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Ficha Técnica

Título: Soberania – Dos Seus Usos e Abusos na Vida Política


Autor: Miguel Morgado
Edição: Duarte Bárbara
Revisão: Isabel Garcia
Capa: Maria Manuel Lacerda
ISBN: 9789722072243
 
Publicações Dom Quixote
uma editora do grupo Leya
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
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Este livro segue a grafia anterior ao Novo Acordo Ortográfico de 1990.


Índice
Capa
Ficha Técnica
INTRODUÇÃO
I - A SOBERANIA
1. Deus é soberano
2. A Potentia Absoluta
3. A querela das duas soberanias
4. A plenitudo potestatis: dos seus usos e abusos
5. Jurisdição e supremacia
6. Resposta à pergunta «o que é a verdade?»
7. Errar é soberano?
8. Jean Bodin
9. Família e soberania
10. O carácter absoluto da soberania
11. 2+2, ou o bom é bom porque o queremos, ou queremos o que é
bom por ser bom?
12. Abaixo a Ditadura!
13. Excepção à regra
14. A soberania da crise
15. Nas origens desordeiras da soberania
16. O direito e o poder
17. A federação da diversidade
18. A violência e a incerteza
19. A majestade vs. A soberania da razão
20. A neutralidade soberana
21. Público e privado
22. O Estado soberano também é uma pessoa
23. Uma pessoa hipócrita de corpo e alma
24. Proteger e servir
25. O caso do Hobbes alemão
26. O problema da indivisibilidade
27. Terra firme
28. Pessoas responsáveis e irresponsáveis
II - SOBERANIA DO POVO OU SOBERANIA DA NAÇÃO?
1. Casadas à nascença
2. Revoluções e soberania
3. A Revolução e a primeira alusão a uma soberania popular
constituinte
4. Como a soberania popular pretende criar a ordem política
5. Uma casa, com certeza
6. «Façamos uma Constituição!» (1)
7. O problema da indivisibilidade revisitado
8. «Façamos uma Constituição!» (2)
9. «Façamos uma Constituição!» (3)
10. Nação Valente
11. Nação sobrevivente e superveniente
12. Da particularidade
13. Uma Nação que fala
14. A Nação também é uma pessoa
15. Poder constituinte novo e Nação velha
16. Revisão da matéria dada
17. O povo é soberano quando fala num referendo?
18. O Povo da Nação e a Nação do Povo (1)
19. O Povo da Nação e a Nação do Povo (2)
20. A verdade efectiva da soberania é a soberania popular e/ou
nacional
21. Soberania vs. Soberania
III - A SOBERANIA «PARTILHADA»
1. Nós, Modernos
2. A Europa com princípios e em imagens
3. A paz perpétua é compatível com a soberania? (1)
4. A paz perpétua é compatível com a soberania? (2)
5. O pós-soberanismo frente à soberania popular e à nação
6. Imagina um mundo sem soberania. Não é difícil imaginar.
7. O Pós-soberanismo como anti-estatismo
8. Europa velha, Europa nova (1)
9. Antes da Europa, houve América
10. Europa velha, Europa nova (2)
11. O que resta da soberania nacional num sistema de soberania
partilhada?
12. A saída
13. A soberania enquanto autonomia
NOTAS FINAIS
MIGUEL MORGADO
SOBERANIA
DOS SEUS USOS E ABUSOS NA VIDA POLÍTICA
INTRODUÇÃO
«[…] Governar um ser não é outra coisa senão impor-lhe uma
ordem [...].»1
Tomás de Aquino
«A República Portuguesa é um Estado de Direito democrático,
baseado na soberania popular [...].»2
Constituição da República Portuguesa
A soberania continua a ser a chave do político. O alcance desta
proposição é o que está em causa nas páginas que se seguem.
Mas comecemos pelo início e por partes. A soberania foi o destino do
Estado moderno. Foi a sua coroa e o seu oxigénio. Na soberania há algo
da vitalidade do político que os seus detractores desconhecem. E há algo
da perigosidade do político que os seus proponentes desvalorizam. Tal
como Políbio dizia da constituição da república romana, que ela podia ser
classificada, de um certo ponto de vista, como aristocrática, ou de um
outro, como democrática, também a soberania pode ser vista como refúgio
de segurança ou fonte de ameaça mortal. A soberania é nociva e supérflua,
igualitária e hierárquica, moderna e obsoleta, uma arma e uma ilusão. A
soberania já foi, já não é, mas está sempre a voltar ser. Ela é e não é.
Este livro tenta fazer justiça a detractores e a proponentes da soberania,
mas sem procurar aquela neutralidade típica de um academismo estéril e
aborrecido. Como num debate em curso, procuro aprender com uns e com
outros, não porque ambos, por serem partes de um debate, tenham direito
a ser escutados por igual, mas porque uns e outros têm pontos
genuinamente interessantes a levantar. Aqui, não se hesitará em dar razão
a quem a tiver, nem a declarar vitória provisória se uma das partes estiver
a levar a melhor. A fasquia é pura e simplesmente demasiado alta para
registos de indiferença. O tema é demasiado actual e historicamente
importante para discussões distantes. Está ligado a um sem-número de
problemas políticos clássicos e outros que insistimos em criar na nossa
era. Teremos de seguir esse debate para onde nos levar nos seus
movimentos livres. Ou, pelo menos, tentaremos acompanhá-lo nalgumas
das suas diferentes vagas. Segui-las todas tornaria este livro demasiado
extenso e pesado. A história do conceito de soberania – que não irei contar
aqui exaustivamente – é feita de muitas pequenas grandes histórias das
discussões dos seus detalhes, dos desafios que se foram revelando, dos
debates entre proponentes, detractores e indecisos – e algumas delas, sim,
contarei aqui.
A noção de soberania conduz e divide o Ocidente há pelo menos
quatrocentos anos. Provavelmente, não há conceito mais central na
fundação e articulação do Estado moderno do que o de soberania. E, nessa
medida, isto é, na medida em que um processo político tão complexo, tão
polémico e tão profundo nas suas consequências para as várias dimensões
do viver humano gravitou em torno desta ideia, é preciso concluir que
uma parte significativa da nossa história política, e não apenas intelectual,
resultou das diferentes apropriações e rejeições da noção de soberania. Por
outras palavras, a soberania foi, e continua a ser, um conceito polémico
que mobiliza uns contra outros segundo toda a gama de possibilidades de
uso político de uma ideia. Desde logo, podemos dizer das grandes
revoluções modernas – a Revolução Inglesa na década de 40 do século
XVII, as Revoluções Americana e Francesa no final do século XVIII – aquilo
que se disse da Revolução Americana, a saber, que, «em última análise,
foi em torno desta questão [da soberania] que a Revolução foi levada a
cabo».3 Não restam muitas dúvidas que foi precisamente no contexto da
Revolução Inglesa, violenta e prodigiosamente fértil para as discussões
políticas e constitucionais, que o tema da soberania pela primeira vez na
História influenciou directamente um debate entre partes que se
digladiavam intelectualmente e no campo de batalha.
A soberania intromete-se conveniente ou inconvenientemente na
conversação que tem lugar há séculos sobre o Estado. Digo conversação
porque desde há algum tempo que a teoria política, embora sempre
tomando o Estado como um pressuposto implícito, raramente se esforça
por discuti-lo. A teoria política dos nossos tempos, em todo o seu afã
humanitarista de descobrir temas que aparentemente a história de séculos
de obscurantismo ou de opressão social escondeu, experimenta excessivas
inquietações quando tem de analisar uma das unidades primordiais do
léxico e da prática política – o Estado. Tal abandono é imensamente
revelador do labirinto intelectual em que o pensamento ocidental caiu nos
últimos cinquenta anos. Mas, seja como for, não deveria ser muito
controverso dizer que uma filosofia política que contorne a questão do
Estado no seu sentido funcional, no seu sentido histórico ou no seu sentido
normativo, será sempre uma filosofia política radicalmente incompleta.
Sobretudo se a omissão for pela razão arrogante da declaração unilateral
de que o Estado é uma unidade «obsoleta» a ser substituída, ninguém sabe
dizer por quê nem por quem. Ou se o oblívio se dever ao essencial temor
de se confrontar a realidade de um modo que convide directamente ao tão
abominado «essencialismo». A pergunta o que é o Estado?, ou como se
distingue o Estado de outras realidades político-jurídicas?, parece
arrastar-nos para as armadilhas a que ensinam os politólogos a fugir: as
perguntas antigas o que é?, quem é?, como é? Hoje em dia, a mera
articulação dessas perguntas denuncia imediatamente uma certa
menoridade intelectual, uma embaraçosa desactualização sobre o chamado
«estado da arte» do que se faz nas universidades orgulhosamente
divorciadas do mundo da prática e da acção. Se a soberania apareceu
como conceito para tentar responder a perguntas desse género, é natural
que seja também olhada com suspeita através das lentes das convenções
académicas. Uma minoria mais erudita ainda poderá alegar com o
conhecimento histórico que mostra como o conceito de soberania foi ao
longo do tempo significando coisas diferentes e que nunca chegou a reunir
um sentido milimetricamente consensual. Que utilidade, então, terá uma
noção que nem num passado simbólica, léxica e retoricamente menos
fragmentado do que o nosso presente – o que está longe de ser uma
proposição verdadeira, de resto – pode apresentar-se com uma
integralidade reconhecida por todos? Porém, a soberania persiste em
intrometer-se porque a questão do Estado ainda é omnipresente. Persiste
em intrometer-se porque a questão aristotélica quem governa? mantém a
sua actualidade. Persiste porque a vida cívica em grande medida gravita
em torno da pergunta como se governa e se é governado?
Assim, tivemos diferentes interpretações e apropriações do conceito de
soberania a fazer revoluções e a disputar a sua liderança; a reagrupar as
respectivas reacções; a estabelecer visões de progresso e de estabilidade; a
defender a integridade e auto-suficiência do Estado nacional e do império,
mas também a recomendar a superação de uma e de outra forma política
rumo às «integrações regionais» ou até à miragem do «governo mundial».
Vimos a discussão controversa da noção de soberania sustentar a doutrina
dos direitos humanos e a apoiar a construção dos totalitarismos que a
negaram. Temos testemunhado a sua importância no discurso
«económico» desde as primeiras respostas nacionalistas no século XIX às
teses cosmopolitas de Adam Smith, David Ricardo, Robert Torrens, ou
mais emblematicamente do manchestarista Richard Cobden, até às
reconsiderações ditas «macroeconómicas» a partir dos anos 20 do século
passado e às reflexões sobre a actual globalização em curso e
consequentes ansiedades. Em inúmeros momentos fulcrais da história
política dos últimos séculos, a noção de soberania aparece como um alfa e
um ómega do horizonte de possibilidades intelectuais no interior do qual o
homem ocidental tentou meditar nos seus problemas e dominá-los
politicamente.
Ao contrário da esperança que, a partir dos finais dos anos 40 do século
passado, foi acalentada numa Europa esmagada pelas ruínas da guerra, e
ensombrada por Auschwitz e pelo GULAG, a discussão e interpretação da
vida política da Europa das Uniões e das Comunidades não quiseram, ou
não foram capazes, de abandonar a referência da soberania. Depois de
décadas em que, pelo menos no núcleo duro da Europa das
«comunidades», a ideia de soberania parecia ir falecendo inexoravelmente
para ser substituída, diziam alguns, por uma forma superior de
democracia, eis que os últimos anos fizeram regressar, e em força, a
invocação da soberania como recurso decisivo na definição ou na
clarificação política.
A crise financeira, que em 2010 rapidamente se converteu numa crise da
União Monetária, a que poucos anos mais tarde veio associar-se a
chamada «crise das migrações», veio pôr em causa algumas das
convicções fundamentais anteriores. Foram sempre mais íntimas do que
explícitas, mais da coutada de elites bruxelenses e académicas do que
parte do discurso político dos Estados nacionais. De entre essas
convicções contava-se certamente a necessidade simultaneamente
histórica e moral de superar o horizonte das soberanias nacionais rumo a
uma era dita de «pós-soberania». Nessa redentora era, a política seria
superada pela administração e pelo direito, num golpe de teatro que uniria
o projecto irónico de através do mercado livre e da protecção das
liberdades burguesas se chegar a um dos elementos centrais na doutrina
marxista da emancipação da humanidade: o governo dos homens a ser
substituído pela administração das coisas. Para uma certa elite europeia do
pós-Segunda Guerra Mundial, tal era a condição política de superação e
quiçá de redenção dos males europeus das guerras totais, dos extermínios,
dos totalitarismos e dos colonialismos. Essa condição exprimir-se-ia de
um ponto de vista cultural como a Europa que renunciava a sê-lo, cansada
de si mesma, odiosa aos seus próprios olhos, para se confundir na grande
massa da Humanidade.
O consolo para esta exaustão estava num anúncio ou numa proclamação
– a de que vivemos num mundo «pós-soberano». A exiguidade dos
territórios e a sua permeabilidade a todo o tipo de fluxos, materiais e
imateriais, estava aí para o confirmar. Sobretudo, não havia divisa mais
provocadora de consensos nos meios de comunicação social ou na
intelligentsia instalada do que a proclamação da nossa «interdependência»
planetária. Desde a base prosaica dos «factos» que apontava para a
«interdependência» económica e tecnológica até às montanhas onde o ar
era rarefeito, e que saudavam a essencial indistinção espiritual da
«humanidade», tudo concorria para condenar a soberania.
O Estado entendido segundo fórmulas simplistas parecia não dar conta
do recado como alegadamente teria dado no passado imaginário de quem
mais precisava de consolo. O mundo político estava repleto de
organizações que indiscutivelmente exerciam poder, intrometendo-se,
portanto, na «soberania» dos Estados, e que não podiam de modo algum
ser confundidas com comunidades políticas tradicionais. Havia a miríade
de poderes regulatórios e de supervisão internacionais que abrangiam
tudo, desde o transporte aéreo civil de passageiros até ao sector financeiro.
Havia a ONU, filha da prematuramente falecida Liga das Nações, mais as
suas agências como a UNESCO, a Organização Internacional do Trabalho,
a Organização da Aviação Civil Internacional, a Organização Marítima
Internacional, ou aquela que na eclosão da pandemia da COVID-19 mais
esteve na berlinda, a Organização Mundial da Saúde, entre outras. Havia o
Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. Mais jovem, mas não
menos notória, era a Organização Mundial do Comércio. Mas havia muito
mais. Na Europa tínhamos a União da Europa Ocidental e o Conselho da
Europa, a União Europeia e a sua panóplia institucional, com instituições
inéditas como o Banco Central Europeu ou o Tribunal de Justiça da União
Europeia. Tínhamos a NATO. Outros continentes tinham a Organização
dos Estados Americanos, a União Africana, a ASEAN ou a Liga Árabe,
para não falar no que sobrava das ligações coloniais do passado na
Commonwealth ou na Organização Internacional da Francofonia. Havia
estruturas informais como o G7, o G20 ou o Clube de Paris. O mundo da
regulação de uma economia cada vez mais mundializada geraria a sua
própria prole organizacional, tal como a exportação do modelo das
associações nas sociedades civis para a constituição de uma sociedade
civil global habitada por múltiplas ONG. Tudo isto era mundo, tudo isto
era novo, tudo isto era político. Mas a simples constatação não
demonstrava nada. Pelo contrário, escondia duas coisas fundamentais:
primeira, a de que o putativo recuo da soberania dos Estados significava –
para as sociedades democráticas, pelo menos – o correspondente recuo da
soberania popular; segunda, um consolo não era, nem podia ser, uma
explicação para o cansaço.
A ausência de uma explicação teórica satisfatória para a fuga da
soberania nas últimas décadas europeias sugere precisamente de um
fenómeno de fadiga política, moral e intelectual. Uma fadiga provocada
pela própria ideia de soberania, se tomarmos em conta o conceito do
político que lhe está associado. Ainda assim, é preciso perguntar pelas
razões desta aversão ou fadiga moral. Podemos atender a várias
possibilidades de resposta. Por exemplo, a incompatibilidade moral entre a
«tese ateniense»4, tal como foi apresentada por Tucídides com a sua
afirmação da força irresistível das pulsões – ou da necessidade –
nacionais, por um lado, e as aspirações a uma «comunidade global»
orientada por alguma concepção de justiça, por outro. Outro exemplo: a
força moral que é atribuída à multidão de forças dispersas, e à própria
dispersão, em contraposição à unidade das forças e ao monismo. Mais um
exemplo: a superioridade moral associada à horizontalidade das relações
políticas por contraponto à sua verticalidade, isto é, a hierarquia mais a
centralização. Ainda outro exemplo: a ascendência moral de que goza a
superação do horizonte moral da Modernidade quando comparado com a
complacência e a frieza modernas de que, por exemplo, um Max Weber
falava. Um penúltimo exemplo: o imperativo moral inerente à abolição da
fronteira que separa o interno do externo, e o nacional/nativo do
estrangeiro em contraste com os vestígios de um passado bárbaro e
violento. Por fim, e o que mais preocupação inspira, esta fadiga pode
muito bem estar enraizada numa impaciência difusa com os impasses da
democracia representativa e com as suas subtilezas.
Mas as crises políticas e económicas vieram provocar rombos de
afundamento às versões intelectualizadas desta tentativa de viragem
cultural e de projecto político. As ideias políticas também se sujeitam a
uma espécie de voto mais ou menos popular. Também elas são criaturas de
um género de ciclo eleitoral/mediático. A democracia penetra com os seus
valores e métodos também na vida intelectual.5 Os «pluralismos
constitucionais» ou as «soberanias do Direito» já gozaram de mais
popularidade, mesmo junto dos referidos círculos, do que gozam hoje.
A 22 de Fevereiro de 2019, o então presidente do Banco Central
Europeu (BCE), Mario Draghi, falou à comunidade académica da
Universidade de Bolonha sobre a questão da soberania. Draghi fora
escolhido para presidente do BCE na mais grave hora de crise da jovem
moeda única europeia. Escolhido em Maio de 2011 pelos chefes de Estado
e de Governo europeus, já com a Grécia, Irlanda e Portugal sob programas
de assistência financeira, Draghi iniciaria o seu mandato em Novembro do
mesmo ano quando não era incomum aparecer alguém a duvidar da
continuidade da Grécia, e nalguns casos de Portugal também, na União
Monetária. Substituía Trichet, um burocrata que parecia ter o burocrático,
monótono e previsível perfil ideal para governar o BCE quando o euro
fora concebido nos pacíficos anos 90 do século passado, mas que agora
saía sem deixar qualquer saudade. Draghi parecia vir de outro mundo.
Vivo, muito inteligente, estratega, conhecedor do mundo financeiro ou não
tivesse sido um alto quadro da mefistofélica Goldman Sachs, Draghi
esperou até ao momento em que já não restavam quaisquer dúvidas sobre
o enquadramento institucional e o apoio político a um salto inaudito de
política monetária. The man with a plan disse que faria «o que fosse
preciso», e que tal «seria mais do que suficiente». Mas fê-lo quando a
União Bancária, proposta primeiro por países como Portugal aos seus
parceiros holandeses e alemães logo no final de 2011, já tinha as suas
peças elementares a ser montadas e, quer o Bundesbank, quer o governo
alemão, menos intranquilos. Percebeu-se, então, que ele agira sempre com
base num plano metódico que teria de ser jogado etapa a etapa.
À partida, o tema seria inusitado para o líder de uma instituição que, de
certo modo, representava o triunfo do mundo europeu pós-soberano – uma
instituição não só nominalmente independente dos poderes políticos
europeus e nacionais, e com essa independência fortemente protegida
pelos tratados, mas também que liderava a experiência política de se ter
uma moeda sem um «soberano» exacto que lhe correspondesse.
Por outro lado, o tema certamente não soou estranho aos ouvintes. Em
primeiro lugar, e, para fazer uma observação banal, «cunhar moeda» é
desde há muito defendido por muitos, embora não por todos, dos grandes
teóricos do conceito como uma das prerrogativas exclusivas do soberano.
Para Thomas Hobbes, por exemplo, o filósofo do século XVII de quem
falaremos bastante neste livro, e porventura o mais influente dos teóricos
da soberania, a cunhagem de moeda era prerrogativa soberana, mas podia
ser transferida para outrem que estivesse subordinado ao soberano. Ao
conceder o estatuto de prerrogativa soberana, seguia os passos de Jean
Bodin, o patriarca dos estudos sobre a soberania, que via apenas a lei entre
as coisas de «maior consequência» do que a fixação do «título, valor e
peso» da moeda. E acrescentava que não fora por acaso que o imperador
Constantino passara a condenar os falsificadores de moeda como
criminosos de lesa-majestade. Não deixa de ser irónico que a chamada
Modern Money Theory (MMT), uma orientação doutrinária no campo da
macroeconomia e da economia monetária normalmente associada à
esquerda política nos EUA e noutros países, mas que tem as suas raízes
em economistas dos anos 30 e 40 do século passado, como Abba Lerner e
sobretudo John M. Keynes, estabeleça como «soberanos» os Estados que
«imprimem» a sua própria moeda. E, nesse registo, defendem a
superioridade dessa via relativamente à «não-soberania» monetária.
Sobretudo no que respeita à capacidade e eficácia para obter resultados
económicos societais dado que possuem uma «flexibilidade»
insubstituível e não estão sujeitas a «restrições financeiras rígidas»6. Nas
palavras de uma proponente particularmente activa no espaço público em
defesa desta doutrina, «quando um país emite a sua própria moeda não-
convertível (fiat), e só se endivida na sua própria moeda, esse país
alcançou a soberania monetária». Mais, numa interessante nota de rodapé,
a autora avisa que a «soberania monetária» não é coisa «binária», que os
países teriam ou não teriam de todo; obedece antes a uma gradação do
mais e do menos – matéria suficiente para uma longa reflexão não apenas
no exemplo restritivo da «soberania monetária», mas também na soberania
simpliciter7.
De resto, poucos anos antes, Draghi dissera que a particularidade
monetária da Europa, de ter criado uma moeda comum sem uma
contraparte orçamental, nem soberana, de ter criado uma «moeda sem
Estado», fora deliberada em Maastricht para preservar «a soberania e a
diversidade dos países membros». O problema é que, acrescentava Draghi,
para gerir a segunda moeda mais forte do mundo eram necessárias
«decisões fortes».8 Ou talvez tivesse sido mais rigoroso se dissesse
decisões soberanas.
O contraste com a concepção alemã de inspiração ordoliberal tornava-
se tão mais evidente quanto mais fosse avaliado no plano de uma teoria da
soberania. Receando ficar na terrível posição de ter de responder pelas
dívidas de Estados irremediavelmente problemáticos, os alemães tinham
instaurado desde o início da aventura da moeda única um sistema de
regras. Todos os Estados se vinculavam ao cumprimento de certas metas
financeiras e orçamentais. A Comissão Europeia vigiaria e interpretaria o
cumprimento e iniciaria o processo de castigo dos que as infringissem. Só
assim a Alemanha aceitaria partilhar soberania. O que queria dizer que a
Alemanha só aceitaria partilhar responsabilidades se os restantes países
acedessem a restringir a sua acção unilateral soberana, cuja tendência era,
na óptica alemã, produzir sempre mais dívida. Quando a crise financeira
europeia sobreveio com violência, o sistema de regras, que fora antes
criticado ali e acolá, foi profusamente acusado de irracionalidade,
inutilidade e causa de opressão sobre os Estados-membros. A crise e a
emergência despoletada vieram recolocar as perguntas fundamentais
relativas às regras: Como é que as regras eram formuladas? Quem as
interpretava? A que preço deviam ser cumpridas? A que
racionalidade/ideologia/verdade obedecia a sua imposição? Que
legitimidade justificava os castigos a Estados soberanos? A questão da
soberania estava implícita ou explícita em todas elas. Finalmente, quando
Irlanda, Grécia, Portugal e Chipre foram resgatados financeiramente com
a condicionalidade imposta por um Programa de Assistência, a questão da
soberania irrompeu finalmente como um grande geiser descontrolado, na
maior parte das vezes sem lógica, nem ponderação. Foi um jornal irlandês
que talvez tenha encontrado a formulação mais certeira e mais fiel ao
espírito daqueles anos: «A verdadeira ignomínia da nossa situação actual
não é que a nossa soberania nos tenha sido retirada; é que fomos nós que a
desbaratámos.»9
Mas, em segundo lugar, o objecto da peroração de Draghi fazia sentido
a priori porque a crise da área do euro criara um espaço de discórdia
política renovada em torno das «competências» que devem caber às
instituições da União e às instituições nacionais. Ora, naquele dia Draghi
tentou responder aos que dizem que existe um jogo político a ser jogado
em que a pertença à União significa uma perda directa da capacidade de o
Estado em causa exercer a sua soberania. Draghi negou directamente a
validade dessa «crença» e atribuiu esse «erro» a uma confusão conceptual,
a saber, a confusão da «independência» com a «soberania», equívoco que
também comentarei mais adiante no capítulo III. Apesar de reconhecer
que a «definição jurídica» de soberania aponta para o «poder de fazer as
leis», Draghi corrigia o sentido do conceito para fazê-lo indicar «a
capacidade de controlar os resultados e de responder às necessidades
fundamentais do povo» e usou John Locke como socorro desta
redefinição. Em contraposição, a «independência» da decisão nacional,
avisava Draghi, não garante esse «controlo»: «a independência não
garante o controlo». Destarte, Draghi atribuía à soberania na sua
interpretação «independentista» originária uma promessa que ela jamais
fez, a de determinar resultados, isto é, a capacidade demiúrgica de
produzir infalivelmente determinados efeitos benévolos económicos e
sociais. No fundo, atribuía-lhe uma promessa que em bom rigor a
soberania nunca fez, e que só o horizonte da chamada biopolítica e da
organização económica e tecnológica moderna das sociedades tornou
sequer concebível. Como veremos, o controlo que a soberania prometeu
era de outra natureza – era político. Soberania não é um mero sinónimo de
poder, nem de capacidade de produção de efeitos materiais intencionados
na realidade social, embora a validade e o reconhecimento dependam
sempre de um mínimo de eficácia. A soberania não é a capacidade de
determinação absoluta da realidade material humana, nem económica nem
de outro tipo, num determinado território. Nunca foi esse o seu
significado, e se tal confusão aparece no discurso político suspeito que
seja em parte para obter um efeito polémico e caricatural. Não é demais
repetir: a soberania não é controlo total, e também não é auto-subsistência
em desligamento completo dos fluxos culturais, económicos, financeiros,
tecnológicos, mediáticos do resto do mundo. Se a soberania fosse a
capacidade do Estado para tudo determinar, então, sim, essa seria uma
secularização plena do conceito teológico de omnipotência. Sendo uma
potência, a soberania não é uma omnipotência. Esses falsos atributos não
são mais do que falsos pretextos ad absurdum para se erradicar a teoria e a
prática da soberania do horizonte humano.
Fosse como fosse, a conclusão tornava-se óbvia para Draghi. Para
exercer soberania efectiva, isto é, para exercer controlo económico e
social, e produzir efeitos benévolos desse tipo dentro das fronteiras do seu
território, o Estado nacional tinha de se associar a outros Estados
nacionais em decisões coordenadas e partilhadas. Não deixa de ser
interessante que Draghi estivesse a pedir que os Estados tomassem a
decisão soberana de se associar a outros Estados (ou a justificar essa
decisão no passado à luz das críticas contemporâneas), que deveriam
tomar a decisão simétrica igualmente soberana, com vista a exercer a
soberania do controlo.
Draghi não deixava de reconhecer tacitamente que esta espécie de
paradoxo da soberania ficasse exposta sobretudo em circunstâncias
históricas particulares, como as da era da globalização. A
extraordinariamente complexa e densa rede de interligações que
caracterizam a economia global, desde as aplicações internacionais do
capital financeiro até à profusão e extensão das cadeias de abastecimento,
fazem que tudo isto seja avassalador para a gestão independente de um
Estado nacional. Além disso, a globalização limita radicalmente a
autonomia de um Estado nacional para estabelecer, uma vez mais de modo
independente e unilateral, as suas regras e padrões de comportamento e
funcionamento. Daí que Draghi dissesse que neste contexto histórico
muito específico os países europeus só pudessem exercer soberania (do
controlo) se abdicassem da sua soberania definida ao modo jurídico, isto
é, enquanto independência ou autonomia. Porquanto o que estava
verdadeiramente em causa para Draghi não era tanto a instauração do tal
novo regime pós-soberano em que regras de coordenação e diferentes
fontes de Direito se cruzavam para administrar a União sem os
imperativos tradicionais do poder enquanto tal. Era antes o exercício
efectivo da soberania pelas instituições comunitárias europeias.
O contraste que Draghi aplicou no discurso de Bolonha era sintetizado
nos termos instituições vs. regras, mas o significado do exercício
institucional era ditado por uma lógica muito próxima da da soberania.
Instituições «executivas», como o próprio BCE, gozavam da vantagem
tipicamente soberana sobre a abordagem da coordenação através de regras
comuns e mutuamente consentidas: a «flexibilidade» e a
«discricionariedade», por exemplo. Em contrapartida, a rigidez das regras
forçava-as a entrar numa corrida sisífia pela «credibilidade». Mas,
independentemente da extensão da lista de méritos e deméritos
comparativos, o sentido da transição era evidente para Draghi. Era preciso
construir instituições com poder para agir, para exercer «controlo» sobre a
realidade económica e social; numa palavra, era preciso construir
instituições capazes de actuar soberanamente.10
Draghi não falava no vazio. Prudente como sempre foi enquanto
presidente do BCE, e sempre cerimonioso com a iniciativa dos políticos
nacionais para não se lhe abrir um vazio jurídico-constitucional que viesse
a engoli-lo, Draghi aproveitou o caminho que estava a ser aberto na
sequência da crise da zona euro.
Um ano e meio antes do discurso de Bolonha de Draghi, o Presidente
francês, Emmanuel Macron, falou na Sorbonne de uma «Europa
soberana». Em 2016, Macron vencera eleições contra Marine Le Pen na
segunda volta das presidenciais francesas. Jovem, enérgico, sorridente,
Macron estava no lugar certo com o ritmo certo. É certíssimo que fora
bafejado pela falência do socialismo francês, varrido em dois anos depois
de sete décadas de relevância política. E incrivelmente bafejado pelo
suicídio em directo e a cores da direita «republicana», que em dois meses
destruiu sete décadas de protagonismo político. No meio de tanta ruína,
sobrara ele ainda de pé com uma fórmula na mão. Não era de esquerda
nem de direita, embora recrutasse sobretudo à direita, como se via pela
composição do seu actual governo, e afirmava uma nova bipolarização.
Ele moderado e cosmopolita contra Le Pen, a radical e nacionalista. A
fórmula serviu-lhe tão bem na sua vitória interna que se iludiu a pensar
que seria uma maravilhosa exportação francesa para o resto do continente
europeu. Não lhe ocorreu que tinha o potencial de arrasar com a política
europeia no espaço de uma geração, sendo quase uma caricatura na
política do que Nassim Taleb descreveu como coisa de «fragilista». O
fragilista é alguém que nos faz adoptar «políticas ou acções, todas
artificiais, em que os benefícios são pequenos e visíveis, e os efeitos
colaterais são potencialmente graves e invisíveis».11
Macron servira por uns tempos como ministro da Economia do governo
socialista do inexistente Hollande, que tinha como primeiro-ministro o
bem-intencionado, mas igualmente inexistente, Manuel Valls. Os
violentos atentados terroristas em Paris em 2015 deram a oportunidade a
Valls para revelar que a sua mediocridade não era tão cinzenta quanto a do
seu chefe Hollande, mas, de toda aquela debilidade política e incapacidade
operacional, Macron aprendeu que a França necessitava de reformas
profundas incompatíveis com o discurso esclerosado de Hollande e do
socialismo francês. E mais do que isso, se a Alemanha precisara da
Europa a seguir à guerra para se reerguer da sua vergonha histórica, a
França só através da Europa poderia disfarçar a sua decadência histórica.
A Alemanha tornara-se europeia para se salvar de si mesma, mas não sem
no processo tornar a Europa muito mais germânica. Agora, presumia
Macron, a única forma de a França se livrar de uma morte histórica –
enquanto potência política – seria afrancesar a Europa. É aqui que entra a
ideia de soberania.
De que falou Macron na Sorbonne? Falou de uma Europa soberana que
contrastasse com a Europa das soberanias nacionais erigidas ou
metamorfoseadas em «nacionalismo, identitarismo, proteccionismo».
Nesse discurso, que acabaria por ser amplamente comentado, Macron
afrontava todos esses nativismos – cujo representante francês fora um ano
antes o seu grande rival na corrida à presidência – como soberanismos
obsoletos, inúteis e sobretudo perigosos.
Qual era a mensagem desse tipo de soberanismo? A recuperação do
controlo, precisamente o lema mais sonante da campanha do Brexit um
ano antes da Sorbonne. Os soberanismos velhos clamavam pela
recuperação do controlo perdido – o controlo pela decisão cuja perda
converte os cidadãos em reféns de forças impessoais das quais não se
podem sequer queixar dada a sua potência e inexorabilidade. Mas as
multidões seduzidas pelo regresso ao soberanismo velho acreditam que
não têm de ser governadas por forças impessoais assimiladas a forças da
própria natureza. Acreditam que as decisões podem ser suas, ou pelo
menos de representantes que elas podem escolher e despejar a seu bel-
prazer. O soberanismo velho adquiria uma força política invejável – a
força da exortação democrática que apela à formação de uma vontade
cívica como critério da decisão em contraste com a submissão a forças
históricas, económicas, humanitaristas das quais não faz sentido discordar.
O soberanismo velho prometia fazer regressar a democracia contra a
tecnocracia e elitismo dos pós-soberanismos.
Macron respondeu a esse desafio com uma proposta de transferência de
soberania: do soberanismo velho para o novo; do soberanismo
identitarista, proteccionista, nacional para o soberanismo democrático,
cosmopolita, europeu. A sede da soberania devia passar a ser a Europa
enquanto União. Assim, finalmente recuperar-se-ia o controlo. E não
podem restar dúvidas de que Macron pretendia realmente a substituição de
uma soberania pela outra. No mesmo discurso, quando definiu o que era
essa «soberania real», Macron decidiu-se por sublinhar a «capacidade de
existir no mundo actual para nele defender os nossos valores e os nossos
interesses», isto é, para fazer sobrevir uma certa identidade política
inconfundível e «profunda». No fundo, era escrever em letras grandes a
actualmente debilitada «soberania francesa», multiplicada por vinte e
oito... ou vinte e sete. E o que se consegue com essa operação das letras
minúsculas para as letras aumentadas? Obtém-se o «poder» – financeiro,
industrial, militar, monetário, diplomático, e por aí em diante – e o
controlo.12 Tal e qual como Draghi pretendia em Bolonha. E o diagnóstico
implícito de ambos, não se percebendo se perfeitamente consciente, é o de
que uma ordem política soberana é superior a uma ordem política
contratual, isto é, feita de um acordo negociado de vontades que não deixa
lugar para uma instância suprema de tomada de decisão. A ironia é
evidente: o projecto europeu cresceu e reivindicou superioridade pela voz
de muita gente precisamente por se tratar de uma ordem política contratual
que eliminava a soberania.
A reacção política mais expressiva à emergência de uma suposta ordem
política contratual que eliminava a soberania, nem sempre ficando claro
pela voz dos adversários se com o propósito de diluir as nações europeias
numa «utopia pós-soberana» ou com o fito de construir sub-repticiamente
um «super-Estado federal», foi evidentemente a saída do Reino Unido da
União Europeia (UE).
A 31 de Janeiro de 2020, o Reino Unido, depois de um agitado processo
político iniciado pelo referendo de 23 de Junho de 2016, abandonou
formal e definitivamente a UE. Recusado por De Gaulle, o Reino Unido
envolveu-se noutros processos de integração económica como a
Commonwealth nas ruínas do seu império, ou como a EFTA em
alternativa às «comunidades» europeias. Aderiu finalmente à Comunidade
Económica Europeia (CEE) em 1973, por iniciativa do governo
conservador de Edward Heath, decisão confirmada por um referendo
nacional – o primeiro da sua história – em 1975, em conformidade com
uma exigência de então do Partido Trabalhista, que governaria o Reino
Unido a partir de 1974. Nunca perfeitamente integrado no espírito
centralizador e unificador do princípio de uma «união cada vez mais
estreita», o Reino Unido foi um actor importante em vários momentos da
história da construção europeia, nomeadamente na consolidação do
Mercado Interno. Mas desde Maastricht que os caminhos do Reino Unido
e da generalidade dos parceiros europeus se tinham tornado cada vez
menos coincidentes. Foi no Partido Conservador que essa tensão foi mais
acentuada, ameaçando até a sua coesão interna (em 1973 esse fora o
problema do Partido Trabalhista) o partido de David Cameron, primeiro-
ministro triunfante nas eleições de Maio de 2015. Esse triunfo
politicamente inesperado fora conseguido negociando a paz interna no seu
partido com a promessa de um referendo nacional sobre a permanência do
Reino Unido na UE. Na Primavera de 2015 Cameron era uma estrela
política cintilante. No final da Primavera de 2016 Cameron ia para casa,
derrotado no referendo, para nunca mais se ouvir falar dele.
Embora o referendo tivesse sido travado em torno de mil e uma
questões da vida corrente do Reino Unido, como é inevitável nessas
ocasiões, podemos dizer, contudo, que houve duas propostas que
adquiriram primazia nas discussões, ou a que todas as outras discussões
reconduziam. Foram elas a preservação (ou recuperação) da «soberania do
Parlamento» e a bem-sucedida divisa take back control. Ambas as
propostas se confundiam de certa maneira, apesar de a primeira ser a
formulação consolidada de um princípio constitucional muito antigo no
Reino Unido, contraditório, de resto, com a reivindicação «eurocéptica»
de realização de um referendo, e de a segunda ser uma palavra de ordem
apropriada ao debate político em todo o seu ardor e polémica.
Apesar do aviso áspero do antigo primeiro-ministro John Major durante
a campanha a todos os brexiteers para que, se quisessem «soberania pura»,
deviam «ir para a Coreia do Norte»13, os avisados não se demoveram e
mantiveram as suas posições iniciais. Lorde Denning, juiz de grande
relevo no Reino Unido, proclamava que «a nossa soberania foi levada pelo
Tribunal Europeu de Justiça». E se o rebelde Boris Johnson, um dos mais
eloquentes e notáveis proponentes da saída do Reino Unido, em plena
campanha a 9 de Maio de 2016, desafiava o povo britânico a «retomar o
controlo da nossa democracia», mesmo a voz sóbria do governo Cameron
através do discurso da rainha na abertura do Parlamento poucos dias
depois procurava todos sossegar, incluindo os soberanistas, de que os
ministros da Coroa «defenderão a soberania do Parlamento e a primazia
da Câmara dos Comuns».14 Anos depois, aquando da saída definitiva do
Reino Unido, no início de 2020, Boris Johnson, já primeiro-ministro diria
num discurso à nação que, para levar a cabo as promessas que fizera aos
eleitores que lhes tinham dado uma vitória tão retumbante, iria usar «esta
soberania recapturada» com a conclusão do processo de secessão.15
A cristalização da interpretação do resultado (tangencial) do referendo
em torno das duas reivindicações da «soberania do Parlamento» e do take
back control acabaria por determinar o andamento do processo negocial
de saída do Reino Unido da União Europeia. Além disso, o processo
negocial e a própria possibilidade de secessão da União Europeia eram, do
ponto de vista jurídico, inovações absolutas introduzidas pelo Tratado de
Lisboa cerca de dez anos antes. Era o agora famoso artigo 50.º do Tratado
da União Europeia. Neste livro terei a oportunidade (Cap. III) de examinar
este ponto com mais vagar, mas por ora bastará dizer que a formalização
nos tratados da possibilidade de secessão tinha o efeito, inadvertido ou
não, de confirmar a «soberania» dos Estados-membros. Tornava a
presença, tanto como a saída, de cada Estado-membro actos de plena
soberania. Acrescentava também uma nota curiosa respeitante ao
referendo britânico de 1975. Na campanha eleitoral que então decorreu, o
governo publicou oficialmente dois manifestos – um apoiando a
permanência do Reino Unido, outro recusando-a – e distribuiu-os pelo
correio para todas as casas britânicas. No manifesto pelo «Não» podia-se
ler que o Parlamento britânico tinha todo o direito de abandonar a então
CEE porque «não há nada no Tratado de Roma que diga que o país não
pode sair».16 Com o Tratado de Lisboa de 2007 passou a haver uma
cláusula que explicitava esse direito para o poder regular e dar (alguma)
ordem. Mas a conclusão política geral era uma outra mais familiar a nós,
espectadores do referendo de 2016: «A questão fundamental [em causa no
referendo] é se permanecemos ou não livres para nos governarmos ao
nosso modo.» As leis do Mercado Comum, dizia o manifesto, gozarão de
precedência sobre as leis britânicas, o que era «totalmente contrário aos
desejos das pessoas comuns que por toda a parte querem mais, não menos,
controlo sobre as suas próprias vidas».17
Por estes significativos exemplos dos tempos recentes vemos que a
permanente validade da noção de soberania no espaço público contrasta
com a sua decadência no discurso académico. Não é que o ataque político,
moral e filosófico à noção de soberania esteja destituído de razões. Longe
disso. É preciso reconhecer a contínua resistência da soberania enquanto
ideia a uma definição e identificação sem ambiguidades. Mas mais. As
acusações a que está sujeita, para não dizer a hostilidade pura e simples,
radicam em razões de fundo que valem a pena ser examinadas. De um
lado, temos os dedos acusatórios menos virulentos – aqueles que declaram
a obsolescência do conceito e da prática da soberania. O mundo
transformado pelas forças da modernização e pelas suas consequências
apela a um modo diferente da governação das sociedades. O que não
exclui a admissão de que o mundo anterior ao nosso tivesse sido servido
satisfatória ou toleravelmente pelo exercício da soberania. Um dos
problemas com esta crítica específica da soberania reside no facto de se
tratar de uma crítica em tudo semelhante à crítica que se faz aos políticos
que não cumprem as suas promessas. Não que escasseiem os políticos que
faltam às suas promessas, e muito menos que eles devam estar imunes às
nossas críticas. Permitam-me que seja mais exacto. O sentido desta crítica
é semelhante a pôr na boca proverbial de um político promessas que ele
nunca fez, e depois admoestá-lo por as não ter cumprido. À luz lançada
por este tipo de crítica, as lacunas e falhas da soberania não assentam em
reivindicações afirmadas e fracassadas. Em muitas das supostas falhas
apontadas à soberania e seus efeitos presuntivos acabamos por perceber
que não correspondem a triunfos pré-anunciados por ela. Não
correspondem a problemas cuja resolução coubesse à soberania ou que
estivessem debaixo da sua jurisdição miraculosa. Em sucessivas ocasiões
suscitadas pela crítica, percebemos que o libelo acusatório, por assim
dizer, atira ao lado. E não é demais repetir este aspecto elementar das
discussões das últimas décadas.
Do outro lado, estão os mais ríspidos. São aqueles que dizem que o
conceito e prática da soberania são pura e simplesmente perigosos e
moralmente inaceitáveis, e que são, além disso, portadores de um cadastro
histórico copioso, onde estão registados muitos dos crimes e horrores da
anterior vida dos europeus. Por esta óptica, a soberania aparece como uma
coroa de uma concepção geral da política essencialmente errada e nociva.
A censura da soberania acaba por ser a censura de uma política
«hierárquica», «nacionalista», obcecada com o exercício do «poder» e
propensa à guerra. Esquecida ficava a lição de inúmeros especialistas de
que a era dos príncipes soberanos, ou dos Estados soberanos territoriais
iguais, superando o paradigma medieval da «guerra justa», e prevenindo a
«mobilização total» que a Revolução Francesa e a era ideológica trariam,
formalizara a guerra. Com isso sujeitara-a a limites jurídicos e, limitando-
a, humanizara-a – pelo menos tendo em conta a selvajaria das guerras
religiosas antes, ou a selvajaria das guerras ideológicas-industriais depois.
Do campo europeu foram excluídas as guerras de extermínio ou as guerras
de mudança de regime político. Ora, com a crítica da soberania dos
últimos cem anos todo o esforço de ponderação da experiência
internacional da Europa moderna sumiu-se do plano político. Afinal de
contas, um salto qualitativo parecia estar iminente. As brutais mudanças
tecnológicas na arte da guerra, a multiplicação do seu potencial destrutivo
e a crescente consciência humanitária pareciam exigir a superação do
conceito e prática da soberania. A instauração de uma política da
igualdade, do cosmopolitismo, da primazia do Direito e fazedora da paz
concorria para o mesmo efeito.
O apelo de Hans Kelsen não só decorria de uma cultura jurídica cada
vez mais avessa à soberania, ou não estivesse aí um imponente Hugo
Preuss no final do século XIX para o prenunciar, como não se esgotaria
com o passar dos anos no espírito europeu. Kelsen foi um dos maiores
juristas dos tempos modernos, a cabeça e a pena da Constituição austríaca
de 1920, um dos pais fundadores do Estado democrático de direito da
nossa era, autor de uma obra colossal que formou o pilar central do
«positivismo jurídico» e protagonista de grandes debates intelectuais com
outras grandes figuras da época, como Carl Schmitt, Herman Heller ou
Eric Voegelin. E raramente se encolhia na enunciação dos problemas
jurídicos ou na declaração das soluções que via para eles. Foi com a sua
habitual frontalidade que Kelsen apelou a que despachasse o conceito de
soberania sem hesitações. Devia ser «radicalmente suprimido», o que
exigia uma «revolução da consciência cultural» que gozava de prioridade
sobre tudo o resto.18 E, no entanto, apesar da veemência, ainda restava
uma derradeira marca do que era tão difícil deixar para trás: agora passaria
a ordem jurídica a ser «soberana».19 Um crítico desta orientação na cultura
jurídica no século XX como o jurista alemão Herman Heller faria o
paralelo com a teologia nos seguintes termos: ao sucessivamente ir
largando a noção de soberania, a filosofia política e do direito saía do
teísmo primeiro para o deísmo, e deste para «a imanência de uma ideia
concretizada nesta vida».20 Por outras palavras, o percurso histórico
consumado na primeira metade do século XX na consciência jurídica e
política europeia era equivalente a um processo por estádios de
imanentização da transcendência.
Ora, não se trata de um exercício fastidioso de pedantismo insistir no
seguinte: no nosso tempo, a soberania foi integrada numa esfera de
expansão indeterminada onde se alojam os chamados conceitos
«contestados», facto que pareceria desautorizar qualquer tentativa de
fechar a sua definição ou explicação autoritativa. «Conceitos contestados»
foi o nome pomposo que o mundo académico das ciências humanas do
nosso tempo encontrou para designar conceitos para cujo sentido ou
significado não há acordo, nem queremos que haja e temos raiva de quem
quiser propor um. Recentemente, houve quem defendesse que a soberania
não pode pretender a um «significado intemporal», nem sequer estável ao
longo do espaço geográfico – parece que muda de «país para país».21 A
«viragem linguística» nas ciências sociais forçou a abdicação de um
significado «imutável» ou «universal» de soberania, e legitimou que a
soberania fosse essencialmente o que cada contexto, ou que cada linha de
investigação académica, quisesse. Tudo na soberania era fluído e plástico,
sem qualquer ponto fixo de referência – a globalização limitou-se a
mostrar ao senso comum o que os especialistas já sabiam. O mundo
mudara. Alguém no seu perfeito juízo poderia dizer que havia alguma
comparação entre a China de Xi Jinping, os EUA de Donald Trump e a
Alemanha de Merkel, com as monarquias de Henrique IV de França,
Filipe de Portugal e Espanha e Jaime I de Inglaterra? Com as mudanças, o
conceito de soberania podia ficar na casa trocada. Dir-se-ia que um termo
sem qualquer utilidade conceitual ou operacional rapidamente
desapareceria do uso corrente.
Mas a soberania mostrou ser mais resistente do que se pensaria. Havia
um fundo difícil de determinar que continuava a atrair as atenções e a
garantir a indispensabilidade da soberania na reflexão sobre as estruturas
políticas modernas e no discurso político contemporâneo.
A um nível mais superficial, temos assistido ao desdobramento
ocasional da noção de soberania em subdefinições ou subcategorias.
Alguns dos estudiosos até sugeriram que há quatro modos diferentes de
usar a noção de «soberania»: a «soberania legal internacional», a
«soberania vestefaliana», a «soberania interna» e a «soberania de
interdependência».22 Estes quatro diferentes sentidos da noção de
soberania estão teórica e operacionalmente muito afastados do conceito
originário de soberania e das suas ramificações sucessivas que se tornaram
relevantes no domínio da filosofia política. Pelo menos em parte, esses
quatros sentidos parecem surgir de uma identificação implícita e nem
sempre clara da soberania com controlo. Como vimos a propósito de
Draghi, de Macron ou do Brexit, a sua difusão no discurso político, além
de académico, é facilmente atestada. Controlo neste contexto indica a
capacidade por parte do poder político de determinar, ou condicionar a seu
bel-prazer, a realidade total dentro das fronteiras territoriais do Estado.
Com a pandemia do coronavírus em 2020, o pânico chegou também ao
trabalho conceptual. Só assim se pode explicar que John Gray, professor
veterano de teoria política, primeiro na Universidade de Oxford, e depois
na London School of Economics, tenha ousado afirmar que «na prática [a
soberania] significa a capacidade de executar um plano de emergência
abrangente, coordenado e flexível do tipo do que está a ser implementado
no Reino Unido e noutros países».23 Conceito de soberania mais
estritamente vincado pela circunstância do dia provavelmente nunca
houve, ou ninguém se atreveu a mostrá-lo fora da penumbra da caverna.
Deve-se dizer imediatamente que a suposta identificação da soberania
com o controlo sobre a realidade bioeconómica só muito tarde foi sendo
digerida pela noção de soberania tal como esta emergiu na história da
filosofia política. Estranhamente, tudo isto se passa num mundo em que
poucos admitem que no nosso tempo os Estados são muito mais capazes
de determinar alguns dos aspectos centralíssimos da realidade humana e
que falando de uma perspectiva histórica excedem qualquer horizonte
passado de controlo. É que nem sequer há outro modo de justificar a
relevância atribuída à ascensão da biopolítica. Um exemplo primordial
disto poderia ser a duração – média – da vida humana, ou pelo menos o
controlo de muitas das causas tradicionais de morte intempestiva. Dir-se-á
que estes exemplos referem-se à evolução tecnológica. Sem dúvida. Mas a
soberania também é uma tecnologia.
Em parte, todas estas precauções decorrem de uma preocupação
relativamente recente com certas transformações históricas, cuja novidade
é de imediato reflectida na delimitação teórica e na relevância prática da
noção de soberania. Que tipo de transformações históricas? A emergência
de problemas colectivos com um alcance global; o desenvolvimento de
instituições supranacionais; intervenções estatais de tipo particular, que a
«guerra contra o terrorismo» foi até há pouco das mais ilustrativas e que
agora tem na «guerra contra a pandemia» a sua acção mais ilustrativa; a
constituição de blocos cultural-religiosos; e, nos últimos anos, a própria
crise financeira internacional. A razão pela qual estes exemplos são
avançados como desafios sérios à noção moderna de soberania nem
sempre é cristalina. Isto torna-se ainda mais estranho quando
compreendemos que o pressuposto fundamental que ancora o conceito
moderno de soberania – a saber, para que o poder seja soberano, «é mais
essencial que esteja livre dos limites impostos pela praticabilidade do que
esteja liberto de todos os vínculos morais e éticos». O que vale por dizer
que o poder pode ser «visto como soberano pese embora não consiga
alcançar fisicamente tudo o que deseje, de modo a que seja assim
considerado mesmo quando se julgue que está sujeito a restrições
morais».24
Mais recentemente, até se tornou popular a divisão política entre
soberanistas e globalistas, e nalguns pontos do mundo e das nossas
convivências não faltou quem dissesse que esta divisão partidária
superava a mais tradicional da esquerda/direita. É certo que nunca foram
avançados critérios suficientemente seguros ou consensuais para tornar
sistemática a distinção entre esquerda e direita. Esse impasse deve-se a
razões históricas inerentes ao triunfo e desenvolvimento da democracia no
Ocidente, primeiro, e no resto do globo, mais tarde – entendendo
democracia ao jeito tocquevilleano, isto é, como o regime da igualdade de
condições e da liberdade universal. No fundo, esquerda e direita são dois
modos políticos de fazer inscrever no regime (na sociedade e na História)
precisamente a convivência da liberdade com a igualdade – de
preferência, uma convivência próspera. Assim, a esquerda e a direita são
forçadas por essa tarefa a reajustar ou a acomodar as noções e as fronteiras
de liberdade e de igualdade.
Talvez seja mais proveitoso apreciar a distinção entre a esquerda e a
direita à luz de outros critérios e escrutinando cuidadosamente as
respectivas agendas políticas desde que terminou o grande conflito do
século XX entre o «Mundo Livre» e o comunismo soviético. Ora, a
soberania pode ser inserida na clarificação criteriosa desta distinção, se
bem que talvez não directamente. Por outras palavras, não estou a pensar
na divisão hoje popularizada e já mencionada entre soberanistas e
globalistas, mas em algo diferente e seguindo um movimento indirecto. A
soberania é, como veremos, um princípio de ordem – de ordem política,
evidentemente. Por seu lado, a distinção secular entre direita e esquerda
pode ser vista através da conciliação entre a ordem e a justiça. Ambos os
lados do conflito político subscrevem a tese de que não existe ordem
(democrática, pelo menos) sem justiça, ou vice-versa. Mas o problema
reside no facto de a vida política colocar inúmeros desafios que carecem
de uma resposta prática em que a conciliação da ordem com a justiça, ou
da justiça com a ordem, não aparece como dada. Logo, coloca-se a
escolha de se dar prioridade a uma sobre a outra. Neste caso, a direita
daria tendencialmente prioridade à ordem sobre a justiça – avisando para
os horrores da desordem, que, de qualquer modo, levam sempre a melhor
pela sua violência e prontidão, sobre qualquer princípio indefeso de
justiça. Ao passo que a esquerda concederia tendencialmente prioridade à
justiça sobre a ordem – avisando para a frieza e violência de uma ordem
que sacrifica princípios de justiça, que se constrói contra eles, e que,
afinal, nem se pode reclamar como ordem, na medida em que só a justiça
pode estruturar uma ordem digna desse nome. Numa palavra, a distinção
entre esquerda e direita joga-se na (prioridade ou subordinação da)
aplicação de um princípio de ordem, algo que a soberania, não obstante
todos os altos e baixos da sua reputação, não prescinde de ser.
***
Seja como for, a questão em torno da soberania não nos vai abandonar
tão cedo. Ao percorrermos os grandes debates políticos e económicos do
nosso tempo, apercebemo-nos de como a soberania acaba por ser um
ponto de referência – de gravitação, de repulsa ou de problematização –
imensamente útil, senão incontornável. Ela paira e assombra-nos nos
momentos mais incandescentes dos nossos conflitos e das nossas dúvidas.
Deve, por conseguinte, ser confrontada nos seus próprios termos e sem
evasões das dificuldades mais sensíveis que ela suscita.
Não precisamos de recuperar a história do debate sobre as interpretações
do próprio projecto europeu desde a sua fundação nos anos 50 do século
passado. Mas, como esse debate está longe de ter terminado, e manifesta
nos nossos dias uma actividade permanente nas esferas intelectuais e na
prática política, vale a pena notar como ainda hoje as diferenças que se
vão cavando pressupõem ou até explicitam a relevância do conceito de
soberania. Afinal, hoje estão em disputa duas concepções de Europa, ou
duas interpretações do significado histórico do projecto europeu. De um
lado, a associação da «Europa» aos valores da universalidade, do
individualismo e da liberdade abstracta. Do outro, a visão da
particularidade do viver europeu no contexto global, a ênfase na
substância ética partilhada, no percurso histórico irrecusável e, em várias
ocasiões, a especificidade da raiz religiosa (cristã) a partir da qual todo
esse património germinou. No debate que se gerou, assistimos a uma certa
divisão da União Europeia entre Leste e Oeste, personalizada
respectivamente no primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán e nos seus
aliados, tanto em governos de países do Leste da Europa, como nas
oposições nos países do Ocidente europeu; e na chanceler alemã Angela
Merkel e no Presidente francês Emmanuel Macron. O trágico desta
polarização é que a riqueza da civilização europeia fez-se da afluência das
fontes que tivemos nos últimos dois mil anos: Atenas, Jerusalém, Roma.
Ora, essa afluência forma uma combinação ou uma tensão que supõe
presença mútua de universalidade e de particularidade, própria, de resto,
da condição política do ser humano.
Vale a pena notar desde já que a predominância da noção de soberania
constitui um notável sucesso dos seus primeiros proponentes e convida-
nos a reexaminar os seus argumentos. Olhando para o legado da filosofia
política dos dois mil anos anteriores, percebemos que os proponentes do
conceito moderno de soberania pretendiam pôr termo à primazia anterior
da noção de regime político entregue à pura e inatacável autoridade dos
Antigos – de Heródoto, de Platão, de Tucídides, de Aristóteles, e dos seus
múltiplos discípulos como Cícero, Políbio, Plutarco e por aí em diante até
ao Renascimento. Desvalorizar a noção de regime político, cuja
taxonomia parecia ser uma espécie de coroa indispensável de qualquer
filosofia política que se prezasse. Torná-la imprestável, arcaica e paroquial
para abrir caminho à primazia da soberania sobre todas as considerações
filosófico-políticas – eis a tarefa que se impunha para os primeiros
navegantes dos mares modernos então nunca dantes navegados.
Mas a investigação histórica das origens do Estado moderno tanto do
ponto de vista filosófico, como do institucional-legal, força-nos a admitir
uma maior amplitude cronológica e intelectual. O século dos fundadores
do conceito moderno de soberania – entre os finais do século XVI e os
finais do século XVII – não esgota evidentemente a discussão relevante
sobre o nosso tema, nem inicia as controvérsias políticas cristalizadas na
apropriação/rejeição da questão soberana. De tal modo é assim que o
debate, sem dúvida violento e existencial, travou-se no período tardo-
medieval em torno da sede do «poder supremo», do lugar de exercício da
«plenitude do poder», entre o papado e o imperador, entre o sacerdote e o
rei – ou no desajustamento de uma solução que transferisse para um ou
para outro tamanho poder inapelável. Podemos dizer que a riquíssima e
virulenta luta à volta da supremacia ora do poder espiritual, ora do poder
temporal, e que excederia largamente os limites cronológicos que os
historiadores impõem ao fechamento da Idade Média, preparou a sua
própria secularização que chegaria nos séculos XVI e XVII. Não é um
exagero dizer que os momentos fundacionais da teoria moderna da
soberania protagonizada por homens como Jean Bodin, Hugo Grócio,
Thomas Hobbes, John Selden ou Samuel Pufendorf são descendentes
directos das lutas épicas que a Europa testemunhou entre os finais do
século XIII e o início do século XV (Cap. I).
Na nossa época o pensamento católico evoluiu naturalmente. O mais
famoso pensador político do tomismo no século XX, o francês Jacques
Maritain, reflectiu como ninguém essa evolução da filosofia política
católica. Um prodigioso intelectual, senhor do melhor pedigree académico
na Europa da primeira metade do século XX, Maritain estaria envolvido na
preparação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, proclamada
pela Assembleia-Geral da recém-constituída Organização das Nações
Unidas, em 1948. Seria também uma influência reconhecida na dimensão
da doutrina social do Concílio Vaticano II. E, com a sua obra, com a sua
experiência da dura vida na Europa nos anos 30 e 40 do século passado,
com o conhecimento da experiência histórica do regime americano e com
o seu carisma junto das elites intelectuais católicas, Maritain seria
influentíssimo na formação do pensamento político católico na segunda
metade do século XX.
Ao apelar ao «fim do maquiavelismo», Maritain associava uma certa
filosofia política moderna, ou mais rigorosamente, uma certa linhagem no
interior da filosofia política moderna de Maquiavel até ao século XX, aos
desastres totalitários do seu tempo. Se o «maquiavelismo» conduzira a
Europa à catástrofe, o fim da Segunda Guerra Mundial constituiria a
oportunidade histórica para desafiar esse cânone diabólico e trilhar um
novo caminho para a vida política no Ocidente e no resto do mundo. O
apelo era grave. Todas as formas de maquiavelismo deveriam ser
repudiadas na política do futuro. A experiência histórica demonstrava que
o maquiavelismo era uma escola de malignidade para os governantes e de
instrumentalização dos povos. Os resultados estavam à vista. A idolatria
do Estado e, por conseguinte, o aplauso à remoção dos limites que o
continham; a busca do poder pelo poder como o único objectivo político
não dissolvido pelo cinismo que o maquiavelismo multiplicava; a
imoralidade e a violência arbitrária como recursos aceitáveis em política; e
o desprezo pela pessoa humana e pelos seus direitos. Não fora sem
patrocínio filosófico que se abriram estes portões da ilicitude, nem se
deixou os conflitos se converterem em guerras totais de extermínio.
Maritain não tinha dúvidas de que tudo isto era da responsabilidade
directa do próprio Maquiavel e esse feitiço intelectual teria agora de ser
quebrado por uma nova (antiga) política do bonum honestum, do bem
comum. Uma política que não olvidasse que a sua tarefa estava limitada à
condição temporal do Homem, deixando à liberdade – incluindo à
liberdade relativamente à política – a preparação do destino sobrenatural
de cada um. Seria a oportunidade para uma ética política que não
autorizasse flexibilizações da justiça inseparável dos fins e meios da
actividade política, que incluísse o amor no corpo da virtude política e que
rejeitasse o entendimento da política enquanto dominação. Para rumarmos
à política limitada nos seus meios e nos seus fins era preciso recuperar
integralmente uma ética política. E essa ética política requeria um ponto
de partida posto em causa por Maquiavel: o mal não é bem-sucedido na
política.25
Na obra de Maritain, o conceito de soberania aparecia como um dos
equívocos malignos centrais de toda esta história infeliz. Um segundo
apelo fazia-se ouvir. Renunciar à ideia de soberania na construção
conceptual e prática do Estado. Deixar de uma vez por todas de descrever
a suprema autoridade do Estado como soberania. Esse segundo apelo
tinha uma formulação exacta: «Aos olhos de uma filosofia política sã não
há soberania, isto é, não há um direito natural e inalienável ao poder
supremo transcendente ou separado na sociedade política.» Isto é, não se
aceita que exista um elemento no seio da comunidade política que se
destaca dela e é superior a ela ditando a sua vontade de cima para baixo,
como um corpo autónomo que impõe a sua vontade a outro corpo. Ora,
nenhuma agência gozava de um direito a governar o que não estivesse
integrado na mesma unidade de que essa agência fizesse parte. Só
enquanto parte desse todo ordenado para o bem comum é que uma agência
adquiriria o direito de fazer as leis, executá-las e por aí em diante. Assim
era porque o tal direito a governar era adquirido por participação no
direito, esse, sim, originário de um povo se governar a si mesmo.
Aparentemente, a doutrina da soberania rejeitava tudo isso, e, por meio
dessa rejeição, autorizava uma concepção perigosa de poder político. A
doutrina da soberania apontava directamente para a vertigem totalitária.26
O conceito de soberania era, assim, denunciado como «intrinsecamente
errado» e que «nos engana se continuarmos a usá-lo». Maritain concedia
que a comunidade política gozava de um direito «natural» à sua
autonomia externa, ou seja, à sua independência relativamente a qualquer
outro Estado ou agente externo. E no exercício desse direito estava
incluída a possibilidade de integrar uma organização federal que limitasse
essa independência. Mas isso, alertava Maritain, não era «soberania».
Porém, num momento muito significativo, após negar a qualidade de
soberano a qualquer tipo de actor político, incluindo o «povo» e o
«Estado», Maritain deixava a admissão de que «só Deus é soberano» e de
que o Papa, «na sua capacidade de vigário de Cristo», era «soberano sobre
a Igreja».27 Dir-se-ia que, afinal, a soberania ainda tinha os seus usos.
Um grande contemporâneo de Maritain, Raymond Aron não deixou de
criticar duramente esta perspectiva em nome da razão política. Tal como
Maritain, Aron também foi um infatigável resistente à tentação totalitária
e um inimigo da rendição dos intelectuais ao triunfo momentâneo desses
totalitarismos. Para sempre colocado na sombra do «mais vale estar errado
com Sartre do que ter razão com Aron», Aron foi um exemplo de
moderação e de sobriedade numa Europa que por diversas ocasiões no
século XX abandonara uma e outra. Mas a crítica dos totalitarismos nunca
foi para Aron pretexto para prescindir de pensar politicamente e na
sujeição às regras da política. Sobretudo, nunca poderia ser pretexto para
imitar os discípulos do totalitarismo na reprodução de um vão e delirante
«espírito literário em política» – invocação dilecta de Aron de uma
expressão usada por Alexis de Tocqueville nos Souvenirs a propósito dos
revolucionários de 1848.28
As boas intenções nunca seriam substitutas de uma meditação sobre as
condições fundamentais da vida política e o exercício do poder. Pura e
simplesmente, a filosofia política teria de levar seriamente em conta o
ponto de vista do político, isto é, do decisor que tem de fazer uma escolha,
aqui e agora, em circunstâncias que ele não escolhe e que lhe foram dadas,
e assumir a responsabilidade por essa escolha e pelas suas consequências.
Se a filosofia política se comprazesse com uma postura de «optimismo
ingénuo» relativamente às realidades práticas do mando, então não
passaria de um exercício fútil e irresponsável. E porque é que Aron
considerava a perspectiva de Maritain «ingénua»? Porque esquecia que as
responsabilidades assumidas pelo estadista perante a sua comunidade
política poderiam, em múltiplas circunstâncias, não ser cumpridas sem
recorrer a métodos duvidosos. E essa confrontação resulta de uma
conclusão simples: o político que tem de agir aqui e agora não tem uma
escolha absolutamente livre de meios. Os imperativos morais e os
imperativos da eficácia nem sempre são coerentes entre eles. Mais, não
podemos evitar a construção de uma casuística da moralidade política de
ponderação de cada caso na sua particularidade porque a alternativa de
edificar uma fronteira ou uma regra geral inflexível não é mais do que
uma tremenda abstracção. É verdade que essa fronteira parece mais ou
menos estável e robusta em tempos de normalidade, e que apenas as
situações extremas, com a sua típica confrontação com males necessários,
a comprometem verdadeiramente. Mas Aron insistia em recorrer à
experiência da prática política com o facto brutal de que é «muito difícil
encontrar momentos em que não há situações extremas». Destarte, aceitar
a distinção entre a normalidade e a situação extrema, independentemente
de um acordo quanto às respectivas frequências relativas, implicava
aceitar a necessidade ocasional de um «maquiavelismo moderado». A paz,
o bem e a harmonia deviam sempre desenhar o horizonte do estadista, mas
ele «não pode esquecer o risco permanente, o risco de destruição». Não
havia promessa filosófica que dispensasse a política do seu carácter
essencialmente trágico. O estadista responsável, que era forçado a recorrer
a meios que genuinamente detestava, era o seu grande protagonista. Era
ele quem assumia a responsabilidade existencial pelo destino comum da
comunidade política.29 Era dele, evidentemente situado no tecido
institucional da moderação política, que se aguardava a decisão soberana.
***
Quando o povo português decidiu enveredar pelo caminho democrático,
após o 25 de Abril de 1974, atribuiu a si mesmo uma Constituição. Os
primeiros três artigos da Constituição da República Portuguesa, em vigor
desde 1976, e desde então objecto de várias revisões, algumas extensas e
profundas, como a de 1982 e a de 1989, outras ditas «cirúrgicas», a par
com os sete artigos seguintes, ditam o que de mais relevante há no que diz
respeito aos grandes contornos da forma política em que decidimos viver.
E nessa formulação o constituinte não dispensou um uso intenso da
soberania. A nossa Constituição começa, pois, por declarar que Portugal é
uma «República soberana» e que, enquanto «Estado de direito
democrático», está «basead[a] na soberania popular». O que é a
«soberania popular» para o constituinte português? Não sabemos.
Sabemos apenas que, ao melhor estilo bodiniano e hobbesiano, como
iremos ver, ela é tida por «una e indivisível». A sustentabilidade desta
declaração combinada com a sua rejeição ideológica das raízes da
expressão é garantida apenas pela distinção pufendorfiana entre
«titularidade» e «exercício» da soberania. Não é certamente resgatável,
como querem fazer crer reputados comentadores, por conversão a
sinónimos de «incidibilidade» e «inalienabilidade».30 Foram sempre, na
tradição, coisas distintas.
Mas, o que é decisivo, o povo exerce a sua própria soberania.
Aparentemente não a partilha com mais ninguém, nem com outro povo,
nem com qualquer outra entidade político-jurídica, «segundo as formas
previstas na Constituição». Se realmente a «partilha», ou não, é tema para
uma amplíssima discussão teórica e, nos nossos tempos, eminentemente
prática também, como veremos mais adiante no capítulo III. Apenas falta
acrescentar que, segundo a Constituição, o Estado, estrutura formada pelo
povo, ao serviço do exercício da soberania pelo povo, mas também que
confere unidade ao povo politicamente constituído, «subordina-se à
Constituição».31 Portugal é uma «República soberana» fundamentalmente
porque se tem a si mesmo como uma comunidade política independente
de outras comunidades políticas, Estados ou poderes supra ou infra-
estaduais. É «soberana» porque se auto-interpreta como «autónoma», isto
é, capaz de produzir as suas próprias normas e a elas voluntariamente se
vincular. Complica-se esta autonomia com a aceitação das normas
provindas da União Europeia, não só como sendo, nas palavras da
Constituição, «aplicáveis na ordem interna», como tendo primazia sobre
as normas produzidas pela ordem jurídica interna. Complica-se, mas não
se incompatibiliza, na medida em que a República soberana portuguesa se
mantém autónoma porque «qualquer regra heterónoma só pode valer nos
casos e nos termos admitidos pela própria Constituição».32 Porém, é
preciso acrescentar de imediato que esta não incompatibilidade depende
de um raciocínio circular, não desprovido de consequências político-
constitucionais. Estas, por sua vez, não são infinitamente elásticas no que
respeita às grandes questões do processo de «integração» europeia, nem se
dissolvem com platitudes de conveniência conjuntural.
O Estado nacional não é um tipo ideal que se escusa a confrontar-se
com a empiricidade da experiência histórica. Neste livro fala-se do Estado
enquanto produto específico da política moderna na Europa, exportado
mais tarde para o resto do mundo, e que resultaria de um trabalho
intelectual e de muita força bruta. Resultaria dos acidentes da história e
das necessidades de um reposicionamento das aspirações humanas, da
formação que seguiu um caminho tributário da sua própria lógica
enquanto estrutura, mas que dependeria também de condições de
possibilidade de tipo tecnológico. Falo do Estado enquanto conceito
emergente da discussão filosófico-política europeia no dealbar da
Modernidade e que configuraria a sua concreção ao longo do tempo. A
soberania seria a «alma» desse produto do intelecto europeu e da sua
história tão artística quanto brutal. Mas não tenhamos dúvidas: a sua
preparação intelectual, a sua anunciação ou proposta pelos filósofos
políticos e juristas a partir do século XVI é um facto histórico tão óbvio e
tão consequente quanto as guerras, as revoluções, as facções, as
descobertas, as dinâmicas económicas, as características culturais que
podemos conhecer lendo um manual de História de um qualquer país
europeu.
O povo e o Estado: o português e os outros. Estas duas referências
mantêm-se vivas por mais fugidias que possam ser ao organizador de
conceitos. Mas é preciso acrescentar que a crise das ideias de povo ou de
Estado acarreta uma mais do que provável extinção da noção de soberania.
No mundo actual, como vimos, há movimentos poderosos que contribuem
para essa vacilação. O chamado «transnacionalismo» ou o
cosmopolitismo, que aspiram a uma «cidadania do mundo» que
transcenda e revogue as cidadanias mais prosaicas dos membros de
Estados nacionais, constituem um desses movimentos. Percorre
orientações tanto à direita como à esquerda. Sem prejuízo de
desenvolvimentos ulteriores mais adiante neste livro sobre este ponto,
bastará agora dizer que depositam a sua esperança na formação de uma
espécie de «sociedade civil global» e na correlativa obsolescência das
fronteiras políticas territoriais. Repugna-lhes a lógica exclusivista das
soberanias nacionais e da decisão pela existência de cidadãos e de não-
cidadãos. Os exclusivismos e as fronteiras estão sujeitos à mesma
objecção ética do egoísmo nos indivíduos. Além disso, os grandes
problemas globais e a referência ética máxima na «humanidade» situam os
espaços nacionais soberanos como impotentes para as missões que se
adivinham no futuro.
Se muitos liberais de direita foram persuadidos por esta visão do
mundo, outros movimentos têm origens e recursos diametralmente
opostos. Por exemplo, algumas correntes de crítica da soberania que
germinaram em quadrantes extremistas na esquerda política são bastante
ilustrativas. Não que a crítica contemporânea ao conceito de soberania
proveniente das franjas radicais esquerdistas, pace o seu aparato
terminológico, seja nova. Ou melhor, explicita o que estava implícito em
críticas muito anteriores. Hoje em dia, a preferência desta orientação é
para elaborar uma genealogia do conceito de soberania que a assimila ao
conceito de propriedade. O ataque a um conceito permite demolir o outro
que, por analogia, está ao seu lado. Assim, o conceito de soberania
aparece como retrógrado, porque nos remete para épocas históricas
passadas em que o governo político era assimilado ao dominium privado.
E aparece igualmente como radicalmente ilegítimo na medida em que o
governo da comunidade política não pode ser aproximado à relação de
propriedade sem incorrermos nos mais graves pressupostos morais – em
que, no fundo, uns seres humanos descem à categoria de coisas
instrumentais de outros seres humanos, em que uns quantos poderosos
dispõem arbitrariamente de outros desprotegidos, tal como um
proprietário dispõe da coisa possuída ao ponto de a poder destruir se assim
o desejar. Nesta orientação, há todo um projecto revolucionário de re-
engenharia emancipatória da relação política e a sua leitura do conceito de
soberania reflecte-o com razoável transparência. Nesse sentido, a sua
tendência anarquizante é inconfundível.
Contudo, a abordagem, pelo menos nos seus rudimentos, não é nova.
Como terei oportunidade mais adiante de mostrar no capítulo II, membros
da ala mais esquerdizante da Revolução Francesa semearam
imediatamente o propósito histórico da abolição e extinção do Estado, e
com elas as da soberania. Esse fio de pensamento e de acção política não
se quebraria com os horrores do Terror jacobino nem com a execução pela
própria Revolução dos seus porta-vozes. Também não seria o império
napoleónico nem a sua queda que iriam condenar ao esquecimento a
instigação para um mundo sem soberania, nem Estado. Com o reacender
das paixões esquerdizantes no século XIX, sobretudo a partir da década de
30, e com a crescente sofisticação do seu corpo teórico de Proudhon em
diante, seria retomado esse grande desígnio histórico das várias famílias
esquerdistas radicais. Socialistas ditos utópicos, marxistas e anarquistas,
com diferentes metodologias e ritmos históricos de consumação,
alimentariam a mesma aspiração. Neste aspecto, a esquerda ideológica do
século XIX do proudhonismo ao bakuninismo encontraria o seu canto de
sereia na profecia do eterno amigo e financiador de Marx, Friedrich
Engels, segundo a qual «o governo das pessoas é substituído pela
administração das coisas» e, convém não esquecer, pela «direcção dos
processos de produção», o que quer que isso queira concretamente dizer.
Na terra prometida, «o Estado não é abolido. O Estado desvanece-se».33
Era este o horizonte de emancipação da humanidade: um mundo sem
soberania nem Estado. 
Esse fulgor e orientação nunca se perderiam inteiramente, nem mesmo
quando o Estado passou a ser visto como o grande aliado reformista ou
revolucionário da transformação social em causa. Houve períodos de
relativa dormência, mas não de completa extinção. As desilusões
esquerdistas que se iniciaram nos anos 70, e se converteram num despertar
traumático nos anos 80 do século XX, a par da herança dita «libertária» e
anarquizante do choque cultural do Maio de 68, mas também com as
possibilidades abertas pela globalização, acabariam por fazer retornar às
homílias do templo a promessa da «república universal». Formada por
uma crítica irredimível das fronteiras estaduais territoriais, seria a base
comum para fazer uma estranha frente com os libertários radicais, também
conhecidos por anarco-capitalistas.
Daqui podemos perceber que, como o brilhante constitucionalista
alemão avisou há quase cem anos, a crise teórica da soberania esconde
sobretudo a inconfessável crise teórica da pessoa soberana – o Estado.34 E
podemos, no mínimo, concluir que é enorme a extensão histórica e a
predominância político-intelectual das discussões travadas em nome da
questão da soberania. Não é, pois, assunto de pouca monta.
O caminho que se segue tem de ser percorrido curva a curva, nas
descidas e nas subidas. A soberania é muito mais interessante do que uma
definição. Aqui cabe-me mostrar os seus vários contornos, impasses e
possibilidades. Cada um deles revela algo de importante sobre a vida
política.
1 Tomás de Aquino, Summa contra Gentiles, III, C. 64.
2 Art.º 2.º.
3 Bernard Bailyn, The Ideological Origins of the American Revolution
(Cambridge, MA: Belknap Press, 1992), p. 198.
4 Clifford Orwin, The Humanity of Thucydides (Princeton: Princeton
University Press, 1994), pp. 75-171.
5 Para vermos até que ponto as oscilações da soberania no coração das
elites académicas seguiram a lógica típica de uma democracia eleitoral, e
para se perceber que não foi um fenómeno estritamente europeu, veja-se
como, em 1993, o presidente da American Society for International Law
reclamou uma «campanha para extirpar o termo [soberania] e proibir o seu
uso nos círculos políticos e intelectuais educados». Citado em John Fonte,
«One Nation. Sovereignty has returned with a vengeance», Claremont
Review of Books, Vol. XVIII, N.º 2, 2018,
https://claremontreviewofbooks.com/one-nation/.
É melhor dizer, por conseguinte, que alguns copiaram os métodos da
democracia eleitoral; outros optaram pela via estalinista. Nos círculos mais
educados cai a proverbial nódoa.
6 Éric Tymoigne, L. Randall Wray, «Modern Money Theory 101: A Reply
to Critics», Working Paper N.º 778, Novembro de 2013,
http://www.levyinstitute.org.
7 Stephanie Kelton, The Deficit Myth. Modern Monetary Theory and the
Birth of the People’s Economy (Nova Iorque: Public Affairs, 2020), formato
epub, p. 39 e nota 4.
8 Mario Draghi, «The future of the euro: stability through change»,
publicado no jornal alemão Die Zeit, 29 de Agosto de 2012, acessível em
http://www.ecb.eu/press/key/date/2012/html/sp120829.en.html.
9 Editorial do Irish Times, «Was it for this?», 18 de Novembro de 2010,
citado em Adam Tooze, Crashed. How a Decade of Financial Crises
Changed the World (Nova Iorque: Viking, 2018), p. 363.
10 Mario Draghi, discurso na Universidade de Bolonha, 22 de Fevereiro de
2019,
https://www.ecb.europa.eu/press/key/date/2019/html/ecb.sp190222~fc5501
c1b1.en.html.
11 Nassim Nicholas Taleb, Antifragile: things that gain from disorder
(Nova Iorque: Random House, 2012).
12 Emmanuel Macron, discurso na Sorbonne, 26 de Setembro de 2017,
https://www.elysee.fr/emmanuel-macron/2017/09/26/initiative-pour-l-
europe-discours-d-emmanuel-macron-pour-une-europe-souveraine-unie-
democratique.
13 John Major, entrevista à BBC, 29 de Abril de 2016,
https://www.bbc.com/news/uk-politics-36168487.
14 Denning e a rainha citados respectivamente em Juliette Ringeisen-
Biardeaud, «“Let’s take back control”: Brexit and the Debate on
Sovereignty», French Journal of British Studies, XXII-2, 2017, §§4, 13.
15 Boris Johnson, discurso de 31 de Janeiro de 2020,
https://www.reuters.com/article/uk-britain-eu-johnson-address/british-
prime-minister-johnsons-brexit-address-idUSKBN1ZU31M.
16 «Why You Should Vote No» reproduzido em David Butler, Uwe
Kitzinger, The 1975 Referendum (Londres: The MacMillan Press, 1976), p.
301.
17 «Why You Should Vote No», pp. 301-302.
18 Citado em Roberto di Mattei, A Soberania Necessária. Reflexões sobre a
crise do Estado moderno, trad. portuguesa (Porto: Livraria Civilização
Editora, 2002), p. 119.
19 Hans Kelsen, General Theory of Law and State, trad. inglesa
(Cambridge: Harvard University Press, 1949), pp. 383-385.
20 Herman Heller, Sovereignty. A Contribution to the Theory of Public and
International Law, ed. David Dyzenhaus, trad. Inglesa (Oxford: Oxford
University Press, 2019), p. 67.
21 Dieter Grimm, Sovereignty. The Origin and Future of a Political and
Legal Concept, trad. inglesa (Nova Iorque: Columbia University Press,
2015), p. 4.
22 Stephen D. Krasner, Sovereignty. Organized Hypocrisy (Princeton:
Princeton University Press, 1999), pp. 3-4, 9-25.
23 John Gray, «Why this crisis is a turning point in history», New
Statesman, 3 de Abril de 2020,
https://www.newstatesman.com/2020/04/why-crisis-turning-point-history.
24 F. H. Hinsley, Sovereignty, 2.ª edição (Cambridge: Cambridge University
Press, 1986), p. 69.
25 Jacques Maritain, «The End of Machiavellianism», The Review of
Politics, Vol. 4, N.º 1, 1942, pp. 1-33.
26 Jacques Maritain, Man and the State (Chicago: The University of
Chicago Press, 1951), pp. 24, 40-42, 51.
27 Maritain, pp. 29, 41, 49.
28 Alexis de Tocqueville, Souvenirs (Paris: Calmann Lévy, 1893), p. 97.
29 Miguel Morgado, «The Threat of Danger: Decadence and Virtù» in
Daniel J. Mahoney, Bryan-Paul Frost, Political Reason in the Age of
Ideology: Essays in Honor of Raymond Aron (New Brunswick: Transaction
Publishers, 2007), pp. 227-241; Raymond Aron, Machiavel et les tyrannies
modernes (Paris: Éditions de Fallois, 1993).
30 J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada (Coimbra: Coimbra Editora, 2007), p. 215.
31 Constituição da República Portuguesa, Arts.º 1.º, 2.º, 3.º.
32 Gomes Canotilho, Vital Moreira, p. 197.
33 Friedrich Engels, Anti-Dühring, Parte III, Cap. 2.
34 Herman Heller, Sovereignty, p. 78.
I

A SOBERANIA
1. Deus é soberano
Deus é soberano. Segundo a caracterização dos poderes e da autoridade
que nos é oferecida desde a tradição hebraica, e continuada nas tradições
cristã e islâmica, é perfeitamente legítimo dizer que Deus é soberano.
Ninguém menos suspeito do que o Papa Leão XIII o confirmou.35 Pessoa
omnipotente, omnisciente, infalível, legislador universal, juiz supremo,
governante do cosmos: assim é Deus nas tradições indicadas. Nas
tradições judaica e cristã, o Deus soberano também faz promessas,
estabelece alianças – pactos – e revê, ou abre excepções à sua própria
legislação. Ademais, disse o Apóstolo no passo que mais influência
exerceria na teologia política da Cristandade: «[...] Não existe autoridade
que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus.»36
Mais, Plutarco informou-nos que a nossa palavra pontífice provinha da
palavra romana potens, que significava poderoso, pois os pontífices
estavam ao serviço dos deuses, seres poderosos e que governavam
supremos – diríamos, soberanos – sobre todo o mundo.37
Onde a tradição cristã se dividiu intermitentemente foi a propósito da
natureza da soberania de Deus. À semelhança da discussão do conceito de
soberania política, e mais adiante examinarei este ponto com atenção, na
teologia cristã debateu-se os limites, ou a ausência deles, da soberania
divina.
Na vasta e célebre correspondência de Jerónimo, uma das destinatárias
mais replicadas é a virgem Eustóquia. Jerónimo é santo reverendíssimo da
Igreja e foi autor da tradução latina da Bíblia hebraica – e não grega –, a
chamada Vulgata. Numa das epístolas, escrita no final do século IV,
Jerónimo acabou por declarar «ousadamente» que «embora Deus possa
todas as coisas, Ele não pode reerguer uma virgem depois de ela se
arruinar».38 Explicitava assim uma tendência no seio da Igreja que via em
Deus um supremo legislador cuja ordem natural criada pela Sua legislação
constituía uma unidade lógica, geradora de uma necessidade própria que
regulava a própria acção de Deus. Neste caso particular, o encadeamento
temporal necessário e irreversível do passado para o presente fazia com
que Deus não pudesse desfazer o que se consumara no passado. Assim, a
virgindade perdida não podia ser restituída. Essa irreversibilidade não
comprometia a omnipotência de Deus, cuja interpretação teria de se
acomodar à força da ordem da criação. Mas a irreversibilidade temporal,
um dos aspectos da ordem criada, não podia ser suspensa.
Seiscentos e cinquenta anos mais tarde, outro famoso santo da Igreja,
Pedro Damiano, após uma acesa conversa com Desiderius, à época reitor
de Monte Cassino no centro da península itálica, decidiu discordar da tese
de Jerónimo. Tinha de discordar porque, segundo Damiano, se tratara de
uma limitação inaceitável ao poder de Deus. Damiano sabia que a
omnipotência de Deus devia ser tida em toda a sua amplitude, desde logo
pelo facto da criação. Do nada, Deus criara tudo. Ora, as antigas
cogitações racionais – ou racionalistas – sobre o poder, incluindo a
sujeição às regras lógicas e às necessidades ontológicas, deixavam de
valer. A verdade revelada viera substituir os pressupostos dos
«dialécticos». Por vezes, até homens tão lúcidos e tão santos como
Jerónimo esqueciam-se da largura deste novo horizonte. A criação livre
por Deus deixara naturalmente intacta a Sua omnipotência. Por
conseguinte, tudo – mesmo tudo – estava aberto às possibilidades de
Deus. E não seriam fontes externas a Deus – as Suas criaturas – que
proclamariam limites que não existiam. Incluindo os limites da
irreversibilidade cronológica.39
Todavia, o problema não termina aqui. É interessante notar que
Jerónimo, ainda que identificando este limite, dissera, na frase
imediatamente seguinte à citada acima, que Deus podia suspender o
castigo associado ao pecado da virgem que deixara de o ser. E concluíra
significativamente: «Mas Ele não lhe dará uma coroa.» Portanto, Deus não
podia desfazer um facto passado, mas podia modificar, ou suspender, as
consequências futuras que brotavam directamente do Seu julgamento
desse facto. E, no entanto, não podia modificá-las, nem suspendê-las,
inteiramente. Os limites permaneciam inclusivamente na esfera das
consequências do julgamento divino.40
Os comentários a este passo de Jerónimo foram-se sucedendo pelos
séculos seguintes. No século XIII, Tomás de Aquino apoiou a tese de
Jerónimo, juntando-se a muitos que não alinhariam pela crítica de
Damiano. Tomás de Aquino foi um dos mais profundos e influentes
teólogos da história da Igreja. Acusado por uns de ser demasiado amigo de
Aristóteles para um cristão temente a Deus; por outros de estar demasiado
mergulhado na fé religiosa para não ter feito de Aristóteles um refém da
Igreja; o Doutor Angélico, como ficou conhecido, provinha de famílias
nobres italianas com ambições para o seu filho. Tomás desiludiu pais e
irmãos para seguir a vocação numa ordem religiosa que fora fundada uns
trinta anos antes pelo padre espanhol Domingos de Gusmão. A ordem
tinha uma particularidade: era mendicante. Daí a desilusão familiar, dado
que estava prometida uma fulgurante e confortável vida eclesiástica ao
jovem Tomás. A ordem recém-fundada rapidamente se notabilizou. Era
forte, coesa e intrépida. Também rapidamente criou inimigos. E em breve
os dominicanos seriam referidos por eles como os domini cani, ou os
«cães do Senhor». Ter havido muitos dominicanos entre os inquisidores
nomeados pelo Papa Gregório IX para a extirpação das heresias logo após
a criação da Inquisição Papal, em 1233, traria sempre estas consequências.
O genial G. K. Chesterton disse de Tomás de Aquino que ele foi «um dos
grandes libertadores do intelecto humano». Apesar de, logo após a sua
morte, o bispo de Paris ter condenado uma parte da sua doutrina filosófica,
nos nossos dias a Igreja Católica Romana chama-lhe o Doctor communis e
o Papa João Paulo II, na encíclica Fides et Ratio, descreveu-o como «um
mestre do pensamento e um modelo do modo correcto de fazer
teologia».41
Demasiado «dialéctico» e tributário dos «filósofos antigos» que
Damiano, e quem mais tarde o acompanhou, denunciou no seu
comentário, Tomás de Aquino repetiria Jerónimo no essencial. Não cabia
dentro da omnipotência de Deus fazer algo que implicasse uma
«contradição». Tudo o que implicasse uma contradição nos termos seria
uma coisa «impossível», logo «fora do escopo da omnipotência divina».
Ora, desfazer o passado implicava uma contradição. Era o mesmo que
dizer «Sócrates sentou-se e Sócrates não se sentou». Já ressuscitar um
morto não implicava contradição. Presumia-se que se alguém ressuscitasse
era porque estivera morto e esse facto não era apagado pela ressurreição.
E Tomás de Aquino reclamava para si as autoridades quer de Agostinho,
quer de Aristóteles. Escolha esmagadora: uma das autoridades maiores da
tradição cristã e a maior da tradição filosófica. Havia ainda a questão do
pecado invocada por Jerónimo e à qual São Tomás se dirigiu directamente.
Se uma mulher pecou, Deus podia remover toda a corrupção do corpo e da
alma dela. Mas o facto de ela ter sido corrupta, ou de ter caído, não podia
ser removido, segundo o Doutor Angélico. Por outras palavras, Deus
podia apagar o mal que a fraqueza humana permitira, mas não podia
apagar o facto de se ter pecado. O pecador pecara e a omnipotência de
Deus bastava para reparar esse mal e as suas respectivas consequências.
Mas o pecador pecara.42
Mais tarde, Guilherme de Ockham explorou ainda uma outra
possibilidade. O Antigo Testamento demonstrava que Deus podia
dispensar da vinculação à lei natural quem Ele bem entendesse. Deus
abrira uma excepção notória para Abraão quando o mandou sacrificar o
seu filho Isaac.43 Duns Escoto concordava. Era verdade que a dispensa
conferida por Deus não teve como objecto a lei natural em si mesma, isto
é, os primeiros princípios práticos contidos ou nos seus próprios termos
como verdade necessária, ou como conclusões que se seguiam
necessariamente desses termos. Deus não podia dispensar ninguém do
cumprimento desses primeiros princípios. Mas os Mandamentos da
segunda tábua da Lei de Deus, onde se incluía o «Não matarás», não eram
primeiros princípios práticos segundo o entendimento que se tinha da lei
natural. Tal constatação implicava que Deus podia, efectivamente,
dispensar do cumprimento destes Mandamentos. Ele podia até violar esses
Mandamentos sem que isso gerasse qualquer mal moral. E, podendo
mandar alguém praticar os actos proibidos pelos Mandamentos da
segunda tábua, podia atribuir «mérito» a quem o fizesse, na medida em
que os perpetrasse em virtude da Sua ordem.44
Na teologia moral de Ockham e de Escoto era, por conseguinte, possível
apagar o pecado.
2. A Potentia Absoluta
Esta matéria foi muito pouco dócil. No início do século XIV, Guilherme
de Ockham, em plena guerra de vida e de morte contra o Papa João XXII,
e de quem falaremos mais adiante, acusava-o de cair em plena heresia
quando defendia ex cathedra que Deus não podia fazer mais de potentia
absoluta do que era possibilitado de potentia ordinata. Mais, Ockham
detectava uma iniludível heresia na declaração papal de que se tratava de
uma «contradição» – tal como Tomás de Aquino também dissera – afirmar
que Deus podia fazer algo de diferente do que o que fizera, assim como
era uma «contradição» dizer-se que podia acontecer algo não preordenado
por Deus e, por conseguinte, não «necessário».45
De resto, cabe dizer que Tomás de Aquino já tinha sido forçado a
reconhecer que, apesar de Deus ser omnipotente, havia coisas que eram
«impossíveis» e outras que eram «necessárias» – ou que ocorriam
inexoravelmente numa cadeia de consequências. Porém, as coisas
«necessárias», que deviam ser entendidas como aquelas a que o poder de
Deus estaria sujeito, não punham em causa que Deus pudesse fazer o que
não fizera. Afinal de contas, a acção de Deus não decorria de uma
«necessidade natural» como, por exemplo, os processos biológicos que
conhecemos. A «Sua vontade é a causa de todas as coisas» e essa vontade
era livre. Deus agia sem estar condicionado por coisa alguma. Contudo, o
poder de Deus era a Sua divina sabedoria e a sabedoria divina era o Seu
poder. Em Deus, poder e essência não se distinguiam, nem o intelecto se
distinguia da sabedoria, nem a vontade da justiça. Ao contrário do que se
passava nas criaturas humanas, em Deus, conhecimento, vontade, poder e
acção eram quatro faculdades em perfeita sobreposição. A ordem da
criação era produto da sabedoria divina e nem poderia ser de outro modo.
Repetindo a pergunta que tantos problemas criara a Pedro Abelardo, o
teólogo francês do início do século XII que protagonizou com a sua amante
Heloísa um dos mais notórios episódios da Idade Média: seria possível –
isto é, aberto ao poder de Deus – haver outra criação além desta, e melhor
do que esta, que já foi produzida pela sabedoria divina?
A resposta de Tomás de Aquino foi afirmativa. Eis como se desviou da
resposta de Abelardo e conciliou a acção não-arbitrária de Deus com a
omnipotência sem restrições. A bondade, justiça e sabedoria divinas eram
infinitas. Como tais, constituíam-se como fins que excediam infinitamente
qualquer linha cronológica de eventos, qualquer estrutura do universo que
tivesse sido criada. E assim para Deus o horizonte dos possíveis era plural
– ia além da realidade que conhecemos. O poder de Deus era, portanto,
«absoluto». Isto é, o poder para executar ou comandar todos os possíveis,
incluindo por suposição os possíveis que não foram previstos ou pré-
determinados por Ele. Esse poder absoluto, no entanto, e abreviando uma
controvérsia grave que se arrastou por séculos, não abrangia a
possibilidade de Deus fazer algo mau. Não por impossibilidade material –
se é lícita a expressão –, mas porque Deus não fazia nada que fosse
impróprio da sua natureza infinita e perfeitamente boa e justa.
Parafraseando um filósofo político do século XVIII, também ele um grande
teórico da soberania, dir-se-ia que Deus, simplesmente por ser quem é, é
sempre já o que deve ser. Deus, porém, agia também segundo o seu poder
«ordenado», isto é, dando consequência necessária à estrutura da ordem
criada.46
Esta última distinção conceptual entre potentia absoluta e potentia
ordinata adquiriria a maior importância para os desenvolvimentos
ulteriores da teoria da soberania moderna. No fundo, podemos sintetizar
este complexo problema do seguinte modo. Na sua generalidade, os
teólogos cristãos não se desentendiam quanto à omnipotência divina
quando esta queria dizer que Deus podia fazer tudo o que Ele
determinasse para ocorrer em diante. A discordância atacou quando se
tratou de saber se Deus podia fazer coisas que não tivessem sido objecto
da sua vontade: uma outra criação ou desfazer o passado, como vimos. O
próprio Tomás de Aquino foi buscar a distinção entre potentia absoluta e
potentia ordinata ao seu mestre Alberto Magno. O poder «ordenado»
correspondia ao exercício do poder divino regrado pelas necessidades que
aflorámos nos parágrafos anteriores – Deus age sem manchar ou em
perfeita harmonia com a Sua sabedoria, a Sua providência, a Sua justiça e
a Sua bondade. Por outras palavras, Deus age num quadro definido pelas
regras que Ele próprio cria. Mais tarde, a consolidação do conceito de
potentia absoluta evoluiria para um poder efectivamente exercido por
Deus, nas suas intervenções miraculosas, agindo de modo extraordinário.
A potentia absoluta passaria a estar associada à capacidade para agir na
criação de regras, ou fora do quadro providencial, ou fora de uma ordem
previamente estabelecida. Da primeira ideia de potentia absoluta que
designava um poder hipoteticamente possível que incluía todas as
possibilidades não escolhidas por Deus, mas que podiam tê-lo sido, todas
as possibilidades abertas a Deus, tanto as consumadas e que formam a lei
da ordem criada, como as não escolhidas, saltava-se para a transgressão e
para a suspensão, claro está seguindo os desígnios imperscrutáveis da
Providência, da normalidade da ordem criada. Tornava-se no «domínio da
liberdade ilimitada de Deus abstraída, por fim, do seu compromisso de
potentia ordinata».47 No século XVI, nos dois lados da barricada da
Reforma, com Francisco Suárez, no lado católico da Contra-Reforma, e
Martinho Lutero, no lado da Reforma dita Protestante, respectivamente a
potentia ordinata converter-se-ia em potentia «ordinária» e a potentia
absoluta em «extraordinária».48 Quando este último poder era exercido
por Deus, as regras sempiternas estruturantes da ordem racional eram
suspensas ou violadas, como quando Deus fez as chamas do fogo não
queimarem os prisioneiros do tirano Nabucodonosor. Guilherme de
Ockham insistira em que «Deus não estava obrigado a causar acto algum.»
Sabia que estava a caminhar em areias potencialmente movediças. Se a
desvinculação essencial de Deus caracterizava o seu poder, então abria-se
a porta a possibilidades terríveis. Era prova de que Deus amava
condescendentemente os homens o facto de tê-los situado numa ordem
moral racional que a sua razão, com auxílios, pode perscrutar e nela viver
bem. Mas Deus não estava vinculado a essa ordem. Que possibilidades
terríveis podiam ser extraídas desta consideração, ainda que fossem meras
possibilidades? Não se tratava tanto de abrir até à infinitude os cosmos
possíveis. O que era terrível era a possibilidade de que a vida moral e as
normas que lhe davam conteúdo dependerem da vontade de um Deus
desvinculado. Assim, o mal-entendido como o acto oposto ao que cada um
estava obrigado a fazer podia mudar de conteúdo concreto se Deus
alterasse as obrigações de cada um. Ockham tranquilizava todos
garantindo que os vícios racionalmente demonstrados permaneciam
vícios, segundo a lei «ordenada». Porém, a possibilidade permanecia.
Deus não estava vinculado a manter a lei «ordenada» intacta para todo o
sempre. Podia fazer com que os pecados deixassem de o ser. Até o pecado
mais horrível e inconfessável – o ódio ao próprio Deus – podia ser revisto
por um preceito divino que o despisse de maldade. A vontade de Deus
podia inclusivamente tornar tal acto ordinariamente abominável em algo
meritório. Agir virtuosamente ou maldosamente dependia, em derradeira
instância, da vontade divina. Eram efeitos do poder absoluto de Deus.49
A verdade é que, no contexto do século XIII, a tentação de utilizar estas
categorias para descrever o papado era demasiado poderosa para ser
resistida. Assistiu-se, então, a um processo de gradual imanentização de
uma distinção inicialmente concebida para caracterizar em exclusivo
Deus. A ideia de um encadeamento cósmico entre um soberano que
governava todo o Universo, um monarca soberano que governava a Igreja
– no fundo, o Papa também possuía potentia absoluta e potentia ordinata,
como defendia, por exemplo, o canonista Baldo dos Ubaldi –, e um
imperador soberano que governava um território, era demasiado útil e
demasiado conveniente para se perder. Era o fundamento da essencial
unidade da ordem divina e natural. No leque de interpretações que se
abriram podia-se acompanhar um extremo da potentia absoluta do Deus
miraculoso que suspendia e modificava a ordem criada por Si a seu bel-
prazer, proclamando a liberdade perfeitamente incondicionada do
soberano. E daí ir até ao outro extremo do determinismo cósmico que
dava espaço apenas a um governante que agia previsivelmente, com regras
externas invioláveis e sem margem para agir fora desse quadro
condicionante em todo o perímetro de possibilidades. No plano político, a
viagem equivalente seria começar no monarca absoluto e arbitrário indo
até ao governo constituído por uma Constituição que não fez, com a
distinção apropriada entre o poder constituinte e o poder constituído, sem
margem para reconhecer uma excepção, ou uma ruptura da ordem
constitucional, nem de agir em conformidade com esse reconhecimento.
Entre esses dois pólos, no meio das infinitas matizes que poderíamos
identificar, estaria o Deus omnipotente, capaz de suspender a ordem que
livremente criou, de modificá-la ou de agir incompreensivelmente à
margem dela, mas que, não obstante, se vincula à ordem criada por meio
de uma aliança ou de um pacto que respeita infalível e livremente. Nesse
ponto, é possível e coerente com o plano providencial que Deus, ou o
soberano, vinculados como estão à ordem constituída, a interrompam
quando a ocasião o exige para agir à margem das regras da ordem
racional.
3. A querela das duas soberanias
O prodigioso período que mediou, digamos, de 1250 a 1350 da nossa
era gerou uma discussão e um conflito que seriam decisivos para a
história, necessariamente fragmentada, que aqui quero contar. No início do
século XII já tinha aparecido na língua francesa vernacular o uso político
da palavra suvrainetet, aparentemente derivada do latim superanus.
Designava um lugar elevado, o topo, o cume. E deslizou para significar
superior, chefe, isto é, o sentido deslizou da elevação física para a
elevação nos termos de uma relação humana. Ambas conotavam o
entendimento de uma superioridade, destaque ou superordenação numa
relação moral, política ou institucional. O soberano era o superior de
todos os súbditos ou membros de uma associação humana. Às mãos dos
civilistas, como vimos, a identificação da summa superioritas, isto é, da
soberania, beneficiava o rei como senhor ab-soluto das coisas temporais,
sem, por conseguinte, admitir ter par e muito menos um superior.50
Na segunda metade do século XIII começou a usar-se a palavra
soberano. A autoria foi de Phillippe de Rémi de Beaumanoir, um brilhante
jurista francês daquela época. Rémi era filho de Phillippe de Remy de
Beaumanoir, poeta medieval de grande notabilidade. Souverain era a
qualidade distintiva do poder de um barão, assim como de um rei pela sua
superioridade face aos restantes homens, a qual superioridade lhe dava a
prerrogativa de fazer leis para todos. Para que essas leis fossem válidas,
afirmava Beaumanoir apoiando-se no direito romano, não era necessário o
consentimento de ninguém nem o recurso a qualquer «grande conselho».51
Cada barão era soberano no seu baronato, tal como o rei era soberano no
seu reino.
Assim foi lançada a semente que tão fortemente germinaria pelos
séculos. E não sem um suporte da teologia política, pois lê-se em João
19:11 – «Não terias nenhuma autoridade sobre mim se esta não te fosse
dada de cima» –, versículo que narra a resposta de Jesus a Pilatos. Era
interpretado ora como se o «de cima» fosse o divino superior a Roma, ora
como se fosse o imperador romano, superior hierárquico de um
governador da Palestina.
De entre os muitos exemplos disponibilizados por uma longa sequência
de acontecimentos e de pensamentos, de querelas e de tratados, é
perfeitamente ilustrativo o reiterado conflito entre o rei de França, Filipe,
o Belo, e o Papa Bonifácio VIII, um sumo pontífice irascível e que
ascendera ao trono de São Pedro depois de uma mais do que suspeita
abdicação de Celestino V. Em Dezembro de 1301, numa das várias bulas
que publicou com o intuito de impor a sua soberania sobre o reino de
França, ou, se não quisermos exorbitar os limites cronológicos dos
conceitos, com o objectivo de negar a Filipe IV a soberania sobre os seus
súbditos que este reivindicava e afirmava sem rodeios, Bonifácio VIII não
hesitou em usar a linguagem explicativa da natureza e efeitos do conceito
de soberania que estaria muito em voga 350 anos mais tarde. Em Ausculta
fili, Bonifácio admoestava assim Filipe:
E que ninguém te persuada, meu muito querido filho, de que não
tendes qualquer superior e que não estais sujeito ao chefe da
hierarquia eclesiástica. Porquanto quem assim pense não passa de um
tolo; e, se o afirmar com obstinação, será condenado por ser um
incréu e expulso do rebanho do Grande Pastor.52
A propaganda de Filipe jogou imediatamente a cartada da usurpação
temporal do Papa com vista a provocar o escândalo, inclusivamente junto
do clero francês. O efeito foi conseguido sem demoras e Bonifácio VIII
não teve outro remédio senão defender-se publicamente de tamanha
acusação. A defesa, porém, teve duas partes. Na primeira, o Papa
refugiava-se na legítima e consagrada divisão dos poderes temporal e
espiritual. Mas, na segunda parte, a ameaça tinha uma natureza mais
directa e recapitulava o poder do Papa de depor os reis. Recapitulava
porque fora objecto das directrizes e avisos públicos de alguns dos seus
antecessores, em particular do Papa Gregório VII. Assim, de facto, o Papa
– qualquer Papa – seria sempre o «superior» (no sentido soberano da
palavra) do rei. Ou, visto da perspectiva inversa, o rei nunca seria
efectivamente soberano.
Com o agudizar do conflito entre o rei de França e Bonifácio, e durante
um concílio do clero francês em Roma que se saldou por um rotundo
fracasso graças à sabotagem de Filipe, uma nova bula foi publicada e não
seria esquecida tão cedo: a Unam Sanctam Catholicam. Nela, Bonifácio,
apoiado em Bernardo de Claraval, o qual, diga-se, não era uma autoridade
qualquer, regressava à doutrina dos dois gládios. Nessa altura já com uma
longa tradição, a doutrina dos dois gládios, ou dos dois poderes – temporal
e espiritual –, encontrara a sua síntese elementar pela pena de Hugo de
São Vítor, na obra De Sacramentis Christianae fidei, segundo a ideia de
que o ser humano tinha duas vidas para viver: uma terrena, a outra celeste.
Cada uma dessas vidas tinha bens próprios a adquirir, ainda que
complementares, e males próprios a repudiar, ainda que interligados. Uma
tinha como fim a felicidade terrestre. A outra a eterna beatitude celeste.
Por aqui se vê imediatamente a superior dignidade e importância da vida
celeste. Tal era indiscutível e subordinava a vida terrena e a sua economia
específica. Uma estava ordenada para a outra. Inocêncio III na Decretal
Solitae encarregar-se-ia de deixá-lo por escrito ao modo mais solene. Isso
teria inevitavelmente um reflexo na hierarquia teológica dos dois poderes
que correspondiam a essas duas vidas.53
Bonifácio recuperaria a tradição, não para dizer como mais tarde se
tornaria tese fechada que o gládio temporal estaria nas mãos do reino e o
espiritual nas mãos da Igreja, com jurisdições distintas, embora
cooperantes e aceitando uma subordinação essencial do primeiro ao
segundo, mas para afirmar algo diferente e bastante mais ousado. Entenda-
se aqui por jurisdição o direito de determinar o que é justo e injusto em
matérias que dizem respeito a um determinado poder. Na Unam Sanctam
lia-se que ambos os gládios estavam nas mãos do sacerdote. Os passos das
Escrituras que alicerçavam esta pretensão eram sempre os mesmos:
Evangelho de Lucas 22:38
Disseram-lhe eles: «Senhor, aqui estão duas espadas.» Mas Ele
respondeu-lhes: «Basta!»
Mateus 16:18-19
Também Eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta Pedra edificarei a
minha Igreja, e as portas do Abismo nada poderão contra ela.
Dar-te-ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na terra ficará
ligado no Céu e tudo o que desligares na terra será desligado no Céu.
e João 21:15-17
Depois de terem comido, Jesus perguntou a Simão Pedro: «Simão,
filho de João, tu amas-me mais do que estes?» Pedro respondeu:
«Sim, Senhor, Tu sabes que eu sou deveras teu amigo.» Jesus disse-
lhe: «Apascenta os meus cordeiros.»
Mas aqui recorria-se também a Mateus 26:52
Jesus disse-lhe: «Mete a tua espada na bainha, pois todos quantos se
servirem da espada morrerão à espada.»
para alegadamente demonstrar que o Salvador ordenara a Pedro, o
apóstolo da futura Igreja romana, que embainhasse a «tua» espada, o que
sugeriria a pertença do gládio temporal a Pedro também. Em última
análise, os dois gládios correspondiam aos dois alimentos descritos no
Evangelho de Mateus (4:4): o alimento do corpo – o «pão» que não basta
para o homem viver – e o da alma. Se a substância do homem era um
composto de corpo e de alma, de matéria e de espírito, então a sua vida
requeria uma dupla alimentação.54 Na interpretação de Bonifácio (e de
Bernardo de Claraval), se a espada espiritual era directamente manejada
pela Igreja como não poderia deixar de ser, já a temporal, pertencendo à
Igreja, era empunhada e usada pelos «soldados», com a ordem do
imperador, é certo, mas só com o nuto do sacerdote.55 Onde Bonifácio ia
mais longe era aqui: o governo temporal não podia ser mais do que um
mero beneficium, um favor ou um dom do Papa ao rei, que podia ser
revogado quando aquele bem entendesse. Nas palavras de Guilherme de
Ockham, um feroz adversário destas veleidades papais e escrevendo cerca
de trinta anos depois, a consequência de tal tese era a de que «ninguém
exerce [os cargos temporais] licitamente sem o Papa».56
Em boa verdade, a insistência por parte dos teólogos na subordinação do
poder temporal ao espiritual, por o fim que este servia – a salvação das
almas ou a beatitude celeste – ter prioridade sobre o fim que aquele servia,
tinha como consequência invariável a negação implícita da soberania do
rei/imperador. Até mesmo o dominicano Francisco de Vitoria, com tantos
escrúpulos em conceder uma certa autonomia à jurisdição temporal,
acabava por declarar a doutrina de que, em caso de necessidade, isto é,
quando em matérias sob a jurisdição temporal estivessem em risco bens
espirituais, e uma vez demonstrada a indisponibilidade ou incapacidade do
poder temporal para lidar com o assunto nos seus próprios termos e com
os seus próprios recursos, o Papa detinha a autoridade para revogar leis,
julgar contendas e até depor príncipes. Vitoria, um dos mestres maiores da
chamada escola de Salamanca, professando no século XVI, por três vezes
fazendo de teólogo-consultor do imperador Carlos V, e que foi professor
de Filipe II (Filipe I de Portugal), considerava que, na situação limite
envolvendo o poder temporal, era o Papa quem decidia que se tinha
chegado a essa situação limite e era o Papa quem resolvia soberanamente
o assunto. Sem surpresa, mais de três séculos depois, Vitoria mantinha a
sua concordância com Bonifácio VIII e com a bula Unam Sanctam.57 Um
dos seus discípulos portugueses, porventura o mais famoso dada a
excepcional réplica que deu a Grócio em defesa do Mare clausum, Frei
Serafim Freitas, confirmava que da subordinação das coisas temporais ao
poder espiritual se inferia o poder indirecto de depor o imperador e os reis
cujo abuso do seu mando redundasse em danos espirituais para os
súbditos, prejuízo do governo da Igreja e atentado à fé católica.58
Não por acaso, um dos maiores adversários intelectuais de Bonifácio, o
dominicano João Quidort (Aquele que dorme) de Paris, deu-se ao trabalho
minucioso de destruir as leituras políticas de Lucas 22:38 e de Mateus
26:52. Desautorizou essas leituras no plano metodológico-hermenêutico.
E acrescentou que, mesmo ignorando os invencíveis obstáculos
metodológicos, que proibiam que uma interpretação «mística» fosse
afirmada sem a confirmação de uma autoridade «não-mística» do mesmo
argumento, a leitura política só poderia ser uma: o uso do poder temporal
pela Igreja apenas poderia ter lugar com a autorização expressa do titular
político desse poder. Pedro, afinal de contas, recebera apenas uma espada
de Cristo; não duas. Se o sucessor de Pedro quisesse usar a espada
temporal, teria primeiro de obter permissão do rei ou do imperador. O
gládio temporal estava às ordens do governante secular. O Papa ou a
Igreja poderia, no máximo, pedir que ela fosse usada neste ou naquele
sentido. E depois aguardar passivamente pela resposta positiva ou
negativa do rei.59
A tese forte de Bonifácio sobre a soberania papal teve o seu
desenvolvimento intelectual fundamental na obra de um dos seus grandes
aliados – e que com alguma probabilidade redigiu as ditas bulas, ou
colaborou na redacção delas: Egídio Romano. Este frade da Ordem de
Santo Agostinho, um grande mestre de teologia formado na Universidade
de Paris e arcebispo de Bourges, foi determinante na consolidação teórica
e na robustez teológica de tão ousada doutrina. Tudo o que encontramos
na Unam Sanctam de tão ofensivo para a posição do rei, e que levaria
Filipe IV a dar o salto para a intimidação física e para a violência contra a
pessoa do Papa, está integralmente vertido na sua obra De ecclesiastica
potestate.60
Para cúmulo da ironia, Egídio fora muito antes designado por Filipe III,
pai do futuro Filipe IV, para ser o preceptor deste. E muitos anos mais
tarde foi Egídio quem, em nome da Universidade de Paris, recebeu o já
coroado e ungido Filipe IV no seu regresso de Reims. Seguindo uma
tradição que remontava a 816, quando o Papa Estêvão IV coroou em
Reims o filho de Carlos Magno, Luís, o Pio, os reis de França eram
coroados e ungidos com óleos consagrados na famosa catedral. Recuando
ainda mais na tradição francesa, Reims era a cidade onde Clóvis, o rei dos
Francos, fora baptizado, um acontecimento de importância histórico-
universal, para não aligeirarmos desnecessariamente o relato, pois
eliminou o arianismo dos territórios ocidentais e fez dos Francos a
vanguarda do catolicismo, como as Cruzadas seiscentos anos mais tarde
comprovariam.
Assim sendo, depois de Luís, a tradição da santa ampola consolidou-se.
Na verdade, a ordem cerimonial era a inversa. Primeiro eram ungidos; só
depois eram coroados. A unção imitava a prática dos reis de Israel, tal
como rezava o Antigo Testamento, cumprindo o desejo do povo hebreu de
ser como os outros povos, de ter reis como os outros povos. Além disso,
inscrevia no monarca francês a vocação do profeta, fundando uma espécie
de realeza interior, criando uma relação íntima entre o rei e Deus.
Finalmente, comprometia o rei com a defesa da Igreja, sendo a sua
eminentíssima dignidade conferida pelo poder universal da Igreja, ou do
Papa.61 Mas a dupla fase da cerimónia reunia este símbolo da dupla
natureza do monarca: a humana, meramente humana, e a agraciada por
Deus.62
Quando Anagni Bonifácio morreu na maior ignomínia, depois de preso
e humilhado pelos homens de Filipe e por Sciarra Colonna, membro de
uma das mais antigas famílias de Roma e inimigos mortais do Papa,
Egídio desapareceu de cena. Regressaria mais tarde ao lado de Filipe IV
quando este se envolveu em mais um conflito eclesiástico, desta vez na
gigantesca operação de perseguição e desmantelamento da ordem dos
Templários. Egídio, primeiro, com Bonifácio contra Filipe IV; depois, com
Filipe IV contra Jacques de Molay.
Egídio Romano afirmou o Papa como superior numa escala de
«excelência e perfeição».63 Tal como os senhores temporais superiores
julgavam os senhores temporais inferiores, e de modo algum eram
julgados por estes, também o Papa, sendo o detentor do «mais sublime e
mais supremo poder espiritual na Igreja», estando o corpo naturalmente
ordenado para a alma e de jure sujeito a ela, e sendo o poder espiritual
mais digno do que, e superior ao, poder temporal, então o Papa julgava
todos os senhores temporais e não era julgado por nenhum deles.64 O Papa
era julgado apenas por Deus, a única pessoa que lhe era superior. Aqui
encontramos um argumento que seria repetido séculos mais tarde pelos
proponentes do conceito de soberania, uns de boa-fé teológica, outros nem
por isso. Leia-se: por partidários ferozes da primazia do poder temporal
sobre o espiritual, ou da sujeição do sacerdote ao poder do rei. Não se
deve deixar escapar a ironia da História ao assinalar-se que uma
elaboração da concepção hierocrática maximalista do poder do Papa seria
recuperada na sua estrutura básica pelos profetas da laicização das
sociedades. O rei, ou mais exactamente o soberano, tomava o lugar do
Papa nesta construção. Mais tarde ainda, seria esta noção rigidamente
hierárquica de superioridade/inferioridade, superordenação/subordinação
que mais irritaria os inimigos do conceito de soberania. E ninguém seria
mais irritantemente insistente na relação de superioridade/inferioridade
como constitutiva da noção de soberania como John Austin, o avô
fundador do positivismo jurídico no século XIX.65
Como vimos, Bonifácio não foi um inovador que criou subitamente
doutrina nova. Ele apoiou-se numa tradição que naquela altura já
sobrevinha havia muitos anos e que disputava permanentemente a
primazia com a tese oposta. É interessante verificar que neste conflito
aberto e violento a linguagem da soberania foi usada para descrever a
posição papalista, isto é, da supremacia da monarquia papal universal face
à qual os reis e imperador estariam essencialmente sujeitos.66 Mas,
paradoxalmente, viria a ser usada, e não poucas vezes, para fazer vingar a
posição de Filipe IV e de todos os seus descendentes políticos e
intelectuais, isto é, de todos os construtores futuros do Estado nacional e
soberano. Mais, se a sacralização da posição do Papa e da Igreja em geral
revelou ambições temporais em determinados momentos históricos,
rapidamente o regnum se adaptou. O Império Romano, «transladado» com
a conivência da Igreja no dia de Natal de 800, alguns séculos mais tarde
reconhecer-se-ia a si mesmo como o Sacro Império Romano Germânico
por determinação de Frederico Barbarossa. Sendo sagrados, seriam
certamente soberanos – uns para interferir na vida do temporal; outros
para serem autónomos nessa esfera –, o que teve, muitas das vezes, a
consequência de interferir na vida do espiritual. A resposta à sacralização
do poder temporal do Papa com a sacralização do poder do rei não seria
particularmente brilhante para a esfera das liberdades nem para o
desenvolvimento dos povos.
4. A plenitudo potestatis: dos seus usos e abusos
O uso medieval da expressão plenitudo potestatis – «a plenitude do
poder» – para descrever a hiperbólica pretensão papal à jurisdição
universal, incluindo não apenas a Igreja, mas também o domínio temporal,
configurou o caminho que antecedeu imediatamente a noção moderna de
soberania. Com a sua certidão de nascimento numa carta do Papa Leão I
(440-461) para o seu vigário, o bispo Anastácio de Salónica, a expressão
nasceu para restringir o poder de Anastácio, que não possuía a plenitudo
potestatis que Leão Magno lhe poderia ter concedido. Leão admoestava
desse modo um seu representante que agira com excessiva rispidez e
punha-o, por assim dizer, no seu devido lugar. Esse devido lugar não era,
previsivelmente, o lugar de quem tinha a plenitudo potestatis, isto é, o
próprio Papa. Era o de alguém que tinha uma responsabilidade delegada, e
que não poderia fazer julgamentos dos assuntos mais graves, reserva da
plenitudo potestatis papal.67 Embora a intenção de Leão I estivesse muito
afastada das pretensões papais que mais tarde um Bonifácio VIII ou um
João XXII alimentaram, a verdade é que este documento permitiu que,
quatro séculos mais tarde, Gregório IV, numa decretal aos bispos das
províncias, aproveitasse a conveniência da expressão para aplicá-la à
condição meramente delegada do episcopado, ao passo que o Papa
detinha, ele sim, a plenitudo potestatis. Gregório garantia a um bispo
acusado de infracções o direito de recorrer ao julgamento e sentença do
Papa, e, enquanto estes não fossem proferidos, todos os castigos,
restrições e penas contra ele provindos de outros juízos episcopais deviam
ser suspensos. A diferença da Decretal de Gregório IV para a carta de
Leão I é que o primeiro falava já não em nome pessoal, mas pela «Igreja
romana». Além da pessoa, havia o cargo sustentado no corpo místico da
Igreja. Só a Igreja possuía a prerrogativa de julgar um bispo, e nela a
plenitudo potestatis pertencia ao mais alto pontífice.68
Mais tarde, no pontificado de Gregório VII, a expressão seria
definitivamente consagrada, embora não por Gregório, para designar a
supremacia papal sem quaisquer ambiguidades. Utilíssima para resolver a
contenda, viva durante séculos, em torno da autonomia dos bispos e do
estatuto particular do bispo de Roma, a plenitudo potestatis foi usada por
vários Papas para garantir a superioridade do Sumo Pontífice e a
correspondente sujeição e limitação dos poderes dos bispos. No governo
da Igreja Universal, a plenitudo potestatis do Papa significava – por
exemplo, para o Papa Inocêncio III – o direito inapelável do Sumo
Pontífice a agir «acima da lei» em vários domínios de decisão na ordem
eclesial. O Papa não se encontrava sujeito aos mecanismos inerentes à
administração da Igreja enquanto estrutura nem aos cânones, que podia
suspender segundo a sua conveniência. Inocêncio III fundamentava a
plenitudo potestatis com uma concessão directa de Cristo a Pedro,
indicando passos nos Evangelhos que seriam, daí em diante,
repetidamente invocados, a saber a da entrega das chaves do Céu, e o
poder de «ligar e desligar» na Terra e no Céu, e o mandamento ao mesmo
Pedro de «apascentar as minhas ovelhas».69 Daqui Inocêncio III concluía
que o Papa não tinha par na estrutura eclesial e possuía autoridade para
agir acima da lei, revogando-a, suspendendo-a, contrariando-a. E não
tinha par porque a sua superioridade era a de um ofício, ou de um cargo,
ou de uma posição pessoal, que estava fora e acima da própria Igreja.70
Com o renascimento dos estudos jurídicos durante o século XII, foi por
esta altura que se recuperou o corpus do direito romano e se procedeu à
reorganização do direito canónico sob a égide de Graciano, com o
Decretum. Ao chegarmos ao Decretum, uma compilação para dar ordem e
coerência ao corpo fragmentado do direito canónico, e que serviria de
manual de direito para gerações e gerações de aspirantes a canonistas,
reparamos que Graciano voltou a recuperar um dos sentidos da expressão
plenitudo potestatis enquanto faculdade do Papa para julgar qualquer
recurso de um clérigo que tenha sido acusado ou condenado, ficando
suspensos todos os efeitos da primeira condenação, como vimos
anteriormente. Plenitudo potestatis, neste sentido, acabaria por vir a
significar uma jurisdição universal do bispo de Roma que podia revogar,
reverter, anular ou confirmar penas atribuídas por bispos metropolitanos
ou outros, que detinham apenas uma jurisdição territorialmente
circunscrita.71
No século XIII, o Papa Inocêncio IV, que fizera carreira como brilhante
jurista canónico, deu um passo acrescido rumo à densificação e
hiperbolização da plenitudo potestatis. Não certamente por coincidência,
no concílio ecuménico de Lyon, Inocêncio destituiria tanto o imperador
Frederico II, como o rei D. Sancho II de Portugal – desautorizando-o da
administração do reino e designando Afonso, conde de Bolonha, curador
do seu irmão. Com Inocêncio, a plenitudo potestatis tornou-se a faculdade
de incumprir, já não apenas a lei positiva dos cânones, mas também a lei
natural. É certo que para violar a lei natural uma «justa causa» seria
sempre necessária. O Papa no exercício da plenitudo potestatis teria de se
justificar. Mas, ao mesmo tempo, a plenitudo potestatis isentava o Sumo
Pontífice de qualquer justificação quando estava em causa somente a
violação da lei positiva. O precedente que aqui foi aberto teria
consequências muito sensíveis no próprio entendimento dos limites do
exercício do poder político secular. O contraste que Inocêncio, apesar de
tudo, queria preservar – entre as violações do ius naturale, que não
deviam ser encaradas de ânimo leve e certamente não sem uma
justificação rigorosa, e as violações do ius civile – rapidamente se diluíra
nas mãos dos juristas civis e dos governantes ambiciosos. Tal como os
canonistas foram beber às fontes do direito romano imperial as referências
de absolutização do poder do imperador com vista a produzir o mesmo
efeito nos poderes do Papa, também depois os civilistas se apropriaram da
matéria e justificação da plenitudo potestatis papal para melhor servir as
veleidades dos governantes temporais.
No conflito entre rei/imperador e Papa veio ao de cima uma das saídas
para o problema teológico-político da soberania. Regressemos, pois, à
questão das fronteiras mais ou menos rígidas, mais ou menos fluídas, entre
as jurisdições dos poderes temporal e espiritual. E acrescentemos o
tremendo obstáculo que foi colocado pela possível supremacia do poder
espiritual (e, portanto, do Papa) sobre o temporal, dado que o fim para que
a Igreja estava ordenada, sobrenatural na sua essência, consistia na
salvação das almas, ao passo que o poder temporal estava ordenado para a
realização do bem comum estritamente natural, o da segurança dos corpos
e da ordem justa e virtuosa na sociedade. Nestes termos, o fim
sobrenatural gozava de superior dignidade e, por conseguinte, de
preeminência e prioridade sobre o fim natural. Ora, foi precisamente da
conjugação destes dois elementos da equação papalista que sairia uma
resposta antipapalista e que encaminharia a doutrina especificamente
católica até aos nossos tempos para a profissão da justa autonomia das
coisas temporais e para uma possível fundamentação popular da
soberania.
Se havia uma dualidade de poderes retirada dos vários passos do
Evangelho que indicavam a existência de dois gládios, de um César e de
um Deus, de um mundo aqui e de um mundo além, então bastaria
acrescentar que ambos os poderes vinham identicamente de Deus, sem
intermediários, para que a dualidade se robustecesse. A tentação papalista
fora sempre afirmar que o poder do Papa e da Igreja vinham directamente
de Cristo, ao passo que o poder do rei era mediado pelos representantes de
Deus na Terra, pondo-o assim numa posição de dependência e de
inferioridade. Mas, se ambos fossem provenientes de Deus para o
cumprimento de finalidades também elas diferentes, ficaria salvaguardada
a autonomia de ambos e impermeabilizadas as suas fronteiras.72 Ainda que
se reconhecesse, como sempre se reconheceu, a superior dignidade do fim
sobrenatural, não estaria comprometida a autonomia porque a origem de
ambos os poderes era a mesma e um não era derivado do outro. E não é
menos importante perceber que o governante temporal recebia o poder de
Deus através do (consentimento ou aprovação do) povo.73
Evidentemente, nenhuma destas apropriações de colossal significado
histórico se fez de modo neutral. Os civilistas operaram-na com um toque
próprio que aceleraria o processo de magnificação da plenitudo potestatis.
E esta sequência teria lugar em França, um país que até muito
recentemente fez da noção de soberania uma parte integrante da sua
identidade moderna, para não mencionar que foi francês o seu primeiro
grande teorizador ou que foram muitos franceses os teóricos e políticos
que tanto contribuíram para esta discussão. Neste ponto particular da
história que, em traços grossos aqui conto, foi um (hoje) obscuro civilista
francês chamado Jacques de Revigny quem, na segunda metade do século
XIII, se propôs a estender as consequências do conceito de plenitudo
potestatis num plano temporal. Afirmou ele que o imperador – já não se
tratava agora do Papa – podia agir contrariamente à lei positiva e à lei
natural sem ter de se justificar, sem ter de apresentar razões para a sua
decisão e acto. O tema em concreto que Jacques de Revigny usou para
chegar ao ponto a queria chegar foi o da propriedade privada e saber se o
imperador podia confiscar propriedade alheia sem razões de justiça. O
imperador possuía plenitudo potestatis e, por conseguinte, respondia
apenas perante Deus – não perante os súbditos nem perante o Papa. Nesta
medida, o imperador podia agir contrariamente à lei civil, ao ius gentium
(o direito dos povos, que se manifestava pelos usos e opiniões
universalmente detectados no mundo, ou pelo menos partilhados pelos
povos civilizados do mundo, contanto fossem racionalmente justificados)
e até à lei divina (os preceitos transmitidos pelo próprio Deus nas
Sagradas Escrituras). Que justificação haveria para tamanha ousadia? Que
dispositivo jurídico-ético poderia caber num raciocínio que recorria à
plenitudo potestatis para chegar a tamanhas conclusões? Segundo Jacques
de Revigny, a presunção de legalidade nos actos do imperador. Se ele agiu
na violação da lei, então presumimos que o imperador agiu na imanência
da legalidade gerada pelo seu estatuto e, portanto, pela plenitudo
potestatis. A razão implícita que sustentava o acto do imperador era
postulada e não carecia de demonstração. Destarte, a resposta tradicional,
tão acarinhada por uma parte significativa da tradição católica latina, a
saber, que um acto de um governante em violação da lei civil, do direito
dos povos, do direito natural ou da lei divina era nulo por essa razão,
ficava por esta via descartada. O acto do imperador agora mantinha-se em
plena validade e a pessoa do imperador não se sujeitava a qualquer
suspeita.74
5. Jurisdição e supremacia
O debate medieval, cujos contornos só podemos desenhar aqui de forma
muito geral e grosseira, entre papalistas – Egídio Romano, Augustinus
Triumphus, Álvaro Pelayo – e imperialistas – Marsílio de Pádua, Baldo de
Perúsio, Bartolo de Sassoferrato ou Guilherme de Ockham – incidiu
certamente na questão da soberania. E não vale a pena contornar o período
acusando o uso do conceito de soberania de ser essencialmente
anacrónico. No conflito entre Filipe IV de França e o Papa Bonifácio VIII,
o que fez Bonifácio aceitar a guerra que o rei gradualmente lhe ia
declarando veio da detenção e julgamento de Bernard Saisset, bispo de
Pamiers, em 1301. Inimigo de Filipe, Saisset foi acusado de um conjunto
de crimes – civis e religiosos – incluindo traição. Bonifácio ficou furioso.
Filipe dizia com este acto que deixara de respeitar a fronteira que definia
as jurisdições separadas de clérigos e de leigos. Dizia que no seu território
só havia uma jurisdição – a da soberania temporal – para efeitos criminais.
Não havia jurisdições distintas, o Papa não possuía qualquer jurisdição
coerciva para punir fosse quem fosse, nem o rei, nem o súbdito do rei, e o
grande processo de consolidação, de desfragmentação, podia agora
começar. Se a soberania do Papa reivindicava a universalidade
jurisdicional, também a soberania do rei reivindicava a universalidade na
particularidade delimitada pelas fronteiras territoriais do reino, ou a
universalidade simpliciter no caso da soberania do imperador. O trabalho
histórico da soberania seria precisamente esse: conciliar a diversidade
social com a uniformidade legal, com a unicidade jurisdicional, com a
circunscrição territorial e com o estabelecimento de uma única relação de
lealdade e obediência políticas. A igualdade perante o soberano, ou
perante a lei, seria uma marca definidora da construção da soberania.
Ficava por determinar do lado dos súbditos que igualdade seria essa: se a
igualdade na nulidade, se uma igualdade recheada de direitos (iguais) que
pudessem inclusivamente ser exercidos contra o soberano e contra a lei.
Seria um outro longo debate.
Não é sem uma certa ironia que nos damos conta de que Clemente V,
um ultrapapalista hierocrático, poucos anos após a morte de Bonifácio
VIII acabaria por dar um passo importante no reconhecimento de uma
relação estrutural entre soberania e territorialidade. Na decretal Pastoralis
Cura, de 1313, Clemente punha fim a uma disputa entre Roberto de
Nápoles e o imperador Henrique VII. O conflito era sério. As cidades
italianas e o reino de Nápoles estavam formalmente debaixo da tutela do
Império. Mas, para todos os efeitos, eram perfeitamente independentes. A
vida prosseguiu nesta instabilidade entre a regra e prática até que, por
finais do século XIII, civilistas, reis e outros governantes citadinos
decidiram investir contra o domínio de jure do Império. Este conflito
acabaria por atravessar a vida política da fragmentada península itálica,
formando duas grandes facções pan-italianas em torno desta magna
questão: os Guelfos e os Gibelinos. O confronto muitas vezes violento – o
grande poeta Dante que o diga – entre Guelfos e Gibelinos era motivado
por mais do que este conflito entre a assunção de independência de reinos
e cidades, por um lado, e, por outro, a jurisdição hegemónica do Império.
De resto, Guelfos e Gibelinos não eram facções homogéneas. Tinham
sérias fracturas no seu seio.
Ora, uma vez que Roberto de Nápoles se recusou submeter-se ao
ultimato do imperador, coube a Clemente decidir uma contenda de direito
entre as duas partes. Ao fazê-lo apoiado nas teses do civilista Oldradus de
Ponte e indirectamente de Andreas de Isernia, além de destruir a
supremacia do Império, consagrou a noção de soberania territorial.
Fundamentou e sancionou a soberania que se exerce sobre uma porção de
território e que responde, e é afectada directamente, pela integridade deste,
ou das suas fronteiras, por intermédio da associação dos limites territoriais
à jurisdição soberana. A decisão de Clemente V foi tão mais inovadora
quanto revogava decisões prévias de Inocêncio III e de Bonifácio VIII que
tinham validado a supremacia de jure, embora não de facto, do imperador
sobre o rei de França.75
O problema em torno das fronteiras da jurisdição geraria algo com que a
teoria moderna da soberania também teria de se debater na invenção da
distinção entre público e privado, distinção que evidentemente pressupõe
uma fronteira a que o soberano deve, em princípio, atender. Mas gerou
desde o primeiro momento a interrogação essencial: quem define as
fronteiras? Quem julga no caso concreto se elas foram respeitadas ou
infringidas? A interrogação permanece essencial. A nossa sociedade da
delimitação teórica do público e do privado não a superou. Pelo contrário.
Tornou o problema mais presente e mais intrincado.76
Nos debates teológico-políticos dos séculos XIII e XIV, os papalistas
defendiam que o Papa detinha poder temporal além do poder espiritual.
Vimos que os limites do Papa estavam circunscritos ao exercício concreto
desse poder que devia ser delegado no rei. Mas o Papa detinha a
supremacia temporal porque só ele era o juiz de última instância ratione
peccati, para usar a expressão da época. Ratione peccati queria englobar
as matérias e os casos em que estivessem em causa a salvação das almas.
Bonifácio VIII e o cardeal-bispo de Porto-Santa Rufina, Mateus de
Aquasparta, assim defendiam a superioridade papal relativamente a outros
agentes do poder temporal como o rei ou o imperador. Porém, como
notariam os adversários do papalismo à época, e notariam também os
críticos do soberanismo integral na nossa própria época, considerar
legítima a intervenção do Papa apenas ratione peccati, mas continuar a
admitir que só o Papa soberano podia julgar inapelavelmente, e assim
decidir unilateralmente, o que constituía ou não ratione peccati, equivalia
a autorizar a priori a intervenção que os Papas bem entendessem no
domínio político.77
O problema da jurisdição colocava um problema teórico e prático
radical, e literalmente de vida e de morte no período tardo-medieval: a
deposição do rei/imperador pelo Papa, e vice-versa. Ora, se o Papa podia
excomungar um imperador (ou um rei), e com isso julgá-lo incapaz de
governar uma comunidade de cristãos em busca da salvação da alma,
tornou-se persuasivo para muitos, e os papalistas fizeram disso seguro de
vida, que o Papa podia escolher quem devia governar os reinos cristãos e
quem devia ser o sucessor do grande império de Constantino. O passo nos
Evangelhos de Mateus sobre o poder atribuído por Cristo – as «chaves dos
céus» – a Pedro de ligar e desligar na Terra e no Céu,78 alegadamente
profetizado em Jeremias 1:10 («Eu hoje concedo autoridade a ti sobre as
nações e reinos da terra, para arrancar, despedaçar, destruir e exterminar;
mas também para edificar e plantar»), era o prato forte da autoridade
escritural. Além disso, havia também um uso amplo de alegados
precedentes históricos da escolha papal que conduzira imperadores e reis,
incluindo reis franceses, ao trono, ou de lá os retirara. Tudo culminado
com o exemplo do célebre dia de Natal do ano 800 quando um Papa fez de
Carlos Magno imperador.
A resposta do lado secular não se fez esperar com os partidários do
poder imperial/régio. Com o sinal exactamente simétrico se diria que um
Papa herético devia ser removido, ou por um Concílio Geral, ou por um
colégio de clérigos que representasse, como um Concílio, toda a Igreja.
No final do século XII, o bispo de Pisa e um notável canonista, Huguccio,
defenderam precisamente essa saída. Mais, se fosse para usar precedentes
históricos decerto alguns se encontrariam para designar a capacidade de
um imperador/rei escolher um Papa, ou pelo menos não aceitar um que
fosse tido por incapaz. No início do século XIV, Guilherme de Ockham,
envolvido na luta contra o Papa João XXII, daria um passo adiante. O
Papa incorrigível, perpetrador de graves faltas, escandalizador da Igreja,
podia ser deposto por um «julgamento humano», que poderia muito bem
ser do próprio governante leigo.79
Ninguém foi tão longe nesta pretensão secular quanto o intrépido
Marsílio de Pádua nas primeiras décadas do século XIV durante o terrível
conflito entre o Papa João XXII e Luís da Baviera, que fora eleito
imperador e ao lado de quem Marsílio, juntamente com muitos
franciscanos, se pôs.80 Marsílio chegara a ser, ainda que brevemente, reitor
da mais importante escola de teologia da época, a Universidade de Paris.
Mas não foi por essa experiência de ofício que se celebrizou. Na sua obra
maior intitulada O Defensor da Paz, de 1324, mais de três séculos antes de
Espinosa, Marsílio contrapunha por implicação o «legislador» laico aos
prelados desordeiros, liderados pelo desordeiro-mor, o Papa. A sua
ofensiva à ortodoxia vigente, querendo usar o aristotelismo (autêntico)
contra o aristotelismo (usurpado), apontava já para o futuro Hobbes e para
a supremacia do seu Leviatã que, por detrás da doutrina das duas cabeças
da mesma águia, acabava por propor uma superioridade absoluta do poder
temporal para decidir tudo no poder espiritual, incluindo a sua doutrina de
fé. O Papa Clemente VI fez saber que Marsílio era o «pior herege» que
alguma vez lera.81
Inovação diferente nesta matéria seria introduzida duzentos anos mais
tarde por Lutero, embora com precedentes tardo-medievais. Na verdade,
não é muito caricatural dizer que na lista de inovações à imagem dos dois
gládios a luterana acabaria por encerrá-la, pelo menos no que diz respeito
à coluna subscrita pelos autores genuinamente cristãos. Já no século XVI,
Lutero acabaria por se insurgir indignado contra a ideia de que alguém
além do príncipe temporal possuiria uma espada. A Igreja de Roma estava
remetida a um cativeiro babilónio, não tendo o Papa qualquer jurisdição
sobre ninguém. Para Lutero, a ideia de que o poder espiritual da
comunidade dos fiéis de Deus também teria a sua espada, e, pior, que seria
desembainhada por um Papa, era satânica. A ecclesia só podia ser
estritamente espiritual. O povo de Deus podia reunir-se em
«congregação», mas não certamente numa estrutura hierárquica,
burocrática, com a veleidade de operar a mediação do pecador com Deus.
Só Cristo era o Senhor do povo de Deus. Tudo o resto, toda a coerção,
fosse em que domínio fosse, só poderia ser exercida pelo príncipe. Mas
ainda assim Lutero salvaguardava o reino do Espírito de invasões
ilegítimas do príncipe temporal. Em matéria de obediência à espada,
porém, o cristão devia-a apenas ao príncipe político – desde que este não
se atrevesse a interferir na «liberdade cristã» para adorar o Deus
revelado.82 Sabemos onde rapidamente cairia a investida de Lutero contra
o poder do sacerdotium. O príncipe tornou-se chefe da Igreja. Trocou-se o
Papa pelo Rei. O poder temporal adquiriu supremacia sobre o espiritual.
Foi assim em Inglaterra, na Suécia, na Dinamarca e em várias das
comunidades políticas do império, para mencionar apenas exemplos
ocorridos ainda em tempo de vida de Lutero. Do ponto de vista das duas
jurisdições tradicionais, no mundo luterano passou a ser tudo regnum e
nenhum sacerdotium. Foi uma tremenda escolha política, explicitada, por
exemplo, no preâmbulo do Act in Restraint of Appeals to Rome de 1533,
uma das leis fundamentais que levaram a cabo a constituição da Igreja
Anglicana e a ruptura inglesa com Roma, da autoria do chanceler de
Henrique VIII, Thomas Cromwell. Por detrás da escolha política estava
uma afirmação de soberania, entendida como a mais elevada e inapelável
instância jurisdicional no território.83
Contra Bonifácio VIII, o teólogo mais profundo dessa controvérsia,
João Quidort de Paris, mestre de Teologia na Universidade de Paris, não
se atreveu a ir tão longe quanto Marsílio. Apenas repescava algumas
deixas que abriam a porta à destruição da suposta imunidade papal,
quando este era herético, ou não o sendo, cometia faltas graves que, uma
vez admoestadas, não tinham uma resposta redentora por parte do Sumo
Pontífice.84 O Papa escandaloso e incorrigível podia e devia ser deposto,
tal como Huguccio cerca de cem anos antes ensinara. A ameaça a
Bonifácio VIII ficava feita. Mas a questão prática de como julgar um Papa
e de quem o poderia fazer não era resolvida com clareza. Afinal de contas,
ele não tinha um «superior».85 Fosse como fosse, para João jamais seria o
poder secular a julgar um Papa para o depor – assim como nunca um Papa
poderia directamente depor um rei criminoso, escandaloso e herético, mas
tão-só levar o povo (ou, mais rigorosamente, os barões) a depô-lo,
excomungando os que permaneciam leais, por exemplo.86 Teria de ser um
órgão que pudesse falar pela totalidade da Igreja. Mais concretamente, o
rei podia usar a sua espada contra a espada papal, não por esta ser papal
mas enquanto «inimigo» político do povo que aquele tinha à sua guarda.87
Mas João não punha em causa a supremacia papal na tarefa
inevitavelmente social de apascentar as ovelhas de Deus, e muito menos a
posição de Pedro entre os Apóstolos ou a sucessão apostólica que se
seguiu na chefia da Igreja.88 Diferença das diferenças, João aceitava para o
Papa o que Marsílio negaria até morrer: que o sucessor de Pedro detinha a
plenitudo potestatis.89
À sua escandalosa negação, Marsílio acrescentava a seguinte
elucidação. Num primeiro momento, parecia dizer que esta causa singular
provocadora de intranquilidade ou de discórdia na cidade residia na
opinião errónea de certos bispos de Roma e talvez no seu desejo perverso
de governar. Mas se se tratasse apenas de uma opinião errónea circunscrita
a alguns homens tudo estaria no plano da contingência e bastaria
repreender esse punhado de prelados para nos livrarmos dos sarilhos. Para
Marsílio, os factos eram mais sinistros. Na verdade, havia numa
instituição como a do papado uma inclinação para favorecer a tese da
plenitudo potestatis. O desejo perverso de mandar era inerente a uma
instituição desse tipo, segundo Marsílio. A concentração do poder nela, e a
sua aspiração de universalidade, reconduziam invariavelmente a uma
ideologia de justificação deste tipo.
