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Quasar em

n9ve
perspectivas

Organizadores:
Rafael Guarato
Hugo Oliveira Dias
Organizadores:
Rafael Guarato
Hugo Oliveira Dias

Quasar
em
n9ve
perspectivas

REALIZAÇÃO:

Este projeto foi contemplado pelo edital de Dança Aldir Blanc - Concurso
nº 08/2021 SECULT-Goiás - Secretaria de Cultura - Governo Federal
ANDA Editora
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Direitos desta edição reservados à ANDA Editora

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Quasar em n9ve perspectivas [livro eletrônico]


/ organizadores Rafael Guarato, Hugo Oliveira
Dias. -- Salvador, BA : ANDA - Associação Nacional
de Pesquisadores em Dança, 2022. PDF

Vários autores.
Quasar
ISBN 978-65-87431-26-0

1. Artigos - Coletâneas 2. Dança - Pesquisa 3.


Quasar Cia de Dança I. Guarato, Rafael. II. Dias,
Hugo Oliveira.

22-133543 CDD-792.8
n9ve
Índices para catálogo sistemático:

1. Dança : Artes 792.8

Perspectivas
Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380

Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com
Organizadores
a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade
de seus organizadores. Foi realizadoRafael
o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de
Guarato
acordo com as Leis nºHugo
10.994, de 14/12/2004,
Oliveira Dias e 12.192, de 14/01/2010.

ANDA Editora
Av. Milton Santos, S/N
Ondina - Salvador, Bahia
CEP 40170-110
A dança-Dança porque
Arte: o fim da linha
pra Quasar?
Michael Silva
Sempre evitei falar de mim,
falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?
(João Cabral de Melo Neto, 1997, p. 245)

Não evitarei

Em primeiro lugar, direi de qual lugar iniciei a olhar a Quasar e em que


pé estou agora, um homem de 32 anos. Nasci em Araguaína, Tocantins,
no ano de 1990. Mãe goiana, trabalhadora em serviços gerais, e pai “to-
cantinense” professor (entre aspas porque ele nasceu antes da divisão dos
estados). Comecei a dançar aproximadamente aos treze anos de idade em
blocos carnavalescos da minha cidade natal (imagem 26). Portanto, tar-
diamente para os padrões correntes da dança profissionalizada. Os blocos
eram financeiramente apoiados pelo município e era época do estouro da
axé music no Brasil. Em seguida, passei pelo Grupo Comando Break de dan-
ças urbanas, que chegou a ganhar um prêmio do extinto Festival SESI/TO
de Dança. Ao mesmo tempo, coreografei, de forma amadora, para outro

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grupo local nessa mesma estética de dança, Nativa. Ele era um grupamento
especialmente motivado pela existência do tão breve desfeito Festival Aber-
to de Dança de Araguaína - FADA, que não passou de sua primeira edição.
Evento no qual pudemos mostrar um trabalho e concorrer a um prêmio
modestíssimo em dinheiro, cujo valor, de tão irrisório, nem lembro. Outros
locais de apresentação, nesse meu primeiro momento com a dança, eram as
praças públicas que, nos primeiros anos de 2000, realizavam apresentações
artísticas para a população que conseguia frequentar o centro da cidade aos
finais de semana como forma de lazer.
Essa tímida movimentação cultural era, em alguma medida, esti-
mulante para nós que começávamos a enveredar pelos ajuntamentos ar-
tísticos e ansiávamos por plateia. Esses grupos, no entanto, comprovando
a realidade da dança em nosso país, se desfizeram muito prematuramente
devido a nossa tão velha falta de políticas públicas contínuas e em função
da precarização e dificuldade de profissionalização de seus agentes no con-
texto interiorano. Os blocos carnavalescos locais que usufruíram, por um
bom tempo, da nossa disposição para dançar à noite toda, durante três dias
consecutivos nos meses de fevereiro, não nos pagavam cachê. Tínhamos
apenas acesso à água, ao transporte de volta para casa (já lá pelas 5 horas da
manhã) e a avidez por divertimento típica da juventude.
Motivado pelas falas do professor e coreógrafo Zeca de Oliveira, do
grupo Comando Break, que já havia participado de eventos competitivos
em dança como o Festival de Joinville, comecei a pesquisar a existência da
Quasar. Companhia que, para ele, possuía excelência em produção de dan-
ça. A partir daí, iniciei a pesquisar vídeos dela, textos, sites e a acompanhar
sua trajetória e agenda. Curiosidade e admiração que me impulsionaram à
inscrição em um curso intensivo de dança contemporânea em São Paulo.
Uma via possível para vê-la presencialmente e “matar dois coelhos numa
cajadada só” frente a minha sensação de déficit formativo em função de
morar em uma cidade pequena do país. Eu estava então de férias do meu
primeiro emprego, em uma faculdade privada de Araguaína. Na tal insti-
tuição, eu exercia a função de auxiliar de biblioteca por meio do famigerado
programa de exploração do trabalho pubescente e mal remunerado nome-
ado Jovem Aprendiz (por nós chamado de Jovem Infeliz à época), enquanto
cursava o meu estimado curso de Letras. A cidade de São Paulo sediava, na

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oportunidade da minha visita, em 2009, a Mostra SESI de Dança Contem-


porânea no mês de julho. Evento que eu, sinceramente, espero que ainda
exista, embora desconfie que não! Nessa ocasião, a Quasar se apresentou
com o primeiro trabalho dela que assisti ao vivo, o “Céu na Boca” (2009).
O meu desempenho nas aulas de dança contemporânea, da pro-
fessora e coreógrafa Andrea Pivatto, me rendeu o convite para fazer aulas
de balé clássico na Cia. das Artes, ainda durante esse meu período de fé-
rias gozado com passagens compradas em algumas boas prestações. O balé
era uma modalidade de dança que eu não havia experimentado no corpo
até então. Não tinha porque as únicas aulas que chegaram a ser ofertadas
dessa dança, em minha cidade de origem, aconteceram por um breve pe-
ríodo de tempo em uma academia fitness e financeiramente inacessível a
mim chamada, se não me falha a memória, Atlas. Um fato de que lembro
com alguma nitidez sobre esse período é o de ter pesquisado valores, me
dando conta de que aquela dança “não era para mim”: garoto inserido em
uma realidade bastante machista e, mais ainda, um moleque pobre que não
conseguia pagar por esse tipo de aula. Conheci essa dança, então, mais por
meio de vídeos que via em lan houses - cuja hora eu conseguia comprar. Foi
aí, por sua vez, que comecei a perceber a importância que é dada a ela no
circuito oficial de dança.
Mais tarde, em 2010, em decorrência dessa compreensão acerca
dos filtros sociais que a dança em circuito oficial reforça, fiz aulas intensivas
de balé nas férias do ano seguinte com a cubana Leidy Escobar, residente
em Goiânia. Nesse mesmo ínterim, visitei alguns ensaios da Quasar, moti-
vado pela admiração que nutria pela companhia. A sensação predominan-
te, nesse período, era a de que a dança profissional podia ser um horizonte
possível para mim: um garoto-pobre-interiorano-gay. Muito gay, gay até
demais para alguns padrões de aceitabilidade social.
Em 2011 e 2012, iniciei as aulas de balé, jazz e dança contemporânea
com o professor Dennis Rodrigues, ainda em Tocantins, participei da Com-
panhia de Dança de Colinas/TO, do Festival de Dança de Joinville e da Compa-
nhia de Dança de Araguaína, a qual teve um curtíssimo tempo de vida, aliás.
Alguma surpresa até aqui? Em 2012, a convite da prefeitura, ministrei aulas
de balé clássico iniciante para crianças e adolescentes da cidade de Araguaína

