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10 de Dezembro: Presente e Futuro das Lutas pelos

Direitos Humanos

Meu ponto de partida é o de que as e os protagonistas da luta


pelos Direitos Humanos no Brasil são as dezenas de milhares de
mulheres e homens inseridos nos movimentos sociais que tem
persistido na resistência e perseverado na busca da realização de
suas reivindicações históricas; na lutas pela saúde, pela educação,
pela terra, pelos direitos reprodutivos e sexuais, pela moradia, a
liberdade e os mais elementares direitos civis. Os que trazemos o
compromisso da transformação do mundo e que trabalhamos a partir
das universidades, dos escritórios de advocacia ou da
institucionalidade temos, como mínimo, a obrigação de contribuir
com esforço de seriedade e muito mais a aprender do que lições a
dar neste debate.

Neste breve texto, não posso mais do que chamar atenção para
alguns aspectos que gostaria de ver mais frequentemente apreciados
pelos que se dedicam ao tema dos Direitos Humanos.

O 1º aspecto que gostaria de ver reforçado é o que diz


respeito ao significado, à identificação do que são, afinal, os Direitos
Humanos. Para os que se colocam deste lado, parece-me
indispensável tratá-los sim como positivações, como cristalizações
amplamente reconhecidas, mas originadas em processos bastante
concretos, de lutas historicamente situadas – e não como meros
ideais propostos por operadores políticos inspirados e supostamente
generosos.

Parece indispensável fazer uma nota prévia acerca da


compreensão das relações entre os direitos – e as lutas por sua
positivação e efetivação – e um processo histórico, marcado pelas

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contradições de caráter classista. Aqui vou pedir licença para citar um
autor que diz coisas interessantes neste terreno, Antoine Artous, que
afirma:
“A luta de classes não é uma entidade misteriosa que
existiria por trás deste conflito: ela existe através deste
conflito. Claro, não é o Direito que, em última análise, regula
este conflito, são as relações de força sociais. No entanto, a
dimensão jurídica do conflito não desaparece pois este deságua
em uma nova reformulação de seus direitos (...). A luta pelo
direito (pelos direitos) é uma dimensão constitutiva das lutas de
classes.”

É preciso sublinhar então que os direitos são produtos de


contradições históricas concretas e em seguida integrados ao quadro
no qual se dão estas contradições.

É importante lembrar que os direitos consagrados na


Declaração de 1948 o foram em um quadro histórico marcado:

- como é amplamente conhecido, pela derrota do nazi-


fascismo; o que se esquece comumente é de lembrar o Nazi-fascismo
como manifestação do capitalismo; como barbárie racionalmente
planejada por interesses da classe dominante; portanto, este marco
da emergência dos Direitos Humanos se dá num momento de derrota
de uma violentíssima experiência burguesa;

- e ainda no marco do fortalecimento dos movimentos de


trabalhadores e das alternativas pós-capitalistas.

A Declaração Universal não é, portanto, filha e muito menos


invenção capitalista, mas resultado da derrota de suas expressões

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mais exacerbadas. Uma vitória da humanidade que se fez a partir das
fragilidades provadas do sistema dominante.

Há um 2º aspecto que eu gostaria de ver melhor refletido por


todos nós e é do significado das violações dos Direitos Humanos.
Nunca deixaram de estar gravemente presentes na realidade mesmo
dos Estados formalmente mais comprometidos com estes Direitos. A
bomba atômica, lançada depois já que o desenho da ordem
internacional do pós-guerra estava esboçado, é o cartão de visitas
que apresentou a maior potência mundial do período: uma bomba
para civis, massiva, de efeitos cruéis e a longuíssimo prazo. A disputa
Leste/Oeste foi pano de fundo de inúmeras e violentas intervenções
pontuais ou de grande porte geradoras das maiores violações. A
prática, portanto, nunca deixou dúvidas sobre a sinceridade e a
profundidade do compromisso da grande maioria dos governos –
fundamentalmente representações políticas das elites
economicamente dominantes – com os Direitos Humanos. Pouco ou
nenhum compromisso.

Neste novo século, as violações perpetradas pelos Estados mais


poderosos assumiram um novo patamar. Buscando o enquadramento
de todas as formas indóceis de comportamento político; a segurança
do capital e de sua reprodução e a exploração máxima das vantagens
da colocação dos trabalhadores em concorrência em escala mundial;
os países mais ricos produziram importantes ataques aos Direitos
Humanos nos últimos anos.

