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Apresentação do problema
A distinção entre público e privado é tematizada pela primeira vez, como várias
outras categorias que estariam na base das estruturas de sentido posteriormente
adotadas no Ocidente, na Grécia antiga, em especial na Atenas democrática[6]. A
crescente modificação nas estruturas sociais e políticas do mundo grego encontrou um
ponto singular com a experiência desenvolvida na polis ateniense entre 510 e 323 a.C.,
que consagrou a prática democrática nas deliberações políticas. É com essa experiência
que se inicia a descrição da distinção público-privado.
A Grécia propiciou, como se sabe, o início de uma diferença fundamental para o
desdobramento das estruturas políticas no Ocidente: a separação entre política, governo
e religião. Destacando-se do contexto das monarquias até então hegemônicas na região
do Mediterrâneo e do Oriente Próximo (Mesopotâmia, Egito, Fenícia, povos hebreus,
Pérsia[7]), a civilização das poleis do período pós-homérico vai diferenciando cada vez
mais domínios da experiência humana que permaneciam englobados, como as noções
de política, governo e religião. Não por acaso, o primeiro direito antigo que dispensa o
critério da revelação divina para sua justificação é o direito grego. Surge a idéia de
responsabilidade política nas decisões que afetarão o destino da polis[8]. Inicia-se,
então, a tipologia das formas de governo, que encontra sua expressão clássica na obra
de Aristóteles[9].
A novidade da distinção entre política, governo e religião está representada na
abertura de um espaço para discussão e deliberação acerca dos destinos da polis. A fase
definitiva da ruptura com as formas tradicionais de exercício do poder (de que são
exemplos a monarquia, a aristocracia e a tirania) dá-se mediante a implementação, por
Clístenes, do regime democrático em Atenas, a abolição do governo dos arcontes e a
redivisão territorial das tribos[10].
E é paradoxal – para os modernos, mas de modo algum para os antigos – que
essa libertação das formas tradicionais de exercício do poder, com a implementação do
governo democrático (que era direto, e não representativo), ocorresse sob o signo da
desigualdade no plano vertical (que coexistia, portanto, com a igualdade no plano
horizontal da sociedade política). Com a experiência ateniense, consolida-se a
diferenciação por estratos, que será paradigmática em todo o mundo antigo e continuará
a inspirar a organização social nos períodos medieval e pré-moderno[11]. O que importa
notar, nessa distinção de papéis sociais, é o fato de que apenas os cidadãos – homens
adultos nascidos em Atenas, filhos de homens livres oriundos de famílias locais –
participavam da esfera deliberativa.
Já se pode antever, então, um primeiro aspecto da distinção público-
privado[12].
Na mentalidade e na vida social atenienses, o privado é a dimensão da
sobrevivência, da luta pela manutenção dos seres vivos e de suas famílias, da luta em
face da escassez[13]. Nesse plano da existência, o homem não difere muito de outras
espécies de seres vivos, que precisam recorrer à natureza para encontrar a subsistência.
A casa é o lugar em que essa contínua luta e conservação da vida e saúde se manifesta.
Daí a etimologia da expressão moderna economia (oikia + nomos, ou seja, a lei da casa).
A partir desta delimitação do privado, como se desenvolve a experiência
pública na Atenas clássica?
A materialização da vida pública ocorre por intermédio da emancipação
propiciada pelo exercício de todas as potencialidades do homem como cidadão. A ágora,
local das discussões em torno das questões fundamentais da polis, é o espaço (não
apenas no sentido físico) em que essa potencialidade poderá ser ativada. A formação
dos homens públicos ocorrerá na academia, no liceu. Os rituais públicos de deliberação
e julgamento trazem essa mesma dimensão emancipatória, reservada aos filhos
da polis: sessões da Eclésia, da Heliéia ou da Bulé[14]. Nesses contextos de discussão,
encontro e argumentação, o homem grego se vê livre das amarras (típicas da dimensão
privada) que o transformavam num ser desprovido, ao menos em parte, de sua
liberdade, e realiza aquilo que seria conhecido, no futuro, como o “ideal grego”, a
conjunção de várias formas de sociabilidade numa polis democrática[15].
Não é necessário aprofundar a reflexão em torno do alcance parcial do regime
democrático ateniense – trata-se de um lugar-comum. Apenas para registro, cabe notar
que grande parcela da população estava excluída do espaço de deliberação, e os
atenienses, em regra, eram bastante rigorosos em casos de concessão da cidadania a
estrangeiros (que eram raros)[16]. O que interessa destacar, nesta etapa da descrição, é
a clara e demarcada delimitação entre público e privado na experiência democrática
ateniense, que permaneceu irrepetida no curso da história[17].
