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A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE

Comunicação e Política
POLÍTICA

INTRODUÇÃO

A política moderna – uma construção surgida de


quatro grandes inovações.

Figura 2. A Escola de Aristóteles, por Gustav Adolph


Spangenberg

Durante a segunda metade do século XX, a


Figura 1. Cícero
democracia se tornou um regime político
denuncia Catilina, por Cesare Maccari
extremamente popular. Da mesma forma, as
O conceito contemporâneo de política, e a própria repúblicas passaram a ser uma das mais recorrentes
política moderna, tal como é praticada pela maior imagens de bom governo ou governo equilibrado. A
parte dos países atualmente, envolve quatro participação popular e as demandas do coletivo em
inovações ou quatro origens: função da política são outra característica. Essa
construção é histórica, e a contemporaneidade
política do conceito passa necessariamente por seus
A inspiração no ideal de democracia grega. reconhecimentos. Sendo assim, passamos agora a
buscar o entendimento da formação histórica da nossa
A tradição republicana clássica e moderna. ideia de política.

A instituição da representatividade. A maioria dos regimes se autoproclama democrático,


e mesmo regimes ditatoriais se apropriaram de uma
A lógica da igualdade como ideia impulsionadora da construçãoparte
do sufrágio
ou outrauniversal
da linguagem democrática como forma
de legitimar seu poder. Apesar da expansão sem
Esse conjunto de práticas, ideias e valores resultante precedentes na adoção do termo democracia para
de cada uma dessas origens produziu as inovações designar os regimes políticos, o termo passou a
institucionais que formam as nossas modernas corresponder a uma ideia popular vaga. Assim, vale a
democracias. Todas essas diferentes origens, pena começar este tema perguntando: o que significa
mescladas entre si no mundo moderno, dão forma à politicamente a palavra democracia no mundo
realidade política que vivemos. contemporâneo?

Outra dimensão de grande importância, diretamente A noção contemporânea de democracia carrega os


relacionada ao mundo das democracias modernas, é a principais elementos da linguagem e da
emergência da esfera pública, não apenas ao se institucionalidade da política moderna. Para
pensar o público, o comum, mas também a ideia de compreendermos o seu significado de modo mais
publicidade, da visão e da expressão do que é profundo e amplo, é necessário entender que essa
público. Recentemente alguns teóricos começaram a forma política é uma mistura de ideias, experiências,
pensar a poliarquia, um sistema mais igualitário ou instituições e práticas que se formaram ao longo de
com um melhor funcionamento da representatividade. mais de dois mil anos de história. Com o objetivo de
Várias garantias institucionais desse modelo estão tornar a compreensão dessa longa história mais
relacionadas ao papel da mídia, como veremos nos acessível, podemos dizer que as democracias
módulos a seguir. modernas têm quatro origens históricas, das quais
passaremos a tratar.

A DEMOCRACIA DA GRÉCIA CLÁSSICA

Há cerca de dois mil e quinhentos anos (no século V


a.C.) ocorreu uma grande transformação entre os
gregos antigos na sua forma de se organizar. Muitos
estudiosos marcaram esse importante momento, essa
mudança profunda de mentalidade como a invenção
da política. A História trata esse momento como uma
transição importante de modelos palacianos –
representados por lideranças familiares –
para modelos políticos, adotados pela interação entre
grupos aristocráticos diversos.
A demokratia ateniense não foi a única, mas é a que legitimava seu poder de forma mágico-religiosa (ou
foi recuperada mais recorrentemente, transformando- seja, a religião não exercia autoridade nem tornava o
se em um ícone ocidental e fundamento desse modelo poder legítimo). Também não era comum a todos
político. aqueles povos antigos que conhecemos por gregos,
mas tornou-se o modo particular de governo de uma
cidade independente chamada Atenas. Sobre a
Este ponto é muito importante: o passado não é democracia ateniense, é importante sabermos que:
uma reminiscência, algo que fica e nos marca por
ser muito importante no passado, mas sim um
discurso, uma constante reinvenção. O número de participantes era muito restrito: tratava-se de uma cidade muito m

Portanto, o que foi vivido nas póleis da sociedade Apenas homens adultos e livres eram considerados cidadãos, a democracia a
grega clássica é importante não pelo que aconteceu, considerados cidadãos (filhos de mães atenienses com estrangeiros não contav
mas por ter sido considerado um evento muito
emblemático e repetido por muitas sociedades ao A participação dos cidadãos nos assuntos públicos e nos cargos políticos exis
longo da história. Podemos afirmar que a ideia de como era o caso de Atenas nos tempos da antiguidade clássica.
Ocidente passa pela admiração e reinvenção daquilo
que aconteceu na Grécia. Leve essa informação com É importante destacarmos estas três características da
você para fazer todo o trajeto histórico sobre política. democracia grega para compreendermos o quanto ela
se distingue das atuais democracias:

Era restritiva quanto ao direito de cidadania, que era concedido apenas a hom

Era restrita ao pequeno território de uma cidade (ao contrário das democracia

Era restrita a interesses homogêneos, os cidadãos tinham interesses, objetivo


Figura 3. Heitor adverte ou seja, das diferenças de interesses, objetivos e mentalidades).
Páris por sua suavidade e exorta-o a ir à guerra, por
Podemos dizer que a democracia ateniense era
Johann Heinrich Wilhelm Tischbein
uma democracia restritiva se comparada às
O que ocorreu nesse período foi a invenção de uma democracias modernas. Essa característica foi
forma de governo que até então era incomum. responsável por sua breve existência: essa experiência
Predominavam governos compostos por reis ou durou menos de duzentos anos, e os atenienses foram
famílias, que muitas vezes se comparavam a deuses dominados e absorvidos por povos que possuíam
(como no caso do Egito Antigo) ou acreditavam ter formas de organização política que agregavam
origens divinas, ou por tiranos (indivíduos que populações maiores e governavam territórios mais
governavam segundo sua vontade, sem nenhuma amplos.
restrição) e aristocratas (conselheiros de chefes
guerreiros).
A TRADIÇÃO REPUBLICANA

No século V a.C., os gregos inventaram uma nova


De todas as fontes de origem dos ideais, valores,
forma de organizar o poder: a maioria dos homens
princípios e instituições que inspiram nossas
livres e adultos podia decidir os assuntos mais
democracias modernas, a mais longa, diversificada e
relevantes de sua comunidade e escolher aqueles que
rica é, sem dúvida, a tradição do pensamento
exerceriam cargos importantes na direção da cidade-
republicano. Rica em experiências, formas
estado. A essa forma de organização política deu-se o
institucionais e elaboração jurídico-filosófica, é uma
nome de “democracia”, que em grego significa
tradição que surge no auge da antiguidade clássica e
“governo do povo” ou “governo popular”.
reaparece com força na Europa da Idade Moderna.

Figura 4. O Parthenon, na
Acrópole de Atenas

A democracia era baseada em duas importantes ideias


que possuem forte influência até os dias atuais:
a isegoria (o direito igual de fala para todos os
cidadãos nos debates sobre os assuntos políticos) e
a isonomia (igualdade de todos os cidadãos perante a
lei – ideal que ainda encontra eco nos Estados
democráticos de direito modernos). É elemento
importante o fato de que esse modo de governo não
Fig
ura 6. Origem da República Romana, por Casto
Plasencia

Historicamente, a tradição republicana se “encarnou”