Estes ataques deram-se tanto pela produção de novas


legislações nacionais inaceitavelmente restritivas das liberdades de
todos os suspeitos de serem potencialmente “perigosos”, tendo aí na
mira trabalhadores migrantes, minorias étnicas, nacionais, religiosas;

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Como se deram fora das fronteiras daqueles Estados, pelo
estabelecimento de prisões internacionais; pelo seqüestro e
reintrodução de práticas abjetas de tortura em supostos adversários
políticos, pela violência inaudita que joga à morte ou em modernos
campos de concentração milhares de migrantes em busca da
sobrevivência. Sobrevivência negada pela história de pilhagem, de
manipulação e exploração produzida pelos mesmos Estados que
defendem suas fronteiras dos indesejáveis.

O que eu gostaria de sublinhar é que trata-se de um equívoco –


e um equívoco que tem conseqüências importantes – tratar o
pavoroso conjunto de violações contemporâneas aos Direitos
Humanos como correspondente a meros erros, falhas, deslizes,
imperfeições, ou a suposto “atraso” do sistema. Este tratamento,
simplesmente, não me parece correto.

Vejamos. Relatórios de agências internacionais bastante


confiáveis para o sistema, como o Banco Mundial, demonstram que
uma adequada gestão dos fluxos migratórios – ou seja, o controle de
onde está a mão-de-obra – reduz de maneira importante o salário
médio dos trabalhadores empregados E, claro, aumenta a taxa média
de lucro dos “investidores”. Do mesmo modo, também demonstram
que a imensa maioria das pessoas economicamente ativas do mundo
(sabendo-se que nada menos do que a metade da humanidade está
abaixo da renda de dois dólares por dia) está inserida, mesmo que
não formalmente, no mercado de trabalho (ou seja, só faz sentido
falar em exclusão se for para falar de exclusão em relação ao acesso
a direitos, porque para ser explorado ninguém está excluído; os
muito pobres do mundo não são muito pobres porque não têm
trabalho, são muito pobres porque são muito explorados e recebem
salários muito baixos). E a desigualdade no plano mundial

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permaneceu aumentando a níveis estratosféricos nas últimas
décadas.

A violência destes Estados, seletiva, dirigida a certos setores,


aparece assim como perfeitamente funcional, útil mesmo ao
funcionamento do capitalismo contemporâneo. O trabalhador
amedrontado não se organiza, não exige, submete-se a condições de
trabalho degradantes e salários relativamente menores. Além disso,
produz, pela concorrência de sua oferta, a redução do poder de
barganha mesmo dos setores tradicionalmente mais organizados.

Ao prender, executar ilegalmente, torturar, vilipendiar,


manietar o espaço de liberdade de alguns dos trabalhadores
(geralmente escolhidos entre os que supostamente têm maior
potencial de desenvolverem comportamentos considerados “não-
conformes” para o sistema) o Estado não está, portanto,
simplesmente errando, cometendo um deslize, mas corroborando
com um modelo de reprodução da ordem do capital; produzindo um
efeito dissuasivo contra a organização e a capacidade reivindicatória
das maiorias.

As violações dos Direitos Humanos, tragédia para nós, são


muito úteis para a manutenção deste modelo.

E isto me leva a um ponto importante: Se é verdade que


quase todos os responsáveis políticos nacionais e internacionais
afirmam seu compromisso com os Direitos Humanos – sendo de
lembrar e de nos causar escândalo que em alguns casos nem mesmo
este compromisso “da boca pra fora” existe – é verdade também que
aqueles que estão comprometidos com a reprodução desta ordem
sócio-econômica só podem fazê-lo de forma hipócrita; cínica. Esta

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ordem é inevitavelmente produtora de violações, restrições,
constrangimentos aos Direitos Humanos.

Os Direitos Humanos – sucedâneos que são das promessas


emancipatórias da modernidade – não podem avançar
consistentemente sem o recuo desta ordem com a qual estabelece
contradições insanáveis.

O 3º aspecto que eu gostaria de frisar, portanto, diz respeito


às relações entre a luta pela transformação do mundo e as lutas
pelos Direitos Humanos. Aquilo que tradicionalmente chamaríamos de
“lugar dos Direitos Humanos no programa, na estratégia socialista”.

Neste tema penso que é necessário assumir alguns pontos de


partida. O primeiro deles é abandonar qualquer instrumentalização
oportunista dos Direitos Humanos, que não serão construídos se
forem restringidos à condição de “escudo” dos que temporariamente
estão “por baixo” na ordem social e que, portanto, poderiam ser
abandonados prontamente em momentos de correlação de força mais
favorável. Este instrumentalismo, mesmo que disfarçado, corrói até
mesmo a eficiência destes como direitos de defesa.

O segundo, ligado diretamente a este, é que não existem


Direitos Humanos “burgueses” e “proletários”; mas, como disse
antes, Direitos Humanos defendidos consequentemente ou apenas
cinicamente. E consequentemente só podem ser pelos que se
colocam pela superação da contradição entre capitalismo e Direitos
Humanos pela afirmação destes e suplantação daquele.