No período histórico que se convencionou designar como Antigüidade, as duas
civilizações proeminentes – ou seja, culturas que, mesmo após o seu fim, exerceram
decisiva influência sobre o Ocidente – foram Grécia e Roma. Há evidentes pontos de
contato e circulação de idéias entre elas. Mas existem, também, diferenças marcantes.
Uma delas, como será visto, diz respeito à organização política.
O mundo romano não conheceu a experiência democrática. As tentativas de
implementação de formas hegemonicamente populares de exercício do poder político
na república romana, pelos irmãos Graco, foram severamente punidas por reações do
patriciado, que detinha o poder político no Senado e concentrava as decisões
fundamentais em suas mãos desde a quase lendária expulsão dos reis etruscos de Roma
(usualmente fixada em 509 a.C.)[18]. Do mesmo modo, é evidente a incompatibilidade
entre o regime democrático e o Império, que compreendia a centralização do poder
político e a ausência de responsabilidade do Imperador (declarado legibus solutus pelo
Senado).
Consignada essa diferença fundamental, vale ressaltar um dado, extraído da
experiência romana, que será relevante para a reconstrução da distinção público-
privado: a universalidade do Império. Ao contrário do mundo grego, fraturado em
estruturas autônomas e muitas vezes conflitantes entre si[19], a civilização romana
consegue estabelecer-se como fonte única do poder político ao incorporar novos
territórios. A conquista romana desenvolve-se sob duas grandes modalidades: nas
localidades com cultura, memória e identidade estabelecidas e institucionalizadas
(como, por exemplo, as cidades gregas, Mesopotâmia e Egito) há um processo de
recepção e absorção da herança cultural; de outra parte, no que se refere às
comunidades que, à época da dominação romana, ainda não haviam, por diversas
razões, estabelecido uma memória escrita (como, por exemplo, os celtas e os
germanos), há pura e simples anexação, com forte mobilização de prisioneiros que serão
utilizados posteriormente como escravos ou soldados[20]. Isso permitiu a construção
de um império com as condições ideais para impor seu direito a todos os confins (limes)
de seu território.
Ainda que não seja possível, neste momento, ingressar na discussão em torno
dos fatores históricos que conduziram ao lento declínio da civilização romana[21], o que
importa frisar, aqui, é a dimensão universal que acabou assumindo o direito romano.
Foi justamente esse caráter universal da experiência romana um dos aspectos que
facilitou a propagação do cristianismo na Antigüidade tardia e possibilitou a lenta e
fecunda inter-relação entre os mundos do Império e da Cristandade, combinação essa
que alicerçou (junto com a contribuição germânica) a civilização medieval.
Com efeito, a Igreja Católica é a principal herdeira da universalidade do Império
Romano. Na expressão translatio imperii, translatio studii está sintetizada a passagem
da herança clássica à Cristandade[22]. Essa universalidade permitirá que o homem
medieval encontre uma explicação global para sua presença no mundo, visão essa que
contará, desde a primeira Idade Média[23], com a mediação da Igreja Católica[24].
Na civilização do Ocidente medieval, será materializada a cosmovisão cristã num
mundo acossado pela ameaça moura (a Sul e a Oeste) e pelas pretensões bizantinas,
cada vez mais distintas da orientação da Igreja Romana, a Leste e Sudeste. Essa visão de
mundo começou a ser forjada num período de ruína do Império Romano do Ocidente e
de gradual crescimento da influência do Cristianismo (que ainda estava em busca de
identidade, em meio a heresias e perseguições).
Qual será, então, a influência do estabelecimento dessa visão de mundo
hegemônica, dessa unidade espiritual que domina o Ocidente medieval, na distinção
público-privado? Para que essa resposta possa ser coerentemente construída, é
necessário resgatar uma determinada expressão da mentalidade típica da civilização
medieval: a idéia de que a vida humana (e a conseqüente posição dos homens na
sociedade) constitui uma representação de uma divisão que tinha origem celeste. É a
teoria das três ordens, que busca justificar a existência de estratos na sociedade com
uma explicação sobrenatural[25]. Consoante expõe um texto católico do século XI, o
rebanho dos homens seria uma reprodução da divisão, ordenada por Deus, entre os bois
(aqueles que trabalham para alimentar os demais), as ovelhas (que fornecem a lã e o
conforto para o espírito) e os cães (que protegem os outros membros do grupo).
Transplantando-se essa representação para a sociedade medieval, pode-se encontrar
as três ordens: os laboratores (servos), os oratores (clérigos) e
os bellatores (cavaleiros)[26]. Trata-se, então, de uma sociedade trifuncional.
