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Lex Humana, Petrópolis, v. 8, n. 1, p.

72-97, 2016, ISSN 2175-0947


© Universidade Católica de Petrópolis, Petrópolis, Rio de Janeiro, Brasil

NOTAS SOBRE A FORMAÇÃO DA JURIDICIDADE


MEDIEVAL: AS INFLUÊNCIAS DA FILOSOFIA
GREGA, DO DIREITO ROMANO E DA ÉTICA
CRISTÃ

NOTES ON THE FORMATION OF MEDIEVAL


JURIDICITY: INFLUENCES OF GREEK
PHILOSOPHY, THE ROMAN LAW AND THE
CHRISTIAN ETHICS

PEDRO D. B. BROCCO**
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE, BRASIL

Resumo: Este estudo terá como principal objetivo situar algumas das principais influências do
direito medieval. Abordaremos algumas obras canônicas da filosofia grega, sobretudo a Ética a
Nicômaco e a Política de Aristóteles e a grande obra de Tucídides, para depois nos determos sobre
a recepção do Corpus Iuris Civilis de Justiniano pela Europa medieval, que entrava então no modo
de organização e circulação do conhecimento nos moldes das Universidades. Por fim,
abordaremos a influência da ética cristã para a formação dos aparatos administrativos medievais.

Palavras-chave: Juridicidade medieval. Filosofia grega. Direito romano. Ética cristã.

Abstract: This study will primarily aim to place some of the major influences of medieval law.
We will attempt to cover some canonical works of Greek philosophy, especially Aristotle's
Nichomachean Ethics and Politics, and the most famous work of Thucydides, then the infuence on
receipt of Corpus Iuris Civilis of Justinian by medieval Europe, which then entered the mode of
organization and circulation of knowledge under the Universities. Finally, we will focus on some
influences of the christian ethics on the formation of medieval administrative apparatuses.

Keywords: Medieval juridicity. Greek philosophy. Roman law. Christian ethics.


Artigo recebido em 19/04/2016 e aprovado para publicação pelo Conselho Editorial em 20/07/2016.
** Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Sociologia e Direito da Universidade Federal
Fluminense. E-mail: pedrodbb@gmail.com Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/4343409634486318.

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1. Introdução

Tratar do direito medieval pressupõe o esforço de buscar compreendê-lo entre dois


movimentos distintos: aquele de receber da tradição clássica, dita greco-romana, os fundamentos
do saber jurídico, e o de, tendo a tradição clássica como saber já assimilado, retraduzi-lo a partir
da doutrina e da ética cristãs. Isto leva ao fato de que, em se tratando da via jurídica medieval,
há que se reconhecer um outro grande domínio de cuja tradição o medievo se nutriu com
incontornável importância: a tradição cristã, materializada na Igreja católica e suas instituições
tributárias, como a Universidade.
Abordaremos, neste sentido, algumas obras canônicas da filosofia grega, como, no que
tange ao corpus aristotélico, uma breve incursão sobre pontos importantes da Ética a Nicômaco e
da Política, além da História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides, para depois nos determos sobre
a recepção do Corpus Iuris Civilis de Justiniano pela Europa medieval, que entrava no modo de
organização e circulação do conhecimento nos moldes das Universidades.
Fará também parte dos interesses dessas incursões iniciais aquilatar a influência do
pensamento cristão sobre a formulação dos contornos políticos e jurídicos das sociedades da
Alta Idade Média, após o fim do Baixo Império, com a formação de alguns grandes aparatos
administrativos europeus, como os impérios merovíngio e carolíngio.
Ao final, o cenário que se apresentará será o de uma construção doutrinária jurídica e
política influenciada fortemente pelo pensamento greco-romano e, marcadamente, pelo direito
romano que se elabora sob o Império de Justiniano, recepcionado pelas Universidades europeias
e traduzido posteriormente para a órbita dos Estados nacionais.

2. As influências gregas e romanas do direito medieval

Se é verdade que a tradição jurídica ocidental está marcada indelevelmente pela dicotomia
entre direito natural e direito positivo, podemos perceber já nas primeiras formulações desta

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tradição o seu reconhecimento, por parte de Aristóteles, quando, na Ética a Nicômaco, estabelece
a dualidade da justiça política1:

A justiça política é em parte natural e em parte legal; são naturais as coisas que
em todos os lugares têm a mesma força e não dependem de as aceitarmos ou
não, e é legal aquilo que a princípio pode ser determinado indiferentemente
de uma maneira ou de outra, mas depois de determinado já não é indiferente
(...)

Aristóteles reconhece que, no âmbito da parte legal da justiça política há as idiossincrasias


entre os diferentes grupamentos sociais, e, já na Política, irá proceder a um estudo sobre as
diversas Constituições das poleis gregas. Essa dualidade que marca profundamente a tradição
ocidental de que fala Aristóteles aparece também em Sófocles, quando, em Antígona, irá mostrar
o conflito entre a legalidade do decreto de Creonte e o direito natural, emanado dos deuses e
evocado por Antígona, a enterrar seu irmão Polinices2. Aqui podemos já perceber a tonalidade
trágica e a moção de uma questão que então se formulava: a sociabilidade e a juridicidade fundada
em mitos e costumes e aquela construída sobre fundamentos jurídico-políticos, isto é,
fundamentos que buscam sua razão no arranjo político de uma dada sociedade.
É digno de nota percebermos que o período em que vive e escreve Aristóteles (385-322
a.C.) é algumas décadas posterior à chamada Era de Ouro de Atenas, período no qual foi
provavelmente composta a Antígona de Sófocles (cerca de 442 a.C.). A Era de Ouro de Atenas
produziu personagens como Péricles (495/492 a.C.-429 a. C.), que lidera a democracia de Atenas
em seu auge político, e Tucídides (ca. 460 a.C.-ca. 400 a.C.), historiador da Guerra do Peloponeso
e registrador dos discursos de Péricles.
É, portanto, um período em que Atenas desponta como potência econômica, militar e
política, chegando ao ponto de Péricles se referir a Atenas como um império, em seu primeiro
discurso sobre da Guerra do Peloponeso, legado à posteridade por Tucídides3, expondo aos
atenienses a inevitabilidade da guerra:

1 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora da UnB, 1992, p. 103.
2 SÓFOCLES. A trilogia tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono, Antígona. Tradução do grego, introdução e
notas de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
3 TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Trad. Mário da Gama Kury. Brasília: Editora da Unb/São

Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001, p. 88.


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Enfim, são os maiores perigos que proporcionam as maiores honras, seja às


cidades, seja aos indivíduos. Foi assim que nossos pais enfrentaram os persas,
embora não tivessem tanto recurso quanto nós, e tenham tido de abandonar
até os que possuíam; mais por sua vontade que por sorte, e com uma coragem
maior que a sua força, repeliram o Bárbaro e nos elevaram à grandeza presente.
Não devemos ficar atrás deles, e sim defender-nos contra nossos inimigos com
todos os recursos disponíveis, para entregar à posteridade um império não
menor.

Em sua célebre Oração Fúnebre4, pronunciada no final do primeiro ano da Guerra do


Peloponeso, Péricles faz um elogio à democracia ateniense5 e de certa forma antecipa a intuição
fundamental de Aristóteles6 de que o homem é um animal social:

Ver-se-á em uma pessoa ao mesmo tempo o interesse em atividades privadas


e atividades públicas, e em outros entre nós que dão atenção principalmente
aos negócios não se verá falta de discernimento em assuntos políticos, pois
olhamos o homem alheio às atividades públicas não como alguém que cuida
apenas de seus próprios interesses, mas como um inútil.