E para isso é preciso assumir que a necessária universalidade


dos Direitos Humanos, para além das circunstâncias ocasionais e das
correlações de força de cada momento, decorre da universal

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fragilidade humana diante da força bruta e dos diferentes tipos de
dor; todos podemos estar na situação mais vulnerável, todos.
Decorre, do mesmo modo, da universalidade da capacidade de errar,
de tornar os outros vulneráveis e de violar suas esferas de dignidade
e autonomia, mesmo tendo em mente as mais grandiosas intenções e
os melhores planos para o futuro coletivo; a História o demonstrou
tragicamente.

Assim, os que se comprometem com as lutas pela mudança do


mundo ou bem entendem os Direitos Humanos como uma parte
essencial – e, portanto, não temporária, não descartável – deste
caminho ou estarão apenas alimentando os rios do ressentimento e
do ódio, primos torpes da consciência libertadora, e não poderão
nunca fazer mais que outros mundos terríveis, outros totalitarismos,
ao invés do que precisamos e merecemos.

É importante dizer, por fim, que as lutas pelos Direitos


Humanos não são apenas pelo respeito aos conteúdos mínimos dos
direitos que já estão formalmente consagrados, mas pelo
desenvolvimento dinâmico dos seus significados e pela consagração
de novos direitos.

Assim, neste alargamento de fronteiras, precisamos denunciar


e construir mais fortemente o combate ao genocídio econômico, que
é esse que está sendo produzido pelos grandes grupos transnacionais
nos países mais pobres; o genocídio das patentes farmacêuticas
quando há enormes contingentes populacionais adoecidos; o
genocídio da oligopolização da produção de alimentos, de
fornecimento de água, do conhecimento científico e biotecnológico;
Ao contrário, a democratização do acesso ao conhecimento precisa
ser um dos grandes direitos deste novo século. Isso só é possível

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com o controle público, coletivo, de todo o conhecimento que seja
essencial a essa mesma vida pública, coletiva.

Precisamos tirar o véu da inocência destas grandes corporações


e de suas mentirosas responsabilidades social e ambiental e lembrar
que pelo mundo sustentam governos violadores, grupos paramilitares
assassinos, como na inominável violência perpetrada recentemente
em nosso território pela multinacional Syngenta, mostrando que a
modernização capitalista e a jagunçada continuam juntas e felizes no
campo brasileiro.

Precisamos afirmar que o direito a deixar um país também é


um direito a ser acolhido em outro, especialmente se esse outro é a
antiga metrópole formal ou a nova metrópole econômica.

Precisamos consagrar de maneira inequívoca o direito à


diferença, a liberdade de orientação sexual e os direitos reprodutivos
como parte indispensável dos Direitos Humanos. Consagrar ainda o
direito à Memória e à Verdade, abrir os porões do passado de
violações, responsabilizar quem precisa ser responsabilizado, reparar
as vítimas inclusive simbolicamente, virar a página deste passado
insepulto de violações que se querem esquecidas por anistias
ilegitimamente auto-concedidas. O Direito a Lembrar é parte
incontornável da luta pelo futuro dos Direitos Humanos.

E falando em lembrar gostaria de pedir vossa licença para fazer


uma rápida evocação histórica:

Sempre que se falar em Direitos Humanos nesta casa


legislativa é preciso lembrar que aqui, em 46, se discutiu e aprovou
uma Constituição democratizante, já com muitos dos Direitos que
voltariam na Carta de 88 e que hoje gostaríamos de ver realizados. E

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que na linha de frente da batalha pela consagração daquelas
liberdades, daqueles direitos, estiveram, entre outros, dezena e meia
de constituintes comunistas. Entre outros, o Dep. Maurício Grabois e
o 3º Secretário da Constituinte, Dep. Carlos Marighela. Ajudaram a
inscrever os Direitos Humanos na História constitucional brasileira
aqui dentro e por sua ausência morreram lá fora. Suas vidas e lutas a
ditadura interrompeu, mas a capacidade de serviço prestada por
combates como estes serão sempre audíveis enquanto houver
Humanidade que mereça este nome.

E através da lembrança deles volto início: é quem luta pela


transformação do mundo que luta pelos Direitos Humanos e quem
luta consequentemente pelos Direitos Humanos só pode estar lutando
pela transformação do mundo.

Os Direitos Humanos não são um ponto de partida, mas um


caminho que já começou, que precisamos e podemos fortalecer e ao
qual precisamos ainda chegar. Hoje, dia 10 de Dezembro, portanto,
não é o aniversário de uma Declaração do passado, mas o aniversário
deste nosso futuro possível, em construção.

Elídio Alexandre Borges Marques – professor de Direito Público

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