O que é interessante, nessa explicação, é a submissão da pessoa à ordem, ou
seja, a diluição da idéia de indivíduo (que ainda não existia, no sentido moderno da
expressão, no período medieval) numa camada da sociedade. Tal característica ajuda a
compreender, inclusive, a tendência tardo-medieval de organização de grupos de
artesãos em guildas, clubes, corporações de ofício. Fica explicitado, assim, o aspecto
global da experiência social na Idade Média, em que cada etapa da vida revela a
influência da visão de mundo cristã. Isso se reflete na celebração do contrato feudo-
vassálico, cerimônia religiosa que marca o juramento de fidelidade de um vassalo
(muitas vezes um cavaleiro) a seu suserano (em regra o senhor feudal). Era um momento
solene, abençoado pelo clérigo local (normalmente sobre relíquias sagradas) e com
evidentes conseqüências sociais (posição na hierarquia do domínio feudal – o vassalo
poderia reproduzir a cerimônia com subvassalos), econômicas (a destinação de parte da
produção agrícola ao senhor feudal) e militares (o juramento de fidelidade incluía a
promessa de proteção contra invasores externos)[27].
Esse quadro sofreria modificações com o final da civilização medieval, trazido
pela quebra da unidade espiritual do Ocidente (reformas religiosas que originam o
surgimento de credos e igrejas protestantes), pela revolução científica (fim do modelo
ptolomaico de cosmos e da hegemonia da física aristotélica, a partir da obra de
Copérnico, Kepler, Galileu e Newton) e pelo advento do renascimento florentino
(propositura de um novo humanismo, mediante apropriações e leituras originais da
herança clássica)[28].
Permanece, porém, mesmo com esse impulso de mudança – que se localiza entre
os anos 1500-1700 – a diferenciação por estratos, em que a noção de indivíduo não
significa o exercício do livre-arbítrio (o que só seria viável com a Modernidade
oitocentista). A figura do indivíduo, na acepção moderna, ainda não se havia
configurado. Entretanto, podem ser observadas, nas lutas políticas e religiosas que
marcam o cenário europeu nos séculos XVI e XVII, as origens da doutrina liberal que
prevaleceria após a queda do Absolutismo, ao final do século XVIII. A própria teoria
jurídica refletirá essa tendência, com o surgimento das doutrinas usualmente agrupadas
sob a denominação jusnaturalismo racional. Com a quebra da unidade espiritual do
Ocidente, era preciso deslocar para o exterior da doutrina cristã a justificação para a
vigência do direito. E isso foi possível com a modificação empreendida por vários autores
dos séculos XVI, XVII e XVIII que, com numerosas orientações metodológicas e diversas
inspirações antropológico-filosóficas, concentrarão no indivíduo o centro de suas
investigações. Começam a surgir, logo, os princípios gerais que informarão a natureza
humana, na interpretação dos vários autores da tradição racionalista. Entre esses
princípios podem ser encontrados: não causar dano a ninguém; agir de acordo com uma
ética universal (ou universalizável); dar a cada um o que é seu; respeitar os contratos e
os compromissos. Em todas as versões tratar-se-á de um direito natural secularizado,
que dispensará a explicação divina para a presença do homem no mundo e seu posterior
destino. Essa é a linha de pensamento que une, numa mesma corrente, autores como
Grócio, Hobbes, Pufendorf, Thomasius, Locke e Wolff, entre vários outros[29].
Paralelamente a essa formulação teórica dessacralizada – fruto da laicização e
do progresso da técnica e da ciência –, permanecia, contudo, a organização política
baseada na divisão social por estratos, como remanescente da experiência medieval. As
“ordens” podiam agora ser chamadas “estados”, mas a estruturação social permanecia
marcada pela distribuição desigual de poder e riqueza. As tensões nas sociedades
européias aprofundavam-se, e isso pode ser notado pelas lutas confessionais e pelo
combate ao absolutismo real. De início, a manifestação de crenças não-ortodoxas e
religiões dissidentes no panorama europeu gerou uma série de lutas e conflitos armados
que marcou, de modo traumático, a experiência social como um todo. Desde a repressão
aos huguenotes franceses até a perseguição aos protestantes (e, posteriormente, aos
católicos) na Inglaterra, passando por radicais experiências como a dos anabatistas em
algumas regiões da Europa do Norte, ter-se-á materializado uma cisão sem precedentes
na história.
Além disso, uma outra arena de conflitos – o cenário político – revelará, no século
XVII, o esgotamento da teoria política medieval. É o que se observa num decisivo
momento histórico: o confronto, na Inglaterra seiscentista, entre a monarquia Stuart
(Jaime I e Carlos I) e o Parlamento. Como se sabe, a crescente radicalização dos
seguidores do monarca e dos membros do Parlamento conduziu o país à guerra civil,
com a execução de Carlos I em 1649 e a instalação de um governo ditatorial[30]. A
posterior restauração monárquica, ainda no século XVII, foi concluída com a passagem
da soberania para o Parlamento[31].