Em 431 a.C., a população adulta masculina da cidade-estado de Atenas girava em torno


de 50.000 cidadãos, 25.000 metecos (estrangeiros) e 100.000 escravos 7 . Os metecos, cuja
etimologia remonta a “além da casa”, μέτοικοι, caso tomemos como parâmetro o termo οικοϛ8

4 TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso, op. cit., p. 108 e ss.


5 Sobre a democracia ateniense, observemos o que diz Pseudo-Xenofonte, em obra provavelmente coeva ao período
em que Péricles esteve no poder, ou, ao menos, à Era de Ouro de Atenas: “1.2. Primeiramente, direi o seguinte: é
legítimo que, em Atenas, os pobres e o povo recebam mais do que os nobres e os ricos, exatamente porque é o
povo que conduz as naus e confere poder à cidade; quem contribui para esse poder, muito mais do que os hoplitas,
os nobres e a elite. Assim sendo, parece justo que o exercício de cargos públicos esteja aberto a todos, tanto por
sorteio quanto por votação direta, e também parece justo que qualquer um dos cidadãos possa usar da palavra se o
desejar”. In: PSEUDO-XENOFONTE. A Constituição dos atenienses. Coimbra: Universidade de Coimbra,
2013, pp. 71-72.
6 Para Aristóteles, um homem incapaz de integrar-se numa comunidade ou que seja auto-suficiente a ponto de não

ter necessidade de fazê-lo, não se torna parte de uma cidade, por ser um animal selvagem ou um deus.
7 Observemos, neste sentido, outro trecho da obra de Pseudo-Xenofonte: “1.10. Quanto aos escravos e aos

metecos, tamanha é a impunidade em Atenas que lá não é permitido castigá-los fisicamente e o escravo não te dá
passagem. Vou explicar por que existe este costume local: se fosse legítimo o homem livre bater no escravo, no
meteco ou no liberto, corria-se o risco permanente de surrar um Ateniense, acreditando tratar-se de um escravo; é
que lá o povo não se veste melhor do que os escravos e metecos e sua aparência também em nada é melhor. In:
PSEUDO-XENOFONTE. Op. cit. p. 71.
8 No entanto, Aristóteles, na Política, refere-se a οίκονόμος para designar o dono de uma propriedade. Assim ele

escreve, no início do Livro I da Política (1252 a): “Aqueles que pensam que as qualidades do rei, Basilikó, (βασιλικό),
do dono de uma propriedade, oikonómikon, (οίκονόμικον) e do chefe de família, despotikon, (δεσποτικον) são as
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para designar casa ou lar, seriam os indivíduos livres para praticar atividades mercantis embora
não pudessem ser donos de propriedades e gozar de um status de cidadãos. Os escravos não
possuíam direitos e eram vistos como “um bem vivo”, nas palavras de Aristóteles9, e eram em
sua maioria bárbaros, isto é, não-gregos. Toda a economia do mundo antigo era baseada no
trabalho escravo; Aristóteles, cujo pensamento sobre os escravos encontra-se no capítulo II do
Livro I da Política (1253b a 1255b), reconhece que se os instrumentos inanimados funcionassem
sozinhos, caso a lançadeiras tecessem e as palhetas tocassem cítaras por si mesmas, “os
construtores não teriam necessidade de auxiliares e os senhores não necessitariam de escravos”10.
A concepção de escravo de Aristóteles pode ser nomeada de organicista: o escravo e o senhor
possuem os mesmos interesses; o escravo, ser servil por natureza, é corpo; o senhor, cuja
natureza é a de comandar, é alma: assim Aristóteles elabora outras imagens do mesmo motivo,
como, num corpo individual, a inteligência dominando os desejos com a autoridade de um estadista
ou rei11.
A filosofia grega atinge o seu auge com os pós-socráticos e sobretudo com Platão e
Aristóteles, no século IV a.C., quando a Guerra do Peloponeso já havia terminado com Atenas
e a Liga de Delos derrotadas. O Estagirita, ao estudar as Constituições como causas formais das
diversas poleis ou cidades-estados, irá legar ao Ocidente não apenas uma série de conceitos
filosófico-políticos, mas também o que se poderá chamar de teleologia e axiologia políticas, pois,
se a felicidade é a causa final das poleis, essa será o parâmetro ético-valorativo das mesmas12.
Ademais, Aristóteles define o homem como um animal político, ζῷον πoλιτικόν (zoon politikón),

mesmas não se exprime bem”. In: ARISTÓTELES, Política. Trad. de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora da
Unb, 1997, p. 13, em cotejo com a edição em grego e prefácio em latim: ARISTOTELIS. Politica. Leipzig: B.G.
Teubner, 1909.
9 ARISTÓTELES. Política, op. cit., p. 18.
10 Idem, ibidem.
11 “De conformidade com o que dizemos, é num ser vivo que se pode discernir a natureza do comando do senhor

e do estadista: a alma domina o corpo com a prepotência de um senhor, e a inteligência domina os desejos com a
autoridade de um estadista ou rei”. ARISTÓTELES, Política, op. cit., p. 19.
12 “Vemos que toda cidade é uma espécie de comunidade, e toda comunidade se forma com vistas a algum bem,

pois todas as ações de todos os homens são praticadas com vistas ao que lhes parece um bem; se todas as
comunidades visam a algum bem, é evidente que a mais importante de todas elas e que inclui rodas as outras tem
mais que todas este objetivo e visa ao mais importante de todos os bens; ela se chama cidade e é a comunidade
política”. In: ARISTÓTELES. Política, op. cit., 1252 a.
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isto é, sua felicidade deita raízes não apenas na prática das virtudes individuais, mas sobretudo
na vivência e na prática das virtudes políticas ou sociais.
Uma segunda matriz histórica necessária para a compreensão do jusnaturalismo clássico
é o direito romano. Ainda que seja temerário sintetizá-lo, podemos dizer que é no direito romano
que ocorre um desenvolvimento do direito próprio (ius civile) e uma maior preocupação com os
direitos da personalidade e com o status daqueles cidadãos romanos cujos privilégios regulavam-
se pelo direito.
O direito romano superestimou o direito próprio ou civil antes de seu período clássico,
que se deu entre 27 a.C. até 230 da Era cristã. Ocorre então, em seu período clássico, uma
incorporação e aceitação de outras instituições jurídicas (ius gentium) e, com a influência do
pensamento estoico, torna-se possível um enfraquecimento da escravidão, ou ao menos de um
enfraquecimento de sua naturalização, essa que podemos ver em Aristóteles, pois, no chamado
período clássico do direito romano, sob influências do estoicismo, foi tornado possível
transformar a escravidão em um ato de liberalidade na concessão da liberdade ao escravo13. Gaio,
em suas Institutas, que têm como data aproximada o ano de 161 d. C., afirma que a mais
importante divisão do direito das pessoas é que todos os homens ou são livres ou são escravos14.
Gaio também reconhecerá nas Institutas que o ius gentium é o que a razão natural estabelece entre
todos os homens15, o que dará, neste momento, ao ius gentium uma característica de direito supra-
positivo a ordenar as relações entre todos os homens. Nesse momento já podemos vislumbrar
os contornos do que podemos chamar de jusnaturalismo clássico, em um período de
enfraquecimento do poderio romano.
É, no entanto, importante marcarmos que, ao falarmos da juridicidade medieval e da
escolástica, teremos que ter em mente o desenvolvimento das matrizes do conhecimento
medieval, que resultarão no humanismo renascentista e que, além de deitar raízes na filosofia
grega e no direito romano, receberá ainda o aporte de influências cristãs e de importantes

13 Cf., neste sentido, TREVIÑO, Rigoberto Gerardo Ortiz. El derecho de los índios americanos en la historia de
los derechos humanos. Revista del Centro Nacional de Derechos Humanos. México D.F., vol. 4, número 12,
2009, pp. 77-101.
14 Et quidem summa divisio de iure personarum haec est, quod omnes homines aut liberi sunt aut servi. In: OSLÉ, Rafael

Doming (coord.). Textos de derecho romano. Pamplona: Aranzadi, 2002, p. 39. Citado por TREVIÑO,
Rigoberto Gerardo Ortiz, op. cit.
15 Quod vero naturalis ratio inter omnes homines constituit. In OSLÉ, Rafael op. cit.