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enquanto mantive o papel de bailarino da companhia municipal. Experiência


particularmente marcante porque os alunos eram jovens carentes da comu-
nidade local e tinha também uma turma composta por pessoas com neces-
sidades especiais provenientes da APAE regional. Direi algo agora que não
é novidade para quem é do ramo: atuei como professor mais em função da
minha carência econômica de então e da minha disposição para a dança, do
que por profundos predicativos profissionais os quais eu, francamente, não
tinha. A realidade era esta: ou eu topava dar as aulas ou a comunidade local
não as teria. Isso pela inexistência de mão-de-obra qualificada para o ofício
naquela cidade do interior. Além disso, uma das condições sine qua non para
a manutenção da Companhia de Dança de Araguaína e de suas aulas com o
acima mencionado professor, que se deslocava cerca de 100 quilômetros de
distância duas vezes na semana para nos atender, era a de que ao menos um
de seus bailarinos atendesse à comunidade local, mesmo sem sólida forma-
ção para isso. Foi a “carta na manga” utilizada pela até então secretária de
cultura para viabilizar dois projetos em dança com parco subsídio da prefei-
tura. O professor indicou a mim, que já tinha entrado em contato com aulas
formais, mesmo que poucas, e apresentava um desempenho acima da média.
Assim feito, as vagas públicas foram ofertadas e amplamente divulgadas em
rádios e mídias locais e atreladas, é claro, ao nome do então gestor. Pimba!
Tarefa (eleitoral) cumprida.
No final de 2012, ano de minha formação em Letras e mudança
para Goiânia (com a cara, a coragem e exatos 700 reais no bolso), fiz aulas
na Quasar Jovem Cia. de Dança e experimentei no meu corpo, entre ou-
tros trabalhos, partes do repertório da companhia titular (imagem 27). Em
2013, a convite da diretora e bailarina Martha Cano, fui chamado a integrar
a companhia secundária para ocupar a vacância deixada pela bailarina Flo-
ra Maria, que havia entrado para o elenco principal. Durante todo esse ano,
integrei a ala jovem e realizei algumas apresentações na capital e em cidades
do interior de Goiás (imagem 28). No final de 2013, no entanto, encerrei
minhas atividades dela como bailarino devido a minha reprovação na nova
audição do grupo, sob a justificativa de que eu não era goiano. Uma política
da companhia jovem. É, de nascimento, não sou mesmo. Reconheçamos.
Isto é, histórica, geográfica e culturalmente, felizmente, sou nortista. En-
tretanto, intuí que a verdade da recusa dizia respeito ao fato de que minha

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movimentação talvez não alcançasse o nível técnico requerido pelo espaço.


Na época, agradeci a delicadeza com a qual Martha Cano lamentou minha
desaprovação ao comunicá-la. Foi, de fato, muito gratificante trabalhar sob
a direção dela.
Em 2014 e 2016, ao mesmo tempo em que trabalhava numa faculda-
de privada de Goiânia, retomei as atividades em dança para colocar adiante
um projeto conjunto com a professora do curso de Dança do IFG, Rousejan-
ny Ferreira, e à pesquisadora em dança Dayana Gomes, intitulado [Pelas Bei-
ras]1. Consistindo na produção de documentários com personagens da cena
da dança de Goiânia, a iniciativa foi ganhadora do Prêmio Funarte de Dança
Klauss Vianna, de 2014. Foram realizadas rodas de conversas, conferências
e oficinas de balé em sua tradição clássica, jazz dance e danças negras. Esse
projeto seria um dos meus últimos trabalhos com dança. Ainda nesse clima
de despedida, realizei o ensaio “Lava-te”2, dirigido pelo fotógrafo goianiense
Alejandro Zenha, em novembro de 2016 (imagem 29).
No fim das contas, comporia o meu último gesto em torno da
dança, a pesquisa de mestrado que resultou na dissertação intitulada “Por
Instantes de Felicidade: corpos em performance na Quasar Cia. de Dança
de Goiânia”. Quase não concluída, ela foi, felizmente assumida e orientada
pelo professor Paulo Petronilio e defendida por mim em abril de 2017 no
Programa de Pós-Graduação em Performances Culturais, até então atrela-
do à EMAC/UFG. Todo esse processo formativo foi marcado por abusos
psicológicos, assédio moral e requereu um desgastante processo interno,
antes que eu conseguisse concluir o trabalho com a ajuda do citado pes-
quisador. Naturalmente, sinto repulsa em revisitar esse período, embora
enterrado. Resumindo a ópera: a dissertação era para ser o último gesto
meu em torno da dança. Havia prometido. O meu último, em verdade, era
para ser o ensaio fotográfico feito em novembro de 2018 a convite de André
Miranda Demétrio (imagem 30). Recentemente, atuei em uma peça sobre o
centenário da Semana de Arte Moderna chamada À Moda de 22. Contudo,
se trata de teatro-físico e isso é uma outra história! Rs. Acontece que fui

1 https://www.facebook.com/search/top?q=pelas%20beiras. https://www.youtube.com/
channel/UCUbDhvplKy8wqlFx091iFxg.
2 https://www.alejandrozenha.com.br/#lava-te.

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convidado pelo professor Rafael Guarato a compor um dos capítulos do


presente livro. Convite que surpreendentemente, para mim mesmo, aceitei.
Sou daqueles que acham que fantasmas não só existem como, além disso,
reaparecem por algum motivo especial. Bem hamletiana eu, né?! Por falar
em literatura, em meu livro de poesia, o “de quatro”3, tenho um poema em
torno disso intitulado “decomposição literária”. Texto que, sinto, nunca des-
vendarei por completo, para ser bem sincero. Ele diz assim:

miguel nava disse amar


com as mãos e os intestinos
eu, com os membros amputados
honro os fantasmas
que me atormentam
nas mais assombrosas noites
- diluo poemas em água, Ofélias

Versos que agora me deixam na dúvida se a Quasar seria, para


mim, um membro amputado ou uma Ofélia, sendo ela, com toda certeza,
um de meus fantasmas. A diferença do momento atual para o texto acima é
a de que a enxergo à luz do dia; não se trata de uma noite penumbrosa e ela
não me atormenta. Pelo menos, não mais. Pensando bem, talvez a Quasar
tenha se tornado para mim uma espécie de Gasparzinho, um fantasminha
muito do camarada. Direi o porquê.

