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DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA: TEORIA E PRÁTICA

BARBOSA, FARIA e MELLO (Org.)

INTRODUÇÃO

Desde o início do século XX a Itália vem contribuindo com a constituição de olhares


sobre a infância e a escola para crianças pequenas. Após a segunda grande guerra, um grupo de
pessoas interessadas na formação das novas gerações perguntava-se como seria uma escola
capaz de garantir que Auschwitz não se repetisse. Foi em busca de respostas para esse desafio
que Loris Malaguzzi e seus colaboradores constituíram um tipo de escola e de gestão que hoje é
denominado abordagem de Reggio Emília, que compreende uma experiência de educação de
crianças a ser vivida na escola sob uma gestão participativa e que se assume responsável pela
proposta educativa juntamente com as famílias, no contexto de uma vida comunitária.
Na Itália, portanto, a pedagogia para a pequena infância é algo muito sério. Lá
encontramos várias cidades envolvidas com o desafio de acolher crianças, oferecendo uma
educação com qualidade, plural, aberta ao mundo e criando nas comunidades e famílias uma
concepção de escola potente e de escola de infância como lugar de encontro e vida em comum.
Em sua carreira como professor e gestor Loris Malaguzzi criou muitas estratégias
pedagógicas, e a denominada Documentação Pedagógica. Em sua biografia Alfredo Hoyuelos
relata que, quando exercia o cargo de consultor pedagógico, sugeriu para as professores que
elaborassem um diário numa caderneta onde deveriam, com todo cuidado, anotar e refletir sobre
tudo o que acontecia em sala e que “recolhesse a essência da vida na escola”, com o objetivo de
discutir esses escritos com ele e outros colegas em momentos de formação. Este diário foi a
gênese da documentação pedagógica, que aos poucos, foi expandindo suas três funções: criar
um diálogo entre escola e famílias/comunidade, criar memórias da vida das crianças na escola,
tanto individualmente quanto no grupo, e tornar-se matéria prima para compartilhamento,
ressignificação e discussão em momentos de formação dos educadores.
Esta obra apresenta a tradução de dois livros sobre o tema, publicados em Barcelona
pela Associação de Professores Rosa Sensat, que relatam história de formação, auto formação e
formação em rede de professores e professoras. Esta associação organiza projetos de formação
de professores, e apresenta neste livro a história destes projetos e atividades. A primeira parte,
chamada de Documentar a vida das crianças na escola da infância, relata o início do processo
educativo dos grupos de professores da Associação; e a segunda, Documentar: aguçar os olhos
para captar momentos, é formada a partir de conferências ministradas na Escola de Verão da
Associação para um grupo ampliado de educadores.
A primeira parte contém textos de dois colaboradores de Malaguzzi em Reggio Emília:
Mara Davoli e Mariano Dolci, além de artigos de dois professores da rede pública catalã (David
Altimir e Meritxell Bonàs) que escrevem a partir de sua experiência no uso da documentação.
Na segunda parte do livro, as educadoras italianas Anna Lia Galardini, Sonia Iozzelli, Mara
Davoli e Gloria Tognetti compartilham suas conferências com educadores que querem conhecer
a estratégia da documentação pedagógica.
O livro apresenta, portanto, uma polifonia de vozes que, além de investigativas em seus
modos de compreender a infância e a escola, são propositivas. Fala de uma pedagogia que cria
vida, onde teoria e prática não se separam, além de tocar em duas temáticas importantes: a
formação continuada de professores e professoras, já que aprender junto aos colegas, organizar
grupos de estudos e fazer pesquisa na escola é a melhor maneira de construir novas pedagogias,
e a abordagem didática, menos linear e mais interativa.
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PARTE I - DOCUMENTAR A VIDA DAS CRIANÇAS NA ESCOLA DA INFÂNCIA

DOCUMENTAR PROCESSOS, RECOLHER SINAIS


Mara Davoli

Nas escolas de Reggio Emília a documentação é argumentação, narração e explicação


