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Variedades I:
democracia em escalas diferentes
Alice 110 país das maravilhas, obra clássica de Lewis Carral. (N, do E.)
Sobre a democracia 117
116 Robert A. Dahl
A democracia do proletário é um milhão de vezes mais demo- dários, métodos de votação e afins? Examinaremos algumas
crática do que qualquer democracia burguesa; o governo sovié- dessas variações nos próximos dois capítulos.
tico é um milhão de vezes mais democrático do que a mais • O fato de serem necessárias as instituições da democracia poliár-
democrática república burguesa. I quica não implica que sejam suficientes para a democracia.
Sim, um sistema político dotado dessas instituições correspon-
Uma visão do homem que foi o arquiteto mais importante na cons- derá de modo mais ou menos satisfatório aos critérios demo-
trução dos alicerces do regime totalitário que regeu a União Sovié- cráticos descritos no Capítulo 4. Não será possível que outras
tica por mais de sessenta anos. instituições, além dessas, permitam que um país atinja um ou
Ficções como essa também foram inventadas por líderes e mais desses critérios mais plenamente?
propagandistas de "democracias do povo" altamente autoritárias
criadas na Europa Central e do Leste, em países que caíram sob
domínio soviético durante e depois da Segunda Guerra Mundial. Democracia: grega x moderna
No entanto, por que deveríamos aceitar covardemente as de-
clarações dos déspotas de que são democratas? Uma serpente ve- Se as instituições políticas requeridas para a democracia têm
nenosa não se torna uma pomba porque seu dono diz que é. Não de incluir representantes eleitos, o que diremos dos gregos, os pri-
importa o que afirmem líderes e propagandistas, um país será uma meiros a aplicar a palavra democracia ao governo de suas cidades-
democracia apenas se possuir todas as instituições políticas neces- estado? Se - como Lenin, Mussolini e outros antidemocratas do
sárias à democracia. século XX - concluíssemos que os gregos utilizaram mal essa pa-
Isso significaria que os critérios democráticos só poderão ser lavra, não estaríamos levando a nossa perspectiva do presente um
correspondidos por meio de todo o conjunto de instituições políti- tanto longe, ao ponto de um absurdo anacrônico? Afinal de contas,
cas da democracia poliárquica no último capítulo? Não necessa- foram os gregos que inventaram e usaram a palavra democracia.
riamente. Negar que Atenas fosse uma democracia seria como afirmar que os
irmãos Wright não inventaram o avião porque a máquina deles se
• As instituições da democracia poliárquica são necessárias para parecia pouquíssimo com os nossos aviões de hoje.
a democratização do governo do estado num sistema em gran- Com o devido respeito ao uso do passado, talvez possamos
de escala, especificamente um país. Contudo, elas poderiam ser aprender algo sobre a democracia das pessoas que não apenas nos
desnecessárias ou completamente inadequadas para a dernocra- deram a palavra, mas também nos proporcionaram exemplos con-
cia em unidades em escala menor (ou maior?) ou em menores cretos de seu significado. Quando examinamos Atenas, o melhor
associações independentes do estado, que ajudam a constituir a exemplo conhecido da democracia grega, logo observamos duas
sociedade civil. (Falarei mais sobre isso daqui a pouco.) importantes diferenças em relação à versão atual. Por razões que já
• No capítulo anterior, as instituições da democracia poliárquica exploramos, hoje a maioria dos democratas insistiria que um siste-
foram descritas em linhas gerais; mas os países democráticos ma democrático aceitável deve satisfazer a um critério democrático
não podem variar muitíssimo e em aspectos bastante impor- inaceitável para os gregos: a inclusão. Também acrescentamos uma
tantes de suas instituições políticas - tais como sistemas parti- instituição política que os gregos não apenas consideravam desne-
cessária para suas democracias, mas perfeitamente indesejável: a
Lenin, The Proletarian Revolution aud the Renegade Kautsky (novembro de eleição de representantes com autoridade para legislar. Poderíamos
1918), citado em Jens A. Christophersen, Tlte Meauing or "Democracy' as dizer que o sistema político inventado pelos gregos era uma demo-
Used Í1/ European Ideologiesfrotn lhe Frencli to lhe Russian Revolution, Oslo, cracia primária, uma democracia de assembléia ou uma democracia
Universitetsvorlaget, 1966, p. 260.
