Você está na página 1de 46

HISTÓRIA DA PSICOLOGIA Prof.

Eduardo Freitas Prates


Curso de Psicologia
NO BRASIL Universidade Nove de Julho
AULAS 2 E 3:
A PSICOLOGIA COMO CIÊNCIA INDEPENDENTE

Bibliografia básica:

FIGUEIREDO, L. C. M.; SANTI, P. L. R. Psicologia, uma (nova) introdução: uma visão histórica da
psicologia como ciência. 2ª ed. São Paulo: EDUC, 2002. 98p.

Bibliografia indicada:

FERLA, G. B.; ANDRADE, R. B. A transição do feudalismo para o capitalismo. Synergismus


scyentifica UTFPR, vol. 2, n. 1, 2, 3, 4., s/n, 2007. Disponível em: Acesso em:
http://revistas.utfpr.edu.br/pb/index.php/SysScy/article/view/240 21 mar. 2023.
OBJETIVOS
Objetivo geral: Apresentar a Psicologia como uma ciência independente, de modo a situá-la
historicamente em sua constituição.

Objetivos específicos:

- Discutir as condições históricas em que se desenvolveu as bases da Psicologia, dando destaque para a
constituição da subjetividade privatizada.

- Compreender a constituição e a crise da subjetividade a partir do pensamento filosófico e em seguida


das condições sócio econômicas do indivíduo moderno.

- Refletir sobre as condições da prática científica que permitiram o surgimento da psicologia cientifica.
INTRODUÇÃO
- Figueiredo e Santi (2002) estabelecem como objetivo apresentar uma visão panorâmica e crítica da
Psicologia contemporânea.

- Os autores constatam que só recentemente surgiu o conceito de Ciência tal como conhecemos, deste
modo somente após a segunda metade do século XIX surgiram indivíduos que dedicaram-se a constituir
estudos psicológicos em um território próprio, ganhando espaço nas universidades e centros de pesquisa.

- A criação de um novo campo científico, de modo que se torne uma ciência independente exige duas
condições: a) demonstrar que existe um objeto próprio a ser estudado; b) que se tenha métodos
adequados para estudar esse objeto
UMA VISÃO PANORÂMICA E CRÍTICA
- Figueiredo e Santi (2002) apontam que no caso da Psicologia, antes de sua independência, diversos
sistemas filosóficos desde a Antiguidade discutiam e abarcavam noções e conceitos da Psicologia, como
o “comportamento”, a “alma” e a “mente”.

- Os conhecimentos psicológicos também estavam espalhados em outros campos de conhecimento que


amadureciam na Idade Moderna: Anatomia, Física, Medicina, Fisiologia.

- Assim, como os conhecimentos psicológicos estavam presentes nos campos científicos que ganharam
sua independência no século XIX, constituindo as Ciências da Sociedade: Economia Política, História,
Antropologia, Sociologia e a Linguística.
UMA VISÃO PANORÂMICA E CRÍTICA
- Os autores reconhecem que a Psicologia estava dispersa em diversos campos de conhecimento que
poderiam ir de especulações filosóficas às ciências físicas e biológicas ou até mesmo das ciências sociais,
dispersão esta que marca a identidade e multiplicidade da nossa profissão até os dias atuais.

- Auguste Comte (1798-1857), criador e divulgador do Positivismo, negou a necessidade de se ter uma
“psicologia” entre os campos de estudo das ciências biológicas e sociais, tendo em vista a problemática
do objeto de estudo da Psicologia: a psique.

“[...] Mas várias vezes é mais fácil, por exemplo, um psicólogo experimentalista que trabalha em
laboratórios com animais, tais como o rato e o pombo, entender-se com um biólogo do que com um
psicólogo social que estuda o homem em sociedade. Este, por sua vez, poderá ter diálogo mais fácil com
antropólogos e linguistas do que com muitos psicólogos que foram seus colegas na faculdade e que hoje
se dedicam à clínica psicoterápica. [...]” (FIGUEIREDO; SANTI, 2002, 15-16)
UMA REFLEXÃO

- Figueiredo e Santi (2002) provocam uma reflexão ao ressaltar os esforços em se fundar a Psicologia
como uma ciência independente (o que justifica sua institucionalização na universidade e centros de
pesquisa) ao mesmo tempo que esse diálogo se estreite com outras áreas do conhecimento.