O movimentado século XVII inglês é objeto de vasta literatura no campo
histórico[32]. Interessa aqui salientar, a partir dessa experiência histórica, a modificação
política que repercutirá no mundo do direito. Na verdade, o século XVII explicita a crise
de uma outra concepção medieval: a idéia de constituição mista.
Cabe agora dedicar algumas linhas à noção de constituição mista, tal como
desenvolvida na teoria política medieval.
Observe-se a exata descrição de Maurizio Fioravanti:
(1) a Magna Carta expedida pelo Rei João, em 1215 (e várias vezes reeditada e
confirmada, a partir de 1225) como um compromisso para atender às crescentes
reivindicações dos barões detentores da terra[35];
(2) as várias chartae libertatum que consagram algumas liberdades aos súditos do
reino ou aos habitantes da cidade, como a Carta de Afonso IX de Leão (1188), a Bula
Áurea húngara (1222), a Joyeuse Entrée de Brabante (1356) e outros privilégios
concedidos por soberanos a determinadas cidades, especialmente nas regiões hoje
correspondentes à Itália, Espanha, Sul da França e partes da Alemanha e da
Suíça[36].
Nos últimos anos dos Setecentos, a sociedade ocidental havia passado por uma
série de transformações tão significativa que a explicação da vigência do direito com
fundamento na teoria do jusnaturalismo racional começava a perder sua capacidade de
esclarecimento e persuasão. O aumento do grau de complexidade das relações sociais,
a aceleração do devir histórico (a chamada “Era das Revoluções”) e a modificação da
semântica do tempo (a Modernidade, conceito reflexivo, volta-se para um futuro em
aberto, impulsionado pela dinâmica da idéia de progresso[40]) ensejaram uma
substancial alteração na vigência do direito, com a introdução de um movimento
inteiramente novo em termos históricos – o constitucionalismo.
Duas aquisições evolutivas da sociedade manifestam-se no limiar do século
XVIII: a diferenciação funcional e o surgimento das constituições escritas. Elas estão
relacionadas entre si e, em última análise, condicionam-se reciprocamente. Convém,
então, efetuar breve descrição histórico-teórica de cada um desses elementos, a partir
da teoria luhmanniana da diferenciação dos sistemas sociais.
Por diferenciação funcional entende-se a fundamental modificação na
estruturação da sociedade que possibilitou a superação da diferenciação por estratos
(descrita no item anterior) pela organização da sociedade em sistemas funcionalmente
especializados. Parte-se, aqui, do pressuposto de que as condições de comunicação na
sociedade – compreendida como sistema global da comunicação – passaram a tematizar
a existência de problemas determinados (domínios funcionais) em cuja solução se
especializa cada subsistema. Evidentemente não é possível, nos estritos limites deste
ensaio, ingressar na discussão sobre as condições de existência, manutenção e auto-
reprodução dos sistemas sociais funcionalmente especializados[41]. O que se deve
assinalar, no presente momento, é a modificação no princípio estruturador da
sociedade: da distribuição desigual de poder e riqueza (o que pressupõe, naturalmente,
o surgimento de estruturas de hierarquia na sociedade) à especialização funcional (que
exigirá a coexistência simultânea de vários subsistemas numa sociedade descentrada).
É exatamente essa abertura para a atuação de domínios funcionais
especializados que permitirá uma radical modificação na vigência do direito. Não será
possível, a partir da diferenciação funcional, estabelecer as bases da cadeia normativa
da sociedade com fundamento em doutrinas no direito natural (seja ele de ordem
cósmica, moral, teológica ou racional-especulativa). A luta contra o Absolutismo – mote
central das Revoluções Francesa e Americana – e a busca pela tolerância política e
religiosa exigirão uma nova forma de estabelecimento e controle do poder. Essa forma
– uma invenção do final do século XVIII – consolidou-se, na imensa maioria dos países
ocidentais, por meio das constituições escritas.
Torna-se adequado, então, após fixadas as duas premissas fundamentais da
passagem para a Modernidade – diferenciação funcional e edição de constituições
escritas –, deixar registrado um primeiro aclaramento conceitual: é hora de expor (e
distinguir) as noções de constitucionalismo e constituição escrita.