na República Romana (entre os séculos VI e I a.C.),
nas cidades-estados renascentistas de Veneza e
Florença (entre os séculos X e XVIII) e na Inglaterra
Figura 5. Alto-relevo de Políbio e nos Estados Unidos (séculos XVII e XVIII).
no Museu da Civilização Romana Institucionalmente, sua grande inspiração foram as
instituições da República romana clássica que
Apesar de ter seus primeiros vestígios no seio da ilustram também a ideia de governo misto: o poder
cultura grega clássica, podendo ser vinculada à crítica popular tinha espaço através da magistratura dos
democrática, à teoria das formas de governo do tribunos da plebe, os aristocratas exerciam funções no
filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.) e à ideia de Senado, a função monárquica do governo era
governo misto do historiador grego Políbio (200-120 exercida pelos cônsules.
a.C.), a tradição republicana não deve suas origens à
democracia grega. Filosoficamente, a concepção
polibiana de governo misto ilustra bem as formas Desse modo, o povo e os aristocratas participavam do
institucionais e as relações de governo da maior parte governo, e estavam amalgamadas as três formas
das experiências clássicas do republicanismo: a clássicas de governo: a democracia (representada
necessidade de representar todas as formas clássicas pelos tribunos da plebe), a aristocracia (representada
de governo em uma só para produzir um governo de pelo Senado) e a monarquia (representada pelos
grande estabilidade e ordem. cônsules). Tanto a cidade renascentista de Florença
como a cidade de Veneza (recordada por ter mantido
um regime republicano que durou centenas de anos)
De maneira simplificada, é como se o governo misto tinham instituições semelhantes e foram referências
juntasse a democracia (governo do povo), a de governos mistos para os pensadores republicanos
aristocracia (governo dos melhores) e a monarquia modernos.
(governo de um rei) numa mesma forma de governo.
Em tese, isso eliminaria os defeitos e as instabilidades
de cada uma das formas descritas, seus riscos de Essa breve exposição da tradição republicana e da
degeneração e desequilíbrio, produzindo uma forma noção de governos mistos pode lembrar bastante as
de governo estável, equilibrada e ordenada. democracias modernas – sobretudo aquelas que são
repúblicas federativas presidencialistas – como é o
caso do Brasil e dos Estados Unidos da América. Mas
Saiba mais é importante notar três grandes diferenças entre a
Para termos uma ideia clara do que significa essa história e as ideias da tradição republicana e a vida
tradição, precisamos atentar que nos notórios política das democracias contemporâneas:
movimentos intelectuais da modernidade –
Renascimento e Iluminismo – as teorias filosóficas
sobre a República – gregas e romanas – foram relidas As repúblicas de governos mistos tinham que lidar com dois grupos de int
e influenciaram toda a imensa corrente de filósofos complexa.
políticos que enriqueceram a tradição republicana nos
tempos modernos: Nicolau Maquiavel (1469-1527), Os governos mistos tinham cargos que eram populares e aristocráticos, ocupa
John Locke (1632-1704), Jean-Jacques Rousseau O Senado era reservado somente aos aristocratas nascidos de famílias antigas
(1712-1778), Montesquieu (1689-1755) e Immanuel
Kant (1724-1804), por exemplo. Também inspiraram A participação pública, por meio de cargos e magistraturas importantes, era
pensadores políticos e homens de Estado que tiveram
romano nascido em Roma de famílias romanas, o mesmo ocorria em Florença
fundamental importância na gestação dos
republicanismos constitucionais inglês e americano Podemos dizer que as democracias contemporâneas
entre os séculos XVII e XVIII, como o inglês John são mais democráticas que as repúblicas antigas e
Harrington (1561-1612) e federalistas estadunidenses, modernas. Além disso, elas possuem uma
como Alexander Hamilton (1755-1804), John Jay institucionalidade capaz de representar muito mais
(1745-1829) e James Madison (1751-1836). que apenas dois interesses opostos
(povo versus aristocracia). Mas o que queremos dizer
aqui com representação de interesses? Trataremos
disso a seguir ao abordarmos a terceira fonte de
origem das democracias contemporâneas.
O GOVERNO REPRESENTATIVO comerciantes e negociantes prósperos passou a ter a
capacidade de proteger seus próprios interesses. Mas
isso se resumia apenas aos prósperos comerciantes e
No taxation without representation! homens de negócio da grande cidade de Londres, não
a todos aqueles que viviam sob o governo da recém-
Essa sentença – traduzida para o português como:
criada monarquia parlamentar inglesa.
“Não pagaremos impostos se não tivermos
representação!” – foi o slogan de uma das mais
importantes revoluções dos tempos modernos: a Assim, eram poucos os que, sob o domínio do
Revolução Americana (1776-1783). governo londrino, tinham meios de defender seus
interesses: sendo que aqueles que viviam nas
longínquas colônias do nordeste da América do Norte
O que nos interessa aqui não são propriamente os
sequer tinham suas vozes ouvidas no recém-criado
acontecimentos, cenários e personagens dessa
Parlamento de Londres.
história, mas a invenção do governo representativo.
Ao falarmos da democracia grega e da tradição
republicana, observamos como suas origens e práticas O Parlamento inglês aberto aos “comuns” foi produto
históricas tiveram a limitação de serem localizadas de um intenso conflito ocorrido na Inglaterra do
em territórios muito pequenos: centralizados em século XVII, marcado por uma guerra civil – a
apenas uma cidade (Atenas, a cidade de Roma, Revolução Inglesa (1640-1651) –, uma ditadura – o
Florença, Veneza etc.). período do Protetorado (1653-1659) – e uma ampla
conciliação entre os grupos em conflito durante a
Revolução Gloriosa (1688-1689). Esta última é
chamada assim por ter transformado as instituições
políticas sem guerra ou conflito sangrento: esse
acordo entre as partes, que fez cessar o conflito, deu
origem ao Parlamento e à Constituição moderna da
Figura 7. Washington Inglaterra.
atravessando o Delaware, por Emanuel Leutze

Mesmo na Inglaterra, com a invenção de um Durante o período de 1640 a 1689, as longínquas


Parlamento (dividido a princípio em Câmara dos colônias do nordeste da América do Norte se viram
Lordes – ocupada pelos aristocratas – e a Câmara dos esquecidas por seus governantes, absorvidos nos
Comuns – ocupada por aqueles que não tinham conflitos mencionados. Elas edificaram uma vida
origem familiar na nobreza britânica), a participação bastante próspera e mais igualitária entre homens e
era reduzida apenas aos habitantes da grande cidade mulheres brancos do que a realidade europeia do
que era Londres no século XVII. Desse modo, não outro lado do Oceano Atlântico (não tão igualitária:
eram todos aqueles que viviam sob o governo lembremo-nos de que em alguns lugares dessas
londrino – o governo inglês da época – que podiam colônias, mas não em todos, existia a brutal
participar das grandes decisões tomadas no escravidão negra – como houve no Brasil, na mesma
Parlamento. Muitas dessas decisões eram relativas época).
aos impostos cobrados, aos preços das mercadorias
etc. E com o advento da Câmara dos Comuns, muitos Não era um mundo perfeito, mas havia mais
negociadores, investidores e comerciantes (que não prosperidade – e menos luxo – do que na Europa da
vinham de famílias nobres) passaram a tomar parte época, apesar das grandes desigualdades existentes.
nessas decisões econômicas que os afetavam. Durante essas décadas de abandono relativo dos
assuntos coloniais por parte dos interesses britânicos,
os colonos do norte da América puderam se
autogovernar com um nível de autonomia muito
grande para a época.

Com o fim dos conflitos ingleses, o governo britânico


começou a reorganizar seus interesses nas suas
colônias do outro lado do Atlântico mediante
taxações e outras intervenções nos assuntos das
colônias. Entretanto, seriam as taxações diretas sobre
mercadorias como o chá (Lei do Chá, de 1773), o
açúcar (Lei do Açúcar, de 1764) e sobre documentos
Figura
impressos (Lei do Selo, de 1775), que taxava em
8. William Pitt discursando na Câmara dos Comuns moeda britânica revistas, jornais, documentos oficiais
sobre a eclosão da guerra com a Áustria, por Karl e outros materiais impressos pelos colonos
Anton Hicke americanos, que inflamariam o ânimo dos colonos.
Antes da invenção da Câmara dos Comuns, era
corriqueiro que a realeza e os nobres aumentassem os
impostos sobre esses grupos mercantis e de
negociadores para seus próprios fins. Ao tomarem
parte nas decisões públicas, essa nova classe de
republicana europeia, ela padecia de grandes
limitações quando comparada às nossas democracias
modernas por três motivos centrais:

Figura 9. Festa do Chá de Tratava-se de uma lógica de representação restritiva, pois apenas homens bran
Boston, de autor desconhecido por estipular critérios que restringem o nível de participação política das popu
Tais taxações – entre outras – eram consideradas
Os votos eram por distritos e não por pessoa. A lógica de que cada pessoa cor
abusivas para os colonos da América do Norte, que
viam isso como uma situação injusta por não terem
seus interesses representados no Parlamento A lógica do voto censitário não permitia que negros e mulheres votassem. Ele
britânico. Daí o slogan da Revolução Americana ter
Ao longo dos séculos, a representação e o direito ao
sido “No taxation without representation” – ou seja,
voto nos EUA foram ampliados em um longo
tratava-se inicialmente de uma exigência por
processo de conflitos e pressões por grupos diferentes
representação no Parlamento britânico em função das
da sociedade civil. Mas foi apenas em 1965 que
taxações serem vistas como ilegítimas na ausência de
o direito ao voto universal (aberto a todos e sem
uma representação colonial.
nenhuma restrição) foi adotado nos Estados Unidos.