- Se a psicologia científica depende de outras áreas de conhecimento para progredir em seus estudos,
por que justifica-se como uma ciência independente?
PRECONDIÇÕES PARA A INDEPENDÊNCIA
DA PSICOLOGIA COMO CIÊNCIA

- Figueiredo e Santi (2002) esclarecem que para que se constitua uma ciência voltada ao “psicológico”,
portanto, interessada na psique, é necessária que haja precondições socioculturais específicas, que os
autores exemplificam a partir de duas condições:

a) a existência de uma experiência da subjetividade privatizada;

b) a experiência da crise dessa subjetividade privatizada.

O que é subjetividade privatizada?


SUBJETIVIDADE PRIVATIZADA
- Subjetividade privatizada: É nossa experiência íntima, portanto, acessível privadamente.

Pensar na tomada de decisão;

Sentir emoções, sem demonstrá-las aos outros;

Ter pensamentos privados que não compartilhamos com mais ninguém.

- Figueiredo e Santi (2002) argumentam que essa experiência íntima tão comum a nós, não é natural,
mas historicamente construída, essa aparente liberdade de tomada de decisões e emoções no campo
privado não é comum a todos os seres humanos, tampouco em todas as épocas.
SUBJETIVIDADE PRIVATIZADA
- Os autores constatam que é em momentos de crise social que as tradições culturais são questionadas,
quando surgem novas subjetividades, nessas circunstâncias o fato do indivíduo não conseguir respaldo na
sociedade, permite a contestação e criação de modos de pensar e viver:

“[...] Quando há uma desagregação das velhas tradições e uma proliferação de novas alternativas, cada
homem se vê obrigado a recorrer com maior constância ao seu ‘foro íntimo’ – aos seus sentimentos (que
nem sempre condizem com o sentimento geral), aos seus critérios do que é certo e do que é errado (e na
sociedade em crise há vários critérios disponíveis, mas incompatíveis). A perda de referências coletivas,
como a religião, a ‘raça’, o ‘povo’, a família, ou uma lei confiável obriga o homem a construir
referências internas. Surge um espaço para a experiência da subjetividade privatizada: quem sou eu,
como sinto, o que desejo, o que considero justo e adequado? [...]” (FIGUEIREDO; SANTI, 2002, p. 20)
SUBJETIVIDADE PRIVATIZADA
- Figueiredo e Santi (2002) reforçam que as artes ou mesmo as expressões religiosas contribuíram para
criar as condições de constituição de uma subjetividade privatizada.

- Esta não foi construída linear e progressivamente, mas na medida em que homens e mulheres foram
modificando a sociedade e a si mesmos, passaram a sentir-se autônomos, refletir sobre si, sentir-se
“livres” ou tendo controle de suas próprias vidas, constatação naturalizada nos dias de hoje.

- Porém, é a ilusão de liberdade dentro de sociedades contemporâneas pautadas no consumo que se


criam não só condição de desenvolvimento de uma subjetividade privatizada, mas da própria
necessidade de existir uma ciência independente como a Psicologia para revelar essa ilusão.
A SUBJETIVIDADE NA MODERNIDADE

- Figueiredo e Santi (2002) apontam que a noção de subjetividade privada que conhecemos atualmente,
surgiu nos últimos três séculos na passagem do Renascimento para a Idade Moderna, de modo que a
crise desta subjetividade ocorreu no fim do século XIX, momento em que surge a Psicologia.