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pensadores e cientistas árabes e judeus 16 . Antes de nos debruçarmos sobre o início do


pensamento escolástico e do humanismo, faremos uma breve digressão sobre a recepção do
direito romano, sobretudo do Digesto de Justiniano, pela sociedade europeia medieval.

3. A recepção do Corpus Iuris Civilis de Justiniano pela Europa medieval

O Império romano do Ocidente cai no ano de 476 d.C., vítima das constantes invasões
bárbaras e de sua incapacidade de lhes fazer frente. Justiniano nasce, portanto, já sob o influxo
da queda do Império do Ocidente, em 482 d.C., na região do leste da Europa, em Tauresium, na
atual Macedônia. Justiniano vem de uma família camponesa e seu nome deve-se a uma posterior
adoção por parte de seu tio Justino, já em Constantinopla, onde Justiniano será educado em
Jurisprudência, Teologia e História Romana, tornando-se o principal aliado de seu tio, futuro
imperador (518-527). Justiniano, neste período, é nomeado consul em 521 e comandante do
exército do Oeste. Chega ao poder como soberano exclusivo com a morte de seu tio, Justino I,
em 527. Por volta de 525 casa-se com a futura imperatriz Teodora. Teodora era cortesã, de uma
classe mais baixa que à de Justiniano à época, o que faria de seu casamento, nos tempos clássicos
de Roma, uma impossibilidade. Justino I, no entanto, havia promulgado uma lei permitindo o
casamento entre as classes, muito provavelmente sob influxo do ideário cristão, já na época a
religião oficial do Império. Teodora foi uma importante figura política da época de Justiniano,
ao passo que este fora considerado o “imperador que nunca dorme”, devido aos seus hábitos
infatigáveis e intensos, algo que se reflete na concepção e finalização do Corpus Iuris Civilis17 em
tão pouco tempo, de 530 a 534. Essa rapidez, tendo em vista a grandiosidade da tarefa, tem até
hoje dividido estudiosos e romanistas. Há os que acreditam que a comissão de juristas nomeada
por Justiniano tenha realizado o trabalho de compilação no referido período e há os que

16 Cf. LORCA, Andrés Martínez. El linguaje filosófico de Aristóteles en las versiones greco-latina de Moerbeke y
árabo-latina de Escoto. In DE BONI, Luis Alberto; PICH, Roberto Hofmeister (Org.). A recepção do
pensamento greco-romano, árabe e judaico pelo Ocidente Medieval. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
17 Corpus Iuris Civilis é o nome dado à obra compiladora e legislativa de Justiniano. A nomenclatura foi aplicada por

Dionísio Gotofredo, em fins do século XVI, como título para a sua edição, que reunia as Institutiones, os Digesta, o
Codex e as Novellae. Cf. BRETONE, Mario. História do direito romano. Lisboa: Editorial Estampa, 1988, p. 283.
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defendem que houve pré-compilações já prontas à época, o que tornaria menor a magnitude do
trabalho18.
No contexto do arrefecimento do Império Romano do Ocidente, Justiniano empreende
guerras de reconquista de territórios perdidos outrora sob jugo de Roma, retomando o norte da
África (atuais Líbia, Tunísia, Marrocos), partes do Sul da Espanha e Itália. Durante um certo
tempo, parece ter recriado o império de Diocleciano e Constantino. No entanto, as guerras
contra os bárbaros na península itálica, os africanos do Norte (vândalos) e, no front oriental, os
persas, fez o império de Justiniano assaz vulnerável. A Itália conquistada por Justiniano está em
ruínas; as fronteiras do império são muito grandes, sobretudo a fronteira com os persas.
Uma das principais fontes sobre a vida e a época de Justiniano são os relatos de Procópio
de Cesareia, cronista do Império 19. Procópio é considerado por muitos estudiosos o último
historiador da Antiguidade tardia (o termo Spätantike tem sido utilizado por historiadores para
referir-se ao período, tendo início com Alois Riegl20), cujo estilo se constrói em grego clássico,
tomando como modelos Heródoto e Tucídides. Procópio escreve três obras de fundamental
importância para o estudo de fontes sobre Justiniano e o Império Romano sob seu reinado: a
História das guerras, Sobre os edifícios e a História secreta.

18 Jesús Daza Martínez (1988) realiza um pequeno sumário dos debates entre os romanistas sobre este tópico:
segundo Hoffmann, não teria sido possível que os compiladores realizassem obra tão imensa em apenas três anos
e em momentos de grave instabilidade política (cf. Revolta de Nika, em 532). A tese de Peters afirma a existência
de um Pré-Digesto, motivo que teria conferido à tarefa de Justiniano uma envergadura menor do que a que vem
sendo tradicionalmente reconhecida. Essa questão recebe por parte de Arangio-Ruiz uma solução equilibrada:
segundo ele, existiram compilações pós-clássicas anteriores ao Digesto, ainda que somente uma pequena parte do
mesmo se deva a essas compilações privadas. Cf. DAZA MARTÍNEZ, Jesús. Iniciación histórica al Derecho
Romano. Alicante: [s.n.], 1988, p. 227. Interessante notar, também, as observações de Daza Martínez a respeito de
outras compilações pós-clássicas anteriores a Justiniano já sob influxo cristão, que muito vão influenciar o Corpus
iuris: caso da Fragmenta Vaticana, compilações descobertas em 1821 em um palimpsesto de fins do século IV ou
princípio do V, e a enigmática compilação Mosaicarum et romagnarum Legum collatio, que não se encontra completa e
traz apenas alguns fragmentos de juristas clássicos romanos e de constituições imperiais, com passagens da Lei
mosaica na cabeça de cada título. Daza Martínez cita Hohenlohe e sua tese de que a finalidade do autor da
compilação não foi a de acomodar o direito romano às normas mosaicas mas, ao contrário, tratava-se de um convite
a mitigar e reformar o antigo e rigoroso Direito do Antigo Testamento mediante o novo espírito de equidade e de
humanidade que postula o Novo Testamento. Segundo Daza Martínez: “Esta reforma habría sido hecha por S.
Ambrosio, autor de la collatio; así se explicaría que casi todas las cosas que se contienen en ella fueran recibidas en la
compilación de Justiniano”. Cf. DAZA MARTÍNEZ, op. cit., pp. 212-214.
19 Cf. CAMERON, Averil. Procopius and the Sixth Century. London: Routledge, 1985 e CAMERON, Averil.

Byzantine Matters. New Jersey: Princeton University Press, 2014.