Podemos dizer, como frisamos anteriormente, que as


desigualdades existentes nos Estados Unidos na
época da fundação de seu sistema de governo
representativo restringiam bastante as suas
inovadoras práticas de representação. A relação entre
interesse e representação era demasiado restritiva.
Essas restrições relativas à igualdade de todos os
cidadãos no exercício da cidadania, do direito de voto
e de, portanto, ter seus interesses representados na
esfera dos assuntos políticos e no governo nos levam
à quarta origem das democracias contemporâneas: a
lógica da igualdade.
Fig
ura 10. Assinatura da Constituição dos Estados
Unidos, por Howard Chandler Christy A LÓGICA DA IGUALDADE

O desenvolvimento desse conflito culminou com a


Tal como as três origens distintas das democracias
Independência Americana. Contudo, a demanda por
modernas que abordamos anteriormente, a lógica da
representação por parte dos colonos americanos foi
igualdade tem sua própria história e não se vincula
uma experiência que os influenciou a produzir uma
àquela da tradição democrática grega, nem da
forma de governo que levasse em conta a
tradição republicana e nem da invenção da
representação como um fator de grande importância.
representação. Suas origens são modernas e podem
Desde a convenção que deu origem à Constituição
ser reconduzidas ao humanismo e aos movimentos
americana (1787) até o modo como foi configurado o
puritanos do século XVI que ressignificaram todo
governo pós-independência, a representação teve um
um conjunto de ideias religiosas.
papel central e extremamente inovador na história da
política moderna. A prática moderna de populações
elegerem representantes que agem como mediadores O humanismo clássico teve o papel de trazer para a
de seus interesses na condução dos assuntos públicos, cultura europeia do século XVI o homem para o
em um país de grandes proporções (a princípio centro dos debates da época, relegando as discussões
apenas nas treze colônias originais), foi uma teológicas para um segundo plano, como afirma
contribuição legada ao mundo moderno pelos Skinner (1996). Foi do seio do humanismo clássico
nascentes Estados Unidos da América. que surgiram as discussões filosóficas sobre
tolerância religiosa e da dignidade humana como
valor civilizacional de importância.
Outro elemento importante oriundo da experiência
política estadunidense desse período foi
a subordinação do poder militar à autoridade
presidencial eleita e de natureza civil, aspecto que
ganharia bastante importância em todas as
democracias constitucionais modernas. Porém,
devemos lembrar que a representação por voto nos
Estados Unidos era bastante limitada em suas
origens. Figura 11. Retrato de Erasmus de
Roterdã, o “príncipe dos humanistas”, por Quentin
Matsys
Apesar da representação americana ter sido,
historicamente, um elemento inovador nas práticas de
governo e um diferencial com relação à tradição
Já o puritanismo teve um papel fundamental nos ideias de igualdade tiveram histórias e crenças com
movimentos religiosos e políticos do século XVII ao fontes distintas, com bases sociais e movimentos
trazer para a linguagem político-religiosa da época a diferentes e ocorreram em cada país moderno em
ideia de igualdade dos homens perante Deus. As épocas diversas. Essa lógica da igualdade formou o
ideias religiosas de igualdade entre os homens que chamamos de sufrágio universal, que é a última
pregadas pelos puritanos tiveram bastante impacto na característica das democracias modernas abordadas
Inglaterra e nos Estados Unidos e influenciaram aqui.
muitos movimentos políticos entre os séculos XVII e
XVIII.
Atenção
A História não é feita de pilares sólidos sobre o que
Mas uma outra corrente filosófica teve uma foi construído no tempo, mas sim no discurso, na
influência mais radical nesse processo de defesa da construção idealizada. A política contemporânea bebe
igualdade entre os homens: o Iluminismo. nessa relação que foi apresentada, não como pilares
Movimento intelectual de grande abrangência na duros, basilares, e sim na invenção e reinvenção, na
Europa (Inglaterra, Países Baixos, Itália, Alemanha e, construção do valor de cada um desses discursos que
principalmente, França), o Iluminismo trazia em sua constroem uma legitimidade do discurso político.
bagagem uma forte crítica ao Antigo Regime, ao
clero e ao obscurantismo, forças que submetiam a
maioria dos homens ao poder de poucos: os VERIFICANDO O APRENDIZADO
aristocratas e o clero.

1. Política contemporânea é uma ideia herdeira


conceitual de importantes processos históricos. A
afirmativa que faz a relação correta é:

Figura 12. Prisão do Palácio das Tulherias, por Jean


Duplessis-Bertaux
A Grécia Clássica – ateniense – inaugura a ideia de
Na França, as ideias dos filósofos iluministas democracia representativa, em que todos os cidadãos
(principalmente de Jean-Jacques Rousseau – crítico tinham direito à voz.
feroz das desigualdades, tal como podemos ver em
sua obra Discurso sobre a desigualdade entre os
homens) inspiraram os revolucionários de 1789 e,
principalmente, a ala mais radical (os jacobinos) a
derrubar o regime monárquico existente. O lema da República é um fenômeno especialmente romano e
Revolução Francesa (1789-1799), “Igualdade, com base em seus preceitos foi difundido no
Fraternidade e Liberdade”, tinha como inspiração o Ocidente.
iluminismo francês.

A crença iluminista e religiosa da igualdade entre os


homens foi uma ideia bastante radical na época, mas A noção contemporânea de política baseia-se em dois
teve, num primeiro momento, sua realidade limitada pilares históricos fundamentais: república e
aos homens proprietários frente aos aristocratas que democracia. Esses pilares são historicamente
perdiam seus direitos de nascença. construídos e reafirmados ao longo do tempo.

Apesar dos direitos políticos e da cidadania terem se


expandido com as revoluções dos fins do século
XVIII e início do século XIX, eles ainda excluíam os A tradição iluminista inaugura princípios de
pobres, as mulheres e, nas Américas, outras etnias, liberdade, igualdade e fraternidade, sendo o mais
como negros e indígenas. importante na relação política do século XX.

Seriam os movimentos sufragistas do século XIX que Comentário


expandiriam o voto e os direitos de cidadania às
mulheres e, posteriormente, no século XX, sob a Parabéns! A alternativa "C" está correta.
rubrica dos direitos humanos universais, a lógica da
igualdade se expandiria a outros povos e etnias. Essas
participação nos assuntos públicos serem privilégio
de uns poucos que podiam adentrar espaços bem
delimitados.
O princípio contemporâneo da política é entendido
como a junção de conjuntos históricos e filosóficos. Esses espaços foram se tornando mais abertos àqueles
Destaca-se, nesse processo, a tradição discursiva, sem privilégios de nascença, mais “públicos”. A
adaptada, reformulada, mas recorrente de que os participação física em espaços públicos foi uma
conceitos atuais são tributários dos conceitos de grande limitação da experiência republicana ao longo
democracia e república. da história, sendo o alargamento da participação
política ligado, nos últimos duzentos anos, a um
fenômeno singular que trataremos aqui – a gênese da
esfera pública.

Esfera pública não é o mesmo que espaço público.


Usaremos uma definição de esfera pública que nos
2. Ao identificarmos a tradição iluminista ajudará a perceber essa diferença:
relacionada à política, precisamos falar em:
Arena da discussão e do debate público nas
sociedades modernas, podendo ser espaços formais e
informais.
(GIDDENS, SUTTON, 2017)

Liberdade, igualdade e fraternidade. A definição nos chama a atenção para um ponto: a


esfera pública surgiu com a emergência da sociedade
moderna – ou seja, não existia antes do século XVI.
Isso não quer dizer que ela surge exatamente aí; pelo
contrário, ela se desenvolveu nesses últimos quatro
Democracia e república.
séculos até adquirir as características que atualmente
podemos destacar. Para compreendermos melhor,
analisaremos o principal fator relacionado aos seus
primeiros desenvolvimentos: o surgimento de um
público leitor.
A lógica da igualdade.

NEWSLETTERS, SALÕES, CAFÉS E


FILÓSOFOS: A EMERGÊNCIA DA ESFERA
A representatividade democrática. PÚBLICA CLÁSSICA

Comentário O surgimento da esfera pública é singular na história


e tal fenômeno se desenvolveu apenas nos últimos
Parabéns! A alternativa "C" está correta.
quatro séculos. Tem correlação com uma série de
invenções técnicas: da tipografia de Gutenberg às
novas embarcações que permitiram viagens e
comércio pelas regiões “descobertas” do século XVI
em diante. Porém, o mais importante disso tudo não
Apesar do valor dado ao lema da Revolução foram as invenções tecnológicas apenas, e sim a
Francesa, o Iluminismo, como movimento intelectual, profunda transformação ocorrida com o surgimento
debatia sobre aspectos diversos da sociedade e entre de um público leitor.
os conceitos em que se ancoravam e discutiam a
igualdade como uma operação intelectual lógica, O que significa a expressão público leitor?
como fundamento político – para várias direções do
movimento – tornando-se a base. Um público leitor é uma grande população de leitores
– seja de que gênero de texto for. Vivemos em um
mundo onde nunca houve um público leitor tão
A GÊNESE DA ESFERA PÚBLICA amplo: ideias, informações, sentimentos, percepções,
notícias e acontecimentos circulam de forma escrita,
Quando nos debruçamos sobre as quatro origens da podendo ser lidos por massas cada vez maiores de
política e das democracias modernas, vimos que a pessoas de um modo inimaginável nos últimos
participação política na experiência da democracia séculos. Esse público discute, comenta e escreve
grega na antiguidade e das repúblicas clássicas era também, expressando-se de modo a conferir ainda
limitada apenas a uma vida em certas cidades mais dinamismo a esse movimento de circulação.
centrais. Isso ocorria em função de as decisões e a
NEWSLETTERS E PRAÇAS DE COMÉRCIO

As primeiras circulações de periódicos estiveram


profundamente ligadas à ampliação das atividades
mercantis entre a Europa e outros continentes, aos
interesses dos mercadores e às bolsas de valores
primitivas que surgiram nas grandes cidades
Fonte: europeias.
bbernard/Shutterstock.