Renascimento: movimento cultural que surgiu entre os séculos XIV e XVI, descentralizando Deus
como principal referência, na medida que valorizava o homem como centro do mundo

Idade Moderna (1453-1789): período posterior à Idade Média que se inicia por volta do século XV,
tendo como um de seus principais marcos a queda de Constantinopla (1453) e as grandes navegações
(expedição de Cristóvão Colombo data de 1492) expandindo o horizonte dos homens europeus com o
contato com diversas culturas.
A SUBJETIVIDADE NA MODERNIDADE

- Figueiredo e Santi (2002) constatam que com a falência da Idade Média e a entrada na Idade Moderna,
as relações sociais e compreensão de mundo dos homens mudam radicalmente:

“A experiência medieval fazia com que o homem se sentisse parte de uma ordem superior que o
amparava e constrangia ao mesmo tempo. Por um lado, a perda desse sentimento de comunhão com uma
ordem superior traz uma grande sensação de liberdade e a possibilidade de uma abertura sem limites para
o mundo, mas, por outro, deixa o homem perdido e inseguro: como escolher o que é certo e errado sem
um ponto seguro de apoio?” (FIGUEIREDO; SANTI, 2002, p. 23-24)
SUBJETIVIDADE NA MODERNIDADE
- Figueiredo e Santi (2002) reconhecem o papel importante do período do Renascimento em que os seres
humanos ao passarem por esta sensação de desamparo e perdas de referências passaram a produzir
conhecimento, portanto interpretar o mundo, produzindo novos modos de ser (o “Homem” como centro).

- A crença em Deus permaneceu, mas Deus não era mais o centro do mundo, era o próprio ser humano
que por meio das transformações e criações da época criou as condições ideais para a ciência moderna
cujo marco foi a contribuição de Galileu Galilei (1564-1642) para a sistematização do método científico.

- Nesse período surgem personagens reais e fictícios que expressam tais transformações de seu tempo,
revelando a subjetividade privatizada: Leonardo da Vinci (1452-1519), Miguel de Cervantes (1547-
1616), Dom Quixote, William Shakespeare (1564-1616).
SUBJETIVIDADE NA MODERNIDADE
- Os autores também apontam que nesse período surgiu a imprensa que permitiu a difusão da leitura
silenciosa, experiência solitária em que o indivíduo poderia desenvolver um ponto de vista próprio.

- Michel de Montaigne (1533-1592): foi um pensador francês, em

seu livro Ensaios propõe a tomar a si mesmo como objeto de aná-

lise, mesmo admitindo ser uma pessoa comum, distante de feitos

notáveis, o que permite que desenvolva o seu “eu” numa obra es-

crita por 20 anos e com mais de mil páginas, dá mostras do reco-

nhecimento de uma subjetividade privatizada.


SUBJETIVIDADE PRIVATIZADA

- Figueiredo e Santi (2002) apontam que a descrença do período, atrelada ao nascimento do


individualismo permitiu duas reações distintas: reação racionalista e reação empirista.

- A Igreja Católica e as Igrejas Protestantes racionalizaram as ideias de individualismo e liberdade,


transformando-as em uma articulação de crença em Deus e o livre arbítrio.

- Segundo os autores, o período da Reforma e da Contra Reforma foram fundamentais para criar formas
de controle do indivíduo e a ideia de individualidade característica da Idade Moderna.
SUBJETIVIDADE PRIVATIZADA

- Pico dela Miramdola (1463-1494): foi um humanista que

contribuiu para a racionalização ao reescrever a Gênese e

defender que a liberdade seria o presente exclusivo que o

ser humano ganhou de Deus, cabendo a ele, fazer bom uso

desse presente para ser recompensado ou punido, ou seja,

sustenta-se a ideia de liberdade e individualismo, mas com

uma concepção religiosa disciplinar.


SUBJETIVIDADE PRIVATIZADA
- Figueiredo e Santi (2002) estabelecem como o marco do pen-

samento moderno as reflexões René Descartes (1596-1650),

cujo principal objetivo era estabelecer condições seguras de

produção de conhecimento da verdade, portanto, refletindo

sobre o método e os pressupostos do conhecimento, servindo-

se da dúvida metódica para identificar ideias verdadeiras. É o

reconhecimento de si, como ser que duvida (“Penso, logo exis-

to”), toda a produção de conhecimento daí em diante terá co-

mo pressuposto a evidência de um “eu”.