3 No prelo pela Martelo Casa Editorial: https://livrariamartelo.minhalojanouol.com.br/.

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Seleção das coisas

O meu processo de encantamento pela companhia se deu, inicial-


mente, por meio de trechos em vídeo do trabalho “Coreografia para Ouvir”
(1999). Uma montagem que teve sua estreia nos finais dos anos noventa e
que dava vazão a relatos de pessoas simples da região nordeste e à música
popular brasileira a partir de áudios extraídos do programa “Som da Rua”
da TV Zero. A coreografia assinada por Henrique Rodovalho, embora já
inscrita num registro de dança vigoroso, me comovia pelo seu descompro-
misso com a dança “bonita” (assim mesmo, entre aspas, porque a noção do
belo sempre passa por mediações históricas, sociais, econômicas e pessoais).
Tremeliques, rastejamentos, titubeamentos, espirais, tremores, escorregões,
quedas e mímica conviviam com saltos virtuosos. O que conferia ao trabalho
uma plasticidade “esquisita” casada a uma trilha atípica para dança com ape-
lo fortemente social. O figurino despretensioso era em tons de terra, assim
como o cenário. Ambos pareciam mimetizar, para mim, o chão ressequido
da caatinga a qual o áudio aludia. O recado que eu recebia do grupo, a partir
desse trabalho, era o de que a cena profissionalizada podia percorrer outros
caminhos para além do típico e bonitinho. Isso, nos idos dos anos 2000, po-
voou meu imaginário e me fez compor uma imagem monolítica e combativa
da companhia, assim como fabricar uma ideia receptiva do circuito profissio-
nal da dança. Dado importante para salientar aqui, é o fato de a minha cidade
natal nunca ter recebido obras inteiras de dança, apenas mostras. Fator que
restringia muito significativamente o nosso repertório de apreciação estética.
A Quasar era, portanto, a nossa referência de sucesso mais próxima. O que,
eventualmente, contribuiu para a impressão de que se sustentar dessa prática
artística era algo mais viável em Goiás.
Mais tarde, já no processo de pesquisa para o mestrado, em função
de estudar a peça “Por Instantes de Felicidade” (2007/2008), comemorativa
dos vinte anos da companhia, me lancei diante da missão de assistir aos
espetáculos anteriores dela em registros audiovisuais. Isso porque os traba-
lhos predecessores eram, alguns deles, retomados por citação nela. O que
constatei, a partir do exame dos trabalhos iniciais, em comparação ao espe-

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táculo estudado e de minha atuação na Quasar Jovem, entretanto, foi uma


solidificação da companhia em um percurso contrário à imagem primei-
ra que fabricara dela como um grupo experimental. Os trabalhos “Quasar
em Estudos” (1989), “Sob o mesmo azul” (1990), “Não perturbe” (1992),
“Quasar Erudito” (1993), “Quatros” (1994), “Versus” (1994) e “Registro”
(1997) davam a ver cenas um pouco mais arrojadas, a partir de hibridismos
entre gestos cotidianos, mímica, esquetes de humor, vídeo, fotografia, áu-
dios de falas, entre outros recursos menos usuais na dança que eu conhecia
até o momento. Procedimentos compositivos esses que efetivavam cenas,
direi um termo recorrente no meio da dança, “sujas”. Já as obras “Divíduo”
(1998), “Coreografia para ouvir” (1999), “Mulheres” (2000), “Empresta-me
teus olhos” (2002), “O+” (2004), “Só tinha de ser com você” (2005) e “Uma
história invisível” (2006), por sua vez, foram encaminhando paulatinamen-
te a dança da Quasar para um lugar mais seguro em dança. Isto é, assentado
em uma assinatura estável de movimento e de tessitura de cena. Fenômeno
que se esbanja em “Por Instantes de Felicidade” (2007/2008), por exemplo.
Peça conformada aos moldes do inofensivo em artes cênicas: porque vir-
tuosa, por conseguinte, requisitora para si do reconhecimento como “bela”.
A busca por uma cena mais cosmética e, portanto, mais palatável,
foi um empreendimento principalmente encabeçado por Rodovalho. Ele
fala sobre isso nos “Extras” do DVD dedicado a comemorar os 20 anos da
Quasar Cia. de Dança, no item “Movimentação pelas partes” do submenu
“Conversa com Henrique Rodovalho”:

No começo da companhia, eu era um coreógrafo mais de ideias.


Principalmente, o que chamava a atenção das pessoas era como se
fossem ideias novas para dança. Tanto que uma das maiores críticas
na época era que a gente fazia tudo, menos dança. Mas essa frase
sempre me chamou atenção, assim, porque eu queria, na verdade,
fazer dança! Então eu achava que aquilo era dança! Comecei a fi-
car em crise assim, porque a movimentação era meio misturada.
Como foi o começo da companhia: tinha de tudo, várias propostas.
Eu fiquei assim um pouco em crise com isso. Com “Divíduo” [1998],
não, eu parei pra pensar assim numa movimentação específica. (RO-
DOVALHO, 2009; grifos meus)

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O que fica sugerido a partir dessa fala do coreógrafo é que, além de


os trabalhos iniciais da companhia serem, em alguma medida, recebidos
como não-dança, essa mesma recepção, aparentemente, o incomodou. Isso
pode ter motivado a conformação plástica da companhia em direção a uma
assinatura em seus trabalhos após os anos noventa. Esse mesmo incômodo
fica sugerido na cena “Moça de 20 anos” do espetáculo “Por Instantes de
Felicidade” (2007/2008) e do texto verbal que a acompanha.
A cena é assim: Daniel Calvet e Camilo Chapela (bailarinos-intérpre-
tes) são interrompidos, em um abraço, pela dançarina Aretha Maciel (ima-
gem 31). Ela surge do breu, se põe no foco de luz dos dois à esquerda-frente
do palco, pega o controle remoto depositado no sofá e “desliga” a TV. Nesse
momento, uma luz geral branca se abre em todo o palco e revela a presença
dos demais dançarinos sentados na lateral direita e fundo-esquerdo do palco.
O som de um piano da canção “Me and you shoes”, do músico estadunidense
Michael Andrews, soa acompanhado de uma fala gravada: Érica Bearlz, in-
tegrante da companhia à época, diz um texto da “Moça de 20 anos” da peça.
Ele é de autoria de Henrique Rodovalho e diz assim:

Sempre me pego tentando entender tudo o que vejo. Acho que isso
me dá uma sensação de estar seguindo em frente, conhecendo. Mas
sem esquecer, é claro, quem eu sou, que meu nome começa com
todas as letras. Começa com todos os nomes. Com todas as pessoas.
Com a minha história. Por isso necessito me identificar, eu preci-
so. Desde a infância, nos meus primeiros aniversários, já percebia
as transformações em mim. Aniversário, idade, tempo, mudanças,
diferenças, corpo. E, olhando o meu corpo... É, ainda tenho muito
tempo, ainda bem. Cada parte minha me apontava a necessidade de
conhecê-la melhor. Principalmente, entendê-la. Partes cresceram.
Algumas gostei; já outras, não. Uma parte sangrou. E, no meu cor-
po, apareceu o meu prazer. Com isso, outras partes desejei desco-
brir. Não as minhas, de outros! E desejei. Porque quando menina,
menina não me achava. Mas um homem velho me achou e minhas
partes, tocou. Quando entendi, vai se danar, homem velho. Melhor,
vai se foder. Vai se foder, sai fora!
Bem, para voltar a entender de outras formas meu corpo, comecei a
fazer dança. Aulas todos os dias. Balé. Aulas de balé clássico. Menos

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difíceis, depois, foram as aulas de contemporâneo. Eles diziam: - Sente


o fluxo sanguíneo, os órgãos, move-se pelas partes. Olha aí de novo
as partes na minha vida. Depois de um bom tempo, entrei para uma
companhia de dança. Contemporânea, claro. E, é... É legal. E lá, mov-
endo minhas partes pela sala, descobri uma pessoa. E pelas minhas
partes, desejei. Pena que, é... Das minhas partes ele não gostou. Quem
sabe um dia. É... Quem sabe, com alguém estarei inteira e, por instan-
tes, vou sorrir. Hoje faço vinte anos. É... Espero que ainda tenha muito
tempo, muito tempo. (RODOVALHO, 2009; grifos meus)