de processos, constituindo-se em um procedimento que contribui para repensar a didática, já que
acontece durante o processo e não no fim da experiência. A documentação também inclui os
pequenos, e não representa apenas a memória do que já aconteceu, mas também permite
compreender o que e como foi feito.
Observar significa conhecer - aqui concebido como uma emoção do conhecimento que
contém nossa subjetividade, expectativa, hipóteses e teorias de referência. Isto é, toda a
observação é parcial pois o que sabemos ver depende de nossa subjetividade, assim como das
perguntas que nos dispomos a ver frente à situação, que não são uma jaula, mas que nos levam a
refletir sobre nossos imaginários. Quanto mais hipóteses temos sobre determinada situação mais
capacitados estamos para compreendê-la. Logo, observar é um ato criativo, que implica
repensar e pensar sem pré-conceitos.
Quando documentamos uma experiência, geramos um material que precisa ser
compilado, interligar as diversas linguagens, interpretá-lo, relacionar teoria e prática. Podemos
também ir além e fazer descobertas relacionadas tanto a um grupo específico de crianças quanto
à teoria de aprendizagem e construção do conhecimento. Desta forma, pode-se articular
narrações sobre as experiências com o material que serviu de base para essas narrações
(gravações, fotografias, etc.) para aprofundar além da experiência concreta.
Observação, documentação e interpretação são três partes inseparáveis de um mesmo
processo. Os documentos que produzimos nos ajudam a aprender todos os dias nossa profissão,
sendo úteis para valorar as experiências e para nos auto valorar. Também, dão-nos apoio no
processo de nos tornarmos profissionais individuais e de grupo. Nessa perspectiva, é necessário
ainda permitir não apenas a nós mesmos, como aos meninos e às meninas, refletir sobre o que se
faz e como se faz. São os processos de metalinguagem e metaconhecimento que nos permitem
construir conhecimentos.
Questão como “que tipo de documentação queremos?”, “por que?” e “para quem?”
devem ser realizadas antes de começar qualquer documentação, já que o que decidimos observar
está ligado à utilidade que queremos extrair de uma documentação concreta, e também ao como
o faremos. Além disso, é importante escolhermos: apesar de tudo nos parecer igualmente
importante, temos que escolher o que nos interessa. Por fim, a autora destaca como essencial a
forma como documentar o que está acontecendo: lápis e papel, gravador, câmera digital… Não
há um melhor que o outro, o instrumento deve ser útil.
A tarefa na escola se realiza tanto por meio de episódios simples como por projetos, que
se estendem ao longo do tempo. Temos então as folhas, onde registramos observações
subjetivas sobre cada criança, as transcrições, a documentação da parede ou livros - isto é, o
material bruto.
Assim, os suportes (murais, expositores, prateleiras, dossiês) existentes na escola são
importantes, pois envolvem as crianças e as famílias que enriquecem a experiência ao longo do
processo.
A cotidianidade da escola, assim como os longos projetos, também é rica e feita de
situações de grande potencial educativo. De toda riqueza cotidiana, o que conseguimos ver da
rede complexa de relações e de coisas que acontecem?
Antes de decidir o instrumento ou o suporte que usaremos para comunicação, é
importante perguntarmos “a quem eu quero comunicar?”, pois dependendo desta resposta, o que
opto por observar implica em determinado meio. Se for escolhida a gravação de um
determinado momento para fazer junto a um grupo de professores uma análise e interpretação,
se não se esclarece anteriormente o que se quer ver, o debate será limitado e disperso.
Se um vídeo é uma linguagem que tem que falar de forma autônoma, sua montagem se
torna um tipo de escrita que dá sentido ao que vemos. Uma gravação da refeição das crianças,
por exemplo, é um momento composto de muitas situações e experiências simultâneas - por isso
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a importância da escolha do que se quer observar. Se tudo é igualmente importante, não vemos
nada.
A comunicação com as famílias é outro aspecto da documentação que demanda
cuidados. Se dedicarmos tempo para elaborarmos instrumentos, faltará tempo para aprofundar
nos significados. É um problema dar muitas coisas às famílias sem priorizar a qualidade sobre a
quantidade. Como exemplos desse tipo de comunicação Davoli cita o calendário mensal
disponível para as famílias, painéis e espaços dedicados à participação das mesmas, e a agenda
diária, que, além de instrumento de comunicação, pode ser entendida como uma forma de
escrever a história de um grupo de crianças ou como instrumento da escrita diária do processo
vivido. Manter um registro ou notas das reuniões com as famílias, contendo tanto as
contribuições delas quanto as nossas, também é posto como importante pela autora.
Sobre as produções das crianças, em Reggio, algumas vão para casa uma vez por ano,
outras mantidas na escola durante os três anos, disponíveis nas prateleiras para crianças e
famílias. Há, logo, oportunidades de possibilitar encontros entre as crianças com suas produções
mais antigas, estabelecendo momentos de reflexão e aprendizagem a partir desses documentos.
Não há receita para documentar, a própria pessoa precisa organizar a maneira de
documentar a experiência, declarando “Isso é o que eu entendi, coletei, interpretei e escolhi”.
Por isso a mesma situação, se documentada por quatro pessoas diferentes, resultaria em quatro
experiências diferentes.

