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Diálogos (1)

Mais democracia, uma ova!

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- Então, voltando ao assunto. Em primeiro lugar, que é “mais democracia”? Um liberal acha que é
menos intervenção do Estado na economia; um socialdemocrata acha que é mais proteção do
Estado aos pobres e desamparados. Assim, não apenas se reedita o velho confronto de capitalismo e
socialismo, ambos com o nome de democracia, mas se chega no fim a um beco sem saída, porque
para realizar a primeira alternativa é preciso ampliar o controle estatal da vida privada (no mínimo
para que o Estado desprovido de seu fardo econômico adquira novas funções que legitimem sua
existência), e para realizar a segunda é preciso aumentar os impostos e inflar a burocracia estatal até
paralisar a economia e tornar os pobres ainda mais desamparados. Em segundo lugar, há boas
razões para duvidar que “mais democracia” seja ainda democracia. A democracia não é como um
pão, que cresce sem perder a homogeneidade: à medida que ela se expande, sua natureza vai
mudando até converter-se no seu contrário.

- Meu caro colega, com base em que? Sob o ponto de vista do liberalismo e do estado mínimo é
evidente que não faz sentido afirmar que estes tenham que “ampliar o controle estatal da vida
privada”. O laissez-faire é baseado numa interferência mínima. Tome como exemplos os países
nórdicos e bálticos: lá o aumento de impostos e aumento da máquina estatal não é
automaticamente revertido em paralisia da economia e desamparo dos pobres.

- Permita-me algumas considerações, meu caro. Veja bem. Tu estás avaliando com base em
princípios abstratos que sequer são princípios, e sim enunciados vazios. E, claro, é fácil argumentar
sem conhecer uma cadeia de raciocínio que não pode ser exposta em um argumento curto. O
“princípio do Estado Mínimo” saiu da cabeça de alguns sujeitos, e não da realidade concreta.
Tomemos os Estados Unidos, o país “neoliberal” por excelência: O Estado sempre aumentou.
Sempre aumentou o orçamento. E o poder. Ele retrocede em algumas áreas – ou não avança nelas,
como no controle da moeda – mas avança em outras. Se deu inclusive com Ronald Reagan. O
mesmo com a Inglaterra. O argumento exposto por nosso amigo segue a observação de Bertrand de
Jouvenel: a história da Era Moderna é a história do aumento do Estado, seus meios, seus recursos,
seu poder, independente da orientação política. E os tais “países nórdicos” estão com economia
paralisada. Por isso que estão desmontando certos aspectos do Estado do Bem-Estar Social. Mais
interessante: estão demograficamente paralisados. E no mundo real, não ter filhos, tu sabes bem,
significa morrer.

- Bem colocado. Continuando o meu raciocínio: exemplo mais característico – mas não o único,
certamente – é o que se passa com a “democratização da cultura”. Num primeiro momento,
democratizar a cultura é distribuir generosamente às massas os chamados “bens culturais”, antes
reservados, segundo se diz, a uma elite. Num segundo momento, exige-se que as massas tenham
também o direito de decidir o que é e o que não é um bem cultural. Aí a situação se inverte:
oferecer às massas os bens de elite já não é praticar a democracia: é lançar à cara do povo um
insulto paternalista. As camadas populares, afirma-se, têm direito à “sua própria cultura”, na qual a
música rap pode ser, eventualmente, preferível a Bach. A intelectualidade entrega-se então a toda
sorte de teorizações destinadas a provar que os bens superiores antes cobiçados pela massa não
têm, no fim das contas, mais valor do que tudo o que a massa já possuía antes de conquistá-los. E,
quando enfim a antiga diferença entre cultura de elite e cultura de massas parece restabelecida sob
o novo e reconfortante pretexto da relatividade, os intelectuais ficam mais revoltados ainda, ao
descobrir que todos os bens, equalizados pelo universal relativismo, se transformaram em puras
mercadorias sem valor próprio: Bach tornou-se fundo musical para anúncios de calcinhas e o rap,
com a venda de discos, gerou uma nova elite de milionários, cínicos e prepotentes como a elite mais
antiga jamais teria ousado ser. Idêntico processo repete-se nos domínios da educação, da moral e
até mesmo da economia, onde cada nova leva de beneficiários do progresso se apega a seus novos
privilégios com uma avareza e uma violência desconhecida das elites mais velhas: o fascismo surgiu
entre as novas classes médias criadas pela democracia capitalista, e a Nomenklatura soviética, a
mais ciumenta das classes dominantes que já existiu neste mundo, nasceu da ascensão de soldados
e operários na hierarquia do Partido.

- Há uma simplificação generalista neste argumento. O âmbito da atuação humana e a relação


dialética entre estes e o capitalismo são dinâmicos e complexos. Aqui recomendo a leitura do livro
“O Enigma do Capital”, de David Harvey.