Enquanto o texto é dito, Fernando, Érica, Simone, Dejalmir, Va-


leska e Luciane, os mesmos que estavam sentados em sofás e poltronas na
lateral direita e fundo-esquerdo do palco, se posicionam de um por um,
lentamente, à frente. Os dançarinos se juntam a Aretha e se põem a uma
distância de um metro uns dos outros, aproximadamente, em uma fila
frontal (frente de seus corpos voltada para o público), com a luz branca que
gradativamente deixa de iluminar os fundos do palco para iluminar apenas
a frente, onde eles estão. Daniel e Camilo, ainda abraçados, observam os
bailarinos se aglomerarem e se movimentarem. Daí, então, eles se desagar-
ram e, posteriormente, recolhem o sofá e o deposita à extrema esquerda do
palco no semi-breu. Camilo senta-se nele e Daniel adentra às coxias.
Quando o texto gravado diz “que meu nome começa com todas as
letras. Começa com todos os nomes. Com todas as pessoas. Com a minha
história”, Aretha traceja seu indicador direito sobre o seu tórax seguida,
consecutivamente, por Fernando, Érica, Simone, Dejalmir, Valeska e Lu-
ciane. Bailarinos que replicam o mesmo gesto de Aretha. Movimentos dos
indicadores sobre seus tóraxes que simulam o ato de escrever (imagem 32).
Nesse momento, o texto falado literalmente se “inscreve” nos corpos que
dançam. A “menina” de vinte anos, embora centralizada na figura de Are-
tha e na voz de Érica que soa ao fundo da cena, pode ser entendida também
como “todos os nomes” e “todas as pessoas” de uma mesma “história”.
Uma das passagens bem instigantes dessa parte inicial do texto,
em minha opinião, é: “Por isso necessito me identificar, eu preciso”. Trecho
polissêmico e que, por isso, nos sugere alguns sentidos possíveis: a) essa
moça de “20 anos”, por estar em um momento de transição da adolescência

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para a vida adulta, tem a necessidade de se identificar. Portanto, passou


por um período de desidentificação/estranhamento; b) por ser composta
de múltiplos fatores (todas as letras, nomes, pessoas, sua história), ela chega
finalmente em um ponto de autocentralização e c) é um período, indicado
verbalmente, de crise de identidade. A dança que se desenrola com os sete
dançarinos emparelhados lado-a-lado à frente do palco, virados para a pla-
teia, é prosseguida por esse texto de Rodovalho que sugere, a todo tempo,
como se viu, a relação entre a figura da “Moça de 20 anos”, que aniversaria
na peça, e a própria companhia. O grupo é, portanto, verbalmente temati-
zado através do discurso do coreógrafo.
O discurso, nas palavras de José Luiz Fiorin, emerge da combina-
ção dos elementos linguísticos, frases ou conjuntos de frases, usados por
falantes com o intuito de exprimir seus pensamentos, de falar do mundo
que o cerca ou de seu mundo interior. Nas palavras de tal autor, ele é uma
forma de “agir sobre o mundo” (1998, p.11) e “pertence ao plano do con-
teúdo” (p.37), enquanto que o texto faz “parte do nível da manifestação”
(p.38) e acontece através de um meio verbal ou não verbal de expressão,
entre eles: palavras, cinema, fotografia, pintura, gestualidade, entre outros
exemplos de suportes discursivos (1998, p.38). De acordo com o linguista,
por conseguinte, a emergência do discurso em um texto pode se dar de
forma figurativa e/ou temática. Se os componentes principais de um texto
são as figuras concretas (casa, mesa, rosa, por exemplo), então ele será um
texto superficialmente figurativo. Se são os temas abstratos (amor, paixão,
alegria, por exemplo), então ele será um texto explicitamente temático. Fio-
rin alerta, no entanto, para o fato de que essa distinção nem sempre é tão
fácil de fazer, pois “concreto e abstrato são dois pólos de uma escala que
comporta toda série de gradação” (1998, p.24).
Assim sendo, as figuras concretas “todas as pessoas”, “corpo”, “meni-
na”, “partes”, “uma pessoa”, “companhia de dança” e as figuras abstratas “todas
as letras”, “todos os nomes”, “minha história”, “infância”, “aniversários”, “trans-
formações”, “idade”, “tempo”, “mudanças”, “diferenças” e “homem velho”, pre-
sentes na fala que embala a dança, externam-se para dar vasão a um texto que
alude também à companhia. Ele é um texto cambiante entre as duas catego-
rias, mas aparentemente mais temático. Por esse motivo, pois, a referência
à história da própria Quasar é sugerida. Através da fala da menina de vinte

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anos, emerge também a fala da companhia. A história dela, em síntese, é um


tema trabalhado de modo um tanto quanto óbvio por ele.
A presença do verbal dentro de espetáculos da companhia, no en-
tanto, não aparece primeiro em “Por Instantes de Felicidade” (2007/2008).
Tal procedimento cênico pode ser testemunhado em “Registro” (1997), por
exemplo. Espetáculo anterior da companhia em que uma das cenas con-
sistia em a bailarina-intérprete Luciana Caetano dançar ao som do depoi-
mento de um garoto em situação de rua e dependente químico. Momento
comovente em que essa ex-bailarina da Quasar dança sob um foco de luz
branca, como que isolada no palco, enquanto alguns bailarinos passam an-
dando indiferentes a sua presença. Esse processo de utilização do verbal na
cena de dança se fez presente também no espetáculo da companhia intitu-
lado “Dividuo” (1998). Trabalho no qual um dos bailarinos pedia pizza no
meio do espetáculo e no qual Lavínia Bizzotto, outra ex-bailarina da com-
panhia, dançava ao som de um programa aberto de televisão.
O verbal na dança é apontado por Laurence Louppe (2012, p. 240)
como um procedimento interdisciplinar empregado como meio de diversifi-
cação dos espetáculos de dança. Assim como um elemento recorrente na dé-
cada de oitenta do século XX (SILVA, E. R., 2005, p. 118-136). Interdiscipli-
naridade, na autora, é entendida como a utilização de outras formas artísticas
na cena da dança. Ou seja, a coexistência colaborativa entre disciplinas. Lou-
ppe atesta que a presença sonora da linguagem verbal em peças coreográficas
era um elemento explorado já pela alemã Mary Wigman [1886-1973] e pela
estadunidense Martha Graham [1894-1991] no início do século XX e, mais
recentemente, também pelo belga Wim Vandekeybous [1963], com seus usos
de poesias e textos dos próprios bailarinos (2012, p. 318-319). Coreógrafo
que Henrique já disse admirar (RODOVALHO, 2013).
A recorrência da figura “partes”, expressa no texto falado pela
“Moça de 20 anos”, associada à movimentação segmentada dos sete bailari-
nos, remete à narrativa da história da companhia e como essa estilística de
movimentação se tornou assinatura dela. Corroborando com essa leitura,
temos aquela fala de Henrique Rodovalho disposta mais acima. Percebe-
mos, então, nos textos verbais supracitados, uma provável gênese para a
estilística de movimentação assimétrica da companhia. O que confirma a

A dança-Dança porque Arte: o fim da linha pra Quasar? | 247


Michael Silva

intuição de que a narrativa da “menina” de vinte anos é também um discur-


so sobre a história da Quasar.
Quando perguntado sobre o sentido do texto da “Moça de 20 anos”,
a presença da figura inquietante do “homem velho” e sua relação com a
cena, Daniel Calvet comentou:

