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Comentário de Juízes 17

*Trecho extraído do livro Juízes para você – Timothy Keller, Editora Fiel. (Capítulo 12. Homens vazios 17.1 – 18.31)

Boa parte dos capítulos 17 e 18 gira em torno de Mica, um homem da “região montanhosa de
Efraim” (17.1, A21). Mica havia roubado 1.100 moedas de prata de sua mãe, mas, ao ouvir as
maldições que ela jogou contra o ladrão, Mica confessou o roubo (v. 2) e devolveu o dinheiro (v. 3).
Ele não era nem muito bom nem muito mau. Se fosse completamente mau, não teria devolvido o
dinheiro. Mas, é claro, se fosse bom, não teria roubado o dinheiro! E, pelo jeito, ele devolveu o dinheiro
rapidamente porque ouviu a mãe pronunciar maldições (v. 2), e não porque sentiu a consciência pesada.
Temos aqui uma pessoa de caráter muito fraco, sem princípios. Mica é vazio -- um homem sem muita
substância.
A mãe reverte a maldição e pede que o filho seja abençoado (v. 2). Ela é benigna em perdoar!
Mas é muito rápida em declarar restauração! Ela não quer saber se houve arrependimento verdadeiro,
e, assim, não há reconciliação total. Sem esse processo doloroso, o mau comportamento não é
desencorajado. Mica não é desafiado a examinar seu coração e o motivo de ter roubado o dinheiro;
não há reconhecimento sincero e humilde da necessidade de graça e transformação. Pais críticos e
punidores prejudicam os filhos, mas pais condescendentes fazem o mesmo. O comportamento da mãe
revela por que Mica é do jeito que é.

Um problema de Imagem
A mãe de Mica é bastante ortodoxa ao invocar o nome do Senhor como fonte de bênçãos (v.
2). Essa família não cultua Dagom nem baalins nem imagens de Astarote nem outros deuses. Adoram
a Deus em palavras.
Mas... quando o dinheiro foi devolvido, ela o dedicou “ao SENHOR”, para que o filho fizesse
“uma imagem esculpida e um ídolo de metal” (v. 3). Ela entrega duzentas moedas de prata a um
ourives, que delas fez “uma imagem [..] e um ídolo”. É um gesto espantoso, que mostra desrespeito
absoluto pelo segundo mandamento (Ex 20.4,5; Dt 4.15-17), em que Deus ordena que não se faça
nenhum tipo de imagem sua. Ele não pode ser adorado em forma criada e moldada pelo homem.
Por que Deus ordena tal coisa? Porque qualquer imagem esculpida ou representação de Deus
revelaria automaticamente parte da natureza de Deus, mas ocultaria outra parte. Por exemplo, Arão
construiu um bezerro de ouro no deserto. O bezerro não era outro deus, e sim um jeito de adorar a
Deus. Contudo, embora o bezerro pudesse simbolizar o poder de Deus, não revelava sua justiça ou seu
amor. Se você fizesse um retrato de Deus e tentasse adorá-lo, ele mostraria um Deus sorridente e
amoroso ou impressionante e majestoso? O retrato não expressaria toda a extensão da glória de Deus
e, portanto, sua Visão de Deus seria distorcida. Adorar a Deus por meio de imagens revela um espírito
interior que não quer se submeter a Deus exatamente como ele é, mas que deseja escolher os atributos
para criar um Deus que nos seja agradável.
Como sabemos, essa é a base de um antigo debate católico-protestante. Os protestantes sempre
reclamaram que o uso que as igrejas católica e ortodoxa fazem de estátuas ou “ícones” na adoração (p.
ex., reverenciar pinturas de Deus, de Cristo ou dos santos) é uma péssima ideia. O motivo é que o
retrato geralmente “sequestra” as emoções e leva-as em uma única direção, mostrando Deus em um
único aspecto de seu ser.
No entanto, esse não é o problema principal. O verdadeiro problema na adoração por meio de
imagens é o desejo de moldar e revisar Deus espiritualmente. Em linguagem moderna, é uma recusa
em deixar Deus “ser ele mesmo” em nossa vida. Filtramos (conscientemente ou não) as coisas sobre
Deus que nosso coração não consegue aceitar. De certo modo, esse é o maior pecado de nossa época.
Quantas vezes você ouviu alguém afirmar: Não acredito num Deus assim. Para mim, Deus é...? Isso
é adorar a Deus por intermédio da obra de nossas próprias mãos. E podemos fazer isso sem esculpir
uma imagem material.
O modo mais grave de fazermos isso é por meio da rejeição intelectual e consciente de uma
parte da revelação de Deus nas Escrituras. Fazemos isso quando declaramos: Não dá mais para aceitar
um Deus que faz isso... ou que proíbe aquilo... Ao usar a frase “não dá mais para”, nós nos revestimos
do famoso manto chamado progresso. Na verdade, o que estamos afirmando é: O desagrado de nossa
cultura por esse conceito significa que temos de abandoná-lo! Temos de ter um Deus que se amolde
às sensibilidades de nossa cultura. Isso significa que nós, tal como a família de Mica, estamos
remodelando Deus para que ele se encaixe em nosso coração e em nossa sociedade em vez de permitir
que ele remodele nosso coração e nossa sociedade.
O segundo modo de adorarmos a Deus por nossas próprias obras é ignorando ou evitando
psicologicamente os aspectos da revelação de Deus dos quais não gostamos. Por exemplo, Deus não
está brincando quando nos manda partilhar nosso dinheiro, em vez de o gastarmos apenas com nós
mesmos de forma desenfreada. Contudo, evitamos até pensar nas implicações disso em nossa vida.
Talvez saibamos que Deus leva a sério o perdão e a graça, mas somos críticos e duros de coração. Se
for o caso, adoramos um Deus feitor de escravos, não um pastor de ovelhas.
O terceiro modo de adorarmos a Deus dessa forma é SUBJETIVANDO todos os padrões
morais. Por exemplo, dois cristãos professos acham que podem ter relação sexual um com o outro,
embora não sejam marido e mulher. Por quê? Porque oraram (bom) e “sentiram paz sobre o assunto”
(irrelevante!). Os dois ignoram os mandamentos objetivos quanto ao sexo e casamento dados por Deus
em sua Palavra. É assim que Mica e família agem. Obedecem às leis de Deus até certo ponto e depois
as distorcem ou fazem acréscimos para se comportarem como bem lhes aprouver.
Por que isso é um problema tão sério? Porque impossibilita um relacionamento
verdadeiramente pessoal com Deus. Em um relacionamento pessoal com alguém de verdade, essa
pessoa pode nos contradizer e irritar e, assim, temos de lutar para crescer na intimidade. Mas quando
ignoramos (intelectual ou psicologicamente) os aspectos de Deus dos quais não gostamos, temos um
Deus que nunca contradiz nossos desejos mais profundos nem diz “não” à nossa vontade. Jamais
lutamos com ele. Nunca permitimos que ele nos faça exigências. Podemos acabar adorando um Deus
muito mais agradável, mas também inexistente.