Mas sempre existiu essa grande massa de leitores? Essa necessidade de circulação de notícias estava
associada inicialmente à demanda de informação dos
grupos de comerciantes e investidores do comércio
ultramarino surgida em meados do século XVII. De
acordo com Brigs e Burke (2006), nos primeiros
jornais desse gênero – surgidos em Amsterdã –, já
havia críticas à Igreja e ao governo.

Atenção
Não existem leitores somente físicos. O espaço das
praças de comércio era o local da reunião de muitos
leitores de “ouvido”, leitores que multiplicavam a
troca dos conhecimentos e, ainda que multiplicassem
as informações a partir da força de um senso comum
recorrente, faziam a cultura letrada circular. O termo
Fonte: em inglês – clássico entre os estudiosos de
Dayna More/Shutterstock. comunicação – fundamenta-se na tradição das cartas
medievais. Cartas que uma vez recebidas eram lidas
A resposta a essa pergunta é um absoluto não! de forma pública. Então, quando a prensa, os jornais,
os livretos começam a circular, não é possível
Durante a maior parte da história, apenas uma imaginar a multiplicação automática de letrados, mas
minúscula parcela de pessoas dominava a técnica de sim uma multiplicação efetiva de leitores – em todas
ler e escrever: somente uma limitada aristocracia as suas formas.
governante e seus funcionários (escribas, secretários
etc.) era alfabetizada. A maior parte das pessoas era
A ESFERA LITERÁRIA
iletrada e ignorava qualquer forma de conhecimento
formal como compreendemos atualmente.
O surgimento de gêneros literários novos como o
romance de sentimentos (como A Nova Heloísa, de
Essa situação só começou a se modificar no século
Jean-Jacques Rousseau) e o romance de formação
XVI e com o advento do protestantismo no século
(como Os anos de aprendizado do Jovem Wilhelm
XVII. Ainda assim, as tipografias, recém-inventadas
Meister, de Johann Wolfgang Goethe), de ampla
por Gutenberg, imprimiam sobretudo Bíblias – não
circulação no século XVIII entre a população letrada,
jornais, livros e revistas. E mesmo com essa restrição,
estimulou novas formas de identificação entre os
a Reforma Protestante foi um poderoso agente
leitores.
alfabetizador: como acreditavam que todos os
homens eram dotados de uma luz natural e, por isso,
capazes de acessar a palavra divina dos Testamentos,
tratou-se de alfabetizar as massas conforme o
protestantismo se disseminava.

Mas não foi exclusivamente o protestantismo que


criou o público leitor moderno, precondição para a
formação da esfera pública moderna. Esse fenômeno
esteve ligado também a outros fatores, como a
criação de novas formas, gêneros e modos de leitura.
E as discussões ao redor desses escritos, promovidas
em diferentes espaços (formais e informais),
desempenharam um papel de grande importância na
formação da esfera pública. Abordaremos a seguir
diferentes aspectos desse fenômeno, que juntos deram
origem à esfera pública.
de Sade (1740-1814) – multiplicavam-se e faziam
crescer o interesse pela leitura.

AS IDEIAS FILOSÓFICAS E POLÍTICAS –


CLUBES, CAFÉS E SALÕES

Figura 16. No salão de Madame Geoffrin, por Anicet


Charles Gabriel Lemonnier

A ampla circulação de livros entre os grupos letrados


da Europa moderna, principalmente no século XVIII,
deu origem a espaços informais de discussão e
associações que se expandiriam para além da lógica
dos salões literários: as discussões ao redor de
tratados filosóficos e políticos (gênero filosófico
propriamente moderno) e de troca de opiniões sobre
Figura 15. Edição de 1795 de Os Anos de os acontecimentos fermentaram com grande força em
Aprendizado de Wilhelm Meister, de Johann países como a Inglaterra e a França.
Wolfgang von Goethe
Na Inglaterra, alguns dos primeiros jornais ingleses,
Por se identificarem com os personagens, os leitores
como o Spectator, que começou a ser publicado em
sentiam empatia por eles para além da língua, classe
1711, tinha como objetivo explícito trazer a Filosofia
social, sexo e país. Também foram importantes no
para fora das instituições acadêmicas a fim de ser
sentido de formarem uma ideia geral e compartilhada
tratada em clubes, assembleias, mesas de chá e cafés.
de que as pessoas eram semelhantes em função de
O caso da França também é emblemático quanto a
seus sentimentos íntimos, estimulando bastante uma
esse fenômeno – sendo o iluminismo francês
noção sentimental de um senso de igualdade no
extremamente importante para sua compreensão.
público leitor de romances.

A Luz da Razão, – palavra-chave da época, utilizada


Entre os séculos XVII e XVIII, foi extremamente
para se opor à tradição, à fé, à superstição e ao
comum a formação de círculos literários nos salões
preconceito – associada à noção de crítica (utilizada
das casas de senhoras abastadas, que reuniam
como forma de problematizar os excessos e abusos
pessoas em discussões sobre esses livros e
dos governos monárquicos e da Igreja católica
promoviam debates e reflexões que abarcavam a
francesa), teve um papel fundamental na criação da
vida cotidiana, a realidade sentimental e a noção
linguagem que formaria a ideia de público na França
de igualdade produzida pela leitura desses
da época.
escritos.

Mais uma vez, devemos notar a maturação de longos Eles se consideravam homens de letras e são vistos
processos históricos que se reproduzem na construção por muitos como os primórdios do intelectual público
dessa esfera literária. Era comum, nas cortes e depois moderno, no sentido de serem os primeiros
nas ruas, a reunião para ouvir os contadores de intelectuais independentes de patronos e por terem
história. São famosos na literatura das tabernas e sido agentes engajados em promover um debate
guardavam de cabeça as histórias rimadas e as amplo sobre os assuntos públicos referente aos
multiplicavam. O mundo dos séculos XVIII e XIX regimes sob os quais viviam. Difundiram suas ideias
era cada vez mais urbano, mais cheio de gente e na França e fora dela para homens e mulheres, apesar
informação, porém, as heranças ficaram. Agora eram de terem pouca intenção de atingir o povo.
os leitores públicos, os leitores de jornais, os jovens
e tropeçadores leitores. No Brasil, livros famosos
saíam em capítulos em séries de jornal; na França,
alguns livretos muito picantes – como o de Marquês
Figura 18. A Liberdade guiando o povo, por Eugène
Delacroix
Fig
ura 17. François-Marie Arouet de Voltaire, por Já os acontecimentos políticos ganhariam destaque
Nicolas de Largillière com os eventos efervescentes da Revolução Francesa:
pelo menos 250 jornais foram fundados nos últimos
As monarquias e os governos da época impunham seis meses do ano de 1789 na França. O ambiente
uma forte censura aos escritos filosóficos (esta era político tumultuado do fim do século XVIII e da
menor na Inglaterra porque, após o período maior parte do século XIX (marcado por guerras,
revolucionário de 1640 a 1688, criou-se um ambiente revoluções e movimentos populares de todo tipo) não
de maior tolerância e ampliação dos debates acerca somente estimulou os jornais a tratar os
dos assuntos de governo em função da criação do acontecimentos políticos, mas também uma cultura
Parlamento), uma vez que estes eram considerados de panfletos de associações e movimentos sociais dos
subversivos, ou seja, afetavam a ordem estabelecida mais diversos: operários, sufragistas (defensores da
por promoverem a agitação e o descontentamento. ampliação do direito de voto) etc.

Esse fator fez com que a discussão sobre esses Todos esses fatores foram fundamentais para
escritos e ideias permanecesse fora dos ambientes emergência do que chamamos de esfera pública.
formais, tornando extremamente importante a cultura Apesar de seu desenvolvimento ter sido iniciado em
oral dos cafés, clubes, associações e salões (encontros ambientes informais (cafés, salões, clubes e
organizados por senhoras aristocráticas para associações) em função da censura dos governos
promover debates com intelectuais). Além disso, a monárquicos da época, o período de revoluções
censura estimulava uma circulação extremamente (Revolução Inglesa, Revolução Americana,
importante de correspondência privada entre Revolução Francesa e as Revoluções de 1830 e 1848)
intelectuais de diferentes nações da Europa, o que foi foi transformando a realidade política mais
um poderoso fator de circulação das ideias políticas centralizada, fechada e aristocrática em formas
da época. políticas, republicanas e democráticas mais abertas.
Assim, houve a ampliação da esfera de debates,
opinião e discussão sobre os assuntos políticos,
OS PRIMEIROS JORNAIS sociais e culturais, formando, portanto, as bases da
esfera pública moderna.
Muitos dos primeiros jornais, mais parecidos com o
que chamamos por esse nome atualmente, surgiram Os debates que eram reservados apenas às discussões
no século XVIII e eram derivados dessa efervescente orais em ambientes informais ampliaram sua
cultura dos cafés, salões e clubes surgida em meados circulação por meio de jornais, revistas e periódicos
do século XVII. A princípio, não eram grandes de todos os tipos, podendo ser acessados por um
veículos de discussões políticas diretas, tratavam de grande público e discutidos nos mais diversos
manifestações artísticas (peças de teatro, literatura), espaços sociais. Essa esfera, abstrata por ser
publicavam contos, retratavam acontecimentos da discursiva (independente do meio pela qual se
vida cotidiana europeia, curiosidades etc. propaga) e se situando no espaço onde discussões e
debates ocorrem (formais ou informais), é o que
chamamos de esfera pública – sendo que a sua
O conteúdo dessas manifestações pode parecer um formação teve uma imensa influência e importância
tanto trivial, contudo, seus editores demandavam de para o desenvolvimento das democracias como as
seus leitores uma ampla participação: pedindo que conhecemos atualmente.
cartas com opiniões sobre todos esses assuntos
fossem enviadas, sendo a maioria publicada. Isso
estimulava uma cultura de troca de opiniões, um No século XIX, a esfera pública se opõe à esfera
ambiente cultural de debate diversificado e fazia com íntima, espaço da intimidade e da privacidade, ou
que os jornais tivessem uma função de fóruns de seja, a dimensão das relações íntimas, da família, dos
discussão. sentimentos pessoais. Por muitas décadas tratava-se
de duas esferas distintas e rigidamente separadas.
Atualmente, poderíamos dizer que as fronteiras entre como em um fórum para o debate público. Esse
elas se tornaram muito mais difusas. Além disso, com período inicial de desenvolvimento da esfera pública
a multiplicação de novas mídias para além do texto é chamado por Habermas de esfera pública
impresso em função da multiplicação de novas burguesa.
tecnologias comunicacionais no século XX (primeiro
o rádio, depois a televisão, e no final do século XX a
internet), pode-se dizer que emergiram novas arenas Entretanto, em sua perspectiva, essa promessa inicial
constituintes da esfera pública. de desenvolvimento da esfera pública não se
cumpriu: a emergência da mídia comercial, com uma
linguagem de massa e baseada no entretenimento,
teria feito a esfera pública definhar gradualmente.

