como o cruzamento
intrínseco ao objeto, uma vez que é um evento histórico datado e bem consolidado pela
historiografia. Dessa forma, colocando as ideologias cristã e da elite romana, que são os
elementos do cruzamento, no centro da análise, estudaremos não somente como esses elementos
se cruzam, mas também quais são seus antecedentes.45 Analisaremos, portanto, os resultados
imediatos do longo processo de cruzamento entre a ideologia cristã, pautada em sua moral, e as
práticas financeiras da vida econômica romana, nos séculos IV e V, a partir do Código
Teodosiano. Além disso, o uso das próprias categorias/conceitos é fruto de um processo
reflexivo para que seja de fato estabelecido o princípio histórico dessa metodologia de análise,
realizando, ao mesmo tempo, uma operação sincrônica e diacrônica.

VI. Bibliografia
Documentação:
Codex Theodosianus. ed. por Th. Mommsen, P. Krüger, Meyer. Berlim: Weldmannos, 1905.
The Theodosian Code and Novels and the Simordian Constitutions. trad. Clyde Pharr. New
Jersey: Princeton University Press, 1952.
Bibliografia citada:

ANDREAU, J. Banking and Business in the Roman World. New York: Cambridge University
Press, 1999.

ANDREAU, Jean. A economia romana era uma economia de mercado? Phoînix, Rio de
Janeiro, 21-2: 99-116, 2015.

ANDREAU, Jean. The Economy of the Roman World. Ann Arbor: Michigan University Press,
2015.

BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.

44
WERNER, M; ZIMMERMANN, B. Beyond Comparison: Histoire Croisée and the Challenge of Reflexivity.
History and Theory, v. 45, n. 1: 30 – 50, 2006. p. 37.
45
Ibidem. p. 39.
11
BILLETER, G. Geschichte des Zinsfusses im griechisch-römischen Altertum bis auf Justinian.
Leipzig: B. G. Teubner, 1898.

BOGAERT, Raymond. Banques et banquiers dans les cités grecques. Leiden: A. W. Sijthoff,
1968.

BRETONE, Mario. O texto jurídico. In: CAVALLO, G.; FEDELI, P.; GIARDGINA, A.
(orgs.). O espaço literário da Roma antiga. Belo Horizonte: Tessitura, 2010.

BROWN, Peter. “Treasure in Heaven”: Wealth in the Christian Church. In: BROWN, Peter.
Through the Eye of a Needle: Wealth, the Fall of Rome, and the Making of Christianity in the
West, 350 – 550 AD. New Jersey: Princeton University Press, 2012. p. 72 – 90.

CAMERON, Averil. Late Roman Society and Economy. In: AVERIL, Cameron. The
Mediterranean World in Late Antiquity 395 – 700 AD. Londres; Nova Iorque: Routledge,
2012. p. 84 – 103.

CARRIÉ, Jean-Michel. La législation impériale sur les gouvernements municipaux dans


l’Antiquité tardive. AnTard, n. 26: 85 – 125, 2018.

CARRIÉ, Jean-Michel. Les crises monétaires de l’Empire romain tardif. In: THÉRET, Bruno
(ed.). La monnaie dévoilée par ses crises. Volume 1: Crises monétaires d’hier et
d’aujourd’hui. Paris: EHESS, 2007. p. 131 – 163.

CARRIÉ, Jean-Michel. Pratique et Idéologie Chrétiennes de l’Économie (IVe – VIe siècles).


AnTard, 14: 17 – 26, 2006.

CARRIÉ, Jean-Michel. Were Late Roman and Byzantine Economies Market Economies? A
Comparative Look at Historiography. In: MORRISON, C. (ed.). Trade and Markets in
Byzantium. Washington D.C.: Dumbartion Oaks Research Library and Collection, 2012. p. 13
– 26.

FINLEY, M. I. The Ancient Economy. Londres: Charro & Windus, 1973.

GAIA, D.V. Os poderes públicos e o empréstimo de dinheiro a juros na Roma Antiga.


Phoînix, Rio de Janeiro, 22-1: 123 – 133, 2016.

GAIA, Deivid V. Questões para o estudo da economia antiga: notas para uma discussão. Mare
Nostrum, v. 1, 2010.
GAIA, Deivid Valério. Les sources, Tome II. Les crises financières et le taux d’intérêt dans le
monde romain, Ie siècle av. J.-C. – IIe siècle ap. J.-C. (tese de doutorado), Paris, EHESS,
2013.

HEATHER, Peter. Senators and Senate. In: CAMERON, A.; GARNSEY, P. The Cambridge
Ancient History. Volume XIII. The Late Empire, A.D. 337 – 425. Nova Iorque: Cambridge
University Press, 1998. p. 184 – 210.

HUNT, D. The Church as a Public Institution. In: CAMERON, A.; GARNSEY, P. (eds.). The
Cambridge Ancient History – Volume XIII: The Late Empire, A.D. 337 – 425. New York:
Cambridge University Press, 2007. p. 238 – 276.

12
INGLEBERT, Helvé. (org.). Ideólogies et valeurs civiques dans le Monde Romain. Hommage
à Claude Lapelley. Paris: Picard, 2002.

LO CASCIO, Elio. La dimensione finanziaria e monetaria della crisi del III secolo d.C. Studi
Storici, v. 49, n. 4: 877 – 894, 2008.

MUNSLOW, Alun. Desconstruindo a História. Petrópolis: Vozes, 2009.

RAPP, Claudia. The Elite Status of Bishops in Late Antiquity in Ecclesiastical, Spiritual, and
Social Contexts. Arethusa, vol. 33, n. 3: 379 – 399, 2000.

ROSTOVTZEFF, M. I. Histoire économique et sociale de l’Empire romain. Paris: Robert


Laffont, 1998.

SAMELLAS, A. The Anti-Usury Arguments of the Church Fathers of the East in their
Historical Context and the Accomodation of the Church to the Prevailing “Credit Economy”
in Late Antiquity. Journal of Ancient History, vol. 5, n. 1: 134 – 178, 2017.

SPAGNOLO, Benjamin; SAMPSON, Joe. (eds.). Principle and Pragmatism in Roman Law.
Oxford: Hart, 2020.

WERNER, M; ZIMMERMANN, B. Beyond Comparison: Histoire Croisée and the Challenge


of Reflexivity. History and Theory, v. 45, n. 1: 30 – 50, 2006.

13

Você também pode gostar