AFINANDO OS OLHOS PARA CAPTAR MOMENTOS


Mariano Dolci

Sem a documentação nenhum processo pedagógico se consolida, pois ela serve para
reflexão e, se bem-feita, torna-se uma mina de recursos que mesmo depois de anos continua a
ser fonte de informação produtiva.
Quem documenta sempre cai na tentação de documentar tudo, mas é impossível; é
necessário fazer escolhas, pois a documentação tem um sentido externo, já que dá visibilidade
ao trabalho e identidade à escola, e um sentido interno, sendo útil aos indivíduos e grupos a fim
de estudar os processos vividos. A escolha, logo, pauta-se na seguinte questão: “da realidade, o
que escolho para destacar e transmitir a mensagem?”.
Podemos chamar especialistas quando são úteis, mas apenas os educadores podem se
encarregar da documentação de experiências e processos relacionados à educação de meninos e
meninas.
A documentação é um aspecto fundamental do trabalho do professor, já que uma das
suas finalidades é manter a memória do caminho percorrido e do que, frequentemente, nos
esquecemos. Também, ela representa um relatório ou, pelo menos, um primeiro passo para um
relatório; ela torna visível a escola ao exterior, tanto aos pais como aos professores, colegas de
outras escolas; ela oferece a oportunidade de falar sobre algo concreto, por isso é um exercício
útil para o desenvolvimento da empatia (ouvir opiniões dos demais sobre o que fazemos é um
ato necessário) e nos permite ver que tanto opiniões como evoluções são diferentes e
enriquecem o processo. Quando se pratica constantemente, a documentação serve ainda para ver
as diferenças entre as pessoas e para ver uma determinada pessoa evolui de forma diferente em
relação aos problemas.
Se da documentação participam os meninos e as meninas aparecem elementos
importantes sobre a vida dos pequenos que nos levam a entrar no campo do meta-conhecimento,
isto é, as crianças tornam-se conscientes do que estão fazendo e de sua evolução. Para elas a
documentação, além disso, permite melhorar a memória e a compreender o projeto. Há um
equívoco de que em Reggio criam-se pequenos artistas, porém eles expressam o que têm dentro:
trata-se de se expressar não apenas em termos de informações, como também, e especialmente,
em termos de emoções. Se tiverem acumulado muitas emoções sobre uma coisa em particular,
aparecem produções muito ricas.
Dolci disserta também sobre a técnica da documentação. Inicialmente, é importante
levar em conta o receptor da documentação: se são pais e mães que passam rapidamente pela
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escola, as imagens devem ser grandes e com poucos comentários, se são professores, os detalhes
metodológicos são importantes.
A participação das crianças tem que ser, em primeiro lugar, organizada pelos
educadores, que recolhem os desenhos e demais materiais e depois solicitar a intervenção dos
meninos e meninas perguntando-lhes sobre o que fez ou pensou antes ou depois - mostrando
interesse sobre como foi procedendo em sua atividade. Quando as crianças espontaneamente
fazem algo que pode ser um embrião de documentação precisamos fazê-los perceber isso e
envolver os outros. É essencial que a criança saiba que a documentação é importante.
O autor também explica que em Reggio há três níveis de documentação: a simples
sequência temporal do que aconteceu (documentação “denotativa”), na qual o fio narrativo é
cronológico e constitui-se como uma lista dos diferentes momentos vividos, é indicada para
documentar um item, mas não para documentar um processo; a documentação na qual aparecem
teorias, hipóteses e pensamentos das crianças de maneira implícita; e a documentação na qual
não aparecem apenas os pensamentos e teorias das crianças, mas também os da escola, e, se
bem feita, transmite informações importantes sobre os porquês realizam-se determinadas
atividades, seus sentidos, etc. Não se trata, porém, de níveis de importância: cada um desses
níveis pode ser útil em alguns campos e também porque podem juntar-se e complementar-se, a
fim de ajudar a ter uma visão mais ampla dos processos.
Em Reggio é comum criar uma “declaração de intenções”, para pautar, no processo de
documentação, a escolha do foco. Porém quando percebe-se que a direção escolhida não é
produtiva é possível voltar atrás. Além disso, algumas vezes há situações que emergem e que
depois percebe-se que não são aquelas que estávamos procurando, e em outras a mesma
investigação nos leva a fazer descobertas inesperadas e surpreendentes, e que não têm a ver com
as nossas intenções iniciais.