Pela mídia comercial ser prisioneira da renda das


propagandas e dos índices de audiência, haveria
uma deformação de toda a possibilidade de
formação de um debate público racional e aberto,
sendo que a manipulação e o controle da audiência
com fins de audiência por meio do entretenimento
também começam a surgir.

Assim, a esfera pública deixa de ser uma arena de


Fonte: debates e torna-se uma esfera onde o consenso é
blackzheep/Shutterstock. fabricado pela publicidade. Essa atrofia da esfera
pública, causada em parte pela mídia de massas, faz
Do mesmo modo, pode-se dizer que dos séculos com que o entretenimento prevaleça sobre os debates
XVIII e XIX aos séculos XX e XXI, ocorreu uma e as polêmicas, enfraquecendo a participação dos
transformação na esfera pública muito grande com o cidadãos no debate público. Isso produziu um
surgimento da mídia de massa, que profissionalizaria deslocamento na avaliação da importância da mídia
todas as etapas de produção técnica da comunicação, com relação à esfera pública: de uma promessa capaz
formando grupos comerciais de comunicação, entre de engajar muitos indivíduos de maneira igualitária
outros. Para muitos estudiosos da esfera pública, da na arena dos assuntos públicos, ela teria – com a
mídia e da teoria da comunicação, tal mudança mídia de massa – mudado de foco e passado a
causou grandes transformações na esfera pública do constituir-se como parte dos problemas que
século XX aos dias atuais. concorrem contra o amadurecimento da esfera
pública.
HABERMAS E O DEBATE
CONTEMPORÂNEO SOBRE A ESFERA MUDANÇAS NA RELAÇÃO ENTRE AS
PÚBLICA ESFERAS ÍNTIMA E PÚBLICA: RICHARD
SENNETT E AS TIRANIAS DA INTIMIDADE

Outra análise de grande importância nos estudos


relativos às transformações na esfera pública
contemporânea aparece no livro, do sociólogo
Richard Sennett, O declínio do homem público: as
tiranias da intimidade (1977). Para o sociólogo
americano, a distinção entre as esferas pública e
íntima tem se tornado cada vez mais tênue e diluída,
sendo que nas últimas décadas podemos falar de uma
“colonização da esfera pública pela esfera íntima”.

Figura
20. Jürgen Habermas em 2007

No que se refere aos debates contemporâneos sobre a


esfera pública, um trabalho de grande influência no
tema foi a análise do filósofo alemão Jürgen
Habermas no texto Mudança estrutural da esfera
pública (1962). Nessa obra, Habermas preocupa-se
em reconstituir a gênese histórico-sociológica da
esfera pública e percebe que, em suas origens, ela
envolvia a reunião de indivíduos igualitariamente
Uma tradição histórica iluminista que perdeu sentido
conceitual na contemporaneidade.

Tendo origem na esfera pública burguesa.

Debates públicos que geram interesse para a maioria.

Figu Comentário
ra 21. Richard Sennett em 2010
Parabéns! A alternativa "C" está correta.
Isso se daria em função do fenômeno midiático da
excessiva publicidade ao redor das grandes
personalidades, o que afetaria a vida pública no
sentido de as características pessoais e sentimentais
dos homens públicos (sua vida privada, honestidade e
sinceridade) terem ganhado mais importância do que Como crítico da modernidade, Habermas afirma que
características fundamentais em outros períodos, o mundo é construído a partir dos discursos. O
como o comprometimento público, a dedicação aos conceito de discurso de Habermas é considerado um
assuntos políticos etc. prenúncio da pós-modernidade, que de alguma forma
desconstrói as verdades do mundo burguês. Para tal,
ele recupera a história da formação da burguesia e sua
Resumindo mudança de perspectiva social, que tem com pedra
Vamos recuperar o nosso debate: fundamental a criação da esfera pública.

A noção de que o espaço público é de um coletivo


limitado para informações é ilusória. Demonstramos
que a esfera pública sempre existiu – só não tinha
essa concepção, essa materialização. O que Sennett
aponta, cria, discute, é que o fato de haver uma
mudança significativa do privado, retirando de
esferas públicas elementos que não se tinha clareza de 2. Sobre a construção da esfera pública moderna,
que eram intercessões, criando um novo espaço, uma podemos afirmar que:
nova esfera e que – dialogando com o primeiro
módulo – transforma a política como um exercício da
esfera pública, retirando seus aspectos privados e
modificando suas dinâmicas privadas como contra o
interesse público.

Emerge das práticas da Revolução Industrial.


VERIFICANDO O APRENDIZADO

Passa pela negação completa da religião, abandonada


naquele momento.

1. Um dos mais importantes autores é Habermas.


Ao caracterizar a esfera pública, ele a define
como: É construída como ideia pelos salões das cidades no
século XVIII, em especial franceses.

Os jornais alemães, a partir de Gutenberg, criam um


público leitor ativo e político, construindo a noção de
Tendo origem na esfera pública aristocrática. esfera pública.

Comentário
Parabéns! A alternativa "C" está correta. que um sistema seja considerado democrático sob as
condições delimitadas, todos os cidadãos devem ter
oportunidades plenas de:

Formular suas preferências;


A esfera pública é modificada com o tempo. A
modernidade cria o modelo francês de público como
Expressar suas preferências a seus concidadãos e ao
espaço de troca e circulação pelo Iluminismo, por
governo por meio da ação individual e da coletiva;
isso a ideia dos salões será vital.

Ter suas preferências igualmente consideradas na


POLIARQUIA conduta do governo, ou seja, sem discriminação
decorrente do conteúdo ou da fonte de preferência.

Para que essas preferências sejam devidamente


passíveis de prática, é necessário um conjunto de
garantias institucionais, como podemos ver a seguir:
Figura 22. Robert Dahl em 1966
Para a Formular Exprimir Ter
O conceito de poliarquia foi desenvolvido pelo
cientista político estadunidense Robert Dahl como oportunida preferência preferência preferências
uma forma mais realista de avaliar os regimes de de: s s igualmente
políticos contemporâneos. Em função de nenhum país consideradas
contemporâneo conseguir encarnar em níveis na conduta
absolutos a ideia de uma democracia plena, Dahl de governo:
concebeu seu conceito de poliarquia como um modo
de categorizar e nivelar o quanto os regimes políticos São    Liberdade
existentes se aproximam de um regime mais ou necessárias Liberdade Liberdade de formar ou
menos democrático. as de formar de formar aderir
seguintes ou aderir ou aderir organizações;
O conceito de poliarquia é desenvolvido e garantias organizaçõe organizaçõe
instituciona s; s;  Liberdade
categorizado em dois livros de Dahl, Um prefácio à
teoria democrática (1956) e Poliarquia: participação is: de expressão;
e oposição (1971). Os temas centrais desses dois  
Liberdade Liberdade  Direito de
livros são abordados em uma obra mais acessível,
de de voto;
atualizada e com um caráter mais didático: A
democracia e seus críticos (1989). De maneira geral, expressão; expressão;

definem-se como uma poliarquia plena os sistemas
 Direito  Direito Elegibilidade
democráticos modernos em funcionamento nos países
de voto; de voto; para cargos
desenvolvidos.
públicos;
 Direito 
Levando em conta o conjunto de obras mencionado de líderes Elegibilidad  Direito de
anteriormente, poderíamos dizer que as características políticos e para líderes
apontadas para o desenvolvimento de uma poliarquia disputarem cargos políticos
plena (ou seja, de um regime político com apoio; políticos; disputarem
características contemporaneamente consideradas apoio;
democráticas, exercidas de maneira ampla e  Fontes  Direito
generalizada) são de duas naturezas: alternativas de líderes  Fontes
de políticos alternativas
informação. de
Relativas a um critério ligado às oportunidades disponíveis aos cidadãos e suas instituiçõesdisputarem
apoio; informação;
Relativas ao seu caráter moderno, dinâmico e plural  Eleições
 Fontes
alternativas livres e
de idôneas;
CARACTERÍSTICAS DAS INSTITUIÇÕES E informação;