Na correta síntese de Michel Rosenfeld[42], pode-se dizer que qualquer
definição aceitável da idéia de constitucionalismo terá de compreender: (1) o
estabelecimento de limites ao poder do governo; (2) a adesão ao Estado de Direito[43] e
(3) a proteção de direitos fundamentais. Trata-se, pois, de um movimento
historicamente localizável: a esse respeito, é lícito, inclusive, falar numa espécie de “pré”
ou “proto” constitucionalismo inglês, representado pela secular luta entre rei e barões
(desde o início da conquista normanda) e, posteriormente, entre rei e Parlamento
(especialmente no período da monarquia Stuart, já aludido), como uma etapa na
tentativa histórica de estipulação de limites e freios ao poder político centralizado. O
direito – no caso inglês, o common law – ocupou, em todo o processo, um papel central,
como referência para fixação de parâmetros para a atuação do soberano. Entretanto, a
concretização do movimento do constitucionalismo só foi possível no final do século
XVIII, quando apresentaram-se condições para o preenchimento dos requisitos acima
enumerados.
Isso permite que se passe à segunda parte da distinção. A forma que permitiu a
vigência das premissas do constitucionalismo foi, na expressiva maioria dos países do
Ocidente, a elaboração de constituições escritas[44], que concentraram em suas
prescrições as opções fundamentais de cada sociedade política e buscaram prever meios
e organizações para concretizar essas escolhas[45]. Os momentos de elaboração das
primeiras constituições são conhecidos: 1787 nos Estados Unidos da América e 1791 na
França. É importante mencionar, contudo, que a afirmação da supremacia das
constituições escritas – e, por conseqüência, da subordinação de todo o demais direito
às prescrições constitucionais – só foi concretizada com a decisão do caso Marbury v.
Madison, proferida em 1803 pela Suprema Corte norte-americana[46].
Esboçada, em rápidas linhas, a reconstrução histórica do surgimento do
constitucionalismo e das constituições escritas, é chegado o momento de voltar os olhos
ao tema central da presente investigação. Para que se possa resgatar as tensões,
nuances e oscilações da distinção público-privado, ter-se-á de recorrer à classificação
que compreenda, da melhor maneira possível, a complexidade das novas formas de
organização social e política. Em outras palavras: para que seja aceitável e coerente o
discurso em torno do tratamento das esferas do público e do privado da Modernidade
até a contemporaneidade, será necessário inserir a descrição nos paradigmas[47] de
Estado de Direito verificados ao longo da experiência histórica do Ocidente.
O primeiro paradigma que se identifica na experiência moderna é o do Estado
Liberal. Aqui o Estado de Direito aparece moldado pelo constitucionalismo clássico, com
enorme influência das conquistas decorrentes dos combates – típicos dos séculos XVII e
XVIII – contra a intolerância política e religiosa. Os direitos previstos nas declarações
constitucionais (exemplo: as dez primeiras emendas à Constituição norte-americana,
conhecidas como o Bill of Rights, inseridas em 1791) assumem a perspectiva liberal, no
sentido de se caracterizarem como liberdades “negativas”, verdadeiras proteções contra
o arbítrio estatal. Assim podem ser compreendidas disposições referentes à liberdade,
propriedade e igualdade. O Estado, nesse contexto, assume função regulatória,
reservando ao mercado a tarefa de promover a distribuição eqüânime de oportunidades
e benefícios[48]. Estruturas do Antigo Regime ainda permeiam aspectos relevantes da
vida social, e podem ser consideradas remanescentes da diferenciação por estratos:
assim, não há inclusão de toda população adulta nos processos eleitorais e critérios de
voto censitário se fazem presentes[49].
É nesse panorama que se pode perceber uma nítida assimetria na
relação público-privado. O domínio do privado, nesse cenário em que prevalece o
liberalismo (político e econômico), é superdimensionado. A invenção moderna da figura
do indivíduo – agora libertado das “ordens” ou “estados” que caracterizavam o Antigo
Regime[50] – permite que a forma jurídica predominante seja a do contrato, que
mantém a afirmação (mesmo que fictícia, no plano material) de igualdade entre as partes
acordantes. Como uma decorrência natural da luta contra o Absolutismo – e também
para uma justificação operativa acerca da posição de certas camadas superiores da
sociedade –, o público, inteiramente associado ao Estado (observe-se que o século XIX
é o período de afirmação da maioria dos Estados-Nação na Europa) é visto com
desconfiança, ou mesmo reserva. Daí a idéia das liberdades “negativas”, garantidas por
um governo representativo eleito periodicamente (nas condições já aludidas), o que
permite uma apropriação (ou, para alguns críticos, colonização) do público por uma
determinada parte da sociedade (que continua, como no Antigo Regime, concentrar as
oportunidades de distribuição de poder e riqueza).