20 Cf. RIEGL, Alois. Die spätrömische Kunstindustrie nach den Funden in Österreich. Wien: Österreich,

Staatsdruckerei, 1901.
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Na História das guerras (De bellis; Polemon), Procópio narra inúmeras guerras e batalhas
travadas por Justiniano, muitas das quais testemunhadas pelo narrador. São sete livros no total,
sendo o primeiro deles de 545. Em Sobre os edifícios (De aedificiis; Peri Ktismaton), temos um relato
panegírico sobre as numerosas obras públicas realizadas por Justiniano organizado em seis livros,
escrito a partir da segunda metade da década de 550 e publicado em 561. A obra mais curiosa de
Procópio, no entanto, é sua História secreta21, só descoberta depois na Biblioteca Vaticana e cuja
edição princeps data de 1623. Nela, que toma o título grego de Anekdota (composição inédita),
Procópio investe contra Justiniano e sua esposa, a imperatriz Teodora. Alguns trechos foram
suprimidos das primeiras edições por trazerem conteúdo que beiram o teor pornográfico.
Contrasta com os outros textos oficiais escritos por Procópio, e sua composição data
possivelmente da década de 550, embora alguns estudiosos proponham o ano de 56222.
A cosmologia política tardo-romana do Império de Justiniano diferencia-se da época
clássica de Roma, na medida em que, pelo funcionamento das instituições e pela apreensão de
suas leis, vemos que não havia mais uma dicotomia clara e um registro político opondo República
e Império, Senado e Imperador, patrícios e plebeus. Embora houvesse diferenças de classe, algo
que vemos claramente na Revolta de Nika, Justiniano colocava-se como Imperador máximo e
cabeça política de um poder unificado. O que vemos na organização jurídica de Justiniano é uma
espécie de Pax Justinianea, um desenho institucional e jurídico que ateste a supremacia absoluta
do Imperador, infenso a divisões, sedições senatoriais, diarquias, triunviratos, etc. Mesmo na
época do Império, na Roma clássica, ao menos antes do Dominado, havia uma divisão-
composição entre o Imperador e o Senado, desde Júlio César e Pompeu Magno, que tinha
ninguém menos que Cícero como aliado. Em Justiniano, teologia cristã e direito unem-se para
fazer do Imperador um paradigma político do Monoteísmo cristológico, ao menos enquanto
encarnação de uma vontade soberana transcendente.
Ao mesmo tempo, como vimos, seguindo a cosmologia cristã, percebemos um pendor
igualitário entre as classes e um novo regime dedicado ao casamento, observado pelo sistema
jurídico de Justiniano.

21 Cf. PROCOPIUS. The Secret History. trad. G.A. Williamson. New York: Penguin, 1966. E também
PROCOPIUS. Secret History. trand. Richard Atwater. Chicago: P. Covici, 1927; New York: Covici Friede, 1927.
22 Cf. Medieval Sourcebook: Procopius of Caesarea: The Secret History, no endereço virtual da Fordham University,

disponível em http://legacy.fordham.edu/halsall/basis/procop-anec.asp. Acesso em 19 de abril de 2016.


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A Jurisprudência produzida em Constantinopla é influenciada tanto pelo cristianismo


quanto pelas escolas jurídicas orientais. O Oriente, influenciado tanto pelo helenismo quanto
por Roma, possui centros de excelência no estudo e ensino do Direito. Podemos citar Beirute,
Alexandria, Cesareia e Constantinopla. A formação dava-se em escolas oficiais voltadas para os
membros das classes mais altas, que eram preparados para a administração pública. A formação,
no entanto, era constituída por um elevado nível teórico e jurídico.
As comissões encarregadas por Justiniano para a elaboração do Corpus Iuris geralmente
eram presididas por Triboniano, e geralmente contavam também com quatro juristas destacados
cuja formação se dá em escolas do Oriente: Doroteu e Anatólio, formados pela escola jurídica
de Berito, ou Beirute, e Teófilo e Cratino, formados em Constantinopla23.
Com Justiniano podemos falar em “sistema jurídico”, pois houve a primeira grande
tentativa de sistematização da tradição jurídica romana, desde a época clássica. O direito tardo-
romano é um direito que se abre para a modernidade europeia como precursor da sistematização
e da dogmática jurídica. Ao aliar-se a um movimento mais legalista e orgânico do ponto de vista
das fontes e dos códigos, essa tradição jurídica afasta-se de outro ramo também ligado à
jurisprudência romana, mais ligada à retórica e com características mais literárias e filosóficas,
que encontramos plenamente em Cícero. Porém, essa tradição, à época de Justiniano, será
encontrada em figuras importantes da tradição cristã, como Cassiodoro, Boécio, Gregório
Magno e São Bento.
Devemos marcar que o Corpus Iuris Civilis foi formulado em pouco tempo, cerca de cinco
anos (529-534). O mesmo lapso temporal em que se construiu um dos monumentos mais
magníficos de Constantinopla e da engenharia humana: a Basílica de Santa Sofia, ou Hagia Sophia
(em grego Άγια Σοφία), construída entre 532 e 537.
O sistema jurídico de Justiniano (Corpus Iuris Civilis) é formado, a partir de 530, com a
Constituição Deo Auctore, na qual Justiniano nomeia uma comissão de juristas, presidida por
Triboniano, formada por outros quatro professores (Doroteu, Anatolio, Teófilo e Cratino), com
a finalidade de compor uma ampla obra que compilasse as principais obras dos juristas clássicos.

23BRETONE, Mario. História do Direito Romano. Lisboa: Editorial Estampa, 1988, p. 279. Bretone utiliza o
termo Berito em seu texto para referir-se à cidade de Beirute na Antiguidade.
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O trabalho termina em fins de 533 e é publicado com o nome de Digesta (ou Pandectae, do grego
pandektai, coleção).
O Digesto é reconhecido por acolher os iura, formado por 50 livros divididos em títulos
(excetos os livros 30-32). Reunião de responsae ou opiniões dos especialistas em vários assuntos.
Cada título trata de uma matéria homogênea trazida no cabeçalho do título (rubrica). Dentro do
título se justapõem os fragmentos escolhidos dos clássicos que tratam do tema. No cabeçalho
(inscriptio) de cada fragmento, se indica a procedência de autoria, obra e número do livro que está
sendo consultado. Desde a Idade Média, os fragmentos maiores são divididos em parágrafos.
Tradicionalmente se citavam as passagens do Digesto indicando abreviadamente o título a que
pertence a passagem citada e as palavras iniciais desta. Costuma-se abreviar a citação do Digesto
por Dig ou simplesmente D e números separados por vírgulas ou pontos, que fazem referência
às divisões da obra em sentido decrescente (de maior a menor) – livro, título, fragmento (e
parágrafo, se houver)24. A divisão do Digesto se dá da seguinte forma: total de 50 livros. Livros
I-IV: princípios gerais; livros V-XI: pars de iudiciis (doutrina geral das ações e proteção judicial da
propriedade e dos demais direitos reais); livros XII-XIX: de rebus (obrigações e contratos); livros
XX-XVII: umbilicus (obrigações e família); livros XVIII-XXXVI: de testamentis et codicillis (herança,
legados e fideicomissos); livros XXXVII-XLIV: herança pretória e matérias referentes a direitos
reais, posse e obrigações; livros XLV-L: stipulatio, direito penal, appellatio, direito municipal, que
terminam com dois títulos gerais: de verborum significatione (das significações das palavras) e de
diversis regulis iuris antiqui (das diversas regras dos direitos antigos)25.
Quando a composição do Digesto já estava avançada, Justiniano encarregou uma
comissão presidida por Triboniano, formada também por Doroteu e Teófilo, a compor um
breve manual destinado ao ensino e com caráter introdutório que pudesse substituir as Institutas
de Gaio na função que estas tinham de ensino nas escolas jurídicas. Assim, compõem novas
Institutas, utilizando para tanto as já mencionadas de Gaio e outras análogas de caráter também
elementar e introdutório como a Res cottidianae de Gaio, e as Institutas de Florentino, Ulpiano e

24 CHURRUCA, Juan de; MENTXACA, Rosa. Introducción histórica al Derecho Romano. Bilbao: Universidad
de Deusto, 2015, p. 235.
25 IGLESIAS, Juan. Direito romano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 125.