- Com todo respeito, meu caro, mas David Harvey é um embusteiro da velha-guarda. O sujeito
defende – e no Brasil se entoa amém quando ele diz isso – que a crise dos Sub-Primes foi uma “crise
sistêmica do capitalismo”. Nunca vai a fatos concretos, com data, montantes, indivíduos, etc. Creio
que no Instituto Mises tem uma série de explicações pormenorizadas sobre a crise, mostrando os
mecanismos, etc. Esse tipo de explicação mais refinada jamais aparece na prosa de Harvey.

- Eu estou lendo David Harvey e permitam-me um comentário ácido: o sujeito faz um esforço
intelectual magnânimo para provar que “2 + 2 = 5”. Voltemos ao assunto do qual nos ocupamos:
com tanta frequência e de boca tão cheia sujeitos espertalhões falam de “democracia social”, de
“democracia cultural” e até de “democracia sexual”, que acabamos esquecendo que o uso da
palavra “democracia” fora do estrito domínio político-jurídico é apenas uma figura de linguagem – a
qual, tomada ao pé da letra, resulta em completo nonsense.

- Porque? Declarar nonsense é leviano. A intensão final é desqualificar o conceito. Já que, como
figura de linguagem adquire significado próprio.

- Caro, de fato, confundes um “termo” com um “conceito”. E “significado próprio” aqui é parte da
confusão em que tu adentras: um conceito é uma delimitação clara. Associações vagas pertencem a
outra esfera da comunicação e pensamento. Mas ambos são significados. O primeiro pode ser um
enunciado. O segundo, uma soma de palavras. “Democracia sexual” não é um conceito – é apenas
uma fórmula verbal. Se pego o que significa democracia, em termos políticos, e tento aplicá-la
sexualmente, não dá. Eu havia notado isso em outras áreas do pensamento: falava-se em “espaços
públicos democráticos”. Não faz o menor sentido. Democracia diz respeito à gestão da res pública,
da coisa pública, e não ao conteúdo das interações humanas. Que uma praça seja gerida pela
maioria, de forma direta, ou de forma indireta, por um ente estatal, não implicará que as pessoas ali
“se encontrem e interajam” – que é o objetivo difuso de toda a conversa sobre “espaços públicos
democráticos”. Nas Ciências Sociais mais atuais, tudo é assim: a) um vago interesse de futuro, que
nunca se questiona se é realista, se um dia ocorreu na face da Terra, b) a transposição de termos de
outra procedência sem um exame mínimo do seu significado, e sim por mera associação, c) a criação
de um “conceito” do mundo da fantasia. No caso dos espaços públicos, de um lugar mágico onde
pessoas de etnia, classes sociais, profissões, etc., diferentes, interajam.

- Perfeitamente observado, meu caro colega, e apenas complemento com uma breve colocação.
Democracia é o nome de um regime político definido pela vigência de certos direitos. Como tal, o
termo só se aplica ao Estado, nunca ao cidadão, à sociedade civil ou ao sistema econômico, pois em
todos os casos o guardião desses direitos é o Estado e somente ele. Compreendem?
- Não. De onde vem essa definição? Se não é cabível o uso da palavra “democracia” como figura de
linguagem, o sentido estrito é “governo do povo”. Aqui não entra o Estado. Por exemplo: no sentido
político-jurídico uma anarquia pode ser democrática.

– De novo argumentas em um mundo de fantasias. Primeiro: de onde vem a definição que tu aplicas
para criticar a definição anterior? Segundo: Democracia não tem este sentido estrito. Tu estas a usar
o sentido etimológico literal, e não o real; isto é, o que se queria dizer concretamente quando o
termo foi cunhado. Neste caso, não era “governo do povo”, e sim um regime político onde
o Deimos (a população com direitos políticos – que não era sequer a maioria. Não era o Povo, da
concepção atual) tinha direito a participar das magistraturas (isto é, cargos políticos). Sequer era a
ideia do voto em si mesmo. Por sinal, como não havia o Estado de Direito, a maioria podia decidir -
como decidia frequentemente - pelo banimento ou mesmo pela morte de qualquer indivíduo. Nessa
Democracia, a Pólis era a finalidade última da existência, e a autoridade máxima. Terceiro: tu
comparas, de novo, com algo que nunca existiu: “uma anarquia”. Não se pode tomar como exemplo,
como referente para validar um argumento ou invalidar outro, algo irreal. Não posso dizer: “ah, mas
em Tatooine isso nunca aconteceu”.

- É exatamente o que penso. Observem este exemplo: se uma empresa decide nivelar as diferenças
de salários entre seus empregados de funções idênticas, ela não está “praticando a democracia”,
mas apenas pondo em prática um direito que existe porque o Estado democrático o assegura. E se
ela fizer o mesmo fora de um Estado democrático, nem por isto estará implantando uma
democracia, pela simples razão de que age por iniciativa isolada, incapaz, por si, de estatuir direitos.
Democrático ou antidemocrático é o Estado e somente o Estado; os cidadãos e os grupos sociais são
apenas obedientes ou desobedientes à ordem democrática. A democracia é nada mais que a ordem
política e jurídica na qual certos atos são possíveis – e dizer que estes atos são “democráticos” é
tomar o condicionado pela condição que o possibilita: é metonímia.