É nessa quadra histórica que se inicia o interesse – ainda presente – de delimitar
a divisão entre direito público e direito privado. Numa sociedade que estabelece, de
forma explícita e propositiva, a limitação dos poderes do Estado, e que privilegia, como
observado, a distribuição “natural” de oportunidades pela própria dinâmica social, será
fundamental considerar o direito público como aquele repertório mínimo de disposições
e instrumentos referentes ao governo representativo, permanecendo uma grande
parcela do direito público regida por convenção (usos e costumes que permeiam a
prática do sistema político, procedimentos que limitam a universalização da participação
popular, formalismo cada vez mais exacerbado dos processos e organizações
estatais)[51]. O direito privado, por seu turno, radicaliza a emancipação do indivíduo,
fruto da Modernidade. O elemento central é o contrato, e são pressupostas as
potencialidades e capacidades de todo e qualquer indivíduo de firmar pactos, ser
proprietário de bens e ser regido por um sistema universal de leis gerais e abstratas[52].
Não se materializa, ainda, um direito administrativo independente, na acepção que seria
adquirida no final do século XIX. Prevalecia, na doutrina do Estado Liberal, a teoria da
irresponsabilidade do Estado[53].
Ocorre, porém, que a modificação social que culminou com as Revoluções
Francesa e Americana não representou apenas uma radical transformação no sistema
político: a laicização da sociedade propiciou, junto com a ascensão econômica da
burguesia, o nascimento de uma esfera pública independente, ancorada numa maior
liberdade de imprensa, na reorganização do planejamento urbano de várias cidades
importantes no século XVIII e na crescente possibilidade de criação de novas esferas
públicas de deliberação (como os salões, os cafés e demais lugares de sociabilidade da
cidade moderna)[54]. E esse aumento potencial nos canais de comunicação da sociedade
não é (ao menos inteiramente) controlável pelo Estado ou por certas camadas da
população.
Surgem, portanto, a partir da segunda metade do século XIX, manifestações de
conflito e revolta por parte de setores atingidos pela crescente desigualdade material na
distribuição de poder e riqueza. Esse processo é acelerado pela Revolução Industrial
inglesa, que altera substancialmente o sistema econômico e explicita determinadas
dificuldades de acesso – de enorme parcela da população – a bens de consumo e
participação política. São bastante conhecidos os fatores de passagem que marcam a
ruptura do paradigma liberal: a eclosão de movimentos revolucionários na Europa (a
partir, principalmente, de 1848), o surgimento e crescimento de doutrinas de feição
socialista ou anarquista (que tinham como ponto comum a forte rejeição ao Estado
Liberal então vigente) e a organização de setores da sociedade em novos grupos de
pressão (sujeitos coletivos de direito, como associações ou sindicatos profissionais). É
desse período que datam as primeiras manifestações, já no campo da teoria da
constituição, acerca do estrito formalismo em que vinha incorrendo o Estado Liberal.
Recorde-se, quanto a esse ponto, o discurso de Lassalle em Berlim (1863), em que
qualifica as constituições liberais como meras “folhas de papel”[55].
Diante da pressão para modificações na estrutura da sociedade, duas
alternativas principais se apresentaram: reforma ou revolução[56]. Prevaleceu, como se
sabe, na Europa Ocidental, a via reformista. A reação do Estado às revoltas e conflitos
sociais deu-se mediante uma mudança de paradigma: o surgimento do Estado
Social[57]. Passam a integrar o rol das constituições escritas, além do núcleo essencial
das cartas liberais, novos direitos (contemplando a atividade do homem como
trabalhador, como ator social numa rede de relações econômicas) e novas formas de
exercício (reconhecimento dos sujeitos coletivos de direito, novas competências
estatais)[58].
A tônica do Estado Social é a idéia de compensação devida a uma grande camada
de indivíduos diante da concentração de riqueza e poder em alguns setores da
sociedade[59]. E pertencerá ao Estado a tarefa de prover essas compensações. Disso
decorre o enorme crescimento dos órgãos e competências do Estado, que assume
funções técnicas de aprimoramento da compensação e inclusão de setores da sociedade
numa determinada rede de proteção. Naturalmente, quem propiciará essa rede é o
próprio Estado. Novas demandas de compensação e inclusão não cessam de surgir,
assim como novas organizações com funções técnicas cada vez mais especializadas no
interior do Estado. É uma estrutura circular[60].
É possível antever, nessa perspectiva, a modificação que será notada na relação
entre público e privado. Haverá, no paradigma do Estado Social, a hipertrofia do público,
que passa a ser identificado ao Estado. Na verdade, o público esgota-se no Estado, um
aparato administrativo-técnico dotado de inúmeras atribuições e com extensas
ramificações em vários setores da sociedade. Ganha enorme força, nesse contexto, a
tradicional concepção de cidadania como pertinência ao Estado[61]. O sistema político
procura qualificar-se como centro da sociedade. Invertendo-se a polaridade verificada
na práxis do Estado Liberal, a dimensão privada será vista com desconfiança no Estado
Social, identificada com o egoísmo, com a própria negativa do exercício da vida pública
(repita-se: aqui inteiramente associada ao Estado).