OS DIREITOS NECESSÁRIOS Instituições
 Eleições
À EXISTÊNCIA DE UMA POLIARQUIA livres e para fazer
idôneas. com que as
Para Dahl (2005), a democracia é um sistema políticas
político que tem, como uma de suas governamenta
características, a qualidade de ser inteiramente, is dependam
ou quase, responsivo a todos os seus cidadãos. Para de eleições e
de outras Sobre a ideia de modernidade, podem ser
manifestações compreendidos fatores como níveis mais altos de
de riqueza, renda, consumo e educação; maior
preferência. diversidade ocupacional, ou seja, ampla gama de
empregos diversificados; aumento da população
Fonte: DAHL, 2005. p. 27. (adaptado)
urbana em proporção à rural; diminuição crescente da
importância econômica da agricultura em função de
setores econômicos que agregam maior valor à
Quanto mais inclusivas são essas oportunidades, produção.
maiores podem ser os níveis de contestação e,
portanto, o nível de responsividade de determinado
sistema político; e, desse modo, maior poderá ser o Sobre a categoria do dinamismo, podemos
nível de uma poliarquia. Entretanto, não são apenas compreender fatores como o crescimento econômico,
esses conjuntos de oportunidades referidos às a competição empresarial e a possibilidade da
garantias institucionais delimitadas anteriormente que ascensão do padrão de vida. E, por fim, sobre
atestam o funcionamento de uma poliarquia e sua o pluralismo, seriam fatores como uma ampla gama
estabilidade. Existem, além das características de associações, grupos e organizações relativamente
elencadas, um conjunto de fatores que está autônomos, particularmente no âmbito da esfera
interrelacionado à existência de uma poliarquia, como econômica.
veremos no próximo tópico.

OUTROS FATORES QUE PROPICIAM A


FORMAÇÃO E ESTABILIDADE
DE UMA POLIARQUIA

Sociedade Moderna, Dinâmica e Pluralista (MDP):

De acordo com Dahl (2012), pode-se perceber que,


historicamente, as sociedades associadas ao
desenvolvimento de uma poliarquia plena são Fonte:
marcadas por uma série de fatores interrelacionados: Rawpixel.com/Shutterstock.

Essas três ideias condensam uma série de fatores


Nível relativamente alto de crescimento e de renda e econômicos, sociais e técnicos que formam o que
riqueza per capita Dahl conhece por países ou sociedades modernas,
dinâmicas e pluralistas (o que o cientista político
Alto nível de urbanização chama de MDP).

População agrícola em rápido declínio ou


relativamente pequena De acordo com Dahl (2012), uma sociedade ou um
país com os fatores agregados ao MDP é marcado
rande diversidade ocupacional pelas seguintes características:

Ampla alfabetização A dispersão dos recursos políticos, tais quais o


dinheiro, o conhecimento, o status e o acesso às
Número comparativamente grande de pessoas que organizações;
frequentaram instituições de nível superior
A dispersão das localizações estratégicas,
Ordem econômica na qual a produção é desenvolvida
particularmente em assuntos econômicos, científicos,
principalmente por empresas relativamente educacionais e culturais;
autônomas e cujas decisões são orientadas para
mercados nacionais e internacionais em níveis
relativamente altos de indicadores convencionais de A dispersão das posições de negociação, tanto
bem-estar, como médicos e leitos hospitalares para manifestas quanto latentes, nos assuntos econômicos,
cada mil pessoas, a expectativa de vida, a na ciência, nas comunicações, na educação e em
outras áreas.
mortalidade infantil, a porcentagem de famílias com
diversos bens de consumo duráveis e assim por
diante. Uma sociedade com essas características tende a
promover a inibição da concentração de poder em
Muitos desses fatores podem ser condensados em três poucas pessoas ou grupos, dispersando-o entre uma
ideias-chave: modernidade, dinamismo e pluralism série de grupos e pessoas independentes. Além disso,
o social. esses fatores favorecem atitudes, convicções e
crenças favoráveis às ideias democráticas, como a de
que ganhos conjuntos podem ser obtidos com o
aumento dos resultados e de que a negociação e a instrução médio é um fator muito mais importante
barganha podem levar a acordos benéficos para toda a para a formação de uma poliarquia que outros fatores
sociedade. elencados. Eles são fundamentais para a produção de
uma opinião pública que possa amadurecer ao longo
do tempo. Além disso, a correlação entre
Portanto, essas características podem promover um alfabetização ampla, acesso à educação – mesmo que
sistema político competitivo no qual o acordo é modesta – e de uma pluralidade de meios de
considerado normal: sem que as partes políticas em informação pode fazer com que países e sociedades
oposição sejam vistas como inimigas ou dispostas em satisfaçam os níveis mínimos requeridos para o
um conflito impossível de ser equilibrado. Mas a funcionamento de uma poliarquia, mesmo em
relação entre MDP e poliarquia não é uma relação de sociedades predominantemente agrícolas e que não
causa e efeito: uma sociedade com MDP pode não ser tenham nenhuma indústria.
necessária e nem suficiente para garantir a poliarquia
– historicamente, existem exceções a isso.
Em países onde se generalizou o acesso às primeiras
letras e onde houve uma prematura ampliação dos
MÍDIA E POLIARQUIA: ALFABETIZAÇÃO, meios de informação escritos, formou-se
EDUCAÇÃO, INFORMAÇÃO precocemente alguma forma de poliarquia, mesmo
E PLURALISMO em condições rurais, como, por exemplo, Nova
Zelândia, Austrália, Canadá, Noruega, Finlândia e
Islândia.
O conjunto de oportunidades plenas que os cidadãos
devem ter em um sistema considerado como uma
poliarquia (formular, exprimir e ter preferências O CONTROLE CIVIL DA COERÇÃO
igualmente consideradas na conduta do governo) VIOLENTA
depende de várias garantias institucionais, entre elas
duas que são interrelacionadas à mídia: a liberdade de
expressão e o acesso a fontes alternativas de
informação.

Quando falamos aqui em liberdade de expressão,


trata-se de liberdade de crítica (no sentido filosófico
do termo, como vimos quando tratávamos da gênese
da esfera pública), que poderíamos condensar com a
seguinte definição: F
onte: bgrocker/Shutterstock.
O direito protegido por lei à liberdade de expressão, Um fator de grande importância para a formação e
particularmente à expressão política, incluindo a estabilidade de uma poliarquia é aquilo que Dahl
crítica às autoridades, à conduta de governo, ao chama de controle civil da coerção violenta, ou seja, a
sistema político, econômico, social e à ideologia submissão das forças policiais e militares ao poder
dominante. civil. Uma das características do Estado são seus
instrumentos para coerção física cuja tarefa é a
(DAHL, 2012) ameaça ou o emprego da violência para a manutenção
da ordem e da segurança.
Quanto ao acesso a fontes alternativas de informação,
Dahl (2012) as define do seguinte modo: acesso a Nos parâmetros de uma poliarquia, duas condições
fontes alternativas de informação que não sejam são necessárias para o exercício democrático: 1) Que
monopolizadas pelo governo ou por nenhum outro o poder civil seja capaz de efetivar o controle das
grupo em particular. forças de coerção (militares e policiais); 2) Que os
próprios civis que controlam as forças de coerção
Mas vejamos que esses itens não se sustentam estejam sujeitos ao processo democrático.
autonomamente, eles estão vinculados a quatro
fatores: Historicamente, quatro fatores têm ajudado nessa
questão:
Alfabetização
Quando países reduzem seus contingentes militares e
Educação policiais à sua virtual insignificância (como nos
casos do Japão e da Costa Rica).
Informação
Quando as forças militares ou policiais são
Pluralismo
dispersadas em seus comandos em uma série de
O acesso à informação plural por um público controles locais (o que é comum nos países de língua
alfabetizado e que tenha ao menos um nível de inglesa).
Quando as tropas militares são formadas por pessoas
com fortes convicções democráticas compartilhadas
pela sociedade civil (como no caso da Europa pós-
Segunda Guerra Mundial, onde as tropas terrestres
são formadas por alistamento para breves períodos –
ou seja, todos são civis de uniforme).

O profissionalismo militar doutrinário, que incute


nos militares profissionais a criação e a manutenção
de crenças relacionadas ao regime democrático ao
qual estão submetidos e que devem proteger por
fidelidade.