A este nível não havia fronteiras impermeáveis entre os domínios
temporal e espiritual, entre regnum e Igreja. A intromissão de um
soberano de uma esfera na vida da outra era admitida nos casos graves e
excepcionais. Rei contra Papa, Papa contra rei, um a libertar os súbditos
do outro dos seus vínculos de obediência, deposições de uns às mãos dos
outros, quando as circunstâncias o exigissem não era chocante, nem
sequer para alguém como João de Paris, que em tanta coisa parecia
prefigurar inclinações pós-medievais, se é lícita a expressão. Mais, as duas
esferas eram tidas normativamente como cooperantes, único meio de
cumprir os desígnios de Deus para a Humanidade. E por que João não deu
o passo que parecia, aos nossos olhos contemporâneos, o caminho teórico
óbvio para resolver um conflito tão perigoso e cujo potencial de repetição
era imenso? Por que não propôs João o selamento das fronteiras entre
temporal e espiritual, terminando assim com a raiz desses conflitos de
jurisdições?90
A razão não é difícil de encontrar. Porque a heresia, a pureza doutrinal
da fé, a tarefa de salvação das almas, a vida de beatitude e a
responsabilidade pastoral não eram irrelevâncias. Não eram indiferentes a
João nem a nenhum outro teólogo – com a excepção, talvez, é preciso
dizê-lo, de Marsílio de Pádua – estas considerações autenticamente cristãs.
Na verdade, elas levavam a melhor sobre qualquer outro tipo de
considerações na escala de prioridades teológico-políticas. Apenas quando
a civilização europeia acabou por privatizar e relativizar a questão
religiosa da salvação da alma, se abriria um novo horizonte de «solução»
– ou tentativa dela – do problema. Daí que no final do século XIX, com o
grande avanço das teses liberais ou pelo menos laicizantes, o Papa Leão
XIII mandasse publicar a encíclica Immortale Dei, menos famosa do que a
Rerum Novarum, mas não menos interessante. Nessa encíclica, a
recapitulação doutrinária aparecia como um longo lamento. Se, por um
lado, Leão XIII se demarcava de supostas fidelidades monárquicas,
afirmando a compatibilidade da doutrina católica com qualquer forma de
governo, por outro lado, o Papa recordava que o poder eclesiástico e o
civil, sendo distintos, deviam relacionar-se como o corpo se relacionava
com a alma. Agora que tal união estava a ser destruída perder-se-ia a
«feliz concórdia» entre ambos e a «permuta amistosa de bons ofícios»
entre um e outro poder.91 A irrelevância das formas de governo abria o
caminho para a única prioridade constitucional – se é lícita a expressão –
da Igreja: a relação próxima e cooperante entre poder temporal e poder
espiritual, mantendo cada um os seus respectivos e diferentes fins. Ora, a
soberania desempenharia um papel central nessa evolução histórica.
Só muito depois de João de Paris e de Marsílio de Pádua se encarregaria
a doutrina liberal moderna de fechar as duas fronteiras jurisdicionais e
estabelecer a plena autonomia, senão independência, das duas esferas, não
sem algumas ambiguidades por resolver. O fundo do problema era mais
intratável.
6. Resposta à pergunta «o que é a verdade?»
O exame do debate em torno da soberania papal (e da do rei/imperador)
no contexto dos séculos XIII e XIV permite-nos considerar um outro aspecto
relevante para a discussão moderna da soberania. A afirmação de
superioridade levanta imediatamente a questão da relação da soberania
com a autoridade. Não irei debruçar-me sobre esta distinção.92 Mas a
questão que permanece é a da relação entre a soberania, um poder
superlativo, e a verdade. Isto é, trata-se de saber até que ponto foi
atribuída ao locus de soberania uma sede de formação da verdade também
– uma sede de veridição. Quer isto dizer, a soberania é não só uma sede de
juris-dição, mas também de veri-dição. Os actos soberanos podem ser
efectivos, mas reflectem de algum modo a verdade, o que é verdadeiro?
Reflectem uma produção da verdade sobre o que é bom e o que é mau?
Sobre os costumes bons e os costumes maus? Sobre que modos de vida
são superiores e que modos de vida são inferiores? Sobre o Deus a adorar
e os ídolos a derrubar? Sobre quem é membro da comunidade política – o
cidadão – e quem não é – o estrangeiro? Sobre quem é o inimigo? Sobre
quem é bom cidadão e quem é mau cidadão? Sobre qual é o interesse do
Estado a prosseguir na relação com exterior?
Na medida em que a soberania é um princípio de ordem da comunidade
política, ela pronuncia-se, ou dita, o verdadeiro acerca da identidade
colectiva? Ou acerca de qual é(são) a(as) identidade(s) correcta(s) e as
incorrecta(s)? O poder soberano, tendo esta particularidade criativa
fundamental, produz também um discurso acerca de si mesmo, um
conhecimento próprio daquilo que ele é, das suas possibilidades, das suas
condições de possibilidade, do seu alcance, da sua localização, dos seus
direitos, das suas restrições, dos seus deveres – e os conteúdos de cada um
destes objectos discursivos não são imutáveis.
As relações entre um regime de verdade e a constituição da ordem
foram exploradas exaustivamente pelos grandes teólogos católicos nas
suas polémicas com os vários protestantismos. Bossuet, por exemplo,
porventura o maior teólogo do final do século XVII e do início do século
XVIII, certamente o mais talentoso e eloquente apologeta da fé católica,
apontava essa fractura aos protestantismos para com maior facilidade os
aniquilar nas suas pretensões de verdade. Bossuet foi o prelado da corte de
Luís XIV e um apoiante inflexível da revogação do Édito de Nantes, além
de um dos mais notáveis teólogos de um período em que a França gerou
vários de excepcional quilate. Mal Lutero se rebelou contra a Igreja de
Roma e quase imediatamente se multiplicaram as confissões de fé
protestantes que se demarcavam não apenas de Roma, mas também de
Lutero, e não raro com idêntico distanciamento e violência. A resposta
vociferada por Bossuet foi simples, mas dolorosamente penetrante: «sob o
pretexto de afastar a dominação», as múltiplas seitas protestantes
acabavam precisamente «por se privar da ordem». Sem surpresa, «não
souberam conservar o princípio de unidade».93 A chave da ordem tornava-
se óbvia. Se se destruía a autoridade da Igreja, e, em particular, como
insistia Bossuet, do Papa, para agir soberanamente sobre as diversas
possibilidades teológicas – ortodoxias/heresias, dizendo quais são
ortodoxias e quais são heresias –, não haveria ordem nem comunidade de
coexistência. Porém, como veremos, a soberania moderna coloca a
questão da formação do verdadeiro numa relação muito mais subtil com a
constituição da ordem do que era o caso da polémica católica contra os
protestantismos.
São imensos os desdobramentos desta questão no plano da teoria da
soberania e no plano da sua concretização no mundo prático. No contexto
delimitado do conflito entre Papa e rei/imperador do final da Idade Média
a perspectiva de análise terá de obedecer às especificidades do
enquadramento teórico e dos imperativos que apareciam na formação de
lealdades de um ou lado ou de outro. Assim, não restam dúvidas de que,
por exemplo, Bonifácio VIII ou João XXII reclamaram a veracidade dos
julgamentos que proferiam, isto é, que os seus julgamentos eram
verdadeiros e que a interpretação deles das Escrituras ou dos cânones da
Igreja era verdadeira. Porém, à luz da história da Igreja o problema jogou-
se na existência, ou inexistência, de uma sede, neste caso de um
magistério, a partir do qual se dissesse a verdade indubitável relativamente
a um domínio da fé e da moral e que vinculasse cada crente in foro
interno. Por outras palavras, o Papa enquanto soberano podia afirmar
verdades respeitantes à salvação da alma eterna em que todos os católicos
teriam de acreditar sem reservas e que daí em diante fossem imutáveis e
insusceptíveis de revisão. Caberia ao Papa dizer o que a verdade é em
matérias doutrinais e dogmáticas que não estejam suficientemente
clarificadas ou sequer definidas. Ou, o que vale pelo mesmo, que é seu
direito, e até seu dever, ser um juiz decisor inapelável de várias verdades
irreconciliáveis quando estão em confronto, sem correr o risco de, com
uma decisão tomada, cometer por esse meio uma heresia. Em suma, a
«infalibilidade» enquanto marca da soberania. Recorde-se que a tese da
infalibilidade papal no chamado «magistério extraordinário» declara que a
inerrância, ou a impossibilidade de errar, atribuída ao Papa vale
identicamente para a Igreja no seu conjunto, pois não existe oposição entre
o Papa e a Igreja que lidera. Se um Papa cometesse heresia, ipso facto
deixaria de o ser, embora em certos casos não fosse imediatamente
removido da chefia da Igreja. Vale a pena ser mais preciso. Nalguns casos,
admitia-se que o Papa podia proferir uma heresia nova e ainda assim
permanecer formalmente no cargo de chefia da Igreja por impossibilidade
de se efectuar um julgamento da sua figura soberana. Esta ressalva
importante também remete para discussões posteriores, já em plena
Modernidade, da imunidade da pessoa do soberano enquanto soberano.
7. Errar é soberano?
Não é fácil decidir se a tese da infalibilidade papal, incorporada na
doutrina dogmática da Igreja no Concílio Vaticano I em 1870, sempre
gozou de aceitação na história da Igreja, ou se constituiu inovação recente.
O facto de ser dogma da Igreja de Roma tornou a investigação histórica
nos séculos XIX e XX mais complexa, digamos assim. A possibilidade de se
tratar de uma inovação recente seria sempre anátema para o corpo católico
de investigadores na medida em que a apropriação de dogmas não pode
obedecer a zelo inovador. Os dogmas não se inventam, nem são
reversíveis. A inerrância da Igreja e do Papa assim o determinam.
Contudo, não faltou quem pusesse em causa a tese oficial de que o dogma
repousava numa tradição praticamente ininterrupta desde o primeiro
milénio de existência da Igreja e, por conseguinte, desde o início da fé
cristã. Que nunca antes do século XIII se poderia dizer que a infalibilidade
papal fazia parte da doutrina tácita da Igreja.
O diferendo historiográfico não pode obviamente ser resolvido aqui.
Mas o que emerge desse diferendo é muito relevante para a composição da
ideia moderna de soberania. Quem contesta uma tradição da infalibilidade
papal anterior ao século XIII, alega que em caso algum os canonistas viam
no Papa a capacidade para reorganizar ou alterar a doutrina escritural, nem
que constituísse um agente próprio da interpretação da tradição da Igreja
em contraposição às Escrituras elas mesmas e às determinações
conciliares. No fundo, não era ao Papa que cabia garantir a inerrância da
Igreja. Não negavam ao Papa a sua condição soberana, como, de resto, já
vimos, mas indicavam que essa soberania se derramava sobre o
funcionamento e organização da Igreja enquanto corpo místico. É
importante notar que negar a infalibilidade papal não atinge
necessariamente as prerrogativas típicas da soberania (papal).
Antecipando a dialéctica especificamente moderna soberania-
constitucionalismo, e exportando a controvérsia tardo-medieval para as
considerações modernas e contemporâneas em torno da soberania,
poderíamos dizer que negar (ou não aceitar) a infalibilidade papal apenas
implicaria que uma decisão do Papa fosse revogável pelo seu sucessor
apostólico. Visto de outra maneira, nenhum Papa estava vinculado às
escolhas dos seus antecessores precisamente por ser soberano, segundo a
máxima par in parem non habet imperium ou «pares entre si não têm
poder uns sobre os outros», a qual acabaria por migrar para o direito
internacional público como princípio da imunidade soberana dos Estados
relativamente aos outros. Como veremos, essa é uma associação muito
forte na concepção moderna de soberania: a permanente revogabilidade
dos seus actos, vontades e decisões – o que não deixou de conduzir a
corolários bizarros. Mais, os canonistas não vislumbravam qualquer
faculdade de infalibilidade no Papa, mas partilhavam a noção de
indefectibilidade, isto é, que havia uma continuidade na verdade doutrinal
na Igreja enquanto corpo místico e tradição que sobrevivia aos desvios e
aberrações produzidos pelos seus elementos, mesmo quando um desses
elementos perturbadores do caminho da rectidão doutrinal fosse o próprio
Papa. Por exemplo, um teólogo como Ockham corroborava o essencial
destas considerações. Acusava o Papa João XXII de heresia porque, entre
outras dezenas de teses, defendia que qualquer Sumo Pontífice, incluindo
ele próprio, podia, em matéria de dogma ou de moral, revogar as
«definições e as determinações dos pontífices seus antecessores e definir
asserções contrárias». Por outras palavras, Ockham denunciava como
herética a reivindicação de João XXII de desvinculação relativamente à
doutrina afirmada ex cathedra pelos papas anteriores.94
Em contrapartida, a tese da infalibilidade consagrada no corpo
dogmático da Igreja, não se confundindo jamais com poderes de revelação
do Sumo Pontífice que acrescentariam conteúdos de fé ou de moral à
tradição apostólica, nem com qualquer presunção de imunidade, e muito
menos de santidade, da pessoa do Papa, afirma que quando o chefe da
Igreja fala ex cathedra possui uma autoridade para determinar doutrina
moral e de fé, esclarecendo-a. É o Papa quem exerce a infalibilidade que
Cristo atribuiu à sua Igreja para definir os conteúdos da fé dos homens e o
sentido normativo da sua conduta. E, o que é decisivo para o sentido
último da infalibilidade, aquilo que é determinado pelo Papa é, nas
palavras do Concílio Vaticano I, «irreformável».95 O que é determinado
pelo Papa é, mais rigorosamente, fixado por ele – e, portanto,
irreversível.96
Chegados a este ponto, ressalta uma dificuldade que não pode ser
ignorada. Se a infalibilidade significa irreformabilidade ou
irreversibilidade, tal significa que um Papa está vinculado a profissões ex
cathedra de Papas anteriores. Por outras palavras, ele não está
desvinculado para afirmar o que quiser, nem para contradizer o que outros
Papas antes dele professaram, o que, na linguagem própria do contexto
deste livro poderia ser traduzido por «limite à soberania». O recém-
falecido historiador Brian Tierney, o principal céptico dos nossos tempos
relativamente à alegada imemoriabilidade da infalibilidade papal na
tradição cristã, atribuiu ao teólogo franciscano Pedro Olivi a paternidade e
invenção da infalibilidade do Papa por volta de 1280. A intenção de Olivi
era proteger a sua ordem religiosa das investidas de um Papa revisionista.
Os franciscanos tinham obtido do Papa Nicolau III, na Bula Exiit de 1279,
concessões importantíssimas relativamente aos pontos que
fundamentavam o modo de vida cristão dos franciscanos, nomeadamente
nas questões centrais da pobreza e da separação dos iniciados de todas as
relações de propriedade como consumação da imitação da vida de Cristo e
dos Apóstolos. Segundo Tierney, Olivi queria salvaguardar esses ganhos
dos franciscanos junto do papado e protegê-los de alterações futuras que
comprometessem a sobrevivência da ordem mendicante na comunidade da
Igreja. Já depois de Olivi morrer, João XXII viria efectivamente a revogar
a doutrina estabelecida por Nicolau III. Quando os franciscanos chamados
«espirituais» responderam com a infalibilidade do Papa – neste caso, do
primeiro papa, Nicolau III –, e, portanto, com a irreformabilidade das
doutrinas que salvaguardavam a Ordem de São Francisco, João XXII
respondeu à letra, rejeitando nos termos mais violentos a tese da
infalibilidade papal. Enquanto o Papa João XXII defendia a sua
soberania, os franciscanos atribuíam infalibilidade a todos os papas para
limitá-la.
Através do interessante episódio do terrível conflito entre os
Franciscanos Espirituais e o Papa João XXII, percebemos como a relação
entre a infalibilidade e a soberania pode tornar-se bastante ambígua. A
migração desta ambiguidade para o problema político-temporal é mais do
que previsível. Veja-se, a título de exemplo, as considerações de um
admirador hesitante de Jean Bodin, ainda que na família do monarquismo
radical, ou do patriarcalismo, o autor inglês da primeira metade do século
XVII, Robert Filmer. O ultramonárquico Filmer, conservador teórico do
patriarcalismo, explícita e assumidamente misógino, chocou pela sua
ousadia ultrajante outros pensadores, como Algernon Sydney e John
Locke, que ignoravam a igualdade dos géneros. Foi um dos mais vocais
defensores do direito divino dos reis e não se cansou ora de elogiar, ora de
criticar o tolerante e céptico Jean Bodin. Escreveu ele: «Os príncipes
estrangeiros bem-aconselhados nunca fazem o juramento de manter as leis
dos seus antecessores; pois de outro modo não são soberanos.»97
Contudo, Hugo Grócio, alguém com propensões muito mais
liberalizantes do que Filmer, não disse sobre isto algo de muito diferente.
Os príncipes estavam vinculados ao direito natural, mas não certamente à
«prescrição», ao costume ou às decisões soberanas anteriores.98 Já em
Hobbes a desvinculação soberana em relação ao passado é total. Em
relação ao passado, tal como em relação à «lei de natureza», a expressão
que Hobbes preferia para designar os teoremas da razão sob a forma de
imperativos hipotéticos. A necessidade, gerada pela infinita amplitude de
circunstâncias imprevisíveis, a que o soberano estava exposto, por meio a
salvaguardar a sua razão de existir – a segurança dos súbditos e da
comunidade política –, negava a vinculação. O horizonte de possibilidades
de decisão não podia estar restringido por qualquer vinculação, fosse ao
passado (a decisões passadas), fosse à natureza («lei de natureza»). O
soberano era o único juiz da decisão adequada à necessidade. Só ele podia
decidir que excepções à legalidade proveniente do passado teriam de ser
introduzidas no presente. Como é costume dizer-se, Maquiavel ensinou o
que já ensinava o adágio latino: necessitas non habet legem facet – a
necessidade não tem lei. É preciso acrescentar que Maquiavel também
ensinara que a necessità se manifestava sempre como perigo, ou como a
ameaça do perigo. E que a necessidade, com toda a sua perigosidade,
interpelava o político e a sua virtude – ou atropelava a ausência dela.
Exigia-lhe criatividade na decisão. Porquanto, «muitas coisas que a razão
não te induz, induz-te a necessidade». No fundo, o ensinamento de
Maquiavel era este: ou se entra criativamente no espaço da excepção que a
necessità abre, ou cava-se a ruína.99
Contornando a óbvia relação da ambiguidade assinalada com a estrutura
do constitucionalismo moderno, de que trataremos mais adiante, de que
modo a dita ambiguidade afecta a nossa discussão? A resposta é simples: a
soberania não deixa de ser uma sede da formação e dicção do verdadeiro,
mas as modalidades de exercício não são indiferentes.
Houve ainda uma outra maneira de interpretar a relação entre
infalibilidade e soberania, e a que vale a pena prestar atenção. Para Joseph
de Maistre não havia dúvidas: a infabilidade na ordem espiritual, e a
soberania na ordem temporal, eram duas palavras perfeitamente
sinónimas. De Maistre, conde saboiano, diplomata e ministro do reino do
Piemonte-Sardenha, foi provavelmente o mais implacável crítico da
Revolução Francesa, vendo nela um acontecimento sem precedentes
devido ao seu carácter «satânico» inconfundível. Apologeta da Inquisição,
senhor de uma pena fogosa, devoto submisso de algumas autoridades
tradicionais – a Igreja Católica e o Papa, a monarquia hereditária, Platão,
Santo Agostinho – e iconoclasta terrível de algumas autoridades modernas
– a Revolução, Francis Bacon, Rousseau, Voltaire –, De Maistre viu ser
absurdamente misturada a sua reflexão sobre a permeabilidade incurável
da civilização humana ao mal e à dor com as «origens do fascismo».100
Mas porque De Maistre considerava a infabilidade na ordem espiritual
sinónima da soberania na ordem temporal? Porque ambas descreviam um
poder supremo que «domina os outros, donde todos os outros derivam,
que governa e não é governado, que julga e não é julgado».101 Existia, por
isso, uma plena correspondência entre a infalibilidade e a soberania. No
ofício papal elas confundiam-se até. Eram inseparáveis. No governo da
ordem temporal, a soberania tinha de ser tida por infalível porque, se se
pudesse resistir aos comandos do Estado «sob pretexto de erro ou de
injustiça, ele deixa de existir». Infalível era, pois, uma outra palavra para
absoluto. Soberania era, para De Maistre e para outros, governo absoluto
neste sentido, e não num sentido totalitário com o qual muitas vezes tem
sido confundido.
Mas não foi apenas dos confins da Idade Média, nem dos abismos do
pensamento reaccionário, que restavam vestígios da meditação sobre a
infalibilidade e a soberania. Nada mais, nada menos do que o
postumamente proclamado profeta da revolução democrática, Jean-
Jacques Rousseau, desenvolveu uma teoria da soberania radicada no povo
que assumia o atributo da infalibilidade. Terei oportunidade de revisitar
frequentemente Rousseau no capítulo seguinte sobre a soberania popular.
Por ora, basta assinalar algo que é frequente perder-se de vista: para
Rousseau, o soberano não era o povo, como tantas vezes se diz
precipitadamente. Em rigor, era a vontade geral que era soberana. Uma
das teses de Rousseau acerca da soberania, além da recapitulação do
ensinamento de Bodin/Hobbes – a soberania era indivisível, inalienável,
absoluta –, consistia em atribuir-lhe a infalibilidade ou a inerrância. A
vontade geral era «sempre recta» e «tende sempre à utilidade pública».
Rousseau, para confusão de muitos, apressava-se a dizer que as
«deliberações do povo» não gozavam dessa infalibilidade. O povo em
concreto, querendo sempre o seu próprio bem, nem sempre via o que
queria. A vontade geral não era, pois, um mero sinónimo da vontade do
povo reunido politicamente. Era tristemente possível que um povo
vivendo em condições sociais e políticas corrompidas fosse incapaz de
afirmar uma cidadania que, quando chamada a pronunciar-se sobre os
assuntos do Estado, formasse a vontade geral. Esta não era nem a vontade
da maioria, e muitas vezes escapava até à vontade da unanimidade. A
desnaturação do homem, isto é, o desenraizamento dos sentimentos
viciosos e divididos do «homem do homem» rumo à formação do «moi
comum», base psicológica e afectiva da cidadania democrática; a remoção
dos partidos políticos e da representação parlamentar; a consciência do
comum partilhado entre os membros da comunidade política eram outras
tantas condições de formação da vontade geral. Esta enquanto vontade
geral nunca estava errada. O princípio fundamental do direito político,
condição indispensável para o exercício da liberdade no contexto
disciplinar da sociedade civil, era o de que a lei digna desse nome era o
produto jurídico da vontade geral. Logo, a única possibilidade de
permanecer livre no mundo político era não obedecer senão à vontade
geral, modalidade superlativa da obediência racional a si mesmo. De resto,
a distinção entre a «vontade geral» e a «vontade de todos» era central na
teoria da soberania de Rousseau, provocadora de uma reflexão mais
profunda sobre o alcance do conceito de «soberania popular», e sem a
qual desaparecia o sentido da infalibilidade que era atribuída por ele à
vontade geral soberana. A inerrância da vontade geral permitia
problematizar a «soberania do povo».102 Inerrância neste sentido estrito
porque no que dizia respeito à revogabilidade das decisões passadas,
incluindo pelas concreções da vontade geral articuladas no passado,
Rousseau identificava a soberania com os plenos poderes de revogação.
Na teoria da soberania rousseauniana, a inerrância da vontade geral, que
devia recomendar uma primeira abordagem ao constitucionalismo, é de tal
modo conciliada com a total liberdade do soberano para agir, inclusive
revogando os seus actos passados, que se converte numa crítica feroz do
constitucionalismo. Embora tivesse alimentado algumas dúvidas iniciais,
Rousseau acabou por acompanhar Hobbes na radicalização da liberdade
do soberano.103 Nenhuma lei fundamental, ou Constituição em sentido
estrito, podia vincular o soberano. «É contra a natureza do corpo político
que o soberano imponha uma lei que não possa infringir.»104 Não existia
qualquer limite que pudesse ser colocado por alguma espécie de lei à
vontade do soberano. A possibilidade de um texto constitucional que
condicionasse a vontade do soberano era coincidente com a destruição da
soberania. Como era a soberania que definia a própria associação civil,
então uma lei fundamental era contraditória com a associação civil. E
Rousseau estava disposto a assumir todas as consequências dos seus
princípios: não podia haver «nenhuma espécie de lei fundamental
obrigatória para o corpo do povo, nem sequer o contrato social».105 E
daqui tirava consequências práticas como aceitar que todas as reuniões da
assembleia popular deviam abrir com duas votações em que se perguntaria
ao «soberano» se se conservaria a forma de governo em vigor e se o
«povo» manteria a confiança nos administradores da república, seus
delegados ou «comissários».106 Aos polacos que lhe tinham pedido auxílio
teórico na resolução dos seus gravíssimos problemas institucionais,
Rousseau recomendou que seguissem rigorosamente estes preceitos como
meio de ir salvando o regime cuja arquitectura ele graciosamente também
lhes facultava.107
Passando os exageros retóricos a que Rousseau com brilho se dedicava,
as consequências da tensão entre a inerrância e a liberdade soberana para
revogar actos passados indicavam caminhos destes. Thomas Jefferson,
quando prestes a assumir as funções de primeiro Secretário de Estado da
história dos Estados Unidos da América insistia no tema até por razões
democráticas geracionais. «Toda a constituição […] e toda a lei expiram
naturalmente no final de dezanove anos [de vigência].» Mais do que estes
vinte anos, concluía Jefferson, seria um «acto de força e não de direito».
Ilegítimo, portanto. A soberania renovava-se geracionalmente. Não podia
estar vinculada a decisões de gerações passadas, sem dar a voz aos
titulares mais recentes da soberania, e perpetuando a voz de titulares já
mortos.108 Exactamente o mesmo problema foi colocado por Condorcet
aquando da eclosão da Revolução Francesa. Matemático, como também
era, Condorcet, apoiando-se na legitimidade das decisões por maioria no
decurso de uma votação pela generalidade da população, concluía que,
assim que morressem metade dos eleitores que tinham votado uma
Constituição, esta caducava e podia ser revogada por uma outra nova
escolhida, pelo voto, por uma nova geração de eleitores – o que, naquela
época e segundo os cálculos de Condorcet equivaleria a uns 18 a 20 anos
de validade.109
Como se vê, a soberania tem uma relação, afinal de contas, radicalmente
ambígua com a infalibilidade. Por um lado, a soberania é o poder da
permanente revogabilidade das decisões passadas e a consciência dos
riscos que esse poder faz correr. Por outro lado, as decisões soberanas ou
gozam da atribuição de infalibilidade, ou não são decisões propriamente
soberanas. Os dilemas que se criam na disjunção, na tensão e na fusão da
infalibilidade e da soberania não são de pequena monta. Ao chegarmos à
segunda metade do século XVI com Jean Bodin e uma Europa a ser
interminavelmente abalada pelas consequências da Reforma religiosa, e
pela dificuldade em encontrar um modo de coexistência minimamente
harmoniosa entre as diferentes profissões de fé cristãs; e, mais ainda,
quando chegamos com Thomas Hobbes ao século XVII inglês que
ocasionou uma revolução religiosa que matou o seu rei e instaurou uma
espécie de república ditatorial; percebemos que a soberania adquire a
missão de garantir a paz no seio de uma irredutível heterogeneidade
confessional. A paz era o grande propósito soberano, porque essa
heterogeneidade era vista como causa de conflitos sem fim e da fractura
da sociedade contra si mesma. Sem dificuldade, a irredutível pluralidade
religiosa é generalizável, logo nesse contexto, para uma irredutível
pluralidade de «concepções do Bem», para usar a expressão do filósofo
político americano John Rawls, falecido já neste século e que com a sua
obra Uma Teoria da Justiça dominou os estudos da teoria política durante
umas boas duas décadas. Por outras palavras, as diferentes crenças –
religiosas ou não –, os diferentes valores, as diferentes mundividências
que naturalmente apareciam no tecido social de qualquer comunidade,
eram um factor de perigo. Era preciso agir politicamente sobre essas
diferenças para produzir um resultado alternativo. Ou mais rigorosamente,
agir sobre as diferenças, mas não directamente sobre elas; antes
indirectamente sobre o modo de relacionamento dessas diferenças. Uma
sociedade pacífica e que se pudesse homogeneizar sem esmagar a sua
heterogeneidade primeva ou natural. A pacificação da sociedade só era
possível com uma solução política – soberana – para o problema da
diversidade ou, para usar o tal termo mais recente, do pluralismo.
Porquanto a conflituosidade não decorre – ou não decorre apenas – da
«indocilidade natural»110 dos homens. A «indocilidade natural»
comprometeria a fluidez da obediência, o que suscita evidentemente o
conflito em torno de saber quem deve obedecer e quem deve fazer-se
obedecer. Mas existe uma outra dimensão ou uma outra face da inimizade.
As diferenças nas convicções e opiniões tornam os homens inimigos
também por uma via que não fica fechada por recurso a uma justificação
da simples obediência nem a uma justificação do exercício do poder. Por
isso é o homem simultaneamente um ser social e insocial.111
A consideração do problema político não foi apenas elaborada nestes
termos por Hobbes. Como iremos ver, Bodin iniciou imediatamente essa
abordagem. A pacificação da guerra – latente ou patente – ou do conflito
horizontal seria a missão da filosofia política para poupar o mundo, não
apenas aos horrores da guerra e da instabilidade que o conflito perpétuo
trazia consigo, mas também à tentação repressora a coberto de uma
(tentativa) de restaurar uma homogeneidade de opinião de tipo
confessional ou outro que eliminasse o conflito/diferença pela raiz, por
assim dizer.
8. Jean Bodin
A teoria especificamente moderna da soberania tem uma espécie de
certidão de nascimento: a publicação de Les six livres de la République,
por Jean Bodin, em 1576. E, se for verdade que a França foi «o primeiro
Estado a se tornar soberano em termos da sua consciência jurídica de si
mesma»112, então é preciso acrescentar que o deveu mais a Bodin e aos Six
Livres do que a qualquer outra coisa. Em Blois, como deputado por
Vermandois nos Estados-Gerais no mesmo ano em que publicou Les six
livres, Bodin mantinha bem vivas as recordações das guerras religiosas
que dilaceravam, e continuariam a dilacerar, a França e a Europa.
Meditava nelas, nas persistentes e cruéis tentativas de hegemonia católica,
nas perversidades do poder, nas reacções violentas dos huguenotes e
acalentava a expectativa de a sua teoria da soberania abrir uma janela de
esperança, o que valia por dizer a uma pacificação próspera de
comunidades em plena efervescência. Surpreendentemente, à luz da
reputação póstuma que viria a adquirir de ideólogo do «absolutismo
régio» e de patrocinador intelectual da tirania, Bodin, enquanto deputado,
acabou por liderar a bancada do Terceiro Estado e opôs-se com brio à
proposta de alienação dos domínios do rei (que em Les six livres
constituiria uma limitação dos direitos de soberania) para efeitos de
financiamento da Coroa. Também resistiu airosamente às investidas dos
sinistros irmãos Guise para esmagar os huguenotes e forçar a profissão de
fé católica a todos os franceses.
Bodin nasceu em 1529 ou em 1530. Não há certezas quanto à data
exacta. Nascido numa família católica, Bodin seria já adulto quando
deflagrou no reino da França a primeira fase das guerras religiosas que
opunham católicos a huguenotes, ou os calvinistas franceses. Ao mesmo
tempo, iniciava-se o grande processo de consolidação da monarquia
francesa que levaria à edificação do Estado moderno francês. Em França,
essa consolidação, que foi um caso particular de participação num
processo histórico de amplitude europeia, seria obtida com uma gradual,
mas constante, consolidação do poder régio até chegarmos, depois da
derrota da Fronde em meados do século XVII, ao epítome da monarquia
dita «absoluta» de Luís XIV.
A monarquia francesa iniciara o seu processo de consolidação sob o
signo não professado da tolerância religiosa para com a sua minoria
huguenote. Sem grandes proclamações – o tão celebrado Édito de Nantes,
da iniciativa do rei Henrique IV, estava ainda muito distante (1598), e foi
um filho directo do desastre das guerras civis –, a recepção à chegada do
calvinismo em território francês foi feita debaixo de uma relativa
indiferença. Mas, em 1562, a Coroa tornara-se ostensivamente activa na
tarefa católica da uniformização religiosa do reino. A reacção huguenote
não se fez esperar. Nem nos actos, nem nas palavras. Seriam os
huguenotes quem primeiro elaborariam as teorias da resistência ao poder
régio segundo uma lógica contratual. Haveria uma espécie de contrato
entre rei e súbditos, e se o primeiro violasse os seus compromissos, os
segundos recolheriam o direito de lhe resistir, se necessário com a
violência. A guerra civil tinha, para este grupo de huguenotes, uma
justificação não-religiosa. E, em simultâneo, o rei e os seus aliados iam
rompendo com o modo tradicional de governar, ignorando ou coarctando
as instituições intermédias da monarquia medieval francesa: os
parlements, os Estados-Gerais, os privilégios dos estamentos e das
cidades, e por aí em diante. As guerras civis em França e as insurreições,
que fizeram do período de vida de Bodin um cortejo de violências, não
foram apenas de índole religiosa.
De Bodin, Gabriel Naudé, um importante e subversivo pensador francês
do século XVII, diria que fora o «primeiro homem de França». E Justus
Lipsius descreveu-o como «o mais erudito dos homens vivos». De um tal
homem não poderia sair uma insignificância. Não é fácil descrever a
influência que Les six livres de la République teve no rumo da filosofia
política e, sobretudo, da história política europeia e mundial. Basta dizer
que foi imensa, o que não o livrou de ser inscrito no Index dos livros
proibidos da Igreja Católica. Foi imensa, apesar de nos duzentos anos
seguintes muitos admiradores se sentirem inibidos de o citar abertamente
dada a sua heterodoxia religiosa. Houve vários autores malditos cuja
influência seria esmagadora. Bodin quase estaria na companhia dos mais
notáveis: Maquiavel, Hobbes, Espinosa, Pierre Bayle. Quem era cioso da
sua reputação, ou apenas temeroso pela sua pele, não se atrevia a citar
algum destes sem proferir o devido opróbrio. A Bodin, que procurou
proteger-se tanto quanto lhe foi possível de uma reputação maligna de
heterodoxia religiosa ou de subversão moral, não podemos dizer que
coube exactamente a mesma sorte. Apesar de tudo, Bodin foi
incomparavelmente mais respeitável. Os riscos que correu em vida, aos
quais mal sobreviveu no infame massacre da noite de São Bartolomeu em
1572, foram menores uma vez morto. Autores deste alcance têm uma
segunda vida – literária, claro. Mas até bem dentro do século XVIII estes
segundos riscos eram ainda reais para Bodin. E os outros autores, maiores
ou menores, sabiam-no.
Jean Bodin foi o primeiro grande teórico da doutrina moderna da
soberania. Esse reconhecimento é quase universal. O próprio Bodin
reclamava para si essa distinção, observando que antes dele nenhum
«jurisconsulto» nem nenhum filósofo político tinham definido
adequadamente o que a soberania era, embora o Papa Inocêncio IV não
tivesse andado longe.113 E nós, leitores atentos, devemos dar algum
benefício da dúvida a Bodin e a esta sua reivindicação, contendo a
primeira inclinação de confundir a pretensão com demonstração de
vaidade. Se a ideia genérica da soberania não nasceu com Bodin, o facto é
que ele a sistematizou como ninguém antes o fizera e deu-lhe uma
centralidade na organização da comunidade política de certo modo inédita.
Nada disto impediu que fosse frequentemente descrito como um autor
contraditório ou incoerente. Neste tipo de matérias é conveniente reter o
testemunho sempre bem informado de Pierre Bayle, o mestre-de-
cerimónias da recém-fundada República das Letras no final do século
XVII. Educado por um pai fervoroso calvinista, Bayle não chegaria à
maioridade sem antes embarcar num vaivém de conversões e apostasias
entre o catolicismo e o cristianismo de Genebra. Passaria a maior parte da
sua vida fora da França natal, na Holanda. Foi durante décadas uma
referência do pensamento alternativo e até subversivo notabilizando-se,
não sem se cobrir de anátemas, por sustentar que uma sociedade de ateus
seria politicamente mais estável e moralmente mais nobre do que uma
sociedade cristã. No fundo, nós, os europeus deste início do século XXI,
parecemos estar agora a iniciar a experiência política que Bayle limitou
aos livros. Manda a prudência que se diga que ainda é cedo para dizer se
hipótese ficou validada.114
Bayle foi autor de um Dicionário Histórico e Crítico que é, sem
qualquer dúvida, uma das obras mais labirínticas da Modernidade
europeia e que aguarda, até hoje, por um estudo que faça justiça à sua
complexidade e à engenhosa arquitectura que lhe está subjacente. No
Dicionário, que se estende por volumes infindáveis, Bayle dedicou
importantes entradas a alguns dos protagonistas desta nossa história da
noção de soberania. Um deles foi, naturalmente, Bodin. Aí, Bayle notava
que Bodin era lido como um autor que tentava sustentar duas teses
incompatíveis: a de que o poder dos monarcas não é ilimitado e a de que a
pessoa do monarca é absolutamente inviolável e inatacável, mesmo que
governe ao modo despótico. Bodin era assim, dizia Bayle, pessoa pouco
amada quer pelos absolutistas, quer pelos «espíritos republicanos». Bayle
insistia mais na perplexidade gerada pela segunda tese. Na sua opinião,
Bodin teria negado o direito de rebelião porque «via quase por toda a parte
os povos em guerra contra os seus príncipes». A «infinidade de escritos»
que surgiam de «todos os lados» a defender a deposição dos reis, e o
direito dos povos de regular a sucessão das coroas, apenas poderiam servir
para «abalar todos os fundamentos das sociedades».115 A guerra dos povos
contra os seus príncipes era quase omnipresente. Sustentar uma
justificação de tal prática era arrastar o estado de guerra perpetuamente.
Então, o que estava em causa não era uma espécie de imunidade
sacrossanta do rei, de origem divina ou natural, mas tão-só uma
consideração das necessidades da ordem. Esta sempre me pareceu ser uma
boa explicação da segunda proposição atribuída por Bayle a Bodin – a da
negação do direito de resistência. Mas não me parece ser suficiente para
explicar a primeira – a de que o poder dos monarcas, mesmo quando são
soberanos, não é ilimitado. Para podermos explicar esta proposição é
preciso tomar em conta o papel da família como comunidade estruturada
anterior ao Estado e o voluntarismo teológico e político, na filosofia de
Bodin.
Vemos, assim, que os comentadores de Bodin desde há muito lhe
apontam essas alegadas incoerências ao estudarem a relação entre, por um
lado, o poder soberano, isto é, absoluto, indivisível e perpétuo, e, por
outro lado, as limitações ao exercício desse poder, as constrições referidas
ao arbítrio do soberano e, em menor medida, o tratamento do direito de
resistência dos súbditos.116 Menos tratada tem sido a teoria que sustenta
essa doutrina, nomeadamente a relação entre, por um lado, a soberania
enquanto poder político absoluto e indivisível, e, por outro lado, a família
patriarcal e a violência que marca a origem das comunidades políticas.
A proposta de Bodin, que apresentava a família bem governada como a
imagem da «República» bem governada, indica, não que Bodin fosse
exactamente um patriarcalista da estirpe de um Robert Filmer, que queria
conceber o Estado a partir de uma unidade natural/divina que lhe servia de
modelo. Antes sugeria que a família e o Estado regulados por um
princípio de ordem serviam de barreira contra a violência que resultava
necessariamente do colapso da ordem. Ao se ler Bodin do modo que aqui
proponho suaviza-se consideravelmente a transição para a filosofia
política de Grócio, de Hobbes e de Pufendorf, com a sua combinação da
origem contratual do Estado com a instituição de um poder soberano
absoluto e indivisível. Teremos, pois, de examinar tanto este aspecto,
quanto o das alegadas contradições que os comentadores atribuem, e
atribuíram, à obra.
Que a soberania foi apresentada, desde o início, como a conclusão de
uma busca por um princípio de ordem, torna-se patente estudando as
intenções dos seus teóricos clássicos, começando por Bodin. Na epístola
dedicatória que serviu de prefácio à sua obra mais famosa, Les six livres
de la Republique, Jean Bodin descreveu em termos dramáticos o contexto
histórico que envolvia o lançamento da obra. O reino francês atravessava
uma «tempestade impetuosa» marcada pela «violência». A tarefa política
e filosófica responsável não podia ser outra senão a de procurar «amainar
a tempestade». Bodin deixou-nos perceber que essa tempestade violenta
correspondia de forma metafórica aos horrores concretos da «barbárie
causada pelas guerras civis», isto é, pelas guerras religiosas que
atormentaram a França na segunda metade do século XVI.117
Mas, na mesma epístola dedicatória, Bodin deixava igualmente claro o
seu afastamento relativamente à ciência política dos Antigos, de Platão e
de Aristóteles (e de Políbio), ou pelo menos à sua herança. Nos últimos
2000 anos, dizia Bodin, a «ciência política» tem estado «escondida em
trevas bastante espessas». A culpa por este estado de coisas podia até
caber mais a quem, depois de Platão e Aristóteles, ousou discursar sobre
as coisas políticas «sem qualquer conhecimento das leis, e até do direito
público» e que, assim, «profanaram os mistérios da Filosofia Política». É
no seguimento deste passo que Bodin avançava como exemplo o sempre
útil Maquiavel, esse «ateu» e «cortesão de Tiranos».118 Por um lado,
«ensinar aos príncipes as regras da injustiça», levá-los a converterem-se
em tiranos, era um caminho infalível que conduzia à destruição dos
Estados. Mas, por outro lado, havia outras vozes, talvez as mais
«perigosas» de todas, que fomentavam a rebelião dos súbditos invocando,
entre outras coisas, a «liberdade popular», trazendo assim uma «licenciosa
anarquia, que era pior do que a mais forte tirania do mundo». Esta ameaça
ao Estado, porventura, não tinha igual.119
Do ponto de vista da filosofia política, havia, portanto, dois tipos
diferentes de ameaças para a estabilidade do Estado e consequente
segurança dos seus súbditos. Tínhamos aqueles que ensinavam aos
governantes a arte dos meios de se converterem em tiranos e as suas
vantagens. Em jeito de resposta, Bodin não se cansaria de insistir na
submissão do príncipe soberano às «leis de Deus e da natureza». E depois
havia ainda os que proclamavam direitos genéricos à desobediência, à
resistência activa e à revolução. Eram eles quem pretendiam subverter a
majestade do poder soberano, isto é, absoluto e indivisível, com as suas
reivindicações populares e, em última análise, anarquizantes. A esses
Bodin respondia com a rejeição do direito de resistência.
Assim, Bodin e Hobbes diziam exactamente a mesma coisa ao formular
as suas intenções nos respectivos prefácios em forma de epístolas
dedicatórias. Logo no início de Leviatã, ainda na epístola dedicatória a
Francis Godolphin, Hobbes alertava para a delicadeza do seu
posicionamento: «apertado entre aqueles que de um lado se batem pela
sua excessiva liberdade, e de outro por uma excessiva autoridade, é difícil
passar sem ferimentos por entre as lanças de ambos os lados».120 E das
duas lanças a mais pontiaguda seria, porventura, a da «excessiva
liberdade». Hobbes denunciou-o de várias maneiras, mas a mais subtil foi
na sua identificação com as inclinações políticas de Tucídides tal como ele
as interpretava. Na opinião de Hobbes, a Guerra do Peloponeso incluía
uma crítica às veleidades e efeitos catastróficos das políticas da «liberdade
excessiva», tanto nas suas variantes democráticas como nas suas variantes
oligárquicas. Tucídides ensinava que nas épocas de imoderação o
favorecimento do governo monárquico soberano era imediata e
irracionalmente associado à defesa da crua tirania, experiência que o
próprio Hobbes sofrera na pele pela voz dos partidários do Parlamento
inglês e do New Model Army na guerra civil travada, e vencida, contra o
rei Carlos I. Mas Tucídides não deixara escapar alguma admiração pelo
governo ateniense democrático no início das hostilidades com Esparta?
Sim, respondeu Hobbes, mas esse governo era apenas formalmente
democrático. Tratava-se, antes, de um governo efectivamente monárquico
sob a batuta de Péricles.121
Talvez por Bodin ter sublinhado que a «excessiva liberdade» era a
ameaça mais premente é que o conceituado historiador Julian H. Franklin
avançou a tese segundo a qual a rejeição do direito de resistência ao poder
soberano não era uma conclusão da filosofia política do autor francês, mas
antes «o ponto de partida implícito sobre o qual assenta o conjunto da sua
empresa».122 Franklin propôs como tese uma suposta, e altamente
duvidosa, evolução absolutista no pensamento de Bodin: do Methodus ad
facilem histoririarum cognitionem123 para Les six livres de la République,
e posteriormente para a versão latina desta última obra de 1586. O que
teria posto em marcha essa evolução? O impacto do massacre do dia de
São Bartolomeu, no final de Agosto de 1572, quando se realizavam as
bodas de Henrique de Navarra – futuro Henrique IV – e Margarida de
Valois. Depois dessa data traumática, em que as forças católicas, apoiadas
no poder régio, levaram a cabo uma matança indiscriminada de calvinistas
um pouco por todo o território francês, o pensamento huguenote pendeu
cada vez mais para a afirmação de um direito de resistência à tirania,
invocando não poucas vezes o reduto inviolável da consciência. Apesar do
seu envolvimento tardio com a Liga, em 1589, Bodin nunca teve simpatia
por qualquer hegemonia católica. Mas compreendeu a ameaça que as
reivindicações huguenotes representariam para a instituição e preservação
do poder autenticamente soberano. Preocupado com evitar polémicas
desnecessárias, Bodin, em Les six livres, fez uma admoestação moderada
aos protestantes pelos seus escritos tiranicidas. E fez questão de poupar
inteiramente Calvino e Lutero. Mas admitia que um príncipe vizinho
derrubasse uma tirania, e não deixava de fazer um elogio dessa prática.124
Sem querer levar demasiado longe as determinações que o «contexto
histórico» supostamente acciona sobre o pensamento dos autores,
podemos dizer que a situação do momento expôs os dados fundamentais
do problema. Evitar a imposição tirânica da uniformidade religiosa, como
queria a Liga católica; e evitar a consolidação do direito de resistência e
da desobediência ao poder soberano, como queriam alguns huguenotes.
9. Família e soberania
A definição inicial de Estado ou de «República» abre o texto de Les six
livres de la République: «A República é um governo recto de várias
famílias, e do que lhes é comum, com poder soberano.» Bodin justificou
este começo alegando que «é preciso procurar em todas as coisas o fim
principal, e depois os meios de o realizar».125 Começando pela definição,
que tem sido muito comentada, vale a pena reter o aspecto que talvez
tenha merecido menos atenção. Bodin identificava as famílias como o
elemento primário do Estado. A família era, pois, a unidade básica do
Estado.126 A «República» era constituída por três elementos: a família, a
soberania e «o que é comum numa República».127 A soberania era o
elemento central, o que significava que uma comunidade não-soberana
não era um Estado. Além disso, o indivíduo, por exemplo, não era tido
como elemento primário de um Estado, como seria para Hobbes alguns
anos mais tarde. Por outro lado, a família em Bodin, e contrariamente a
Aristóteles, era lógica e historicamente anterior ao Estado. Enquanto
comunidade natural, precedia o Estado e era o elemento constitutivo deste.
A família era definida como «um governo recto de vários súbditos, sob a
obediência de um chefe de família, e do que lhe é próprio».128 Era uma
comunidade governada e constituída pelo «poder que o chefe de família
tem sobre os seus» e pela «obediência que lhe é devida».129 Sem famílias,
não havia República. Mas podia haver famílias sem República,
evidentemente, coexistindo numa ténue associação primitiva. O que valia
por dizer que a soberania estritamente política dependia da existência da
soberania do chefe de família – e, portanto, da obediência que era devida
pelos membros da família ao chefe. Ao passo que a soberania do chefe de
família não dependia da soberania política.130 As famílias eram as
«partes», eram os «fundamentos» sobre os quais se construíam as
repúblicas.131
A «família bem conduzida» era tida como a «verdadeira imagem da
República bem ordenada». Enquanto parte da definição de Bodin, a
unidade familiar aparentemente não dependia da vitalidade ou da rectidão
do Estado. O «governo recto» concretizava-se pela obediência às «leis da
natureza». Mas talvez a família, enquanto elemento irredutível da
sociabilidade humana, fosse já uma concretização dessas «leis da
natureza». Sem mais informação seríamos tentados a dizer que consistia
num dado da ordem natural, gerado espontaneamente pelas inclinações de
aproximação entre os seres humanos, o que teria a vantagem (ou a
desvantagem) de assimilar Bodin a Tomás de Aquino. Contudo, quando
Bodin referia que a família «bem conduzida» era «a verdadeira imagem da
República», acrescentava que «o poder doméstico assemelha-se ao poder
soberano». Era por isso que o «governo recto do lar» constituía o
«verdadeiro modelo da República». A República não podia existir
ordeiramente, «se as famílias, que são os seus pilares, estão mal
fundadas».132 Assim, o que aproximava a família do Estado era o seu
governo, ou mais concretamente o poder que unificava e ordenava ambas
as comunidades. A família era a «verdadeira fonte e origem de toda a
República».133
Para que uma família existisse, era necessário que os seus membros
estivessem sujeitos à obediência ao poder do chefe de família. Só pela
submissão ao poder é que a família se estruturaria enquanto tal. O mesmo
valia para um Estado. Só o poder, só o poder absoluto, podia unificar as
partes quer de uma família, quer de um Estado, e assim formar uma
comunidade. A soberania era o «verdadeiro fundamento» de um Estado e
era «a única união e ligação das famílias, corpos e colégios e de todos os
particulares num corpo perfeito de República». O poder soberano era o
princípio de ordem sem o qual apenas se tinha partes isoladas.134
Se a família era um governo de uma comunidade, então concedia-se que
o chefe de família pudesse fazer «leis» ou jus familiare tendo em vista «a
conservação mútua dos seus bens, nome e marcas antigas». No entanto,
Bodin apressava-se a acrescentar que essas leis são «ratificadas pelos
príncipes soberanos» e que, de resto, não se podia tolerar que as regras
familiares «derroguem os costumes do país, e menos ainda as leis e
ordenações gerais». Admitir o contrário seria pôr em causa a supremacia
absoluta do soberano e do seu monopólio legislativo. Quanto a isso, não
havia dúvida, as regras das famílias e entre famílias estavam «sujeitas às
leis», assim como «os chefes de família estavam sujeitos aos príncipes
soberanos».135
O chefe de família detinha e exercia este poder em quatro direcções
diferentes que abrangiam os quatro tipos de membros da família: o chefe
de família era marido (que comandava a mulher), era pai (que comandava
os filhos), era senhor (que comandava os escravos), era patrão (que
comandava os criados). Em particular, o poder do marido sobre a mulher
era «a fonte e origem de toda a sociedade humana». Este poder marital
resultava de uma união definida em termos exclusivamente jurídicos. O
casamento era um contrato que pressupunha consentimento e tinha de ser
consumado. Para que a família fosse uma comunidade ordenada só podia
haver um único chefe, o que valia por dizer um poder indivisível. Vários
chefes implicariam comandos diferentes, possibilidade que por sua vez
conduziria à desordem «perpétua». Em contrapartida, a relação entre pai e
filho era a que mais nitidamente ilustrava as obrigações mútuas que se
estabeleciam no seio da família. O pai tinha a obrigação natural de
alimentar e educar o seu filho. E o filho tinha a obrigação redobrada de
«amar, reverenciar, servir, alimentar o pai, e vergar-se aos seus
mandamentos com toda a obediência: suportar, esconder e cobrir as suas
enfermidades e imperfeições, e nunca poupar os seus bens, nem o seu
sangue, para salvar e garantir a vida daquele que lhe deu a sua». A «lei de
Deus e da natureza» indicava este preceito de obediência filial através do
primeiro mandamento da segunda tábua da lei de Moisés.136
Segundo Bodin, a autoridade paternal entrou em decadência
acompanhando o declínio do Império Romano. Com o desvanecimento da
antiga virtude, sumiu-se o entendimento e a prática familiar que tinham
levado à supremacia absoluta do terrível paterfamilias. Esta tendência
histórica foi alvo de uma severa repreensão por parte de Bodin. A
repreensão devia ser vista não tanto como uma crítica tradicionalista da
degeneração dos costumes, mas antes porque, enquanto elemento
constitutivo da sociedade política, a crise na família podia acarretar a crise
do Estado. A unidade da família pressupunha a unicidade da autoridade
paternal. Juridicamente, só o chefe de família podia agir em seu nome.
Aquilo que podia soar a excesso de tradicionalismo representava, na
verdade, o seu contrário. Pois na medida em que todos os homens podiam
eventualmente se tornar chefes de família, tal significava que sendo estes
as pessoas relevantes num Estado político, então todos os homens que
constituíam família tinham acesso a esse estatuto juridicamente definido,
independentemente da sua categoria social. Do ponto de vista meramente
jurídico, este igualitarismo político, que excluía as mulheres, apesar de
assentar numa estrutura familiar fortemente hierarquizada, era inegável.
Ou, se se quiser, o igualitarismo inegável de acesso ao comum e exercício
das prerrogativas de cidadania, assentava numa desigualdade radical de
que beneficiava apenas o homem, o marido, o pai, o senhor.
Cada chefe de família, ao tornar-se cidadão, deixava para trás o seu
domínio soberano e assumia uma posição de paridade jurídica com os seus
homólogos. Mas esse convívio com os pares não poderia decorrer neste
contexto de igualdade sem a terrível ameaça de uma desordem violenta.
Então, o chefe de família, ao deixar para trás a sua família por ser
chamado a encetar relações com os seus congéneres para gerir o que era
comum a todos, ou o que era público, já não seria senhor, mas um
«súbdito livre». Já não exerceria mais um poder soberano de vida e de
morte, mas estaria agora vinculado a um poder soberano político de vida e
de morte. Bodin reconhecia que esta passagem – de senhor ou chefe de
família a cidadão – implicava uma diminuição da liberdade, ou da
capacidade de viver a seu bel-prazer, sem estar sujeito às ordens de
ninguém. A passagem de senhor ou chefe de família a cidadão implicava a
assunção de deveres de obediência que não existiam antes dessa
passagem. Porém, Bodin era muito claro ao dizer que esta renúncia parcial
à liberdade era perfeitamente justificada, já que a rejeição da República,
que tornava implícita a rejeição da vida sob as leis, e, portanto, sob o
comando de outrem, significava a perda de toda e qualquer liberdade.
Além disso, era preciso tomar em conta o ponto de vista de quem estava
sujeito a um poder de vida e de morte no seio da família. Quando não
existia Estado, com a correspondente soberania, o paterfamilias exercia a
soberania, incluindo o poder de vida e de morte, sobre os restantes
membros da família. Embora Bodin não o tenha referido, é impossível não
ver na instituição da soberania política um alívio da sujeição familiar ao
paterfamilias. Se este adquiria obrigações, ao assumir a cidadania, quando
antes não as tinha – o dever de obediência à soberania política –, os
restantes membros da família pelo menos conseguiam reduzir a extensão
da jurisdição paternal sobre eles. Assim, era-se cidadão, não apenas por se
ser colocado num plano de igualdade no espaço comum com os outros
cidadãos igualmente livres, mas sobretudo porque todos ficavam
«vinculados à soberania de outrem».137 A soberania fundava a cidadania.
Quanto ao poder unificador que produzia a ordem, a família permanecia
mesmo quando «é composta por vários escravos ou filhos, ainda que
estejam muito afastados uns dos outros, e em diferentes países».138
Contudo, torna-se necessário indicar que unificação não era sinónimo de
uniformização. O poder soberano não visava transformar os diferentes
conteúdos sociais e homogeneizá-los. O que Bodin pretendia era que a
soberania, majestosamente elevando-se acima de qualquer outro tipo de
poder, integrasse toda a diversidade num mesmo princípio jurídico e
político, expurgando essa diversidade do potencial para a desordem que
comportava. Seria pela centralização da entidade que sujeitava, ou a quem
se devia, em última instância, a obediência, que esta integração da
diversidade na unidade se operava.
Por um lado, a soberania iria constituir-se pressupondo a anterioridade
da família – isso valia para Bodin, como para Grócio e para Pufendorf, por
exemplo, para quem a comunidade política era a comunidade de chefes de
família. Por outro lado, a soberania gerava esta ordem fundamental: no
seio da família, e no espaço comum onde todos eram iguais. Poder-se-ia
dizer que era a comunidade enquanto tal que produzia a ordem, ou que a
relação igualitária enquanto tal constituía a ordem. Porém, para Bodin tal
instância gerada residia antes num princípio de ordem externo ao comum,
externo à relação igualitária, que garantia a ordenação do comum e da
respectiva relação igualitária, em vez de serem factores de desordem.
10. O carácter absoluto da soberania
A soberania, isto é, o poder (puissance) absoluto, perpétuo e indivisível
do Estado, era o «verdadeiro fundamento» de uma «união».139 Perpétuo
porque não tinha uma limitação temporal. Os detentores de um poder
temporário, ainda que absoluto, estavam fundamentalmente sujeitos a
quem o revogava. Absoluto porque concentrava todo o poder estatal tido
por legítimo; porque não estava sujeito a nenhuma outra lei – ab-solutus,
extraído da famosíssima máxima do direito romano Princeps legibus
solutus est140 – que não a de «Deus ou da natureza»; porque só ele fazia a
lei, desfazia a lei, revogava a lei ou suspendia-a; porque era a instância
inapelável de julgamento e de decisão. Dizer que o poder soberano era
absoluto era o mesmo que sublinhar que não estava vinculado nem às leis
que ele próprio fazia – doutro modo não poderia modificá-las, nem
revogá-las para todos. Porque, dizia Bodin, «é impossível por natureza dar
a lei a si mesmo, tal como é comandar-se a si mesmo para fazer uma coisa
que depende da sua própria vontade».141 Sobre esta proposição da qual
Bodin estava perfeitamente convencido, e que tanto estimularia os
seguidores mais fiéis da teoria bodiniana da soberania (como Hobbes,
Robert Filmer ou Pufendorf), Rousseau e Kant teriam muito a dizer uns
duzentos anos mais tarde. Para escolher apenas um dos fiéis que mais
radicalizou esta tese, atentemos nas palavras de Filmer, para quem a
soberania era um poder «absoluto e arbitrário».142
A questão não reside em saber se o poder deve, ou não, ser arbitrário,
pois o único ponto está em determinar quem deterá esse poder
arbitrário, se um ou muitos homens. Nunca existiu, nem nunca
existirá um povo que seja governado sem o poder de fazer leis, e todo
o poder de fazer leis tem de ser arbitrário. Porquanto fazer uma lei de
acordo com a lei é contradictio in adjecto.143
Bodin insistiria no seu célebre capítulo sobre a soberania: «Tal como o
Papa nunca ata as suas mãos, como dizem os canonistas, também o
príncipe soberano não pode atar as suas próprias mãos, mesmo que assim
quisesse.»144 Eis que Bodin revisitava o tema da infalibilidade do Papa
recolhendo uma analogia para a teoria da soberania. Reconhecia a origem
do apuramento teórico deste conceito nas discussões em torno das
prerrogativas papais, neste caso, negando a infalibilidade do Papa.
Inocêncio IV, dizia ele, alguém que sabia do que falava em matéria de
poder supremacial dizia que o poder absoluto (plenitudo potestatis) não
era outra coisa senão «derrogar o direito ordinário» – mas não as leis
divinas e naturais. Fosse como fosse, a tese bodiniana da soberania
afirmava-a como o poder de converter a vontade (política do soberano) em
lei e sem o consentimento dos seus destinatários. E, acrescente-se, com a
capacidade legal de associar a pena capital aos seus pronunciamentos. Em
última análise, como o próprio Bodin reconhecia, esta capacidade
soberana condensava e resumia todos os restantes direitos e faculdades da
soberania.145
Porém, se o soberano não estava obrigado perante si mesmo, e, por
conseguinte, não estava vinculado à lei que ele fazia para todos os outros,
o mesmo já não se passava com os contratos livremente assumidos por
ele. A diferença residia no valor jurídico da reciprocidade. Um contrato é
uma relação que obriga ambas as partes reciprocamente. Bodin só admitia
uma hipótese de rompimento unilateral do contrato pelo soberano – mas
não pelos súbditos. No caso em que caducasse a justiça de uma lei que o
soberano tivesse jurado manter, o seu vínculo cessaria também. Mas este
caso estava inerentemente ligado ao poder de revogar a lei, e o seu peso
enquanto caso realmente excepcional ficava comprometido.
A questão de saber se o príncipe que jurava cumprir e sujeitar-se às leis
do país estaria vinculado por esse juramento pode ajudar a clarificar o
problema das condições impostas ao poder, e que decorrem da doação. Em
primeiro lugar, Bodin negava que um príncipe que jurasse a si mesmo
cumprir a lei estivesse vinculado por esse juramento. Não estava sujeito à
lei, nem ao juramento. Se o príncipe soberano fizesse esse juramento a
outro príncipe, estaria obrigado a cumpri-lo no caso de o segundo príncipe
ter um «interesse» no cumprimento dessas leis. Caso contrário, o
juramento não era vinculativo. Mas se o príncipe fizesse esse juramento ao
súbdito, então não podia senão cumprir a palavra dada. Não porque
estivesse sujeito às leis enquanto tais, mas às «justas convenções e
promessas» que fazia, em circunstâncias iguais às de um particular. E, tal
como um particular, o príncipe ficava desobrigado de cumprir o que
prometera, quando o conteúdo da promessa era «injusto e desrazoável».146
Na sua qualidade de príncipe soberano, tudo o que atentasse contra a sua
«majestade» entrava na categoria de causas de anulação da promessa. O
soberano estava sujeito aos contratos «justos e razoáveis», mas não às leis
propriamente ditas. A «palavra do príncipe deve ser como um oráculo, que
perde a sua dignidade, quando dele se tem uma má opinião». Nada disto
invalidava que o príncipe revogasse leis que jurara cumprir sempre que a
justiça assim o exigisse, e para tal não carecia de consentimento dos
súbditos.147 Em suma, o soberano produzia a lei que obrigava todos os
seus súbditos. Era legibus soluta potestas. E sobretudo a necessidade
podia sobrepor-se às obrigações geradas pelas promessas. A salvação do
Estado, ou a resistência à ameaça da desordem, tinha sempre prioridade
sobre os compromissos jurados.
Exposto este aspecto das obrigações geradas pelo juramento de um
príncipe, a questão incidia na possibilidade de esta defesa dos deveres
associados às promessas pôr em causa a teoria da soberania enquanto
poder absoluto e indivisível. Se a obrigação de cumprir as promessas
resultava de um ditame da «lei de Deus e da natureza», o problema podia
estar resolvido à partida, já que o carácter absoluto do poder soberano não
invalidava a sujeição a essa lei. Mas talvez tenha sido este potencial
embaraço que conduziu Bodin a apresentar o juramento do rei de França,
sendo o reino francês o exemplar acabado de uma monarquia soberana,
como totalmente despido de conteúdos que obrigassem o rei a não mudar
as leis do reino sem o consentimento dos Estados-Gerais, ou dos
Parlements e de outras instituições. Por outras palavras, o rei estava
vinculado às suas promessas, mas aquando da coroação do rei de França
não se faziam promessas que limitassem os direitos do soberano.148 Bodin
queria esvaziar, tanto quanto possível, o significado histórico desse
juramento para o tornar compatível com a soberania do rei.
Assim, Bodin conseguia retirar ao juramento que vinculava o rei
qualquer conteúdo concorrencial à primazia absoluta da soberania. A
obrigação de cumprir promessas não podia implicar o condicionamento do
poder absoluto, fosse qual fosse a fonte humana ou histórica desse
condicionamento. Para evitar quaisquer analogias que a ideia de doação
pudesse criar, a soberania emergia como a expressão de «uma doação sem
doador nem fenomenalidade».149
Bodin acrescentou ainda um outro limite ao «absolutismo» do soberano.
As leis «fundamentais» ou as regras vagamente constitucionais, como a lei
de sucessão ao trono em França (a Lei Sálica), a diminuição dos direitos
de soberania, a usurpação do domínio régio, a alienação do território ou a
dependência do consentimento dos Estados-Gerais para tributar os
súbditos eram invioláveis. Mais, o alegadamente «absolutista» Bodin
aceitava que os éditos do rei de França que conflituassem com as leis
antigas do reino pudessem ser recusados pelos Parlements, algo
impensável para os reis efectivamente absolutistas como Luís XIII ou Luís
XIV. Isto abrangia as leis de estruturação básica do reino, as leges imperii
que vigoravam como condições da própria majestas.150
Depois disto, como compatibilizar a invocação da famosa, ou infame,
máxima do direito romano princeps legibus solutus est com a
consideração daquilo a que poderemos chamar sem abuso limites ao poder
soberano? Quão absoluta é a soberania enquanto poder ab-soluto?
Comecemos por fazer uma apreciação mais aprofundada desta máxima a
partir das suas origens para tentar analisá-la antes da sua apropriação e
consequente reinterpretação pelo contexto político e intelectual da
modernidade europeia, nomeadamente pelos absolutismos monárquicos
que foram despontando.
Antes da consagração imperial por Ulpiano da fórmula legibus solutus,
o senado republicano romano já invocara a figura jurídica para os casos
excepcionais que solicitassem a isenção de uma lei específica para uma
pessoa concreta. Depois da República, os imperadores ainda copiavam o
precedente republicano quando invocavam a cláusula para incumprir as
leis da sucessão no trono imperial com a adopção de um filho sucessor. Só
mais tarde acabou por cristalizar numa descrição do estatuto do imperador
face à lei em geral, e aos demais súbditos em particular, e romper com a
circunscrição muito apertada da sua validade. A liberdade de acção do
imperador era finalmente emancipada de restrições como o
enquadramento legal, incluindo aquela parte deste que era da sua autoria.
Com Ulpiano, o imperador estava acima da lei.151
Vimos anteriormente como a discussão cristã latina medieval também
desembocou na distinção entre potentia ordinata e potentia absoluta para
tentar categorizar o poder de Deus capaz de exorbitar fronteiras e limites
que Ele próprio criara. A potentia absoluta de Deus encerrava todas as
possibilidades da Sua vontade e do Seu poder que, por razões não
acessíveis à compreensão dos homens, não tinham sido consumadas na
ordem da criação. O poder de Deus na criação efectivamente criada e onde
os seres humanos viviam era do domínio da potentia ordinata. Na óptica
nominalista, a ordem cósmica decorrente da potentia ordinata era
sustentada por Deus com base na promessa livre, radicalmente livre, que
fizera. Não havia outra necessidade de sustentação da ordem da criação
além da liberdade de Deus convertida numa promessa às suas criaturas. A
Sua vinculação era puramente voluntária. Duns Escoto, um dos maiores
protagonistas da viragem nominalista na teologia cristã no período tardo-
medieval, cedeu à tentação de ilustrar o problema com uma analogia
política perfeitamente ajustada à nossa discussão:
Devemos dizer que, quando um agente age em conformidade com
uma regra ou lei rectas, ele pode, se não estiver limitado ou vinculado
a essa lei e esta estiver subordinada à sua vontade, agir de outro modo
segundo uma potentia absoluta. Por exemplo, suponhamos que
alguém como um rei é livre de fazer a lei e de mudá-la. Ele pode agir
ao arrepio dessa lei por meio da sua potentia absoluta porque pode
mudar a lei e instituir uma outra… É deste modo que deve ser
compreendido que Deus pode fazer com a potentia absoluta o que Ele
não pode fazer com a potentia ordinata.152
Com o auxílio desta analogia, de Escoto em diante o governante podia
ser visto, e assim foi para muitos teólogos, civilistas e filósofos políticos,
como acima da lei, ou como não estando vinculado à lei, incluindo à lei de
que ele próprio foi autor, graças ao seu papel como legislador e à sua
vontade livre como fonte da lei. Mais, a citação mostra como antes de
Escoto este enquadramento da acção do governante legislador já era
aceite, caso contrário a analogia perderia o seu efeito. Mas a absorção da
distinção teológica das duas modalidades do poder de Deus pela teologia
política permitiu ainda abrir caminho para outra dimensão da soberania.
Um dos teóricos do direito divino dos reis, um francês chamado Charles
Loyseau, em 1608 reconhecia o poder absoluto do rei, sublinhando que
devia ser exercido com justiça por se aplicar a homens livres, e distinguiu-
o do poder ordinário do rei – uma potência regrada (puissance réglée),
que era o que devia ser exercido na maior parte do tempo. O poder
absoluto do rei aplicava-se, assim, apenas a circunstâncias extraordinárias,
quando o governante era obrigado a trespassar os direitos dos seus
súbditos, ao passo que o poder ordinário devia constituir o mando mais
geral. Esta distinção serviu tanto para criticar o uso do poder absoluto,
ilegítimo quando desnecessário, como a uma defesa do absolutismo mais
excessivo, já que o rei gozaria da maior liberdade de acção.153
Vejamos agora o detalhe das considerações de Bodin. Sabemos, porque
Bodin nos disse, que a soberania não era limitada nem no poder, nem na
tarefa, nem no tempo.154 Esta era a generalização máxima. Também
sabemos, porém, que entravam em acção limitações ao poder soberano
impostas pela lei da natureza ou de Deus e por outras restrições. E até
sabemos que o soberano estava mais vinculado a estas limitações do que
qualquer um dos seus súbditos, embora só pudesse ser julgado por Deus,
não por uma qualquer instância humana. E eram estes os dados do
problema para perceber a recontextualização tardo-medieval e moderna da
cláusula princeps legibus solutus est.
Ora, Bodin acabou por ser um herdeiro de uma interpretação, que não
sendo a única, marcou a sua influência sobre o pensamento jurídico tardo-
medieval e sobre uma certa interpretação da monarquia da época. Cem
anos mais tarde, Pufendorf, por exemplo, ainda se inscrevia nessa
linhagem.155 A ideia era de que legibus soluta potestas indicava apenas a
impossibilidade jurídica de punir o príncipe. Não indicava nem autorizava
qualquer prática de governo arbitrário. A pertinência de esta indicação ser
feita por referência às leis, e ao príncipe estar acima delas, era imposta
pelo facto de ele poder alterar a lei segundo a sua vontade, tal como
qualquer outro legislador, e de declarar privilégios ou excepções às leis
promulgadas. A acção do príncipe não era, como que por definição,
sempre legal. Pelo contrário, era aberta a possibilidade de o príncipe
infringir a legalidade. Mas, repetindo, não havia recurso de punição de um
príncipe desobediente à lei. Ele era ab-soluto por ser o agente político,
legislador e juiz, de última instância. Não havia qualquer outro superior a
ele que o pudesse julgar e punir. O ponto fulcral, e tal aparecia
insistentemente no grande jurista do século XIII e um influente professor de
Direito na Universidade de Bolonha, Francesco Accursio, incidia na
profissão pela voz do próprio príncipe da sua submissão às leis. Era algo
que seria imposto pela majestas do governante. Se a autoridade régia
dependia da autoridade da lei, então a majestas dessa autoridade política
reforçava-se reforçando a autoridade da lei com a submissão do príncipe a
ela. Para o notável glosador do direito romano que Accursio foi, a máxima
do princeps legibus solutus est devia sempre ser confirmada com a
associação à chamada Lex digna que descrevia a condição do imperador
romano. Não era matéria da lei em sentido estrito que o príncipe se
colocasse sob a lei, mas antes um acto imperial conforme à sua autoridade
de aceitar o que não era inevitável – um acto de vontade livre do
príncipe.156
Por um lado, os imperativos associados à dignitas e sobretudo à
majestas do governante assim o ditavam. Mas no contexto medieval havia
também o alastramento a uma parte considerável da interpretação do papel
do monarca, ou do governante em geral, de que a obrigação moral de
prossecução da justiça e da ordem tradicional do reino como orientação
elementar da governação estendia-se até a geração deste imperativo de
sujeição voluntária à lei. Já se sabe que não seria punível em caso de
infracção. Contudo, estava presente na representação do bom governo,
assim como a constante infracção estava associada ao mau governo como
uma mancha indelével e com todos os riscos supervenientes. Mais, muito
antes de Bodin, admitia-se como uma necessidade jurídica pelo menos
abstracta que, se certos actos infractores do príncipe não eram puníveis,
nem por isso podiam ser considerados leis nem, por conseguinte,
vinculativos da obediência. A máxima igualmente do direito romano
(Ulpiano157) quod principi placuit legis habet vigorem, ou o que agrada ao
príncipe vigora como lei, vinha assim não refutada, é certo, mas matizada
num contexto irrevogável das condições de exercício do poder soberano.
O príncipe que ignorasse estas restrições, como muitos o fizeram, estaria a
minar o pedestal em que fora colocado. Porém, o cumprimento do
compromisso da sujeição à lei era mais uma questão de disciplina interna
da pessoa do rei, que seria elogiado e mais perfeitamente obedecido e
amado por isso, do que oponível recorrendo a uma instância de disciplina
externa. Até porque a lei a que se referia esta apropriação medieval de
uma máxima imperial do direito romano era apenas a lei civil, ou humana.
Isto é, a lei produzida pelo legislador da comunidade política temporal. O
que vale por dizer que outras modalidades da lei sujeitavam ainda e
sempre o príncipe, como a lei natural ou a lei consuetudinária, para não
mencionar a lei divina. E, o que era igualmente crucial, Accursio entendia
que a lei era logicamente anterior à soberania, na medida em que a
soberania era um produto da lei – ou mais rigorosamente, que a base da
soberania era o direito, proposição que levanta um problema de aparente
circularidade a examinar: o princípio de ordem pressupõe uma certa
ordem para existir e agir. A autoridade da lei enquanto tal, a obrigação
universal de que ela era portadora, devia ser protegida com a renúncia
majestática ao estatuto excepcional do príncipe legislador. Por outras
palavras, a soberania fora criada por uma lei, por alguma lei, nem que
fosse uma lei divina ou natural. A capacidade legislativa soberana era ela
mesma um efeito jurídico de uma lei.158
Encontramos uma interpretação idêntica na obra importantíssima de
Francisco Suárez, o grande mestre jesuíta de Salamanca e o catedrático de
Coimbra no período filipino da monarquia portuguesa. Foi, sem qualquer
dúvida, um dos mais influentes teólogos modernos da tradição católica,
juntamente com outro jesuíta Luís de Molina, professor em Évora e
proponente intelectual do chamado Molinismo, corrente teológica muito
em voga nos séculos XVI e XVII. Suárez foi das penas com mais autoridade
e eloquência nas polémicas com o Protestantismo nascente,
nomeadamente com o Anglicanismo, e simultaneamente um crítico
corrosivo da moda protestante daquela época, o chamado direito divino
dos reis. Séculos mais tarde, o Papa Pio XII diria que a doutrina da lei
natural não conhecera píncaros mais sublimes do que nas obras de Tomás
de Aquino e de Francisco de Suárez. Senhor de uma imensa erudição,
Suárez foi determinante no refrescamento do corpo doutrinário teológico –
por exemplo, na questão da graça e da liberdade humana –, assim como no
aprofundamento e modernização da filosofia política católica. Foi um dos
monumentos que a Companhia de Jesus trouxe ao mundo na época
gloriosa dos primeiros cem anos após a sua fundação por Inácio de
Loyola.
Suárez não hesitava na resposta à pergunta se o soberano estava
vinculado a obedecer às leis que ele próprio fizera. A resposta era
afirmativa. A obediência era devida, quer o legislador fosse político, quer
fosse eclesiástico. Suárez referia como autoridade Tomás de Aquino no
autoritativo Tratado da Lei. Aí, Tomás de Aquino respondia directamente
aos que, apoiados no direito romano, alegavam a legibus soluta potestas.
Tomás de Aquino começava por dizer que, do ponto de vista coercivo,
ninguém podia punir um soberano porque a punição decorria da
autoridade do próprio soberano. Nesse sentido, o soberano estava acima
da lei porque não havia uma autoridade alternativa que pudesse condená-
lo em caso de infracção. Também aceitava que o soberano estivesse acima
da lei no sentido em que estava no seu poder alterá-la ou ajustar a sua
aplicação ao tempo e ao lugar. Mas o assunto não acabava aqui. A lei
também tinha uma força «directiva», além de uma força «coactiva». Ou
seja, antes do aspecto coercivo, a lei era uma prescrição de uma conduta a
adoptar, ou a não adoptar. Ora, neste plano, o soberano estava sujeito à lei,
concluía Tomás de Aquino. Mas com uma extensão que nesta fase já nos é
familiar: era-o por sua própria vontade. A sujeição do soberano à força
directiva da lei era a conclusão moral universal – e preceito da Palavra da
Salvação (Mateus, 23:3-4) – e determinava a vontade (livre) do próprio
soberano, não se reconhecendo, porém, mecanismos políticos nem
jurídicos externos ao soberano que garantissem essa conformação ao
preceito moral geral.159
Contudo, a originalidade de Suárez, ou, se se quiser, a latitude que
expandiu relativamente à autoridade de Tomás de Aquino nunca deve ser
subestimada. Isso aplica-se também neste tema da legibus soluta potestas.
Aqui, Suárez reforçou a ênfase na sujeição do soberano mais do que
alterou os termos da discussão ou a sua ponderação. Se quiséssemos
despropositadamente encontrar uma inovação trazida por Suárez para esta
discussão, teríamos de escolher a ideia de que os próprios conceitos de lei
e de legiferação continham uma «obrigação universal» do seu
cumprimento. O poder de fazer as leis e o dever de acatar a «obrigação
universal», que abrangia o todo da comunidade política, incluindo o
legislador, faziam parte da própria noção de legalidade – de uma
legalidade que tinha a sua origem em Deus. Daqui Suárez abria a
discussão para as necessárias limitações que o poder soberano devia ter e
devia reconhecer. Além dos motivos extrínsecos para demonstrar a
bondade ou utilidade dos limites ao poder soberano – o escândalo, os
desequilíbrios sociais, que o abuso de poder provocava –, era na própria
noção de legalidade que se tinha de reconhecer a obrigação universal da
sujeição à lei. E a fundamentação dessa legalidade política era dada pela
lei natural. A lei suportava a lei. A ordem da legalidade estava assim
fechada.160
E a distinção entre a força «directiva» e a força «coactiva» da lei que
Tomás de Aquino usara para dar conta do problema? Era relevante para
Suárez? Era. O soberano podia ser coagido por outra autoridade em nome
da sua própria lei? Não. A posição de Tomás de Aquino estava correcta.
Essa correcção era reforçada com as teses típicas da concepção moderna
de soberania. Uma outra autoridade não podia ser superior ao soberano,
caso contrário este não seria soberano, o superior, a instância suprema.
Uma autoridade igual à do soberano, por ser igual, não teria jurisdição
sobre o soberano, e por aí em diante. Já na sua função «directiva», a lei
abrangia o legislador soberano. Qual era a inovação face a Tomás de
Aquino? É que para Suárez a força «directiva», ainda que separada da
«coactiva», produzia uma «obrigação grave», isto é, vinculava em
consciência e cuja desobediência acarretava um pecado igualmente grave.
A formalidade jurídica de constrangimento ao soberano para que
obedecesse à lei podia estar ausente, como estava ausente um dispositivo
institucional que garantisse esse resultado. Mas a força inteira da
condenação moral e divina era mobilizada para condicionar a conduta do
soberano. Este, se quisesse sê-lo em toda a sua dignidade, sujeitar-se-ia
voluntariamente às leis que ele próprio fizesse.161 Em suma, para Suárez o
soberano temporal devia submeter-se à força directiva das suas leis. Essa
força directiva supunha que o soberano contraíra o dever moral de seguir
as prescrições do seu próprio ordenamento jurídico – apesar de não poder
ser castigado no caso de as infringir, o que, do ponto de vista da
vinculação em consciência ao dito dever, era irrelevante –, pois de
contrário deixaria de ostentar a soberania.
Olhando para trás, verificamos que Francisco de Vitoria, mestre de
Suárez, regia este tema com a sua batuta. O legislador estava igualmente
sujeito às leis que fazia, e cometia uma injustiça se não partilhasse os
fardos comuns da vida cívica. Porém, o argumento de Vitoria tinha um
pendor colectivo ainda mais acentuado. Sendo verdade que um rei
legislador era superior aos súbditos destinatários da lei, não era menos
verdade que o acto de legiferar devia ser tido como um acto de toda a
comunidade política e essa era a razão da sua vinculatividade universal.
Universal queria dizer: rei incluído. O rei era «livre de fazer as leis que
quisesse», mas não estava aberto à sua escolha «desvincular-se» delas. A
analogia que Vitoria apresentava de seguida era ilustrativa: o rei era livre
de subscrever um tratado, mas uma vez subscrito o rei já não gozava da
liberdade de cumprir, ou não cumprir, os seus termos. «O rei não deixa de
ser membro da comunidade política pelo facto de ser rei» ou legislador.162
Os termos da discussão da liberdade de acção do governante soberano
ficavam assim definidos e os interlocutores da dita discussão oscilariam
entre um pólo e outro.
E Jean Bodin, um dos maiores semeadores de toda esta controvérsia? É
reconhecido que formalmente Bodin contrapôs limites ao exercício da
soberania. A sujeição do soberano à «lei de Deus e da natureza» foi
repetidamente sublinhada. Daqui a maioria dos comentadores concluiu
que, na doutrina clássica, a soberania só era inteligível mediante a
subordinação do político ao jurídico, ou à legalidade. Na realidade, as
coisas eram mais complexas. A questão da origem da soberania e do
posicionamento do soberano diante da excepção tornavam essa conclusão
prematura.
Bodin afirmava que as leis eram comandos do soberano e que a
obediência aos comandos do soberano se justificava nos termos definidos
pela justificação da soberania. Não podemos ignorar que Bodin distinguia
a lex, ou a lei positiva que era produto de um comando soberano, e o ius,
ou o direito enquanto norma intrínseca dimanada dos princípios jurídicos
fundamentais respeitantes ao justo e ao bom. Dessa distinção nascia
naturalmente o primeiro limite à soberania: a adequação da lex ao ius. Se
uma hipotética desadequação justificava a desobediência civil, isso era
outra história. A questão jogava-se inteiramente na vinculação do
soberano ao ius – em particular, à «lei de Deus e da natureza». Além
disso, Bodin confrontou um novo patamar de vinculação, esse, sim,
comprometedor do carácter absoluto do soberano – se este era, ou não,
legibus solutus. Se o príncipe estava vinculado à lei de «Deus e da
natureza», então estava vinculado à normatividade do justo e do razoável.
E se as leis do Estado fossem justas e razoáveis? Não estaria, por maioria
de razão, o soberano vinculado às leis civis? Neste passo, Bodin até
concedeu que leis que não assimilassem qualquer vestígio da
normatividade do justo e do razoável não seriam propriamente leis, o que
teria de querer dizer que não vinculavam à obediência. E que enorme
concessão era aos partidários da concepção normativista e intelectualista
da lei. Mas, como que recompondo-se de uma queda inesperada, Bodin
acrescentava imediatamente que este género de leis não dispensava os
súbditos da soberania da obediência; apenas o príncipe! O príncipe podia
vincular os súbditos a leis a que ele não tinha de obedecer. Tudo se
complicava ainda mais assim que se compreendia que o príncipe tinha o
poder soberano de modificar ou revogar uma lei justa e razoável sem que
isso invalidasse a sua sujeição à lei de «Deus e da natureza». A
normatividade do justo e do razoável não era coisa de régua e esquadro,
nem de quantidades exactas. Era matéria de grau, de mais ou menos.
Assim, a soberania era o poder de substituir uma lei justa e razoável por
outra não tão justa nem tão razoável sem mexer um milímetro nas razões
da obediência. Os limites da lei de «Deus e da natureza» eram muitíssimo
amplos e dentro deles mandavam as determinações da vontade soberana.
Até porque fazia parte dos conteúdos – e esses mais concretos do que
quaisquer outros – da lei de «Deus e da natureza» a obediência aos
comandos do soberano, a menos que fossem contrários à «lei de Deus». O
raciocínio não era circular, mas afrouxava em concreto as restrições que
pudesse haver à vontade soberana que evitasse a demência, o requinte de
crueldade ou o puro desejo de opressão.163
E o que dizer da insistência de Bodin – que Pufendorf imitaria de modo
bem mais autêntico do que Hobbes164 – de que existia um limite
intransponível e ríspido ao poder soberano, o imposto pelas «leis de Deus
e da natureza»? Quem fazia o soberano cumprir esses limites? Dito de
outra maneira, quem o puniria quando ele lhes desobedecesse ou as
violasse? Se o soberano só era responsável perante Deus, então só este o
poderia julgar e punir. Isto é, Bodin proclamou esses limites e, ao mesmo
tempo, desmentiu que houvesse alguma agência humana com competência
para punir quem os tivesse transgredido. Já sabemos que Bodin queria
garantir que nem um milímetro seria concedido às teorias da resistência ao
poder considerado tirânico, cada vez mais populares em França entre as
hostes huguenotes desde o horrível massacre do dia de São Bartolomeu. A
tese huguenote do direito de resistência pelos magistrados subordinados
consistia numa adaptação da expressiva recomendação inscrita nas
Institutas de Calvino de que apenas os magistrados podiam
responsabilizar e interpelar o soberano. Para Calvino, os cidadãos
particulares tinham um dever grave de não se intrometer nos assuntos do
Estado, excepto quando os comandos do soberano fossem contraditórios
com a lei de Deus.165 O novo contexto de opressão enfrentado pelos
huguenotes fê-los reajustar os ensinamentos do mestre. Aceitar um direito
de resistência, de desobediência, de limitação activa por parte dos
magistrados seria aceitar que a comunidade política representada por esses
magistrados era superior ao rei soberano – o que significaria que o rei não
era soberano.166
Aqui, Bodin encontrou um travão fundamental. Tradicionalmente, o
direito à insurreição contra o poder estabelecido vinha do direito de
punição pela violação da lei natural ou do desrespeito pela «verdadeira»
religião e respectiva Lei revelada. Isso valia desde João de Salisbúria, o
primeiro teólogo cristão a defender o tiranicídio, até ao huguenote
François Hotman que pontuou no grupo dos monarcómacos no século XVI.
Daí Bodin dizer as duas coisas simultaneamente: o soberano tinha esses
limites, era julgado e punido pela sua eventual violação, mas quem tinha
esse direito de jurisdição era apenas Deus. Serve de consolo que Bodin
tenha dito que o julgamento de Deus era «muito rigoroso» e apenas
porque o «dizia Salomão»?167 Para quem dá prioridade a corrigir as
injustiças deste lado do túmulo, talvez não.
Apesar de ser fraco consolo, Bodin não queria deixar qualquer margem
que inspirasse, senão um direito de resistência completo, pelo menos a
liberdade de discutir organicamente as decisões do soberano. Por outras
palavras, com a intenção de travar a veleidade de que o limite das «leis de
Deus e da natureza» legitimasse o dissenso que minaria inevitavelmente
os deveres de obediência, Bodin fez questão de esclarecer que os ditos
limites uma vez não violados flagrantemente não constituíam um padrão
por aproximação ou afastamento de avaliação da qualidade das decisões
soberanas. Assim, na ponderação entre a vantagem (ou eficácia) de uma
lei e a sua honorabilidade (ou a sua justiça), dentro dos limites já
enunciados das «leis de Deus e da natureza», a decisão era soberana e
indiscutível. Dentro desses limites, não cabia a mais ninguém pôr em
causa se a lei podia ser mais honorável ou mais benéfica. Restava a
recomendação pelo filósofo que a lei devia dar prioridade à justiça
relativamente à eficácia, se ambas estiverem em conflito, mas o vínculo de
uma lei que não violasse os limites da «lei de Deus e da natureza» nunca
podia ser posto em causa por alguma destas considerações. Se o soberano
decidisse, dentro dos tais limites, substituir uma lei melhor por uma lei
pior, nada disso afectaria o vínculo de obediência. Ser soberano era ter
capacidade discricionária.168 Mas exercer a capacidade discricionária
dentro dos limites referidos. Fora desses limites a força que fosse exercida
não podia ser confundida com poder soberano. Seria tirania.
O principal problema que aqui subsistia era o de que, se as «leis de Deus
e da natureza» não eram executáveis por qualquer agência humana, e se a
obediência dos súbditos ao soberano era ditada pelas «leis de Deus», então
que justificação imanente ou puramente racional poderíamos oferecer pela
punição dos desobedientes? A acção punitiva do soberano estaria a dar
seguimento à execução da «lei de Deus e da natureza» que não poderia ser
executada por ninguém. Claro que Bodin extraía do simples facto
hierárquico constitutivo da relação soberana um ascendente que lhe
permitia agir soberanamente, incluindo para punir os desobedientes, sem
ter de prestar contas a ninguém excepto a Deus. Contudo, a justificação
integral de apelo pura e simplesmente racional fica de certo modo ausente.
Talvez por isso Bodin tivesse de insistir na soberania enquanto princípio
de ordem. E ao mostrar os danos da desordem para todos, incluindo para
os potenciais ou actuais súbditos, forneceria indirectamente a justificação
puramente racional para a obediência à soberania: a segurança que vem
com a ordem.
Tal como o soberano numa «monarquia régia», a mesma que colhia o
favor de Bodin, em contraposição à «senhorial» e à «despótica», não
podia se apropriar da propriedade dos seus súbditos sem a devida
compensação, também o soberano familiar, ou o chefe de família, não
podia dispor livremente do património comum da unidade familiar. Cada
membro retinha direitos de propriedade sobre aquilo que lhe pertencia.
Mas o património comum, isto é, adquirido, da família estava sob a
jurisdição do seu chefe. Vemos, aqui, que os requisitos da ordem
produzida pela soberania impunham limites de ordem, por assim dizer, ao
próprio poder soberano. Este ponto é importante, não só porque começa a
resolver as contradições que tantos disseram ver na obra de Bodin, a saber,
entre a afirmação do carácter absoluto do poder soberano e o
reconhecimento de limites a esse poder. Enquanto princípio de ordem, a
soberania fazia nascer os limites da sua própria intervenção. Limites que
aumentavam, não diminuíam, a eficácia do poder soberano, que, recorde-
se, servia a geração de ordem. A distinção entre o público e o privado, e,
no seio familiar, entre o comum e o particular, não dilacerava a soberania.
Pelo contrário, essa distinção era estabilizada pela soberania. E com a
distinção vinha a limitação do poder soberano ao que o (bem) público
circunscrevia. O privado ficava fora desses limites, entregue ao arbítrio do
cidadão. Uma distinção tão binária, tão nítida, em matéria tão complexa
como a existência humana acabaria por levantar suspeitas. Era inevitável.
Mas dois propósitos foram realizados. Em primeiro lugar, gradualmente ir
deixando a religião fora dos assuntos do Estado, passando estes a incluir
uma atitude – e políticas – mais ou menos passiva, mais ou menos activa,
de tolerância religiosa. Em segundo lugar, desligar o bom homem do bom
cidadão, dando a soberania todas as indicações claras do que era a
conduta do segundo e relegando para as escolhas subjectivas e julgamento
infrapolítico o enquadramento do primeiro. Os pensamentos e
movimentos «interiores» de cada um estavam fora do alcance da
jurisdição do soberano. E, no entanto, as acções «exteriores» já relevantes
para a conduta do cidadão dependiam evidentemente dos pensamentos e
movimentos «interiores». A linha divisória entre público e privado era
mais facilmente proclamada do que traçada a priori. A decisão soberana
era novamente indispensável. Desta vez, para traçar a fronteira entre
público e privado.
11. 2+2, ou o bom é bom porque o queremos, ou queremos o que é
bom por ser bom?
Apesar de admirar Locke mais do que os soberanistas bodinianos, Jean
Barbeyrac foi apanhado a repreender a falta de rigor de um comentador de
Grócio à época muito reputado chamado Gronovius. Este, visivelmente
impaciente com a moda da legibus soluta potestas criada por Bodin, por
Grócio e pelos seus companheiros de caminhada, apontava para o caso
que lhe parecia óbvio e suficiente para deitar por terra as veleidades ab-
solutistas. Dizia ele que quando o povo fazia uma lei, se vinculava
automaticamente a ela. Nesse caso, a lei não ficaria acima do povo
legislador? Claro que ficaria. Se uma pessoa natural podia vincular-se a
uma promessa feita por si mesma, porque não poderia um legislador
obrigar-se a si mesmo a obedecer à lei que fazia? A resposta de Barbeyrac,
que tanto insistia em indicar o erro de Pufendorf e de Hobbes que não
distinguiam suficientemente soberanias limitadas de soberanias
absolutas,169 foi essencialmente uma recapitulação da concepção
«voluntarista» da lei e da obrigação de lhe obedecer, que, diga-se, é
perfeitamente compatível com a filosofia política de Locke.170
Sucintamente, quer dizer que, por este entendimento, a lei é
exclusivamente produto da vontade (voluntas) de um legislador
conhecido, que goza de uma autoridade superior, e que é lei apenas o que
é sustentado por uma qualquer estrutura que garanta a punição pela
desobediência. A fundamentação da obrigação de obedecer não está na
formação da relação pela lei, e muito menos pelo conteúdo da mesma à
luz do julgamento racional pelos destinatários da lei. Em contraposição,
havia a concepção racionalista, ou intelectualista, da lei que via nesta um
ditame da razão (ratio), sendo uma regra e uma medida para a conduta,
um rationis ordinato, que, por sua vez, devia pautar-se por um racional
domínio e ordenação dos apetites humanos. Segundo esta óptica, a
validade da lei era uma necessidade racional, ou até lógica, independente
de uma vontade humana ou divina. No entanto, vemos em Tomás de
Aquino alguém habitualmente dado como exemplo de um racionalista da
lei, dizer-se que «toda a lei procede da razão e da vontade do legislador».
Por conseguinte, a lei humana resultava da vontade humana «regulada
pela razão». Era inevitável que a vontade aparecesse numa filosofia – e
numa teologia – da bondade voluntária.171 Dito de um modo mais abrupto,
a lei natural não era alterável por Deus, como Grócio explicitou. A
necessidade racional da lei natural, e da estrutura do universo de que ela
não era separável, eram impermeáveis ao «poder infinito de Deus».
Impermeáveis em que sentido? No sentido em que uma sua violação
implicaria forçosamente uma «contradição». Com um exemplo que ficaria
famoso, Grócio diria que nem Deus podia fazer que «dois mais dois não
sejam quatro». E analogamente no plano moral Deus não podia fazer com
que «o intrinsecamente mau não seja mau».172
Estas diferenças e subtilezas não eram meros pormenores técnicos de
filósofos ociosos ou de teólogos obsessivos. Na verdade, arrastavam
consigo um problema muito antigo. Formulado muito antes de haver
teologia cristã, estaria recorrentemente presente no secular debate em
torno da essência de Deus e da natureza da Sua criação. Mas não só.
Designava uma perplexidade constante na consideração da vida moral, da
origem do mal e das possibilidades do bem. Acabaria finalmente e com
naturalidade por invadir o tema da soberania também. O dilema apareceu
pela primeira vez na literatura do cânone ocidental no diálogo de Platão
intitulado Eutífron. Nele pontuam como personagens o inevitável Sócrates
e Eutífron, um jovem obcecado com a devoção à religião da cidade que se
preparava para dirigir-se ao tribunal e acusar o seu próprio pai do
assassinato de um escravo. A pergunta de Sócrates foi a seguinte: «O
piedoso é amado pelos deuses porque é piedoso, ou é piedoso porque é
amado pelos deuses?»173 Podemos adaptar a pergunta para a seguinte
formulação, com a ressalva de que, em rigor, τὸ ὅσιον não pode ser
traduzido por sagrado: o que torna sagradas as coisas sagradas é algo
intrínseco a elas, ou antes elas são-no porque os deuses fazem delas coisas
sagradas? Sem o risco de distorção do questionamento socrático, podemos
readaptar para os deuses querem o justo porque é intrinsecamente justo,
ou as coisas justas são justas porque os deuses assim o determinam?
Leibniz abriria um dos seus textos mais comentados precisamente com
este dilema, mas com os devidos ajustamentos ao contexto cristão. Dizia
ele:
É consensual que aquilo que Deus quer é bom e justo. Mas permanece
a questão de se é bom e justo porque Deus o quer, ou se Deus o quer
porque é bom e justo; por outras palavras, se a justiça e a bondade são
arbitrárias, ou se pertencem às verdades necessárias e eternas acerca
da natureza das coisas, tal como pertencem os números e as
proporções.174
Consideremos a opinião contrária à de Leibniz, a saber, a de que as
coisas sagradas e boas são sagradas porque Deus assim as quer, sendo a
sacralidade e a bondade criadas ex nihilo por Deus e abrindo-se a
possibilidade de Deus poder ter querido o contrário como sagrado e bom.
Por exemplo, Tertuliano, o padre da Igreja do final do século II e um
fundador intelectual da cristandade latina, considerava uma «audácia pôr
em causa o bem de um preceito divino», pois não era o facto de «ser bom»
que nos vinculava a obedecer, mas o facto de «Deus o ordenar». Era a
«majestade do poder divino» que tinha o «direito primacial» de obter a
obediência: «A autoridade d’Ele que comanda é anterior à utilidade
daquele que serve.»175 Estes passos não servem para demonstrar que
Tertuliano tenha hegemonicamente ocupado todo o espaço cristão com a
adopção desta tese muito antiga. Longe disso. Mas apenas atesta que no
Cristianismo esta opção tinha os seus pergaminhos e respeitabilidade
firmados desde o início da tradição. De resto, Martinho Lutero limita-se a
repescar o que ainda estava bem vivo na tradição cristã para confirmar as
suas teses da vontade serva, ou da servidão da vontade. Dizia Lutero, no
momento da fundação da Reforma, que «o que Deus quer não é, por
conseguinte, recto porque ele o deve querer ou porque alguma vez esteve
vinculado a assim querer; mas, pelo contrário, porque ele assim quer».176
Muito antes de Lutero, Guilherme de Ockham encarregara-se de manter a
hipótese – e apenas uma hipótese, diga-se – no campo das possibilidades
teológicas. Se Deus por um acto de vontade ordenasse alguém que não O
amasse, então a vontade de quem estava sujeito ao preceito divino não
podia formar um acto de amor a Deus.177
Por seu lado, Leibniz não se conformava com esta posição. Destruiria a
justiça de Deus, dizia ele. Mas isso implicava que o justo enquanto tal
estava fora do alcance dos deuses. Era-lhes extrínseco. O justo e bom
consistia numa harmonia, proporção, equidade que não eram
arbitrariamente manipuláveis por Deus. Constituíam a própria essência de
Deus como verdades necessárias, como «objectos do divino intelecto»,
mas que não estavam sujeitas ao seu arbítrio. A verdade das coisas e a
justiça dos actos não dependiam da livre vontade de Deus. Defender o
contrário, como ele dizia que Descartes defendia, parecia-lhe um
absurdissum. Se Deus fosse como os hipervoluntaristas O postulavam,
então não haveria razões para louvá-Lo. Deus realizava a justiça
espontaneamente por simples e directa manifestação da sua natureza
infinitamente boa, e «nem a norma da conduta, nem a essência do justo,
dependem da sua decisão livre». Como Leibniz gostava de dizer, a
máxima stat pro ratione voluntas – «a minha vontade toma o lugar da
razão» – era «a máxima de um tirano».178
Ora, neste ponto, o tratamento da justiça divina teria forçosamente de
contagiar o tratamento da soberania. Em primeiro lugar, o paralelo para a
compreensão da noção de soberania deve ser óbvio. As leis são
vinculativas por emanarem de um (poder) soberano, ou antes pelo seu
conteúdo – bom, útil, justo – que faz o soberano adoptá-las? O dilema de
Eutífron podia ainda ser visto por uma outra variante: poderia a convenção
humana determinar o que era bom e justo? Ou seria a própria natureza das
coisas que já carregava em si essa determinação que deveria ser
reconhecida por quem amava a bondade e a justiça? John Locke, nas suas
lições não publicadas sobre a lei natural, escritas quando ainda era um
jovem, também explorou esta variante do dilema de Eutífron nos seguintes
termos: Os homens que concordam algo entre eles sabem que o objecto do
seu acordo é bom porque estão de acordo quanto a ele, ou concordam
porque sabem a partir de princípios naturais que o objecto do acordo é
bom? Locke, um contratualista, decidia-se pela última possibilidade.179
Mas a resposta de Locke não é importante para este nosso caso. Mais
relevante é perceber o segundo ponto. A soberania resultava, pelo menos
na obra de alguns dos seus mais destacados intérpretes, como Hobbes ou
Pufendorf, de uma convenção humana, ou de um acordo entre pessoas
humanas. Logo, na origem e nos seus efeitos operacionais, a soberania
tinha de ser exposta à questão formulada no dilema de Eutífron. Na crítica
que dirigiu a Pufendorf, Leibniz avisou que a justiça divina e a justiça
humana tinham «regras comuns». A primeira consequência a retirar era a
de que a vontade do soberano não era, por si mesma, fonte do direito. O
hipervoluntarista Pufendorf cometia o erro de ver a vontade do Deus
legislador como a fonte do direito universal. Não seria de espantar que
trouxesse as mesmas ideias aviltantes e erradas para a fundamentação da
soberania. Tornava-se claro que Leibniz investia contra o hobbesianismo
convencionalista que via em Pufendorf. A segunda consequência era a de
que o comando do soberano não podia constituir, por si mesmo, o
fundamento do dever de obediência do cidadão. Essa negação
correspondia em termos mais gerais ao repúdio por Leibniz da
consequência – hobbesiana – mais abrangente, a saber, a de que, quando
não havia um superior capaz de comandar os outros pela vontade, como
na situação dita de «simples natureza», então não haveria deveres, nem
justiça. Era desta concepção convencionalista, hipervoluntarista e errada
de soberania que decorria a obsessão com a sua indivisibilidade ou com o
seu carácter absoluto, que forçosamente empurravam a doutrina da
soberania para uma justificação da imoderação em política. Conduzia a
uma confusão fatal entre direito e lei, quando o direito era, na realidade, o
padrão da justiça, ao passo que a lei nunca podia ser um padrão de justiça,
na medida em que ela mesma podia ser injusta.180
Não é difícil perceber que a crítica de Leibniz ao convencionalismo
voluntarista de Hobbes e de Pufendorf deslizava para uma crítica do
conceito de soberania enquanto tal. É preciso, pois, retomar o ponto em
que deixámos Barbeyrac na sua crítica a Gronovius. Assim, continuando a
crítica a Gronovius, Barbeyrac dizia que a obrigação de obedecer emanava
da «autoridade de um superior», da autoridade de uma «pessoa» e não de
uma «coisa». Por outras palavras, o dever de obediência fundamentava-se
no dever de obediência à vontade do soberano por ser formada e declarada
com autoridade política, e não à lei propriamente dita. A autoridade
política da soberania conferia um direito ao soberano de ser obedecido
pelos cidadãos. O exercício concreto desse direito fazia-se através do
estabelecimento de uma relação da soberania com o cidadão que era a lei
– uma relação, de um lado, de comando, ou de condicionamento da
conduta de uma pessoa jurídica, e, do outro, de obediência. Não se era
«superior» por se produzir leis. Mas a lei devia ser obedecida porque era
produzida por um «superior». Em sentido estrito, falar-se de obediência à
lei enquanto lei, continuava Barbeyrac, era perder a «exactidão filosófica»
e raciocinar a partir de uma «expressão figurada». As leis não eram
«promessas», nem «convenções», nem tinham um estatuto equivalente. A
equivalência afirmada por Gronovius entre as obrigações criadas pelas
promessas e as obrigações associadas às leis era «manifestamente
falsa».181
A ressalva final indispensável que esta longa paráfrase de Jean
Barbeyrac merece é a de que Pufendorf admitia a prática da limitação da
soberania, ou seja, o estabelecimento de limites ao poder dos soberanos e
a prescrição do modo de como eles deviam governar. E nem se importava
de lhe chamar «soberania limitada». Pufendorf não via certamente a
legitimidade da proposição segundo a qual apenas o exercício pleno e na
máxima extensão do poder de todas as partes da soberania pelo mesmo
agente político merecia o nome de soberania. Era aceitável a prática
«constitucional» de um rei aceder ao trono após o juramento de respeitar
integralmente as «leis fundamentais» do Estado, por exemplo. Seria um
limite real e uma soberania não menos real. Assim se conciliaria o cariz
«supremo» da soberania com alguma limitação ao seu alcance. Em rigor
terminológico, seria garantir que a soberania se mantinha soberana ainda
que não fosse «absoluta».182 Não obstante toda a agitação protoliberal de
Barbeyrac nas notas de comentário a Pufendorf, a verdade é que este
acabaria por aceitar que as restrições do tipo que Barbeyrac propunha
eram compatíveis com o conceito de soberania. Era o caso das
«monarquias limitadas», incluindo aquelas cujo exercício do poder estava
restringido por «leis perpétuas» feitas pelo povo e às quais o rei estaria
vinculado. Se o monarca agisse em contradição com essas leis e sem o
consentimento de uma assembleia representativa do reino, e em resultado
dessa contradição os seus actos fossem nulos e sem efeito, então
poderíamos falar de uma soberania «menos absoluta». De resto, ele
reconhecia que essa era a prática de várias experiências políticas ao longo
dos séculos.183 Para Hobbes, pelo contrário, estes limites não podiam ser
restritivos do livre julgamento nem da acção do príncipe, nem impor-lhe a
obrigação de prestar contas da sua conduta. Se existisse uma assembleia
que prescrevia leis ao monarca, então seria ela a soberana (absoluta). E,
em geral, Pufendorf expunha uma preocupação prática com as
possibilidades de abuso de poder do governante que, se não estavam
ausentes em Hobbes, estavam pelo menos bem escondidas.
Mas Pufendorf, sempre soberanista, admitia igualmente que, se o tal rei
jurador das «leis fundamentais» violasse o juramento, alegando a salus
populi, o povo não poderia recusar obediência, nem teria nada a objectar
pela razão soberana de que o único juiz do que constituía um estado de
necessidade ou de emergência, bem como dos meios adequados para lidar
com ele, era o próprio soberano e ninguém mais do que o soberano. O
povo teria, neste caso in extremis, de obedecer e calar. Para Barbeyrac,
esta excepção tinha o tamanho do mundo e era, portanto, inaceitável. Se o
soberano excedia os tais limites, sem o consentimento manifesto do povo,
todos os actos do governante teriam de ser considerados «nulos e sem
efeito». Sem esta consequência drástica e eliminadora das excepções,
abriríamos uma janela para o abismo político porquanto qualquer governo
sob o pretexto de alguma necessidade ou de grande benefício ignoraria os
limites estabelecidos. Seria como se estes não existissem, de facto.184
Deste curto, mas significativo, momento entre o autor e o seu comentador
nasceria uma controvérsia que perduraria até aos nossos dias, sobretudo
nos regimes democráticos. Uma controvérsia que teria um sofisticado
continuador da tese pufendorfiana em Carl Schmitt.
12. Abaixo a Ditadura!
Uma discussão contígua seria feita em torno da instituição da República
romana: o ditador. A ditadura fora uma instituição concebida pela
República romana desde muito cedo e a que a República recorreu com
relativa frequência. O grande Tito Lívio, talvez o maior historiador
romano da República, marcou a certidão de nascimento da instituição da
ditadura na resposta à ameaça dos Sabinos, um povo inimigo de Roma, e
que podemos situar, embora sem certezas, por volta do ano de 500 ou 501
a.C., cerca de dez anos após a expulsão do último rei romano. Temos
incertezas semelhantes quanto à identidade do primeiro ditador, que Lívio,
apesar de tudo, transmitiu das tradições anteriores ser Tito Largius.185 O
grande transmissor Cícero, o maior dos filósofos romanos e um dos pais
espirituais da civilização europeia, já o tinha dito. Num diálogo que, para
nós modernos, só seria redescoberto na Biblioteca do Vaticano em 1819, e
infelizmente em estado fragmentado, uma das principais personagens
informa-nos que esse fora, de facto, o primeiro ditador.186
Aristóteles, reportando a experiência do mundo grego, no terceiro livro
da Política falava de um (terceiro) tipo de monarquia cujos líderes eram os
aisimnetas (αισυμνηταζ). Aristóteles, sem deixar de os classificar como
monarcas, dizia que podiam ser descritos como «tiranos electivos». Uns
exerciam o poder vitaliciamente, outros «por um período de tempo fixo ou
para determinada tarefa». Pítaco de Mitilene, um dos Sete Sages da
Grécia, fora precisamente um aisimneta. E Aristóteles concluiu esta
apresentação com uma frase reveladora. Não deixavam de ser monarquias
«de tipo tirânico devido ao carácter despótico», mas eram «de tipo régio
porque assentam na eleição e no consentimento dos súbditos». E não se
pense que o aisimneta era um simples chefe de militar escolhido para
enfrentar uma emergência. Na realidade, ele tinha poder legislativo, coisa
que o ditador romano republicano jamais teria, podendo reformar leis
antigas e fazer outras novas, invocando-se a ficção de que o povo teria
aprovado antecipadamente todas essas alterações legais. O carácter
abrupto, peremptório e violento da acção dos aisimnetas, que
aparentemente se revelava na luta contra uma ameaça, tinha esse lado
despótico ou antipolítico, mas a assunção desse poder e a legitimidade
para agir como agiam não eram produto da violência ou da audácia dos
indivíduos em causa. Obedeciam a um procedimento ou a regras
políticas.187 Montesquieu descreveria admiravelmente esta ambiguidade
quando referiu, num capítulo intitulado «Como se suspende o uso da
liberdade na república», a ponderação de que «existem casos em que é
preciso pôr, momentaneamente, um véu sobre a liberdade, como se
esconde as estátuas dos deuses».188
Mas, apesar destes precedentes gregos, a figura constitucional acabada
que inscrevia a relação directa com o estado de excepção foi obra da
República romana. O ditador era um magistrado plenipotenciário de
estatuto consular – com algumas excepções – cuja designação cabia aos
cônsules depois de proclamada a ditadura pelo senado. A razão para a
república pedir temporariamente emprestada à monarquia a sua instituição
central, e assim republicanizá-la, era óbvia. Fazer face a uma emergência,
que no caso de Roma era, no início, invariavelmente de natureza militar e,
mais tarde, de natureza sediciosa. Em termos genéricos, podemos dizer
que a emergência era constituída pela ameaça de um perigo mortal para a
civitas. Assim, o ditador não suspendia as restantes magistraturas e
instituições políticas, mas elas ficavam-lhe estritamente subordinadas.
Tudo isto dentro de um período estabelecido. A comissão do ditador
esgotar-se-ia necessariamente após um período limitado de seis meses. Se
acontecesse cumprir-se a tarefa que dera azo à proclamação da ditadura
antes de findos os seis meses, o ditador tinha de «abdicar» sem esperar
pelo esgotamento do prazo. Porém, não suspendia as leis. A sua
autoridade era, com efeito, ilimitada no que dizia respeito à tarefa de cuja
execução ele fora incumbido, mas só a ela. Como Montesquieu diria, era o
modo de que o senado dispunha para provisoriamente «tirar a república
das mãos do povo»; uma «magistratura terrível» que servia para fazer o
Estado «regressar à liberdade», e, por essa mesma razão, segundo
Maquiavel, a «causa de se terem evitado males infinitos que a república
teria sofrido sem esse remédio».189
Algumas das grandes figuras da República romana, os grandes
exemplares da virtude cívica republicana, foram precisamente ditadores,
como Cincinato ou Camilo. Páginas memoráveis da longa vida da
república foram escritas na narração de ditaduras instituídas quando a
sobrevivência de Roma esteve em causa, com todo o drama, violência,
pavor e triunfo que emergências dessa natureza sempre geram. Mais tarde,
no entanto, a partir do século I a. C. até Sula e Júlio César, a ditadura
sofreu usos claramente menos republicanos, o que acabou por condenar a
instituição e a própria república. Sula ressuscitou a ditadura depois de
cento e vinte anos de inutilização para ocupar o vazio legal da sua tomada
do poder no rescaldo de uma violentíssima guerra civil. A tarefa ditatorial
de Sula teria uma natureza já completamente distinta do que era
tradicional. Não era só a ditadura já não estar ao serviço da causa militar
contra o exterior, aparecendo agora como instrumento na guerra civil
interna – isso, e muito mais, já acontecera no passado. A ditadura com
Sula adquiria uma natureza «constituinte» (ditadura reipublicae
constituendae causa), e já não «comissarial», para usar uma distinção que
Carl Schmitt divulgou, mas não inventou, e que procurava pôr os olhos na
situação política dramática do pós-Primeira Guerra Mundial, separando,
de um lado, o ditador comissário que agia no seio de um poder constituído
e que não abolia as leis nem a Constituição e, do outro, a ditadura
soberana que consistia em realizar a «acção absoluta» de um poder
constituinte.190 Ora, Sula queria a ditadura para fazer novas leis e
«restaurar a constituição ao Estado». Júlio César tornou-a perpétua.
Depois do assassinato de César, os cônsules promulgaram uma lei que
proibia o termo «ditadura» para sempre e o castigo para os desobedientes
era a morte.191
Vale a pena recordar, no entanto, que Maquiavel foi um dos que
discordou categoricamente da tese de que a instituição da ditadura fora
progenitora da tirania pura e simples de Sula e de César. Desde logo,
porque o ditador não agia por sua própria autoridade, mas sempre por
«ordens públicas». Não se autodesignava; era escolhido por magistrados
constituídos, de acordo com formas estritamente pré-definidas e segundo
um procedimento previsto. Cícero, do alto da sua enorme autoridade,
sugeriu que era deste facto que vinha o termo dictatore – o ditador era
designado (dicitur) por outrem e dictio o termo técnico da nomeação.192
No século XIX, Reinach contestaria esta etimologia, substituindo-a pela
mais directa, e menos subtil, dictator – dictare – aumentativo de dicere,
com um sentido enérgico de «comandar», fazendo de dictator uma espécie
de sinónimo de imperator.193 A proposta de Cícero é mais interessante
porque ensinava que o ditador não era extraconstitucional. Não era um
usurpador dos poderes. Era, pelo contrário, uma figura
constitucionalmente prevista e protectora da Constituição, para falarmos
em termos plenamente anacrónicos. Não podia anular ou modificar os
outros poderes no senado, nos cônsules, nos comitia. Não era legislador,
nem podia revogar leis.
No julgamento de Maquiavel, a ditadura fora uma das maiores obras
políticas de Roma e sem a qual não teriam atingido a grandeza imperial
que o mundo inteiro testemunhou. Porquê? Porque era o instrumento
flexível para lidar com os «acidentes extraordinários». Era o poder de
excepção para enfrentar a situação de excepção. Ou, por outras palavras, a
decisão de, em circunstâncias imprevistas de grande perigo para a
sobrevivência do Estado, agir fora, ou até contra, as regras e instituições
que presidem aos tempos normais enquadrados por estados juridicamente
formalizados. Os Romanos da república tinham encontrado um meio de
constitucionalizar a resposta institucional à emergência, sem comprometer
o regime, nem as leis e, ao mesmo tempo, evitando a armadilha
republicana da inflexibilidade para lidar com o imprevisto. Escaparam,
assim, ao dilema de se «arruinarem pela observância das ordens ou de as
destruírem para não se arruinarem».194 Salus populi, o eterno salus populi.
Por vezes, o ditador romano era apontado como um soberano. Seria
assim? Podia ser visto como soberano por ter plenos poderes fora das
muralhas da cidade, por ser investido da potestas maxima e do imperium
maximum e não ter de responder perante ninguém pela sua conduta
(embora houvesse lugar à justificação de actos e decisões a posteriori).195
E também por não ter deveres de consulta a qualquer órgão, além de ser
um juiz e decisor de última instância com direito de vida e de morte sobre
todos os que estavam debaixo da sua jurisdição. Em sentido contrário,
Bodin chamara a atenção para a falsidade desse atributo por a soberania
ser um poder perpétuo e o ditador romano receber uma comissão limitada
no tempo. Logo, não seria soberano apesar de deter todos os poderes de
um soberano propriamente dito.196 Grócio, poucos anos depois de Bodin,
iria negar a tese do francês, alegando que a duração dos poderes não
alterava a sua natureza nem os seus efeitos. Porém, Grócio admitia que a
duração limitada da ditadura, sem alterar a sua soberania, a diminuía na
«dignidade» ou na «majestade», quando comparada com uma soberania
temporalmente ilimitada.197 Barbeyrac acompanhou-o no primeiro ponto,
mas não no segundo, sublinhando que a limitação no tempo não era
sinónima de uma relação de dependência política. Entre outros
argumentos menos certeiros, Barbeyrac estabelecia como idêntico ao caso
de um ditador romano aquele regente designado enquanto o legítimo
sucessor ao trono não atingisse a maioridade. O regente não seria soberano
enquanto governasse? Para Barbeyrac, a resposta era evidente e ele
reclamava que a sua posição apoiava-se na opinião dos próprios autores
romanos. Havia uma soberania temporária, mas não menos real.198
Como poderia o ditador ser soberano, contestava Rousseau, se não
possuía a autoridade legislativa? O ditador podia «calar» a autoridade
legislativa, suspendendo-a. Mas não podia fazê-la «falar». Dominava-a,
mas sem poder representá-la. Podia «tudo fazer, excepto as leis». Logo,
não era soberano.199 Pufendorf regressou à posição bodiniana. O exercício
de um poder «por comissão» é diferente do exercício de um poder
«independente» e já se sabia que a marca da soberania era a independência
relativamente a outros poderes. Pufendorf alegava também que a ditadura
romana não exercia todas as partes da soberania, mas além de tal ser
apenas verdadeiro para fases mais tardias dessa peculiar instituição
republicana, era menos pertinente para o âmago da discussão. Além disso,
se o ditador romano, após a conclusão da sua comissão, podia ser
chamado a responder por ter violado as leis em vigor, por exemplo, então
podemos dizer que ele era irresponsável, mas não legibus solutus.200 Não
sendo legibus solutus poderia ser soberano? Além disso, o ditador não era
o único magistrado irresponsável. O censor também o era.
Vimos que o ditador não era um mero chefe militar. A evolução da
ditadura republicana para o estado de sítio moderno nascido na Revolução
Francesa permite distinguir com clareza o estado de guerra do estado de
excepção «constitucional». A 8 de Julho de 1791 a Assembleia
Constituinte francesa, que sucedera aos malogrados Estados-Gerais,
aprovou um decreto que pretendia regrar a situação eventual de uma
ameaça militar externa. A aprovação deste significativo decreto foi
anterior, portanto, aos grandes conflitos internos que a Revolução faria
despontar um após o outro. Daí que fosse possível extrair com nitidez a
diferença entre os três estados em que um teatro de guerra ou um posto
militar se poderiam encontrar. Eram eles: o estado de paz, o estado de
guerra e, finalmente, o estado de sítio. Se no estado de paz as autoridades
civis e militares estavam separadas uma da outra, e cada uma delas agia
estritamente dentro da sua esfera de competências, já o estado de guerra
obrigava à concertação da autoridade civil com a autoridade militar e a
conformação da primeira face às requisições da segunda. Finalmente, no
estado de sítio, a autoridade dos agentes civis em tudo o que respeitasse à
manutenção da ordem na sua esfera normal de competências transitava
imediatamente para o comandante militar. O ponto de distinção era fácil
de discernir e imensamente ilustrativo para compreender as sucessivas
alusões ao estado de guerra nos grandes momentos da filosofia política
europeia em contraposição ao estado de excepção. Ou, mais
rigorosamente, para distinguir as consequências constitucionais ou
institucionais do estado de guerra em comparação com o estado de sítio.
Este, tal como estava reflectido no decreto dos revolucionários franceses,
e ao contrário do estado de guerra, suspendia o princípio constitucional da
separação de poderes e o direito individual de se ser julgado segundo os
procedimentos previstos pela lei e as respectivas garantias jurídicas. O
estado de guerra aparecia como um «estado de sítio mitigado».201 O
estado de sítio revelava-se como a figura jurídica que reflectia a
proclamação de um estado de excepção. Não abrindo o espaço para a
suspensão dos princípios constitutivos da forma política do Estado,
autorizava na sua manifestação a suspensão temporária das normas
constitucionais que punham a forma política em característico movimento.
Esta suspensão, em última análise, via-se justificada como a condição de
salvaguarda dos princípios constitutivos da forma política do Estado.202
13. Excepção à regra
O interesse na estrutura temporal da soberania, ou na relação entre a
soberania e o tempo, levantaria ainda outro problema suscitado pelo caso
da ditadura, da sua provisoriedade e da sua concentração numa tarefa
suscitada por uma anormalidade súbita e imprevista, por uma emergência.
Seria ainda preciso ver se a soberania, independentemente da questão da
perpetuidade como condição da possibilidade soberana, era exercida em
permanência ou em intermitência. Ou ainda se esta dualidade de termos
mutuamente exclusivos não seria enganadora. A soberania seria
permanente – correlativa à existência do soberano (povo ou monarca) –,
mas activada apenas intermitentemente. Em contrapartida, De Maistre
diria com a intransigência habitual que «uma soberania periódica ou
intermitente é uma contradição nos termos; pois a soberania deve sempre
viver, deve sempre estar alerta, deve sempre agir. Não há qualquer
diferença para ela entre o sono e a morte».203 É preciso, no entanto, notar
que a referida intermitência de activação do poder soberano não é
incompatível com a regularidade da ordem que decorreria na aparência
como se estivesse desligada da soberania. À semelhança da relação do
mundo-relógio com o deus-relojoeiro do deísmo, a ordem, uma vez
fundada, subsistiria indefinidamente sem apoio externo. A teologia
política de De Maistre tinha horror a tal conclusão. A soberania
intermitentemente irrompe pela regularidade da ordem, possibilidade que
depende da sua permanência – da sua vida e do seu alerta, não do seu sono
ou da sua morte.
O estado de excepção ocorre simultaneamente dentro e fora da ordem
jurídica. Está no espaço entre um domínio e outro e é essa localização que
lhe confere a fecundidade de determinar a conjugação da ordem política
legal com um território e uma população. O espaço-entre que o estado de
excepção ocupa é um espaço de indefinição, em que se torna impossível
discernir o ponto ou a fronteira clara entre o que se situa dentro da ordem
jurídica e o que lhe é exterior. Mas esse espaço-entre não o é em
permanência, por assim dizer. É-o em intermitência, o que torna a sua
indefinição no espaço e no tempo ainda mais acentuada. Ao abrir-se
simultaneamente para fora e para dentro da ordem jurídica, o estado de
excepção converte-se na sua condição de possibilidade.204
O estado de excepção, um aspecto deixado pela tradição na penumbra,
mas não ignorado por ela, emergiu através da famosa frase que abre a
Teologia Política de Carl Schmitt. Schmitt cobriu-se de perpétua infâmia
com a sua adesão ao partido nazi depois da consolidação de Hitler no
poder. Por essa altura, já era um insigne jurista numa terra de insignes
juristas. À semelhança de muitos, foi empurrado para a conclusão de que,
depois de tantas crises e mergulhos no desconhecido, já nada podia salvar
a República de Weimar. O seu anti-semitismo ajudaria à conclusão. Mas
não foi nenhuma inevitabilidade o que o levou a fazer a pior das escolhas.
Schmitt alimentou a ambição de conduzir a orientação jurídico-política do
Reich alemão. Anos mais tarde, depois da sua derrota pessoal no seio do
regime nazi e convenientemente antes do esmagamento da Alemanha
nacional-socialista, e da sua própria detenção pelos Aliados, Schmitt
invocaria um conto de Herman Melville, o autor de Moby Dick, para
justificar a sua conduta. Nesse conto, intitulado Benito Cereno, um navio
negreiro é tomado pelos escravos revoltosos e decidem poupar o capitão,
Benito Cereno, para manter as aparências junto de outros navios e
marinheiros. Um capitão de outro navio, o capitão Delano, trava
conhecimento com Cereno e diante dos constrangimentos dele, mais ou
menos bem disfarçados, e da vigilância apertada dos escravos insurrectos,
desconfia, não de um motim, mas de alguma malfeitoria de Cereno. No
final, a insurreição é desmascarada, os cabecilhas executados e Cereno
libertado do fingimento a que recorrera para se salvar. Delano compreende
o quão errado estivera e Cereno termina com uma reflexão de como as
aparências induzem culpa nos inocentes aos olhos das testemunhas
incautas. Fosse como fosse, se a ambição de Schmitt, apesar das cedências
bajulatórias ao Führer, nunca foi recompensada, já a sua influência na
cultura ocidental no pós-Segunda Guerra Mundial seria imensurável. E
continua a sê-lo nos nossos dias – no caso mais curioso, inspirando a
extrema-esquerda intelectual cada vez mais dependente dele.
Schmitt nunca parou de reflectir sobre o problema essencial da
soberania e, na frase que fez história, escreveu: «Soberano é quem decide
do estado de excepção.»205 Reinach, que aqui já citei a propósito do tema
da ditadura e do estado de sítio, e que inegavelmente inspirou Schmitt, já
tinha avisado para este ponto decisivo: «O estado de sítio, a suspensão das
leis fundamentais, deve ser declarado pelo poder encarregue de fazer as
leis, depositário da soberania nacional.»206 Uma certa tradição jurídica
francesa estava aqui reflectida atribuindo a prerrogativa da declaração do
estado de excepção/sítio ao parlamento, ao passo que a tradição jurídica
alemã – Schmitt inscrevia-se nela, por exemplo, e a Constituição de
Weimar assim o concedia – colocá-la-ia preferencialmente no chefe do
Estado. Estas duas tradições correspondiam, com margens mais ou menos
grandes de flutuação das correspondências, à concepção de que o estado
de excepção podia ser internalizado na ordem da legalidade, ou, pelo
contrário, que o estado de excepção consistia essencialmente numa
situação de facto extrajurídica e não assimilável à ordem da legalidade.207
«Soberano é quem decide do estado de excepção.» A soberania não
aparecia em Schmitt como a vontade que hierarquicamente vinculava
todas as vontades na economia da política. Era inútil a definição
tradicional segundo a qual a soberania era o poder mais elevado e
inderivado, já que no mundo político nunca haveria um tal poder
irresistível que operasse «de acordo com a certeza da lei natural».208 Tudo
isso era estranho ao jurídico. O soberano aparecia, finalmente, como o
sujeito da ordem jurídica que podia tomar uma dupla decisão que não era
senão uma e a mesma decisão. A decisão de anunciar um estado de
excepção, dizendo o que o estado de natureza era e quando era, ou, pelo
ângulo inverso, a decisão de se vivemos numa situação de normalidade ou
não; e a decisão de como agir nesse estado de excepção, o qual, por sê-lo,
acarretava a suspensão das normas da ordem jurídica. A soberania, por
conseguinte, ao entrelaçar-se com o estado de excepção, era um poder
identificado explícita ou implicitamente pela ordem jurídica, mas exterior
a ela.
Com esta frase lapidar, complexa, enigmática, com sucessivas camadas
de sentido, Schmitt transformava toda a reflexão sobre a noção de
soberania. Daí em diante, ninguém se atreveu a tocar neste tema sem
abordar, criticando ou subscrevendo, a perspectiva colocada por Schmitt.
Com ele, a consideração do conceito de soberania forçava a consideração
do estado de excepção. Muitas possibilidades foram avançadas nas últimas
décadas, mas, no caso de Schmitt, a direcção da meditação era inequívoca.
O estado de excepção não era simplesmente o que estava de fora da ordem
política, ou da ordem jurídica; o estado de excepção tinha de ser integrado
na própria teoria do Estado, pois sem o estado de excepção seria o Estado
(soberano) a se tornar ininteligível. Schmitt citou Kierkegaard para dizê-lo
explicitamente: «A excepção explica o geral e a si mesma.» O conceito de
soberania teria forçosamente de integrar o estado de excepção, o que lhe
daria um carácter eminentemente político, e não jurídico, na medida em
que a decisão do, no e sobre o, estado de excepção não teria cobertura
jurídica. Tratar-se-ia sempre e em todos esses momentos de uma decisão
política impreparada normativamente. Uma norma geral inscrita como
disposição legal nunca poderia compreender a anormalidade do estado de
excepção. Não poderia porque o estado de excepção era a emergência, o
inesperado, o abrupto, o impremeditado, o ameaçador, o perigoso. Nada
disto poderia ser enquadrado ao detalhe por uma lei prospectiva. Por isso,
a decisão em causa no exercício da soberania também não podia decorrer
de nenhuma norma deste tipo. O ponto máximo aonde o normativismo
liberal poderia ir neste contexto era o do uso da prescrição legal, em
particular, no texto constitucional, para identificar quem teria o direito de
tomar essa decisão soberana.
De certo modo, do ponto de vista topológico, o soberano regressava ao
lugar que Hobbes lhe reservara. Recorde-se de que o soberano em Hobbes
fazia parte da comunidade política – era a sua alma. Mas também estava
no exterior dessa mesma comunidade política. Não era parte do contrato –
da convenção entre os homens. Mantinha o direito natural intacto e era
com esse direito a todas as coisas que agia no seio do Estado. O soberano
era o vestígio mais significativo, mas não o único, do estado de natureza
no interior do estado civil. Assim, o soberano era uma parte do Estado e
simultaneamente era-lhe externo. Ockham aduzira um argumento idêntico
para justificar a tese de que Deus não tinha qualquer tipo de obrigação
para causar um acto ou o outro. E era por estar fora de qualquer
compromisso ou laço de obrigação que não podia pecar, causasse o acto
que causasse. O problema que Ockham tentava resolver definia-se nos
seguintes termos: Pode Deus pecar quando causa um «acto deformado»?
Ockham dizia peremptoriamente que não. Com que razões? Muito
simplesmente, Deus não era «devedor» de ninguém. Logo, não estava
obrigado a causar nenhum acto em particular, nem estava obrigado a
deixar de causar um qualquer acto em particular. Por mais actos que
causasse, e por mais deformados que possam ser, Deus não podia pecar.
Não pecava, não porque estivesse sujeito a uma necessidade moral, lógica
ou ontológica, mas porque os Seus actos eram Seus, e porque Ele não
tinha qualquer obrigação perante alguém, estavam acima das relações de
obrigação.209
O soberano agia na, e formava a, zona de indistinção entre lei e
violência. Uma violência que a natureza punha à solta sem freio. A
soberania eliminava a violência? Não. A soberania fundia a lei e a
violência? Não, outra vez. A soberania disciplinava e economizava a
violência. Usava-a como recurso, é certo, mas em larga medida reservava
em potência, pautando-se por uma não-aplicação interrompida por
intermitências que visavam pô-la outra vez em repouso. Em potência, com
accionamento intermitente, a disponibilidade da violência estaria sempre
em vigor para reprimir a violência. Até ao ponto em que a violência se
tornasse um recurso dispensável do quotidiano, mas não eliminado de um
uso futuro. E isso era tal e qual o que Maquiavel, com a sua veia
hiperbólica, ensinara. 
Não obstante, é seguro dizer que o hobbismo e as suas ramificações, a
que corresponderam outras tantas variantes na teoria da soberania, não
alargaram bastante a zona de indistinção entre a lei e a violência? Na
teoria da soberania de Espinosa, um dos maiores filósofos do século XVII,
um sefardita de Amesterdão que na infância ainda ouvia falar português
em casa e que abandonaria a comunidade para ter o seu nome
amaldiçoado durante décadas, as consequências de Hobbes, aliadas a um
sistema intelectual novo, levariam a esse ponto máximo de indistinção.
Espinosa, na sua perpétua luta pela emancipação do indivíduo face às
autoridades religiosas, pela liberdade de pensamento e de expressão e pela
democracia, não superaria o trauma do linchamento particularmente
macabro que a sua referência política, o Grande Pensionário da República
da Holanda Jan de Witt (juntamente com o seu irmão), sofrera às mãos da
populaça em plena luz do dia. Partindo de uma tese contratualista, em que
os indivíduos constituíam um poder soberano por transferência do seu
direito natural a tudo, Espinosa fazia a lei e a violência atingirem o seu
ponto máximo de afinidade. A lei, sendo a vontade do soberano, procedia
de um direito natural a tudo, apenas limitado, como qualquer direito
natural, pela potência do sujeito do direito. O limite do direito do soberano
era, pois, o seu próprio poder/potência. Assim, «quem tiver plenos
poderes para dominar todos pela força e a todos conter pelo receio da pena
capital» tinha um «direito supremo sobre todos». Manteria esse direito
«enquanto conservar o poder de fazer tudo o que quiser; de outro modo, o
seu poder será precário e ninguém que seja mais forte estará, se não
quiser, obrigado a obedecer-lhe».210 O estado de natureza prolongava-se
no estado civil e tanto o exercício da soberania, como a obediência do
cidadão, estavam intrinsecamente relacionados com o poder que dava
alcance de exercício ao direito (natural e soberano), assim como lho
retirava quando minguava. Numa democracia, o poder soberano exercia o
seu direito com menor probabilidade de querer leis absurdas, e por isso era
a forma de governo onde o cidadão, obedecendo infalivelmente de acordo
com a razão, combinava melhor a sua liberdade com a racionalidade das
leis. Era onde se obedecia a leis que efectivamente serviam o bem do povo
e a sua própria utilidade. Se o propósito da filosofia política devia ser o de
garantir que não se renunciaria irrevogavelmente o direito de natureza
individual na vida cívica, então a democracia aproximava-se mais desse
desígnio do que qualquer outra forma de organizar a soberania. Porém,
democracia ou não-democracia, o direito do poder soberano era sempre o
mesmo, e o fundamento da lei nunca deixava de ser, em última análise, o
poder e a capacidade de infligir castigo corporal e de despertar o medo no
cidadão. Numa palavra, a violência do mais forte.211
A soberania absorve para si a violência natural num certo segmento da
humanidade, naquela porção de território do planeta. Não a despeja
arbitrariamente depois de absorvê-la. Isso seria contraditório com a sua
função, a saber, a de absorver, conservar, usar disciplinadamente a
violência com o intuito de reprimir a violência, e vinculá-la a desígnios
humanos de protecção. A violência destrutiva, avassaladora e
descontrolada da natureza torna-se a violência ordenadora, limitada e
doseada da soberania. Como a violência é, até um certo ponto, preservada,
o poder soberano abre-se a críticas óbvias. Ora, é este horizonte de
violência que a crítica da soberania pretende superar. Um mundo sem
crime, sem punição, sem ameaças externas, um mundo que possa ser
regulado, e não governado, um mundo da harmonia – espontânea ou por
nudging a cargo de autoridades benevolentes – de interesses díspares, um
mundo essencialmente despolitizado.
Dir-se-ia weberianamente que o soberano tem o monopólio da violência
e o monopólio da legiferação. Hobbes, e de certo modo Pufendorf, podia
deixar esta indistinção decisiva muito mais clara na caracterização da
soberania do que Bodin o fizera. Porque aquele trabalhou desde o início
segundo a experiência conceptual do estado de natureza que encena uma
circunstância fora do Estado, mas cuja conceptualização, como Hobbes
explicou detalhadamente, partia da consideração dos princípios
estruturantes do Estado – ou da consideração da negação desses
princípios. Por outras palavras, Hobbes partiu do sensacional paradoxo de
que não seria possível pensar o estado de natureza sem pensar os
princípios do Estado ou da comunidade política, em particular sem pensar
no significado do colapso dos princípios do Estado ou da comunidade
política.
Embora o estado de natureza não seja coincidente com o estado de
excepção, a ambiguidade topológica do soberano em Hobbes foi
preservada por Schmitt. O estado de excepção diferenciava-se do estado
de natureza na medida em que este era pré-legal, ao passo que o primeiro
era pós-legal. Por outras palavras, o estado de natureza era o lugar vazio
que, precisamente por ser vazio, abria o espaço para se constituir o Estado
e, daí, a lei. O estado de excepção irrompia forçando uma decisão
soberana, de uma soberania constituída, e que tinha como conteúdo mais
fundamental a suspensão da lei e da Constituição, mas não a sua
derrogação, nem a sua abolição. Não estava em causa a Constituição em
sentido amplo, ou a forma política básica da existência nacional, que
estado de sítio algum podia suspender, mas um conjunto de normas
constitucionais, em particular aquelas que inscreviam os direitos e as
garantias individuais no texto constitucional: o habeas corpus, ou o acesso
normal aos tribunais comuns, as liberdades individuais e grupais, a
separação dos poderes, as limitações aos poderes do funcionalismo estatal
ou das forças de segurança e/ou militares.212
Além disso, desde o início, ou desde Bodin, a soberania fora sempre
colocada perante a questão da ordem – e da desordem. A soberania fora
colocada não como mais um elemento da estrutura e da identidade do
Estado, mas como o princípio de ordem da comunidade política. Se no
século XIX, como veremos, por exemplo, com François Guizot, esta
dimensão transcendente da soberania, esta dimensão majestosa e
apocalíptica da soberania, gradualmente se desvanecera, com Schmitt
retomava todo o protagonismo. A questão da ordem – e da desordem –
voltava a ser o que dava sentido à existência e à acção da soberania,
voltava a ser aquilo que verdadeiramente a substanciava e configurava.
«Tal como qualquer outra ordem, a ordem jurídica assenta numa decisão e
não numa norma.» E era no estado de excepção que a decisão adquiria
inteira autonomia, isto é, era aí que a decisão se emancipava por completo
da circunscrição imposta pela norma. Porquanto, «não existe qualquer
norma que seja aplicável ao caos».213 (Diga-se, muito de passagem, que só
uma leitura distorcida pelo ardor antiliberal de Schmitt pôde levá-lo a
dizer que considerações deste tipo eram inconcebíveis na «doutrina do
Estado constitucional de John Locke». Eram concebíveis e de que
maneira!)214
A identificação do soberano na figura de quem decide do estado de
excepção revelava igualmente a uma nova luz a característica clássica da
indivisibilidade, que fora defendida acerrimamente por Bodin, Hobbes,
Pufendorf, Filmer, Rousseau, De Maistre, entre outros nomes da
construção da teoria clássica da soberania. Contudo, neles a questão
parecia, de um modo ou de outro, resolver-se na crítica à doutrina da
separação de poderes. Com Schmitt já não era tanto a separação dos
poderes constituídos que estaria em causa. Tratava-se, outrossim, de
identificar uma pessoa/órgão e uma atribuição que não podia ser
partilhada tendo em conta a sua natureza e contexto concreto de
instanciação. Mais, ainda que os escrúpulos constitucionalistas-liberais
partilhassem a competência soberana – a decisão do estado de excepção –,
pelo menos no seu momento declarativo e no controlo a posteriori dos
actos do Estado, não restavam dúvidas para Schmitt de que o conteúdo
que era aberto no estado de excepção, isto é, o «poder excepcional» que
podia ser exercido, a «autoridade ilimitada», era, pela sua natureza,
indivisível. Ademais, o soberano enquanto tal possuía um monopólio. Mas
não exactamente o monopólio weberiano do uso da violência. O
monopólio decisivo também não era o da legiferação, em que Bodin,
Pufendorf e Hobbes tanto tinham insistido. Era, antes, o monopólio da
decisão.215 Uno solo.
É difícil explicar sucintamente o impacto que a proposta de Schmitt teve
nos anos 20 do século passado na Alemanha e fora dela. Basta dizer que
foi enorme. E é preciso dizer que não ficou sem resposta. De um lado, os
detractores de Schmitt, a quem a teoria e as inclinações políticas que se
escondiam por detrás dela eram repugnantes. Do outro, um conjunto vasto
de teóricos que, repudiando a política e encontrando falhas na teoria, não
quiseram deitá-la no caixote do lixo da história. De um lado, Kelsen, que
rejeitava o próprio conceito de soberania e não duvidava por um segundo
que estava no lado oposto da barricada política onde se situava Schmitt.
Kelsen olhava para a tese da indivisibilidade da soberania como
gritantemente irrealista e apropriada mais a uma teologia, com a
correspondente deificação do Estado, do que de uma teoria do direito
constitucional. Do outro, Herman Heller, um social-democrata, para quem
a identificação de um decisor de última instância não devia ser vista como
uma aberração. Se o soberano era «quem decidiu da situação normal
através de uma Constituição escrita e não-escrita», quem «mantém
intencionalmente a sua validade» e quem «decide em permanência», então
seria o mesmo soberano a «tomar decisões jurídicas sobre o estado de
excepção», as quais «por vezes» seriam «contrárias à lei».216 Para Heller,
não havia, porque seria contraditório haver, duas vontades independentes,
duas sedes de decisão independentes, em que uma tomaria as decisões no
estado de normalidade e a outra decidiria do estado de excepção. A sede
de decisão teria de ser a mesma. Heller não aceitava a ilegalização do
soberano levada a cabo por Schmitt. Situava-o no caminho da legalidade,
numa dependência da construção da legalidade, sem, no entanto, estar
dependente dela para definir o conteúdo da sua decisão. A decisão
soberana, incluindo a decisão do estado de excepção, era assim situada no
interior do sistema constitucional, do procedimento constitucional. Ficava
perfeitamente constitucionalizada. Esse escrúpulo fazia parte da própria
Constituição e, ligando a situação de normalidade através da Constituição
ao estado de excepção, significava um compromisso político com o
constitucionalismo que o soberano de Schmitt desconhecia. Heller
afastava a identificação da soberania da sobreposição entre o puro
poder/decisão, por um lado, e a circunstância de emergência, por outro.