Esse texto descreve o processo de amadurecimento de uma


menina, metaforicamente sendo a própria Cia.. Entendo a sen-
sação de invasão e de ser explorada que ela coloca com o homem
velho com o próprio crescimento da Cia. e a exposição que aca-
ba levando a sermos vistos, julgados e olhados por olhares que
nem sempre estão com boas intenções para o nosso trabalho, mas
como alguém que é tocado por outro, faz parte de um processo
para aprender a se colocar, a escolher onde estar e a sair de situ-
ações perniciosas. (CALVET, 2014; grifo meu)

O tema do amadurecimento da companhia, mencionado acima


por Calvet, se sugere no texto da cena em várias passagens. Trechos nos
quais a figura da menina e da companhia se misturam rumo a uma “maio-
ridade”. Uma delas é quando a voz gravada diz: “Desde a infância, nos meus
primeiros aniversários, já percebia as transformações em mim. Aniversá-
rio, idade, tempo, mudanças, diferenças, corpo”. Não obstante, a figura do
“homem velho”, empregada por Henrique Rodovalho, pode ser entendida
de várias formas. A ênfase, no entanto, recai sobre o abuso e mal-estar que
ela gera na menina. Seria o homem velho metáfora para aquilo que Rodo-
valho considerava um entendimento rígido/ultrapassado de dança? Uma
referência às pessoas que não consideravam o trabalho da Quasar como
boa dança? A fala acima do bailarino parece sinalizar uma resposta afirma-
tiva para essas hipóteses, assim como a do próprio Henrique acima contida
nos “Extras” do DVD e o texto verbal dito em cena. Outra hipótese de lei-
tura é a de que a figura “homem velho” represente as críticas de dança que
exercem, frequentemente, um papel coercitivo sobre artistas ao longo do
tempo. Coerção que se assomaria ao desejo da companhia em se manter
“interessante” e apta a contratações pelos festivais. Eventos que, ao se pro-
gramarem, levam-nas em consideração.

A dança-Dança porque Arte: o fim da linha pra Quasar? | 248


Michael Silva

A simbiose entre a “Moça de 20 anos” e a história da companhia


fica ainda mais clara quando o texto gravado diz “Hoje faço vinte anos. É...
Espero que ainda tenha muito tempo, muito tempo”. Momento no qual os
bailarinos Fernando, Érica, Simone, Dejalmir, Valeska e Luciane correm e
fazem um círculo ao redor de Aretha, que permaneceu à esquerda-frente
durante a sua dança. Instante no qual a aglomeração em torno da bailarina
citada faz crer que ela quem incorpora o papel da “menina” que completa
seus vinte anos na peça.
Com poucos segundos de formado o círculo ao redor de Aretha, a
dançarina sai e se dirige andando a uma cadeira posicionada à extrema di-
reita do palco (perspectiva de quem assiste) aos olhares de Érica, Fernando,
Valeska, Simone, Dejalmir e Luciane (imagem 33). O círculo se desmancha
e Luciane é a única que fica em pé. Os outros cinco dançarinos correm e
sentam-se em sofás, poltronas e cadeiras nas laterais do palco.
No que soa a música “He needs me”, na voz de Shelley Duvall, os
sete dançarinos (com exceção de Aretha, que se senta quieta à extrema di-
reita do palco, de perfil) levantam-se e carregam Luciane de um lado para
o outro, depositando-a no chão do palco pouco mais tarde. Acontecido
isso, Luciane inicia uma sequência coreográfica no chão. Procedimento sui
generis na estilística das danças moderna e contemporânea, conforme Lou-
ppe (2012, p. 202-203). Juntam-se a ela, nessa mesma sequência de chão,
consecutivamente, Simone, Camilo, Daniel, Érica e Dejalmir.
Quase ao final de “He needs me”, os cinco intérpretes se levantam,
aos olhares de Aretha, Fernando e Valeska, que não tinham entrado na se-
quência de chão. Alguns deles se dispõem sentados nos sofás e outros em
pé nas extremidades do palco. Em seguida, com 07 min. e 17 seg. de vídeo,
Camilo, Fernando, Daniel e Dejalmir carregam, consecutivamente, Lucia-
ne de um lado para o outro do palco. Na cena, agora completamente ilu-
minada, percebe-se, mais claramente do que antes, a presença de cadeiras,
rack, aparelho de som, sofá, poltrona, mesa, taça e champanhe compondo
o cenário de uma festa. As cenas que seguem são de uma comemoração, a
la classe média para cima, regada a espumante que discrepam, em vários
aspectos, da ambiência de “Coreografia para Ouvir” (1999).

A dança-Dança porque Arte: o fim da linha pra Quasar? | 249


Michael Silva

Em resumo, o estudo de “Por Instantes de Felicidade” (2007/2008) e


o acompanhamento presencial dos ensaios e apresentações de “No Singular”
(2012) e “Por 7 vezes” (2013) indicaram, para mim, que a urdidura de cenas
impressionáveis e dóceis havia se tornado a constância de Henrique Rodo-
valho enquanto diretor artístico da companhia. Provocações sobre hegemo-
nias temáticas e estéticas em dança minimizaram-se no itinerário principal
da Quasar. Grupo que, no final das contas, se tornara, ele mesmo, dominante
em nome de uma “qualidade”. Conformação estética que, a meu ver, estabili-
zou as obras da companhia e a colocou lado a lado às pasteurizadas e previ-
síveis Deborah Colker Cia. de Dança e Grupo Corpo, para citar apenas dois
exemplos. A pergunta sua, agora, talvez possa ser: Para quê mexer no que está
“bom”, não é mesmo? Ok e entendo! Sei que, de vez em quando, é agradável
receber cócegas. Mas cócegas contínuas fazem com que, alguns de nós, nos
esquivemos. Isso foi o que, particularmente, ocorreu comigo em relação aos
trabalhos cênicos do grupo. A assistência, no teatro Goiânia, de “Sobre isto,
meu corpo não cansa” (2014) foi a mostra final de que o que podíamos es-
perar da Quasar era mesmo entretenimento. E, dessa proposta de dança, eu
particularmente já vinha me cansando.
Confesso que contribuíram também para essa minha exaustão
do bonitinho em dança, algumas aulas que tive, alguns festivais dos quais
participei, algumas peças de dança que se intitulam como contemporâne-
as as quais, infelizmente, presenciei; alguns balés que assisti e o “Giselle”
que cheguei a dançar à contragosto em Brasília por um cachê miserável. É
minha gente, o dançarino que nunca precisou fazer isso, que agradeça ao
universo ou à mesada dos pais. Alguns trabalhos da própria Quasar já me
comoveram, bem como a assistência de peças de outras companhias em
Goiânia mesmo, São Paulo e Salvador como, por exemplo, a “Lub Dub”
do Balé do Teatro Castro Alves, da Bahia; a “Side Effects” da Anton La-
chky Company, da Eslováquia e, em especial, a “Proibido elefantes” da Cia.
Gira Dança, de Natal (alguns dos quais consigo ainda lembrar o nome pelo
meu distanciamento da dança). A enumeração dessas peças implica em que
eu tenho preferido, ultimamente, trabalhos artísticos menos cosméticos e
mais provocativos esteticamente por escancararem cenas “feias” ou com
corpos “inaceitáveis”, caso da última. Enquanto escrevo, me lembro bem do
dia em que a Gira Dança se apresentou em Goiânia com a peça citada, e seu