ESCUTAR PARA DOCUMENTAR


David Altimir

Acreditar em uma imagem de uma criança protagonista de suas aprendizagens requer


criar contextos onde sejam possíveis espaços de observação, para compreender como os
pequenos constroem conhecimentos. A escuta, nessa perspectiva, definida como a necessidade
de organizar e compreender o que as inteligências das crianças e dos adultos produzem na
escola, e que pressupõe uma mentalidade aberta e uma disponibilidade para interpretar atitudes
e mensagens, torna-se essencial para a coerência do trabalho de documentação. Não se trata
simplesmente de ouvir as crianças, mas sim de concebê-las como portadores de culturas, além
de criar um clima receptivo, no qual todos os protagonistas da escola se encontrem,
possibilitando uma “pedagogia da escuta” - que estabelece a relação e o diálogo como
fundamentais para a aprendizagem.
A escuta coloca o adulto em condição de observador, mas não neutro, e sim um
elemento subjetivo que forma parte da realidade que está observando e que além de descrevê-la,
a constrói. Isto é, se observar não se limita a ações como tomar nota ou fotografar, o observador
é também concebido como um personagem que intervém no processo que está observando,
sendo intérprete e co-criador da realidade.
Quando o educador observa e documenta, ele se coloca ao lado das crianças que são as
protagonistas da escola. A documentação, entendida como toda a coleção de imagens, desenhos,
palavras, ideias e produções de crianças e adultos, oferece mensagens aos seus leitores, que são
as crianças, os adultos e os visitantes da escola. Documentar é, logo, a possibilidade de dar
visibilidade à imagem da criança, do adulto e de educação que se constrói em determinada
realidade. É uma prestação de contas.
A primeira e mais fundamental das mensagens que uma documentação oferece é a de
que há um adulto que se interessa pelo que faz uma criança ou um grupo de crianças,
esforçando-se, assim, a recolher as informações necessárias para decifrar a complexidade do que
vê. Portanto, a imagem que as crianças constroem de si mesmas e da escola deriva do olhar dos
adultos que lá trabalham.
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Os adultos, além de observar e documentar, precisam também organizar todo o conjunto


de elementos: classificá-los, ordená-los e construir uma história, apresentando-a para que os
protagonistas façam, eles mesmos, uma leitura. Esta é uma oportunidade para que as crianças
possam ver-se, ouvir-se e reler-se. Por isso o autor afirma que a documentação está a seu
serviço, já que não é suficiente que os meninos e meninas saibam coisas novas ou que tenham
novas habilidades, é necessário ajudá-las a saber que aprenderam coisas novas, ou seja, que
tenham metacognição, ou a consciência do conhecimento.
Além das crianças, é fundamental que os adultos também sejam protagonistas de suas
próprias aprendizagens, lendo e interpretando o que viveram, confrontando as suas
interpretações, certezas e dúvidas com outros adultos da escola, contribuindo e fazendo crescer
o projeto educacional onde trabalha. Nesse sentido, a palavra “relação” se fortalece, pois os
professores não devem viver isolados em suas salas, eles devem ter a oportunidade de ter seus
medos e incertezas superados dentro de uma equipe de profissionais que dialoguem e esforcem-
se para tomar decisões colegiadas.
O autor também chama a atenção para a expressão “fazer boas perguntas”, explicitando
que entende “questões” como provocações que o adulto pode fazer às crianças para tentar gerar
novos conhecimentos e afirmando que as boas perguntas são aquelas que não têm resposta, mas
sim possibilitam a surpresa, a incerteza, a possibilidade que o cérebro das crianças têm de
organizar conhecimento. O professor tem o dever de organizar uma proposta onde o maior
número de interpretações e respostas sejam possíveis.
Outra dificuldade refere-se à rigidez com a qual os professores têm ao organizar as
unidades de ensino, já que a própria estrutura da unidade didática exige que se organize por
critérios que muitas vezes parecem mais com atitudes de controle e vigilância. Que espaço há
para a construção genuína de conhecimento no interior das unidades didáticas? Que espaço se
deixa para a incerteza? O conhecimento, por não ser linear, não pode ser organizado de forma
rígida e previsível como propõe as unidades didáticas. Antes, há um adulto, que pensa os
objetivos a atingir, o conteúdo a ser aprendido, as estratégias a seguir e as formas para avaliar
que durante a realização da proposta da unidade didática vai ficando cada vez mais ausente. O
processo é negligenciado.
O autor propõe, ao invés das unidades didáticas, a pluralidade do projeto: idas e vindas,
caminhos que se escolhe e depois se abandona, retorno às questões já trabalhadas, etc., pois as
estratégias das crianças para construir seus conhecimentos são mais complexas, já que seu
objetivo primeiro é conhecer o mundo.
A documentação, também segundo Altimir, pode ser considerada como o instrumento
que vai ajudar a fazer uma avaliação real, global e abrangente do fenômeno da aprendizagem,
pois por meio dos vários materiais recolhidos é possível realizar uma leitura mais complexa.
Todo esse processo representa, inicialmente, um exercício de formação permanente,
pois o exercício da escuta e da documentação permite ver a nós mesmos por meio de nossos
próprios olhos e através dos olhos do outro, além da possibilidade que ele oferece às crianças de
saber o que pensamos, tornando-as mais conscientes de sua própria aprendizagem.