Evitava-se que a decisão fosse, do ponto de vista normativo, ex nihilo,
como propunha Schmitt.217 Não obstante, Heller queria preservar a sede da
soberania da redução ao puro normativismo. Isto é, contra os adversários
da noção de soberania, Heller queria resgatá-la da sua subsunção num
sistema fechado de normas. A ordem jurídica não era um todo blindado,
mas uma estrutura com uma porta para o exterior, com uma escotilha
superior, inerente à estrutura, mas, em determinadas circunstâncias, aberta
a que uma decisão «suprema» e «irresistível» irrompesse pelo seu interior.
14. A soberania da crise
A soberania da crise, isto é, a suspensão da intermitência da soberania
que se estabiliza e não pisca durante o momento de crise, a soberania que
se revela na sua essência no momento de crise, não é só um aspecto
importante das filosofias da vida concreta. É também a experiência
perceptiva do cidadão comum. De resto, na vida política europeia até à
chegada da «crise» a partir de 2009 até aos nossos dias, a tendência era
para o apagamento da soberania. Só com a «crise» nas suas múltiplas
manifestações regressaram rapidamente as invocações e a linguagem da
soberania, muitas vezes inadvertidamente. Como não carece de
justificação, essa mudança só foi viável porque encontrou junto da opinião
pública olhos e ouvidos que saberiam reconhecer as invocações e
responder a essa linguagem. A situação de normalidade corresponde ao
apagamento da soberania, não apenas na ordem jurídica e na
jurisprudência, mas também na prática da cidadania e do discurso político.
Como o constitucionalismo liberal teve a infelicidade de ainda ser tenro e
jovem na vida das nações europeias quando deflagrou a maior catástrofe
que a Europa conhecera em muitos, muitos anos, a Primeira Guerra
Mundial. A emergência da guerra, de uma guerra industrial de
mobilização total, multiplicou os estados de excepção que foi o modo de
governação em grande parte do continente. Todos sabemos como o
período que se seguiu à guerra em 1918 arrastou desastres de todo o tipo,
incluindo guerras localizadas que continuaram até bem dentro da década
de 20 do século passado. Além da catástrofe das guerras, das limpezas
étnicas, dos refugiados e do desmantelamento de aparelhos
administrativos dos impérios defuntos, sucederam-se crises económicas
gravíssimas e convulsões políticas internas aos vários Estados de difícil
resolução e frequente violência. Não se resistiu à tentação de equiparar a
situação instável que os Estados viviam e o cenário de guerra. Nos EUA,
onde as forças políticas em confronto em quase tudo se distinguiam dos
radicalismos de esquerda e de direita que se digladiavam nos países
europeus, Franklin D. Roosevelt exigiu poderes excepcionais para debelar
a Grande Depressão, não hesitando em torná-los equivalentes aos poderes
de um Presidente em guerra – poderes de guerra que ele exigiria e obteria
poucos anos mais tarde, aquando do ataque japonês a Pearl Harbor. No
discurso da sua primeira tomada de posse, a 4 de Março de 1933,
Roosevelt avisou que a gravidade da situação económica iria desviar
«temporariamente» a relação entre o poder legislativo e o poder executivo
do «equilíbrio normal do procedimento público». Roosevelt não perdia
tempo a decidir do estado de excepção. Se o Congresso não cooperasse
nesse grande esforço político de acção, então, continuou ele, iria pedir ao
mesmo Congresso que lhe desse «poder executivo alargado para fazer
uma guerra contra a emergência». Um poder tão grande, precisava
Roosevelt, quanto o poder que receberia se os EUA tivessem sido
invadidos por um «inimigo estrangeiro».218 Praticamente até à sua morte
em funções, em 1945, Roosevelt exerceria poderes «alargados». As
emergências foram-se sucedendo naqueles anos atribulados. E nem
serviram de muito as resistências dos órgãos que a Constituição criara
para limitar o poder do executivo, e que, em termos meramente jurídicos,
a assunção de poderes de emergência não podia abolir. A mobilização
política intensificada pela reivindicação de um estado de emergência
nacional foi suficiente para disciplinar os órgãos desafiantes e subjugá-los
aos desígnios do executivo.
A familiarização com a história dos estados de emergência nas
democracias ocidentais, e não só, devia servir para iluminar as práticas
políticas do nosso tempo. A chegada da epidemia de 2020 revelou bem a
fragilidade da decisão política, falha em consciência histórica e ignorante
do poder das analogias. Foram raríssimos os chefes do governo ou de
Estado com responsabilidades executivas que, ao pedirem poderes
reforçados para lidar com as consequências da epidemia, souberam resistir
à tentação de invocar a analogia da «guerra» e do «inimigo». Portugal não
foi uma dessas felizes excepções. Não só a analogia é falsa, como abre
implicações para o exercício do poder, das liberdades e da cidadania
inteiramente injustificadas. A crise de lideranças também se nota aí:
quando os políticos recorrem logo na primeira penada à analogia mais
drástica porque não se querem valer de outros apelos que uma relação
genuinamente madura com a opinião pública recomendaria.
A habituação ao regular funcionamento das instituições democráticas
também convida à conclusão pela obsolescência da soberania como
elemento central das comunidades políticas. O adormecimento da
assunção de responsabilidade suprema garantido pelo funcionamento
regular das instituições sugere persuasivamente à consciência de si da
comunidade que a soberania foi prescindível porque se atingiu um novo
patamar das relações cívicas. E que a democratização do regime e da
sociedade não seriam alheios à ascensão de patamar. A não activação –
que evidentemente não equivale a des-activação, nem a inactividade – da
acção soberana neste sentido estrito não significa que ela esteja num
estado dormente. Hobbes sugeriu esta interessante analogia aplicada ao
exemplo de um povo que vai elegendo sucessivamente monarcas com
mandatos temporais limitados ou monarcas vitalícios cuja sucessão é
escolhida por uma assembleia popular, acordando apenas nos momentos
electivos para logo a seguir regressar ao sono.219 Vimos anteriormente que
De Maistre também a usou. Das lições de ambos conclui-se que talvez
seja mais avisado falar na intermitência do poder soberano, até para
podermos abranger o poder constituinte na esfera de acção da soberania.
Ora, em tempos de normalidade a responsabilidade derradeira pelo
funcionamento das instituições encontra-se num estado de dormência. De
certo modo, essa poderia ser uma definição de normalidade política, ou até
de normalidade constitucional. Porém, a dormência desse poder inspira a
convicção de que se vive agora na plenitude da história em que a
existência de uma sede de responsabilidade derradeira já caducou. A
responsabilidade derradeira já não existe porque se encontra disseminada
e diluída por vários órgãos coordenados, nenhum deles superior aos
demais. É sempre o momento de crise que desperta da sua dormência a
sede da responsabilidade de última instância.220
É talvez por essa razão que quem invoca o retorno da soberania como
categoria central fique associado a uma concepção da política dominada
persistentemente por crises. Trata-se de uma associação injusta e míope
que garante a pureza das ilusões de uns e o silêncio intimidado dos outros.
Garante que a comunidade política fica indefesa perante os avanços da
crise e dos abusos do poder daqueles que invocarão a crise para avançar as
suas agendas pessoais e partidárias às custas do interesse comum. Mas não
garante certamente o cumprimento dos propósitos da filosofia política
enquanto tal.
15. Nas origens desordeiras da soberania
A tese de Jean Bodin pode resumir-se sem grande exagero a isto: a
soberania é a condição jurídica necessária e suficiente do Estado. O poder
ordenador e unificador da soberania permitia a Bodin desvalorizar outros
factores tradicionalmente considerados importantes para a integridade e
coerência do Estado. Assim, a soberania conferia ou impunha unidade ao
Estado que contivesse a maior diversidade de «leis», «línguas»,
«costumes», «religiões», «nações». A extensão do território e a dispersão
dos seus habitantes eram também dados irrelevantes na definição jurídica
de Estado.221 O poder unificador da soberania anulava todas as distâncias,
todas as diferenças, toda a diversidade. Anulava-as na medida em que
neutralizava todas as desordens que delas pudessem decorrer. A soberania
era, pois, o princípio da geração da ordem, e simultaneamente o princípio
da manutenção da ordem entretanto criada. Thomas Berns colocou a
questão nos seus devidos termos: a soberania «não é de todo da ordem da
interdição», isto é, não se circunscreve à negatividade característica do
poder que protege a ordem sem, no entanto, a criar. A soberania é «bem
mais positivamente, da ordem de uma nova prática e de um novo tipo e
discurso do poder, a saber, jurídico, do qual surgirão os súbditos, as
administrações, o Estado e as suas limitações.»222
É habitual dizer-se que o contratualismo enquanto doutrina justificadora
do poder soberano nasceu no século XVII sobretudo com Thomas Hobbes.
Na verdade, a contemporaneidade de Jean Bodin já abundava em teses
contratualistas de origem huguenote. É evidente que não encontramos em
Bodin a figura do contrato social. Na ausência de um contrato social,
Bodin só poderia aproximar-se do contratualismo dos séculos XVII e XVIII
se fizesse apelo a um estado de natureza. Mas sabe-se que foi Hobbes
quem primeiro trouxe a ideia de estado de natureza para a filosofia
política, não sem a transformar, do domínio teológico a que pertencia, e
que ainda encontramos nas obras de Suárez e de outros jesuítas dos
séculos XVI e XVII.223 Todavia, em Les six livres Bodin pronunciou-se sobre
o «começo das Repúblicas», e se é verdade que nunca utilizou a expressão
estado de natureza, nem outra que se lhe equivalesse, não se pode negar
que a situação que dava origem aos Estados podia, com todo o rigor, ser
descrita como um estado de guerra. É para este aspecto pouco estudado,
mas bastante revelador, da obra de Bodin que agora temos de nos virar.
Bodin não podia ter começado a sua reflexão em torno da origem dos
Estados de modo mais lapidar e inequívoco: «A razão e a luz natural
levam-nos a crer que a força e a violência foram a fonte e a origem das
repúblicas.» Bodin confirmava esta tese com o «testemunho indubitável
dos mais verídicos historiadores», das «leis de Sólon» e da «história
sagrada». Invocando Plutarco, Bodin repetia que os «primeiros homens»
dedicaram-se a «matar, massacrar, roubar ou a escravizar» uns aos outros.
Uma das provas de que o nascimento dos Estados foi marcado por uma
extrema violência era dado pelo elevado número de escravos que
continham, «coisa que não se poderia fazer sem uma violência extrema,
forçando as leis de natureza».224 A origem, ou talvez mais precisamente, a
justificação da soberania residia então na violência ameaçadora. Não que a
soberania fosse uma manifestação da violência. É mais rigoroso dizer que
se tratava de uma resposta à violência, para calá-la e inaugurar o reino do
direito.
Como já se notou, Bodin não foi um contratualista. Por isso, não se
pode dizer que os homens que se guerreavam na situação prévia à
formação do Estado entravam de alguma forma num acordo contratual
para instituir a soberania. Mas, se examinarmos o período que antecedia o
Estado e a violência que o caracterizava, abrem-se algumas portas para
inferir que o Estado procedia de um estado de guerra. Em primeiro lugar, é
preciso saber quem são estas pessoas que se guerreiam. Em Hobbes
sabemos que se trata de indivíduos que constituem, cada um deles por si,
uma totalidade, sem laços sociais de qualquer espécie. Cada um combate
por si. Algumas formulações – como a que foi citada no parágrafo anterior
– parecem empurrar Bodin para uma concepção individualista do estado
de guerra. Mas, na realidade, quando se fala em homens que se guerreiam
na condição que antecede a formação do Estado, é preciso reter que estes
homens estavam inseridos numa forma de comunidade cuja existência e
integridade jurídica não dependia da formação do Estado, isto é, estes
homens pertenciam a famílias. A guerra que caracterizava o estado
antecedente à fundação das repúblicas era travada por famílias, sob o
comando dos seus respectivos chefes.
A propósito do exemplo do duque de Anjou, a quem foi atribuído o
poder pelo rei de França Carlos IX, Bodin levantou também a hipótese de
um monarca que recebia do povo o seu poder absoluto. A dúvida residia
em saber se um monarca electivo era soberano. A resposta foi directa. Se
o poder absoluto que o monarca recebeu foi «dado pura e simplesmente»,
isto é, incondicionalmente sem o converter num simples «magistrado» ou
«comissário» ou noutra forma precária, e vitaliciamente, então não havia
dúvidas de que o monarca era absoluto e soberano. Pois, por esse meio, o
povo «renunciou e despojou-se» do seu «poder soberano». O povo
«transportou» ou transferiu para o monarca assim escolhido «todo o seu
poder, autoridades, prerrogativas e soberania; como aquele que deu a
posse e a propriedade do que lhe pertencia».225 Ficava assim proposta uma
possível modalidade de transferência de direitos e de poderes, que
pertenciam aos chefes de família numa situação anterior à formação da
«República», para um monarca convertido em soberano absoluto.
Enquanto acto jurídico, e se quiséssemos aproximar Bodin do
pensamento contratualista do século XVII, esta possibilidade aberta pelo
autor torna-se bastante semelhante ao «pacto de sujeição» de um
Pufendorf, por exemplo. É verdade que Bodin assimilou este acto jurídico
a uma doação, e não a um pacto, mas as consequências eram muito
aproximadas. Aquando de uma doação «verdadeira» não se punham
quaisquer condições ao donatário. Logo, a soberania doada pelo povo não
podia ter adstritas quaisquer condições ou contrapartidas. Caso contrário,
não se tratava de soberania propriamente dita. As únicas condições
anexadas a uma doação «verdadeira» como a da soberania a um príncipe
eram as que podiam ser resumidas na expressão «Lei de Deus ou da
natureza».226 Posto desta maneira, a «verdadeira» doação e o «pacto de
sujeição» de Pufendorf voltavam a revelar semelhanças. Poder-se-á alegar
que o contexto em que Bodin apresentou esta «verdadeira» doação era já
plenamente político. Bodin ilustrava a sua tese com a cerimónia de
investidura do rei da Tartária. Mas a transição do estado de guerra entre
famílias para a instituição da soberania ficara por resolver, e a doação
«verdadeira» poderia ser uma solução para esse silêncio.
A par desta solução tínhamos ainda outra possibilidade não
necessariamente exclusiva. Bodin referiu de passagem que a guerra entre
famílias que antecedia o Estado era concluída com a vitória de uns
intervenientes sobre outros.227 De algum modo, os chefes de família
vitoriosos uniam-se tornando-se «súbditos livres», e os membros das
famílias derrotadas adquiriam um estatuto de plena subordinação, para não
dizer servidão. Que esta não era uma mera possibilidade conceptual, e que
Bodin pretendia atribuir-lhe valor histórico, era comprovado pelo facto de
a «monarquia régia» mais perfeita, a francesa, ter sido instituída pela
conquista, isto é, pela vitória na guerra.228 Se dúvidas restassem, Bodin
afirmava que todas as repúblicas «se estabelecem pela violência dos mais
fortes».229 Se combinássemos as duas possibilidades – a violência dos
mais fortes, confirmada por uma doação perfeita – estaríamos muito
próximos da ideia hobbesiana da «soberania por aquisição», distinta da
mais famosa «soberania por instituição». Com uma diferença muito
importante: o que unia as duas possibilidades avançadas separadamente
por Bodin residia na subordinação do consentimento ao reconhecimento.
O poder soberano não era objecto do consentimento de um qualquer
elemento constitutivo, como os indivíduos eram na filosofia política de
Hobbes. Antes era reconhecido por quem lhe estava sujeito. Esse
reconhecimento procedia da necessidade e da própria lógica da soberania.
Qual era, então, o fim que orientava e justificava o Estado? Sendo a
família lógica e historicamente anterior ao Estado, então este tinha como
função e propósito satisfazer as necessidades e desejos das unidades que
lhe eram constitutivas e que o antecediam. E o que desejavam as famílias?
Visto que eram comunidades naturais e estruturadas, a necessidade que o
Estado podia suprir advinha da situação violenta e hostil em que elas se
encontravam. Logo, o Estado tinha como função e propósito garantir a
segurança das famílias, bem que no estado de guerra em que elas se
encontravam se tornara extraordinariamente precário. O príncipe estava
obrigado a garantir «pela força das armas e das leis» a segurança dos
súbditos, das suas «pessoas, bens e famílias», que lhe estavam vinculados
por um dever político de obediência.230 Essa obediência ou sujeição não
era mais do que a contrapartida pela obtenção do direito de protecção
garantido pelo Estado. É certo que a família era já um domínio de
protecção e de segurança. Mas a segurança era necessariamente precária
quando comparada com o nível de protecção que o Estado podia garantir,
não só porque a família podia ser impotente perante a escala dos perigos,
como as famílias não ordenadas por uma soberania política tendiam a
guerrear-se mutuamente e a ser fontes de insegurança. Neste sentido, o
soberano também estava vinculado pela sua «promessa» de protecção, e
«não há promessa mais forte do que aquela que é feita de defender os
bens, a vida e a honra do fraco contra o mais potente; do pobre contra o
rico; dos bons afligidos contra a violência dos maus».231
Nessa medida, assim que o Estado era instituído, as famílias estavam
sujeitas a obedecer às suas leis e ao seu governo, mas também estavam
«quase sempre» obrigadas a ceder os meios necessários para que o Estado
pudesse cumprir a sua função. A hesitação de Bodin prendia-se com a sua
insistência num limite importante à acção do soberano, a saber, que este só
podia levantar impostos com o consentimento dos Estados. É que a
propriedade privada, por corresponder à propriedade das famílias, ou, em
termos mais gerais, dos indivíduos que compunham as famílias, era
também anterior ao Estado. Em rigor, a propriedade privada não decorria
directamente da «lei de Deus e da natureza». Não existia, portanto, um
direito natural de propriedade, nem uma facultas nem uma potestas de
propriedade privada. Tratava-se, contudo, de um direito decorrente dos
direitos dos povos, correspondente a práticas humanas universalmente
aprovadas, e que não contrariavam a lei divina. A «lei de Deus e da
natureza» protegia esses direitos humanamente adquiridos. Embora não
celebrasse um direito individual de propriedade, a lei de Deus expressa
nas Sagradas Escrituras proibia o roubo, e isso era suficiente para garantir
a conformidade da instituição da propriedade com o direito divino.232 No
mesmo sentido, a propriedade era indirectamente legitimada no direito
romano, mais concretamente no Corpus iuris civilis, quando se definia o
princípio de justiça fundamental no «dar a cada um o que é seu», e isso
supunha que existia um «meu» e um «teu».233 Sendo assim, se a
propriedade privada fosse anterior ao Estado; e se o Estado tivesse por
função e propósito garantir a segurança das famílias; então, a função
protectora do Estado tinha igualmente como objecto a propriedade privada
das famílias, ou, em termos mais gerais, dos seus súbditos. Assim,
compreende-se melhor o limite que Bodin colocava ao seu soberano de
carecer de consentimento dos estamentos para levantar novos impostos,
quando esta capacidade parecia ser automaticamente correlativa às
prerrogativas de um poder soberano dito absoluto. Não era.
As obras de Bodin, e Les six livres não é excepção, estão cheias de
referências a uma ordem natural das coisas. Na obra mencionada, Bodin
disse explicitamente que «todas as coisas contra-natura não podem ter
uma longa duração: e se se acaba por forçar a natureza, ela regressará
sempre ao seu primeiro estado, como se vê evidentemente em todas as
coisas naturais».234 Esta declaração pareceria ser suficiente para incluir
Bodin no grupo de autores que se posicionou diante de um mundo
naturalmente ordenado, e que preconizou intervenções humanas que
respeitassem e se inserissem nessa mesma ordem natural. Por assim dizer,
a acção humana e a sua intervenção no mundo tinham de se caracterizar
como uma extensão da própria ordem natural das coisas, como actos
meramente aperfeiçoadores da ordem natural. Porém, um pouco mais
adiante no texto, Bodin reformulou a sua proposição geral. A propósito da
duração da instituição da escravatura, o autor regressava ao argumento
que fazia a duração das coisas depender da sua conformidade à natureza,
ou à ordem natural, para chamar a atenção para a necessidade de distinguir
as «coisas naturais» das coisas «humanas». Isto é, Bodin continuava a
insistir em que a duração das coisas naturais dependia em absoluto da sua
conformidade com a ordem natural porque, por serem naturais, «seguem a
ordenação do Deus imutável». Contudo, «ao homem foi dada a escolha do
bem e do mal» e «muitas vezes» escolhia «o pior contra a lei de Deus e da
natureza».235
O que Bodin parecia querer dizer era que a liberdade moral concedida
por Deus ao homem constituía um princípio de desordem na medida em
que permitia a desobediência frequente à ordem que se segue da criação
de Deus ou da natureza. A vontade humana, ao contrário da vontade de
Deus, era marcada pela imperfeição, pela inconstância e pela incerteza. O
mundo constituído pelas coisas naturais era um mundo de ordem porque a
vontade de Deus, fonte da geração dessa ordem, era constantemente
reafirmada por Ele. Mas o mundo das «coisas humanas», o mundo da
política que resultava da liberdade humana, era atravessado por um
princípio de desordem. Escreveu Bodin em Les six livres: «A opinião
depravada tem [no homem] tanto poder, que passa por ter força de lei,
com mais autoridade do que a natureza, de modo que não há impiedade,
nem maldade, por maiores que sejam, que não seja estimada e julgada
como virtude e piedade.»236 Se a opinião, incluindo a opinião depravada,
que é uma forma de convenção, tinha este poder sobre os actos e
julgamentos humanos, então ficava fortemente diminuída a efectividade
da ordem natural do mundo. A «lei de Deus e da natureza» não era
imanente ao mundo, não estava presente no mundo. Tratava-se de uma lei
transcendente ao mundo, que devia sobrepor-se ao mundo.
Esta transcendência assinalada da «lei de Deus e da natureza» era um
simples corolário do voluntarismo teológico de Bodin e as suspeitas
abundam da adesão de Bodin à distinção entre a absoluta potentia Dei e a
ordinaria potentia Dei, e à ideia da essencial contingência do mundo. Tal
adesão não deixaria de ter impacto na questão da ordem política. Se a lei
natural não era imanente ao mundo, se a vontade de Deus era radicalmente
livre para criar e para transformar, então o homem não podia esperar intuir
o facto moral nas coisas naturais. A ordem só poderia provir de uma fonte
externa – da lei, divina ou humana. Diz-se, então, voluntarismo porque, tal
como Escoto permitia, a vontade já não estava, como na tradição tomista,
submetida ao intelecto, ou pelo menos vinculada ao julgamento sobre os
bens à disposição da vontade e sobre os meios de os obter, e que era
produzido pelo intelecto. Pelo contrário, a vontade pronunciava-se sobre
os bens a apropriar, e o intelecto fornecia os meios de os apropriar. Ora,
neste contexto, a lei é uma emanação da vontade, e a ordem uma
imposição do poder transformador. Diga-se muito de passagem que era
por essa razão que o direito de propriedade consagrado por Bodin, como
vimos, e que se revelava como um autêntico limite do poder soberano, não
podia ser considerado um direito subjectivo, sendo antes decorrente de
forma indirecta da «lei de Deus e da Natureza». E recapitulando: a
possibilidade de um julgamento normativo das leis produzidas pela
vontade livre do legislador ficava seriamente posta em causa, porquanto,
apesar de Bodin se ter agarrado à «lei de Deus e da natureza» para garantir
esse padrão de julgamento e essa vinculação, na realidade a
subdeterminação dessas fontes, o seu carácter vago, retirava o chão às
almas mais insubmissas.
De certa forma, podemos dizer que o princípio de ordem que Bodin
encontrava na vontade soberana acompanhava algumas visões
provenientes do Cristianismo que tinham declarado a sua insatisfação com
a tese estóica da essencial harmonia do mundo. Clemente de Roma foi
uma das primeiras vozes a declarar que a ordem que existia no mundo
devia-se muito menos a uma putativa harmonia horizontal entre as partes
que o compõem do que à relação vertical entre essas partes e o seu criador.
E essa relação tinha um carácter muito específico: a ordem resultava da
obediência ao seu criador. Como explicou Rémi Brague, «É a sua
obediência comum a um só e mesmo Deus que assegura a harmonia das
relações que as partes mantêm entre elas.»237
16. O direito e o poder
Como vimos, a família era o reflexo da República na medida em que
ambas eram governadas segundo uma relação unívoca ou unilateral de
comando/obediência. A estruturação dessa relação era, em última análise,
a técnica de consumação do princípio de ordem a que Bodin chamava
soberania. Essa seria uma constante na teoria da soberania de Bodin, mas
também dos seus discípulos Hobbes e Pufendorf. Quem estava sujeito a
essa relação, na posição da obediência, tinha a sua «liberdade natural», a
«liberdade de cada um viver a seu bel-prazer» ou de «não estar sujeito a
qualquer homem vivo» ou de «se comandar a si mesmo» ou de obedecer
apenas à razão, que era sempre «conforme à vontade de Deus»238, limitada
por um poder que lhe era alheio. Deter o poder de governar era deter o
poder de comandar outrem, quer na esfera privada da família, quer na
esfera pública do Estado. Em última análise, tratava-se do poder de vida e
de morte sobre os subordinados. Não restavam quaisquer dúvidas, por
conseguinte, que a soberania criadora da ordem era um princípio externo
aos indivíduos e aos grupos infrapolíticos. Sendo externo, era também
disciplinador no sentido amplo da palavra, o que incluía evidentemente a
prerrogativa coerciva. A ordem vinha com um preço associado que era
sempre preciso pagar: o da limitação da «liberdade natural». Não porque
se considerasse que só a acção humana orientada por uma doutrina ou
verdade pudesse ser vista como livre, mas apenas porque a coexistência de
indivíduos, famílias ou grupos infrapolíticos em plena «liberdade natural»,
encontrava-se necessariamente com o conflito e com a violência.
Deste conjunto de observações podemos perceber que a soberania não
era um simples sinónimo de poder. A puissance souveraine de Bodin era
certamente um poder. Mas não se esgotava na noção de potência/poder. A
noção moderna de soberania apontava para uma doutrina jurídica que não
só enquadrava o exercício do tal poder, ou da tal potência, mas que se
pronunciava sobre a sua estrutura e origem. Além disso, a soberania
ocupava um lugar primacial na associação humana, impondo-lhe uma
ordem, e tais responsabilidades nunca poderiam ficar a cargo de um
simples poder. A estruturação da política do Estado moderno nunca
poderia ser levada a cabo apenas pelo poder enquanto poder.
Se ainda hoje restam longas discussões sobre o alegado arcaísmo da
noção de soberania em Bodin por este ter ficado fixado na ideia de que a
soberania era «pessoal», é preciso perceber que logo em Bodin a
densidade jurídica e conceptual da noção de soberania permitia-lhe
superar essa limitação incompatível com a ideia futura do Estado
moderno. Para Bodin, a soberania não era necessariamente do ou de um
rei. Não era propriedade dele. Ela podia ser detida e exercida por um
órgão colectivo – oligárquico ou democrático –, tal como Hobbes também
previa. Houve adeptos da soberania mais radicalmente monárquicos que
Bodin, pensadores como Bossuet ou Filmer, que categorizaram a
soberania como estritamente pessoal para invalidar pretensões não-
monárquicas ao poder político. Mas essa era uma apropriação
circunstanciada da noção da soberania. Não reflectia as suas fronteiras
originárias, que teriam mais tarde de ser reorganizadas para supostamente
manter a sua relevância histórica. A soberania foi impessoal desde o início
da sua teorização clássica, que residia no soberano em virtude do cargo
por ele desempenhado e juridicamente delineado. Aliás, essa era uma das
razões por que se admitia, num conjunto de circunstâncias, a soberania de
um usurpador bem-sucedido. E uma porta aberta que o constitucionalismo
se viu forçado a fechar sem sacrificar a impessoalidade da soberania e do
exercício soberano. Escusado é dizer que o recurso para fechar essa porta
tinha sido dado pelo mesmo contratualismo soberanista que agora se
remediaria ao tornar disponíveis as ideias de contrato, e, portanto, de
escolha, para a designação do soberano, para a designação do
representante, e de governo pelo consentimento dos governados.
Por conseguinte, a soberania não deve ser esgotada na estreita
concepção de poder político. A perspectiva do poder mantém a soberania
enquadrada por considerações de relatividade que, de uma maneira ou de
outra, o poder sempre pressupõe. Mas não sendo apenas poder, a
soberania resistia de algum modo a ser um puro quantum, como o poder
acaba por ser. No século XVIII, o suíço Vattel, um dos chamados pais
fundadores do direito internacional moderno, avisava que, do ponto de
vista da soberania, «O poder ou a fraqueza não mostram qualquer
diferença. Um anão não é menos um homem do que um gigante. Uma
pequena república não é menos um Estado soberano do que um reino
poderoso.»239 O princípio soberano da igualdade externa dos Estados ia
além do critério do poder. Sendo um produto do reconhecimento e do
direito, a soberania podia, pelo menos neste aspecto particular, transcender
o quantum do poder. Foi por muito boas razões, como iremos ver mais
adiante, que tanto Hobbes como Pufendorf compararam a soberania à
«alma» da comunidade política ou do Estado. Todo o ser humano,
enquanto ser humano, tem uma alma. A metáfora da soberania como alma
da pessoa «artificial» ou «moral» ilustrava esta superação. Saindo do
plano metafórico, a igualdade das soberanias radicava no direito, já que a
soberania se fundava no direito e constituía uma conciliação entre o
poder/força e o direito. Mas convém não exorbitar a igualdade puramente
formal trazida pela soberania e estritamente dependente do
reconhecimento recíproco entre os Estados. Extrapolar mais do que isso
seria negar a mais do que evidente desigualdade entre os Estados e as
infinitas diferenças entre eles. Afirmações espúrias de igualdade que
excedam este âmbito ou são tautológicas, ou são objectivamente falsas.
Ou deslizam para a constatação inócua de que os Estados têm todos
«interesses». E cabe questionar a utilidade de uma abordagem tão elástica
que, querendo absorver todas as concretizações acaba por ser
completamente abstracta e vazia na eliminação de todas as diferenças. Ou
ignoram as imensas maneiras em que se manifestam relações de poder
desiguais entre os Estados. Essa imensidão fornece todo o tipo de «dados»
para a constituição de rankings ordenados pelo poder/impotência das
nações – a riqueza, a capacidade militar, a demografia, os recursos
naturais, o engenho tecnológico e assim sucessivamente. Estas tabelas
permitem todo o tipo de cálculo diferencial e integral do poder dos
Estados.
Em alternativa, a soberania deve ser considerada como uma noção-
fundação. Fundação de quê? Da ordem política. A soberania não é, pois,
uma razão ou uma justificação do poder político ou do seu exercício. É,
antes, um alicerce da ordem política sem a qual ela não se constitui.
Associada ao problema da autoridade, mas que não pode ser confundido
com ela, a soberania excede, por assim dizer, o poder político
concretamente entendido. A soberania funda uma versão do direito
político, no sentido amplo do termo, e que inclui, por exemplo, a
faculdade legiferante universal. Mas é igualmente uma condição da
agência política enquanto tal.
Note-se que Bodin escolheu a palavra majestas para sinónimo latino de
soberania, uma palavra que descrevia uma dignidade excelente e exaltada.
Majestas significava literalmente «alteza» ou «sublimidade». E reflecte
sobretudo a ideia de supremacia, como temos visto.
A etimologia diz-nos que majestas provém de majus – maior relativo a
extensão, a grandeza. O historiador Walter Ullmann, meditando na
equivalência medieval entre as palavras majestas e soberania, viu aqui
uma transição de uma concepção popular para uma concepção teocrática
do governo, na medida em que no tempo da República romana, o contexto
do aparecimento da palavra majestas, esta aplicava-se unicamente ao povo
romano. Para os romanos da república o crime de lesa-majestade estava
exclusivamente reservado para quem atentava contra os direitos do povo,
não contra quem violava as prerrogativas ou ofendia os magistrados da
república. Só com o império começou a usar-se majestas para descrever os
imperadores. O crime de lesa-majestade seguiu o mesmo caminho. Deixou
de corresponder à ofensa do povo romano como um todo para passar a
cobrir apenas a pessoa do imperador. Com a divinização do imperador, o
crime de lesa-majestade adquiriu o sentido de um crime religioso. No
século XIII, pela mão dos civilistas, o crime de lesa-majestade já envolvia o
rei, e não o imperador, porque o rei era imperador no seu reino – rex in
regno suo imperator/prínceps/monarcha est. No seu reino, o príncipe
tinha uma jurisdição própria e não reconhecia nenhum superior. A
soberania territorial dava os seus passos ao ser subtraída à jurisdição
universal do imperador, o dominus mundi. Desta supremacia designada
pela palavra majestas, desta superioridade, advinha também a localização
da mais grave traição – a alta-traição.240
Grócio, uma verdadeira glória holandesa e um dos mais influentes
pensadores políticos do século XVII, escrevendo poucos anos depois de
Bodin morrer, definiria esta fonte política suprema como uma fonte cujos
actos «não estão sujeitos ao poder de mais ninguém, de tal modo que não
podem ser nulificados por nenhuma outra vontade humana». Grócio, o
homem a quem o erudito John Selden reconhecia um «conhecimento
extraordinário das coisas divinas e humanas», e observava que era «um
nome muito frequente nas bocas dos homens por toda a parte»241, marcou
o tom da discussão em torno de muitos destes temas. Grócio, a quem
foram confiadas missões políticas e tarefas intelectuais da maior gravidade
quando ele ainda praticamente não tinha saído da adolescência, visto
assim como um autêntico prodígio, persistia na ideia de que, como a
soberania era a fundação da actividade legislativa enquanto expressão da
vontade politicamente articulada, a sua supremacia era definida como
sendo a fonte das normas. Se a soberania fazia as leis, ou nalguns casos,
autorizava outros a fazer leis, então também gozava do direito de desfazê-
las, isto é, de suspendê-las, alterá-las, revogá-las, substituí-las por outras
leis.242
Neste sentido, a soberania estava ligada à mais elevada fonte e sede da
autoridade do Estado. Estava ligada à suprema sede de decisão da qual
não havia apelo ou de cuja decisão não se podia mais recorrer. Além disso,
a soberania é, ou pretendeu ser na sua origem, o recurso necessário,
indispensável, para estabelecer uma relação sólida – porventura a única
possível nas condições históricas de fragmentação social – entre a política
e o direito. Desse modo, a lei aparecia como uma expressão directa da
soberania. Em simultâneo, o direito colocava limites à soberania não
necessariamente de uma natureza deontológica.
Muitos consideraram esta combinação paradoxal. Mas não é forçoso
que o seja. Enquanto potência legiferante, a soberania sustenta e justifica a
lei – o seu modo primordial de expressão. A soberania sublinha a
intersecção entre a política e o direito. Mas, enquanto potência que é
activada pela feitura e suspensão da lei, encontra o seu refúgio na política
no momento de interrupção da normalidade – no momento de excepção.
Contudo, a soberania não pode permanecer aí por muito tempo sob pena
de se aniquilar, sem deslizar para a mera conjugação do poder enquanto
simples facto. Nessa medida, já não seria soberania. Talvez seja essa uma
das razões por que Carl Schmitt, um dos mais notórios discípulos de
Bodin e de Hobbes no século XX, tenha afirmado que a relação entre o
«poder factual» e o «poder juridicamente supremo» é a «principal
dificuldade do conceito de soberania».243 Também em razão desta tensão,
a soberania revogava a insistência clássica na categoria do regime político,
na sua classificação e daí para a escolha da melhor forma de governo.
Agora o que tudo decidia era a capacidade, ou a incapacidade, de a sede
suprema do direito, de o poder supremo, fosse qual fosse a forma de
governo, legiferar, criar a lei para a comunidade, estabelecer normas
jurídicas e assegurar a obediência dos cidadãos, forjando a unidade
política. A obsessão com a independência do soberano, o seu carácter
absoluto, no fazer (e desfazer) as leis era uma acompanhante natural.
Legiferar tornava-se no «elemento central da definição da política», o
«atributo definitivo da política».244
Não podemos, pois, reduzir a soberania a um facto empírico ou a um ser
físico. Porquanto, os efeitos que ela produz e a relação que estabelece com
a ordem que cria têm um conteúdo normativo irredutível. É certo que em
si mesmo o poder soberano não possui um conteúdo normativo intrínseco.
Mas, em última análise, no quadro em que emerge, em que é exercida e
em que produz efeitos, a soberania diz-nos algo acerca da legitimidade
política. Diz-nos algo acerca do dever de obediência civil. Diz-nos algo
sobre a autoridade do Estado. Diz-nos algo sobre a mediação da lei como
relação essencial entre governantes e governados. Diz-nos algo sobre a
comunicação cívica e o pôr em comum num contexto de diversidade
social. Diz-nos algo sobre a articulação dos fins do viver político. Permitir
ver que a substância da soberania é um composto de direito e de força foi,
pace David Hume, o grande mérito das teorias contratualistas. Não havia
nem o mais remoto vestígio de sentimentalismo do poder quando De
Maistre fazia ver que o «poder da soberania» repousava por inteiro na sua
«força moral», e que seria nulo se a não possuísse.245
Assim, a soberania aparece como um princípio de ordem distinto de
outros princípios de ordem alternativos. Como princípio de ordem, a sua
aceitação sugere imediatamente um tipo de ordem, distinto de outros tipos
de ordem. Desde logo, uma ordem política. Uma ordem estruturada em
torno de uma unidade simbólica da comunidade política. Dessa unidade
infere-se uma partilha de um modo de vida colectivo e, por conseguinte, a
geração do comum político: um espaço comum, bens comuns, uma
identidade comum, um poder ordenador comum. Em concreto, a ordem, e
o acordo em volta dessa ordem, expressam-se através de práticas,
instituições, normas, que são sustentadas, protegidas e autorizadas pela
soberania. A soberania torna-se no garante da continuidade e da
estabilidade dessa ordem e não lhe sobrevive. Finalmente, a ordem
política assim formada justifica-se por uma razão política e em nome de
valores políticos.
17. A federação da diversidade
A soberania unifica sem reprimir a diversidade. Forja unidade sem
impor homogeneidade. Desdobrada a segurança como desígnio político
primordial da soberania, é este desígnio que se desvela imediatamente.
Daí a soberania ter sido apresentada como a resposta para a ordenação e a
pacificação num mundo diverso nas opiniões, nas «concepções do Bem»,
nas mundividências. Podia caracterizar-se o «estado de natureza» como
uma condição de conflito entre todos porque os indivíduos que o
habitavam eram diferentes sob todos esses aspectos que poderíamos
agrupar na designação diferentes, incomensuráveis e, por vezes,
incompatíveis concepções de felicidade. E não havia um padrão de bem e
de mal universal que pudesse hierarquizar ou sequer comparar as
diferentes concepções de felicidade formadas subjectivamente por cada
indivíduo. Dito de outra forma, para os teóricos clássicos da soberania no
século XVII, o «estado de natureza» era o espelho da diversidade humana
em estado bruto ou sem mediações.
Toda a comunidade se rege por bens ou fins que tenciona prosseguir. No
fundo, rege-se por algum entendimento concreto de bem. As sociedades
modernas romperam com o modelo filosófico da uniformidade e da
harmonia. Podemos dizer que as sociedades modernas se distinguem por
prosseguirem uma extraordinária gama e diversidade de bens humanos.
Ora, esses bens humanos não estão naturalmente ordenados, o que vale
por dizer que não estão espontaneamente ordenados. O Estado, no sentido
amplo do termo, existe como o tecido institucional, organizacional e
cívico que procura garantir a apropriação desses bens humanos, não
podendo em momento algum ignorar a questão do ordenamento desses
bens sem arriscar a sua própria dissolução. Ou mais rigorosamente, a
configuração concreta do Estado já reflecte de algum modo uma certa
ordenação desses bens, mas que deve ser tão pouco concreta quanto
possível. Claro que a meditação moderna procura interpor uma questão
prévia, dir-se-ia, uma questão arquitectónica: qual o bem-valor mais
fomentador da apropriação de bens pelos indivíduos, pelas famílias, pelos
grupos sociais? A resposta a esta questão arquitectónica contribuiu
sempre para diferenciar as famílias/partidos políticos porque uns dizem «a
liberdade», outros dizem «a justiça», aqueloutros dizem «a educação». A
concepção moderna de soberania, porém, parte do problema da ordem e
por isso responde: «a ordem política». É provável que, em tempos de
normalidade, quem escuta esta resposta não fique satisfeito na medida em
que ela indica um bem-valor excessivamente basilar, uma espécie de dado
adquirido e de condição já preenchida. É preciso, pois, perguntar
adicionalmente: uma ordem política assente em quê, ou que se estrutura
em torno de quê? A resposta implícita da doutrina da soberania não vacila.
Tem como pano de fundo a violência, ou pelo menos as severas
«inconveniências», do estado de natureza. Já no estado de natureza nos
apercebemos da imensidão de bens a apropriar e cuja apropriação e
diversidade provocam o conflito responsável pela violência ou pelas tais
«inconveniências». Por conseguinte, a soberania reserva-se para um
agnosticismo inflexível quanto aos restantes bens-valores que podem
auxiliar na tarefa de fomento na geração e apropriação de bens pela
«sociedade». Resigna-se a aceitar que há uma pluralidade de bens a
estruturar uma ordem política, e que esta, não só é compatível, como deve
assimilar o rawlsiano «facto do pluralismo». A ordem política soberana
prepara-se para acomodar diferentes escolhas, assim como para lidar com
diferentes necessidades e imposições. Só há um aspecto que a soberania
não pode assimilar diante de um agnosticismo indiferentista. A soberania
não pode senão insistir numa forma de poder, na sua estruturação e na
articulação com indivíduos a quem é exigida obediência condicional. E, o
que é incontornável, nessa estrutura monista, nesses parâmetros
organizadores indispensáveis para a soberania na comunidade política,
encontram-se imediatamente inscritos bens-valores, ou pelo menos nessa
estrutura monista inscrevem-se uns determinados bens-valores e
eliminam-se outros. Na sustentação da soberania ganha prioridade a
preocupação de se garantir a sua própria permanência atravessando as
oscilações de uma sociedade sempre mutável e que viceja em resultado da
existência de ordem. As oscilações são evidentemente as oscilações
sociais nos bens-valores temporalmente preferidos. Dizem respeito às
mudanças morais nos valores, nas religiões, nas representações do mundo
e da existência ou em simples preferências de gosto e de modas. A
soberania foi concebida para ser, e para querer ser, compatível com as
mencionadas oscilações, com as diferentes apropriações dos bens-valores,
em toda a sua imensa diversidade e provisoriedade.
Bodin deixou este ponto razoavelmente claro. Desde logo quando
criticou Aristóteles e a sua obsessão de só admitir o Estado em
comunidades exíguas como a cidade. Aristóteles dizia que a cidade da
Babilónia era mais uma «Nação» do que uma «República»? Para Bodin
não havia qualquer «inconveniente» nessa extensão – que só podia
preocupar alguém mergulhado no paroquialismo da Antiguidade grega, e
não certamente quem habitava um reino europeu no século XVI com
milhões de almas. Até podia ter «cem nações diversas»! Desde que
estivessem unificadas por um poder soberano, constituiriam matéria de
uma «República».246
A modernidade europeia trazia esta novidade demográfica. Primeiro, a
concentração de grandes populações sob a mesma jurisdição política com
a consolidação dos reinos. Segundo, a diversidade mundividencial dessas
populações, paradigmaticamente expressa na diversidade religiosa.
Historicamente, a solução política para a coincidência destes factos
sociodemográficos fora a solução imperial. O império era a forma política
que podia trazer ordem a uma matéria que não se inscrevia facilmente nos
cânones dos requisitos da ordem política. A soberania, sobretudo a
soberania «nacional», providenciava uma solução alternativa ao império.
E ainda nos nossos dias a discussão dos dilemas histórico-geopolíticos de
muitas partes do mundo se pode traduzir deste modo. Por vezes, fazemo-
lo de modo enganador, como se a alternativa fosse entre a «ditadura» e a
«democracia». É a face mais desapontante e até perigosa do
empobrecimento da nossa consciência do mundo, da nossa filosofia
política e do nosso vocabulário diplomático. Quando na verdade as
possibilidades que se colocam aos povos ou a territórios em certas
encruzilhadas da sua história desdobram-se em termos menos edificantes:
ou a anarquia desintegradora e violenta, ou o império repressor, ou a
soberania federadora da diversidade num contexto de ordem. Raymond
Aron assinalava bem os impasses de uma certa ideologia ocidental, mais
tarde absorvida pelo chamado nation-building, que se ia aplicando no seu
tempo à realidade pós-colonial, quando recomendava que se abandonasse
o típico evangelismo democrático, o ponto de fuga sistemático da questão
primordial da ordem. Dizia ele que «não era a função de regimes
democráticos criar Estados ou unir nações». E, não sem uma ponta de
desprezo pela infantilidade dessa ideologia, acrescentou: «Ninguém
alguma vez criou uma nação dizendo às pessoas vão e debatam.» As
divisões que os países recém-descolonizados, e outros que entravam no
caminho da modernização, apresentavam nos seus tecidos sociais
constituíam um problema a resolver, e não uma espécie de troféu numa
experiência laboratorial. Não se criaria «poder», continuava Aron, a partir
dessas divisões e o melhor que a democracia podia oferecer era
«conseguir que a unidade do Estado e da nação resistisse à permanente
rivalidade de homens e de ideias».247
Além da questão de não haver superior, a soberania nos teóricos do
século XVII repudiava igualmente a ideia de «um outro Estado dentro do
Estado».248 Os «corpos particulares», mas «subordinados» ao Estado,
como colégios, câmaras, sociedades, corporações e comunidades várias,
eram lugares de associação e de organização de interesses, capacidades
produtivas, e por aí em diante, com todo o direito de protecção jurídica.
Por seu lado, as famílias eram um tipo próprio de corpos particulares,
sendo os mais antigos e que precediam a comunidade política, um lugar-
comum de todas as teorias da soberania seiscentistas. Mais uma vez, o
conceito de soberania e as suas necessidades lógicas apontavam para a
separação entre público e privado, e, a partir daí, para a autonomia da
esfera privada. Contudo, a soberania era o garante da existência e dos
direitos destes corpos particulares. Mas daqui não se deve interpretar que a
existência e os direitos das corporações eram anteriores à ordem soberana.
Tal seria um erro. Estaríamos mais próximos da verdade se as supusermos
dependentes da vontade soberana. Tudo o que ponha em causa a soberania
era ilegítimo; logo, o uso potencial das corporações para subverter ou
esbarrar o poder soberano levava à imposição da subordinação jurídica.
Todas as relações e convenções estabelecidas livremente pelos cidadãos,
mas não consentidas (explícita ou tacitamente) pelo soberano eram
ilegítimas. Fazia-se ainda ouvir o tradicional receio da «facção» contra o
poder soberano. Daí que a soberania leve a cabo a tarefa da federação da
diversidade, por um lado, e, por outro, se mantenha a aversão à
organização jurídica e política desses corpos diversos ao ponto de
adquirirem estatuto para rivalizar com o soberano. A preferência da
soberania está no relacionamento com indivíduos. A penetração cada vez
maior da filosofia liberal no tecido da comunidade política apenas
acentuou este aspecto que foi central desde o início, a ponto de a
individualização da relação política, ou da mediação do Estado, ter
chegado até à família, a «sociedade» que as teorias da primeira vaga do
soberanismo ainda consideravam completa e prioritária na construção do
Estado. Por outras palavras, o Estado, ou a mediação providenciada por
ele, abrangeu um conjunto cada vez maior de «corpos» infrapolíticos e fê-
lo com uma persistência cada vez maior.
A lei era um instrumento central nesta operação. A lei produzida pela
soberania era a lei comum, uniforme, sem isenções, nem privilégios. Era
por essa razão que a força que suportava a lei comum tinha de ser
«irresistível», para usar uma expressão de Hobbes. Não era apenas porque
a coacção implícita e explícita da lei requeresse o recurso à força.
Condicionar explicitamente a conduta dos indivíduos que se entendiam
como seres livres, e eram reconhecidos como tal, acabava por solicitar o
uso, ou a ameaça do uso, da força. Havia ainda outra consideração a ter
em conta. Os indivíduos e os grupos tenderiam a reclamar excepções,
privilégios e isenções. Toda uma economia e uma estrutura apareceriam
para proporcionar o acesso ao soberano e assim obter essas excepções. A
luta política em grande medida far-se-ia em torno das excepções. Destarte,
a acção soberana sobre a sociedade orientava-se pela não-aceitação da
excepção, pela proibição tendencial da discriminação. E isso era expresso
da forma mais solene, mais estável, mais pública, através da lei comum
para todos. Uma vez mais, o condicionamento do comportamento dos
cidadãos gerava um efeito inequivocamente uniformizador. Mas a lei
soberana dirige-se a seres livres movidos por «uma prodigiosa diversidade
de sentimentos e de inclinações»249, em que cada um deles alimenta
múltiplos projectos, em que cada um deles, para nos radicarmos por
momentos no nosso tempo, se entende a si mesmo como um «projecto». A
lei é um instrumento central na conciliação da ordem – incompatível com
a remoção total de padrões coactivos de orientação da conduta, como nos
mostram os vários cenários do «estado de natureza» – com a liberdade,
que se expressava através desta infinita diversidade protegida pelo direito
e reivindicada pela umana condizione.
Contudo, a jurisdição soberana, de modo a produzir a federação da
diversidade, e não a repressão da diversidade, era interpretada como tendo
limites. Que limites? Marsílio de Pádua, que não estava particularmente
interessado na federação da diversidade, mas estava muito interessado em
quebrar a relação de subordinação do poder político ao poder da Igreja,
abordou este problema. Por exemplo, em aspectos de importância
fundamental, como as leis de repressão da heresia, Marsílio negava outra
autoridade para as fazer que não a do legislador humano. Mas deixava a
pairar a dúvida sobre a efectiva autoridade que um legislador humano teria
para punir a heresia. Para lidar com esta dúvida, propunha uma distinção
crucial. Os actos humanos dividiam-se entre actos imanentes (actus
immanentes) e actos transitivos (actus transeuntes). Os actos imanentes
chamavam-se assim porque não eram transferíveis de uma pessoa para
outra e não se exteriorizavam forçosamente num órgão externo. Eram
actos interiores. Correspondiam aos pensamentos, aos apetites e às
inclinações humanas em geral. Os actos transitivos eram assim
designados porque correspondiam aos actos cujas consequências recaíam
sobre outrem e eram exteriormente identificáveis e discerníveis. Ora,
segundo esta distinção, só os segundos cabiam na jurisdição soberana, ou
estariam sob o alcance da lei. Os actos transitivos eram os únicos que
podiam ser julgados pelo poder político, monopolista da coerção
organizada. Os actos imanentes sendo interiores não eram escrutináveis
por ninguém, salvo Deus. A lei soberana não podia, não devia, invadir a
esfera dos actos imanentes, ficando estes entregues ao arbítrio individual,
pelo menos enquanto preservassem a sua pura interioridade. Daqui
decorria que a heresia não podia ser punida pelo único agente com
autoridade para punir actos: o legislador humano. Pelo menos, enquanto a
heresia não assumisse uma exterioridade violenta que ameaçasse a
tranquilidade da ordem política da comunidade. As mais das vezes, a
tranquilidade da ordem era subvertida precisamente quando se exorbitava
o alcance normativo da lei e se punha a legislação a reprimir actos
imanentes.250
Com mais ou menos recursos intelectuais, um exército de teóricos
seguiria o caminho de Marsílio. Com a chegada do conceito moderno de
soberania percorreu-se esse trilho com naturalidade. Foi-se gerando um
consenso de que ninguém senão o próprio sujeito podia julgar com
conhecimento de causa a rectidão moral interna da sua acção. Os sinais
externos de um acto interno seriam sempre equívocos e incertos. A
obediência ao poder político soberano colocava-se apenas no plano dos
actos externos. A par de tantas outras divisões e separações, este problema
dividiu a jurisdição interna, que cabia apenas ao sujeito e porventura à sua
consciência, da jurisdição externa, que cabia apenas ao soberano.
Significava isto que a federação da diversidade numa ordem política
estável levada a cabo pela soberania era tarefa suficientemente árdua para
derrogar a preocupação com a vida moral dos cidadãos? O Estado
soberano devia ser indiferente à virtude? A dúvida não foi pequena e
prosseguiu durante séculos a atormentar as meditações dos teóricos e a
atenção dos políticos. Ambas as respostas possíveis pareciam adequadas.
Mas parecia que, do ponto de vista teórico, a ambiguidade seria ainda a
melhor resposta. A perspectiva do soberanismo liberal podia ser
apresentada nos seguintes termos. Quando o soberano proscreve o vício,
tal deve ser interpretado, não como um meio de prosseguir a educação
moral dos cidadãos, mas como um meio de assegurar que os cidadãos
estão protegidos uns dos outros e que a comunidade política não é
ameaçada por comportamentos destrutivos. Pelas lentes do legislador, uma
lei que proibisse algo tido por vicioso não o puniria por ser
especificamente imoral, mas por ser danoso para o público ou para os
indivíduos. A prática consciente da virtude e da rectidão moral devia estar
nas mãos da liberdade pessoal e, se fosse o caso de um liberalismo que
aceitasse a predominância moral da religião, da consciência. A liberdade e
a diversidade faziam com que a teoria e a prática política separassem,
talvez permanentemente, o bom cidadão do bom homem. O cumprimento
da lei e a bondade, a impunidade e a inocência, pertenciam a duas ordens
diferentes de consideração moral e política.251
Não é demais recapitular o sublime resultado da acção da soberania
sobre o tecido social. Impõe-lhe ordem, disciplina-o, é certo. Mas sem que
seja destruída a «diversidade natural das inclinações e dos sentimentos»,
nem a «liberdade natural na vontade» nos súbditos ou cidadãos. Muito
menos se pense que a ordem da soberania é uma redução a «uma
harmonia constante e perpétua».252 Talvez tenha sido essa a ambição de
outras filosofias políticas passadas e futuras. Como Montesquieu em
tempos disse de Thomas More, a propósito da sua utopia, que ele «queria
governar todos os Estados com a simplicidade de uma cidade grega».253
Esta é uma lição em que os apóstolos do pós-soberanismo nem sempre
meditam devidamente. Tomam a soberania como o império da
uniformidade, o que lhes repugna por viverem obcecados com a
diversidade, esquecendo que o segredo da vitalidade e estabilidade das
sociedades hodiernas é a conciliação adequada e circunstanciada entre a
ordem e a liberdade.
A soberania deve, pois, ser vista como elemento de uma estrutura
política cruciforme. Isto é, à lógica vertical da acção soberana, no
comando e na legiferação, há um plano horizontal de acção igualmente
relevante. Com fluxos de comunicação verticais e horizontais, prossegue o
trabalho de conservação do pluralismo social e de não deixá-lo deslizar
para a fragmentação caótica. É um trabalho de obtenção de um
denominador de unidade sem asfixiar as diferenças nem a liberdade. Por
esta perspectiva emerge uma tarefa essencial da soberania e um dos seus
maiores trunfos. O exercício do poder soberano não pretende transformar
os diferentes conteúdos sociais para realizar a homogeneidade social. Ou
melhor: não pretende transformar esses diferentes conteúdos da existência
para além de um certo denominador incontornável de homogeneidade.
Esta integração da diversidade é obtida através da centralização da
estrutura geral enquadradora do todo na entidade que sujeita, ou a quem
todos devem, obediência em última instância.
18. A violência e a incerteza
Na filosofia política do século XVII, as forças da desordem condensaram-
se na ideia de estado de natureza, a condição de existência extrapolítica
em que os indivíduos, ou as famílias, se confrontam como inimigos na
ausência de um juiz comum, de uma lei universal vinculativa de todos, de
relações naturais de mando/obediência externas às estruturas familiares,
de um executor de normas emanadas de um qualquer padrão de justiça.
Mais tarde ou mais cedo, de um modo ou de outro, a dinâmica do estado
de natureza encaminhava a situação global para a violência difusa. A
soberania punha um ponto final ao estado global de insegurança
sustentando uma ordem política. Já vimos o papel que a lei desempenhava
nessa operação. Mas a lei tinha de ser executável. Tendo o cenário do
estado de natureza como fundo, o uso da força no cumprimento ou
execução da lei era indispensável. Enquanto elemento primordial da
ordem política, a lei fazia-se acompanhar pela violência que calava a
violência. Não era uma simples conjectura. Entre os conteúdos do contrato
social fundador da soberania estava a disponibilização do poder e da força
de cada indivíduo para se cumprir a vontade do soberano na sua missão de
garantir a segurança de todos. Se a lei se fazia acompanhar pela violência
na punição, sendo a lei um elemento da ordem, isso não podia deixar de
significar a admissão de que a violência era um ingrediente na alquimia do
composto da ordem política. Mais, a soberania tinha o condão – o direito –
de transformar o sentido moral dos actos humanos mais violentos. Alguém
com as credenciais éticas, religiosas e políticas de Barbeyrac não se
encolheu na conclusão de que a soberania era um poder capaz de inocentar
o homicídio – na punição judicial ou na situação de guerra soberana.254
Ecos de Maquiavel que defendera precisamente o carácter criativo da
violência devidamente usada, segundo uma certa economia e
racionalidade? O que se podia retirar desta admissão era a legitimidade da
soberania para usar organizadamente a violência. Esse uso vinha com a
cobertura dada pelo direito transferido pelo indivíduo, o tal refugiado da
violência que o próprio ajudara a generalizar e a desorganizar.
Hobbes sintetizou para a posteridade os dados do problema tal como o
soberanismo o via. Os passos de Hobbes foram amplamente comentados
por multidões de especialistas e eu próprio também já me dediquei a esse
exercício noutro lugar. Aqui quero apenas chamar a atenção para o
problema intrincado da incerteza. O negrume da condição do estado de
natureza é gerado pela violência directa dos indivíduos uns sobre os
outros. Mas a universalidade desse negrume é conferida pela
«desconfiança», para usar a expressão de Hobbes. A precaridade da
existência introduz uma incerteza radical paralisante quanto ao futuro do
destino de cada um. Todas as actividades humanas que constroem o
mundo onde o indivíduo edifica a sua morada se anulam. Naquilo a que
chamamos a economia, desaparece o investimento, uma escolha
económica central projectada para o futuro. O resultado é a miséria e a
escassez. Na ciência, estando ausentes as condições de estabilidade e de
previsibilidade mínimas da vida minam as condições de entrega à
investigação dos fenómenos e problemas, apenas ficaremos nas mãos da
ignorância e da escuridão. Hobbes inclui também nesta estagnação
indigente as artes e as letras. Daqui segue-se o mesmo para os
desenvolvimentos tecnológicos. Vidas duras, desconfortáveis e
vulneráveis são o resultado da estagnação tecnológica, além de a
tecnologia ser uma alavanca do conhecimento, por via do aperfeiçoamento
do equipamento científico, e o seu marasmo tornar impossível escapar à
ignorância. Em suma, num contexto de desordem os bens da vida
civilizada, as zonas inofensivas e criativas de expansão dos movimentos
humanos (criatividade, inteligência, racionalidade, paixões várias), não
são gerados nem transmitidos. A vida, além de ser violenta, é miserável
quer do ponto de vista material, quer espiritual. Economia, ciência,
cultura: todas falidas. Mas em condições de ordem, todas podem florescer,
e na medida que constroem um mundo aprazível e desejável, constroem
também um mundo menos violento. São alternativas ao mundo do
fanatismo religioso, da soberba aristocrática e do delírio «republicano» –
tudo opções perigosas porque conflituosas.
Juntando as pontas soltas: no estado de natureza temos violência e
incerteza difusas. A soberania é o instrumento de resolução regrada dos
conflitos humanos no seio de uma ordem política autónoma. Mas, ao
mesmo tempo, percebemos que a soberania é igualmente um instrumento
de reposição da certeza. Ou, mais rigorosamente, da certeza possível, da
redução viável da incerteza – deslizando da incerteza insuportável para a
geração dos bens humanos nas tais zonas de expansão dos movimentos
humanos. Assim, se a soberania estava associada, nem que fosse
metaforicamente, a uma instância superior de supremacia, seria preciso
complementar a posição cimeira com a posição das profundezas. A
soberania aparecia a cumprir a função de uma âncora. Uma âncora de um
navio no meio da tempestade. Uma âncora para os comportamentos de
todos os indivíduos/cidadãos, mas também para as expectativas deles, para
a formação de expectativas relativamente ao futuro. Em parte, é dessa
função que se derivava uma certa inimputabilidade e inatacabilidade da
soberania.
Um outro paradoxo da soberania se apresenta, este não-canónico. Se a
soberania é vontade livre, movendo-se, é certo, dentro dos limites
impostos pelos princípios políticos, morais e jurídicos fundamentais, então
a decisão política soberana perde previsibilidade. Esta capacidade de agir
imprevisivelmente ao lidar com o imprevisível é uma fonte inquestionável
de certeza relativa. Há um instrumento reconhecível, escrutinável,
descritível, para lidar com a incerteza radical dos fenómenos.
Na ordem, que é jurídica e que é política, fundada pela soberania e
sustentada pela soberania, a hierarquia de vontades e de normas jurídicas
é, sem dúvida, uma estrutura de previsibilidade. As relações horizontais e
verticais entre os elementos dessa ordem são determinadas juridicamente.
É a lei que garante e orienta todas essas relações. E, apesar de mutável,
apesar de frequentemente mutável, a lei é um dispositivo de
previsibilidade e, por conseguinte, de redução da incerteza. Todavia, trata-
se de uma ordem que é unificada por uma vontade superior que comanda
ou autoriza as restantes vontades inferiores da estrutura – a vontade
soberana. No vértice do sistema, a vontade que aí reside nunca poderá ser
inteiramente previsível. Pelo contrário, é essa vontade que condensa o
elemento de imprevisibilidade – de discricionariedade no sentido mais
sistémico – de que a ordem jurídica, na óptica da soberania, não pode
prescindir. A «vontade imprevisível», disse Heller, «não pode ser excluída
juridicamente em nome da segurança jurídica».255 No contexto de
circunstâncias imprevisíveis, e de radical incerteza, o Estado e a sua
vontade soberana não podem excluir a acção que não está prevista, nem
autorizada, nem imaginada pela lei. Quer isto autorizar o levantamento de
limites ao arbítrio soberano? A vontade soberana é arbitrária? Não.
Primeiro, porque as funções atribuídas à soberania – desde a garantia e
protecção da ordem até à garantia e protecção dos direitos dos indivíduos
– introduzem desde logo um círculo inicial de limite. Segundo, porque a
coerência da ordem, a estruturação consistente do Estado enquanto pessoa,
depende da validade da lei e de toda a ordem jurídica, a qual, por sua vez,
depende não apenas na «facticidade» da vontade exercida no vértice do
sistema, mas também na «idealidade» dos princípios jurídicos
fundamentais que são positivados por actos de vontade no sistema.256
19. A majestade vs. A soberania da razão
Sendo a associação de seres humanos necessária, dada a busca de auto-
suficiência, impossível de obter ao ser humano isolado, ou mesmo em
pequenas unidades como a família ou a aldeia, então conclui-se que a
ordem dessa associação não é viável sem um ponto de coordenação e de
direcção. É necessária uma instância que coordene a associação nos
movimentos dos seus elementos e que a dirija para um propósito ou para
uma finalidade, que pode ser o bem comum, a segurança, o crescimento
económico, a expansão militar, a adoração dos deuses e por aí em diante.
Numa palavra, a ordem da associação de indivíduos não é viável sem uma
instância de governação.257 
Esse ponto de coordenação e de direcção adquire, pois, o estatuto de
princípio de ordem. É por ali que a ordem começa e é ele a referência fixa
desta. Com o hipotético colapso desse ponto, a ordem esvai-se também. A
ideia de soberania começa com a afirmação de que esse ponto tem de ser
superior – de algum modo, pois pode haver diferentes possibilidades – à
associação, mais elevado do que ela. A noção de soberania parte deste
impulso para hierarquizar ou para destacar. No entanto, é igualmente aqui
que vemos a possibilidade imediata de a soberania se converter numa
justificação do abuso do poder e, portanto, no seu contrário – um princípio
de desordem. Se o ponto de referência tem de se superiorizar à associação
para constituir um princípio de ordem, então dir-se-ia que quanto mais
superior, maior será o coeficiente de resistência aos inimigos da ordem ou
aos factores de desagregação da ordem. O que revela imediatamente uma
falácia. Nesse sentido, temos aqui um novo problema a resolver. De
acordo com o pensamento que aflui à noção de soberania, afastamos a
relação horizontal por ser incompatível com o mando, ou com a
coordenação e direcção. Também não podemos aceitar a relação
totalmente vertical, a que separa o zero do infinito, por se converter num
princípio de abuso horrível do poder e gerador de todas as patologias
políticas a ele associadas e, por conseguinte, num princípio de desordem.
Ora, não podendo aceitar nem uma nem outra solução, que critérios ou
factores discriminam e avaliam todas as soluções intermédias que se
afiguram?
O desencanto liberal com os perigos da soberania quando esta era
apropriada para propósitos absolutistas declarou-se com toda a
justificação. E daí não ter sido surpreendente o passo ulterior – o
desencanto com a soberania tout court. Ninguém o iniciou, expressou e
traduziu mais elegantemente do que François Guizot. Dos monumentos
intelectuais que a França gerou no século XIX, e foram tantos em tantos
domínios, muitos foram votados ao abandono quando veio o século XX.
Como as ruínas abandonadas que vão sendo ocultadas pelo matagal que
por toda a parte vai crescendo, também um grupo notabilíssimo de
gigantes intelectuais foram desaparecendo da vista e do interesse público.
Guizot foi certamente uma dessas estátuas desmembradas enroladas por
raízes de árvores e camufladas pelo musgo do desinteresse mais ou menos
desinteressado. Além de um historiador pioneiro, que foi ensinando dentro
e fora da sala de aula, assumiu responsabilidades governativas sob Luís
Filipe durante a chamada Monarquia de Julho. Um símbolo máximo da
«reacção burguesa» para Marx nas páginas do Manifesto do Partido
Comunista, Guizot dedicou a sua vida política a tentar estabilizar em
França uma monarquia liberal parlamentar, estabelecendo um governo
representativo, numa sociedade com direitos consagrados e protegidos e
dedicada à prosperidade burguesa. Na lenda – apologética e detractora –
Guizot seria o primeiro a fazer a famosa exortação do enrichissez-vous,
que era na sua versão integral uma exortação bem menos materialista:
Éclairez-vous, enrichissez-vous, améliorez la condition morale et
matérielle de notre France: voilà les vraies innovations.258 Cento e
cinquenta anos depois seria a vez de Deng Xiaoping imitá-lo com os
resultados que se conhecem. De famílias huguenotes numa monarquia
católica, Guizot foi uma das maiores referências do liberalismo europeu
no século XIX. E teve sempre presente o perigo do iliberalismo. O pai
Guizot, de nome André, durante a Revolução Francesa alinhara com os
girondinos e pagou o respectivo preço durante o Terror jacobino. Foi
executado em 1794. Guizot amava profundamente a França e fez mais do
que ninguém para dar a conhecer a sua história. Mas via na experiência
histórica inglesa, sobretudo a partir do século XVII um manancial de
recursos culturais, políticos e constitucionais de que a França carecia para
se estabilizar a si mesma no encontro historicamente inédito entre a
«igualdade de condições», inovação intelectual dele e que tanta escola
faria no seu século, a moderação do poder e a protecção das liberdades.
Como exprimiu e traduziu Guizot o tal desencanto com a soberania?
Contrapondo à soberania entendida no seu sentido corrente e de
inclinações inexoravelmente tirânicas, a soberania da razão. Na
formulação completa, a soberania da razão, da verdade e da justiça. Se a
formulação pode ser apresentada na sua versão contraída – e que
apresentei em primeiro lugar – é porque a verdade e a justiça decorrem da
razão no governo dos povos. Mas a soberania da razão também era um
lema engenhoso para atirar a soberania para o caixote do lixo da história
juntamente com os demais instrumentos iliberais que o mundo conhecera.
Acima de tudo, a soberania da razão abria o caminho para justificar a
obediência política que não fosse sujeição a uma vontade alheia, o
persistente problema dos Modernos. Só a razão justificava plenamente,
sem compromissos atentatórios da liberdade pessoal, a autoridade política
sobre os seres humanos. Perante um conflito insanável e sangrento entre,
de um lado, a soberania do povo, ou da nação, e, do outro, a soberania do
rei, Guizot e os outros Doctrinnaires, sempre ansiosos por um justo meio
ou por se evadirem a uma escolha política binária, encontraram na
soberania da razão uma saída. Antes, porém, de desmantelar a soberania,
a soberania da razão permite-nos perceber como existe um elemento
subterrâneo, dificilmente extirpável e que percorre o imaginário político
de partidários e adversários da soberania: que a soberania é, ou deve ser,
ou não pode ser autorizada a ser, uma sede de formação e dicção da
verdade.
Em Guizot, a soberania da razão escondia a tese fundamental de que a
soberania era a sede primordial de formação e de dicção da verdade
pública. Mas para isso a organização dos poderes públicos e a sua
articulação com a sociedade civil tinha de ser calibrada para essa função.
Assim, temos a deliberação pública e a discussão livre para que os poderes
chegassem à/formassem a verdade (e à/a justiça). O escrutínio da acção
dos poderes políticos para pô-la à luz da publicidade e corrigir os erros (e
as injustiças). E a imprensa livre para toda a sociedade ser mobilizada, e a
«opinião pública» esclarecida, com o fito do vislumbre da verdade e da
justiça e da correcção/prevenção do erro e da injustiça. A instituição
central da forma política correspondente à soberania da razão era o
Parlamento. Enquanto órgão deliberativo era o Parlamento que dava corpo
à publicidade dos assuntos políticos, o que os fazia recomendar-se ao
sentido de razão e de justiça que havia em todos os homens. A penumbra
escondia a resolução política e a formação da vontade e, assim, permitia-
as afastar-se do sentido de razão e de justiça distribuído de modo
razoavelmente igualitário pela população. A luz da publicidade garantia a
comunicação entre a opinião pública e o poder. Era também o órgão onde
tinha lugar a discussão. Idealmente, seria um debate, não dividido em
facções desinteressadas em persuadir as outras, impermeáveis à persuasão
das outras, apenas aguardando a contagem dos números das votações, mas
antes em partes de uma conversação ou de uma deliberação. O norte
orientador dessa discussão era evidentemente a procura da verdade
pública e o esclarecimento do direito.259 Destarte, a tripartição dos
poderes, e o respectivo mecanismo de divisão interna do poder e de
controlo recíproco do governo, eram tidos por insuficientes na tarefa de
evitar o abuso de poder e proteger a liberdade individual. Abandonada a
lei natural e a autoridade divina como elementos suficientemente
relevantes e activos para restringir o exercício do poder governamental, à
medida que concepções protopositivistas adquiriram popularidade e
sanção filosófica, o escrutínio popular substituiu a transcendência (da lei
natural ou de Deus) no obstáculo à concentração e ao abuso de poder. Daí
extraíram-se ao longo do século XIX, lideradas pelas de Guizot e dos
Doctrinnaires, as teorias da imprensa livre como correspondendo a um
quarto poder, que, presumia-se, limitaria o exercício dos outros três. Mas,
na verdade, a tendência para se acrescentarem poderes aos três, ou quatro,
poderes clássicos na composição de um todo auto-restritivo não parou de
crescer.
Na cabeça de Guizot, a soberania da razão era o antídoto mais perfeito
à crueza e presença políticas dessa ilusão chamada soberania popular.
Veja-se como ele descrevia a soberania da razão em toda a sua
magnífica... abstracção.
Este soberano colectivo não tem forma, nem residência, nem
majestade. Não pode sequer ser visto no povo vivente que trabalha
nos campos e comerceia nas ruas. É o povo, mas apenas como uma
ideia, um povo abstracto que não pode ser ouvido nem visto, um povo
a quem apenas a teoria atribui um ser e uma vontade.260
A soberania da razão era um ente intangível e inatingível que pairava
acima da sociedade e dos titulares do poder como um padrão inscrito num
mundo das ideias, ou nos corpos celestes. Para quem queria avançar uma
teoria do poder político, esta retirada para as nuvens podia não ser grande
ideia. Guizot pensava que minimizaria este problema se distinguisse a
«soberania de direito» da «soberania de facto». Os governantes, mais no
singular, ou mais no plural, exerciam o poder? Era um facto. Sem
atenderem ao direito nem à razão? Tristemente, era uma experiência
factual de todas as épocas. A soberania de facto tinha-se sempre, de um
modo ou de outro. Mas a soberania de direito, em que a razão levava a
melhor sobre todas as vontades, nunca era possuída por algum ser humano
ou por alguma instituição humana. Afinal de contas, o homem era
imperfeito e falível. As suas obras também o eram. A soberania de facto,
por conseguinte, podia ser consentida se os seus titulares se
aproximassem, num compromisso moral, da excelsa norma da razão, do
direito e da verdade, que não decorria nem dependia do consentimento
popular. E podíamos fazer muito na organização do regime para
institucionalizar essa aproximação. Podíamos promover a ascensão das
«capacidades», isto é, das inteligências, experiências, preparações
pessoais que ocupassem os lugares de representação política. Podíamos
evitar institucionalmente que os radicais, irascíveis, impreparados,
demagogos, incompetentes, corruptos representassem o povo. Apesar de
tudo, Guizot queria que os notáveis fossem escrutináveis e removíveis, se
não estivessem à altura dos requisitos do interesse público. À promoção
das «capacidades» acrescia naturalmente a divisão de poderes, a
monarquia limitada, o bicameralismo parlamentar e a imprensa livre. Tudo
isto mais não eram do que princípios derivados da soberania da razão.261
A soberania da razão era a soberania da soberania. Mais tarde, com
outros traumas e diferentes recursos e preconceitos mais sofisticados, as
ideias que a soberania da razão fez nascer autorizariam, por um lado, a
consideração da soberania popular extirpado de toda a concretude e como
apenas um postulado das condições de possibilidade do governo
constitucional; e, por outro lado, a entrada em cena no palco das ficções
mais aplaudidas o mundo da pós-soberania. Um leitor de Guizot avançará
a seguinte objecção: as queixas da soberania e das suas inclinações
tirânicas eram, na realidade, queixas da soberania popular concreta, e não
de qualquer outra forma de soberania. E sem dúvida que terá uma grande
parte da razão. Foi o espectro do «despotismo da liberdade» materializado
no Terror jacobino da Revolução Francesa que lhe inspirara esta rejeição.
Mas não é menos verdade que Guizot via o absolutismo tendencial da
soberania como inerente ao próprio conceito e tal já se manifestara na
prática das monarquias ditas «absolutas». Muitos anos depois, Bertrand de
Jouvenel faria uma observação idêntica. Não fora uma arbitrariedade da
História que a soberania absoluta da democracia jacobina tivesse sucedido
cronologicamente à soberania dos Bourbons.262 Com efeito, na própria
Revolução Francesa a vertigem dos acontecimentos, a violência diária e a
imprevisibilidade que tomou conta do rumo da História fez alguns sonhar
com uma soberania da soberania, um elemento externo à soberania que
exercesse sobre ela a mesma soberania que exercia sobre a sociedade na
formação da ordem política.
Removida a transcendência, que serviu de morada aos elementos
externos à soberania, que recurso restava ainda? Na Revolução das
«Luzes» a resposta (aceitável) só podia ser uma: a razão. Foi Poultier
Delmotte, deputado da Convenção que se recusou a juntar-se aos
jacobinos, aos cordeliers, ou aos girondinos, a notabilizar-se por uns
momentos fugazes com a proposta. Para ele era uma melancólica
experiência da História que o conceito de «vontade soberana» seria
sempre demasiado tentador para não ser constantemente subvertido por
quem desejava mandar. A «vontade geral», inventada por Rousseau e que
apaixonara a Revolução, era o caso mais paradigmático de uma noção
política que estava ali para ser corrompida e posta ao serviço de homens
cruéis e tirânicos. Por tudo isto, Poultier Delmotte declamou que «a razão
é o único verdadeiro soberano entre os homens; e só à razão pertence o
direito de fazer leis». A «razão universal» era o único «soberano legítimo
na terra» e nada mais havia de princípio fundamental onde alicerçar a
nova Constituição.263 Havia demasiado desejo de violência e medo da
invasão externa na Convenção para lhe darem ouvidos.
Seja como for, e como que a sublinhar o movimento de formação da
verdade na soberania da razão, encontramos em Guizot a introdução de
um complemento necessário à organização institucional do poder: a
liberdade de imprensa. De resto, este ponto tornou-se um lugar-comum da
filosofia política dos Doctrinaires, nome que designava o grupo de
notáveis – políticos e intelectuais – que se aliaram à monarquia pós-
napoleónica. Ocupando a posição do juste millieu, batiam-se contra os
grupos radicais republicanos, de um lado, e contra, o grupo reaccionário
de retorno à política do Trono e do Altar em rejeição total do legado da
Revolução, que também orbitava em torno dos reis Bourbons da
Restauração, mas que seriam definitivamente derrotados com a Revolução
de 1830, com a queda de Carlos X e com a instauração da Monarquia de
Julho.
Porque era a liberdade de imprensa um elemento indispensável do
parlamentarismo e do governo representativo? Porque era a liberdade de
imprensa um indispensável pilar da soberania da razão? Na doutrina dos
doctrinaires e de Guizot, a imprensa livre convertia-se numa verdadeira
instituição política porque a divisão dos poderes tradicionais não bastava.
As teorias da soberania anteriores revelavam, com prontidão ou a
contragosto, que a separação do poder legislativo, executivo e judicial não
era suficiente para evitar a acção avassaladora do Estado, nem para
prevenir o erro político, quando aquela era inspirada por uma vontade
hegemónica. Mais tarde, com a ascensão do «Estado administrativo» o
problema político da acção avassaladora do Estado sem escrutínio tornaria
ainda mais débeis as credenciais da divisão dos poderes tradicionais. Daí
que um quarto poder tivesse de ser mobilizado para se juntar aos três mais
velhos e funcionar como um outro travão ou limite ao abuso do poder
político.
Como é que a imprensa (livre) faria isso? Através da reprodução
massiva e de alcance, em princípio, universal dos bens que o parlamento
gerava: publicidade e discussão. Com a imprensa livre essa publicidade
aparecia aos olhos de efectivamente todos os cidadãos, que se tornavam
agentes de controlo do abuso de poder, da corrupção do governo e do erro
político. Com três poderes apenas não se operava a limitação do Poder.
Mas com quatro, tendo o quarto uma origem e campo de acção social, a
promessa originária da teoria da separação dos poderes poderia ser
finalmente cumprida. Porém, não era apenas a colmatação de uma
carência teórica. Era o reconhecimento de uma «necessidade social». O
devir histórico da «igualização das condições», ou da democratização da
sociedade, criara condições sociais de exercício político completamente
diferentes. Agora, um vazio fora deixado pelo colapso das instituições
intermédias às quais Montesquieu atribuíra um lugar destacado no regime
monárquico do Ancien Régime, com a função de moderar o poder régio.
Curiosamente, essas novas condições sociais perfeitamente piramidais,
com um vértice destacado no alto, representando o governante, a pairar
acima de um plano raso dos destinatários do poder, foram primeiro
identificadas por Mirabeau na sua correspondência secreta com Luís XVI
nos primeiros anos da Revolução. Depois de ter liderado o Terceiro-
Estado na revolta dos Estados-Gerais contra o rei, Mirabeau defendeu a
aliança do rei, ainda e sempre indeciso e receoso, com a Revolução. Esta
produzira as condições sociais ideais para o exercício de um poder
monárquico forte. Era o projecto presciente de «nacionalizar» a
monarquia. Contudo, antes de nascer a primeira monarquia «nacional»,
primeiro morreu Mirabeau e depois morreu o rei.264
Ora, o sonho dos partidários do poder régio forte – e Mirabeau, não sem
razão, via na debilidade do poder executivo a causa constitucional do
descarrilamento dos dois primeiros anos da Revolução – era o pesadelo
dos Doctrinaires, herdeiros do Comité de Salvação Pública no governo
convencional, da ditadura e do império de Napoleão, e coetâneos dos
desejos reaccionários absolutistas de Joseph de Villèle e do seu grupo.
Antes de Tocqueville, a reconstituição de estruturas que se assemelhassem
nas funções às entretanto perdidas instituições intermédias era uma
«necessidade social» em tempos democráticos. Caso contrário, os tempos
democráticos apenas trariam a perpetuação do abuso do poder, fossem
quais fossem os seus titulares. Trariam a omnipotência do governo perante
uma sociedade essencialmente indefesa. A imprensa era uma dessas
estruturas. Talvez a mais importante. Pelo menos, era a que podia
imediatamente assumir-se como tal. Podia assim ser uma espécie de
garante derradeiro dos direitos dos cidadãos. Mas ainda teria uma outra
tarefa igualmente determinante. Numa nação livre, com «igualdade de
condições», as leis decididas pelo poder político tinham de obter uma
aceitação extraordinária. Além do processo político formal, as leis tinham
de ser aceites pelos cidadãos. Caso contrário, não passariam de letra
morta. Assim, surgia um perigo que só a imprensa livre, e a publicidade e
discussão cívica que ela fomentava, podiam debelar: o de se colocar em
contradição as leis e a consciência pública.265
Não há como negar que a concepção liberal do papel desempenhado
pela imprensa livre incluiu desde muito cedo a exigência de um serviço à
cidadania própria de um regime das liberdades, da representação e por aí
fora. Para não nos cingirmos a Guizot, nem aos Doctrinaires, tome-se
como exemplo Jeremy Bentham, o influentíssimo pensador inglês, um dos
progenitores do utilitarismo, divulgador máximo do princípio «a
felicidade do maior número de pessoas»266 e fundador do infame
panopticon, a experiência prisional de vigilância permanente dos
movimentos dos prisioneiros. Na sua teoria política, a liberdade de
imprensa aparecia também como um complemento necessário às práticas
da publicidade e da discussão que o sistema parlamentar tinha trazido para
a política. Como vimos, a liberdade de imprensa maximizava a
publicidade dos actos do Estado e acentuava a discussão política. Forçava
a correcção dos erros do governo, que na sua ausência seriam apenas
perpetuados ou ignorados. Bentham acrescentava às funções políticas da
imprensa livre a punição dos titulares de cargos públicos, que agora
ficariam sujeitos a um tribunal que jamais se vergaria às conveniências
dos poderes fácticos.
O realismo de Bentham levava-o ainda mais longe. Qual era, afinal de
contas, depois de toda a retórica descontada, a diferença entre um governo
despótico e um governo que não era despótico? A resposta, para ele, era
simples: a faculdade da sociedade resistir às suas investidas. Por outras
palavras, a capacidade de o povo resistir à força de um governo e de
mudá-lo, se fosse preciso. Um governo não despótico seria aquele que
receasse a ameaça popular de resistir. Mas o exercício dessa faculdade
pressupunha uma «disposição» ou «disciplina» – a quase proverbial
«vigilância». Por conseguinte, numa sociedade liberal cabia à instituição
social, que a imprensa livre verdadeiramente era, prosseguir, não só a
discussão livre e irrestrita de ideias e de julgamentos políticos; não só a
«instrução» nos assuntos públicos que o povo requeria e que não
encontraria em mais lado algum; mas também lhe cabia trazer a
«agitação» – a sinalização pelos vários meios ao seu dispor dos riscos a
que o povo estaria neste ou naquele momento exposto. Só esta «agitação»
do julgamento político do povo, e, convenhamos, a sua ira e violência,
podia mobilizar um poder suficientemente poderoso capaz de travar o
poder.267
A tarefa que Bentham, Royer-Collard, Guizot e outros atribuíam à
imprensa livre, associada à derrocada histórica da autoridade tradicional
de várias instituições, que precisamente em virtude dessa autoridade eram
sedes de veridição ou de formação do verdadeiro, operou uma gigantesca
transferência dessa autoridade para as instâncias mediáticas – jornais,
primeiro; rádio e televisões, posteriormente. Num dos episódios mais
marcantes da história das fake news numa sociedade democrática, a
célebre transmissão radiofónica da «Guerra dos Mundos», por Orson
Welles, uma das ouvintes inteiramente persuadida pelos relatos da invasão
dos marcianos, uma senhora de Indianápolis, diria mais tarde que saiu a
correr de casa ao ouvir as «notícias». Foi a uma igreja e interrompeu a
cerimónia religiosa que decorria. E gritou que o fim do mundo chegara:
«You might as well go home to die. I just heard it on the radio.»268
Ora, esta tarefa foi posta nas mãos da imprensa na decorrência de um
entendimento de que a soberania ao ser exercida é sempre uma sede da
formação do que é verdadeiro e que a soberania enquanto tal tem uma
relação política com a verdade pública. Os riscos desta relação tornam-se
cada vez mais evidentes.
A dupla preocupação liberal com a genética despótica da soberania, por
um lado, e com o perigo resultante de a soberania ser uma sede de
veridição, por outro, apareceu com uma força quase irresistível pela voz
de um gigante das ciências jurídicas modernas, o austríaco Hans Kelsen,
cuja inimizade intransigente para com o conceito de soberania já tive
oportunidade de fazer notar. Vimos que Kelsen queria extirpar da
consciência europeia a própria noção de soberania. Em sua substituição
falou, não sem nos confundir quanto à força da intransigência, da
soberania da ordem jurídica ou do ordenamento normativo. Nem sequer
era um conteúdo concreto possível das normas que podia ser soberano,
porque se assim fosse ainda estaríamos no plano da identificação de um
conteúdo normativo com o poder soberano – seria ainda a «verdade»
como soberania, ou a soberania como formadora de uma verdade. Note-se
que o «positivismo jurídico» não aceitava a soberania como sede de
formação da verdade em qualquer dos dois sentidos da palavra formar.
Não há formação do verdadeiro no sentido de dar forma ao que se recebe
do exterior e depois se reproduz nessa forma própria; nem há formação do
verdadeiro no sentido de dar forma genética ao verdadeiro, isto é, no
sentido de ser a origem do verdadeiro, de o produzir ou gerar, dando-lhe
uma força ajustada ao exercício da soberania ou ajustada à ordenação de
uma comunidade política.
20. A neutralidade soberana
Se a soberania é um lugar de formação e dicção do verdadeiro, isso
significaria que a voz da soberania colidiria necessariamente com as
múltiplas vozes, sempre diversas, da sociedade que está sob a sua
jurisdição. Há uma diferença fundamental entre a voz da soberania e a voz
dos indivíduos e dos grupos sociais. A primeira determina o que é
publicamente verdadeiro e, ao fazê-lo, aniquila as pretensões de verdade
das vozes sociais, ou, pelo menos, das vozes que pronunciam algo em
contradição com a verdade soberana. Porém, a soberania que é erigida
para garantir a paz e a segurança num tecido social heterogéneo e plural
pode tornar-se uma fonte de conflito contradizendo a sua própria raison
d’être.
Os teóricos da soberania nos séculos XVI e XVII consideravam o conflito
entre opiniões com pretensões de verdade uma causa maior dos conflitos
violentos. As concepções do Bem, ou as mundividências, ou as opiniões
sobre o que é justo e injusto, sagrado e profano, bom e mau, estão
destinadas a multiplicar-se e fragmentar-se quando não são sujeitas à
repressão generalizada. Ou temos a tirania silenciadora, a paz dos
cemitérios ou do campo de concentração; ou o conflito violento e
sangrento do choque das opiniões, a cacofonia anárquica convertida em
ferro e fogo. Este dilema que muitos ainda aceitam como retratando a
condição política em que se encontram pelo mundo fora, é tido em
consideração como um diagnóstico de um certo período histórico a que é
preciso escapar. Logo, a soberania aparece como conceito estruturante de
uma solução que simultaneamente repudie a tirania e impeça a guerra
civil. De entre o infinitamente contínuo que aparece entre esses dois pólos
detestáveis, nem todas as soluções são ética e politicamente plausíveis.
Nem todas são ética e politicamente aceitáveis.
Daqui se concluiu que a solução genérica pressupunha um soberano, ou
uma sede da soberania, situados fora do conflito. O juiz supremo
dirimente do conflito, e o executor da tarefa de pacificação da sociedade,
tinha de ascender acima das partes (potencialmente em conflito). Se as
partes corporizavam opiniões contraditórias, então a sede da soberania não
podia acrescentar mais uma opinião à cacofonia das opiniões em conflito.
Fazendo-o, dois resultados inevitavelmente ocorreriam. Ou a verdade
ditada pela soberania era rejeitada pelos restantes agentes e a
desobediência, e consequente dissolução, do soberano teria lugar. Ou a
soberania se encarregava de reprimir as restantes opiniões para não haver
oposição à sua, convertendo pelo caminho os seus súbditos, que deviam
ser o objecto da sua protecção, em alvos da sua violência aterrorizadora.
Qual foi então a solução proposta pelos primeiros teóricos modernos da
soberania? A soberania neutra. A soberania sem opinião. A ausência de
opinião garantiria a imparcialidade e a percepção pública de
imparcialidade. Como pilar do Estado moderno, a soberania que parecia
anular-se a si mesma enquanto sede da formação da verdade, constituindo
o Estado neutro, proclamava que não professava nenhuma religião em
particular e aceitava a verdade de todas. Ou mais rigorosamente: aceitava
o estatuto de verdade privada de qualquer religião, mas recusava o
estatuto público de verdade a qualquer uma das profissões religiosas. Por
outras palavras, neutralizava a dimensão de verdade pública de todas as
religiões, ao mesmo tempo que protegia os que viviam a verdade privada
da sua religião.
O contexto medieval fornecera um quadro de aceitação, pelo menos no
plano proclamatório, de uma autoridade espiritual – a da Igreja. Tivemos
até a oportunidade de espreitar para os conflitos que a tentativa de fazer
estender a autoridade espiritual do Papa a alguns cantos do mundo
político. E fiz notar como desses conflitos brotou uma reflexão
encaminhada para o conceito de soberania. Com a Reforma Protestante, a
autoridade espiritual trans-soberana desfez-se. Depois de um processo
confuso e violento, procedeu-se como solução à nacionalização da
religião. A nação homogénea guardou a religião que escolheu e que diferia
da das outras nações suas vizinhas. O processo que se seguiu de laicização
das sociedades modernas desfez o resto que ainda sobrava à autoridade
trans-soberana. Mas outras autoridades morais a substituíram. A questão
da formação da verdade não abandonaria tão facilmente a condição
política da humanidade. Realidades novas como a opinião pública e a
imprensa livre não seriam senão fenómenos manifestantes do mesmo
problema. O lugar da verdade na sociedade política não se moveria
facilmente, nem se privatizaria com um estalar de dedos. A soberania foi
a resposta tipicamente moderna a este problema político. E foi dada no seu
ponto máximo de clareza e de ramificação por Thomas Hobbes.
Hobbes foi pura e simplesmente o filósofo político mais influente e
destacado do século XVII. O alcance da sua obra e o modo como ainda hoje
interfere nas nossas considerações filosóficas em torno da questão da
natureza humana, do poder, do Estado, da liberdade, do medo e da glória,
muitas vezes sem sequer nos apercebermos de que estamos sob a sua
tutela, elevam-no a um panteão ocupado por muito poucos nomes na
história da civilização europeia. De famílias muito humildes,
provavelmente com uma infância infeliz, o «corvo», como era conhecido
pelos amigos, só foi arrancado a uma vida de miséria graças aos seus dotes
intelectuais. Ainda muito novo, os estudos foram o passaporte para deixar
a pequenez e pobreza de Malmesbury e passar o resto da vida entre a
meditação e a educação dos descendentes de grandes casas senhoriais
inglesas. Levou uma existência celibatária, contida nos prazeres dos
sentidos, em que a escrita apareceu já muito tardia na vida. Nem por isso
foi poupado às atribulações próprias de quem se envolve na vida política
quando os tempos são de imoderação, violência e guerra civil. Escrever
livros de filosofia política é um modo de participação na vida política, por
muito que o filósofo queira parecer retirado. Sobretudo em tempos de
imoderação, violência e guerra civil. Porquanto na filosofia política se
reflecte sobre a justiça, a liberdade, a igualdade, as melhores leis, o Estado
bem organizado, a tirania, a ruindade dos povos, a guerra, a paz – tudo o
que está em questão nos períodos de crise aguda.
Vimos que o propósito de Hobbes, tal como o de Bodin, era o de
teorizar e justificar uma ideia de ordem política invulnerável à violência
da guerra religiosa. Os actos humanos não eram separáveis das opiniões
que formavam. Nada de muito sofisticado se dizia quando se punha as
opiniões como causas da acção, não obstante as opiniões serem
racionalizações de desejos. No caso das crenças religiosas, para Hobbes,
estávamos na presença de racionalizações/verbalizações de um desejo
primordial, ou mais rigorosamente, do inverso do desejo – uma aversão.
Tratava-se do medo dos poderes invisíveis. Hobbes reduzia a religião a
uma paixão elementar. Mas para os meus propósitos este detalhe não é
muito relevante. Basta dizer que as intratáveis guerras religiosas tinham
lugar porque havia uma guerra fundamental de opiniões, cada uma delas
reivindicadora de verdade. Se a função da soberania consistia em garantir
a paz e a segurança dos cidadãos, não havia volta a dar: a soberania teria
de se envolver na questão da formação e dicção da verdade. Mas em que
termos? Hobbes atribuía ao soberano a voz da interpretação autêntica da
lei. O sentido da lei era, em última instância, aquele decidido pela vontade
do soberano e só ele era intérprete da sua própria vontade. Os cidadãos
podiam dar sentidos alternativos à lei, podiam considerá-la má e iníqua,
mas na questão essencial da obediência mandava a interpretação do
soberano. A razão da obediência não residia no seu conteúdo – bom, mau,
útil, inútil, équo, iníquo – mas sempre no facto de a lei ser um comando,
devidamente processado, do soberano. O soberano não era exactamente
um árbitro, porque este não concebia as regras, e o soberano tinha essa
incumbência primordial. Daí que na produção das regras fosse inevitável
ditar o que era verdadeiro (e falso) neste ou naquele caso. E isso valia
igualmente para o domínio da conduta moral. Era por isso que Hobbes
dizia que a lei civil, a lei soberana feita pela entidade política determinava
o que era bom e mau para o cidadão acima do que era a concepção pessoal
e subjectiva desse cidadão. A lei prescritiva e proibitiva era outro meio de
designar o que era verdadeiro (ou bom) e falso (ou mau). Do ponto de
vista teórico, a distinção entre a correcção de proposição e os critérios de
verdade/falsidade estarão certamente afastados da correcção da conduta e
os critérios de bondade/maldade. Mas no plano político da instituição e
preservação da ordem essa fronteira esbatia-se, e em parte alguma isso era
mais patente do que na defesa que ele fez da censura como um dos
«direitos» da soberania. Ora, Hobbes iria abordar a questão da formação
da verdade em termos algo semelhantes.
Em primeiro lugar, cabia elevar o soberano, com a sua voz autoritativa
da interpretação autêntica, acima das opiniões religiosas. Daí o tal
primeiro movimento de neutralidade. Aqui, Hobbes seguiu o caminho
aberto por Jean Bodin e pelos politiques franceses. Frente à questão
secular da devoção religiosa do príncipe como criatura temente a Deus,
Bodin contrapunha o exercício privado da sua religião a todos os cidadãos.
Assim, seria possível privatizar também a projecção pública da piedade do
príncipe. Obtinha-se uma «República» sem religião oficial uniforme que
permitia o exercício livre da fé de cada um desde que se limitassem as
projecções públicas dessa prática. O propósito era sempre o mesmo: evitar
a guerra civil, instaurar e preservar a ordem, mas reconciliando os
interesses vitais de todos sem uniformizar os conteúdos sociais da
existência. Não se desvalorizava o significado da religião e da sua prática
na vida de cada um, mas negava-se a necessidade de o Estado ter uma
prática religiosa pública porque de outro modo acabaríamos por recorrer à
força para determinar as crenças e as práticas religiosas da população. E,
num passo decisivo, a assunção de neutralidade religiosa era vista como
promotora da ascensão e consolidação do poder político central. Não era
uma demonstração de fraqueza, nem uma concessão às forças sociais
desagregadoras. E este argumento era tanto mais verdadeiro, quanto maior
fosse a escala da população e o território, numa espécie de antecipação do
argumento de James Madison mais de duzentos anos depois para lidar
com as facções.
Madison justificou a inauguração de uma grande república na América,
contra o preconceito histórico republicano de que este regime só seria
viável num Estado exíguo, com a ideia de que, com a multiplicação das
facções que acompanharia o alargamento da órbita territorial e
populacional, cada uma das facções se tornaria relativamente impotente e,
por conseguinte, não ameaçadora para a estabilidade do Estado. Bodin já
adoptara um argumento parecido, mas acrescentara um ponto decisivo. O
aumento da extensão populacional e territorial fazia surgir mediadores,
gente que se posicionava no meio-termo entre os extremos em combate, e
que teriam a perspectiva, o interesse e a vocação para gerir e regular os
conflitos. Para que a guerra aberta se calasse era necessário o trabalho de
mediadores neutros. Os mediadores deviam estar espalhados pela
sociedade, mas o príncipe deveria ser o árbitro neutro por excelência. Tal
só seria possível, evidentemente, se não se convertesse numa parte do
conflito.269
Daqui não era um grande salto para a afirmação de Espinosa de que as
liberdades individuais não diminuíam a autoridade nem os direitos do
poder soberano.270 E não era um salto muito maior para concluir, como
Kant concluiria no final do século XVIII, que a liberdade dos cidadãos,
incluindo a religiosa, conduziria ao superior «esclarecimento» do todo
social e à superior pujança económica de que o Estado soberano
obviamente beneficiaria.271 Muitos anos depois, Hegel veria neste
paradoxo – o de que o Estado soberano moderno se baseava no princípio
da subjectividade infinita e recusava controlar e determinar essa
subjectividade – uma notável novidade histórica: o Estado indiferente à
vida interior dos cidadãos, incluindo à vida religiosa dos cidadãos. Na
concepção da soberania moderna, o Estado tinha, pois, de ser forte para
poder ser indiferente, neutro. A neutralidade não era fraqueza. Era, numa
prática contínua, sintoma de força. Ora, a força e a autoridade,
simultaneamente pressupostas e geradas pela neutralidade, constituíam a
soberania. A força e, sobretudo, a autoridade seriam tanto mais efectivas
quanto mais reconhecidas fossem pelos cidadãos. A força e a autoridade
geradoras de tolerância e de liberdade subjectiva seriam crescentemente
reconhecidas porque a estabilidade já não seria comprometida pela
tolerância e pela expansão da liberdade subjectiva. A soberania era, então,
essa alquimia que gerava a força, contendo-a, metamorfoseando-a em
poder/autoridade, os quais, por sua vez, sustentavam o ser da comunidade
política pacífica, tolerante e estável.
Em segundo lugar, porém, era preciso atender ao problema que
subsistia. Haveria opiniões (religiosas ou de outra índole) com potencial
belicoso e que não eram suficientemente domáveis? Por outras palavras,
incendiárias? Como prevenir que se deflagre um incêndio florestal, para
continuar esta minha comparação? Proibindo queimadas, por exemplo.
Proibindo o acto de se atear o fogo na floresta. Não colocaria esta
proibição uma licença para se ditar a opinião religiosa verdadeira e assim
deitar por terra o primeiro movimento de neutralidade do Estado? O
específico da versão soberana da resolução deste problema foi evitar o
caminho da religião civil, mas não deixando de exercer o poder de
formação e de dicção da verdade. Como?
A religião civil, entendida como a politização da religião, e a mistura da
religião com o poder político, com o fito, não de elevar a vida religiosa,
mas para tornar mais robustos os vínculos cívicos, foi desde a fundação da
filosofia política europeia um constante objecto de meditação e um
recurso pensável. A possibilidade e a actualização de uma
instrumentalização da religião, dos seus conteúdos e ritos, para cimentar
uma maior devoção pela pátria, uma obediência mais cega às leis, ou pura
e simplesmente para consolidar o poder dos governantes investidos de
uma aura divina, sempre perturbou a consciência filosófica do poder. E
autorizou interpretações estritamente politizadas da fundação das religiões
históricas. Heródoto, por exemplo, contou-nos como o tirano exilado
Pisístrato foi buscar uma mulher invulgarmente alta e bela chamada Fia
para o acompanhar no seu regresso à Atenas que o escorraçara. O plano
consumado e bem-sucedido foi fazer Fia passar pela deusa Atena e assim
impressionar os atenienses com um fabricado favor divino. Maquiavel,
noutro exemplo, imaginava Moisés como um príncipe fundador
equivalente ao persa Ciro ou ao romano Rómulo, que inventou uma
religião para conferir autoridade ao seu mando pessoal e às suas leis diante
de um povo hebreu turbulento. Mas, não obstante Rousseau que avançou
uma confusa proposta de religião civil para uma pequena cidade-Estado, a
teoria da soberania seguiu, no atinente à questão religiosa, à sua pretensão
de verdade e à sua diversidade no tecido social, um caminho distintivo e
distintivamente moderno.
Comecemos pelo aspecto que provavelmente maior repugnância nos
causa. Hobbes atribuía ao soberano o direito de censurar doutrinas.
Segundo que critério? Não de acordo com um critério positivo de
apuramento da verdade e de expurgação do erro. Esse era o critério
tradicional justificativo da prática da censura política ou eclesiástica.
Hobbes teve o cuidado de separar as águas. Disse ele que só seriam
censuradas as doutrinas contrárias à paz – as tais que acima adjectivei
como incendiárias. E num passo surpreendente concluiu que uma
«doutrina repugnante à paz não pode ser mais verdadeira do que a paz e a
concórdia podem ser contrárias à lei da natureza».272 O critério da verdade,
ou talvez da falsidade, reaparecia pela porta das traseiras. Hobbes sugeria,
assim, que a censura como direito soberano tinha uma finalidade
essencialmente negativa. Não tinha como propósito encaminhar o
conjunto da sociedade para uma qualquer ortodoxia, para uma doutrina
particular verdadeira. Não criaria nem protegeria uma linha ideológica,
religiosa, doutrinária tida por verdadeira, como sendo a oficial do Estado.
Logo, agia expurgando a falsidade, identificada com a ameaça à paz, e
admitindo uma multiplicidade de doutrinas verdadeiras, inclusive
contraditórias entre elas, sobre as quais não se pronunciaria de modo
algum. O soberano não exorbitava a sua única função – a manutenção da
ordem protectora dos cidadãos –, mas também não a abandonava. Não
cabia ao soberano ditar as crenças dos seus súbditos, mas era-lhe atribuído
o direito de escrutinar e julgar as expressões dessas crenças convertidas
em opiniões atendendo apenas ao seu potencial ameaçador da paz.
A doutrina política abrangente da soberania parte da premissa que os
recursos linguísticos, emocionais e dialécticos dos seres humanos num
plano público não são suficientes para produzirem um acordo quanto à
verdade das teses em concorrência. Nalguns casos extremos, mas não
negligenciáveis, esse desacordo produz violência e guerra aberta. A
produção do comum requer comunicação entre os cidadãos. Tal
comunicação não é possível se as linguagens, e as ideias, veiculadas pelos
cidadãos, e pelos grupos que eles formam, dispararem em direcções
absolutamente contrárias sem qualquer ponto de contacto. Um plano
mínimo de ideias e vocabulário partilhável era necessário para gerar e
conservar esse algo comum. O desentendimento moral e mundividencial
radical era uma lição que se retirava do estado de natureza. Para o
preservar, respeitando as liberdades dos cidadãos, em compatibilidade
com a conservação da ordem, era necessário garantir um plano mínimo de
comunicação. A separação entre público e privado era um elemento
imprescindível desta complexa conciliação, mas, na óptica de Hobbes, não
bastava. Não surpreendeu que Hobbes tenha encarregado o soberano, uma
vez mais, de ser esse garante. Daí decorriam consequências inevitáveis.
A tarefa política de expurgação dos elementos que comprometem
radicalmente o espaço público comum é tremendamente delicada, e deve
assinalar-se como mérito de Hobbes, independentemente da nossa aversão
por estas soluções, o facto de não ter perdido a consciência dessa
delicadeza. Vivemos tempos em que, após décadas de cultura democrática
apostada na maximização das liberdades, nos oferecem um desfile de
propostas de identificação e eliminação de elementos discursivos e
ideológicos tidos por incendiários que mais não são do que investidas do
combate partidário por meios proibidos pela cultura demo-liberal
originária. É preciso perceber que a tolerância de Hobbes ao conflito era
consideravelmente inferior à nossa, filhos como somos de um
desenvolvimento da filosofia política e da cultura cívica que valoriza o
conflito não violento desde que enquadrado pelo tecido institucional
adequado. Os partidos políticos são, por isso, elementos estruturantes das
nossas democracias liberais, algo que seria anátema para Hobbes. Mas
antes de acusarmos Hobbes de todo o tipo de arcaísmos é preciso apreciar
o papel dos partidos políticos à luz das preocupações soberanas.
Exemplificando: se os partidos políticos conscientemente destruíssem o
enquadramento institucional que converte a sua prática conflitual em
riqueza liberal-democrática, então tornar-se-iam perniciosos para a ordem
política ao invés de serem seus pilares indispensáveis.
Uma vez mais se insiste que a ordem não era tida como autopoiética;
não se edificava espontaneamente. Ela carecia de um princípio externo
que a constituísse. Esse princípio externo não podia invadir a vida interior,
o lugar onde se formam as opiniões e crenças individuais. Daí que deste
cepticismo e desta neutralidade nascesse um regime soberano de
tolerância religiosa, mas que se alastra a todos os aspectos da pluralidade
das mundividências e das concepções de felicidade. O plano exterior, ou
público, era da sua responsabilidade. Hobbes foi forçado a aceitar que a
verdade (ordenadora) da lei que o soberano produzia, e o vínculo de
obediência que criava, só seriam eficazes se a conduta dos múltiplos
indivíduos, e a opinião, sobretudo a expressa, tivessem algum grau de
conformidade ou de adequação a elas.
Todavia, a questão da dicção soberana do verdadeiro não podia ficar por
aqui. Em sociedades não-laicizadas, o desafio da autoridade espiritual,
envolvendo bens, ou a promessa de bens, infinitamente superiores aos
bens temporais, era demasiado poderoso. Para Hobbes, o caminho da
consolidação da soberania era o caminho da submissão, em tudo o que
dissesse respeito ao público, do espiritual ao temporal. Uma boa ilustração
do problema que se colocava, e hoje aparece como irreconhecível aos
nossos olhos, era dada pela questão dos milagres.
O que Francis Bacon sugerira algo esotericamente em New Atlantis,
uma espécie de utopia em forma narrativa publicada pouco tempo depois
de morrer,273 Hobbes quase constitucionalizou. Segundo a ficção de
Bacon, na longínqua ilha de Bensalem tinham sido os governantes-
filósofos a certificarem o milagre fundador daquela ordem política, o que
aos olhos do leitor punha em causa a origem divina do fenómeno, mas não
a sua utilidade política. Hobbes não estava a preparar uma narrativa
ficcional. Estava a elaborar uma teoria da soberania. E foi nessa sequência
que afirmou que cabia ao poder soberano acertar o que os cidadãos
podiam considerar milagre – e o que não podiam. O milagre passava a
carecer de certificação política. O Estado soberano certificava, ou não. De
acordo com o cepticismo de Hobbes tornava-se implícito que o critério da
certificação, e o da sua recusa, era estritamente político. O milagre era tido
como uma questão pública. Logo, não podia ser deixado ao julgamento
individual de cada cidadão. Nem dos sacerdotes. O soberano julgaria
fazendo uma interpretação autêntica de fenómenos aparentando ser
milagres.274
Hobbes encaminhou as coisas para se ir privatizando a crença e a prática
religiosa, neutralizando os efeitos políticos da religião, orientação geral da
filosofia política moderna que seguiu no seu encalce. Mas não resistiu à
tentação de ir mais longe. As preocupações com a comunicação política
garantida pela soberania entre as partes da comunidade apoquentaram-no
até passar para um outro ponto. Dito de um modo sucinto: Hobbes
procedeu no célebre Leviatã a uma certa reconstrução teológica do
Cristianismo. Com uma reinterpretação das Sagradas Escrituras, Hobbes
estava persuadido que obteria uma cultura pública mais ajustada às
necessidades da ordem, primeiro, com uma atenuação da divisão de
lealdades no cidadão entre a cidade terrestre e a cidade celeste, e, segundo,
com a redução de espaço para controvérsias religiosas conflituosas.
Assim, Hobbes reconstruiu o destino sobrenatural da alma, com o
postulado da materialidade desta, o carácter mundano-terrestre da vida
além da morte, e a anulação prática do Inferno com a negação dos
tormentos eternos para os pecadores condenados. Ao mesmo tempo,
reduziu os requisitos para a salvação eterna, aliviando angústias
fanatizantes, e negou a vida eterna para os que desobedecessem às «leis da
natureza», as tais que não eram mais do que teoremas descobertos pela
razão relativos ao que seria conducente à paz e que serviriam de modelo
abstracto às leis civis do soberano. A autoridade política construía uma
nova religião travestida da autoridade tradicional do cristianismo. Hobbes
dissera como parte integrante da teoria da soberania: auctoritas, non
veritas facet legem – é a autoridade, não a verdade, que faz a lei.275 Agora,
apressava-se a dizer implicitamente: é a autoridade, não a verdade, que
faz a religião. Com que desígnio? Não nos deixemos arrastar pelo fulgor
retórico da frase de Hobbes. A veritas recusada por Hobbes como causa
da lei era a verdade filosófica, aquela cuja senda não conduzia a qualquer
conclusão firme e incontestada. A auctoritas, na acepção de Hobbes, o
exercício do poder soberano, exprimia, como não podia deixar de
exprimir, a verdade civil ou a verdade política. Mas não estava
condicionada por uma verdade, digamos assim, pré-política, por uma
razoabilidade que excedesse o alcance da estrutura elementar da ordem
política. De resto, Bodin, antes de Hobbes, aceitara esta consequência da
doutrina da soberania. As leis de um Estado soberano bem podiam estar
fundamentadas em razões boas e úteis, mas só se tornavam lei pela
afirmação da vontade do soberano. Voluntas non veritas facet legem.
Podíamos supor que era, de facto, da vontade soberana que dependia a
validade da lei, mas não o seu conteúdo, e que uma e outra matéria seriam
inseparáveis. Contudo, para homens como Hobbes e Bodin tal seria
insustentável. Convinha certamente que as leis fossem justas e razoáveis,
mas fazer depender do conteúdo a validade da lei, e a sua vinculatividade,
seria expor a obrigação política às disputas e discórdias sociais.
Tanto no exemplo dos milagres, como num outro mencionado por
Hobbes do estatuto humano do recém-nascido deformado, a decisão
política sobrepunha-se à infindável discussão filosófica. Correspondia, por
essa razão, à declaração da verdade política e soberana. Respondendo à
pergunta acima colocada, com que desígnio? Nenhum concernente à
afirmação do verdadeiro filosófico, nem do verdadeiro teológico, até
porque as mudanças teológicas procuravam apenas retirar à religião (neste
caso, cristã) a capacidade de ameaçar a ordem política. O verdadeiro
pronunciado pelo soberano seria apenas e só o verdadeiro da ordem. Os
limites da neutralidade estão aqui. A consciência da prioridade do
verdadeiro da ordem sobre o verdadeiro filosófico depende do
reconhecimento de pelo menos esta verdade filosófica – a da necessária
subordinação e neutralização política da verdade filosófica.
Daqui não se infira que as consequências de Hobbes se seguiam
necessariamente da assunção de neutralidade por parte do Estado.
Espinosa fez face ao mesmo problema, optou pela via da neutralidade do
Estado no domínio da opinião e concedeu os precedentes históricos de
exercício do poder soberano na produção/certificação de milagres. Mas
descobriu a saída prática, não na repressão da opinião, nem na sua
censura, antes na liberdade civil da sua expressão. Adoptar a neutralidade
não fragilizava o soberano. Criminalizar a opinião, cuja formação era um
direito natural individual, fragilizava o soberano. As leis não deviam
procurar fundamentação, nem promover uma certa opinião. Isso
fragilizava-as, expunha-as à discussão muitas vezes virulenta, minava a
obediência espontânea. A única coisa que promoveria seria a violência.
Nessas condições, era a «cólera popular» que se tornava «soberana». Ao
soberano, dizia Espinosa, em matéria de Estado e de religião, devia ser
reconhecido o direito de «decidir o que é lícito e o que ilícito»,
intrometendo-se o menos possível em matérias doutrinárias. Em tudo o
resto, deixar à liberdade de cada um pensar e dizer o que quisesse,
garantindo a protecção física de todos e a pacificidade do culto religioso
externo. Com estes atributos da soberania, Espinosa julgava salvaguardar
os direitos individuais dos cidadãos – incluindo da liberdade religiosa
interior –, proteger o Estado da usurpação dos poderes soberanos pelas
autoridades religiosas, garantir a unidade da ordem política e fortalecer o
poder soberano na sua missão de realizar a paz e a segurança. Espinosa
não se contradizia ao atribuir à soberania, num momento, o regramento do
culto externo e, no outro, afirmar enfaticamente o direito natural de julgar
por si mesmo, de raciocinar livremente, de aceitar como verdadeiro e
recusar como falso no foro interno, incluindo as matérias da devoção
religiosa. O soberano tinha o direito de determinar o direito, esperando
que o cidadão obedecesse à lei por ser a lei, e que este renunciasse ao
direito natural de agir por si conforme a sua própria opinião subjectiva. O
soberano não tinha o direito de impor crenças religiosas interiores, nem
opiniões sobre fosse qual fosse o domínio de inquérito ou de julgamento.
O soberano do Estado livre, por não perseguir as opiniões dos cidadãos,
exercerá um poder forte – garante a paz social –, mas «moderado». Ao
passo que o poder soberano do Estado perseguidor será fraco e «violento».
É a partir deste ponto específico, o da relação entre a soberania e a dicção
do verdadeiro, que Espinosa diria que «O verdadeiro fim do Estado é [...]
a liberdade.» A soberania neutra seria, então, capaz de produzir liberdade
e, com esta, prosperidade. Fala por muitos volumes o exemplo que
Espinosa reservou para o final do Tratado Teológico-Político. Falava da
sua Amesterdão natal, próspera e admirada pelo mundo inteiro, onde
todos
para fazerem um empréstimo a alguém, a única coisa que os preocupa
é saber se é rico ou pobre e se costuma agir de boa ou de má-fé.
Quanto ao resto, a que religião ou seita pertence, isso não lhes
interessa nada, visto não contar rigorosamente nada, perante o juiz,
para se ganhar ou perder uma causa.276
O soberanismo do século XVII converteu-se numa doutrina que dizia ao
futuro incauto: o fundamento da ordem não é neutro; há sempre um certo
entendimento do bem mais implícito do que explícito que orienta a ordem
política; mas não deve ser nem uma interpretação da vontade divina, nem
uma ideologia, a fundamentá-la. O Estado soberano moderno não se
limitava a ser um árbitro. A própria tarefa da arbitragem em nome da
ordem política exigia que se fosse além de uma simples de resolução de
conflitos. Múltiplas alternativas se colocavam diante do Estado soberano.
A soberania era a capacidade de fazer escolhas.
21. Público e privado
A soberania não é só estruturante da ordem estadual. É constitutiva da
divisão entre o público e o privado ou entre a sociedade e o Estado. E,
exactamente na mesma medida, é uma das fontes da indistinção e
inexactidão dessa fronteira entre público e privado. Porquanto a dita
fronteira não é natural. Ela não se forma pela acção espontânea dos
indivíduos, nem é ditada por um suposto conteúdo natural dos objectos
que vão ficar de um lado ou de outro. A fronteira é móvel e sinuosa. É
vulnerável e negociável. É, ou torna-se, rapidamente numa fonte de
conflitos. Uma vez mais, e para completar a circunferência, quem pode
dirimir esse conflito em torno do traçado da fronteira entre privado e
público? Quem pode decidi-lo? Na ausência de outros candidatos, a
soberania.
Para que indivíduos orientados por conteúdos morais muito diversos, e
potencialmente conflituantes, possam fazer valer os seus direitos iguais,
precisam de um poder que transcenda essa condição «civil». Precisam que
esse poder exerça o poder para punir os infractores dos direitos alheios,
precisam que seja um árbitro neutro e imparcial dos conflitos
sociais/privados, precisam que seja o guardião da paz e da ordem
indispensáveis ao gozo generalizado dos bens humanos. O Estado é um
instrumento dos cidadãos que precisam de uma ordem, de uma sociedade,
onde viver sob o regramento e disciplina desse instrumento que
conceberam. Se o Estado é um «artifício», a sociedade, que depende da
existência e acção do «artifício», não é mais «natural» ou «espontânea».
Os conteúdos que formam a vida individual e as relações sociais resultam
dessa «espontaneidade» do espírito humano e da sua interacção. Mas não
a ordem onde esses conteúdos aparecem e medram.
Para os fundadores da teoria classicamente moderna da soberania, uma
ideia embrionária de separação entre público e privado era essencial para
resolver o problema religioso. A soberania era a chave em toda esta
equação, não só pelo facto de ser uma sede de formação do verdadeiro,
como vimos, mas também porque a fronteira artificial e delicada de
separação entre público e privado teria de ser definida por alguém com
autoridade para o fazer. Ora, a potência que define essa fronteira é
precisamente a soberania. Rousseau, escrevendo já no início da segunda
metade do século XVIII revelava a sua fidelidade aos fundadores modernos
da teoria da soberania quando dizia que:
Convém que tudo o que cada um aliena por intermédio do pacto social
do seu poder, dos seus bens, da sua liberdade, seja apenas a parte de
tudo aquilo cujo uso diga respeito à comunidade, mas também é
preciso convir que o soberano é o único juiz desta importância.277
Nos seus contornos exactos, a separação entre público e privado era
uma ficção garantida pela soberania. O cordão umbilical que junta a
soberania e a sociedade moderna tem contornos cada vez mais definidos.
O critério do que cabe no público é dado pelo comum. Tudo o que é posto
em comum pelos membros da comunidade política pertence ao público. O
resto contém-se no outro lado da fronteira. E o que é posto em comum?
Não existe um quantum apriorístico que nos dê uma solução equilibrada e
perpetuamente satisfatória para todas as sociedades. A variação pode ser
muito grande e um dos temas do livro fundador da filosofia política de
tradição europeia, a República de Platão, com a proposta experimental de
Sócrates da comunidade dos bens, das mulheres e dos filhos, é também
uma profundíssima meditação sobre o espaço do comum e os seus limites.
Como vimos, em Bodin a família constituía uma unidade humana
anterior ao Estado, e sendo assim formava a rede do que era privado em
contraponto ao que era comum. Essa foi uma das razões por que Bodin
criticava o comunismo da República de Platão, seguindo em parte as
críticas de Aristóteles. Se tudo fosse comum – e recordo que, na
República de Platão, Sócrates subiu sucessivamente a parada começando,
primeiro, pela comunidade dos bens e, a seguir, pela comunidade das
mulheres e dos filhos –, então, por definição, nada era privado e nada era
público. Não se podia conceber que houvesse alguma coisa em comum se
nada fosse privado, «tal como se todos os cidadãos forem reis, não haverá
rei».278 Destarte, a comunidade de todas as coisas era «incompatível com o
direito das famílias» e, desse modo, «se a família e a cidade, o próprio e o
comum, o público e o particular estão confundidos, não há nem república,
nem família».279 O Estado pressupunha, então, a existência de um domínio
privado, respeitante às famílias, que abrisse espaço a um domínio público
– aquilo que as famílias e outros elementos da comunidade política tinham
em comum entre eles. Sem esta coexistência entre público e privado, disse
Bodin, não existe Estado. Não existe Estado soberano, o único que podia
dar ordem a essa coexistência de espaços de comunidade com espaços de
diferenças: homogeneidade com heterogeneidade, uniformidade com
diversidade.
No horizonte de conflito em que nasceu a soberania, e que ela
tencionava superar, resistiam fontes de poder que, se deixadas aos seus
movimentos, reacenderiam a discórdia e a guerra civil. O desentendimento
moral e a propensão para a discórdia verbal e ideológica entre os seres
humanos seriam sempre motores do conflito e da violência. Já vimos que
a opção não era pura e simplesmente reprimir e extinguir as fontes de
discórdia. A repressão não era excluída, mas sobrepunha-se uma
consideração conciliatória da função da soberania – a pacificação da
comunidade política – com a diversidade humana resultante da
subjectividade livre. Dividir a comunidade política em público e privado
fazia parte desta estratégia. Das várias modalidades de expansão do poder
humano, a soberania não pretendia reprimir todas, mas apenas as nocivas
e socialmente destrutivas, originárias de paixões como o «orgulho» – o
desejo de reconhecimento de superioridade – e o «medo dos poderes
invisíveis» – o fanatismo religioso. Em termos estamentais, anular a fonte
anímica respectivamente das nobrezas e dos cleros. Isso era muito mais
urgente do que decapitar o rei. A soberania reprimia apenas essas
modalidades de expansão do poder humano e canalizava os movimentos
humanos de obtenção de mais poder para domínios de acção que geravam
efectivamente mais poder para os indivíduos e para a própria soberania.
Segundo a orientação moderna, esses domínios eram dois. De um lado, a
ciência e a tecnologia; do outro, a economia e o crescimento da
capacidade produtiva. Um e outro domínio eram as verdadeiras minas de
poder humano que enriqueciam a esfera privada e o desejo de uma vida
mais confortável. Iam concedendo à humanidade o conhecimento e
domínio sobre a natureza, com as consequências tecnológicas, morais e
religiosas que daí advinham, as quais, por grande que fosse a sua
complexidade não era improvável que consolidasse a soberania nas suas
funções históricas. A soberania, afinal de contas, não tinha meios
próprios, não tinha poder próprio. O que tinha ao seu alcance eram os
meios, o poder dos cidadãos, e tinha o direito de usá-los em benefício de
uma estratégia de segurança. Quanto mais crescessem os meios, o poder,
benevolentes dos cidadãos, por maioria de razão maiores seriam os seus
meios também. Maior seria o seu poder. Também aqui se ia desvanecendo
a neutralidade diante das grandes orientações existenciais. Sendo
moderna, a soberania estava ali e não podia agir de outro modo.
A separação entre público e privado era evidentemente um princípio de
limitação. O liberal Constant, mesmo quando esteve a tentar salvar o
regime napoleónico reactualizado pelas derrotas militares, ou melhor,
precisamente por ter passado pela experiência da tentativa de resgate do
regime napoleónico, di-lo-ia com todas as letras. «A soberania só existe de
uma maneira limitada e relativa. No ponto onde começa a independência
da existência individual acaba a jurisdição dessa soberania.»280
22. O Estado soberano também é uma pessoa
O século XVII que Hobbes só abandonou em 1679 seria o período
politicamente mais turbulento e transformador da história da Inglaterra. E
teve uma enxurrada de episódios de imoderação, violência e guerra civil.
A percentagem da população da Inglaterra, da Escócia e sobretudo da
Irlanda que morreu naqueles anos fatídicos da década de 40 desse século é
ainda hoje assustadora. A abolição do Natal, a destruição de arte sacra dita
pagã por não ter sido obediente à teologia das seitas Independentes, e o
cálculo exacto da data do Segundo Advento de Cristo já para dali a uns
meses foram apenas algumas manifestações exóticas da revolução que uns
quiseram, que outros abortaram e que ainda outros pretenderam levar para
o continente americano.
Em 1640, após a publicação de Elements of Law, Hobbes fugiu para o
exílio em França onde estaria a salvo do braço dos partidários do
Parlamento num conflito que degeneraria em guerra e, por fim, na
execução do rei Carlos I. Chegada a guerra, encontraram-no do lado do
rei. Em França podia estar sossegado perto dos filósofos com quem se
correspondia e admirava, como o padre Marin Mersenne ou o epicurista
integral Pierre Gassendi. Pouco tempo depois, a família do rei também
seguiria para Saint-Denis, longe do desastre inglês. Hobbes seria tutor de
geometria e de outras matérias do príncipe de Gales. Por essa via seria
selada uma amizade que ficaria para a vida e que valeria a protecção – e
uma pensão – do mais tarde coroado Carlos II. Protecção preciosa porque
Hobbes formou ao longo da sua vida um exército de inimigos, desde os
ressentidos da experiência republicana de Cromwell e da revolução
puritana, até aos tradicionalistas anglicanos que não suportavam o seu
maldisfarçado ateísmo. O conde de Clarendon, por exemplo, um dos
homens mais próximos do trono, não lhe perdoaria a publicação de
Leviatã. Juntamente com os sacerdotes anglicanos, levantou o clamor que
o expulsaria do exílio em 1652 e o forçaria a regressar à Inglaterra de
Cromwell.
Leibniz, talvez o mais perfeito e bem-intencionado anti-Hobbes daquela
época, queixava-se de que o tema do jure suprematus, ou da soberania,
normalmente inspirava os autores e comentadores para exibições estéreis
de erudição. Levava-os a adorar no altar do arcaico direito romano e a
mostrar que a sua «experiência das coisas humanas não ia além das portas
dos tribunais».281 Daí que se tivesse convertido num tema tão obscuro e
espinhoso. Leibniz tinha certamente razão em atirar esta acusação a
Bodin, Grócio ou Pufendorf. Mas em Hobbes a tentativa saía gorada. Quis
construir a sua filosofia política em bases tão pouco dependentes da
tradição quanto possível. O destino era a Modernidade e Hobbes não
olhou para trás. Com efeito, a tese da soberania não era, em geral,
conservadora. Não se pense que era conservadora por insistir
reiteradamente no tema da ordem política, um tema conservador por
excelência. A soberania, como temos visto, foi corrosiva do costume e do
direito consuetudinário. Isto valia para a generalidade dos seus
proponentes teóricos, a começar por Jean Bodin, bem ponderadas todas as
coisas. A tese comum a todos os partidários da tese da soberania era a de
que o costume tinha apenas força jurídica porque o soberano assim o
consentia. Esse consentimento é que podia valer por uma homologação do
hábito e do precedente. O que significava que a remoção soberana do
consentimento lhe eliminaria a validação. De resto, todas as contradições,
e todas as nebulosas, do direito consuetudinário só podiam ser
clarificadas, arbitradas e decididas por um poder que estivesse acima do
próprio direito consuetudinário – o poder soberano.282
Das múltiplas inovações com que Hobbes brindou a civilização
europeia, só poderei abordar uma ou duas. Hobbes mudou os termos da
discussão ao personalizar o Estado. Foi no léxico da dramaturgia romana
que Hobbes encontrou a formulação perfeita para a sua analogia. Persona
era a palavra latina que designava a máscara usada pelos actores no teatro
e através da qual o som das palavras declamadas fluía. Na verdade, e
como sucedeu tanta vez no latim das artes, da filosofia, do direito, da
moral e da política, persona era já uma tradução da palavra grega
πρόσωπον (prosōpon). Hobbes deixou-nos isto bem explicado na sua obra
mais emblemática, o Leviatã.283 «Rosto» era o significado primeiro de
prosōpon. Acabou por adquirir um significado adicional no teatro grego e
nos festivais dionisíacos, a saber, a tal máscara que constituía o
instrumento que dava aparência e vida às personagens numa peça de teatro
na Antiguidade. E este sentido dramatúrgico ainda abriu a distinção entre,
por um lado, a personagem cujo rosto no palco era a máscara, e, por outro,
o desempenho do actor. Ora, Hobbes explorou esse sentido duplo da
pessoa e adaptou-o triunfalmente a uma concepção do Estado.284
Uma pessoa é alguém que age e que fala. Se age e fala em seu próprio
nome, então Hobbes propunha que lhe chamássemos «pessoa natural».
Começava aqui uma distinção não isenta de dificuldades. Se alguém age e
fala em nome de outrem, atribuindo-se a responsabilidade pelos actos e
pelas palavras a quem é representado, propunha que víssemos esta pessoa
recorrendo à analogia com um «actor». Afinal de contas, o que é ser
«actor»? É personificar. É representar. E num passo que atropelaria
metade da tradição e lançaria as bases para uma moderna concepção do
Estado, Hobbes concluía daí que se um actor diz e age por conta de
outrem é porque essas palavras e acção têm de pertencer, têm de ser
atribuídas, a um «autor», a alguém que seja representado pelo «actor»,
que, por sua vez, age com autor-idade. Assim, o Estado era o
representante – o actor que representava os autores, ou seja, todas as
pessoas naturais dos cidadãos que o constituíam. Mas, uma vez
representadas, as pessoas «naturais» convertiam-se em pessoas
«artificiais».285 Com efeito, a pessoa «artificial» constituída pela formação
do soberano-representante era a totalidade do «Estado» ou da
«comunidade política» ou a Persona civitatis – cujos elementos eram
precisamente indivíduos representados, ou cidadãos, pessoas com uma
dimensão pública e, por conseguinte, «artificiais».286 A soberania era a
«alma» da pessoa «artificial» do Estado, o seu representante, «o portador
da pessoa do Estado»,287 o «representante absoluto de todos os
súbditos»,288 e o garante da unidade do povo.
Em rigor, o actor seria o soberano, e não exactamente o Estado. Nem
sempre foi fácil articular esta precisão com a analogia mais detalhada que
Hobbes ofereceu, na medida em que o Estado era o «homem» gigante e o
soberano a sua «alma». Já em De Cive, que foi a obra em que Hobbes
primeiro estabilizou o grosso da sua filosofia política, Hobbes afirmara
que a comunidade política (civitas) era uma «pessoa civil» (persona
civilis). Um pouco mais adiante, Hobbes sublinhara que o soberano estava
para a comunidade política como a alma estava para o corpo. E porquê?
Porque a alma era a sede metafísica da vontade. Ora, a comunidade
política tinha uma vontade e exercia-a através do detentor do poder
soberano. De resto, a soberania era a «alma do Estado» para a tríade que
tenho examinado aqui com mais detalhe: Bodin, Hobbes e Pufendorf.289
Com a personificação do Estado, a soberania passou a ser vista como a
manifestação de uma certa pessoalidade. Sendo vontade, ela era vontade
de uma «pessoa moral» superior que tinha direito a ser obedecida. Daí
sucederam-se consequências perigosíssimas, devidamente apontadas por
gerações e gerações de pensadores e políticos, para uma concepção de um
regime de liberdades e de poder limitado. Mas os proponentes da
soberania como vontade vislumbravam um aspecto que não é
insignificante. Sendo vontade, a soberania seria livre, tal como a vontade.
Ser livre significava, na linguagem da escolástica do século XVI, ser
«indiferente», isto é, não estar determinada por nenhuma causa, podendo
escolher querer este objecto ou não querer, podendo escolhê-lo agora ou
depois ou nunca. Ao contrário do intelecto que não podia escapar à
irresistibilidade do verdadeiro, a vontade, no entender de teólogos como
Suárez, não estava determinada pelo seu objecto, que podia ser bom ou
mau consoante as circunstâncias e os modos de acção do sujeito. Daqui
podemos dar um salto significativo. Se a vontade era livre, significava que
a soberania era livre. Usando uma formulação mais própria das divisas
políticas: para a vontade soberana há sempre alternativas. Sendo mais
concreto: se a lei era a vontade soberana, e esta era livre ou indiferente,
negava-se aquilo a que podemos chamar uma programação ou
determinação ideológica da lei do Estado. Nenhuma ideologia política
poderia resolver um corpo de leis fechado para qualquer circunstância e a
outra face desta moeda era a abertura da soberania para fazer a lei segundo
a interpretação do que seriam as necessidades ou os imperativos próprios
de cada experiência histórica. Visto em negativos, esta possibilidade
também representava no limite uma declaração de independência da lei
civil ou da lei do Estado político relativamente aos preceitos da lei divina
ou da lei natural, embora a lei natural cuidasse de reservar um amplíssimo
lugar à determinação humana dos seus preceitos abstractos ou dos seus
silogismos gerais.
Cabe dizer que de entre os filósofos dos séculos XVI e XVII
provavelmente só Hobbes estaria disponível para celebrar essa
independência. Uma vez mais, os riscos para uma acção política à deriva
e, por conseguinte, emancipada das restrições que protegiam as pessoas e
os seus conteúdos de vida, agravaram-se consideravelmente. Se a lei fosse
produto do intelecto da «pessoa» soberana, então, pela mesma ordem, não
poderia ser livre. O seu objecto poderia ser descrito como verdadeiro ou
falso. Logo, haveria apenas uma, e só uma, lei «correcta». Vale a pena
recapitular, à maneira medieval, que a vontade não é equivalente a um
simples capricho, a um desejo desnorteado. Ela é, como sempre foi,
«apetite racional» cujo objecto é aquilo que é bom.290 O intelecto prepara a
escolha. Há uma cognição que precede o acto de vontade. Nessa medida, é
adequado falar de uma cooperação entre vontade e intelecto na
prossecução do que é bom. Fazendo o paralelo com a soberania percebe-se
facilmente que uma boa arquitectura do governo e do Estado não dispensa
os órgãos e as estruturas cognoscentes que apoiam a decisão política. Esta
não pode ser cega ou arbitrária do ponto de vista da adequação dos fins e
dos meios. Mas supõe ao mesmo tempo que não são esses os órgãos nem
as estruturas da decisão. Quando é tomada e publicamente assumida, ela é
obra da vontade política, o que vale por dizer da vontade soberana. Neste
sentido, as várias doutrinas da soberania são sempre infalivelmente
críticas da tecnocracia ou, mais arcaicamente, das concepções
aristocráticas de governo.
23. Uma pessoa hipócrita de corpo e alma
Por ser representante, a pessoa civil criava um dever de obediência no
representado, ou o autor do representante, e, por conseguinte, autor das
palavras e vontade do representante. Era na base desta ficção de que a
vontade do representante-soberano corresponderia à vontade do cidadão,
ou como se fosse a vontade do cidadão, que assentava a relação da
soberania com a sociedade. Para o cidadão, cada acto do soberano era
como se fosse o seu acto, cada escolha a sua escolha. Daí se deduzia não
apenas que se cometia uma injustiça quando fossem desobedecidas as leis
do soberano, mas que os cidadãos tinham o dever de submeter a sua
vontade e o seu julgamento aos do soberano em tudo o que dissesse
respeito ao público, que no caso hobbesiano correspondia essencialmente
aos temas da paz e da segurança. Tinham ainda o dever de mobilizar a sua
força pessoal para conferir «poder» ao governo do soberano. Seria assim
injusto e absurdo desobedecer, ou sequer contestar, uma vontade que era
(como que) a minha própria vontade. Claro que isto criava imensos
problemas a Hobbes na sua teoria do direito de punir. Não era crível que
os cidadãos aceitassem o julgamento soberano de punição das suas
pessoas como se fosse o seu julgamento também. Aceitar que os cidadãos
fossem considerados agentes que concordariam com o seu próprio castigo
– que no limite podia significar a condenação à morte – seria contraditório
com o móbil do pacto fundador do Estado civil e da própria soberania: o
medo da morte violenta.291 Afinal de contas, a relação de representação é
coincidente com uma autorização dos cidadãos. Porém, a punição pela
desobediência à lei não era contraditória com nenhuma parte do sistema
porque, primeiro, o direito do soberano era o direito a todas as coisas, o
que incluía o direito de punir, e, segundo, o indivíduo quer a lei geral, que
inclui a cláusula penal, como condição da ordem, mas não quer o seu
próprio castigo se as circunstâncias concretas assim o ditarem. Hobbes
concedia ao criminoso justamente condenado o direito de resistir à
execução da sua condenação, se necessário pela força.292 Havia um último
reduto de direito natural subjectivo – o direito de autopreservação e o seu
correlato direito de autodefesa – que nunca podia anular-se. Hobbes
reconheceu-o por completo. No caso extremo da ameaça à vida e
integridade corporal do indivíduo, o direito natural deste interpunha-se ao
direito do soberano, sem o limitar. Um conflito de direitos absolutos
seguir-se-ia e o desfecho seria decidido pela força e pelo acaso.
Por meio desta autorização, a obediência do cidadão adquiria contornos
de identificação com o soberano, o que tornava o mando soberano muito
menos sinistro do que uma crua sujeição e muito mais do que uma
cidadania de corpo inteiro sugeriria.293 E aqui tornava-se mais transparente
o que queria dizer o poder absoluto da soberania. Não se tratava de
omnipotência pura e dura, mas de plenitude de direito. Ninguém podia
interpor ou contrapor um outro direito que invalidasse ou anulasse o
direito do soberano. Reconhecia-se ao soberano o direito a todas as coisas
na consecução da tarefa da paz e da segurança.294 A soberania dava a
quem a detinha uma preeminência de pleno direito sobre os seus súbditos.
Pois era uma condição mais relevada comandar do que obedecer, dispor
da vontade dos outros do que depender da de outros. Mas não significava
a omnipotência da acção política.295
Para sermos rigorosos, isto nem fazia inteira justiça à teoria da
soberania de Hobbes. E é preciso acrescentar que não seria certamente
verdade para teorias posteriores da soberania que se liberalizaram, por
assim dizer, e tiveram de assimilar direitos infra-soberanos, individuais ou
grupais, que podiam, de facto, interpor-se ou contrapor-se ao direito do
soberano efectivamente limitando-o.
A comunidade política como persona civilis resolvia ainda outro
problema que sempre acompanhou as teorias da soberania. Sendo o
soberano o representante, era pelo acto de representação que se constituía
um povo uno. No estado de natureza anterior à edificação da soberania
apenas existiam indivíduos. A personalidade era estritamente jurídica.
Logo, só havia pessoas «naturais» ou «artificiais» no seio da comunidade
política, ou da civitas. Ora, o povo que constituía a comunidade política
era uma pessoa, ao passo que a multidão era apenas um conjunto informe
de indivíduos. O povo era formado, não por indivíduos, mas por cidadãos
ou por súbditos. Não existia, portanto, um povo antes de haver soberania.
O povo só se constituía pela representação conferida pela «alma»
soberana. «É a unidade de quem representa, não a unidade do
representado, que faz a pessoa una. E é o representante que comporta a
pessoa, que é uma só.»296 Ficavam negadas as hipóteses habituais para o
princípio de unidade do povo, como o passado comum, a ortodoxia
religiosa ou a homogeneidade linguística. Diga-se, de passagem, que era
um problema nada pequeno e que teria de ser revisitado pela teoria da
soberania em tempos democráticos posteriores – e é o que faremos no
próximo capítulo. Destruída a soberania – por uma invasão externa, por
uma crise política ou por uma guerra civil –, o povo dissolvia-se e
regressávamos à multidão. Hobbes acabou por consolidar a sua teoria da
soberania com uma conceitualização da corporização do Estado e do povo
mediante a representação.
Como se converteu o Estado numa pessoa, e por arrastamento o
soberano também, ambos passaram a gozar de uma substância própria
distinta da substância dos indivíduos que o constituíam. Grócio não fora
daqueles que adoptaram a perspectiva da pessoa do Estado. Mas já
dissera, antes de Hobbes e antes de Pufendorf, que a soberania (summa
potestas) era uma faculdade moral, um direito moral, de um corpo de
cidadãos. Por conseguinte, a formação de uma substância moral própria no
pináculo do Estado apontava já para a sua personalização.297
Desse passo resultou uma outra transformação. A distinção clássica
entre governantes e governados foi substituída pela relação entre
soberania e indivíduos, com efeitos, como não podia deixar de ser, sobre o
conteúdo e natureza da actividade de governar.298 Nessa medida, o
conceito de representação, entendido na sua forma moderna como
substância própria da soberania, demarcou-se imediatamente da figura
medieval da representação imperativa, semelhante à figura do mandante e
do mandatário. Foi sempre, e é ainda hoje, uma discussão politicamente
problemática. À pergunta tradicional «quem governa?», a soberania
acrescentou estas: onde se governa? quem representa? e quem é
representado? Não podemos atacar esta teoria da política por uma alegada
falta de actualidade.
A meditação em torno da noção de soberania trouxe a novidade de se
juntar os contributos das teses da corporização das entidades jurídicas
com os contributos das teses da personificação das entidades jurídicas.
Tanto o Direito romano como a tradição cristã tinham desenvolvido
durante séculos a ideia de que associações de vários tipos adquirem um
corpo jurídico. Isso valia para as confrarias, as guildas, as agremiações, as
universidades – todas eram corpos. Mais, a tradição cristã, desde a sua
fundação com Paulo, assimilara a Igreja universal ao corpus Christi que
era evidentemente um corpus mysticum.299 E, como Ernst Kantorowicz
mostrou num magnífico livro que se tornou incontornável,300 a política a
partir do século XIII apropriou-se da reivindicação eclesiológica para
conceitualizar o corpo político – o corpus reipublicae mysticum ou o
corpo místico da comunidade política. Antes disso, o conceito de corpus
mysticum já vinha sendo sensivelmente imanentizado pela própria Igreja,
pelo que a sua politização não apareceu como uma inovação disruptiva e
agressiva. De resto, durante praticamente os primeiros mil anos da
tradição cristã a expressão corpus mysticum fora usada para descrever a
Eucaristia, e só por volta de 1150 se «sociologiza» para descrever a
realidade da Igreja como corpo organizado até se tornar numa corporação
(mística). A secularização começara em casa. As lutas entre o Império e a
Igreja, ou entre o regnum e o sacerdotium, que já tivemos a oportunidade
de visitar, fizeram o resto. Criaram o contexto certo para uma politização
das doutrinas incorporativas. Mas ainda estávamos distantes da
personificação do Estado. O regnum ainda não fora «personificado».
Corporificação e personificação não significam o mesmo, embora a
segunda pressuponha a primeira. Citando Kantorowicz: «Era sobretudo
porque o Estado podia ser concebido como um “corpo”, que se podia
construir a analogia com o corpo místico da Igreja. O paralelo, por assim
dizer, articulava-se com a palavra corpus, e não com a palavra persona
[...].»301
Por outro lado, a personificação das entidades jurídicas inaugurada pelo
génio jurídico romano quedara-se sempre pelo reduto do direito privado.