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Robert A. Dahl
Sobre a democracia 119
Os limites democráticos do governo representativo A lei do tempo e dos números: quanto mais cidadãos uma uni-
dade democrática contém. menos esses cidadãos podem participar
Aparentemente, a vantagem está com a representação. Será? diretamente das decisões do govemo e mais eles têm de delegar a
A ironia dessa combinação de tempo. e números é ser uma faca de outros essa autoridade.
dois gumes: ela revela num instante um enorme defeito. dernocráti-
co na governo representativa. Voltando à Tabela 1 e aos nossos
exercícios de aritmética: imagine que agara calculamos a tempo Um dilema básico da democracia
necessária para cada cidadão. ter um rapidíssimo encontro cam seu
Há um dilema fundamental da democracia espreitando nos
representante. A Tabela 1 proporciona um argumenta devastador
bastidores deste cenário. Se nosso objetivo é estabelecer um sistema
contra as possibilidades de participação. na governo representativo.
de governo democrático que proporcione o máximo de oportunidades
Imaginemos que um representante eleito separe dez minutos de seu
para os cidadãos participarem das decisões políticas, evidentemente a
tempo para discutir com cada cidadão adulto as questões de seu
democracia de assembléia num sistema político de pequena escala
distrito. Não levaremos em conta o tempo de viagem e outros pro-
está com a vantagem. Contudo, se nossa meta é estabelecer um
blemas pragmáticas. Façamos de canta que na distrito vivem dez
sistema democrático de governo que proporcione o maior terreno
mil cidadãos adultos - a maior número mostrado na Tabela 1. Quod
possível para tratar eficazmente dos problemas de maior importân-
era! detnonstrandum (cama queríamo.s demonstrar): o represen-
cia para os cidadãos, então, em geral, a vantagem estará numa uni-
tante teria de passar mais da metade dos dias da ano só para se
dade de tal tamanho que será precisa um sistema representativo.
encontrar com seus constituintes! Nos Estados Unidos, os repre-
Este é o dilema da participação da cidadão versus a eficácia do
sentantes do Congresso são eleitos em distritos que em média con-
têm mais de 400 mil cidadãos adultos! Um membro do Parlamento sistema:
norte-americano que desejasse dedicar apenas dez minutos para Quanto menor a unidade democrática, maior seu potencial para
cada cidadão em seu distrito não teria tempo para mais nada em a participação do cidadão e menor a necessidade de que os ci-
sua vida ... Se o deputado (ou deputada) quisesse passar oito horas dadãos deleguem as decisões do governo a representantes.
por dia nessa tarefa, todos os dias do ano, precisaria de mais de Quanto maior a unidade, maior sua capacidade para tratar de
vinte anos ou dez mandatos de dois anos - mais tempo do que a problemas importantes para seus cidadãos e maior a necessida-
maioria dos representantes costuma permanecer na Congresso! de dos cidadãos delegarem as decisões a representantes.
Democracia de assembléia ou democracia representativa?
Democracia em pequena escala ou democracia em grande escala? Não vejo como podemos fugir desse dilema. Em todo caso,
Qual a melhor? Qual a mais democrática? Cada uma delas tem ainda que não possamos fugir dele, podemos enfrentá-Ia.
seus defensores apaixonados. Exatamente como acabamos de ver,
há um bom argumento para as vantagens de cada uma delas. Con-
tudo, nossos exercícios aritméticos bastante artificiais e até absur- o negócio às vezes é ser pequeno
dos revelaram os limites insuperáveis da participação cívica -
Como acontece com todas as outras atividades dos seres hu-
limites esses que se aplicam aos dois tipos com uma indiferença
manos, os sistemas políticos não realizam necessariamente suas
cruel. Nenhum dos dois pode fugir dos limites inexoráveis impos-
possibilidades. O título de um livra apreende a essência desse tipo.
tos pela interação do tempo exigido para um ato de participação e
do número de cidadãos autorizados a participar.
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de perspectiva: O negócio é ser pequeno" Indiscutivelmente, em Aparentemente, as assembléias populares não são exatamente
teoria é possível que sistemas políticos muito pequenos obtenham modelos da democracia participativa - mas esta não é toda a histó-
um elevado índice de participação do cidadão a que os sistemas ria. Quando sabem que as questões a tratar são comuns ou indiscu-
grandes jamais podem corresponder. No entanto, muitas vezes. tal- tíveis, os cidadãos preferem ficar em casa - e por que não? No
vez em geral, eles não conseguem realizar seu potencial. entanto, as questões polêmicas os levam à rua. Minha cidadezinha
As assembléias populares em algumas cidades menores da em Connecticut abandonou em grande parte sua tradicional assem-
Nova Inglaterra, nos Estados Unidos, são um bom exemplo dos bléia popular, mas ainda me lembro de questões em que os cida-
limites e das possibilidades. Embora a maioria das assembléias po- dãos se dividiam seriamente e apareciam em tal número que
pulares tradicionais da Nova Inglaterra tenha sido substituída 110 apinhavam o auditório da high-school; para os que não haviam
todo ou em parte por um corpo legislativo de representantes elei- conseguido entrar na primeira, era preciso marcar uma segunda
tos, elas ainda estão vivas e muito bem em Vermont, um estado reunião, que se mostrava igualmente apinhada. Como ainda hoje
principalmente rural. acontece em Vennont, as discussões nas assembléias populares não
Um observador solidário e participante que estudou as assem- são dominadas pelas pessoas instruídas e ricas. As fortes convic-
bléias populares em Vermont descobriu que entre 1970 e 1994 fo- ções e a determinação para tomar a palavra absolutamente não são
ram realizadas 1.215 dessas reuniões em 210 cidadezinhas do tipo monopolizadas por um único grupo socioeconômico.