A ARTE DO PINTOR DE PAISAGENS


ALGUMAS REFLEXÕES EM TORNO DA DOCUMENTAÇÃO
Meritxell Bonàs

A documentação permite refletir e melhorar o trabalho de cada dia, e ordenar o


pensamento, além de tornar visível a trama de relações causais que é produzida na escola e
estabelecer um diálogo com a família aprofundando o sentido de “comunidade”. Falar sobre
documentação é falar de visibilidade, pois ela faz visível os rastros de cada pessoa, grupo ou
família em seu caminho através da escola, tornando a escola uma produtora de narrativas.
Também, a documentação interpreta, escreve teoria sobre uma prática que, ao mesmo tempo, se
legitima.
Documentar é uma escolha, um posicionamento, uma tomada de decisão, além de ser
uma formulação de como nós somos como professores, que escola somos e para onde
direcionamos nosso olhar. Por meio da prática da documentação seguimos rastros que as
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crianças deixam no desejo de conhecer, que, ao interpretá-los, os tornamos visíveis e nos


aproximamos de uma maior compreensão de seus processos, relações, símbolos e, por extensão,
de uma maior compreensão de como funciona a mente humana.
A documentação, além de ser uma investigação para nós, professores, é uma
investigação que ajuda as crianças a tomar consciência do processo. Ela também permite
transitar entre o diferente e o corriqueiro, entre o próximo e o distante; ajuda a identificar-se
sem se ver, e pode nos ajudar a explicar toda a rede de relações causais que existem dentro de
uma escola.
Ela se nutre de olhares respeitosos e gratos das famílias, já que estas famílias descobrem
novas dimensões ligadas ao respeito e ao valor que requerem uma parte importante da vida de
seu filho ou filha. Quando veem seus filhos, também encontram a si mesmos. É um momento
importante para conhecer o que acontece dentro da escola, e sentir-se parte de uma comunidade
na qual o filho ou filha pertence.
A documentação, ainda, configura-se em uma oportunidade de compartilhar e fazer
crescer o projeto da escola, pois pode ser o ponto de encontro onde confluem pontos de vista
diversos e sentimentos díspares.
Às vezes, fala de tempos longos, projetos de longa duração; outras, de tempos densos,
onde a densidade do momento é recolhida em sua brevidade; ou então de tempos vividos na
procura de significados a perguntas diversas sobre o mundo e suas regularidades. A
documentação recolhe as íntimas conversas entre as crianças, sequências de ações encadeadas,
detalhes quase imperceptíveis, e torna, assim, meninos e meninas protagonistas, heróis de suas
próprias histórias que nos convidam a nos reconhecer nelas.
Outra dimensão da documentação é concebê-la como memória/herança, pois podem ser
janelas por onde olhar o mundo, canais de conexão com territórios distantes, motivos para
perguntas intermináveis, respostas em repouso que passam de um ano a outro. A documentação
decide, em cada escola, como cada geração é construída em um diálogo constante com a
realidade.
Documentar é um processo dinâmico que demanda de nós, professores, o domínio de
instrumentos que não foram criados para tal fim. No entanto, quando documentar se torna ato
corriqueiro, mais do que a utilização de instrumentos ou técnicas, demanda um debate político e
cultural que compromete diferentes visões. É assim que documentar torna-se um processo de
pesquisa permanente, um local de confrontação, de formação, um espaço de reflexão entre
professores, com as famílias e com outros profissionais, um local para crescer em comunidade.
As escolas municipais de Reggio Emília propõem a documentação como ação cotidiana
dos professores, falando dela como “ato de amor” entre as crianças e seus mestres.

PARTE II - DOCUMENTAR: AGUÇAR OS OLHOS PARA CAPTURAR MOMENTOS

DAR VISIBILIDADE AOS ACONTECIMENTOS E AOS ITINERÁRIOS DE


EXPERIÊNCIA DAS CRIANÇAS NAS INSTITUIÇÕES PARA A PEQUENA INFÂNCIA
Anna Lia Galardini e Sonia Iozzelli