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elenco integrado por pessoas com deficiência. Numa das cenas, uma das
intérpretes, que tem nanismo, dizia sonhar em fazer audição para a Quasar.
Momento cênico que despertou risos da plateia. Lembro, nesse instante,
de ter torcido a favor do entendimento da crítica feita no espetáculo pela
audiência presente. O que não garanto.
Por falar em corpos, ainda nos “Extras” do mesmo DVD dos 20 anos
da Quasar, no item “Processo de criação” do submenu “Conversa com Hen-
rique Rodovalho”, no qual o coreógrafo comenta seu processo de criação em
dança e a relação disso com a música, ele deixa escapar algo nesse sentido:

A música, realmente, acho que sempre norteou de alguma forma to-


dos os meus trabalhos. Era sempre muito difícil desvincular. Então
por isso que foi uma consequência natural a dança porque, até então,
não tinha como a dança existir sem a música. É claro que hoje já
existem várias possibilidades de dança. Tem dança até não-dança,
por que não vai ter dança sem música? Mas acho que a música
sempre me norteou nesse sentido de estar vinculada. Eu via sem-
pre a questão do corpo, principalmente movimento com a música.
Então, aquele corpo musical desenvolvendo alguma ação, fazendo
alguma coisa. Eu sempre fiz muita questão, que é uma forma de
trabalho em grupo, de eu partir do indivíduo. Não querendo isolá-
lo. Até querendo, com as informações que ele tem, com, principal-
mente, a maneira dele se movimentar, é mais um instrumento para
somar com a nossa proposta. Então essa individualidade sempre foi
muito respeitada e até sempre muito cobrada. Tanto que hoje [ano
de 2008] são oito bailarinos na companhia e dá pra perceber que são
oito, vamos dizer, pensamentos distintos de dança, são oito corpos
muito diferentes. E a proposta é essa de serem diferentes mesmo. Eu
sempre converso muito com eles, não me interessa essa unificação,
eu acho isso um pouco primária. Eu acho que até empobrece um
pouco. Porque eu acho que cada pessoa tem um pouco muito o que
dizer e, principalmente, muito a contribuir. Eu tento, de alguma for-
ma, estar sempre pegando isso ao máximo. Até mesmo para somar
mais a nossa proposta. (RODOVALHO, 2009; grifos meus)

Destaco a fala do Rodovalho, quando ele diz que “são oito corpos
muito diferentes”, porque (acho que ele esqueceu de contabilizar Érica Bearlz,

A dança-Dança porque Arte: o fim da linha pra Quasar? | 251


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na ocasião, pelo fato de a intérprete também exercer a função de ensaiadora da


companhia), os nove bailarinos de “Por Instantes de Felicidade” (2007/2008)
tinham em média vinte e oito anos no período de estreia do espetáculo. As-
sim, eram pessoas nascidas entre a primeira metade da década de setenta e
primeira metade da seguinte. Intérpretes que, via de regra, possuíam uma
vivência sólida em balé clássico, dança contemporânea e uma carreira ante-
rior já estabelecida no circuito oficial de dança. Corpos esses que, em suma,
apresentavam-se no ápice de suas capacidades funcionais e adquiridas. Falo
adquiridas porque, sem um extenuante treinamento específico, os corpos di-
tos comuns não conseguem girar na horizontal duas vezes em trezentos e
sessenta graus, como faz Camilo em um salto finalizado em quatro apoios
na cena “Confidência no banheiro”. Assim como, corpos não treinados tam-
bém não conseguem elevar suas pernas a mais de cento e cinquenta graus,
como faz Simone também na mesma cena; não conseguem saltar nas costas
de outro, como faz Daniel em Camilo na cena “Kill Bill”, e nem saltar nos
braços de outra pessoa, como fazem Aretha e Valeska na cena “Duo com 4”
em Camilo e Daniel. Só para citar alguns exemplos ainda em “Por Instantes
de Felicidade” (2007/2008). Nas palavras de Louppe, “‘a composição começa
pela escolha dos intérpretes’. É, com efeito, a partir da gama de engrenagens
de cada bailarino que o clima e até o propósito da obra encontram suas raízes
qualitativas” (GIRON, 1995 apud LOUPPE, 2012, p. 225).
Em resumo, os nove corpos de “Por Instantes de Felicidade”
(2007/2008), além de jovens, eram magros e atléticos. Até o momento
desse trabalho, não fizeram parte do elenco fixo da companhia dançari-
nos idosos, com sobrepeso e/ou com necessidades especiais, por exemplo.
Os “corpos muito diferentes”, apontados por Henrique Rodovalho, não se
verificam em “Por Instantes de Felicidade” (2007/2008), ao que se refere a
esse sentido, e nem no histórico da Quasar, em especial a partir de 1999. As
diferenças entre eles podem até existir. Sejam relativas à história específica
de cada bailarina(o), sejam relativas às suas preferências e opiniões pessoais
sobre dança e o mundo, entre outros marcadores. No entanto, são diferen-
ças emergentes dentro de uma margem delimitada de perfil profissional.
Depois de sua projeção internacional alcançada nos fins dos anos 1990 para
os 2000, inclusive, a Quasar era comentada no meio artístico local como
uma frequente importadora de bailarinos. A prática se reconfigurou um

A dança-Dança porque Arte: o fim da linha pra Quasar? | 252


Michael Silva

pouco mais depois da fundação da Quasar Jovem, em 2008, que se tornou,


mais tarde, base formativa e de alguns recrutamentos para a companhia
titular. Contudo, ainda dentro do mesmo perfil de corpos magros, atléticos,
joviais e majoritariamente brancos e pardos.
Sinalizei, portanto, o tipo de bailarina(o)-intérprete em “Por Ins-
tantes de Felicidade” (2007/2008) e contínuo na Quasar porque, de acordo
com Laurence Louppe, se interrogar “Que tipo de corpo encontra-se em jogo
neste momento? É essencial que esta questão primordial anteceda qualquer
leitura de um projeto coreográfico” (2012, p. 78). Ainda segundo ela:

Pressupor um corpo neutro a partir do qual se possa articular um mo-


tivo coreográfico vai contra o projecto de dança contemporânea. Pior
ainda, assumir tal ideia contribui para a sustentação de uma aborda-
gem condenada à cegueira ideológica e estética. (LOUPPE, 2012, p. 78)

Imperativo, então, descartar a possibilidade de um corpo neutro em


qualquer companhia de dança. Em direção ao entendimento das habilidades
físicas e artísticas para a entrada na Quasar, realizei algumas entrevistas, em
2016, com bailarinos que chegaram a dançar “Por Instantes de Felicidade”
(2007/2008). Uma das mais interessantes foi dada pelo intérprete Marcos
Buiati. Na ocasião, ele ponderou que o grupo passou por diferentes fases e
que elas demandaram tipos diferentes de profissionais. Nas palavras dele:

Bom, é uma companhia com uma linguagem estruturada, defini-


da e existe uma forma de pensar o corpo e o movimento dentro da
companhia. Então eu acho que, lógico, tem algumas habilidades e
características técnicas que são essenciais pro trabalho que você pre-
cisa ter. Mas é difícil dizer assim, porque o Henrique passou por
diferentes fases, eu acho, diferentes intérpretes, né?! Teve uma fase
em que os intérpretes eram mais “gente”, vamos dizer assim, mais
humanos. Teve uma época que ele tinha um elenco mais dançari-
no mesmo, com uma formação mais tradicional em dança. Mas,
eu acho que a companhia é muito eclética e, em termos de formação
dos seus elencos, e o trabalho passa também por diferentes fases.
(BUIATI, 2016; grifo meu)