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Marciano. Os textos são tratados de maneira análoga ao Digesto, mas as Instituições não citam
as referências.
As Instituições apresentam característica introdutória e formativa e são compostas por 4
livros. Cada livro se divide tradicionalmente em parágrafos numerados. A forma de citar
moderna é análoga à do Digesto, com a sigla Inst ou apenas I, e três números que indicam o
livro, o título e o parágrafo. Na Constituição Omnem do mesmo ano de 533, Justiniano
reorganizou os estudos das escolas jurídicas impondo a elas o uso das Instituições e do Digesto.
As Instituições são publicadas em 533, e pensadas como uma introdução ao Digesto, bem como
método de estudos. O estudo dos iura (Digesto) é importante para compreender as constituições
imperiais (codex).
Durante o processo de composição do Digesto, houve necessidade de uma revisão no
Código promulgado em 529. Triboniano, ajudado por outros juristas, formula o Codex repetitur
praelectionis, conhecido comumente como Código de Justiniano (Codex Iustinianus), ou,
simplesmente, Código, Codex ou compilação de leis (leges) ou ainda Constituições imperiais, a
partir de Adriano.
O código novo, de 534, em oposição ao vetus de 529, é formado por 12 livros divididos
em títulos. Cada título trata de uma determinada matéria. Dentro do título se dispõem em ordem
cronológica as constituições que tratam do tema. No cabeçalho (inscriptio) de cada constituição
aparece o nome do imperador e o do destinatário. Ao final se dá a data e o local de origem da
constituição. O número total de constituições gira em torno de 4.600, sendo a mais antiga a de
Adriano (76 d.C. – 138 d.C.). São numerosas as da época severiana, as de Diocleciano e as do
próprio Justiniano. Cerca de 150 estão escritas em grego. A organização do Codex repetitae
prealectionis (534) é a seguinte: livro I: fontes do direito e temas de direito eclesiástico; livros II-
VIII: direito privado; livro IX: direito penal; livros X-XII: administração municipal de Roma e
das outras cidades, em um total de doze livros divididos em quatro partes.
Nos anos compreendidos entre a publicação do Código, em 534, e a morte de
Justiniano, em 565, são promulgadas numerosas constituições, sobretudo com reformas
administrativas, mas algumas também com importantes normas de direito sucessório e de
família. A estas constituições se conhece sob o título de Novelas (novellae leges, novas leis). Em

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sua maior parte, são publicadas em grego, o que denota uma maior informalidade, e não foram
objeto de compilação oficial.
As Novelas são novas constituições após o Código de 534, reformulando entendimentos
sobre assuntos tratados anteriormente, como reformas administrativas e de direito privado.
Entre 535 e 542, assistimos a uma copiosa produção legislativa através das Novellae constitutiones,
até 565, morte de Justiniano. Destaque para a Novela 22, que estabelece, sob influxo cristão, que
o escravo abandonado por seu dono há de considerar-se livre; e a Novela 17, que estabelece que
os bens não devem ser afetados pelo castigo ao delinquente (non enim res sunt quae delinquunt, sed
qui res possident, não são as coisas que delinquem, mas aquele que as possui).
O Corpus Iuris Civilis, conceito formulado no século XVI, designa o conjunto dos
instrumentos legais e textos que nos chegam da época de Justiniano, que podemos compreender
entre 529-534, com a publicação do Digesto, das Instituições e do Código e, posteriormente,
com as Novelas. Trata-se de um corpo legal formado por entendimentos sobretudo acerca de
direitos relativos a propriedades e contratos, obrigações, direito de família, sucessões, que deu
origem a uma ciência muito avançada para a época tardo-romana, na medida em que foi fruto
de uma sistematização inaudita. A edição fundamental foi feita em três tomos por Mommsen
(Digesto), Krüger (Instituições e Código) e Schoel-Kroll (Novelas), publicada pela primeira vez
em Berlim em 1872 e frequentemente reeditada.
A influência do Corpus Iuris de Justiniano no Ocidente tem início quando a
compreendemos em paralelo com o surgimento das primeiras Universidades. Na Alta Idade
Média europeia, com a fragmentação do Império romano do Ocidente, há várias promulgações
de leis e códigos pontuais contaminados por elementos não-romanos. Essa vulgarização do
direito romano informará a base social dessas diversas formações e dará a tônica da Europa
feudal, até a descoberta do Digesto, entre os séculos XI e XII, que coincide com a fundação das
primeiras Universidades europeias. Aí podemos compreender por que Bolonha torna-se o
grande centro da pesquisa e ensino do Direito. Teremos a partir de Bolonha o surgimento de
uma escola de juristas italianos, chamados Glosadores (Irnerio, Bulgaro, Hugo, Jacobo, Acursio,
entre outros), que farão glosas ao texto de Justiniano e contribuirão para a circulação,
compreensão e aclaração desses textos, mediante resumos (summae), exemplos (casus) e formação

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de regras gerais (brocarda) implícitas nas passagens comentadas. Os glosadores buscavam antes
de tudo a compreensão e aprofundamento teórico da compilação de Justiniano.
O sistema de estudo e interpretação dos glosadores passou rapidamente para outros
centros universitários na Itália, França e Espanha, a partir de seu esforço de divulgação e
compreensão do direito romano, a partir das compilações de Justiniano. Ao mesmo tempo,
contribuem para a compreensão desses textos para concepções e construções que lhes eram
alheias, há muito influenciadas pela síntese de uma juridicidade bárbara com a romana.
A escola conhecida como os Pós-glosadores talvez tenha mais importância para a
organização política medieval. Surgida em fins do século XIII com o estudo do direito romano
nas Universidades, liga o estudo puramente teórico dos glosadores com uma orientação prática
dos chamados comentadores ou pós-glosadores. Grandes juristas florescem nesse período e
tornam-se conselheiros dos monarcas da época. Podemos citar Guilherme Durando (1230-
1296), Cino de Pistoia (1270-1335), Bártolo de Sassoferrato (1314-1357) e Baldo de Ubaldis
(1327-1400). Suas preocupações teóricas não ficam adstritas aos textos de Justiniano, mas
também às disposições legais vigentes em cada país da época.
A orientação jurídica dos estudos dada pelos pós-glosadores se estende por todas as
universidades da Europa continental da época nos séculos XV e XVI. Por sua origem italiana, é
tradição conhecida sob a nomenclatura mos italicus (costume, estilo ou sistema italiano). A essa
orientação se opõe a surgida no século XVI sustentada pelos chamados Humanistas, com seu
grande conhecimento da antiguidade greco-romana. Por ser a França um importante centro
propagador dessa escola, ficam conhecidos sob a nomenclatura de mos gallicus. A essa orientação
se deve grande número de edições de obras jurídicas justinianas e de outras procedências, muitas
das quais desconhecidas ou esquecidas. Fazem valiosos comentários que punham essas obras
em relação com feitos históricos e personagens importantes de seu tempo e utilizam amplamente
dados procedentes de todo tipo de obra literária e monumentos da Antiguidade, o que faz
alcançar o campo jurídico o nascente interesse pela epigrafia, ao mesmo tempo em que começam
a publicar-se textos jurídicos procedentes de inscrições. Entre muitos autores destacados dessa
época, dos séculos XVI e XVII, com nomes latinizados, algo usual entre os humanistas,
podemos citar o italiano Alciatus (A. Alzato); os alemães Zasius (V. Zäsy) e Haloander (G. Meltzer);

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os franceses Donellus (H. Doneau), Cuiacius (J. Cujas), Faber (A. de Favre) e os Gothofredus, pai e
filho (D. e J. Godefroy); e o espanhol Augustinus (A. Agustín).
O fato de que o direito romano passou a ser estudado em alguns países como um quase-
direito vigente ou supletório do direito nacional fez com que surgisse, desde o século XVII, o
chamado usus modernus pandectarum, que conjugava o estudo do direito romano com o direito
nacional, que progressivamente ia sendo compilado em códigos de diversos Estados nacionais.
Essa orientação prática enriquece-se na Alemanha do século XIX com os aportes da Escola
Histórica e com o florescimento científico das Universidades alemãs. A pandectística, formada
pelos Pandectistas, considerava que a compilação de Justiniano era um corpo legal vigente a ser
estudado, explicado e aplicado de acordo com as categorias mentais do século XIX. A
pandectística é sustentada em grande nível científico por figuras como Brinz, Vangerow,
Dernburg e sobretudo Windscheid, que cria uma robusta e racional explicação sistemática de
exposição do direito romano e introduz nele categorias e concepções valiosas para a ciência do
direito, contudo muitas vezes alheias ao direito romano (projeção moderna no direito romano).
A Escola Histórica tem grande importância para o estudo do direito romano. Seu grande
representante, F. K. von Savigny (1779-1861), em seus numerosos estudos sobre o direito
romano, defende o método histórico. Nos ambientes em que se desenvolve a escola histórica, o
direito romano deixa de ser considerado de forma estática e passa a ser tratado como realidade
histórica que muda e evolui em íntima conexão com fatores econômicos, sociais, políticos e
culturais. A escola histórica encontra apoio nos estudos históricos sobretudo na Alemanha do
século XIX, com personagens como Mommsen (1817-1903), responsável por edições críticas e
de fontes jurídicas justinianas (Digesto, Código Teodosiano, etc.), além de grandes estudos e
exposições de direito público e direito penal romano.

