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O Estado e o Master of Puppets

Cidadania como forma de exclusão e fragmentação

Soraya Lunardi – Dimitri Dimoulis

A crise dos conceitos de Estado Cidadão – o Poder do Master of Puppets:

Todos aqueles que estudam direitos fundamentais, direitos humanos sabem muito bem
que um de seus marcos iniciais foi a revolução francesa. Essa esquerda que se
estabeleceu na Revolução francesa em oposição às deficiências da revolução como a
mensagem jacobina de patriotismo, e a dúvida que se colocava e que ainda se coloca – a
França pertencia a seu povo ou ao rei? O rei era rei da França ou dos franceses?

É um momento simbólico pois teoricamente o povo francês, cansado da condição de


quase escravidão na qual vivia resolve questionar o sistema monárquico que tanto lhe
tirava e tão pouco lhe dava. Com base nas idéias de abolição da servidão e dos direitos
feudais se proclamava “liberdade, igualdade e fraternidade”.

Fica aquela imagem caricata do coletor de impostos, representante do Estado, que


tirava todo o dinheiro do trabalhador (cidadão) e quando esse não tinha mais dinheiro,
lhe tirava a criação: porcos, galinhas, trigo a terra e tudo mais para que se cumprisse a
obrigação: impostos para o Estado esfomeado. Nada mais antiquado que a revolução
francesa, nada mais falado, analisado e contestado, mas lendo sobre a crise financeira da
Grécia nesses últimos meses, achei que a função do Estado na época da Revolução
francesa e a atual não eram tão diferentes assim.

Tanto tempo depois de Luis XVI penso com saudades naquele inimigo, tão humano, tão
real tão visível. Muitos séculos depois olho para a Europa e especialmente para o povo
grego e vejo problemas econômicos e até políticos muito parecidos. Mas agora o
problema que mais me intriga é: quem é o inimigo do povo grego? Onde está Luis XVI
para que possamos acabar com ele, cortar sua cabeça e declarar solenemente mais uma
vez que o povo será livre e igual?

Bons tempos aqueles em que se sabia o que era o Estado e quem era seu representante.
Hoje o inimigo do povo grego é um espectro invisível e responde pelo nome de
economia capitalista e globalizada – dívida externa. Hora mas, que conquista
interessante essa! – a União Européia teve o mérito de acabar com tradicionais
conceitos como a soberania dos Estados como nós conhecíamos e fez o direito
internacional, a livre circulação de seus cidadãos (europeus), a livre regulamentação dos
mercados serem mais atuais que nunca. Ótimo então. A dúvida que fica é: e o que são
os cidadãos agora? Para que serve o conceito de cidadania? E a proclamada democracia
como será exercida sem esses conceitos tão démodés?

Nos deparamos com outra curiosa situação: mais de 80% da população não concorda
com as mudanças impostas pelo FMI e pela União Européia como demissão em massa,
aumento dos impostos. O povo sai nas ruas e grita a plenos pulmões – não devemos não
pagamos não vendemos, e os representantes(?) dos cidadãos gregos o que fazem?
Votam pela implantação de todas as medidas impostas pela EU e pelo FMI.
Interessante, isso, mas afinal de contas quem é o chefe do coletor de impostos que se
tornou o governo grego? Quem é esse soberano que vai se apossar de boa parte do PIB
dos cidadãos Gregos? Ou quem é o inimigo que os Gregos devem combater?

O modelo tradicional de democracia não passa inclusive a lei, nesse contexto, de falácia
para submeter os trabalhadores ao poder do capital que é o único que reina soberano.
Não há um único texto normativo que se sobreponha ao capitalismo absolutista do
nosso tempo. De que importa ou a quem importa os direitos do cidadão se a constituição
grega prevê direito à saúde, ou direito à educação ou direito à propriedade? Essas
palavras não têm qualquer poder diante do valor maior que é o mercado econômico
mundial e o mercado comum europeu.

E os juristas tolos, (me incluo na classificação) dizem que a revolução francesa foi um
marco para a imposição de limites ao Estado diante de garantias fundamentais do
cidadão. Ou seja, o cidadão havia conseguido conquistar um espaço de direitos que o
Estado não poderia ultrapassar como a liberdade, a propriedade a igualdade. Ledo
engano mudaram as perucas e as máscaras. O nobres, continuam nobres, o clero
continua sendo o clero os burgueses ainda são burgueses e os pobres continuam a
financiar as perucas de seus monarcas hoje nosso mais adorado louvado e endeusado rei
o capital – internacional. Viva o espectro do nosso rei – Vossa Alteza Real o Capital.