A dança-Dança porque Arte: o fim da linha pra Quasar? | 253


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Depois de reconhecer que a companhia passou por diferentes mo-


mentos, o bailarino deu uma dimensão da complexidade do trabalho realizado
no grupo. Ele afirmou que, na sua opinião, eram necessários, pelo menos, seis
meses de imersão na companhia para começar a entender bem sua estilística.
Impressão ainda mais reforçada quando ele disse que, mesmo bailarinos-in-
térpretes muito experientes, foram igualmente formados por aquele espaço:

Mesmo pessoas muito boas, muito rápidas, bailarinos com muita ex-
periência, só começam a realmente realizar aquela movimentação,
entender aquela movimentação de uma maneira mais profunda, na
minha opinião, depois de uns seis meses de trabalho. Porque real-
mente é um trabalho muito específico. Então, assim, várias formações
tradicionais, habilidades tradicionais em dança são muito bem-vin-
das: balé, contemporâneo, né. Mas eu vi pessoas também serem
formadas ali, por exemplo, as meninas todas da Quasar Jovem e vi
pessoas com diferentes formações também. Não só balé e contemporâ-
neo. Aliás, balé geralmente, por exemplo no caso dos homens, mesmo
algumas meninas assim mais da minha época, a gente tinha base bem
só o básico mesmo do balé. Então, eu não sei, parece que eu não sei
muito responder a essa pergunta, eu acho. (BUIATI, 2016; grifos meus)

Mesmo reconhecendo o lado formativo da companhia no seu dia-


-a-dia de trabalho, o bailarino admitiu que é preciso possuir minimamente
habilidades como o balé em sua tradição clássica, dança contemporânea e
maturidade para “segurar o trabalho” lá realizado. Outro ponto salientado
por Buiati foi o fato de ele considerar o Henrique Rodovalho “incrível” por
acolher pessoas que, para ele, “não estão totalmente prontas”. Em seguida ele
mesmo se indicou, riu, e alegou que, na altura de sua entrada no grupo, não
se considerava preparado e que “Muito do intérprete que eu fui lá eu desen-
volvi ao longo do meu período lá junto com a experiência do dia-a-dia, expe-
riência de viagem, experiência de palco, de cena e experiência com o diretor”:

Não é uma companhia amadora, é uma companhia que exige um


profissional, seja tecnicamente, em termos de habilidades de técni-
ca de dança, acho que as mais clássicas assim, chavão. E até pelo que

A dança-Dança porque Arte: o fim da linha pra Quasar? | 254


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a companhia faz aulas seria o balé e contemporâneo, você tem que


ter essas habilidades minimamente. E habilidades artísticas, você
tem que ser um intérprete também maduro em vários pontos pra
segurar o trabalho. Agora, não que você, de novo, tenha que ter
isso já ao entrar, o Henrique eu acho incrível nesse ponto porque ele
muitas vezes dá a chance pra pessoas que não estão totalmente pron-
tas. Eu mesmo fui um desses casos. Depois de ter ficado na com-
panhia quatro anos, olho para o lugar que eu estava quando eu saí e
quando entrei, eu acho que eu não estava pronto (risos) para entrar,
na época, sabe?! (BUIATI, 2016; grifos meus)

O bailarino complementou essa sua resposta dizendo que é neces-


sário ter força, “tônus” e “condicionamento físico” para fazer parte da com-
panhia porque os trabalhos são “muito exigente[s] nesse lugar”:

Ah! Em termos técnicos assim, outra coisa que me veio agora foi: você
precisa ser muito forte (risos). Mas, essa parte de estrutura física, o
trabalho da companhia é muito pesado, puxado, eu acho, em termos
de tônus, de condicionamento físico. Eu sempre brinquei, assim, falei
que a Quasar é uma ilusão, né. Você assiste e é tudo muito fluido, tudo
muito orgânico, tudo muito parece muito simples de fazer, mas é tudo
mentira (risos), porque é tudo muito difícil, é um trabalho que usa
muita força muscular, muita força física. Então, eu acho que essa é
uma habilidade que a pessoa tem que ter para estar na companhia,
você tem que ter, desenvolver uma estrutura física, um tônus mus-
cular muito forte para poder fazer o trabalho. Homens e mulheres
porque a maioria das coisas, eu acho, sempre achei, muito exigentes
neste lugar, muito pesadas fisicamente. (BUIATI, 2016; grifos meus)

Outro aspecto que se salientou na resposta do bailarino foi que,


segundo ele, além dessas habilidades tradicionais em dança, é necessário
também um preparo psicológico por parte do bailarino-intérprete porque
a companhia se apresentava em grandes teatros e importantes festivais e
que essa questão demandava um lugar de segurança e de profissionalismo:

A dança-Dança porque Arte: o fim da linha pra Quasar? | 255


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[...] eu já dançava, já tinha trabalhado em grupos, mas quando eu


entrei é que eu vi que me faltava um monte de coisas pra estar ali,
desde individuais técnicas de habilidades como bailarino e tam-
bém psicológicas, porque a companhia exige um lugar de profis-
sionalismo [...]. Desde dançar em grandes teatros, grades festivais
exige um lugar de segurança, de formação do intérprete, não só, não
basta só você ser um bom dançarino, você precisa ter maturidade
também artística, maturidade profissional. Às vezes não para entrar,
como eu te falei, quando eu entrei eu acho que eu não tinha grande
partes dessas coisas, mas a companhia também te forma muito nesse
lugar e você vai construindo esse lugar de segurança, de profissional-
ismo, você vai crescendo como intérprete, como artista e por aí vai.
(BUIATI, 2016; grifos meus)

Acerca da estética da dança da Quasar, o intérprete reconheceu que a


companhia possui isso bem delineado. Admitiu também que lá existe um padrão
fenotípico de intérprete e uma ideia de beleza que são mediados pelo grupo:

A companhia tem uma estética, uma estética que se reflete em di-


versos lugares. Seja na própria constituição fenotípica (risos), va-
mos dizer assim, dos intérpretes, essa questão de um corpo meio
padronizado que sai dali e vai pro mundo, né, então. Existe um culto
ali a uma suposta beleza corporal que ela é totalmente mediada por
aquele espaço, consciente ou inconscientemente, e isso se reflete em
termos comportamentais e sempre foi muito claro pra mim lá den-
tro. E você estando ali dentro você acaba querendo se adequar, se
adaptar, comungar e compartilhar desse lugar corporal, desse ethos
corporal, como diria Paulo Petronilio. Então, sei lá, um corte de ca-
belo, você ser forte, magro, no caso dos homens você ser forte, mus-
culoso. No caso das meninas, você ser magra ao extremo, raquítica
às vezes, estar muito abaixo do seu peso normal. E isso se reflete em
lugares estéticos corporais e isso, claro, está totalmente ligado com
uma estética artística, com a estética do movimento que é produz-
ido ali em termos de dança, em termos de estética como produto
artístico, com certeza. Então, inúmeras foram as vezes em que eu sai
de espetáculo em que as pessoas comentavam exatamente isso, prin-
cipalmente alguns espetáculos que eu dancei em que o corpo estava
muito a mostra, tipo Tão Próximo. Ah! Porque a pessoa falava: Ah!
Porque vocês são lindos, porque vocês são todos gostosos, vocês são

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todos magros e aí saia no hall do teatro: Ah! Porque vocês são todos
fashion, vocês se vestem cada um de um jeito diferente. Cada um de
um jeito diferente, mas na verdade, é um jeito diferente que é muito
igual assim. Porque essa coisa do cotidiano intenso também, a Qua-
sar é um ambiente muito familiar né. (BUIATI, 2016; grifos meus)