A documentação possibilita construir experiências positivas com as crianças e melhorar


a própria capacidade de comunicação com elas, com os pais e com outros adultos. Trata-se de
colocar em prática um processo cooperativo de observação e interpretação, que ajuda os
professores a escutarem melhor as crianças e suas experiências. Graças à multiplicidade de
vozes que a interpretação da documentação demanda, reflexões sobre ela podem alcançar uma
objetividade de avaliação e representa uma oportunidade para remodelar o projeto educativo.
Documentar envolve uma atividade sistemática e atenta de observação e reflexão sobre
o cotidiano na escola enriquecendo, assim, a compreensão das potencialidades das crianças, que
se tornam visíveis exatamente porque são respeitadas.
Para que a documentação possa de fato comunicar algo, ela precisa estar repleta de
valor e significado, e isso acontece quando ela é o reflexo de experiências reelaboradas por
todos os protagonistas, e torna-se, assim, capaz de colher os significados das práticas
vivenciadas pelas crianças. Para ter significado, ainda, a documentação não pode limitar-se a
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episódios individuais, mas deve relacionar, em uma narrativa única e coerente, episódios
significativos de um projeto para o bem-estar das crianças e famílias.
No processo de documentar o cotidiano da escola, as pequenas coisas comuns tornam-se
extraordinárias, porque há alguém que as percebe, as registra e as torna memória para si mesmo
e para os outros. O objetivo, nesse sentido, é oferecer aos que passam pela instituição
testemunhos do valor da infância que tornem visíveis as competências e necessidades dos
meninos e meninas através dos pensamentos e palavras dos adultos que deles e delas cuidam. A
documentação deixa marcas permanentes do trabalho educativo e das experiências das crianças.
Trata-se, logo, de uma busca de sentido, que envolve crianças e adultos em busca de um
percurso de conhecimento recíproco, capaz de restaurar histórias comuns e compartilhadas, e de
ativar sensibilidades e consciências sobre o que as crianças sabem fazer.
A documentação, ainda, contribui para a criação de contextos educativos e acolhedores,
quando fala do valor da infância e não é apenas “atrativa” - mas rica em conteúdo. Ela é o
primeiro sinal por parte da escola da capacidade de colocar-se em sintonia com a necessidade
das famílias de conhecer a realidade da escola, isto é, de saber como está organizada e como se
apresenta às crianças, o que propõe e o que incentiva, quando inicia um diálogo permanente e
assim promove a participação. Viver um espaço significa senti-lo como próprio, como familiar,
para que não se constitua como um espaço anônimo.
É possível e necessário documentar para as crianças, para os professores, para as
famílias e para a comunidade.
Em relação às crianças, por meio da documentação, oferece-se a elas a oportunidade de
se dar conta de suas próprias conquistas e de melhor interiorizar a experiência vivida. Assim,
elas percebem que seu fazer é importante, já que dá forma e valor à identidade do grupo. A
documentação, nessa perspectiva, cria memória enfatizando o que cada criança contribuiu para
o grupo e também para própria individualidade e, quando percebe o clima emocional, repleto de
pequenas coisas que as crianças realizam juntas, oferece um presente a elas.
A documentação em relação aos professores contribui para a construção de
conhecimento através da experiência vivida e da reflexão sobre ela, pois é possível perceber o
que não funcionou e que poderia funcionar melhor. Nesse sentido, o processo de restituição dos
fatos não se finaliza com sua explicação, mas a partir do pensar, da discussão, favorecendo a
auto formação compartilhada pelo grupo e o crescimento profissional destes sujeitos.
Para documentar é necessário observar, e para implementar estratégias de observação é
necessário valorar os momentos de experiência do grupo. Ao transcrever o que fazem e dizem
as crianças, aprendendo sobre como elas são, os educadores aproximam-se delas. Essa atitude
de observação exige refletir sobre o material coletado, selecioná-lo e escolher as linguagens
mais eficazes para apresentá-lo. Desta maneira, além de os professores estarem capazes de
preparar experiências adequadas e material apropriado para despertar interesses, eles
compreendem melhor as preferências, ritmos e estilos de conhecer das crianças.
A documentação, em relação às famílias, contribui porque permite aos pais lerem
experiências do cotidiano que não veem, sentindo-se parte da experiência dos filhos e
interessarem-se pelo que acontece durante o tempo em que ficam na escola. Também, ela é
importante para compartilhar e reforçar elementos do projeto educativo, destacando a identidade
da escola.
Professores e educadores, ao documentar, fazem emergir também sua presença e
compartilham sua experiência didática, pois a documentação informa de maneira eficaz e
relevante sobre a experiência escolar sem limitar-se a ocasiões especiais ou diferentes, não se
reduzindo, sendo superficial ou inoportuna.
Documentar para a comunidade, por fim, torna o trabalho da escola transparente e
contribui para gerar um sentimento de pertencimento e adesão à escola e ao seu valor educativo,
já que fortalece as vozes das crianças, pais e dos educadores. Nesse processo, constrói-se a vida
da escola, que se constitui em grande valor para toda a comunidade. A documentação dá a cada
escola uma identidade, que reflete as pessoas que estão ali envolvidas e dá um sentido que
continuidade para os que ali trabalham.
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DOCUMENTAÇÃO COMO ARGUMENTAÇÃO E NARRAÇÃO: DAR VISIBILIDADE E