Altera-se, de igual modo, a distinção existente entre direito público e direito
privado. Com a premissa de materialização de direitos – reação ao exacerbado
formalismo do paradigma liberal[62] – e a conseqüente transferência para o Estado das
novas funções de inclusão e compensação, a delimitação entre direito público e privado
deixa de ser ontológica para assumir uma mera feição didático-pedagógica. A rigor,
todo direito é público no Estado Social[63]. Mantendo-se a dicotomia para fins didáticos,
convém mencionar o advento de novas formas de juridicidade e a revisão dos
fundamentos das disciplinas tradicionais. Verifica-se a tendência, em ambas as
hipóteses, de confundir os domínios – anteriormente bem delimitados – do direito
público e do direito privado[64]. O direito administrativo, como disciplina autônoma da
teoria e da dogmática jurídicas, aparece no contexto do Estado Social. O célebre
caso Blanco, ocorrido em Bordeaux no ano de 1873[65], inaugura a discussão em torno
da responsabilidade estatal e reflete a amplificação do campo de atuação estatal no
paradigma do Estado Social.
A chamada crise do Estado Social é ainda um tema central na teoria política
contemporânea. Deve-se atentar, porém, para o fato de que suas dimensões, fatores e
desdobramentos são muito mais profundos do que uma primeira análise pode
perceber. Como é notório, houve a conscientização, ao longo da década de 1970, do
crescimento do endividamento do setor público em várias economias do Ocidente, como
decorrência do enorme volume de gastos ocasionado pelas múltiplas funções da
máquina burocrático-estatal. A esse contexto somou-se a crise do petróleo,
desencadeada a partir do início dos anos setenta. Verificou-se, pois, a limitação das
propostas do Estado Social.
Entretanto, é fundamental assinalar que a crise do Estado Social não é
exclusivamente fiscal ou administrativa[66]. Ela é, antes de tudo, uma crise de déficit de
cidadania e de democracia.
A crise de cidadania decorre da carência, gradativamente percebida, de
participação efetiva do público nos processos de deliberação da sociedade política. A
identificação do público com o estatal acabou por limitar a participação política ao voto.
A isso se aduziu uma estrutura burocrática centralizada e distanciada da dinâmica vital
da sociedade[67]. A associação entre público e estatal acarretou a construção de uma
relação entre indivíduo e Estado que pode ser equiparada à relação travada entre uma
instituição prestadora de serviços (e bens) e seus clientes. Como é sabido ao menos
desde o início do século XX, o distanciamento, a impessoalidade e a hierarquização são
atributos básicos do “tipo puro” de dominação que se consolidou no Ocidente
desencantado[68].
A crise de democracia pode ser explicada, entre vários outros fatores, pela
centralidade da presença da política na sociedade. O Estado Social passou, como
exaustivamente descrito, a atrair para si a tarefa de prover compensação e inclusão. Isso
impulsionou a amplificação de suas ramificações e órgãos especializados. O problema
dessa concepção é que ela vai de encontro a uma das aquisições evolutivas fundamentais
da Modernidade (já citada acima): a diferenciação funcional. Numa sociedade
diferenciada por especialização de funções, não há o domínio de uma parcela da
sociedade sobre a outra. A sociedade moderna é uma sociedade sem centro e sem
vértice[69]. Seus domínios funcionais operam de modo independente, com códigos
próprios: os sistemas são, entre si, sistema e ambiente. Quanto maior a diferenciação
funcional, mais alto o grau de complexidade e maior o âmbito da comunicação social
que o sistema pode suportar. Assim, numa sociedade centrada na política (que tem a
função de produzir decisões coletivamente vinculantes), temas da comunicação social
funcionalmente especializados como economia e educação passam a ter sua deliberação
voltada para a política, o que pode acarretar um contexto de des-diferenciação, ou seja,
de predomínio de um dos sistemas sociais sobre os demais[70].
É com a crise do Estado Social que se viabiliza a construção – ainda em pleno
andamento – de um novo paradigma: o Estado Democrático de Direito[71]. Ele decorre
da constatação da crise do Estado Social e da emergência – a partir da complexidade das
relações sociais – de novas manifestações de direitos. Desde manifestações ligadas à
tutela do meio ambiente, até reivindicações de setores antes ausentes do processo de
debate interno (minorias raciais, grupos ligados por vínculos de gênero ou orientação
sexual), passando ainda pela crescente preocupação com lesões a direitos cuja
titularidade é de difícil determinação (os chamados interesses difusos), setores das
sociedades ocidentais, a partir do pós-guerra e especialmente da década de 1960,
passam a questionar o papel e a racionalidade do Estado-interventor[72].