O quarto fator citado pode causar certas distorções,


de acordo com Dahl:

Todavia, sob certas circunstâncias, o controle civil de


uma instituição militar profissional num país
democrático pode ser prejudicado. O controle civil é
ameaçado quando o profissionalismo cria um
Figu
profundo abismo social e psicológico entre os
ra 25. Militares protegendo o Palácio Guanabara, no
militares e civis, de forma que, como ocorreu no
Rio de Janeiro, durante o Golpe Militar no Brasil em
Brasil em 1950 e 1960, os militares se tornam uma
1964
ordem social claramente à parte, uma casta militar
isolada da sociedade civil. Ou ainda, se os Em outras palavras, podem, em função de desordem,
profissionais acreditam que os interesses conflito civil, polarizações agudas, crises econômicas
fundamentais da instituição militar estão ameaçados contínuas, efetivar golpes militares – e desarticular
pela liderança civil, é provável que resistam ao poliarquias instáveis, como ocorreu no Brasil em
controle civil e é possível que o rejeitem 1964, no Chile e no Uruguai em 1973 e na Argentina
inteiramente, como ocorreu no Brasil em 1964, em em 1976. A presença ou ausência de uma poliarquia
Gana em 1965, e na Argentina, repetidas vezes, entre não pode ser definida apenas pelo controle civil da
1955 e 1983. coerção violenta, mas esse fator é um elemento que
contribui para a estabilidade de um sistema
(DAHL, 2012, p.392-393) poliárquico.

Assim, lideranças militares podem também, se não NOVAS MÍDIAS, NOVOS ATORES: A ESFERA
são devidamente doutrinadas pelo profissionalismo
militar na crença e no dever de proteger o governo ao PÚBLICA CONTEMPORÂNEA
qual devem se submeter, ameaçar a estabilidade de
uma poliarquia plena. Cientistas sociais sérios não costumam fazer muitas
previsões quando se defrontam com fenômenos
novos ou se encontram em meio a processos em
curso: é sabido que é mais fácil compreender
rigidamente processos que se estabilizaram ou ciclos
de mudança que já terminaram.

Nos últimos 30 anos, com a expansão da internet e de


outras redes de computadores, atividades econômicas,
sociais, políticas e culturais têm sido cada vez mais
estruturadas ao redor dessas novas redes
informacionais, transformando nesse processo muitos
modos tradicionais de nos relacionarmos,
trabalharmos, produzirmos e a maneira como a esfera
pública funciona.
relações entre os meios de comunicação e as redes
sociais podem gerar efeitos corrosivos e causar crises
no funcionamento das democracias liberais:

Nossas vidas titubeiam no turbilhão de múltiplas


crises. Uma crise econômica que se prolonga em
precariedade de trabalho e em salários de
pobreza. Um terrorismo fanático que fratura a
convivência humana, alimenta o medo cotidiano e
dá amparo à restrição da liberdade em nome da
F segurança. Uma marcha aparentemente inelutável
onte: ArtShotPhoto/Shutterstock. rumo à inabitabilidade de nosso único lar, a
Terra. Uma permanente ameaça de guerras
Apesar dessa ampla difusão e popularização atrozes como forma de lidar com os conflitos. Uma
tecnológica sem precedentes, a lógica, a linguagem e violência crescente contra as mulheres que
os limites da internet ainda não são completamente ousaram ser elas mesmas. Uma galáxia de
compreendidos pelas disciplinas acadêmicas que não comunicação dominada pela mentira, agora chamada
pertencem diretamente a essa esfera tecnológica. A pós-verdade. Uma sociedade sem privacidade, na
velocidade de transformação tecnológica, em ciclos qual nos transformamos em dados. E uma cultura,
mais curtos, ligada à emergência de novos serviços e
denominada entretenimento, construída sobre o
mídias, contando com um número maior de agentes
estímulo de nossos baixos instintos e a
engajados em suas diversas utilizações, vem tornando
cada vez mais difícil uma análise aprofundada desses comercialização de nossos demônios.
fenômenos. Trata-se de um desafio para a pesquisa (CASTELLS, 2018, grifo nosso)
acadêmica, por isso há certa dificuldade para produzir
estudos empiricamente embasados que analisem com
rigor as transformações econômicas, políticas e A ampliação das novas tecnologias tem, portanto,
sociais causadas pela aplicação crescente das gerado efeitos ambíguos e ainda pouco
tecnologias informacionais. compreendidos em suas implicações diretas com o
âmbito da esfera pública. Segundo Castells (2018), a
hipotética “ágora virtual”, profetizada por vários
Esse vácuo de conhecimento acerca dos efeitos, utopistas tecnológicos, tem gerado muitos problemas
limites e consequências múltiplas da expansão em tempos onde as “notícias falsas” circulam na
crescente dessas novas tecnologias tem sido “velocidade do sinal eletrônico”: gerando problemas
preenchido frequentemente mais pela boataria, de deslegitimação para as mídias tradicionais e nos
pelas visões utópicas ou distópicas e pela ideologia mecanismos institucionais das democracias
que permeiam a compreensão dos fenômenos estabelecidas.
ligados a esse tema, o que é comum ocorrer em
tempos de rápida mudança social.

As últimas décadas têm sido repletas de previsões


futurológicas apresentando um porvir de
consequências simplistas baseadas nas maravilhas da
tecnologia, enquanto, por outro lado, surgiram
imagens de distopias críticas sugerindo os efeitos
alienantes da internet antes mesmo deles
acontecerem. Paralelo a isso, a mídia desejosa de
informar seu público ansioso por novidade, mas
carente das capacidades de analisar de modo rigoroso Fonte
e embasado as diversas transformações em curso, : Panchenko Vladimir/Shutterstock.
espalhou boa parte dessas previsões futurológicas –
negativas e positivas – com todos os elementos A própria popularização das notícias falsas nos meios
descritos (CASTELLS, 2003 p. 8-9). digitais tem sido objeto de estudos na área de
Comunicação e Jornalismo: seja analisando suas
peculiaridades atuais e sua propagação nas redes, seja
O aumento de agentes operando nas redes de sob uma perspectiva de que se trata de um fenômeno
computadores, que tem se expandido massivamente semelhante a outros já ocorridos anteriormente em
nas últimas décadas, gerou efeitos ambivalentes. Por momentos de ampliação da esfera pública e de meios
um lado, foi extremamente importante na emergência de informação alternativos.
de movimentos populares em diversos países, como,
por exemplo: a Primavera Árabe, em 2011,
possibilitada pela internet e pelas redes sociais; o É possível vermos positiva ou negativamente todos os
Occupy Wall Street, também em 2011; as fenômenos citados? É possível adotar uma narrativa
manifestações ocorridas na Turquia, em 2013, no acerca do futuro da esfera pública e suas relações
Brasil, em 2013 e 2014, e também no Chile, em 2011 com as novas tecnologias informacionais com o rigor
e 2013 (CASTELLS, 2017). Por outro lado, as acadêmico e alicerçado nos estudos de mídia e das
Ciências Sociais atuais? Muito tem sido produzido na a emergência de novos atores sociais, modificando
área atualmente, mas é difícil analisar ainda todas as também o próprio modo de fazer política.
suas consequências e os seus limites.

No debate atual, para além da análise das Ciências


Sociais, como é colocada a questão dos movimentos
sociais e políticos, da relação entre a mídia
tradicional e a emergência das mídias alternativas, da
ascensão de novos atores sociais e no que tange às
novas tecnologias de informação? A seguir, fazemos
uma síntese desses debates em três tópicos.

 Movimentos sociais e políticos

Dentro do contexto entre mídia e política, é


importante citar que, principalmente a partir de 2010,
houve a emergência de movimentos sociais e Fon
políticos que aparentavam ter três características te: Rawpixel.com/Shutterstock.
gerais: Por conta dessa espontaneidade e abertura
participativa, é possível observar uma espécie de
ligação cronológica em tais manifestações, uma vez
1) Busca por uma ação política direta; que elas começam por demandas específicas
(lembremo-nos de que as Jornadas de Junho foram
incialmente deflagradas pelo aumento ínfimo nos
2) Espontaneidade e abertura participativa;
preços do transporte público) e geram uma
mobilização maior das massas que aumentam o
3) Reivindicações específicas no início que se escopo das reivindicações para demandas mais gerais,
desenvolvem em pautas mais gerais. tais como o fim da corrupção ou o combate às
desigualdades sociais.
Quando observamos certos movimentos, como
o Occupy Wall Street (EUA, 2011), a Primavera
Árabe (Oriente Médio e Norte da África, 2010), o
movimento dos coletes amarelos (França, 2018) e as
chamadas Jornadas de Junho (Brasil, 2013), é
possível dizer que se trataram de movimentos de
cunho social e político, manifestados de modo
imediato e direto.

Isso quer dizer que tais movimentos não eram


condicionados pelo intermédio de partidos
políticos ou sindicatos – que até então se
estruturavam como os próprios mediadores entre
os indivíduos que possuíam demandas e os
representantes nas instituições políticas. Fonte: Casimiro PT/Shutterstock.