O que as falas acima indicam, juntas ao meu período de atuação na Qua-


sar Jovem e de observação da companhia titular, é que Rodovalho ocupou e ocu-
pa um lugar central na conformação estilística da Quasar, que há um perfil míni-
mo de intérprete para ingresso/permanência lá, uma demanda corporal bastante
exigente para com os bailarinos, assim como existe um tipo físico de intérprete
mediado pela ideia de “beleza”. Ou seja, o padrão jovem, magro e atlético. Essa
mediação fica ainda mais patente considerando-se, em especial, as bailarinas-
-intérpretes do elenco permanente a partir, principalmente, dos anos noventa.
Elas são majoritariamente brancas e pardas, esguias e jovens. Luciana Caetano,
mais acima mencionada, foi uma das poucas mulheres negras retintas a compor
o elenco fixo, por exemplo. Talvez a única. Os figurinos tendem a deixá-las de
corpo mais à mostra e suas presenças cênicas são marcadas por uma feminilidade
cisnormativa quase caricatural. Até o presente momento, acho que a companhia
não ingressou dançarinas gordas, idosas ou transgênero/travestis, entre outras
várias possibilidades. Pela sua estabilização estética, creio que esse tipo de arrojo
nem deve ser um horizonte de expectativa dela. Outro aspecto sublinhável é o
lugar privilegiado que o grupo ocupava, já que se apresentava em “grandes tea-
tros, grandes festivais”. Uma proeza de poucas companhias brasileiras de dança,
especialmente se pensamos no contexto de Goiás e o trânsito de seus grupos pelo
Brasil e exterior. Resta, então, a pergunta: em que medida essa conformação esté-
tica da Quasar facilitou sua incursão em espaços hegemônicos de dança? Deixo
a reflexão para outra(e/o)s pois, desse assunto, o pesquisador aqui está exausto.

Últimas coisas

António Pinto Ribeiro chega a elencar, no sentido de compreender


o protagonismo do corpo na dança, duas categorias: “corpo hi-fi” e “corpo-
-livro”. Os corpos “hi-fi” são, para ele, “corpos de alta fidelidade na execução

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de suas performances” (1994, p. 10). Ou seja, corpos cujo vetor atlético é um


componente de importância. De acordo com o autor, pode-se “falar da dé-
cada de 1980 como o tempo atravessado pela Cultura do Corpo” (p. 10) e
que o emprego dos “hi-fi” prestou-se nas “Artes do Corpo” para uma “certa
ideia de sublime que lhes permitiu conquistarem um lugar nobre junto das
tradicionais e reconhecidas artes” (p.10). Segundo Ribeiro, é nessa menciona-
da década (a mesma de criação da Quasar) na qual assiste-se “à glorificação
do corpo”. Segundo ele, esse tipo de fisicalidade pode ser verificado na atleta
“Florence Griffith-Joyner, [n]as ginastas romenas, [n]os bailarinos de William
Forsythe e dos LaLaLa Human Steps” (p.10), por exemplo. Em contraposição
a esse corpo afirmativo de seu valor por via principalmente da virtuose, o au-
tor descreve o fenômeno do “corpo-livro”. Corpo que, por sua vez, “ultrapassa
o seu vetor atlético e se impõe como algo mais da ordem do comunicacional
e do enigma existencial, político, social, histórico, etc.” e pode ser “Vizinho do
corpo hi-fi, por vezes incestuoso” (p. 12). O autor cita como exemplos de cor-
pos-livros os bailarinos da coreógrafa alemã Pina Bausch; os da belga Anne
Teresa de Keersmaeker e os bailarinos do francês Jean-Claude Gallota, dentre
outros. Das palavras de Ribeiro acima, é possível concluir que a virtuose na
dança é um recurso recorrente com vistas principalmente, entre outros moti-
vos, a sua garantia de permanência. Porque, no frigir dos ovos, reconheçamos
a verdade da realidade brasileira: a dança é tratada como a rapa da panela no
mexidão das artes e que, por isso mesmo, talvez frequentemente apresente
algo com algum apelo visual para ser mais amplamente engolida.
Em Goiás, por seu turno, a busca empreendida por Henrique Rodova-
lho por uma dança-Dança ou uma arte-Arte, infelizmente, não foi o suficiente
para garantir a manutenção da sede física da companhia. Em um de seus mais
recentes trabalhos para o palco, “Estou sem silêncio” (2019), julgo que a Qua-
sar tenha se calado para mim. Talvez ela seja, agora, “hi-fi” em demasia e Arte
demais para dizer feiúras. Julgo que fantasmas que se prezam não deixam de ar-
rastar móveis, derrubar objetos e sussurrar coisas atormentadoras e interditas...
Por falar em coisas feias e interditas, deixo-lhes aqui um último
poema meu, nomeado “a poesia não pode ser bicha, disseram”. Não exata-
mente Dança e nem exatamente “belo”:

A dança-Dança porque Arte: o fim da linha pra Quasar? | 258


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a lírica sem dente, que não morda


é coisa desprezível no poético
domesticada, a querem na forca
- academia, cadafalso ‘inda é ético?
arrotaram-me o valor estético
ah! eu quero mais é que se foda
falaram de hugo friedrich, patético
- como fazer para que tudo exploda?

ouvi: ajuste-o, não desmunheque


verso não pode ser sinuoso, poxa
é coisa de homem, não de moleque

respondi: bela é a poesia coxa


ao sair por aí abanando leque
acha ruim? meu cu de peruca roxa

Assim como a poesia, talvez a dança que me apeteça seja, definiti-


vamente, a coxa. Em seu famoso poema “Dúvidas apócrifas de Marianne
Moore” disposto na epígrafe, a voz lírica engenhada por João Cabral de
Melo Neto admite (quem diria?), sob o pretexto de Moore, que todos os
textos, implícita ou explicitamente, depõem sobre nós. Este capítulo é sobre
mim e eu nem quis simular que não. Isto é, não me camuflei. Por falar em
vestimenta, em algum lugar alguém disse, talvez uma crítica de dança, que
o Henrique Rodovalho é um estilista do movimento. Temo que se tornou
isso mesmo. Talvez ele tenha se concentrado demasiadamente em fiar rou-
pas vistosas para corpos precisos. Reconheço e assumo, assim, que sou eu
quem já não se surpreende ou espanta com as peças. Nada de mal nisso.
Trajes bonitos possivelmente se tornaram o carro chefe da companhia e há
muitos que os compram com frequência. Cumprimento o grupo e desejo
vida longa e profícua as suas coseduras. É isso. O antigo fantasma se tornou
camarada: um Gasparzinho tecelão, bem comportado e ávido por aceita-
ção. Por fim, me despeço.

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Referências

BUIATI, M. Entrevista Marcos Buiati via WhatsApp. [mensagem pessoal]. Men-


sagem recebida por Michael Silva em 09 nov. 2016.

CALVET, D. Questionário escrito: 20 anos Quasar Cia. de Dança, Por Instantes


de Felicidade, Teatro Goiânia, abril de 2008. [mensagem pessoal]. Mensagem
recebida por <mic.dancer@hotmail.com> em 16 dez. 2014.

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Felicidade. Direção: Michael Valim e Rogério Safadi. Produção: Pricila Ximenes.
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A dança-Dança porque Arte: o fim da linha pra Quasar? | 260


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A dança-Dança porque Arte: o fim da linha pra Quasar? | 261

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