SUBJETIVIDADE PRIVATIZADA

- Figueiredo e Santi (2002) apontam Descartes como inaugurador do pensamento moderno, sinaliza que
não se deve buscar a verdade na transcendentalidade, mas na representação correta do mundo.

- A representação do mundo é interna e parte do pressuposto de uma consciência, o “eu” (sujeito do


conhecimento) transforma-se em elemento transcendente (fora do mundo).

“[...] O sujeito do conhecimento (o ‘eu’) é tornado agora um elemento transcendente, ‘fora do mundo’,
pura representação sem desejo ou corpo, e por isto supostamente capaz de produzir um conhecimento
objetivo do mundo.” (FIGUEIREDO; SANTI, 2002, p. 31)
SUBJETIVIDADE PRIVATIZADA
- Francis Bacon (1561-1626): um filósofo e político inglês, con-

temporâneo de Descartes, também dedicou-se a desenvolver ba-

ses seguras para a produção do conhecimento, publicando obras

em sua época que se debruçavam sobre o método, no entanto,

sua visão o levava a refletir a partir das experiências dos senti-

Dos e da percepção, inaugurando o empirismo moderno.


SUBJETIVIDADE PRIVATIZADA

- Figueiredo e Santi (2002) situam Francis Bacon como o responsável pela reação empirista,
direcionando a ciência moderno para o rigor do método que valoriza a experiência e a percepção.

“[...] É necessário dar à razão uma base das experiências dos sentidos, na percepção, desde que essa
percepção tenha sido purificada, liberada de erros e ilusões a que está submetida no cotidiano. Bacon
escreveu uma série de obras importantes, entre as quais o Novum organum, em que elabora suas
propostas de como se livrar do erro e encontrar a verdade tendo como base a experiência subjetiva
sensorial e racional. [...]” (FIGUEIREDO; SANTI, 2002, p. 31)
A CRISE DA SUBJETIVIDADE MODERNA EM
SUAS EXPRESSÕES FILOSÓFICAS
- Figueiredo e Santi (2002) esclarecem que a crença em se obter uma verdade absoluta a partir do
Método correto desenvolvida por Descartes e Bacon é criticada no Iluminismo do século XVIII.

- Iluminismo: movimento filosófico do século XVIII, também conhecido como Ilustração ou Século
das Luzes, cultivou-se as ideias filosóficas dos séculos precedentes, inclusive de Descartes, valorizando
as experiências individuais e o empirismo, mas criticando-as em determinado momento.

“[...] Por um lado, isto representou uma consciência mais profunda, sólida e complexa de toda a
problemática do conhecimento, mas, de toda a forma, começou a se colocar em xeque a soberania do
‘eu’, seja o ‘eu’ da razão, seja o ‘eu’ dos sentidos purificados.” (FIGUEIREDO; SANTI, 2002, p. 32)
A CRISE DA SUBJETIVIDADE MODERNA
EM SUAS EXPRESSÕES FILOSÓFICAS

- David Hume (1711-1776): foi um filósofo que criticou a

substancialidade do “eu” que era compreendido não como

algo concreto e estável, mas como o efeito das experiênci-

as, portanto, o “eu” é produto da experiência dos seres hu-

manos e não o condutor dessas experiências, dessa forma o

indivíduo não poderia considerar-se a si própria a base do

conhecimento.
A CRISE DA SUBJETIVIDADE MODERNA
EM SUAS EXPRESSÕES FILOSÓFICAS

- Immanuel Kant (1724-1804): foi um filósofo prussiano que

opõe-se à radicalidade de Hume, mas considera a problemáti-

ca da crença dos conhecimentos absolutos, desta forma o indi-

víduo só tem acesso aos fenômenos, não nas coisas em si, por-

que elas são inacessíveis, portanto, todo conhecimento depen-

de da subjetividade humana (esta transcendental, não individu-

al).
A CRISE DA SUBJETIVIDADE MODERNA EM
SUAS EXPRESSÕES FILOSÓFICAS
- Os autores situam o Romantismo como um movimento significativo de crítica ao “eu” e à razão
universal, tendo surgido no final do século XVIII, como uma critica à vertente racionalista do
Iluminismo, se opôs à ideia de que o homem é um ser racional.