Foi já muito tarde com Inocêncio IV (1243-1254) que se converteu a
universitas numa pessoa colectiva puramente intelectual, sem corpo, que
não morria, e, por conseguinte, fictícia. Era uma «pessoa representada» e,
nessa medida, persona ficta. Enquanto tal, não podia ser excomungada,
por exemplo.302 Coube ao século XVII, pela mão de Hobbes, reunir estes
dois fluxos conceituais num mesmo esforço de teorização do Estado. O
Estado enquanto «pessoa artificial» não morria de morte natural, por
assim dizer, mas era mortal, sujeito como estava a uma guerra civil. Em
contrapartida, não podia ser declarado culpado por actos injustos. A
«incarnação» medieval não correspondia exactamente à «representação»
moderna instaurada por Hobbes. Se um actor «incarna» uma personagem
confundindo-se com ela, na «representação» o actor guarda sempre uma
distância vital entre si mesmo e a personagem. Mas é essa distância que
permite uma «ipseidade mediata»303 em que a vontade do representante é a
minha vontade, se bem que seja ele a formar e a articular a vontade, e não
eu, o representado a formar a minha, concluindo-se que sou eu que estou
vinculado a ele e à sua vontade, não ele a mim, apesar de ser entendimento
comum a mim e a ele que a vontade pública formada não é dele. O
representante-soberano torna-se o (único) princípio de unidade de uma
comunidade radicalmente diversa e, sendo soberano, não pertence à
comunidade propriamente dita. É o ponto transcendente à comunidade que
a sustenta no ser. Ora, trata-se isto de uma ficção que exige do cidadão e
do soberano um esforço cívico considerável.
Por esta via revela-se uma outra dimensão do carácter absoluto da
soberania. Na filosofia medieval cristã, Deus, sendo o Ser, era o
sustentador dos seres contingentes. O universo criado inclinava-se
incessantemente para o nada e é do nada constantemente salvo pelo dom
gratuito de Deus, seu criador.304 De resto, não foi neste ponto que Calvino,
por exemplo, se afastou da tradição. Pelo contrário, confirmou-a.305
Sobretudo a partir de Hobbes, embora já com precedentes importantes em
Bodin, a conceptualização da soberania parecia seguir um caminho
equivalente mutatis mutandis. A soberania era o direito de fazer leis
mediante a vontade própria, o que valia por dizer de criar obrigações
públicas, vínculos de obediência, onde não existiam. Era ainda o direito e
a capacidade de mobilizar a força dos membros da comunidade política
para a sua própria salvaguarda. Por conseguinte, a soberania podia existir
como o sustentador do ser contingente da comunidade política. A
soberania não era a sua própria causa, nem a origem da sua própria
essência. Era uma criação ou um efeito de outras causas, questão que
apoquentaria seriamente as sucessivas gerações de soberanistas. Mas na
sua existência a soberania convertia-se imediatamente em sustentador do
ser da comunidade política em que estava inserida, o que valia por dizer
em sustentador do ser da ordem política – dava-lhe existência e
conservava-a enquanto durava. Era esta a razão metafísica para a
insistência no carácter absoluto – e, já que estamos com a mão na massa,
indivisível também – da soberania. Em que termos é que esta analogia
teológica e metafísica podia fazer sentido? A partir de um certo
entendimento da relação entre a lei, e a ordem jurídica, de um lado, e a
força normativa de ambas, do outro, no contexto de uma comunidade
política organizada. A lei dependeria de actos de vontade sucessivos, não
só para a criar, mas também para fazê-la perdurar no futuro. A vontade
(soberana) expressar-se-ia segundo determinadas modalidades
devidamente antecipadas no caso normal, e formalizadas no momento
excepcional. Essa vontade seria a fonte para a criação, validade e
vinculatividade normativa da lei no presente e no futuro. No fundo, a força
obrigatória da lei seria proveniente, a par da normatividade de princípios
jurídicos fundamentais, da força obrigatória da vontade emanada da
autoridade soberana. Ou mais rigorosamente: o peso ético da
normatividade dos princípios jurídicos fundamentais nunca seria
suficiente para formar a obrigação jurídica da obediência. Sem o vínculo
formado pela existência da autoridade soberana, que assume
implicitamente, pelo simples facto de existir, um conjunto de funções que
seria cansativo repetir, a ordem jurídica não subsistiria. Seria, então, a
soberania a sustentar o ser da ordem jurídica, da lei, das obrigações de
obediência, numa palavra, do núcleo jurídico da comunidade política.306
A partir de Hobbes passou a ser difícil conceitualizar o Estado sem o
tornar representativo. Independentemente das formas de governo, e indo
muito além da experiência particular do liberal governo representativo de
um John Stuart Mill, a comunidade política europeia passou a ser
impensável senão recorrendo ao dispositivo representativo. Uma a uma, as
monarquias seguiram o caminho de atribuir ao monarca o papel de
representante. Mais tarde, as democracias quiseram distinguir-se pelo tipo
de representação política que garantiam. Os Estados autoritários e
totalitários apelaram sucessivamente a categorias não-liberais de
representação, de uma representação de tipo histórico ou até existencial.
Mas o horizonte da representação política tinha vindo para ficar. Não
haveria um Estado propriamente dito, mas apenas uma entidade em
transição, sem representação. Tornar presente o que está ausente enquanto
ausente, fosse através de um parlamento de deputados livremente eleitos
pelo povo eleitor, fosse através de um líder totalitário investido de uma
missão sobre-humana, passou a ser um desempenho constitutivo da ideia
do Estado moderno.
Sucede que, a partir daqui, com a conjugação do Estado neutro e a
federação da diversidade mais a representação política, o Estado moderno
guardou para si duas actividades que não podiam abrandar. Duas formas
de repressão que não podiam ser interrompidas sem fazer regressar os
males que o Estado moderno pretendia resolver, ou pelo menos manter à
distância, fora de muros. A repressão da devoção religiosa com expressão
pública e a repressão da actividade cívica máxima com a participação
directa nos assuntos do Estado. Doravante, o Estado privatizava a
religiosidade e esgotava a relação política do cidadão nos moldes da
representação.307 Havia compensações, como vimos, na mobilização para
o progresso das condições materiais de existência de todos, ou o
crescimento económico motorizado pelo desenvolvimento técnico-
científico do conhecimento, e na expressão artística e cultural. Mas as
compensações não eram a forma de substituição perfeita.
24. Proteger e servir
É um lugar-comum dizer-se que Hobbes definiu a função do soberano
na obtenção da segurança dos cidadãos. Não é por ser comum que o lugar-
comum passa a ser falso. Nada disso. E as consequências dessa
concentração na segurança, em prejuízo implícito de todos os fins
tradicionalmente atribuídos ao governante, como, por exemplo, criar as
condições para a vida boa, o prestígio do soberano, ou a educação da
população para a verdadeira religião, são importantíssimas para o projecto
de sociedade que decorre da proclamada prioridade. O que é preciso
desmentir é a pretensão de que Hobbes foi o primeiro a associar a
segurança dos indivíduos à função primordial da soberania. Basta ler com
atenção o incontornável Bodin para perceber que «a palavra Protecção em
geral estende-se a todos os súbditos que estão em obediência a um
Príncipe ou a uma senhoria soberana». Na verdade, «o Príncipe está
obrigado pela força das armas e das leis a manter os súbditos em
segurança das suas pessoas, bens e família». O bem da segurança é dado
em troca de uma conduta essencial para a sustentabilidade da soberania:
«Os súbditos por obrigação recíproca devem ao seu Príncipe boa-fé,
sujeição, obediência, auxílio e socorro.» Mais, Bodin foi além de uma
simples e fria contratualização da troca de protecção por obediência.
Politizou-a e elevou-a. «O direito de protecção é mais belo, mais honroso,
mais magnífico que todos os outros.» Porquê? Porque dele resulta um
«reconhecimento» do súbdito – um reconhecimento de «superioridade».
Bodin ia ao ponto de dizer que um «príncipe soberano» que se ponha
debaixo da protecção de um outro «perde o direito de soberania», na
medida em que estará a reconhecer alguém superior a si e, portanto, a
reconhecer que não é soberano.308
Mas Bodin também elevou o sentido moral e político da protecção. Não
havia promessa mais forte do que a que era feita de defender os bens, a
vida e a honra do fraco contra o mais forte, do pobre contra o rico, dos
bons afligidos contra a violência dos maus. A construção pela acção
protectora da soberania de um plano de igualdade é inequívoca desde
Bodin. Tal torna a obediência mais robusta e mais moralmente densa do
que seria o caso de um típico contrato de compra e venda. A protecção
soberana não é idêntica à protecção conferida por uma empresa de
segurança.309
O binómio da protecção/obediência, tão glosado a propósito de Hobbes,
era constitutivo de uma relação de superordinação/subordinação, quer
tivesse um carácter contratual explícito ou implícito. Porém, não se podia
confundir um poder eminentemente político e público com as relações
antigas dos patronos com os seus libertos, nem com as relações
tipicamente medievais dos senhores com os seus vassalos. O compromisso
da segurança em troca da obediência aí também vigorava. Mas a lealdade
política que se queria construir era a dirigida ao poder soberano que em
troca também prometia uma segurança muito mais completa. A promessa
do Estado moderno foi desde o início mais poderosa do que a das
alternativas.
A lógica contratual que fundou a soberania nunca desapareceu da teoria
do Estado de Hobbes. Isso significava que os limites à soberania que,
formalmente, pareciam inexistir, apareciam na sua forma mais elementar a
partir da lógica contratual. Se os indivíduos abandonavam o estado de
natureza, e com ele, o seu direito natural a todas as coisas, numa óptica de
estrita condicionalidade, isto é, em troca da protecção e de nada mais do
que da protecção que só um soberano constituído pela transferência do
direito natural incondicional dos indivíduos podia proporcionar, então a
obrigação de obedecer ao soberano era também estritamente condicional.
Se o soberano protegia, o cidadão tinha um dever indeclinável de
obedecer. Se o soberano não protegesse, se o soberano não conseguisse
proteger, então cessava igualmente a obediência. Hobbes concedia uma
espécie de direito de secessão aos indivíduos que eram as partes no
contrato gerador da soberania. Porquanto na transferência de direitos
individuais que formava o conteúdo do dito pacto os indivíduos não
transferiam o seu direito natural à preservação de si, nem ao consequente
direito de autodefesa quando a sua preservação, no sentido lato, era posta
em causa. Era preciso levar a sério este sentido lato para compreendermos
a abrangência da promessa do Estado soberano. O direito à
autopreservação estendia-se não só às ameaças à vida, mas também à
integridade corporal e à liberdade de movimentos. Estendia-se ainda à
obtenção de meios para uma vida «confortável» ou à oportunidade para
obter os recursos necessários para uma vida com padrões materiais
minimamente toleráveis, e em Pufendorf uma aposta deliberada naquilo a
que hoje chamaríamos crescimento económico.310
Nada além da protecção justificava a obediência a outrem por
indivíduos livres e iguais uns aos outros. O que valia por dizer que só o
bem da protecção individual num meio de elevadíssimo grau de
conflituosidade justificava a soberania. Mas também valia por dizer que a
soberania era o nome do único instrumento humano que garantia a
protecção pública – até falhar, evidentemente – sem sacrificar a
individualidade dos cidadãos, ou a diversidade do tecido social, nas suas
condutas, nas suas ideias, nas suas opiniões, nos seus interesses, nas suas
convicções.
Com Pufendorf, tínhamos a mesma atribuição de funções primordiais à
soberania que tínhamos com Bodin e com Hobbes. A sociedade pacífica, a
segurança dos cidadãos, a neutralização das «inclinações viciosas» e das
«sementes da discórdia» dos indivíduos, o auxílio de força à recta razão
impotente, eram os objectivos a realizar pela soberania. Dito de forma
solene e proclamatória, «a soberania foi estabelecida para a preservação
do género humano» – daí que devesse «ser tida como uma coisa sagrada e
inviolável por toda a gente».311 Ela vinha criar ordem num tecido cujas
inclinações naturais produziam a desordem. Por outro lado, os
aglomerados humanos mostravam uma diversidade tremenda de
«inclinações» e de «sentimentos», uma diversidade de «opiniões» que se
gravavam teimosamente no espírito das pessoas ao ponto de elas se
entrincheirarem em grupos desrazoáveis e conflituosos. Além disso, a
multidão inevitavelmente diversa mostrava uma incapacidade essencial de
espontaneamente gerar acordo sobre fins que quisesse prosseguir em
comum. Só o poder soberano podia remediar estas carências, ou os efeitos
nefastos destas carências, sem reprimir a diversidade que lhes estava
subjacente.312
A ideia de que o poder político servia de autoridade para regrar ou
ordenar os comportamentos humanos não era nova. Pelo contrário, era
uma tese central da filosofia política de orientação cristã. O Estado era
visto como o remédio para os efeitos violentos decorrentes da inclinação
pecadora do ser humano. Isso foi dito e repetido por homens tão diferentes
como Agostinho, Calvino, Lutero, Vitoria, Suarez. Mesmo os pensadores
cristãos aristotélicos, que não se atreviam a esquecer de recapitular a tese
de que o homem era um ser vivo político por natureza, e que, portanto, o
Estado, ou a comunidade política, eram co-naturais a ele, não se sentiam
satisfeitos sem acrescentar um outro aguilhão para a reunião sob um
governo. Eram os efeitos conflituosos, violentos, ou simplesmente de
perda de auto-suficiência, que advinham da desobediência a Deus do
primeiro homem e da primeira mulher. Se a tese aristotélica apontava para
além da necessidade de colmatar a insuficiência de cada um para prover às
coisas básicas da vida, mas realmente para as necessidades e
aperfeiçoamento da natureza do homem enquanto ser racional-moral, já a
tese teológica remetia para uma carência radical da humanidade que, não
podendo ser suprida sem a graça divina, podia ao menos ver os seus
efeitos perniciosos contidos por um instrumento natural-divino, o governo
ou o poder organizado na comunidade política.313
Como é que a soberania operava esta transformação? Procedendo de um
acordo de vontades individuais, a soberania operava a unificação da
vontade pública. Sem dúvida que, ao mesmo tempo, era preciso equipar a
vontade soberana com a espada. A soberania reunia todas as forças
dispersas na sociedade, organizava-as e mobilizava-as para o
cumprimento da vontade pública unificada. Esta era, porventura, o maior
contributo que a noção de soberania podia dar à questão da geração e
manutenção da ordem política. Infelizmente, é o contributo
invariavelmente ignorado pelos críticos contemporâneos da noção de
soberania.
Não existia ordem sem uma reunião das vontades. A dificuldade óbvia,
e que todos os teóricos da soberania confrontaram, cada um à sua maneira,
residia aqui: era preciso reunir vontades de seres que possuíam vontades
diferentes e que não acomodavam mecanicamente a sua vontade a uma
outra vontade que transcendia a deles. Mais, a acomodação, ou o
ajustamento, da vontade individual devia, de algum modo, reunir-se às
demais vontades sem que essa decisão arrastasse consigo a aniquilação da
vontade individual nem produzisse, por uma multiplicação, a
uniformização da sociedade. Por outras palavras, a soberania pretendia
produzir uma ordem que tinha de consistir na reunião das vontades sem
sacrificar por inteiro a livre determinação das vontades individuais e
preservando, dentro dos limites da ordem, mas até aos limites da ordem, a
diversidade ou a heterogeneidade social. Contudo, a pergunta impunha-se:
como era possível obter este efeito? Não se estaria a tentar conciliar aquilo
que era uma pura contradição?
Não podemos esquecer que a soberania é um conceito político e, por
conseguinte, opera no, e através do, político. A ordem política, e
sobretudo a ordem política consciente de si mesma, opera a reunião das
vontades – sem sacrificar a livre determinação das vontades individuais
dentro dos limites definidos pelos imperativos da própria ordem –
unificando a vontade política. Em concreto, e levando por diante a
iteração que se desenha, isto significa unificar a vontade que determina em
última instância os grandes propósitos e movimentos da ordem política.
Os limites da ordem possuem como linhas definidoras as do Estado no
sentido amplo desta designação, segundo a ideia formadora que o justifica
e segundo critérios de extensão, manutenção e eficiência. No seio do
Estado, ou da comunidade política, a vontade – soberana – do órgão de
decisão suprema determina a «forma básica do mando que tem de ser
replicada em cada concretização» da expressão da ordem política.314 Numa
monarquia barroca, assim como num Estado de direito democrático, a
teoria política não pode ignorar a incontornabilidade do momento de
decisão pessoal – de unificação da vontade no órgão supremo de decisão,
seja este constituído por uma só pessoa natural ou por múltiplas pessoas
naturais. E essa decisão emite «comandos individuados» resultantes de
«processos históricos individuais de vontade».315 Como contraste com tal
conceito de ordem, e de princípio de ordem, desenham-se as ideias de
ordens políticas e jurídicas impessoais geradores de normas gerais, ou não
individuadas. Ora, segundo a ideia da ordem política apoiada na, e
produzida pela, soberania, o carácter decisivo e efectivo da vontade
pública convertida em comando supremo que sustenta a geração de todas
as normas do sistema, e que reivindica imediatamente obediência, sob
pena de nenhuma norma no sistema ser obedecida, é indispensável. Como
sublinhou Herman Heller, não quer dizer que a obediência infalível a cada
comando individual seja condição estritamente necessária para a
sobrevivência da ordem, já que não se pode supor essa eficácia universal
em nenhuma circunstância histórica.316 Quer dizer, sim, que a efectividade
do mando é sem dúvida indispensável para obter o resultado geral
constitutivo da ordem política. A soberania é força, ou recorre à força,
como suplemento da obediência em reconhecimento da autoridade. Mas é
força apenas enquanto suplemento. Se for mais que suplemento, a
soberania dissolve-se a si mesma. A ordem entra num momento precário
de existência. Em rigor, deixa de haver ordem e passa a reinar um
condicionamento social produzido pela violência e que nem esta é capaz
de fazer persistir indefinidamente no tempo.
Hobbes rompeu com os limites formais ainda que vagos que eram
impostos ao conceito de soberania na teoria e na prática. A ordem e a
obediência tornavam-se as traves mestras que não só podiam, mas exigiam
que se dispensasse componentes adicionais ao conceito. De tal modo
assim foi que, uma vez separada a questão da sucessão monárquica
legítima da consolidação da soberania, desligou-se quase definitivamente
a relação entre soberania, com os seus direitos a ser obedecida, e a
legitimidade. Nas recorrentes discussões sobre se um usurpador, que
tivesse obtido a soberania de modo ilegítimo e injusto, devia ser
reconhecido como soberano e, por conseguinte, obedecido, a resposta de
Hobbes e de Pufendorf era inequívoca: foi estabelecida a ordem e a
segurança nos termos que a teoria precavia? Então, a obediência era
devida e o problema da legitimidade era atirado para os braços dos
inconsequentes políticos ou dos fanáticos desordeiros. A ordem, a
protecção e a prosperidade gozavam de prioridade sobre os interesses
histórico-filosóficos de um punhado de sectários que estavam dispostos a
arriscar uma sucessão de desastres inomináveis para fazer valer as suas
razões. Tinham aprendido com o mestre Bodin.
De resto, a introdução da modalidade da «soberania por aquisição» na
obra de Hobbes, que complementava a «soberania por instituição» com o
seu esquema contratual, visava revestir de realismo histórico a sua
filosofia do Estado. Por outras palavras, na História nunca teria havido
qualquer momento em que indivíduos vivendo num estado de natureza se
tivessem aproximado para firmar um pacto constituinte da soberania. Mas
houve aos milhares exemplos de soberanias fundadas pela vitória militar.
Um século depois de Hobbes, David Hume, o «profeta da contra-
revolução», como foi nomeado algo equivocamente por um comentador
com muita simpatia pelo filósofo escocês,317 sublinharia este ponto de
realismo histórico para aniquilar as pretensões do contratualismo de tipo
lockiano. A sensibilidade conservadora de Hume sentia-se ameaçada pelas
consequências políticas democratizantes que inevitavelmente se retirariam
do contratualismo popular, assim como repugnava ao seu cepticismo
filosófico as construções políticas abstractas desligadas das necessidades e
contingências históricas. Ora, na sua leitura, praticamente todos os
Estados, povos, comunidades políticas, soberanias, tinham sido formadas
pelas vitórias militares, pelas conquistas, por extermínios e por expulsões,
quer dizer, «sem qualquer pretensão de legítimo consentimento ou
sujeição voluntária do povo». O lado negro da História da Humanidade –
«a fraude e a violência» – com a sua irresistibilidade deitava por terra os
sonhos de alicerçar a edificação da ordem política noutros apoios mais
edificantes.318 Em plenos séculos XVII e XVIII, Maquiavel fazia finalmente
sentir toda a sua influência: a legitimidade era uma complicação
fantasiosa, indemonstrável e, em muitos casos, desestabilizadora. O perigo
desta conclusão faria tremer muitos, incluindo alguns dos notáveis
teóricos posteriores da soberania. Mas já Grócio, que acompanhava os
receios de desordem que uma ênfase excessiva na legitimidade
acarretaria,319 também defendia o uso da força para libertar um povo da
opressão de um soberano que eles próprios tivessem estabelecido.320 Diga-
se, de passagem, que ambivalências deste género de Grócio em vários
casos bicudos fariam dele um herói reivindicado por diferentes campos
teóricos em confronto entre eles.
Mas o que não era menos decisivo era a questão da fonte dessa
soberania. Em Hobbes mais nitidamente do que em Bodin, e tal como em
Pufendorf pouco tempo mais tarde, a fonte da soberania era o
consentimento individual, independentemente das (muitas) objecções que
a teoria do consentimento de Hobbes pudesse levantar. A ordem tinha
como seu princípio efectivador um poder e uma acção política que situava
a sua origem no consentimento individual. A verdadeira razão por que este
poder externo ao tecido social podia pacificá-lo e ordená-lo, recorrendo à
violência quando necessário, sem arrasar a sua diversidade, encontrava-se
aqui. A matéria da soberania era o conteúdo moral primordial
caracterizador da vida humana, o direito (natural) do indivíduo. Na célebre
máxima do direito que todos estes autores contratualistas não se cansaram
de repetir: ninguém pode dar ou transferir mais do que tem, ou o que não
tem. Mais, como Pufendorf notou de um modo decisivo ao refutar os
autores que viam em Deus a sua única origem, a soberania política não era
da mesma natureza do «império» que Deus tem sobre os homens na
qualidade de criador deles.321 A vontade humana criava uma vontade
política. Mas agora uma vontade que politizava um território e criava um
padrão de conduta. Isto é, a vontade política revestia de sentido moral
actos e omissões vinculando todos os indivíduos dentro das mesmas
fronteiras do território.
A acção da lei geral operava este efeito. Quando Francisco de Vitoria
perguntou quais eram as diferenças entre a lei divina e a lei humana,
concluiu que havia apenas duas. Primeira, a de que a lei divina provinha
de Deus e, por conseguinte, não podia ser revogada nem modificada por
nenhuma agência humana. Segunda, o fundamento da justeza da lei
divina, assim como a razão da sua vinculatividade ou da formação da
obrigação de que seja obedecida, era apenas ser resultado da vontade de
Deus, além de que a responsabilidade pela obediência à lei divina seria
«mais intensa». O que vale por dizer que a lei humana podia ser nulificada
ou alterada por outras agências humanas, e que a vontade do legislador
humano não era suficiente para garantir a justeza e a vinculatividade da
lei, já que outros requisitos objectivos adicionais teriam de ser cumpridos,
incluindo o da utilidade para a comunidade política. Mas na sua
semelhança a lei humana e a lei divina tinham o poder de determinar que
algo por uma e outra prescrito se tornava «essencial e genericamente
virtuoso» e aquilo que era proibido pela lei humana ou pela lei divina se
tornava vicioso. A lei humana, tal como a lei divina, criava um dever, cuja
violação acarretava uma retaliação, um castigo ou uma pena. A lei divina,
tal como a lei humana, criava um dever de obediência e tinha o poder de
imputar culpa aos desobedientes.322 Assim, tal como a bondade da vontade
se media pela adequação e obediência à vontade de Deus, e,
correspondentemente, a maldade da vontade se media pela desadequação e
desobediência à lei divina, também a bondade da vontade do cidadão
enquanto cidadão se media pela sua adequação e obediência à lei do
legislador humano, valendo o raciocínio inverso para a obediência.323
25. O caso do Hobbes alemão
Dentro das fronteiras do Sacro Império Romano-Germânico, igualmente
abalado pela devastação e intratabilidade das guerras religiosas, Samuel
Pufendorf pontificava na filosofia política e no jus publicum. Conhecido
por alguns, maioritariamente seus detractores, como o «Hobbes alemão»,
Pufendorf seria muito mais do que um simples glosador do autor de
Leviatã. O maior tradutor do século XVIII, Jean Barbeyrac, que foi muito
mais do que um simples tradutor, embora devoto de John Locke e de
Richard Cumberland, admitia que, não obstante ter sido encaminhado por
Hugo Grócio, Pufendorf «se não alcançou a perfeição, pelo menos não foi
superado, tudo ponderado, por nenhum outro autor neste género [de
filosofia]».324 Na obra que dedicou ao tema da educação das crianças e dos
jovens, le sage Locke recomendou aos educadores que, depois de
devidamente assimilados os Deveres de Cícero, dessem Grócio e
sobretudo Pufendorf a estudar aos educandos para que se instruíssem
devidamente nas nobres matérias dos «direitos naturais dos homens, das
origens e fundações da sociedade e dos deveres que daí resultam».
Nenhuma obra era mais notável do que De jure naturae et gentium, de
1672.325 Pufendorf foi assim erigido à condição de mestre do direito, da
filosofia política e da ética. Talvez seja mais avisado acrescentar: era
assim prestigioso aos olhos alguns dos grandes pensadores modernos...
Barbeyrac ofendia-se se alguém sugerisse a essencial fidelidade
filosófica de Pufendorf ao monstruoso Hobbes. Nenhum sistema filosófico
poderia estar mais distante das teses odiosas de Hobbes e Maquiavel – um
era associado ao outro não sem alguma dose de arbitrariedade ou, para ser
mais benevolente, não sem uma forte dose de intenção polémica – do que
o de Grócio e de Pufendorf. Mais, a defesa de Barbeyrac foi tão fervorosa
que chegou a dizer que Pufendorf não fez outra coisa senão proceder à
refutação dos «princípios fundamentais» hobbesianos. Negava com igual
fervor que com esses horríveis princípios pudéssemos extrair as
conclusões políticas e morais do sistema de Pufendorf.326 É caso
suficientemente flagrante para prevenir o leitor de que Barbeyrac também
tinha a sua própria agenda, como hoje se diz, de teor filosófico, político,
moral e teológico.
Tal como Hobbes, Pufendorf partia de um estado de natureza anterior à
constituição do Estado. E tal como Bodin via nos chefes de família os
futuros cidadãos do Estado uma vez este constituído.327 Tal como Hobbes,
Pufendorf assinalava os «inconvenientes», males e agruras da vida, numa
palavra, o medo reinante no estado de natureza. Era esta inquietação que
fornecia a motivação principal para a renúncia contratual à liberdade
natural e consequente saída do estado de natureza rumo à construção do
Estado político, e não a procura dos prazeres e de uma existência «mais
confortável».328 A base passional era mais sólida e garantida do que a
suposição de que os homens desejavam a sociedade política, a busca do
bem juntamente com os seus semelhantes, a probidade humana, ou a
meditação com a ajuda da recta razão sobre a necessidade dos deveres de
obediência ao governo político. Foi assim, respondendo às ficções
piedosas de Richard Cumberland, que Pufendorf encerrou o assunto.329
Era como se Pufendorf dissesse: fiem-se nos nobres motivos e verão o
desastre político e moral que criarão.
À semelhança de Hobbes, Pufendorf era um contratualista, isto é, a
constituição do Estado e, por maioria de razão, da soberania devia ser
interpretada ao modo de um efeito contratual celebrado entre pessoas
morais, neste caso, os chefes de família que vivem no estado de natureza.
Estes entes morais criavam uma relação nova de tipo contratual em que,
tal como em Hobbes, renunciavam e transferiam os seus direitos de
liberdade natural para a constituição de uma outra pessoa moral artificial –
o Estado soberano. Daqui decorria que o fundamento último da
constituição da soberania do Estado era o consentimento
individual/familiar. O exercício da soberania não estava dependente do
consentimento dos cidadãos, como, de resto, não estava nem em Bodin,
nem em Hobbes, nem em Pufendorf – daí a sua reputação «absolutista».
Mas a constituição da soberania tinha, ou devia ser interpretada como
tendo, um fundamento no consentimento e, por essa via, uma origem
democrática. Pufendorf acabava por admitir que o contrato de formação
do Estado era «uma espécie de democracia».330
Para se afastar o contágio da origem nos requisitos do exercício, por
outras palavras, para evitar que a democracia da constituição substituísse
a autocracia do exercício, é que se separou cada vez mais o momento da
constituição do momento do exercício. Essa separação seria a chave da
primeira vaga do constitucionalismo moderno, como veremos no capítulo
seguinte.
Uma vez formada a união de vontades e de forças era constituída a mais
poderosa das «pessoas morais» – o Estado. Recorrendo a um passo que
vinha de Hobbes, Pufendorf voltava a definir o topos da soberania na alma
desse tipo particular de «pessoa moral». O poder soberano era a «alma»
do Estado. Hobbes determinou-o decisivamente e Pufendorf, em grande
parte, embora não inteiramente, seguiu-lhe os passos.331
É preciso dizer desde logo que o modelo de contrato proposto por
Pufendorf não coincidia com o de Hobbes. Hobbes separara o momento da
constituição do(s) momento(s) do exercício, ou do governo, através,
primeiro, da colocação do soberano num plano transcendente ao universo
inter-individual do contrato, em que cada um pactua com o outro, e,
segundo, da transformação do soberano em representante do povo
constituído. Já Pufendorf iria elaborar a teoria que envolveria dois
contratos, ou a teoria do «duplo pacto». Haveria um primeiro pacto dito de
«associação» (pactum associationis ou pactum unionis) mediante o qual
se procederia ao abandono do estado de natureza e à constituição da
sociedade civil. Com esse primeiro pacto, os indivíduos ou os chefes de
família formariam por contrato sinalagmático um só corpo. Entre eles, os
indivíduos formariam direitos e deveres recíprocos, mas sem sujeição
política porquanto ainda não teria sido formada uma autoridade
centralizada. Barbeyrac torceu o nariz à justificação deste primeiro
momento contratual. Se a soberania era mesmo a «alma» do Estado, então
era pura perda de tempo num labirinto conceptual insistir tanto num tipo
de pacto que não produzia efeitos políticos e jurídicos decisivos.332 Não
custa dar razão a Barbeyrac, mas Pufendorf tinha as suas próprias razões.
Num segundo momento seria regulado o tipo de governo por meio de
uma ordenação ou de um decreto (decretum). O tipo de governo seria
escolhido pela maioria dos indivíduos, que daria forma política àquela
associação. Depois, num terceiro momento, haveria um segundo pacto,
desta feita de «sujeição» (pactum subjectionis), uma relação de obrigações
mútuas entre o povo e o príncipe, ou entre o povo e o seu governo,
instância que exerceria o poder soberano à luz desse pacto.333
A aceitação desta tese, ou das suas variantes, segundo a qual existiam
momentos lógica e cronologicamente distintos na formação contratual da
sociedade, do Estado e da soberania teve vastíssimas implicações. No
capítulo seguinte sobre a «soberania popular» iremos tratar as que
incidiram sobre o desenvolvimento deste conceito e sobre a abertura para
algumas das ideias-chaves do constitucionalismo. Hobbes não concebeu o
seu momento único contratual desta forma. Pufendorf interpretava a tese
do pacto único de Hobbes como tendo sido motivada pela obsessão de
Hobbes por destruir qualquer veleidade sediciosa. Vale isto por dizer que
Hobbes não queria vincular o soberano a nenhum acordo ou pacto porque
tal seria contraditório com o objectivo de equipar a soberania com poder
absoluto e de subtraí-la a quaisquer limites. Remover qualquer pretexto
para ripostar ao exercício do poder soberano era a prioridade de Hobbes,
segundo Pufendorf, o que seria fatal para a credibilidade do seu sistema. O
argumento político de Pufendorf pode ter a sua valia. Mas o mais
interessante é o argumento teórico. Se a soberania põe em movimento o
binómio protecção/obediência, então é porque está fundada num
compromisso recíproco: tu proteges-me e eu, em contrapartida, obedeço-
te. Sem uma promessa prévia, essa obrigação mútua existe? Em
comparação com Hobbes, poderíamos presumir em Pufendorf uma maior
inclinação para conceder aos cidadãos um verdadeiro direito de resistência
a ser exercido quando o soberano violasse a sua parte do contrato. Afinal
de contas, Hobbes argumentava que o soberano nunca podia agir
injustamente, e que, portanto, nunca daria razões justificativas da
desobediência e da resistência dos súbditos, pelo simples facto de não ser
parte de qualquer contrato.
É verdade que para Pufendorf a conclusão de um pacto de «sujeição»
conferia legitimidade, não só evidentemente ao poder político, mas
também para uma resposta dos súbditos ao poder político. Até porque ele
reconhecia que cada «pessoa privada detinha, por assim dizer, as sementes
do poder soberano».334 Com efeito, um pacto desse tipo, e até uma
estrutura teórica contendo dois pactos, abriam-se a interpretações políticas
contraditórias, pois serviram as pretensões tanto dos partidários do
fortalecimento do poder régio, como dos partidários dos direitos populares
de resistência.335 A leitura despótica, digamos assim, da teoria do «duplo
contrato» não era desprovida de sentido. Pufendorf diluía
consideravelmente a relação horizontal que, como vimos, baseava um
movimento de identificação do povo com o soberano não isento de
consequências políticas. O segundo contrato solenizava e formalizava uma
distinção rígida entre governantes e governados, diluindo a relação
diferente que Hobbes gerara entre soberano-representante e cidadãos-
representados. Num outro ponto crítico da perspectiva não-despótica ou
republicana, Rousseau veria com horror este recurso teórico de Pufendorf
que fundava a instituição do governo propriamente dito num contrato. Fiel
ao republicanismo popular que profetizava, Rousseau identificaria nele
uma armadilha para sujeitar o povo à obediência a um punhado de chefes.
Fiel à doutrina clássica da soberania que a tinha como absoluta, Rousseau
condenaria a tese como «absurda e contraditória», na medida em que a
soberania não podia sujeitar-se a um superior – o tal punhado de
governantes –, reduzindo-se ao estatuto de governados, e que limitar a
soberania era destruí-la. O putativo contrato nunca poderia ser «um acto
de soberania».336
Não obstante, Pufendorf receava quase tanto quanto Hobbes os excessos
de um reconhecimento lato da possibilidade de contestação às decisões
soberanas. Pufendorf, tal como Grócio antes dele, propunha que a relação
entre governante e governados fosse pensada à semelhança da relação
entre o senhor e o servo, ou entre o pai e o filho adoptivo. Por outras
palavras, seriam relações de tutela quanto à orientação do dependente no
que respeitava ao seu melhor interesse, ou no caso particular do Estado, da
sua segurança. Não era ao cidadão que cabia determinar para si mesmo
essa orientação. E não cabia ao soberano prestar contas das suas decisões
(precisamente, soberanas) na concretização dessa orientação geral.337
Na prática, Pufendorf acabava por conceder pouquíssimos direitos de
desobediência aos cidadãos contratantes com o soberano. Só podia
considerar-se violação dos compromissos do soberano actos extremos
como o abandono da governação do Estado, golpes de hostilidade contra
os cidadãos ou incapacidade de garantir o objecto contratual, sobretudo a
protecção dos cidadãos.338 Como Pufendorf admitira, contrariando
Hobbes, o soberano podia cometer uma injustiça contra os súbditos, por
violação dos seus «deveres de príncipe enquanto soberano», quando
abandonava inteiramente o cuidado; quando não protegia o Estado dos
inimigos; quando não mantinha a ordem pública por não executar as leis
do Estado; quando tratava os súbditos como inimigos; quando na
governação de diferentes povos, privilegiava uns e arruinava outros;
quando, sem uma necessidade premente, revertia as leis fundamentais,
para governar sobre um outro plano e ter mais poder do que devia; quando
dissipava os bens e as receitas do Estado; quando exigia grandes impostos,
mais do que pressupunham as despesas públicas.339 Em casos de tirania
praticada, surgia o direito de resistir em autodefesa. A negação da
possibilidade da autodefesa parecia a Pufendorf uma irracionalidade
inadmissível.340 Tirando essas situações extremas, desapareciam as razões
da contestação ou de desobediência. O pacto de «sujeição» mantinha-se
como um compromisso recíproco, mas era também um acto de sujeição –
uma sujeição traduzida num dever muito simples, o de não resistir à
vontade do soberano, porém consentido.341 Os limites ao poder soberano
decorriam sobretudo da «lei natural», e não de convenções estabelecidas
com o povo.342
Por outro lado, havia uma preocupação extrema com os perigos que
estas concessões ao julgamento individual do cidadão poderiam trazer. Ao
cidadão cabia julgar apenas algumas dimensões do exercício da soberania,
designadamente se esse exercício por comissão ou por omissão ameaçava
a preservação «confortável» do cidadão, podendo ele desobedecer se o seu
julgamento formasse opinião negativa da acção governativa. Não era em
Hobbes, nem em Pufendorf, um direito colectivo à resistência armada,
como seria em Locke, por exemplo, mas era indubitavelmente uma
suspensão do dever de obediência, um direito individual de resistência e
uma recuperação integral dos seus direitos naturais e prerrogativas
subjectivas. Um elenco que para Hobbes não podia senão ser
anatematizado. Contudo, era preciso perceber que nem a admissão destas
restrições morais à conduta do soberano levava Pufendorf a afirmar o
direito de resistência colectivo ou de revolução. Paciência, recomendava
ele, paciência para com as «injustiças ligeiras» dos príncipes, não
descurando o apelo à recorrente analogia paternalista que distorcia
consideravelmente a analogia originária do Sócrates de Platão. Com essa
analogia, Pufendorf recomendava que se suportassem as injustiças
soberanas como o filho suportava o mau-humor de um pai ou de uma mãe,
ao passo que Sócrates nunca mencionou «injustiças», mas apenas os
castigos e as ordens emanadas da «pátria».343 Pufendorf reconhecia que
não deixavam de ser injustiças, mas a recta razão e a dura experiência
ensinavam que a resistência traria consequências mais danosas para todos
os súbditos, incluindo os mais impacientes. Até porque nunca se sabe:
podia sair-nos na rifa um segundo tirano mais tirânico do que aquele que
já nos incomodava. Era, portanto, uma obrigação irrevogável com razões
morais e com razões prudenciais. No caso concreto, Pufendorf preferia
sugerir a emigração do injustiçado, ou o ameaçado, pelas «injúrias mais
atrozes» do que a consagração do direito a resistir. Mesmo no caso bicudo
da violação dos direitos de «consciência», isto é, do foro explicitamente
religioso, que as autoridades eclesiásticas, católicas ou protestantes,
sempre policiavam, Pufendorf tinha de recorrer ao caso mais extremo de
violentação pelo soberano da pessoa do súbdito para finalmente declarar
uma relação de inimizade entre ambos. Na maioria dos casos, mais valia,
sugeria ele, pôr a «consciência a seguir a parte mais segura», por outras
palavras, obedecer às ordens do soberano, pois era menos provável que
pecasse, do que desafiá-lo.344
Locke e os seus muitos discípulos rapidamente reagiriam contra estas
recomendações que tinham implícitas, quando não explícitas, analogias
intoleráveis de pai/governante-filho/governado. Entre outras razões,
porque dessas analogias se inferia a redução dos cidadãos à condição de
menoridade que apenas se aplicava às crianças sob tutela dos seus pais.
Mas Pufendorf, em conformidade com a tese hobbesiana, só saía desta
hesitação quando a situação era de ameaça ao direito natural de autodefesa
do indivíduo. Aí, apoiando-se, para leitor ver, em Grócio, e não em
Hobbes, Pufendorf optou por uma abordagem era o que mais faltava não
se conceder o direito de resistência ao indivíduo ameaçado de morte pelo
poder político, até porque nesse cenário não havia males sociais a
ponderar perante um mal absoluto que levava a melhor – ou a pior –
diante de qualquer outra possibilidade.345 O propósito não era o de limitar
deontologicamente o direito absoluto da soberania, mas o de garantir que
não se extinguia o direito absoluto – aquele direito absoluto – do
indivíduo que se lhe contrapusesse.
Resumindo, e em termos gerais, como cuidar que a soberania não se
tornasse irremediavelmente vulnerável se ela passasse a depender do
julgamento individual do cidadão? Como garantir a sua sacralidade se a
soberania podia ser posta em causa pela opinião subjectiva e
provavelmente caprichosa dos súbditos? Em primeiro lugar, pela
circunscrição muito apertada da margem de julgamento do cidadão. As
matérias que formavam o objecto do julgamento político dos súbditos
eram muito reduzidas e, em abstracto, bem delineadas. Os meios
mobilizados para cumprir a tarefa do Estado e a inscrição, em concreto, da
tal delimitação ficavam sob jurisdição do soberano, e de mais ninguém
senão o soberano. O julgamento concedido ao cidadão tinha uma estrutura
essencialmente binária. Em segundo lugar, a teoria da representação. Em
terceiro lugar, a assunção de poder absoluto, isto é, invencível, na
jurisdição que lhe era atribuída.
Uma autoridade política era soberana se retivesse o direito de prescrever
e de comandar, e se fosse capaz de sujeitar os cidadãos às suas regras. A
soberania era, por conseguinte, a faculdade ou o direito de fazer as leis e
de as ver obedecidas, valendo aqui o de as ver como incluindo o recurso à
força, quando tal fosse necessário e sempre que necessário. O que era
soberano era, então, o Estado. E o que era o Estado? Era uma «pessoa
moral», composto por outras pessoas morais, desde logo duas
indispensáveis: o cidadão e o soberano. O Estado era um ente moral
dotado de uma vontade, por sua vez formada pela reunião e unificação da
vontade de várias outras pessoas morais. Já sabemos que essa operação de
unificação se fazia através de convenções, e em Hobbes por meio de uma
teoria inovadora da representação. Por essa razão, a vontade do Estado
estava autorizada a contar com as forças de cada um dos indivíduos para
cumprir a função que lhe fora atribuída: garantir a paz e a segurança de
todos. Em Pufendorf, a soberania só nascia verdadeiramente com a
celebração do segundo pacto, do pacto de «sujeição». E, uma vez em
vigor, formava uma vontade «pública» ou «geral».346
Vimos como a ideia de conceber o Estado como uma pessoa não foi de
Pufendorf, mas de Hobbes alguns anos antes. Seja como for, a
personificação do Estado não era idêntica em Pufendorf. Ou melhor,
começava por ser idêntica à de Hobbes num aspecto central. Ambas
permitiam conceber o Estado como uma pessoa que desempenha um
papel. Em ambos os pensadores as respectivas «pessoas» qua Estado
soberano tinham a mesma raison d’être: a instituição da ordem e a
garantia da segurança dos indivíduos. Tinham a mesma estruturação
moral: a reunião numa só vontade por submissão/autorização das vontades
dos cidadãos. Tinham a mesma vinculação jurídica: o direito de ser
obedecida pelos cidadãos, embora, como víssemos, houvesse diferenças
na assunção de deveres – nenhuns, em Hobbes; os que decorressem do
pacto de sujeição, em Pufendorf. Mas, como vimos, em Pufendorf a
pessoa do Estado incorporava por composição as pessoas do soberano e
dos cidadãos, ao passo que em Hobbes não havia qualquer processo de
incorporação de pessoas distintas. Para Hobbes, a relação de representação
era suficiente como ligação entre pessoas distintas. Em Pufendorf, a ideia
de Estado forçava à conceitualização de uma «pessoa moral» que não
podia ser confundida com a «pessoa artificial» de Hobbes.347
Na doutrina de Pufendorf, a soberania era descrita como uma
«qualidade moral» de uma «pessoa». Tal determinação permitia
acrescentar um ponto importante. Era introduzido o condicionamento
«intelectual» – portanto, de uma fonte de «razão» política – à vontade. A
afirmação da vontade como causa única da formação da lei não era posta
em causa. Tratava-se, outrossim, de fazer a vontade afirmar-se num
contexto constitucional onde a «razão», o conselho, se pudesse exprimir
no processo de formação da vontade. Afinal de contas, um dos principais
contributos para este debate consistiu na descrição do Estado como uma
«pessoa moral», o que significava que estava dotado de «entendimento» e
de «vontade». A vontade soberana exclusiva, inegável e inapelável
formava a lei e fundava o dever de obediência dos súbditos. Mas era uma
vontade que se afirmava em condições específicas e não-arbitrárias. Fora
dessas condições, a pessoa moral do Estado não queria. O intelecto da
pessoa moral política criava uma parte incontornável das condições de
afirmação da vontade. Na situação da soberania «suprema», por
contraposição à soberania «absoluta», a vontade do soberano escolhia vias
consideradas razoáveis para a parte intelectiva do Estado. Em termos
institucionais, tal comportava um colégio, ou um «conselho», que em
rigor não escolhia coisa nenhuma, nem representava qualquer vontade
antecedente. Apenas atestava uma ou várias possibilidades como
razoáveis ou desrazoáveis. A acção para se consumar requeria razões. O
mesmo se passava na vida do Estado.348
De resto, até o hiper-voluntarista Hobbes aceitava o grosso desta
conclusão. Na analogia que propunha do Estado como pessoa fictícia, e do
soberano como «alma» dessa pessoa, a «cabeça» seria o conjunto de
conselheiros – pouco importa sob que forma institucional – do detentor do
poder soberano. Aconselhariam, mas não decidiriam, é bom de ver. Até
aqui Hobbes inovaria, dada a importância da cabeça a reger o corpo na
analogia medieval da comunidade política, como se encontra em
Fortescue, por exemplo, e ainda vemos ser usada por Michel de L’Hopital
num discurso seu ao Parlement de Paris de 18 de Junho de 1561.349 Em
contrapartida, o soberano sem razões, sem uma apreensão intelectiva, sem
esses pressupostos da acção, também não podia querer.350 Pufendorf ia
muito mais longe, alegando que, se era certo que uma assembleia
consultiva não podia com votos maioritários impor a sua vontade à
vontade soberana, quando manifestava unanimidade retirava condições à
vontade soberana de seguir o caminho contrário. Nessa situação limite, a
vontade soberana estaria em flagrante contradição com o intelecto do
Estado e atingiria a categoria da loucura, que, arrastando-se, inauguraria
uma fase de interregnum.351 O problema grave da possível arbitrariedade
do poder soberano ficava, assim, senão resolvida pelo menos limitada.
26. O problema da indivisibilidade
No século XVII, um nobre francês, também ele teórico da soberania e
advogado da monarquia centralizada, Cardin Le Bret escreveu: «A
soberania não é mais divisível do que o ponto em geometria.»352 O que
significava esta sentença? A tese da indivisibilidade da soberania não
negava que o poder político pudesse ser dividido. Tal seria negar uma
experiência de todos os tempos e de todos os lugares. O que a tese da
indivisibilidade da soberania revindicou sempre, e reivindica ainda hoje, é
a de que ela é já o ponto de indivisibilidade do poder.
A indivisibilidade da soberania pode parecer um tema arcaico. Um fruto
estragado dos tempos pouco democráticos do nosso passado. Ou de uma
teoria política ingénua que não conhecia como nós a probabilidade e os
efeitos terríveis da concentração do poder. Por cima das diferenças que
foram aparecendo de entre os que defendiam teorias da soberania, o ponto
comum parecia ser o seguinte: a soberania era uma só realidade – existia
uma unidade fenoménica em seu torno. Mas a dúvida subsiste. Essa era
uma proposição sobre a essência da coisa ou apenas um modo de
aparecimento do conceito na consciência moderna? Nos nossos tempos, a
opinião maioritária diz-nos que essa unidade desapareceu. Que insistir na
unidade é uma concessão injustificável a essencialismo dogmático. Antes
de apresentarmos críticas externas à noção de indivisibilidade, é preferível
examinarmos a questão nos seus próprios termos. Apenas para garantir
que não nos perdemos pelo caminho.
Na história europeia encontramos uma crítica praticamente tão antiga da
indivisibilidade enquanto qualidade necessária da soberania quanto a
própria ideia moderna de soberania. Por outro lado, damo-nos conta de
como a indivisibilidade subsistiu até aos nossos tempos, por vezes de
modo imprevisível. Para essa constatação nem é preciso recorrer ao artigo
da Constituição da República Portuguesa que acima citei. Basta pensar
que na teoria das relações internacionais a soberania é tacitamente
entendida como indivisível. Se os Estados que constituem o sistema
internacional como a sua unidade fundamental são independentes, então
eles aparecem à perspectiva da teoria das relações internacionais como
vontades individuais indivisíveis. Esta perspectiva anula pela irrelevância
as mecânicas e procedimentos internos a cada Estado. Aprecia cada um
dos Estados como uma vontade formada e expressa externamente. Sendo
o Estado a unidade, com uma vontade una que se manifesta – fala «a uma
só voz» – e que confirma a existência da unidade, temos a indivisibilidade
como o grande implícito da teoria de um sistema inter-nacional.353
Nada disto demonstra o carácter ingénito da indivisibilidade na
soberania. Nem é uma conclusão substancialmente fecunda para o nosso
estudo. Mas é reveladora de como a indivisibilidade é mais resistente do
que normalmente se supõe. Desde logo, porque assim se percebe que a
soberania é um «princípio de individuação»354 das comunidades humanas.
Sendo vontade, a soberania teria de ser individualidade. É, parafraseando
Hegel, a autodeterminação de um sujeito. Essa individuação não é dada
pela «natureza» de uma comunidade humana enquanto tal. A soberania
politiza um território e politiza um agrupamento humano, dando-lhes
unidade, mas também individuando-os, distinguindo-os e separando-os
dos outros territórios e das outras comunidades. A soberania cria um ser
político e sustenta-o na sua existência. Este é o fundo da permanência da
indivisibilidade como qualidade essencial da soberania. Não obstante, a
indivisibilidade colocou desde o início da doutrina moderna da soberania
uma dificuldade de organização constitucional que não deve ser omitida
nem desvalorizada. Em parte, mas numa parte importante, a doutrina da
separação ou divisão dos poderes consistia numa proposta de organização
constitucional que visava contrariar e desfazer a proposta soberana.
Bodin lançou o mote e os seus discípulos foram fiéis. A soberania foi
desde o lançamento da doutrina moderna concebida como «indivisível».
Hobbes insistiu na indivisibilidade. Pufendorf e muitos outros seguiram-
lhe o rasto. Porém, a tese da indivisibilidade, como Barbeyrac justamente
apontou, parecia estar refém de um erro que a própria doutrina em Hobbes
e Pufendorf quis remover, a saber, a identificação da soberania como um
puro poder físico, insusceptível de se dividir em partes e que, na melhor
das hipóteses poderia receber nomes diferentes consoante variasse os seus
objectos. Na verdade, sendo a soberania, além de um poder ou talvez até
de um conjunto de poderes diferentes, um feixe de direitos e uma sede de
normatividade também, então a abordagem não poderia ser assim tão
simples.355 Temos de admitir como caracterização adequada da soberania o
que Leibniz no século XVII atribuiu a todos os espíritos, a todas as
substâncias do Universo, incluindo Deus. Leibniz afirmava haver em
qualquer espírito três elementos primordiais: força (poder), conhecimento
e vontade.356 A soberania, assim, não seria apenas força, poder nu e cru
desprovido de normatividade. Também não poderia ser vontade cega, ou o
equivalente aos comandos de um facínora despótico. Teria de ser vontade
iluminada por conhecimento, ou por um verdadeiro que se pronuncia
quando a vontade se manifesta. E sendo actuante no mundo, incluindo
num mundo violento e hostil a essa vontade, teria de ser poder também.
Para os teóricos que não se sentiram vinculados à tese da
indivisibilidade da soberania, rapidamente se caminhou para as doutrinas
explícitas da separação de poderes. John Locke, que no Segundo Tratado
não usou a palavra soberania, e Montesquieu, são apenas os filósofos
políticos mais famosos que compreenderam plenamente o problema da
ordem que a soberania pretendia resolver e, no mesmo passo, se
demarcaram, de algum modo, da tese da indivisibilidade. A divisão
conceptual dos poderes, o estatuto paritário de cada um deles, a separação
institucional dos mesmos, os mecanismos constitucionais ou
infraconstitucionais de coordenação e de resolução de conflitos entre eles:
são estes os elementos fundamentais da teoria do Estado apostado na
salvaguarda da liberdade individual em Locke ou em Montesquieu. Em
nome da teoria da soberania fomentava-se a oposição à doutrina da
separação dos poderes, e da constituição «mista», muitas vezes
confundida com aquela. Em nome da moderação do poder político
fomentava-se a doutrina da separação de poderes, ora conciliando a
soberania com a separação dos poderes, ora chegando ao ponto de as
colocar em oposição irreconciliável.
Bodin, Hobbes e Rousseau declararam a sua hostilidade incondicional a
qualquer concepção de separação de poderes, com acusações que iam
desde a sedição até à charlatanice intelectual. Rousseau tentou traduzir a
manobra intelectualmente tortuosa e politicamente perigosa na imagem
dos «charlatães do Japão» que faziam truques de ilusionismo para enganar
o público. Nas suas exibições de rua, eles «despedaçam uma criança sob o
olhar dos espectadores, depois de atirá-la ao ar mais os seus membros, um
a seguir ao outro, deixam cair a criança viva e toda reconstituída». Tal
como os espectadores, Rousseau também ficava incrédulo diante da
divisão e despedaçamento da soberania indivisível em inúmeras partes,
direitos, poderes e prerrogativas. E mais incrédulo ficava com o desfecho
deste truque. Não obstante o desmembramento do princípio da
comunidade política, tinha por desfecho miraculoso a reconstituição da
unidade da comunidade política.357
Outros optavam pela conciliação. Em Grócio, ele que foi o mestre –
reconhecido e incógnito – de tantos, a soberania (a summa potestas) era
«una e indivisível». Gozava de «supremacia», o que valia por dizer que
não era responsável perante ninguém. Porém, Grócio admitia que a
soberania fosse divisível nas suas «partes». Numa distinção que Grócio
talvez tenha retirado de Tomás de Aquino, essas «partes» eram ou
«subjectivas» – as pessoas pelas quais se podia distribuir o poder soberano
–, ou «potenciais» – as esferas do poder soberano que se podiam pôr nas
mãos desta ou daquela pessoa, ou grupo de pessoas. No fundo,
correspondiam a dois modos de dividir o poder soberano. Por exemplo, o
Império Romano esteve dividido em duas partes – e até em três. Duas
partes, duas pessoas, de um todo supremo – o Império Romano. Quanto às
partes potenciais, Grócio exemplificou com o caso em que o povo, ao
escolher um rei, reservava certos «actos de soberania» para si e atribuía os
restantes para o governante sem qualquer restrição. Grócio não se
esqueceu das objecções dos leitores que estariam já ensinados por Bodin e
por outras doutrinas unitárias da soberania. Haver um «corpo com duas
cabeças» não era um mal intolerável, já que em matéria de «governo
civil» era impossível «evitar todas as inconveniências». A questão
fundamental era perceber que as «partes» divididas da soberania eram
«potenciais» porque nenhuma delas teria o poder absoluto e indivisível,
mas apenas de modo potencial.358
De facto, houve um conjunto muito importante de autores que não
puderam, ou não quiseram, demarcar-se da tese da indivisibilidade. Ao
não o fazerem, não puderam abraçar a via de uma doutrina explícita da
separação de poderes com todas as suas conveniências. Ao mesmo tempo,
eram forçados a detalhar as diferentes manifestações do poder soberano,
inegáveis para qualquer espectador do Estado em acção. Não podiam fazer
como Hobbes, Filmer ou Rousseau e expor ao ridículo da ilógica uma
qualquer versão da separação de poderes. Pufendorf, por exemplo,
demorou-se longamente na exposição das diferentes operações do Estado,
dos seus diferentes órgãos. Mas não era possível levar a cabo tanta
descrição e deixar o sistema de pé sem antes consolidá-lo na teoria da
soberania. Daí aparecer o conceito de «partes potenciais» da soberania,
que reconhecemos na obra de Grócio no parágrafo anterior, mas que em
Pufendorf era algo diferente.
A alma humana era uma substância simples e indivisível. Seria esse o
modelo da soberania, quando se aceitava a personificação do Estado
levada a cabo por Hobbes.359 A soberania era, pois, uma «qualidade
moral» e não um ser físico. Mas se assim era, então, alegava Pufendord,
teríamos de ser muito cuidadosos quando falávamos nas «partes» da
soberania. Tal como a alma humana, a soberania tinha uma constituição
indivisível, a sua composição em «partes» só era inteligível se fossem
«partes potenciais», isto é, partes que não sobreviveriam à ausência ou
eliminação do todo, nem possuiriam naturezas diferentes desse todo. Eram
os objectos visados pelas partes, as realidades sobre as quais esses poderes
parciais eram exercidos, e os meios a que estes recorriam, que permitiam
que as partes da soberania, enquanto «partes potenciais», fossem
identificáveis. Não obstante, era sempre a mesma «qualidade moral» que
estava presente. Quando a soberania prescrevia regras gerais para a
conduta da vida cívica, podíamos falar de «poder legislativo». Quando
dirimia controvérsias entre os cidadãos à luz dessas regras, estávamos
diante do «poder judicial». Quando mobilizava o poder da sociedade
contra um inimigo externo, tínhamos o «poder de guerra e de paz».
Quando escolhia ministros e magistrados subordinados, referíamo-nos ao
«poder de estabelecer magistrados». E assim sucessivamente.
De entre as «partes potenciais» da soberania, que eram poderes que
soberanamente se exerciam com direito, contavam-se o poder legiferante
(incluía o poder de tributar, mas que Pufendorf autonomizou); o poder
coactivo (ou de punir); o poder judicial (de julgar processos comuns e não
apenas em última instância); o de fazer a guerra e a paz, e,
consequentemente, o de organizar forças armadas e de fazer tratados com
entidades políticas estrangeiras em geral; o de estabelecer ministros e
magistrados subalternos, no fundo, de determinar quem e como se
organizava a administração do Estado; e, finalmente, o que já tínhamos
desde Hobbes, o poder de censura das opiniões e doutrinas publicadas e
ensinadas, alegando-se que as opiniões convidativas à desobediência e ao
conflito se inscreviam nos objectos a expurgar da comunidade política em
nome da paz e da segurança dos indivíduos, e não em nome de uma
concepção particular do Bem, da felicidade ou do Divino.360 Eram partes
distintas que reflectiam tarefas distintas. Mas, para Pufendorf, tal como
para Hobbes ou Bodin, não podiam ser distribuídas por pessoas diferentes.
Se assim fosse, as tarefas que cada uma das partes tinha a seu cargo
deixariam de estar coordenadas e integradas. O resultado seria a anarquia
completa. Quem detivesse a parte ou o poder coactivo e o exercesse
soberanamente poderia punir a seu bel-prazer sem cumprir apenas a pena
prevista na lei feita pela parte ou pelo poder legiferante.
O fiel, mas independente, Barbeyrac rejeitou esta análise da soberania.
No seu entender, a soberania detinha um conjunto de «direitos» distintos e
um conjunto de «poderes» distintos. Ela orientava-se sempre, e por
maioria de razão os seus direitos e poderes, para o mesmo fim, a saber, o
«bem da sociedade». Mas quando olhávamos para os tais direitos e
poderes que constituíam a soberania era impossível encontrar uma razão
válida que proibisse a colocação do seu exercício em mãos igualmente
distintas. O aspecto da indivisibilidade da soberania é o ponto fulcral de
dissonância entre a família dos soberanistas do século XVII e XVIII. O
vislumbre do perigo para as liberdades na concentração do poder, e no seu
subsequente abuso, era a razão moral para essa dissonância. Visto de outro
modo, a certeza de que a moderação do poder político teria de gozar de
suporte institucional incompatível com uma interpretação rígida da
indivisibilidade da soberania era a motivação moral para desafiar a
integridade da teoria clássica da soberania. Barbeyrac regressava à
terminologia de Grócio. A referência às «partes potenciais» devia ser
substituída pelas «partes subjectivas» da soberania. Isto é, os sujeitos, as
pessoas pelas quais a soberania era «partilhada». A crítica que fez a
Courtin mostrava que Barbeyrac não associava as «partes subjectivas» a
instâncias subordinadas ou inferiores do poder do Estado, mas a direitos e
poderes paritários que partilhavam efectivamente a soberania entre eles.361
O conflito e a contradição eram ainda anátemas para os primeiros
patronos do conceito de soberania. Evidentemente, o argumento não é
para nós persuasivo, não só porque aceitamos a doutrina da divisão dos
poderes, como a vimos em acção todos os dias. Porém, é preciso
reconhecer que a doutrina da separação dos poderes teve de integrar,
desde o início, mecanismos de coordenação e de entrelaçamento entre os
poderes divididos. A pura separação dos poderes, a ponto de ficarem
desligados entre eles, nunca existiu. Foi sempre avançada uma versão ou
outra do que ficaria conhecido nos Estados Unidos da América como o
sistema de checks and balances, ou os freios e contrapesos.362 O que a
doutrina da separação dos poderes rejeita liminarmente é a relação
hierárquica entre os poderes, substituindo-a imperiosamente por uma
relação paritária entre eles. Daí a ideia poderosíssima da «constituição
equilibrada» em contraposição à desequilibrada constituição vertical. Do
ponto de vista moral, porém, é curioso notar que Pufendorf estava
preocupado, não apenas com a descoordenação associada ao desligamento
dos poderes e com a desordem subsequente, mas também com a
possibilidade alegadamente frequente do abuso do poder por parte de cada
um dos agentes que exerciam as «partes potenciais». Ora, o propósito
unificador de todas as versões da separação de poderes foi sempre o
cuidado com a liberdade posta em causa pelo abuso do poder,
consequência necessária da concentração do mesmo.
A frase de Cardin Le Bret sobre a indivisibilidade da soberania acabou
por ser involuntariamente interpretada em toda a sua profundidade cerca
de duzentos anos depois por De Maistre. A razão por que a soberania era
indivisível era a mesma por que era absoluta. Retrospectivamente, com o
auxílio de De Maistre compreendemos melhor o que era o ponto que a
geometria política postulava ser indivisível. De Maistre dizia que,
independentemente da forma constitucional, das divisões dos poderes, da
distribuição formal dos poderes, haveria sempre uma instância que se
destacaria de todas as outras por ser um poder absoluto. Neste âmbito,
absoluto queria dizer capaz de provocar o mal, ou um dano, impunemente.
Um autêntico «poder despótico» no sentido estrito de que quando agia não
havia protecção contra ele senão a insurreição. Ora, este poder, este
«ponto» lebretiano, não era divisível. E quando o Estado estava sujeito à
divisão ou separação dos poderes? Não era verdade que sempre a
indivisibilidade tinha sido vista como condição de ilimitação? Ou que a
divisão seria a limitação da soberania? Nesse caso, explicava De Maistre,
os conflitos entre os diferentes poderes mais não eram do que as
«deliberações» de um poder único. A ponderação do soberano antes de
decidir era traduzida pelas razões e os actos, naturalmente contraditórios, a
«estatuição» e o «impedimento» de Montesquieu, dos diferentes poderes.
Mas, assim que a decisão era tomada, tratava-se de uma vontade do
soberano sempre «invencível».363 Por outras palavras, o Estado que tem os
seus poderes divididos ou separados, depois do conflito entre eles, alcança
uma decisão – e esta é uma determinação da vontade universal da
comunidade política. O conflito entre os poderes é real, e funciona como
«contrapeso», moderando o processo de decisão soberana. Mas tal não
substituía a decisão soberana que pontuava o final desse processo de
conflito político próprio dos governos livres. O ponto de De Maistre é que
existia um ponto efectivo de soberania que não podia ser dividido – o tal
ponto que decidia o final do conflito entre os poderes. Na doutrina clássica
da separação de poderes em Montesquieu o que desempatava um conflito
entre poder executivo, poder legislativo e poder judicial, e assim evitava a
inacção da colisão mútua era «o movimento necessário das coisas», que
forçava os três poderes a «prosseguir concertadamente». Havia, pois, uma
necessidade associada aos assuntos políticos e à sua resolução que
desempatava as colisões. Mas havia também uma dinâmica política
própria de uma sociedade de partidos mediante a qual, além das
prescrições constitucionais, se geravam forças políticas de apoio e de
crítica aos poderes – em particular, ao poder executivo e legislativo – num
movimento típico pendular das opiniões públicas, que as democracias
parlamentares testemunham desde há muito, do governo para a oposição,
da esquerda para a direita, do conservadorismo para o progressivismo, e
vice-versa. O modelo liberal de Montesquieu, de resto, admiravelmente
presciente, garantia que, para usar a linguagem de De Maistre, o poder
político soberano não queria injustamente, ao passo que a tese soberanista
insistia sobretudo no ponto segundo o qual, com ou sem divisão de
poderes, o soberano acabava por «querer invencivelmente».364 Kant
encontrava uma formulação diferente que remete para uma conclusão
idêntica, apesar de Kant preferir ver o soberano no povo unido.
Considerando os três poderes, a vontade do poder legislativo era
«insusceptível de reparo» (irrepreensível), a «faculdade executiva» do
poder executivo era «incontestável (irresistível)» e a sentença do «juiz
supremo» era «irreversível (inapelável)».365
O triunfo histórico da soberania popular ou nacional veio complicar
ainda mais esta discussão. Já não estava em causa uma simples escolha
política binária entre monarquias absolutas e arranjos monárquico-
parlamentares liberais. Primeiramente, a ideia da separação de poderes
enquanto oposta à de soberania, como estruturação pensada para acabar
com a unidade na decisão política, como oposição de poderes que
indirectamente fazia chegar-se a um equilíbrio de moderação política, foi
rejeitada no texto da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do
Cidadão. Ali não havia contradição, mas antes uma harmónica
conciliação. Enunciava-se a soberania da nação, a vontade geral enquanto
vontade soberana e a condenação mais veemente da negação da separação
de poderes.366 Pouco depois, o desastre jacobino na Revolução Francesa
trouxe um novo fôlego à defesa liberal da separação de poderes mesmo
quando o soberano era o povo ou nação. Mas não sem críticos que viram
tanto no exemplo francês uma admoestação do entusiasmo com soberanias
ilimitadas e indivisíveis, como detectaram na defesa liberal da separação
de poderes um arcaísmo que obstinadamente não reconhecia as novidades
históricas que já estavam, por assim dizer, no terreno.
Finalmente, a gradual democratização dos regimes europeus trouxe
consigo a partidarização da vida política. Com a ocupação dos poderes
políticos pelos partidos vencedores de eleições populares, a previsão de
Montesquieu quanto à dinâmica política própria de uma sociedade livre e
quanto ao seu efeito sobre o funcionamento da separação de poderes,
juntar-se-ia às teses da soberania enquanto invencibilidade da decisão de
poderes separados. O partido político provisoriamente vencedor faria a
ligação entre um sistema de poderes formalmente separados e a decisão
política soberana.
Nenhuma teoria da democracia pode reivindicar o mínimo grau de
realismo sem incluir de algum modo, por mais superficial que seja, o
papel dos partidos e das corporações no funcionamento efectivo das
instituições democráticas, e como elementos estruturantes das práticas
cívicas. Por vezes, lendo as teses mais variadas em busca de teorias da
democracia o inocente pode pensar que são mais actuais as obras escritas
no século XIX do que as produzidas no mundo académico do nosso tempo.
Daí que também deva ser reapreciada a metáfora usada por Claude Lefort
segundo a qual na democracia moderna o lugar do poder está sempre
«vazio», quer dizer, a forma democrática moderna «desencarna» o poder,
«desincorpora» o povo que é governado, pondo em crise uma
«representação unitária do poder».367 Trata-se de um comentário
tremendamente rico na meditação que estimula e nas críticas que faz
nascer a partir dessa meditação. A soberania popular prepara esse vazio.
Não podendo exercer o poder, deixa-o vazio. Em contraponto, a
monarquia medieval, ou a do Ancien Régime, ocupava o lugar do poder
com um corpo, com uma imagem, com uma pessoa real, alguém que, num
sentido bastante literal, era capaz de se sentar no trono.
Porém, podemos ver este problema nos mesmos termos segundo
coordenadas diferentes. À pergunta de se a sede do exercício da soberania
está vazia, a democracia moderna responde que está ocupada pelo
representante. Por um representante politicamente organizado para o ser.
O representante representa um ausente que para ser representado tem de se
manter ausente. Alguns até dirão que a representação só é possível na
medida em que o povo representado se mantenha como entidade
essencialmente fictícia. No entanto, o representante ocupa um lugar. Daí
não podem restar dúvidas. Não incarna a ordem do corpus mysticum, é
certo. Mas em vez de o contraste entre o Ancien Régime e a era
democrática moderna ser caracterizado pela oposição ocupação/vazio,
deve ser vista como permanência/movimento (ou mudança). A tendência
da soberania popular e do governo popular é para o movimento, para a
acção/transformação permanente. Essa irrequietude contrasta com a
constante recapitulação de uma ordem imutável, e que se queria imutável,
em que a acção essencial de um príncipe descendente não se distinguia do
príncipe precedente. É uma irrequietude que é simbolicamente estatuída
na mudança dos titulares da soberania e do governo, na mudança das
pessoas dos representantes, mas que enquanto representante personalizam
o poder, tal como os titulares da soberania noutros regimes o fazem e
fizeram. O primeiro-ministro eleito, o Presidente eleito, o juiz
constitucional eleito directa ou indirectamente, o líder parlamentar eleito,
personalizam a sede da soberania e essa ocupação transitória, em
movimento, é reconhecida plenamente pelo povo, como indicam as teses
recorrentes da monarquização das democracias. Mais, na invenção e
constitucionalização de uma representação em movimento e recorrente
mudança, de uma soberania ocupada pela irrequietude da dinâmica
democrática, encontramos um fundamento para a aceleração do tempo
social levado a cabo na era da soberania popular.
Assim se abre a porta para uma interpretação da soberania popular,
democrática e no âmbito do constitucionalismo moderno, que a veja como
estando em permanente circulação. À primeira vista, é impossível indicar
um órgão que, sob a Constituição, se possa reclamar de última instância,
ou soberano. Porém, foram muitos os avisos para o facto de a
Constituição não conduzir a um total esmagamento da política pela lei, ou
pelo direito, e que situações políticas concretas exigiam decisões que
transcendiam a mera aplicação da lei (constitucional). O
constitucionalismo precisa sempre de deixar aberta uma válvula ao
edifício completo da regulação pela lei. Numa ideia de soberania em
circulação essas válvulas são várias e variáveis. Há uma pluralidade de
órgãos políticos de decisão inapelável em momentos constitucionais
diferentes. Circunstâncias diferentes que exigem decisões diferentes
colocam em órgãos diferentes o fardo de uma decisão supremacial. Como
se ligam as circunstâncias, as decisões e os órgãos decisores? Na sua
maioria, as circunstâncias estão previstas pela Constituição. Uma
impugnação de um acto do poder legislativo por inconstitucionalidade é
uma decisão soberana que pode caber a um Tribunal Constitucional. A
declaração de um Estado de Emergência a um chefe do Estado, ou ao
Parlamento que pode ter a prerrogativa da ratificação determinante da
decisão do chefe do Estado. E por aí em diante. Contudo, a organização da
representação por partidos e a acção de grupos sociais (mediáticos,
económicos, e por aí em diante) que apoiam essa organização têm em
muitas ocasiões nas suas mãos a determinação do lugar variável da
decisão soberana. Isto é, por vezes conseguem controlar o fluxo da
deslocação da decisão soberana no sistema. Diferentes decisões de última
instância cabem a diferentes órgãos, circulando assim a soberania pelos
vários órgãos de soberania, segundo a constituição. E também segundo a
dinâmica política dos partidos e do apoio popular social, ou da opinião
pública.
Circulando, pode dizer-se que a soberania é «partilhada» pelo conjunto
dos agentes do sistema? No capítulo III abordarei especificamente a
temática da partilha de soberania. Mas é preciso afastar uma certa
hesitação. De acordo com esta visão circulatória, a soberania não é
exercida em conjunto em cada momento. Antes é exercida por uma das
partes do sistema que é soberana em fluxo. Exercida a partir de uma sede
itinerante, e já não numa sede fixa. Circulando, ela não se detém
definitivamente em nenhum ponto fixo, tranquilizando as preocupações de
que a sua residência nesse tal ponto fixo permitira um exercício absoluto.
Dir-se-ia que a demora da soberania no mesmo ponto da Constituição,
atrairia para si todos os poderes e todas as tentações, como a construção de
um dique faz aumentar o nível do caudal.
Vimos como a soberania era uma sede de formação da verdade e de
dicção do verdadeiro. Com sedes itinerantes de soberania teríamos
formações da verdade e dicções do que é verdadeiro constituindo um
quadro fragmentado, como um vitral de fragmentos de diferentes cores,
em plena consonância com a desconstrução pós-moderna do verdadeiro,
do essencial, do monolítico para o parcial, o incompleto, o plural. As
funções da soberania, e os diferentes aspectos do seu exercício, seriam na
versão circulante apresentadas segundo uma modalidade pluralista que
substituiria precisamente a modalidade clássica monista.
A soberania circulatória permitiria que a sede da decisão de última
instância estivesse bem identificada conforme a circunstância política que
a ocasionasse. Mas, se a circulação é incessante, quem decide quando a
circunstância não se inscreve numa situação prevista e delimitada? As
dinâmicas partidárias e o debate/conflito político na sociedade acabam por
operar essa determinação. A esta luz podemos analisar diferentemente do
que é habitual uma ameaça recorrente sobre a vida política democrática, e
sobre a qual direi algo mais adiante, o chamado governo de juízes, em que
o poder judicial assume protagonismo político, ocupando ou até
usurpando funções que cabem a outros poderes. Assim, talvez o governo
de juízes seja menos a «judicialização da política» do que a politização da
justiça – ou até a partidarização da justiça.
27. Terra firme
O Estado soberano depende de um duplo reconhecimento. O
reconhecimento dos seus pares externos, isto é, dos outros Estados
soberanos que o têm de reconhecer como um par. E das suas partes
constituintes, cujo reconhecimento foi obtido nas várias interpretações do
fenómeno soberano em modalidades diferentes – representação, contrato,
sujeição militar e por aí em diante.
Mas ainda resta a fronteira. O duplo reconhecimento cria igualmente a
fronteira, ou a divisão territorial entre o que está dentro e o que está fora,
entre o espaço do comum e o estrangeiro. Com a constituição da fronteira,
o território passa a ser um bem comum do corpo político e enraíza
geograficamente o comum – não só na sua expressão física e material,
mas também na formação e transformação da paisagem e do imaginário
local. A Constituição da República Portuguesa não deixa de constatá-lo.368
Desde logo, se a soberania define uma jurisdição, esta tem limites
territoriais, expressos numa fronteira. O acesso a esse território espoleta a
sujeição a uma jurisdição. O liberal Locke sabia-o bem e em grande parte
por isso é que defendeu o direito de saída do território como possibilidade
de escapar à jurisdição consentida tacitamente pela presença física do
indivíduo dentro das fronteiras soberanas.369 No mesmo sentido, o
lockiano, mas pouco liberal, Rousseau repetia a lição do mestre. «Habitar
o território é submeter-se à soberania.»370 Hoje lugares-comuns, estas
conclusões decorrem de uma estrita lógica da ideia de soberania. A
soberania e a circunscrição espacial estão logicamente ligadas. De um
modo muito simples, a soberania exerce-se sobre pessoas num
determinado território. Do exterior, a soberania pode ser vista como um
território autónomo. Por conseguinte, a soberania convoca a ideia
correlativa de fronteira. Mas o que é exactamente esta territorialidade
inerente à soberania? É sobretudo uma «hegemonia territorial».371 Não
podendo haver soberania sem um território, por mais exíguo que seja, a
relação da soberania com esse território tem de ser política. Ou mais
rigorosamente: a soberania prossegue o trabalho de politização do
território.372 É preciso notar, porém, que a acção politizante do território
como espaço de alcance da soberania, apenas é significativo porque o
território é condição de vida da população. A soberania exerce-se sobre –
ou por – uma população. Dito mais rigorosamente, a acção soberana é
também a politização de uma população. A tarefa de ordenamento de uma
população inscreve-se no centro das tarefas da soberania. «Constitutiva da
identidade, a fronteira transforma com efeito o tempo colectivamente
vivido em espaço habitado.»373 Da identidade política, leia-se.
Fronteira é o que está de frente para outro lado, para o outro território,
para a outra nação, para a outra pessoa, para o outro Estado. Mais do que
separação, a fronteira designa essa frontalidade. Daí que a fronteira
enquanto tal seja mais recente do que o fenómeno político. As cidades-
estado da Grécia Antiga, como Atenas ou Tebas, não dependiam de uma
territorialidade tão radical como a nação moderna conheceria. A fronteira
ainda não fazia parte da totalidade política da Antiguidade, e os limites
territoriais, ou os confins, que existiam efectivamente estavam ainda longe
de dar aos povos gregos uma demarcação radical em relação ao
estrangeiro. É, por conseguinte, imperativo conferir a relação íntima da
soberania, e do seu modo particular de organizar a comunidade política,
com a territorialidade e com a fronteira. Comportando uma ideia de
separação relativamente aos seus semelhantes, o Estado soberano
moderno autonomizou-se e escolheu um modo de existência autónomo.
Essa autonomia incluía, ou pressupunha, um limite de si mesma, ou da
soberania como instância de jurisdição. A jurisdição soberana
diferenciava-se, separava-se, pois, da jurisdição soberana contígua.
Separadas por uma linha de demarcação que as colocava frente-a-frente,
não necessariamente numa acepção estritamente militar, as jurisdições
reconheciam-se pela fronteira. Esta foi originariamente militar – a frente
como o ponto de colisão com o inimigo. Mas a jurisdição soberana era
muito mais complexa do que uma posição militar. Era legal, fiscal,
administrativa, económica, monetária e por aí em diante.374 Maior
definição territorial e irrevogabilidade territorial foram as marcas que a
forma soberana de organização da comunidade política foi deixando no
mapa. Porquanto a fronteira soberana era realmente definida pelo encontro
– confronto – de soberanias, independentemente da sua grandeza ou poder
relativos. Repito a reflexão de Vattel citada acima na secção 16: «Um anão
não é menos um homem do que um gigante. Uma pequena República não
é menos um Estado soberano do que um reino poderoso.» Homem a
homem, Estado soberano a Estado soberano, eles reconhecem-se
reciprocamente enquanto tais. A fronteira consolida-se com esse
reconhecimento. Ela só é possível com ele.
Com a era da expansão marítima aprofundou-se a meditação em torno
do alcance político sobre a terra e sobre o mar, e em particular sobre o
contraste entre a primeira e o segundo. Não que os Romanos não tivessem
já um olhar jurídico sobre o mar por contraponto à terra, mas a expansão
marítima e o fluxo de viagens oceânicas impuseram uma reconcentração
neste tema. À primeira vista, a terra podia ser caracterizada e politizada; o
mar, não. O mar era um espaço politicamente vazio. O mar era
indiferenciado e indiferenciador. Essa era a linha celebrizada por Hugo
Grócio, o génio holandês que fora contratado pela Companhia das Índias
Orientais para justificar perante os tribunais e perante o mundo o saque da
nau portuguesa Santa Catarina carregada de tesouros e mercadorias,
trazida do Sueste Asiático. Hegel sentenciava: «O principal aspecto do
mar é que junta o que está separado.» E mais adiante: «O mar separa
terras e liga povos.»375
Outros como o inglês John Selden e o português Serafim de Freitas
defendiam a jurisdição soberana sobre o mar – o Mare clausum. Não
obstante as diferenças de intenção e de argumentação, ambos defendiam
que a jurisdição soberana existia, além da terra, sobre o mar também. Um
ponto em comum nos dois autores vale a pena ser ressalvado. Ambos
partiam de uma quasi-unanimidade das fontes, práticas e autoridades de
que o mar adjacente à terra pertencia ao senhor terrestre, restando apenas
divergências quanto à extensão espacial dessa jurisdição. Para a discussão
política sobre os direitos de pesca, decisivos para a Inglaterra do século
XVII e para Selden, esse ponto de partida era decisivo.376 Apesar de o mar
ser o elemento politicamente relevante no século XVII, Selden e Freitas não
deixaram de assinalar, contra o argumento grociano da indiferenciação do
mar e da subsequente impossibilidade de traçar fronteiras na matéria
fluida, que a jurisdição soberana se estendia, não só à água, mas também
ao ar acima da terra. Todo o ar acima do território, o espaço aéreo
correspondente às fronteiras terrestres, era apropriável – pertencia à
mesma jurisdição soberana. Logo, o mar – e o ar – constituíam espaços de
estado de natureza em que o saque – e a guerra – eram legítimos, como
pretendia Grócio e a (alguns dos accionistas da) Companhia das Índias
Orientais.377
Não obstante a divergência, este debate em torno da defesa do Mare
liberum e do Mare clausum é extraordinariamente útil para descortinar um
aspecto essencial da noção de soberania. Vemos que este contraste entre
terra e mar (e espaço aéreo e até espaço exterior) acaba por ser fundador
da própria ideia de soberania. A fronteira entre o soberanamente
determinado e o que escapa à determinação soberana é constitutiva do
significado e da essência da soberania. A noção de soberania pressupõe,
por isso, uma topologia, uma consideração do lugar. Na proclamada
superação do «paradigma» da soberania que ouvimos nos nossos dias
identificamos, neste registo específico, não exactamente uma superação,
mas um retrocesso. Retrocesso para onde? A abolição da soberania
implicaria a desconsideração do contraste entre terra e mar. Assim, o
retrocesso seria para o tempo do Dilúvio, ou para o tempo em que não
havia terra firma, em que tudo era mar, vazio e fluido como o mar. A
guerra à soberania seria uma parte de um processo histórico de subtracção
ou de evacuação do lugar onde ocorre a caracterização da terra e a sua
politização, de subtracção ou evacuação da terra firma onde o humano
constrói uma casa completa. A substituição da firmeza da terra pela
fluidez e vazio do mar tem um potencial emancipatório, é impossível
negá-lo. Mas os riscos que comporta são igualmente evidentes. São os
riscos do excesso de fluidez, de liquidez, de aquosidade.
Finalmente, o conceito de soberania sobreviverá a uma presuntiva
alteração da natureza do que é o «solo», ou o território, como um autor
recente profetiza? É suficientemente honesto o nosso autor para não ler
nesse tempo iminente um amanhã cantante, dada a nossa necessidade de
ter «onde aterrar». Se for verdade que o «solo será tirado debaixo dos
nossos pés» em resultado da crise ecológica, dos movimentos migratórios
massivos ou da globalização, a territorialidade da soberania será
radicalmente posta em causa. A partilha de território segundo critérios e
em modalidades ainda por determinar, ou até indetermináveis, seria o
caminho a seguir – um caminho incompatível com a lógica da soberania.
Ora, sem soberania territorial, sem o Estado de fronteiras, ninguém estará
em casa, continua o autor. Até o refugiado com destino de asilo supõe um
território fechado para onde irá viver, se as portas se abrirem para ele. A
solução proposta para o dilema afigura-se contraditória e, por enquanto,
impossível: combinar a globalização com a ligação ao solo. Contudo, o
retardamento do tempo histórico de uma conciliação miraculosa confirma
a relação entre soberania e território. Só a soberania constitui uma resposta
tempestiva para a pergunta «onde aterrar?» O Lugar da a-terra-gem não se
confunde com a terra ancestral, nem com qualquer pureza aborígene, nem
com mitológicas origens territoriais das culturas. É o Lugar como
contraponto a Global, para onde convergem as forças em movimento da
economia, da ciência, da tecnologia e por aí em diante. A soberania é
sempre a soberania do particular no tempo e do espaço. É a soberania do
Lugar. Haverá quem diga que precisamos de uma nova cartografia da
política. Que precisamos de uma cartografia em que o prefixo geo da
geopolítica seja definitivamente abandonado como o quadro espacial
estável em que a acção política vai tendo lugar e seja substituído pelo geo
enquanto agente político próprio.378 É provável que precisemos. Mas,
enquanto não há mapas para apresentar, vai valendo a soberania territorial.
Poder-se-á ripostar que o conceito de soberania parece ter o seu
conteúdo teleologicamente determinado para a constituição do Estado
nacional que só se afirmaria plenamente no século XIX. Não há dúvida de
que a objecção é pertinente. Várias correcções podiam ser feitas a este
propósito, mas neste ponto basta indicar que a soberania não pode
pretender ser mais do que um princípio de ordem. Como, enquanto
princípio de ordem, a soberania procurou responder a desafios políticos e
sociais modernos, acabaria por gerar ou cooperar com formas políticas
especificamente modernas. Alguém comentou a orientação soberanista e
estadualista da teoria das relações internacionais de um dos sacerdotes da
chamada «escola realista», Hans Morgenthau, como fazendo da soberania
«uma condição metafísica da unidade do Estado moderno».379 O Estado
soberano territorial moderno não seria o fim da história, mas a forma
política por excelência do período a que um putativo fim da história poria
fim.
Vejamos uma última objecção relativa à dimensão territorial com
particular relevância no debate político dos nossos dias. Segundo uma
certa leitura, e a partir das inúmeras referências dos textos em latim à
relação soberana com o território por recurso à palavra dominium,
chegamos a um ponto de vulnerabilidade em que a soberania é
identificada com um conceito arcaico de propriedade. Ora, essa
identificação seria mortal para o conceito de soberania política, não só
porque destruiria a especificidade pública, e, portanto, política, da
soberania, por contraposição à dimensão privada da propriedade, como
ficaria refém das críticas conceptuais a que a ideia pré-moderna (e
moderna também) ficou sujeita. Dito de uma maneira simples, seria
admissível, do ponto de vista conceitual e moral, dizer-se que um
determinado poder (ou um povo) era proprietário de um território? Seria
admissível recorrer à figura antiga do kyrios – do senhor, do dominus –
mesmo que por simples analogia para descrever e justificar a tutela
política de um determinado território? Que o território fosse património
privado de um príncipe soberano, ou mesmo que fosse património de um
povo/nação que manteria com esse património uma relação de tipo
económico regulada pelo direito privado? Kant, por exemplo, resolveu
assim o problema da relação entre a soberania e o território. O soberano
era o «senhor do país», o «proprietário supremo», o dominus territorii.
Porém, Kant apressava-se a dizer, em conformidade com o seu sistema,
que esta «propriedade suprema» não era senão uma «ideia da associação
civil» que permitia «representar segundo conceitos jurídicos a necessária
união da propriedade privada de todos os elementos do povo sob um
possuidor universal público». Por outras palavras, a condição ideal para
tornar pensável a relação política de proprietários privados – os cidadãos –
das terras que perfariam o território estadual com o Estado soberano das
fronteiras desse território era atribuir a este o estatuto de proprietário
supremo. Empiricamente falando, o soberano não possui nada de seu. A
propriedade suprema originária do território é uma condição
transcendental de que depende o direito do Estado para tributar os
cidadãos e para administrar o Estado em geral.380
O propósito político da crítica à identificação da soberania como
dominium é evidente. Num momento em que se volta a associar a crítica
do colonialismo ao apelo enfático a um vago modelo de socialismo, e à
destruição das instituições sociais «burguesas», a amálgama da
propriedade e da soberania serve de alvo perfeito. Nada melhor do que ver
na genealogia uma intimidade inseparável entre ambas. Ao se desmantelar
a instituição da propriedade estar-se-ia, no mesmo passo, a desmantelar a
soberania. E vice-versa. Para os efeitos pretendidos, é irrelevante o sentido
da acção de desmantelamento. Do ponto de vista conceptual, a associação
parece ser indesmentível. Afinal de contas, quer a propriedade, quer a
soberania, são conceitos que envolvem a demarcação do espaço e
exercício de poder. Tudo nelas é ocupação, usufruto, exclusão de terceiros
– sujeitos privados, políticos, corporativos, o eixo de continuidade deixa a
nu a coincidência entre todos. Como a comunidade política tipicamente
feudal se organizava segundo relações privadas de tipo contratual e de
dominium, a corroboração da empiria histórica era igualmente abundante.
Com o colonialismo (apenas europeu?), a relação simbiótica ficaria
definitivamente selada nas condições históricas da Modernidade. Acresce
que a soberania como dominium traria a reboque a ideia de que as
fronteiras são vedações intoleráveis de propriedade e que se interpõem à
imigração irrestrita, corolário de um direito individual de mobilidade, a
uma exigência de partilha de recursos naturais ou do dever de ingerência
nas escolhas de outros países em resultado de externalidades ambientais
negativas, todos eles imperativos éticos de uma nova «consciência
global». A soberania como dominium, como propriedade, pode assim ser
apresentada como a causa dos ódios políticos e sociais, e daí como causa
da guerra. Na formulação de Kant do fundamento do direito cosmopolita,
e que seria tão importante para a crítica da fronteira política, existe um
direito da propriedade comum da superfície da Terra, sobre a qual,
enquanto superfície esférica, os homens não podem estender-se até ao
infinito, mas devem finalmente suportar-se uns aos outros, pois
originariamente ninguém tem mais direito do que outro a estar num
determinado lugar da Terra.381
Ora, se a soberania fosse identificada pura e simplesmente com o
dominium a primeira não passaria de um projecto de enclausuramento
eticamente reprovável porque contrário ao direito originário. É preciso
imediatamente dizer que não era este o propósito de Kant, nem a sua
intenção remota. Mas condensava-se neste passo uma parte importante da
crítica à justificação das fronteiras.
Em geral, as críticas reconhecem que nem sempre o dominum foi usado
verbalmente para descrever o fenómeno e o direito soberano. Imperium,
que Ullmann sempre referiu como a palavra cujo uso medieval mais
reflectia o conceito de soberania enquanto poder «supremo, incontrolável
e independente»,382 ou potestas iurisdictionis são reconhecidos com
regularidade. Mas não se diferenciam no essencial de dominium e são
facilmente capturáveis pelo dominium nos traços essenciais: demarcação
espacial, mando, exclusão do outro. O problema desta crítica é que, de
tanto querer assimilar a soberania à relação de propriedade, deixa escapar
o essencial da relação de soberania.383
Em primeiro lugar, a palavra dominium adquiriu sentidos que excediam
o de proprietas. Ockham, por exemplo, sublinhou o facto tanto no léxico
das ciências como nas traduções latinas das Sagradas Escrituras.
Dominium, dominus, dominator, dominari, não havia apenas um
significado relevante para esta família de vocábulos. Ockham chamou a
atenção para dominium aplicado à senhoria que um ser livre, como um ser
humano, tem para dispor dos seus actos. Ser senhor dos seus actos era
uma expressão plena de sentido em filosofia moral, mas não era
equivalente a ser proprietário dos seus actos. Marsílio de Pádua, o hiper-
secularizado aliado dos Franciscanos, dizia exactamente o mesmo – tanto
quanto aos múltiplos sentidos a palavra dominium como a ilustração com
o ser-se senhor dos próprios actos. Dominar as paixões seria outra boa
ilustração para Ockham da abertura de sentidos, pois não induzia apenas a
ideia de governar, ou de mandar, mas de o fazer do modo devido, mais
adequado. Porém, Ockham estava interessado, com um interesse de vida e
de morte, na discussão do conceito de dominium porque era isso que
estava em causa na disputa entre o Papa João XXII e os fraticelli
Franciscanos Espirituais. O Papa mantinha a tese de que os prelados
detinham dominium sobre a propriedade da Igreja. A Igreja era
proprietária de bens temporais. Ora, os Franciscanos recusavam a
propriedade dos bens materiais. Para João XXII, dominium e proprietas
eram sinónimos perfeitos, o que deslegitimava as posições franciscanas e
as tornavam subversivas e heréticas. Era algo que pertencia em exclusivo
a alguém e um título em virtude do qual se podia litigar em tribunal contra
outrem que reclamasse o acesso à coisa sob dominium, ou a tivesse na sua
posse. No estado de inocência, isto é, no estado de natureza intacta, ou
íntegra, antes de Eva perpetrar o pecado original e corromper a natureza
humana, haveria dominium, mas não proprietas, determinava Ockham.
Parecer contrário tinha João XXII, para quem já haveria proprietas no
estado de inocência. Adão teria dominium privado sobre as coisas do
mundo, como os pássaros e os animais, e sobre o mundo inteiro em geral.
A argumentação teológica fazia-se nestes termos durante a contenda mais
ominosa da era tardo-medieval. Por sua vez, Ockham negava que Adão
tivesse um tal dominium sobre o mundo e as suas coisas. Alegava
dominium sobre as coisas temporais, aquele que era necessário para o seu
uso efectivo e para a sua fruição. Mas não havia proprietas. Dominar, para
transliterarmos, era tão-só usar as coisas com efectividade. Ockham
lançava um desafio ao Papa para demonstrar a insanidade da sua
argumentação. Se numa abadia todos os monges morressem menos um, o
sobrevivo teria dominium exclusivo de todos os bens da abadia e seria o
seu proprietário? Evidentemente que não. Numa abadia o dominium seria
dos monges de modo partilhado, e nunca exclusivo de um só. A
exclusividade como característica do dominium estava ausente da regra de
uma abadia. O mesmo valia para o caso de Adão e de Eva. Logo, era
necessário dar mais amplitude ao significado tradicional de dominium se
quiséssemos continuar a apreender o sentido das coisas. Mais, como
Marsílio também expôs, ter poder sobre um bem para usá-lo não
constituía necessariamente um título ou uma relação de propriedade com a
coisa. Inversamente, ter a propriedade de uma coisa implicava que se tinha
um poder unitário e total sobre ela, incluindo para a destruir. Ockham dava
o passo seguinte para salvaguardar a Ordem de São Francisco. No estado
de inocência, na Ordem dos Frades Menores, na esfera dos anjos, havia
dominium em comum, não proprietas.384
Não vale a pena levarmos mais longe o debate em torno da bondade e
da licitude da doutrina franciscana da pobreza meritória, ou da sua
essencial heresia. O que temos é suficiente para prosseguir o
esclarecimento da crítica da soberania enquanto dominium. A soberania
não traduz uma relação de propriedade com o território, nem com o
espaço demarcado pela unidade estadual. A soberania politiza, jurisciza e
caracteriza esse território e esse espaço. O que Serafim de Freitas disse
explicitamente em relação ao mar, que este era para a soberania, não
exactamente um objecto de propriedade – de dominium –, mas de
protecção e de jurisdição, vale para o todo do espaço sob tutela
estadual.385 Mais importante do que Freitas, Francisco Suaréz não deixava
qualquer margem para dúvidas quanto ao uso das noções de summa
potestas/potestas superior e de dominium. A segunda noção tinha
essencialmente um carácter privado e podia exercer-se por uma pessoa
privada em relação a outra, ao passo que a primeira era um poder de
jurisdição, de determinação do direito, por natureza dirigido ao bem da
comunidade sobre o qual era exercido.386
Como veremos, com a posterior predicação da soberania para a
soberania nacional, a partir do final do século XVIII, essa politização e
juriscização determina-se numa nacionalização do território e do espaço.
As fronteiras da soberania são fronteiras de jurisdição, acção cívica e
politização, que diferencia nestes três planos – do direito, da cidadania e
da política – o Estado particular do resto do mundo. A diferença entre a
soberania, com a sua autoridade sobre pessoas que se movem num espaço
territorial, e a propriedade privada não é de grau, nem de escala. É de
espécie. E, se a colonização (apenas europeia?) em vários momentos
tornou menos distinta essa diferenciação, a verdade é que a evolução da
relação entre metrópole e colónias encaminhou-se para essa tal
diferenciação. E assim foi mais intensamente quanto mais o conceito de
soberania se consolidava na justificação do Estado metropolitano.
Subjacente à diferenciação de espécie a que aludi respeitante às relações
entre o poder político e o território/população e o proprietário com o bem
na sua posse, está a territorialidade como condição da soberania e, por
conseguinte, da possibilidade da lei e do direito civil de propriedade. Dito
de um modo mais fundamental, o território é condição da ordem política.
Toda a ordem tem como primeiro momento fundamental o da apropriação
e demarcação da terra por um agente. É o «título radical» da soberania.387
Talvez os prodigiosos avanços na produção de realidade virtual,
alavancada noutros tantos avanços na área da inteligência artificial,
venham um dia a alterar a relação da ordem política com a realidade
espacial material. É impossível especular sobre isso com um mínimo de
confiança na capacidade antecipatória das excogitações. As
transformações da condição humana e da autoconsciência que a existência
em planos de realidade virtual poderá produzir não serão neutros para a
concreção da ordem, nem para os imperativos da sua estabilização. Mas é
pelo menos plausível que rompam a ligação milenar da ordem política à
realidade territorial e espacial. Tal como é plausível supor que com essa
ligação se dissolva também o problema das fronteiras. Por enquanto, o
mundo político ainda está amarrado à materialidade da terra, do mar e do
espaço aéreo. Por mais quanto tempo? Ninguém sabe.
28. Pessoas responsáveis e irresponsáveis
Vimos anteriormente (subcapítulo 14) que situar o soberano como o
juiz, ou decisor, de última instância tinha como consequência a atribuição
de uma equivalente responsabilidade suprema pelo funcionamento do
sistema. A soberania ficava assim, e talvez involuntariamente, associada à
ideia de responsabilidade, e em contrapartida a negação da soberania
assumia o ónus de remover a responsabilidade política do sistema. Por
outro lado, é um facto que a demonstração da identificação do Estado
soberano moderno com uma pessoa não serve necessariamente o propósito
que se tem – o de associar a soberania à responsabilidade. De resto, num
passo de São Paulo na Epístola aos Coríntios diferencia-se o «homem
psíquico» do «homem espiritual» que «julga todos e não é julgado por
ninguém». Nos tempos medievais, este passo seria abundantemente citado
pelos defensores da soberania dos papas.388
A analogia com a pessoa devia cumprir alguns paralelos estritos no
domínio da conduta, como a declaração de uma vontade, da
imputabilidade e por aí em diante. A analogia com a pessoa abriu caminho
para a associação à responsabilidade pelos actos e vontades do Estado
soberano, ou o Estado como entidade imputável pelos seus actos. Mas não
se quebraria a analogia se a pessoa fosse irresponsável, isto é, se ela fosse
inimputável. E, com efeito, assim foi interpretada durante muito tempo.
Pelo contrário, tornou-se um verdadeiro «dogma intangível» para os
construtores do Estado moderno que o Estado jamais poderia ser
responsável pelos seus actos. Desde logo, a teoria da representação de
Hobbes, que já tive a ocasião de abordar, fora construída para subtrair a
responsabilidade ao representante e depositá-la por inteiro no
representado. Com efeito, se o representado era a pessoa a quem eram
atribuídos os actos e as palavras do representante, então a
responsabilidade pelo desempenho do representante era inteiramente
imputada ao representado.389 Montava-se assim uma armadilha à cidadania
política com o fito de justificar um vínculo de obediência tão
juridicamente indiscutível quanto possível. Ou não seria absurdo contestar
uma decisão do representante quando a vontade deste não era senão a
minha vontade, visto que de outro modo ele não seria representante, nem o
contestário representado? Situando o soberano-representante
simultaneamente no plano da identidade e da alteridade, Hobbes deixava
poucas opções ao cidadão senão ir para casa ganhar dinheiro, fazer
descobertas científicas e prescindir de julgar as coisas políticas – ou
ganhar um lugar na aristocracia da indústria do entretenimento, cantando
ou jogando futebol. As provações causadas por um conflito político em
que as teses republicanas e monarcómacas pululavam faziam Hobbes
recear pelos excessos de liberdade política e de responsabilização do
soberano.
Porém, não precisamos de nos concentrar em exclusivo na teoria de
Hobbes para darmos conta da negação de responsabilidade ao soberano
nos primórdios desta história. As razões eram mais abrangentes. Se o
Estado soberano produzia o direito, o mesmo direito que regulava a
protecção do indivíduo dos abusos do poder do Estado, então o Estado não
podia ser responsável perante ninguém. Se a lei era a medida da
responsabilidade, como é que o Estado soberanamente legiferante podia
ser responsável? A responsabilidade pelos danos que a lei correctamente
executada pudesse causar a outras partes da sociedade, indivíduos, pessoas
colectivas e por aí em diante, não poderia ser assacada ao Estado. Por
outro lado, a vontade do Estado é que a lei que o Estado quer seja
cumprida. Se tal não suceder, a responsabilidade não caberá ao Estado,
mas, no máximo, a quem o Estado agenciou para fazer cumprir
correctamente a lei. Dir-se-ia que o Estado popular ou nacional herdara
directamente do Estado monárquico estamental a máxima inglesa segundo
a qual The king can do no wrong. Esta antiga máxima constitucional
inglesa nunca teve um significado único perpetuamente aceite. A história
política inglesa comprova-o. As diferenças interpretativas representavam
outras tantas diferenças interpretativas do regime inglês, do lugar do
monarca, da sua «prerrogativa», do Parlamento, dos Comuns, e por aí em
diante. Nos últimos séculos de preponderância parlamentar em Inglaterra
The king can do no wrong significava que um acto ilegal ou censurável da
Coroa contra a lei era nulo e deflectia automaticamente a responsabilidade
para os ministros do rei. Mas, nos séculos XVI e XVII, os monárquicos
interpretavam a mesma máxima como a proclamação de que o rei estava
acima da lei, sendo, portanto, irresponsável. A versão maximalista do rei
Jaime I, partidário feroz da tese do direito divino dos reis, foi proclamada
solenemente num discurso ao Parlamento em 1609.
É sedição nos súbditos contestar o que um rei pode fazer no auge do
seu poder. Mas os reis justos estarão sempre dispostos a declarar o
que farão, se não incorrerem na maldição de Deus. Não admitirei que
o meu poder seja contestado, mas estarei sempre disponível para fazer
a razão aparecer em todos os meus actos e regrar as minhas acções
segundo as minhas leis.390
Já a oposição Roundhead ou Whig no século XVII interpretava-a como
dizendo que, quando o rei agia mal, cometendo uma ilegalidade ou
atentando contra o bem do reino, ele deixava de ser rei. Não poderíamos
na história intelectual europeia reproduzir para a suposta máxima The
sovereign can do no wrong uma trajectória interpretativa e argumentativa
paralela a esta? É bem provável que sim. Em particular, na interpretação
monarquista da máxima o poder régio era apresentado como totalmente
separado da comunidade que governava distantemente e, apesar de ser o
mais personificado dos governos, era capaz de eliminar por inteiro a sua
subjectividade no plano simbólico e no exercício do poder que lhe
pertencia. Era apenas uma instanciação de uma dinastia, de uma coroa.
Mas, e ignorando paralelos meramente supostos, podemos prestar mais
atenção à relação entre soberania e responsabilidade.
Inerente ao conceito de responsabilidade está a noção aproximada de
prestar contas, ou de responsividade. Os mais preocupados em garantir a
posição de supremacia do soberano eram muito relutantes em conceder
sequer a responsividade da soberania. Pufendorf, por exemplo, negava que
o augusto poder soberano devesse prestar contas dos seus actos. Porém,
descobre-se nele uma concessão importante. A responsividade, desde que
limitada a apresentar as razões públicas dos seus actos, demonstrando a
sua sapiência e utilidade, e desde que não envolva qualquer dependência
do julgamento alheio, caberia nas disponibilidades do soberano sem
atentar contra a sua majestade. Agora, se prestar contas implicasse o
direito de, em resultado de um julgamento das contas prestadas, uma
pessoa/instituição auditora anular a decisão soberana, e porventura infligir
uma pena por mau comportamento, então essa concessão destruiria a
própria soberania. Assim falou Pufendorf. Era um daqueles casos em que
o seu liberal tradutor, Barbeyrac, intervinha para corrigir tamanha rigidez
absolutista. Era um daqueles casos que convocava a distinção entre
soberania «absoluta» e «limitada», sendo a última relativamente frequente,
pois vários eram os príncipes que não podiam tomar decisões válidas sem
consultar a assembleia do povo.391 Um século mais tarde, Kant designaria
«Constituições limitadas» aquelas em que o parlamento podia opor
resistência legal às iniciativas, interpelações e exigências do executivo.392
A personificação do Estado, e por arrastamento a atribuição ao soberano
do topos da alma dessa pessoa, apontaram para a ideia de
responsabilização da soberania. Mas a soberania foi desde logo
apresentada como irresponsável, não tendo de prestar contas pela sua
decisão. O argumento anterior de que a identificação da sede da decisão
suprema a amarrava à responsabilidade tornava-se mais precário com a
ascensão do povo soberano. Com um soberano colectivo que age nos seus
próprios termos torna-se mais difícil o acto da identificação que é
necessariamente prévio à responsabilização. Se o rei soberano não era
responsável perante ninguém enquanto soberano, menos o era, se tal fosse
possível, o povo soberano. Donde provinha essa irresponsabilidade? Em
última análise da posição de supremacia do soberano. Mas se as
circunstâncias o fizessem perder a superioridade? Por exemplo, uma
derrota numa guerra que derrubasse o soberano da sua posição de
supremacia? Evidentemente, nesse caso o soberano deixaria de o ser.
Perder a posição de supremacia seria idêntico e correlativo a perder a
soberania. Porém, a questão poderia adquirir uma natureza retrospectiva.
Poderíamos responsabilizar o soberano que decidiu ir para a guerra pelas
escolhas que fez? Isto é, o soberano irresponsável poderia adquirir
responsabilidade assim que deixasse de ser soberano? Ou as decisões
soberanas (passadas), por serem soberanas, estariam imunes a uma
responsabilização futura e retrospectiva? Ainda que respondêssemos
negativamente a esta pergunta, a resposta continuaria a fazer sentido
quando a soberania fosse popular ou nacional? A responsabilização
colectiva nacional pode decorrer do conceito de soberania popular e
compatibilizar-se com a concepção liberal que temos da individualidade
das escolhas e, por conseguinte, da responsabilidade no quadro de uma
doutrina substantiva dos direitos humanos? No século XVII, Grócio,
rejeitando a tese da soberania popular, falava dos momentos na História,
indubitavelmente cruéis, em que o povo inteiro era punido por
estrangeiros pelas ofensas perpetradas pelo rei. Mas na interpretação dele
não se tratava de responsabilizar o povo por ser soberano. A punição
devia-se ao facto de o povo ter sido coadjuvante das malfeitorias do rei.393
Por outro lado, a questão da responsabilização por actos soberanos no
contexto da tese da culpa colectiva não é um problema de pouca monta e
que irrompeu com a máxima gravidade por ocasião da derrota do
nacional-socialismo alemão em 1945 e os subsequentes julgamentos em
Nuremberga, e noutros locais, dos seus dirigentes destituídos. O mesmo
poderíamos dizer do processo paralelo ocorrido no Japão na mesma época
e suscitando questões equivalentes, embora nem sempre iguais. Kant
queria decidir todas as derrotas militares pela responsabilização do Estado,
nunca do povo. Os actos de guerra seriam sempre actos de autoridade do
Estado, sob a qual o povo na sua totalidade estava sujeito.394
Talvez de modo involuntário foi a analogia do Estado/pessoa que
oferecia a saída para os problemas criados pela inimputabilidade do
Estado. Acentuava-se a analogia até à antropomorfização e declarava-se
esse sujeito de uma vontade livre, o Estado soberano, imputável. O grande
jurista francês do século XIX, Léon Duguit, foi um feroz adversário e
crítico deste deslize da analogia Estado/pessoa para a sua imputabilidade
ou responsabilidade por culpa. Na sua tese, os agrupamentos e entidades
colectivas não podiam ser tidos como responsáveis como se fossem
indivíduos conscientes e volitivos. Isso para ele era um delírio da
imaginação jurídica. Passando por cima da solução administrativista que
Duguit oferecia para as dúvidas sobre as indemnizações a pagar ou não
pagar pelos custos suportados por outros pelo funcionamento de serviços
estatais, o ponto mais significativo para nós era o seguinte: a soberania
enquanto conceito arrastara os juristas para uma interpretação e
concepções absurdas e ridículas do Estado, com consequências enganosas
para a relação cívica do poder com os cidadãos. A rejeição desta faceta da
velha analogia era, pois, mais um punhal no corpo velho da soberania
como conceito básico do direito público, «destinado a morrer».395
Mas não haveria algum pronto-socorro para a soberania aqui em perigo?
A analogia Estado soberano/pessoa era demasiado ingénua e infantil para
poder ser salva? E com ela teria de morrer igualmente a noção de Estado
soberano responsável, e responsável porque soberano? Em grande
medida, a crítica de Duguit à noção de responsabilidade do Estado
decorria de um entendimento liberal do Estado. Não que Duguit fosse um
liberal. Longe disso. Fez a sua carreira em colisão com a interpretação
liberal do seu tempo do Estado e da sociedade. Mas no cerne da sua crítica
residia ainda uma concepção instrumental do Estado – o Estado do
«serviço público». O Estado era, e justificava-se pelo, serviço e
coordenação da solidariedade entre indivíduos socializados em torno de
propósitos «sociais». Neste sentido, a responsabilização do Estado
ocorreria exclusivamente pela óptica de indivíduos com reivindicações ou
cadernos de encargos, fossem estes de natureza material ou imaterial.
A analogia Pessoa/Estado permitia mais uma possibilidade que não
devia ser desvalorizada. O Estado como pessoa começava por ser o juiz
comum das teorias da soberania do século XVII. Não se limitava, porém, a
ser um árbitro que julgava actos e delitos entre duas pessoas individuais
ou colectivas. O soberano julgava e punia. Mas também podia ser
ofendido. Desse modo, se vai complexificando um novo tipo de relação
jurídico-política com as pessoas sujeitas ao seu poder. Porque era o Estado
soberano uma pessoa que podia ser ofendida? Porque se a lei era a
tradução jurídica da sua vontade, violar a lei era violar a vontade da
Pessoa Estado. Era ofendê-la. Mais, sendo a soberania majestade, a ofensa
de lesa-majestade óbvia nas monarquias teria de sobreviver à
democratização da soberania numa figura que poderíamos chamar ofensa
de lesa-soberania, e que no direito forjado na Revolução ficaria conhecido
por lesa-pátria e por lesa-nação. Afinal de contas, a pessoa é «coisa
santa». O soberano, ao arbitrar entre dois indivíduos em conflito, ao julgar
uma ofensa alheia, e por ser um representante que cumpria a indispensável
função de juiz, assim que apurada a realidade da ofensa, dizia
necessariamente que também ele, soberano, fora ofendido. Representando
o todo da comunidade política, sendo o sustentador da ordem, o soberano
dizia-se ofendido pela ofensa que atingira directamente um outro
indivíduo. A infracção vai além do dano, constituindo-se como atentado à
própria ordem política e, por conseguinte, como ofensa ao seu garante. A
comunidade via-se ofendida. O Estado via-se ofendido. O representante
via-se ofendido. O soberano via-se ofendido. Ora, se a Pessoa do
representante podia ser ofendida, e agir em conformidade, também podia
ser responsável/responsabilizado, e agir em conformidade.396
No entanto, a soberania, além das modificações e sucessivas
reinterpretações do seu sentido histórico, está inextricavelmente associada
à ordem – à sua geração e preservação. Não restam dúvidas, como Bodin e
os seus discípulos mostraram desde o início, de que é possível analisar o
problema da ordem do ponto de vista dos seus beneficiários imediatos: os
indivíduos, desejosos de segurança e de estabilização das expectativas de
vida num contexto de escassez, inimizade e incerteza. Aqui se descobre a
centralidade do medo como a raiz psicológica da soberania – não é
surpreendente quando a condição humana autêntica se revela naquele
contexto terrível e angustiante. Amedrontado, angustiado e impotente, o
ser humano prepara-se para criar um poder que proteja, torne a vida
humana mais previsível, e que seja capaz de agir.
Mas esse ponto de vista não esgota o todo da ordem política. Tendo o
Estado como representante e garante de uma ordem que pretende subsistir
além do horizonte de vida do indivíduo, a soberania como conceito
convoca imediatamente a ordem política, e, por conseguinte, o seu
garante, como algo bem diferente de uma abstracção que se coloca do
outro lado e contra os cidadãos. Neste todo formado pela ordem política, a
relação formada pelos indivíduos/cidadãos e as estruturas da ordem
política não é instrumental porquanto nenhum dos membros da relação é
sequer inteligível sem o outro. A esta luz, o Estado soberano é
efectivamente responsável. É-o por ser o representante e o símbolo de
uma ordem política particular, que integra todos os seus elementos, com a
pretensão proclamada de sobreviver na História, envergando uma
identidade. O Estado constitutivo da ordem integra todos os seus
elementos naquilo que pode ser chamado uma comunidade
espiritualmente existente. A integração é apenas o processo que se
desdobra através da adesão de cada uma das partes pela identificação da
universalidade da ordem com a liberdade, igualdade, segurança, partilha
do comum e a autonomia de cada um. É no seio da ordem política que o
indivíduo tem a possibilidade de ascender ao universal, reconfigurando e
reinterpretado por essa via aquilo que lhe é próprio – a sua
individualidade. Esta, quando não reinterpretada pela noção do comum,
pela ascensão ao universal, pela acomodação à vontade alheia, pela
sujeição ao racional, não fornece a base intacta e formada com a qual se
olha para o Estado como um puro instrumento ou como um meio para
realizar os fins ditados por essa suposta individualidade. O indivíduo
relaciona-se com a ordem política reconfigurando a subjectividade
segundo o contexto que a ordem política forma. Por exemplo, a
subjectividade no contexto da ordem política não é o puro egoísmo, mas a
procura pela apropriação de uma vontade universal, motivada por um
esforço irresistível que a ordem política promove. A universalidade da
ordem política não aniquila a individualidade. Pelo contrário, está lá para
protegê-la e para preservá-la. Porém, a ordem cívica tece o contexto para a
conciliação da individualidade com a universalidade e com os seus
requisitos.397
Ora, a ordem política, como vimos, estabelece sedes próprias de
soberania. Nestas, a partir das quais se tomam decisões concretas, há
rostos (carnais e institucionais) que as ocupam, e que de certo modo as
personificam, independentemente das modalidades de exercício. A
identificação de que ponto da ordem política partiu cada decisão,
sobretudo a decisão suprema e inapelável, a par da identificação da
pessoa, ou grupo de pessoas, que tomou em concreto a decisão, permite a
fixação e consolidação da responsabilidade.
Estando a soberania fixamente residente no povo, e nunca em qualquer
órgão governante («órgão do soberano»), haverá responsabilidade dos
titulares de poderes políticos, mas não do soberano? Haverá
responsabilidade do governo (e da administração) como órgão do Estado,
mas não do povo que é o soberano? Kant, por exemplo, admitia que o
povo enquanto soberano podia retirar o poder ao titular do poder
executivo, demiti-lo ou até reformar a sua administração, embora não
aceitasse que a sua punição estivesse entre as prerrogativas soberanas.
Mas, na confrontação do problema colocado pelo suposto direito de
sedição ou de revolução, que Kant negaria com veemência, a refutação
das veleidades revolucionárias aparecia sob a forma da denúncia de uma
contradição. Com Kant não podia deixar de ser assim. Que contradição?
Um suposto direito de revolução implicaria que a legislação do poder
legislativo supremo simultaneamente vinculasse o povo como súbdito
sujeito às leis e não o vinculasse por tratá-lo como soberano que
subordinaria o poder legislativo a que estaria submetido. Ora, se o povo
fosse fixamente soberano, a exposição desta contradição seria ela mesma
absurda. Mais, por ocasião urgente de se operar uma transformação da
Constituição, Kant negava ao povo o direito de a refazer através da
revolução, e concedia-o apenas ao «soberano» para «reformá-la», o que
valia por dizer introduzir modificações apenas no poder executivo,
deixando os restantes intocados. O soberano, afinal de contas e imitando
Rousseau, não era exactamente o povo, mas a «vontade política unificada
em si mesma», ou a vontade geral.398
Vale a pena abrandar estes extremos de raciocínio, pois num regime
democrático moderno os titulares dos órgãos de soberania serão eleitos.
As eleições como acontecimento político e configurador da relação
política de cidadania podem servir de ponto de apoio mais interessante do
que a sedição ou a revolução. Recorde-se que a eleição não é só a escolha
do representante. É também uma modalidade de responsabilização
política. O momento máximo de vulnerabilidade do representante ocorre
com as imputações que o soberano, nessa ocasião convertido em eleitor,
profere. A revolução em condições de colapso do poder político é somente
um momento radical, destrutivo e felizmente raro da responsabilização. Já
a eleição é (normalmente) pacífica, regrada pela lei e regular no tempo.
35 Immortale Dei, §§5, 31.
36 Romanos, 13:1.
37 Plutarco, Numa, IX.
38 Jerónimo, Epístola a Eustóquia (XXII) citado em Francis Oakley, «St.
Jerome and the sad case of the fallen virgin», Omnipotence, Convenant, and
Order (Ithaca: Cornell University Press, 1984), p. 43.
39 Francis Oakley, «St. Jerome and the sad case of the fallen virgin», in
Omnipotence, Convenant, and Order (Ithaca: Cornell University Press,
1984), pp. 42-44.
40 Jerónimo, Epístola XXII.
41 G. K. Chesterton, St. Thomas Aquinas (Nova Iorque: Dover
Publications, 2009), p. 10; João Paulo II, Fides et Ratio, §43.
42 Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I, q. 25, art.º 3; art.º 4 e ad. 1, 3.
43 Ockham, III Dialogus 1, II.24.
44 Duns Escoto, Ordinatio III, distinção 37, trad. Thomas Williams, in
Norman Lillegard (ed.), The moral domain: guided readings in
philosophical and literary texts (Nova Iorque: Oxford University Press,
2010).
45 Guilherme de Ockham,«A Letter to the Friars Minor» and Other
Writings, ed. Arthur Stephen McGrade, John Kilcullen (Cambridge:
Cambridge University Press, 1995), p. 12.
46 Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I, q. 25, art.º 3, ad. 4; art.º 5 e ad.
1-2; art.º 1, ad. 2, 4.
47 Jean Bethke Elshtain, Sovereignty. God, State, and Self (Nova Iorque:
Basic Books, 2008), pp. 38-39; Francis Oakley, «St. Jerome and the Sad
Case of the Fallen Virgin», p. 50.
48 Oakley, «St. Jerome», p. 57.
49 Francis Oakley, «Nebuchadnezzar’s Fiery Furnace», p. 81.
50 Introdução a João de Paris, De potestate regia et papali, trad. inglesa J.
A. Watt (Toronto: Pontifical Institute of Medieval Studies, 1971), p. 18.
51 Walter Ullmann, Historia del pensamiento político en la Edad Media,
trad. espanhola (Madrid: Ariel, 1999), p. 148.
52 Citado por R. W Dyson, introdução a Egídio Romano, On Ecclesiastical
Power. A medieval theory of world government (Nova Iorque: Columbia
University Press, 2004), pp. xiv-xv.
53 Hugo de São Vítor e Inocêncio III citados em Francisco de Vitoria, De
potestate ecclesiae Prior in Political Writings, Anthony Pagden, Jeremy
Lawrance (eds.) (Cambridge: Cambridge University Press, 1991), q. 1, art.º
1; q. 5, art.º 9.
54 Egídio Romano, De ecclesiastica potestate, Pt. I, Cap. VII; Pt. II, Cap.
V.
55 Bernardo de Claraval, De consideratione ad Eugenium III, trad. inglesa
(Oxford: Clarendon Press, 1908), IV.3. Nesta obra, Bernardo dirigia-se ao
Papa Eugénio III.
56 William of Ockham, Eight Questions on the Power of the Pope in A
Letter to the Friars Minor, III.1.
57 Vitoria, De potestate ecclesiae Prior, q. 5, arts.º 6-9.
58 Serafim de Freitas, De iusto imperio Lusitanorum Asiatico, trad.
portuguesa (Lisboa: IAC-FLUL, 1959), VI.45, 68.
59 João Quidort de Paris, De potestate regia et papali, Caps. X, XIII.
60 Por exemplo, a passagem da Unam Sanctam acima comentada é
integralmente fundamentada e justificada em De ecclesiastica potestate, Pt.
I, Cap. IV; Pt. II, Caps. V, XII. Mais adiante, Egídio procurava demonstrar
que a espada que não foi desembainhada por Pedro na noite da detenção de
Cristo corresponde ao poder temporal.
61 Walter Ullmann, The Growth of Papal Government in the Middle Ages.
A study in the ideological relation of clerical to lay power (Londres:
Methuen, 1962), pp. 143-156.
62 Ernst H. Kantorowicz, The King’s Two Bodies. A Study in Mediaeval
Political Theology (Princeton: Princeton University Press, 1957).
63 Egídio, Pt. I, Cap. IX.
64 Egídio Romano, Pt. I, Cap. V.
65 John Austin, The Province of Jurisprudence Determined, 2.ª edição
(Londres: Taylor, 1861), pp. 14-17.
66 Ver Walter Ullmann, Principles of Government and Politics in the
Middle Ages, 2.ª edição (Nova Iorque: Routledge, 2010), p. 87. 
67 Robert L. Benson, «Plenitudo Potestatis: Evolution of a Formula from
Gregory IV to Gratian», Studia Gratiana. Collectanea Historiae Iuris
Canonici, Institutum Gratianum, 1967, pp. 198-200.
68 Benson, pp. 200-203.
69 Mateus 16:19, João 21:17.
70 Walter Ullmann, A Short History of the Papacy in the Middle Ages
(Londres: Routledge, 2003), p. 145.
71 Robert L. Benson, «Plenitudo Potestatis: Evolution of a Formula from
Gregory IV to Gratian», Collectanea Stephan Kuttner. Studia Gratiana 14,
1967, pp. 195-217.
72 João de Paris, Cap. X.
73 Idem, Caps. V, XV.
74 Jane Black, Absolutism in Renaissance Milan. Plenitude of Power under
the Visconti and the Sforza 1329-1535 (Oxford: Oxford University Press,
2009), pp. 10-13.
75 Walter Ullmann, «The Development of the Medieval Idea of
Sovereignty», The English Historical Review, N.º 250, Janeiro, 1949, pp. 1-
7, 23-28.
76 Gonçalo Almeida Ribeiro, The Decline of Private Law. A Philosophical
History of Liberal Legalism (Oxford: Hart, 2019), pp. 230-238.
77 Ver Paul Mikat, «Church and State», in Karl Rahner (ed.), Encyclopedia
of Theology: A Concise Sacramentum Mundi (Londres: Burns and Oates,
2004), p. 230.
78 Mateus 16:19, 18:18.
79 Ockham, Eight Questions, III.12, p. 328.
80 O mais brilhante dos teólogos franciscanos que partilharam com
Marsílio a estada na corte de Luís da Baviera sob a sua protecção, Ockham,
não se atreveu a ir tão longe quanto Marsílio. Negava que o Papa pudesse
em alguma circunstância ser um «vassalo» do imperador. Eight Questions,
III.13. p. 332.
81 Citado em J. U. Lewis, «Jean Bodin’s ‘Logic of Sovereignty’», Political
Studies, Vol. XVI, N.º 2, 1968, pp. 207-208.
82 Martinho Lutero, «The Babylonian Captivity of the Church», in Timothy
F. Lull (ed.), Martin Luther’s Basic Theological Writings (Mineapolis:
Fortress Press, 1989), pp. 267-313; «Temporal Authority: to what extent it
should be obeyed», Basic Theological Writings, pp. 655-703; «The
Freedom of a Christian», Basic Theological Writings, pp. 585-629. Ver
Quentin Skinner, The Foundations of Modern Political Thought
(Cambridge: Cambridge University Press, 1978), Vol. II, pp. 14-15. Os
precedentes tardo-medievais a propósito da negação de autoridade
jurisdicional ao Papa não incluem Ockham, como vimos na nota anterior,
porque apesar de tudo, este não negava primazia ao Papa no seio da
comunidade da Igreja em tudo o que respeitava à salvação das almas.
Teríamos, em contrapartida, de provavelmente incluir os precedentes de
John Wycliff e de Jan Hus, dois famosos heréticos tardo-medievais, o
primeiro inglês, o segundo checo e ainda hoje símbolo do patriotismo checo
contemporâneo.
83 Sobre o Act of Appeals, ver Skinner, Foundations, Vol. II, pp. 86-89.
84 João de Paris, Caps. VI, XIII, XXIII.
85 Idem, Cap. XIII.
86 Ibidem, Cap. XIII.
87 Ibidem, Cap. XXII.
88 Ibidem, Caps. XII-XIII.
89 Marsílio, Defensor Pacis, I.19.12.
90 Ver João de Paris, De potestate regia et papali, proémio, Caps. II, V.
91 Immortale Dei, §§19, 28.
92 Para uma discussão da distinção propriamente dita, ver Miguel Morgado,
Autoridade (Lisboa: FFMS, 2010). Depois de em 2010 ter publicado
Autoridade, e agora Soberania, a trilogia dos princípios de ordem política
ficará concluída com o volume dedicado ao Amor como princípio de ordem.
93 Jacques Bénigne Bossuet, Histoire des variations des églises
protestantes (Paris: Veuve de Saint Mabre-Cramoisy, 1688), Vol. I, p. xviii.
94 Ockham, A Letter to the Friars Minor, p. 12.
95 Concílio Vaticano I, «Declaração sobre a Infalibilidade Papal» citada em
Lawrence S. Cunningham, An Introduction to Catholicism (Cambridge:
Cambridge University Press, 2009), p. 135.
96 Para os historiadores que alegam a inexistência de uma tradição até final
do século XIII de aceitação da infalibilidade papal, ver por todos Brian
Tierney, Origins of Papal Infallibility, 1150-1350: a study on the concepts
of infallibility, sovereignty and tradition in the Middle Ages (Leiden: Brill,
1972). Ver ainda Brian Tierney, «Infalliblity and the Medieval Canonists: a
Discussion with Alfons Stickler», Catholic Historical Review, Vol. LX,
1974, pp. 427-441. Para os defensores contemporâneos de uma essencial
continuidade envolvidos num debate directo com Tierney, ver Alfons H.
Stickler, «Rejoinder to Professor Tierney», Catholic Historical Review, Vol.
LXI, N.º 2, 1975, pp. 274-279. Stickler cita, em refutação da tese da
originalidade de Olivi, o canonista Huguccio, duas quaestiones em Summae
cujos autores desconhecemos e uma decisão do Papa Alexandre III (Cum
Christus). Estes passos são reproduzidos e interpretados por ambos os
autores.
No século XVIII seria publicado uma influentíssima rejeição da
infalibilidade papal por um dos mais conceituados e respeitados clérigos da
história moderna da Igreja, o bispo de Meaux, Bossuet. De publicação
póstuma, para evitar criar conflitos desnecessários com o Papa e introduzir
divisões artificiais na comunidade dos fiéis, a obra de Bossuet seria
peremptória ao negar as presuntivas raízes da tese da infalibilidade nas
origens da tradição católica e a sua coerência com o restante corpo
dogmático da Igreja. Ver W. J. Sparrow Simpson, Roman Catholic
Opposition to Papal Infallibility (Edimburgo: Edinburgh Press, 1909), pp.
93-97.
97 The Necessity of the Absolute Power of all Kings, in Robert Filmer,
Patriarcha and other political works, Peter Laslett, ed. (Oxford: Basil
Blackwell, 1949), p. 318. Filmer assinou esta obra com o nome John Bodin,
a Protestant according to the Church of Geneva. Assim mesmo.
98 De jure belli ac pacis, II.4§12, 15.
99 Maquiavel, Discorsi, I.6.
100 Foi Isaiah Berlin quem levou a cabo esta absurda e maliciosa confusão.
«Joseph de Maistre and the Origins of Fascism» in The Crooked Timber of
Humanity, ed. Henry Hardy (Princeton: Princeton University Press, 1990).
101 Joseph de Maistre, Du Pape (Paris: J. B. Pélagaud, 1868), 21.ª edição,
I.1. Ver I.19.
102 Rousseau, Du Contract Social, II.3.
103 Hobbes, De Cive, VI.14.
104 Rousseau, Du Contract Social, I.7. Ver II.12, III.18.
105 Idem, I.7. Os itálicos são meus.
106 Ibidem, III.13,14,18.
107 Rousseau, Considérations sur le Gouvernement de Pologne et sur sa
Réformation Projettée, Oeuvres complètes (Paris: Gallimard, 1969), VII,
Vol. III, pp. 978, 975.
108 Carta de Jefferson a James Madison, 6 de Setembro de 1789, in
Thomas Jefferson, Political Writings, Joyce Appleby, Terence Ball, eds.
(Cambridge: Cambridge University Press, 2012), p. 596.
109 Condorcet, Sur la nécessité de faire ratifier la constitution par les
citoyens, et sur la formation des communautés de campagne (Paris: Ph. D.
Pierres, 1789), pp. 4-5
110 Bossuet, Politique tirée des propres paroles de l’Écriture Sainte (Paris:
Pierre Cot, 1709), IV, art.º 1, proposição 6.
111 Joseph de Maistre, Du Pape, II.1.
112 Carl Scmitt, The Nomos of the Earth in the International Law of the Jus
Publicum Europaeum, trad. inglesa (Nova Iorque: Telos Press, 2006), p.
127.
113 Jean Bodin, Les six livres de la République, 6 Vols. (Paris: Fayard,
1986), I.8. Esta edição moderna reproduz a edição de 1576. Usei também a
edição de 1579 que contém algumas alterações relativamente à original.
114 Ver Phil Zuckerman, Society without God. What the least religious
nations can tell us about contentment (Nova Iorque: New York Unversity
Press, 2008).
115 Pierre Bayle, Dictionnaire Historique et Critique (Paris: Desoer, 1820),
«Bodin», Vol. III, pp. 509, 522. Ver p. 524.
116 Mogens Chrom Jacobsen, Jean Bodin et le dilemme de la philosophie
politique moderne (Copenhaga: Museum Tusculanum Press, 2000), pp. 31-
39; Julian H. Franklin, Jean Bodin et la naissance de la théorie absolutiste,
trad. francesa Jean-Fabien Spitz (Paris: Presses Universitaires de France,
1993), p. 143.
117 Bodin, prefácio, pp. i-ii.
118 Ibid., pp. ii-iii. Curiosamente, um pouco mais adiante Bodin reproduzia
a crítica do próprio Maquiavel à filosofia política das «repúblicas
imaginárias» e o seu apelo à «verdade efectiva das coisas» e com um
vocabulário que era muito próprio do florentino (I.1). A filosofia política de
Bodin também pretendia ser o resultado do triunfo da realidade política
sobre a imaginação utópica (I.6).
119 Ibid., pp. iv-v.
120 Thomas Hobbes, Leviathan, Richard Tuck, ed. (Cambridge: Cambridge
University Press, 1996), epístola dedicatória.
121 Thomas Hobbes, Of the Life and History of Thucydides, in The
Collected Works of Thomas Hobbes, William Molesworth (ed.)
(Routledge/Thoemmes Press, 1992), Vol. VI, pp. xvi-xvii.
122 Franklin, p. 151.
123 Idem, pp. 39-66.
124 Bodin, II.5.
125 Bodin, I.1.
126 Idem, I.2.
127 Ibid, I.1.
128 Ibid, I.2.
129 Idem, I.2.
130 Ibid, I.6.
131 Idem, I.6.
132 Bodin, I.4.
133 Idem, I.1-2.
134 Ibid, I.2.
135 Bodin, I.2.
136 Idem, I.3-4.
137 Bodin, I.6-7.
138 Idem, I.6.
139 Bodin, I.8, 2.
140 Digesto, 1.3.31 (Ulpiano).
141 Bodin, I.8.
142 Observations Concerning the Originall of Government, pp. 203-204;
Patriarcha, III.1.
143 The Anarchy of a Limited or Mixed Monarchy, prefácio, p. 132.
144 Bodin, I.8.
145 Bodin, I.10.
146 Idem, I.8.
147 Bodin, I.8.
148 Idem.
149 Thomas Berns, Souveraineté, droit et gourvenementalité. Lectures du
politique moderne à partir de Bodin (Clamecy: Éditions Leo Scheer, 2005),
p. 81.
150 Bodin, I.10, 8.
151 Govert Buijs, «“Que les Latins appellent maiestatem”. An exploration
into the theological background of the concept of sovereignty», Neil Walker
(ed.), Sovereignty in Transition (Oxford: Hart Publishing, 2003), pp. 248.
152 Escoto citado em Buijs, «Que les Latins appellent maiestatem», p. 251.
153 Charles Loyseau, Traité des seigneuries (Paris: Abel l’Angelier, 1610),
3.ª edição; Luc Foisneau, «Sovereingty and Reason of State: Bodin, Botero,
Richelieu and Hobbes», in Howell A. Lloyd (coord.), The Reception of
Bodin (Leiden: Brill, 2013), p. 335.
154 Bodin, I.8.
155 Samuel Pufendorf, Le droit de la nature et des gens, ed. Jean
Barbeyarc, 3 Vols. (Londres: Jean Nours, 1740), VII. 6§3.
156 Brian Tierney, «‘The Prince is not Bound by the Laws.’ Accursius and
the Origins of the Modern State», Comparative Studies in Society and
History, Vol. 5, n.º 4, 1963, pp. 390-391.
157 Digesto, 1.4.1 pr.
158 Roberto de Mattei, A Soberania Necessária, pp. 33, 52; Brian Tierney,
«‘The Prince is not Bound by the Laws.’ Accursius and the Origins of the
Modern State», Comparative Studies in Society and History, Vol. 5, n.º 4,
1963, pp. 392, 397-398.
159 Francisco de Suárez, De Legibus et de Deo Legislatore, ed. bilingue
Luciano Pereña, 6 Vols. (Madrid: Consejo Superior de Investigaciones
Cientificas, 1971), III.35.3-8; Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I-II, q.
96, art.º 5, ad. 3.
160 Suárez, De Legibus, III.35.11-12.
161 Suárez, III.35.15-27.
162 Francisco de Vitoria, De potestate ecclesiae Prior, q. 3, art.º 4.
163 Bodin, I.8.
164 Comparar Hobbes, Leviathan, Caps. XIV-XVIII, com Pufendorf,
VI.6§3.
165 Calvino, Institutes of the Christian Religion, Henry Beveridge, ed.
(Edimburgo: Calvin Translation Society, 1846), IV.20.§29-32.
166 Julian H. Franklin, Introdução a Jean Bodin, On Sovereignty
(Cambridge: Cambridge University Press, 1992), p. xxiv.
167 Bodin, I.8.
168 Bodin, I.8.
169 Jean Barbeyrac, Le droit de la nature et des gens (Pufendorf), nota 1
em VII.6§2.
170 Para a demonstração desta compatibilidade ver Miguel Morgado,
Introdução a John Locke, Dois Tratados do Governo Civil (Lisboa: Edições
70, 2008).
171 Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I-II, q. 90, art.º 1, q. 91, art.º 3;
q. 97, art.º 3. Os itálicos são meus.
172 Grócio, I.1§10.5.
173 Platão, Eutífron, 10a.
174 Leibniz, Meditation on the Common Concept of Justice, Political
Writings (Cambridge: Cambridge University Press, 1972), p. 45.
175 Tertuliano, De poenitentia, IV.6, in The Ante-Nicene Fathers: The
Writings of the Fathers down to A.D. 325, Alexander Roberts, James
Donaldson, coords. (Edimburgo: T. & T. Clark, 1867-1865), Vol III.
176 Martinho Lutero, The Bondage of the Will in Basic Theological
Writings, Timothy F. Lull, ed. (Minneapolis: Fortress Press, 1989), pp. 195-
196.
177 Ockham, Quodlibetal Questions, Quod. 3, q. 14, trad. inglesa Alfred
Freddoso, Francis Kelley, Vol. I (New Haven: Yale University Press, 1991).
178 Opinion on the Principles of Pufendorf, p. 71; Meditation on the
Common Concept of Justice, p. 46; Patrick Riley, Leibniz’s Universal
Jurisprudence. Justice as the Charity of the Wise (Cambridge: Harvard
University Press, 1996), pp. 20-24.
179 John Locke, Questions on the Law of Nature, p. 19.
180 Patrick Riley, Leibniz’s Universal Jurisprudence. Justice as the Charity
of the Wise (Cambridge: Harvard University Press, 1996), pp. 228-230.
181 Barbeyrac, Le Droit de la nature et des gens, nota 4 em VII.6§3.
182 Ben Holland, The Moral Person of the State. Pufendorf, Sovereignty
and Composite Polities (Cambridge: Cambridge University Press, 2017), p.
84.
183 VII.6§11-12.
184 Pufendorf, VII.6§7-10; Barbeyrac, nota 1 em VII.6§10.
185 Tito Lívio, II.18.4-5.
186 Cícero, De re publica, II.32.
187 Aristóteles, Política, trad. portuguesa (Lisboa: Vega, 1998), 1285a31-
36, 1285b2-3. Théodore Reinach, De l’état de siège (Paris: F. Pichon,
1885), p. 13.
188 Montesquieu, Do Espírito das Leis, Miguel Morgado, ed. (Lisboa:
Edições 70, 2011), XII.19.
189 Montesquieu, XI.16, II.3; Maquiavel, Discorsi, I.33.
190 Carl Schmitt, La Dictature, trad francesa (Paris: Éditions du Seuil,
2000), p. 151.
191 Claude Nicole, «Dictatorship in Rome», in Peter Baehr, Melvin Richter
(eds.), Dictatorship in History and Theory: Bonapartism, Caesarism, and
Totalitarianism (Cambridge: Cambridge University Press, 2004), pp. 263-
278.
192 Cícero, De Re publica, I.40.
193 Théodore Reinach, De l’état de siège (Paris: F. Pichon, 1885), p. 20.
194 Maquiavel, Discorsi, I.34.
195 A lex Valeria de provocatione atribuiu ao povo o direito de recorrer
para os comícios de penas de morte pronunciadas pelos magistrados, mas
não o direito de recurso contra o ditador. Porém, por volta de 300 a.C. a
terceira lex Valeria de provocatione concederia o direito de submeter o
ditador à provocatio.
196 Bodin, I.8.
197 Grócio, I.3§11.
198 Barbeyrac, notas 6-7 em Grócio, I.3§11.
199 Rousseau, Du Contract Social, III.6.
200 Reinach, p. 29.
201 Reinach, De l’état de siège, pp. 92-94.
202 Carl Schmitt, Constitutional Theory, trad. inglesa (Durham: Duke
University Press, 2008), p. 156; Alexandre Franco de Sá, Introdução a Carl
Schmitt, O Conceito do Político, Alexandre Franco de Sá, ed. (Lisboa:
Edições 70, 2015), p. 9.
203 Joseph de Maistre, Du Pape, I.2.
204 Giorgio Agamben, Homo Sacer. Sovereign Power and Bare Life, trad.
inglesa (Stanford: Stanford University Press, 1998), p. 19.
205 Carl Schmitt, Political Theology. Four Chapters on the Concept of
Sovereignty, trad. inglesa (Chicago: The University of Chicago Press,
2005), p. 5.
206 Reinach, p. 276.
207 Giorgio Agamben, State of Exception, trad. inglesa (Chicago: The
University of Chicago Press, 2005), pp. 22-23.
208 Schmitt, Political Theology, p. 18.
209 Ockham citado em Rega Wood (ed.), Ockham on the Virtues, trad.
inglesa (West Lafayette: Purdue University Press, 1997), pp. 161-63.
210 Baruch de Espinosa, Tratado Teológico-Político, Diogo Pires Aurélio,
ed. (São Paulo: Martins Fontes, 2003), XVI.
211 Diogo Pires Aurélio, O Mais Natural dos Regimes. Espinosa e a
Democracia (Lisboa: Temas e Debates, 2014), pp. 351-378.
212 Schmitt, Constitutional Theory, pp. 156-158.
213 Schmitt, Political Theology, pp. 6-15.
214 Comparar Schmitt, Political Theology, p. 13 com John Locke, Dois
Tratados do Governo Civil, Cap. XIV.
215 Schmitt, p. 13.
216 Heller, p. 129.
217 Schmitt, Political Theology, pp. 31-32.
218 Franklin Delano Roosevelt, Discurso de tomada de posse, 4 de Março,
1933, https://avalon.law.yale.edu/20th_century/froos1.asp.
219 Thomas Hobbes, De Cive, VII.16; Richard Tuck, The Sleeping
Sovereign. The Invention of Modern Democracy (Cambridge: Cambridge
University Press, 2015), pp. 87-95.
220 Hans Morgenthau, Politics among Nations. The Struggle for Power and
Peace (Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1948), p. 306.
221 Bodin, I.6.
222 Thomas Berns, Souveraineté, droit et gourvenementalité. Lectures du
politique moderne à partir de Bodin (Clamecy: Éditions Leo Scheer, 2005),
p. 105.
223 Suárez, De Legibus, II.viii.9, II.xiv.13; Harro Höpfl, Jesuit Political
Thought. The Society of Jesus and the State, c. 1540-1630 (Cambridge:
Cambridge University Press, 2004), pp. 228-261.
224 Bodin, I.6.
225 Bodin, I.8.
226 Bodin, I.8.
227 Idem, I.6.
228 Ibid, II.2.
229 Ibid, IV.1.
230 Bodin, I.7.
231 Idem.
232 Bodin, I.8.
233 Digesto, I.i.10, pr.; Jacobsen, pp. 115-116.
234 Bodin, I.5.
235 Idem.
236 Bodin, I.5.
237 La sagesse du monde. Histoire de l’expérience humaine de l’univers
(Paris: Fayard, 1999), p. 258.
238 Bodin, I.3.
239 Emer de Vattel, Le droit des gens, 2 Vols. (Londres: [s.e], 1753),
Préliminaires, §18.
240 Walter Ullmann, Principles of Government and Politics in the Middle
Ages, p. 86; Ullmann, «The Development of the Medieval Idea of
Sovereignty», pp. 8-12.
241 John Selden, Of the Dominion, or Ownership of the Sea [Mare
Clausum, De Dominio Maris], trad. inglesa Marchamont Nedham (Londres:
William Da-Gard, 1652), I.26.
242 Grócio, I.iii.7.
243 Carl Schmitt, Political Theology. Four chapters on the concept of
sovereignty, trans. George Schwab (Chicago: The University of Chicago
Press, 2005), p. 18.
244 Bodin, I.8, 10; Pufendorf, VII.v.11; Foisneau, «Sovereignty and Reason
of State», p. 327.
245 Joseph De Maistre, Considerations on France (Cambridge: Cambridge
University Press, 1994), p. 98.
246 Bodin, I.2.
247 Raymond Aron, Democracy and Totalitarianism, trad. inglesa (Ann
Arbor: The University of Michigan Press, 1990), pp. 113-114; Miguel
Morgado, «Montesquieu and Aron on Democracy’s Virtues and Corruption.
The Question of Political Legitimacy», in Elisabeth Dutartre-Michaut, José
Colen (eds.) The Companion to Raymond Aron (Londres: Palgrave, 2015),
p. 260.