4. Influências do cristianismo e a Primeira Escolástica

Étienne Gilson e Philoteus Boehner atribuem o início da filosofia medieval à Renascença


Carolíngia durante o reinado de Carlos Magno (742-814). Esse período faria parte de uma
filosofia cristã, formada também pelo período anterior, denominado de Filosofia Helênico-
Patrística, cujos principais teóricos seriam Clemente de Alexandria, Atanásio de Alexandria,

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Gregório de Nazianzo, Basílio Magno, Dionísio Pseudo-Areopagita, entre outros, e pela filosofia
da Patrística Latina, tendo como autores principais Tertuliano, Gregório Magno, Boécio e Santo
Agostinho26.
Na esteira, portanto, da longa tradição da Patrística grega e latina, surge sob o reinado de
Carlos Magno o que os autores chamam de Primeira Escolástica. Essa corrente filosófica seria
inseparável de um esforço de Carlos Magno no que diz respeito ao aspecto unitivo de seu
Império, que já havia se libertado da ameaça sarracena com Pepino, o Breve, e se aproximado
da Igreja. Carlos Magno foi coroado imperador na Basílica de São Pedro em Roma, no dia de
Natal do ano 800 pelo Papa Leão III. Carlos Magno, no entanto, não buscava resgatar a
dignidade imperial romana, mas transformá-la em uma nova dignidade imperial, dando origem
à fundação de um novo Império. De acordo com Gilson e Boehner, Carlos Magno aprazia-se
com a leitura da Cidade de Deus de Santo Agostinho, cujas ideias interpretava ao seu modo e
com preocupações mais seculares. Segundo Agostinho, a Cidade de Deus, da qual a Igreja seria
o início, constituiria uma sociedade mística de todos os homens unidos a Deus pela graça e uns
aos outros pela caridade. Carlos, todavia, busca a fusão entre a Igreja e o Estado, num só e único
império ocidental cristão. O imperador carolíngio transforma então a teocracia espiritual de
Agostinho numa teocracia política ao transplantar a Cidade de Deus do céu para a terra27.
Para atingir tal objetivo, Carlos Magno dá fundamental importância e empenha seus
melhores esforços para a estruturação do ensino em seu império. O imperador seleciona seus
professores entre os sábios mais famosos da época: em 774, obtém a colaboração do gramático
Pedro de Pisa, do diácono Paulo de Aquileia e enfim consegue atrair à sua corte Alcuíno de York
(735-804), monge beneditino anglo-saxão, que se encontrava em Parma após uma viagem a
Roma. Alcuíno estudou na escola da catedral de York, tendo ali lecionado e construído uma das
melhores bibliotecas da Europa28. Com os professores recrutados pelo imperador carolíngio
inicia-se o movimento cultural que culminará na filosofia medieval e que dará seus primeiros
frutos sob o reinado de Carlos, o Calvo29.

26 Cf. GILSON, Étienne; BOEHNER, Philoteus. História da filosofia cristã. Petrópolis: Vozes, 2012.
27 GILSON e BOEHNER, op. cit., p. 227.
28 Santo Alcuíno, assim reconhecido pelas Igrejas católica, ortodoxa e anglicana, tornou-se o patrono das

universidades cristãs.
29 Idem, p. 228.

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Há que se observar, entretanto, a existência de estudos que reconhecem o período


carolíngio como profundamente tributário da experiência merovíngia. Para Marcelo Cândido da
Silva, a noção de utilitas publica, ou interesse público, já se faz presente no período merovíngio,
quando se pode perceber uma intensa imbricação entre o poder secular dos príncipes e o poder
religioso do episcopado. Para Cândido da Silva, uma noção cristã de utilitas publica, sob influências
diretas do episcopado, associava o ato de governo a um conjunto de deveres morais em relação
aos governados. Esses deveres seriam consubstanciados na criação de condições para a salvação
dos habitantes do Regnum Francorum30. Cândido da Silva mostra que sem a influência do modo
merovíngio de governar e sem Clóvis, Carlos Magno e o império carolíngio seriam inconcebíveis.
E isto concerne também às influências da Igreja sobre o arranjo do poder secular europeu que
então se construía.
Defendemos que a moderna secularização e utilização da utilitas publica deita raízes no
movimento da Pastoral cristã, oriundo dos autores da Patrologia, sobretudo Gregório Magno.
Neste sentido, não há aqui, ainda, como se separar rigorosamente um Estado secular de um
Estado, por assim, dizer, religioso ou católico. O caso merovíngio é neste sentido revelador:
apesar das guerras civis e assassinatos envolvendo a realeza fundada por Clóvis 31, historiadores
como K. F. Werner identificam no edifício político merovíngio características inerentes a um
“Estado cristão”, segundo Cândido da Silva. Traços estes que não teriam impedido que a paz
reinasse de forma mais eficaz no período merovíngio do que durante o Baixo Império32.
Há um salto decisivo dos merovíngios para os carolíngios: os príncipes carolíngios,
devido ao seu papel na Igreja e na sociedade, apareciam como verdadeiros pastores responsáveis
pela salvação das almas33: uma nova concepção da função real, ligada ao rito da sagração, que
daria ao príncipe certos contornos sobrenaturais e, também, daria grande preponderância aos
bispos. Essa nova forma de governar daria especial relevância para as funções morais do

30 SILVA, Marcelo Cândido da. A realeza cristã na Alta Idade Média: os fundamentos da autoridade pública
no período merovíngio (séculos V-VIII). São Paulo: Alameda, 2008, pp. 272-273.
31 Cf., neste sentido, as guerras intestinas e as intrigas familiares que marcaram o império merovíngio: entre os

episódios mais célebres, está a rivalidade entre Brunilda, rainha da Austrásia, e sua inimiga Fredegunda, rainha da
vizinha Nêustria. O conflito culminou com o suplício de Brunilda em 613 d. C.
32 SILVA, Marcelo Cândido da., op. cit., p. 30.
33 Idem, ibidem.

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governante frente aos súditos. No Império Carolíngio, podemos perceber estes traços34 quando
Carlos Magno, em sua Admoestação geral, exorta os religiosos a estabelecerem escolas para sua
própria formação religiosa e também para que os meninos aprendessem a ler 35. Interessante
notarmos aqui que Alcuíno estrutura o sistema educacional carolíngio antes da expressa
obrigação presente no Concílio de Latrão de 1179 para que as igrejas congregassem escolas36.
A escolástica, portanto, ligar-se-ia ao florescimento da filosofia medieval cristã, já
iniciado há muito pelos eruditos provenientes das Patrologias grega e latina, e também a um
resgate da importância do ensino e da formação de estudiosos e pensadores, o qual remonta às
instituições gregas reunidas sob o nome de παιδεία (paidéia)37, isto é, o sistema educacional e de
formação ética e cultural do cidadão perfeito através de disciplinas como ginástica, gramática,
retórica, matemática, música, geografia, história, filosofia, etc. A filosofia, aqui, era apenas uma
pequena parte de todo um sistema formativo inseparável da polis. Tal concepção parece ter estado
nos fundamentos do resgate educacional promovido por Carlos Magno ao recrutar a fina flor da
intelectualidade medieval para o seu império. Alcuíno, seu conselheiro e um dos maiores eruditos
europeus da época, fundou o Palácio-escola da Catedral de Aachen, onde se ensinavam as sete
artes liberais, compostas pelo trivium (gramática, lógica e retórica) e pelo quadrivium (aritmética,
geometria, astronomia e música).
O termo “Escolástica”, para Gilson e Boehner, não obstante a carga que carrega, tanto
de cariz negativo quanto positivo, remeteria ao mesmo significado que já se lhe atribuía na Idade
Média, isto é, chamava-se “escolástico” todo professor que lecionava numa escola ou possuía a