- Neste sentido, o Romantismo baseia-se em uma crítica à modernidade, ao mesmo tempo que expressa
uma nostalgia de um estado anterior perdido e revela camadas profundas do ser humano.

“Aquilo que na ‘fundação’ da modernidade deve ser excluído do ‘eu’ ou mantido sob o férreo controle do
Método parece agora invadi-lo. A razão é destronada, o Método parece agora invadi-lo. A razão é
destronada, o Método feito em pedaços e o ‘eu’ racional e metódico é deslocado do centro da
subjetividade e tomado agora como uma superfície mais ou menos ilusória que encobre algo profundo e
obscuro.” (FIGUEIREO; SANTI, 2002, p. 35)
WILLIAM TURNER
A CRISE DA SUBJETIVIDADE MODERNA
EM SUAS EXPRESSÕES FILOSÓFICAS
- Figueiredo e Santi (2002) reconhecem que a crise do ‘eu’ se estende ao longo do século XIX, em
especial em sua primeira metade quando sua soberania continua a ser questionada.

- Charles Darwin (1809-1882): foi um biólogo e naturalista que ao propor a teoria da evolução, destronou
a concepção cristã de que o homem seria um ser especial criado à semelhança de Deus.

- Karl Marx (1818-1883): foi um filósofo e teórico político que ao desvelar o capitalismo nas entranhas da
Economia Política demonstra as leis econômicas que submetem os indivíduos às condições de exploração.
A CRISE DA SUBJETIVIDADE MODERNA
EM SUAS EXPRESSÕES FILOSÓFICAS

- Friedrich Nietzsche (1844-1900): foi um filósofo alemão que ra-

dicalizou as concepções de Hume explicitando a crise da subjetivi-

dade no século XIX, ao utilizar-se do método da genealogia, des-

construiu os fundamentos da filosofia ocidental desde Platão, ques-

tionando as crenças e ideias socialmente estabelecidas, de modo a

reconhecer a historicidade das ideias e sua utilização.


A CRISE DA SUBJETIVIDADE MODERNA EM
SUAS EXPRESSÕES FILOSÓFICAS
“[...] Assim, a ‘ideia’ platônica, Deus, o sujeito moderno de Descartes ou de Bacon são revelados como
criações humanas. Nossas crenças e valores estão comprometidos com a perspectiva em que nos
colocamos a cada instante. A crença em algo fixo e estável seria uma necessidade humana, na tentativa
de crer que tem controle sobre o devir. Nietzsche dá um passo bem largo e radical: não só o homem é
deslocado da posição de centro do mundo, como a própria ideia de que o mundo tenha um centro ou
uma unidade é destruída. Assim, quando Nietzsche denuncia o caráter ilusório e não necessário de todo
o fazer humano, isto não representa a defesa do abandono da ilusão em favor de outro modo de ser mais
legítimo ou bem fundamentado (como na crítica católica ou romântica à modernidade). A ilusão não
pode ser substituída por nada melhor por que simplesmente não existe nada melhor. A questão de
Nietzsche é saber o quanto cada ilusão em cada contexto se mostra útil à expansão da vida.”
(FIGUEIREDO; SANTI, 2002, p. 37-38)
SISTEMA MERCANTIL E
INDIVIDUALIZAÇÃO
- Figueiredo e Santi (2002) reconstituem a crise da subjetividade privatizada pela ótica do pensamento
filosófico que se desenvolveu entre os séculos XVI e XIX.

- Os autores também apontam para a necessidade de se compreender a existência do sistema social e


econômico dessa época, ou seja, o capitalismo nascente que se desenvolveu no período.