Temos então a desconfiguração do modelo tradicional de Estado, que não ocorreu pela
revolução popular dos trabalhadores como quiseram os anarquistas, mas pela
prevalência do poder do Capital. Não temos mais governantes no sentido de detentor do
poder absoluto do Estado, o papel e o poder do chefe do Estado são cada vez menores e
a opressão dos trabalhadores cada vez maior. Posso usar a estrofe de uma música que
pode explicar esse fenômeno mundial: Master of puppets I'm pulling your strings
Twisting your mind and smashing your dreams Blinded by me, you can't see a thing
(Metálica – Master of puppetes). O poder invisível do capital permanece como um
espectro sobre os ideais de cidadania ou mesmo em relação aos ideais democráticos e a
própria estrutura do Estado.

O que significa ser um cidadão? Esta é a primeira pergunta feita por qualquer pessoa
interessada no assunto (que significa ser um cidadão sueco, por exemplo). A resposta a
ser dada pode ter significados e fundamentos diferentes: com base: nas normas legais,
práticas administrativo-judiciais, através da análise da filosofia política, economia e
sociologia. É necessário para entender a resposta para essa pergunta avaliar as
condições e consequências da cidadania política.

Ao responder essa pergunta "o que significa na prática a cidadania?" É a melhor


resposta, como vemos, mas a verdade é que o conceito de cidadão depende diretamente
da estrutura estatal. O dilaceramento do formato tradicional de Estado esse termo
impreciso, abstrato e impessoal passa a ser mais distante e misterioso quando se
confunde com uma “União Européia”. O trabalhador nem sabe mais quem é o detentor
do poder são os espectros, esses Master of puppets essas figuras ocultas que movem os
interesses e que nos fazem entender a fragilidade da soberania e do próprio Estado,
conseqüentemente os direitos e deveres do cidadão seja ele indivíduo seja ele multidão
ou povo se perdem, já que não é possível identificar the master that control yours
strings.

A mudança da estrutura do Estado não significa que ele deixou de existir mas que
adquiriu uma espécie de couraça que o recobre – no caso da Grécia a União Européia,
logo o Estado não está fragilizado como instituição dominadora e exploradora, ele está
simplesmente mais sofisticado já que se dissipa nesse jogo de espectros – quem exige
mais e mais dinheiro do trabalhador grego – a União Européia.

Enquanto houver essa sobreposição de Estados não haverá povo grego e muito menos
cidadão. Esse super-estado desumaniza e enfraquece as massas populares, mesmo nas
repúblicas mais democráticas. O povo agora não só não trabalha para si e para a sua
felicidade, tem que trabalhar para a riqueza da Grécia e da União Européia e dos Bancos
Mundiais. Tudo isso não é outra coisa senão a garantia e fortalecimento da exploração
da massa popular em benefício de uma pequena casta.

O Estado não é mais o Estado, é apenas uma célula da economia mundial. O


representante do Estado não representa o povo, representa outros interesses se
submetendo a mão invisível do capital, sendo então um puppet. Nesse contexto qual é a
função política da cidadania? Qual a finalidade das eleições e da proclamada
democracia?

E seguem os apaixonados protestos em praça pública onde especialmente os jovens


manifestam seu descontentamento não só com a economia mas com uma clara crise de
representatividade em uma crise política que atinge as democracias ocidentais. A
dificuldade de acesso à educação e aos empregos não são solucionados pelos sucessivos
governos que se elegem por eleições cada vez mais caras que só podem ser bancadas
por ricos e corruptos.

Isso indica a crise do modelo democrático e da própria cidadania. Na atualidade a


cidadania acaba sendo mais um elemento de fragmentação da multidão insatisfeita. Da
mesma forma que o Estado fomenta o nacionalismo, a religiosidade e outras ideologias
que servem como formas de fragmentar a força da multidão que fragmentada perde a
força.

As manifestações que vêm acontecendo no mundo: na Grécia, no norte da África, no


oriente médio, na Rússia não podem ser vistas como uma repetição do passado, são
experiências originais e ultrapassam os limites da religião e de rótulos nacionalistas.
“Essas revoltas imediatamente realizaram um tipo de faxina ideológica, varrendo as
concepções racistas de choque de civilizações que comprometiam a política árabe no
passado. (Negri e Hardt)”

É a juventude altamente educada da Europa que vê seu futuro ameaçado pela


desestrutura do Estado que clama nas praças de Londres, Roma, Atenas. Os jovens
árabes não toleram mais a tirania de governos autoritários que não se preocupam em
diminuir a pobreza. Por outro lado esses mesmos governos ignoram o poder dessa
massa popular de pessoas altamente informada, integrada pelas redes sociais mundiais.
Esse é o espaço democrático na atualidade.

