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Democracia nos Estados Unidos?


Maringá/PR - 08 JAN 2021 - 12:44
MENEZES, Jean Paulo Pereira de1.

Observamos nos últimos dias, a invasão ao Capitólio dos Estados Unidos (em 6 de
janeiro deste ano), sede do poder legislativo, parlamento. Incentivado pelo próprio
presidente ainda em exercício Donald Trump (e uma lista longa de cúmplices), sob
alegação de fraude nas eleições presidenciais que deu a vitória a Joe Biden. Em analogia
com o Brasil, poderíamos chamar de “gado americano”, que segue uma perspectiva
política de defesa da história de escravidão, racismo e privilégios, além de uma longa
lista negacionista de tudo aquilo que lhe convém. Evidentemente, nem todos os que
seguem Trump são capitalistas no sentido clássico do termo. Assim como no Brasil, a
maioria do “gado bolsonarista” é composta por trabalhadores educados pelas ideologias
dominantes2. Sobre esse episódio da série “crise capitalista”, o presidente brasileiro
proferiu suas célebres palavras de sabedoria: "Acompanhei tudo. Você sabe que eu sou
ligado ao Trump, né?”3. Sim, nós sabemos, idiota. E é exatamente por isso que devemos
nos preocupar com os desdobramentos aqui no Brasil.
Acompanhando os noticiários da imprensa burguesa, identificamos uma linha
geral de raciocínio que se refere à “democracia dos Estados Unidos sendo atacada”, o
“ataque à democracia americana, que sempre foi referência para todo o mundo” (...), e
por aí vai.
É preciso considerar algumas coisas.
A democracia surge no século V A.E.C (antes da era comum)4, na cidade grega de
Atenas. Foi uma das formas de governo identificada por Aristóteles, e neste caso, uma
forma degenerada de governo. Também devemos acrescentar que a democracia grega
era uma forma política dos donos de escravos. Isso mesmo, pois a democracia nasce
para atender os interesses de uma classe proprietária dos meios de produção e para a
manutenção do escravismo. Uma democracia de donos de escravos, ricos e altamente
sofisticada no que diz respeito a dominação.

1
Graduação e mestrado em História (IMES-FAFICA/UFGD-MS), doutorado em Ciências Sociais
(UNESP/Marília) e pós-doutorando em Educação (PNPD/CAPES/UEMS/Paranaíba).
2
Para entender um pouco mais sobre a força das ideologias, ver o artigo recente da psicóloga e militante
trotskysta Nataly Jesus aqui: https://www.balaiada.com/7860/ .
3
Veja, se ainda tiver estômago, o vídeo aqui: https://youtu.be/lMADIqtX4bA .
4
Trata-se da forma laica de datação histórica em contraposição a forma cristianizada de “antes de
cristo” (a. C) e “depois de cristo” (d. C.). Em nossa visão, ainda há limites nesta forma, mas julgamos ser
mais coerente do que a defendida pelos cristianizados.
2

Salvaguardada as devidas proporções do espaço e tempo que nos separam do


mundo grego antigo à democracia nos Estados Unidos da América (EUA), localizamos
permanências fundamentais. A democracia, continua sendo uma forma de manutenção
das propriedades privadas dos meios de produzir e reproduzir a vida. Manteve-se como
uma forma política para conciliar os interesses junto aos donos de escravos do sul
(origem do voto distrital) e ampliou a ideia abstrata de cidadão, portador de direito e
deveres5.

Mesmo com todas as contradições que isso possa significar, a ideologia de um


governo do cidadão, do povo, é absolutamente forte. Ignora-se os fatos, a factualidade
histórica e joga-se na defesa das instituições democráticas, como se a democracia,
algum dia, realmente fosse o governo do povo, dos trabalhadores, de todos
independente das classes sociais.
O cidadão educado se indignou com a invasão do Capitólio6, com a falta de
respeito à democracia. É verdade que Trump e seus correligionários não estão
respeitando as regras do jogo eleitoral que se submeteram. Também é verdade que há
um ataque direto as instituições democráticas, ao parlamento. Mas quando é que os
governos dos EUA respeitaram verdadeiramente tudo isso? Qual a novidade? Ambos os
lados (Republicanos e Democratas), lá nos “States”, mantiveram-se com a política
imperialista, massacrando mundo a fora. Jamais defenderam uma democracia operária!

Mas esse mesmo cidadão é capaz de não expressar nenhuma reação diante das
atrocidades praticadas por esta mesma democracia no Vietnã, Iraque, Afeganistão, no
trato com os imigrantes que construíram os próprios EUA. O cidadão (e este cidadão
pouquíssimo se difere do tal cidadão de bem, pois ambas perspectivas defendem a
ordem e o progresso através das leis que juntos ignoram solenemente) derrama
lágrimas pela democracia dos ricos e se esquece que nos EUA a suposta grande
referência de democracia, até pouco tempo, separava brancos e negros, de bebedouros
de água, bancos, escolas, bairros etc. Que a democracia referência para o mundo
dizimou povos indígenas e africanos até o seu último representante. Que a “grande”
democracia americana instigou guerras por todo o planeta e até mesmo em seu próprio
território. Iniciou uma guerra tóxica para incriminar a população negra que se
organizava para além da democracia branca dos ricos (estou me referindo aos Panteras
Negras7). Se faz de besta diante a implementação das ditaduras militares no continente
americano, como se todos estes crimes contra a humanidade fossem delírios triviais.