- Considera-se que em todas as sociedades houve uma relação de troca, em um primeiro momento
famílias, clãs ou aldeias trocam seu produto excedente com outros que assim como estes são
“especializados” em algum tipo de produção. Inicialmente existia a produção social.
SISTEMA MERCANTIL E
INDIVIDUALIZAÇÃO
- Os autores apontam que em determinado momento ocorre uma mudança, deste modo são indivíduos
que passam a se especializar e produzir produtos para trocas, não família, clãs ou aldeias, criando-se
condições para a subjetividade privatizada quando cada um deve descobrir um ofício adequado.

- Nessas novas condições, os indivíduos devem trocar seu produto no mercado, onde por sua vez
instaura-se a situação de negociação e possibilidade de lucro ou prejuízo, universaliza-se a ideia de que
os interesses individuais estão acima dos interesses da sociedade, surge o mercado de produtos.

- Nessas novas relações sociais em que se sobressai o indivíduo e não os interesses de grupo, surge
também o mercado de trabalho, onde homens que não são donos do meio de produção vendem a sua
força de trabalho para sobreviver, são assalariados. A produção passa a priorizar lucros privados.
SISTEMA MERCANTIL E
INDIVIDUALIZAÇÃO
- Os autores compreendem que essa transformação das relações sociais entre a Idade Média e a Idade
Moderna marcam o início do capitalismo.

- Tais mudanças reconfiguram a organização social e a relação que os indivíduos tinham com o trabalho:

“[...] Isto significa a ruptura dos vínculos que nas sociedades pré-capitalistas uniam os produtores uns
aos outro e todos aos meios de produção. A produção era sempre diretamente social: embora pudesse
haver algumas especializações entre os homens de uma família ou entre membros de uma pequena
comunidade, a existência de cada um dependia fundamentalmente de sua vinculação com o grupo. [...]”
(FIGUEIREDO; SANTI, 2002, p. 42).
SISTEMA MERCANTIL E INDIVIDUALIZAÇÃO
- Figueiredo e Santi (2002) apontam que o surgimento do capitalismo, ocorreu somente com o
desaparecimento das relações servis, momento em que o mercado de trocas e o mercado de trabalho se
alteram compondo o sistema mercantil. Verificar Ferla e Andrade (2007) para compreender a transição do
feudalismo para o capitalismo.

- O surgimento do trabalhador livre, o indivíduo que tem a liberdade de vender a sua força de trabalho,
significa a perda da solidariedade do grupo (família, aldeia, clã), a perda da proteção do senhor.

- O indivíduo no capitalismo torna-se livre, mas esta liberdade vem acompanhada do desamparo, no
entanto para que se operem essas transformações as ideias na sociedade também precisam transformar-se.
IDEOLOGIA LIBERAL E ROMANTISMO

- Figueiredo e Santi (2002) demonstram que nos séculos XVIII e XIX, surgiu na cultura ocidental duas
formas de pensamento que expressavam as experiências da subjetividade privatizada na sociedade
mercantil: ideologia liberal e o romantismo.

- Ideologia liberal: forjada na Revolução Francesa (1789) propunha que os homens são iguais em
capacidade e direitos, mas aponta-se a necessidade de que a liberdade nessas condições deve ser
acompanhada da solidariedade entre si.

- Romantismo: surgido na Filosofia e nas Artes (século XVIII), reconhece-se não somente a liberdade
entre os indivíduos, mas a liberdade de ser diferente.
IDEOLOGIA LIBERAL E ROMANTISMO

- Os autores sustem que as relações sociais no período e as transformações históricas que se deram,
precisaram do desenvolvimento da ideologia liberal e do romantismo, não sem contradições:

“[...] segundo a Ideologia Liberal, todos são iguais, mas têm interesses próprios (individuais); segundo
o Romantismo, cada um é diferente, mas sente saudade do tempo em que todos viviam
comunitariamente e espera pelo retorno desse tempo. Enquanto isso não vem, os românticos acreditam
que os grandes e intensos sentimentos podem reunir os homens apesar de suas diferenças. Já os liberais
apostam na utópica fraternidade.” (FIGUEIREDO; SANTI, 2002, p. 45)
REGIME DISCIPLINAR
- Figueiredo e Santi (2002) pontuam que a “liberdade individual” trouxe a sensação de desamparo,
solidão e uma carga de responsabilidade que permitiram novas formas de sofrimento.

