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O QUE É TEORIA?

Para responder esta pergunta é preciso iniciar limpando o terreno para ser
exatamente entendido. Muito já se escreveu sobre o que é teoria. Partiremos de
algumas definições simples, mas fundamentais. Às vezes, aquilo que é simples é o
mais importante. Os intelectuais especializados deverão ter paciência, pois é preciso
falar para além do grupinho de doutores.
Em nosso tempo presente (o momento que vivemos), encontramos várias
menções sobre a palavra teoria, das mais absurdas até as mais sofisticadas. Vejamos
algumas com o primeiro sentido: 1- “você é muito teórico, precisa ser mais prático”;
2- “Nossa, isso é teoria da conspiração”; 3- “Tenho uma teoria de que nada dá certo
para mim”; “Esse pessoal viaja na batatinha, muito teórico”; 5- “Conheço uma teoria
sobre a vida após a morte”; 6- “ Na teoria é tudo lindo, na prática é diferente”; ou
ainda, 7-“teoria demais para o meu gosto”. Poderíamos citar centenas de exemplos.
Em sentido pretensamente mais sofisticado, o dicionário de Filosofia nos
apresenta uma outra definição básica: “1- Na acepção clássica da filosofia grega,
conhecimento especulativo, abstrato, puro, que se afasta do mundo da experiência
concreta, sensível. Saber puro, sem preocupação prática; 2- Modelo explicativo de um
fenômeno ou conjunto de fenômenos que pretende estabelecer a verdade sobre esses
fenômenos, determinar sua natureza. Conjunto de hipóteses sistematicamente
organizadas que pretende, através de sua verificação, confirmação, ou correção,
explicar uma realidade determinada. Ex.: a teoria da relatividade de Einstein. 3-
Explicação; método” (JAPIASSÚ & MARCONDES, 2001, P. 183).
Desde o senso comum até a definição de dicionário, nos deparamos com vários
sentidos para a palavra teoria. Etimologicamente a palavra é grega (theoria) e chegou
até a Língua Portuguesa através do latim. De qualquer maneira, os significados das
palavras não estão engessados no tempo histórico e gostaríamos de apresentar para o
nosso leitor um outro conceito sobre teoria.
Assim como o revolucionário alemão, continuemos nosso texto com um pouco
de história sobre a sociedade burguesa: “Até agora, a sua localização clássica é a
Inglaterra. Por isso ela serve de ilustração principal à minha explanação teórica”
(MARX, 1996, p. 130). Seguimos com uma ilustração de nossa parte.
Existiu um alemão (prussiano) que foi obrigado a viver grande parte de sua vida
como exilado em Londres (estamos ± em 1859), seu nome é conhecido de muitos: Karl
Marx. Londres é a capital da Inglaterra, para muitos uma cidade maravilhosa, mas
para outros um grande pesadelo. A Inglaterra foi palco da revolução industrial. Era o
centro do mundo moderno, com suas invenções, suas feiras industriais e a maior
produtora de mercadorias do mundo fabril. Mas antes de tudo isso, algo mais
importante do que qualquer ferramenta, passou a existir com predominância na
Inglaterra: o trabalhador assalariado.
O trabalho assalariado não era inédito na história da humanidade, porém, depois
de um longo processo de expropriação da classe trabalhadora, a única coisa que restara
era a possibilidade de venda da força de trabalho por um salário.
Parte significativa dos trabalhadores assalariados se converteram no
proletariado, era o operário industrial. Uma classe social nova e que vivia da venda da
sua força de trabalho nas fábricas (daí vem a expressão “chão da fábrica”). Poderíamos
também chamá-los de trabalhadores fabris, aqueles que estão todos os dias nas fábricas
produzindo a troco de uma quantidade de equivalente geral de valor, popularmente
chamado de salário.
Embora o momento fosse de produção de muita riqueza, a realidade da classe
trabalhadora era extremamente diferente dos donos de propriedade (propriedade
privada dos meios de produção), ou seja, dos patrões. Esses últimos, viviam em seus
palacetes ou casas de campo, com todas as mordomias possíveis ou imagináveis,
graças ao trabalho dos operários e operárias.
A realidade da classe trabalhadora era de uma esmagadora miserabilidade.
Produzia-se muita riqueza, mas ela pertencia aos donos dos meios de produção. Cabia
aos operários apenas o mísero salário. Um salário mínimo, bem mínimo, apenas o
suficiente para que o trabalhador pudesse recompor parte das energias dispensadas no
dia de trabalho e para que no outro dia pela manhã ele estivesse vivo para continuar
trabalhando para o patrão. A expressão salário mínimo se refere ao mínimo para que o
trabalhador sobreviva e continue trabalhando. Nas palavras de Friedrich Engels, se
referindo ao texto de Marx de 1849:
Vivemos hoje sob o domínio da produção capitalista em que uma
grande e sempre crescente classe da população só pode viver se
trabalhar, a troco de um salário, para os proprietários dos meios de
produção — das ferramentas, máquinas, matérias-primas, e meios de
subsistência. Na base deste modo de produção, os custos de produção
do operário consistem naquela soma de meios de subsistência ou do
seu preço em dinheiro — que são, em média, necessários para o
tornarem capaz de trabalhar, para o manterem capaz de trabalhar e
para o substituírem por outro operário quando do seu afastamento por
doença, velhice ou morte, para reproduzir, portanto, a classe operária
na força necessária (ENGELS, 2010, p. 23-24).
A realidade dos bairros operários era bem diferente de onde viviam os senhores
industriais. Não existia uma rede de esgoto, a água não era de fácil acesso e os
alimentos além de caros eram escassos. Em muitos casos a base da alimentação era as
batatas. Um antigo professor de Ciências Sociais da Universidade de Columbia, Leo
Huberman, nos ajuda a pensar:
Se um marciano tivesse caído naquela ocupada ilha da Inglaterra teria
considerado loucos todos os habitantes da Terra. Pois teria visto de um
lado a grande massa do povo trabalhando duramente, voltando à noite
para os miseráveis e doentios buracos onde moravam, que não serviam
nem para porcos; de outro lado, algumas pessoas que nunca sujaram
as mãos com o trabalho, mas não obstante faziam as leis que
governavam as massas, e viviam como reis, cada qual num palácio
individual (HUBERMAN, 1982, p. 188)