FORMA AOS PROCESSOS NA VIDA COTIDIANA
Mara Davoli

A imagem da criança e da infância é precária, mutável, e varia através dos tempos e


culturas. É difícil de focar, pois, dentro de cada comunidade ou creche, convivem e confrontam-
se culturas diferentes. A autora propõe uma ideia de crianças biologicamente disposta a se
comunicar, a estar e viver em relação, já que a criança tem disponibilidade e curiosidade inatas e
naturais. Também é uma ideia de infância que considera que todas as crianças são inteligentes,
pois todas embarcam em um percurso de atribuição de sentido ao mundo.
O que não pode faltar nem aos professores nem aos pesquisadores são investigações
sobre as possibilidades de influência que as crianças têm sobre outras crianças, vivendo e
construindo juntas as experiências. Cada criança, em tempos e maneiras pessoais, que nem
sempre podem ser programadas, pode nos ajudar a refletir sobre como as crianças aprendem,
pois o grupo é, ele mesmo, contexto fundamental de aprendizagem.
Mas como podemos, no dia a dia, construir nossa imagem de criança? Como e onde
obter dados? A autora afirma sobre a necessidade de uma investigação que saiba aguçar os
significados e técnicas de observação, documentação e interpretação dos processos de
aprendizagem das crianças, e de cada criança em particular. A documentação, por tornar visível,
ainda que parcialmente, as estratégias cognitivas utilizadas por cada menino ou menina, deixa
de ser apenas uma documentação de produtos, mas também de estratégias e processos. A nossa
tarefa não é anular as diferenças, mas ouvi-las e valorizar suas qualidades.
A documentação é, portanto, instrumento indispensável de conhecimento, de formação
profissionais, de autoavaliação individual e coletiva das experiências. São documentos que
fazem a memória da história do grupo e precisam, nessa perspectiva, serem presenças vivas,
sempre visíveis e disponíveis para consulta autônoma das crianças. Percorrer um percurso pode
possibilitar reflexões sobre os significados do que viveram. Além disso, é importante refinarmos
o olhar sobre quais significados as crianças atribuem ao ato de documentar.

A DOCUMENTAÇÃO COMO UMA FERRAMENTA PARA DAR VALOR AO


RELACIONAMENTO ENTRE AS CRIANÇAS PEQUENININHAS NAS EXPERIÊNCIAS
COTIDIANAS COMPARTILHADAS NA ESCOLA DA INFÂNCIA
Gloria Tognetti