248 Pufendorf, VII.2§21-23.
249 Pufendorf, VII.4§2.
250 Marsílio de Pádua, Defensor Pacis, II.25.7, I.5.4, I.5.7, I.5.11.
251 Barbeyrac, Traité du jeu: où l’on examine les principales questions de
droit naturel et de morale qui ont du rapport à cette matière, 2 Vols.
(Amesterdão: Pierre Humbert, 1709), III.vi.19; Discourse on What is
Permitted by the Laws, pp. 319-322, 327; Discourse on the Benefits
Conferred by the Laws in Pufendorf, The Whole Duty of Man, According to
the Law of Nature, Ian Hunter and David Saunders, eds. (Indianápolis:
Liberty Fund, 2003), pp. 341-343, 358.
252 Pufendorf, VII.2§5.
253 Montesquieu, Do Espírito das Leis, XXIX.19.
254 Barbeyrac, [Grócio], II.XXVI.IV.6, nota 16.
255 Heller, p. 126.
256 Heller, p. 142.
257 Ver, por exemplo, Vitoria, De potestate civili, q. 1, art.º 2, p. 9.
258 Le Moniteur, 2 de Março de 1843. Aurelian Craiutu, Introdução a
François Guizot, The history of the origins of representative government in
Europe, trad. inglesa (Indianápolis: Liberty Fund, 2002), xv-xvi.
259 Carl Schmitt, The crisis of parliamentary democracy, trad. inglesa
(Cambridge: MIT Press, 1988), pp. 34-35 e nota 5.
260 François Guizot, Philosophie politique, citado em Aurelian Craiutu,
«The Battle for Legitimacy: Guizot and Constant on Sovereignty»,
Historical Reflections/Réflexions Historiques, Vol. 28, N.º 3, p. 485.
261 Guizot, The history of the origins of representative government in
Europe. Ver Craiutu, «The Battle for Legitimacy», pp. 479-489.
262 Bertrand de Jouvenel, Sovereignty. An Inquiry into the Political Good,
trad. inglesa (Indianápolis: Liberty Fund, 1998).
263 Jonathan Israel, Revolutionary Ideas: An Intellectual History of the
French Revolution from The Rights of Man to Robespierre (Princeton:
Princeton University Press, 2014), edição epub, Cap. 13.
264 François Furet, «Mirabeau», François Furet, Mona Ozouf (eds.),
Dictionnaire Critique de la Révolution Française (Paris: Flammarion,
1988).
265 Guizot, The history of representative government in Europe, Prt. I,
Lições VI, VIII; Prt. II, Lição I; Royer-Collard, La liberté de la Presse,
institution politique et nécessité sociale, in De la liberté de la Presse.
Discours (Paris: Librairie de Médicis, 1949).
266 Não foi ele quem o cunhou, como o próprio reconhecia. Mas foi ele
quem o erigiu em princípio ético-político universal. «It is the greatest
happiness of the greatest number that is the measure of right and wrong.»
Jeremy Bentham, A Fragment on Government, in Jeremy Bentham, The
Works of Jeremy Bentham, John Bowring (ed.) (Nova Iorque: Russell and
Russell, 1962), p. 227. A frase apareceu no prefácio à obra publicada pela
primeira vez em 1776. Os itálicos estão no original. Ver também p. 242:
«the greatest happiness of the greatest number, in the character of the
proper, and only proper and defensible, end of government».
267 Jeremy Bentham, On the Liberty of the Press, and Public Discussion,
in The Works of Jeremy Bentham, (Londres: Simpkin, Marshall & Co.,
1843), Vol. II, pp. 277-297.
268 A. Brad Schwartz, Broadcast Hysteria: Orson Welles’s War of the
Worlds and the Art of Fake News (Nova Iorque: Macmillan, 2015), versão
epub, p. 11.
269 Bodin, IV.7, III.7, V.5, VI.1, I.9, IV.1, V.2, VI.4, 6.
270 Espinosa, Tratado Teológico-Político, XX.
271 Immanuel Kant, Idea for a universal history, in Political writings, H. S.
Reiss (Cambridge: Cambridge University Press, 1991), 8.ª proposição, pp.
50-51.
272 Hobbes, Leviathan, XVIII. Ver Pufendorf, II.7§8, II.18§9.
273 Francis Bacon, Nova Atlântida e a Grande Instauração, Miguel
Morgado, ed. (Lisboa: Edições 70, 2008).
274 Hobbes, Leviathan, XLVI.
275 Hobbes, A Dialogue between a Philosopher and a Student of the
Common Laws of England, The English Works of Thomas Hobbes of
Malmesbury, William Molesworth, ed., 12 Vols. (Londres:
Routledge/Thoemmes Press, 1992), Vol. VI, p. 5; Leviathan, XXVI.
276 Espinosa, Tratado Teológico-Político, XVIII, XX.
277 Rousseau, Du contract social, II.4.
278 Bodin, I.2.
279 Bodin, I.2.
280 Benjamin Constant, Cours de Droit Constitutionnelle, 3.ª edição
(Bruxelas: Société Belge de Librarie, 1837), II.1.
281 Leibniz, Caesarinus Furstenerius, Cap. IX, Political Writings
(Cambridge: Cambridge University Press, 1972), pp. 113-114.
282 Bodin, I.10; Hobbes, Leviathan, XXX; A Dialogue between a
Philosopher, Vol. VI.
283 Leviathan, Cap. XVI.
284 Holland, The Moral Person of the State, pp. 5-6.
285 Leviathan, Cap. XVI.
286 Quentin Skinner, «Hobbes and the purely artificial person of the state»,
in Visions of Politics, Vol. III (Cambridge: Cambridge University Press,
2004).
287 Leviathan, Cap. XVII.
288 Idem, Cap. XXII.
289 Pufendorf, VII.iii§1; Hobbes, Leviathan, Cap. introd; De Cive, Caps. V,
§10; VI, §19. A publicação de De Cive antecedeu a de Leviatã em nove
anos (1642 e 1651, respectivamente).
290 Ver, por todos, Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I-II, q. 1, art.º 3.
291 David Johnston, The Rhetoric of Leviathan: Thomas Hobbes and the
Politics of Cultural Transformation (Princeton: Princeton University Press,
1986), p. 82.
292 Leviathan, XVII, XXVIII.
293 Pilippe Crignon, «L’État, structure rationnelle ou forme culturelle»,
Incidence, N.º 7, L’énigme du régicide: institution et rupture du politique,
F. Brahami, coord., Outono de 2011.
294 Simone Goyard-Fabre, «Le Concept de Persona Civilis Dans la
Philosophie Politique de Hobbes», in Cahiers de Philosophie Politique et
Juridique de l’Université de Caen, 1983, N.º 3, p. 62. O mesmo valia para
Pufendorf. Ver VII.8§7.
295 Pufendorf, VIII.4.§23.
296 Hobbes, Leviathan, XVI.
297 Grócio, I.3§6.
298 Nicola Marcucci. «La souveraineté en personne: Pour une histoire
conceptuelle de la personnification du collectif» in Laurence Kaufmann,
Danny Trom (cords.), Qu’est-ce qu’un collectif? Du commun à la
politique (Paris: Éditions de l’École des hautes études en sciences sociales,
2010), p. 80. Disponível em
http://books.openedition.org/editionsehess/11523.
299 Philippe Crignon, «Représentation et communauté. Sur Thomas
Hobbes», Archives de Philosophie 2005/3 (tomo 68), pp. 493-524.
300 Ernst Kantorowicz, The King’s Two Bodies. A Study in Mediaeval
Political Theology (Princeton: Princeton University Press, 1957), pp. 206-
231.
301 Kantorowicz, pp. 270-271. A tradução do excerto é da autoria de
António Bento, «Do corpo político medieval à pessoa política moderna»,
Revista Portuguesa de Filosofia, tomo 75, 2019, pp. 1864-1865. Todo este
artigo é muito elucidativo do problema em causa da corporificação e da
personificação, nas suas diferenças e nas suas convergências.
302 Kantorowicz, pp. 304-307.
303 Crignon, «L’État, structure rationnelle ou forme culturelle», p. 27.
304 Étienne Gilson, L’esprit de la philosophie médiéval, 2.ª edição (Paris:
Vrin, 1969), p. 73.
305 Calvino, Institutes, I.16.
306 Heller, p. 90.
307 Pierre Manent, Metamorphoses of the City. On the Western Dynamic,
trad. inglesa (Cambridge: Harvard University Press, 2013), p. 217.
308 Bodin, I.7.
309 Idem.
310 Pufendorf, VII.9§11.
311 Pufendorf, VII.2§4; VII.8§1.
312 Idem, VII.2§5.
313 Ver, por todos, Francisco de Vitoria, De potestate civili, q. 1, Arts.º 2-3.
314 Herman Heller, Sovereignty, p. 82.
315 Heller, p. 83.
316 Heller, p. 83.
317 Laurence L. Bongie, David Hume: Prophet of the Counter-revolution
(Indianápolis: Liberty Fund, 2000), 2.ª edição.
318 Hobbes, Leviathan, Caps. XX-XXI e Conclusão; David Hume, «Of the
Original Contract», «Of the Origin of Government», in Ensaios Morais,
Políticos e Literários, João Paulo Monteiro, ed. (Lisboa: Imprensa Nacional
– Casa da Moeda, 2002); A Treatise of Human Nature (Lisboa: Penguin
Books, 1985), III.ii.8. Ver Pufendorf, VII.8§9.
319 I.4§14-15.
320 Grócio, II.25§8, II.16§17-18, nota 7 de Barbeyrac em II.18§2.
321 Pufendorf, VII.3§4.
322 Vitoria, De potestate ecclesiae Prior, q. 3, art.º 1.
323 Idem.
324 Barbeyrac, Epístola dedicatória a Jorge I em Grócio, Vol. I, p. xxx.
325 John Locke, Some Thoughts Concerning Education, The Works of John
Locke, 9 Vols., 12.ª edição (Londres: Rivington, 1824), vol. VIII, §186.
326 Barbeyrac, p. xxxiii.
327 Pufendorf, VII.1§7.
328 Idem, VII.1§6.
329 Ibidem, VII.1§4.
330 Pufendorf, VII.5§6.
331 Idem, VII.2§4-5.
332 Le droit de la nature et des gens, VII.2§8, nota 2.
333 Pufendorf, VII.2§7-8. Sobre a teoria do «duplo pacto» em Pufendorf,
ver também Miguel Morgado, «Jean Barbeyrac and the Question of
Sovereignty», in Augusto Silva Dias, João António Raposo, João Lopes
Alves, Luís Duarte d’Almeida, Paulo de Sousa Mendes (eds.), Liber
amicorum de José de Sousa e Brito: Estudos de Direito e de Filosofia
(Coimbra: Almedina, 2009).
334 Pufendorf, VII.3§4. 
335 James Tully, Introdução a Samuel Pufendorf, On the Duty of Man and
Citizen (Cambridge: Cambridge University Press, 1991), p. xxxii.
336 Rousseau, Du Contract Social, III.16.
337 Pufendorf, VII.2§10; Grócio, I.3§8.
338 Pufendorf, VII.2§9-11.
339 Pufendorf, VII.8§4.
340 Idem, VII.8.7.
341 Ibidem, VII.3§1.
342 Jean-Fabien Spitz, «La Théorie du Double Contrat chez Grotius et chez
Pufendorf», Cahiers de philosophie politique et juridique, Des théories du
droit naturel (Caen: Centre de Publications de l’Université de Caen, 1987),
pp. 93-94.
343 Pufendorf, VII.8§5; Platão, Críton, 51b.
344 Pufendorf, VII.8§4-5, VIII.1§6.
345 Pufendorf, VII.8§7.
346 Pufendorf, VII.2§7-8, §13, VII.3§1. A vontade soberana é denominada
«vontade geral» em VII.5§5.
347 Holland, p. 13.
348 Pufendorf, VII.ii.13-15; Ben Holland, «Pufendorf’s Theory of
Facultative Sovereignty: on the configuration of the soul of the state»,
History of Political Thought, Vol. 33, N.º 3, 2012, pp. 427-446.
349 Eric Voegelin, The New Science of Politics (Chicago: The University of
Chicago Press, 1987), Cap. I, §6. Michel de L’Hopital citado em Cathy
Yandell, «Rhetorics of Peace: Pierre de Ronsard and Michel de L’Hopital
on the Eve of the French Wars of Religion», in Jeff Persels, Kendall Tarte,
George Hoffmann (coords.), Itineraries in French Renaissance Literature
(Leiden: Brill, 2018), p. 223.
350 De Cive, Caps. VI, §19.
351 Holland, The Moral Person of the State, p. 93.
352 Cardin le Bret, De la souveraineté du roy, Les oeuvres de Messire C. le
Bret (Paris: Toussainct du Bray, 1643), I.9.
353 Jens Bartelson, A genealogy of sovereignty (Cambridge: Cambridge
University Press, 1995), pp. 27-28.
354 Bartelson, p. 138.
355 Barbeyrac, nota 1 em Pufendorf, VII.4§1.
356 Patrick Riley, Leibniz’ Universal Jurisprudence. Justice as the Charity
of the Wise (Cambridge: Harvard University Press, 1996), p. 17. Ver Tomás
de Aquino, I, q. 25, art.º 5, ad. 1.
357 Rousseau, Du Contract Social, II.2.
358 Grócio, I.3§17.
359 Pufendorf, VII.4§1.
360 Pufendorf, VII.4§2-8; Leviathan, Cap. XVIII.
361 Barbeyrac, notas 1-2 em Pufendorf, VII.iv.1; Barbeyrac, [Pufendorf],
Les devoirs de l’homme et du citoyen, II.vii.9, nota 1.
362 Ver a exposição canónica em Montesquieu, Do Espírito das Leis, XI.6,
XIX.27.
363 Joseph de Maistre, Étude sur la Souveraineté, Oeuvres complètes
(Lyon: Librairie Générale Catholique et Classique, 1884), II.1
364 Idem.
365 Immanuel Kant, Metafísica dos Costumes, José Lamego, ed. (Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2017), 3.ª edição, Doutrina do Direito,
§§47-48.
366 Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), Arts.º 3.º, 6.º,
16.º.
367 Alexander Smolek, Michael A. Wilkinson, «Unpopular sovereignty?»,
Modern Law Review, 2020, pp. 11-13.
368 art.º 5.º, n.º 3.
369 John Locke, Dois Tratados do Governo Civil, II, §121.
370 Rousseau, Du Contract Social, IV.2.
371 A expressão é de Leibniz. Caesarinus Furstenerius, Cap. X, pp. 115-
116.
372 Jens Bartelson, A Genealogy of Sovereignty (Cambridge: Cambridge
University Press, 1995), pp. 30-31.
373 Jérôme Esnouf, Um monde sans frontières? (Angoulême, Éditions
Abeille et Castor, 2013), p. 149.
374 Esnouf, pp. 81, 87.
375 Hegel, Lectures on the Philosophy of World History, Vol. I, p. 195.
376 Serafim de Freitas, X.40; Selden, Mare Clausum, De Dominio Maris,
I.5, 20.
377 Serafim de Freitas, X.44; Selden, I.21.
378 Bruno Latour, Où atterrir? Comment s’orienter en politique (Paris: La
Découverte, 2017).
379 Bartelson, A Genealogy of Sovereignty, p. 34.
380 Kant, Metafísica dos Costumes, Doutrina do Direito, §49, Anotação B.
381 Kant, A Paz Perpétua, in A Paz Perpétua e outros opúsculos, trad.
portuguesa (Lisboa: Edições 70, 1995), Artigo definitivo n.º 3. A passagem
equivalente em Metafísica dos Costumes, Doutrina do Direito, §62.
382 Ullmann, «The Development of the Medieval Idea of Sovereignty», p.
15.
383 Gary Backhaus & John Murungi (eds.), Colonial and Global
Interfacings: Imperial Hegemonies and Democratizing Resistances
(Cambridge: Cambridge Scholars Press (2007), pp. 57-69.
384 Ockham, The Work of Ninety, Caps. 2, 26-28. Marsílio de Pádua,
II.12.16; II.13.10.
385 Serafim de Freitas, X.30, XIII.12.
386 Suaréz, De Legibus, I.VIII.4-7.
387 Carl Schmitt, Nomos of the Earth, pp. 48, 70.
388 Rémi Brague, Le Règne de l’Homme. Genèse et échec du projet
moderne (Paris: Gallimard, 2015), edição Kindle, loc. 310.
389 Leviathan, Cap. XVIII.
390 Discurso do rei Jaime I de Inglaterra perante as duas câmaras do
parlamento, 21 de Março, 1609. Acedido em
https://history.hanover.edu/courses/excerpts/eurjam1.html.
391 Pufendorf, VII.6§2.
392 Kant, Metafísica dos Costumes, Doutrina do Direito, §49, Anotação A.
393 Grócio, I.3§8.
394 Kant, Metafísica dos Costumes, Doutrina do Direito, §57.
395 Léon Duguit, Les transformations du droit public (Paris: Armand
Colin, 1913), pp. 222-269.
396 Jules Michelet, Histoire de le révolution française, Vol. II, pp. 14-15.
Michel Foucault, Dits et écrits (Paris: Gallimard, 1994), Vol. II, pp. 580,
586.
397 Estas linhas podem ser lidas como uma interpretação de Hegel,
Lectures on the Philosophy of World History, Robert F. Brown, Peter C.
Hodgson, eds. (Oxford: Clarendon Press, 2011), Vol. I, pp. 178-179.
398 Metafísica dos Costumes, Doutrina do Direito, §49 e Anotação A, §51.
II

SOBERANIA DO POVO
OU SOBERANIA DA NAÇÃO?
1. Casadas à nascença
A soberania acabaria por gerar uma divisa política capaz de entusiasmar
nações e de levantar multidões. Não foi sem razão que alguém disse que a
soberania popular constituiu a maior inovação política do século XVIII.399
Com a Revolução Francesa, e sobretudo com o seu legado duradouro, a
democracia e a nação entrariam irreversivelmente como protagonistas da
acção histórica. Ambas iriam apoiar-se na ideia de soberania para se
articularem e para esmagarem as alternativas de representação da
organização social. Assim se inventou a «soberania popular» e a
«soberania da nação». Claro que para se saber com rigor o que eram estas
«soberania do povo» e «soberania da nação» era igualmente fundamental
perceber o que seria o «povo» e a «nação», o que veio somar aos muitos e
intricados problemas com que a filosofia política já tinha de se debater.
Esta transição também permite introduzir uma visão panorâmica da
história da soberania que revela como o conceito se foi adaptando às
transformações da consciência europeia, e, através das suas adaptações,
acelerou essas transformações. Por finais do século XVI, com a exposição
clássica do conceito, que tinha óbvias conotações monárquicas, muitas das
apropriações atribuíam à soberania um predicado tendencialmente pessoal.
Por outras palavras, a soberania pertencia a uma pessoa «natural» – o rei
era o soberano, possuía a soberania. Com a «personificação» do Estado a
soberania desligou-se das pessoas «naturais», movimento que arrastara
igualmente a exposição clássica quando esta fora forçada a analisar outros
regimes políticos que não o monárquico. Foi-se desligando das pessoas
«naturais» para passar a ser predicada pelo cargo, pelo ofício, pela
instituição, pela estrutura jurídico-política. Com o novo mundo
inaugurado pelas grandes revoluções modernas, a soberania sofreu uma
nova mudança na sua predicação. Com a soberania popular e com a
soberania nacional, a soberania colectivizou-se e nacionalizou-se.
A soberania popular e a soberania nacional tinham isto em comum:
ambas designavam a supremacia da vontade geral sobre qualquer vontade
particular.400 A partir daqui, a somar a todos os problemas inerentes e
resultantes da noção de soberania, vieram todos os problemas inerentes e
resultantes da sua associação à vontade geral, ou a um conceito
equivalente ainda que com designações algo diferentes. A colectivização e
a nacionalização da soberania não foram transformações fáceis e não
deixaram de cobrar um preço, como todas as transformações deste quilate
sempre cobram.
A transição da soberania simpliciter para a soberania popular deveu-se a
um complexo conjunto de factores históricos e conceptuais. Mas do ponto
de vista fechado ao próprio conceito de soberania o que podemos dizer
acerca da necessidade dessa transição? A soberania clama ter em si o seu
próprio princípio de legitimidade. O exercício da soberania aparece, aos
olhos da própria soberania, como evidente no plano da justificação. Por
outras palavras, é legítimo para si mesmo. Contudo, não o pode ser sem
ver a sua legitimidade interna reconhecida por critérios externos. É a esta
luz que a passagem da soberania simpliciter para a soberania popular deve
ser analisada. A transferência do princípio de legitimidade para a
totalidade dos membros da própria comunidade e não para algo, ou
alguém, que lhes seja exterior – como um rei ou como um deus.
Mais, se a soberania operava uma reunião e unificação de múltiplas
vontades com a formação de uma vontade suprema, através dos vários
recursos ao seu dispor, desde logo a representação, o povo unido
soberanamente não podia pura e simplesmente aparecer num instante para
logo desaparecer. O povo não podia ser tido como simples matéria da
comunidade política, mas como seu fautor. A representação que o fazia
desaparecer assim que era praticada não podia ser desligada inteiramente
dos propósitos e direitos do povo representado. Formando uma vontade
que dava a lei ao Estado e a orientação política à comunidade, o soberano
não podia ser constituído por quem estivesse separado do povo autor. A
soberania de um homem, ou de um grupo privilegiado, aparecia como
uma usurpação cada vez mais óbvia e uma bizarria teórica. Por último, a
formação de uma vontade suprema geral ou universal devia passar a
reflectir um processo em que o interesse do todo fosse devidamente
assimilado, de um todo suficientemente homogéneo para que a vontade
suprema e una pudesse ser efectivamente geral. Se a soberania era a
condensação da unificação das múltiplas vontades dos membros do povo,
o caminho ficava aberto para a individuação da comunidade política num
território circunscrito, e para que o povo se convertesse numa nação
histórica cuja homogeneidade obtivesse uma substância mínima e
empiricamente realista.
Vimos como o fulgor da novidade da noção de soberania alimentou a
expectativa de esta substituir definitivamente a noção arcaica de regime
político. A filosofia política clássica, a de Platão e de Aristóteles,
cultivada pelos seus inúmeros e nobres discípulos, insistira sempre na
classificação da diversidade da experiência governativa. Os regimes
políticos assim classificados pareciam reclamar mais do que uma neutra
classificação. Pareciam reclamar uma hierarquização que os ordenasse no
discurso do filósofo. Essa hierarquização devia culminar na coroação do
melhor regime político em absoluto. Tudo isso a soberania, com a
violência intelectual típica de Hobbes, pretendera varrer. Ora, com a
soberania popular, a noção de soberania convertia-se involuntariamente no
critério central para fazer regressar uma certa hierarquização, bastante
mais simplificada, é certo, das modalidades governativas. Stuart Mill
ilustrou isto com significativa transparência, quando propôs que
«idealmente a melhor forma de governo» era aquela em que «a soberania,
ou o poder supremo de controlo de última instância», estivesse investido
no «todo agregado da comunidade».401 Por outras palavras, o melhor
regime político era o da soberania popular. Sem o conceito de soberania,
o de regime não fazia sentido. A expurgação da noção de regime político
não fora obtida, mas a relação de total subordinação à noção de soberania
estava lá sem ambiguidades, e isso era tudo o que contava.
2. Revoluções e soberania
O artigo 3.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do
Cidadão, o documento inaugural da Revolução Francesa e que abre a
Constituição da actual V República, reza assim: «O princípio de toda a
soberania reside essencialmente na nação. Nenhum corpo, nenhum
indivíduo pode exercer autoridade que não dimane dela expressamente.»
Este artigo é suficientemente expressivo das questões com que o século
XIX teria de viver e resolver. Podemos, a partir dele, considerar algumas
das dificuldades que sugere para a adaptação do conceito de soberania às
necessidades políticas do mundo pós-revolucionário. O texto da
Constituição de 1791, a primeira de uma longa e atribulada saga que
durou até 1958/1962 com a fundação da V República por Charles de
Gaulle, cunhou a formulação, quase decalcada do Contrato Social de
Jean-Jacques Rousseau, que se tornou clássica para tantos poderes
constituintes posteriores. «A soberania é una, indivisível, inalienável e
imprescritível. Pertence à Nação; nenhuma secção do povo, nem nenhum
indivíduo, pode atribuir-se o seu exercício.»402 A intermutabilidade da
soberania do «povo» e da soberania da «nação» era provável, mas clara.
Como vimos, a nossa própria Constituição da República «soberana»
(artigo 1.º) proclama no artigo 3.º (n.º 1) que a soberania «reside» no povo
e, no artigo 11.º, determina que a soberania é «da» República. A
intermutabilidade aparecia em 1976 entre o «povo» e a «República», mas
é preciso perceber que o Estado Novo, o regime derrubado e odiado pelos
constituintes, levara a cabo durante décadas uma persistente e infecciosa
apropriação da «Nação».
As vicissitudes violentas e contraditórias daqueles anos da Revolução
em França afectaram a referência à soberania apenas de um modo muito
subtil. Na discussão política inflamada daquele tempo havia opiniões de
toda a espécie sobre o assunto. Mas as referências oficiais expressas nos
documentos solenes mostravam uma relativa constância. Em seis curtos
anos a Revolução deu a conhecer três Declarações de Direitos – e
ignorando aqui o projecto de Constituição que os girondinos em 1793
tentaram, sem sucesso, fazer valer. De nada lhes valeu terem Condorcet a
presidir à comissão de redacção, nem tão-pouco contarem Sieyès e
Thomas Paine entre os seus membros. Em 1793, a Constituição jacobina
dita do Ano I da nova era da Liberdade seria aprovada por referendo, tal
como, de resto, aconteceria com a Constituição thermidoriana de
Setembro de 1795. Tudo ocorreu em condições de condicionamento
político extremo, e apenas para a Constituição se ver imediatamente
suspensa pela imposição do Terror em resposta às ameaças internas e
externas ao governo revolucionário. Fosse como fosse, a Constituição
procurava ser um apuramento do essencial do ensinamento rousseauniano
sobre o direito político, eliminando vestígios de outras fontes
«aristocráticas» que o triunfo jacobino tornara inaceitáveis e até inimigas.
Em conformidade, substituía a Declaração anterior de 1789 com uma nova
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Aí encontrava-se a
mesma insistência na soberania residente no «povo», una e indivisível.
Diga-se que a Constituição da República Portuguesa de 1976 limitou-se a
copiá-la neste ponto.403 Mas, ao mesmo tempo, tal como nas tentativas
anteriores, mencionava-se como sinónima a «soberania nacional», onde
repousava a «garantia social», isto é, a mobilização da acção comum para
salvaguarda de todos e dos direitos de cada um. Usava-se o substantivo
«soberano», reservado até então para os reis – para o rei de França,
entretanto derrubado pela República – para designar o povo. Previa o
crime de lesa-soberania, o da sua usurpação por um indivíduo, com a
respectiva pena de morte. E com a referência assustadora, e prenunciadora
do Terror, de que tal pena seria executada «imediatamente».404 Meio
século mais tarde, um dos grandes historiadores da Revolução, Jules
Michelet justificaria o crime de lesa-pátria com a adopção da teoria da
personificação. Desta feita, da personificação da nação. Michelet dizia que
a nação adquirira gradualmente o «carácter de uma pessoa» e a pessoa
tinha naturalmente uma «alma». A sua inviolabilidade ficava assim
justificada. Atentar contra a «personalidade nacional» constituía um crime
horrível, «um dos maiores» crimes. Faltavam-lhe até adjectivos para
qualificar tamanho acto. «Matar um homem é um crime. Mas o que é
matar uma nação?», perguntava Michelet, com o pathos rematado de
historiador francês e romântico. A pergunta fazia tanto sentido como
aqueles trabalhos líricos a que Michelet se deu de elevar o horror
separando o caso de a nação ser morta, e, como mulher, ser violada.405
Depois da Declaração, o texto constitucional de 1793 incluía mais uma
referência interessante. No artigo 2.º fazia-se a distinção entre a soberania
e o seu «exercício». O carácter «popular» da Constituição nunca aplicada,
bem como da tomada de poder dos jacobinos e da subsequente
perpetração do Terror, quase exigia que se abordasse este tema. O povo,
ou a nação, era soberano. Ora, não podia ser mandado para casa e desistir
da cidadania activa depois de promulgada a Constituição. Haveria
«assembleias primárias» populares onde se elegeriam deputados,
discutiriam iniciativas e referendariam os projectos de lei da assembleia
legislativa. Eis o «exercício» da soberania do povo.406
Não só esta Constituição foi imediatamente suspensa depois de
aprovada, como o poder que a propôs caiu cerca de um ano mais tarde,
devorado pelo Terror que ele próprio inventara e deixara à solta.
Robespierre e Saint-Just, os seus arquitectos, eram mortos pela guilhotina
que tinham selvaticamente alimentado. O corrupto Directório que se
formou para governar a França revolucionária acabaria por apresentar uma
nova Constituição, a terceira em quatro anos. Em 1795, uma França
esventrada pelo Terror e pela miséria económica saía vitoriosa pela
Europa fora, depois de gorada a reacção militar das monarquias assustadas
com as experiências políticas francesas. Para não ficar atrás das
antecedentes, a nova Constituição, dita do 5 de Frutidor do Ano III,
também era preambulada por uma Declaração dos Direitos e Deveres dos
Homens e dos Cidadãos. A novidade no título estava na inclusão dos
deveres, talvez porque Robespierre e os seus carniceiros tivessem
manchado a liberdade e os direitos com a sua associação ao Terror. A
Declaração regressava às mesmas ideias gerais das suas antecessoras, mas
inovava nas fórmulas. Agora, a soberania residia «essencialmente na
universalidade dos cidadãos». A palavra povo, depois do Terror, tinha de
ser excisada por um princípio de não-inclusão. No texto constitucional, a
fórmula era repetida quase ipsis verbis: «A universalidade dos cidadãos
franceses é o soberano.»407
No século XX, a propaganda e a teoria marxista-leninista fizeram nascer
as designações orwellianas das «Repúblicas Democráticas» e das
«Repúblicas Populares». Dir-se-ia que teriam feito um uso extensivo da
noção de soberania popular. Mas na verdade havia várias dificuldades
teóricas que se interpuseram e inviabilizaram esse apelo. Isso resulta claro
da leitura dos documentos constitucionais da fundação da primeira
república soviética, a que resultou do golpe de Lenine e dos seus
correligionários. Da autoria do próprio Lenine, os bolcheviques levaram à
recém-convocada Assembleia Constituinte russa uma Declaração dos
Direitos do Povo Trabalhador e Explorado em Janeiro de 1918. Depois da
queda do czar, em 1917, a Rússia foi administrada por governos
provisórios. Foi igualmente convocada uma Assembleia Constituinte
cujos deputados foram escolhidos por meio de eleições com um universo
de eleitores admiravelmente alargado. A derrota estrondosa dos
bolcheviques nessas eleições conduziu ao golpe de Lenine. Porém, na sua
primeira e única sessão, os bolcheviques propuseram a aprovação da dita
Declaração. Clamorosamente chumbada no acesso à discussão pelos
deputados constituintes, acabaria por ser proclamada, com algumas
alterações relativamente à versão originária, pelo Terceiro Congresso Pan-
russo dos Sovietes, o poder paralelo que a Revolução de Fevereiro de
1917 tinha espontaneamente gerado e que os bolcheviques se
encarregariam de dominar e esvaziar. Quando o III Congresso dos
Sovietes teve lugar, não só o governo já estava nas mãos dos
bolcheviques, como a Assembleia Constituinte já tinha sido dispersada
pela força. O Congresso proclamou a República Socialista Federativa
Soviética da Rússia e aprovou a Declaração no final desse mês de Janeiro.
Meses mais tarde, em Julho de 1918, aquando da adopção pelo Congresso
de uma nova Constituição para a República socialista russa, a Declaração
foi introduzida como preâmbulo. Na versão inicial aparecia uma única
menção que podia ser traduzida por soberania. Referia-se à «soberania»,
não do «povo», e muito menos da «universalidade dos cidadãos» que
preocupara o Directório francês no final do século XVIII. Referia-se, antes,
às «massas trabalhadoras», especificação que se compreendia porque a
homogeneidade que o comunismo soviético queria realizar já não era de
estamento (o povo ou o Terceiro Estado, eliminando os outros dois), nem
de nacionalidade, mas de classe. Pelo menos isso valia para o período
histórico transitório que antecedia, segundo a cartilha, a mirífica sociedade
sem classes. E o parágrafo onde a menção era feita não tinha como
propósito declarar que a soberania era deste ou daquele, ou que residia
naquela sede ou naqueloutra. Tratava-se de uma referência de puro
enquadramento para justificar a distribuição de armas pelos trabalhadores,
na verdade a formação de um Exército «Vermelho», com vista a impedir a
«restauração do poder dos exploradores».408 Curiosamente, na versão
aprovada em Congresso dos Sovietes, e colocada como preâmbulo da
Constituição, este parágrafo pura e simplesmente desapareceu. Com ele,
desaparecia também qualquer referência à soberania popular ou dos
trabalhadores.
E no texto constitucional propriamente dito? A única alusão que a
Constituição soviética russa continha era ao «poder supremo» do
Congresso dos sovietes, e, quando este não estava reunido, do Comité
executivo central pan-russo dos sovietes. Nada que pudesse ser,
terminologicamente falando, confundido com a soberania popular.409 Nem
quando poucos anos mais tarde, logo após a vitória vermelha na Guerra
Civil e a consolidação do poder comunista no território do antigo império
czarista, se fundou a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e se
adoptou uma Constituição para a nova entidade política, a soberania
popular emergiu como conceito central na definição daquela forma
política. As únicas alusões à soberania diziam respeito exclusivamente à
questão federal. Ou seja, a distribuição de competências da nova União
nominalmente federal face à «soberania» das repúblicas federadas e aos
seus «direitos soberanos».410
Na década seguinte, com Estaline e o seu «socialismo num só país»,
uma nova Constituição da URSS era adoptada. De um certo ponto de
vista, a Constituição de 1936 obedecia a uma forma mais francesa
clássica. Talvez por essa razão encontremos duas referências mais
explícitas do que era o caso com os documentos constitucionais soviéticos
anteriores. Agora, já se dizia que «todo o poder na URSS pertence aos
trabalhadores da cidade e do campo», mas «na pessoa dos sovietes de
deputados dos trabalhadores». Mal a soberania dos trabalhadores tinha
tempo para respirar na norma constitucional e era imediatamente amarrada
à representação política nos conselhos revolucionários – evidentemente,
uma pura extensão do partido comunista. Restava mais uma menção, mas
não passava de uma repetição de fórmulas anteriores na organização da
federação, das competências da União e da «soberania» das repúblicas
soviéticas federadas.411
Mais antiga do que a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do
Cidadão da Revolução Francesa de 1789, e muito mais antiga do que a
Constituição da República Portuguesa, é a Constituição do Massachusetts.
Na verdade, a Constituição do Massachusetts tem a distinção de ser a mais
antiga Constituição escrita num mesmo documento. Teve como o seu mais
destacado pai fundador John Adams, o qual viria a ser o segundo
Presidente dos Estados Unidos da América, sucedendo a George
Washington, Adams, que fora o seu vice-presidente por oito anos. Não só
é a mais antiga Constituição, como foi ratificada por sufrágio universal
(masculino) e tem estado continuamente em vigor até aos nossos dias.
Também ela é introduzida por uma Declaração dos Direitos dos
Habitantes da Comunidade do Massachusetts. O seu artigo 5.º reza assim:
Todo o poder reside originariamente no povo, e sendo derivado dele,
todos os magistrados e funcionários do governo, investidos de
autoridade, quer legislativa, executiva ou judicial, são os seus
substitutos ou agentes e em todos os momentos responsáveis perante
ele.
Porém, a Constituição federal americana proposta em Filadélfia em
1787, e que entraria em vigor no ano seguinte após um disputadíssimo
processo de ratificação pelos estados, não contém a palavra soberania.
Aliás, esse facto ocasionaria uma meditação importante de James Wilson,
um dos primeiros juízes do Supremo Tribunal americano, e um dos mais
influentes membros da convenção de Filadélfia donde sairia a proposta
constitucional. Num acórdão muito importante do Supremo Tribunal,
Chisholm vs. Geórgia, James Wilson expôs a tese de que não havia
qualquer mistério, e muito menos negligência, na ausência da palavra
soberania no texto constitucional. Segundo Wilson, o governo pelo
consentimento dos governados era incompatível com o conceito de
soberania. Por outras palavras, um entendimento liberal de governo
opunha-se à caracterização soberana dos poderes do Estado. O acórdão de
Chisholm vs. Geórgia, de 1793, apareceu quando ainda era
constitucionalmente permitido aos cidadãos da União processarem os
Estados nos tribunais federais. Ao ser processado por um cidadão da
Carolina do Sul, o estado da Geórgia recusou-se a comparecer perante o
tribunal federal e a responder-lhe. Essa recusa visava salvaguardar uma
posição de princípio. O estado da Geórgia afirmava-se soberano e, por
conseguinte, não podia reconhecer a jurisdição de um tribunal federal que
lhe fosse superior. Dois anos mais tarde, o 11.º aditamento à Constituição
garantiria «imunidade soberana» aos estados. Mas o que mais nos
interessa neste momento é a meditação de Wilson. Ao mesmo tempo que
confirmava que a palavra soberania seria desapropriada no texto
constitucional, Wilson admitia que só num local exacto faria algum
hipotético sentido usar-se a palavra. Os constituintes americanos, em vez
do majestoso We the People of the United States, poderiam ter-se
apresentado como «o povo SOBERANO dos Estados Unidos». Mas
Wilson acrescentava imediatamente que não o tinham feito por boas
razões. Afinal de contas, perguntava Wilson, quem era soberano? O que
era a sua soberania? E Wilson acusava a tradição da filosofia política de
«erros e labirintos infindáveis e inexplicáveis». Pelo contrário, o assunto
resolvia-se, por assim dizer, de uma penada. O «termo soberano tem como
seu correlativo, súbdito». Ora, numa constituição republicana como a
americana não havia súbditos, apenas cidadãos.412 Wilson reflectia, assim,
a visão estritamente monarquista da soberania, como uma pura relação de
poder vertical em que os destinatários do poder seriam em todas e
quaisquer circunstâncias puramente passivos. A república era, enquanto
regime e enquanto organização do poder político, incompatível com a
noção de soberania. Este tipo de investida republicana e liberal contra a
noção de soberania subsistiria por muito tempo até aos nossos dias e
presumivelmente subsistirá muito além deles.
Wilson sabia que a sua opinião não era consensual. Nem sequer no seu
partido. Muitos contra-exemplos podiam ser recuperados. Mas é preciso
sublinhar que Wilson não estava sozinho e tinha apoios de peso. Pela sua
importância refira-se em socorro de Wilson o parco recurso à noção de
soberania nos Federalist Papers, o depoimento mais completo e
reverenciado da posição Federalista. Com raríssimas excepções,413 os
Federalist Papers só mencionaram a soberania para, primeiro, tratar de
experiências constitucionais passadas e evidentemente defeituosas –
incluindo os impérios, as cidades gregas ou a confederação das Províncias
Unidas (Países Baixos); segundo, para descrever a situação americana
estadual e confederal anterior a 1787, igualmente defeituosa; e, terceiro,
para atacar os seus adversários soberanistas. Quando abordaram a
proposta constitucional de Filadélfia e o futuro da União, já não
recorreram à soberania. Dir-se-ia que soberania era uma realidade do
passado, própria de uma prática política antiquada e de uma ciência da
política obsoleta. Já o mestre dos autores dos Federalist Papers, John
Locke, também apenas usara a palavra soberania para desferir um golpe
mortal no patriarcalismo do soberanista Robert Filmer no chamado
Primeiro Tratado. E recusara-se a usá-la na parte construtiva e
arquitectónica da sua filosofia política no Segundo Tratado. Também os
federalistas americanos não queriam contaminar a sua filosofia política
com tamanha relíquia tóxica do passado. Hoje diríamos que era uma
questão de coerência lexical para assinalar uma «mudança de paradigma».
E, no entanto, não conseguiriam fugir à referência à soberania quando
tiveram de abordar o inescapável tema das relações externas.414
Finalmente, é importante somar a corroboração dada por Benjamin Rush à
insistência de Wilson, dado o papel que Rush desempenhou no debate
americano da época e nas fileiras dos federalistas. Rush colocaria o
problema de forma explícita:
Diz-se frequentemente que «o poder soberano e todo o poder restante
assenta no povo». Esta ideia é expressa de modo infeliz. Deveria ser:
«todo o poder é derivado do povo». O povo detém o poder apenas nos
dias das eleições. Após isso, o poder é propriedade dos seus
governantes, e o povo não pode exercê-lo, nem recuperá-lo, a menos
que seja abusado. É importante fazer circular esta ideia, pois leva à
ordem e ao bom governo415.
Rush, tal como Wilson, estava preocupado com os excessos
democratizantes da doutrina da soberania popular. Ambos percebiam que
era necessário proteger a essência representativa do governo de uma
interpretação extremada da soberania popular. E, no entanto, a
proclamação republicana justificativa da Revolução e do momento
constituinte parecia que só podia ser articulada por recurso ao conceito de
soberania, e em particular de soberania popular.
O volte-face mais ilustrativo das hesitações é provavelmente fornecido
por John Taylor, um eminentíssimo constitucionalista da viragem do
século XVIII para o XIX, pertencente à gloriosa geração que evitara a derrota
militar com o poderoso império britânico e dera aos Estados Unidos e ao
mundo uma magnífica Constituição. Correligionário de Thomas Jefferson,
homem da Virgínia tal como o seu líder, e defensor político da
escravatura, embora não sem a ocasional tortura moral pelo mal que lhe
era inerente, o senador federal Taylor juntou-se com ardor às centenas de
diatribes contra o conceito de soberania. Mas apenas para interrompê-la
com esta espantosa hesitação. Se tornassem equivalentes a soberania e o
self-government, então isso significaria que a tal soberania residiria no
povo, e não num maléfico rei nem numa sinistra oligarquia. Significaria
que o exercício dos direitos de soberania era todo da mesma porção que o
governo limitado dos representantes sujeitos à vontade do povo e ao seu
mandato constitucional. E, nesse caso, com a soberania popular a resgatar
o conceito clássico de soberania, qualificando-o, enobrecendo-o,
valorizando-o, mais valia adoptar o conceito sem outras delongas!416
Porém, como já vimos, no mesmo momento histórico no outro lado do
oceano não havia tantas hesitações no uso e aplicação da noção de
soberania a circunstâncias históricas radicalmente novas. Mas isto não
deve levar à conclusão de que o lado americano da revolução moderna
prescindiu pura e simplesmente do conceito de soberania operando um
contraste com o lado francês do movimento revolucionário. A experiência
de vida dos colonos na América nas vésperas da contestação que levaria à
revolução fora a de distância relativamente ao poder de Westminster, a
sede do Império britânico. Na América, a soberania juridicamente
absoluta do King in Parliament era imensamente refractada num conjunto
de práticas mais ou menos institucionalizadas que a vida colonial vira
nascer. A que se somavam a distância geográfica e as dificuldades de
comunicação, agravadas na Fronteira sempre em desbravamento. Essa
experiência de vida foi traduzida conceptualmente por recurso a tradições
alternativas e paralelas à dos formuladores da soberania absoluta.
Mobilizou também ajustamentos à tradição da soberania absoluta, assim
como certas inovações, que nalguns casos permaneceram paroquialmente
americanas, noutros desenvolveram-se até à universalidade.
Ao analisarmos os primeiros sinais de insatisfação dos colonos na
década de 60 do século XVIII, notamos imediatamente que a jurisdição do
Parlamento não foi – inicialmente – contestada. Mas a doutrina
constitucional do Império da soberania absoluta do King in Parliament,
articulada pela primeira vez em 1543 por Henrique VIII,417 abriu a porta
de entrada à sucessão de argumentos políticos, primeiro, contra a
excessiva intrusão do Parlamento na vida das colónias e, mais tarde,
contra a própria jurisdição da Coroa com o Parlamento na América.
Uma das obras mais marcantes deste período pré-revolucionário, e uma
das primeiras a dar o tom do protesto que cresceria até à independência
final, e respectiva guerra contra a Grã-Bretanha, foi assinada por James
Otis, em 1764. Otis foi um dos activistas mais influentes na geração
anterior à Revolução Americana. Líder do Congresso Continental que
reuniu em 1765 para protestar formalmente contra a lei fiscal britânica que
introduzia um imposto de selo nas colónias, o Stamp Act Congress. Otis
era um homem de Boston e da Universidade de Harvard. Foi-lhe atribuída
a glória póstuma da autoria da segunda divisa revolucionária mais bem-
sucedida de sempre: taxation without representation is tyranny, embora os
seus escritos só tenham deixado a formulação parecida, mas não tão
sonante, «[...] that no parts of His Majesty’s dominions can be taxed
without their consent; that every part has a right to be represented in the
supreme or some subordinate legislature [...]»418 Admirado por Samuel
Adams, por John Adams ou por Thomas Paine, morreu louco anos antes
da Declaração da Independência de 1776. Em The Rights of the British
Colonies Asserted and Proved, Otis reconhecia o Parlamento inglês,
naturalmente, mas não a sua soberania absoluta, ou a impossibilidade de
escrutinar e impugnar as suas decisões. Num primeiro ataque, Otis
experimentava a hipérbole para expor um problema recorrente na doutrina
da soberania, desta feita aplicada ao Parlamento imperial: «Dizer que o
parlamento é absoluto e arbitrário é uma contradição. O parlamento não
pode fazer com que dois e dois sejam cinco.» E, numa referência que
nesta fase do livro já nos é familiar,419 Otis acrescentava que nem a
«Omnipotência» – isto é, Deus – podia fazê-lo. Neste caso, James Otis
apropriava-se de uma referência conhecidamente grociana. Mal sabiam
Grócio ou Otis que, mais tarde, houvesse quem presumisse com uma certa
naturalidade e muito descaramento que, Deus talvez não, mas o Partido
totalitário ou o seu Querido Líder podiam mudar os resultados da
aritmética ou da moral a seu bel-prazer. Grócio e Otis nunca poderiam
adivinhar que, na época democrática pós-totalitária, as forças de
manipulação infrapolíticas, infra-soberanas, por efeitos de campanhas
prolongadíssimas de intoxicação espiritual, pudessem obter os mesmos
resultados dos partidos totalitários no poder. É uma ingenuidade supor que
o prolongamento desta campanha ideológica não venha a modificar o
exercício da própria soberania. É uma suprema ingenuidade supor que
essa evolução na interpretação da soberania e do seu exercício não
conspira para uma degradação da democracia liberal pluralista.
Otis recuperava o argumento clássico de que o Parlamento soberano
podia constituir o «poder supremo no Estado», mas não podia legislar
contra a lei natural, «imutavelmente verdadeira», não podia legislar contra
as eternas «verdade, equidade e justiça» sem nulificar a sua própria
decisão.420
Isto significava que os colonos ingleses na América na formação do
corpo intelectual da revolução não se punham à parte do debate
seiscentista sobre a soberania. É verdade que havia vozes como as de
James Wilson, mas na sua maioria os homens que desafiariam o império
britânico em nome de uma república nova tomavam partido por um dos
lados em debate. Que lado? O que defendia que um «poder supremo
legislativo e um poder supremo executivo têm de ser colocados algures na
comunidade política»,421 o que, por outras palavras, queria dizer que a
soberania era um conceito central e devia ter a respectiva correspondência
prática na organização do Estado, mas limitada por restrições externas à
própria soberania. Os «pilares» da soberania, sendo externos não podiam
deixar de estar «fixos» no «julgamento, na rectidão e na verdade».422
Seja como for, o que sabemos é que em 1776, ano da Declaração
unilateral da Independência dos Estados Unidos da América, Otis andava
espavorido a retractar-se do que dissera vinte anos antes e a pedir
humildemente perdão pelos equívocos que criara. Era tarde demais. Otis
ajudara a persuadir os colonos de que ou havia restrições externas de
justiça e de verdade à soberania, ou ter-se-ia de rever a própria noção de
soberania (indivisível) e o exercício do poder justificado por essa noção. O
que os americanos deixaram de aceitar foi que o Parlamento inglês tivesse
o direito soberano de decidir segundo a sua vontade, mantendo-se o dever
recíproco dos colonos de lhe obedecer.
Se no início do protesto os colonos aceitavam a soberania (limitada) do
Parlamento, tal transparecia até na divisa que inventaram e que correu
mundo. No taxation without representation, ou na versão mais acusatória
taxation without representation is tyranny, implicava que, se a
representação dos colonos estivesse assegurada no Parlamento soberano –
coisa que não estava –, ou seja, se houvesse participação dos colonos
através de representantes por eles livremente escolhidos na formação da
vontade soberana, então essa soberania seria considerada legítima. Mais
tarde, com a intransigência britânica e a radicalização das posições dos
colonos, o projecto passou a ser a constituição de uma república soberana
onde, entre as garantias de outras liberdades e direitos, não pudesse haver
tributação sem o respectivo consentimento dos tributados, ou, mais
rigorosamente, dos cidadãos. Uma república soberana onde a expressão e
alcance dessa soberania não pudesse oprimir a esfera pessoal – a
liberdade, a propriedade, a vida religiosa – circunscrita pelos direitos
naturais e onde a formação da vontade soberana obedecesse
escrupulosamente aos princípios da representação política, da separação
de poderes e, mais arquitectonicamente, do constitucionalismo.423
A aceitação da soberania com modificações teria este lado paradoxal: a
União (a Constituição) que fecharia a Revolução era uma República – tal
como os treze estados que sucederam às treze colónias inglesas.
Constituía-se, assim, uma grande «República» representativa assente,
como Tocqueville apontou, na «soberania do povo», por contraposição à
exígua «Democracia» antiga também ela assente na «soberania do povo».
Mas, em certa medida, tratava-se de reconceptualizar uma forma de
soberania. Ambas eram experiências de «soberania popular». Mas a
experiência antiga fora um desastre devido aos seus males estruturais,
tanto na configuração do Estado, como no tecido social. Embora não
existisse conceitualmente na Antiguidade, a «soberania popular» precisava
agora de se actualizar e modernizar.
Uma última palavra sobre esta discussão. A América da era pós-
Filadélfia, ou da era constitucional, ficaria politicamente dividida em
torno de uma outra determinação dessa «soberania popular», em grande
medida reacendida pelos acontecimentos revolucionários em França. Da
Revolução em França viria a cisão dos chamados «pais fundadores» da
república americana entre os apoiantes ardentes da Revolução Francesa e
os que dela se distanciariam. Os líderes destes dois grupos,
respectivamente Thomas Jefferson, que seria o secretário de Estado de
George Washington e, mais tarde, o terceiro Presidente da União, e John
Adams, que já conhecemos como pai fundador da Constituição do
Massachusetts e como segundo Presidente da União, seriam adversários
políticos a um tal ponto de hostilidade que cortariam relações e assim se
manteriam por anos a fio. Durante muito tempo, Adams e a sua mulher, a
extraordinária Abigail, tinham sido amigos próximos dos Jeffersons. Mas,
durante muito tempo, Adams, que como Presidente fora fustigadíssimo
pela oposição política patrocinada por Jefferson, não conseguiria esquecer
nem perdoar a duplicidade e ausência de escrúpulos do seu amigo.
Também não conseguiu suportar, é preciso reconhecê-lo, o sucesso
político de Jefferson, nem da construção retrospectiva de um herói
histórico inexistente. Contudo, a amizade de ambos seria retomada já na
velhice e imortalizada numa maravilhosa correspondência. Numa dessas
cartas, o conservador John Adams diria a Jefferson, e reflectindo as lições
de todas as épocas, incluindo da experiência recente da Revolução
Francesa e do seu desfecho napoleónico, que o «artigo fundamental do
meu credo político» consistia nisto: «O despotismo, ou a soberania
ilimitada, ou o poder absoluto é o mesmo numa maioria de uma
assembleia popular, num conselho aristocrático, numa junta oligárquica e
num único imperador.» A equivalência era absoluta. Todas aquelas formas
eram «igualmente arbitrárias, cruéis, sangrentas e em todos os aspectos
diabólicas».424
3. A Revolução e a primeira alusão a uma soberania popular
constituinte
Neste e noutros temas encontramos um manancial de precedentes para a
teoria, para a prática e para a retórica da Revolução Americana na Guerra
Civil inglesa da década de 40 do século XVII. A Guerra Civil foi uma
verdadeira revolução abortada pela imposição do «Protectorado» de
Cromwell, ou, dependendo da perspectiva, pelo golpe militar contra o seu
filho Richard que restauraria a monarquia cerca de uma década mais tarde.
Foram indubitavelmente anos de aceleração de alguns dos argumentos
democráticos que triunfariam mais tarde, desde a supremacia do
Parlamento, às eleições por sufrágio universal, redistribuição da
propriedade, liberdade religiosa (para alguns, pelo menos), liberdade de
imprensa, direitos subjectivos, igualdade, independência do poder judicial
e por aí em diante. Também o tema da soberania foi dirimido com
intensidade nestes anos, e não apenas por Hobbes, pelos seus detractores
ou pelos seus discípulos – os hobbistas.
Na Primavera de 1646, o mês de Maio viu Carlos I render-se e admitir a
derrota no campo de batalha, mas ainda não no campo da política. Seguir-
se-iam dois anos e meio de ziguezagues, negociações, frustrações e
radicalização de parte a parte, em que um rei no cativeiro ainda não
perdera a reverência do povo, nem sequer de muitos dos parlamentares.
Tudo acabaria mal, como sabemos. Carlos I perderia literalmente a cabeça
e Cromwell expurgaria os elementos revolucionários do Parlamento para
assumir uma espécie de ditadura. Um mês depois da rendição do rei,
William Ball de Barkham publicava um notável panfleto intitulado
Constitutio Populi Liberi. Aquando do deflagrar do conflito, Ball fora
partidário da Coroa. Todavia, uns anos mais tarde acabaria por ser eleito
como deputado do rebelde Long Parliament. Independentemente das
vicissitudes pessoais de William Ball, que, de resto, desconhecemos,
aquele panfleto defendia, já não a soberania do Parlamento, mas a
soberania popular pura e dura. Era em nome da soberania popular que se
deduziam os direitos de resistência não só a um rei pérfido, mas também a
um Parlamento dúplice disponível para trair a Revolução.
Ball escreveu ainda bem situado no enquadramento bíblico cristão que
inspirava uma parte significativa, porventura maioritária, do radicalismo
revolucionário. Ainda percorria as reflexões sobre o estado de inocência, o
pecado original e as suas consequências políticas e sociais. De entre essas
consequências estava a tirania como sevícia dos povos. Mas Ball incluía
desde o início uma reflexão sobre o «mais elevado humano poder», do
qual «não há recurso senão a Deus». Ao mesmo tempo, Ball postulava a
existência de um povo «nascido livre», ou seja, um povo «livre para
dispor de si». E o que significava «dispor de si»? Significava «constituir-
se ou determinar-se a si mesmo». Se o povo estivesse «constituído» ou
«determinado» na sua forma política, nos bens colectivos a prosseguir
politicamente, por imposição de outro agente que lhe fosse externo, então
isso equivalia a negar a sua liberdade. Esta liberdade do povo não era
apenas um direito de protecção da «vidas, liberdades e propriedade» de
cada um dos indivíduos contra os abusos do rei ou do Parlamento. Ia além
disso e no sentido do tema que nos interessa. A liberdade do povo era
«originariamente» e «perpetuamente» a liberdade para o povo estabelecer
por sua iniciativa e escolha, em cada momento, a forma política que mais
conveniente fosse para os bens políticos verdadeiros e para a própria
liberdade do povo. O que era um meio de dizer que essa liberdade
soberana do povo era inalienável.425
O povo conferia o poder a quem quisesse que o governasse, e em que
modalidade lhe parecesse preferível, desde que absurdamente não
decidisse ser governado contra a sua própria liberdade. Havia, portanto,
formas políticas incompatíveis com a inalienabilidade da liberdade
«originária» ou «natural», que era o mesmo que dizer a soberania popular.
Antecipando admiravelmente a indistinção, que repetiu vezes sem conta,
entre «povo» e «nação» («people or nation»), Ball avisava os seus
contemporâneos e presumivelmente os deputados alinhados com as
posições dos presbiterianos moderados, disponíveis para algum tipo de
conciliação com a monarquia e com Carlos I, para a consequência de
violar a regra da liberdade popular ou da soberania popular: a tirania e a
rendição por muito tempo da liberdade natural.426
O lado representativo da forma política tornava-se secundário face à
expressão do «poder originário» do povo. De modo que a «autoridade»
(por contraponto a «poder») do Parlamento empalidecia de inferioridade
no seu estatuto derivado do «poder primevo» da soberania popular. O
povo podia escolher quem entendesse para o governar, em quem
depositaria a sua «confiança» para prosseguir o «bem geral da nação».
Mas esses governantes e deputados estariam sempre subordinados aos
direitos do povo e ao seu beneplácito. Daí a distinção entre, de um lado, o
poder «extensivo», detido por instituições políticas como o Parlamento (o
supremo dos poderes «extensivos»), e que servia para «conservar a
ordem»; e, do outro lado, o poder «intensivo» que constituía a «causa
eficiente, final, perante Deus, do Parlamento». O povo, na sua capacidade
colectiva, e não o conjunto de indivíduos perdidos num estado de natureza
onde se iriam encontrar para pactuar, era o «mais elevado e maior» poder
«intensivo» que havia. Com ninguém podia partilhá-lo sem trair a sua
liberdade «natural». Numa notável antecipação, a distinção aberta por Ball
entre «poder intensivo» e «poder extensivo» previa quase impecavelmente
a distinção elaborada século e meio depois entre poder constituinte e
poder constituído. Não se trata de um excesso de interpretação
retrospectiva. Ball sublinhou que, quando insistira no «poder intensivo»
do povo como a tal causa eficiente do poder do Parlamento, não entendia
apenas a sua capacidade eleitoral, mas também a sua faculdade criadora
das instituições políticas. Não havia que ter medo do corolário óbvio. Se
as instituições e os seus titulares traíssem o bem do povo, se exorbitassem
os limites do poder «extensivo» que lhes fora atribuído, o povo retomava
o seu poder «primevo» e «intensivo» para reconstruir o que entretanto
apodrecera.427
Alguns meses mais tarde, mais precisamente no Outono de 1847, na
Igreja de St. Mary, em Putney, junto às margens do Tamisa, os
representantes eleitos – os agitators – do exército puritano (os
«Independentes»), republicano e, característica nada despicienda,
profissional, que vencera o rei Carlos I, reuniram-se para confrontar os
seus generais com palavras e argumentos. Oliver Cromwell, tenente-
general do New Model Army e, nesta altura, membro do Parlamento,
chefiava o conselho do exército, juntamente com Fairfax, o generalíssimo
das forças que o Parlamento opunha ao rei, e com o seu genro, o coronel
Henry Ireton. O extraordinário debate que se seguiu foi parcialmente
estenografado. O texto esteve perdido durante quase 250 anos. Foi
encontrado mais ou menos por acaso por um historiador na biblioteca de
um colégio da Universidade de Oxford, em 1890. De entre as várias
reivindicações que foram colocadas à discussão pelos representantes dos
soldados inspirados nos panfletos mais recentes dos Levellers, um grupo
radical difuso que melhor articulou a vanguarda da orientação política a
dar à Revolução saída da vitória na guerra civil, foi apresentado um
Agreement of the People. Tratava-se, para todos os efeitos, de uma
proposta de constituição para a Inglaterra que consumava os feitos da
guerra civil e a derrota da monarquia como forma de governo. Incluía uma
declaração de «direitos inatos» onde estava inscrita a liberdade de
consciência e o consentimento individual como princípio de obediência ao
poder político. Nesse documento havia referências ao «povo de
Inglaterra», com conotações relativamente passivas e históricas. Mas os
deputados dos futuros parlamentos, a serem eleitos por sufrágio universal
(masculino) e em condições de justeza, eram denominados pelos soldados
como «Representantes da Nação», cujo poder seria «inferior apenas ao do
daqueles que os escolheram».428
Ball ia mais além do que os Levellers, embora provavelmente o grupo
dos Diggers, apostado numa transformação das relações sociais e da
propriedade, fosse mais longe do que ambos na ambição revolucionária. A
aproximação à ideia de soberania popular constituinte perfilava-se com
mais nitidez nele do que nas reivindicações dos soldados. Mas os
Levellers já não corporizavam o esforço de um homem só. Verbalizavam
uma tomada de consciência colectiva que progressivamente nas décadas
seguintes cresceria até se tornar absoluta. Sem essa formação da
consciência democrática e igualitária europeia, o conceito de soberania
popular constituinte nunca poderia ter triunfado um século e pouco mais
tarde.
Quando a Restauração chegou em 1660, e Carlos II foi reposto no trono
inglês, houve uma enorme reacção e repressão contra o republicanismo
dos anos anteriores. George Lawson apoiara a causa dos Comuns contra
Carlos I, mas a sua orientação fora sempre moderada. Estava apoiada num
certo aristotelismo e a sua fé cristã era não-conformista e igualmente
moderada. Compusera uma crítica cerrada de Hobbes. Contudo, alinhava
discretamente com o amaldiçoado filósofo de Malmesbury no que
respeitava à teoria da soberania. No ano da Restauração, Lawson
apresentava uma teoria da soberania que distinguia a «real» da «pessoal».
Alegava que Grócio pusera esta a residir no «príncipe» e aquela no
«povo». Quando, na verdade, a soberania «pessoal» dizia respeito ao
exercício dos poderes de fazer a paz e a guerra, enviar embaixadas, de
regular a religião e de legiferar. Ao passo que a soberania «real» residia na
«comunidade», ou no conjunto do povo. O ponto que nos interesse está
aqui. A soberania «real» era o «poder para constituir, abolir, alterar,
reformar as formas de governo», por contraposição à soberania «pessoal»
que era o «poder de uma comunidade política já constituída».429 A
linguagem em que esta distinção era apresentada mostra bem como a
noção de poder constituinte já fora assimilada por altura da Restauração
inglesa. Quando veio a Revolução Francesa, era ainda este já velho
conceito de soberania popular, e de poder constituinte implícito nela, que
Burke atribuía aos «Novos Whigs» para melhor o repudiar.430
4. Como a soberania popular pretende criar a ordem política
A Revolução Francesa abraçou o conceito de soberania com afã e pô-lo
ao serviço do «povo» e da «nação». William Ball, como vimos, recusou-se
a decidir-se por um ou por outro. Mas quem seria mais bem servido: o
povo ou a nação? Ou seriam sinónimos? Ou quase sinónimos, subsistindo
o interesse de perceber que margem filosófica ditava as fronteiras desse
quase, além de como o povo e a nação se determinavam mutuamente
quando justapostos deste modo na reflexão e no debate público?
Em primeiro lugar, convém recordar que poucos meses antes da
Revolução um dos seus principais ideólogos, ou pelo menos dos seus
primeiros passos, Emmanuel Sieyès, já identificara a «nação» com o povo
ou com o Terceiro Estado, expurgando da nação a nobreza e o clero dada a
sua situação intrínseca de privilégio ou exterior à órbita da igualdade. Na
sua expressão melodramática, o Terceiro Estado era «tudo».431 Mas esta
identificação não abrandava a precariedade do conceito de soberania da
nação nem do de soberania popular. Para os inimigos da Revolução, e
tributários da discussão dos duzentos anos anteriores em torno da noção
de soberania, como De Maistre, a contradição era evidente. Se o povo se
dizia soberano, era preciso perguntar de quem era ele soberano. A ser
soberano, o povo teria igualmente de ser súbdito de si mesmo. Como isso
era apenas uma abstracção, era preciso identificar o coração da
contradição: o povo que «comanda» não seria o mesmo povo que
«obedece». Evidentemente, teóricos como Sieyès e muitos outros
rapidamente intrometeriam a representação como modo de reparar e
superar a alegada contradição. Porém, na pureza do conceito moderno de
soberania, e na prática dos governos monárquicos europeus durante
séculos, o soberano não se deixava representar. Quando muito, ele próprio
seria representante. Mas representante de súbditos; nunca de um outro
soberano. Neste caso, a emergência da soberania popular forçava à
conclusão bizarra de que havia um soberano que «não pode exercer a
soberania».432 Já para não falar do paradoxo do constitucionalismo
segundo o qual haveria um soberano que representaria o soberano.
O reparo de De Maistre não era destituído de razão. Mais, levantava um
problema muito sério, como podemos ver obliquamente através da
reflexão de James Wilson, alguém cuja formação política estava nos
antípodas da crítica da Revolução Francesa. De Maistre dizia que as novas
forças intelectuais progressistas proclamavam o povo ou a nação como
soberano. Mas era um tipo muito estranho de soberano porque não
legislava, nem decidia. Numa palavra, não governava. O que valia por
dizer que era um soberano morto ou adormecido que colocava
representantes a exercer a soberania por ele, isto é, a legislar, a decidir,
numa palavra, a governar. O que restava ao soberano popular ou
nacional? Ser enterrado na morte da obediência. Era um soberano que
obedecia. Maior contradição não poderia haver. A «soberania da nação»
não passava de «metafísica».433
Passando por cima do efeito hiperbólico da retórica polémica de De
Maistre, não há como ignorar a tensão a que a teoria e a prática da
soberania popular estiveram sujeitas desde praticamente o seu início. A
representação política provocou essa tensão. Era inevitável. O movimento
livre da soberania popular foi o da atracção e confirmação da auto-
identidade do povo, o movimento do povo de si para si. Mas a
organização constitucional e a técnica da soberania comprometeu este
movimento. De Hobbes em diante, a operacionalização da soberania
popular em poder constituído passava forçosamente pela sua
representação política permanente. Se esse passo constituiu um momento
importante e irreversível na dessacralização da monarquia, tornando o
príncipe um mero representante da nação a par de outros representantes da
nação, e, por conseguinte, substituível e removível, acabaria por envolver
mais do que a monarquia.
Que o rei passava a ser representante da nação a par da assembleia
legislativa, fora uma inovação trazida pela Revolução Francesa na
Constituição de 1791, e que sempre deixara um conflito latente. Primeiro,
porque ser representante era uma inequívoca despromoção para quem fora
soberano. Agora era um «delegado», como dizia a Constituição de
1791,434 e como Robespierre, antes de o tempo estar maduro para a
República, argumentaria contra Mirabeau. Para este confesso e secreto
defensor do rei, o estatuto de representante ainda garantia a transcendência
relativamente ao representado, mas o estatuto de «delegado» seguramente
não o fazia. Havia uma diferença abissal entre ser representante e ser
funcionário do povo, e toda a gente tinha uma ideia bastante precisa do
tamanho dessa diferença. De resto, o representante reduzido ao seu papel
legal pode contentar os que se recusam a exorbitar o horizonte político das
instituições democráticas. Mas é uma tremenda e humilhante
despromoção para quem esteve habituado a representar
«existencialmente» a sociedade, isto é, a representá-la no todo da
existência humana, «incluindo a sua dimensão espiritual».435 Segundo,
porque a vontade da nação, a que se apelava frequentemente contra o rei,
era articulada mais imediatamente pelos deputados da assembleia
legislativa até pelo facto de serem não-reis. No período da Restauração
francesa, em 1814 (ou 1815 para levarmos em conta os 100 Dias de
Napoleão), e na Carta que o rei Luís XVIII outorgou à França, e que a
Carta portuguesa de 1826 evidentemente copiou, a despromoção da
representação era atenuada pelo acto soberano de dar uma Constituição à
nação, e não receber uma dela. Afinal de contas, fazer e dar uma
Constituição era um acto próprio do soberano. A revolução democrática,
porém, é que não estaria pelos ajustes e estes compromissos foram caindo
um por um. A soberania popular, ou da nação, levaria a melhor. Não
apenas graças à força mística da busca da igualdade, e ao vigor implacável
do ódio à desigualdade, mas também porque o poder constituinte assente
na soberania popular, ou da nação, era radicalmente livre. As
possibilidades de autodeterminação da existência política do povo, ou da
nação, eram infinitas. Identificando-se consigo mesmo através de uma
decisão constituinte, o povo, ou a nação, podia dispor de si mesmo
segundo formas políticas sempre abertas a revisão e a transformação,
segundo a vontade soberana. O mesmo não se podia dizer do
rei/representante constituinte. As suas possibilidades eram muito estreitas,
já que não podia decidir por certas formas políticas – as que pusessem em
causa a monarquia hereditária, por exemplo – sem se comprometer a si
mesmo fatalmente.436
Tal como a Constituição francesa de 1791 converteria o rei de França
num simples representante da nação francesa, também todas as
manifestações democráticas – populares – do poder político tinham de ser
traduzidas pela presença e acção de representantes. Ora, a representação
política envolve a criação de um ponto de acção e de discurso que
transcende a imanência do povo identificado consigo mesmo num
processo histórico de cada vez mais intensa homogeneização. A
transcendência da representação ameaça negar ao povo a sua posição
soberana. A representação política caracteriza-se por um movimento de
aproximação/afastamento numa sequência não necessariamente pendular.
O representante está próximo da imanência popular porque é eleito,
discutido, comentado, criticado, além de ser existencialmente um do povo.
É do seu seio que o representante sai, brotando das opiniões populares e
confundindo-se com elas. Promete defender os interesses e os desejos do
povo. Mas o representante também promete ser o protector do povo,
alguém que o defende dos seus medos, e lhe aponta um caminho futuro
que o povo não enxerga com nitidez. Mais do que isso, o representante,
uma vez eleito, uma vez escolhido, separa-se do povo. Adquire uma
existência política essencialmente diferente da do povo eleitoral. Ele
adquire o monopólio da decisão e acede aos segredos do poder. Ele lidera
e dirige. O povo obedece. Daí a necessidade de se estabelecerem eleições
relativamente frequentes – e, na opinião de alguns, de limitar os mandatos
representativos que cada cidadão pode exercer: para manter domada a
transcendência da representação.437
É esta tensão entre a soberania popular e a representação política que
está na origem da chamada crise da representação. E é pela mesmíssima
razão que essa crise, podendo ter paliativos, não tem cura. Salvaguardando
os casos nacionais de corrupção sem freios, clientelismo e domínio de
partidos-Estado, que envolvem problemas diferentes e mais graves, a crise
da representação é correlativa e co-extensiva ao próprio regime da
soberania popular.
Contudo, daqui não se pode concluir que a filosofia política das forças
progressistas tivesse ignorado o problema, nem que tivesse esquecido a
respectiva solução. Independentemente da validade da alegada solução, o
facto é que o problema foi colocado e tratado. A extrema utilidade da
crítica de De Maistre e de James Wilson permite estudar essas
considerações com outra atenção e cuidado. Assim, as distinções que
aparecem na filosofia política de teóricos como Bodin ou como Rousseau
entre «soberano» e «governo» devem ser vistas à luz desta crítica
retrospectiva. Mais, De Maistre, que tanto absorveu da teoria da soberania,
acabava por cometer o erro monarquista – o de ler apenas as
possibilidades da teoria clássica da soberania para o governo monárquico,
e desvalorizando como insignificantes, ou até mesmo como contraditórias,
as reflexões de Bodin sobre regimes populares e as aplicações que fez da
teoria da soberania a esses regimes.
A emergência da soberania popular ou da nação foi envolvida numa
confusão bem discernida por Benjamin Constant, quando já era possível
fazer um balanço da Revolução Francesa, tanto das suas aquisições
duradouras, como do Terror. Num governo legítimo havia sempre duas
ordens de propósitos que convinha manter bem distintos conceptualmente
para não se cometerem erros práticos. Havia o propósito da «liberdade» e
o propósito da «garantia». Não obstante a retórica revolucionária, e o
patrocínio de filosofias políticas confusas, a soberania popular ou da
nação não servia, por si mesma, o propósito da liberdade. Esse só os
direitos individuais poderiam servir. Então o que dizer da soberania do
povo? Essa servia o propósito da «garantia» – isto é, destinava-se a
deslegitimar e a impedir que uma só pessoa tomasse conta de um poder
que pertencia à comunidade política como um todo. A compreensão desta
distinção era decisiva porque a soberania não se limitava a si mesma. E
era crucial que ela, popular ou nacional, fosse limitada. O povo ou a nação
que pudessem tudo seriam tão tirânicos, ou até mais tirânicos do que o
monarca absoluto que literal e simbolicamente fora decapitado durante a
Revolução. Do ponto de vista da liberdade, a soberania popular e da nação
nada salvaguardava. Era preciso «declarar» limites a ela e determinar que,
quando esses limites fossem violados, a soberania do povo ou da nação se
tornaria «ilegítima». E que limites seriam esses que deviam ser
declarados? Que «há objectos sobre os quais o legislador não tem o direito
de fazer uma lei, e que há vontades que nem o povo, nem os seus
delegados, têm o direito de ter».438 Nem o povo, nem a nação, podiam
salvar a liberdade se não encontrassem limites à determinação de si por si
mesmo.
Mas havia um impasse da exclusiva responsabilidade de Constant que
não podia ser ignorado. Com ele e com a Revolução, a soberania popular
aparecia como incontestável e perigosa. Para lidar com esse perigo,
Constant atribuía-lhe uma função meramente negativa e defensiva, uma
espécie de veto às alternativas monárquicas e oligárquicas, com os direitos
individuais a concretizar a «liberdade dos modernos». Essa função, porém,
era limitada apenas na tese de Constant, uma existência parcial que a obra
do amigo de Mme. Staël não podia deixar de testemunhar. No mundo
político, a soberania do povo ou da nação aparecia na História para ter
iniciativa, para criar coisas novas.
5. Uma casa, com certeza
No exercício do poder constituinte há mais em jogo do que a simples
elaboração de uma Constituição. Ou, se se quiser, a elaboração de uma
Constituição envolve mais, muito mais, do que a justaposição de regras ou
a localização da fonte do poder político legítimo. Envolve a expressão
daquilo a que podemos chamar o sentido constituinte – a construção de
um sentido político, de um modo de vida colectivo politicamente
enquadrado, e que com esse enquadramento se impõe como limite às
possibilidades de regramento da comunidade. O Estado soberano forma
um horizonte de sentido político que orienta o homem enquanto cidadão e,
inevitavelmente, o homem enquanto homem. Um princípio de ordem
confere forma, mas também um sentido a um sistema social. O sentido
político não se esgota no alívio do medo da morte violenta. Não que
excluamos a preocupação com a segurança do corpo na constituição da
ordem política. Apenas não se esgota nela. O cortejo de paixões, de
desejos, de esperanças e de necessidades humanas que estão envolvidos
vai muito mais longe na explicação – e justificação – dos laços cívicos que
fazemos e aceitamos, bem como da identidade que construímos. A
formação do Estado político, bem como a sua reforma ao longo do tempo,
reflecte a consideração mais vasta de que tipo de ser político queremos ser
– qual o modo de ser no mundo político em que nos revemos.439
Nos exemplos modernos, as formas políticas do Estado e a Constituição
são como a casa que construímos para viver a nossa vida. Construímo-las
com preocupações de protecção, tal como uma casa tem de nos proteger
dos elementos e manter-nos seguros dentro das suas paredes, com portas
que fechem e telhados que não desmoronem. Mas a casa no seu interior é
também o local onde passaremos uma parte considerável da nossa
existência, e decoramo-la e apetrechamo-la segundo as nossas inclinações,
preferências e recursos. Fazemo-la nossa como uma extensão do nosso
modo de existir através da sua transformação material e das afinidades
simbólicas que se criam. Tal como a vamos reformando, não apenas
quando a casa se degrada e já não cumpre bem as funções originárias (por
exemplo, reparar um telhado que deixa verter água da chuva), mas
também quando a consciência que temos de nós mesmos se modifica e
essa alteração tem reflexos nas nossas preferências. Ou pura e
simplesmente quando as condições externas da nossa vida se alteram a
ponto de exigir mudanças na nossa casa. Por vezes, o reflexo na ordem
interna da casa não é puramente subjectivo e idiossincrático. Temos
modelos de organização de uma casa na nossa mente transmitidos pela
tradição, pelo contexto habitual ou pelo exemplo dos outros que
admiramos ou invejamos. Assim é com a produção ou adopção de uma
Constituição que consiste sempre já numa expressão de sentido político
colectivo. Um povo – uma nação? – confessa ou proclama o sentido
(realizado ou procurado) da sua existência no mundo com outros povos
através da forma política que constrói para si, ou que adopta para si. O
tecido institucional, a relação das instituições entre elas, dos órgãos
administrativos e políticos, assim como das instituições infrapolíticas e
dos seus produtos, as leis, as exortações, as censuras, as práticas públicas,
dão conta no seu conjunto desse sentido almejado pela entidade histórica
que aqui já não pode ser um mero postulado da técnica de interpretação
constitucional, uma ficção, uma atribuição abstracta, mas um ser mais ou
menos articulado, consciente de si, de alguma forma representado,
presente e sobrevivente no tempo histórico.
Tal como na analogia com a casa, é evidente que um povo histórico
vive, sobretudo nas circunstâncias das últimas décadas, numa constante
comunicação com outros povos, com as suas experiências políticas e as
suas determinações de sentido colectivo. Na edificação da forma política e
do seu conteúdo mais detalhado e quotidiano, a imitação e a apropriação
são processos normais e recorrentes, não sendo de estranhar os graus de
semelhança que podemos empiricamente constatar. Acresce que a
democracia liberal como forma política geral correspondente aos anseios
históricos dos povos veio reforçar essa tendência para a homogeneização e
mimetismo generalizado na construção das casas políticas, que, no
entanto, nunca são exactas cópias umas das outras. Embora a casa seja
para cada um lá viver, ela não está isolada das restantes. O habitante quer
que a casa, o seu aspecto e os pontos de contacto com o bairro e com as
outras casas, sejam reconhecidas como respeitáveis. Cumprindo a
analogia, quer que a forma política seja tida por justa, razoável e estável,
no julgamento dos outros. Escusado é dizer que no seu próprio julgamento
também.
Vale a pena dizer que, por mais idênticas que sejam as casas
constitucionais, dessa semelhança nasce uma tentação que deve ser
resistida a todo o custo: a da casa pré-fabricada, construída por um povo, e
que estaria, uma vez oferecida, pronta a habitar por um outro povo que
não teve uma mão na sua edificação. Idêntica e familiar para o povo que a
pré-fabricou, talvez até para a generalidade do mundo que assiste à
oferenda, pode tornar-se radicalmente estrangeira para quem terá de viver
nela, por não ter saído da sua mão, conduzindo à futura repudiação e
destruição. Na óptica da soberania, e em particular da soberania popular,
cada povo constrói a sua casa, tal como vemos suceder, agora no âmbito
literal da construção de uma casa, nas comunidades Amish em que essa
tarefa cabe a todos, cada um na sua especialidade e na medida dos seus
recursos.
6. «Façamos uma Constituição!» (1)
De entre os múltiplos exemplos históricos apresentados por Bodin ao
longo da sua obra maior, há um que se ajusta na perfeição à admoestação
que aqui faço, e que ilustra a adequação da teoria clássica da soberania ao
problema da soberania popular e à divisão aberta pelo constitucionalismo
moderno entre o exercício constituinte da soberania e a administração do
poder soberano na governação. Ao falar dos Cnídios, um povo grego de
ascendência lacedemónia que habitava a cidade de Cnido, na Ásia Menor,
Bodin destacou a magistratura dos amnemones. Os Cnídios tinham um
regime democrático, logo a soberania era popular. A soberania do povo
cnídio mantinha-se sempre no povo. Mas eram os amnemones quem
governava. Bodin apresentou as coisas da seguinte maneira. O «exercício»
da soberania cabia, de facto, aos amnemones e a soberania residia sempre
no povo. Eles não eram, por conseguinte, soberanos simpliciter, mas tão-
somente «magistrados soberanos». Nessa qualidade, não possuíam a
soberania. Eram apenas «fiéis depositários» do povo soberano. Um outro
exemplo de Bodin que reforça a tese de que as enunciações bodinianas
não foram inteiramente apanhadas de surpresa pelos desenvolvimentos
democráticos dos finais do século XVIII. Quando um príncipe atribuía
«poder absoluto» ao regente, ou possivelmente ao senado, para
governarem em seu nome, ainda que os éditos e as cartas de ordenação
fossem da autoria do regente, era sempre o rei quem «falava» e quem
«comandava».440 A natureza comissionária do governante não
comprometia a soberania – não comprometia a soberania absoluta – do
soberano, fosse o soberano um rei ou um povo.
Em 1643, em plena guerra civil inglesa entre o Long Parliament, nessa
altura ainda liderado por John Pym, e o rei Carlos I, Griffith Williams, um
bispo anglicano apoiante da causa régia e inimigo jurado das seitas
dissidentes, confessava-se agravado com uma distinção em particular feita
por Jean Bodin em Six livres, tida por falsa e perigosa.441 Que coisa era?
Tratava-se, no entender de Bodin, de uma «regra de política» que nunca
fora abordada por «ninguém». Segundo Bodin, havia «uma grande
diferença entre o Estado e o governo». De resto, Bodin já tinha criticado
Aristóteles por este na Política apenas ter definido «o governo de um
Estado» – a Reipublicae admnistratio – e nada ter dito sobre a soberania –
sobre o summum imperium. Bodin considerava esta tese tão importante
que voltou mais adiante a insistir na sua absoluta novidade. De resto,
muitos lhe diziam que só ele tinha aquela opinião contra o silêncio de
Antigos e Modernos. Mas só munidos daquele princípio é que os teóricos
da República se impediriam de cair num «labirinto de erros infinitos».
Assimilada esta «regra», podíamos compreender que um Estado podia ser
uma «Monarquia, e, não obstante, ser governado popularmente».
Monarquia e democracia combinavam-se surpreendentemente. Na
verdade, era uma regra geral. Daí que pudesse haver Estados monárquicos
governados aristocraticamente, Estados aristocráticos governados
democraticamente, ou outras combinações de soberania e governo. E essas
combinações eram possíveis porque o «estado de uma República» – a
organização da soberania – era «diferente do governo e da administração»
da República. Já muito próximo do final da sua monumental (e extensa)
obra, Bodin dizia que o estado régio era o «mais excelente», ou seja, a
soberania devia estar nas mãos de um só homem. Mas acrescentava que
essa soberania de Estado para ser a «mais excelente» devia ser conjugada
com o governo aristocrático e popular, na medida em que só assim se
realizaria a «justiça harmónica», um composto da justiça distributiva (ou
geométrica) com justiça comutativa (ou aritmética), e de cujos detalhes
não precisamos de nos ocupar aqui. O mais importante é que Bodin legava
a ideia de que um Estado era determinado nas suas regras fundamentais e
nas suas instituições mais proeminentes pela soberania. E que englobava
ainda uma dessas estruturas que tinha a seu cargo as decisões quotidianas
e de administração. Era importante não confundir uma com a outra, depois
de séculos de manifesta confusão.442
Rousseau não deixaria esta inovação dormir descansada. Descobriu-a e
reconfigurou-a. Recuperou exactamente as mesmas três categorias que
Bodin discutira – o Estado, a soberania e o governo – e deixou-as bem
separadas. O soberano era constituinte. Decidia das formas de governo a
seu bel-prazer. Estas podiam ser monárquicas, aristocráticas ou
democráticas, segundo um critério puramente numérico. O governo
limitava-se a executar as leis, cuja feitura era monopólio do soberano.
Sendo a vontade geral a única vontade soberana, era evidente que os actos
de soberania limitavam-se à feitura de leis gerais. Já os actos particulares
de execução dessas leis estavam a cargo do governo. Isso incluía
iniciativas como a declaração de guerra, tradicionalmente atribuídas à
soberania, e que Rousseau colocava no subordinado governo. Assim, e na
medida em que a vontade geral tinha de ser formada a partir da totalidade
do povo cidadão, era esse povo que detinha o poder de mudar as formas
de governo e os governantes titulares do poder executivo. Mas era sempre
ao governo que cabia o uso da força – para dar execução às leis gerais. Era
a organização formal do poder e da coerção em estrita subordinação à
vontade soberana. Para que não houvesse dúvidas, quando o povo se
reunia soberanamente, o poder executivo ficava automaticamente
suspenso. Era à luz destas considerações que se tornava inteligível a frase
de Rousseau segundo a qual «o melhor dos governos é o aristocrático; a
pior das soberanias é aristocrática». A modalidade de organização do
governo podia mudar, embora Rousseau preferisse a organização colegial
electiva, dita por ele «aristocrática», mas não a soberania que tinha de ser
sempre democrática, ou, em rigor, «republicana». A substância do Estado
era determinada pela soberania, e não pelo governo, um mero instrumento,
ou uma «comissão», mais ou menos conveniente, mas sem o qual a
vontade geral seria inoperante. Até se podia dizer que a «democracia»
escondia um perigo: o de fomentar a confusão entre o soberano e o
governo, já que os titulares de um e de outro seriam os mesmos
indivíduos.443
Com a distinção entre Estado, soberania e governo, havia uma teoria
que tornava a soberania compatível com poderes delegados no governo,
ou, talvez mais rigorosamente, no método de administração. Tal permitia,
por um lado, a rejeição da tese antiga e sempre recapitulada do «regime
misto», uma bête noire dos soberanistas, e, por outro lado, a admissão da
combinação de elementos políticos ao nível do governo ou da
administração. E, o que não era menos importante, proibia a representação
da soberania, como Hobbes defendera, aceitando-a, porém, no «governo».
Agora, esta distinção pode ser vista tão-somente como uma modalidade
da distinção ulterior entre soberania essencial e soberania em exercício
que mais tarde teria os seus preconizadores? Desta última tese sobrevinha
a resistência aos que, como Bodin e Rousseau, não consideravam
soberano quem detinha posições de supremacia no Estado e tomava
decisões inapeláveis, assim como praticava outros actos por muitos
associados a actos de soberania. Assim, havia este compromisso em que
tínhamos vários soberanos, ou várias sedes de soberania, mas em que uma
delas estava normalmente dormente e a outra normalmente acordada.
Ao mesmo tempo, a abertura desta aparente dualidade de soberanos, que
é, na realidade, uma relação hierárquica entre o soberano e os que exercem
o poder soberano, permite-nos compreender a essência da primeira vaga
do constitucionalismo moderno, com a sua conceitualização do poder
constituinte. Permite-nos, por conseguinte, afastar a hipótese tradicional
de que existe uma incompatibilidade, para não dizer hostilidade, entre a
defesa da primazia da soberania e as teses constitucionalistas que
marcariam os séculos XVIII e XIX, e que triunfariam no domínio da prática
na segunda metade do século XX.
Destarte, o pressuposto a que Sieyès fez originariamente alusão para
demonstrar a realidade e a expressão do poder constituinte era uma
manifestação insuperável do poder soberano. Tão inseparável quanto a
manifestação constituída da soberania – as decisões políticas do Estado,
os seus actos administrativos, a sua legislação, e por aí em diante – por
mais cronologicamente intermitente que a primeira manifestação pudesse
ser, por mais esporádicas que pudessem ser as suas ocorrências. Na
teorização originária de Sieyès, o poder constituinte irrompia e exercia-se
numa terra de ninguém legal. Se, como vimos, a soberania simpliciter
estava dentro e fora da ordem jurídico-política, a soberania popular vem
agravar essa relação de exterioridade. O poder constituinte está totalmente
situado fora da ordem jurídica e pretende ser a sua causa formal. E, uma
vez constituída a ordem jurídico-política, a soberania popular é exercida
por delegação ou representação já no interior dessa ordem. Como a
recomposição, revogação, substituição da Constituição vigente pressupõe,
nesta óptica, o exercício do poder constituinte, é de soberania popular que
estamos a falar quando se descreve este movimento, já não de fora para
dentro, mas de dentro para fora da ordem jurídico-política. O mesmo
poderíamos dizer da Revolução.
A única realidade sustentadora do exercício do poder constituinte era a
«nação». Era a «nação» que existia «antes de tudo». Era ela a «origem de
tudo», apesar de Sieyès se referir ao povo francês como um «povo novo»
e umas linhas mais abaixo falar dos séculos de opressão a que fora sujeito.
Com efeito, a monarquia francesa no século XVIII já se habituara a referir-
se à «nação» francesa. Dir-se-ia que a Revolução fora uma espécie de
baptismo do povo francês que, por meio de uma graça concedida a si
mesmo, renascia na História. Adquiria consciência de si mesmo enquanto
entidade existente na História, e com essa consciência devinha ainda mais
nação, uma nação que agia sobre si mesma, autora do seu próprio
despertar, determinando para si uma nova forma de existência política.444
Uma nova imagem do povo como agente político era projectada nessa
entidade chamada nação, que, por sua vez, se distinguia por gozar de uma
existência (imaginária?) duplamente pré-política e política. Diga-se que a
Revolução não se limitava a fazer proclamações de «metafísica política».
Desde o seu início levou a cabo um profundo e violento trabalho de
produção da homogeneidade da nação – forçando o uso do francês como
língua nacional, uniformizando as leis e os costumes, centralizando o
poder e a administração –, tarefa que seria continuada por todos os
regimes pós-revolucionários até à anomalia de Vichy.
O conceito de soberania popular fez do povo um agente histórico unido.
O povo tornou-se um artífice. Passou a inscrever na realidade um produto
político seu: uma Constituição. Sieyès afirmou que era a nação que fazia a
Constituição. Logo, o povo era aqui subordinado a uma ideia de
homogeneidade, pois a «nação» era uma homogeneidade particular,
formada pela história, e por toda a matriz de determinações trazida pela
história. Se, poucos anos antes de Sieyès apresentar a nação constituinte
ao mundo, Vattel, o citadíssimo jurista suíço do direito Internacional,
tratava a nação e o Estado como sinónimos, isso devia-se ao facto de o
conceito de nação como ente gerador da Constituição do Estado estar
ainda ausente. Apenas um ano antes de as colónias inglesas na América
declararem a independência do império britânico, Vattel publicava o mais
influente tratado de Direito dos Povos de todo o século XVIII, onde o
Estado era uma pessoa moral, mas em nada distinto da nação.445 Em 1768,
antes de Vattel, Edmund Burke, o extraordinário orador e futuro fundador
do conservadorismo moderno, iria separar nação e Estado ao denunciar a
venda da Córsega aos franceses pelos seus antigos senhores, os genoveses,
como «uma nação descartada sem o seu consentimento, como as árvores
de uma propriedade».446 A nação aparecia em Burke já como um sujeito
de consentimento, separada da forma política em que devia consentir, e
injustiçada quando lhe impunham uma sem ela ser tida nem achada. Era o
elemento político expresso de algum modo – neste caso, através da
categoria liberal do consentimento – a combinar com o elemento
«cultural», combinação que faria uma longa e fulgurante carreira.
Não era assim para Sieyès, que tinha a ideia da nação como detentora de
poder constituinte e, portanto, separável enquanto entidade do próprio
Estado. Daí resultava uma consciência comum de si particular. A vontade
que formava e exprimia era «sempre legal» porque a «nação» era a origem
de toda a legalidade. A vontade da «nação» era a própria legalidade. Nem
sequer existia outra legalidade fora da nação. É verdade que Sieyès
mencionou o «direito natural». Por outras palavras, o conjunto de
teoremas da razão que ditavam os direitos naturais imprescritíveis, mas
que enquanto teoremas da razão não podiam senão ser vagos e
indeterminados enquanto não fossem reafirmados na ordem da legalidade.
O que valia por dizer: enquanto não fossem objecto da vontade da
«nação», enquanto não fossem traduzidos pelo poder constituinte. Na
realidade, toda a constituição política tinha um único objecto: «Garantir,
servir e estender os direitos do homem que vive em sociedade.» Poder-se-
ia pensar que o «direito natural» limitaria o direito da «nação», mas Sieyès
desiludia os resistentes. O direito natural era sobretudo o fundamento do
direito da «nação». E que direito era esse conferido pelo direito natural à
nação? O direito a tudo, ou «todos os direitos». Este era o recurso de que
Sieyès desesperadamente precisava para se proteger da crítica a que a
doutrina do poder constituinte estaria exposta até hoje. A saber, como é
que um acto político podia iniciar uma construção jurídica, determinando
a fundação do Estado e a sua forma organizativa, e criar direito não sendo
ele regido por qualquer ordem jurídica? No fundo, com que direito o acto
dito constituinte podia criar regras de direito, ou uma ordem jurídica? Na
função do exercício do poder constituinte, a nação estava «livre de todo o
constrangimento e de toda a forma». Sem esse direito a tudo, a «nação»
não poderia criar uma ordem política e jurídica de raiz, não poderia criar a
sua própria existência política, o que era exactamente o que fazia quando
exercia o seu poder constituinte soberano. A «nação» sendo era já tudo o
que deveria ser, para parafrasear Rousseau, coisa que não beliscaria nem
um pouco o pensamento de Sieyès. A «nação» não podia abdicar dos seus
direitos, que eram todos, nem deixar de querer, o que equivalia a afirmar
que a «nação» não podia deixar de querer, e de agir em conformidade,
tudo o que seu «interesse» exigisse. Só o «interesse» da nação poderia
fundamentar o poder político, pois só ele conferia um propósito
moralmente aceitável para o seu exercício. O «interesse» da nação era o
bem da comunidade política. E, soberanamente, quando a «nação» queria,
cessava todo o «direito positivo». A formação da lei revelava-se pela
abolição da lei; a constituição da ordem jurídica revelava-se pela abolição
da ordem jurídica. A vontade da «nação», único fundamento da ordem
(política e jurídica) e, portanto, interna a ela, estava simultaneamente no
exterior da ordem, podendo terminá-la e aboli-la.447
Mas, ao apelar a um certo «direito natural» como fundamento do
fundamento, Sieyès estava a exibir à nossa frente mais um problema
inerente à noção de soberania, neste caso na sua manifestação enquanto
poder constituinte. A ordem política carecia de um fundamento, de um
ponto de sustentação, de uma fonte de sustentação? Eis que a soberania
respondia a todas estas dúvidas. Mas qual era o ponto de sustentação da
soberania? Qual era o fundamento da soberania? Qual era o fundamento
do fundamento? Dito de uma maneira directa, a soberania levantava o
problema da regressão em busca do fundamento. Tal como na história que
o cientista Stephen Hawking contou no livro de 1988 que o celebrizou,
Uma Breve História do Tempo, atribuindo-a a Bertrand Russell, o que
sustenta o planeta? São tudo tartarugas, umas em cima das outras até lá
abaixo.
A tentação para cortar uma regressão infinita nalgum ponto seguro foi
sempre enorme. Como vimos, duas respostas emergiram como as mais
fiáveis: a soberania de Deus e a soberania do povo ou da nação. Na era
anterior ao processo de secularização, os atributos de Deus, e a tradição
medieval das provas da existência de Deus – remontando todos os efeitos
a uma causa primeira, ou a uma causa incausada –, bastavam para
justificar a resposta. Mais tarde, o povo, ou a nação, substituíram Deus,
não com os mesmos atributos, nem podendo reclamar para si o estatuto de
uma causa prima. E havia uma grande diferença. Na era moderna, Deus
era um ente exterior à comunidade política, e já não politicamente
presente. Ora, o povo ou a nação eram o tudo da comunidade política. Se a
soberania fosse popular ou nacional, o ponto de sustentação da ordem
política tornava-se interno a ela mesma. Deixava de lhe ser
completamente exterior porque não se podia anular pela ordem. Pelo
contrário, seria um elemento da ordem, juntamente com a soberania que
era a sua. De fora, criava a ordem, para, uma vez esta criada, se integrar
nela. A comunidade política continha a sua própria justificação e
legitimidade. Agindo, agia sempre por si mesma e sobre si mesma.
7. O problema da indivisibilidade revisitado
Vimos anteriormente que a teoria da soberania a apresenta como
indivisível. Vimos ainda como, superficialmente pelo menos, a oposição
entre a doutrina da separação de poderes e a soberania serviu a crítica da
indivisibilidade. No final do século XIX, já no tempo da III República, um
dos mais notórios constitucionalistas franceses, Carré de Malberg, faria
notar que o princípio da separação de poderes só poderia subsistir uma vez
verificado o princípio da separação entre os poderes constituintes e os
constituídos. Com efeito, o argumento de Carré de Malberg tornava o
poder constituinte e a soberania do povo (ou da nação) perfeitamente
intermutáveis. Eis como. Sem uma autoridade superior que distribuísse as
competências pelos poderes políticos e os separasse institucionalmente,
nada manteria essa estrutura de pé com o passar do tempo. O exemplo
dado era o da República americana, o regime da soberania do povo de
Tocqueville e o regime de controlo jurisdicional da constitucionalidade
das leis pelos tribunais. Aí, era o povo, «o autor da Constituição», que
detinha a autoridade de fazer perdurar e funcionar a separação de poderes,
incluindo de manter em sentido algum prevaricador que quisesse pôr a
separação em causa. Por essa razão Carré de Malberg concluía pela
inaplicabilidade da teoria da separação de poderes à III República
francesa, onde um poder constituído – o Parlamento – era ao mesmo
tempo a sede institucional do poder constituinte, o que, de resto, acontecia
também nas monarquias europeias. No caso francês, o poder executivo
estava necessariamente numa posição subalterna ao poder legislativo. Ora,
o princípio montesquieuniano da separação de poderes pressupunha a
paridade entre eles. A paridade entre os poderes era até prioritária sobre a
independência dos poderes relativamente uns aos outros. É que se a
relação entre poderes não fosse paritária, mas de
subordinação/superordenação, então os poderes subordinados não
conseguiriam controlar e suster os poderes superiores.448 Não havendo em
França na III República separação institucional entre a sede do poder
constituinte e o órgão constituído do poder legislativo, o que significava
que o Parlamento (bicameral) podia alterar a Constituição com maiorias
simples em votações ordinárias (como a «monárquica» Inglaterra, de
resto), podia-se considerar a república do fin-de-siècle um regime da
soberania popular, ou nacional? Carré de Malberg dizia que sim.
No outro lado do oceano, durante a não tão árdua consolidação do
regime republicano americano, Thomas Jefferson, depois de abandonar a
presidência, reponderou a sua avaliação da separação dos poderes na sua
ligação com a soberania popular triunfante. Marcado por décadas de
conflitos partidários em torno dos poderes executivo e judicial, Jefferson
nos anos da jubilação política acabou por se tornar num crítico das
concepções liberais predominantes da constituição equilibrada pelos
checks and balances. Passou a favorecer uma separação estrita dos
poderes, com o mínimo de ligações entre eles, para evitar usurpações
sobretudo do poder executivo, mas também do judicial. Nessa concepção,
quem controlaria a acção do poder político tripartido? Montesquieu
ensinara que só o poder seria capaz de travar o poder. Que poder restava
capaz de evitar o abuso e a usurpação de cada um deles? O poder soberano
do povo. Em concreto, Jefferson apresentava o único remédio aos seus
olhos capaz de conciliar a soberania popular e a prevenção dos abusos
com tanto candidato a usurpador dos poderes constitucionais à solta.
Todos os cargos teriam de ser directamente eleitos pelo povo, incluindo os
juízes do Supremo Tribunal. E essas eleições teriam de ser frequentes, o
que implicava a curta duração dos mandatos.449 A indivisibilidade
mantinha-se intacta como predicado da soberania – da soberania do povo.
Separar os poderes não comprometia a indivisibilidade porque os poderes
a separar eram os constituídos.
8. «Façamos uma Constituição!» (2)
Pelo que vem de trás percebemos melhor que a ideia de poder
constituinte é inseparável da nova predicação da noção de soberania nos
cerca de 200 anos que se seguiram à sua conceptualização clássica por
Bodin. A democratização, ou a nacionalização, da soberania abriu o
espaço para a emergência do poder constituinte.
Recordemos que para os grandes discípulos de Bodin, como Hobbes ou
Pufendorf, a soberania era formada por uma concorrência de vontades
individuais. Ela podia ser pensada ao modo do pacto, ou do contrato
social. Logicamente, se a soberania era constituída por um acto que lhe era
anterior, então, em rigor, o poder de constituir não podia ser uma
manifestação da soberania. Flexibilizando a terminologia, era como se o
produto do poder constituinte fosse a soberania, não se autorizando, pois,
qualquer identificação entre ambos. Tratar-se-ia, sem dúvida, de um
flagrante anacronismo.
Mas a democratização, ou a nacionalização, da soberania passava a
situar a soberania, não como entidade constituída, mas antes ora como
substância que antecedia a própria criação da ordem política, ora
funcionando como sua condição de possibilidade. Ao mudar-se o sujeito
da soberania, em que, com a revolução democrática, passávamos a ter um
único sujeito admissível – o povo ou a nação –, e já não um sujeito a
priori indeterminado, como Hobbes e Pufendorf admitiam, recuou-se
cronologicamente na sequência da soberania em acção. Em ambas as
versões da noção de soberania, tanto na pré-popular, ou pré-nacional,
como na popular, ou nacional, ou, se se quiser, tanto na teoria da
pluralidade dos sujeitos da soberania, como na teoria da unicidade do
sujeito da soberania, a soberania era a sustentação do ser da comunidade
política. Mas, com a passagem ao sujeito único da soberania – o povo ou a
nação –, a sustentação do ser da comunidade política, classicamente a
principal atribuição da soberania, passou a ser acompanhada por uma nova
atribuição inseparável e quase indistinguível da clássica: a da criação do
ser da comunidade política. Com a teoria que servia as veleidades
monárquicas, a teoria indicava a soberania e a sua fundação. Com a
chegada da soberania popular, ou da nação, a teoria passou a apresentar a
soberania como fonte de si mesma. Ou melhor, como não carecendo de
uma fonte. O sujeito da soberania era agora a sua própria fonte, fundação
e fundamento, algo que nunca fora antes, nem na versão teológica da
soberania – Deus era a fonte e fundamento (Bodin, entre outros) –, nem na
versão contratual (Hobbes, Pufendorf, entre outros) –, a soberania era um
efeito político-jurídico de uma causa jurídica. Daí que seja importante
rever a ideia de que a soberania é um poder exercido em continuidade. Na
verdade, a soberania pode ser tratada como uma intermitência, uma
latência, ou uma potência. A soberania é potentia antes de ser potestas, é
puissance antes de ser pouvoir. Ora, o corolário decisivo aqui é aquele que
foi assinalado por Gérard Mairet: a «potencialidade já existe antes de ser
exercida, e a obediência antecede as instituições que a tornam possível»,450
o que explica a sacralidade de que as constituições do «povo» ou da
«nação» se puderam revestir.
A doutrina do poder constituinte pretendia superar alguns impasses da
teoria contratualista da soberania popular. Não por acaso aquela decorreu
estritamente desta. Contudo, subsistia a questão de saber se as
determinações advindas da doutrina do poder constituinte não
acrescentaram outros tantos impasses – o impasse da representação, o
impasse do poder retroactivamente constituído, o impasse ditatorial, o
impasse da revisão constitucional, e muitos outros que ressaltam sem
dificuldade da perfilhação do poder constituinte pela soberania popular, ou
da nação. Um dos impasses que valia por muitos, e que ficava exposto por
um exame superficial, era o que resultava da pergunta de se a doutrina do
poder constituinte conseguia evitar a multiplicação de atributos do agente
povo, em que ele se tornava simultaneamente fonte e produto da ordem
política? O que era equivalente a duvidar, sem qualquer intenção polémica
ou destrutiva, da sua capacidade superadora dos impasses associados aos
contratualismos.
No constitucionalismo popular não podia ser o acordo em torno da
Constituição, nem sequer do texto constitucional, que criava a unidade
política. Não podia ser esse acordo pela razão elementar de que ele
pressupunha uma unidade política prévia. Sem esta, o poder constituinte
não existia. Descendo das categorias vagas: sem um povo previamente
constituído, sem um povo unido, sem nação existente no tempo histórico,
não havia poder constituinte a exercer. Na óptica da soberania popular, o
poder constituinte não vagueava nas nuvens, nem existia em potência num
plano metafísico celeste, pronto a ser praticado por qualquer agente que
lhe pegasse, como uma arma carregada exposta num arsenal aguardando
pelo seu indiferenciado utilizador. Ele e o seu único sujeito não eram
separáveis. Sem o sujeito popular, o poder constituinte esfuma-se e retira-
se para parte nenhuma. Num paradoxo identificado primeiro por
Rousseau, o poder constituinte soberano popular exercia-se para formar
uma comunidade política autónoma e democrática, com um povo capaz de
se governar a si mesmo. Mas essa formação parecia supor já um povo
capaz de autogoverno na medida em que forjaria uma Constituição
democrática estável. Ou dito de outra maneira, a Constituição democrática
produzida pelo poder constituinte só poderia brotar de um espírito
comunitário partilhado pelo povo soberano que animasse o tal poder
constituinte. Mas a comunidade política estava ainda por fundar e, com
ela, a cidadania obediente à vontade geral. A menos que a Constituição
fosse unilateralmente imposta por um agente externo ao povo. Um
Legislador, assim mesmo com maiúscula, mas nesse caso o povo não seria
soberano, pois receberia uma Constituição que não tinha sido feita por ele
e então tratar-se-ia de um acto de subordinação. Onde estava a unidade
política que essa Constituição pressupunha? A suposta solução de
Rousseau, a invocação de um legislador heróico à imagem do grande
Licurgo, tinha mais valor heurístico do que aplicabilidade concreta.451 No
fundo, tratava-se de expor um dilema drástico. Para obter a soberania da
vontade geral era preciso sacrificar a soberania do povo? Por outro lado,
as exigências dele, Rousseau, para a cidadania democrática eram
incomparavelmente maiores do que as que fazemos agora. O cidadão
capaz de formar a vontade geral era o cidadão patriótico, que desenraizara
do seu espírito o mesquinho amour-propre, só possível a quem se
sujeitasse a um processo de «desnaturação» ou de socialização extrema.
Só assim o indivíduo encontraria o seu lugar como parte de um todo no
sentimento patriótico pela sua cidade e pela sua democracia. Daí a
utilidade do conceito de nação para os partidários do poder constituinte
popular. A nação conferia a unidade já política, mas ainda não plenamente
política, ao povo soberano que iria exercer o poder constituinte. Não era
possível ser um povo soberano sem ser uma nação una capaz de agir
politicamente. A ideia de nação parecia ser o equivalente neste problema
intrincado ao gesto alexandrino diante do nó górdio.
Tão conveniente foi a nação para a articulação do poder constituinte que
surgiram as suspeitas de suposição mágica quando se postulava que
haveria uma soberania pronta a ser exercida, detida por um povo capaz de
formar uma vontade una. A suspeita formulou-se nos seguintes termos. O
poder constituinte não será, na verdade, uma «origem fictícia e retroactiva
de um poder sempre já constituído»? Por outras palavras, o enunciado do
poder constituinte não será apenas uma outra ilusão na medida em que só
pode ser exercido a partir do momento em que a ordem já está instituída?
Longe de ser a génese da ordem política, longe de ser um agente
transformador do corpo político, o povo, ou a nação, constituinte, não será
antes uma pura projecção retrospectiva? Uma projecção vocacionada para
a garantia de sustentabilidade lógica e de legitimidade política a um
processo histórico-político que carece de uma sequência temporal
aceitável segundo critérios modernos? Não será o conceito necessário para
inventar um «futuro anterior» (Derrida)?452
No mesmo sentido, um outro paradoxo aparecera na primeira vaga do
soberanismo que nunca fora frontalmente abordado. Com a chegada da
soberania popular esse paradoxo reforçava-se e ameaçava ser fatal para a
doutrina do poder constituinte. Obrigava também, o que era talvez a base
de todo o problema e do paradoxo, a uma revisitação do conceito de povo
cuja aparente evidência deveria agora ser posta em causa.
A criação da soberania não supunha nos seus artífices, os indivíduos,
um sentido de comunidade que desse azo a essa acção? Mas o conceito de
soberania resistia a aceitar esse paradoxo. A unidade do povo dependia
estritamente da unidade do representante do povo – do soberano. Vista em
retrospectiva, a solução era elegante, mas pouco persuasiva. Sem unidade
prévia, sem nada em comum, porque é que os indivíduos se reuniriam para
criar algo comum? Haveria algo mais persuasivo do que sugerir um «mito
da espontaneidade»?453 Porém, a unidade do representante pressupunha
aquilo que supostamente criaria. A soberania do povo agravou o paradoxo
ao colocar o povo, uma unidade formada pela constituição do Estado
soberano, na posse de um poder constituinte que formava o Estado
soberano. Um impasse terrível.
O poder constituinte correspondia à vontade pré-legal, ou extralegal, do
povo. Isto é, formava-se a partir do povo e de fora para dentro da ordem
política. E lá regressava o paradoxo: que povo é esse que existe fora da
ordem política, que forma uma vontade política una e universal e cuja
tradução é uma Constituição – o fundamento político e jurídico da ordem?
Um povo externo à ordem não seria aquilo a que Hobbes chamara
multidão, ou seja, um conjunto desorganizado de indivíduos? Pelo
contrário, o povo como entidade organizada formando um substrato
comum e, portanto, já não mais um simples conjunto de indivíduos era a
matéria ou a substância da ordem política, da comunidade constituída.
A reapropriação contemporânea da distinção seiscentista entre «povo» e
«multidão» abre o plano por completo em que a soberania mostra o
alcance teórico e prático do conceito. Trata-se de uma reapropriação com
um propósito revolucionário e subversivo, patrocinado pela extrema-
esquerda actual, mas é exactamente por isso que é tão reveladora. Depois
de a multidão aparecer na filosofia política do século XVII como a negação
anómica, desunida e impotente do conceito de povo para permitir a
fundação da soberania como unificação da vontade de uma entidade
política – o povo – capaz de ser representada, agora a multidão encontra o
lado criativo da sua condição negativa. Precisamente por a multidão, ao
contrário do povo, não ser unificável é que será resistente à sua
personificação, representação e organização ao serviço de uma finalidade
definida por outrem. Dito mais directamente, o conceito de povo foi
inventado para justificar a obediência; o de multidão irrompe para destruir
através da revolução o Estado constituído pela relação de
mando/obediência.454
9. «Façamos uma Constituição!» (3)
Hugo Preuss, o pai reconhecido da Constituição de Weimar de 1919,
tentou conciliar o povo, a vontade constituinte e o conceito de soberania o
melhor que pôde. Acabou por desistir da conciliação e prescindir do
conceito de soberania. Mas não sem nesse esforço deixar atrás de si
algumas reflexões proveitosas. Se a vontade una do povo era o
fundamento da lei, Preuss optou para supor essa vontade como um
«fenómeno extralegal cuja existência a lei tinha de inferir a partir de
sintomas verificados, já que sem este pressuposto toda a existência
histórica e acção de um povo seria inconcebível e incompreensível».
Assim, supunha-se uma existência histórica do povo, com realidade
empírica própria. Todavia, apenas se inferia logicamente – pela
necessidade lógica decorrente da noção de uma lei fundada numa
Constituição – o poder constituinte. Era uma «hipótese» não arbitrária, já
que se constituía a partir dos tais «sintomas». Claro que a fragilização da
realidade do poder constituinte abalava também a realidade do povo. Se o
poder constituinte era apenas uma «inferência», a realidade do povo pré-
constitucional também seria espúria. Só com a Constituição é que o povo
se tornava realidade. Antes dela, o povo era tudo e não era nada. E quanto
à vontade do povo ainda mais se aplicava a consideração procedimental e
institucional. A vontade do povo enquanto vontade só podia formar-se
através do processo desenhado pelo direito democrático-representativo,
nas suas várias instituições – Parlamento, Chefe do Estado, Governo, etc.
– e procedimentos. Na realidade, a vontade popular era produzida pelo
funcionamento das regras constitucionais. Não era independente delas.
Logo, era incapaz de as formar. E se os múltiplos processos de
representação (os diferentes órgãos representativos, mais os partidos
políticos), de legislação e de adjudicação eram elementos necessários da
ideia de Constituição, presumir-se uma vontade una e universal parecia
cada vez mais um prodígio da imaginação, não do pensamento concreto.455
A soberania da nação quis resolver esse problema definitivamente. Mal
sabiam os seus proponentes... Mas na sua primeira agitação havia
confiança. Afinal de contas, havia algo de implausível no conceito de
povo separado da nação. Curiosamente, a doutrina do poder constituinte
(do povo) tornava essa implausibilidade mais gritante. O povo era uma
ficção inominável, pois era apresentado como um ser que despertava de
tempos a tempos de uma espécie de coma induzido total, e, apesar de ser
um ente amnésico, sabia exactamente qual era o seu interesse e o seu bem,
com um querer irrepreensível. Já não era apenas o problema de haver uma
unidade que antecedia a unidade exclusivamente conferida pela
representação política, conclusão tornada forçosa pela doutrina do poder
constituinte. Tratava-se de um acto colectivo demasiado complexo e com
um alcance temporal tão significativo que não era sequer pensável sem um
agente singular que o levasse a cabo. Se esse agente eram todos, então a
unidade de todos teria de estar assegurada. Em contrapartida, se uma
determinada relação política tinha sido forjada num certo entendimento da
génese da soberania e da unificação do povo a cargo da representação
política, então, a alteração tão profunda dos termos da equação teria de
produzir consequências para a relação política estruturada por esta nova
interpretação da soberania. Além disso, a nação sobrevivia na
Constituição, nos poderes constituídos, na vida quotidiana do Estado.
Todos eles falavam a língua nacional, por exemplo. A nação não
regressava à sua própria ausência assim que o mecanismo de
representação era posto em funcionamento, a tal questão decisiva que
semeava perplexidade na teoria da soberania popular. Havia um povo que
aparecia para logo desaparecer. Mas o que aparecia inicialmente só podia
ser unificado e realizado pelos representantes que o faziam desaparecer
por ele já estar assimilado à formação do Estado. Com a nação, não era
assim tão simples. Os representantes da nação, por mais munidos que
estivessem de um mandato imperativo, eram desde logo, nem poderiam
deixar de sê-lo, instanciações, e não meros representantes políticos, de
uma nação que sobrevivia no tempo em todas as pessoas, todos os
costumes, todas as práticas, todas as palavras. E se a soberania popular,
com o seu mito de uma vontade popular unida, se deparava com a
dificuldade evidente colocada pelo parlamentarismo de partidos, que
mostrava à sociedade as divisões e clivagens que fracturavam a mítica
unidade do povo, já a nação ia mais fundo e podia alegar, como muitas
vezes alegou, não raro com consequências sinistras, que além das divisões
no seio do povo – de natureza política, social, económica, entre outras –,
havia uma nação de que todas essas partes em conflito participavam. No
caso da soberania popular, a constatação da divisão social conduzia ou ao
abandono do «monolitismo» da noção de soberania, ou à iliberal
condenação da existência de partidos ou da expressão institucional dos
conflitos sociais. A soberania da nação parecia evitar estes escolhos, mas,
na realidade, ao querer fazer vingar a unidade soberana da nação que
existia além das divisões sociais, como em períodos de grande
emergência, na eclosão de guerras, por exemplo, desenhava ainda e
sempre um horizonte de superação autêntica das divisões e dos conflitos
na sociedade. Essa é ainda hoje a prática recorrente nas democracias
europeias, como se viu no suspiro por uma unidade nacional que
silenciasse os «incompreensíveis» conflitos que afastavam a nação unida
überparteilich do propósito de combate à ameaça. As estafadas e absurdas
comparações dos líderes europeus entre a acção contra a epidemia da
COVID e a guerra são bem ilustrativas desta tentação.
A nação em toda a sua pretensão de realidade histórica e ontológica
resolvia o canónico paradoxo da soberania? Não. Mas desviava o
assunto, mostrando que a via do «povo» enquanto mero postulado do
legislador ou do juiz, sem existência empírica, nem essência histórica,
nem relevância pragmática, era um belo subterfúgio não apenas para
resolver problemas aos juristas, mas para dar cobertura às maiores
usurpações e, daí, às maiores tiranias praticadas em seu nome, para
cúmulo da ironia. Quando a nação caiu em desprestígio, depois das
guerras europeias e mundiais do século XX, a sua via para a soberania, por
assim dizer, também se tornou menos sedutora, tanto do ponto de vista
moral, político, como jurídico. Parecia então que uma vitória em toda a
linha aguardava os descendentes dos neo-kantianos oitocentistas que, cada
vez mais e imitando os seus mestres, optavam por ver o povo como uma
coisa-em-si-mesma cuja essência era impossível de ser apreendida pela
razão humana. Algo que os juristas podiam postular para dar coerência à
ordem jurídica, cuja utilidade se esgotava aí e apenas na medida do
estritamente necessário, sem promessas nem futuro. Excepto quando uma
grande excepção se declarava ao curso normal das coisas. Excepto quando
a excepção aparecia sob a forma de uma revolução, que começava sempre
por um momento de uma perfeitamente empírica desobediência colectiva
aos poderes contestados. O povo manifestava-se poderosamente como
entidade e como fenómeno que decidia o colapso da ordem jurídica e
política. A declaração de que a autoridade política se tornou um inimigo
mortal e indigna de obediência só adquiria a sua expressão revolucionária
com um agente político totalizante a fazê-la. Caso contrário estaríamos na
presença de uma conspiração. Só o povo podia fazer tal declaração. Só o
povo se podia constituir como esse agente político totalizante capaz de
pronunciar tamanha declaração. O povo estava historicamente presente
nesse momento declarativo. O mesmo se teria de dizer relativamente à
nação desde logo porque a desobediência e a revolução falam uma língua
também e não inventam todos os seus rituais.
Como registou Camilo Castelo Branco na sua mais célebre novela, «as
excepções têm sido o ludíbrio dos mais assisados pensadores, tanto no
especulativo como no experimental».
A soberania popular, ou da nação, não como acção em movimento na
História, não como consciência colectiva de si, nem como conceito, mas
enquanto mito político situava-se nos antípodas das soluções políticas
autocráticas. Pronunciava espontaneamente a censura do homem só no
governo despótico. Desenhava o contraste vivo entre a solidão ditatorial e
a colectividade. Mas o que dizer da ditadura reipublicae constituendae
causa, ou «constituinte» que, como vimos, se distinguia da ditadura
meramente «comissarial»? Daquela já se pode dizer que era legibus
solutus. Haverá assim tanta diferença, do ponto de vista jurídico, entre
uma ditadura «constituinte» e o exercício do «poder constituinte», como,
por exemplo, Sieyès o pensou, por uma assembleia de deputados que
delibera, redige e proclama uma constituição nova? O vazio legal-
constitucional em que actuam ambos os poderes está até mais preenchido
no primeiro caso do que no segundo, em particular quando este decorre de
uma situação revolucionária. Friedrich Schlegel deu uma resposta
inequívoca a esta dúvida. Schlegel foi uma das maiores figuras do
poderoso movimento filosófico do Romantismo alemão nascido
politicamente, como tantas outras coisas, do choque provocado pela
Revolução Francesa, e filosoficamente, como tantas outras coisas, do
choque provocado pela revolução kantiana. «O poder constituinte»,
escreveu ele, «é necessariamente ditatorial». A relação de superioridade
do «poder dos princípios políticos» era logicamente afirmada perante os
«poderes e julgamentos políticos» fundados por ele.456 Era uma relação de
pura sujeição. Assim sendo, o «poder constituinte» era soberano. A
«ditadura» do «poder constituinte» era soberana. A suavização dessa
ditadura ficaria a cargo da «soberania popular», quando esta foi convertida
em «poder constituinte».
Napoleão, ditador e imperador, ao mesmo tempo que se assumiu como o
grande garante do acquis revolucionário, disse um dia: «O poder
constituinte sou eu.»457 Foi com o seu governo que a França teve direito a,
ou sofreu, mais Constituições para substituir as que a Revolução tinha
parido em série. Era sem dúvida a estas transformações que a declaração
pomposa de Napoleão se referia. E, no entanto, Napoleão, sempre o
instrumento do progresso do Espírito, não deixou de encomendar três
plebiscitos para carimbar as suas decisões constitucionais – uma delas, em
1804, converteu a República francesa num (seu) império.
Os problemas da ditadura constituinte, incompatível com as normas
básicas da ética democrática, e a estruturação de uma sequência temporal
que corroborasse o fundamento ético das normas constitucionais, deram
simultaneamente novas razões à doutrina «popular» do poder constituinte,
assim como expôs fissuras difíceis de disfarçar. No início do século XIX o
contraste da Constituição com a Carta Constitucional era suficientemente
elucidativo. Mas com a crescente irrelevância histórica desse contraste as
dificuldades regressaram. Na primeira metade do século XIX europeu, os
inimigos da soberania popular que procuravam alguma conciliação com o
mundo pós-revolucionário que viera para ficar optaram pela solução da
Carta Constitucional. Ao invés de ser o povo a dar a si mesmo uma
Constituição, o que obrigaria ao reconhecimento da sua soberania, era o
rei soberano que outorgava unilateral e graciosamente uma Constituição,
ou uma Carta Constitucional. Por acção de D. Pedro IV em 1826, Portugal
teve uma Carta Constitucional e que regeu o país e a sua monarquia
durante a maior parte do seculo XIX. A Carta portuguesa foi, como a
francesa do 4 de Junho de 1814, que imitou, um conjunto de
compromissos cuja maior ou menor coerência servia apenas o propósito
de salvaguardar a figura política do rei e negar a soberania popular. Assim,
os Portugueses eram simultaneamente «súbditos» e «cidadãos» e
continuava a haver «três Ordens do Estado». Portugal era um «reino» e
uma «nação». O governo era «hereditário» e «representativo». D. Pedro
era rei pela «graça de Deus» e «representante da Nação Portuguesa».458 O
que a teoria que subjazia a este acto pretendia reivindicar era que o rei,
combinando a dual qualidade de abençoado por Deus e de representante
do povo, detinha o poder constituinte soberano. Porém, e aí estava a
concessão ao acquis revolucionário, o rei não podia fazer uma
Constituição de regresso ao «absolutismo», nem sequer à monarquia
«medieval» por óbvias que fossem as ressonâncias medievas da expressão
«Carta».
Em perfeita consonância com a doutrina, Passos Manuel explicaria a
revolução setembrista de cunho popular, que em 1836 eliminara a Carta,
como a afirmação do «dogma da soberania nacional». Fora a exigência de
uma «Constituição dada pela Nação e não outorgada pela coroa».459 No
final do século XIX, naqueles que seriam os últimos anos da Carta,
entretanto revista, D. Carlos renunciava ao título de «soberano», pois
sabia que a soberania residia na nação, e não nele.460
Com a morte histórica desta rivalidade, a utilidade e sobretudo a
verdade do poder constituinte teria de ser demonstrada por outras vias.
10. Nação Valente
Na Constituição de Cádis de 1812, em tantos aspectos refundadora da
esperança liberal que despontaria após a derrota de Napoleão, e que não se
conformaria com o conformismo conservador da Santa Aliança, a nação
era a unidade política fundamental. A nação espanhola era muito
simplesmente «a reunião de todos os espanhóis». Todo o texto
constitucional procurava delinear a ideia de nação exclusivamente com
vínculos políticos e os respectivos valores liberais que lhes subjaziam.
Naturalmente, as Cortes constituintes eram «da nação» espanhola
porquanto a soberania residia, à francesa, «essencialmente na nação».461
Era uma Constituição que fazia da nação espanhola um «instrumento de
integração política destinado ao desenvolvimento da liberdade
individual».462
Mas o que é a nação? O que é este agente histórico investido de poderes,
vontade, desígnio, que reclama lealdade, amor e sangue? Foi nela que se
depositaram esperanças ilimitadas. Foi a ela que se atribuíram poderes.
Fizeram dela o núcleo dos imaginários colectivos. Coroaram-na com a
soberania. E, no entanto, não é fácil dizer exactamente o que é.
Etimologicamente, sabemos que «nação» é palavra herdeira do latim
através do francês arcaico. Em latim, nascere (particípio passado, nasci) é
o verbo que o português traduz por nascer. A substantivação de nascere
gerou a palavra natio, nationem, significando estirpe, raça. Desde a sua
origem, a palavra nação transmitia a ideia de comunidade ou familiaridade
baseada no nascimento ou no «sangue».
Não precisamos de nos ater excessivamente a sentidos originários. Mas
não abandonemos as etimologias sem antes sublinhar que elas indicam
que se nasce na nação. Sucede que o nascimento e a hereditariedade não
se compatibilizam facilmente com a parceria popular, anti-hereditária no
que tocava aos privilégios sociais e à escolha dos governantes, que a
soberania da nação formou praticamente desde o seu início. Seja como for,
interessa-nos sobretudo a apropriação político-filosófica da ideia de nação
com a irrupção da doutrina da soberania popular.
Ora, a nação moderna, a nação propriamente dita, a nação enquanto
agente, a nação enquanto sujeito, enquanto sujeito da História, enquanto
sujeito de uma cultura, enquanto sujeito de uma secular narrativa política,
enquanto sujeito da soberania, e já não contraparte de uma Aliança com
Deus – essa nação foi uma criação da Revolução Francesa. Não houve
apóstolo revolucionário da nação como Giuseppe Mazzini, nem ela jamais
teve um tão eloquente porta-voz quanto ele. Foi, sem dúvida, o mais
famoso e bem-sucedido agitador político do seu tempo.
Artífice incansável da unificação italiana na segunda metade do século
XIX, Mazzini foi uma das grandes figuras da política e da intelectualidade
europeias naquela época, admirado por notáveis como Alexander Herzen
ou John Stuart Mill. A partir do seu exílio em Londres, para onde fora
depois do seu encarceramento pela polícia do império Habsburgo, Mazzini
exibiria todo o seu lustre em vários palcos, depois de ter tentado sem
sucesso sacudir praticamente todo o território italiano com revoltas e
sublevações. Em Londres, Mazzini era o homem que todos queriam
conhecer. Escreveu abundantemente nos jornais e com enormes
audiências. Durante algum tempo membro dos Carbonari, uma sociedade
secreta com raízes maçónicas, que avançava os princípios liberais radicais
em Espanha e Itália, Mazzini idealizava a revolução social, não em termos
das consequências de uma luta de classes, mas da unidade em torno da
ideia nacional. O inimigo eram os reis, a diplomacia do Ancien Régime
que sobrevivera com a Santa Aliança, a cultura elitista de repressão da
expressão cultural popular nacional, e os impérios. O que não o inibiu de
propor a criação de um império italiano em África, assim que a nação
estivesse unificada. Inimigos estes que seriam varridos assim que fossem
confrontados pela «autoridade da vontade nacional».463 Não era
eufemismo. Era uma declaração de guerra, com toda a «fé», «martírio» e
«sacrifício» que a boa causa não dispensaria. «A Itália sabe que não há
verdadeira guerra sem as massas.»464 Porém, Mazzini nutria quase idêntica
hostilidade pelas teorias cosmopolitas que postulavam a existência de
indivíduos desligados de obrigações éticas, ou pelo menos indiferentes a
elas, para com a comunidade nacional. Doutrinas como os liberalismos
individualistas, ou o muito em voga utilitarismo, eram todas elas
metafísicas de egoísmos desenraizados.
Mazzini teve o seu momento de glória apoteótica com a eclosão da
«Primavera dos Povos» em 1848, e a instituição da malograda república
romana. Apenas para se desiludir com as derrotas que se seguiram e,
sobretudo, com os desenvolvimentos concretos da unificação italiana
liderada pela monarquia do Piemonte. Profetizava um mundo de Estados
nacionais democráticos que se relacionariam sem conflito e em
cooperação. No fundo, um arauto de projectos como o da Liga das
Nações, posterior à Primeira Guerra Mundial, e finalmente da
Organização das Nações Unidas de 1945. O Presidente americano
Woodrow Wilson, quando veio a Paris liderar as negociações para o que
viria a ser o famoso, ou infame, Tratado de Versalhes, não se esqueceu de
lhe prestar homenagem em Génova. O homem que vinculou o mundo,
mas não o seu próprio Estado, ao princípio da «autodeterminação»
confessou-se discípulo de Mazzini e reconheceu que tinha nos princípios
do italiano a sua orientação.
Por toda a parte Mazzini se desdobrou a organizar plataformas políticas
e insurreccionais para preparar a revolução dos povos. A mais famosa de
todas foi a Giovine Italia (1831) que figurou no chamado Risorgimento
italiano que o literato Francesco de Sanctis dizia, comovido, ter sido
profetizado por Maquiavel no último capítulo do Príncipe. O seu
constante envolvimento nas organizações de preparação da revolução
levou-o a cruzar-se com os movimentos socialistas – que ele execrava – e
com o próprio activista Karl Marx – que execrava Mazzini, sendo o
sentimento recíproco. Esse longo conflito entre duas gigantescas
personalidades da política europeia do século XIX, e que veriam a
influência de ambos entrar bem dentro do século XX até aos nossos dias,
culminou no frenesim de Marx em sacudir todos os vestígios de influência
do republicanismo nacionalista de Mazzini na grande Associação
Internacional de Trabalhadores que se formaria em Londres e que ficaria
conhecida na história como a I Internacional.465
Em Mazzini, o novo casamento a celebrar juntaria a democracia e a
nação. Amorosos desde sempre, tinham sido separados por séculos de
«autoridade». A progenitura que sairia instantaneamente dessa união
chamava-se liberdade, incluindo a liberdade dos direitos individuais.466
Com a liberdade viria a conciliação interna – na sociedade regida pelo
«dogma da igualdade»467 – e externa – na sociedade das nações do mundo.
Esta última forma de conciliação, a abertura de todos os povos do mundo
uns aos outros, mas a partir das suas próprias nações politicamente
constituídas, era, para Mazzini, o verdadeiro cosmopolitismo.468 Os
sujeitos que participariam numa sociedade mundial dos povos não podiam
senão ser nações soberanas. A república democrática nacional – e é esta
fórmula, mais do que qualquer outra, que mais rapidamente transmite a
originalidade e a relevância de Mazzini – estruturava-se em torno da
soberania (popular) da nação. Assim, o nacionalismo de Mazzini
distinguia-se das outras variantes oitocentistas de nacionalismo na medida
em que era, tanto na constituição, como na finalidade, um nacionalismo
político por contraponto a um nacionalismo étnico, cultural, tradicional,
pré-político. Dizia Mazzini: «Não acreditamos na intemporalidade das
raças. Não acreditamos na intemporalidade das línguas. Não acreditamos
na intemporal e poderosa influência do clima no desenvolvimento da
actividade humana.»469 O dado – fosse de ordem material (o clima, etc.),
fosse de ordem cultural (a língua, etc.) –, o imutável, o ininfluenciável, o
passado, não formava decisivamente a nação. O mesmo valia para o
território. Eram tão-só «indicações» da nacionalidade. Sem capacidade
determinativa, portanto.470 Só a acção histórica enquanto tal formava a
nação porquanto a nação era um sujeito que agia sobre si próprio. Por
conseguinte, só o político podia providenciar o domínio em que a nação se
formava. É evidentemente por esta razão que a concepção mazziniana de
nação se ajustava infinitamente melhor do que as alternativas oitocentistas
ao conceito de soberania da nação. Para Mazzini, e ao contrário dos
coevos nacionalismos «culturais», a «política da nacionalidade era
sobretudo um processo que visava a redefinição da legitimidade do poder
soberano».471 A um nacionalismo do passado, por assim dizer, sobrevinha
o nacionalismo do futuro. Mazzini preferia distinguir respectivamente
«nacionalismo» de «nacionalidade».472 Diga-se de passagem, este
entusiasmo de Mazzini levou-o a concluir pela essencial pacificidade do
nacionalismo republicano e democrático do futuro, num saudável e
reconfortante contraste com o belicismo expansionista do nacionalismo
monárquico do passado.473 O menos que podemos dizer é que os tempos
vindouros não validariam tamanho salto de fé.
O que era a nação para Mazzini? Antes de mais, deve-se dizer que ela
era constituída por um povo. E o que era o povo? Todas as pessoas que
pertenciam à nação, sem qualquer exclusão. Por outras palavras, a nação
não era uma classe, nem um estamento, e fazia escolhas recorrendo ao
sufrágio universal (masculino). Era uma «associação de homens num
determinado território e com uma determinada língua».474 Mas não podia
ser uma simples «multidão». Tinha de ser orientada por «princípios
comuns, governada pelas mesmas leis, unida por um laço fraternal».475
Sem unidade não havia nacionalidade. Mazzini disse-o explicitamente: «A
Nação é uma palavra que significa Unidade: Unidade de princípios, de
propósito e de direitos.»476 Por conseguinte, Mazzini podia dizer que a
nação era «o conjunto inteiro de cidadãos que falam a mesma língua e
estão associados, na fruição igual dos direitos civis e políticos, com o
propósito comum de desenvolver e progressivamente aperfeiçoar toda as
forças sociais e a sua actividade».477 Era «uma pátria, uma lei, uma
unidade moral e material, um interesse comum, um objectivo comum».478
Uma unidade moral porque ligada por deveres e direitos em vista de bens
comuns. E unidade afectiva porque era «o sentimento de amor, o sentido
de parceria que vincula todos os filhos daquele território».479 Todas estas
proclamações mais ou menos sentimentais eram menos interessantes do
que o seu remate: «A nação é o único soberano.» Que consequências
Mazzini retirou daqui? Que a nação tinha o «direito inviolável» de
«escolher as suas próprias instituições, de corrigi-las e de mudá-las».
Como a nação era constituinte, a «vontade da nação» – articulada pelos
representantes livremente eleitos pelo povo – era a única fonte da lei.480
O que fica por resolver nas considerações de Mazzini é a questão que
coloquei anteriormente. A unidade é a condição da nacionalidade. Mas é a
unidade que prepara a soberania, ou a soberania que produz a unidade?
Como sabemos, este problema não é menor para uma teoria da soberania
nacional. É recorrente por explicitação e por omissão. No caso de Mazzini
a questão gravita em torno de toda a sua reflexão. O problema político
europeu da sua época, para o qual a nacionalidade soberana era a resposta,
era definido por Mazzini como a necessidade de «harmonizar» em todos
os Estados a «individualidade» e a «associação».481 A nacionalidade por si
só, isto é, sem a soberania, não respondia a esta necessidade. Por
soberania, porém, Mazzini entendia não um poder, mas a «legitimidade do
poder». Para ele, a soberania era uma espécie de articulação do poder de
modo a que este servisse o «interesse comum» e «progresso comum».
Contudo, Mazzini fez uma observação mais interessante. A soberania do
povo «implica» a soberania do «objectivo nacional». Passemos por cima
do comentário óbvio de que esta formulação consiste na tradução da
articulação do poder ao serviço do «progresso comum». O que ela
denotava de mais fundamental era o carácter tautológico da pseudo-
determinação da ideia de soberania. Vejamos. O «objectivo nacional» não
podia senão ser determinado pela «vontade nacional». E esta, no
pensamento de Mazzini, não podia desvincular-se da «vontade popular».
Logo, Mazzini limitava-se a dizer que a soberania popular e da nação
eram o poder determinado pela vontade nacional popular, o que,
reconheçamos, não adiantava muito à discussão em torno do tema. Assim,
a suposta explicação – ainda para mais contra Guizot! – era uma mera
circunferência tautológica. Quando Mazzini, depois de tudo isto, ainda
reivindicava que no seu tempo a «soberania do povo é muito mais bem
compreendida do que no tempo de Rousseau»,482 podemos sorrir e guardar
as nossas dúvidas para nós próprios.
Quem não se entusiasmou com nenhuma destas promessas foi o
historiador John Emerich Edward Dalberg-Acton, lorde do último nome.
Assustou-o ver o seu século XIX abalado por três correntes inimigas da
ordem, a igualdade, o comunismo e o nacionalismo, cuja paternidade
atribuiu respectivamente a Rousseau, a Babeuf e a Mazzini. Mas à época
em que escrevia, nos meados do século XIX, e ao ver companheiros do seu
liberalismo seduzidos pelo movimento, era no nacionalismo que via o
maior potencial de subversão e de devastação política. Ele, que via na
soberania um princípio de ordem, imperial se fosse esse o caso, como era
na sua referência britânica, acabaria por opor a «teoria» da nacionalidade à
da soberania. A combinação soberania-nação era menos relevante do que
a ameaça que o princípio da nacionalidade colocava à integridade
territorial dos Estados soberanos.483
Acton interpretou a irrupção da nação de corpo e personalidade inteira
na Revolução Francesa como o triunfo da concepção etnológica de nação,
ao invés da sua concepção histórica. Tinha razão ao pressentir uma
estranha novidade na abrupta operação de Sieyès de postulação da nação
como entidade separada e separável, senhora de uma vontade capaz de se
formar drasticamente de um momento para o outro. Mas a conclusão de
que tal fora um salto na etnologização da nação não era a mais acertada. A
personificação da nação não era necessariamente uma etnologização.
Tratava-se antes de uma sua repolitização em bases historicamente novas.
Com esta percepção, Acton acenaria com o perigo da materialização da
nação às mãos dos revolucionários franceses. Equivocava-se no
diagnóstico, mas não na consequência. A operação teve o alcance de uma
espiritualização, ou de uma re-espiritualização da nação, mas os perigos
da mesma continuavam intactos. Acton dizia que se tinha convertido a
nação numa abstracção, numa «ficção». Sem dúvida, mas uma ficção
espiritualizada. Duplicava, por esse meio, a ambição para a acção
histórica.484
Acton acomodava estas dificuldades projectando nos revolucionários
franceses a confusão. Eles não sabiam o que estariam a fazer e supuseram
a nação compatível com os ideais republicanos universalistas. Só mais
tarde, quando a reacção ao Evangelho republicano revolucionário foi posta
em marcha, só quando a república universalista se tornou conquistadora,
subjugadora e opressora, é que a concepção particularista da nação, filha
do espírito contra-revolucionário, vingaria. O fechamento viria com o
particularismo e daí para o etnocentrismo. Infelizmente, os pontos
separados – a teoria política da Revolução e a ascensão da nação –
estiveram muito mais ligados do que Acton quis fazer crer no seu
admirável ensaio. O próprio é forçado a reconhecê-lo ao denunciar liberais
como Stuart Mill e a teoria «democrática» da soberania por serem aliados
neste terrível movimento das «nacionalidades». Denúncias à parte, a
soberania popular veio associada com a soberania da nação e é pela
agência político-histórica a ela atribuída que se compreende a sua
profundidade conceptual e a força do seu apelo político. Acton estava
mais preocupado em perceber as condições para a sobrevivência e
vitalidade da liberdade individual dadas pela soberania da nação, fazendo
triunfar a homogeneidade e a supremacia da vontade colectiva, em
comparação com as que eram dadas por soberanias não nacionais. Não
estava optimista. Com efeito, somando a supremacia da vontade à
homogeneidade nacional, as bases para a dissidência e para a resistência
ao abuso do poder desapareciam debaixo dos pés dos amigos da liberdade.
Só um ultraperverso inimigo do povo e da nação podia ousar desafiá-la. O
alerta de Acton continua válido hoje. Porém, o curso histórico já ia bem
longe para que Acton pudesse ignorar o elemento nacional na teoria
política que pretendia proteger. Uma «teoria da liberdade» acabava por dar
à nação um lugar «essencial», mas não «um elemento supremo» na
formação do Estado. Acton tinha de admitir que a nação seria na tal
«teoria da liberdade» salutar um «bastião do autogoverno» e até um
«limite para o poder excessivo do Estado». Mais, o seu modelo de
soberania favorecia um Estado multinacional precisamente como modelo
de limitação do poder político. Então, se a soberania da nação continha
tantos perigos, mas a ideia de nação era, afinal de contas, imprescindível,
restavam o modelo imperial e o modelo federal de soberania. Sobretudo,
Acton queria uma nação derivada do Estado, politicamente benévola, e
não um Estado derivado da nação, politicamente perigosa. No fundo, uma
espécie de nação constitucional. Ao tentar afirmar este dualismo, que
forçava uma escolha política, Acton deixou passar despercebido o facto de
a nação moderna ter sido desde o início, desde o momento Sieyès, uma
nação constitucional e, ao mesmo tempo, de o constitucionalismo
moderno ter estado, desde o início, radicado na ideia da nação enquanto
pessoa volitiva. Para os nossos propósitos de elucidação conceitual é mais
interessante reparar na derradeira intenção de Acton. Em última análise,
Acton queria poder acusar de contradição irredimível uma teoria da
soberania nacional que aceitasse como seu sujeito uma nação entendida
enquanto etnia. Contraditória porque tornaria todos os indivíduos de um
Estado reféns de algo acidental – o seu carácter étnico –, deixando de ser o
indivíduo como parte do colectivo – como parte de um povo – a
determinar as condições da sua existência política. A sua etnia estaria
além dessa vontade humana e teria a seu cargo todas as decisões
fundamentais. A soberania nacional aniquilaria a vontade do povo.485
11. Nação sobrevivente e superveniente
Não sei se é particularmente útil a distinção que alguém fez entre nação
e povo como correspondendo à distinção entre tempo e espaço. Quer isto
dizer que a nação seria a representação de uma comunidade ao longo do
tempo, ao passo que o povo seria a representação da mesma comunidade
no espaço. O povo seria constituído pela pertença no instante presente à
comunidade imaginada dentro das fronteiras de um Estado, ou
possivelmente extravasando as fronteiras políticas daquele momento. Já a
nação seria o passado, o presente e, presume-se, o futuro da comunidade
em causa. Seria o entrelaçamento da comunidade com a ideia de herança e
de transmissão. A nação providenciaria a ligação imaginada entre os
mortos, os vivos e os que ainda estão por nascer.
Mas, admitindo que esta distinção faz justiça à invocação histórica do
povo e da nação nos momentos intelectuais e políticos definidores,486 o
que talvez seja pedir demais, teríamos forçosamente de concluir que só a
nação teria interesse como entidade política fundamental. Assim teríamos
de concluir porque a acção política – e é disso que se trata aqui, e sempre
se tratou, a agência política colectiva – é invariavelmente acção histórica,
e, como tal, projecta-se sempre para o futuro. Falar de um agente que se
diferencia por existir num mirífico presente instantâneo, que política e
existencialmente nunca é, é quase incorrer numa contradição. É
certamente invocar uma entidade destituída de relevância política.487
Na teoria da soberania popular, ou nacional, o presente adquire
supremacia, eliminando passado e futuro, apenas no instante da tomada de
consciência do povo/nação enquanto tal, o primeiro passo no processo de
formação da vontade. Não podemos dizer que o instante presente do
apuramento da vontade colectiva seria, afinal, esse instante supremo
extintor de passado e de futuro porquanto a vontade colectiva quer um
bem – um bem futuro. Neste último caso, o presente da formação da
vontade está já projectado para o futuro e não se distingue dele, muito
menos o elimina.