5
Importante referência sobre o conceito de cidadão é a tese de doutoramento de Ivo Tonet, disponível
aqui: http://ivotonet.xp3.biz/arquivos/EDUCACAO_CIDADANIA_E_EMANCIPACAO_HUMANA.pdf .
6
Capitólio é uma alusão moderna ao mundo Imperial Romano. Há capitólios espalhados pelo mundo,
seja para representar o poder ou o culto aos supostos heróis. Uma herança do imperialismo antigo que
existe para além da arquitetura.
7
Partido Pantera Negra para Auto-defesa. Sugerimos que assistam o documentário “Os Panteras Negras
- Vanguarda da Revolução”: https://www.facebook.com/casadaresistencia/videos/1164022907042075 .
3

A democracia nunca foi uma forma revolucionária de governo, nem mesmo sob a
regência da burguesia. Atenção: Nunca8.
A democracia sempre foi a forma de dominação de parte de uma classe dominante
(não a única), mas é aquela forma que vem sendo cirurgicamente aperfeiçoada ao longo
do tempo. É óbvio que atuar na democracia é preferível do que em uma ditadura militar,
mas quando acreditamos que a democracia é um valor universal, que o fim é o
aperfeiçoamento da democracia e respeito às suas instituições, certamente estaremos
diante da festa da burguesia. A democracia não é o fim da história.
Apenas com os trabalhadores organizados, violentamente nas ruas, é que de fato
poderemos ter uma vida de verdade. Defender a democracia dos ricos, principalmente
se reivindicamos a revolução social, é se alinhar com a burguesia cartesiana.
Nunca existiu democracia nos EUA. A única referência coerente à democracia nos
Estados Unidos é como uma forma de governo de manutenção da dominação, da
exploração e da opressão de todos os povos, neste sentido, seguida por todos os países
capitalistas contra a classe dos trabalhadores, mundialmente. A democracia é referência
de dominação refinada, da constante violência contra os trabalhadores do mundo.
Acreditar nos seus termos é reproduzir a poderosa ideologia da classe burguesa.
Evidentemente, a classe média intelectualizada, repleta de privilégios, que tem
geladeira em casa, carro na garagem, emprego, roupa para usar, calçado e os remédios
necessários, jamais concordará com estas linhas! Essa classe média que estuda inglês
nas escolinhas de idiomas (mas que não dá conta de usar o idioma do colonizador por
mais de 5 min ao telefone), que faz postagens em redes sociais em inglês para
demonstrar seu internacionalismo... Esse cidadão que está com estomago cheio todos
os dias... Provavelmente estufará o peito para dizer: “Mas Jean, você não está sendo
muito radical ?!?”.

Em poucas palavras: o que se apresenta como democracia é a forma dos brancos


ricos se perpetuarem no poder, idiota. Não há liberdade em uma sociedade em que a
maioria deve viver para produzir para uma minoria que nunca trabalhou na vida. A
democracia americana não deve ser referência para os trabalhadores. A democracia nos
EUA só expressa mentiras, guerras, exploração e opressão aos trabalhadores.
Historicamente, a única democracia (se desejarmos usar esta palavra) que devemos
defender é a operária9, a ditadura revolucionária do proletariado (por mais que muitos
revolucionários desbotados, de casaca, tenham medo dessa palavra - conceito) e esta é
radicalmente oposta a democracia dos ricos, da burguesia.

Enquanto a esquerda revolucionária não olhar para a história da Rússia e manter-


se apenas com os referenciais ideológicos da burguesia, estaremos todos nós, ainda,

8
Jamais confundir o período revolucionário jacobino, na Revolução Francesa, com a democracia
constitucional como a conhecemos hoje.
9
Sugerimos aos nossos leitores, para conhecermos mais sobre democracia operária, os textos de Leon
Trotsky sobre a história da Revolução Russa. Estes livros são devidamente citados ao final do artigo, nas
referências de leituras sugeridas.
4

afogando no lago de lágrimas da crise de direção revolucionária! E não adianta fazer


biquinho ou falar covardemente pelas costas.
Democracia nos Estados Unidos da América? Qual?

Referências de leituras sugeridas sobre democracia operária10:


LENIN, Vladimir Ilyich Ulianov. A democracia operária e a democracia burguesa. In:
Democracia e luta de classes: textos escolhidos. São Paulo: Boitempo, 2019.
LENIN, Vladimir Ilyich Ulianov. A revolução proletária e o renegado Kautsky. In:
Democracia e luta de classes: textos escolhidos. São Paulo: Boitempo, 2019.
LENIN, Vladimir Ilyich Ulianov. A social-democracia e o governo provisório
revolucionário. In: Democracia e luta de classes: textos escolhidos. São Paulo:
Boitempo, 2019.
LENIN, Vladimir Ilyich Ulianov. Em memória da comuna. In: Democracia e luta de
classes: textos escolhidos. São Paulo: Boitempo, 2019.
LENIN, Vladimir Ilyich Ulianov. Esquerdismo: doença infantil do comunismo. São Paulo:
Expressão Popular, 2014.
TROTSKY, Leon. A Revolução de 1905. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1907/rev_1905/prefacio.htm .
TROTSKY, Leon. Como Fizemos a Revolução (A Revolução de Outubro). Disponível em:
https://www.pstu.org.br/wp-content/uploads/2020/04/01-Apostila-
Revolu%C3%A7%C3%A3o-Russa.pdf .
TROTSKY, Leon. História da Revolução Russa. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/trotsky/1930/historia/index.htm .

10
Os quatro primeiros textos de Lenin estão disponíveis na publicação selecionada pela Boitempo,
disponível aqui: https://b-ok.lat/book/5613266/ca8e11 .

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