34 Cf. OLIVEIRA, Terezinha. Leis e sociedade: o bem comum na Alta Idade Média. Revista Brasileira de Direito
Constitucional – RBDC. n. 8 – jul./dez. 2006, pp. 375-389.
35 Em documento confeccionado pelo medievalista Professor Ricardo da Costa (UFES), podemos ler este trecho

da Admoestação geral de Carlos Magno: “...Que os ministros do altar de Deus adornem o seu ministério mediante
bom comportamento, bem como as outras ordens que observam uma regra e as congregações dos monges.
Imploramos-lhes que levem uma vida que convenha à sua profissão (...) Que ajuntem e reúnam ao redor de si não
só os filhos de condição servil, mas também filhos de homens livres. Que sejam estabelecidas escolas em que os
meninos aprendam a ler...”. Carlos Magno, Admoestação geral, cap. 72 (798 d. C.). In: COSTA, Ricardo da. Alcuíno
de York (735-804) e o Renascimento Carolíngio. Disponível em:
http://sites.uepb.edu.br/principium/files/2011/04/Alcu%C3%ADno-de-York-e-o-Renascimento-
Carol%C3%ADngio.pdf Acesso em 15 de julho de 2015.
36 Cf. PERNOUD, Régine. Luz sobre a Idade Média. Lisboa: Publicações Europa-América, p. 95.
37 Cf. JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 1: “Todo

povo que atinge um certo grau de desenvolvimento sente-se naturalmente inclinado à prática da educação. Ela é o
princípio por meio do qual a comunidade humana conserva e transmite a sua peculiaridade física e espiritual”.
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ciência ensinada nas escolas. O termo Escolástica aplicado à filosofia designaria a filosofia
ministrada nas escolas cristãs38.
Alfredo Storck, ao dissertar sobre a escolástica latina medieval, irá mais além na definição
do termo, não apenas adstrito àqueles que se colocavam em relação com as escolas cristãs
medievais, mas sobretudo àqueles que punham em marcha um certo conjunto de métodos de
investigação, de discussão e de ensino típicos da universidade medieval39.
A tarefa de compreensão da escolástica implica no reconhecimento dos principais
métodos empregados no período e suas funções específicas e ideais representados. Storck irá se
referir a um texto clássico de Pierre de Chantre segundo o qual as atividades dos teólogos
comparavam-se à construção de um edifício: havia a lectio que corresponderia à fundação; a
disputatio, que corresponderia às paredes; e a praedicatio, que seria o teto que protege do calor e
das tempestades de vícios40. Um teólogo do século XIII teria que dominar três tarefas: a leitura,
isto é, participar com êxito de cursos onde a lectio era a principal forma de ensino; disputar,
assistindo e sendo participante em disputas públicas, conforme regras definidas; e, por fim,
pregar ou realizar sermões.
A atividade formativa dos estudantes passa a relacionar-se com a progressiva divisão e
especialização dos saberes que teve como consequência a criação de faculdades e diversos níveis
de ensino: o nível básico da formação era feito na Faculdade das Artes, onde se estudavam
gramática, lógica, matemática, astronomia e o conjunto das obras de Aristóteles, recém-
descobertas. O primeiro grau obtido, bacharel em Artes, exigia em média três anos de estudos.
O próximo grau era o de mestre em Artes, que em média levava sete anos de estudos. O nível
seguinte da formação realizava-se em faculdades superiores, como as de teologia, direito e
medicina. No caso da Teologia, o currículo era composto por quatro etapas: após oito anos de
estudos preparatórios, o estudante passava dois anos como leitor da Bíblia (baccalaureus biblicus),
outros dois anos como leitor de textos dogmáticos, sobretudo o livro As sentenças, de Pedro
Lombardo, para receber o título de baccalareus sententiarum, e só então passar mais dois anos
participando de disputas41.

38 GILSON e BOEHNER, op. cit., p. 226.


39 STORCK, Alfredo. Filosofia medieval. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 35.
40 Idem, ibidem.
41 Idem, p. 34.

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A escolástica, tida por tradição livresca, o que não deixa de ser verdade se assumirmos
que o fundamento da formação do estudante era a lectio, também guarda uma rica tradição de
oralidade: notemos que os graus mais avançados da formação dos estudantes de teologia eram
o da disputatio e da preaedicatio. Storck observa que a quaestio, a lectio e as disputationes foram formas
orais de exposição e de debate de ideias, tendo recebido, posteriormente, uma expressão escrita
em virtude da qual foi possível preservar o que resta da produção escolástica. As chamadas
quaestiones quodlibetales foram transcrições de disputas dirigidas por um mestre e reunidas por
temas ou por gênero42. Na Opera Omnia de São Tomás de Aquino, podemos perceber Quaestiones
disputatae e Quaestiones de quodlibet, em que se engajou o Doutor Angélico.
No século XII, surge uma forma de expressão literária que marcará profundamente a
escolástica: manuais ou resumos de temas teológicos chamados sententiae, summa ou summa
sententiarum. São resumos inicialmente formados por citações de autoridades e que incorporando
opiniões de mestres por meio de questões presentes em conflitos de interpretação. A Suma
Teológica de Tomás de Aquino seria um exemplo do uso do método da quaestio e da lógica
dialética que atravessa a obra: a Suma é composta por três partes (a segunda parte divide-se em
duas) contendo questões e, cada questão, artigos. Cada artigo inicia-se por uma pergunta, a
maioria contendo uma frase com “se” (utrum), por exemplo: na Parte II-a, Questão 10, artigo 8:
Se deve forçar os infiéis a abraçar a fé?43. Com base na pergunta inicial, o Doutor Angélico apresenta
os dois lados da alternativa, com argumentos embasados por citações bíblicas, citações
filosóficas, argumentos de autoridade, etc. A primeira série de argumentos apresenta de modo
geral a alternativa negativa, introduzida por um “parece”, em seguida há a série adversativa de
argumentos, após um “em contrário”44 (sed contra), que funciona de contrapeso e aponta para a
linha seguida pelo autor, cuja síntese irá elaborar em uma solução, anunciada por um “eu
respondo”45 (respondeo). Após a resposta, há uma seção de refutações das opiniões opostas que
aparecem na primeira parte do artigo46.

42 STORCK, Alfredo. Filosofia medieval, op. cit., p. 39.


43 AQUINO, Santo Tomás de. Suma de Teología, II-II (a). Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1990, Q.
10, art. 8, p. 117.
44 Na edição espanhola: en cambio.
45 Na edição espanhola: hay que decir.
46 STORCK, Alfredo, op. cit., p. 41.