Não faltam autoridades para contrariar o que acabo de dizer. Carré de
Malberg, por exemplo, tirou a conclusão diametralmente oposta. Para ele,
a soberania nacional era um conceito da primeira fase da Revolução
Francesa culminando na Constituição de 1791, ao passo que a soberania
do povo era a democracia vingada pelo jacobinismo da Convenção. A
soberania da nação era um dos princípios fundamentais do direito público
e pilar do Estado. Mas as diferenças entre ambos os conceitos não se
esgotavam nas datas das respectivas (e alegadas) certidões de nascimento.
A soberania da nação negava desde logo a apropriação pessoal da
soberania, como reivindicava a mentalidade monárquica do Ancien
Régime. Negava de vez a soberania de um rei ou de outra pessoa qualquer,
que não a colectividade nacional. Ao fazê-lo, colocava o exercício da
soberania ao serviço do bem colectivo, e não de fins pessoais. Os
governantes deixavam de ser tidos como governantes. Apenas exerciam
competências em nome da nação e do seu bem. Mantinha-se a tese da
indivisibilidade da soberania, o que queria dizer que os membros da nação
individualmente considerados não detinham fracções de soberania. A
nação formava uma vontade colectiva. Não havia algoritmos de agregação
de múltiplas vontades individuais fraccionariamente soberanas. Só a nação
enquanto unidade colectiva podia ser uma pessoa jurídica distinta dos
indivíduos que a constituíam.
Mas podíamos imediatamente ripostar que esse resultado também se
obteria com a soberania do povo. Esta era a soberania que ditava a eleição
de governantes e representantes por sufrágio universal e que não podia
tolerar instituições como um rei hereditário a chefiar o poder executivo, ou
Câmaras Altas legislativas compostas por gente não eleita pelo povo. No
entender de Carré de Malberg a nação era a unidade colectiva indivisível
pelo que nenhum dos seus membros gozava do direito de participar na sua
capacidade individual no exercício da soberania. Era uma soberania
«anónima» e «elusiva». Por conseguinte, era indeterminada numa
correspondência estrita a uma forma de governo particular. A soberania
nacional apenas comandava que o Estado personificasse a nação, que
personificasse a sua própria unidade indivisível que constituía desde logo,
fazendo-se assim ambos uma só pessoa. Este ponto era importante para se
compreender melhor o jogo das pessoas – a da nação e a do Estado – e
como um Estado soberano nacional era apenas uma pessoa, e não um
composto dual. Mas não era suficiente para abranger a amplitude integral
do sentido político da nação. Nem era suficiente para dar conta da sua
sobrevivência enquanto pessoa quando (ainda) não havia um Estado que a
personificasse, o que incluía naturalmente a determinação política, não
jurídica, do Estado pela nação. Já a soberania popular fazia a exigência de
que o seu exercício estivesse nas mãos de cada um dos indivíduos
membros do povo soberano. Era inflexivelmente democrática.488
De tudo isto, ganha força a distinção entre soberania da nação e
soberania do povo como a distinção entre respectivamente a agência
política de uma unidade colectiva indivisível cuja formação da vontade
recorre à sua continuidade histórica consciente, e uma outra agência
política de uma unidade colectiva indivisível cuja formação da vontade
prescinde dessa continuidade histórica. A soberania do povo, sendo
exclusivamente no presente para o futuro, e, portanto, não essencialmente
instantânea, recusa ainda princípios de legitimidade externos à essencial
igualdade constitutiva do povo – é forçosamente democrática e eleitoral.
A soberania nacional, tendo uma inclinação acentuadamente democrática
e eleitoral, é compatível com a assimilação de outras fontes de
legitimidade, modalidades de representação e formas organizativas. A
derivação de que, na doutrina da soberania popular, o povo existe por
direito, e não por «costume ou tomada de consciência», e que tal
existência está dependente apenas de uma certa ideia de legitimidade
política, não está errada. Assim é, com efeito. O povo é um produto de
uma certa ideia de legitimidade política e é invocado como agente político
à luz dessa ideia. Depois disto, resta concluir que são grandes as
dificuldades que a distinção entre nação e povo sempre causou aos seus
criadores.
Tais proposições não corroboram a primeira tese de que o povo é uma
entidade cuja existência é eminentemente espacial, e não temporal. Por
outro lado, diz-se que a espacialidade do povo está associada a fronteiras.
A que tipo de fronteiras? Às únicas que poderiam definir o povo como
entidade política espacial: as fronteiras políticas, o que vale por dizer as
fronteiras do Estado. Mas aqui as dificuldades são igualmente
inultrapassáveis. Não só o povo pode ser invocado como não cabendo nas
fronteiras dadas pelos Estados existentes, ou por estas serem iníquas e
arbitrárias, ou por o povo existir como agente político global que
transcende as fronteiras políticas enquanto tais. Vemos precisamente essa
resistência à fronteira nalgumas teorias políticas da extrema-esquerda – a
«Multidão» do Império de Antonio Negri,489 por exemplo, como na
aspiração cosmopolita em geral. O povo também não pode estar contido
em fronteiras de uma estrutura constituída de que ele é constituinte e, por
conseguinte, anterior a elas – à estrutura estadual e às suas fronteiras. Num
primeiro momento, as fronteiras pareceriam ser o elemento constitutivo da
espacialidade do povo enquanto agente político, quando na verdade seriam
um produto dessa mesma agência política.
Um último impasse conceitual. Alega-se que o povo tem como princípio
de unidade um critério etnográfico ou sociológico. Ou tem uma coerência
– real ou imaginada – étnica, ou tem uma coerência – real ou imaginada –
social. Ou é uma etnia ou uma classe social. Talvez esta diferença pudesse
ser resolvida se disséssemos que o povo é, do ponto de vista interno a si
mesmo, uma classe social, por contraposição à nobreza, ao clero, à
burguesia, aos intelectuais, ou a qualquer outra casta situada mais acima
na estratificação social. E, do ponto de vista externo a si, uma etnia
distinta de todas as outras. Estas dificuldades têm um mérito nada
negligenciável. O de nos permitir ver que o conceito puramente político de
soberania popular precisava do socorro da nação. Permite-nos ver que a
colectivização da soberania e a sua assunção de um poder constituinte teve
um preço – um preço que seria cobrado pela nação, sob a forma de bilhete
de entrada para o portão maior da aventura da Humanidade.
Como sair destes impasses e destas dificuldades em torno da distinção
entre povo e nação? Uma alternativa seria a de que o povo corresponderia
à substanciação da ideia de igualdade universal potente, ao passo que a
nação corresponderia à substanciação do desejo de continuidade da
particularidade. O povo construiria a pertença dos seus membros em
torno da destruição dos privilégios e a colocação de todos – sem distinção
– no mesmo plano relativamente a um referente qualquer. Em Sieyès, esse
referente seria a lei. Mas podem ser outros, como a participação política,
por exemplo. Nessa medida, o povo despido de características histórico-
culturais diferenciadoras, apenas como agente político que incorpora a
ideia de igualdade para fundar a autoridade política, funde-se com todos
os outros povos. Em rigor, nem existiriam povos no plural. Apenas
haveria O Povo na sua indiferenciada universalidade. Trata-se ainda de
uma igualdade universal potente na medida em que não se pretende
apenas a anulação das diferenças, mas a igualdade como ponto de partida
para a acção. Em particular, para a acção que consiste no exercício de um
poder, não só o poder necessário na tarefa do autogoverno, mas sobretudo
o poder constituinte. Em contrapartida, a nação é particular no seio da
Humanidade e da História. Converte O Povo, em Um povo, no Nosso
povo, separado dos outros povos. Além disso, a nação sobrevem na
História e deseja confirmar o seu passado, não tanto repetindo-o ou
recapitulando-o, quanto prolongando essa identidade no futuro. É mais do
que uma identidade fossilizada, passiva e imutável. É o desejo de
transmissão da herança recebida, que nunca é retransmitida do mesmo
modo que foi recebida. É a valorização mais ou menos consciente da uma
perspectiva colectiva particular e única do mundo, do viver humano. Uma
perspectiva, ou uma expressão, criativa e irrepetível do viver humano.
Não restam dúvidas de que, quer do ponto de vista teórico, quer do
ponto de vista político-retórico, a nação e o povo ficaram imbricados um
no outro. É legítimo falar de uma popularização/politização da nação,
assim como de uma recíproca nacionalização do povo na era
democrática.490 Digerida deste modo, a nação é um espaço de comum-
nicação. Esse comum não seria possível sem a nação de algum modo
permitir a fluidez de uma comunicação de outro modo inviável. A
comunicação é, por um lado, subjectiva. Isto é, permite a inteligibilidade e
assimilação das (pequenas) diferenças. Um membro da nação compreende
outro membro da nação porque os seus hábitos, gestos, inclinações e
rituais, são-lhe imediatamente inteligíveis. As diferenças para com os seus
próprios hábitos, gestos, inclinações e rituais, não são grandes, o que
permite a inteligibilidade e a assimilação. Mas o sentimento de partilha de
algo único, de uma memória única e de um lugar próprio no mundo,
aceleram essa assimilação e aceitação da diferença. O comum concreto
torna comum muito do que não é comum. É essa comunicação que flui
dentro do espaço nacional. Por outro lado, a comunicação é também
estabelecida objectivamente. Quer isto dizer que se constituem e partilham
símbolos comuns, muitos deles com uma origem política, mas nem
sempre é esse o caso. Muitos outros símbolos provêm de domínios
infrapolíticos, desde a relação com a terra (ou com o mar) até às lendas,
folclore, literatura e por aí em diante. Através desses símbolos opera-se
uma comunicação triangular, já não de sujeito nacional para sujeito
nacional, mas passando pela referência inscrita e exibida pelo símbolo. A
familiaridade e a apropriação do símbolo comum por dois membros
distintos da comunidade nacional estabelecem uma comunicação entre
ambos que de outro modo seria extraordinariamente difícil. De resto, a
comunicação nem sempre é estritamente racional. Símbolos nacionais
poderosos são aqueles que suscitam uma adesão de lealdade emocional
espontânea.
Que sentido atribuem os símbolos à comunicação entre aqueles dois
membros da nação? O sentido da coesão, e da unidade das pequenas
diferenças, a par da caracterização muitas vezes não-verbal do lugar único
e irrepetível que aquela nação ocupa no grande oceano da Humanidade,
numa palavra, da sua particularidade.
A questão da comunicação deve resolver as dificuldades criadas pela
intromissão da noção de etnia, tantas vezes confundida com nação, assim
como a estreiteza conceitual dada pela simples etimologia da palavra
nação. Por etnia o linguajar académico entende sobretudo a ideia de uma
origem ancestral comum sem mais outras considerações. Daqui houve
quem sugerisse que a nação não é mais do que uma etnia que adquiriu
consciência do que é, distinção obviamente desinteressante.491 Que a
nação é uma forma de comunidade muito mais consciente de si mesma,
por comparação com a etnia, é algo que não oferece dúvida dada a sua
evidência. Sucede que a agência política híbrida da nação nos termos aqui
apresentados deve, se nenhuma outra coisa, pelo menos garantir que a
nação no contexto da doutrina da soberania do povo não é uma simples
extensão da noção de etnia. Mais, como Renan notou com admirável
perspicácia, a nação supõe inúmeros «esquecimentos», além de memórias
comuns. Em particular, exige o esquecimento da origem de cada um, a
origem violenta de cada agrupamento, a origem traumática de cada
colectividade, a origem étnica de cada membro da nação.492 Nós,
europeus, sabemos bem como tantas vezes as nossas nações se ergueram
pela mais ou menos violenta ruptura das ligações dos seus membros com
as suas origens étnicas na prossecução da homogeneidade que a nação de
uma forma ou de outra sempre comporta. Parte importante da história
política dos Estados europeus, e dos extra-europeus, foi ocupada com as
tentativas de se chegar a um compromisso razoável, decente, humano, e
noutras ocasiões desrazoável, indecente e desumano, entre a dignidade da
pessoa e das suas ligações infrapolíticas e infranacionais, de um lado, e as
exigências da homogeneidade nacional, do outro. Esta história é tão
complexa que nas páginas mais negras do passado (recente) europeu
lemos quão desprotegida ficou a dignidade humana quando os indivíduos
não gozavam, em concreto, da protecção de um Estado soberano. E, o que
é mais decisivo para os nossos propósitos neste livro, a soberania é melhor
mediadora desse compromisso, estando acima das particularidades
étnicas, não tendo ela etnia alguma, do que a negociação sem mediação
entre as etnias e a nação, para não falar na degeneração para a guerra que a
negociação directa entre as etnias tende a produzir.
Durante séculos, a distinção social fundamental na Europa cristã
enquanto cristã situava-se na diferença entre o clérigo e leigo, que
determinava estatutos, direitos, deveres e funções separados. No período
tardo-medieval, o civis – o cidadão – começou gradualmente a relegar
aquele par para a irrelevância só contida na esfera cada vez menos ampla
da eclesiologia.493 A soberania fez triunfar o civis acima de todos os
restantes atributos societais, fosse o par clérigo/leigo, fosse o par
nobre/vilão. Esta homogeneidade de primeira ordem, produzida e
conservada pela soberania, era vital para que a diversidade de segunda
ordem pudesse ser protegida e conservada também.
Entre a pressão da nação para a homogeneidade e a preservação da
diversidade individual para a qual a soberania tem vocação caminha-se
para o compromisso mais satisfatório. Mais do que uma mediação, trata-se
de uma representação. Sendo o soberano representante, a homogeneidade
da nação – a sua particularidade política, moral, religiosa, memorial –, não
pode senão ser representada. Mas como a representação soberana esforça-
se incessantemente por se situar como um pólo razoavelmente distante da
homogeneidade representada, para atender aos indivíduos com quem
preferencialmente se relaciona, o tal compromisso mais satisfatório opera-
se pela via da representação. Não que se chegue lá definitivamente. O que
designo aqui por compromisso satisfatório é questão de mais e de menos,
que se vai concretizando por aproximações e afastamentos pendulares.
Ora oscilando mais para a representação da homogeneidade e da
particularidade da nação, ora para a representação da diversidade e
heterogeneidade contida na nação quando a decompomos nos seus
indivíduos constituintes. E, através dessa heterogeneidade, temos um
vislumbre da universalidade própria da Humanidade em geral.
Resumindo, o Estado nacional soberano tem sempre um pé na
particularidade da nação, e outro na universalidade condensada no tecido
formado por uma multidão de indivíduos-cidadãos dotados de direitos. A
soberania é a mediadora e a representação destes dois pontos nunca fixos,
sempre a solicitar uma hermenêutica histórica.
12. Da particularidade
É na etnia que encontramos o nível mais infrapolítico da identidade, a
chamada identidade cultural partilhada, acompanhada normalmente, mas
nem sempre, por uma língua comum. A etnia sintetiza um grau de
particularidade incomparavelmente maior do que a nação, que, como
vimos, além de ser uma comunidade da particularidade, se estrutura
também segundo elementos de universalidade, desde logo o princípio
filosófico que a justifica – o da «autodeterminação».494 Não há como negar
que as pessoas desenvolvem lealdades fortes com a comunidade formada
por este tipo de identificação.495 Porém, a identidade nacional já é
portadora de uma dimensão política de identificação. Já incorpora uma
diferenciação política da comunidade nacional face às outras comunidades
nacionais. Essa identificação não tem de ser imediatamente produtora de
independência estadual e soberana. Mas é, desde logo, consciência de
agência histórico-política própria. Escusado é acrescentar que a
estadualização da nação acelera e consolida a consciência nacional de si.
A nação enquanto comunidade, que supõe e dita uma certa forma de
igualdade, estabelece uma relação horizontal entre os seus membros.
Recorde-se de que a soberania também estabelece uma relação horizontal
– entre os cidadãos – através da lei igual para todos, que por sua vez era
gerada por uma relação vertical entre soberano e cidadãos. Assim, uma
vez estadualizada, a nação reforça a relação horizontal entre cidadãos da
mesma nação. O vínculo horizontal torna-se indubitavelmente mais forte.
Consolidada a soberania, é este reforço da relação horizontal que dá conta
da superior força, ou coesão, do Estado nacional. A popularização da
soberania torna-se mais transparente nestas condições históricas e a
imagem – repito, a imagem – de abertura democrática da vida cívica
ganha mais credibilidade. Ao mesmo tempo, a soberania estadual da nação
passa a integrar o repositório de símbolos e experiências comuns. A
identidade da nação torna-se cada vez mais indistinta da sua soberania
porque a soberania assumiu-se como uma forma de expressão dessa
identidade. Um exemplo: em Portugal, a Constituição fez questão de nos
vincular a todos a alguns símbolos, como a bandeira nacional, ou melhor,
uma versão particular da bandeira, a saber a adoptada na Implantação da
República no 5 de Outubro de 1910.496
A dimensão política é decisiva para a coesão da nação. Sem ela, resta a
identidade étnica, puramente «cultural», tribal. Ora, grande parte das
«experiências nacionais» têm de admitir pluralidade étnica na sua
homogeneidade. Nem sempre se trata de retórica que esconde a repressão
das minorias, e a negação da sua existência, embora seja muitas vezes esse
o caso. Trata-se de um esforço de agregação que só pode ser consumado
na dimensão política e que, naturalmente, não exclui a solução liberal para
o pluralismo étnico, com os respectivos princípios da não-discriminação e
por aí em diante.
Não houve expressão mais eloquente deste dilema, e da agência política
da nação, do que a «nobre mentira» da Constituição da República da
Checoslováquia de 1920. Tomás Masaryk, o herói da independência de
um Estado inventado nas ruínas da Primeira Guerra Mundial e do Império
Austro-Húngaro, foi o autor do documento fundador da unidade política
de dois povos formados pela história, o checo e o eslovaco, numa só
nação. Pelo menos, era isso que a Constituição proclamava contra toda a
evidência. O preâmbulo identificava o sujeito do poder constituinte num
«nós, a nação checoslovaca». Havia uma única nação (política), fundindo
duas nações (históricas) por fiat constitucional. A Constituição, dizia o
preâmbulo, servia para «consolidar a unidade perfeita do nosso povo»
numa República comum. Um só povo constituinte «soberano» agia com, e
pela, nação una, também ela «soberana». Um único Estado construído por
um único povo em nome de uma única nação. Tudo isto proclamado por
uma Constituição que terminava com uma secção inteira dedicada à
«protecção de minorias, nacionais, religiosas e raciais». A «nobre
mentira» checoslovaca reflectia bem as hesitações da soberania popular e
da nação, por um lado, e as esperanças e receios das consequências da
agência política da nação.497 Não resistiu à libertação da República do jugo
comunista e a Checoslováquia dividiu-se em duas repúblicas, a checa e a
eslovaca, numa decisão referendada em 1993.
A nação está acima da homogeneidade «cultural» da etnia precisamente
porque tem como vocação, não sufocar a sua pluralidade, mas em colocar
uma única voz na acção histórico-política nacional. Como grande suposto
está a homogeneidade da nação. Mas não de um suposto intocado. O
movimento histórico da nação é sempre o da crescente integração. Até ao
momento em que, ou a soberania soçobra, ou o consenso nacional se
quebra, e brota o desejo de regresso à identidade étnica/tribal ou de fusão
numa entidade política vizinha ou maior. Afinal de contas, a etnia é a
tribo. E a etnização da política é a tribalização da política.
O primeiro modelo de nação literariamente proposto aos povos europeus
foi dado pela Bíblia. Há uma raiz cristã na questão nacional que vai além
da importância que o cristianismo teve directamente na afirmação e
sobrevivência de algumas nações, como a irlandesa ou a polaca. Vai além
de o seu desenvolvimento ter sofrido um impulso poderoso e irrepetível
aquando da insurreição de Lutero que conduziu à nacionalização da
política europeia. Por fim, vai além da inspiração que serviu a vários
movimentos nacionalistas na retórica e no conteúdo «cultural». Todos
estes aspectos conferem ao Cristianismo uma importância imensa na
história das nações. Anterior a todos esses contributos, foi na Bíblia que
os povos europeus encontraram o «modelo originário de nação». Nos
livros do Antigo Testamento, Israel forneceu o exemplo paradigmático de
uma nação caracterizada pela «unidade de povo, língua, religião, território
e governo», o que não deixa de ser irónico quando meditamos na muito
tardia fundação do Estado nacional soberano territorial israelita.498 A
nação bíblica dos Judeus era constituída pelo povo de Deus. Só havia
povo judeu porque Deus era o seu princípio de unidade. Deus escolhera
aquelas gentes para serem o seu povo e com elas quis fazer uma Aliança.
Havia outras «nações» independentes, com os seus próprios territórios
invioláveis, mas Deus escolheu aquela e deu-lhe directamente a sua Lei e
destinou-lhe um território. Ademais, a nação hebraica seria governada por
juízes, reis, sacerdotes das suas próprias fileiras, e não por estrangeiros.
Era um corolário do desejo dos Hebreus se governarem a eles mesmos. A
origem comum da nação não era racial, nem bioétnica. Não era uma
comunidade de sangue. Ela resultava da união de diferentes tribos. O elo
que conferia pertença era a tradição comum, expressa pela língua falada,
pela experiência recordada e pela religião praticada – todas recebidas dos
antepassados e transmitidos à progénie – e, finalmente, a Lei revelada. Por
exemplo, na fuga do Egipto havia egípcios que tinham partido com os
escravos hebreus, que receberam e se vincularam à Lei anunciada no
Sinai. A nacionalização da religião levada a cabo pela Reforma
protestante veio redobrar o interesse pela experiência bíblica de uma
nação que organizara não só as suas leis, mas, por assim dizer, a sua
própria igreja, de acordo com uma autonomia abençoada por Deus.
Na relação com o Estado político seu representante, a nação moderna
deixava-se integrar e nessa integração permitia que a religião formadora
da sua «identidade» ficasse separada da (e subordinada à) soberania. A
nação moderna participava de duas ideias contraditórias. Primeira: os
indivíduos seus membros, aqueles que fossem fiéis à Palavra de Deus,
ministrada pela Igreja, aspiravam à vida eterna na pátria celeste, que
sobrenaturalmente transcendia a pátria nacional ou soberana. Segunda: a
nação como um todo procurava a auto-suficiência com satisfação
completa dos afectos humanos de pertença, erigindo-se e promovendo-se
como uma pátria, e em que os assuntos da pátria gozavam de prioridade
sobre os da Igreja, mesmo quando os interesses desta estavam misturados
nas aspirações nacionais. Houve povos cuja nação foi construída pela
religião, e em que depois se inverteu o sentido da causalidade – a nação
passava a ser a integradora da religião e a liderá-la, pondo-a, sempre que
possível, ao seu serviço.
13. Uma Nação que fala
O triunfo político da nação na Europa coincidiu com o início da
mobilização para a sua crítica mais radical. No final da Primeira Guerra
Mundial, os vencedores e fazedores da paz procederam ao
desmantelamento das formas políticas imperiais, e pelo menos
formalmente começaram a preparar o desmantelamento dos impérios que
eles, vencedores, também eram. A preferência foi para a organização da
ordem internacional segundo a forma do Estado nacional soberano, com o
auxílio intelectual da filosofia política na proclamação do direito universal
à autodeterminação dos povos, coisa que valeu severas dores de cabeça e
um enfarte ao seu maior profeta, o Presidente americano Woodrow
Wilson. Mas, ao mesmo tempo, com o terrível trauma da guerra e o efeito
de exaustão no continente, ganharam força as vozes críticas da soberania e
da forma do Estado nacional, e, por conseguinte, da nação. A
simultaneidade destes movimentos ficou bem expressa na edificação da
Liga das Nações, a antecessora da Organização das Nações Unidas. A
Liga assentava na representação dos Estados nacionais, estava
vocacionada para a resolução pacífica dos conflitos e, portanto, para
arranjos que transcendessem as diferenças políticas e jurisdicionais das
nações, não sem encaminhar as potências imperiais vitoriosas para a
necessidade de abandonarem pelo menos algumas das suas veleidades
coloniais com o sistema de mandatos. Acabaria por ser rejeitada pela
potência mundial em ascensão, os EUA, numa decisão soberana nacional.
A ressaca da catastrófica Primeira Guerra Mundial propiciaria o ganhar de
fôlego da crítica da nação.
Em termos intelectuais gerais, a crítica da nação resultava da crítica da
particularidade. Na consciência europeia, a razão apontava para a
universalidade, sendo a particularidade a morada da razão não
suficientemente esclarecida, ou mesmo da desrazão. A história da
Humanidade reflectia essa ambição da razão. É por isso que era vista
como desenhando uma linha de progresso. Daqui escorria um fulgor moral
inconfundível. Ganhou corpo dominante a superior postura moral de quem
estava com a razão, ou pelo menos de quem repudiava o contrário da
razão. A política da razão era a política da universalidade, ou pelo menos
da rejeição ou desvalorização da particularidade. Era a política do
progresso. Portanto, resta-nos concluir que, por incorporação, a nação é a
particularidade, e a negação da nação é a aproximação à universalidade.
Segundo a ética da universalidade, não há satisfação do desejo de
integridade moral sem a rejeição da nação, nem sem o apoio ao que for
parecendo a superação da nação.
Socorrendo-me da terminologia e sobretudo dos ensinamentos
hegelianos, dir-se-ia que a nação deve ser analisada como um universal
concreto. Isto é, um universal que contém quer a essência da nação – o
que a nação é na universalidade do conceito, o que todas as nações são –,
quer as suas próprias instanciações – a nação portuguesa, a nação
francesa, a nação turca, a nação vietnamita e por aí em diante. Não existe
uma realidade «universal» separada da realidade histórica das nações em
carne e osso e em acção. Cada expressão concreta da nação, cada nação na
história, constitui a realidade da nação enquanto universal. A nação
enquanto tal só se torna inteligível através do devir das nações concretas
na história. Uma nação na sua expressão histórica concreta não esgota a
ideia de nação, mas esta ideia de nação enquanto universal vai-se
desvelando mediante a expressão histórica concreta das nações que vão
existindo.
Neste sentido, a nação, embora com existência histórica bem prévia,
adquire força como resposta ao império. Tal aconteceu na experiência
passada do continente europeu e na mais recente revolta contra os
impérios coloniais europeus na América, África e Ásia. Aos olhos das
nações era o império que aparecia como a forma política da desrazão. O
império era, por assim dizer, o excesso de universalidade e a heteronomia.
Em contrapartida, a nação apresentava-se como a universalidade na
particularidade, isto é, como o modo de participar autenticamente na
universalidade do humano. E era sobretudo a autonomia, fazendo triunfar
a ideia do autogoverno, de uma comunidade não sujeita e que obedece
apenas às leis que ela própria faz. Não é preciso acrescentar que, sem a
disseminação da ética política subjacente à soberania popular, este triunfo
político da nação seria infinitamente mais difícil.
A nação aparece como uma entidade intermédia. Intermédia entre o clã,
ou a tribo, de um lado, e o império, do outro. Na nação os membros já não
se conhecem pessoalmente, como no clã. Já se aproxima de uma
comunidade impessoal abstracta, como o império será numa escala muito
maior. Mas, ao contrário do império, cuja aspiração é a unificação da
humanidade enquanto tal sob uma mesma ordem pacífica, a nação é
concreta na sua distinção histórico-cultural – uma língua própria, tradições
morais e religiosas, uma memória histórica de sofrimento e de triunfo. É
uma comunidade da particularidade, como a tribo. Mas é já uma
comunidade impessoal cujos laços superam a mera familiaridade.499
A nação é uma entidade intermédia ainda de outra perspectiva. Não é a
etnia, nem é ainda o Estado. O Estado, como disse um distinto jurista do
apogeu do Estado nacional, «é a forma política de uma nação»,500
assumida «espontaneamente» assim que a nação adquire consciência de si
mesma, e da sua constitutiva unidade moral, e se torna senhora do seu
destino. Não sendo etnia, nem ainda Estado, a nação fornece uma
correcção importante ao naturalismo inerente ao conceito de etnia
enquanto comunidade humana. E converte-se numa fonte disciplinadora
do deslaçamento potencial decorrente de uma concepção puramente
política de nação em que esta se torna sinónima de Estado. Se os vínculos
nacionais forem simplesmente políticos, por exemplo, um elenco de
direitos e deveres jurídicos, o comum esfuma-se. Por aqui se percebe
como está condenada ao insucesso uma das versões do projecto de
desligar a soberania popular da soberania da nação, o chamado
patriotismo constitucional. Segundo este projecto, patrocinado por Jürgen
Habermas, um dos notórios filósofos do final do século XX, e um dos mais
destacados intelectuais públicos europeus, a cidadania estritamente
política, concebida exclusivamente como um conjunto de lealdades a
«valores», a «normas» e até aos «procedimentos» da Constituição
pluralista e liberal, é a única que pode ultrapassar os impasses da
sociedade democrática heterogénea porque a abordagem processual é
neutra em relação a todas as pretensões sociais substantivas. Desta
cidadania, o dito projecto julga poder derivar um «patriotismo», ou uma
forma de identificação e respectiva dependência emocional, que se
sobreponha e deixe para trás os laços «etnoculturais». Houve quem
pensasse que era este o segredo do patriotismo americano e que se
impunha uma importação para edificar o patriotismo «europeu» de apoio a
um super-Estado continental. Cedo se constatou que era uma ideia alemã
necessária para garantir a sobrevivência no mundo de um Estado
germânico depois da catástrofe nacional-socialista.501 A unificação alemã
desligou as últimas fichas dessa máquina. Alguns europeus talvez tenham
pensado que seria um desperdício deitar no lixo uma iniciativa tão
interessante. Logo nesse momento, quando a União Europeia, na sua
versão mais ambiciosa, estaria a precisar de algo semelhante depois do
chumbo em 2005 do projecto constitucional nos referendos franceses e
holandeses, e procurava-se desesperadamente por princípios de coesão do
corpo político europeu.
Ao contrário das expectativas dos que se queriam emancipar do peso do
património herdado, não criado, da casa atribuída à nascença, não
escolhida, a nação não podia ser formada apenas por vínculos políticos.
Mais, para que esses vínculos políticos pudessem concretizar-se e adquirir
uma expressão real, a nação tinha de ser capaz de falar. Para ser um
agente próprio, a nação tinha de pôr os seus membros a conversar, debater,
discutir e tinha de se fazer ouvir. Tinha de ser capaz de usar a palavra
numa língua partilhada. A literatura sobre o assunto é consensual, se não
na cronologia, ao menos na enumeração dos factores promotores deste
tipo de coesão. O desenvolvimento de uma alta literatura em língua
vernacular, a nacionalização da religião que nos países protestantes fez da
liturgia um ritual de assimilação da homogeneidade linguística da nação, e
por aí em diante. Tal recurso não podia ser produzido politicamente.
Esta reflexão força-nos a introduzir uma limitação – haverá várias – à
estrita neutralidade do Estado. Sem prejuízo de soluções no sentido da
pluralidade, o Estado tem de optar por falar numa determinada língua. O
Estado neutro é religiosamente neutro, etnicamente neutro, mas não pode
ser linguisticamente neutro com toda a carga «cultural» que isso
comporta.
Hobbes sabia-o bem. Esteve obcecado com os perigos políticos de uma
linguagem não disciplinada. Como a linguagem era puramente
convencional, sem qualquer raiz na natureza, e como era necessário
consenso linguístico para que os indivíduos fizessem um pacto entre eles,
colocava-se a questão dos usos alternativos da linguagem. Usada por seres
movidos por paixões, competitivos e desconfiados, a linguagem era um
instrumento de guerra: mentir, enganar, ofender, caluniar, falsos
testemunhos e por aí em diante. Pufendorf pegou no mesmíssimo
problema e pouco mais avançou além de enunciar que a razão
recomendava que não se usasse a palavra para enganar o interlocutor na
transmissão de pensamentos. Mas quem dava força a esta regra? A razão
ditava, ainda, a obrigação de dizer a verdade sempre que estavam em
causa direitos e deveres gerados pelo consentimento individual. Ou dizer a
verdade a quem tem o direito de conhecer os nossos pensamentos e
intenções. No estado de natureza, quem dava cumprimento a estas
obrigações? Os riscos de colapso da comunicação já estavam dados na
própria natureza da linguagem, ou, mais rigorosamente, do homem
enquanto ser dotado da palavra. Ora, o consenso linguístico era condição
do entendimento e da manutenção de algum tipo de coesão.
John Stuart Mill acabou por adoptar a posição do liberalismo
nacionalista, em que as fronteiras políticas deviam coincidir com as
fronteiras das nacionalidades, depois de confrontar esta dificuldade. As
instituições livres supunham comunicação, informação a ser produzida,
assimilada e discutida, debate público, discussão e publicidade em geral.
Com línguas diferentes tal seria impossível. Daí que Stuart Mill esticasse
os requisitos até ao limite do seu liberalismo para, em nome desse mesmo
liberalismo, exigir às pequenas nacionalidades que acatassem a
«obrigação civilizacional» de se fundirem com as maiores. O que
levantava uma curiosa possibilidade. A nação podia conter várias línguas,
mas o Estado nacional soberano liberal, não. Uma coisa era a
comunicação, muitas vezes sub-racional, entre membros da nação,
porventura etnicamente diversos. Outra bem diferente seriam as
exigências de discussão e publicidade inerentes ao Estado nacional
soberano popular e liberal. Estas eram de um patamar superior. Mill, o
liberal Mill, à conta da questão das nacionalidades concluía que, nesse
aspecto crucial, o Estado soberano não podia ser neutro.
Mais recentemente, o teórico canadiano, não do liberalismo
nacionalista, mas do comunitarismo (ou multiculturalismo?) liberal, Will
Kymlicka, actualizou a questão. Antes de se dedicar à proposta de
concessão de uma espécie de direitos de cidadania aos animais
domésticos, Kymlicka pressionou os liberais para que admitissem que as
instituições políticas não podiam ser separadas da cultura e da língua.
Kymlicka aceitava a separação do Estado e da Igreja, na esteira das
grandes lições do soberanismo seiscentista. Julgo que não ofende ninguém
se eu notar que, sobre a mesma separação relativamente à mesquita,
Kymlicka não foi tão expansivo. Mas Kymlicka teve uma posição teórica
interessante, porque sintomática, não da natureza do problema, mas do
problema dos tempos, ao negar que pudesse ser traçado um paralelo entre
a questão religiosa e a questão étnica na relação com o Estado soberano
liberal. Se o Estado soberano moderno liberal podia dispensar o auxílio da
religião, e, por conseguinte, podia separar-se dela, assumindo a sua
neutralidade, já no caso da etnia tal seria impossível. O Estado tinha,
desde logo, de decidir que língua usar nos tribunais, nas leis, nas escolas e
em todo o aparelho estatal. Mais valia acabar depressa com a ficção
(mentira?) liberal de que o Estado era etnicamente neutro e enfrentar as
consequências. Para o multiculturalismo liberal, essa quebra de
neutralidade trazia imensas objecções da parte das minorias étnicas cujas
línguas não fossem escolhidas. Não sendo neutral, o Estado estaria a
privilegiar e a promover a maioria étnica cuja língua seria oficial e a
comprometer a «viabilidade de longo prazo» das minorias, restando-lhes a
assimilação – que Kymlicka dizia não estar nas cartas das intenções dos
indivíduos em Estados como o americano ou canadiano –, a autonomia
regional ou, in extremis, a secessão.502 Num regime democrático ter voz é
um direito. Se eu falo a língua errada, a minha voz faz-se perceber? Se não
se faz perceber, então não é escutada. Nessas circunstâncias, serei cidadão
de corpo inteiro? Daqui até à multiplicação de línguas oficiais ia um
pequenino passo apenas. Noutras experiências históricas iliberais na
Europa tivemos a conclusão inversa. Pela repressão mais ou menos
dissimulada, uniformizar linguisticamente a nação.
O Estado nacional moderno faz este esforço para ser neutro e esbarra
em limites porventura insuperáveis. Mas a nação enquanto unidade
própria que se traduz politicamente no Estado nacional não é neutra. Ela é
em si mesma particularidade que, por definição, não pode ser neutra. É
idêntica a si mesma e manifesta-se segundo essa identidade, inclusive na
sua agência histórico-política. A nação moderna é a nação democrática, a
nação popular, que tem uma opinião. Esta opinião não corresponde
exactamente às opiniões fragmentadas dos grupos subnacionais e dos
indivíduos que a constituem. Trata-se de uma opinião geral, de uma
opinião pública. Até agora vimos como há uma relação complexa da
soberania com a opinião, ou com a dicção do que é verdadeiro. Aqui
conhecemos mais uma manifestação histórica dessa relação: a formação e
império da opinião pública, só possíveis em Estados nacionais e
populares.
14. A Nação também é uma pessoa
A nação fala, a nação age, a nação forma uma vontade, a nação fala.
Acrescentemos também que a nação é igualmente uma pessoa. De facto,
tal como assistimos a um processo de personificação do Estado, o mesmo
caminho se tornou irresistível para a consciência europeia a partir de finais
do século XVIII.
Em certa medida, a imagem da pessoa, e o processo de personificação,
ajustavam-se mais à nação do que ao Estado. A nação, na sua
particularidade empírica, como um ser que existia no tempo, com uma
história e uma memória, ficou quase imediatamente associada na
consciência europeia a um organismo. Em contrapartida, o Estado era,
como vimos, uma pessoa artificial, assimilável mais a uma máquina na
sua estrutura do que a um organismo que conheceria uma evolução e
transformação no tempo. As instituições racionais de direito que sediavam
as faculdades políticas do Estado, como a vontade/soberania contrastavam
assim com as partes envolventes da nação que se juntavam organicamente
umas às outras formando uma pessoa com identidade própria,
irredutivelmente diferenciada de todas as outras pessoas. A soberania
nacional era a conjugação da soberania, e da ideia de Estado que a noção
de soberania moderna incorporava, com a nação – a conjugação de duas
personificações muito distintas. A tensão estava lá e era patente. A
unidade orgânica, de um lado. A unificação pelo direito, do outro. Uma
conjugação difícil que variando com as experiências históricas, e com a
conceitualização que em cada momento foi providenciada, podia ora
conjugar com ênfase na nação, ora conjugar com ênfase na soberania.
Quanto mais o papel identitário, etnológico, nacional ganhava
preponderância na formação do Estado sobre a soberania mais dependente
da imagem orgânica ficaria esse Estado. E vice-versa.
Diferentemente do povo que o Estado soberano podia invocar, a nação
era uma pessoa com um passado e uma memória. O povo enquanto
conceito parecia existir apenas no presente em que formava a sua vontade
soberana, ou que emergia nas postulações de que o direito público do
Estado precisava para dar coerência à sua ordem jurídica. Aliás, essa era
uma razão para a ascendência dos soberanistas-nacionalistas relativamente
aos soberanistas-populistas. Se, como os soberanistas-populistas insistiam,
o momento soberano era o momento constituinte em que a vontade do
povo era formada e proclamada, como se podia esperar que falasse uma
pessoa que existia no presente apenas? Como se podia esperar que ela
soubesse sequer o que dizer? Que ela tivesse uma vontade historicamente
coerente? Só a pessoa da nação poderia formar uma vontade que
articulasse o seu interesse, por sua vez formado por um devir próprio de
quem existe no tempo. Só ela teria uma voz para falar. Só ela teria uma
língua formada ao longo de séculos para fazer ouvir a sua voz. O
soberanismo-nacionalismo destacava o lado da continuidade histórica por
cima, ou por baixo, das mudanças políticas, restringindo a autonomia do
político e tornando-o subordinado à vida orgânica da nação, o verdadeiro
substrato da comunidade. Era, num certo sentido, o lado conservador desta
separação. O soberanismo-populismo dava prioridade à autonomia do
político e, com ela, ao significado efectivo das mudanças políticas, por
vezes revolucionárias.
Aqui chegamos ao ponto porventura mais profundo e mais
profundamente retórico da noção de soberania. Só pode ser propriamente
desvelado quando a soberania se encontra com a nação e com a sua
agência histórico-política de continuidade temporal. É nos termos
delineados no encontro da soberania com a nação, e na sua agência
histórico-política da continuidade temporal, que a soberania aparece como
a expressão de uma comunidade política enquanto projecto. Nessa
comunidade, a vida colectiva e os seus conteúdos de toda a ordem, bem
como as práticas e instituições que os sustentam, estão em permanente
criação, reconstrução, sujeitos à crítica, à desilusão e à esperança. Neste
sentido, o pós-soberanismo é a negação dessa vontade de ser uma parte de
algo que se move por si mesmo rumo ao futuro – a vontade de sermos
actores de uma história que é nossa e que simultaneamente nos transcende.
15. Poder constituinte novo e Nação velha
Tornando-se impossível ao conceito de nação representar uma
abstracção desligada da história, a nação passou a comportar toda esta
carga histórica e «cultural», como uma pessoa velha e experiente que já
anda pela vida há muito tempo. O poder constituinte que lhe estava nas
mãos já não seria exercido num vácuo histórico e «cultural» exprimindo
uma vontade pura, como os seus primeiros proponentes, desde logo
Sieyès, tinham sugerido. Se era para nacionalizar a soberania havia que
arcar com as consequências. Foram os conservadores que as enfiaram pela
goela abaixo dos revolucionários. Homens como Burke e De Maistre
encarregaram-se da tarefa, embora seguindo caminhos diferentes. O
primeiro foi o pai fundador do conservadorismo liberal moderno, o
segundo, o príncipe maior do conservadorismo reaccionário moderno.
Mas ambos insistiram neste aspecto.
Em primeiro lugar, a nação não era «homogénea», nem devia ser sujeita
a nenhum trabalho político de homogeneização, obviamente impossível
sem doses intoleráveis de violência e sem desequilibrar o tecido social.
Devia aceitar-se, contra a ideologia democrática revolucionária, que a
nação continha interesses e elementos diferentes, e opostos,
institucionalizados na estrutura política e social e que deviam ser
acomodados pelas soluções que o tempo e a tradição foram trazendo.
Monarca, nobres, clero, comuns, cidades, regiões: todos faziam parte da
nação e ninguém devia ser sujeito ao trabalho de terraplanagem
revolucionária.
Em segundo lugar, a própria ideia de atribuir uma Constituição ex
nihilo, segundo uma presuntiva vontade soberana constituinte, era uma
loucura que peregrinava ao arrepio das mais elementares realidades
políticas. O momento vazio em que os teóricos situavam o exercício ex
nihilo do poder constituinte era, para Burke ou para De Maistre, um
espaço de horror mais do que provável, dada a desproporção entre a tarefa
e a aptidão dos homens para realizá-la. Fossem quem fossem, nunca
passariam de uma «maioria fictícia». O mero postulado do poder
constituinte era sintoma da mais perigosa presunção ou vaidade política.
Burke contrapunha o exemplo da Constituição britânica ou, mais
rigorosamente, contrapunha o processo histórico, e a correspondente
acomodação política, de emergência, desenvolvimento e aperfeiçoamento
da Constituição britânica, ao fiat! presunçoso dos revolucionários
franceses. Embora o mesmo se aplicasse aos revolucionários americanos.
Mas o erro não era apenas de ordem prática. Era também de ordem teórica
e podia resumir-se assim: a Constituição é um acto, ou um conjunto de
actos, do governo constituído, de uma autoridade estabelecida; nunca é
algo que precede o governo constituído e que o institui por obra e graça do
povo criador. A sequência suposta na teoria do poder constituinte é falsa
do ponto de vista histórico e filosófico. Neste contexto, condenava-se
irremediavelmente a tese da soberania nacional. Sobretudo, era necessário
ir construindo o edifício constitucional, de acordo com os tempos e as suas
exigências provisórias, dando-lhes resposta, com os «materiais»
disponíveis fornecidos pelas circunstâncias concretas de cada tempo e
lugar, ao invés de querer estalar os dedos e levantar uma casa cujas
paredes eram feitas de abstracções teóricas. A boa Constituição era a que
se ajustava à nação na sua heterogeneidade e particularidade. Não a que
era concebida a priori a que depois a nação teria de se ajustar,
modificando-se. Dizia o historiador inglês do século XIX, Thomas
Macaulay, um burkeano integral, que a chamada «Revolução Gloriosa» de
1688 em Inglaterra conduzira à mudança mais «completa» da História – a
supremacia do Parlamento – na «constituição real de um império» que
não fora igualmente acompanhada por uma alteração correspondente na
Constituição «teórica». Pelo menos desde a ascensão de César Augusto ao
poder.503 A própria Constituição, incluindo os seus conteúdos concretos,
devia ser vista como uma herança transmitida através dos séculos, que
podia ser aperfeiçoada e reformada, mas teria de ser transmitida para a
posteridade com as aquisições garantidas do passado. Ou pelo menos
essas aquisições garantidas do passado não podiam ser reformadas sem
uma consideração séria do processo histórico que as consumou, dos
princípios em que assentavam e dos laços afectivos que, entretanto, se
tinham formado. A Constituição devia abranger, respeitar e proteger os
elementos e objectos da devoção da nação, e que conferiam sentido à
existência comum de cada uma das suas partes na sua diversidade. Estes
elementos e objectos não estavam à disposição do poder constituinte para
uma eventual aniquilação ou violentação.504
Assim se deslegitimava tanto o projecto de abolir Constituições
transmitidas ao longo dos séculos e portadoras de bens políticos
indesmentíveis, como a liberdade, a felicidade pública, a ligação
sentimental a uma ordem política particular, como se deslegitimava a
presunção da teoria do poder constituinte. Na síntese de De Maistre, o
facto fundamental era o de que existia uma «Constituição natural» que era
sempre anterior à Constituição escrita.505 A criação, numa longuíssima
sequência de actos, escolhas, reformas, acomodações, compromissos,
estava na primeira, que ultrapassava as capacidades de um ser humano, ou
até de um conjunto de seres humanos, e não na segunda, que ou se
limitava a ser um decalque da primeira, ou não duraria. Uma Constituição
escrita teria de ser, apenas e só, a tradução jurídica da «Constituição
natural», elaborada por séculos e séculos pela nação viva. Essa devia ser a
sua única ambição.
Havia, realmente, uma luta pela supremacia do sentido do
constitucionalismo moderno. A acusação conservadora naquele final de
século XVIII era a de que um povo não podia dar a si mesmo uma
constituição durável. Tal teria a mesma consistência da construção da torre
de Babel. O projecto de se constituir uma nação a priori era demencial.
Acertar na adequação de uma Constituição às circunstâncias históricas e
anímicas de um povo requeria dotes de perspicácia e sabedoria
inacessíveis à mera condição de humanidade. Esse acerto só seria possível
pelo fluir da História e da tradição – pela condução divina do conjunto das
coisas. «No sentido filosófico, uma constituição não é senão, portanto, o
modo de existência político atribuído a cada nação por uma potência
acima dela; e, num sentido inferior, uma Constituição não é senão o
conjunto de leis mais ou menos numerosas que declaram esse modo de
existência.»506 Podemos perguntar inocentemente se o «povo» que atribui
uma Constituição a si mesmo goza de uma posição de superioridade sobre
si mesmo. Se aquele que confere a Constituição é uma «potência acima»
do povo que a recebe e a ela fica vinculado. Ou, como De Maistre,
devemos concluir que esta doutrina confunde tudo o que há de mais
elementar com um propósito ideológico ingénuo e perigoso?
Perante os fracassos notórios dos primeiros esforços de
constitucionalismo na Revolução Francesa, foi da América que veio a
demonstração decisiva. A que daria confiança e certeza aos que viram na
soberania popular ou nacional o único caminho do constitucionalismo
moderno. Se bem que se podiam conceder bons argumentos a Burke ou a
De Maistre, todos juntos não foram tidos por suficientes para os
protagonistas do constitucionalismo nas décadas que se seguiram. Não
havia alternativa satisfatória a se fazer uma Constituição.
16. Revisão da matéria dada
A realidade totalizante do poder constituinte não pode ser evacuada para
o poder de revisão, previsto em todas as constituições escritas, na medida
em que abrange a situação do mais pleno vazio político e legal – o do
colapso hobbesiano do Estado, e a sua necessária substituição, ou o
momento revolucionário sempre portador de uma «nova» legalidade. A
realidade concreta cortante destes dois momentos desmente por si mesma
a alternativa de que o poder constituinte pode servir apenas como um
pressuposto meramente postulado do poder de revisão do texto
constitucional. Sem prejuízo de outras considerações ulteriores, é
necessário adiantar já que é uma ilusão querer confundir por inteiro o
poder constituinte soberano com o exercício constitucionalmente previsto
da revisão constitucional. Desde logo, a revisão constitucional, que não
deslize para a substituição de uma constituição por outra, não engendra
uma modificação essencial da pessoa do Estado, nem interrompe a sua
continuidade. Mas, como em todos os aspectos deste grande problema, as
coisas não se decidem assim tão facilmente.
Thomas Jefferson propôs que, uma vez verificadas determinadas
votações nos órgãos constituídos, a palavra devia ser dada ao povo para
reformar a Constituição (da Virgínia), ou para julgar a concordância
material dos actos dos poderes com o seu texto, e tão frequentemente
quanto fosse necessário. Para Jefferson, esse era um corolário evidente da
doutrina da soberania popular. A proposta horrorizou o seu fiel amigo
James Madison, que registou a sua reprovação no volume mais famoso e
autoritativo da teoria política e constitucional americana, os Federalist
Papers. A preocupação com a estabilidade levava a melhor sobre as
interpretações jeffersonianas da soberania popular e dos seus putativos
corolários.507
Admitindo como válidas as preocupações de Madison, o que dizer da
relação entre a soberania do povo e a faculdade de «reforma» da
Constituição? Antes de mais nada, há sempre limites implícitos ou
explícitos da revisão constitucional e, no caso extremo que tal problema se
coloque, é preciso haver um árbitro que decida o que é legalmente aceite
como revisão e o que não é. Embora normalmente inscritas no texto
constitucional, as limitações resultam mais fundamentalmente de uma
racionalidade prática-jurídica universal que determina certos princípios de
que depende a própria ordem constitucional. Desde logo, o princípio da
legalidade. A estes princípios acrescem escolhas políticas históricas tidas
por irrevogáveis em sede de poder constituinte e cujo conteúdo pode
variar imensamente. A sensatez no momento fundacional que impeça
preferências paroquiais no tempo e no conteúdo de migrarem para o
campo do que está vedado à revisão constitucional poupam os povos a
muitos problemas evitáveis. Nem sempre acontece.
Além disso, normalmente constitui requisito para revisões o serem
aprovadas por supermaiorias e segundo procedimentos vários, em
contraste com a linearidade da aprovação de uma Constituição por maioria
simples numa assembleia ou por referendo popular. Mas em fase alguma o
poder constituinte é delegado ou instanciado por uma assembleia que
produza alterações ao texto constitucional. Na doutrina da soberania
popular, o poder constituinte está sempre e em quaisquer circunstâncias
acima da constituição por ele criada e a fortiori de todos os dispositivos e
normas dessa Constituição.
No entanto, muitos poderão razoavelmente dizer que a revisão da
Constituição revela como o povo constituinte postulado pelo soberanismo
democrático é, ou tem de ser, uma ficção. Desde logo, porque a
Constituição produzida pelo povo constituinte quer para o futuro, e para
um futuro indeterminado, sem limite definido. Ora, empiricamente
falando, o povo que quer não é um conjunto homogéneo de pessoas, mas a
soma de «gerações» (etárias) diferentes. Quando uma Constituição é
preparada e aprovada pelo povo constituinte, o povo habitante e os seus
representantes pertencem a grupos etários diferentes. Mais, o povo
habitante e vinculado à Constituição será empiricamente constituído por
pessoas que nem sequer eram vivas quando o povo constituinte a que
pertencem quis. O povo constituinte que quis teve de ponderar e
voluntariamente vincular-se às gerações futuras, mas desde cedo
concedeu-se que as incessantes mudanças do tempo, e o facto de haver
bens por realizar (e males a evitar) no futuro, desconhecidos no presente,
obrigavam a uma, pelo menos relativa, desvinculação das gerações futuras
relativamente às passadas. Burke imortalizou a formulação do problema
com a sua característica força retórica. A sociedade no tempo tornava-se
uma «parceria» entre «os vivos, os mortos e os que ainda estão por
nascer».508
Thomas Paine não gostou. Um autor excepcionalmente bem-sucedido
nas vendas dos seus livros, Paine fora revolucionário contra os ingleses na
América e activo na consolidação da república nos anos seguintes. Até
que a Revolução Francesa chegou e lá partiu ele para Paris. Tornou-se
cidadão honorário francês e deputado na Convenção que votaria a
condenação de Luís XVI com o seu voto favorável. Mas discordaria da
punição com a morte. Perante a crítica integral da Revolução em França
pela pena de Burke, Paine, que já escrevera o mais lido manifesto de
defesa da Revolução republicana na América, decidiu-se a ripostar, quase
ponto por ponto, a afronta de Burke em nome dos Direitos do Homem.
Quando chegou à dita formulação de Burke segundo a qual a sociedade
era um entrelaçamento de vínculos entre gerações, Paine indignou-se.
Segundo ele, cada geração dos vivos «é, e tem de ser, competente em
todos os propósitos que as suas circunstâncias exijam». Eram os vivos, e
não os mortos, nem, presume-se, os que estão por nascer, quem devia
dispor do arranjo político e ver os seus desejos, anseios e projectos
correspondidos. Os mortos estavam mortos e não seria do fundo da
sepultura que teriam algo a dizer sobre como os vivos se deviam governar.
Precisamente porque o mundo estava em incessante mudança é que cabia
exclusivamente aos vivos decidir politicamente. Os mortos julgaram ao
seu modo em circunstâncias passadas. Presume-se, porque Paine não o
diz, que os que estivessem por nascer teriam a sua oportunidade de decidir
o que entendessem. Mas, no momento da decisão que é sempre o
momento presente, imperavam os vivos e mais ninguém senão eles.509
Note-se que este protesto democrático contra o mando dos mortos
punha de certo modo em causa a identidade histórica do povo ou da nação.
Essa continuidade, a ser política e constitucionalmente relevante,
pressupunha que de alguma maneira os mortos viviam ainda na geração
dos vivos. Nem sempre estes dois aspectos puderam ser equilibrados
convenientemente no apelo à soberania do povo histórico ou da nação
histórica como agentes constituintes.
Os contornos resumidos deste debate são suficientes para fazer
compreender o pendor conservador na insistência para os limites à
disposição que uma geração podia fazer do arranjo político, ou da
Constituição, e a negação desses limites pelo pendor revolucionário que
proclamava o poder constituinte absoluto. E nem só na sua vocação
criadora ao fazer uma Constituição por fiat, como na revisão
constitucional do que lhe fora legado. Rousseau dissera antes de Paine,
antes de Jefferson, que o povo soberano não devia sequer estar tacitamente
vinculado ao compromisso passado com o «contrato social», devendo a
cada sessão legislativa renová-lo expressamente, se essa fosse a sua
vontade naquele dia.510 Não por acaso, a Constituição jacobina de 1793, a
tal que foi suspensa assim que entrou em vigor, admitia a possibilidade de
revisão constitucional, que a Constituição federal americana igualmente
previa segundo um processo também ele federal. Mas admitia ainda aquilo
que a Constituição americana não admitia: a possibilidade de «mudar» a
Constituição. Por outras palavras, de substituí-la por uma outra
diferente.511
Contudo, porventura para felicidade dos povos, a tradição
constitucionalista iniciada em Filadélfia em 1787 acabou por acolher na
sua teoria e na sua prática os interesses das várias gerações envolvidas na
«parceria» burkeana, embora, como não poderia deixar de ser,
favorecendo de entre todas elas a dos vivos. O constitucionalismo
moderno tem uma alma liberal, mas reveste-se de um corpo democrático.
A existência de limites à revisão constitucional tem afinidades com o
espírito burkeano. A possibilidade de revê-la procura obedecer em parte à
vontade de Paine.
Ambas associadas, conferem a quem tem a seu cargo o controlo
jurisdicional da constitucionalidade das leis uma tripla obrigação. A
obrigação de, primeiro, formar uma ideia clara dos princípios
fundamentais articulados no momento constituinte sem os quais a
Constituição não subsiste coerentemente. E não qualquer Constituição.
Mas esta Constituição, deste país aqui e agora, com uma determinada
história e que adoptou a lei constitucional para prosseguir um projecto
histórico-político concreto. Segundo, de integrar, na interpretação das
normas constitucionais, a adaptação dos valores constitucionais-
democráticos e dos critérios de razoabilidade anteriores ao texto
constitucional, mas que lhe subjazem, à experiência concreta mutável da
vida colectiva, aos bens comuns e aos projectos geracionais da
comunidade política com o futuro. E, terceiro, deixar ao exercício dos
poderes políticos, e ao debate público aberto numa sociedade democrática,
a resolução provisória e temporalmente flutuante de divergências entre
vários bens concorrenciais. O que é uma outra maneira de dizer que não se
deve ceder à tentação de dar sempre ao poder judicial a última palavra,
isto é, de querer que os juízes assumam a responsabilidade de fechar e de
blindar uma versão entre outras da resolução desses conflitos e
divergências.
17. O povo é soberano quando fala num referendo?
Em rigor, o referendo, tal como a palavra indica, é um instituto político
para obter a confirmação, ou a rejeição, de um acto legislativo de outro
órgão, presumivelmente do parlamento. O mesmo se aplica aos tratados
internacionais – sim ou não ao que foi negociado pelo executivo, e,
porventura, ao que foi aprovado pelo legislativo.
O referendo ocupa o terreno quando a distância entre representante e
representado se torna intolerável ou é tida por carente de um
complemento. É a identidade do povo consigo mesmo, o contrário da
distância na alteridade própria da relação de representação, que aparece
como complemento. Um paradoxo que, no entanto, espelha na perfeição a
justificação da coexistência na Constituição da soberania popular. No
referendo, o povo diz que quer estar presente. Acontece frequentemente as
taxas de participação em referendos serem muito baixas, o que nos leva a
pensar que é o representante que, representando o povo ausente, se assusta
com o seu isolamento – como quando os representantes querem poupar-se
a eles mesmos o fardo da decisão –, ou procura temporariamente, num só
instante, eclipsar-se na ipseidade do povo e aí reconstruir a distância que
nunca deixou de desejar e valorizar – como quando um governo quer ver
reforçada a sua autoridade política. Depois do referendo, o povo regressa à
sua ausência e o representante recupera a plenitude da sua função. Mas o
que dizer da nação? A nação chega alguma vez a estar ausente, quando é
invocada a propósito dos vestígios constantes da sua presença? Por
exemplo, a língua da nação através da qual o representante-soberano fala
não pode deixar de estar presente. É, por isso, um elemento da nação,
inseparável dela que garante a presença do representante – aquele que traz
o povo à presença na sua ausência. Logo, a nação, ao contrário do povo,
não pode remeter-se inteiramente à ausência que abre espaço à relação de
representação política. A nação, nalguma das suas manifestações, está
sempre já presente.
A introdução de meios de participação popular directa na legislação do
Estado – o referendo tal como normalmente é entendido – teve desde a sua
fundação um propósito democrático e um propósito liberal. O propósito
democrático consistia na superação da mediação da representação política.
A formação da lei ficava assim directamente nas mãos de cada um,
quebrando ou atenuando a relação de desigualdade entre representante e
representado. Democrático também porque procurava resolver a
divergência de vontades que estaria na formação da lei democrática. Por
outras palavras, o cidadão democrático só reconhecia legitimidade, e só
concedia obediência, à lei que o próprio tinha feito, ou concorrido com os
seus concidadãos para a fazer. A representação política jurava fazer a
mesma coisa, mas cedo se questionou se uma coisa não seria a vontade do
cidadão e outra, muitas vezes bem diferente, a do seu representante. A
representação assumia uma divisão do trabalho proibitiva. De um lado, os
representantes, muitas vezes eleitos por universos muito restritos e em
múltiplas assembleias de eleição indirecta, como a única voz da nação e os
exclusivos articuladores da vontade geral. Do outro, o povo impedido de
enunciar por ele mesmo a vontade geral que deveria corresponder aos seus
melhores interesses. Rousseau falou por todos quando declarou
peremptoriamente que:
A vontade não se representa: ou é a mesma ou é a outra; não há meio-
termo. Os deputados do povo não são, portanto, nem podem ser seus
representantes; não são senão seus comissários. Toda a lei que o povo
não tenha ratificado pessoalmente é nula; não é uma lei.512
A ideia de soberania democrática em Rousseau não residia no referendo
até porque não era mecanismo que fosse discutido à época. Rousseau
ainda estava absorvido pela experiência histórica das repúblicas pequenas,
as antigas e as da Europa moderna, como as que a sua imaginação ou a sua
verve polémica construía nas das cidades suíças. No plano dos princípios,
a soberania da vontade geral requeria a presença física de todos os
cidadãos na assembleia. Quando era preciso aplicar os princípios à
realidade complexa da Europa do século XVIII, como a da Polónia e a da
Córsega, a representação de mandato imperativo era aceite com garantias.
Apesar das solenes proclamações de Sieyès nas sessões da Assembleia
Constituinte logo em 1789 em que ele anunciava que «o povo só pode
falar e agir através dos seus representantes»,513 as tensões resultantes da
introdução da representação política no Estado, e desta crítica republicana
da representação, efervesceriam durante a Revolução Francesa e
patrocinariam carnificinas horríveis. Depois da Revolução as tensões
continuariam.
Mas o mecanismo do referendo também teve uma defesa liberal. Tal
como as monarquias absolutas foram submetendo o poder dos reis a
restrições e contrapesos sucessivos, também o referendo podia ser pensado
como «um elemento de moderação do poder, tido como excessivo, do
Parlamento».514 O recurso ao referendo no Reino Unido para a decisão de
abandonar a União Europeia pode ser visto como tendo resultado de uma
lógica simultaneamente democrática e liberal. Liberal, na medida em que
o Parlamento britânico podia, e pode, segundo a doutrina antiga da
«soberania do Parlamento» tomar a medida que bem entendesse com base
na maioria partidária conjuntural. No dizer do grande jurista vitoriano, A.
V. Dicey, o Reino Unido seria um «parlamentarismo absoluto», uma
«absoluta omnipotência».515 E, assim, o referendo aparecia como uma
instituição que quebraria o monopólio da formulação da vontade geral.
Porém, este simples raciocínio teria de enfrentar a seguinte dificuldade. O
Parlamento britânico pode alterar leis constitucionais e elementos da
Constituição não-escrita, mas poderá alterar a Constituição como um todo,
convertendo o Reino Unido num Estado fascista, ou num califado
islâmico ou num regime comunista como o da Coreia do Norte? Houve
quem com autoridade dissesse, antes da adesão à então CEE, que
legalmente tudo era possível ao Parlamento.516 Mas não podendo, é ainda
soberano? Mais, se a União Europeia prosseguir o seu caminho de
centralização do poder nas autoridades «comunitárias», esvaziando as
competências dos Estados-membros, não haverá um ponto em que a
activação do artigo 50.º dos tratados europeus, isto é, a secessão da União,
significa desde logo uma alteração na Constituição, e não apenas uma
consequência externa de uma decisão política? Assim sendo, só o poder
constituinte de cada um dos povos europeus poderá agir nesse sentido, e
não o poder constituído em vigor. A menos que essa alteração seja de
monta a caber na revisão constitucional. Por último, se emergir
politicamente um «povo europeu» em resultado do processo histórico de
centralização do poder nas instituições europeias, restará ainda uma sede
do poder constituinte nas unidades nacionais autónomas que fazem parte
da União Europeia – ou que em tempos foram as partes autónomas da
União Europeia? Esta não é uma dificuldade de pequena monta e
trataremos dela e doutras que lhe estão anexas no capítulo seguinte.
Seja como for, o referendo empresta-se muito mais à lógica imanente da
soberania popular, ou da nação. A própria defesa liberal do referendo
acaba por deslizar para a sua defesa em termos democráticos. Desliza-se
do «parlamento soberano» para o povo efectivamente «soberano», pois
está «armado do meio jurídico de estatuir em última instância» fazendo
com que a «soberania e a vontade geral se reencontrem assim
identificadas uma com a outra e tenham, uma como a outra, a sua sede no
povo».517 Nunca era demais recordar o artigo 6.º da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, que não era mais do que uma
recapitulação sintética da filosofia do Direito de Rousseau: «A lei é a
expressão da vontade geral.» Se assim era, então uma tarefa política
crucial estava na garantia da formação da vontade geral nas decisões
colectivas. Havia maior ou menos probabilidade de apurarmos a vontade
geral quando reuníamos os votos expressos de todos os cidadãos (activos),
ou quando confiávamos a tarefa aos representantes, ou, pior ainda e um
verdadeiro escândalo para as almas republicanas mais puras, a
confiávamos aos partidos? A tal tensão inerente ao governo representativo
que acabámos de ver nunca desaparece.
Mas uma coisa era o referendo como instrumento de participação
directa do povo eleitor na feitura das leis, em complemento aos poderes
constituídos com essas atribuições e com carácter representativo. Outra
coisa era resolver o problema técnico de atribuir uma sede institucional ao
poder constituinte onde este se pudesse exprimir. Se, como afirmava Carré
de Malberg, «o sistema do referendo legislativo implica, a fortiori, o do
referendo constituinte»,518 o contrário não é, a fortiori, verdade.
Historicamente, houve soluções que separaram os órgãos constituídos
por um poder constituinte anterior, ou por uma corrupção deste, de
instrumentos criados com a exclusiva função de fazer falar o poder
constituinte. É o caso das convenções constituintes, ou, como tivemos em
Portugal com as eleições de 25 de Abril de 1975, das assembleias
constituintes. Esta era uma herança não exacta da inovação americana
aquando do processo de ratificação do projecto de constituição saído de
Filadélfia, em 1787. Durante o ano seguinte ao Verão de 1787, e depois
disso, os vários estados a federar convocaram convenções constitucionais,
formadas por representantes eleitos pelo povo com a finalidade de debater
e aprovar, ou rejeitar, o projecto constitucional. Algumas das convenções
estaduais, juntamente com a ratificação, propuseram alterações ao texto
constitucional, que seriam reintroduzidas aquando da reunião da primeira
Câmara dos Representantes. Vimos também que no caso da Constituição
do Estado de Massachusetts, anterior à Constituição federal dos EUA,
houve lugar para um processo referendário, com uma primeira reprovação
do projecto constitucional, só sendo ratificada a Constituição num
segundo referendo. O mesmo aconteceu no New Hampshire, onde durante
cinco anos, entre 1778 e 1783, houve uma sequência de referendos em
cada concelho, só terminando no terceiro, já que os dois primeiros tinham
suscitado nos famosos town meetings um intenso debate e dezenas de
propostas de alterações do projecto constitucional. De resto, Condorcet, no
projecto de Constituição dos girondinos apresentado em Fevereiro de
1793, alegando uma razão soberanista, reivindicou uma ratificação por
referendo, coisa que viria a ocorrer com a Constituição jacobina que a
substituiu, assim como com a Constituição thermidoriana. E, convém
recordar, com a autocracia de Napoleão Bonaparte, a começar pela
Constituição do ano VIII, não sem uma enorme dose de cinismo e de
manipulação.
Houve ainda a solução de usar órgãos constituídos para, com os seus
titulares, fazer e ratificar uma Constituição. Ilustrando este último caso,
Sieyès durante uns breves momentos pareceu lamentar que a futura
Constituição revolucionária de 1791 tivesse de partir de um órgão
«constituído», os Estados-Gerais. No plano dos princípios, para Sieyès era
óbvio que os representantes que exerceriam o poder constituinte soberano
não poderiam exercer nenhum poder constituído. Pior, os deputados da
Assembleia Nacional tinham sido escolhidos para os Estados-Gerais,
ainda segundo os métodos e critérios da monarquia corrupta e opressiva.
Não bastaria, pois, a mudança de nome para Assembleia Nacional para
resolver as contradições que ele próprio expôs. Infelizmente, as
«circunstâncias» de «perigo» da Revolução, em particular as ameaças dos
seus inimigos, justificava Sieyès, não permitiram fazer o que se deveria ter
feito: convocar uma «Convenção Nacional» com o fito de discutir, redigir
e ratificar uma nova Constituição. Aparentemente, havia o risco grave de
se dividir a Nação em dois partidos, o dos contentes e o dos
«descontentes» com a nova situação. Não se pôde esperar pela concreção
da metafísica união da nação e que revelasse espontaneamente a
«verdadeira vontade nacional». O chefe dos girondinos, Brissot, apesar de
politicamente próximo de Sieyès, ripostaria com a reposição da dualidade
entre poder constituinte e poder constituído, a qual dualidade era, como
sabemos, da autoria do agora visado Sieyès, e que obrigava a uma
separação das esferas funcionais. Um órgão exerceria o poder constituinte
e outros órgãos diferentes, com titulares diferentes, exerceriam o poder
constituído.519
A conclusão genérica de Carré de Malberg faria escola na Academia e
fora dela, em França e nos seus arredores. Em 1979, o líder fundador do
Partido Social Democrata em Portugal, Francisco Sá Carneiro, que desde
cedo procurou romper o bloqueio militar e o bloqueio socialista-
económico que caracterizavam o regime político imediatamente saído do
PREC, dizia num dos seus discursos que «não compreendemos que uma
democracia assente na soberania popular recuse ao povo a última
palavra». Falando no Funchal, nas vésperas da dissolução do parlamento
pelo Presidente da República Ramalho Eanes, e que indicaria o caminho
das correspondentes eleições vitoriosas da AD no final desse ano, Sá
Carneiro concluía: «Quem reconhece a soberania popular, tem de
reconhecer o referendo.»520 Em França, toda uma tradição dita
bonapartista que chegou até De Gaulle, e perdurou depois dele, foi, em
certos períodos, vista como uma arma antidemocrática da tirania cesarista.
E, noutros períodos, como autênticos momentos de redenção pela nação
soberana das instituições livres. Na Praça da República, a 4 de Setembro
de 1958, o general De Gaulle anunciava a sujeição de um projecto de
Constituição à decisão popular em referendo. Nesse discurso estavam lá
todas as referências obrigatórias: a «república», o regime da «soberania do
povo», a «nação» como «o único juiz» de uma matéria destas. O referendo
era uma «manifestação» soberana da «vontade nacional».521
Porém, o ponto de vista do constitucionalismo liberal, menos entusiasta
com afirmações soberanas incondicionais, nunca deixou de se fazer ouvir
com o seu alerta de que este uso do referendo correspondia à mais grave
cunha de «desagregação entre democracia e representação», fazendo
entrar inadvertidamente, talvez, a «democracia identitária», não sem com
isso atentarem contra os «princípios do Estado de direito».522
Poucos anos depois de a teoria do poder constituinte ter sido
formalizada por Sieyès, George Washington, o primeiro Presidente dos
EUA, o general triunfante das guerras da independência contra o império
britânico, o homem da dentadura de madeira, o magistrado que deixou o
precedente dos dois mandatos máximos na presidência que só Franklin
Roosevelt se atreveu a espezinhar, despedia-se do povo americano. Nesse
famoso discurso de despedida, Washington, que não era certamente um
teórico, articulou em termos muito directos em que consistia a nova
doutrina constitucional: «A base do nosso sistema político é o direito de o
povo fazer e alterar as suas constituições de governo.» Numa palavra, a
teoria do poder constituinte/soberano popular. E: «Mas a Constituição, até
que seja alterada por um acto explícito e autêntico de todo o povo, é
sagradamente obrigatória para todos.»523 Ou seja, Washington articulava a
soberania popular constituinte com a afirmação de um dever de obediência
do povo aos poderes constituídos pela soberania popular constituinte,
reflectindo uma tensão típica desta tese. Em primeiro lugar, no regime da
soberania popular a força obrigatória da lei vinha do facto de ela ser um
produto de todos os cidadãos, ou de um esforço colectivo de formação da
vontade em que todos participavam, ou tinham o direito de participar. Não
lhe era devida obediência por ter sido inspirada, por ser racional, nem
sequer por ser boa e justa, embora se defendesse que ela seria tudo isso
precisamente por ser produto da vontade da universalidade dos cidadãos.
Em segundo lugar, a tensão é típica porque o exercício da soberania
constituinte foi, neste período histórico, levado a cabo pela via
representativa nas «convenções constitucionais» convocadas. Como
vimos, houve convenções para propor uma Constituição, efeito que só
retrospectivamente dava sentido aos factos da «convenção de Filadélfia»
evidentemente ilegal. E foi ilegal, não por os seus notáveis membros não
terem sido eleitos, que não foram, mas porque a reunião fora convocada à
luz dos artigos da Confederação com o intuito de se propor uma reforma
destes, e jamais para redigir uma nova Constituição. E houve convenções
constitucionais convocadas por cada um dos estados independentes para
efeitos de ratificação ou rejeição da proposta constitucional provinda de
Filadélfia. Os revolucionários franceses rejeitaram este modelo de
ratificação em nome da unidade do Estado, ameaçado no imaginário
revolucionário de uma certa corrente pelo monstro da federação. Eleitas
pelo povo eleitor, eram constituídas por representantes desse povo que
decidiam pela ratificação ou pela rejeição da Constituição. Note-se que
cada um dos estados já possuía a sua própria assembleia legislativa (uni
ou bicameral, pouco importa) e considerou-se que uma assembleia
representativa separada era ainda assim necessária para levar a cabo a
discussão da proposta constitucional, a sua ratificação ou rejeição –
rejeição que, de resto, veio a suceder em dois estados.
A representação é sempre uma certa mediação do exercício da
soberania, e para um soberano nem sempre é claro por que o exercício da
sua soberania tem de ser mediado. De resto, a origem das tensões
inerentes à teoria e sobretudo à prática da representação política emergem
logo na obra de Hobbes, como vimos. Além disso, do exercício do poder
constituinte organizado formalmente ao acto de rebelião como expressão
desse mesmo poder constituinte não ia um enorme salto de imaginação
política. De resto, nem seria preciso ir até ao caso extremo da rebelião
constituinte. Na discussão sobre a ratificação da proposta constitucional
vinda de Filadélfia, uma cidade do Connecticut contestou o artigo 5.º
porque permitia a revisão da Constituição sem qualquer tipo de consulta
popular.524
Porque é que os órgãos legislativos estaduais convocaram convenções
especiais, e não se satisfizeram com deliberações e ratificações nos órgãos
legislativos, e democraticamente eleitos, que já tinham? A resposta é
simples. Pelas razões que temos visto subjacentes à ideia de soberania
popular e do seu filho, o poder constituinte. A autoridade dos órgãos
constituídos (pelas constituições estaduais) era qualitativamente inferior
para a tarefa de ratificação – ou rejeição – de uma nova Constituição
(federal). Esta conclusão genérica que seria tirada em muitas outras
latitudes, e por muitas escolas jurídicas com orientações diferentes da dos
fundadores americanos, seria também importante para lidar com as
diferenças entre a feitura da Constituição e a revisão da Constituição, ou,
mais correctamente, das normas individuais do todo da Constituição.
Mas a inferioridade da autoridade dos órgãos legislativos constituídos
trazia outra implicação que já se nos tornou familiar quando estudámos a
questão medieval da infalibilidade papal e as suas consequências para a
noção de soberania. Um parlamento num certo momento pode arrogar-se
da infalibilidade e vincular todos os deputados futuros, todas as maiorias
futuras, todas as vontades políticas futuras, à sua decisão, quando não
goza de autoridade superior aos parlamentos futuros? Um parlamento não
é infalível, no sentido que examinámos no contexto da discussão
eclesiológica. Mas e o poder constituinte? E a soberania constituinte? A
ideia de Constituição inviolável supõe a infalibilidade do poder
constituinte. Supõe a infalibilidade da soberania.
Esta infalibilidade devia, porém, ser interpretada em sentido estrito. A
soberania é também uma afirmação de protecção do ser concreto da
comunidade política. Esta é soberana na medida em que prossegue a
finalidade da sua preservação no futuro. Presume-se que não pode ser seu
desígnio soberano, sob que forma for, o auto-aniquilamento, a negação do
seu ser futuro. Em termos constitucionais, é possível ver a acção da
soberania na afirmação do poder constituinte através das controvérsias em
torno do âmbito permissível da revisão constitucional. Isto é, a
Constituição inclui, normalmente, o procedimento para se levar a cabo a
sua própria revisão: no tempo, na forma e na substância. A introdução de
limites materiais da revisão constitucional carece desta justificação e que
foi dada, como não poderia deixar de ser, pelos americanos que primeiro
fizeram a experiência do governo constitucional. Pura e simplesmente, a
Constituição federal americana, que no artigo 5.º prevê o procedimento
para levar a cabo a introdução de emendas constitucionais, não declara
ilimitado o poder de revisão constitucional. A possibilidade de revisão
estava lá para assegurar adaptabilidade e estabilidade ao texto
constitucional diante das indeterminações do tempo histórico. Mas, ao
mesmo tempo, a Constituição como um todo, por contraposição ao texto
constitucional, não podia ser revista, isto é, modificada ou posta em causa.
Esse era o pressuposto que enquadrava e limitava o poder de revisão
constitucional. Por exemplo, era explícito no artigo 5.º que nenhuma
revisão constitucional poderia alterar os dois votos que cada estado
possuía no Senado. E esta cláusula devia ser interpretada como uma mera
instanciação de algo mais amplo. O sistema político sustentado pela
Constituição – em particular, o seu carácter federal – não podia ser revisto.
Supunha-se, então, que a vontade pronunciada pelo poder constituinte
para a formação do governo em sentido amplo vinculava todas as gerações
futuras numa clara demonstração de infalibilidade.
Ao mesmo tempo, a doutrina do poder constituinte permite pôr a
soberania popular ou nacional a resolver o problema da infalibilidade que
vimos anteriormente, a saber, como conciliar a perpétua revogabilidade
dos actos soberanos com a sua reivindicação de infalibilidade ou de
inerrância? A resposta agora é dada docilmente. O soberano é infalível no
momento da sua expressão constituinte. Depois disso, os seus actos,
emanados dos poderes constituídos, não deixam de ser soberanos. São,
porém, absolutamente revogáveis. Dessa total inflexibilidade o soberano
não pode abdicar sem se destruir a si mesmo. Mas a soberania da nação
constituinte resolve os impasses da inerrância soberana, dando razão às
teses democráticas e proto-democráticas de que o povo na sua capacidade
colectiva não erra, ou de um modo mais sofisticado, a vontade geral da
comunidade política não erra, mas apenas num certo sentido desta
proposição. Não é que o conceito da inerrância da vontade geral, tal como
é articulado por Rousseau, negue a revogabilidade dos actos dessa vontade
geral. Longe disso, mas não precisamos de regressar a um assunto que
tentei abordar conclusivamente mais acima. Basta dizer que a
infalibilidade da soberania expressa-se na Constituição em sentido
próprio, o que constitui a matéria dogmática do regime insusceptível de
revisão. As decisões posteriores, as dos poderes constituídos regidos pela
Constituição, são decisões inferiores em estatuto, e, portanto, formam a
matéria não-dogmática do Estado soberano.
18. O Povo da Nação e a Nação do Povo (1)
Os contratualismos seiscentistas tinham ensinado que a soberania
popular não podia ser pura e simplesmente identificada com uma suposta
soberania dos indivíduos que materialmente constituíam o «povo». Uma
multidão indistinta de indivíduos jamais poderia ser soberana. O povo
formava-se enquanto agente político quando encontrava a sua unidade – e
quando agia segundo essa unidade. Antes de ela ser encontrada apenas
existia uma inorganicidade extrema e politicamente irrelevante. A questão
incidia, pois, nessa unidade – no seu conteúdo, nas suas condições de
formação e, porventura, no seu direccionamento. Duas grandes
possibilidades se abriam. Um princípio político, e talvez uma técnica
jurídico-política, que unificava indivíduos dispersos e os convertia num
povo. E um substrato nacional, cuja origem podia ser histórica, étnica,
religiosa, linguística, ou uma síntese de todos estes factores formando um
espírito nacional, sendo esse espírito a unidade da aglomeração dos
indivíduos num dado território.
Voltemos a De Maistre. A expressão soberania popular não fazia
sentido porque em larga medida exprimia uma redundância. Não era tanto
a tese de que a soberania nascia do consentimento popular. De Maistre
concedia que a vontade dos homens e o seu consentimento concorriam
para a formação da soberania, o que não excluía que Deus fosse, enquanto
criador de tudo, a sua causa primeira – e criador de um ser sociável feito
para viver em sociedade. A redundância, porém, advinha de outra
constatação. A saber, que a «palavra povo é um termo relativo que não
tem sentido separado da ideia de soberania: pois a ideia de povo desperta
a de uma agregação em torno de um centro comum e sem a soberania não
pode haver nem conjunto nem unidade política».525
Esta lição era importante e nem era exclusiva de De Maistre. Que lição
era essa? A soberania constituía um povo e uma sociedade. Dava-lhe a
coesão e a unidade através da lei comum e da edificação de uma sede
reconhecida de derradeira decisão. Toda a soberania era, neste sentido,
popular. O inverso também era verdade, não podendo haver soberania
sem um povo.
De Maistre não confundia a unidade do povo gerada pela soberania com
a unidade «nacional» de índole, diríamos hoje, cultural. As nações eram
caracterizadas por uma unidade própria, a sua «alma geral»,526 e que era
dada principalmente pela língua. E esse carácter nacional trazia consigo as
«diferentes modificações dos governos».527 Diferentes caracteres
nacionais, diferentes sistemas de leis e de instituições. Não existia uma
forma de governo particular que fosse a melhor para qualquer nação, nem
sequer para a mesma nação ao longo de todos os tempos. Se a
consequência era aceitar que o despotismo podia ser conveniente a uma
determinada nação num determinado momento da sua história, De Maistre
não se inibia de aceitá-la. A soberania era sempre suposta e incontornável,
mas o modo da soberania era variável conforme estes dados do carácter
nacional no tempo e no espaço.528
Mais, De Maistre negava que as criações políticas nas instituições, nas
práticas, nas leis, na localização da sede da soberania, fossem obra da
«massa do povo». Não só tal tese seria historicamente insustentável, como
o povo não respeitaria essas criações precisamente por terem sido obra
sua, ao invés do que a natureza, as conveniências estruturais e o tempo
tinham arrastado consigo.529
Mas o republicanismo que De Maistre abominava, quer o da Revolução
Francesa, quer o que transparecia de uma parte significativa da filosofia
política moderna, transformara o curso da história europeia fundindo na
acção histórica o povo unido pela soberania com a nação heróica e sofrida
da identidade colectiva. O patriotismo era o amor que tinha por objecto
precisamente essa fusão. Montesquieu e Rousseau tinham decidido o
destino do republicanismo até à chegada dos socialismos de meados do
século XIX. Ainda glosando a experiência da república «antiga», a de
Roma, a de Esparta, porventura a de Atenas, Montesquieu propôs, e
Rousseau imitou-o, que a virtude era o amor pela pátria e a consequente
devoção por ela até ao derradeiro sacrifício na sua defesa. A Revolução
actualizou a ideia e deu-lhe corpo num povo moderno. E foi
tremendamente bem-sucedida.
Além dos impasses lógicos e filosóficos que o conceito de soberania do
povo podia colocar no mealheiro dos seus críticos, é preciso perceber a
óbvia aversão que estes tinham ao espírito democrático, quer o que tinha
conduzido a experiência histórica do passado, quer o que inspirava os
acontecimentos do seu tempo. Desse modo, supunha-se um significado
equivalente entre soberania do povo e democracia. De resto, esse seria um
lugar-comum do republicanismo saído do início da era revolucionária na
Europa, da Guerra Civil inglesa dos meados do século XVII até à mãe de
todas as revoluções, a Francesa. Um dos vários exemplos que poderiam
ser dados é o de James Harrington, um dos mais importantes teorizadores
da época da grande convulsão inglesa. Já depois de Cromwell dissolver o
chamado Rump Parliament, aquele que sobrara de sucessivas purgas dos
seus membros, Harrington decidiu intervir na interpretação teórica
daqueles anos e acontecimentos tão profundos, perturbadores e
emancipadores. Crítico de Hobbes, seguiu o caminho aberto por ele num
aspecto decisivo. Para Harrington era sempre preciso discernir como
estava organizado o poder soberano. Só assim seria possível classificar os
regimes políticos. O critério básico era muito simples. Se a «última
instância» estivesse «por inteiro e exclusivamente» no príncipe, então
tínhamos uma monarquia «absoluta»; se a «última instância» não estivesse
«por inteiro e exclusivamente» no príncipe, tínhamos uma monarquia
«regulada». Se estivesse «por inteiro e exclusivamente no povo», então o
povo estaria «em liberdade» e a «forma de governo» seria uma
«democracia». Mas Harrington, contrariamente a Hobbes, inimigo feroz
das concepções do governo misto, queria dispor da soberania de um modo
«equilibrado». Se para Hobbes, a afeição pela doutrina do governo misto
conduzira ao colapso da autoridade política em Inglaterra, já para
Harrington não poderia haver uma «soberania absoluta» sem governo
misto.530
Tocqueville, porém, abriu uma distinção que se afigura muito útil.
Nobre francês da Normandia, testemunha privilegiada da história política
da primeira metade do século XIX e grande intérprete da Revolução e das
suas consequências, Tocqueville, com a publicação dos dois volumes Da
Democracia na América escreveu aquele que já foi descrito como o
melhor livro sobre a democracia e o melhor livro sobre a América.
Inspirador no século XX de uma «nova espécie» de liberalismo, ele que se
apresentava como uma «nova espécie de liberal», Tocqueville foi dos
primeiros a declarar a vitória da «revolução democrática» na História da
Humanidade. Talvez fosse isso que fizesse com que, pelo menos era essa a
sua queixa, o «confund[issem] com a maioria dos democratas dos nossos
dias».531 Porém, uma faceta dessa vitória não estaria garantida. É que a
democracia padecia de uma espécie de síndrome de Doctor Jekyll and Mr.
Hyde, podendo ser benévola, racional e madura, ou então violenta,
primária e sinistra. Para ele, a democracia era um estado da sociedade,
uma condição social de igualdade, ou a «igualdade de condições». A
soberania do povo era uma forma estritamente política, ou um modo de
organizar um regime político. Não eram, pois, simples sinónimos, mas era
evidente que caminhavam juntas na experiência histórica. Até podia
acontecer que se instalasse o «dogma» da soberania popular como
princípio de organização do Estado. Se esta constituição estivesse
desacompanhada da democracia enquanto «igualdade de condições», não
lhe restaria outro estatuto que não o da «ficção». A história da América, o
primeiro país a consagrar o «dogma» da soberania popular como o
princípio gerador das instituições políticas, facto que advinha já da vida
colonial anterior à independência, era a demonstração empírica da
proposição. Como na América imperava finalmente na história da
humanidade a «igualdade de condições», a soberania do povo fazia sentir
por todos os cantos do país e em cada gesto dos americanos os seus efeitos
– em todos os «desenvolvimentos práticos que a imaginação possa
conceber».532 Conceptualmente, democracia e soberania popular eram,
por conseguinte, coisas distintas. Porém, na experiência dos povos eram
«correlativas». A segunda precisava da primeira; a primeira revindicava a
segunda. E, no entanto, Tocqueville, o estudioso profundo da Revolução
Francesa e dos seus efeitos, não conseguia evitar confundir a «vontade
nacional» com a vontade democrática e, simetricamente, a soberania
nacional com a soberania do povo. Assim, a associação do povo à nação
mantinha-se mesmo no pensador das mais subtis distinções inerentes ao
regime democrático. Nem Tocqueville conseguia evitar a confusão do
povo com a nação.533
A confusão teve também uma outra consequência no nosso tempo. Com
a consagração política democrática, no século XIX, da soberania da nação,
assim que o conceito de soberania entrasse em crise, ou se visse sob
ataque, o mesmo sucederia ao Estado nacional que era forma política de
organização da nação. Por outras palavras, ao se colocar a nação sob a
protecção política da soberania conseguiu-se sujeitar o produto histórico
dessa união, o Estado nacional, a uma condição de vulnerabilidade radical
a partir do momento em que tanto a soberania, como a própria nação,
perdessem validade teórica ou política. Essa vulnerabilidade aumentaria a
atracção, teórica senão prática, por formas políticas que crescessem além
da nação – a forma política dita «pós-nacional» a que outrora se chamou
império –, ou que fragmentassem a força aglutinadora do Estado nacional
– a região independente, ou a cidade-Estado. Mais, como a consagração
política da soberania nacional foi democrática na sua origem e no seu
carácter, então a crise do Estado-nacional teria sempre de provocar como
dano colateral e não intencionado uma crise da própria democracia. Para
todos os efeitos, a democracia representativa, com sufrágio universal, e
constitucional edificou-se segundo a forma do Estado nacional.
Vale muito a pena analisar a sobreposição dos conceitos de povo e de
nação porque a distinção entre democracia e soberania do povo, de que
Tocqueville fizera tanto gáudio, e que reputei como bastante útil, tem
subjacente uma distinção ainda mais fundamental, a saber, a distinção
entre sociedade e Estado, ou entre o social e o político. Ora, com o
deslizamento da soberania nacional para a popular, ou vice-versa, a
distinção fundamental entre a sociedade (a sede da democracia) e o
Estado (a sede da soberania) torna-se menos clara. Parecia que, superado
o contexto social medieval em que o povo era um estamento, uma ordem
social que se distinguia, por um lado, pela ausência de privilégio quando
contraposta às outras duas, e, por outro, pela função que desempenhava no
corpo político, o povo só podia ser definido pela nação e a nação pelo
povo.
Sieyès estivera nos dois momentos. No da superação da medievalidade
rumo à sociedade homogénea. E no da identificação do povo com a nação
e da nação com o povo. No primeiro momento, o povo era invocado na
sua qualidade colectiva social superior a qualquer outro estamento, classe
ou grupo. Mas à medida que se fazia o caminho da concepção homogénea
da sociedade, ou talvez mais concretamente, quando já não restavam
privilégios estamentais a eliminar, o conteúdo da soberania popular teria
de se virar para a soberania nacional. Por outras palavras, teria de se virar
para a afirmação de uma comunidade política homogénea com
personalidade histórica e para a contraposição de uma comunidade
política particular (soberana) face a todas as outras comunidades políticas
(soberanas) no resto do mundo. Além disso, a teoria do poder constituinte
reforçava o movimento natural da tese da soberania popular, ou nacional.
Consolidava o pressuposto básico, o de que existe um povo, ou uma
nação, constituindo uma unidade política e um agente histórico,
conscientes de si e capaz, portanto, de formar uma vontade própria.
Mas, na realidade, o movimento intelectual que dera origem a estes
novos problemas e as estas novas possibilidades iniciara-se com Rousseau
e com a republicanização da soberania.
19. O Povo da Nação e a Nação do Povo (2)
O que distingue, afinal, o povo da nação, se ambos não são sinónimos?
A nação é constituída por um povo, isto é, por uma comunidade humana
homogénea que se reconhece como tal – como comunidade e como
homogénea. O povo chegou à História antes da nação. Na Antiguidade
vemos a vida de muitos povos ter lugar, mas de nenhuma nação, como
avisou Ernst Renan na conferência mais célebre de entre toda a literatura
em torno do tema da «nação», em Março de 1882.534 O povo é essa
identidade de si consigo mesmo que se concretiza na afinidade ou partilha
cultural – uma língua comum, uma literatura comum, uma memória de
uma experiência histórica, provavelmente sofrida, comum, uma relação
reconhecível com o espaço habitado, hábitos comuns, um «modo de vida»
distintivo e, claro, um território habitado e memoriado comum. Mas a
nação, incluindo o povo, também inclui estas determinações e mais
algumas. Num passo que se tornaria decisivo para a formação do
nacionalismo enquanto ideia, Montesquieu apresentaria o «espírito geral
da nação» que tanto influenciaria homens como Hegel ou Herder,
preferindo o primeiro traduzir para alemão por «espírito do povo», mas o
segundo por «espírito da nação». «Várias coisas governam os homens»,
escreveu Montesquieu. «O clima, a religião, as leis, as máximas do
governo, os exemplos das coisas passadas, os costumes, as maneiras;
donde se forma um espírito geral que daqui resulta.»535 A diferenciação
das nações resultava de uma matriz de determinações cujo peso relativo
era variável consoante a experiência histórica de cada povo. Nuns casos, o
regime político e acção das leis seria mais preponderante, como na
formação de Roma. Noutros, o clima, como acontecera, segundo
Montesquieu, aos «selvagens», os quais eram-no precisamente por serem
determinados por factores («causas») naturais, ao invés dos costumes, da
religião ou da memória histórica. A questão que se poderia levantar era a
seguinte: Sendo produto de causas exclusivamente naturais, estes povos
podiam constituir nações? Fosse como fosse, múltiplos exemplos
poderiam ser encontrados para ilustrar pesos relativos diferentes nos
parâmetros da tal matriz de determinações que nos indicava o «espírito
geral da nação».
Um século mais tarde, o liberal John Stuart Mill, teorizador da
liberdade, do princípio do dano e do governo representativo, contribuiria
para esta reflexão. Em meados do século XIX qualquer estudioso de
política teria de confrontar, de um modo ou de outro, a questão da nação.
Stuart Mill foi também um homem do seu tempo e abraçou-a com
entusiasmo. Inventou até uma expressão para designar uma ciência nova, a
Etiologia Política, dedicada ao estudo das causas determinadoras do
carácter nacional dos povos. A ciência acabaria por falhar, como sabemos,
mas ele dizia que não havia classe de leis sociológicas mais importante –
«de longe» – do que essa. Note-se que o propósito não diferia muito
daquele que Montesquieu propôs. Identificar as circunstâncias e as causas
que produziam determinadas leis, costumes, religiões, formas de governo,
e como tudo isto produzia «opiniões», «sentimentos» e «hábitos». No
fundo, Stuart Mill ambicionava fazer à realidade nacional o que o mundo
da produção e do consumo sofrera às mãos da Economia Política em
ascensão.536 Daqui, Stuart Mill retirou pouco mais do que uma definição
de «nacionalidade». Eliminando o «sentido vulgar» do termo, a «antipatia
pelos estrangeiros», ou a «indiferença pelo bem-estar geral do género
humano», ou a «injusta preferência pelos supostos interesses do nosso
país», ou um apego cego pelo que era nacional, e uma recusa do que era
bom para os outros, restava a parte positiva. E o que era? Um «princípio
de simpatia, não de hostilidade»; de «união, não de separação». Este
princípio de coesão alimentava um «sentimento de interesse comum» em
todos os que viviam debaixo de um mesmo governo político e dentro das
mesmas «fronteiras naturais ou históricas». A nação era o sentimento
partilhado pelos seus membros de formar «um mesmo povo». Desta
mútua dependência do conceito de povo e de nação é que ninguém nos
conseguia livrar. Os membros da mesma nação sentiam-se próximos
porque davam valor a essa ligação, no sentimento de que partilhavam um
destino comum, assim como as dores dos que com eles pertenciam à
comunidade nacional.537
Uns anos depois, Stuart Mill regressaria ao mesmo assunto. Presumia
algumas causas gerais que formavam o tal «sentimento de nacionalidade»,
como o efeito da identidade da «raça» e da «descendência», a
«comunidade da língua» e da «religião» e os «limites geográficos». Mas
acabou por confessar que a «mais forte» de todas era a «identidade de
antecedentes políticos» – um passado comum, na memória, com a
formação de afectos colectivos de «orgulho» e de «humilhação», «prazer»
e «arrependimento», evidentemente ligados a vicissitudes experienciadas
em comum num tempo anterior. O ponto fundamental do nacionalismo
liberal de Stuart Mill era o de que este «sentimento de nacionalidade»
devia ser correspondido pelo traçado das fronteiras políticas. Se eram os
governados que, segundo a ideologia da soberania popular, deviam decidir
o seu governo, então a comunidade dos nacionais devia corresponder à
comunidade dos governados, que, por sua vez, decidiriam o seu governo.
Era, pois, uma «condição necessária das instituições livres que as
fronteiras do governo devem coincidir em grande medida com as das
nacionalidades». Stuart Mill não estava cego para as dificuldades práticas
de uma aplicação rigorosa, mas este era o princípio liberal geral.538
Escusado é dizer que nem Montesquieu nem Stuart Mill esgotaram o
assunto. O que é preciso acrescentar-lhe para que a análise da nação possa
pelo menos ter um arranque promissor? A comunidade nacional
estabelecida tem um cariz horizontal, como um dos mais famosos teóricos
contemporâneos da nação explicou. A nação, disse ele, «é sempre
concebida como uma agremiação horizontal e profunda». Ela é
«imaginada» porque cada um dos seus membros nunca se relacionará,
nem conhecerá, a esmagadora maioria dos outros membros, mas isso não
o impede de sentir-se parte de uma comunhão entre todos. Ela é horizontal
por contraposição a vertical, ou hierárquica. Ela é uma comunidade
homogénea e fraterna de camaradagem, que partilham um comum, relação
que evidentemente supõe algum tipo essencial de igualdade, de lealdades
cruzadas e de uma distinção mais ou menos superficial de nós-eles,
características que também lhe dão um sentido histórico que vai além do
do povo. E, por outro lado, confere-lhe uma substância de alteridade, ou
pelo menos de substrato, na relação com o Estado que a representará.539
Ademais, se o povo agia politicamente na História, então não podia ser
uma simples aglomeração de pessoas, uma multidão, um povo, sem
qualquer princípio de unidade. Vemos, portanto, incluindo nas grandes e
clássicas ilustrações, desde logo com Sieyès, que a nação não era apenas a
concretização histórica e a particularização da grande categoria «povo». A
nação era já a designação da autoconsciência do povo enquanto povo,
independente ou distinto dos outros, e de todas as características acima
assinaladas. A nação era a estruturação do povo segundo um princípio de
unidade orgânica, e segundo o qual podia agir. No acto de tomada de
consciência de si, a nação recapitulava incessantemente o que era.
Proclamava-se a si mesma. A consciência de ser um agente colectivo na
história dava-lhe uma dimensão política. Logo, a nação nunca era uma
categoria meramente cultural. Ela era política e cultural.
Era, pois, preciso preparar conceitualmente a soberania e a nação para
tornar a segunda sujeito de soberania, ou melhor, para torná-la o sujeito
por excelência da soberania. E o que significa preparar conceitualmente
tanto a nação como a soberania para que caíssem uma nos braços da
outra? Significa colectivizar – e popularizar – o sujeito da soberania para
que a nação aparecesse como o único candidato possível e pudesse ser
proclamada, e a nação proclamar-se a si mesma, soberana.
Além disso, a nação identificava-se com um certo território. Exercia, ou
queria exercer, uma certa apropriação desse território. Antes de se falar em
relações de propriedade ou de dominium, como tanto se fez na história do
pensamento político e jurídico neste assunto, a apropriação do território
pela nação fazia-se cultural, jurídica e politicamente. O que vale por dizer
que a nação conceptualmente já está orientada para exercer soberania
sobre um determinado território. A autodeterminação da nação, o direito
de cada nação formar um Estado individuado e autónomo expressão tão
equívoca no plano teórico, porque parecia ser uma expressão sinónima de
soberania nacional, e tão explosiva no plano político, começava por ser,
antes de mais nada, a determinação cultural e política de um território pela
nação. Na profética frase do inglês Richard Eburne, em 1624 já virado de
corpo e alma para a colonização da América do Norte: It be the people
that makes the Land English, not the Land the People.540 Era esta
formulação que indicava o sentido da politização, ou da civilização, do
território. Da nacionalização do território.
Ambas as índoles da nação, a cultural e a política, cooperam para se
determinar uma à outra, para fazer avançar uma e outra no plano do
reconhecimento das outras nações. Essoutro reconhecimento eleva o
patamar de consciência de si como nação e aprofundam a distinção
cultural e política. Estas distinções apoiam-se e protegem-se mutuamente
por se entenderem como fundamento uma da outra, ou pelo menos como
estrutura indispensável de apoio de uma e de outra. De resto, como o
episódio da Revolução Francesa e outros equivalentes mostram com
nitidez, o reconhecimento filosófico e retórico da nação – o momento
Sieyès, digamos assim – actualiza com mais profundidade e, por vezes,
definitiva e irreversivelmente, a consciência de si. E, por conseguinte,
actualizam a própria realidade da nação, cuja formação, porém, era bem
anterior a esse momento.
Assim se compreende melhor donde partiu a recorrente confusão entre a
soberania do povo e a da nação, como se povo e nação fossem sinónimos
intermutáveis. Contudo, o exame dos conceitos permitia discernir que não
o eram, e ao mesmo tempo compreender que o recurso à nação
comportava, em primeiro lugar, uma força motriz democrática, expressa
na acção histórica colectiva em comum e no desejo de viver em conjunto.
Na expressão memorável de Renan, «a existência de uma nação é um
plebiscito de todos os dias, tal como a existência do indivíduo é uma
afirmação perpétua de vida».541 Em segundo lugar, comportava ainda um
casamento com o conceito de soberania que a morte de um dos esposos
não só naturalmente desfaria, como condenaria à morte o esposo
sobrevivo. Finalmente, se a nação é a particularidade, e a soberania
popular nacional envolve o apelo da universalidade, então a soberania
nacional, tal como ela aparece na história da Europa, é uma síntese notável
de particularidade e de universalidade, ou de uma universalidade na
particularidade. Estará aí, porventura, uma das chaves para a compreensão
do seu sucesso quando comparado com alternativas históricas. 
O valor da nação, o sentido moral e psicológico intrínseco da sua
homogeneidade, não é a liberdade, nem a igualdade, valores de
construções políticas possíveis da nação, mas a fraternidade. Tal como
Jules Michelet sublinhou como valor central posto em relevo pela
Revolução Francesa, o mesmo sucede com o conceito de nação em geral.
Leitor devoto de Giambattista Vico e de Jean-Jacques Rousseau, Michelet
foi um dos grandes historiadores da Revolução no século XIX. Ironia das
ironias, foi ele quem chamaram para substituir na Sorbonne o decano
Guizot, a grande autoridade historiográfica liberal do seu tempo, quando
teve de assumir funções políticas absorventes. A originalidade de Michelet
residia na recusa do ponto de vista «monárquico» da historiografia da
Revolução que se tinha multiplicado até então, em que os historiadores
escreviam em apologia ou de Luís XVI martirizado – grosso modo, a
direita –, ou de Robespierre martirizado – grosso modo, a esquerda.
Michelet propunha contar pela primeira vez a história da Revolução
através do único herói que aqueles anos fracturantes tinham apresentado
ao mundo: o povo. Era, pois, a primeira história republicana da
Revolução, a primeira que repudiaria os vários ídolos e deuses que
sucessivamente foram dados como falsos protagonistas do grande
acontecimento. Com o seu entusiasmo mitómano e irreprimível pelos
feitos e audácia da Revolução, Michelet diria que os seus avanços bons e
humanos, em contraponto ao período do Terror, do militarismo e da
corrupção, foram fruto da acção da «nação inteira», sem distinção de
partidos, nem de classes, quando ela «marchou sob uma bandeira
fraternal». Um «espectáculo» que, confessava ele emocionado, o «enchia
de espanto». Para Michelet, o povo era a nação porque a nação não agiria
sem a prévia consciência do povo de si enquanto vítima da exploração e
do privilégio. Com a convocação dos Estados-Gerais, o povo agiria
politicamente, sendo nação. E, por meio da Revolução, na acção fraterna a
nação removeria as divisões históricas no seu seio, «o passado de
sofrimentos» e permitiria que o povo preenchesse o todo da nação. Era a
«unanimidade», mas apenas depois de removidas pela acção fraterna e
pela abolição legal as aberrações do privilégio. Uma vez removido o
privilégio, a nação apagava as distinções entre «povo» e «burguesia». O
14 de Julho de 1790, a festa da Federação em Paris, na comemoração do
primeiro aniversário da tomada da Bastilha, fez nascer um «homem
novo», um «povo novo», um «Deus novo».542
Mas esta interpretação da unidade fundamental da nação comprometia
um dos desígnios modernos da soberania: a federação da diversidade. Por
portas travessas, o monárquico Hobbes, o Hobbes que invocara A Guerra
do Peloponeso de Tucídides para repudiar categoricamente a democracia,
ao negar aos democratas do seu tempo que o povo constituísse uma
unidade antes de representado por um soberano, não passando, portanto,
de uma «multidão» composta por indivíduos radicalmente diferentes,
abria a porta para a soberania como federação da diversidade. A soberania
construída ao modo hobbesiano, isto é, que organizava um povo sem uma
unidade natural, protegia uma sociedade de liberdade subjectiva e de
pluralidade. Ao passo que as construções da soberania popular no
momento da Revolução Francesa, bem como as que nela se inspiraram
como o exemplo de Michelet demonstrava, revelavam uma propensão
para, em nome de um escrúpulo ideológico democrático afirmador da
unidade do popular e da sua agência na História, atribuir ao povo uma
unidade histórico-natural, o que, por sua vez, tornava homogénea a
sociedade a representar pela soberania (popular). Nesta influentíssima
visão republicana-democrática-romântica-nacionalista da soberania
popular, a soberania não protegia uma sociedade da liberdade subjectiva e
da pluralidade social, religiosa, ideológica, moral, mas antes cuidava de
produzir, e depois manter, uma homogeneidade social, bem como tratar da
expurgação dos seus inimigos.
Muito trabalho seria necessário para ultrapassar esse ardor
homogeneizante. A unidade da nação é um pressuposto e uma realidade
espiritual indubitáveis. Mas essa unidade soube descobrir vias de
afirmação que não a expurgação dos elementos estranhos e minoritários.
A unidade nacional enquanto realidade espiritual aprendeu a permitir, por
exemplo, que a minoria derrotada em eleições livres conceda o exercício
(temporário) do poder à maioria numérica. Essa concessão é uma prática
reveladora dos vínculos dos membros de uma mesma nação. Mais
significativo do que isso, essa concessão reflecte o reconhecimento
espontâneo de quem incarna o representante soberano e age em nome da
nação – ainda que não tenha sido escolhido pelo indivíduo cidadão eleitor
em causa, mas por uma maioria a que ele não pertence e em cujas
prioridades políticas ele não se revê. Poder-se-á alegar que houve e há
Estados nacionais fracturados por conflitos políticos no quadro de uma
democracia que parece já não possuírem qualquer unidade. Mas, não
obstante as análises sociológicas que dão conta, e quantificam com
estudos de opinião, das inúmeras clivagens de vária ordem, a ruptura da
unidade nacional é um fenómeno raro e frequentemente é a hipérbole
jornalística que a torna mais frequente.
20. A verdade efectiva da soberania é a soberania popular e/ou
nacional
As teses contratualistas do século XVII, e as proto-contratualistas dos
séculos anteriores, foram (quase) todas elas avançadas por pensadores que
não apoiavam regimes democráticos. Muitos, senão todos, defendiam a
superior conveniência, quando não a superior bondade, da monarquia
como forma de governo. Mas várias dessas teses, nomeadamente as mais
significativas, deixaram como rasto, por assim dizer, uma ambiguidade
que serviria a causa da soberania popular. E não é excessivo dizer que
serviram a causa da democracia enquanto forma de governo. A
ambiguidade comum às teses a que aqui aludo pode ser descrita do
seguinte modo. Se existe um pacto que remonta à origem do poder
político, do Estado, da comunidade política e da soberania, ele tem de ser
celebrado entre – pelo menos – duas partes ou dois interlocutores. Falando
de origens, que no século XVII seriam concebidas mediante uma condição
anterior a qualquer forma de comunidade política, o famoso «estado de
natureza», referiam-se evidentemente aos indivíduos na sua igualdade e na
sua liberdade. Ou, em alternativa, a um povo já constituindo num corpo
que podia, assim, agir como pessoa transferindo o poder, ou soberania,
que eram seus para o governante ou governantes.
A descrição desses momentos fundadores do poder político sugeria todo
o tipo de sabores democráticos, muitas vezes a contragosto dos próprios
autores que os descreviam e nalgumas ocasiões criando até alguns
embaraços. Um exemplo: quando Pufendorf expunha ao detalhe a sua
teoria do «duplo pacto», admitia que o «pacto de sujeição» padecia de
uma dificuldade. Sendo este contrato gerador da atribuição do poder para
governar a sociedade, e já tendo sido escolhida a pessoa ou as pessoas que
iriam governar, concluía-se que as partes do acordo seriam, de um lado,
esses governantes, e, do outro, o povo anteriormente formado pelo «pacto
de associação». Qual era, então, a dificuldade? É que o próprio Pufendorf
reconhecia que, quando o decretum intermédio determinava a formação de
uma democracia, o pacto soaria a uma aberração, tendo em conta que as
suas putativas partes seriam as mesmas pessoas «naturais». Nos Estados
democráticos, as mesmas pessoas seriam simultaneamente súbditas e
soberanas. Mas um acordo supõe pessoas diferentes. A resolução deste
problema correria na seguinte direcção. O povo e o cidadão não eram a
mesma pessoa. O cidadão não era soberano, nem sequer uma fracção dele.
Só o povo enquanto pessoa moral podia deter o poder soberano. A
conclusão in extremis de Pufendorf para salvar a sua tese contratualista
consistia em reclamar a plausibilidade de um pacto entre a Assembleia
Popular – o corpo do Povo enquanto agente político – e cada um dos
cidadãos. Não podem restar muitas dúvidas de que foi Pufendorf a
manifestar voluntária ou involuntariamente a sua insatisfação com esta
saída quando mencionou que o acto moral da celebração de um contrato,
uma promessa recíproca entre pelo menos duas pessoas diferentes, se
tornava confuso no «pacto de sujeição» de um Estado democrático. Afinal
de contas, talvez não fosse «tão necessário» um segundo pacto explícito
num Estado democrático quanto seria numa monarquia ou numa
aristocracia. Na forma política democrática bastaria supor um tal contrato
«tácito». Uma vez mais, Pufendorf sacrificaria a simetria dos argumentos
pelas várias formas de governo e acrescentaria uma razão à utilidade do
segundo pacto num Estado democrático. O compromisso do cidadão, em
democracia, não poderia limitar-se à aceitação da obrigação de obedecer
ao soberano – neste caso a assembleia de cidadãos de que ele fazia parte –
e incluía também o dever de preferir o bem público ao seu interesse
particular, assim como de se dedicar no limite das suas possibilidades aos
assuntos políticos. Estes deveres cruciais sobretudo numa democracia não
seriam formados sem uma convenção ou sem um acordo.543
Mas, em termos mais genéricos e abrangendo outras teses
contratualistas além das de Pufendorf, podemos dizer que todas levantam
a mesma suspeita que ele mesmo teve de manifestar de que o contrato de
formação do Estado era «uma espécie de democracia».544 A expressão do
consentimento, a escolha dos titulares de uma forma de governo também
ela determinada pelas partes individuais de um contrato, sugeriam mais as
práticas democráticas do que as suas congéneres monárquicas ou
oligárquicas. Em tudo se assemelhava a uma eleição democrática na qual
cada eleitor tinha um direito inalienável de participar ou de não participar.
Ninguém podia tomar por ele essa escolha prévia. A expressão do
consentimento gozava de prioridade real sobre todas as demais
considerações, pois, uma vez arruinada a tese aristotélica de que o homem
é um vivente político, só daí poderia ser deduzido o dever de obediência
de seres naturalmente livres e iguais.
A democracia pode ser sintetizada na fórmula «apenas obedecerei
àquilo a que dei o meu consentimento»? O governo democrático não é
aquele que parece corresponder mais exactamente ao governo que cada
um atribuiria a si mesmo? Pois bem, o contratualismo e o proto-
contratualismo não são outra coisa. Homens tão diferentes quanto o hiper-
monárquico Robert Filmer, o dissidente moderado George Lawson e o
conde de Clarendon, ministro distintíssimo de Carlos II após a
Restauração de 1660, notaram as consequências democráticas evidentes
da teoria do contrato, do consentimento e da obediência que o monárquico
e absolutista Hobbes propunha na sua filosofia política.545 David Hume, o
grande filósofo escocês do século XVIII, conservador integral, subversivo
impenitente e responsável por ter despertado Immanuel Kant do seu «sono
dogmático», usaria toda a sua verve, e de muita verve era ele animado,
para denunciar a raiz democrática do contratualismo como um gigantesco
absurdo.
Na maioria dos países, se lá fôssemos proclamar que as relações
políticas assentam inteiramente no consentimento voluntário ou numa
promessa recíproca, depressa o magistrado nos mandaria prender
como sediciosos, por enfraquecermos os laços da obediência; se antes
disso os nossos amigos nos não mandassem internar como loucos, por
defender tais absurdos.546
A constituição da soberania era sempre e radicalmente democrática. O
exercício da soberania podia ser, ou não ser, democrático, mas a sua
construção apontava desde o início para a forma da soberania popular.
Com raras excepções, a mais notável das quais em Espinosa, repita-se, os
contratualistas censuraram em termos veementes os resultados da
democracia e ao mesmo tempo permitiram-nos testemunhar a verdade que
atestava a democraticidade intrínseca das teorias contratualistas. Todas as
teorias do Estado que o pretendam fundar na figura jurídica do contrato
social, independentemente dos seus contornos posteriores, são teorias
democráticas do Estado. Que no espírito de Hobbes (bem como no de
Bodin) a teoria da soberania visava o desmantelamento das ilusões
democráticas, já o sabemos. Mas como argumento de refutação é inútil.
Aquilo que fundamentava a soberania podia ser classificado como um
elemento democrático na filosofia política contratualista. E, a partir daí, a
soberania, no seu exercício, teria cada vez mais dificuldades em se separar
da sua origem ou do seu artífice. Se o artífice eram os indivíduos ou o
povo enquanto corpo unificado, tal ainda suscitaria muito debate e
altercação. Contudo, o mais importante era decidir se o agente que
construía, autorizava e operacionalizava o exercício da soberania não seria
ele mesmo o verdadeiro soberano.
Grócio apercebeu-se rapidamente da ambiguidade potencialmente letal
para a teoria da soberania. Por isso, depois de aceitar a tese da soberania
como determinação essencial da comunidade política – o poder soberano
era aquele cujos actos não estavam sujeitos a qualquer outro poder e não
poderiam ser anulados por qualquer outra vontade humana –, propôs, em
ordem a localizar a sede da soberania, distinguir o sujeito «comum» do
sujeito «próprio» da soberania. Sugerindo uma analogia segundo a qual o
corpo era o «sujeito comum» da vista, tal como o olho era o «sujeito
próprio», Grócio concluiu que o «sujeito comum» do poder soberano era o
Estado (civitas), ou o conjunto da comunidade política, ao passo que o
«sujeito próprio» seriam as pessoas que exerceriam o poder. Daqui
podemos ver a solução proposta por Grócio. A soberania dependia da
existência de um povo, de um conjunto de cidadãos, isto é, de pessoas
politicamente organizadas. Em certa medida, era a soberania que
organizava politicamente essas pessoas convertendo-as em cidadãos. Tal
como Bodin tinha explicado, a soberania e a comunidade política
implicam-se mutuamente. Porém, não era o conjunto dos cidadãos que
exercia o poder soberano, mas apenas uma pessoa, ou um punhado de
pessoas. Era o olho da comunidade política, que não existe sem esta, mas
sem o qual esta não vê. Povo e governante(s) encontravam, assim, os seus
respectivos lugares na teoria da soberania, sem que houvesse espaço para
uma soberania propriamente popular.547
Apesar das claríssimas intenções antidemocráticas de Grócio, Pufendorf
ficou alarmado com as suas consequências. A distinção entre «sujeito
comum» e «sujeito próprio» da soberania autorizara muitos a extrair daí a
«absurda e perigosa» separação entre «soberania real», que alegadamente
residiria no povo, e a «soberania pessoal», detida pelo rei ou pelo senado.
Era «perigosa» sobretudo para as monarquias, porque sugeria que o povo
detinha soberania e que era real e permanente. E era uma distinção
«absurda» porque suponha duas soberanias no mesmo Estado, o que
violava o princípio primeiro da teoria da soberania. De tal modo Pufendorf
ficara transtornado com esta inovação que terminaria a sua reprimenda
com uma ironia ácida desfazendo a analogia da vista que Grócio
apresentara.548
A reprimenda não fora evitada nem com os protestos, por assim dizer,
preventivos de Grócio. Nada daquilo que acabara por dizer podia ser
interpretado como um apoio à tese da soberania popular. Bem pelo
contrário. Grócio não se escusara a atacar frontalmente os partidários da
soberania popular da sua época, os monarcómacos, os protestantes
radicais, enfim, os que ameaçavam subverter a ordem política estabelecida
querendo colocar o «povo», ou os seus representantes directos, na sede do
«sujeito próprio» da soberania. Digo subverter porque a outra face da
moeda da soberania popular era evidentemente a legitimação do direito
popular à insurreição e da doutrina da resistência ao poder régio sempre
que este abusasse do seu poder. Não foi particularmente lisonjeira para
Grócio a fundamentação em que baseou o seu ataque aos partidários da
soberania popular. Aparentemente, tal como alguém se podia entregar
como escravo a quem bem entendesse, um povo soberano também podia
entregar-se a uma ou mais pessoas para que elas o governassem – como
um escravo? – sem reterem qualquer parcela desse direito para ele. Bem
entendido, Grócio não queria sugerir que tal descrevia o que se passava
em todas as circunstâncias. Apenas pretendia afirmar que, no plano do
direito, essa era uma possibilidade perfeitamente lícita e que, no plano
prático, haveria ocasiões que justificariam escolhas (soberanas?) desse
tipo. Recuperava-se a teoria clássica da escravatura de Aristóteles, as
conveniências que poderiam advir de um governo arbitrário, a essencial
impreparação de muitos povos para o governo livre, o direito de conquista
e um número respeitável de autoridades que tinham aceitado tudo isso. O
povo soberano podia abdicar da sua soberania, sem cláusulas, nem
condições. Mais, Grócio recusava o que via como um pressuposto
incorrecto da tradição da filosofia política: a proposição segundo a qual
que os governos eram ordenados no interesse dos governados, e não dos
governantes. Por vezes, eram ordenados para servir o interesse de ambos.
Ainda que se admitisse que o «fim directo» para o qual a maioria dos
governos eram instituídos fosse o «bem do súbdito», nem assim se poderia
inferir que «o povo é superior ao rei». Afinal de contas, o «guardião» tem
a «guarda» do «pupilo», isto é, um «poder» sobre ele, para seu
«benefício». E, ao contrário do guardião que podia ser removido por um
poder acima dele, o governo não tinha qualquer outro poder superior a si –
por ser supremo ou soberano.549
Da reacção de Hobbes a este respeito não vale a pena sequer falar. A sua
teoria da soberania era a negação pura e simples e sem concessões desta
divisão em «sujeito comum» e «sujeito próprio». Ao fiel tradutor e
comentador de Grócio, Jean Barbeyrac, só faltou benzer-se invocando o
seu santo padroeiro, John Locke. Barbeyrac tropeçou em citações erróneas
de Virgílio. Em falsas citações de episódios históricos envolvendo Carlos
V, Luís, o Pio, ou César Augusto. Em equívocas demonstrações históricas
de que na Grécia antiga o direito abrangia a possibilidade de alguém se
vender como escravo, em particular alguém como Diógenes, o Cínico. E
sobretudo tropeçou numa doutrina lamentável de blindagem do poder
régio. A lealdade de Barbeyrac não vacilou, mas a sua constância não o
impediu de introduzir aquilo a que podemos chamar um antídoto popular
lockiano contra a infecção da soberania absoluta dos reis. Lá reconhecia
que, se havia um rei, então o povo não poderia permanecer soberano. Caso
contrário, a contradição seria fatal. Mas reconhecer isto não acarretava
prosseguir na marcha para a servidão que, no fundo, a alienação da
soberania sem reservas, nem condições, significava. Havia reservas. Havia
condições. Todas podiam sintetizar-se numa só. Se o receptor e
beneficiário da soberania do povo exercesse o poder de modo abusivo e
contrário ao fim para o qual esse poder fora concedido, então restava ao
povo recuperar todos os seus direitos originários. O rei abusador abdicava,
pela sua conduta, do direito que recebera. O povo, resistindo, destituindo-
o e escolhendo outros governantes ou até outra forma de governo,
recuperava os seus direitos originários, o que podia ser traduzido por a sua
soberania originária.550
Cento e cinquenta anos mais tarde, Rousseau, que, nem sempre com
rigor, seria visto como um arauto da soberania popular, não perderia a
oportunidade de castigar Grócio por este mesmíssimo passo. Grócio era
apresentado como um facilitador da vida dos tiranos e, sobretudo, como
perpetrador de um erro elementar em filosofia política, a saber, o de
«estabelecer sempre o direito pelo facto».551 O estado das coisas, incluindo
o estado opressivo e injusto das coisas, parecia ter sentido normativo para
Grócio. Não surpreendia que o povo fosse retratado como uma manada de
gado, sempre ao dispor do devorismo dos poderosos. Vimos como Grócio
tentou acautelar a crítica, mas convenhamos que o grosso do seu
argumento dava razão ao opróbrio de Rousseau, embora fosse um tanto
excessiva acusar o jurista holandês de ser um descendente intelectual do
terrível imperador Calígula.
Todavia, ficava um problema intratável por resolver na soberania
popular e da nação. Quando chegava o momento de o povo ou a nação
agirem concretamente, nomeadamente para fazer uma Constituição, era
preciso escolher pessoas para a preparar, debater, redigir e, finalmente,
aprovar. Ninguém se podia admirar que lhes perguntassem directamente:
quem é este povo? Sois vós a nação? Quem vos escolheu é o povo? É a
nação? Admitindo que a nação é o soberano constituinte, qual o
fundamento dos critérios que decidem quem pertence e quem não pertence
à nação? Quem decidiu o processo de escolha que vos designou para falar
pelo povo e pela nação? Porquê esse e não outro?552
O constitucionalismo republicano moderno inaugurado pelos Estados
Unidos da América abriu um novo horizonte de questões com que a
soberania popular teve de se confrontar. Vimos acima como James Otis,
ainda antes da revolução, denunciou como «nulas» todas as leis aprovadas
pelo Parlamento britânico que violassem as normas secundadas pela
«verdade, equidade e justiça». Uma antiquíssima tradição da «lei natural»
indicava em abstracto essa consequência, mas preocupava-se sobretudo
com a desvinculação dos destinatários de uma lei tirânica, ou ilegítima, ao
dever de lhe obedecer. Não estivera particularmente preocupada com
aquilo que obcecaria, e com boas razões, o republicanismo americano.
Havendo, além da lei natural e dos seus princípios abstractos, uma
constituição que valia como lei suprema do Estado a que as leis emanadas
dos poderes políticos constituídos tinham de se conformar, que critérios
concretos deveriam ser aplicados para julgar essa conformidade? E quem,
em concreto, deveria ter a autoridade e o poder para o fazer?
O problema era – e é – tremendamente delicado porquanto se a
Constituição procede da soberania popular, ou da soberania da nação,
havendo leis que presuntivamente a contradizem, então isso significa que
essas leis emanadas de órgãos representativos da vontade popular, ou da
vontade nacional, podem ser anuladas por acção de um outro poder
igualmente representativo?
O problema, não necessariamente no quadro da soberania popular, era
antigo na tradição da filosofia política. Muito se escreveu sobre a função
dos tribunos da plebe e sobre os censores na fiscalização dos actos
políticos na república romana. Muita atenção foi dispensada aos éforos da
Lacedemónia que mantinham os reis sob apertada disciplina. Em
particular, os monarcómacos calvinistas do século XVI viam com olhos de
apropriação para as condições modernas estas supostas maravilhas do
governo espartano.553 Espinosa, que queria distância da política inspirada
pelo calvinismo, e não tinha qualquer simpatia pelo exemplo de Esparta,
propôs para as aristocracias um «conselho de síndicos», com mandato
vitalício, para proteger os direitos do Estado dos abusos de poder do
conselho supremo governante dos patrícios, dar parecer vinculativo
quanto à revogação de leis e criação de leis novas, e, em geral, como diria
a Constituição Portuguesa, assegurar o «regular funcionamento das
instituições». Concluía Espinosa que, numa aristocracia, a soberania
estaria no conselho supremo, mas a autoridade no «conselho de
síndicos».554 Thomas Jefferson, como vimos, queria apelos frequentes ao
povo e à formação de convenções constitucionais para manter os poderes
constituídos dentro da legalidade constitucional, funcionando o povo
como censor político-constitucional de todos os magistrados. Invocava as
credenciais republicanas e a soberania popular para contornar as objecções
– não-republicanas? – ao seu projecto.
21. Soberania vs. Soberania
O constitucionalismo moderno nasceu da distinção e separação entre,
por um lado, a expressão da soberania do povo que dá uma Constituição a
si mesmo e que vincula o funcionamento e efeitos dos órgãos políticos que
ela própria cria. E, por outro lado, a administração ou o governo do
produto desse acto originário de soberania, através dos órgãos
representativos da vontade popular ou da vontade nacional. A doutrina da
judicial review (que conheceu outras designações como «veto judicial» ou
«censura judicial»), ou do controlo judicial da constitucionalidade das leis
significa que, em nome do acto primeiro de soberania, um, ou mais do que
um, «órgão» de soberania poderá anular o acto de um outro «órgão» de
soberania, em que os «órgãos» são simultaneamente expressão da
soberania popular por via do primeiro acto «constituinte» e por via do seu
funcionamento como representantes da vontade popular. O processo de
ratificação de qualquer Constituição aponta para a expressão da soberania
popular através da vontade maioritária (directa em referendo, ou
indirecta, através de representantes). Assim como o processo de aprovação
de uma lei aponta para a expressão da soberania popular através da
vontade maioritária (directa em referendo, ou indirecta, através de
representantes). Do ponto de vista da soberania popular ou da soberania
nacional, qual a diferença entre ambas as expressões soberanas? Seria a
espessura da maioria que serviria de fasquia de aprovação? Ou alguma
alteração na qualidade dos representantes?
A possibilidade de fiscalizar a posteriori a legislação, e de a impugnar
se fosse invocada uma certa desconformidade com algum padrão jurídico
tido como superior, não dependeu historicamente da existência de uma
Constituição escrita, nem, por maioria de razão, da existência de
Constituições que fossem expressão da soberania do povo. Na common
law britânica a aplicação da lei não se distinguia claramente da sua
alteração, e até criação, da lei pelos tribunais. Mais, numa decisão redigida
por Edward Coke, Lord Chief Justice do reino inglês no início do século
XVII e o mais famoso jurista britânico da tradição da lei natural tomista, no
chamado caso do Dr. Bonham, declarou-se que, se uma lei se revelasse
contrária aos princípios gerais e lógica interna (common right and reason)
da common law, os tribunais se encarregariam de a anular. Cento e
cinquenta anos mais tarde, William Blackstone, o jurista que mais
influência exerceria sobre a Revolução Americana, levantava o problema
que apoquentaria a vida das democracias constitucionais, da americana e
das outras. Até podia acontecer uma lei aprovada pelo Parlamento ofender
o direito e a razão. Mas qual o poder que poderia fiscalizar tal
eventualidade e agir em conformidade com efeitos jurídicos anulando-a?
Blackstone respondia: nenhum. Se fosse o poder judicial, concluía
Blackstone, tal «subverteria todo o governo».555
Blackstone refreava os partidários da intromissão judicial no processo
legislativo antes das revoluções republicanas, ou, por outras palavras,
antes da entrada do povo ou da nação como agentes soberanos da História.
Com a entrada do povo soberano em cena, admitir a intromissão de juízes,
agentes por vezes vitalícios, inamovíveis pela escolha popular, cujas
funções tinham uma linhagem clarissimamente aristocrática, e cujas
decisões eram irreversíveis, era retroceder na escalada democrática da
História. Era silenciar ou diminuir a soberania do povo. Ao mesmo tempo,
se os poderes constituídos contradiziam com os seus actos a Constituição,
que, por sua vez, era a expressão da soberania do povo, isso abria espaço
para que quem repusesse a conformidade constitucional das leis a que os
cidadãos estavam obrigados a obedecer aparecesse como uma espécie de
guardião da soberania popular. O poder que o fizesse, ainda que fosse o
dos juízes não eleitos, estaria assim justificado pela própria soberania
popular. Os juízes seriam a voz fiscalizadora, ou dotada de um poder
legislativo «negativo», e perpétua da soberania popular.
Daqui percebe-se mais claramente uma das muitas ligações entre o
constitucionalismo e a soberania popular ou da nação. A vontade soberana
que se exprimiu na aprovação da Constituição incluía o controlo dos
poderes políticos constituídos – já de si separados ou divididos, já de si
entrelaçados e funcionando como pesos e contrapesos uns para os outros –
por uma autoridade que os mantivesse fiéis aos preceitos constitucionais.
Limitar o poder político era um dos conteúdos da vontade soberana. A
fiscalização judicial, e a impugnação, ou a não sustentação da execução,
de uma lei por inconformidade com a Constituição, era um desses limites.
Era uma espécie de corolário inesperado, mas justificado, da doutrina da
separação e limitação do poder político. Além disso, se os preceitos
constitucionais eram um produto da soberania popular, então a
desconformidade a esses preceitos não era admissível à luz da soberania
do povo.
Era precisamente neste ponto que incidia a parte de leão do acórdão
mais estrutural da história do Supremo Tribunal americano. Nesse acórdão
o tribunal autorizava-se a si mesmo o controlo judicial das leis do
Congresso (e dos decretos do poder executivo) por inconformidade com a
Constituição. Ou, se se quiser ser menos propenso a grandes rupturas: o
acórdão tornava explícita a possibilidade da judicial review inscrita no
texto da Constituição, na chamada Supremacy Clause.556 Continuidades à
parte, redigido pelo quarto chief justice do Supremo Tribunal, John
Marshall, inimigo implacável de Thomas Jefferson e de James Madison,
sendo este uma das partes no processo, à época secretário de Estado do
Presidente Jefferson, o acórdão alargava os poderes de jurisdição, e o
alcance federal da jurisdição que já possuía, bastante além daquilo que a
Constituição previra e do que os seus arquitectos e ratificadores tinham
presumido. Foi da exclusiva responsabilidade de Marshall a proclamação
constitucional de que cabia ao poder judiciário a prerrogativa de anular
legislação.557 E deixava implícita a tese, que não seria pacífica, de que no
processo de validação constitucional das leis era ao Supremo Tribunal que
caberia a derradeira – e soberana – palavra. Não haveria maioria, ou uma
eventual supermaioria, do poder legislativo que pudesse desfazer uma
decisão do tribunal, como muitos reclamavam em nome (de uma certa
interpretação) da soberania do povo.558 A expressão judicial review só
adquiriu a força hegemónica que actualmente possui com o processo
Lochner vs. Nova Iorque de 1905. Na França revolucionária, seria o
inevitável Sieyès a fundar a ideia de um órgão colegial com estes poderes,
a que chamou primeiro jury constitutionnaire, e, mais tarde, já com
Napoleão a mandar, collège des conservateurs e finalmente na versão da
Constituição do ano VIII, sénat conservateur.559
Quem acabou por se tornar um inimigo aberto da judicial review foi
Thomas Jefferson, que ficara de pé atrás desde Marbury vs. Madison.
Depois de deixar a presidência da União, Jefferson tornara-se muito mais
céptico relativamente aos mecanismos processuais para evitar a usurpação
dos poderes políticos e adoptou uma posição genérica de popularização do
regime. Vimos que, a partir de dada altura, Jefferson favorecia a eleição
popular de todos os titulares do poder judicial para que se mantivessem
responsáveis perante o povo e lhe prestassem contas com frequência.
Passou a rejeitar igualmente poderes de fiscalização de
constitucionalidade das leis e dos actos executivos pelo poder judicial.
Preferia que, em linha com uma separação de poderes estrita, cada um dos
poderes pudesse decidir qual era a adequação das matérias que tinha a seu
cargo à luz da Constituição. Cada um dos poderes políticos era «co-
soberano», isto é, independente dos demais, separado deles e gozando de
uma posição paritária com eles. E se a preocupação dos seus adversários
políticos era com o cumprimento da Constituição, então que se começasse
por aí. Isto é, por não subordinar o executivo e legislativo ao judicial
encabeçado por juízes com mandatos vitalícios e não eleitos directamente
pelo povo, a quem não tinham de prestar contas.560
Mas não era só o romântico Jefferson que oferecia uma crítica radical da
judicial review. Duas das cabeças mais influentes no pensamento
constitucional americano naquela viragem de século, James Madison, que
entre alguns usufruía da reputação de ser o pai da Constituição, e John
Taylor, possuíam um temperamento muito diferente do de Jefferson e
foram também críticos ferozes. Segundo Taylor, o poder de interpretação e
de declaração da verdade constitucional soberana, por outras palavras,
inapelável, definitiva e vinculativa de toda a ordem jurídica e política, era
equivalente a uma usurpação dos direitos soberanos do povo. Era-o não
apenas porque colocava o legislativo e o executivo sobre a tutela judicial.
Era-o porque o poder de interpretação e de decidir da conformidade à
Constituição da lei não era neutro. «Quase» equivalia a um poder
legislativo próprio e que era exercido sem qualquer controlo popular. Era a
ressurreição de uma rematada aristocracia. À luz da soberania popular, a
judicial review devia ser rejeitada.561 No capítulo seguinte terei
oportunidade de fazer algumas observações respeitantes às opiniões de
Madison e de Taylor acerca deste ponto tão sensível.
Não obstante a proporção da inovação, a prática da judicial review foi
bastante contida durante quase todo o século XIX. Os juízes e os políticos
americanos foram localizando os seus conflitos noutras arenas. Mas no
pós-Guerra Civil a 14.ª emenda à Constituição federal que visava garantir
a protecção jurídica dos negros nos estados secessionistas, os quais
queriam contornar a derrota na guerra e manter a população dos ex-
escravos numa condição de radical dependência e destituídos de direitos,
abriu o caminho para o activismo judicial. A partir de finais do século XIX
a legislação (estadual e federal) da protecção laboral, da assistência social
e a contrária às colusões de mercado, começaram a esbarrar
sucessivamente nos acórdãos negativos do Supremo Tribunal Federal.
Como se o protesto doutrinário de gigantes do direito que eram
simultaneamente juízes do Supremo Tribunal como Oliver Wendell
Holmes não fosse suficiente, os políticos começaram a conceber meios de
anular o poder dos juízes. Ainda que o preço fosse a sacrossanta
independência do poder judicial que os fundadores constituintes tanto
tinham protegido. No centro desta discussão, que inclusivamente
dilacerou campanhas presidenciais como a de 1912, estava um problema
de soberania. A mobilização pelos políticos legisladores da opinião
pública permitiu capitalizar a frustração com os vetos judiciais. Assim, em
1908 e nos anos imediatamente seguintes alguns estados, como o Oregon
e a Califórnia, incluíram nos seus textos constitucionais estaduais o
chamado recall, ou revogação, dos juízes. Se um juiz revelasse nas suas
decisões um padrão de rejeição das iniciativas legislativas dos
«representantes do povo», este povo podia pelo exercício do direito de
petição, e subsequente sufrágio especial, destituir o juiz em causa. Teve de
ser a oposição drástica do Presidente William Howard Taft a eliminar
estas veleidades e obrigar os estados a pôr a viola no saco. Mas nada mais,
nada menos do que o ex-Presidente Theodore Roosevelt, o primeiro chefe
de Estado ambientalista das democracias ocidentais, iria logo de seguida
propor um outro recall – desta feita, não dos juízes, mas das decisões
judiciais. E não esteve sozinho. Esta proposta protegia a independência
dos juízes e, procurando a razoabilidade no seio da doutrina da soberania,
deixava perceber que num conflito entre poder judicial, declarando a
inconstitucionalidade de uma lei, e o poder legislativo, fazendo uma lei de
cuja constitucionalidade não duvidava, só havia um agente capaz de
decidir a contenda. Um agente soberano cuja decisão seria imediata e
inapelável. No regime da soberania popular esse agente era o povo. Na
verdade, nem todas as decisões jurisdicionais de inconstitucionalidade
seriam julgadas pelo povo. Apenas as que cumprissem determinados
requisitos estipulados previamente para não se abusar do instituto. Nada
disto foi por diante. E por boas razões que seria ocioso elencar aqui.
Finalmente, o todo-poderoso Presidente Franklin Roosevelt, ao ver
vetadas várias das suas iniciativas do New Deal pelo Supremo Tribunal,
decidiu fazer-lhe guerra aberta. Depois de numa das suas conversas
radiofónicas «à lareira» acusar o tribunal de agir como uma «terceira
câmara do Congresso», como um «superlegislativo», de «rever a
Constituição pelo exercício arbitrário» do poder, ameaçou com nomeações
acrescidas de juízes politicamente amigáveis do Presidente para diluir a
maioria conservadora.562 Como os juízes começassem a recuar e a anuir na
legislação do Presidente, e este se sentisse politicamente mais debilitado
por razões da evolução política do país, os planos do court-packing foram
abortados. Mas o interesse de todos estes desenvolvimentos residiu no
facto de a emergência de um problema e de uma proposta de solução desta
natureza só poderem ser compreendidos no quadro de uma teoria da
soberania (popular).563 E este quadro era precioso para compreender não
só o propósito inicial e relativamente modesto da judicial review, a
determinação da competência legislativa na origem de uma determinada
lei. Mas também para integrar o segundo momento evolutivo daquela
doutrina e daquela prática, a saber, o pronunciamento pelo tribunal da
«verdade» (hermenêutica) do texto constitucional na forma e na
substância, nos procedimentos previstos, bem como nos valores políticos
que o texto constitucional serviria. Uma soberania que pronunciava, que
ditava, o verdadeiro sobre o sentido, limite e alcance da Constituição num
regime constitucional.
Desde então, teria lugar uma profunda discussão plena de consequências
para a teoria da soberania em torno da hermenêutica jurídico-
constitucional. Tal discussão arrasta-se sem fim à vista. É impossível fazer
sequer um resumo dessa interminável discussão. Mas nesses múltiplos
fóruns de debate entre constitucionalistas é frequente aparecer em alguns a
questão da soberania. Houve quem, no debate mais particular entre os
«originalistas-textualistas» e os «evolucionistas», defendesse a
superioridade da primeira abordagem por ser a que respeitava
integralmente a soberania popular.
Ambas as correntes revelam uma extraordinária diversidade, não
devendo ser confundidas com grupos compactos que se pronunciam em
uníssono perante todas as questões da hermenêutica constitucional. Mas
com os traços mais grossos é permissível dizer o seguinte. Os
«evolucionistas» consideram a constituição como um organismo «vivo»,
um referencial jurídico que se vai expandido e, nalguns aspectos tidos por
anacrónicos, contraindo. Como algo que vai mudando consoante as
épocas, o que vale por dizer consoante as mudanças na opinião e
sentimentos públicos, as aspirações, necessidades e transformações
morais, cívicas e culturais da sociedade. Para os «evolucionistas», a
interpretação da Constituição deve ser feita à luz destas mudanças
históricas, e não segundo critérios trans-históricos. Se a sociedade
«muda», a Constituição deve acompanhar essas mudanças servindo,
assim, os grandes desígnios e propósitos societais, ou não se colocando
em contradição com eles, não obstante a fixidez do texto constitucional.
Não negam que existem «princípios fundamentais» inscritos no texto
constitucional. Mas alguns deles são demasiado vagos ou indeterminados,
além de, quando não são vagos, reflectirem arcaísmos perfeitamente
compreensíveis à luz das circunstâncias em que o texto constitucional foi
redigido, discutido e aprovado. As «ambiguidades» inerentes ao trabalho
de aplicação desses preceitos ao mundo contemporâneo recheado de
problemas genuinamente inéditos são avassaladoras. Mais importante do
que isso, desta reflexão resulta uma recomendação substantiva: os juízes
não devem estar vinculados a esses «contornos precisos, e por vezes
anacrónicos».564 Os juízes constitucionais assumem uma responsabilidade
tremenda: cooperar, passe o eufemismo, com o poder legislativo na
determinação e edificação da lei do Estado.
A esta pretensão, os originalistas chamam «usurpação». De resto, um
regime baseado na soberania do povo não aceita que de entre os poderes
políticos constituídos haja um que monopolize a expressão da soberania
popular. Recorrendo à tripartição de poderes cristalizada por Montesquieu,
nem o poder executivo, nem o poder legislativo, nem o poder judicial
podem dizer que falam pela soberania popular em detrimento dos outros.
É, por isso, uma tarefa de considerável delicadeza ter um dos poderes com
um alegado contacto mais próximo com a vontade constitucional do povo
e que a pode verbalizar de modo definitivo e inapelável. Reside também
aqui a complexidade de um governo representativo, constitucional e
liberal. Nenhum órgão de soberania pode dizer que fala pelo todo do
regime, tal como nenhum partido pode dizer que fala pelo todo da
sociedade. Mas, aceitando o protesto, nenhum dos órgãos de soberania
poderia falar pela soberania – indivisível neste sentido – do povo.
Acontecendo, não haveria alternativa a descrever a situação como uma
usurpação. No fundo, uma vontade expressa pelo povo soberano e que
pode ser inferida do acto constituinte é a que podemos fazer resultar da
extensão aos três poderes do preceito constitucional que aparece no artigo
2.º (secção III) da lei fundamental americana dedicado ao poder executivo:
façam leis conformes à vontade soberana de fazer perdurar o regime da
soberania popular e garantam que elas são bem executadas e aplicadas.
Nessa medida, os «originalistas», nas suas multivariadas estirpes e
orientações, vêem-se a eles mesmos como guardiões da soberania popular.