Concebe-se neste artigo a escola da infância como uma comunidade de meninos e


meninas que compartilham experiência entre eles e com os educadores, intencionalmente
programadas com um propósito educacional, e que depois alcançam as famílias e, assim,
promovem uma cultura renovada de educação e de infância.
Na elaboração de um projeto educacional, é importante identificar um horizonte teórico
de referência para interpretar aquilo que observamos e documentamos e para orientar de
maneira eficaz a ação educativa.
A autora apresenta algumas das perspectivas presentes no decorrer da formação de
gerações de educadores:
- Construtivista (Piaget), que compreende que a criança constrói a sua experiência em uma
dimensão da relação com objetos primeiro e sucessivamente por meio da representação mental
dos objetos (“ações internalizadas”);
- Sócio Construtivista, que coloca em primeiro plano a relação entre indivíduo e contextos e os
processos de co-construção (sendo o contexto concebido como ambiente construído pelas
pessoas que lá vivem, sendo assim um sistema social, que vai além do físico e muda ao longo
do tempo),
Sociocultural, que coloca em foco o componente cultural para compreender os processos de
desenvolvimento social e cognitivo.
De todas essas perspectivas derivam conceitos aos quais nos referimos quando
interpretamos os múltiplos aspectos da profissionalidade docentes:
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- O conceito de andaimes ou estrutura de apoio (a maneira pela qual um sujeito mais competente
ajuda a criança a organizar seus próprios comportamentos e a participar nas sequências
interativas mais competentes;
- O conceito de formato ou moldura (formas estruturadas de interação social, propostas primeiro
pelos adultos e em seguida controlado pelas crianças);
- O conceito de zona de desenvolvimento próximo (Vygotsky);
- O conceito de conflito sócio cognitivo (conflito de comunicação que se estabelece entre
colegas mais ou menos competentes, e que promove o progresso cognitivo individual
produzindo uma mudança).
Assim, cada modelo organizativo e os projetos educacionais que eles envolvem estão
impregnados de teoria.
A qualidade de um projeto é alimentada com a capacidade de quem o prepara de
assumir a responsabilidade educativa de preparar os contextos capazes de acolher diferentes
pontos de vista e de reconhecer a cada protagonista a mesma dignidade de ser competente e
diferente. Também, exige-se flexibilidade e disponibilidade para mudança, além da confiança
nas potencialidades das crianças e de uma curiosidade em relação à qualidade e às
características das relações (inclusive aprofundando a capacidade de observar as interações
entre crianças de mesma idade e de diferentes idades, interações de duplas ou pequenos grupos,
e experiências cotidianas compartilhadas por todo o grupo).
O contexto, dessa maneira, deve ser adequado ao objetivo que se coloca, cabendo
levantar hipóteses, experimentar, interpretar a experiência com os novos elementos que surgem,
remodelar o projeto. Isto é, se se reconhece valor às interações entre crianças, o projeto de modo
que favoreça as relações e lhes dê suporte. Perguntar sobre quais elementos do contexto podem
intervir e como torná-lo capaz de corresponder aos anseios e às necessidades de exploração das
idades representadas é um exercício que exige que os educadores explicitem sobre as
necessidades de exploração e sobre os processos de conhecimento que caracterizam os
primeiros anos de vida.
A reconstrução narrativa do que acontece entre as crianças e com as crianças permite
que se consolidem os significados compartilhados e enquadramento cultural e de regras, onde os
significados tomam forma. Se a relação não se identifica com o simples contato, importa nos
atentar nas maneiras como os professores se relacionam com as crianças: estas devem levá-los
para além dos estereótipos e preconceitos relacionados à idade nas expectativas sobre os
comportamentos das crianças e nas atitudes educativas que devem ser assumidas.
Há a necessidade, desta forma, de uma reflexão sobre as responsabilidades do professor
no oferecimento de espaço para as relações entre crianças de idades diferentes, já que essas
diferenças requerem que o professor interaja com cada criança e com o grupo, considerando as
diferenças nos níveis de autonomia e às zonas de desenvolvimento próximo. É possível, desta
maneira, observar que as relações que se formam neste grupo expressam tanto um interesse pela
diversidade como uma capacidade precoce de reconhecimento das diferenças. Se o que temos é
uma forte consciência do valor da interação entre pares, o professor deve abandonar sua
centralidade e integrar-se às situações proporcionando espaço e tempo ao desejo de proximidade
e descoberta das crianças, mantendo sempre um olhar participativo e interessado capaz de
promover a evolução dos intercâmbios a níveis mais elevados de competência.
O potencial cognitivo e de exploração das crianças demanda contextos apropriados para
expressar-se, requerendo atenção e sensibilidade, além da renúncia deste papel de protagonismo
excessivo do professor. É importante que este coloque à disposição das crianças contextos
organizados para promover o encontro, a relação e o compartilhamento; isto é, assumindo a
responsabilidade por definir o contexto (onde, que grupo, que materiais, quando, para quê, quais
instrumentos de documentação). Isso não significa desistir da identificação dos objetivos, mas
ter a consciência de que processos individuais e interindividuais de desenvolvimento podem ser
diferentes, e que manter no centro a ideia das crianças como um recurso que enriquece e
complexifica positivamente, introduz leituras inesperadas das possibilidades oferecidas. O
percurso para direções não previstas pelo adulto pode ser um estímulo eficaz para a descoberta
de significados novos e originais.
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Nesse contexto, o desenvolvimento social não aparece no produto de uma atividade,


pois a observação e a documentação são estratégias para restaurar o valor das experiências
cotidianas das crianças.
Em particular, a documentação pode ajudar: na avaliação das situações oferecidas às
criança e na leitura dos processos, bem como a capacidade dos educadores de acompanhá-los
com escolhas apropriadas de organização educativa, apoio e protagonismo das crianças.
Também, possibilita observar e avaliar:
- A pertinência nas modalidades e a escolha dos tempos, para não se sobrepor às relações entre
as crianças e respeitar as interpretações que elas fazem sobre o que acontece;
- A sensibilidade educativa e a capacidade de espera, para não dar respostas nas fases em que as
crianças estão experimentando um ajuste gradual entre elas na busca de um entendimento
mútuo;
- O reconhecimento dos modos de interação significativos, para não interromper o fluxo de
atenção que pode se evidenciar na observação cuidadosa e interessada da ação de um colega
mais experiente;
- A contenção da inquietação em relação à comunicação gestual e corporal que as crianças
apresentam, evitando interpretações precipitadas das intenções ainda não expressas plenamente.
O material documental apresentado pode sugerir propostas pertinentes para quem está
investigando métodos de trabalho educativo que pretendem colocar no centro não apenas a
questão das potencialidades individuais, como a leitura de sua expressão nas experiências do dia
a dia das crianças. Objetiva-se entender o passo importante de alguns estudos sobre as relações
entre as crianças, “que consiste em perguntar-se não quais capacidades individuais tornam
possível a interação social, mas sim quais capacidades individuais se tornam possíveis graças à
interação social” (Camioni, 2002).

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