Retendo uma parte


É impressionante que a mãe de Mica quebre o segundo mandamento para mostrar sua gratidão
ao Senhor! Mas ela também é desonesta. Depois de prometer “minha prata” (17.3), a mulher entrega
somente duzentas moedas para a confecção dos ídolos e retém novecentas para si (v. 4). A mãe de
Mica não coloca Deus em primeiro lugar, não lhe dá soberania em todas as áreas da vida. Ela se previne
contra riscos -- entrega parte de sua riqueza a Deus, contudo guarda a maior quantia para si. É fácil
usar a linguagem religiosa, afirmar ter Jesus como Senhor, mas lhe obedecer apenas em alguns “setores
da vida” e agir como bem entendemos em outras áreas. Ou então lhe obedecemos parcialmente em
cada setor, retendo parte de nosso dinheiro (como aqui), tempo, emoções ou relacionamentos, como
“apólice de seguro”, caso Deus não “cumpra sua parte do jeito que gostaríamos.
Em alguns casos, isso é hipocrisia total, como, por exemp10, quando a pessoa tem um caso
extra-conjugal. No entanto, quase sempre deixamos de analisar as implicações do evangelho em cada
área da Vida. Em Gálatas 2.14, Paulo confrontou Pedro (um apóstolo!) porque ele ainda permitia que
sentimentos racistas e preconceitos controlassem alguns aspectos de sua vida. Muitos cristãos
professos agem como se não fossem cristãos no ambiente de trabalho. Por exemplo, talvez sejam tão
desonestos ou implacáveis no gerenciamento de seus negócios como todos os outros. É fácil “consagrar
solenemente” toda a nossa Vida 3. Deus nos domingos, mas entregar-lhe apenas nossos domingos.