Porque só um método de interpretação judicial que atenda ao sentido
originário do texto constitucional, ao invés de dar prioridade à
consideração do estado moral e cultural da época presente, pode respeitar
a manifestação originária da vontade soberana popular. Interpretações
alternativas não podem senão, e independentemente das mais benévolas
intenções, constituir usurpações. Nesta suposta juristocracia, o «governo
do povo, pelo povo e para o povo» é substituído por um «governo dos
juízes», em que o trabalho do Tribunal Constitucional, ou o seu
equivalente institucional, é o de uma «contínua convenção
constitucional».565
A queixa é antiga, como vimos acima a propósito dos protestos políticos
contra o activismo judicial. Até podemos encontrar esse protesto no
discurso da primeira tomada de posse de Abraham Lincoln. Nele, Lincoln
mostrava a sua revolta com o desastroso acórdão do Supremo Tribunal,
conhecido pelo nome de uma das partes no processo Dred Scott, e que
patrocinava a tentativa sulista de perpetuação da escravatura pelo menos
numa parte significativa do território americano. Nesse discurso de 1861,
Lincoln avisava que entregar as decisões vitais nas mãos do Supremo
Tribunal, «fixando-as irrevogavelmente», era o mesmo que o «povo deixar
de ser o seu próprio governante».566 Claro que, ainda que pudessem ser
aceites como razoáveis os receios dos «originalistas», a grande dificuldade
reside em saber o que conta como intenção originária. Se é para
interpretar em conformidade com o princípio da soberania popular, e,
portanto, do seu exercício/intenção originário/a, então a repreensão de
Lysander Spooner é inteiramente pertinente. Spooner foi o mais distinto e
influente dos anarquistas americanos. Além da causa libertária que toda a
vida foi a sua, Spooner, um homem do século XIX, notabilizou-se também
pela sua acção e pensamento abolicionistas. E foi ele que observou que, ao
indagarmos o sentido jurídico da Constituição, era irrelevante perceber as
intenções dos homens que a debateram nas convenções constitucionais, ou
dos delegados à Convenção de Filadélfia. A referência aos «fundadores»
era completamente irrelevante. As únicas intenções que contavam para a
determinação do sentido jurídico da Constituição eram as do povo que a
adoptara. Só nas suas mãos, por assim dizer, aquela que não passava de
uma proposta se convertia num efectivo «instrumento» de governo. Nada
senão as intenções do povo que adoptou a Constituição podia contar para
este efeito. Adoptando-a, o povo converteu uma proposta em lei
fundamental. E ao fazê-lo exprimiu uma intenção que valia por cima das
intenções dos deputados das convenções porque estes foram eleitos pelo
povo.567 Ao se escrutinar as intenções originárias alegadamente decisivas
para interpretar a Constituição em conformidade escrupulosa com o
princípio da soberania popular, evitando as usurpações previsíveis, era
preciso levar a cabo este exercício infinitamente difícil: identificar
correctamente o sujeito cujas intenções eram decisivas. E depois
compreendê-lo com exactidão, o que inclui compreendê-lo
normativamente.
399 Jonathan Israel, Revolutionary Ideas, cap. 2.
400 Constant, Cours de Droit Constitutionnelle, II.1.
401 John Stuart Mill, Considerations on Representative Government, in The
Collected Works of John Stuart Mill, ed. John M. Robson (Toronto:
University of Toronto Press, Londres: Routledge and Kegan Paul, 1977),
Vol. XIX, pp. 403-404.
402 Título III, art.º 1.
403 Art.º 3.º, N.º 1.
404 Por ordem de referência: Declaração dos direitos do homem e do
cidadão (1793), Arts.º 25.º, 23.º, 26.º, 27.º.
405 Jules Michelet, Histoire de le révolution française, Vol. II, pp. 14.
406 Constituição de 1793, art.º 2.º.
407 Declaração dos Direitos e Deveres do Homem e do Cidadão, art.º 17.º;
Constituição do Ano III, art.º 2.º.
408 Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado, Cap. II,
§5.
409 Constituição da União da República Federativa Soviética da Rússia (10
de Julho de 1918), Título II, Cap. V, §12.
410 Constituição da URSS, 31 de janeiro 1924, Título II, art.º 3.º.
411 Constituição da URSS, 5 de Dezembro de 1936, Título I, art.º 3.º;
Título II, art.º 15.º.
412 Chisholm vs. Geórgia, 2 Dall. 419 (1793), pp. 74, 78.
413 Com inteligência retórica, a linguagem da soberania foi usada, por
exemplo, na discussão da representação paritária dos estados no Senado.
The Federalist Papers, 62.
414 Federalist Papers, 69, 75, 80, 81.
415 Benjamin Rush, «Address to the People of the United States», in John
Adams, Benjamin Rush, The Spur of Fame. Dialogues of John Adams and
Benjamin Rush 1805-1813, John A. Schutz, Douglass Adair, eds.
(Indianápolis: Liberty Fund, 2001), p. 3.
416 John Taylor, Construction Construed and Constitutions
Vindicated (Richmond: Shepherd and Pollard, 1820), §3.
417 Citado em Voegelin, Cap. I, §5.
418 James Otis, The Rights of the British Colonies Asserted and Proved, in
The Collected Political Writings of James Otis (Indianápolis: Liberty Fund,
2015), p. 170.
419 Ver acima capítulo I, §11.
420 Otis, p. 155.
421 Otis, p. 126.
422 Idem, p. 156. Os itálicos são meus.
423 The Federalist Papers, 15.
424 Carta de Adams para Jefferson, 13 de Novembro de 1815. The Adams-
Jefferson Letters. The Complete Correspondence between Thomas Jefferson
& Abigail & John Adams, Lester J. Cappon (ed.) (Chapel Hill: The
University of North Carolina Press, 1987), p. 456.
425 William Ball, «Constitutio Populi Liberi. Or the Rule of a Free-Born
People», in Joyce Lee Malcolm (ed.), The Struggle for Sovereignty.
Seventeenth-century English Political Tracts (Indianápolis: Liberty Fund,
1999), Vol. I, §§1-4, 8, pp. 284-286, 290.
426 Ball, §5, p. 287.
427 Ball, §§6, 10-12, pp. 289, 293-296.
428 An Agreement of the People, for a firm and present Peace, upon
grounds of Common-Rights, IV (3 de Novembro de 1647).
429 George Lawson, Politica Sacra et Civilis (Cambridge: Cambridge
University Press, 1992), I.4.6, 8.
430 Edmund Burke, An Appeal from the New to the Old Whigs, in Further
Reflections on the Revolution in France, ed. Daniel E. Ritchie
(Indianápolis: Liberty Fund, 1992), p. 123.
431 Sieyès, Qu’est-ce que le Tiers-État? ([S.I.], 1789).
432 Joseph de Maistre, Étude sur la souveraineté, I.1.
433 II.1, p. 420.
434 Preâmbulo do título III.
435 Voegelin, The New Science of Politics, Cap. I, §§4, 6.
436 Schmitt, Constitutional Theory, p. 129.
437 Miguel Morgado, A Aristocracia e os Seus Críticos, último capítulo.
438 Constant, II.1; nota 1, pp. 64-65.
439 Paul W. Kahn, Putting Liberalism in its Place (Princeton: Princeton
University Press, 2008), pp. 260-272.
440 Bodin, I.8.
441 Glenn Burgess, «Bodin in the English Revolution», in The Reception of
Bodin, p. 400.
442 Bodin, II.2, 7, VI.6; Tuck, The Sleeping Sovereign, p. 12.
443 Rousseau, Du Contract Social, II.12, II.4, III.18, III.16, III.4, III.14;
Lettres écrites de la Montagne, V-VI; Jugement sur la Polysynodie,
Oeuvres complètes (Pléiade), Vol. III, p. 645.
444 Para a referência ao «povo novo» para quem foi feita a Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, ver Sieyès, Reconnoissance et exposition
raisonnée des Droits de l’Homme et du Citoyen (Paris: Baudoin, 1789), p.
16.
445 Emer Vattel, Le Droit des Gens ou Principes de la loi naturelle
appliqués à la conduite et aux affaires des nations et des souverain, trad.
francesa (Paris: J. P. Aillaud, 1835), Préliminaires, §§1-2.
446 Burke citado em Alfred Cobban, «The Rise of the Nation-State
System», in John Hutchinson, Anthony D. Smith (eds.), Nationalism
(Oxford: Oxford University Press, 1994), p. 247.
447 Emmanuel Sieyès, Qu’est-ce que le Tiers État?, pp. 111-116;
Reconnoissance et exposition raisonnée des Droits de l’Homme et du
Citoyen, pp. 19, 35.
448 Miguel Morgado, «A Separação dos Poderes: dos Poderes “Canónicos”
ao Estado Regulador», in O Conservadorismo do Futuro e outros ensaios
(Lisboa: Edições 70, 2017).
449 M. J. C. Vile, Constitutionalism and the Separation of Powers, 2.ª
edição (Indianápolis: Liberty Fund, 1998), p. 182.
450 Gérard Mairet, Histoire des idéologies, Vol. 3 (Paris: Hachette, 1978),
citado em Agamben, Homo Sacer, p. 48.
451 Du Contract Social, II.7.
452 Chiara Collamati, «Pour une philosophie politique sartrienne.
Réflexions à partir d’un ouvrage recent», Études sartriennes ed. Garnier, N.
° 21, 2017, Penser avec Jean-Paul Sartre aujourd’hui, p. 131-147.
453 Augusto Illuminati, «Unrepresentable Citizenship», in Paolo Virno,
Michael Hardt (eds.), Radical Thought in Italy. A Potential Politics
(Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996), p. 184.
454 Paolo Virno, «Virtuosity and Revolutions: The Political Theory of
Exodus», in Radical Thought in Italy. A Potential Politics, pp. 200-201.
455 Peter C. Caldwell, «Hugo Preuss’s Concept of the Volk: Critical
Confusion or Sophisticated Conception?», The University of Toronto Law
Journal, Vol. 63, N.º 3, 2013, pp. 347-384.
456 Friedrich Schlegel, Essay on the Concept of Republicanism occasioned
by the Kantian Tract «Perpetual Peace», in Frederick C. Beiser (ed.), The
Early Political Writings of the German Romantics (Cambridge: Cambridge
University Press, 1996), p. 104.
457 Citação de Napoleão em Andrew Arato, The Adventures of the
constituent power: beyond revolutions? (Cambridge: Cambridge University
Press, 2017), p. 292.
458 Carta Constitucional, Prólogo; Título I, Arts.º I, 4; Título III, art.º 12.
459 Citado em Rui Ramos, «Entre Revolução Política e Evolução Social:
uma História do Conceito de Democracia (Portugal, século XIX)», Ariadna
histórica. Lenguajes, conceptos, metáforas, 1 (2012), p. 175.
460 Rui Ramos, D. Carlos (Lisboa: Círculo de Leitores, 2006), p. 106.
461 Constituição Política da Monarquia Espanhola, 1812, preâmbulo, título
I, Cap. I, art.º 3.
462 Ángel Rivero, La Constitución de la Nación. Patriotismo y Libertad
Individual en el Nacimiento de la España Liberal (Madrid: Gotaagota,
2011), p. 31.
463 Giuseppe Mazzini, Manifesto of Young Italy, in Stefano Recchia and
Nadia Urbinati (eds.), A Cosmopolitanism of Nations: Giuseppe Mazzini’s
Writings on Democracy, Nation Building, and International Relations, p.
34.
464 Mazzini, p. 36.
465 Mark Mazower, Governing the World: the History of an Idea, pp. 47-
60.
466 Mazzini, On the Duties of Man, in A Cosmopolitanism of Nations, pp.
96-99.
467 Mazzini, «On the Superiority of Representative Government», in A
Cosmopolitanism of Nations, p. 43.
468 Mazzini, Nationalism and Nationality, in A Cosmopolitanism of
Nations, p. 63.
469 Mazzini, Humanity and Country, in A Cosmopolitanism of Nations, p.
55.
470 Mazzini, Nationality and Cosmopolitanism, p. 65.
471 Stefano Recchia, Nadia Urbinati, introdução a A Cosmopolitanism of
Nations, p. 15.
472 Mazzini, Nationality and Cosmopolitanism, p. 64.
473 Mazzini, p. 60.
474 Mazzini, «In Defense of Democracy: A Reply to Mr. Guizot», in A
Cosmopolitanism of Nations, p. 74.
475 Mazzini, «On the Superiority of Representative Government», p. 48.
476 Mazzini, p. 48. Os itálicos estão no original.
477 Idem, p. 50.
478 Mazzini, «In Defense of Democracy: A Reply to Mr. Guizot», p. 75.
479 Mazzini, On the Duties of Man, p. 95.
480 Mazzini, «On the Superiority of Representative Government», p. 50.
481 Mazzini, Humanity and Country, p. 53.
482 Mazzini, «In Defense of Democracy: A Reply to Mr. Guizot», p. 76.
483 Lorde Acton, «Nationality» [1862], in The History of Freedom and
other essays, John Neville Figgis, ed. (Londres; Macmillan, 1907), 273-
274.
484 Acton, pp. 278-279.
485 Acton, pp. 281-298.
486 Distinção em Bernard Yack, «Sovereignty and Nationalism», Political
Theory, Vol. 29, N.º 4, 2001, pp. 517-536.
487 Miguel Morgado, «O Conservadorismo do Futuro», in O
Conservadorismo do Futuro e outros ensaios; Miguel Morgado, «A
comunidade política e o futuro», in Jorge Pereira da Silva, Gonçalo
Almeida Ribeiro (coords.), Justiça entre Gerações. Perspectivas
Interdisciplinares (Lisboa: Universidade Católica Editora, 2017).
488 Carré de Malberg, Contribution à la Théorie Générale de l’État (Paris:
Recueil Sirey, 1920), Vol. II, pp. 170-197; Luís Pereira Coutinho, O Estado
como Representação. Momento hobbesiano, momento pós-revolucionário,
problemas contemporâneos (Lisboa: AAFDL Editora, 2019), pp. 83-92.
489 Antonio Negri, Michael Hardt, Empire (Cambridge: Harvard
University Press, 2000).
490 Yack, pp. 517-536.
491 Walker Connor, «A Nation is a Nation, is a State, is an Ethnic Group, is
a…», in John Hutchinson, Anthony D. Smith (eds.), Nationalism (Oxford:
Oxford University Press, 1994), pp. 36-46.
492 Ernst Renan, Qu’est-ce qu’une nation? (Paris: Calmann Lévy, 1882),
pp. 7-8.
493 Walter Ullmann, Principles of Government and Politics in the Middle
Ages (Londres: Routledge, 2010), p. 5. 
494 Pierre Manent, Metamorfoses of the City. On the Western Dynamic,
trad. inglesa (Cambridge: Harvard University Press, 2013), p. 324; «What is
a Nation», Intercollegiate Studies Institute, 2014,
https://isi.org/intercollegiate-review/what-is-a-nation/.
495 Hans Morgenthau, Politics Among Nations, 6.ª edição (Nova Iorque: A.
Knopf, 1985), p. 345.
496 Art.º 11, N.º 1.
497 Jiri Hoetzel, V. Joachim (eds.), The Constitution of the Czechoslovak
Republic (Praga: ESET, 1920), preâmbulo; secção I, art.º 1, N.º 1-2; secção
IV, art.º 128-134.
498 Adrian Hastings, The Construction of Nationhood: Ethnicity, Religion,
and Nationalism (Cambridge: Cambridge University Press, 1996), pp. 114,
186.
499 Yoram Hazony, The Virtue of Nationalism (Nova Iorque: Basic Books,
2018), pp. 101-103.
500 Maurice Hauriou, Précis élémentaire de droit constitutionelle, 2.ª
edição (Paris: Recueil Sirey, 1930), pp. 5-6.
501 Jan-Werner Müller, Constitutional Patriotism (Princeton: Princeton
University Press, 2007).
502 Will Kymlicka, «Misunderstanding Nationalism», in Ronald Beiner
(ed.), Theorizing Nationalism (Albany: State University of New York Press,
1999), pp. 131-140.
503 Thomas Babbington Macaulay, «Sir William Temple», in Critical and
Historical Essays (Londres: Longman, Green, Longman, and Roberts,
1859), Vol. II, p. 30.
504 Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France, in Select
Works of Edmund Burke (Indianápolis: Liberty Fund, 1999), Vol. II, pp.
135, 121-122; A Letter to a Member of the National Assembly, in Further
Reflections on the Revolution in France, Daniel E. Ritchie (Indianápolis:
Liberty Fund, 1992), pp. 65, 67-69; An Appeal from the New to the Old
Whigs, pp. 84, 149, 151, 157, 167, 196., 199, 229.
505 De Maistre, Étude sur la souveraineté, I.9, p. 373.
506 I.9, p. 369.
507 The Federalist Papers, 49.
508 Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France, in Edmund
Burke, Select Works of Edmund Burke, Francis Canavan, ed. (Indianápolis:
Liberty Fund, 1999), p. 193.
509 Thomas Paine, Rights of Man: Being an Answer to Mr. Burke’s Attack
on the French Revolution, 2.ª edição (Londres: J.S. Jordan, 1791), pp. 11-
12, 16.
510 Du Contract Social, I.7.
511 Art.º 28.º.
512 Du Contract Social, III.15.
513 Discurso na Assembleia Constituinte, 7 de Setembro de 1789.
514 Carré de Malberg, «Considérations Théoriques sur la Question de la
Combinaison du Referendum avec le Parlamentarisme», Revue du Droit
public et de la Science politique em France et à l’Étranger, Abril/Junho,
1931, p. 6.
515 Martin Loughlin, Sword and Scales. An Examination of the
Relationship between Law and Politics (Oxford: Hart, 2000), pp. 137-138.
516 Loughlin, p. 152, citando Lord Reid no acórdão de Madzimbamuto vs.
Lardner-Burke [1969] 1 AC 645, 723, sobre a legalidade da declaração da
independência da Rodésia em 1965.
517 Carré de Malberg, «Referendum», p. 9.
518 Idem, p. 20.
519 Sieyès, Reconnoissance et exposition raisonnée des Droits de l’Homme
e du Citoyen (Paris: Baudoin, 1789), pp. 18, nota 1, 36; Brissot em Tuck,
Sleeping Sovereign, p. 149.
520 Francisco Sá Carneiro, «Discurso de Abertura do Congresso Regional
do PSD da Madeira», in Textos (Óbidos: Aletheia Editores, 2012), Vol. VI,
pp. 128-129.
521 Charles De Gaulle, Discurso de 4 de Setembro,
https://www.senat.fr/evenement/colloque/cinquieme_republique/discours_d
e_gaulle.html.
522 Miguel Nogueira de Brito, «Democracia e Revisão Constitucional», in
Justiça entre Gerações, p. 182.
523 George Washington, «Farewell Address» [1796], consultado em
https://www.ourdocuments.gov/doc.php?
flash=true&doc=15&page=transcript.
524 Kilberg, «We the People», pp. 1073-1074.
525 Étude sur la Souveraineté.
526 De Maistre, I.4, p. 325.
527 Idem, p. 328.
528 De Maistre, I.7, p. 352.
529 Idem, pp. 354-355.
530 James Harrington, A system of politics, in The Commonwealth of
Oceana and A System of Politics, J. G. A. Pocock (ed.) (Cambridge:
Cambridge University Press, 2001), Cap. V, #20; Arihiro Fukuda,
Sovereignty and the Sword. Harrington, Hobbes, and Mixed Government in
the English Civil Wars (Oxford: Oxford University Press, 1997), pp. 123-
126.
531 Carta a Eugène Stoffels, 24 de Julho de 1836.
532 Alexis de Tocqueville, Da Democracia na América, I.2-4.
533 Idem, I.4, 8.
534 Renan, Qu’est-ce qu’une nation?, p. 3.
535 Montesquieu, Do Espírito das Leis, XIX.4.
536 John Stuart Mill, System of Logic: Raciocinative and Inductive, in The
Collected Works of John Stuart Mill, ed. J.M. Robson (Toronto: University
of Toronto Press, Londres: Routledge and Kegan Paul, 1963-1991), 33
Vols., Vol. VIII, pp. 904-906.
537 John Stuart Mill, System of Logic: Raciocinative and Inductive, pp.
923-924.
538 John Stuart Mill, Considerations on Representative Government, in The
Collected Works of John Stuart Mill, ed. John M. Robson (Toronto:
University of Toronto Press, Londres: Routledge and Kegan Paul, 1977),
Vol. XIX, pp. 546-548.
539 Benedict Anderson, Comunidades Imaginadas. Reflexões sobre a
origem e a expansão do nacionalismo, trad. portuguesa (Lisboa: Edições
70, 2012), pp. 27, 25.
540 Richard Eburne, A Plaine Path-way to Plantations (1624), citado em
Adrien Hastings, The Construction of Nationhood: Ethnicity, Religion, and
Nationalism (Cambridge: Cambridge University Press, 1996), p. 74.
541 Renan, p. 27.
542 Jules Michelet, Histoire de La Révolution Française (Paris: Gallimard,
1952), Vol. I, pp. 7-8, 146, 81, 428.
543 Pufendorf, VII.2§8.
544 Idem, VII.5§6.
545 Robert Filmer, Observations Concerning the Originall of Government,
upon Mr. Hobs Leviathan, Mr. Milton against Salmasius, H. Grotius De
Jure Belli, pp. 184-185; Observations upon Aristotles Politiques, Touching
Forms of Government, Together with Directions for Obedience to
Governours in dangerous and doubtfull Times in Patriarcha and Other
Writings, p. 276; George Lawson, An Examination of the Political Part of
Mr. Hobbs His Leviathan in Leviathan. Contemporary Responses to the
Political Theory of Thomas Hobbes, G. A. J. Rogers (ed.), Thoemmes
Press, 1995, pp. 15-16; Clarendon, A Survey of Mr. Hobbes His Leviathan,
p. 207.
546 David Hume, «Do Contrato Original», in Ensaios Morais, Políticos e
Literários, trad. portuguesa (Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda,
2002), pp. 402-403.
547 Grócio, I.3§7.
548 Pufendorf, VII.6§4.
549 Grócio, I.3§8.
550 Barbeyrac, [Grócio], I.3§8, notas 1, 9, 20, I.3§13, nota 8. Ver John
Locke, Dois Tratados do Governo Civil, Caps. XVIII-XIX.
551 Rousseau, Du Contract Social, I.2.
552 Neil Walker, «Post-Constitutional Constitutionalism? The Case of the
European Union», in Martin Loughlin, Neil Walker (eds.), The Paradox of
Constitutionalism Constituent Power and Constitutional Form (Oxford:
Oxford University Press, 2007), pp. 248-249; Burke, An Appeal from the
New to the Old Whigs, p. 123.
553 Antonio Rivera García, «La censura política concentrada: del eforato
calvinista al tribunal constitucional», Res publica, 3, 1999, pp. 127-141.
554 Espinosa, Tratado Político, Diogo Pires Aurélio, ed. portuguesa
(Lisboa: Temas e Debates, 2012), VIII.20-28, 41, 44.
555 Gordon S. Wood, «Comment», in Antonin Scalia (Amy Gutman, ed.),
A Matter of Interpretation. Federal Courts and the Law (Princeton:
Princeton University Press, 1997), pp. 59-60; Antonin Scalia, «Response»,
in idem, pp. 129-130.
556 Art.º VI, N.º 2.
557 Horace A. Davis, «Annulment of Legislation by the Supreme Court»,
American Political Science Review, Vol. 7, N.º 4 (1913), pp. 541-587.
558 Marbury vs. Madison, 1 Cranch 137 (1803), pp. 176-178.
559 Constituição do ano VIII, Título II, Arts.º 15-24.
560 M. J. C. Vile, Constitutionalism and the Separation of Powers, 2.ª
edição (Indianápolis: Liberty Fund, 1998), p. 181.
561 John Taylor, An Inquiry into the Principles and Policy of the
Government of the United States (Fredericksburg, VA: Green and Cady,
1814), pp. 181-200.
562 Roosevelt, Discurso radiofónico de 9 de Março de 1937.
https://millercenter.org/the-presidency/presidential-speeches/march-9-1937-
fireside-chat-9-court-packing.
563 Edouard Lambert, Le gouvernement des juges et la lutte contre la
legislation sociale aux États-Unis (Paris: Marcel Giard, 1921), pp. 92-100.
564 William J. Brennan, Jr., «The Constitution of the United States:
Contemporary Ratification», Text and Teaching Symposium, Georgetown
University, 12 de Outubro, 1985.
565 James Beck, The Constitution of the United States (1922), citado em
Raoul Berger, Government by the Judiciary. The Transformation of the
Fourteenth Amendment, 2.ª edição (Indianápolis: Liberty Fund, 1997), p. 4.
566 Abraham Lincoln, discurso da Primeira Tomada de Posse, 4 de Março
de 1861, §29.
567 Lysander Spooner, The Unconstitutionality of Slavery, pp. 114-116,
citado em Tuck, Sleeping Sovereign, p. 279.
III

A SOBERANIA «PARTILHADA»
1. Nós, Modernos
As décadas desde o final da Primeira Guerra Mundial, e sobretudo as
que nos separam do final da Segunda Guerra Mundial, testemunharam a
ascensão na Europa de uma crítica incomplacente da soberania. Tal não se
passou fora da Europa até porque estas foram as décadas da
descolonização na Ásia e em África, da autodeterminação dos povos e da
constituição de dezenas de novos Estados soberanos. Na Europa, porém,
os anos foram sendo cada vez mais propícios à contemplação de novas
formas políticas que deixassem para trás o Estado nacional soberano. Em
termos filosóficos estava tudo radicado em ideias já bastante antigas que
remontavam ao século XVIII. Em parte fruto de uma subida até às últimas
consequências lógicas do pensamento democrático, uma certa abordagem
cosmopolita, ou anti-estadualista, virava-se contra a própria construção
popular, nacional, democrática do Estado soberano.
Estas foram as décadas igualmente da «construção europeia». Não se
tratou de uma coincidência. Embora resultado de uma confluência de
inspirações doutrinárias e filosóficas algo heterogéneas, o processo de
integração europeia encontrou, nos seus momentos decisivos, um apoio
indispensável na corrente anti-soberanista. A hesitação que ainda resiste
pode ser traduzida nos seguintes termos. O desejo de avanço europeu para
formas políticas anti-soberanistas reflecte um desejo mais fundamental de
ser moderno. Resquícios de arcaísmos e de enraizamentos pouco
modernos é como os mais vanguardistas vêem a resistência do
soberanismo. São, ao cabo e ao resto, atavismos. Contudo, o Estado
soberano é o Estado moderno, e trouxe consigo um modo de existência
política-cívica moderna. Esse modo de existência é moderno também no
ser democrático, coisa não despicienda para quem se reclama da
vanguarda progressista da humanidade – ou da europeidade. Então, a
tensão reside na tentativa de conciliar o que é moderno no Estado
soberano com a nova forma política resultante da crítica da soberania e
que se quer mais moderna que qualquer outro produto da Modernidade.
Nos espíritos mais conciliadores, a expressão desse compromisso, e que
migrou para a linguagem «oficial» das instituições entretanto criadas e
aumentadas, está na ideia de soberania partilhada.
Mas tal coisa existirá? Ela não será flagrantemente contraditória com o
carácter absoluto e indivisível da soberania, por exemplo? Um poder
soberano exercido num território delimitado por fronteiras soberanas pode
ser partilhado com outra soberania? Diferentes nações podem partilhar
um território sob uma mesma soberania, chegando a um compromisso
político quanto à entidade em que reside a soberania e a exerce. Os
arranjos federais quiseram responder a essa necessidade histórica de
compromisso político. Os impérios também o faziam, mas por recurso a
outros instrumentos externos ao político. Mas o que dizer de partilhar o
mesmo território, não com outra nação, mas com outra soberania? Muitos
disseram que tal era impossível. Diziam que os impérios identificavam
sem qualquer sombra de dúvida a sede da soberania. E diziam ainda que
os federalismos, bem vistas as coisas, acabavam por situá-la no Estado
federal sem qualquer «partilha» com os estados federados.
Vimos que no início do século XVIII a soberania «partilhada» já se usava
para designar a soberania dividida. Recorria-se à souveraineté partagée
tanto na sua versão horizontal, correspondendo à familiar separação dos
poderes – e mais vale limparmos do caminho que nos resta no presente
livro este possível sentido já abundantemente discutido –, como na versão
vertical, correspondendo à solução federal, possibilidade que nos interessa
de sobremaneira neste último capítulo. Mas não é por uma expressão estar
em uso que devemos considerá-la livre de dificuldades, objecções ou
contradições.
Segundo Barbeyrac, «quando a soberania é verdadeiramente partilhada,
o povo exerce uma parte da soberania que foi reservada para si, com
completa independência e sem qualquer obrigação de consultar o rei».568
A soberania partilhada implicava mais do que atribuir ao povo um veto
sobre as decisões do príncipe. Havia soberania partilhada apenas quando
o povo possuía um direito próprio de iniciativa política, pelo menos
nalguns domínios. Barbeyrac falava aqui por muitos autores de
inclinações liberais. A noção de soberania tinha de ser considerada e
ajustada às exigências da liberdade dos cidadãos e dos seus direitos, as
quais não podiam ser atendidas se tivesse por diante um poder ilimitado.
Daí que Barbeyrac apelasse a um «modo de expressão» que «reunisse»
num conceito coerente «quer a soberania absoluta, quer a soberania
limitada». Era nesse sentido que se afigurava crucial apurar o conceito de
soberania partilhada.569
Resumindo o problema, a soberania pode partilhar-se sem se negar a si
mesma? Os mais puristas dirão que não. Impossível! Os mais cínicos
concederão que se trata de um puro jogo de palavras para calar os
soberanistas e seguir em frente no processo de esvaziamento dos Estados
nacionais europeus. Vejamos uma outra possibilidade.
Esta possibilidade nunca deve ser desvalorizada na filosofia política. A
soberania partilhada pode fazer sentido enquanto metáfora de uma
realidade política complexa. O que não quer dizer que, por ser metáfora,
esteja dispensada de um exame crítico. A metáfora, enquanto metáfora,
deve ser julgada como adequada ou desadequada nas suas
correspondências fundamentais. Deve ser sujeita ao escrutínio dos limites
dessa metáfora na ilustração do fenómeno subjacente. Deve ser
considerada à luz do impacto político e do seu uso retórico. E, finalmente,
deve ser aferida na sua capacidade para ir respondendo positivamente aos
desenvolvimentos dialécticos do conceito nuclear que lhe dá sentido.
Esvaziar um conceito do seu significado substantivo e relegá-lo para o
estatuto de metáfora é indubitavelmente uma negação da sua validade
como conceito – embora não como metáfora. Neste sentido, a metáfora
pretenderia ilustrar um novo princípio ético-político de governação, que
deixaria para trás uma noção «absoluta» de poder e abraçaria a ideia de
negociação e diálogo permanentes entre interlocutores diferentes num
regime de igualdade. A partilha apareceria aqui a contrastar com a
apropriação unilateral e a consequente sujeição de uns à vontade de outro.
Existe ainda uma via de resgate do conceito de soberania «partilhada».
Desfazendo imediatamente o mistério: a soberania «partilhada» mantém a
sua relevância conceitual se for a actualização para as circunstâncias
modernas da noção velha de regime misto, quando classificado por uma
teoria da soberania. Esta última qualificação é indispensável. Sem ela,
não há qualquer aproximação caridosa que salve a relevância conceitual
apontada. Recorde-se que o regime misto queria misturar elementos
políticos primordiais identificados por uma das divisões mais sublinhadas
pela filosofia política clássica, a saber, os muitos, os poucos e o um só. No
regime misto havia uma acomodação institucional e moral dos três
elementos democrático, aristocrático e monárquico. Está fora de causa
querer transpor estes elementos para a noção de soberania «partilhada».
Deste modo, uma teoria da soberania ignora as divisões da filosofia
política clássica e analisa a realidade política considerando o poder e as
atribuições de poderes. Situa imediatamente a comunidade política no
plano da igualdade da cidadania e dos imperativos democráticos gerais. É
nessa medida, e apenas nessa medida, que a soberania «partilhada» pode
ser repescada como a actualização de uma mistura política essencial.
Porquanto, se homens como Guizot puderam apresentar o governo
parlamentar de gabinete numa monarquia constitucional como a
concretização moderna do regime misto, haverá margem de tolerância
para testar a hipóteses de um regime misto na óptica de uma soberania
«partilhada».
Numa era que assume como grande pecado intelectual uma opção pelo
monismo, seja lá em que domínio for, o debate sobre a soberania também
reflectiria os rituais de purificação e de expiação. A soberania partilhada
serve o propósito como nenhum outro predicado da soberania poderia
servir. O contexto do processo de «integração» europeia tem enquadrado
as iniciativas mais interessantes a este respeito. Se um Estado decide
partilhar a sua soberania, decide forçosamente não voltar a fazer
«escolhas soberanas» unilaterais. Decidir pela partilha da soberania
resulta da conclusão a que se chega de que, nas circunstâncias históricas
do pós-Segunda Guerra Mundial em diante, o exercício unilateral e
solitário da soberania é ineficaz quando não fútil e contraproducente.
Salvaguardar o «modelo social europeu», por exemplo, no contexto da
globalização, só é possível partilhando a soberania. Mas ao mesmo tempo
a partilha não é alienação em favor de outrem. Partilhar a soberania
implica decidir que o Estado nacional mantem um papel relevante e com
um estatuto pelo menos tendencialmente paritário ao da União. Cabe
perguntar: que estatuto é esse? Não será certamente o de agente que
exerce os poderes decisivos – esses a cargo da União –, mas o de «garante
do direito e da liberdade» e de «incorporações das culturas nacionais
dignas de preservação». Partilha-se a soberania que se exerce e a
soberania que constitui. Este entendimento de soberania partilhada
estende-se à teoria do poder constituinte. Independentemente de ser uma
extensão que desafia a nossa tolerância à nebulosa intelectual, a ideia é a
de que o indivíduo do povo nacional quis partilhar o seu poder
constituinte com o cidadão europeu, que são, evidentemente uma e a
mesma pessoa. A partir deste ponto nevrálgico do poder constituinte, a
soberania partilhada converte-se no «padrão de legitimação» das
instituições supranacionais. Converte-se na bússola para as metamorfoses
de uma forma política sui generis sem seguir as formas canónicas do
federalismo ou da confederação, para a distribuição de competências que
tem de ser «equilibrada» e para o controlo democrático a fazer.570 Vale a
pena recordar que esta interpretação específica de soberania partilhada
patrocinava um movimento que culminaria, desejavelmente para o seu
autor, na constitucionalização da UE rumo a uma soberania europeia em
que pouco haveria a partilhar com o Estado nacional.
2. A Europa com princípios e em imagens
Se excluirmos a linguagem da pós-soberania incondicional, que não faz
qualquer compromisso, nem uso da noção de soberania, as expressões
mais usadas para descrever o processo histórico de constituição e
consolidação das instituições europeias são duas. Além da soberania
partilhada, há inúmeras alusões a «transferências» de soberania dos
Estados-membros para as instituições europeias. A par da partilha de
soberania, temos, pois, a soberania transferida. A soberania partilhada
sugere que a soberania nacional dos Estados-membros pode ser partida em
peças inteiras – as famosas «competências» –, que podem ser contadas
como unidades discretas. Ao passo que subjacente à soberania
«transferida» podemos visualizar a imagem da torneira. Uma torneira que
se abre e se fecha depois de despejado um quantum, uma quantidade, que
flui, mas não reflui (!), segundo um contínuo. De acordo com esta última
imagem, a soberania não se pode partir em bocados perfeitamente
circunscritos. Pode apenas transferir-se como um líquido em fluxo, em
que o fluxo pode ser interrompido. No entanto, e independentemente de
saber se a partilha e a transferência se inscrevem nesta dualidade dos
sólidos discretos e líquidos em fluxo, a partilha por contraponto à
transferência sugere ainda outro ponto a que já aludi. A partilha, como
num piquenique comunitário, onde cada um põe a sua parte à disposição
de todos e pode regressar com o seu quinhão que não foi consumido na
festa, sugere que se põe algo em comum e adiciona a possibilidade de se
regressar a uma posição de apropriação nacional. Em contrapartida, a
transferência não o permite. Há um fluxo, que pode ser interrompido e
retomado. Mas não há a possibilidade do refluxo, de voltar a pôr o líquido
dentro da torneira. A expressão «transferência de direitos de soberania»
soa a combinação das duas anteriores, pois os direitos de soberania, em
princípio, podem ser enumerados e circunscritos. Mas será a sua
transferência, enquanto transferência, reversível?
O princípio constitucional inscrito no tratado fundador da Comunidade
Económica Europeia, de 1957, recorrentemente invocado ao longo das
décadas, parece ser traduzido pela imagem da torneira e do líquido: «uma
união cada vez mais estreita». Este princípio parece não autorizar a
partição da soberania em unidades discretas, ou em «competências»
claramente definidas e circunscritas, e parece enquadrar um processo
histórico-político irreversível. Neste caso, não tanto como o curso de um
rio que corre em direcção ao mar num leito inclinado, mas antes como um
movimento centrípeto em que, começando de pontos afastados entre si em
torno de um centro imaginário, caminhamos para uma aproximação de
cada um deles, que correspondem aos Estados nacionais. O trajecto de
aproximação não é exactamente de uns pontos para os outros, mas para o
tal centro imaginário onde todos irão repousar ao mesmo tempo – ou a
«várias velocidades». Ao se irem aproximando até ao repouso final, os
pontos anteriormente afastados, os Estados nacionais, vão convertendo
com a sua substância própria o centro imaginário num centro real ou
substantivo. O ponto de encontro final de repouso deste processo de uma
união cada vez mais estreita não está previamente definido. Quer isto
dizer: no dito princípio não encontramos a declaração de um limite para a
absorção dos pontos em aproximação pelo centro. Até que ponto o centro
pode absorver a substância das partes em aproximação para continuar essa
aproximação, para continuar a estreitar a união? Poderá fazê-lo até
extenuar por completo a substância das partes? Poderá chegar à união que
não pode mais ser estreitada por já não existir qualquer distância a separar
as partes umas das outras, nem a separar as partes do centro? Segundo a
lógica própria do movimento implícito na imagem, esse limite não existe.
A existir terá de ser fruto de uma decisão política – ou dos Estados-
membros, ou do centro. O limite terá de ser imposto externamente ao
princípio constitucional por uma decisão política que o contenha ou
modere – ou, num caso extremo de catástrofe continental, o revogue.
Quando o Reino Unido se preparava para organizar o referendo que
viria a ser o do Brexit, o primeiro-ministro britânico David Cameron
percorreu as capitais europeias em busca de apoio político para um
conjunto de garantias que pudesse acenar ao eleitorado. No Conselho
Europeu de 18-19 de Fevereiro de 2016 conseguiria declarações
importantes, embora não o apoio para todas as suas reivindicações. Nas
conclusões do referido Conselho Europeu foi introduzido um Anexo com
uma «decisão» dos chefes do Estado e do governo europeus. Consistia
numa clarificação sobre a latitude a dar ao Reino Unido na União
Europeia e uma tranquilização do eleitorado britânico mais alarmado com
compromissos futuros que pudessem passar à margem do seu
consentimento directo. Todo o Anexo é muito curioso a vários títulos.
Mas, para irmos ao que nos interessa, mencionemos apenas a «Secção C»
sugestivamente intitulada Soberania. Aí ficou estabelecido, como decisão
política pura, que a referência à união cada vez mais estreita inscrita nos
tratados afinal de contas não providenciava
uma base legal para estender o alcance de nenhuma provisão dos
tratados nem da legislação secundária da UE. Não deve ser usada nem
para apoiar uma interpretação extensiva das competências da União,
nem dos poderes das suas instituições tal como estão estabelecidas
nos tratados.571
O Conselho Europeu para tentar resolver um apuro eleitoral avançava
com uma interpretação fundamental do conteúdo jurídico do Tratado.
Qualquer alteração nas competências das instituições só poderia ser
efectuada com revisões dos tratados. E os povos europeus que estavam
envolvidos na tal união cada vez mais estreita eram apenas os que
partilhavam uma visão comum desse progresso da integração. Excluía
garantidamente o Reino Unido e todos os outros que lhe quisessem juntar
com um estatuto de excepção dentro da União por terem «caminhos de
integração» alternativos. Era até compatível com a devolução aos Estados-
membros de competências conferidas à União! Dada a sua circunstância e
o propósito eleitoral que servia não sabemos se esta decisão era definitiva
e irrevogável. Sabemos apenas que o objectivo que visava acabou por sair
gorado. O Reino Unido acabaria efectivamente por abandonar a UE. No
frenesim que se seguiu ao referendo foram levadas a cabo iniciativas para
apurar se havia, de facto, competências da União que fariam melhor se
fossem devolvidas aos Estados-membros. O que se passou pode dar
algumas indicações sobre a fiabilidade da declaração do Conselho. Uma
comissão especialmente nomeada para fazer esse levantamento, chefiada
por Frans Timmermans, à época primeiro vice-presidente da Comissão
Europeia liderada por Jean-Claude Juncker, lançou mãos à obra. Juncker
anunciou-a com pompa no discurso do Estado da União de 2017.
Chamou-lhe Task Force «Subsidiariedade e Proporcionalidade», com o
propósito proclamado de «garantir que só intervimos quando a acção da
UE tiver valor acrescentado». A bordo da louvada Task Force iam também
deputados do Parlamento Europeu e dos Parlamentos Nacionais.
Resultado final dos trabalhos hercúleos da intrépida Task Force? Cerca de
oito meses depois de ter sido constituído, o relatório final dizia que o
«grupo de trabalho não identificou quaisquer competências ou domínios
de intervenção do Tratado que devessem ser delegados definitivamente,
total ou parcialmente, aos Estados-membros».572 Mais cristalino era
impossível.
Vale a pena recordar que, se o princípio que foi extraído do preâmbulo
do Tratado de Roma parece não reconhecer limites, a frase donde o
princípio foi retirado e que abre os considerandos do Tratado fornece os
limites para quem quiser procurá-los: «Determinados a estabelecer os
fundamentos de uma união cada vez mais estreita entre os povos europeus
[...].» Quem está determinado a assim proceder? O que equivale a
perguntar: quem são os signatários/contrapartes do Tratado de Roma de
1957? Os dos seis países fundadores da CEE representados pelos seus
chefes do Estado ou do governo. E depois, com os novos tratados, todos
os Estados ratificadores. São os Estados por uma decisão soberana que
estão determinados a proceder a uma união cada vez mais estreita. Poder-
se-ia ripostar, porém, que este é um princípio de legitimidade do processo,
mas não necessariamente um limite ao movimento desse processo, que era
aquilo que procurávamos. Mas os signatários definem de algum modo o
que são os pontos/partes, ou quem são os pontos/partes em aproximação.
São os «povos europeus» no plural. Os povos que nesta acepção não são
meramente «culturais», com línguas, religiões, tradições, hábitos e
memórias diferentes. Os povos aparecem aqui como mais do que etnias.
Os povos aparecem como agentes políticos próprios que não abdicam de
sê-lo. Os povos aparecem como conteúdo primário das nações no plural,
isto é, como não rumando para a unicidade do povo, ou da nação, no
singular, mas querendo cooperar, aproximar-se, formar uma união, mas
sempre conservando a sua especificidade e unidade.
Teremos de regressar a este problema.
3. A paz perpétua é compatível com a soberania? (1)
Muitas foram as objecções colocadas à noção de soberania tal como ela
foi emergindo desde o século XVI até à sua metamorfose em soberania
popular. Para lá das metamorfoses, sendo sempre soberania, esteve
exposta e vulnerável a todo o tipo de objecções, desde as relativas à
(in)coerência jurídica até à (in)sustentação lógica. Todavia, no plano
político os ilogismos e as incoerências constitucionais são tolerados, e até
abraçados, porventura como tesouro da particularidade que o tempo
deixou sobreviver. Pelo contrário, é a ordem moral que acaba por arrastar
tudo à sua passagem. Desde que consistente e ajustada ao zeitgeist, a
objecção moral é a única que pode ser invencível. Em boa medida, a
soberania partilhada apareceu para dar conta das várias objecções, mas
sobretudo para permitir que a soberania sobrevivesse à mais grave
acusação de todas: a da injustiça. Kant fez muito, embora a sua intenção
não fosse essa, para que o processo chegasse um dia ao tribunal da
História.
Como podia a soberania ser tão injusta? A soberania era um obstáculo à
realização do direito na História, fundado na liberdade, porque organizava
uma ordem internacional que permitia e propiciava a guerra entre os
Estados e entre os povos. Enquanto o horizonte da guerra internacional
não fosse superado, não haveria condições para realizar a sociedade justa.
Poderíamos resolver o problema político interno, edificando uma
constituição perfeitamente justa que conjugasse a máxima liberdade
pessoal externa, coexistente com a igualdade de todos os cidadãos,
ordenada pela força irresistível do Estado garante da ordem e da paz. Mas
esse feito estaria sempre subordinado ao de sujeitar à lei a relação externa
entre os Estados. De que valia restringir a liberdade humana para que esta
se tornasse plenamente civil, se o Estado enquanto Estado mantinha a sua
liberdade irrestrita? Hobbes colocara a questão. A (des)ordem
internacional era análoga ao estado de natureza, com as muitas limitações
que sempre se impõem a uma analogia. Mas não considerou a dimensão
internacional prioritária na procura de uma resposta ao problema político
enquanto tal.
A insociabilidade humana, expressa pela forma política do Estado,
propiciava as guerras, com toda a correspondente devastação, bem como
as tensões que percorriam a vida política e social interna na perpétua
preparação para a guerra em período de paz formal. E seria dessas
«experiências tristes» que decorreria o processo histórico rumo a uma
federação de Estados que substituísse a anarquia dos Estados soberanos
independentes. Nessa federação mundial a segurança de cada Estado
deixaria de estar a cargo do poder e da decisão própria de cada um, mas de
um poder unido e das decisões de uma vontade unificada expressa na
forma de lei. A instabilidade da desordem internacional seria mais forte
como incentivo para esse desfecho histórico do que o ridículo a que ideia
era regularmente votada. O progresso viria do antagonismo e da fricção
entre as pessoas, e não de uma miraculosa erradicação das inclinações
humanas que produzem o conflito. O que Castel de Saint-Pierre e
Rousseau umas décadas antes não tinham conseguido com as suas
exortações à consecução dum projecto de paz perpétua, a «intenção da
natureza», uma espécie de lei da sobrevivência colectiva tornaria
inevitável. Inevitável por aproximação. A paz entre os povos constituía
uma ideia reguladora, não um objecto da experiência. Apenas admitia
aproximação, e nunca uma perfeita reprodução, na experiência concreta
dos povos.573
Na gloriosa e frustrante história da ideia de paz perpétua encontramos
Castel de Saint-Pierre (1658-1743) como o seu príncipe fundador. Foi ele
que deu o mote, mas não só. Foi ele quem cunhou a expressão paix
perpétuelle. Foi ele quem pegou no referencial essencialmente hobbesiano
para servir de base a todas as considerações do seu tempo e posteriores da
conceitualização de paz perpétua. Foi ele quem ditou os termos da
discussão sobre os meios de obter a fugidia paz perpétua – as federações
internacionais, a questão da ingerência interna nos Estados-membros. O
que se pode dizer mais? Foi ele quem inventou o nome «União Europeia»,
com direito a uma capital federal, Utrecht, em homenagem ao tratado de
paz que fora assinado nessa cidade holandesa pelas potências europeias no
ano seguinte ao da publicação da primeira versão da sua «paz perpétua» –
não muito distante da «europeia» Bruxelas dos nossos dias. É verdade
que, desde o primeiro momento, Saint-Pierre atribuiu as honras da
fundação de tão nobre desígnio ao rei Henrique IV de França, o autêntico
«Sólon europeu».574 Mas as ideias vagas do ministro do rei, Sully, não
eram suficientes para compor um projecto, e Saint-Pierre sabia-o.
O martirizado Henrique IV, governante dilecto dos philosophes, fazia
sempre uma boa figura de retórica. A vaga ideia de «confederação
europeia» foi divulgada por Sully na extensíssima colecção de memórias
intitulada Oeconomies royales e deferencialmente atribuída ao seu rei.575
A acreditar em Sully e Saint-Pierre, a «confederação europeia» para a
resolução dos problemas internacionais europeus formaria a «arbitragem
permanente» entre os Estados, condição essencial da paz internacional e
chegou a ser objecto da diplomacia francesa. Fazia parte da lenda
acrescentar que o seu fracasso se devera somente à morte extemporânea
do rei visionário. Numa palavra, era preciso pegar na experiência
confederativa dos Países Baixos, da Suíça e da Alemanha do seu tempo, e
ampliá-la para a escala europeia. Assim se preservaria a independência
dos Estados, não os diluindo num super-Estado, ao mesmo tempo que se
obtinham enormes ganhos na segurança e protecção do território de cada
um. Criava-se um dispositivo pacificador das relações entre eles.
Garantia-se a segurança interna dos Estados associados, através da
protecção do regime instituído em cada um deles. E, o que não era
irrelevante, promovia-se o comércio, a grande fonte da prosperidade dos
povos europeus modernos.576 Para revestir o seu «projecto» de uma aura
de respeitabilidade política, Saint-Pierre forjava estes antecedentes. Na sua
humildade tarefa, limitava-se a recapitular esse tal Grand Dessein de
Henrique IV/Sully e a sistematizá-lo filosoficamente. Segundo esta
perspectiva laudatória, Henrique IV teria sido um eminente contratualista,
um Hobbes da política que anteciparia o Hobbes da filosofia. Afinal de
contas, a instituição de um árbitro permanente só poderia resultar de uma
convenção humana, de um acordo ou de um contrato entre as partes que se
sujeitariam a esse árbitro. Henrique IV, antes de Hobbes, teria
compreendido, não só que a superação do estado de natureza enquanto
estado de guerra supunha a construção contratual de um juiz comum
acima das partes potencialmente inimigas, mas também que o problema da
paz não seria resolvido enquanto não se aplicasse a lógica contratual à
esfera internacional.577 Para ser laudatório, Henrique IV teria ido bem mais
longe do que Hobbes, porquanto Hobbes se limitou a resolver os conflitos
internos inter-individuais. Por outras palavras, Hobbes estava sobretudo
preocupado em superar o estado de natureza rumo à edificação dos vários
Estados soberanos. Todavia, no que à situação internacional dizia respeito,
Hobbes mais não fez senão reconhecer que esta se aproximava da
condição do estado de natureza, ou que as relações internacionais
continuavam o estado de guerra. Não se lembrou de usar a lógica
contratual para resolver o problema da guerra perpétua interestadual.578
Foi Henrique IV/Sully tudo isto, ou não era mais do que uma estratégia de
Saint-Pierre na busca de um pedigree de segurança e de força de
persuasão?
Saint-Pierre era um abade, tal como o nosso já conhecido Sieyès e
tantos outros, que fizeram jus pleno ao ditado de que o «hábito não faz o
monge». No caso de Saint-Pierre, Sieyès ou Morellet, para citar apenas os
mais famosos, a devoção religiosa era o menor dos cuidados destes
homens de letras, e não era infrequente serem inimigos do cristianismo,
como Voltaire gostava de mencionar e ironizar. Embora Saint-Pierre tenha
dedicado a sua vida a «projectos» de vários tipos, sempre com o propósito
de melhorar e fazer progredir o género humano, o «projecto» de «paz
perpétua» nunca abandonaria o lugar central na sua reflexão. Os escritos
revelam-no. O assunto foi abordado pela primeira vez nas Mémoires pour
rendre la paix perpétuelle en Europe, obra publicada em 1712. Foi tratado
em profundidade nos dois volumes de Projet pour rendre la paix
perpétuelle en Europe, de 1713. Seguiu-se um «terceiro tomo» – pois foi
assim que o autor se lhe referiu, mas que, desde logo no título, continha
algumas modificações importantes da edição de 1713 – intitulado Projet
de traité pour rendre la paix perpétuelle entre les souverains chrétiens,
que chegou ao público em 1717. E a última publicação dedicada ao tema,
o Abrégé du Projet de Paix Perpétuelle, tinha já a data distante de 1729. A
família de Saint-Pierre acabaria por passar o espólio literário a Rousseau,
para que este editasse como bem entendesse os escritos do defunto.
Rousseau admirava profundamente Saint-Pierre. Era um homem «raro» e
fazia a «honra do seu século e da sua espécie». Mas padecia de uma
igualmente profunda ingenuidade intelectual decorrente da sua bondade
moral. Ao invés de considerar os homens «tais como são, e como
continuarão a sê-lo», Saint-Pierre, escreveu para «seres imaginários» que
ele supôs iguais a si próprio, suposição que o empurrou de «erro para
erro». Saint-Pierre ignorava, ou quis ignorar, as paixões como os motores
do comportamento humano e depositou todas as suas fichas na «razão
aperfeiçoada» que o seu século prenunciava.579 Rousseau acabaria por
publicar uma espécie de sumário das teses de Saint-Pierre acrescida de um
respeitoso comentário crítico, onde tecia as suas próprias considerações
sobre o tema da paz perpétua.
Muitos dos grandes nomes do século XVIII cruzaram-se com a obra de
Saint-Pierre. Para uns, como Voltaire, aquelas ideias eram outras tantas
quimeras – utopias ridículas, diríamos hoje. Vimos que Rousseau não era
tão duro, embora concedesse que os raciocínios por vezes eram débeis e a
prosa pouco hábil. Leibniz correspondia-se com Saint-Pierre e interessou-
se pelo tema desde o início. Generoso no debate como sempre foi, Leibniz
acorreu a oferecer sugestões e correcções. Por exemplo, entre 1713 e 1717
Saint-Pierre alteraria partes importantes das suas sucessivas versões do
«Projecto». Talvez a alteração mais importante fosse a separação entre o
«tratado de paz», que não inaugurava mais do que um período incerto de
tréguas, e o «tratado de união», isto é, da paz duradoura. Ora, esse foi um
produto directo das críticas de Leibniz que apareceram na correspondência
entre ambos.580 Por ser favorável ao sistema de «equilíbrio de poderes»,
até por razões de opção metafísica, Leibniz seria a contraparte intelectual
ideal de Saint-Pierre. Dada a celebridade do texto de Kant sobre a Paz
Perpétua, e do seu parágrafo preliminar, por vezes esquece-se que foi
Leibniz quem primeiro invocou a célebre placa na estalagem holandesa
que anunciava a «paz perpétua» ilustrando um cemitério.581 Foi também
Leibniz quem lhe disse, talvez não sem uma ponta de ironia, que a
supressão da guerra não chegaria enquanto «um outro Henrique IV
juntamente com outros grandes príncipes do seu tempo não apreciassem o
vosso projecto».582 Rousseau leu este comentário de Leibniz e não o achou
irónico. Por sua vez, Kant, que acabaria por se tornar para a posteridade
no oráculo da «paz perpétua», via em Saint-Pierre um homem bem-
intencionado, mas demasiado confiante nas suas próprias previsões. No
fundo, um optimista incorrigível.
O «projecto» de paz perpétua nasceu por contraponto a um outro
«paradigma»: o do «equilíbrio de poderes». Donde vinha a oposição? O
«equilíbrio de poderes» não era mais do que a organização do estado de
guerra perpétuo com o mínimo de combates efectivos. O estado de guerra
caracterizava-se não necessariamente pela ocorrência de violência, mas
antes por ser uma condição de hostilidade – de inimizade. Era a
sistematização da desconfiança mútua. Era a intelectualização da situação
de «paz impossível, guerra improvável», para citar Raymond Aron num
contexto diferente. A rivalidade controlada do sistema de «equilíbrio de
poderes», ao equiparar as potências rivais, neutralizava as veleidades
agressivas, pois deixava entregue a uma magra probabilidade a vitória
absoluta sobre o inimigo. Tal como Montesquieu diria em 1748, só o
poder trava o poder. Em última análise, ao fazer perdurar as ameaças
mútuas, o sistema do «equilíbrio de poderes» era a perpetuação do «estado
de inquietude»583 que só o «sistema da paz» podia terminar. Não havendo
arbitragem, todos os Estados estavam em permanente preparação para a
guerra. Além de essa condição tornar sempre precários os tratados que
pudessem ser celebrados, alimentava também, por um lado, uma
racionalidade política própria e sinistra – a chamada raison d’État –, e, por
outro lado, uma ansiedade que minava os frutos que provinham das
relações económicas e culturais entre os Estados. Que o comércio não
podia florescer entre potências rivais, ou entre blocos rivais, era mais ou
menos evidente. Mas era igualmente interessante compreender que, do
ponto de vista do «projecto», a raison d’État aparecia como a
racionalidade política inerente à impossibilidade de haver um juiz comum
entre as potências.584 Forçado a ser juiz do valor dos compromissos e das
circunstâncias que os relativizam, assim como das condições e meios para
preparar a guerra futura bem-sucedida, o Estado adoptava forçosamente
uma racionalidade que relacionava estes propósitos e o suprimento
daquela carência geral. A guerra preventiva, avisava Rousseau, leitor de
Hobbes, podia não corresponder a um qualquer desejo maligno de
conquista gloriosa. Podia ser tão simplesmente o corolário lógico de uma
política de segurança prudente. As máximas mais salutares tornavam-se
«perniciosas para aquele que se obstina em cumpri-las com todos, quando
ninguém as cumpre consigo».585 Era a racionalidade política própria do
estado de alerta permanente. Surpreendentemente, ou talvez não, uma vez
descobertas as profundas afinidades do filósofo de Königsberg com
Hobbes, Kant aceitava um direito de ataque preventivo no estado de
natureza, cujas razões fundamentavam também o «direito ao equilíbrio de
poder entre todos os Estados».586 Tal direito decorria, é bom de ver, de um
estado de guerra permanente e apenas dele. No estado de paz, a guerra
preventiva era tida por injusta, dado que violava a regra da publicidade.587
De resto, Kant e Saint-Pierre concordavam quanto a este ponto político
fundamental. O sistema do «equilíbrio do poder» padecia de uma
contradição máxima, a de multiplicar os «desequilíbrios».588
Afinal de contas, a guerra aparecia como muito mais natural, como mais
justificada, numa condição em que todos estivessem a preparar-se para
ela. O «equilíbrio de poderes» era, pois, não mais do que a estabilização
do estado de natureza. Ora, assim sendo, o «equilíbrio de poderes» só
poderia ser superado de dois modos. Ou por uma guerra de extermínio
vencida por um dos lados. Ou por um tratado de arbitragem permanente.
Para cada Estado, esta segunda possibilidade significaria renunciar à sua
liberdade enquanto agente soberano. Em concreto, significaria renunciar à
liberdade de agir segundo o seu próprio julgamento acerca das promessas
ou tratados que fez com outros actores internacionais. Tal como acontecia
no estado de natureza povoado por indivíduos, no seu análogo
internacional a liberdade soberana acabava por se revelar ilusória. Pelo
menos, era essa a base do incentivo para cada um dos Estados soberanos
voluntariamente aderir ao sistema de arbitragem.
Aceitar um juiz comum anularia a desconfiança. Com a instituição de
uma arbitragem permanente, o objectivo primordial residia em resolver os
diferendos entre os associados, evitando recorrer à violência. Nestes
termos, arbitrar correspondia a julgar. Quem procederia a esse
julgamento? O colectivo dos associados, segundo um procedimento
previamente definido. Por outro lado, neste sistema, a tranquilidade dos
povos passaria pela estabilidade política interna, nomeadamente pela
proibição da ingerência de potências estrangeiras na política ou na
constituição de um Estado confederado. Daí que, para Saint-Pierre, a
arbitragem permanente fosse também um órgão de vigilância e de
policiamento de prevenção de revoltas, guerras civis e outros distúrbios da
ordem política estabelecida. Kant fazia uma reflexão ligeiramente
diferente. Permitia a intervenção externa somente a partir do momento em
que, após a deflagração da guerra civil, um dos lados já tivesse levado a
melhor. De outro modo, cabia no direito de uma «nação independente»
lidar pelos seus próprios meios com a sua instabilidade interna. Atribuir
um direito de ingerência a potências estrangeiras, ou à federação, seria um
«escândalo» e uma ameaça à «autonomia de todos os Estados». De um
ponto de vista conservador, a coincidência na condenação do direito de
ingerência, ou o propósito de congelamento da ordem política interna,
reflectia a suspeita de que muitos dos problemas que ensombravam o
conjunto dos Estados europeus tinha a sua origem na expectativa de
transformação do status quo, e de como as potências estrangeiras se
intrometiam nesse jogo de expectativas tornando-se autores e
instrumentos dos conflitos internos, agravando-os.589
A este propósito é interessante notar que James Madison reprovaria
enfaticamente a rigidez com que Rousseau rejeitara o direito de ingerência
e aprovara a garantia dada pela «federação» aos governos internos de cada
Estado. Madison atribuía a Rousseau posições que eram originariamente
de Saint-Pierre, mas isso não é importante. O que conta é o horror com
que Madison olhava para esta técnica de «perpetuação do governo
arbitrário» onde ele existisse, uma barreira à libertação dos povos. O
futuro do «projecto», segundo ele, estava inextricavelmente ligado a dois
grandes acontecimentos emancipadores da Humanidade: as Revoluções
Americana e Francesa.590 Madison sabia bem o que dizia. As federações
distinguir-se-iam por garantir a integridade territorial e a existência
política das suas unidades federadas. As dificuldades invariavelmente
levantadas, e que veremos a seguir, a propósito da vinculação dos estados
federados ao Estado federal, e de como esses vínculos se convertem em
objectos de discussão e conflito políticos, tornariam inevitável a
ingerência federal na vida interna dos estados federados. Sendo uma
entidade política própria, a existência e sobrevivência do Estado federal
depende da estabilidade e conformidade da conduta dos estados federados.
Ademais, a supremacia legal e política do Estado federal tem de ser
cumprida com a introdução de limites para a sua contestação pelas partes
federadas. Seria irrealista supor que poderia haver federações sem esta
interferência constante, e sem um direito de ingerência implícito ou
explícito. Perante a interferência constante, a probabilidade de conflito e
de contestação aumenta. Ora, a forma federal proclama que a instância à
qual cabe a derradeira decisão é o Estado federal.591
Na concepção da paz perpétua não se escondia um alegado «optimismo
antropológico» por onde se podia denunciar o «irrealismo» da proposta.
Nem Saint-Pierre, nem Rousseau – nem Rousseau, repito –, nem Kant,
que nos avisou para o «lenho retorcido da humanidade», supunham que os
seres humanos eram essencialmente pacíficos, e muito menos supunham
que haveria uma inclinação espontânea para no domínio político se
amarem uns aos outros. Kant via na guerra «a manifestação da natureza
humana».592 O «projecto» era aquilo a que muito mais tarde um
descendente americano desta linhagem Rousseau-Kant chamaria «utopia
realista». Como Rousseau ensinara, para conciliar a expansão das
possibilidades habituais do pensamento político com a nossa condição era
preciso pensar o problema político tomando os homens «tais como são e
as leis tais como podem ser». No caso da «utopia realista» de John Rawls,
estava em causa «considerar os povos tais como eles são» e «a Lei dos
Povos como pode ser».593
Saint-Pierre, em particular, e apesar de ser tido pelos outros dois como
algo «ingénuo» ou «optimista», reiterou que, quando os homens viviam
numa condição pré-política, num estado que desconhece uma forma de
«arbitragem» dos conflitos, as relações humanas degeneram quase
automaticamente para um estado de guerra calamitoso. Neste aspecto,
Saint-Pierre não divergia muito de Hobbes. E em vários momentos parecia
querer copiar até o seu estilo retórico. O «estado de não-arbitragem»
caracterizava-se pela «contestação, discórdia, cólera, combate, morte».594
Se em Paris não houvesse força e autoridade, os seus «habitantes degolar-
se-iam todos uns aos outros em oito dias, e a mais bela cidade do mundo
tornar-se-ia num instante num horrível campo de batalha cheio de
cadáveres».595 O que nenhum deles reconhecia era que o conflito trágico
fosse uma necessidade ontológica. Por essa razão, a solução política para
o estado de guerra era, ou podia ser, estável. Por outras palavras, o
projecto de paz perpétua, nas suas várias versões, não deve ser confundido
com um apelo politicamente vazio ao reino universal da concórdia, da
amizade e da fraternidade. Pelo contrário, Saint-Pierre não profetizava um
futuro isento de «ódios». Mas pretendia expurgar essas rivalidades da sua
persistência e perigosidade. O futuro que o autor anunciava não era o da
concórdia universal, mas antes o da canalização dos diferendos entre as
partes para processos legais previsíveis e resolúveis por intermédio de
julgamentos a cargo de terceiras instâncias.596 O mesmo valia para
Rousseau e para Kant. Nenhum deles contava com uma putativa
conversão dos corações dos homens, mas apenas e tão-só com a fundação
no direito da questão da arbitragem, ou da «federação das nações», o valor
dos benefícios que daí decorreriam e a razoabilidade dos incentivos
psicológicos e materiais para lá chegar. Kant, porém, deu um passo mais
largo do que Rousseau. Concluiu por um dever emanado da razão, que
caberia a cada um, de trabalhar em prol da paz perpétua.597
4. A paz perpétua é compatível com a soberania? (2)
A ideia da paz perpétua, e a intensa discussão que gerou nos últimos
três séculos, nunca foi um exercício meramente teórico. Enquanto ideia
política, mesmo quando era exposta sem uma preocupação de realização
concreta imediata, visava a prática, ou a transformação da prática, ou pelo
menos a crítica da prática. Antes de Kant se pronunciar sobre o tema,
Jeremy Bentham já dizia, não sem uma certa plausibilidade, que a
proposta da paz perpétua aceleraria a prontidão do mundo para acolher
tamanho desígnio. Para Bentham, que, diga-se de passagem, logo no final
do século XVIII via na renúncia europeia aos impérios coloniais uma das
condições para a paz perpétua, a proposta e o debate em torno da sua
preparação iluminariam a consciência dos povos e tornariam mais
concreto o caminho para atingir esse estádio. A consequência do debate
sobre o caminho era torná-lo mais aceitável.598
Foi dessa discussão que os fundadores de instituições tão fundamentais
como a Sociedade das Nações, ou mais recentemente a Organização das
Nações Unidas e as Comunidades Europeias, se inspiraram. E um exame
mesmo que superficial da intenção que subjaz ao projecto de Saint-Pierre
rapidamente revela muitas consonâncias com o projecto europeu actual. A
superação da guerra pelo triunfo do direito, a via negocial em substituição
do recurso à força, o entrosamento dos Estados-membros pela força do
comércio, a crença nos bens infalíveis e partilháveis do progresso das artes
e da ciência, os benefícios civilizadores da educação, talvez até um certo
desconforto com a presença do «Turco» – todos, ou quase todos os
elementos estruturantes do debate europeu das últimas décadas.
Inicialmente, Saint-Pierre estaria apostado em propor uma federação, ou
uma «União» mundial, isto é, que reunisse todos os Estados do mundo.
Mas, como o próprio confessou, foi dissuadido dessa ambição tão remota
por dar um tom excessivamente «quimérico» ao projecto.599 Por isso,
cingiu o projecto à Europa, por exclusão do «Turco», e até fez da ameaça
do «Turco» um factor primordial de coesão dos Estados unidos. Até cedeu
à tentação de propor comprar a paz na Europa com a visão do
escorraçamento bem para lá das fronteiras europeias do «Turco», que
poucos antes tinha estado às portas de Viena.600 Por seu turno, Kant sabia
que Saint-Pierre e Rousseau não reclamavam uma união mundial dos
Estados. Mas atribuía essa recusa de Rousseau em particular à obsessão do
genebrino com o estado imediatamente prévio à consumação da união
propriamente dita, ainda marcado por um desfasamento entre, por um
lado, o progresso nas artes e nas ciências, bem como no refinamento
social, e, por outro lado, a estagnação moral na conduta dos indivíduos.601
Não sendo capaz de transcender essa fase histórica intermédia, ainda
dominada por paixões destrutivas e imorais, enleada ainda na guerra
perpétua, Rousseau não seria igualmente capaz de compreender nem a
desejabilidade, nem a viabilidade da abrangência global do sistema
federativo. A noção de que a realidade empírica da vida das nações seria
conduzida por sucessivos graus de aproximação à ideia de paz perpétua,
ou, o que valia por dizer, a teoria de que o progresso da humanidade posto
em marcha pelas forças da «natureza» iria concretizando gradualmente
esse «projecto», só veria a luz do dia com Kant e a sua filosofia da
história.
Kant fez incluir pela primeira vez nos conteúdos do milenar Direito dos
Povos (ou das Gentes) a necessidade de abandonar o estado de guerra
perpétuo e substituí-lo por um estado de paz não provisória. O Direito dos
Povos era o sistema normativo, mais ou menos articulado, que procurava
regular segundo regras do direito as relações entre entidades políticas, e
entre indivíduos e corporações em acção fora do território da entidade
política em que estavam radicados. A partir do século XVI a ciência do
Direito das Gentes conheceu um magnífico desenvolvimento e quando
Kant escreveu sobre o tema podia apoiar-se, ainda que muito criticamente,
numa ampla literatura e numa intensa discussão. De entre esses conteúdos
que obrigavam, segundo o direito, à saída do estado de guerra, estava a
necessidade de estabelecer uma «federação das nações». Esta «federação
das nações» não reproduziria a estrutura de uma Constituição civil própria
de um Estado soberano. Pelo contrário, seria uma «confederação» sem
nenhum «poder soberano» próprio. Seria uma «federação das nações»,
mas não um «Estado de nações», isto é, não haveria uma fusão dos
Estados associados para formar um único super-Estado. Um Estado
mundial seria um «despotismo sem alma» e que acabaria por cair na
«anarquia» quando se desmoronasse num salve-se quem puder de cada
uma das milhares de partes do mundo. À federação caberia apenas a
função de garantir a paz no seu espaço jurisdicional, sem gozar da
faculdade de legiferar nem de exercer coacção sobre outros. Não gozaria
do direito de ingerência interna e apenas cuidaria da aliança para a
protecção externa de todos, o que supunha uma liga formada por Estados
vizinhos.602
A paz perpétua era o «fim último do Direito das Gentes na sua
globalidade». Não estava garantida a sua realizabilidade. O mais
importante e fundamental era os princípios políticos e do direito donde ela
decorria que regulariam a conduta dos Estados para uma aproximação
assimptótica à ideia da paz perpétua. Num primeiro momento, Kant
apenas apelaria à formação de um Congresso dos Estados europeus de
adesão voluntária que se constituísse como um árbitro federal, mas que
podia ser dissolvido. E nomeava por contraste a Constituição americana
de 1788 como o exemplo de algo que constituía uma unidade política
cujas relações internas já não caberiam, por definição, no Direito das
Gentes.603 Para os propósitos da acção moral e política era irrelevante se
conseguíamos, ou não, atribuir algum grau de probabilidade à realização
na História da paz perpétua entre as nações. O que contava era esta ideia
de paz perpétua resultar de um princípio produzido pela razão prático-
moral, isto é, de um dever: não fazer a guerra! Valendo para as relações
individuais, valeria igualmente para as relações interestaduais. Era preciso
definir a nossa conduta como se a paz perpétua fosse real. Esse era o
mandamento geral, ou a conformação do dever dos seres humanos
racionais. Em concreto, significava agir em prol de uma Constituição
republicana, por reforma gradual e voluntária, não por acção violenta
revolucionária, e de inviabilizar a guerra como prática.604
Destas considerações, mas não necessariamente do pensamento de Kant,
podemos dizer que a grande fonte moral do ideal cosmopolita, ou se
quisermos ser mais contidos, da paz perpétua, reside nisto: nenhum
homem moralmente bom e nenhuma mulher moralmente boa podem
deixar de se preocupar com o bem da humanidade, e de agir em
conformidade. Não só com o bem presente, mas também com o bem
futuro da humanidade, o que supõe uma preocupação e a uma acção
contínuas e regradas do indivíduo moral. Supõe uma enorme mobilização
material e anímica para a consecução desse bem presente e futuro. A partir
daqui torna-se mais evidente a insuficiência moral da preocupação
exclusiva com o seu próprio país. A soberania reflecte a organização
intelectual de um egoísmo colectivo, contrariando as exigências da razão
prática, dos imperativos morais básicos. A posição soberanista fica à
defesa diante da acusação implícita, quando não explícita, de que se trata
de uma posição essencialmente imoral. Essa vulnerabilidade agrava-se
com a tomada de consciência da dependência da bondade e justiça da
ordem interna relativamente à ordem externa. Afinal de contas, ao
contrário do que suporia a doutrina soberanista, as duas ordens não são
assim tão independentes. Pelo contrário, são inúteis os esforços de
realização da justiça na sociedade particular, e da garantia dos direitos dos
seus membros, se a sociedade global se pautar pela violência, hostilidade e
desregramento típicos de um estado de natureza. O olhar soberano para
dentro é agora forçado a deslocar-se inteiramente para fora da ordem
interna.
Por outro lado, para operar a superação definitiva do estado de natureza,
e, por conseguinte, do estado de guerra, era preciso organizar as
comunidades políticas e os arranjos entre elas segundo um direito
cosmopolita em que os sujeitos seriam considerados como «cidadãos de
um estado universal da humanidade». Era um complemento necessário ao
direito político, que se encarregava de regular a constituição das
comunidades políticas individuais, e ao Direito das Gentes, que regulavam
os Estados enquanto Estados nas relações que mantinham entre eles.605 O
dilema que se colocava residia na comparação entre, por um lado, a
possibilidade de uma «federação da paz», mero árbitro não-soberano, sem
leis nem coacção, de âmbito regional, embora com um horizonte de
expansão por adesão voluntária dos Estados; e, por outro lado, uma
«república mundial», com a faculdade de fazer leis públicas e exercer a
coacção, um autêntico «Estado de nações», que, no limite, abrangeria
todas as nações. Num período histórico preliminar esta construção
soberana mundial parecia ilusória e até indesejável. Segundo a ideia da
razão, a solução da pluralidade de Estados soberanos no mundo
associados federativamente por grupos era superior ao imperialismo
despótico das «monarquias universais». Mas seria superior à constituição
da «república mundial»? A ideia de paz perpétua, supondo a superação
definitiva do estado de natureza ou do estado de guerra internacional, era
constituída por essa «república mundial», mas, no movimento de
aproximação que acabava por regrar as escolhas políticas, seria uma
«federação da paz» em permanente expansão que deveríamos construir.606
Destarte, o direito cosmopolita, como diz o artigo, «deve limitar-se às
condições de hospitalidade», isto é, de não tratar com hostilidade o
estrangeiro que vem ao território da nossa comunidade política, enquanto
ele se comportar como um amigo, e não como um inimigo.607
Kant ainda não apresentava a concepção de um mundo sem soberania.
Em grande medida porque era preciso assinalar uma diferença importante
entre independência e soberania. A importância percebia-se, e percebe-se
ainda hoje, pelo simples facto de soberania ser tantas vezes tida como
sinónima de independência. Na realidade, as categorias kantianas para
compreender a subtil, mas decisiva, diferença entre uma coisa e outra são
muito úteis. No plano internacional, a independência de um Estado
consiste em não estar submetido a nenhuma restrição exterior e, por
maioria de razão, a nenhuma lei. É o comando da auto-suficiência, o que
evidentemente se estende à ordem material, e não apenas moral-legal. Ao
passo que a soberania consiste em não aceitar nenhuma autoridade senão a
própria, o que remete para o conceito de autonomia, e, por conseguinte,
para uma ordem puramente moral-legal, ou não material. É-se autónomo,
seja uma pessoa ou uma comunidade política, quando se obedece apenas e
exclusivamente à lei que o próprio faz. Nesta medida, a conformidade a
uma legislação racional que se reconhece livre e voluntariamente não
contraria a soberania.608
Antes de Kant, Rousseau abordara a espinhosa questão em termos
semelhantes. Em particular, a distinção entre independência e soberania
começava pelo reconhecimento de que só são «inimigos» as «pessoas
públicas», isto é, esse «ser moral que se chama soberano». Em rigor, não
havia guerras entre homens. Apenas entre «soberanos».609 Definição
acertada. Mas da teoria geral de Rousseau surgia uma aparente
contradição que tinha de ser sanada. O homem era um ser por natureza
independente. Contudo, de acordo com os princípios do direito, prescindia
da sua independência para levar a cabo a formação do Estado político e
afirmava essa transformação do seu ser como necessária.610 Em
contrapartida, a prática dos Estados revelava-se por uma constante
proclamação da sua independência, apesar dos custos humanos que ela
implicava. Se a suposição segundo a qual existia um «sentimento de
existência comum do género humano» não era absurda, já não seria tão
razoável assumir algo de semelhante que ordenasse as relações entre os
Estados. A «compaixão» que regulava as relações naturais entre os
indivíduos já não se manifestava no relacionamento dos Estados.611 Supor
o contrário seria uma antropomorfização intolerável.
Além destas considerações ainda outras teriam de ser acrescentadas. O
homem podia ser, e foi no estado de natureza, independente. Mas um
Estado político nunca era verdadeiramente independente. Os seus
movimentos típicos empurravam-no para uma relação próxima (hostil ou
pacífica) com os seus vizinhos. Contrariamente ao Estado, o homem podia
ser independente porque conhecia os limites do seu engrandecimento e da
sua força. As suas «faculdades» – assim o determinava a natureza – eram
«limitadas». O «estômago» e o «coração» dos homens eram limitados,
assim como era limitada a duração da vida humana. Apesar de se «elevar
em ideia», o homem «permanece sempre pequeno». Já o Estado era um
«corpo artificial», um produto da convenção humana, e, enquanto tal,
libertava-se destes limites impostos pela natureza. Não tinha, por isso,
uma «grandeza» que lhe fosse própria, podia crescer continuamente e a
sua fortaleza era estritamente relativa à fortaleza dos outros. Para se
«conhecer» era forçado a se «comparar» com todos os outros Estados.
Num sentido muito real, o Estado «depende de tudo o que o rodeia». A
luta pela superioridade na força obedecia a imperativos da mais elementar
segurança. Ora, a consequência mais importante no que dizia respeito à
relação entre os Estados que se retirava desta diferença entre a natureza
do homem e a natureza do Estado era enunciada por Rousseau nos
seguintes termos: «Pois a desigualdade dos homens tem limites postos
pelas mãos da natureza, mas a desigualdade das sociedades pode crescer
incessantemente, até ao ponto em que uma só absorve todas as outras.»612
Assim, o carácter próprio das relações internacionais indicava o caminho
da guerra, já que a dependência dos Estados não lhes permitia excluir essa
possibilidade. E indicava também o caminho da tirania dos Estados mais
poderosos. A contradição podia, portanto, ser resumida do seguinte modo.
O homem, um ser independente por natureza, por várias razões reconhecia
e afirmava a sua dependência como necessária. O Estado, uma entidade
intrinsecamente dependente, proclamava a sua independência. Mas se o
homem abandonava o estado de natureza que lhe dizia respeito, com mais
razão devia o Estado abandonar o estado de natureza que a sua
proclamação de independência cristalizava.
A teoria da soberania de Rousseau parecia não consentir qualquer
compromisso do Estado com o estrangeiro, nem autorizar a possibilidade
de outro agente político interferir nas decisões soberanas nacionais. Em
todos os momentos, de resto, tão devedora das de Bodin e de Hobbes, a
teoria da soberania em Rousseau afirmava a sua fundamental
inalienabilidade. A soberania era incomunicável e intransmissível, o que
parecia excluir a possibilidade de um Estado soberano, enquanto tal,
transferir mesmo que apenas uma parte da sua soberania para um qualquer
órgão supranacional. Por outro lado, se os direitos de soberania eram um
mero efeito jurídico da transferência de direitos individuais, como desde
Hobbes se pretendia, então não era óbvio que o soberano pudesse ceder,
transferir ou alienar aquilo que, em rigor, não era seu. Rousseau
confirmou este passo:
Mas o corpo político ou o soberano, que apenas retira o seu ser da
sacralidade do contrato, nunca pode obrigar-se, mesmo perante
outrem, a nada que anule este acto primitivo, como alienar qualquer
porção de si próprio, ou submeter-se a um outro soberano. Violar o
acto pelo qual existe seria aniquilar-se, e o que não é nada não produz
nada.613
Todavia, Rousseau não tirou as consequências esperadas desta tese.
Chegou até a escrever – embora não a publicar – que a tese segundo a qual
não existia nenhuma lei fundamental que pudesse sujeitar o soberano não
implicava que este não pudesse «comprometer-se com outrem naquilo que
não anula de forma alguma este contrato, pois, em relação ao estrangeiro,
torna-se um ser simples, um indivíduo».614 O busílis da questão revelava-
se no que podia anular, ou não, o contrato. Em Émile, uma obra
tremendamente influente onde detalhava uma teoria completa da educação
sob a forma de uma novela, Rousseau deixava-o pura e simplesmente por
resolver. Depois de prometer «investigar como uma boa associação
federativa pode ser estabelecida, o que pode torná-la durável, e até que
ponto pode o direito da confederação ser estendido sem pôr em risco o
direito de soberania», Rousseau, porém, faltou ao prometido. A única
pista que nos deixou situou-se na recomendação genérica de «ligas e
confederações que deixem cada Estado senhor de si no plano interno, mas
que o armem contra qualquer agressor externo injusto».615 A questão era,
pois, como conciliar a «soberania» com a «federação». Porquanto, para
Rousseau, nunca estava em causa abolir a pluralidade das comunidades
políticas. O projecto de paz perpétua em si mesmo não condenava a
viabilidade dos Estados soberanos, nem pressupunha a sua reprovação
moral. Apenas contava como soberania o poder do corpo político dirigido
pela vontade geral.616 Uma vez que a vontade geral era efectivamente a
vontade de todo o corpo político sem excluir nenhum dos seus membros,
quando a vontade geral correspondia à vontade de «federar» a comunidade
política em conjunto com outros Estados, que princípio do direito político
podia impedir a sua concretização? Recorrendo ao conceito de vontade
geral, Rousseau resolvia o problema de ter um suposto «soberano» com
uma vontade estranha à vontade da comunidade política no seu todo.
Observando o carácter da «república» esboçada por Rousseau, percebia-se
que apenas esta forma política garantia a unidade da cidade, pela
concretização de um moi comum, algo que emprestava uma
individualidade total à comunidade política. Tornava-a um «ser simples,
um indivíduo» nas suas relações externas. A «federação» seria assim um
acto de soberania. Mas, pela mesma razão, só nas «repúblicas» a
«federação» constituía um acto de soberania. A insistência na forma
republicana como «artigo definitivo» da paz perpétua foi aprendida por
Kant a partir de Rousseau, não obstante as diferenças assinaláveis que
existiam nas respectivas concepções do regime republicano.617
Perante a hipotética reclamação de que o projecto federativo diminuiria
os «direitos de Soberania», Rousseau decidiu-se por responder que a
«federação», garantindo todos os seus membros de agressões externas e de
convulsões internas, acabava por confirmar a soberania dos Estados.
Mais, a «federação» implicava a dependência do Estado relativamente a
um «corpo do qual é membro, e no qual cada um é, no seu turno, chefe».
Ficava, assim, afastada a nefasta alternativa de dependência relativamente
a um Estado particular, o que equivaleria à alienação da soberania. A
«federação» aparecia como um dispositivo contratual e, dir-se-ia até,
democrático. Em parte, repetia-se a preservação da liberdade civil que
Rousseau recomendava no Contrato Social. Obedecendo à vontade geral,
cada cidadão obedeceria a todos, e, por esse meio, não obedeceria, nem
dependeria, de ninguém. Passando da cidade republicana para a
«Sociedade Europeia», vemos que Rousseau supunha um raciocínio
paralelo. Tal como o «contrato social», também a «Sociedade da Paz»
resultava de um acto «livre e voluntário».618 Qual o propósito deste acto
jurídico «livre e voluntário»? Era «colocar todos os seus membros numa
dependência de tal modo mútua, que nenhum esteja em condições de
resistir a todos os outros».619 A dependência absoluta de todos
relativamente a todos emergia como a única regra capaz de salvar os
indivíduos de formas de dependência particular. O mesmo se passava nas
relações internacionais. Enquanto superação do direito do mais forte a que
a pequena república estaria inevitavelmente sujeita, a solução federativa
concedia um cunho democrático num domínio no qual se pensaria que o
arranjo democrático seria impossível, tendo em conta as enormes
desigualdades que se registariam entre os Estados. Ser membro de uma
«federação» nestes moldes significava não depender de ninguém e aceitar
o princípio originariamente democrático segundo o qual os mesmos
membros da comunidade política se revezavam na chefia do governo.
Assim dizia Aristóteles: «É próprio do espírito democrático o
procedimento segundo o qual todos decidem acerca de todas as questões
que se referem à comunidade» e «a vontade de não se ser, na melhor das
hipóteses, governado por ninguém, ou então, se tal não for possível, ser
governado por alternância.»620 Não por acaso, Rousseau denominava
«República Europeia» a Europa sob a égide da Federação virtual.621
Por aqui temos um vislumbre da viragem republicana do «projecto» que
o pobre abade Saint-Pierre já não foi a tempo de contrariar. A solução para
os problemas internacionais trazia uma articulação entre, por um lado, a
criação de uma estrutura supranacional, e, por outro lado, a transformação
política dos Estados na direcção da forma republicana. Em parte, o tom
republicano do «projecto» descobria uma parte da oposição política que
ele suscitaria. Os tiranos sabiam que com o «projecto» seriam «forçados a
ser justos» com os «Estrangeiros» e com os «seus próprios súbditos».622
De um ponto de vista mais fundamental, a republicanização das
soberanias era estratégica na conjugação dos «interesses» da paz e da
guerra. Havia guerra porque o sistema político interno dos povos –
monarquias e oligarquias mais ou menos despóticas – separavam as
vítimas da guerra, e aqueles que verdadeiramente a custeiam, dos
decisores políticos que nunca experimentavam os sofrimentos e a pobreza
associada à guerra, e que a usavam para satisfazer imorais desejos de
glória e de prestígio. Esta dissociação era responsável pela maior parte das
guerras, o que podia conduzir à conclusão de que Rousseau preparou um
dos esteios do pensamento pacifista, mas também da ideia segundo a qual
as democracias não se guerreiam mutuamente. Kant, fiel aos ensinamentos
de Rousseau, invocaria precisamente este argumento a propósito do
enunciado do «Primeiro Artigo Definitivo para a Paz Perpétua» segundo o
qual «a Constituição civil em cada Estado deve ser republicana».623 Agora,
a república já não era só a (única) forma política da compatibilidade da
soberania com a federação. O seu triunfo moral era maior do que isso. A
«república» era também a (única) forma política da paz. Como não podia
deixar de ser, James Madison, antes de Kant e respondendo a Rousseau, e
em nome da nova consciência americana, repetiria a tese de um modo
mais peremptório. Republicanizar o mundo, instituir regimes onde a
vontade do governo estivesse sujeita à vontade do povo, era a «única
esperança da paz universal e perpétua».624
O alerta estava feito para ficarmos de sobreaviso. Era preciso desconfiar
dos artifícios retóricos dos políticos ou dos sofismas de ideologias
precipitadas, que faziam deslizar a noção de soberania para a de
independência propícia ao estado de guerra, e à chamada anarquia
internacional, em que dois gritos opostos reclamam independência ou
morte! e des-soberanização ou selvajaria! Do ponto de vista do
«projecto» originário, ambos os gritos são reprováveis. O primeiro porque
é absurdo e perpetuador do estado de guerra. O segundo porque associa a
autonomia a uma ofensa à Humanidade.
Mas a pura demarcação não resolve um problema político de primeira
ordem que Saint-Pierre – pelo menos ele – procurou resolver de um modo
revelador. No artigo 17.º do «projecto» que apresentou à Europa a
«Sociedade» e o seu órgão representativo, o Senado, eram regrados como
agentes de promoção da paz no exterior das suas fronteiras. Previa-se a
possibilidade de o Senado oferecer a sua mediação e arbitragem aos
soberanos não associados que estivessem numa situação de conflito
aberto. Porém, a leitura do artigo permite perceber que esta possibilidade
rapidamente se convertia num imperativo. Pois Saint-Pierre na formulação
do artigo recorreu a uma linguagem imperativa: o Senado «fará agir as
suas forças contra quem recusar a sua Arbitragem».625 Noutra edição,
Saint-Pierre não se inibiu de ameaçar todo o associado que desejasse
abandonar «impunemente» a «União» com o estatuto de «inimigo comum
de todos os aliados».626 O que fazia presumir que todos os que não
alinhassem pela ideia da paz seriam, quase por definição, inimigos da paz,
e tratados em conformidade. Mas assim o princípio de não-ingerência que
regulava a «União» ficava fortemente atenuado quando enquadrado por
este monismo da Paz. Mais ainda, um «soberano» que se assumisse como
agente perturbador da paz deixava de poder contar com a obediência dos
seus súbditos. A obrigação política estava condicionada pelo contributo
para a tarefa comum da paz. Saint-Pierre hesitou neste ponto, mas o facto
de o ter enunciado é suficientemente elucidativo acerca das inclinações do
«projecto». O que sabemos é que se a «União» apoiasse uma província
rebelde secessionista que combatesse um «soberano» pouco cooperativo
na tarefa comum da paz, nem por isso seria violado o respeito escrupuloso
que a «União» devia à soberania dos diversos Estados. Aparentemente, os
revoltosos podiam ser reconhecidos como «soberanos» diante da «União»,
e era nessa condição que esta os devia tratar.627 A surpresa ainda é maior
para quem apenas tivesse lido a garantia da não-ingerência, pois fazia
parte da informação explícita do Projet de 1713 que, se após a formação
inicial da «Sociedade» com os catorze membros associados, algum
«soberano» se recusasse a aderir à «União», então teria de ser considerado
como inimigo da paz ou da «tranquilidade da Europa», e «ser-lhe-á feita
guerra até que adira, ou até ser completamente desapossado».628
Kant, muito mais contido, referiria apenas, e solicitando pouca
literalidade, que se devia rogar a Deus misericórdia por aqueles que
persistem teimosa e orgulhosamente afeitos à sua independência,
recusando-se a aderir à adesão à constituição civil que une as restantes
nações, e que cometem um tão «grande pecado».629 Porém, num passo que
que certamente suscita muitas interrogações e perplexidades, Kant,
propondo que a vontade de cada um não seria suficiente para chegar à paz
perpétua, avançou que era preciso que houvesse uma «unidade colectiva
das vontades unidas». Ora, continuava ele, perante esta enorme
dificuldade, não se devia contar «na execução daquela ideia (na prática)
com nenhum outro começo do estado jurídico a não ser o começo pela
força, sobre cuja coacção se fundará ulteriormente o direito público». Por
outras palavras, um começo imoral para um fim moral.630
Enfim, o uso eventual da força parecia indicar que o «Sistema da Paz»
não podia prescindir da guerra, embora de uma guerra ao serviço da paz.
Talvez os partidários da paz perpétua pudessem alegar que existiam
diferenças essenciais entre a guerra e a execução das decisões de uma
Sociedade cujo propósito era a realização da paz. Talvez se pudesse
argumentar que a guerra ao serviço da paz ou, mais rigorosamente, o uso
da força para executar as resoluções da assembleia internacional, se
aproximasse no seu carácter ao uso da força do Estado para cumprir os
julgamentos dos seus tribunais. Ora, não se podia chamar guerra à
punição dos cidadãos desobedientes à lei do Estado. Assim, o projecto de
paz perpétua pretendia judicializar as relações internacionais. Pois a
guerra, ao cabo e ao resto, é a condição insubmissa a qualquer lei. A
consequência de se introduzir o direito e a lei nas relações internacionais
era esta: a «guerra» na situação de «paz perpétua» não seria mais do que a
acção de um poder executivo ao serviço de um poder reconhecidamente
judicial. A acção coerciva internacional adquiria mais o carácter de uma
acção policial do que propriamente militar.
Mas subsistia uma contradição. A acção policial pressupunha um
julgamento prévio condenatório de um acto do Estado sob intervenção, ao
passo que o princípio da não-ingerência, primeiro reconhecido e agora
comprometido, indicava a primazia própria da soberania, como, de resto,
ficou plasmado na Carta das Nações Unidas de 1945.631 Na soberania
cabia evidentemente a esfera de não prestação de contas – de
independência – de um Estado soberano pelos seus actos a um outro
Estado ou federação de Estados juridicamente seus iguais. Contudo, com a
sujeição a uma intervenção de tipo policial essa igualdade (soberana)
tinha-se sumido. Isto ia consideravelmente mais longe na afronta à
soberania do que a tradicional doutrina da guerra justa. Esta doutrina
embora interpretasse essa modalidade da guerra como um castigo por
violação de um padrão de justiça universal, procurava fazer cumprir um
procedimento de verificação de requisitos em conformidade com a
autonomia das comunidades políticas e não institucionalizava uma sede de
julgamento definitiva que vinculasse as partes em conflito. Os teóricos
tomistas e neotomistas do bellum iustum sempre insistiram na
formalização da guerra, na sua legalização, por cumprimento de certos
requisitos. Sendo uma doutrina enquadradora da guerra como acção
moralmente justa, não era uma concepção do direito da guerra pura e
simplesmente formal como seria para homens como Alberico Gentili, um
jurista italiano do século XVI, professor em Oxford e súbdito de Isabel I,
que foi imensamente influente no desenvolvimento do direito
internacional. Era substantiva por enumerar os critérios especificamente
morais do empreendimento, em particular que a causa da guerra fosse
autenticamente justa – uma iusta causa – de cuja categoria a conquista
estava excluída. E que a intenção fosse recta, complemento óbvio da causa
justa para impedir que esta fosse subvertida capciosamente no decurso das
acções militares.632 No entanto, um dos requisitos era o de que a guerra
teria de ser declarada e travada por autoridades legítimas para fazê-lo, o
que numa teoria da soberania seria precisamente a autoridade soberana a
única legítima. E valia por dizer que para travar uma guerra justa não era
preciso ser autorizado por uma potestade universal, como a do Papa, por
exemplo, que julgaria a controvérsia.
Os reflexos históricos destas incursões e hesitações seriam muitos e
intensos. Numa visita a Portugal, o então secretário de Estado americano,
James Baker, a propósito da recusa americana de invadir a Sérvia para pôr
termo à nascente guerra civil na Jugoslávia, e respondendo aos que no seu
país, e fora dele, esperaram daqueles promissores anos um salto de gigante
rumo à consumação do «projecto», declarou: «Não somos, nem podemos,
ser a polícia do mundo.»633
Na Cimeira Mundial de 2005 todos os membros das Nações Unidas
subscreveram o princípio da Responsabilidade de Proteger. Tratou-se de
um compromisso político, preparado anos antes com o patrocínio do
governo do Canadá, que atribui aos Estados soberanos a responsabilidade
de zelar pelo bem-estar das suas populações e de protegê-las de
genocídios, limpezas étnicas, crimes de guerra e de crimes contra a
humanidade em geral. Inclui um conjunto de recursos para lidar com
problemas caso eles surjam. Mas o mais relevante diz respeito à
autorização, uma vez cumpridos os processos adequados no Conselho de
Segurança, para a intervenção militar externa quando as técnicas de
resolução tiverem falhado. A Responsabilidade de Proteger vem
formalizar os títulos morais debaixo dos quais se realizaram intervenções
militares externas no passado que se autoproclamavam de um «direito
humanitário». Agora, o fundamento ético reside na substância de uma
ordem moral universal que situa todos os Estados soberanos com uma
dupla responsabilidade simultaneamente particular – relativamente ao seu
próprio povo e no respeito pela soberania – e global – relativamente a
qualquer povo do mundo vítima daqueles crimes. É introduzido o dever de
agir in extremis com a força para proteger, tal como numa acção policial.
Por outras palavras, o direito de um Estado soberano não sofrer a
ingerência de outro(s) Estado(s) soberano(s) fica condicionado à
inverificação de violência exercida internamente a ponto de se
perpetrarem crimes contra a humanidade. Se um Estado soberano abdica
da responsabilidade de proteger a sua própria população, essa
responsabilidade é automaticamente transferida para a comunidade dos
Estados soberanos do mundo reunida na ONU e nos seus órgãos.
Mas não seriam estes desenvolvimentos da nossa era outras tantas
variantes da doutrina da guerra justa? É ainda a visão da guerra legítima
como acção punitiva. A novidade da protecção das vítimas, na realidade,
já era uma ideia bastante corrente desde o período tardo-medieval, embora
não debaixo do «figurino dos crimes contra a humanidade». Sem qualquer
dúvida, a juriscização da guerra é uma consequência directa da doutrina da
guerra justa. Suárez não se importava de comparar em sentido estrito as
guerras a processos dirimidos em tribunal. Com a diferença de que, no
caso da guerra, o soberano que combatera injustamente, com esse acto,
destrói a sua soberania, ao passo que o soberano vítima da injustiça do
outro agia como juiz e como executor da sentença declarada pela razão.
Teria de ser a razão natural e o soberano injustiçado a julgar (e a agir em
conformidade), pois não havia uma autoridade superior aos Estados
soberanos a quem recorrer. Não havendo instância superior cuja sentença
vinculasse as partes em discórdia, restava a guerra como acção punitiva. A
soberania coexistia com um padrão de justiça universal a todos os poderes
soberanos. Mas não havia uma autoridade universal superior a todas as
soberanias. O problema era tanto mais grave quanto se admitia a
possibilidade de subjectivamente, e por variadíssimas razões, ambas as
partes estarem convencidas, de boa-fé, da justeza da sua respectiva causa.
A perspectiva subjectiva era importante porquanto mantinha intactas a
supremacia e a responsabilidade do Estado soberano. Inviabilizava a
criminalização da guerra quando esta era travada por partes moralmente
iguais, sem mácula de consciência e sem acesso ao julgamento de um juiz
objectivo, imparcial e omnisciente das circunstâncias e das intenções.
Grócio quis ir mais longe do que a relativa timidez dos tomistas, e
avançou o princípio, segundo a lei natural, da legitimidade de cada um dos
Estados soberanos para punir injustiças cometidas por outros Estados – ou
por unidades intra-estaduais – mesmo quando essas injustiças não lhes
causavam danos directos. As violações pertinentes do ius gentium
incluíam actos aparentemente tão indiferentes à responsabilidade soberana
de cada Estado como a bestialidade, o sacrifício humano, o canibalismo, o
suicídio, a desonra dos pais e o assassínio de estrangeiros – dentro de
outras fronteiras. Em nome do direito natural, a soberania podia agir em
violação da independência nominal das outras soberanias. O direito
natural podia suspender o princípio de não-ingerência. À luz desta
concepção da guerra como punição judicial por crimes contra a justiça
universal, o Estado soberano seria como Hércules, que em tempos
imemoriais percorreu o mundo a castigar a maldade dos homens.634
Hércules foi o primeiro «polícia do mundo».
5. O pós-soberanismo frente à soberania popular e à nação
A crítica do soberanismo traz um resultado nem sempre intencionado. O
de que com a negação da soberania simpliciter vem necessariamente a
negação da soberania do povo. Vimos já como a soberania popular e
nacional se amarraram uma à outra para se apresentarem como uma só.
Ora, não é por acaso que o esforço por aniquilar a soberania como
conceito e como prática é simultâneo com o esforço por aniquilar a nação.
Na realidade, podemos perguntar se não se trata de um e mesmo esforço.
Seja como for, se a associação da aniquilação da soberania à associação do
regime popular pode causar alguns calafrios inclusive em quem pugna
pelo anti- ou pós-soberanismo, já a associação da aniquilação da soberania
à aniquilação da nação constitui motivo de orgulho. Ressalve-se que
ninguém de entre os pós-soberanistas procura aniquilar a nação enquanto
etnia. Mas, como tivemos oportunidade de assinalar, a diferença entre a
nação e a etnia é política, e é essa diferença política que se quer aniquilar
nas disposições pós-soberanistas. Quanto à etnia, até podemos encontrar
loas e louvores provindos do pós-soberanismo em nome da «diversidade»,
do «respeito», da «tolerância» e do «reconhecimento». Quanto à
promoção da comunidade humana etnia, nos pós-soberanismos
suspeitamos até de uma detecção de um aliado na luta contra o Estado
soberano nacional. Mas não é de etnias que tratamos quando analisamos a
noção de soberania. E resta saber o que está contido na etnia quando se
nega a nação em toda a sua dimensão histórico-política. Relegamos os
cidadãos para um exclusivo de identificação com subestruturas formadas
por relações imaginadas com uma origem comum. A segmentação dessas
subestruturas torna-se inevitável pois deixa de haver um plano superior
onde juntar, comunicar e assimilar as pequenas diferenças, aquele plano
superior providenciado pela nação e que só pode ser providenciado pela
nação pela proposta de agência política que esta viabiliza. Afinal de
contas, repito, a etnização da política é a tribalização da política.
O pós-soberanismo pode sobreviver da sua investida contra a soberania
popular expondo uma aparente contradição nesta. Se o povo é soberano,
como pode ser ao mesmo tempo súbdito da lei feita pelos seus
representantes? Não será uma contradição manter a soberania no povo e,
portanto, a sacralidade da sua decisão de desobedecer e, no limite, destruir
os órgãos políticos substituindo-os por outros, ao mesmo tempo que se se
compromete com a ordem da legalidade a qual pressupõe a obediência à
lei legislada? Numa direcção rumamos à edificação unilateral da ordem da
legalidade, noutra a sujeitamo-nos a ela. A resposta clássica para este
problema residia em ver a soberania constituinte como distinta da
soberania em exercício. Ou alternativamente em ter a soberania popular
em estado dormente após a concessão do consentimento e que só poderia
ser despertada no caso em que os princípios de justiça e do Direito fossem
postos em causa tanto na actividade legiferante, como, em termos mais
genéricos, na acção dos órgãos da soberania. O pós-soberanismo poderia
apontar para a verdadeira causa de tanta comoção. Era o conceito de
soberania e a sua localização abstracta – e arbitrária – num agente
colectivo chamado «povo».
O vigor do pós-soberanismo é interessante na sua força motriz, que é,
em última análise, a sua finalidade. Inaugurar o reino da igualdade e dos
direitos humanos, sem a intromissão do poder, nem da decisão política.
Eis como podemos descrever em abstracto a finalidade do pós-
soberanismo. Se o Estado provém de um passado em que lhe foi
concedido um monopólio, ou quase-monopólio, de atributos soberanos
vários, desde logo a faculdade da legiferação, então o pós-soberanismo
deixa-se seduzir pela promessa de uma constelação de comunidades e de
instituições que reclamem o desmantelamento desse monopólio em seu
benefício. É muito interessante na medida em que o soberanismo e a
igualdade, a par do reconhecimento político (e moral) de direitos
individuais, aparecem juntos na História. Aparecem porque, em grande
medida, o soberanismo esteve ao serviço da realização política da
igualdade, ou de formas de igualdade, bem como do reconhecimento e
garantia dos direitos individuais. Dir-se-ia que o pós-soberanismo parece
ser a defesa institucionalizada dos produtos morais do soberanismo contra
o seu autoproclamado produtor e protector.635 O protector, por alguma
razão, aparecia como um perigoso ameaçador da igualdade e dos direitos.
Mas esse vigor nunca chegaria a sê-lo se não se tivesse adquirido a
confiança de que finalmente podíamos prescindir do instrumento político,
com o poder que lhe está associado, com a verticalidade que lhe está
associada, com a violência que lhe está associada, para realizar a
democracia. A decisão política é superada construindo uma máquina
administrativa que funcione automaticamente precisamente como uma
máquina, com uma previsibilidade e automaticidade ininterruptas.
Remover a decisão política torna-se critério de perfeição dessa máquina
administrativa movida apenas pela aplicação da norma através de um
aparelho regulador. Tal como Engels aspirava, a administração das coisas
e não o governo dos homens. Os Europeus, alguns Europeus, não têm
dúvidas de que tal bênção já foi derramada nas suas cabeças. A ordem, se
não foi de emergência espontânea, será certamente de conservação
espontânea. Senão pelo aperfeiçoamento moral e político do ser humano,
então com a ajuda da inteligência artificial.
6. Imagina um mundo sem soberania. Não é difícil imaginar.
O barão Cloots escolheu para si o nome Anacharsis, em homenagem ao
filósofo nascido na Cítia no século VI a.C. O Anacharsis da Antiguidade
rumara a Atenas e aí travara conhecimento com Sólon e com os sábios da
Hélade, tornando-se ele também um desses sages. Nenhuma das suas
obras sobreviveu, mas no século XVIII a sua reputação de homem
estrangeiro a conviver com as luzes e com os outros irmãos de espécie
seduziu uma alma como Cloots. Vindo da Prússia para a pátria da
Revolução, em 1790 «Anacharsis» Cloots chefiou uma delegação de
estrangeiros que atravessou a Europa para anunciar com pompa na
Assembleia Nacional que «o mundo» aderia à Declaração Universal dos
Direitos do Homem e do Cidadão. Mal sabia ele que acabaria devorado
pelo Terror jacobino, à semelhança de milhares de outros, aliados e
inimigos da Revolução que o Terror tratou equitativamente. Mas antes de
sentir a violência revolucionária na pele, Cloots propôs uma interpretação
– e um rumo – da Revolução num sentido amplamente cosmopolita. Com
condescendência, assinalo que Cloots escolheu Paris para capital do
Estado mundial por vir. Naquele tempo, a doutrina do cosmopolitismo era
tratada como sinónimo de filantropia – de amor ao género humano, que
transcendia amores mais particulares. A relação entre o amor como
princípio de ordem e o cosmopolitismo terá de aguardar por um outro livro
que complete a trilogia dos princípios de ordem – Autoridade, Soberania,
Amor. Não obstante, aqui teremos de nos demorar um pouco sobre o
cosmopolitismo como crítica da soberania. E Cloots, «o orador do género
humano», foi o seu mais apaixonado porta-voz.
Para ele, o caminho aberto pela Revolução não indicava uma república
qualquer. Não indicava uma república meramente francesa. Indicava uma
república da humanidade. Nessa nação única, nessa nação mundial, seriam
superadas, mas não preservadas, todas as nações particulares. Só o mundo
inteiro podia ser uma pátria, e não um dos seus cantos fechado sobre si
mesmo. A particularidade teria de passar a ser condenada como uma
«traição» – uma traição à «democracia». A nacionalidade particular era o
«crime». «Inflamado de horror contra os tiranos» e ardendo de «amor pela
liberdade» não havia pathos suficientemente exuberante para este arauto
dos escravos e oprimidos no seu «apostolado universal». Comparava-se a
Newton, pois também ele anunciava ao mundo uma descoberta nova
unificadora. Mas se o filósofo inglês unira os filósofos, ele teria a suprema
glória de unir todos os seres humanos. Depois dele, a velha universalidade
da Igreja Católica seria vista como aquilo que realmente era: uma
dilaceração do género humano que só esboçava unidade na superstição em
que assentava. Para se ser «livre na terra» havia que recusar ser-se
«escravo do céu». Depois do Cristianismo, viria a república mundial,
porquanto o único Deus era o próprio «género humano». Foi assim que se
desenhou um horizonte de complacente auto-suficiência em regime de
adoração de si mesmo que mobilizaria o ideal cosmopolita até às vésperas
da insurreição ambientalista dos nossos tempos.
Cloots queria acabar com o nome francês, à semelhança do que se fizera
com o normando ou com o gascão, relíquias e sintomas de uma longa
noite de opressão. As nações particulares não eram naturais diante da
marcha da civilização iniciada pela Revolução. A palavra estrangeiro
deveria ser erradicada da nova linguagem e a separação dos povos que a
vira nascer destruída de uma vez por todas. A crítica da separação dos
povos era, como não poderia deixar de ser, uma crítica da fronteira. Seria,
pois, de supor que, no balanço final de tamanha aspiração, Cloots se
decidisse pela crítica da noção de soberania. Mas, talvez ainda imbuído
das teorias políticas que enchiam o caldeirão revolucionário e que ainda
arrastavam o conceito de soberania consigo, Cloots acabava por
universalizar a soberania como a sua grande proposta constitucional. Era
preciso perceber que, imitando a linguagem da Declaração Universal, a
soberania residia «essencialmente» no género humano, e não neste ou
naquele povo particular, e muito menos na coroa de um tirano. A
«soberania do género humano» era classicamente «unificada e
indivisível». Era «una», «indivisível», «imprescritível», «imutável»,
«inalienável», «imperecível», «ilimitada», «absoluta», «irrestrita» e
«omnipotente». Era indivisível, pois, como a própria humanidade, que
tinha como sublime aspiração histórica obedecer unida apenas «aos
ditames de uma vontade geral absoluta e suprema». Não existiam
soberanias legítimas separadas, dadas as essenciais unidades da soberania
e do género humano, reflectindo-se uma na outra. No fundo, Cloots estava
convencido de que a república mundial ou universal, realizando o ideal
cosmopolita, era o corolário lógico da própria teoria da soberania. Era
também a solução para a questão da guerra, produto exclusivo de uma
soberania universal injustamente fraccionada em nações ou em Estados
autónomos. O término da guerra seria coincidente com o triunfo planetário
da democracia e da igualdade.636
O exemplo de Cloots, e fazendo o possível por desvalorizar o
impossível deslumbramento do homem, foi muito útil para perceber dois
pontos. Primeiro, na sua origem, o ideal cosmopolita, ou pelo menos a sua
conceptualização mais extrema que a época revolucionária conheceu,
resultava de uma expressão maximalista do ideal democrático. A ideia de
republicanizar o mundo, ou mais radicalmente de democratizá-lo,
correspondia à consideração de criar uma sociedade universal, unificando
a humanidade pelo reconhecimento político da igualdade de todos e da sua
semelhança.
Segundo, o ideal cosmopolita era uma expressão universalizante da
noção de soberania, e não uma sua negação. Ora, o pós-soberanismo
enquanto corrente genérica pretende criar um mundo em que a noção de
soberania foi definitivamente superada, não preservada, e muito menos
universalizada. Ou seja, a sociedade pós-soberana é, afinal, a única
sociedade universal que pode realmente, e ao contrário do cosmopolitismo
soberanista de alguém como Cloots ou outro partidário do Estado
mundial, unificar a humanidade pelo reconhecimento político da
igualdade de todos e da sua semelhança. Em suma, é a correcção histórica
definitiva.
O cosmopolitismo corrige porque a crítica da soberania no plano
externo, senão no interno, supõe a existência de uma comunidade
universal, de uma societas gentium, mais natural, mais perdurante, mais
compatível com uma qualquer unidade do género humano, na medida em
que a soberania exclui. Excluindo, cria a divisão entre nós e eles, entre
quem está dentro e quem está fora, entre amigo e inimigo. O ponto de fuga
para esta conclusão até ao século XVII coincidia com a insistência da
teorização de um ius gentium. Este, como vimos, consistia na
sistematização de normas universais que regrassem as relações entre
pessoas individuais e colectivas pertencentes a uma mesma sociedade
universal. O ius gentium era o regime legal para lidar com a diferença na
universalidade. Mas essa diferença na universalidade supunha uma
comunidade essencial formada pela racionalidade e sociabilidade do
género humano. Mais do que isso: pressupunha a existência de Estados
como unidades de vontade que eram não só sujeitos de direitos e deveres
previstos no ius gentium, como lhe davam execução as mais das vezes.
Com todas as suas diferenças, a problematização da soberania seja em
torno da sua «partilha», seja na sua superação rumo ao mundo pós-
soberano, colocam em causa, de modo radical, a fronteira política. Já tive
oportunidade de me debruçar sobre este tema numa primeira abordagem
no capítulo I. Aproveitei para incluir nesse ponto uma crítica importante à
noção e efeitos práticos da fronteira política com a sua assimilação ao
dominium. Era notória a relação entre a territorialidade e a fronteira. É
preciso agora acrescentar que, para os críticos, a imoralidade da fronteira
deriva da sua negação implícita dos valores morais universais e da
formação de emoções de exclusão que a sua existência permite. A
fronteira é a estrutura que, ao separar as lealdades, separa também a nossa
vinculação ao direito e à justiça universais. Do ponto de vista da conduta
moral e das nossas vinculações éticas, e que pretende ser o ponto de vista
fundamental, a crítica da fronteira mais profunda coloca-se no plano do
cosmopolitismo. Com raízes no Estoicismo e no seu kosmou politês – o
tão badalado cidadão do mundo – pertencente a duas comunidades: a
acidental, em que cada um nasceu; e a moral, em que somos concidadãos
de os demais seres racionais. Segundo o ponto de vista cosmopolita
estóico, seria da segunda comunidade que deveríamos extrair a nossa
orientação moral e era ela a fonte das nossas obrigações. Na versão
originária do estoicismo as fronteiras políticas não seriam alteradas num
milímetro, e muito menos abolidas. O horizonte moral é que não
dependeria da particularidade circunscrita pela fronteira política, e pela
nossa experiência acidental de vida necessariamente local, transcendendo
ambas. A lealdade moral do indivíduo dirigia-se à grande comunidade
moral universal, não à comunidade política contida dentro de fronteiras.
Neste cosmopolitismo, as identificações humanas podem ser representadas
por círculos concêntricos diferenciados pela proximidade à origem.
Assim, o mais próximo representa a comunidade da nossa família e o
grupo de amigos. Depois, num outro círculo mais alargado, teríamos, por
exemplo, a comunidade política dentro das fronteiras. E finalmente a
circunferência de maior perímetro, a comunidade do género humano. A
cidadania cosmopolita gera um dever de fazer aproximar tanto quanto
possível a circunferência mais afastada para que a nossa identificação com
os seres humanos na sua totalidade se aproxime da identificação que
temos com os nossos concidadãos no seio da comunidade política.637
Com as metamorfoses cristã e moderna, o ideal cosmopolita chega aos
nossos dias a partir da consciência partilhada deste «cidadão do mundo»
de que os problemas e desafios futuros são comuns a todos os seres
humanos – são globais – e de que o destino histórico é, afinal de contas,
comum também. O ponto de vista mais profundo da História é o
cosmopolita. A irrelevância das fronteiras políticas torna-se num corolário
da reordenação dos afectos humanos, impossível sem uma educação
apropriada, e num imperativo da razão, dadas as novidades históricas que
se apresentam sob a forma de desafios que carecem de uma resposta
global. As fronteiras são moralmente arbitrárias e incompatíveis com o
ajustamento dos meios que devem ser mobilizados à escala dos problemas
a resolver. Neste sentido, a particularidade nacional é «moralmente
irrelevante». Irrelevante acaba por ser brando. A fronteira que delimita a
nação, tendo uma influência decisiva na formação do horizonte da nossa
deliberação moral, limitando-a e distorcendo-a, é, por essa via,
moralmente condenável. Verdadeiro obstáculo na nossa identificação
afectiva com os outros seres humanos fora do círculo nacional, a fronteira
colide com o dever ético de aproximação aos interesses e bens da
humanidade como um todo, e não pode senão ser sujeita ao opróbrio.638
Na nossa contemporaneidade, o cosmopolitismo rapidamente sofreu
uma bifurcação. De um lado, o cosmopolitismo que valoriza de igual
modo todas as experiências humanas locais e apenas censura o
fechamento de umas às outras, assim como a impossibilidade política e
jurídica de se transitar de umas para as outras através das migrações, por
exemplo. Este cosmopolitismo não é necessariamente crítico da unidade
política estadual, nem das suas fronteiras, embora se bata pela sua quase
total porosidade em nome de um direito cosmopolita. E, do outro lado, um
cosmopolitismo que apenas se revê na essencial homogeneidade moral da
humanidade. Esta vê-se distorcida por um apego excessivo à experiência
humana local, exigindo assim um esforço espiritual permanente de
encontro e realização da tal homogeneidade moral do humano. Nesta
versão do cosmopolitismo, a condenação da fronteira e da unidade política
estadual é objecto de crítica sem reservas. Mas com um problema concreto
que a crítica da soberania e da fronteira – e da particularidade – jamais
poderá resolver. Qual o conteúdo concreto da homogeneidade moral da
humanidade enquanto tal? Não é uma pergunta despicienda. E ela carece
de uma resposta urgente. Quando aparece, a resposta arrisca-se a ser uma
mera projecção das várias ideias morais particulares, culturalmente
situadas, que o cosmopolitismo censurara por serem castradoras da visão
moral dos seres humanos. O padrão de universalidade postulado por uns
pode muito bem ser visto como limitador, ou antinómico, da
universalidade por outros.
A crítica cosmopolita das fronteiras passou a estar intimamente ligada à
questão das migrações, e a discussão também se foi desdobrando em
planos distintos: económico, moral, cultural. As restrições às migrações,
que pressupõem as fronteiras, são criticáveis, entre muitos outros critérios,
da perspectiva económica. Não apenas do ponto de vista colectivo –
prejudica a afectação eficiente de recursos, neste caso do factor trabalho,
para falar como os economistas –, mas do ponto de vista do indivíduo
também. Pascal assinou o deslumbrante aforismo segundo o qual o que
era verdade deste (daquele) lado dos Pirenéus era falsidade do outro
(deste) lado. Toda a jurisprudência, acusava Pascal, era revogada quando
nos mexíamos no mapa três graus de latitude apenas.639 A relatividade
geográfica dos costumes e da opinião aparecia como uma porta para o
absurdo do mundo humano, embora também para a intuição do contexto
limitado e circunscrito com que se formam as ideias sobre esse mundo. A
mesma perplexidade assola desde há muito os economistas que constatam
a subida dos salários médios por vários múltiplos com a simples travessia
de uma fronteira. Um dos livros de economia mais comentados dos
últimos anos demora-se longamente sobre as diferenças económicas
colossais entre uma cidade mexicana adjacente à fronteira e a outra cidade
americana situada no lado oposto adjacente à mesma fronteira. Nogales,
no estado mexicano de Sonora, e Nogales, no estado americano do
Arizona, estão separadas a meio por uma vedação. No lado norte da
fronteira o rendimento médio de uma família é de 30 mil dólares por ano.
No lado sul é apenas um terço daquele rendimento. Percebem-se as razões
de vária ordem que expliquem a diferença, mas do ponto de vista do
indivíduo essas explicações dependem da diferença marcada pela
fronteira. A negação de possibilidades de vida a quem fica retido no sul e
é impedido pela fronteira de ir para norte envolve uma justificação (ou
tentativa dela) política e moral.640
Porém, o argumento económico da superiormente eficiente afectação de
recursos que adviria da liberdade irrestrita da circulação de pessoas não é
suficiente para uma crítica radical das fronteiras. O plano tem de subir
para o ético e que siga a tradicional denúncia de que a exclusão permitida
pela fronteira traduz uma prioridade moral a quem está do seu lado de
dentro relativamente a quem está de fora. Um diferencial de respeito e de
reconhecimento de direitos entre seres humanos que à luz de uma ética
igualitária devem ser tratados igualmente porque todos têm um igual valor
moral, uma dignidade absoluta. O reconhecimento cada vez mais amplo
de direitos humanos tem, por isso, a irrelevância das fronteiras e a sua
arbitrariedade moral como corolários.641
Se a nação ou o Estado soberano ou o Estado soberano nacional são
pura e simplesmente votados à «irrelevância moral», então está-se
autorizado a generalizar esse voto para todos os contextos estruturantes da
história humana. A comunidade política autónoma enquanto tal segue o
mesmo caminho, assim como a própria ideia de cidadania que lhe é
inerente. Tal conclusão é absurda nos seus próprios termos. Supõe ainda
que a universalidade jamais pode ser apreendida a partir da particularidade
e que natureza política do ser humano, tal como Aristóteles ensinou, é
uma ilusão. A conclusão implica ainda um outro pressuposto: se todos os
contextos particulares de enquadramento da vida humana – a família, a
cidade, a nação, o Estado, o território, e por aí em diante – são
«irrelevantes» e «arbitrários» por não serem, nem poderem ser, objectos
de escolha individual, isso significa que o cosmopolitismo desenha uma
tentativa inadvertida de evasão face à estrutura fundamental da existência
e opta por uma representação totalmente abstracta da vida humana. Uma
representação do ser humano como se chegasse ao mundo já um ser
isolado, autónomo e auto-suficiente. Donde ocorre imediatamente a dupla
possibilidade sugerida por Aristóteles para caracterizar quem vivia fora da
comunidade política, sem fronteiras – (um cidadão do mundo?): teria de
ser ou um deus ou uma besta.642
Quando Rómulo assassinou o seu irmão gémeo Remo, gritou: «Assim
morrerá quem mais saltar por cima das minhas muralhas.» Rómulo traçara
na terra com a sua charrua o espaço físico que seria reservado ao templum,
o lugar sagrado. Remo, em troça e desprezo da obra do irmão, galgou o
sulco onde iria construir o muro divisório. Conta Tito Lívio que foi assim,
com o traçado de uma fronteira, com uma sua transgressão e com um
fratricídio, que Roma foi fundada, e Rómulo, dando-lhe o seu nome, foi o
primeiro rei solitário da cidade.643
Numa, o segundo rei de Roma a seguir ao fundador Rómulo, e que os
Romanos tiveram de ir buscar aos Sabinos, construiu dois templos a dois
deuses: um à Fides, o outro a Terminus. Ensinou os Romanos a jurarem
pela Fides, a fazerem juramentos de boa-fé. Já Terminus era o deus das
fronteiras. Segundo Numa, Terminus era um deus de paz e seria sempre a
testemunha por excelência dos negócios justos. Logo, era igualmente um
deus de justiça. Foi nessa sequência que Numa traçou as fronteiras da
cidade de Roma, fruto logo naqueles primeiros tempos das conquistas
militares, coisa que Rómulo deixara por fazer. E deixara por fazer
provavelmente porque estava consciente de que o território de Roma tinha
sido expropriado a outros. Ao mesmo tempo ao não traçar as fronteiras da
cidade Rómula deixava essa indeterminação servir as futuras ambições
expansionistas da cidade. Mas Numa considerava que a fronteira
respeitada era a barreira ao poder desregrado e que a fronteira
desrespeitada era a porta aberta à injustiça. E foi com esse espírito
também que fez a reforma administrativa do interior da cidade, dividindo-
a em pagi ou comarcas.644 A ordem externa, como a interna, requeria
fronteiras. Como era Terminus, a fronteira era limite.
Através de um princípio de exclusão territorial – a fronteira vista do
exterior – a fronteira política cria o espaço de formação da comunidade.
Esta por si mesma elimina princípios de exclusão. A oposição moral às
fronteiras brade contra qualquer princípio de exclusão, qualquer linha de
separação entre nós e eles. Ao fazê-lo aspira apenas e exclusivamente a
uma comunidade que nada teria em comum e por isso negar-se-ia a si
mesma: a cosmopolis, a sociedade do género humano, a «irmandade do
género humano». Na formulação de Kant que vimos antes:
«Originariamente ninguém tem mais direito do que outro a estar num
determinado lugar da Terra.»645 Esquece-se, no entanto, de assumir a
responsabilidade pela destruição da comunidade criada antes pela fronteira
como linha de exclusão externa. Ora essa destruição jamais será
compensada pela ilusão de uma cosmopolis cujo hino poderia ser o tema
«Imagine», de John Lennon. Abrirá caminho à formação de comunidades
subnacionais e infrapolíticas, algumas das quais conhecemos bem e a que
não pretendemos regressar. A afinidade étnica regressaria à supremacia de
outros tempos substituindo uma linha de exclusão – a fronteira política –
por uma outra bem mais agressiva – a fronteira étnica. A primeira forma
de comunidade nacional política gera uma comunidade forçosamente
dialogante porque recorre à política para organizar a coexistência de
diferenças entre pessoas e estabelecer a homogeneidade no plano político.
Ou, separando o nocivo desenvolvimento hiperbólico do conceito de
nação, para estabelecer uma homogeneidade incompleta. Já a segunda
forma de comunidade étnica recorrerá à política para estabelecer a
homogeneidade no plano étnico e infrapolítico de todo o tipo, como
mostra a pressão posta pela chamada identity politics, sabendo que este
tipo de diferenças não se supera dialogicamente. Essa é a consequência
não intencionada pelos próprios, é certo, da reivindicação da abolição das
fronteiras políticas. De tanto quererem transcender as linhas de exclusão e
de diferenciação conseguiriam afundar e cavar exclusões e diferenças
infinitamente perigosas. A nação circunscrita por fronteiras políticas gera
uma comunidade sustentada em laços e lealdades cruzadas permitidos
apenas pela pertença de cada um a ela. A exclusividade da nação, e o seu
fechamento político ao exterior, é apenas a outra face da resistência desse
vínculo cívico dos membros da comunidade. Que tem de ser forte para se
sobrepor, mas não para esmagar, no plano das vinculações políticas a
todas as diferenciações que os separam, seja a diferenciação étnica,
territorial, económica, social, confessional, vocacional ou até linguística.
A comunidade política completamente aberta, destituída de qualquer
fronteira, não poderia fortalecer uma vinculação desse tipo. Enfraquecê-la-
ia até ao ponto em que as demais vinculações formariam a identidade
política dos membros da comunidade em risco. E, por conseguinte,
conduziria à dissolução da comunidade política nacional, à sua
fragmentação e à reconstituição de comunidades com fronteiras mais
rígidas, mais exclusivistas e mais violentas segundo as linhas da
etnicidade, da confessionalidade, da língua ou de outra deste género, o que
vale por dizer subnacional e subpolítica.
Mas é no horizonte da crítica da soberania que a fronteira aparece na
feição mais vulnerável. Mais, as fronteiras adquirem uma sacrossantidade
provavelmente desconhecida antes da entrada em cena da nação no palco
da História. A nação vê a fronteira como a linha divisória entre o
estrangeiro e o lar, a estranheza e a familiaridade, a hostilidade e a
intimidade. A relação amigo-inimigo passa a ficar fortemente dependente
da marcação da fronteira.
A emergência da nação, com o inerente ponto de situação e
continuidade histórica, redobrou de importância a insistência nos limites
colocados pelas fronteiras. Os espaços em que a acção histórico-política se
baseia deviam ser circunscritos por limites. Limites territoriais, entre
outras determinações. Em grande medida, a fronteira do império e mesmo
da cidade-estado era flutuante, jamais adquirindo a importância na rigidez
que alcançou com o triunfo do Estado soberano nacional e com a
proclamação do direito à autodeterminação dos povos. A nação com
fronteiras celebrava politicamente a diversidade do mundo e a autonomia
da particularidade que essa diversidade comportava. Não se tratava, por
conseguinte, de uma visão neutra da diversidade humana. Elevava a
dignidade e direito de protecção de um certo tipo de comunidade humana
na sua diferença relativamente a outras comunidades humanas. Uma
comunidade humana politizada segundo uma estrutura particular – a da
separação política, que por sua vez era flexível para admitir, num contínuo
difícil de segmentar, um amplo conjunto de modalidades de abertura de
outra espécie, económica, literária, científica, administrativa e por aí em
diante. Se o império era o excesso de universalidade que deslizava para a
heteronomia, a civilização europeia respondeu com a particularidade
contida na autonomia da nação.
Assim que a soberania popular assumiu as rédeas do devir democrático,
reclamando para si tantos poderes e tantas possibilidades, a fronteira
ganhou um valor óbvio na restrição a essa vontade de constituir, a essa
vontade de legislar universalmente. Cada povo podia querer para si
mesmo. A sua vontade travava na fronteira. Do lado de lá da fronteira
haveria outro povo querendo para ele mesmo dentro das suas
circunscrições territoriais. A acomodação das várias vontades populares
dependia estritamente da inviolabilidade da fronteira. O que dividia era o
que protegia – era o que limitava. Era, afinal, o que acomodava e permitia
a coexistência.
A soberania nacional era já uma manifestação da consciência da
fronteira, porque significava vontade de autonomia de uma particularidade
distinta de outras particularidades. A nação prezava as suas fronteiras, mas
não tinha os recursos para as definir com a clareza que a administração
das coisas sempre exige. Mais uma razão para um mundo de Estados
nacionais valorizar as fronteiras: estas impunham e impõem uma
disciplina a uma comunidade que não a gera espontaneamente. A fronteira
fecha. Ao fechar a sociedade, ela e os seus membros voltam-se para eles
mesmos, consolidando a consciência de si que torna possível o comum, o
sentimento, o espaço e o(s) bem(ns) de partilha no seio de uma
comunidade. O instinto social, digamos assim, que cimenta os laços e as
obrigações sociais é cultivado num certo tipo de fechamento da sociedade.
Nessa medida muito específica, repetindo a lição de Henri Bergson, toda a
sociedade, por mais «aberta» que seja na porosidade multidimensional da
sua fronteira, é necessariamente fechada. Isto é mais verdadeiro para uma
realidade política composto por Estados nacionais soberanos. Trata-se de
um facto que, num mundo orientado por pressões económicas,
tecnológicas e éticas de ruptura com os fechamentos, e de superação das
particularidades, cria uma incómoda contradição. Ora, entre o Estado
nacional por grande que seja, e a humanidade enquanto tal, a única
sociedade inteiramente aberta, vai a distância entre o finito e o indefinido,
entre o fechado e o aberto.646
Embora a análise de Bergson seja muito proveitosa, na realidade, a
oposição que a fronteira traz não é exactamente a que temos entre
fechamento e abertura. Até porque o fechamento sugere a ausência de
trânsito pela fronteira, ao passo que, em boa verdade, a fronteira
selecciona o trânsito, peneira a porosidade. Assim, a oposição trazida pela
fronteira corresponde mais exactamente à oposição fixidez/maleabilidade.
O que a fronteira assegura é a perenidade da forma (geográfica) da
comunidade. É a sua estabilidade e permanência, por contraposição à sua
flutuação, elasticidade, impermanência e indistinção. Contudo, se é
verdade que a fronteira de algum modo fecha no exterior, ela abre o
interior. A fronteira externa fixa e definida, jurisdicionalmente sustentada,
revoga as fronteiras internas, elimina as barreiras internas que impediam a
homogeneidade territorial e fomenta a mobilidade no interior da
comunidade política. O ideal de Sieyès da igualdade de todos os cidadãos
perante a lei como a igual distância que separa cada ponto da
circunferência do centro do círculo – imagem poderosa da relação legal da
soberania com o cidadão – é impedido pela existência de barreiras
internas.647 Logo, só pode ser realizado através da existência, justificação e
protecção da fronteira externa, a condição para a abolição das «fronteiras»
que atravessam a própria comunidade política.
Em contrapartida, o pós-soberanismo tende a ver na fronteira, não uma
linha divisória de superfície, mas o muro intransponível, símbolo e
matéria dos egoísmos, unilateralismos e, não raro, opressão. A linha de
superfície permite ver o que está do outro lado, pois um traçado não
impede o espaço de visão. O muro veda. É opaco. Assim, o pós-
soberanismo prefere rever-se no símbolo da ponte que transpõe a divisão,
põe em comunicação os indivíduos e os grupos em nome do «sentimento
da semelhança humana», para usarmos uma certeira expressão de
Tocqueville. Além dos argumentos económicos tão bem articulados desde
David Ricardo até às decorrências do progresso tecnológico no mundo
actual, o argumento moral invariavelmente revisitado repousa aqui.
A justificação da fronteira enquanto demarcação puramente identitária
de uma determinada particularidade «cultural» expõe-na à crítica mais
devastadora. Nesse caso, a fronteira é apenas um muro de diferenciação
radical e unilateral situado pelo acaso histórico. Porém, a fronteira, como
vimos, tem um fundamento político que a converte numa instituição
reconhecida universalmente. Com efeito, a crítica pós-soberana ao
identitarismo étnico ou nacional-cultural que dissolve um plano comum a
todo o género humano é perfeitamente válida, e é válida igualmente para a
chamada identity politics e o seu identitarismo «interseccional»
radicalizado. Porém, a particularidade circunscrita pela fronteira política
separa-se dessas formas de identitarismo. A particularidade do Estado
soberano nacional apenas faz sentido no plano comum do género humano.
A soberania fornece um dos pilares que sustentam o palco onde se
desenrola a dialéctica do universal e do particular. A soberania é a
fundação da autonomia política. Mas a independência, como vimos, é toda
outra relação/separação com o exterior. A comunidade política soberana
governa-se segundo as leis que ela própria forma para si. E, além das
normas do direito internacional racional que as vincula por natureza, a
comunidade política soberana aceita apenas as irrogações do exterior que
tiver livre e autonomamente escolhido ou consentido. Nesse sentido, a
soberania não interrompe a dita dialéctica, antes mostra-a politicamente,
evitando o esmagamento de um termo por outro levado a cabo pelo
etnicismo identitário, por um lado, e pelo cosmopolitismo maximalista,
por outro. O que está em causa é a articulação possível e sempre
experimental entre o enraizamento em comunidades particulares e
concretas (as formas da eticidade), por um lado, e as máximas universais e
abstractas de justiça e do Bem ditadas pela razão, por outro. A
universalidade e a particularidade, a humanidade – a sociedade
cosmopolita – e o Estado nacional, encontram-se na fronteira soberana
que estabelece entre ambos os pólos uma relação de complementaridade
tensa. O Estado nacional organizado em torno da soberania nunca é pura
particularidade, como seria o caso de uma etnia circunscrita localmente,
porque a soberania funda-se no direito racional, cuja vinculação tem um
cariz universal. Dito de outra maneira, toda a humanidade pode organizar-
se territorialmente segundo o modelo soberano e segundo as relações
político-jurídicas que a soberania determina. Cada unidade soberana é
uma unidade que se estrutura segundo princípios universais,
concretizando-se no espaço e no tempo sob a forma da particularidade.
7. O Pós-soberanismo como anti-estatismo
Vivemos na «era da globalização». Lugar-comum mais comum do que
este não há. Deste lugar-comum tem-se concluído muitas coisas. Uma
conclusão igualmente comum é a de que os fluxos vitais das nações
ultrapassam o Estado como agente, como regulador, como monopolista,
como informador ou como refreador. Bens, serviços, tecnologias, ideias,
preconceitos, modas, informação, desinformação, capitais, males de toda a
espécie, tudo circula através de canais e pólos de distribuição e
coordenação não-estatais. Ora, a soberania, sendo um distintivo da
organização estatal do político, não pode deixar de sofrer um forte dano à
sua integridade conceitual e à sua eficácia prática, quando posta num
mundo em alegado processo de des-estatização. Para fugir a um
pensamento obsoleto, é preciso deixar para trás um conceito
eminentemente estatocêntrico, como a soberania. Formas políticas novas e
polimórficas como a da União Europeia – pelo menos, interpretada de um
certo modo não soberanista – indicam o caminho do futuro. São formas
políticas de sobreposição de ordens jurídicas e de reivindicações
constitucionais em que nenhuma sai finalmente apagada. E todas se
relacionam já não de modo vertical, à maneira hierárquica, tipicamente
soberanista, mas num plano de horizontalidade, ao modo heterárquico.
Diferentes sedes de autoridade constitucional coexistirão sem que possam
ser ignoradas, ou ordenadas segundo uma hierarquia, ou sequer segundo
uma ideia de especialização funcional. As pretensões de autoridade
constitucional de cada uma delas são incomensuráveis. O que isto implica
é a coexistência na mesma unidade territorial, e incidindo sobre a mesma
população, de várias fontes de vinculação e diferentes sedes de autoridade
constitucional. Daqui não se deve seguir, advertem os entusiastas, o que os
teóricos setecentistas da soberania nos ensinaram: contradição, confusão,
desordem. Uma abertura nas práticas e no discurso normativo deve crescer
de modo a abandonarmos uma visão exclusivista no território da
jurisdição e da autoridade legal, para finalmente abraçarmos as diversas
pretensões de autoridade que sigam lógicas sectoriais e funcionais. Em
vez de uma única fonte de autoridade legal para o mesmo território e a
mesma população, estes ficarão cada vez mais sujeitos a múltiplas fontes
de autoridade especializados em áreas da vida humana política e
económica. Uma fonte para o transporte aéreo, outra para a concorrência
no mercado, outra para os padrões ambientais e por aí em diante. A ideia
de comunidade política não é comprometida, garantem-nos, pois será, por
assim dizer, reajustada às tais especializações funcionais. Ou coexistirão
umas com as outras, o que teria a grande vantagem de tornar menos
problemática a infracção de fronteiras.
O sucesso teórico e prático do exercício da soberania enquanto princípio
de ordem fez nascer o contraste entre a ordem «interna» e a desordem
«externa». Na primeira, a paz, a segurança, a estabilidade. Na segunda, a
guerra, a violência e incerteza. Com esta distinção, auxiliada pelo
exercício da soberania na ordem interna e pela sua ausência na desordem
externa, cresceu a tentação de reproduzir a experiência «interna» à escala
do domínio «externo». Os blocos políticos internacionais foram, e são,
como vimos, uma tradução histórica dessa operação. Mas uma outra
tentação ocorreu. A de supor que a ordem dita «interna», tributária do
exercício da soberania e comprovação da sua eficácia ou sucesso
histórico, não se devia a esse exercício. Mais, cresceu o silogismo
segundo o qual a coexistência de várias soberanias no plano internacional,
já não exercidas «internamente» mas ainda subsistindo nalgumas das suas
«marcas» no plano externo, era o principal factor da guerra, da violência e
da incerteza. Se na ordem interna, supostamente o seu grande sucesso,
fosse possível demonstrar que a soberania não tinha sido o seu gerador, e
tomando por garantido que o exercício da soberania no plano externo era o
factor da guerra; então, seria fácil concluir que o caminho da paz estava
fechado pelo obstáculo da soberania. Uma vez esta removida, o caminho
da paz estaria irreversivelmente aberto. Seria demonstrável que a
soberania não tinha sido o princípio da ordem interna, demonstração
necessária para tornar a soberania dispensável?
Tratava-se de um desafio difícil, fazer essa demonstração. Então, poder-
se-ia seguir um trajecto alternativo e mais rápido. Dado que a ordem
interna parecia tão fácil de sustentar e era, por assim dizer, tão
espontânea; dado que era fácil demonstrar que a ordem subsistia sem um
esforço político aparente, o ónus da demonstração passava para o lado da
soberania. Em tempos ordeiros, esta última demonstração não era nada
fácil. A dispensabilidade da soberania tornava-se mais óbvia. No plano
interno e, por conseguinte, no plano externo também. Se a soberania podia
desaparecer do horizonte intelectual e político dos povos, então o seu
correlativo territorial, as fronteiras também pareceriam, não apenas
arbitrárias – esse problema era bem mais facilmente assimilável – mas
injustificáveis e moralmente inaceitáveis. O cosmopolitismo, não enquanto
atitude ética ou existencial, mas como doutrina política que se coloca
como alternativa na discussão dos princípios de ordem, apareceria como a
única resposta cabal para o problema da ordem, por um lado, e da
justificação moral dos requisitos da ordem, por outro.
A proposta da sociedade global arroga-se de uma grande superioridade
moral sobre um globo composto por Estados soberanos nacionais e
unidades políticas particulares. Não tem fronteiras. Pelo menos, não tem
fronteiras externas. Não tem na sua frente um outro mundo estrangeiro de
que se diferencia e se delimita. Por definição, fica excluída a exclusão do
outro e garante-se o triunfo absoluto e incondicional da inclusão de todos.
Não tendo uma frente de fronteira, ficaria anulada a possibilidade de haver
violência dirigida ao estrangeiro. Mas resta a dúvida de se esta
universalidade, esta inclusão universal, esta ausência de fronteiras, este ser
humano, independentemente de se ser cidadão, de ser instanciação da
humanidade sem pertencer a nenhuma totalidade cultural-política
particular, não se queda por essa razão, isto é, por estarem
desacompanhadas da tensão da particularidade aberta ao universal, num
grau insuportável de abstracção, não dando qualquer resposta aceitável
para as necessidades da vida concreta das pessoas.
Diante dessa abstracção de uma universalidade deficientemente
articulada, a pessoa concreta, que precisa de responder tempestivamente
às necessidades da vida concreta, acabará por se refugiar na
particularidade mais concreta que encontrar – o tal identitarismo etnicista
ou a vertigem «inter-seccionalista», naquilo a que chamámos tribalização.
Nesse rebolar pela escadaria abaixo da racionalidade política perder-se-á o
acesso permanente à universalidade, acesso esse garantido pela unidade do
Estado soberano e pelos princípios que o alicerçam. Ironia das ironias, na
véspera da consumação da abolição da última fronteira, por toda a parte se
ergueriam fronteiras que não seriam mais do que muros de separação e de
conflito «naturalizado».
A aspiração à universalidade é o reflexo do que há de mais nobre no
espírito humano. Mas na vida humana concreta podemos esperar
participar da universalidade sem qualquer mediação? Ou tentamos
corresponder a essa aspiração já sempre constituídos por amarras,
elementos e inclinações particulares? Será que o desejo pelo derrube das
mediações, por estas nos parecerem outros tantos obstáculos,
distanciamentos e muros, não nos deixam numa terra de ninguém, e em
vez do brilhante horizonte da universalidade ficamos condenados às caves
escuras das mais fechadas associações étnicas?
Apesar de tudo, se removermos o desígnio moral que motiva a
caminhada para a sociedade global sem fronteiras, e anima a crítica das
fronteiras existentes, resta ainda uma crítica da fronteira soberana que
decorre da constatação, não da sua imoralidade, mas da sua obsolescência.
O ponto de partida dessa crítica é a observação razoável de que as
conexões tecnológicas e económicas, políticas e regulatórias, a tal ponto
se multiplicaram que o interno e o externo separados pela fronteira se
tornam noções sem correspondência na realidade prática das coisas. Os
inimigos não se limitam a esperar pelo conflito nos portões ou nas
cancelas das fronteiras. Eles já estão bem dentro do território uns dos
outros, com empresas, com investimentos, com redes cibernéticas, com
fluxos de dados, com vínculos de toda a espécie. A estratégia de inimizade
deixou de ser o combate frontal para passar ao enfraquecimento dos
circuitos vitais do inimigo e arrastá-lo para uma condição de dependência,
e não tanto de obediência ou de ocupação. Por outro lado, esta constatação
só poderia justificar uma crítica radical da fronteira, se estivesse correcta
na acepção de soberania que aparentemente permite deduzir, a saber, que a
«soberania no nosso tempo já não se expressa pela imagem da fortaleza
impregnável». Ora, a soberania enquanto jurisdição ainda tem sentido
teórico e operacional num mundo onde «as regras são feitas por aqueles
com poder para fazê-las».648 Sem dúvida, a fronteira entendida ao modo
amplo que expus acima dá conta dessa combinação de abertura ao mundo
e a todos esses complexos fluxos, por um lado, e da relação entre a regra e
o poder, do outro.
8. Europa velha, Europa nova (1)
Talvez se possa dizer sem errar excessivamente que a glória da
democracia cristã europeia do pós-Segunda Guerra Mundial seja Konrad
Adenauer. A Europa, e através dela o mundo, devem muito à democracia
cristã dos anos 40 aos 80 do século XX. De entre os políticos que pegaram
na tarefa árdua de recuperar os seus países e a Europa em ruínas,
Adenauer foi o seu mais nevrálgico intérprete e aquele que teve um legado
mais duradouro. Católico, antinazi nos anos negros, teve a seu cargo
fundar uma nação nova para um povo que, com o delírio ideológico, os
crimes inomináveis e uma guerra arrasadora, tinha ficado sem ela. Ainda
para mais dividida no território, estando em curso no outro lado da
fronteira uma refundação totalitária do Estado alemão, desta feita na
versão socialista, mas que seria para todos os efeitos um novo começo
para uma parte dos alemães. Teve a seu cargo no meio das ruínas e da
fome todo um país sob ocupação militar. Um país que apenas umas
semanas antes da derrota militar tivera o seu futuro planeado pelos
Aliados como uma deliberadamente pobre e diminuída sociedade agro-
pastoril. Adenauer fez dos antigos inimigos da Alemanha os seus mais
próximos aliados na nova vida da nação. Anticomunista, e encarando-se a
si mesmo como guardião da «civilização cristã» percebeu juntamente com
muitos dos seus camaradas de partido que o caminho da redenção alemã
era europeu, e que a Alemanha tinha de se converter na Europa – e a
Europa na Alemanha – num processo de osmose que perduraria até aos
nossos dias. Quando ainda era chanceler, sentenciou que «a era dos
Estados nacionais chegou ao fim». Chegara a era das «interdependências».