- Ideia absurda! Veja, a república da China é uma “República Democrática”, assim como a Coréia do
Norte. Insisto: democracia é conceito! É, de uma forma ou de outra, figura de linguagem. E pode ser
usada dentro ou fora do Estado.

- Caro amigo, não entendo porque tu insistes em não entender o que digo, e ficas fixado a termos
que não compreende bem. Esqueça o caso das mentiras flagrantes da propaganda comunista, de
autodenominarem-se países “democráticos”. Pegue uma ordem democrática concreta. Brasil. Ou
Inglaterra. A democracia é um atributo do Estado; é uma qualidade dele (no sentido Aristotélico). As
pessoas só são “democráticas” metonimicamente. Entende? É muito simples! Para facilitar vanos
inverter: pessoas podem ser felizes – é um acidente, típico de uma qualidade humana, que é a de ter
um sentimento. Estados não podem ser felizes – não é um acidente que lhe é próprio, como não
pode ser azul, por exemplo (cor é uma qualidade humana, não do Estado). Mas um país onde a
maioria das pessoas são felizes, metonimicamente, pode ser chamado de “País feliz”. Novamente,
como tu achas que “toda palavra é um conceito”, não entendes o que o nosso colega quer dizer
quando se refere ao “pensamento metonímico”, que é pensar por associações, e não por realidades
e a abstração direta delas.

- Exato! Observem como é indispensável entender a natureza da linguagem, meu caros. De outro
modo, ficaremos à deriva! Mas, continuando o meu raciocínio: o erro em que incorre quem toma
literalmente a sério expressões como “democracia econômica” ou “democracia social” vai muito
mais fundo do que um mero deslize semântico. Pois a transposição da ideia democrática para outros
campos além do político-jurídico, em vez de estender a esses domínios os benefícios que a
democracia assegura no seu domínio próprio, resulta apenas em ampliar o domínio político-jurídico:
tudo se torna objeto de lei, tudo fica ao alcance da mão da autoridade.  Mas a democracia, por
essência, consiste justamente em limitar o raio de ação do governante: estendê-la é destruí-la.

- Caro colega, você defende então que o Estado é a democracia em si e não pode estendê-la a outras
esferas da vida? Há aí uma simplificação extrema da dinâmica do capitalismo.

- Deixe-me responder. Vou tentar ser claro e breve. O nosso amigo defende que certos entes
possuem qualidades intrínsecas. E que “democracia” se tornou uma palavra mágica, imantada de
associações sentimentais. E ele nunca disse que “o Estado é a democracia em si”. A democracia é um
tipo de organização de um ente específico, chamado Estado. É uma de suas “constituições”, como
dizia Aristóteles. Não se aplica a outros entes.

- Além de tudo, meus caros, a vitória mundial da ideia democrática traz, consigo, a tentação suicida
de tudo democratizar, que no fim das contas é tudo politizar, dando àquele que tem o poder político
um poder ilimitado sobre todos os outros domínios e esferas da vida. Só por uma ilusão verbal é que
se pode imaginar uma “democracia sexual”, por exemplo, como um paraíso libertário: a submissão
da vida sexual aos critérios democráticos é a universal invasão de privacidade – e aquele grão-
hierofante da democracia ilimitada, que foi o sr. Bill Clinton, sentiu na carne os efeitos da sua própria
bruxaria. E por aqui encerro com a seguinte ponderação: o remédio para os males da democracia
não está em mais democracia: está em reconhecer que a democracia não é o remédio de todos os
males.

- Posso concordar com essa afirmação, mas por motivos opostos: compreendo que a democracia é
um aspecto da sociedade, mas ainda assim, interligado a outros, em uma relação dialética. Há muita
simplificação no seu argumento.

- Veja, novamente, a cadeia de raciocínio escapa a tua visada. Nosso nobre colega defende que
regimes políticos não são valores em si mesmos. Sem o conteúdo espiritual de uma sociedade, que é
quem preenche de sentido, de fato, tais regimes – monarquia, democracia, etc. Ao contrário, se tais
regimes forem considerados valores em si mesmo, fatalmente se metamorfoseiam no seu contrário.
O liberalismo em escala mundial, por exemplo, leva à regulamentação necessária, e, portanto, a um
para-poder, um meta-poder, em escala global. E por aí vai. Entendes? E, de novo, as palavras para tu
não têm consistência: “democracia” não é aspecto da sociedade. A organização política, sim. E, veja
bem, a relação dialética é entre dois termos apenas. Não pode haver um “aspecto” da sociedade
“interligado a outros” dialeticamente. Enfim: muitas palavras são usadas pelo que soam, não pelo
que significam. Falta-lhe compreender a natureza da linguagem e certos aspectos dela. Tu não
imaginas a facilidade com que este defeito nos arrasta para longe do mundo real.

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