- É nesse contexto que surge um sistema de docilização/ domesticação do indivíduo para amenizar os
“inconvenientes” da liberdade, sistema esse conhecido como Regime Disciplinar ou Disciplinas,
pautado por técnicas científicas e atuante nas agências sociais (escola, prisões, Estado etc.):

“[...] Embora essas disciplinas reduzam em muito efetivamente o campo do exercício das subjetividades
privatizadas, impondo padrões e controles muito fortes às condutas, à imaginação, aos sentimentos, aos
desejos e às emoções individuais, faz parte de seu modo de funcionamento dissimular-se, esconder-se,
deixando-nos crer que somos cada vez mais livres, profundo e singulares. É claro, porém, que vai se
instalando um certo mal-estar e vão se criando condições para a suspeita dos homens em relação a si
mesmos. [...]” (FIGUEIREDO; SANTI, 2002, p. 46-47)
A CRISE DA SUBJETIVIDADE PRIVATIZADA

- Figueiredo e Santi (2002) recolocam que o surgimento para os projetos de uma psicologia científica,
dependem de uma subjetividade privatizada e de que esta entre em crise ao ser questionada.

- As ideias sustentadas pela ideologia liberal e o romantismo não contestam, mas fortalecem a
experiência das subjetividades privatizadas, legitimando-as no contexto do sistema mercantil.

- Ao passo que os pensamentos filosóficos se em certa medida contribuem para também constituir a
subjetividade privatizada, ao reconhecer a constituição de um “eu” (Pico dela Mirandola, Descaters,
Bacon, Kant), em um segundo momento apontam para uma crise desse eu soberano (Hume, Nietzsche).
“A subjetividade privatizada entra em crise quando se descobre que a liberdade e a diferença são, em
grande medida, ilusões, quando se descobre a presença forte, mas sempre disfarçada, das Disciplinas
em todas as esferas da vida, inclusive nas mais íntimas e profundas. A crença de que a fraternidade
seria possível, ainda que todos defendessem seus interesses particulares, não sobreviveu por muito
tempo. Os interesses particulares levam a conflitos; a liberdade para cada um tratar de seu negócio
desencadeou crises, lutas e guerras. Os trabalhadores do século XIX foram aos poucos descobrindo que
se defenderiam melhor unidos em sindicatos e partidos do que sozinhos. O Estado, a administração
pública não ficaram inertes. Para combater os movimentos operários reivindicatórios, para pôr um
pouco de ordem na vida social – em que cada um defendia o que era seu sem pensar nas consequências
para todos – e para defender os interesses dos produtores de uma nação contra os das outras, a
administração pública cresceu, cresceram o Estado, a burocracia, cresceram as forças armadas. [...]”
(FIGUEIREDO; SANTI, 2002, p. 47-48, grifos nossos)
A DECEPÇÃO NECESSÁRIA
- Figueiredo e Santi (2002) afirmam que ao passar pela experiência da subjetividade privatizada e verificar
as ilusões de sua suposta liberdade, aparecem crises e a necessidade de se pensar nas causas e significados
de suas ações, emoções e pensamentos, daí: surgem as condições para a psicologia científica.

- O interesse no campo da psique se reflete em diversas demandas e interesses sociais que podem surgir a
partir de muitas direções e com muitas intenções, dentre as quais:

a) a demanda individual de se compreender e lidar com essas crises.

b) a demanda do Estado que por meio do regime disciplinar precisa conter e controlar os conflitos.

c) a demanda dos modelos liberais e românticos de se compreender o mal estar da época.


PSICOLOGIA E SUA INDEPENDÊNCIA

- Figueiredo e Santi (2002) constatam que o reconhecimento e a crise da subjetividade privatizada


criaram não só as condições para a necessidade que permitiu a existência da Psicologia como ciência
independente, mas da possibilidade de diversos projetos científicos de psicologia.