Perante estas novas condições históricas, apelava a que na Europa nos
livrássemos do «hábito de pensar em termos de Estados nacionais». O
«nacionalismo» alimentara «orgias» de terror e violência e guerra na
Revolução Francesa, no nacional-socialismo alemão e no comunismo
soviético russo. A resposta era a construção de uma Europa unida, sem
nacionalismos. E se «a ideia de comunidade europeia» sobrevivesse «por
50 anos» nunca mais haveria «uma guerra europeia».649 Era a aspiração
política mais nobre da Alemanha em muitos anos. O catolicismo de
Adenauer fomentava o ideal da irmandade do género humano; o seu
trauma histórico, o horror ao nacionalismo; a esperança na redenção futura
do seu país através da integração europeia, o repúdio da soberania.
Em 1995, o então Presidente socialista francês, François Mitterrand,
diria perante a assembleia do Parlamento Europeu e no final de uma
carreira política iniciada na juventude tardia pela devoção a uma forma de
nacionalismo reaccionário e colaboracionista: «O nacionalismo é a
guerra!» Com a predilecção pelo melodrama que nunca perdeu, Mitterrand
fazia a distinção retórica entre a «Europa das nações», que era a das
«culturas», e a Europa dos «nacionalismos». Durante vários anos,
ponderara com a sua França dar o grande salto em frente europeu, e mais
do que as ideologias nacionalistas-etnicistas, dissolver o Estado soberano
num super-Estado Europeu de tipo federal. Agora, hesitava. Prudência era
recomendada pelas percepções de então, na próspera década de 1990,
depois de Maastricht e no caminho para a União Económica e Monetária
(UEM) e o euro, com a Alemanha a ocupar finalmente o seu lugar
dominante na União. Mitterrand era Presidente da França. Não havia outro
país onde se exprimissem com tanta clareza as várias tendências e
contracorrentes da história da «integração» europeia. Era o país dos
federalistas Robert Schumann e Jean Monnet, que já o eram antes de
haver sequer CEE. Mas era também o país do general De Gaulle, que
nunca autorizara qualquer interpretação oficial do Tratado de Roma, nem
do processo de integração, que pusesse em causa a soberania da França.
Em nome da França soberana, sempre deixou claro que não permitiria
activismos da Comissão como houvera quando esta foi chefiada pelo
francês Jean Monnet. De Gaulle forçara uma das crises mais graves da
Europa até à montanha-russa do euro. Arrastou-se por quase um ano e só
se desfez porque o chamado Compromisso de Luxemburgo em
larguíssima medida correspondia às reivindicações francesas. E fê-lo a
propósito de uma questão ominosa – a questão orçamental. Em parte, não
podia deixar de ser ominosa. Foi a dissidente Margaret Thatcher, primeira-
ministra inglesa nos anos 1980, quem ainda antes de Maastricht e do
caminho para a moeda única, afirmara que «a capacidade de definir o seu
próprio nível de tributação é um elemento crucial da soberania
nacional».650 Thatcher estava bem fundamentada. Bodin dissera
essencialmente o mesmo.651 Mas, por outro lado, a UEM elevaria para um
novo patamar a comunitarização das políticas orçamentais. Durante as
suas presidências, Mitterrand teria um presidente da Comissão, uma vez
mais francês, cuja actuação muito provavelmente teria merecido a
reprovação de De Gaulle pelo seu activismo. Provenientes do mesmo
partido político – Jacques Delors fora inclusivamente seu ministro –,
conduziram ambos o seu país para a moeda única. Mas não sem
terminarem as suas carreiras políticas a justificar perante o eleitorado
francês porque é que tal salto não comprometeria a soberania nacional. A
convicção pelo federalismo europeu não era suficiente para eliminar o
anelo da soberania.
Os sonhos de superação dos soberanismos na Europa não foram
sonhados apenas pelos democratas cristãos ou pelos socialistas/social-
democratas. Também os liberais tiveram as suas tentações. Eram no fundo
três modalidades de internacionalismo que se encontravam e formaram
alianças ora mais explícitas, ora mais tácitas. E ninguém formulou melhor
a intenção concreta do internacionalismo federal do liberalismo libertário
do que Friedrich Hayek. Quando foi galardoado com o prémio Nobel da
Economia em 1974, juntamente com o economista sueco Gunnar Myrdal,
uma referência intelectual da social-democracia dos anos 1970, Hayek
tinha já 74 anos. Oriundo do extraordinário, e hoje perdido, centro
intelectual de Viena, que floresceu no império do século XIX até ao
Anschluss, Hayek pertenceu à última geração de economistas a receber
uma educação integral, afastada da matematização prioritária, e ainda
metodicamente versada na filosofia, na história e no direito. Discípulo dos
grandes mestres da chamada Escola Austríaca da Economia – de Carl
Menger, de Böhm-Bawerk e de Ludwig von Mises –, Hayek manteve-se
no centro dos grandes debates económicos e políticos da sua geração, mas
a partir de uma perspectiva heterodoxa, o que lhe valeu uma certa
precariedade na carreira. Quando o reconhecimento público chegou, pelo
mundo da política e da academia, foi já no ocaso da sua carreira e numa
fase em que praticamente nada publicava sobre matérias ditas económicas.
Contudo, ou talvez em resultado deste percurso, tornou-se um ícone do
liberalismo de direita com bolsas de discípulos um pouco por todo o
mundo até aos nossos dias. No exacto momento em que a Alemanha de
Hitler invadia a Polónia, Hayek defendeu a constituição de uma grande
federação europeia. Não se tratava de imitar outros gestos como o do seu
(em tempos) mestre Mises, que defendera uma «organização mundial
supranacional», um «superestado mundial» como garante da paz a todas
as nações.652 Tratava-se antes de criar as condições de transformação
institucional num grande desígnio liberal. Mises propunha o triunfo das
ideias liberais em todo o mundo como pré-condição desta transformação
das instituições políticas da paz. Era como se Hayek invertesse a
sequência dos acontecimentos.
A tese de Hayek era a de que a formação de um grande espaço
económico de liberdade e de abolição de barreiras à actividade económica
dos agentes fornecia a infra-estrutura indispensável a uma federação
política.653 E que essa formação de um grande mercado interno de
liberdade económica impunha limites às escolhas e acção das unidades
estaduais. Sem unidade nas instituições e nas práticas económicas não era
possível obter a unidade federal nas instituições e nas práticas políticas. A
unidade nas instituições económicas incluía uma política orçamental e
uma moeda comuns. Sem essa dupla unidade, haveria apenas uma
insustentável incoerência. Uma «união política» entre Estados até então
«soberanos» não seria «durável» a menos que fosse «acompanhada pela
união económica». Porquê a liberalização económica na constituição de
um grande mercado europeu? Porque as fronteiras «arbitrárias»
produzidas pela soberania dos Estados isolavam economicamente as
respectivas populações das populações dos outros países. Alterações
económicas num certo sector económico afectavam positiva ou
negativamente o conjunto da população que residia dentro das respectivas
fronteiras, criando um laço de solidariedade entre os indivíduos fechados
pela soberania num determinado território e cristalizando os conflitos
económicos. Do ponto de vista da federação liberal, defendia Hayek, o
ideal era que as comunidades de interesse económico fossem variáveis e
transcendessem as identificações geopolíticas. Os conflitos entre unidades
políticas com base em ressentimentos de origem económica tornar-se-iam
assim muito mais improváveis pela simples razão de que seria impossível,
ou muito difícil, fixar a identidade dos grupos em oposição. Mais, as
políticas proteccionistas e estatizantes dependiam da eficácia do apelo a
uma solidariedade nacional. Por exemplo, diz-se que a TAP é uma
empresa «de bandeira», o que apela ao «orgulho» de todos os portugueses,
tornando-os ciosos dela, quer o interesse imediatamente económico destes
dependa de haver uma transportadora aérea nacional, quer não. A união
económica esfarelaria essa rede nacional, esvaziando de eficácia a
justificação do proteccionismo e do estatismo económico junto da opinião
pública. «A planificação, ou a direcção central da actividade económica,
pressupõe a existência de ideais e valores comuns.» Sem acordo quanto a
esses valores, e sem uma rede de solidariedades de identificação nacional,
a sorte da centralização estatista da economia sofria um tiro grosso na asa.
Não era difícil prever os efeitos provocados pela remoção de barreiras
alfandegárias, pela proibição de políticas de preços nacionais, pela
impossibilidade de levar a cabo uma política monetária soberana, no
conjunto dos estados que compusessem a federação. Cada uma dessas
subunidades constituintes da grande federação perderia uma parte muito
substancial da sua margem de manobra no que respeitava à definição da
política económica. Restrição das possibilidades de escolha nas políticas
económicas seria o resultado esperado da dupla união política e
económica. A remoção das fronteiras económicas imediatamente
dissolveria essa espécie de monopólio sobre as decisões políticas que
parece ser a substância da soberania na tese de Hayek. Com a dissolução
da tal posição monopolista, o estado federado perderia a capacidade de
controlo, tanto nos efeitos, como na formação de políticas económicas.
Mas os efeitos não se limitariam ao campo de acção política do estado
federado. Ao nível da federação como um todo também haveria menos
intervenção estatal na economia por razões de viabilidade da própria
federação. Desaparecendo a acção política do estado federado, restaria à
federação assumir esses poderes ou essas competências. Mas para que
pudesse assumi-los seria preciso que houvesse uma autorização
consensual entre todas as partes, quanto ao uso desses poderes, e quanto
ao seu modo de uso. Ora, essa seria sempre uma tarefa muito difícil em
vários domínios da política económica, e como tal permaneceriam por
usar alguns dos poderes e das respectivas possibilidades legislativas. Não
seria o Estado federal mínimo na economia, mas seria um impedimento de
políticas estatistas, intervencionistas, ao modo socialista, inscrito no
próprio desejo de viabilidade da federação. Numa palavra, um «programa
liberal» federal teria como condições da sua «consumação» um regime
económico «liberal» e a «derrogação das soberanias nacionais», associada
à criação de uma «ordem internacional de direito». Todo um programa,
como se costuma dizer.
Parecerá evidente a um observador proveniente de qualquer uma das
três famílias políticas corporizadas em Adenauer, Mitterrand e Hayek, que
as iniciativas para a cooperação entre os Estados europeus, uma vez
expurgadas das intenções ideológicas que indubitavelmente lhes
subjaziam, resultavam de um diagnóstico realista das deficiências da
soberania. Um conjunto dessas deficiências podia ser definido nos
seguintes termos. A soberania tem uma vertente externa. Manifesta-se nas
relações do Estado soberano com as entidades que lhes são externas.
Podem ser pessoas colectivas (outros Estados, organizações e por aí em
diante) ou pessoas individuais. Digamos que se traduz no não-
reconhecimento de uma autoridade superior a ela no que diz respeito às
escolhas políticas determinantes da comunidade política. Por vezes, há
quem chame a esta vertente a soberania externa. Trata-se de uma
designação enganadora que sugere ser possível ter uma sem a outra,
quando na verdade ambas significam aquela autonomia cuja verificação
«interna» requer afirmação «externa». Quer dizer, a verificação de
supremacia «interna» da vontade e do poder é a face da mesma moeda da
afirmação de não-subordinação «externa». A autonomia «interna» não
sobrevive à heteronomia «externa». Mais, os que subscrevem a tese da
soberania nacional não podem senão concluir que a soberania é desde logo
recusa de sujeição externa. Porquanto residindo a soberania na nação,
como dizem tantos preâmbulos, o fundamento da comunidade política está
na vontade daquele colectivo, e não em nenhuma outra vontade –
particular ou estrangeira.
Mas a deficiência a que me referia aparece nas actividades do Estado
nacional que interferem mediata ou imediatamente na vida de outros
Estados soberanos. Agindo soberanamente para salvaguardar o bem e a
segurança da sua comunidade política, a soberania, na sua vertente externa
não pode deixar de levar a cabo práticas e actos que colocam em causa a
soberania dos outros Estados, ainda que essas práticas e acções não sejam
deliberadamente hostis. Do ponto de vista global, a contradição já é
objecção poderosa. Ora, de um ponto de vista de uma região como a
Europa, a contradição ameaça ser fatal. O exercício da soberania torna o
exercício da soberania impossível, conduzindo a um resultado negativo
para todos. Uma espécie de dilema dos prisioneiros ensinado pela Teoria
dos Jogos, mas com política à mistura.
São muitos os campos de acção onde esta contradição se torna visível,
desde o ambiente até às migrações, passando pelo infinito domínio da
economia. As finanças são outro exemplo óbvio, e mais patente nos
nossos tempos do que nunca. Basta pensar na acção soberana no campo
monetário. Desde logo, alterações nesse domínio produzem alterações na
taxa de câmbio da moeda desse Estado soberano. Ora a taxa de câmbio é
um preço relativo pelo que, por definição, uma alteração no valor relativo
da moeda soberana implica imediatamente uma alteração no valor relativo
da moeda soberana de outro país. As políticas de desvalorização cambial
para alegadamente favorecer o sector industrial interno constituem
políticas financeiras perfeitamente soberanas. Têm, porém, o condão de
afectar imediatamente preços relativos enfrentados por outros Estados
soberanos, já para não falar nas transformações produzidas internamente
no tecido económico dos Estados vizinhos. Em grande medida, este foi
um dos argumentos para se avançar para uma moeda única europeia e que
debilitava a defesa da soberania em matéria de política financeira e
cambial. Uma vez formada a moeda única, chegariam os argumentos de
sentido contrário, a saber, que renunciar ao uso soberano de políticas
financeiras e cambiais tornava os Estados impotentes, ou relativamente
impotentes, para responder a reveses económicos e financeiros.
A trajectória constitucional da União Europeia tem sido muito
idiossincrática. Embora tivesse havido sempre, e continua a haver, uma
família política cujo desígnio confessável e inconfessável é a construção
de um super-Estado federal europeu, a verdade é que a sua evolução não
tem sido a convencionalmente linear da confederação para a federação. A
sua forma política persiste em desafiar as categorias académicas.
Chamemos-lhe por enquanto uma união política de Estados soberanos.
Uma união é muito mais do que uma associação. Por outro lado, os seus
membros são – por enquanto – soberanos, mas são-no segundo que
modalidade de soberania? Já a União (ainda) não pode ser descrita como
soberana, estando desligada de um poder constituinte propriamente dito e
faltando-lhe a capacidade de autodeterminação política e legal.654 A tensão
imanente a esta designação corresponde, pois, à tensão constitucional real
e concreta existente hoje entre a União e seus Estados membros.
Os perigos de fazer da «Europa» um super-Estado mais ou menos
federal, sobrepondo-se e esvaziando os Estados nacionais são vários. Um
raramente mencionado só é vislumbrado com clareza quando percorremos
a história da Europa e das suas nações, para usar um título de Krzysztof
Pomian, desde a era medieval. A «Europa» foi sempre a instância de
universalidade. Uma língua comum (latim, francês e inglês, por esta
ordem), uma casa comum de discussão intelectual (as universidades
medievais e a escolástica, a cultura do Humanismo, a «República das
Letras» ou a Respublica Litteraria), um espaço («mercado») de trocas
tecnológicas, económicas e financeiras, valores e crenças universais
comuns (antes e depois da Reforma protestante) e por aí em diante. Estes
conteúdos da universalidade europeia socorriam a inevitável insuficiência,
estreiteza, paroquialidade, ininteligibilidade mútua da particularidade das
unidades nacionais, ou pré-nacionais. Os conteúdos da universalidade da
«Europa», decorrentes das grandes fontes corporizadas em cidades ideais
– Atenas, Jerusalém, Roma e, para incluir todas as sensibilidades
europeias, Paris e Londres –, refractavam-se na particularidade de cada
uma das culturas nacionais e infranacionais, ou pré-nacionais; mas não as
substituía. Para continuar a prestar esse inestimável serviço à civilização
europeia, a «Europa» não pode ser ela mesma o poder político de
organização da particularidade. De uma particularidade a uma escala
muito maior, bem entendido, mas que não deixa de ser uma
particularidade – um Estado continental, como os EUA ou a China – que
substituiu outras particularidades mais exíguas, os Estados nacionais
europeus. Para mantermos e protegermos a indispensável dialéctica
universalidade-particularidade, e que é desde há mil anos uma fonte
inconfundível de vitalidade do continente, é preciso preservar os pólos
dessa dialéctica intactos, e não subsumir um no outro.
Regressemos à forma política da UE. Mudanças constantes nas relações
entre as instituições originárias; a criação recorrente de novas agências e
competências; os acrescentos exógenos que expandem os objectos e a
capacidade administrativa; os alargamentos sucessivos a novos membros;
os arranjos assentes em compromissos políticos frágeis e com parceiros
variáveis e em soluções tortuosas; e a famosa «geometria variável» ou o
haver diferentes círculos de países em que uns estão vinculados à
totalidade do arranjo institucional da União e outros têm desvinculações
que variam de país para país. Tudo isto tem contribuído para aproximar a
União Europeia da «monstruosidade» de Pufendorf. O Império Romano-
Germânico na época de Pufendorf era algo sem igual, que estava algures
entre uma monarquia limitada e um corpo composto de Estados
soberanos. Era uma monstruosidade porque não possuía uma soberania
indivisível e perfeita. Se nos corpos naturais, o «monstro» era o ser que
tinha uma única cabeça para vários corpos, nos corpos políticos uma só
pessoa podia chefiar várias sociedades sem que elas deixassem de ser
verdadeiramente distintas.655 Ora, o monstro de Pufendorf não era o corpo
da soberania partilhada.
A tecnologia de governação não se alterou substancialmente, mas a
necessidade de identificar a natureza da União impôs-se de um modo cada
vez mais premente. Na vida política europeia os processos e instrumentos
políticos passaram a ser cada vez mais da ordem da funcionalidade e cada
vez menos da ordem da política.656 À medida que a União ia expandido o
seu alcance territorial, as suas competências, a sua legislação e a acção
sobre a vida dos cidadãos europeus, as línguas nacionais tiveram de
proceder a adaptações deselegantes da palavra inglesa governance para
descrever esta transformação. Não de uma transformação que estivesse a
ocorrer no seio das instituições europeias, mas outrossim da
transformação ao nível da tecnologia de governação a que os cidadãos dos
Estados-membros estavam sujeitos com o «aprofundamento» da
integração europeia. Inventou-se, pois, com gosto duvidoso a palavra
governança. Muito próxima da palavra governação, retinha a ideia de
ordem e de ordenação, mas esvaziando-a de agência política e sobretudo
afastando-a de coerção e do uso da força. Era como se, de uma fórmula
organizacional particularmente acertada, acompanhada de proclamações
retóricas dos «consensos de sobreposição», pudesse emergir uma ordem
política altamente intervencionista, como é apanágio das ordens políticas
pós-modernas, sem qualquer recurso à força. Governança trazia consigo a
sanitização própria do procedimento frio que resolve os problemas, sem
descer ao ruído da discussão pública, do conflito político e da
conformação à obediência pela coacção. A racionalidade dos fins e dos
meios manteria imperturbável o funcionamento da ordem, em associação
com a liberdade e a igualdade dos indivíduos. O contraste com um mundo
exterior desordeiro e em ruínas ajudaria à comprovação da superioridade
política da governança racional. E, sobretudo, dispensaria a obsessão
europeia moderna com a soberania como princípio de ordem.
9. Antes da Europa, houve América
Antes de haver «Europa», houve «América». Houve os Estados Unidos
da América – uma pluralidade de estados que juntos formavam uma união
política. Falando pela perspectiva da história do constitucionalismo, a
América trouxe várias inovações quando avançou para uma Constituição
federal em 1788. Em particular, a inovação mais profunda residiu numa
interpretação própria do conceito de federalismo e na sua concretização
política ao longo de décadas. Essa inovação foi consciente e resultou de
uma extraordinária reflexão, não só na fase de proposta e aprovação, como
de execução durante muitos anos recheados de conflitos e críticas
gravíssimos.
No século XIX o mais ilustre filósofo político estrangeiro que a América
recebeu nas suas fronteiras usou a noção de soberania partilhada para
descrever o arranjo federal americano. Em síntese, servia para enunciar a
coexistência de duas soberanias: a das instituições federais e a dos estados
federados. Era, segundo Tocqueville, a essência do federalismo
americano. Devia distinguir-se da soberania fraccionada. Esta era a
solução típica das confederações e redundava numa perda generalizada de
soberania para todos. Era uma espécie de jogo de soma negativa. O génio
dos fundadores americanos encontrara uma solução que, sem esmagar por
inteiro a soberania dos estados, levava a uma partilha que era também
uma combinação de soberanias. Combinadas, expandiam-se as suas
possibilidades agregadas, o que era um notável progresso face ao
enfraquecimento da soberania fraccionada.657
Não que a soberania partilhada fosse consensual entre os fundadores.
Muito longe disso. Alguns rejeitavam-na em nome da pureza conceitual
da soberania que, todos os eruditos sabiam, não se dividia. Apelavam
também à experiência política americana. Ou não fora a impossibilidade
de partilhar a soberania do Parlamento em Westminster com os governos
coloniais que conduzira à declaração da independência e à guerra contra o
Império britânico? Era esse o desafio de homens como Patrick Henry.658
Antes dos americanos, havia teorias de federalismo e das confederações,
mas nada que fosse tão longe nem que se mostrasse tão operacional num
Estado moderno como o que saiu da cabeça dos chamados «Pais
Fundadores» e dos que vieram a seguir. Com efeito, só com extrema
dificuldade encontramos uma teoria do federalismo mais límpida e
luminosa do que a que James Madison expôs nos Federalist Papers.659
O Estado Federal americano nasceu da combinação entre o princípio
«federal» e o princípio «nacional». A terminologia dá azo a confusão no
leitor do nosso tempo porque inverte o significado que tendemos a atribuir
a estas designações. O princípio «federal» significava para Madison o
princípio da autonomia dos estados, da sua soberania, que estavam
reunidos numa Confederação em 1787 tida como mais ou menos
disfuncional. Esses estados correspondiam às treze antigas colónias
inglesas mais o Vermont que, aquando da independência, se constituíra
como república independente – e que, depois da entrada em vigor da
Constituição federal, juntar-se-ia aos restantes. O princípio «nacional»
significava o princípio do Estado unitário, de uma «consolidação» dos
estados federados, como à época se dizia. Assim, a Federação – a União –
teria aspectos que a aproximariam da configuração de um Estado soberano
unitário, e teria outros aspectos em que se aproximaria de uma
confederação mantendo-se uma ampla autonomia, ou soberania, dos
estados federados. Para se ter uma teoria completa do federalismo havia
que escolher que aspectos decisivos eram esses e quais os critérios que nos
permitiam fazer uma avaliação de qual o princípio – se o «federal», se o
«nacional» – preponderante em cada um deles. Foi o que Madison fez.
Que aspectos analisar e com que critérios? Em primeiro lugar, analisar
qual a «fundação» a partir da qual a Constituição federal foi aprovada. Em
segundo lugar, as fontes donde os seus «poderes comuns» – os órgãos
políticos – são extraídos. Em terceiro lugar, como operam esses poderes,
quer dizer, se os seus actos incidem e vinculam os estados federados ou
directamente os cidadãos considerados como membros de um grande povo
agregado. Em quarto lugar, a sua «extensão». Em quinto lugar, onde
reside a autoridade para efectuar futuras alterações à Constituição, ou
onde está o poder de revisão constitucional.
Em cada um desses aspectos essenciais a federação aproximar-se-ia da
centralização típica de um Estado soberano nacional, e portanto estaria,
segundo a maior ou menor preponderância da soberania popular na
determinação da legitimidade do órgão em causa, no modo de escolha dos
seus titulares e no alcance da jurisdição desse órgão. Se directamente
sobre os indivíduos independentemente da cidadania estadual de cada um,
ou se tratando-os, não como cidadãos de uma grande União política, mas
com uma jurisdição indirecta sobre cidadãos de estados federados.
Por exemplo, a Câmara dos Representantes da União era eleita pelos
cidadãos americanos, e não pelos homens (e, mais tarde, pelas mulheres)
agindo enquanto cidadãos dos estados federados. Eram eleitos
directamente pelo povo americano, e não pelo povo da Virgínia nessa
qualidade, ou pelo povo de Nova Iorque nessa qualidade. Mais, a
distribuição da representatividade populacional dos deputados era
estritamente proporcional. O número de representantes provindos de cada
estado federado variaria conforme a população desse território. Era, pois,
claramente uma instituição que conferia um carácter «nacional» à União.
Em contrapartida, a segunda câmara do Congresso, o Senado, tinha uma
estrutura muito diferente. Em primeiro lugar, os senadores eram
escolhidos por cada um dos estados federais. Em 1913 aprovar-se-ia uma
emenda da Constituição para que cada estado federado organizasse
eleições directas para a escolha dos seus dois senadores, mas até lá os
senadores eram designados pelos órgãos constituídos dos estados. Veja-se
que os senadores eram, e ainda são, escolhidos, não pelo grande povo
indivisível da União, mas pelo povo de cada um dos estados federados. A
vinculação destes senadores ao estado de origem era indubitavelmente
superior à vinculação dos deputados da Câmara dos Representantes que
tinham como fonte de legitimidade a «soberania popular» da União como
um todo. De resto, podemos ver como a emenda constitucional de 1913
teve o efeito de tornar a Federação mais centralizada, mais «nacional», do
que era até então. Além disso, o número de representantes por unidade
territorial não era proporcional à população. Cada estado elegia dois
senadores. Hoje muitos ainda se espantam por a enorme Califórnia ter
tantos senadores quanto a minúscula Rhode Island. É o princípio «federal»
a impor-se.
A mesma análise teria de ser feita à Presidência que, com a eleição
através de um colégio eleitoral cuja composição resultava da combinação
do princípio «federal» e do princípio «nacional», autorizava a conclusão
de que era uma instituição mista. Combinava ambos os princípios.
O critério da «operação do governo» dizia respeito ao objecto de
incidência dos poderes exercidos pelos poderes da União. Podiam ser os
cidadãos individualmente considerados como membros do grande povo da
União; ou alternativamente os estados nas suas capacidades colectivas
como unidades políticas. Por exemplo, as leis aprovadas pelo Congresso
federal vinculavam directamente os indivíduos em todo o território da
União? Ou apenas os corpos políticos que tinham constituído a União?
Tratava-se claramente do primeiro caso e, por conseguinte, neste aspecto e
segundo este critério a União tinha um pendor «nacional».
O critério seguinte – o da «extensão» dos poderes – é próximo daquele
que acabei de apresentar. Sugere de modo mais evidente a colocação do
problema da soberania numa federação. Trata-se de perceber se existe, por
parte do poder da União, uma «supremacia» em todos os objectos
normalmente sob jurisdição de um Estado, ou se essa «supremacia» é
repartida – partilhada? – entre as instituições da União e os estados
federados. Como se sabe, uma federação como a União americana, elenca
os poderes ou as competências atribuídas aos órgãos centrais, ficando tudo
o que não é elencado do lado dos estados federados, que têm a autonomia
para os organizar como bem entenderem e à luz das suas próprias
constituições estaduais. Assim sendo, a União americana tinha um
carácter «federal», e não nacional, segundo o julgamento de Madison que
não podia sofrer contestação. A menos que um dos poderes federais, por
uma inovação introduzida poucos anos depois da autoria deste artigo,
decidisse adquirir supremacia em todos os objectos de jurisdição. E foi,
como vimos, o que sucedeu com o Supremo Tribunal e a doutrina da
judicial review. Entre outras coisas, a doutrina da judicial review tinha no
seu centro uma preocupação federalizante. Instituir um árbitro supremo e
inapelável das controvérsias entre os estados federados. E controlar a
constitucionalidade (federal) dos actos dos estados, apesar de estes terem
as suas próprias constituições e os seus próprios supremos tribunais. Além
disso, tal como Madison já admitia, a Constituição reservava para o
Supremo Tribunal a prerrogativa de decidir se os actos dos órgãos federais
excediam, ou não, os poderes elencados no texto constitucional. Não cabia
aos estados fazer o mesmo julgamento. Ora, este ponto sensível
condensava a acção soberana por excelência. E a história futura da União
americana acabaria por demonstrá-lo. Madison, porém, não estava
preocupado com este último ponto, pois, não só era inevitável, como
confiava que os princípios da interpretação constitucional fossem
aplicados com imparcialidade pelo Tribunal. Mas, em breve, ele e muitos
outros ficariam alarmados com esta aparente expansão, que alguns
acusariam de não ter sido autorizada, do poder soberano da União. E era
um caso em que o acréscimo da soberania da União correspondia
exactamente à subtracção de soberania dos estados federados. Poderes
transferidos para o centro eram poderes subtraídos das partes. Quando os
limites desses poderes transferidos e retidos passavam a ser definidos pelo
julgamento casuístico da autoridade central – judicial ou não – a
soberania dos estados federados estava ameaçada, e a soberania popular
donde nascera o «pacto constitucional» usurpada. Ora, nos Estados
Unidos, insistia Madison, era «o Povo, não o Governo, quem possui a
soberania absoluta». Nada disto foi pacífico.660
O último critério dizia respeito à possibilidade de rever a Constituição.
O processo previsto no texto constitucional é complexo e não vale a pena
reproduzi-lo aqui. Basta dizer que por permitir uma revisão constitucional
por maioria dos estados, mas mantendo neles a prerrogativa da ratificação,
a União adquiria um pendor parcialmente «federal» e parcialmente
«nacional».
Por último, e regressando ao primeiro dos critérios, que tipo de
«fundação» tivera a Constituição? O que vale por perguntar, como fora
aprovada? Madison daria uma resposta que serviria de deixa para muito
do imenso e terrível debate que teve lugar durante todo o período que
terminaria na sangrenta guerra civil. Na medida em que a Constituição
fora ratificada por convenções estaduais eleitas pelo povo de cada estado,
e não pelo agregado do povo americano, e não fora, portanto, adoptada
por uma maioria deste povo americano, mas pela unanimidade dos estados
que se federaram, então, neste aspecto, a Constituição teria de ser
considerada «federal», e não «nacional». Houvera no processo de
ratificação uma primazia indiscutível da agência política dos estados
enquanto estados, e não de um agente interpretável como um grande povo
americano. A soberania popular agira ao nível de cada um dos estados, e
não dos Estados Unidos, o que preservara a soberania dos estados
individualmente considerados. Fora uma decisão dos Estados enquanto
unidades políticas autónomas que formara a União, e não de uma entidade
política maior. Esta seria uma questão superlativa porque alimentava a
discussão sobre um suposto direito de secessão não previsto na
Constituição. Muitos alegariam, com as mais profundas consequências,
que derivava directamente deste dado histórico fundamental. Restava
saber, e não faltou quem debatesse exaustivamente este ponto, se os
estados tinham diluído, ou não, a sua soberania na integração dos Estados
Unidos, ainda que tivessem sido os agentes constituintes da União. É que
o preâmbulo da Constituição adoptada começava com estas palavras:
«Nós, o Povo dos Estados Unidos...» Não dizia «Nós, os Povos dos
estados.»
Em 1800, Madison regressaria a este tema grave. E confirmaria as teses
de 1787. Os estados eram as «partes de um pacto», as «partes soberanas
do seu pacto constitucional» donde «resultam os poderes do Governo
Federal», como de resto a primeira Confederação americana de 1781
explicitava.661 Não era um acaso que a Constituição tivesse sido submetida
ao consentimento dos estados, nem que tivessem sido os estados a ratificá-
la. Foi por um acto soberano de cada um dos estados que a Constituição
ganhou existência.662 Donde não se podia aceitar uma relação de
subordinação estrita dos estados ao poder federal, ou, o que vale pelo
mesmo, de supremacia irrestrita do Estado federal face aos estados.
Dez anos depois da ratificação da Constituição, os «Pais Fundadores»
dividiam-se amargamente a propósito de uma grave crise política na
presidência de John Adams. Embora muitos já estivessem divididos antes,
a fractura ficou exposta com repercussões em todos os cantos da vida
política da jovem república. A briga partidária foi tão grave que pôs
dezenas de jornais e folhas panfletárias a acusar os adversários das
malfeitorias mais descabeladas. Foi tão grave que as tensões que gerou
conduziriam anos mais tarde a um duelo entre um ex-vice-presidente,
Aaron Burr, e um ex-secretário do Tesouro e co-autor dos Federalist
Papers, Alexander Hamilton. Depois de dias de agonia, Hamilton acabaria
por morrer dos ferimentos.
Para o assunto que me interessa aqui, essa crise política renderia o
primeiro grande questionamento político do funcionamento da República.
A oposição ao partido «Federalista» de John Adams e de Alexander
Hamilton seria protagonizada por Thomas Jefferson e James Madison.
Juntos enunciaram aquilo a que se chamaria os Princípios de 98. O título
fazia referência ao ano em que o estado do Kentucky e da Virgínia
aprovaram nas suas assembleias legislativas resoluções que declaravam
inconstitucional o maldito pacote legislativo de Adams, os Alien and
Sedition Acts. Estas leis autorizavam o Presidente a deportar
sumariamente estrangeiros considerados perigosos e reprimiam a
expressão verbal de discursos tidos por sediciosos. Foram aprovadas num
ambiente já muito tenso e que importava da França revolucionária ainda
mais tensão para a caldeira política. No ano seguinte, as resoluções foram
confirmadas por novas resoluções em ambos os estados. Os restantes
estados não acolheriam calorosamente as iniciativas. Mas a vitória de
Jefferson nas eleições presidenciais de 1800, saudadas por ele como, nada
mais, nada menos que uma «revolução», encarregar-se-ia de as canonizar
até à Guerra Civil.
O que resolviam as resoluções? Uma lei federal era agora considerada
inconstitucional e, portanto, inválida, «nulificada», por dois dos estados
federados, que se recusavam a aceitar a supremacia do Supremo Tribunal
para tomar este tipo de decisão. Era a invocação do princípio da
«interposição» que alegadamente autorizava cada estado a interpor-se
entre o poder da União e os cidadãos do estado federado, quando aquela
excedia e abusava dos seus poderes enumerados. Era assim que Jefferson
interpretava a «nulificação». Mas a Câmara do Kentucky aprovou o texto
expurgado dos passos que empurravam para esta doutrina. Agora, seriam
os estados federados colectivamente, e com todas as cautelas de prudência
e razoabilidade a serem juradas, que levariam por diante a interposição.
Em cada estado federado, a «interposição» efectuada juntamente com os
outros estados era um acto soberano, a ser praticada apenas em «ocasiões
que profundamente afectem na essência os princípios vitais do sistema
político».663
Muitos consideraram que a interposição não podia ser tida como um
acto soberano porque não era levada a cabo por quem era
reconhecidamente soberano nesta teoria: o povo.664 Embora levantasse o
véu a esta constante indistinção sobre a identidade do soberano, o
argumento não parecia ser sólido. Não só porque quem tomava a iniciativa
era o representante do soberano – capaz, portanto, de actos de soberania.
Mas sobretudo porque não via o problema em toda a sua amplitude. Não
deixemos de colocar a eterna pergunta: quem julgava ou decidia que
ocasiões «perigosas» eram essas que justificavam a interposição? Para
Madison teria de ser o estado federado, pois era a sua soberania que estava
em causa. Não se podia conceder essa prerrogativa ao Estado federal, nem
inferir que alguma vez tivesse sido transferida para a União. Em última
análise, era um direito soberano inalienado e inalienável do estado
federado decidir se o «pacto constitucional» fora «perigosamente» violado
ou não. Caber-lhe-ia sempre julgar esses abusos quer fossem perpetrados
pelo legislativo ou pelo executivo federal, quer fossem perpetrados pelo
poder judicial que agora se arvorava em juiz constitucional de última
instância com o monopólio da jurisdição sobre o todo e sobre as partes da
União. O mesmo Madison que, em 1787, no Federalista #39, confiava na
solução obtida para a supremacia soberana do Supremo Tribunal Federal,
em 1798 protestava contra a caminhada para a constituição de uma «única
soberania» sediada na União.665 O mesmo Madison que combatera tão
vigorosamente os adversários da Constituição – os antifederalistas,
liderados pelo virginiano Patrick Henry, o mais demolidor orador do seu
tempo –, que pugnavam pela soberania dos estados, via agora a usurpação
alcandorada em interpretações abusivas daquela que era, em parte pelo
menos, a sua obra. Na comunicação dirigida pela Assembleia da Virgínia
aos cidadãos do estado, o seu autor Madison reiteraria que aquelas leis
federais da iniciativa do Presidente Adams e do seu partido (para agravar
ainda mais a confusão lexical) «Federalista» infligiam uma «ferida de
morte na soberania dos estados».666 Madison persistia no recurso à
linguagem soberanista. Na sua teoria do federalismo, não era a soberania
«partilhada» que explicava o funcionamento da União política dos estados
americanos. Era a soberania dual.667 A relação entre ambas tinha uma
natureza aritmética como um jogo de soma nula. No final das contas, a
compreensão da experiência política e a normatividade imanente à
Constituição situavam-se ambas no horizonte da soberania. Num
momento de crise grave, a base do edifício devia ser recordada:
A autoridade das constituições sobre os governos, e da soberania do
povo sobre as constituições são verdades que têm de ser recordadas
em todos os momentos, e em nenhum outro momento, talvez, seja tão
necessário fazê-lo como agora.668
Da chamada Bill of Rights, as dez primeiras emendas à Constituição,
ratificadas em 1791, reza a história que se justificou com os receios da
consolidação excessiva, e consequente abuso, do poder da União. As
emendas provinham também das muitas reivindicações e sugestões
resultantes dos debates nas convenções constitucionais. Mas uma delas
pretendia ser uma reafirmação da soberania popular contra as tentações
usurpadoras do poder federal: a nona. Negava a possibilidade de
interpretar, ou de construir hermenêuticamente, a Constituição de um
modo que menosprezasse ou negasse os «direitos retidos pelo povo». A
vida desta emenda foi complicada, como tem sido as das outras emendas.
E muita discussão tem havido em torno do significado deste «povo».
Naquela época, a maioria dos proponentes da emenda entendiam-no como
o povo soberano dos estados, o tal que, segundo Madison, criara a
Constituição federal. Não eram os órgãos políticos federais que eram
soberanos, nem sequer os órgãos estaduais. Só o povo era soberano. Mas
que povo? As respostas a esta pergunta exibiam a fractura grave da
política americana. Para os democratas-republicanos de Madison e de
Jefferson, era soberano o povo de cada um dos estados federados. Para os
federalistas de Hamilton e de Adams, derrotados na presidência com a
vitória de Jefferson em 1800, mas vitoriosos no Supremo Tribunal com
John Marshall, havia um grande e indiferenciado povo americano que se
sobrepunha ao povo dos estados – embora fossem ambos naturalmente
constituídos pelas mesmas pessoas – e que, ele sim, era soberano.
Richard Henry Lee era um dos mais credenciados «antifederalistas».
Proprietário de grandes plantações na Virgínia e, como os seus pares,
senhor de escravos também, Lee era um orador arrebatador. Foi um dos
líderes da insurreição contra o Império Britânico logo no Primeiro
Congresso Continental de reunido em 1775. Foi nesta assembleia que,
num apelo de alcance histórico-universal, John Adams exortaria os seus
colegas insurrectos a rasgar as cartas coloniais britânicas e fazer
constituições que as substituíssem, tarefa a que elas se dedicaram com um
empenho fabuloso. O apelo de Adams recorria evidentemente à ideia de
poder constituinte popular. Como Adams recordou na sua autobiografia,
cada colónia devia convocar «convenções» constituintes representativas
«imediatamente» e estabelecer «governos próprios». Tal era a tarefa
política necessária e legítima porque o povo era «a fonte de toda a
Autoridade e a Origem de todo o Poder». E muitos anos depois ainda
permanecia na memória do velho Adams a perplexidade que tal apelo
provocou na maioria dos membros do Congresso, mas felizmente não em
todos. Perplexidade, porque estas eram à época «doutrinas novas,
estranhas e terríveis» para os ouvidos da maior parte dos congressistas.669
Em pouco tempo, tudo mudaria.
Fosse como fosse, da ala direita à ala esquerda da Revolução
Americana, todos partilhavam da noção de poder constituinte – ainda sem
o nome – residente no povo. Essa ideia está contida elipticamente no mais
famoso documento político da época, ainda hoje celebrado com um
feriado nacional americano, a Declaração da Independência de 1776.
Entre muitas outras coisas tremendamente importantes, a Declaração
afirmava que era «o direito do povo de alterar ou de abolir, e de instituir
um novo governo, lançando as suas bases naqueles princípios e
organizando os seus poderes de tal forma, que lhe parecerem mais
propensos a efectuar a sua segurança e felicidade».670
Juntamente com Samuel Adams e Patrick Henry, no Primeiro Congresso
Continental, Richard Henry Lee servira na tríade dos intransigentes
quando os nomes de Thomas Jefferson, John Adams (primo de Samuel),
Alexander Hamilton, James Wilson, James Madison ou de George
Washington ainda não tinham adquirido a aura que teriam poucos anos
mais tarde. Ficou para a história como um «antifederalista», mas assinava
com o pseudónimo de Federal Farmer. Com a designação «federal» não
havia aqui nenhuma confusão. Ou melhor, houve, mas criada
posteriormente pelos defensores da nova proposta constitucional saída de
Filadélfia no final do Verão de 1787. Lee era peremptório: a soberania
residia nos estados, as únicas unidades políticas originárias, agentes
formadores de qualquer nova União entre eles. De resto, à nova União Lee
chamava uma «liga de amizade entre os estados»671 e não mais do que
isso. Consequentemente, Lee dizia que, mesmo com a nova Constituição,
os estados se mantinham soberanos e todos os poderes não expressamente
delegados seriam retidos. Uma «república federal» não era um «governo
consolidado» puro e simples.672 Proclamação ominosa para o debate aceso
que se seguiria nas décadas seguintes até à ruptura da União, com a
eleição de Abraham Lincoln em 1860, e a terrível guerra civil que daí
resultou.
Mas, ao mesmo tempo, Lee não conseguiu evitar, numa apreciação
crítica da novel proposta constitucional, a conjugação da «soberania da
nação» (presume-se que da nação americana alargada) com os «estados
soberanos» representados numa assembleia.673 Os «federalistas» no seu
maior documento político esmagariam por atacado esta pretensão dos seus
adversários, incluindo Lee, dizendo quão absurda era o projecto de uma
«soberania sobre soberanos»674, a tradução, no entender dos primeiros,
mais rigorosa e lancinante, das reivindicações dos últimos. O que queria
dizer que a nova federação, ou União, não seria um esquema de soberanias
duais, mas outra coisa diferente. John Adams, um dos mais admiráveis e
relevantes de entre o grupo dos federalistas, tornando-se seu líder para
todos os efeitos quando foi eleito presidente da União, não esteve
envolvido nesta troca frenética de panfletos e textos de teoria política.
Estava ainda a terminar a sua missão diplomática em Inglaterra como
representante da Confederação. Os seus escritos anteriores à Constituição
estão repletos de aplicações do conceito de soberania675 e, não por acaso, a
Declaração de Direitos da Constituição do seu estado natal, o
Massachusetts, de que ele foi o autor principal, afirma no seu artigo IV
que o povo desse estado tem o direito de se governar como um Estado
«livre, soberano e independente», ao modo de uma tríade de quase
sinónimos, além de sublinhar que «todo o poder reside originariamente no
povo».
Em 1830, o conflito em torno da interpretação da verdadeira natureza da
União recrudesceu. Não que tivesse desaparecido nas décadas anteriores.
Longe disso. Mas com a presidência de Andrew Jackson a espiral de
conflituosidade acelerou. A natureza e propósito da União constituída em
1788 inspiraram o exercício de oratória mais memorável na história do
Senado federal. A discussão opôs muitas ilustres figuras americanas, mas
foi o debate travado no Inverno de 1830 entre Daniel Webster, do
Massachusetts (embora natural do New Hampshire), e Robert Hayne, da
Carolina do Sul, que encheu as galerias e as páginas dos jornais. Neste
episódio, Madison, diga-se, foi um firme opositor das reivindicações
meridionais.
Hayne radicalizara-se como defensor da soberania dos estados só depois
da crise das tarifas aduaneiras, abominadas pelos estados meridionais.
Dois anos depois converter-se-ia num dos grandes protagonistas políticos
no seu estado no episódio da revolta da Carolina do Sul. Iriam pôr em
prática a doutrina da «nulificação», aplicando-a às tarifas aduaneiras
federais por inconstitucionalidade. Prepararam-se para a guerra contra o
governo federal. Tiveram o apoio do vice-presidente John C. Calhoun,
que, além de esclavagista e defensor da «nulificação» pelos estados,
calhava ser um reputado orador da época, e que se demitiu do cargo em
conformidade. Com Calhoun, deixava de haver ambiguidades nos
Princípios de 98. Cada estado por si só tinha o direito de nulificar uma lei
que excedesse as competências do Estado federal. Não precisava da
concorrência dos outros estados, pois esse era um «atributo essencial da
soberania».676 Valeu que meses depois haveria uma resolução negociada
do conflito. Era o desfecho da «Crise da Nulificação». Outras mais graves
estariam ainda por vir. E a doutrina da nulificação ficaria ao serviço de
aberrações políticas e ultrajes morais como a escravatura antes da Guerra
Civil, e a segregação racial depois dela.
Webster, político veterano, tivera antes várias intervenções fortemente
centralistas em momentos-chave, e seria secretário de Estado por duas
vezes depois deste debate. Foi ele quem pôs o dedo na ferida da posição
soberanista dos estados. A concentração de poderes no governo federal era
«essencial para a prosperidade e segurança dos estados». O jogo não era,
afinal, de soma nula, como os soberanistas dos estados queriam fazer crer.
Mais soberania no centro era condição indispensável para os estados
exercerem mais poder. Não poder soberano, é certo, mas poder que se
manifestava na segurança face ao exterior e na expansão da economia.
Negava, evidentemente, quaisquer direitos de «nulificação», para nada
dizer do direito de secessão. O fundamento para tais veleidades era
inexistente. O poder federal não era uma criatura dos Estados, mas da
soberania do povo americano indiferenciado. A Constituição e a sua
supremacia sobre os estados federados eram a tradução da vontade do
povo. E, assim sendo, não se podia admitir alcance jurisdicional a
nenhuma assembleia legislativa estadual para impugnar uma lei emanada
da Câmara dos Representantes eleita pelo povo soberano. Insistir neste
caminho era apelar à «guerra civil». Era, numa palavra, «traição».677
Em 1861, na véspera da eclosão da Guerra Civil, as posições seriam
ainda as mesmas, com os estados secessionistas do Sul substituindo
Madison e Jefferson, e com Lincoln substituindo John Marshall, que fizera
tudo para libertar o governo federal, incluindo o tribunal, do espartilho da
Nona Emenda. Desta feita com uma causa moral absoluta: a resolução da
questão da escravatura.
No final, não houve razão pública que pudesse conciliar as divergências
e foi uma violentíssima guerra civil que acabou por decidir todas as
contendas, incluindo a mancha horrível da escravatura. Podemos dizer
ainda que nos últimos duzentos anos, e sobretudo após a Guerra Civil, o
pendor centralizador da federação americana – o seu carácter «nacional»,
para repescar a terminologia de Madison – se acentuou
consideravelmente. Era preciso garantir que a soberania dos estados não
destruía a União, como o fizera em 1861, e que a coberto dela se não
destruísse o Estado de direito. A soberania ficou bastante consolidada na
União.
Aqui não se trata de encontramos o modelo prototípico de «federação»,
ou de «confederação», à luz do qual vamos avaliando as experiências
históricas dos Estados para ver se se aproximam mais ou menos desse
modelo. Não obstante ser recorrentemente repetido nos manuais de ciência
política, este exercício é essencialmente fútil. Desde a Constituição dos
Atenienses de Aristóteles que a prática dos povos demonstrou ser muito
mais rica do que os esquemas dos académicos. O que pretendemos
perceber é como é que a soberania sobrevive, ou não sobrevive, nestas
experiências modernas da soi disant soberania partilhada, seja na que se
formou no final do século XVIII na América, seja na que se formou com o
Tratado da União Europeia, assinado em Maastricht, em 1992, na Europa.
Muito mais experiências poderiam ser sugeridas a título de objecto de
estudo. Mas não podemos analisar todo o leque de experiências que a
riquíssima prática dos povos tem providenciado.
Com a experiência americana das primeiras décadas da República
aprendemos que é extremamente difícil estabilizar um consenso em torno
da localização da soberania – se nas partes, se no todo. Como desta
opinião depende a interpretação que se dá às funções de cada instituição e
de cada regra, nas partes e no todo, isso significa que não haverá durante
muito tempo um significado estabilizado e bem delineado de federalismo,
ainda que haja estabilidade do texto constitucional. Haverá vários
federalismos em disputa, cada um a pretender triunfar sobre os demais e a
moldar indefinidamente a estrutura e sentido do Estado. Isto vale para
todo o tipo de União política multinacional. Talvez por aqui se explique a
dificuldade que experimentamos de classificar as uniões políticas nas
taxonomias académicas. A estratégia clássica de ir a correr para o abrigo
dos «tipos ideais» devia ter os seus dias contados. Não há taxonomias dos
arranjos federais inscritos na natureza ou nas teorias da constituição,
discerníveis pelo cientista social. Há disputas e conflitos políticos intensos
e flutuantes em torno do sentido de cada experiência federalista concreta.
Ninguém mais insuspeito que John Marshall o admitiu.678
Os americanos deixaram-nos ainda outra lição. Com esta infinita
gradação entre duas polaridades – a confederação mais lassa, de um lado,
e a forma imperial, do outro, ou se quisermos, o estado unitário
multinacional – torna-se também um foco de debate altamente contestado
saber qual o grau de uma coisa e de outra que estabiliza, ou destabiliza,
um arranjo federal. E atestada a instabilidade, o debate e o conflito
continuam em torno de quão longe se deve ir no sentido de uma
polaridade ou de outra, para deixar a instabilidade para trás. Com mais
conflito ou com mais negociação, as alternativas tornam-se claras. Ou
mais desligamento, ou mais centralização. Todas estas viagens de um
ponto para o outro no eixo desligamento-centralização comportam sempre
riscos e instabilidade. São lições em que, nós, europeus, faríamos bem em
meditar porque vão ao coração da nossa experiência política recente.
Na América, os federalistas não perdoaram esta posição política de ficar
a meio da ponte. Atribuíam às tibiezas e hesitações dos Artigos da
Confederação os males políticos graves que assolavam o país naquela
década de 80 do século XVIII. Não tinham dúvidas de que os Artigos
condenariam a América à impotência e à ruína no futuro.
Independentemente da evolução que este debate conheceu no outro lado
do Atlântico, podemos sem exagero dizer que, no fundo, deram o mote
aos «federalistas europeus» dos nossos tempos. Lá como cá, ontem como
hoje, a razão mais profunda para explicar os insucessos presentes e futuros
da União está na posição política dos antifederalistas. São eles quem não
percebe, ou não querem perceber, que só dando mais poderes às
instituições centrais, americanas ou europeias, é possível lidar com os
«problemas». Foi nada mais, nada menos, do que isso que o líder
parlamentar do grupo liberal, ou ALDE, mais recentemente convertido em
Renew Europe, o belga Guy Verhofstadt proclamou numa famosa sessão
plenária em plena crise do euro, no início do Outono de 2011. Perguntou
Verhofstadt, com a procura pelo esclarecimento que lhe é habitual:
«Porque temos um tamanho problema nesta crise?» Respondeu com a
precipitação nas conclusões que lhe é habitual: «Porque os Estados-
membros estão relutantes em transferir nova soberania e novos poderes
para a União Europeia.» E acrescentou com a vertigem que lhe é habitual:
«Todos sabemos que o único modo de sair desta crise é uma nova
transferência de poderes para a União Europeia e para as instituições
europeias. É isto que está em causa.»679
10. Europa velha, Europa nova (2)
Os objectos de conflito que sintetizei na secção anterior não foram
exclusivamente americanos, nem são arcaicos. Vão direitos ao núcleo
duro do problema da soberania nas federações e nas uniões políticas
formadas por Estados previamente soberanos. A construção da União
Europeia tem gerado os mesmos conflitos, sobretudo desde que avançou
para a edificação de uma União política a partir de Maastricht.
Tal como na Constituição americana não aparecem as palavras
soberania/soberano, também nos Tratados da UE elas não são usadas. No
preâmbulo da Constituição americana, como vimos, falava um agente
constituinte que se identificava a si mesmo como «o Povo dos Estados
Unidos». Mas no Tratado de Roma, que fundou a Comunidade Económica
Europeia, assim como no actual Tratado que rege a União Europeia, quem
fala são os Estados europeus na sua pluralidade – constituídos por outros
tantos «povos Europeus» – e devidamente identificados como tais. A
mesma expressão «povos europeus» aparece no preâmbulo da Carta dos
Direitos Fundamentais da União Europeia (CDFUE) para identificar os
únicos sujeitos da integração política. O que normalmente se diz é que os
tratados fizeram sempre questão de não reconhecer um demos europeu. E
que o processo de integração europeia podia dispensar esse exercício de se
postular um único povo europeu indiferenciado. Porém, as coisas não são
tão simples.
Quando as Comunidades Europeias, com Maastricht, se converteram
numa União política, teve de se instituir uma cidadania europeia também,
cujos direitos estão enumerados na CDFUE e no Tratado da UE. Uma
implicava a outra. Por aqui, o caminho europeu imitou o americano. Todos
os habitantes no espaço da União Europeia passaram a gozar de uma dupla
cidadania: a nacional e a europeia. A tensão, no entanto, é patente. Por
exemplo, o Tratado da UE contém um artigo cujo alcance normativo não é
de fácil compreensão. Nele lê-se que os partidos políticos «ao nível
europeu contribuem para a criação de uma consciência política
europeia».680 Que a formação de uma consciência política europeia seja
desejada pelos partidários da integração europeia, como conteúdo
substantivo de uma cidadania digna desse nome, não oferece objecções.
Mas não se percebe se é conferida uma missão a partidos políticos que são
livres de escolher os conteúdos a que se propõem apresentar aos eleitores
e que procuram representar. Isto compromete de algum modo o estatuto
dos representantes no Parlamento Europeu que defendam o regresso às
fronteiras nacionais ou o desmantelamento da União? Fica o sintoma do
afã de formar uma cidadania europeia substantiva plasmado numa
cláusula sem grande valor além da sua força proclamatória.
A forma política da União e o seu tecido institucional não tem paralelo
em nenhum outro Estado. Existe uma Comissão Europeia que tem o
exclusivo da iniciativa legislativa e que põe em marcha o processo da
formação da lei. Além disso, é nela que reside a grande e poderosa
administração europeia em todas as suas competências, estendidas por
inúmeras agências. O Parlamento Europeu é composto, desde 1979, por
deputados eleitos por sufrágio universal e como representantes de círculos
eleitorais dos Estados membros, e não de um grande círculo eleitoral pan-
europeu. Acompanha e interfere no processo de formação da lei,
aprovando a proposta da Comissão ou rejeitando-a, o que, dependendo da
natureza da proposta em apreciação, pode ser equivalente a um poder de
co-decisão com o Conselho da União Europeia. Este último é o órgão
onde se reúnem e deliberam os ministros de cada um dos governos dos
Estados-membros, havendo uma correspondência entre a pasta
governamental e o assunto em mãos. Já o Conselho Europeu reúne os
chefes de Estado ou de governo de todos os Estados-membros. Embora
seja a sede máxima da discussão política e das grandes orientações da
União, não tem quaisquer poderes legislativos, apesar de os seus titulares
serem os chefes políticos do Conselho de Ministros, da maioria do
Parlamento Europeu e (porque não?) de uma parte significativa dos
comissários europeus. As suas «conclusões» correspondem à identificação
tanto dos assuntos prioritários, como das medidas genéricas a tomar, de
acordo com os diferentes procedimentos que cada forma de actuar tem de
cumprir. Há um Banco Central Europeu, e uma miríade de recém-criadas
instituições de supervisão financeira e de resolução bancária, que têm
jurisdição sobre os países que integram a UEM. Têm à sua
responsabilidade os encargos normais de um Banco Central protegido por
um protocolo de independência política, financeira e administrativa.
Finalmente, e abreviando este elenco com sacrifício do Tribunal de
Contas, do Comité das Regiões ou do Comité Económico e Social
Europeu, há que indicar o discreto, mas importantíssimo Tribunal de
Justiça da União Europeia.
Todas as normas emanadas das instituições europeias – e podem ser de
vários tipos – gozam de supremacia sobre o direito nacional dos Estados
membros. Portugal em 2004 acabou por fazer uma revisão constitucional
para tornar o texto da Constituição inequivocamente compatível com esta
hierarquia.681 Na verdade, a supremacia do direito da União constituiu um
dos passos mais vigorosos da «integração europeia» ou da concentração
de poder nas instituições. E não resultou nem de Tratados, nem de
qualquer discussão política. Foi imposta pelo Tribunal de Justiça
sobretudo em dois acórdãos decisivos que tiveram lugar nos anos 60 do
século passado, quando estávamos ainda muito distantes da actual União
política. Foram os juízes que numa interpretação surpreendente e
«activista» do Tratado de Roma definiram a doutrina da supremacia. Foi
surpreendente naquele contexto histórico e de timidez dos passos políticos
que tinham sido dados até então. Mas não surpreendentes quando se pensa
em estruturar um poder federal. De resto, a Constituição americana
também tem uma cláusula de supremacia.682 Mas essa resultou de uma
deliberação e consentimento políticos. Não de uma decisão judiciária
unilateral. Mais do que uma, enfim. Podemos dizer que, desde o acórdão
do caso Costa vs. Enel de 15 de Julho de 1964, a questão ficou
definitivamente fechada. A constitucionalização de um tratado
internacional, o de Roma, fora alcançada. A estratégia hermenêutica dos
casos em apreço seguiu uma orientação «teleológica», isto é, olhava já
para o futuro da Europa enquanto ordem jurídica, e não tanto para os
contornos particulares de cada caso. Montava uma jurisprudência ao
serviço de uma federalização do sistema legal europeu. Inicialmente, no
Tratado de Roma, era previsto o recurso para o Tribunal Europeu quando
houvesse dúvidas quanto ao cumprimento do tratado. Cabia ao Tribunal
declarar a interpretação autoritativa e soberana dos poderes concedidos
pelo tratado às instituições europeias e que careciam de cumprimento ou
de execução pelos Estados-membros. Mas o que se seguiu estava longe da
letra do Tratado.
Primeiro, em 1963, na decisão Van Gend & Loos vs. Administração
Fiscal Holandesa, o tribunal anunciou que a Comunidade Económica
Europeia era uma «nova ordem jurídica de direito internacional» em
benefício da qual os Estados-membros tinham limitado voluntariamente
os seus «direitos de soberania» em certos domínios. Mas disse mais. Indo
direito a um dos critérios usados por Madison para julgar o grau de
federalização de um sistema, e que acima mereceu a nossa atenção, o
tribunal dizia que os actos das instituições europeias vinculavam, não
apenas os Estados-membros, mas também os seus cidadãos. Agora, as
instituições europeias podiam, por assim dizer, saltar por cima da
intermediação dos Estados associados, uma característica das
confederações, para criar uma relação jurídica directa com os cidadãos,
tanto para lhes imputar obrigações, como para lhes atribuir direitos. Mais,
com essa nova relação os indivíduos teriam a protecção jurisdicional do
Tribunal Europeu para litigar contra o seu próprio Estado invocando o
direito comunitário nos tribunais nacionais, a jurisprudência «federal», os
seus novos direitos e as suas novas obrigações – o chamado princípio do
efeito directo. Não se tratava, então, do direito de contestar a lei
comunitária nos tribunais nacionais, mas o de contestar a lei nacional nos
tribunais nacionais. A fiscalização do Tratado passaria também a estar nas
mãos dos indivíduos europeus.683 Recorde-se a este propósito que os
constituintes americanos disseram com todas as letras que pertencia por
entendimento universal ao conceito de soberania a não admissibilidade de
um processo de um indivíduo contra o estado, sem que este desse o seu
consentimento ao recurso para os tribunais. E diziam que tinha sido por
essa razão que na Constituição este direito de cada estado não fora posto
em causa.684
O tribunal não perdeu tempo. Um ano depois o processo Costa vs. Enel
conhecia a decisão do tribunal. Agora, os juízes atreviam-se a impugnar
uma lei nacional que conflituasse com os direitos e obrigações inferidos
do Tratado. Os Estados-membros não podiam negar aos seus cidadãos que
invocassem o direito comunitário nos tribunais nacionais quando se
tratava de cumprir uma obrigação impecavelmente prevista na legislação
nacional. É que, dizia o tribunal, a CEE «institui uma ordem jurídica
própria» e que se «impõe aos seus órgãos jurisdicionais nacionais». Actos
dos legisladores nacionais que contradissessem alguma destas normas, e
algum destes actos supranacionais com valor normativo, não seriam
aplicáveis. Os Estados tinham de compreender que não podia haver
excepções nem actos unilaterais, dado que a constituição da CEE
implicara «uma limitação definitiva» da soberania dos Estados aderentes.
Mais, a supremacia do direito comunitário e da jurisprudência
supranacional encontravam agora o fundamento no cumprimento dos
«objectivos» do Tratado em nome dos quais o tribunal se erigia como
primeiro guardião.685
À luz do que sucedera na América cerca de 180 antes, isto não devia
surpreender ninguém. O famoso adversário da Constituição americana que
nos últimos anos da década de 80 do século XVIII travou grandes debates
sob o pseudónimo de Brutus, o grande fundador da república romana (ou
o assassino de César?), punha o dedo na ferida. Contra as propostas dos
partidários da Constituição que confiavam na enumeração das
competências do Estado federal para poder garantir que não haveria
qualquer «consolidação» do poder no futuro, «Brutus» escreveu:
É uma regra da construção [interpretativa] da lei o considerar os
objectivos que o legislador tinha em vista quando a aprovou, e dar-lhe
uma tal explicação que promova a sua intenção. A mesma regra
aplicar-se-á na explicação de uma Constituição.686
Numa federação pós-1787, as unidades políticas originárias deixaram de
ser soberanas num sentido muito elementar. Deixaram de gozar da
supremacia jurisdicional no seu território, já que a entidade política
federal assumiria essa condição de supremacia. Deixaram ainda de se
relacionar externamente com outros soberanos que lhes eram iguais, já
que a entidade política federal ser-lhe-ia superior e monopolizaria o
essencial das competências e decisões sobre as relações externas.
Supremacia e autonomia eram duas faces inseparáveis da soberania.
Perdendo-se uma, perdia-se a outra.687
A partir do momento em que uma Constituição, ou um Tratado a fazer
as vezes de uma Constituição, preconizava determinados propósitos
políticos gerais, a hermenêutica jurisprudencial integraria esses propósitos
maximizando os poderes e as competências da Comunidade, ou da União,
em detrimento dos Estados-membros, como único modo de conciliação.
No Tratado de Roma, os propósitos não podiam ser mais gerais e
ambiciosos, e estavam mesmo ali a pedir que o activismo judicial pegasse
neles como pegou. Eram vários: o estabelecimento de um «mercado
comum», a «convergência progressiva das políticas económicas», o
«desenvolvimento harmonioso das actividades económicas», elevar
rapidamente o «nível de vida» e prosseguir uma «união cada vez mais
estreita dos povos europeus».688 Para que a união fosse cada vez mais
estreita, a concentração de soberania na comunidade teria de ser cada vez
maior. O exame desta evolução deve ter presente que o tribunal, quando
foi criado, ainda no contexto da Comunidade Europeia do Carvão e do
Aço (CECA), e depois deslizando para a CEE, tinha como função
principal manter a Comissão e o Conselho dentro dos limites das suas
atribuições, protegendo por arrastamento a soberania dos Estados-
membros. Escusado é dizer que os tratados actuais têm desígnios gerais
ainda mais ambiciosos e em domínios novos que o Tratado de Roma nem
sequer toca, desde logo a moeda única, mas também a esfera ambiental, os
direitos humanos, entre outras. Embora, sublinhe-se, seja explicitamente
negada jurisdição ao tribunal em matéria de segurança e defesa comum,
assim como de segurança interna. Mais, o Tratado de Lisboa já incluía um
procedimento a seguir para atribuir poderes novos às instituições
europeias no caso de serem descobertas necessidades de políticas públicas
que, à luz dos tratados, não estivessem devidamente cobertas por poderes
apropriados. Se os objectivos estavam lá, mas faltavam poderes para os
levar por diante, passava a ser possível atribuir novos poderes à União
sem rever os tratados.689
Finalmente, em 1970, o tribunal decidia o processo Internationale
Handelsgesellschaft sobre licenças de exportação de produtos agrícolas ao
abrigo dos regulamentos da Política Agrícola Comum. Perante a
apreciação do tribunal administrativo alemão de que as normas
comunitárias teriam de ceder diante das normas constitucionais nacionais,
o Tribunal Europeu respondia que não havia regras de direito nacional que
se pudesse interpor ao direito comunitário sob pena de se pôr em causa «a
base jurídica da própria Comunidade». Nem a Constituição alemã, nem a
de nenhum outro Estado-membro era oponível a um acto da Comunidade,
nem aos efeitos do mesmo no território dos Estados-membros.690 Na
hierarquia de autoridades, o Tribunal Europeu sussurrava uma
proclamação potentíssima. Com o tratado, o direito comunitário
subordinava as Constituições nacionais e era ele, o tribunal, quem decidia
com exclusiva autoridade – soberano, portanto – da extensão da
autoridade suprema.691
Durante muitos anos, e mesmo depois da conversão numa União
política a partir de 1992, a UE manteve alguns dos traços de uma
organização internacional, ainda não subsumível na categoria do Estado
federal puro e simples. Por vezes até algumas das medidas de emergência
para lidar com as crises, e que exigiram a mobilização de capital político
significativo, tiveram de ser levadas a cabo no plano da cooperação
internacional. Basta pensar na formação do Mecanismo Europeu de
Estabilidade em 2012 por meio de um tratado internacional entre os
Estados-membros que partilhavam a moeda europeia. Mas a centralização
de poder nas instituições europeias, e a expansão de competências
concretas, de áreas de intervenção, de densidade regulatória e de pessoal
dirigente e administrativo, tem sido muito acentuada desde 2010. A
resposta política à epidemia da COVID só intensificou o movimento. A
«federalização» da forma política europeia é a todos os títulos evidente.
Os reveses de 2004, com o fracasso da aprovação de um tratado
constitucional para a Europa, foram assimilados pela crise financeira de
2010 em diante, com a crise das migrações de 2015, com as proclamações
orgulhosas sobre o salto em frente da Cooperação Estruturada Permanente
em matéria de segurança e defesa no final de 2017, enfim, com a reunião
de esforços para debelar a crise económica provocada pela pandemia em
2020. A oposição política a esta marcha hesitante, cambaleante, mas que
ainda assim se vai fazendo com passos inconfundíveis, fica praticamente a
cargo dos extremismos partidários de esquerda e de direita nas margens da
respeitabilidade institucional, o que diz muito das alternativas em jogo.
Os constituintes americanos de 1787-1788, Rousseau e Kant estavam
unidos num aspecto crítico das federações. A homogeneidade das partes
federadas ao nível do regime político era determinante. Dizia o artigo da
Paz Perpétua o que diz a Constituição americana: os estados têm de ser
republicanos.692 Os americanos até puseram o Estado federal a «garantir»
essa forma de governo contra qualquer ameaça de usurpação,
constitucionalizando o direito de ingerência federal nessa circunstância
muito particular. Tratou-se de uma convergência entre as teorias da
federação maioritárias no século XVIII – de Montesquieu693 em diante –, o
receio ainda muito vivo da ameaça monárquica perante a juventude da
experiência republicana e de os inimigos dos EUA serem monarquias. Era,
finalmente, a consequência lógica da proposição segundo a qual a
soberania popular era o fundamento do Estado federal, o que, por maioria
de razão, teria de ser extensível às suas partes componentes.
O processo de «integração» europeia não abdicou desta aquisição do
pensamento federalista dos últimos 250 anos. Não sei se alguém alegará
que nada de aproximado a este respeito existirá nos documentos
constitucionais da União Europeia. Mas tal não teria sustentação. De um
modo mais oblíquo, é certo, mas não menos contundente, a União
Europeia procura instaurar uma homogeneidade essencial entre as partes
que a formam. O propósito é, como não pode deixar de ser, regular e
conformar o comportamento futuro dos Estados-membros. Não me refiro
apenas ao elenco de direitos declarados e protegidos pela União, com
destaque para a CDFUE e das chamadas Quatro Liberdades – a livre
circulação de pessoas, bens, serviços e capitais – associadas ao Mercado
Único. Os «critérios de Copenhaga», formalizados pelo Conselho Europeu
em 1993, correspondem exactamente às reflexões setecentistas em torno
da republicanização da federação. Estipulam as condições para a adesão
de novos membros à União, nos aspectos económicos, jurídicos e
políticos. A homogeneidade começa a ser produzida ainda antes da adesão
formal. É profunda e é transversal. Os novos membros precisam de
demonstrar que possuem economias de mercado funcionais, a fazer
cumprir a regulação europeia, que têm no lugar as instituições do Estado
de Direito e que exibem a estrutura estável e confiável própria de uma
democracia constitucional. O requisito democrático já existia, claro, mas
nunca até 1993 fora formalizado. De Copenhaga em diante, os Estados na
lista de espera e em negociações com as instituições europeias para uma
futura adesão podiam ser hierarquizados segundo uma classificação do
progresso que cada um fizera para se aproximar do critério democrático. A
Eslováquia já passou pela desconfortável experiência de ser excluída das
negociações por ter escolhido um governo pouco amistoso para os valores
da democracia e da protecção das minorias. Na UE, a homogeneidade
serve de princípio jurídico, de regra de interpretação constitucional. Sem
dúvida. Mas requer doses massivas de ingenuidade, ou de má-fé, afirmar
que a homogeneidade não visa produzir uma realidade espiritual e
sociológica nos conteúdos sociais de existência dos povos europeus. O
princípio da homogeneidade é normativo e prescritivo.694
Curiosamente, este problema não é novo. O debate em torno da paz
perpétua já o suscitara. Rousseau alertara para a insuficiência da
contratualização do compromisso com a paz e a mobilização da vontade
para efectuá-la. Em particular, o projecto federativo para a Europa não
podia assentar exclusivamente numa operação jurídica. Acrescentou que
existia também uma espécie de infra-estrutura da «federação». Por outras
palavras, se existia uma forma constitucional que unia as leis que
governavam os diversos Estados, e as relações externas que estes
mantinham, também era preciso verificar se existia uma certa comunidade
ou união de «interesses», de «máximas», de «costumes», que sustentasse
«relações comuns entre povos divididos». Segundo Rousseau, à época a
Europa constituía uma comunidade deste tipo, uma «ligação social
imperfeita», pois estava unida por uma «mesma religião», por um mesmo
«direito dos povos», pelos «costumes», pelas «letras», pelo «comércio», e
«por uma espécie de equilíbrio que é o efeito necessário de tudo isso».
Sem que ninguém tivesse concebido ou intencionado tal união, a união
infra-estrutural europeia preservava-se sem que ninguém trabalhasse para
a sua conservação. Por ser real, essa união não era fácil de «romper».695
Tudo ponderado, podia dizer-se que a existência prévia de uma sociedade
infra-estrutural facilitava o «aperfeiçoamento» ou o salto jurídico-político
necessário para superar o estado de guerra rumo à «paz eterna».696
Corroborado por Kant trinta anos mais tarde, Rousseau avançava a
consideração sofisticada dos fundamentos infrapolíticos do arranjo
político federativo. Já no século XIX, Stuart Mill também insistiu na
afinidade como condição primordial da viabilidade de uma federação.
Referia-se-lhe como uma mutual sympathy entre os povos a federar. Se a
federação poderia convocá-los a combater por uma causa comum,
convinha que houvesse uma comunidade de «sentimentos» entre as
populações. Mill enumerava os determinantes dessa afinidade: «raça,
língua, religião, e acima de tudo, instituições políticas» comuns. Além da
homogeneidade política havia uma homogeneidade infra-estrutural a
realizar para construir um interesse comum e uma identidade política
federal.697
Inclusão obrigatória nesta reflexão merece o artigo 7.º dos tratados
europeus, tão invocado no final da segunda década do século XXI a
propósito da Hungria e da Polónia, mas cuja aplicação imparcial levará a
mais conflitos com outros Estados-membros. Os últimos anos têm
mostrado como em muitos países no Leste e no Sul da União o triunfo do
partido-Estado nos sistemas políticos nacionais se tem configurado como
uma ameaça temível aos valores demo-liberais. Em particular, o fenómeno
de colonização do aparelho estatal e da sociedade civil pelo tentacular
partido-Estado tem conduzido a uma indisfarçável degradação
institucional de vários países europeus. Levará igualmente a uma
interpretação cada vez mais extensiva da densidade da homogeneidade no
seio dos Estados-membros e da União, em geral, em que a fronteira com a
uniformização se torna cada vez mais ténue. As barreiras nos tratados às
futuras interpretações extensivas, como o respeito, a que a União está
obrigada, das identidades nacionais,698 são provavelmente demasiado
genéricas para cumprir a sua função. Os mecanismos previstos no artigo
7.º para fazer cumprir as normas do Estado de Direito e os valores
europeus pretendem obrigar todos os Estados-membros à conformação
institucional, e das práticas do exercício do poder, com os referidos
valores. Podem conduzir à subordinação de um Estado-membro no
contexto da União, reduzi-lo ao estatuto de politicamente inferior porque
privado do direito de voto no Conselho.
Mais recentemente, o princípio da homogeneidade exerceu-se na
dimensão dos direitos e protecções sociais. Em 2017, foi aprovado e
proclamado o novel Pilar Europeu dos Direitos Sociais, um conjunto de
vinte direitos e «princípios» orientadores relativos às condições e ao
mercado de trabalho, da protecção e da inclusão social. Promete vir a ser
uma via acentuada de homogeneização.
Para garantir a devida protecção perante a acusação de homogeneização
excessiva, assumiu-se que os fins são perfilhados por todos os Estados-
membros. Assumiu-se que cada um os escolheu livremente – ser uma
democracia, com um Estado de Direito, numa economia social de
mercado, com a protecção dos direitos, do ambiente, do trabalho e das
garantias sociais que se conhecem. Mas já não se pôde aceitar que os
Estados fossem livres de escolher todos os meios para alcançar esses fins.
Escusado é mencionar que se um Estado decidir livremente ser outra
coisa, optar por outra identidade política e social, essa escolha é
incompatível com a UE, não só na co-decisão dos meios, mas
evidentemente nos fins também.
Meritórias como são estas iniciativas que foram ganhando
preponderância nas últimas décadas, não devem ofuscar um propósito
fundamental, até do ponto de vista da estabilidade da própria União. É que
esta não pode deixar de proteger a vitalidade e a continuidade histórica da
diversidade europeia, que é, evidentemente, a diversidade dos seus
Estados-membros. A diversidade não pode ser simplesmente folclórica.
Ela inclui as preferências políticas que decorrem da particularidade
cultural. Os limites à homogeneidade são reais, e quanto mais depressa
confrontarmos a dimensão concreta e real da homogeneidade, ao invés de
a disfarçarmos mantendo-a à força na categoria de princípio jurídico puro,
melhor. A homogeneidade decorre da afirmação de um modo de ser no
mundo particular à União Europeia. E isso tem consequências sérias que
não devem ser escamoteadas.
11. O que resta da soberania nacional num sistema de soberania
partilhada?
Houve uma simetria tão evidente, quanto no caso americano, de direitos
de soberania perdidos pelos Estados-membros para os direitos de
soberania adquiridos pela UE? Uns correspondem exactamente aos
outros? Alguns viram nessa assimetria, nessa lacuna de direitos de
soberania perdidos na transferência, o sinal de que a União Europeia
representava uma forma política ainda mais inédita do que se pensara. Era
a forma política da pós-soberania. Na verdade, é impossível demonstrar
que a União constitui algo sequer aproximado a um Estado federal como o
americano. Não pode ser categorizado como um Estado soberano. Vimos
como há uma corrente política e intelectual que desde há muito deseja
converter a União numa plena soberania. Mas esse desfecho não está
garantido.
No debate sobre a ratificação da Constituição americana, falava-se em
soberania «residual» para designar que porção de soberania – se é que é
lícita a expressão – restava aos estados federados depois de consumada a
União.699 E aqui entramos directamente na noção de soberania partilhada
que tem ocupado um lugar tão proeminente no discurso constitucional
produzido não apenas pelas instituições europeias, mas também pela
constelação de sedes políticas e jurídicas que gravitam à volta delas. Era
inevitável que o léxico e o discurso constitucional nacional se
apropriassem da expressão até porque precisava de sintetizar uma
justificação para o fluxo de poderes e competências de si, do Estado
soberano nacional, para a União, em conformidade com a manutenção do
mesmo estatuto constitucional autónomo da comunidade política. Nestes
termos, a interpretação do que é a soberania partilhada, do ponto de vista
constitucional do Estado-membro nacional, não pode deixar de ser que
nenhuma parte, atributo ou direito de soberania foi irrevogavelmente
transferido para a União. A partilha tem esse sentido. Dizem os Estados-
membros através do seu discurso constitucional, ainda fruto das teses da
inalienabilidade da soberania: «Decidimos todos pôr em comum um
conjunto de poderes e de competências, e de exercê-los em comum através
de instituições cuja composição, natureza e prerrogativas excedem a nossa
jurisdição; e tal como os partilhamos agora, não abdicamos da
reversibilidade dessa partilha, porquanto ela é essencialmente delegação,
embora não façamos alarido desta nossa pretensão inalienável.» Mais, os
Estados-membros enquanto constituições nacionais dizem ainda que a
União não pode alimentar nenhuma reivindicação legítima de soberania
contra os Estados-membros.700 No entanto, a isto temos de contrapor que,
com a formação da União como uma ordem jurídica autónoma, os
Estados-membros perderam os seus direitos soberanos reconhecidos como
sujeitos do direito internacional. A resposta aos actos da União já não
pode proceder dos princípios do direito internacional, mas da coerência
jurídico-constitucional interna à própria ordem da União.701 O que se
partilha, partilha-se nos termos da União. Não nos termos do Estado-
membro. E isso pode fazer uma diferença gigantesca.
Na Europa, não tem havido voz institucional mais sistemática no sentido
de (tentar) estabilizar e desenvolver uma doutrina da soberania partilhada
do que o Tribunal Constitucional Federal alemão. É certo que nem sempre
a pretexto das ocasiões mais propícias. Nem sempre com os argumentos
mais certeiros. Nem sempre com independência relativamente a interesses
políticos particulares. E não raro colocando-se no meio de problemas mal
formulados e para os quais não tem preparação nem saber para os julgar.
Mas é difícil não reconhecer que tem sido a única fonte de autoridade a
procurar no plano constitucional apresentar uma doutrina que se
contraponha à justificação da federação cada vez mais estreita. Com essas
tentativas tem desdobrado um entendimento coerente de soberania
partilhada, o que, por sua vez, tem formado um entendimento igualmente
claro da rede de relações entre os Estados-membros e a União. Deste
entendimento resultou um conflito entre o órgão jurisdicional alemão e o
Tribunal de Justiça.
Em Junho de 2009, o tribunal alemão pronunciou-se sobre a
conformidade do Tratado de Lisboa com a Lei Fundamental do seu país.
Para grande choque de almas mais sensíveis, não prescindiu de colocar o
problema nos termos da soberania alemã. Nesse acórdão, partiu de uma
concepção da UE como uma «associação de Estados soberanos». Afirmou
a República Federal da Alemanha como um Estado «soberano» e cuja
soberania era garantida pela Lei Fundamental alemã. Daqui seguia-se um
conjunto de consequências críticas. A «ordem fundamental» da União não
gozava da autonomia que lhe tinha sido atribuída por uma parte da elite
europeia e do Tribunal de Justiça. Ela estava essencialmente dependente
do «poder de decisão» dos Estados-membros e era nestes que se
encontrava a sua legitimidade democrática. O tribunal negava ao processo
de «integração» europeia a possibilidade de se desenvolver a expensas da
autonomia dos Estados-membros para formar as suas «condições de vida»
nos planos político, económico, cultural e social, erigindo a barreira da
irredutível heterogeneidade dos países da União para formar preferências
societais próprias.702
Nesse acórdão, o tribunal confirmava o imperativo constitucional
alemão de adesão ao processo de integração europeia e correspondente
transferência de «poderes soberanos de grande alcance», mas segundo o
entendimento que jamais a «identidade constitucional» alemã pudesse
ficar comprometida. Era a definição de um limite – tanto para o que os
órgãos constituídos nacionais podiam fazer a eles mesmos, como para os
deveres de respeito da União face aos Estados-membros. O exercício pela
União dos poderes soberanos transferidos era possibilitado pelos Estados-
membros, facto que não podia ser ignorado. Isso era importante para
sublinhar que os Estados «mantêm-se permanentemente os Senhores dos
Tratados». O que aqui se reafirmava é que a UE era uma criação dos seus
Estados-membros – dos povos europeus radicados na sua existência
política em constituições democráticas expressas soberanamente. No
aspecto mais decisivo, a União constituía uma ordem fundamental
«derivada», e não perfeitamente autónoma. O que colhia não era afinal a
personalidade jurídica da União, nem a sua qualidade de sujeito capaz de
vincular terceiros aos seus actos. O que contava era esta relação política e
jurídica fundamental e inilidível.703 Não existia um povo europeu, mas
uma pluralidade de povos europeus que na sua decisão soberana foram
cooperando, e aprofundando essa cooperação, uns com os outros. Estes
eram pontos suficientemente basilares para se poder confirmar o que os
documentos declaravam: que os Estados-membros são os Senhores dos
Tratados. Neste sentido, e apesar de os Estados já não serem senhores
absolutos da lei aplicável aos seus territórios, a UE e as suas políticas são
um efeito de actos soberanos nacionais. A União não pode dispor da sua
base legal nem de encontrar na sua própria estrutura a fonte de
legitimação, como fazem as federações plenas.704
Para James Madison, John Taylor e muitas outras luminárias da
invenção do federalismo moderno a grande distinção entre, de um lado,
uma liga de nações, ou associações estabelecidas por tratados, e, do outro,
uma Constituição federal, residia na autoridade de criação e ratificação da
Constituição. Se fossem os órgãos constituídos dos estados ficar-se-ia pelo
âmbito da associação internacional. Mas, se fosse o povo directamente a
proceder à ratificação, o povo na sua capacidade colectiva e
transcendendo fronteiras estaduais, a Constituição ficaria revestida da
mais elevada autoridade e o Estado federal por ela formada tornar-se-ia
capaz de autodeterminação. Tal era a consequência directa da doutrina da
soberania popular. No final, houve convenções estaduais para ratificar a
Constituição. O equilíbrio foi notável. Não foi levado a cabo o que, com a
excepção de George Read, delegado do Delaware na convenção de
Filadélfia, ninguém defendia – a ratificação pelo povo americano como
unidade indivisível. Foi o povo de cada um dos estados, através dos seus
representantes expressamente eleitos para o efeito, a fazê-lo. Agiu o
«povo» e agiram os «Estados». Coube mais tarde a Daniel Webster fazer a
equivalência dos treze povos a um grande povo americano unitário e
indivisível.
A transferência de soberania, ou talvez de direitos soberanos, para a UE
resultou de um acto de soberania de cada um dos Estados nacionais. Mas
esta proposição não é evidente. Vimos que não é assimilável à soberania
dispor por inteiro, pelo menos, dela mesma. É a tese da inalienabilidade
da soberania, cara aos teóricos do passado. Haverá um limite a partir do
qual a transferência de soberania se torne inviável? Admitindo que o caso
extremo se resolve com facilidade, a saber, que não consiste num acto de
soberania a decisão pela submissão total a outra entidade política externa,
o que dizer de decisões que não sejam confundíveis com esse caso
extremo? Não se trata de um acto de soberania pela mesma razão lógica
de que não descrevemos um acto de suicídio como uma afirmação da vida.
Pode até ser desejável em certas circunstâncias históricas concretas a
submissão por inteiro à soberania de outro Estado. Mas não pode ser
descrita como um acto de soberania. Tem de ser descrito como uma
descida à heteronomia. Resolvido este caso menos comum, o que dizer do
restante leque de escolhas? Haverá algum limite? O limite parece ser este:
vai demasiado longe a transferência de poderes soberanos que permita que
o seu exercício pela União torne necessária ou justificável a expansão de
competências europeias decididas pelos órgãos da União. Mais, se couber
apenas às instituições da UE a função de interpretação dos tratados, «sem
qualquer controlo externo», então também aí já se passou a fronteira do
que é admissível para uma Constituição de um Estado soberano. Em todos
os momentos em que se navegue em águas menos cristalinas, os Estados-
membros não podem abdicar das suas prerrogativas jurisdicionais de
controlo dos actos da União.705
Tal é, pace Habermas, a doutrina do tribunal alemão, a da associação da
soberania nacional à protecção da legitimidade democrática-
constitucional, sem que esta se feche ao projecto de integração numa
união política supranacional. Coexistem duas entidades indestrutíveis que
se relacionam profundamente uma com a outra, dependendo uma da outra.
De resto, a doutrina remonta ao acórdão de Outubro de 1993 sobre a
conformidade constitucional do Tratado de Maastricht, e foi recentemente
confirmada num muito controverso acórdão, e não particularmente bem
fundamentado, diga-se, incidente no programa de compra de activos do
Banco Central Europeu.706 O clamor provocado por este último acórdão
foi grande, dado que poderia pôr em causa o funcionamento maximalista
da máquina que mantém financeiramente estável a Europa do Sul – para
mais não dizer. Além disso, o clamor também derivou de se ter tornado
patente que esta doutrina colide de frente com a autoridade do Tribunal de
Justiça, e com a sua autonomia interpretativa, tal como foi afirmada desde
os anos 60 do século XX. Em todos estes casos-limite a fasquia é
indubitavelmente elevada. Fosse como fosse, desde finais do século XVIII
que restam poucas dúvidas de que o poder judicial é o instrumento
regulador do corpo político federal. Daí a sua sensibilidade.
Preferencialmente, o órgão jurisdicional federal fiscaliza os actos e
poderes do Estado federal e das partes federadas. E nada é mais sensível
do que a regulação da relação entre a parte federada e o poder da União.
Daí que um dia, já em pleno século XX, um dos mais profundos e
influentes juízes da história do Supremo Tribunal americano tivesse dito:
«Não penso que seria o fim dos EUA se perdêssemos o nosso poder de
declarar nulo um acto do Congresso. Mas penso que a União ficaria em
perigo se não pudéssemos fazer essa declaração quanto às leis dos
diversos estados.»707
A esta discussão não se adicionou uma outra conclusão que é tão
pertinente quanto a conclusão essencial. Recapitulando, a conclusão
essencial é a de que os mecanismos de legitimação democrática
alicerçados nos Estados nacionais não são substituíveis, sob pena de
passarmos a viver numa forma política não-democrática. E a outra
conclusão seguir-se-ia nestes termos: Se a soberania é uma representação
e uma expressão da nação na sua particularidade e identidade, então a
perda de soberania, seja de que modo venha a ocorrer, constitui um
enfraquecimento da nacionalidade. Sendo a expressão política da nação
correlativa da promoção da nacionalidade, o enfraquecimento de uma
significa o enfraquecimento da outra. Esta conclusão é forçosa,
independentemente do juízo que possamos fazer sobre a bondade ou a
maldade de um enfraquecimento da nacionalidade. Vale a pena sublinhar
que a nacionalidade não deve ser confundida com a identidade étnica-
folclórica, irrelevante para o assunto em mãos. Ora, se o critério da
continuidade da relevância pública e constitucional das instituições
democráticas nacionais não pode ser ignorado, então o mesmo tem de
valer para o critério da compatibilização entre a integração europeia e a
continuidade histórica da nacionalidade.
A prerrogativa decisiva para os Estados federais, e que os caracterizam
enquanto tais, reside no direito não partilhado de determinar a sua própria
competência segundo o seu próprio julgamento. É a germânica
Kompetenz-Kompetenz,708 ou o poder de estender a sua competência, a sua
esfera de acção através dos seus próprios órgãos, e assim decidir a
competência dos estados federados por implicação. Mas é mais: é o poder
de estender a sua competência indefinidamente. Na Constituição
americana esse direito é exercido dentro da esfera de atribuições
explicitadas no texto constitucional – os poderes federais. Porém, as
possibilidades de construção hermenêutica pelo Supremo Tribunal têm
conduzido a um alargamento dessas competências além do planeado nas
revisões constitucionais formais que foram levadas a cabo. Quer isto dizer
que é a ordem jurídica federal, e não a dos Estados federados, que
estabelece as condições de alteração das competências. E um Estado
isolado não consegue impedir essas mudanças formais e jurisdicionais.
Vimos como aí reside uma fonte de conflitos sérios. Além deste aspecto
constitutivo do poder soberano, o Estado federal tem o poder de levar por
diante o crescimento das suas competências, pelos processos formal e
jurisdicional mencionados, até restar apenas uma competência residual do
Estado federado. Isto no mero campo das possibilidades jurídicas.709 O que
pode acontecer nas circunstâncias políticas concretas da vida de cada
federação é outra conversa.
Nestes termos, a União Europeia goza de um evidente poder
característico e constitutivo dos Estados federais. Embora seja claro que a
base legal originária mantinha a Kompetenz-Kompetenz nos Estados-
membros,710 o facto é que os acórdãos fundadores da jurisprudência do
Tribunal Europeu chamaram para este a autoridade exclusiva de decisão
dos conflitos em torno da distribuição de competências e de alegações de
violação das competências. E, como vimos, esta é uma manifestação
decisiva de soberania, não enquanto poder, certamente, mas enquanto
autoridade jurisdicional. A dinâmica política da União vai removendo dos
Estados-membros aquilo que a base legal da forma política parece ditar,
num movimento histórico em tudo semelhante ao da construção das
federações. Com a agravante, ou o aliciante, dependendo da perspectiva
política, de que a UE nem está sujeita a uma enumeração tão taxativa das
competências federais quanto o governo federal americano. É pelo menos
uma circunscrição muito mais nebulosa, e, por conseguinte, com um
potencial jurídico muito considerável de absorção federalizante da
competência. Podemos dizer que a maior diversidade política e cultural
dos Estados-membros europeus funciona como travão da realização desse
potencial. Mas os últimos anos têm sido férteis para um certo consenso,
ou talvez uma opinião fortemente maioritária, de que as grandes crises
presentes e os desafios futuros exigem mais competências nas instituições
da União. A pandemia de 2020 foi apenas mais um episódio nessa
crescente reivindicação, a que os tratados em larga medida podem dar
resposta. A angústia da(s) crise(s) tem levado ao clamor cada vez mais
audível por uma decisão soberana.
A reivindicação de um direito soberano nacional de controlo
jurisdicional do cumprimento dos tratados pelos órgãos europeus introduz
«instabilidade» e mina a autoridade desses órgãos? Sem dúvida. Mas não
se pode dizer que não é uma consequência possível de haver soberania
partilhada. E o que é, então, a soberania partilhada segundo esta
doutrina? Supõe, para começar, que a soberania se mantém no Estado
nacional, e que essa manutenção tem de ser controlada, em última
instância, pelo mesmo Estado nacional. Mas não supõe que exista um
conjunto fixo e impecavelmente delineado de «poderes soberanos» a ser
retido no Estado nacional.711 Com efeito, a soberania nunca se confundiu
com omnicompetência, apenas com a invencibilidade da decisão dentro da
esfera de competência.712 Os poderes transferidos são exercidos
conjuntamente com os restantes parceiros, por órgãos da União, criados
para esse efeito, com competências tão claramente delimitadas quanto
possível, mas apenas para evitar o abuso da prerrogativa da expansão das
próprias competências, abuso que medra na indistinção legal. E esta teia
de relações não pode deixar de ser regrada segundo o princípio do
«compromisso reversível». O que é partilhado, não é partilhado
incondicionalmente, embora vinguem as orientações e os princípios da
lealdade para com a União, e para com as outras partes que a formam,
impedindo que o alarme soberano nacional dispare por razões levianas e
desonestas.
Vimos que a doutrina do tribunal alemão admitia que a soberania
nacional não exigia a retenção de uma lista rígida de poderes soberanos no
Estado-membro. Não deixa de ser uma proposição razoável. Por outro
lado, os mais ciosos da soberania nacional insistem desde há muito na
delimitação clara e taxativa no tratado/constituição das competências do
Estado federal. E alertam para o seu cumprimento tão próximo da letra do
tratado/constituição quanto possível. Já vimos que a latitude do
desempenho dos poderes federais é mais elástica em todos os exemplos do
que os guardiões da soberania nacional gostariam. No que respeita à UE a
latitude torna-se mais errática ainda porque existem competências
partilhadas entre a União e o Estado-membro. Como se não bastasse, há
competências em que a União tem o poder de «apoiar, coordenar e
completar» o exercício das mesmas pelos Estados-membros.713
Mas, nalguns casos, a representação nacional, e não federal, nos órgãos
federais, permite aos Estados-membros exercer unilateralmente a sua
soberania, ou, se se quiser, manter-se fiéis à doutrina segundo a qual em
matérias tidas por vitais, ou soberanas, não se vinculam sem o seu
consentimento explícito. No fundo, adquirem um direito de veto sobre as
decisões da União. Na UE os Estados-membros possuem no Conselho
Europeu vetos nacionais em algumas matérias. A política externa comum
e de segurança, a concessão de novos direitos de cidadania, a adesão de
novos países, matérias fiscais e financeiras, administração interna e
política social – são estes os domínios em que um Estado-membro tem
direito de veto. Além da soberania residual exercida no território nacional,
podemos descrever este direito de veto como um transporte de soberania
nacional para a acção de um órgão da União. E não só por ser a tradução
de uma imposição unilateral da vontade soberana. Mas também porque
mantém viva a interpretação da União como exercendo poderes
transferidos, em princípio de modo reversível, através de órgãos
delegados.
Além disso, não se pode contornar a questão política primordial da
execução das leis e dos julgamentos. A soberania não é só direito, não é só
vontade; é força (de execução) também. Numa União política, de quem
vem a força para executar as decisões e para conformar a obediência dos
recalcitrantes? Quem faz o enforcement? Na UE, o poder central não tem
uma polícia, nem uma administração de execução das penas. É o aparelho
policial e administrativo dos Estados-membros que responde a essa
necessidade. Neste aspecto crítico, a dependência da União face aos
recursos dos Estados é total.714
12. A saída
Todas estas considerações ficariam sempre irremediavelmente
completas se não acrescentássemos a derradeira opção soberana. A
transferência de soberania desperta sempre uma questão extensível a
qualquer processo de transferência seja do que for – uma coisa ou uma
pessoa. Se os Estados-membros transferiram direitos de soberania para a
União, podemos por alguma razão inverter o sentido da transferência?
Podemos recuperar soberania? A óptica da soberania partilhada devia ser
favorável a esta veleidade, impondo condições e regras para evitar
arbitrariedades perigosas. Mas já percebemos que a federalização de uma
entidade política comporta imperativos difíceis de contornar, desde logo o
da estabilidade do todo e a previsibilidade do funcionamento do sistema,
necessárias à prossecução dos objectivos desejados por todos. Somos
todos hobbesianos quando concordamos que quem tem direito ao fim, tem
direito aos meios também.
Uns curtos nove anos mediaram a introdução de uma cláusula de
secessão nos tratados europeus e a sua activação pelo Reino Unido, na
sequência do referendo de Junho de 2016. O artigo 50.º, hoje tão glosado
por comentadores de toda a espécie do processo britânico, não admitia um
direito puramente unilateral de secessão. Previa uma saída com o
consentimento dos restantes Estados-membros e uma sequência de
negociações até à consumação da secessão. Além disso, a força dos
tratados, com todas as obrigações e direitos associados, continua em vigor
até ao último dia do processo de saída – com acordo de pós-secessão, ou
sem acordo. Mas convenhamos que no processo político concreto estas
condicionantes não desfazem um direito de saída tão unilateral quanto
pode ser dentro de regras mínimas de boa vizinhança e de cooperação
futura.
Haver uma cláusula de secessão num arranjo federal, ou proto-federal,
não é comum. De resto, era inexistente nos tratados europeus até ao
Tratado de Lisboa de 2007, embora o abortado Tratado Constitucional
tivesse inscrito a inovação.715 A novidade deveu-se provavelmente à
diferente composição da União naquele contexto, com vários membros
recém-admitidos que, depois de quase 50 anos de jugo soviético, tinham
compreensíveis reservas a transferências irreversíveis de autonomia tão
arduamente reconquistada. E também à ainda fresca experiência canadiana
com o referendo secessionista no Québec de 1995, que se saldaria numa
derrota tangencial dos separatistas. Não obstante a derrota, gerou-se uma
intensa discussão política e jurídica em torno dessa delicada questão, até
se chegar a uma decisão do Supremo Tribunal canadiano e à conclusão de
pacotes legislativos federais e provinciais. Em 1998, o supremo tribunal
ditou não só que tinha competência para decidir o que era ou não era
competência da província, o que é relativamente banal nos arranjos
federais. Decidiu sobretudo qual era o quadro legal do admissível e do
inadmissível em que os direitos democráticos do «povo do Québec»
seriam exercidos. Os «direitos democráticos não podem ser divorciados
das obrigações constitucionais», disse o tribunal, por mais alargada que
tivesse sido a maioria numa hipotética vitória referendária. E entre as
obrigações constitucionais constavam as decorrentes do próprio
«federalismo» e dos laços que uniam o Québec às restantes províncias do
Canadá. Uma secessão unilateral violava esses princípios constitucionais
federais. Ao mesmo tempo, reconhecia-se que as províncias tinham um
direito a iniciar processos de mudança constitucional na federação. E se o
povo do Québec se exprimisse democrática e inequivocamente – o que
não fora o caso – pela secessão, o tribunal reconheceria legitimidade
democrática «que todos os outros participantes» teriam de reconhecer. O
princípio democrático, não obstante o sentido absolutamente contrário dos
princípios constitucionais, acabaria por levar a melhor, desde que
houvesse um processo de discussão e negociação com os demais parceiros
de federação. Podia-se assim descrever a saída como uma espécie de
revisão da Constituição, e evitar o ofensivo substantivo secessão.716
Fosse como fosse, o que ficou por dizer aquando da introdução do artigo
50.º no Tratado de Lisboa é que os Estados-membros recuperavam sem
margem para ambiguidades uma dose de soberania decisiva. Uma
recuperação que sobreviveria a todas as transformações e centralizações
da União no futuro, desde que o dito artigo se mantivesse na letra dos
tratados. Porquanto, a partir de 2007 cada Estado-membro poderia não só
regressar a uma condição pré-federada, o que só por si seria ilustrativo,
apesar de o artigo 50.º prever uma saída pactuada e sobre a qual os
restantes Estados-membros têm uma palavra a dizer. Esta recuperação de
uma reserva decisiva de soberania tinha ainda outra manifestação,
porventura menos impressionante, mais subtil, mas não menos
determinante. É que, como de resto se viu nas semanas imediatamente
posteriores à notificação pelo Reino Unido da União ao abrigo do artigo,
os Estados-membros recuperavam a consciência, constitucionalmente
protegida, de que cada dia dentro da União correspondia, não a um inerte
efeito de uma decisão soberana e irrepetível tomada no passado mais ou
menos longínquo, mas, pelo contrário, a uma decisão tácita todos os dias
refrescada. No fundo, Pufendorf enunciara muitos anos antes a verdade
segundo a qual a soberania de um Estado, e a sua liberdade, não era outra
coisa senão o poder de decidir definitivamente assuntos que dissessem
respeito à sua própria conservação; que não se podia conceber um Estado
como soberano e livre quando um outro podia forçá-lo com autoridade a
aceitar decisões estruturantes da sua existência.717 Ora, daqui tem de se
concluir por maioria de razão que a possibilidade de sair de uma União
política torna livre e soberana a acção que um Estado leva a cabo com os
pares e a aceitação de normas e ordens provenientes da União que lhe são
externas. A experiência do Reino Unido desde 2016, e dos restantes
Estados-membros no mesmo período, tem sido um eloquente testemunho
desta intuição. Mais eloquente do que muitos volumes de comentários
alguma vez poderão ser.
De resto, não sem fundamento, o Tribunal Constitucional alemão, no
acórdão que já citei acima, corrigiu aqueles que descrevessem o artigo
50.º como consagrando um «direito de secessão». Afinal de contas, a
secessão só cabia à unidade que se separasse de um Estado federal. Ora a
UE devia ser vista como uma associação de Estados soberanos. E, nessa
medida, a saída de um Estado-membro seria apenas a aplicação do
princípio do «compromisso reversível».718
Nos dias mais confusos da crise financeira da área do euro entre 2010 e
2013 dúvidas sérias se levantaram acerca da viabilidade da economia
grega – e portuguesa – dentro da UEM. Rapidamente se puseram as
possibilidades de uma secessão grega da UEM, alegadamente desejável
para recuperar a «competitividade» perdida com desvalorizações
cambiais, mas sem com isso sair da EU, autêntica reserva de
sobrevivência de países como a Grécia e Portugal enquanto Estados
democráticos e minimamente prósperos. O assunto esteve ao rubro
sobretudo na Primavera de 2012, entre referendos abortados, greves
gerais, quedas de governo, governos tecnocráticos politicamente mortos
antes de iniciarem funções e a confusão generalizada. Depois, a questão
regressaria com a queda no absurdo que foi a estratégia do Governo
SYRIZA nos primeiros seis meses de 2015. Sabemos hoje que o governo
grego eleito em Janeiro de 2015 era composto por altos dirigentes que
tinham a intenção de abandonar a UEM, ainda que, como eles próprios
vieram a perceber, com um misto de choque e de cinismo, nem todos
aqueles companheiros que os tinham promovido politicamente confiavam
no mesmo caminho. Porém, o que mais interessa para a nossa reflexão
reside nas conclusões do debate político e jurídico em torno da
possibilidade da secessão. Era consensual que, do ponto de vista
estritamente jurídico, não existia a possibilidade de expulsar um Estado-
membro da UEM. De resto, nem da UE. Não existia qualquer norma
explícita nos tratados que permitisse abrir um processo dessa natureza.
Além disso, vigorava o princípio da «irreversibilidade» da adesão à UEM,
a que curiosamente todos os Estados-membros da União estão vinculados,
sejam ou não participantes actuais na União Monetária, com a excepção
dos dois Estados-membros que obtiveram privilégios de exclusão.
Ninguém alguma vez estranharia que nos tratados da UE não tivesse sido
prevista qualquer cláusula de expulsão, na medida em que o fundamento
político da criação das comunidades europeias foi, desde o início, a união
cada vez mais estreita entre os povos europeus. A saída ou secessão seria,
e continuará a ser, considerada como um retrocesso civilizacional,
incompatível com a interpretação histórica que a União fazia de si mesma.
A julgar pelo que ouvimos a propósito da Grécia nesses anos, do Reino
Unido desde o referendo do Brexit, ou da Hungria desde a eclosão da crise
dos refugiados, não podemos estar tão seguros que o desejo de expulsão
de um Estado-membro colida tão frontalmente com a consciência europeia
como sucedia no passado. Do ponto de vista político, a possibilidade de
ver recair nos ombros o fardo de responsabilidade histórica de «ter
perdido a Grécia» pesou politicamente mais que qualquer outra norma
jurídica. Até porque o Euro-sistema possuía, e possui cada vez mais,
instrumentos poderosos que não deixam grandes alternativas que não o
abandono ao Estado-membro visado. Os programas de compra de dívida e
de outros activos pelo BCE, a regulação dos fluxos de financiamento dos
bancos a operar em território nacional, as estruturas de assistência de
liquidez de emergência e por aí em diante são, do ponto de vista do puro
exercício do poder, mais do que suficientes para vergar um Estado-
membro ou fazê-lo sair. Mas o que dizer de uma saída voluntária? Haveria
a possibilidade de uma saída voluntária da Grécia da UEM, sem acarretar
uma saída automática da UE? A resposta fora formulada curiosamente nas
vésperas da crise financeira quando ainda ninguém adivinharia o desastre
em que se iria converter para a Europa do Sul. E não sem uma certa ironia,
por um grego. Tornou-se consensual junto do establishment europeu, pelo
menos nos primeiros tempos da crise financeira. Uma saída voluntária da
União Monetária acarretava uma saída da União Europeia também.719
O artigo 50.º desperta mais uma velha questão do debate da soberania.
Quem é o povo da União? Como a história americana mostrou, é dessa
resposta que depende a proclamação de um direito de secessão das
unidades federadas. Quando a resposta não se afirmou hegemonicamente,
o resultado foi uma sangrenta e cruel guerra civil. Quem era o povo
soberano na formação da constituição americana? O povo de cada um dos
estados federados? Ou haveria um povo americano resultante da
consolidação de cada um desses povos que, por esse acto de consolidação,
se teriam anulado politicamente? No primeiro caso, haveria lugar para
admitir um direito de secessão, embora abrindo-se uma discussão de
grande amplitude sobre as possíveis modalidades, e sobre as
circunstâncias restritivas, do exercício desse direito. No segundo caso, não
haveria nunca lugar para o exercício desse direito. Não poderia admitir-se
que um sujeito político desse hipotético direito sequer existisse. Depois,
temos respostas intermédias que podem sustentar ou proibir o direito de
secessão, com todo o tipo de combinações de soberanias duais ou
partilhadas. Mas o assunto foi controverso desde a primeira hora. Patrick
Henry descreveu a expressão We, the people, que inicia o preâmbulo da
Constituição americana, como «that poor little thing» que a seu ver
deveria ser substituída pela efectiva entidade «os Estados da América», os
sujeitos do poder constituinte, e não um vago e provavelmente inexistente
povo americano. Madison na convenção constituinte da sua Virgínia natal
tentou deixar claro que o the people em we the people era o povo das
«treze soberanias». Nada de o confundir com um povo consolidado.720
Na União Europeia, o artigo 50.º, com as consequências práticas que já
vamos conhecendo por experiência inglesa, poderia ser visto como um
corolário que supõe como ponto de partida que o povo europeu não existe.
Existem apenas povos europeus nacionais. Mas não é necessário que seja
assim. Não que a inexistência de um demos europeu, na sua versão
histórico-concreta, ou ficcional-abstracta, seja dubitável. A dificuldade
está noutro ponto. A soberania partilhada sugere que os Estados-membros
a partilham entre eles, mas na verdade, com a excepção de agências como
o MEE que ainda têm uma natureza intergovernamental, os órgãos da
União enquanto tais são autónomos nas suas decisões e os seus actos
produzem efeitos directos e vinculativos sobre os Estados. O jogo político
e jurídico não é travado entre os Estados-membros, mas entre eles e a
União. São estes, e não aqueles, os pólos de soberania. É provavelmente
útil falar em «competências partilhadas» e até num exercício comum de
soberania para determinados actos. Mas a noção de soberania partilhada
fica sujeita a sérias dificuldades para dar conta da realidade europeia.
Deve abrir caminho à mais aproximada soberania dual. Há, de facto, dois
pólos de soberania em jogo: um em construção e absorção, o outro em
afirmação do resíduo identitário intransmissível e da senhoria dos
tratados. É mais interessante porque, nesta leitura, uma das partes não
pode destruir a outra, precisamente porque são ambas soberanas, ou em
vias de o ser, ou com atributos suficientes para garantir essa
indestrutibilidade. De resto, o federalismo já foi descrito como «uma
união indestrutível de estados indestrutíveis».721 Com mais razão se pode
fazer essa leitura do processo de integração europeia: duas entidades
indestrutíveis. Com um imenso, gigantesco, obstáculo teórico: a esta luz, a
secessão não é permissível. Claro que tal obstáculo é mais maciço num
contexto plenamente federalista. A forma exótica da União Europeia
admite outras possibilidades, como nós e o povo do Reino Unido bem
sabemos.
13. A soberania enquanto autonomia
Acima vimos que era importante não confundir soberania com
independência. Essa diferenciação é ainda mais preciosa na tal era da
globalização em que a independência em sentido estrito parece ser
impossível, para não dizer absolutamente indesejável. Para um Estado
como o português, empenhado no processo de integração europeia, a
subtil distinção torna-se ainda mais iluminadora. A soberania é autonomia
porquanto pode abranger na sua amplitude conceitual a faculdade de uma
comunidade política se obrigar ou determinar apenas pela sua própria
vontade, sujeita às regras da razão e do direito que estruturam a própria
ideia de autonomia.722 Com a devida perspectiva histórica, a que outra
cautela recomendava Francisco de Vitoria quando descrevia a comunidade
«perfeita» – perfecta communitas – como a que não é parte de outra
comunidade política, que tem as suas próprias leis, política independente e
os seus próprios magistrados, e que não vê esta «perfeição» enquanto
autonomia ameaçada nem quando o seu «príncipe» é o mesmo de outra
comunidade, nem quando está sujeita ao império?723
A vinculação voluntária a tratados internacionais é um acto de
soberania, embora produza obrigações e restrições à acção do Estado.
Mas, enquanto tal, esse acto soberano não traz por si uma diminuição da
soberania. O cumprimento de compromissos dessa natureza não é só uma
norma de direito internacional. É em si mesmo um acto de soberania. Faz
parte também das possibilidades soberanas reexaminar os compromissos
externos se esse reexame conduzir a conclusões de que o bem geral ou
nacional que parecia ser servido com esses compromissos acabou por
redundar em males vários, ou se houve uma alteração considerável das
circunstâncias que tornavam o tratado ajustado ao interesse nacional (no
fundo, a aplicação da chamada cláusula rebus sic stantibus). Há tratados
que se justificam apesar de não trazerem bens, mas por evitarem males
maiores. Diga-se que o simples resultado da cooperação com outros
Estados ou entidades internacionais para servir um bem internacional de
que a comunidade política em causa também participe é um bem para o
Estado nacional. É um acto de soberania porque esse julgamento e, em
última análise, essa decisão não podem caber a outra entidade que não à
própria comunidade política envolvida.
A vinculação a entidades externas deixa de ser um acto de soberania
quando o efeito dessa vinculação tem um alcance tal que anula a própria
soberania do Estado, desde logo negando as possibilidades soberanas que
acabei de enunciar. Nesse caso, falaríamos de um acto de des-
soberanização, e não de um acto de soberania, que pressupõe um
propósito firme de preservação de si no futuro – de uma preservação de
direito, isto é, da preservação da própria soberania. Esta preservação de
direito tem vários aspectos como, por exemplo, a forma de governo.
Portugal, enquanto Estado soberano, não poderia por tratado
internacional/europeu ver a sua forma de governo, ou o Estado de Direito,
modificados como efeito da ratificação desse tratado. As regras de
compromissos internacionais subordinam-se à ordem constitucional
portuguesa e às suas normas. Mas enquanto entidade des-soberanizada o
que poderia impedir um tal efeito resultante de um compromisso externo?
A resposta jurídica é menos interessante, já que se pode fazer sempre uma
revisão constitucional soberana para tornar o texto constitucional
compatível com compromissos externos des-soberanizantes. É no plano da
teoria política que este problema deve ser analisado, como, de resto,
muitos dos problemas colocados pelo conceito de soberania.
Resta saber se um tratado, como o de Maastricht ou o de Lisboa, para
efeitos de ratificação podia ser considerado como simples tratado
internacional, ou se ia bem além disso. Cabe reponderar se, em termos
processuais, a ratificação pelo Presidente da República, depois da
aprovação pela Assembleia da República, por maioria simples, foi
suficiente, quando as implicações constitucionais e políticas desses
tratados foram tão extensas. Em Agosto de 2005 foi promulgado um
aditamento ao texto constitucional da CRP – o novo artigo 295.º,
prevendo a possibilidade de um referendo de «aprovação» aos tratados
europeus que visem a «construção e aprofundamento da União Europeia»
– uma formulação que indica a não aceitabilidade de um referendo como o
do Brexit ao abrigo deste artigo. Mas até hoje nunca houve um referendo
sobre matérias europeias em Portugal.
568 Barbeyrac, [Grócio], I.3§16, nota 3.
569 Barbeyrac, [Pufendorf], VII.6§1, nota 1.
570 Jürgen Habermas, The Crisis of the European Union. A Response, trad.
inglesa (Cambridge: Polity, 2012), pp. 40-43.
571 Conclusões do Conselho Europeu, 18-19 de Fevereiro de 2016, Secção
C, §1, p. 16.
572 Jean-Claude Juncker, Discurso do Estado da União, 13 de Setembro de
2017, p. 9, in
https://ec.europa.eu/commission/presscorner/detail/pt/SPEECH_17_3165;
Report on the Task Force on Subsidiarity, Proportionality and «Doing Less
More Efficiently» p. 4, in https://ec.europa.eu/commission/sites/beta-
political/files/report-task-force-subsidiarity-proportionality-and-doing-less-
more-efficiently_pt.pdf.
573 Immanuel Kant, Idea for a Universal History with a Cosmopolitan
Purpose, H. S. Reiss, ed. (Cambridge: Cambridge University Press, 1991),
5.ª, 7.ª proposições.
574 Saint-Pierre, Projet pour rendre la paix perpétuelle en Europe (Utrecht:
Antoine Schouten, 1713), Vol. I, p. 123. É preciso prestar muita atenção às
diversas edições do «projecto», pois Saint-Pierre laborou toda uma vida na
sua correcção e aperfeiçoamento. As alterações entre edições, que
apareceram com títulos diferentes, são cruciais para se compreender o
movimento desta ideia. Ao longo desta discussão indico sempre a data da
edição em causa nas referências bibliográficas.
575 Maximilien de Béthune Sully, Collection des mémoires relatifs à
l’histoire de France. Oeconomies royales, 9 Vols. (Paris: Foucault, 1820-
1821).
576 Saint-Pierre, Projet de traité pour rendre la paix perpétuelle entre les
souverains chrétiens (Utrecht: Antoine Schouten, 1717), Epístola
dedicatória, p. v.
577 Projet de traité (1717), Epístola dedicatória, p. iv.
578 Ver Leviathan, Cap. XIII.
579 Rousseau, Confissões, trad. portuguesa (Lisboa: Relógio d’Água,
1988), Vol. II, p. 142.
580 André Robinet, «Les enseignements d’une correspondance au sujet de
la paix: Leibniz – Saint-Pierre (1714-1716)», in Jean Ferrari, Simone
Goyard-Fabre (eds.), L’Année 1796. Sur la paix perpétuelle, de Leibniz aux
Héritiers de Kant (Paris: Librairie J. Vrin, 1998), p. 44.
581 Oeuvres de Leibniz, 7 Vols. (Paris: Firmin Didot, 1859-1875), Vol. IV,
pp. 325-336.
582 Leibniz, carta a Saint-Pierre, 7 de Fevereiro de 1715, Oeuvres, p. 326.
583 Projet de traité (1717), p. 120.
584 Idem, p. 108.
585 Rousseau, Extrait du projet de paix perpétuelle, Oeuvres complètes,
Vol. III, p. 583.
586 Kant, Metafísica dos Costumes, Doutrina do Direito, §56.
587 Kant, A Paz Perpétua, Apêndice, II.
588 Projet (1713), Vol. I, p. 46. Ver Kant, A Paz Perpétua, artigo preliminar
N.º 6.
589 Projet de traité (1717), Epístola Dedicatória, pp. viii-x; Kant, A Paz
Perpétua, artigo preliminar, N.º 5.
590 James Madison, «Universal Peace», The National Gazette, 2 de
Fevereiro de 1792, in James Madison, The Writings of James Madison, ed.
Gaillard Hunt (Nova Iorque: G.P. Putnam’s Sons, 1900), Vol. VI, p. 89.
591 Schmitt, Constitutional Theory, p. 389.
592 Alexis Philonenko, «Kant et le problème de la paix», in Essais sur le
philosophie de la guerre (Paris: J. Vrin, 1976), p. 33.
593 John Rawls, A Lei dos Povos, in A Lei dos Povos e A Ideia de Razão
Pública Revisitada, trad. portuguesa (Lisboa: Edições 70, 2014), pp. 19-21,
26; Rousseau, Du Contract Social, I, proémio.
594 Projet de traité (1717), p. 43. Ver p. 81.
595 Idem, p. 50.
596 Ibidem, p. 18.
597 Kant, A Paz Perpétua, Primeiro Suplemento, §3.
598 Jeremy Bentham, A Plan for an Universal and Perpetual Peace,
Principles of International Law, in Jeremy Bentham, The Works of Jeremy
Bentham, John Bowring, ed., 11 Vols. (Edimburgo: William Tait, 1838-
1843), Vol. II, p. 547.
599 Projet (1713), Prefácio, pp. xix-xx.
600 Idem, pp. 431-438.
601 Kant, Idea for a Universal History, 7.ª proposição.
602 Kant, Metafísica dos Costumes, Doutrina do Direito, §§54, 59; A Paz
Perpétua, 2º artigo definitivo.
603 Metafísica dos Costumes, Doutrina do Direito, §61.
604 Idem, Conclusão.
605 A Paz Perpétua, p. 127, nota 3.
606 A Paz Perpétua, Artigo definitivo N.º 2.
607 Idem, Artigo definitivo N.º 3.
608 Frédéric Laupies, Leçon sur le Projet de paix perpétuelle de Kant
(Paris: Presses Universitaires de France, 2002), p. 104.
609 Rousseau, L’état de guerre, Oeuvres complètes, Vol. III, pp. 607-608,
610.
610 Du Contract Social, I.6.
611 Du Contract Social (1e version), I.2; Discours sur l’inégalité, Oeuvres
complètes, Vol. III, p. 178.
612 L’état de guerre, pp. 604-605.
613 Du Contract Social, I.7.
614 Idem, (1e version), I.3.
615 Émile, Oeuvres complètes, V, Vol. IV, p. 848.
616 Du Contract Social, II.4.
617 Kant, A Paz Perpétua, artigo definitivo Nº 1.
618 Extrait, pp. 583-584, 574.
619 Idem, p. 573.
620 Aristóteles, Política, 1298a9-10, 1317b13-16.
621 Rousseau, Extrait, pp. 585, 588; Jugement sur le projet de paix
perpétuelle, p. 591.
622 Jugement sur le projet de paix perpétuelle, pp. 592-593.
623 Kant, A Paz Perpétua, pp. 128-130.
624 Madison, «Universal Peace», p. 91.
625 Projet de traité (1717), Prefácio à 2.ª parte, pp. xviii-xix.
626 Abrégé du projet de paix perpétuelle (Rotterdam: J.-D. Beman, 1729),
p. 40.
627 Projet (1713), Vol. II, p. 80.
628 Idem, Vol. I, p. 327-328. Os itálicos são meus.
629 Kant, A Paz Perpétua, artigo definitivo N.º 2.
630 Idem, Apêndice, I.
631 Carta das Nações Unidas, art.º. 2, N.º 1, 7.
632 Tomás de Aquino, Summa Theologiae, II-II, q. 40, art.º 1 e ad. 1.
633 «Baker Urges EC To Take Lead in Sanctions Against Serbia»,
Associated Press, 24 de Maio de 1992,
https://apnews.com/article/d9cd92a423ba62b4f9eb6f04d40d08b4.
634 Grócio, II.20§40-44; Pärtel Piirimäe, «The Westphalian myth and the
idea of external sovereignty», Hent Kalmo, Quentin Skinner (eds.),
Sovereignty in Fragments. The Past, Present and Future of a Contested
Concept (Cambridge: Cambridge University Press, 2010), pp. 67-73.
635 Pierre Manent, «Current Problems of European Democracy», Modern
Age, 2003, p. 10.
636 Anacharsis Cloots, La République Universelle ou Adresse aux
Tyrannicides (Paris: Marchands de Nouveautés, 1792); Bases
constitutionnelles de la République du genre humain (1793), in Marc Allan
Goldstein (ed.), Social and Political Thought of the French Revolution
1788-1797. An Anthology of Original Texts (Oxford: Peter Lang, 2001).
637 Martha C. Nussbaum, «Patriotism and Cosmopolitanism», in Joshua
Cohen (ed.), For Love of Country? (Boston: Beacon Press, 1996), pp. 7-12.
638 Nussbaum, p. 14.
639 Pascal, Pensées, #294 (Brunschvicg).
640 Daron Acemoglu, James A. Robinson, Why Nations Fail. The Origins
of Power, Prosperity, and Poverty (Nova Iorque: Crown Publishers, 2012),
Cap. I.
641 Alex Tabarrok, «The Case for Getting Rid of Borders — Completely»,
The Atlantic, 10 de Outubro de 2015.
http://www.theatlantic.com/business/archive/2015/10/get-rid-borders-
completely/409501/?
utm_content=bufferdad10&utm_medium=social&utm_source=twitter.com
&utm_campaign=buffer.
642 Aristóteles, Política, 1253a30.
643 Tito Lívio, [Ab urbe condita], I.vii.1-3; Plutarco, Rómulo, X-XI.
644 Plutarco, Numa, XVI.
645 Kant, A Paz Perpétua, Artigo definitivo N.º 3.
646 Henri Bergson, Les Deux Sources de la Morale et de la Religion (Paris:
Félix Alcan, 1937), 19.ª edição, pp. 25-28.
647 Sieyès, Qu’est-ce que le Tiers-État?, p. 163.
648 Bruno Maçães, The Dawn of Eurasia: On the Trail of the New World
Order (Londres: Penguin Books, 2018), pp. 49, 39.
649 Konrad Adenauer, «The End of Nationalism», in World Indivisible with
Liberty and Justice for All, trad. inglesa (Nova Iorque: Harper and Brothers,
1955), pp. 5-10.
650 Thatcher citada em Ashoka Mody, Eurotragedy. A Drama in Nine Acts
(Oxford: Oxford University Press, 2018), p. 73.
651 III.4.
652 Ludwig von Mises, Liberalism in the Classical Tradition (San
Francisco: Cobden Press, 1985 [1927]), pp. 149-151.
653 Friedrich Hayek, «The Economic Conditions of Inter-state
Federalism», in Friedrich Hayek, Individualism and Economic Order
(Chicago: The University of Chicago Press, 1948), pp. 255-272.
654 Grimm, Sovereingty, p. 117.
655 Holland, The Moral Person of the State, p. 98; Pufendorf, VII.5§3, §17.
656 Pierre Manent, La raison des nations. Réflexions sur la démocratie en
Europe (Paris: Gallimard, 2006), Cap. II.
657 Tocqueville, Da Democracia na América, I.8.
658 Bernard Bailyn, To Begin the World Anew. The Genius and Ambiguities
of the American Founders (Nova Iorque: Vintage, 2003), p. 162.
659 The Federalist Papers, 39.
660 James Madison, Report on the Resolutions [1800], in The Writings of
James Madison, ed. Gaillard Hunt (Nova Iorque: G.P. Putnam’s Sons,
1900), Vol. VI, p. 213.
661 Articles of Confederation and Perpetual Union [1778], art.º 2.
662 James Madison, Report on the Resolutions [1800], in The Writings of
James Madison, ed. Gaillard Hunt (Nova Iorque: G.P. Putnam’s Sons,
1900), Vol. VI, pp. 187-190.
663 H. Jefferson Powell, «The Principles of ’98: an essay in historical
retrieval», Viriginia Law Review, Vol. 80, N.º 3 (1994), pp. 719-720.
664 Christian G. Fritz, American Sovereigns. The People and America
Constitutional Tradition before the Civil War (Cambridge: Cambridge
University Press, 2008), pp. 193-194.
665 Virginia Resolutions of 1798 Pronouncing the Alien and Sedition Laws
to be Unconstitutional, and Defining the Rights of the States, §4; Madison,
Report on the Resolutions, in The Writings of James Madison, ed. Gaillard
Hunt (Nova Iorque: G.P. Putnam’s Sons, 1900), Vol. VI, pp. 189, 190.
666 Address of the General Assembly to the People of the Commonwealth
of Virginia, in The Writings of James Madison, Vol. VI, p. 182.
667 Printz v. United States, 521 U.S. 898 (1997), pp. 918, 923-924, nota 13.
668 Madison, Report on the Resolutions, p. 191.
669 John Adams, Autobiography, in The Works of John Adams, Second
President of the United States: with a Life of the Author, Notes and
Illustrations, by his Grandson Charles Francis Adams (Boston: Little,
Brown and Co., 1856), Vol. III, p. 16.
670 Declaração da Independência dos treze Estados Unidos da América,
parágrafo N.º 2.
671 Richard Henry Lee, Letters from the Federal Farmer, in Forrest
McDonald (ed.), Empire and Nation: Letters from a Farmer in
Pennsylvania (John Dickinson). Letters from the Federal Farmer (Richard
Henry Lee) (Indianápolis: Liberty Fund, 1999), carta VI, p. 100.
672 Richard Henry Lee, carta XVII, p. 116.
673 Idem, carta I, p. 70.
674 [James Madison], The Federalist Papers #20.
675 Adams, A Defence of the Constitutions of Government of the United
States, in The Works of John Adams, Vols. 4, 5, 6.
676 John C. Calhoun, «Exposition and Protest» (19 de Dezembro de 1828),
in John C. Calhoun, Union and Liberty. The Political Philosophy of John C.
Calhoun, Ross M. Lence, ed. (Indianápolis: Liberty Fund, 1992), p. 348.
677 Daniel Webster, Discurso de 20 de Janeiro de 1830, in Daniel Webster,
Robert Y. Hayne, The Webster-Hayne debate on the nature of the Union:
selected documents, Herman Belz, ed. (Indianápolis: Liberty Fund, 2000),
p. 24; Discurso de 26 de Janeiro de 1830, pp. 124-126, 135-141.
678 McCulloch vs. Maryland, 17 U.S. 316 (1819), p. 405.
679 Discurso na sessão plenária do Parlamento Europeu, 28 de Setembro de
2011, em https://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?
pubRef=-//EP//TEXT+CRE+20110928+ITEM-
003+DOC+XML+V0//EN&language=EN.
680 Tratado da União Europeia (versão consolidada), Título II, art.º 10, N.º
4.
681 Com um novo n.º 4 do art.º 8.º da Constituição.
682 Art.º VI, N.º 2.
683 Van Gend en Loos v. Nederlandse Administratie der
Belastingen, processo 26/62 (ECLI:EU:C:1963:1).
684 The Federalist Papers, 81.
685 Costa v. ENEL, processo 6/64 (ECLI:EU:C:1964:66); Karen J. Alter,
«Who are the ‘Masters of the Treaty’?: European Governments and the
European Court of Justice», International Organization, Vol. 52, N.º 1,
1998, p. 122.
686 «Brutus», V, NY. Journal, 13 de Dezembro de 1789 citado em Powell,
«The Principles of ’98», pp. 698-699.
687 Robert Jackson, Sovereignty. Evolution of an Idea (Cambridge: Polity
Press, 2007), pp. 6-12.
688 Tratado de Roma, preâmbulo; art.º 2.º.
689 Tratado da União Europeia, Arts.º 352.º, 276.º; Alter, «Who are the
‘Masters of the Treaty’?», pp. 124-127.
690 Internationale Handelsgesellschaft mbH v. Einfuhr- und Vorratsstelle
für Getreide und Futtermittel, processo 11/70 (ECLI:EU:C:1970:114).
691 Jeremy A. Rabkin, Law Without Nations. Why Constitutional
Government Requires Sovereign States (Princeton: Princeton University
Press, 2005), p. 133.
692 Constituição dos EUA, art.º 4, Sec. 4.
693 Do Espírito das Leis, IX.2.
694 Stelio Mangiameli, «The Union’s Homogeneity and its Common
Values in the Treaty on European Union», in Hermann-Josef Blanke, Stelio
Mangiameli (eds.), The European Union after Lisbon. Constitutional Basis,
Economic Order and External Action (Heidelberg: Springer-Verlag, 2012),
pp. 21-44.
695 Rousseau, Extrait, pp. 565-567, 573.
696 Extrait, pp. 573-574.
697 Mill, p. 553.
698 TUE, art.º 4.º, N.º 2.
699 The Federalist Papers, 48.
700 Neil Walker, «The Idea of Constitutional Pluralism», The Modern Law
Review, Vol. 65, N.º 3, 2002, p. 346, nota 107.
701 Miguel Poiares Maduro, «Contrapunctual Law: Europe’s Constitutional
Pluralism in Action», in Neil Walker (ed.), Sovereignty in Transition, p.
504; Carré de Malberg, Théorie Générale de l’État, Vol. II, p. 137.
702 BVerfG, 30 de Junho de 2009, 2 BvE 2/08, §§1, 4, 229.
703 2 BvE 2/08, §§225-226, 231.
704 Dieter Grimm, Constitutionalism. Past, Present, and Future (Oxford:
Oxford University Press, 2016), p. 292; Sovereignty, pp. 90-91.
705 2 BvE 2/08, §240.
706 BvR 2134/92, 2 BvR 2159/92 (Maastricht), Headnotes, §§3-6, 8-9;
BVerfG, 5 de Maio de 2020, 2 BvR 859/15 (BCE), Headnotes, §§1, 3-5, 6a;
Steve J. Boom, «The European Union after the Maastricht Decision: Will
Germany Be the ‘Virginia of Europe?’», The American Journal of
Comparative Law, Vol. 43, N.º 2, 1995, pp. 177-226; Karl M. Meessen,
«Hedging European Integration: The Maastricht Judgment of the Federal
Constitutional Court of Germany», Fordham International Law Journal,
Vol. 17, N.º 3, 1993, pp. 511-530.
A Dinamarca tem jurisprudência que navega no mesmo sentido. Grimm,
Constitutionalism, p. 277.
707 Holmes citado em Edouard Lambert, p. 124.
708 Grimm, p. 65.
709 Louis Le Fur, État Fédéral et Confédération d’États (Paris: Marchal et
Billard, 1896), pp. 415, 490; Carré de Malberg, Théorie Générale de l’État,
Vol. I, pp. 125-129.
710 Grimm, pp. 274-275.
711 BVerfG, 30 de Junho de 2009, 2 BvE 2/08, §248.
712 Carré de Malberg, Vol. I, p. 138.
713 Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, art.º 2.º, N,º 2, 5.
714 TUE, art.º 299.
715 Tratado que estabelece uma Constituição para a Europa, art.º I-60.
716 Supremo Tribunal do Canadá, Reference re Secession of Quebec,
[1998] 2 S.C.R. 217-297.
717 Pufendorf, VII.5§20.
718 2 BvE 2/08, §233.
719 Phoebus Athanassiou, «Withdrawal and expulsion from the EU and
EMU: Some reflections», European Central Bank, 2009 em
https://www.ecb.europa.eu/pub/pdf/scplps/ecblwp10.pdf.
720 Patrick Henry citado em Kilberg, «We the People, p. 1094; Madison
citado no mesmo lugar, p. 1095.
721 Salmon Chase, Chief Justice do Supremo Tribunal nomeado por
Lincoln, citado em Lambert, p. 10.
722 Le Fur, p. 443.
723 De Indis, sive de jure belli hispaniorum in barbaros, relectio posterior
[1539], Ernest Nys, ed. (Washington: Carnegie Institution of Washington,
1917), pp. 165-167
NOTAS FINAIS
A noção de soberania tem uma história. Tem também uma pré-história.
Conhecer uma e outra é indispensável para perceber os contornos não
fixos da ideia de soberania, os problemas que o conceito de soberania
pretendeu resolver com o seu aparecimento, e ainda aqueles que este criou
com a sua consolidação. Em grande medida, dada a centralidade da noção
de soberania na vida política moderna, essa gama de problemas abrange
uma boa parte dos problemas políticos da nossa contemporaneidade. Por
outro lado, as ameaças com que a ideia de soberania quis lidar apareceram
nos nossos tempos com roupagens actualizadas à época, mas nem todas
essencialmente diferentes das que os teóricos que aqui visitámos
confrontaram. Além disso, algumas das ameaças que lhes seriam
irreconhecíveis resultam dos processos históricos postos em marcha pelo
reconhecimento da soberania como fundamento da política moderna. Não
podemos reificar a soberania. Respeitemos o mandamento dos nossos
tempos críticos ou pós-dogmáticos. Não podemos fazer da soberania uma
coisa, certamente. Mas sublinhar os traços permanentes em torno dos
quais se sucederam, quer nas interpretações dos teóricos, quer nas
imposições da História, múltiplas variantes e discussões respeita todos os
limites, sobretudo se deixarmos sobressair na análise, dois aspectos
fundamentais da soberania enquanto fenómeno: a aparição e o
reconhecimento. Vale isto por dizer que, na análise da noção de soberania,
adquirem prioridade os modos de aparição do poder soberano e os modos
de reconhecimento dessa aparição – tanto do ponto de vista dos seus
destinatários, como do ponto de vista dos seus «sujeitos». O
reconhecimento da soberania permite-nos analisar, desde o primeiro
instante, as pretensões de instância absoluta e indivisível com olhos de
relativização, e religá-la à noção de autoridade e de legitimidade.724
Hoje, muitos de nós tornámo-nos intolerantes, já não digo à centralidade
da soberania, mas à sua simples existência. Ela faz-nos lembrar
acontecimentos e pensamentos que nos envergonham, ou que nos
assustam. As terapias dos nossos recalcamentos e traumas impuseram-nos
o hábito de associá-la a um peso violento e estéril. Vivemos o tempo da
recusa dos universais. Vivemos o momento da emancipação completa do
indivíduo. Vivemos o instante da destruição dos laços que unem cada um
de nós à sua circunstância, ou na criação de um vácuo – mas de um vácuo
bem protegido e higienizado –, no seio do qual possamos flutuar sem
atritos. Esticamos a mão mais longe para agarrar essa promessa de
emancipação, essa promessa de liberdade, que nunca mais chega. A
soberania é, no plano constitucional, um dos atritos, um dos pesos-mortos,
uma das nuvens negras, que ainda nos amarra ao mundo arcaico e violento
do passado. No mundo do futuro, dizem-nos, não há lugar para a
soberania porque nele tudo será fluído, eficiente, inimaginável. A
soberania significa ainda a ancoragem, ainda o sacrifício de bens por
outros, ainda o trabalho da imaginação pedestre para tomar a decisão.
A escolha soberana de um «projecto» nacional, que mais não tem de ser
do que um caminho particular feito de opções particulares, é limitadora
das escolhas disponíveis a uma comunidade. Isso é inteiramente
verdadeiro porque há escolhas que são incompatíveis com esse projecto
nacional. Ora, se há um «projecto» nacional mobilizador, então, ao
escolhê-lo, limita-se no mesmo passo a soberania para o futuro. Desta
contradição nenhum soberanista pode fugir: escolha soberana
paradigmática implica redução das escolhas soberanas no futuro. Nesse
sentido, o momento soberano é o momento do apagamento da soberania.
Na verdade, a faculdade de que a soberania goza para revogar as suas
próprias escolhas torna as opções passadas muito menos rígidas do que o
enunciado desta contradição pode fazer querer. Não é só a teoria da
soberania que nos diz. É a história dos Estados e das nações que mais
eloquentemente o confirma. Porém, a questão teórica condiciona o debate
num contexto do pós-soberanismo e de renúncia à particularidade. Fora da
particularidade reina a indeterminação própria da universalidade. Uma
indeterminação tornada mais evidente pela procura do mínimo
denominador comum da experiência humana como ponto de encontro para
todos. Essa indeterminação aparece amiúde confundida com liberdade.
Nessa medida, a saída da indeterminação para a assunção da
particularidade é identificada com uma perda de liberdade. A colocação
teórica do problema nestes termos torna a escolha soberana da
particularidade como menos aberta à universalidade do que aquilo que ela
é, ou pelo menos do que aquilo do que deve e pode ser. Torna-a mais
fechada do que aquilo que ela é. Daí que a colocação teórica do problema
deva ser exposta à teoria da soberania para que não se acuse um falso réu.
Ao fim de tantas considerações, acedemos a uma clareza que nos
permite perceber o que na introdução assinalei – que no discurso público
mais solene dos nossos tempos a aspiração soberana é também a aspiração
pelo controlo. A soberania aparece como controlo, ou como procura de
controlo, porque pretende ser um princípio de ordem da comunidade
política que emana dela mesma, que tem a sua origem nela mesma. Daí o
conceito de soberania ter deslizado tão rapidamente para assumir o sentido
da soberania popular, que era o seu corolário lógico. Isto é, era uma
predicação acrescida que já estava, porém, contida no próprio conceito.
Ora, a soberania popular continha precisamente essa promessa: a da
tomada de controlo, ou de domínio, da comunidade política sobre si
mesma e por si mesma, sem precisar de nenhum princípio de ordem
externo a si mesma, fosse sob a forma de uma pessoa humana, fosse sob a
forma de uma pessoa divina. Sem Deus, nem heróis, nem conquistadores,
o povo da comunidade política governa-se a si mesmo. Pela soberania
popular, a comunidade política domina-se a si mesma, organiza-se por si
mesma e ordena-se para si mesma. Na famosa sentença do discurso de
Gettysburg proferido por Abraham Lincoln em 1863, depois de uma
terrível e sangrenta batalha, o regime da igualdade e da liberdade é
descrito como «o governo do povo, pelo povo e para o povo», a mais
magnífica síntese da soberania popular. Com efeito, a formulação sugere
um círculo perfeito em que o povo é governante, governado e finalidade
dessa relação política. É tudo numa comunidade política em plena auto-
suficiência. O controlo da comunidade política sobre si mesma era a
realização da igualdade e da liberdade. Era certamente a condição
necessária da igualdade e da liberdade. Claro que nessa auto-suficiência a
comunidade política perdia, ou prescindia de, princípios externos de
limitação. Sendo auto-suficiente, agindo sobre si mesma, parecia
pleonástico enxertar limites na acção da comunidade política sobre si
mesma. Não haveria limites à liberdade. Mas era precisamente aí que se
escondia uma das armadilhas da soberania popular. E ainda mais
camuflada pela natureza específica da relação estabelecida entre o povo
governante e o povo governado – a relação de representação. Era na
representação, e pela representação, que se cristalizava e solenizava o
regramento maior e a garantia da liberdade. A solução que a representação
providenciava trazia consigo sub-repticiamente a possibilidade da sua
própria traição, por outras palavras, a possibilidade sempiterna em política
da usurpação. Uma porta se abria para que alguém – uma pessoa, um
grupo, um partido, uma etnia, ou simplesmente uma parte que intimidasse
a outra – se reclamasse representante autêntico do povo, porventura mais
autêntico do que qualquer outro representante que o povo poderia na sua
liberdade constituir. No momento da usurpação, os riscos inerentes à tão
porfiada auto-suficiência cumprir-se-iam com uma violência devastadora.
O controlo prometido, o controlo cumprido, convertia-se na corrupção
descontrolada, ou, na pior das hipóteses, no terror descontrolado.
Prometendo controlo e auto-suficiência, a teoria da soberania transmitiu
a confiança ao ser humano para que ele se arvorasse em único autor da
ordem política. Não se trata de ser um autor indirecto através da realização
ou actualização da sua natureza. Trata-se de ser um fautor, um produtor,
da ordem, pelo simples exercício da sua liberdade – de uma liberdade que
é sua e que ele exerce segundo paixões e razão que são suas. Não poderia
faltar, no meio dessa tomada triunfal de confiança, o pensamento de que,
de tão soberano que o indivíduo podia ser, sentia-se autorizado então a
dispensar uma ordem política organizada por alguém, ou algo, que fosse
soberano sobre si. O indivíduo soberano podia dispensar a soberania.
Seria ainda uma outra manifestação da emancipação humana face a tutelas
e menoridades auto-infligidas. O indivíduo soberano em breve aprenderia
que a negação da soberania política não conduziria à harmonia espontânea
de indivíduos que se fundem num magma igualitário e neutralizador da
hierarquia, exercendo pacificamente a sua liberdade de consumação dos
desejos que estruturam infinitas concepções de felicidade. A negação da
soberania é a descida, por múltiplas vias mais ou menos graduais, ao
tribalismo.
Porquanto a última investida da noção de soberania chegaria de facto ao
sujeito que ela convertera em cidadão, ou que lhe dera uma nova forma de
existência pela sua acção ordenadora. Agora, o indivíduo, o homem nu,
podia ser tido como soberano e revindicar os seus respectivos direitos.
Não só titular de direitos que a soberania em tempos foi justificada com a
função de os proteger, como os direitos «naturais» ou «humanos». O
indivíduo soberano seria um ente verdadeiramente autónomo, vivendo
sem lei que não aquela que daria a si mesmo. Sem lei, em que cada um
seria a sua própria lei – ou, no dizer de Aristóteles que acima recordei, um
deus ou uma besta. E por entre as brumas da expectativa revolucionária
espreita este novo mandamento da vida sem lei numa «comunidade»
daqueles que são leis para eles mesmos, sem obediência, nem poder, todos
deles «exemplares ou exilados» – e ainda chamam a isto comunidade.725
Cortando os laços com todas as fontes que pudessem reivindicar a sua
lealdade ou o seu amor, para nada dizer da sua obediência, o sujeito
soberano, na sua infinita presunção, julgava que tinha um mundo inteiro
ao seu dispor. Construindo-se, reconstruindo-se, desconstruindo-se e
destruindo-se incessantemente, o indivíduo soberano perceberia afinal que
a anulação de todos os amores históricos que o tinham amarrado a formas
de existência «oprimidas» e «opressoras» não conduziam à emancipação,
mas pelo contrário anunciavam novas formas de opressão e de
desumanização. Da recusa dos amores que o tinham empurrado em tantas
direcções e para tantos horizontes de vida, recusava-se por fim o amor de
si mesmo. Pois era no amor e pelo amor que tudo se decidia. A ordem
política também.
724 Denis Baranger, «The Apparition of Sovereignty», in Sovereignty in
Fragments, p. 49; Raia Prokhovnik, «Hobbes, Sovereignty, and Politics:
Rethinking International Political Space», in Raia Prokhovnik, Gabriella
Slomp (eds.), International Political Theory after Hobbes. Analysis,
Interpretation and Orientation (Londres: Palgrave, 2010), pp. 203-204.
725 Steven DeCaroli, «Boundary Stones: Giorgio Agamben and the Field
of Sovereignty», in Matthew Calarco, Steven DeCaroli (eds.), Giorgio
Agamben: Sovereignty and Life (Stanford: Stanford University Press, 2007),
p. 69. 

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