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A suma apareceu como gênero literário medieval e como outro aspecto distintivo da
escolástica, confundindo-se com a concepção de rigor lógico-tomista.
Ao se tratar da divisão em períodos históricos tendo como referência a história da
filosofia, aceitamos a hipótese de Gilson e Boehner e também de Josep-Ignasi Saranyana de que
a filosofia medieval tem início com uma forma original de filosofar, que ocorre na Gália com o
Renascimento carolíngio, embora tenhamos que reconhecer que o principal teólogo e filósofo a
atuar sob Carlos Magno, Alcuíno, já havia adquirido uma sólida formação em York. Joseph-
Ignasi Saranyana estima que a Idade Média começa quando se esgotam os resquícios do espírito
romano no contexto germânico, e isto teria ocorrido no renascimento carolíngio. O certo é que,
como o próprio Saranyana observa, Carlos Magno prestou serviços importantes para o
florescimento do conhecimento na Europa quando, no ano de 778, dirige capitulares aos bispos
e abades de seu reino exortando-os a erigir escolas para a formação dos eclesiásticos47.
Não se chega a um consenso no que tange ao início da Idade Média e ao seu final, pois,
para uns, a Idade Média encerra-se com a invenção da imprensa (1443); para outros, com a
conquista de Constantinopla (1453) ou com o descobrimento da América (1492). Alguns
historiadores da Igreja48 entendem que a Idade Média se estende até o V Concílio de Latrão
(1512-1517), prévio à reforma luterana de 1517. Alguns historiadores da filosofia veem os
albores da Idade Moderna nos últimos anos do século XIV, quando se insinua o Renascimento,
ou nos primeiros do século XV, quando finda o Cisma do Ocidente. Outros, porém,
compreendem a retomada filosófica de características mais ou menos escolásticas liderada pelas
Universidades de Paris, Salamanca, Alcalá, Coimbra e Lovaina como a última etapa da Idade
Média, de sorte que o fim da filosofia medieval deveria se dar após a morte de Francisco Suárez,
em 161749.
No que diz respeito à nossa posição neste trabalho, adotaremos a posição de Joseph-
Ignasi Sarayana, a de que a Idade Média filosófica comporta desde a mudança da dinastia no

47 SARANYANA, Joseph-Ignasi. A filosofia medieval – das origens patrísticas à escolástica barroca. São
Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio” (Ramon Llull), 2006, p. 30.
48 Referência em contrário se faz a, por exemplo, GARCÍA-VILLOSLADA, R.; LLORCA, B.; LABOA, J. M.

Historia de la Iglesia católica. Madrid: BAC, 1998, para os quais a Idade Média termina com a morte do Papa
Bonifácio VIII, em 1303. Devo esta observação a Anderson Alves, que realizou leitura atenta deste artigo, a quem
agradeço.
49 SARANYANA, Joseph-Ignasi, idem, p. 31.

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reino franco – dos merovíngios para os carolíngios em 751 e com a subida de Carlos Magno ao
trono em 768 – até a morte de João de Santo Tomás em 1644 ou o fim das guerras de religião
em 1648, com a Paz de Vestfália.
Assim procedendo, teremos o cuidado de enfocar o período denominado de
Renascimento ou barroco, entendendo-o como profundamente ligado ao conhecimento
medieval e tributário de suas formulações e tradições. Importante termos em consideração que
esse período é capitaneado por importantes Universidades ibéricas que atuarão na formação
intelectual de relevantes personagens da Era das Colonizações e aparecimento do Novo Mundo.
O movimento intelectual do qual fazem parte, que dirige os estudos e as atenções dos estudantes
ibéricos, esteve fortemente ligado à doutrina de Santo Tomás de Aquino. Por isso entendemos
por considerar o período entre os séculos XV e XVI, no limiar da Idade Moderna, como ainda
muito marcado pela tradição medieval, embora tal divisão não gere muitas diferenças práticas no
que tange à filosofia moral e às concepções de direito articuladas pelos autores ibéricos.
O estudo da Segunda Escolástica deve ter início pelo estudo da fundação da
Universidade e, posteriormente, da Escola de Salamanca. A Universidade de Salamanca foi
fundada em 1243 por Fernando III o Santo, rei de Leão e Castela, tendo sido uma das quatro
grandes Universidades do Orbe citadas no I Concílio de Lyon, em 1245, ao lado das de Paris,
Bolonha e Oxford. A Universidade de Salamanca solicitou diversas vezes uma Faculdade de
Teologia, não a tendo obtido até sua concessão em 1396 por Bento XIII, papa de Avignon,
durante o período conhecido como Cisma do Ocidente (1378-1418). Ignasi Saranyana afirma
que Bento XIII agiu assim para ganhar o favor dos espanhóis50. Atinge o seu auge no século
XVI, por intermédio de uma série de mestres estudiosos, todos teólogos, dos quais salienta-se
Francisco de Vitoria, tido pelo membro mais importante da Escola de Salamanca, tendo ali
lecionado entre os anos de 1526 e 1546.
Saranyana levanta três questões que ainda são debatidas pela historiografia: 1) o que se
entende por Escola de Salamanca (conceito e definição); 2) quais autores de incluem nela; e 3)
quais os limites espaço-temporais que podem ser estabelecidos para a Escola de Salamanca.
Saranyana irá utilizar uma completa definição de Juan Belda Plans que julgo oportuno citar:

50 SARANYANA, Joseph Ignasi, op. cit., p. 513.


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Um movimento estritamente teológico do século XVI, que se propõe, como


objetivo primordial, a renovar e modernizar a Teologia, integrado por um
grupo amplo de três gerações de teólogos, catedráticos e professores da
Faculdade de Teologia de Salamanca, todos os quais consideram Francisco de
Vitoria como principal artífice do movimento, e seguem as trilhas de
renovação teológica abertas por ele, até princípios do século XVII.51

Digno de nota e pouco repetido pelos estudiosos da Escola de Salamanca é o fato de ela
haurir sua fama e excelência de um movimento eminentemente teológico. Fundamentação
teológica e antropologia tomista fermentadas em Salamanca e trabalhadas pelos teólogos
salmanticenses, cuja ligação com a obra de Santo Tomás de Aquino é bastante conhecida. A
maior parte dos membros de proa da Escola de Salamanca era, como o Aquinate, dominicana.
52
Segundo Saranyana, todos os catedráticos de prima foram dominicanos. As maiores
características dessa Escola foram o uso direto da Summa theologiae de São Tomás de Aquino para
as lições acadêmicas, os novos temas abordados nas pesquisas, ligados a problemas vivos e
debatidos no momento, muitas vezes girando em torno de questões de ordem política e jurídica,
e o peculiar estilo de fazer teologia.
Logo veremos que o fato de ter se destacado no campo da teologia não impediu que seus
membros tenham estudado e defendido importantes questões filosóficas sensíveis do ponto de
vista social.

5. Conclusão

Buscamos, com este estudo, mapear algumas das principais influências, no campo das
ideias jurídicas e filosóficas, da juridicidade medieval. Iniciamos por uma abordagem de linhas

51 PLANS, Juan Belda. Hacia una noción critica de la Escuela de Salamanca. ScrTh, 3, 1, 1999, pp. 367-411,
In: SARANYANA, Joseph Ignasi, op. cit., p. 513.
52 As duas cátedras principais da Faculdade de Teologia receberam o nome de cátedra de prima e cátedra de vésperas. As

lições da cátedra de prima, mais procuradas, começavam às nove da manhã (a hora de prima), ao passo que as de
vésperas às quatro da tarde (a hora de vésperas). Muitos mestres salmanticenses galgaram seus percursos universitários
iniciando como professores substitutos de algum catedrático de prima ou de vésperas; posteriormente concorriam
à cátedra de vésperas e, finalmente, à cátedra de prima. As demais Universidades maiores da coroa espanhola
espalhadas pelo mundo sob o reinado de Felipe II – Coimbra, Lovaina, Alcalá, Lima e México – imitaram em maior
ou menor grau a organização acadêmica de Salamanca. In: SARANYANA, op. cit., p. 514.
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mestras da escolástica tomista, sobretudo pela obra aristotélica. Em seguida, procuramos marcar
a influência do Corpus Iuris de Justiniano sobre o início do estudo universitário do Direito na
Europa, que se inicia com os glosadores em Bolonha. Por fim, procuramos dar realce para a
influência das ideias cristãs para a organização jurídica e política das potestades medievais, ainda
na Alta Idade Média, com o início da chamada “primeira escolástica”, portanto anterior ao
tomismo.

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