- Desta forma, deve-se considerar a preocupação de cientistas e filósofos do século XIX que antes de
criarem uma psicologia “científica” precisaram estabelecer as bases da própria Ciência.

- As ciências da natureza (Astronomia, Biologia, Física, Química) foram consolidas nos últimos três
séculos, lançando as bases para a Ciência Moderna.
O DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA

- Figueiredo e Santi (2002) sinalizam que para a existência de um conhecimento científico é necessário
o reconhecimento de que o homem tem o direito de manipular a natureza, portanto, escapando das
restrições impostas pelas doutrinas religiosas.

- O rigor científico exige que para obter o conhecimento verdadeiro, deve-se abandonar preconceitos,
desejos e sentimentos, de modo a utilizar procedimentos passíveis de “objetividade”.

- Portanto, desenvolve-se uma metodologia científica que elimine quaisquer resquícios de


“subjetivismos” para se obter por meio de procedimento científicos um conhecimento verdadeiro.
SUBJETIVIDADE COMO CONDIÇÃO HUMANA

- Figueiredo e Santi (2002) apontam que após séculos de tentativas se observou que não é possível a
eliminação da subjetividade na investigação científica, pois o pesquisador é um indivíduo que ao
produzir conhecimento detém uma experiência subjetiva que é individualizada e privada.

- O avanço da Ciência necessitou conhecer e controlar essas subjetividades, permitindo que para além
do conhecimento das diferenças individuais o indivíduo torna-se em si, um objeto de estudo em si:

“[...] A epistemologia (teoria do conhecimento) e a metodologia (regras e procedimentos na


produção de conhecimento válido) desembocam na psicologia: a denúncia e o expurgo dos ‘ídolos do
conhecimento’ exigem um estudo prévio da subjetividade e de seus subterrâneos.” (FIGUEIREDO;
SANTI, 2002, destaques nossos)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
- Figueiredo e Santi (2002) concluem que a psicologia científica surge e se desenvolve marcada pela
contradição:

a) pressuposto de indivíduos livres e diferentes entre si tem o direito de transformar a natureza;

b) mas tem de dominar a própria subjetividade, eliminando a diferença entre si, a fim de garantir um
método que expresse a objetividade do conhecimento.

- É neste quadro geral que podemos refletir sobre a Psicologia como uma ciência independente, cuja
busca pelo conhecimento verdadeiro está atrelada às condições socioculturais de sua época e que desde
sua fundação não garantiu o consenso de uma psicologia, mas de projetos de psicologia científica.
FONTES DAS IMAGENS

Imagem de Michel de Montaigne

https://pt.wikipedia.org/wiki/Michel_de_Montaigne#/media/Ficheiro:Portrait_of_Michel_de_Montaigne,_circa_unknown.jpg

Imagem de Pico delaa Mirandola

https://pt.wikipedia.org/wiki/Giovanni_Pico_della_Mirandola#/media/Ficheiro:Pico1.jpg

Imagem de Descartes

https://pt.wikipedia.org/wiki/Ren%C3%A9_Descartes#/media/Ficheiro:Frans_Hals_-_Portret_van_Ren%C3%A9_Descartes.jpg
FONTES DAS IMAGENS

Imagem de Francis Bacon

https://pt.wikipedia.org/wiki/Francis_Bacon#/media/Ficheiro:Francis_Bacon,_Viscount_St_Alban_from_NPG_(2).jpg

Imagem de David Hume

https://pt.wikipedia.org/wiki/David_Hume#/media/Ficheiro:Painting_of_David_Hume.jpg

Imagem de Immanuel Kant

https://pt.wikipedia.org/wiki/Immanuel_Kant#/media/Ficheiro:Kant_foto.jpg
FONTES DAS IMAGENS

Quadro de William Turner

https://pt.m.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Joseph_Mallord_William_Turner_024.jpg

Foto de Freidrich Nietzsche

https://pt.wikipedia.org/wiki/Friedrich_Nietzsche#/media/Ficheiro:Nietzsche187a.jpg

Você também pode gostar