Se o conceito de cidadão fragmenta o poder de decisão e de ação já que delimita os


atores políticos através de normas eleitorais que excluem a participação popular direta, a
rede mundial de computadores por sua vez unifica e fortalece a multidão. A internet não
pode ser facilmente controlada como as mídias tradicionais: televisão ou rádio. Não
existe um único líder que comande a multidão que se une nas redes sociais, é a própria
multidão personificada, a multidão se organiza sem um centro. As redes sociais vêm
possibilitando as verdadeiras manifestações populares.

Esse parece ser mesmo o novo espaço da democracia. O Estado começa dar sinais de
resistência a liberdade da internet. Nos EUA temos duas novas leis Protect Intellectual
Property Act (PIPA) e Stop Online Piracy Act (SOPA). A justificativa é a proteção aos
direitos autorais. A verdade é que o Estado quer intervir nesse espaço de liberdade que é
a internet o que comprometeria sua principal finalidade. O WWW (World Wide Web)
foi criada como uma rede de alcance mundial, logo não deve estar submetida aos
poderes de repressão de qualquer estado.

Precisamos resistir à censura na internet. Não podemos deixar que acabem com o único
espaço de liberdade e democracia. Sim o exercício da democracia direta pode ser
exercido diretamente pela internet. Essa experiência já foi colocada em prática. O
Parlamento da Islândia recebeu em julho de 2011 o projeto da primeira constituição do
mundo formulada com sugestões populares enviadas por meio de redes sociais na
internet. Foram encaminhadas cerca de 3500 sugestões pelo Facebook e pelo Twitter ou
diretamente na página do conselho constitucional. É uma participação significativa para
um pais de aproximadamente 400.000 habitantes.

Vivemos uma clara mudança no modelo democrático. Essa nova era que se inicia com
exigências de mudanças demonstram a crise do modelo capitalista e da democracia
tradicional. Nesse contexto a cidadania é elemento de fragmentação e exclusão. A
multidão deve se manifestar e pensar como bloco e não como fragmentos e a internet é
o instrumento que possibilita essa manifestação conjunta. Não existem cordas que
possam controlar a multidão que pode se fazer ouvir até pelos mais surdos, ou pelos
masters que controlam os puppets que não podem governar e não vão governar se a
multidão assim decidir.
Os mestres invisíveis da política
 
Fazer política significa decidir, criar normas, guiar a sociedade e, nas
democracias, representar a vontade popular. Nada disso ocorre na atual da
política brasileira, parecendo minguar o grau de autonomia dos políticos em
relação a grandes empresários e banqueiros, tanto nacionais como
estrangeiros.
O sistema constitucional que surgiu após a revolução francesa trouxe o
fim das monarquias que concentravam o poder. A França não pertence mais ao
rei mas ao povo. É um momento simbólico, de questionamento da submissão
que expressa a imagem caricata do coletor de impostos, representante do
Estado, que arrancava do trabalhador não apenas dinheiro, mas seus meios de
subsistência.
A promessa do sistema de separação de poderes, erigido contra o
absolutismo, é a fiscalização mútua das autoridades estatais, garantindo
limitação, transparência e pluralismo. Mas hoje, as decisões políticas
promovem a concentração do capital, favorecem a venda de ativos nacionais
como medida de liberalização e diminuem impiedosamente salários e
aposentadorias dos trabalhadores. Entre tantos exemplos, o BNDS ofereceu
recursos estatais a empresas que os utilizaram para se impor aos
concorrentes, revertendo parte do lucro a políticos.
Os três poderes concordam nas “reformas” que restringem direitos
fundamentais. Como não lembrar do coletor de impostos que arranca os bens
dos trabalhadores? A lei parece mais uma falácia para submeter o povo ao
poder econômico, dos banqueiros e empresários que reinam soberanos.
Mudaram as perucas e as máscaras, mas os nobres, continuam “nobres” e os
pobres financiam as perucas de seus monarcas.
A diferença talvez esteja no fato que ninguém sabe ao certo que é o
detentor do poder. O “invisível” capital dita suas vontades, controlando as
cordas do poder e dando voz aos políticos que ocupam a cena pública. Mas as
decisões continuam sendo tomadas fora da esfera pública pelos invisíveis
titulares do poder. Vivemos à sombra de mestres que controlam marionetes.
 
 
Dimitri Dimoulis
Professor de direito constitucional da Escola de Direito de São Paulo da FGV
 
Soraya Lunardi
Professora de direito público da Unesp 

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