A ênfase conferida ao paradigma emergente concentra-se na idéia de cidadania,
compreendida em sentido procedimental, de participação ativa[73]. Como seria de se
esperar na mudança paradigmática, os direitos consagrados nos modelos anteriores de
constitucionalismo são redimensionados[74]. Verificam-se, no interior da sociedade,
novas formas de associação: organizações não-governamentais, sociedades civis de
interesse público, redes de serviços não-verticalizadas.
A relação público-privado passa por nova transformação. Analisando-se
retrospectivamente essa dicotomia nos dois paradigmas anteriores, percebe-se que, não
obstante a oscilação de orientação entre público e privado (no Estado Liberal, o privado
superdimensionado e o público reduzido a suas funções mínimas, e no Estado Social,
uma inversão dos pólos), há uma linha de continuidade entre os dois modelos de
constitucionalismo: ambos tendem a diluir o público no estatal[75]. Ocorre, porém, que,
com a emergência dos movimentos sociais mencionados, não há mais como identificar
o público com o Estado. Na verdade, as manifestações que surgem de forma difusa em
setores da sociedade – relacionadas aos chamados “direitos de terceira geração” –
veiculam reivindicações de direitos que não podem ser atendidos (mediante
compensação) pelo Estado, que é, em grande parte das situações, responsável (por ação
ou omissão no dever fiscalizador) pelos danos que ocasionam as próprias reivindicações
(os exemplos mais evidentes concentram-se nas demandas relativas à tutela do meio
ambiente, ao direito do consumidor, à defesa do patrimônio histórico, artístico, cultural
e paisagístico e à atenção a pessoas portadoras de necessidades especiais).
De outra parte, a esfera privada aparece revalorizada[76]. Tanto é assim que a
proposta discursiva de Habermas procurará, na formulação teórica do Estado
Democrático de Direito, resgatar as pretensões de autodeterminação, autonomia e
liberdade, que estão na base de sua teoria do agir comunicativo e de sua proposta de
releitura da racionalidade construída no Ocidente[77]. E, evidentemente, a efetividade
dessas premissas depende da existência de uma esfera privada independente do poder
administrativo[78].
Observa-se, pois, que as esferas do público e privado, tratadas, tanto no
paradigma do Estado Liberal quanto no do Estado Social como
opostas[79] (modificando-se apenas a direção da “seta valorativa”), passam, num
cenário de construção do paradigma do Estado Democrático de Direito, a ser vistas como
complementares, eqüiprimordiais. E é essa mesma relação de eqüiprimordialidade que
norteará a redefinição da dicotomia direito público-direito privado. Numa sociedade
complexa, algumas distinções conceituais tornam-se fluidas e variáveis. O direito
privado passa a ter espaços – antes inteiramente preservados de qualquer disposição de
ordem normativa – regulamentados em lei. Isso se torna visível especialmente no direito
de família. E, da mesma forma, algumas das disciplinas antes classificadas como de
direito público passam a assumir uma feição cada vez mais aberta à possibilidade de
argumentação, à inserção de elementos ligados à iniciativa individual. Um exemplo
ilustrativo são as normas que autorizam transação penal ou suspensão da punibilidade
em face da admissão da prática do ilícito.
Essa modificação de enfoque se reflete com especial relevo no direito
administrativo. A redefinição do Estado não se reporta apenas ao tamanho de seu
aparato; ela também pressupõe o questionamento do forte apelo hierárquico e
verticalizante que norteia várias noções de direito administrativo desde sua
sistematização doutrinária. Figuras jurídicas clássicas como a de “discricionariedade da
Administração” ou a de “ato de império” passam a ser observadas, sob o ponto de vista
de uma crítica “radicalmente” democrática, como esferas de atuação do poder
administrativo que atuaram, por grande período de tempo, isentas de qualquer controle
ou discussão por parte da sociedade, o que pode ser interpretado como decorrência da
submissão do público ao estatal.
Vive-se imerso na intensa dinâmica do tempo histórico presente. A emancipação
de uma esfera pública independente dos comandos estatais e que viabilize a
redefinição da relação entre a dimensão privada da existência e o aspecto público da
organização social constitui o maior desafio a ser enfrentado por sociedades que se
pretendam democráticas. A sobrevivência e a renovação do constitucionalismo, como
construção social típica do mundo moderno, dependem, em grande parte, dessa relação
complementar. E o direito administrativo, como ramo do conhecimento jurídico apto a
propiciar, em seu campo de abrangência, a mediação entre esses pólos, reveste-se de
uma importância imensurável.
Trata-se, enfim, de repensar o Estado, o direito, a constituição, a sociedade. Com
os olhos voltados para a experiência presente. Encontra maior sentido e impacto, nesse
momento, a exortação de Drummond: “O presente é tão grande, não nos afastemos. O
tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”[80].
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