Religião caseira
Mica coloca os ídolos em um santuário em sua casa (Jz 17.5). Deus havia ordenado que
houvesse um tabernáculo central ou templo, estabelecido ao redor da nuvem de glória -- a presença
majestosa -- de Deus (Ex 25.1-9). Quando a nuvem de glória se movia, o tabernáculo se movia. Esse
era o lugar onde os sacrifícios eram oferecidos, onde a adoração acontecia, onde o “éfode” ou colete
sacerdotal era guardado, onde Deus respondia às perguntas do povo (veja p. 103-4). Deus não permitia
que os israelitas adorassem em qualquer lugar que desejassem. Mica, porém, ergueu seu próprio
santuário para adorar de acordo com sua conveniência. A religião de Israel se tornou uma preferência
individual.
Além disso, Mica consagrou seu filho como sacerdote. Mais uma vez, isso contradiz a
revelação MOSAICA de que somente os levitas poderiam ser sacerdotes. No entanto, Mica e sua mãe
decidem elevar um membro da família ao sacerdócio. Afinal, um santuário precisa de um sacerdote!
Mais tarde, encontram um levita e trocam de sacerdote (JZ 17.7-12). Contudo a obediência aos
mandamentos de Deus na maneira de tratá-lo e adorá-lo tornou-se um princípio secundário, e não
central.
Basicamente, a fé do povo de Deus é uma fé revelada. Deus se revela em sua palavra nós não
o descobrimos por meio de raciocínio ou experiência. Em resumo Deus manda: Adore-me como sou,
não como você quer que eu seja; adore-me como o meu coração orienta, e não como o seu coração
deseja. A família de Mica molda um Deus cuja adoração é conveniente. Segue os mandamentos que
prefere e ignora os outros.
É isso o que acontece quando a sociedade faz o que acha melhor (v. 6). Não é necessário que a
rejeição a Deus seja consciente. Também não é necessário que paremos de buscar a Deus ou que
cessemos todas as atividades religiosas. Aliás, o que não falta no capítulo 17 é atividade religiosa --
um santuário em sua casa é sinal de grande piedade! Mas isso é religião de acordo com os termos de
Israel, de acordo com as preferências individuais. É uma religião que não tem nada a ver com Deus,
sua verdade e sua vontade, e sim comigo, meus conceitos e minhas preferências. É uma religião que
busca controlar e domesticar o Senhor Deus, que tenta refazê-lo segundo uma imagem que nos agrada.
É uma religião fácil ou excitante -- mas não é uma religião que trará bênção ou libertação.

Agora eu sei...
No versículo 7, encontramos “um jovem levita, de Belém de Judá”. Ele havia deixado sua
cidade natal (onde deveria estar servindo ao povo como sacerdote) “em busca de outro lugar para
morar” (v. 8). Quando encontra Mica (v. 9), este vê uma oportunidade de tornar seu santuário caseiro
ainda mais impressionante. O levita concorda em ficar ali como sacerdote (v. 10-12). Exteriormente,
o santuário de Mica está agora mais de acordo com as leis do culto divino estabelecidas na lei mosaica
-os sacerdotes têm de ser levitas -, embora ele insista em rejeitar o princípio central dessa lei: o culto
tem de ser conduzido conforme a palavra de Deus, e não segundo as ideias humanas.
O versículo 13 revela todo o objetivo dos esforços de Mica (e de sua mãe): “Agora sei que o
SENHOR me tratará com bondade, pois esse levita se tornou meu sacerdote”. O propósito de seus
esforços religiosos é obter acesso a Deus a fim de conseguir o que deseja. O verdadeiro objetivo da fé
é dar a Deus acesso a0 nosso coração de modo que ele nos leve a fazer sua vontade. O verdadeiro
propósito da religião é levar o Senhor Deus a trabalhar por nós --o propósito da fé movida pelo
evangelho é levar nosso coração a trabalhar para o Senhor Deus.
Mas por que vamos querer sinceramente que Deus governe nosso coração, de modo que
trabalhemos para ele? Nunca faremos isso se o reduzirmos a uma imagem feita por homens, a uma
projeção mental de nós mesmos ou a uma marionete que concorda com tudo o que já decidimos. Jamais
seríamos levados a servir um deus tão pequeno assim! Mas, quando temos a fé movida pelo evangelho,
conhecemos o Deus verdadeiro, que, movido por seu imenso poder e amor, enviou seu Filho para
morrer em nosso lugar e nos concedeu sua justiça; um Deus que enviou seu Espírito ao nosso coração
para nos transformar na pessoa que ele planejou que fôssemos, usufruindo de suas bênçãos. Se
conhecemos esse Deus, por que não querer servi-lo? A tragédia da religião humana é que ela sempre
reduz o Senhor Deus a alguém que é controlado, em lugar de ver Deus como aquele que está no
controle e merece ser adorado de verdade e com todo o nosso viver. Quando diminuímos o Senhor
Deus, só nos resta adorar um deus que não pode nos ajudar, salvar ou abençoar -- exatamente o que
Mica está para descobrir.

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