de Vermont com menos de 4.500 moradores. Dos livros de registro Com todas as suas limitações, a democracia de assembléia tem
de 1.129 dessas assembléias, ele chegou à seguinte conclusão: muito a seu favor.
não parecerão simplesmente governos locais subordinados a go- teriam de criar instituições políticas que proporcionassem partici-
vernos democráticos internacionais? pação, influência e controle político de eficácia mais ou menos
Afinal de contas, poderíamos dizer, a subordinação de gover- equivalente à existente em países democráticos. Para aproveitar
nos locais menores a um governo nacional não significou o fim da essas oportunidades, os cidadãos teriam de estar mais ou menos
democracia. Ao contrário, a democratização de governos nacionais interessados e informados sobre as decisões políticas das organiza-
não apenas estendeu imensamente os domínios da democracia, mas ções internacionais bem como sobre as decisões do governo de
abriu um importante espaço para os processos democráticos nas seus países. Para os cidadãos estarem informados, as elites da polí-
unidades subordinadas - vilas, cidades, cantões, estados, provín- tica e da comunicação teriam de discutir publicamente as alternati-
cias, regiões, e assim por diante. Assim, nessa visão, a dificuldade vas, de maneira que envolvesse a atenção e as emoções do público.
não está em deter a internacionalização em suas trilhas, o que é Para assegurar o debate público, seria preciso criar um equivalente
impossível. A dificuldade é democratizar as organizações interna- internacional à competição política nacional de partidos e pessoas
cionais. em busca do posto. Os representantes eleitos ou seus equivalentes
Para meu pesar, sou forçado a concluir que essa visão é exage- funcionais (sejam quais forem) teriam de exercer controle sobre
radamente otimista, por mais atraente que seja para qualquer um importantes burocracias internacionais mais ou menos tão bem quanto
que valorize a democracia. Mesmo nos países em que as institui- o fazem os legislativos e os executivos nos países democráticos.
ções e as práticas democráticas existem há muito tempo e estão A maneira como os representantes de um hipotético corpo de
consolidadas, é dificílimo que os cidadãos exerçam um controle cidadãos internacionais seriam distribuídos entre povos de países
eficaz sobre inúmeras questões essenciais nas relações exteriores. diferentes traz mais um problema. Dadas as imensas diferenças na
Esse controle é bem mais difícil em organizações internacionais. magnitude das populações de países diferentes, nenhum sistema de
A União Européia nos oferece um bom exemplo. Ali, estrutu- representação conseguiria dar igual peso ao voto de todos os cida-
ras nominalmente democráticas, como eleições populares e um dãos, evitando que os votos dos países grandes superassem com
parlamento, estão pro forma em seu devido lugar. Não obstante, vantagem os pequenos - assim, todas as soluções aceitáveis para as
virtualmente todos os observadores concordam que permanece um democracias menores negarão a igualdade política entre os mem-
gigantesco "déficit democrático". Decisões importantes são tomadas, bros do demos maior. Como acontece nos Estados Unidos e em
principalmente, por meio de negociações entre as elites políticas e outros sistemas federais, as soluções aceitáveis podem ser costura-
burocráticas. Os limites não são impostos por meio de processos das como uma colcha de retalhos, como a feita para a União Euro-
democráticos, mas, sobretudo, pela concordância obtida pelos ne- péia. Em todo caso, seja qual for a solução conciliatória alcançada,
gociadores, levando em conta as prováveis conseqüências para os ela facilmente poderia se tornar fonte de tensões internas, especial-
mercados nacionais e internacionais. A negociação, a hierarquia e mente na ausência de uma forte identidade comum.
os mercados determinam os resultados. Os processos democráticos A tensão é ainda mais provável porque a maioria das decisões nas
praticamente têm apenas o papel de ratificar esses resultados. democracias nacionais tende a ser considerada prejudicial para os inte-
Se as instituições democráticas são em geral ineficazes no go- resses de algumas pessoas, o mesmo podendo acontecer nas organiza-
verno da União Européia, as perspectivas para a democratização de ções internacionais - como eu já disse. O peso maior de algumas
outros sistemas internacionais parecem ainda mais remotas. Para decisões poderá recair sobre determinados grupos, países ou regiões.
obter um controle popular que esteja em algum ponto próximo ao Para sobreviver a essas tensões, uma cultura política apoiando especí-
controle já existente nos países democráticos, as organizações ficas instituições ajudaria - e talvez fosse necessária. Criar e desen-
internacionais teriam de resolver, da melhor maneira, diversos pro- volver uma cultura política toma tempo, talvez gerações. Além do
blemas que estejam sendo tratados nesses países. Os líderes políticos mais, se as decisões políticas forem amplamente aceitáveis e válidas
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