Exatamente por isso eles possuem como característica  Mídias alternativas


comum não apenas a retomada de protestos de rua –
ação política muito marcante nas décadas de 1960 e Principalmente com o advento da internet, começou-
1970 –, mas ainda se utilizaram da internet, se a colocar em questão o modo como a informação é
principalmente das redes sociais, como meio de expor produzida e quais agentes se implicam
reivindicações, cobrar resoluções e exigir financeiramente no campo midiático. Na medida em
transparência diretamente. que o monopólio dos conglomerados de comunicação
se tornou alvo de debates (a questão de grandes
Pode-se dizer que há uma maior abertura mídias que concentram o aparato informativo),
participativa, uma vez que cada indivíduo se faz mídias alternativas começaram a surgir, facilitadas
como agente político engajado, não só confirmando a pela internet e seu acesso mais democrático.
noção de uma crise de representação iniciada na
última década, como ainda o fato desses movimentos Assim, observa-se a eclosão de grupos que se
apresentarem uma ação espontânea e até mesmo propõem a comunicar estando fora de grandes
explosiva – basta um evento marcado no Facebook corporações que até então ditavam o modo como a
ou certa mobilização simbólica (caso dos coletes informação deveria ser veiculada – lembremos de
amarelos) para que se espalhe um entusiasmo certos modelos televisivos que se tornaram
crescente nos indivíduos e, por conseguinte, que eles ultrapassados ou ainda o próprio jornal, mídia
se auto-organizem em tais manifestações. Isso marca
extremamente tradicional que cada vez mais perde grupos minoritários envolvidos nessas correntes das
leitores e assinantes. Um grande exemplo disso são ciências humanas começa a se fazer ouvir.
revistas eletrônicas, sites de notícias e canais no
YouTube que funcionam a partir de autogestão
colaborativa (caso da Mídia Ninja) ou financiamento
digital (crowdfunding) – como é o caso do The
Intercept, que já se ramificou globalmente por meio
desse tipo de financiamento.

O maior apelo desses canais midiáticos ditos


alternativos é a recusa de estar refém de
interesses, algumas vezes escusos, dos canais
conservadores e tradicionais de mídia. Isso
permite um movimento contra-hegemônico no Fonte:
âmbito da esfera pública, visto que contesta essa Rawpixel.com/Shutterstock.
mídia tradicional pautada fundamentalmente em A própria popularização de conceitos como lugar de
uma imparcialidade questionável, sendo possível fala e necropolítica são evidências não só da
se perguntar a quem interessam certas politização das minorias que exigem voz e mudança
informações e quais grupos lucram com elas. social, como ainda apontam demandas políticas cada
vez mais democráticas – como, por exemplo, uma
É dentro desse contexto que a própria ideia de representação política cada vez mais paritária entre os
informação imparcial passa a ser questionada, gêneros masculino e feminino.
abrindo lugar para a possibilidade de uma mídia
engajada ou ainda que deixe de modo transparente Um exemplo claro que não apenas demonstra uma
seus próprios referenciais teóricos e inclinações – abertura maior para agentes políticos até então
como é o caso de editoriais prévios, a exemplo da negligenciados e que possuem um modo de
revista de economia The Economist. participação profundamente condicionado pela
internet e novas mídias sociais é o caso do Black
Lives Matter, campanha virtual direcionada à
 Minorias e representatividade
discussão sobre racismo que conjuga elementos de
militância, exigindo dos representantes políticos
É importante salientar que com a modificação atual ações positivas no combate à discriminação e
tanto dos movimentos sociais e políticos como dos violência contra a comunidade negra.
próprios canais de informação alternativos, há uma
crescente democratização nesses campos que,
justamente, abre espaço para protagonistas que até VERIFICANDO O APRENDIZADO
então eram social e politicamente negligenciados. É o
caso de certas minorias sociais que se alicerçam em
pensamentos identitários e ganham espaço e
representatividade com meios midiáticos que fogem
das grandes corporações tradicionais.

Em termos políticos, essas mesmas minorias


acumulam certas exigências no que se refere ao 1. Sobre as relações entre a esfera pública e as
seu lugar na participação política, exigindo uma novas tecnologias informacionais, qual das
democracia que não seja apenas formal (ou seja, alternativas abaixo está correta?
que não se limite ao voto de representantes muito
distantes do eleitorado dos grupos minoritários),
buscando uma expansão do sentido de
representação e uma democracia real. Isso
retroalimenta o alargamento da esfera pública que
deixa de ter um perfil tradicional e se torna mais
multicultural. As redes sociais e a internet afastam as pessoas do
contato pessoal e são poderosas forças de alienação
A ideia de multiculturalismo reflete um movimento em nossa sociedade.
cada vez mais intenso de pluralidade de culturas
acompanhado de um reconhecimento mútuo dos
indivíduos enquanto coparticipes da democracia.
Tal relação produz efeitos ambivalentes, que podem
A esfera pública também se torna a arena de reforçar movimentos populares ao mesmo tempo que
divulgação e discussão de certas correntes de podem prejudicar o funcionamento das democracias
pensamento que possuem uma implicação claramente instituídas.
política, como feminismo, teoria queer, pensamento
decolonial etc. A questão da representatividade e da
necessidade do reconhecimento das demandas dos
O aumento do acesso à internet poderá produzir o As forças de coerção (policiais e militares) devem ser
surgimento de uma aldeia global, onde todos estarão subordinadas a uma autoridade civil, que deve estar
integrados a uma esfera pública renovada e aberta, acima de qualquer lei.
fortalecendo a democracia e os direitos humanos.

A profissionalização das forças militares e policiais,


Temos grande conhecimento sobre a interação entre a sua subordinação a um poder civil que esteja sujeito
ampliação das redes de computadores. Uma ampla ao processo democrático e a doutrinação de oficiais
gama de trabalhos acadêmicos extremamente nas crenças democráticas e deveres de manutenção
rigorosos tem sido produzida nos últimos anos relativos ao sistema político (que tem o dever de
explicando a interação entre a esfera pública e as defender) são fatores que tornam uma poliarquia
novas tecnologias informacionais. estável.

Comentário Comentário

Parabéns! A alternativa "B" está correta. Parabéns! A alternativa "D" está correta.

O debate atual sobre a tecnologia e os sistemas Ainda que o conceito de poliarquia pareça abstrato,
políticos passa pela necessidade de entender que ele aumenta a responsabilidade ampla social, tirando
vivemos um momento de reinvenções de práticas, os focos de determinação do Estado. Nessas
sem que saibamos claramente para onde estamos respostas, nós percebemos a mudança da dinâmica
indo. No entanto, é certo que os modelos tradicionais das relações de poder relativizando a ação do Estado.
perderam seu sentido. Então, a resposta certa passa Quando grupos que têm o monopólio da força passam
pela desestruturação de modelos tradicionais. Esse a estar subordinados a um poder eleito pelo coletivo,
novo padrão, que emerge quando as velhas formas há um alívio desse poder, mas só isso não basta. Para
perderam o sentido, gera uma ambivalência por a poliarquia ser eficiente, ela precisa de uma ação
permitir a luta de grupos que viviam sob controle de educacional, plural, marcada pelo compromisso
forças e que veem eco para se unirem e lutarem e a público. A formação do militar ao defender a
ascensão de forças e práticas de negação do outro, democracia e não a sua própria força ou território.
pregando inclusive sua destruição, e da mesma forma
encontrando ecos e parcerias.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste tema, apresentamos a relação entre


comunicação e política. Vimos que o conceito de
política contemporânea é uma construção histórica,
política e filosófica que tem como conceitos
fundamentais a democracia, a república e a
2. Acerca das relações entre as forças de coerção representatividade.
(policiais e militares) e a estabilidade de uma
poliarquia, qual das respostas abaixo está correta?
Aprendemos também que comunicar não é um mero
ato, está em meio a uma complexa relação social.
Essa relação social se manifesta de maneira política,
por isso, é preciso definir seus espaços, seu
entendimento, seu mundo e, para tanto, mergulhamos
na história da esfera pública.
Os militares e policiais devem ser os guardiões da
ordem e da estabilidade social, devendo interferir na Por fim, entendemos a complexidade da estrutura
ordem política sempre que esta for ameaçada. política contemporânea por meio do conceito de
poliarquia, segundo o qual o poder de comunicar
encontra-se com o poder político no mundo
contemporâneo, na internet e nas demandas de grupo.

Os militares devem estar subordinados ao Poder


Executivo, que está acima de todas as leis. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste tema, apresentamos a relação entre


comunicação e política. Vimos que o conceito de
política contemporânea é uma construção histórica,
política e filosófica que tem como conceitos
fundamentais a democracia, a república e a
representatividade.

Aprendemos também que comunicar não é um mero


ato, está em meio a uma complexa relação social.
Essa relação social se manifesta de maneira política,
por isso, é preciso definir seus espaços, seu
entendimento, seu mundo e, para tanto, mergulhamos
na história da esfera pública.

Por fim, entendemos a complexidade da estrutura


política contemporânea por meio do conceito de
poliarquia, segundo o qual o poder de comunicar
encontra-se com o poder político no mundo
contemporâneo, na internet e nas demandas de grupo.

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