Os donos de fábricas, diziam que todos os trabalhadores eram livres para


aceitarem determinados salários e que ninguém era escravo. Quem não desejasse
poderia ir embora, pois eram seres sociais livres. Marx chamará esse tipo de liberdade
de liberdade dos pássaros, pois o trabalhador poderia aceitar ou não essas relações de
trabalho... supostamente, ninguém era obrigado a trabalhar. Uma “liberdade” para
escolher ser explorado ou viver livre da exploração e morrer de fome!
Colocado desta forma, nossos leitores devem estar se perguntando: e o que a
teoria tem com isso tudo?
Para Marx, teoria não é um conjunto de ideias que se cria a partir de abstrações
vazias, desconexas da realidade que se vive, ou seja apartada da vida das pessoas de
carne e osso. Teoria não é um monte de afirmações que se tira do nada, como o
mágico que supostamente tira coelhos de uma cartola. Teorizar, para Marx, não tem
relação com o inventar de ideias que partem meramente da subjetividade do sujeito e
que se lançam na sociedade para explicar as coisas a partir de opiniões infundadas na
realidade empírica.
Teoria para Marx se relaciona com ideias, sim, mais precisamente com um
processo ideal (jamais confundir com idealismo), que acontece na cabeça do ser
humano, um processo cognitivo que tem, obrigatoriamente, como ponto de partida a
realidade mais empírica, como síntese de múltiplas determinações. Teoria é um
processo de pensar criticamente a realidade a partir das determinações do que ela é e
não daquilo que eu desejo que ela seja ou do que alguém tenha me falado que é.
Nesta história que esboçamos, pensar teoricamente é considerar o factual. O que
é a Inglaterra? Onde ela se localiza socialmente no século XIX? De onde vieram os
assalariados até se transformarem em proletários? Como as fábricas surgiram neste
contexto? Como toda riqueza é produzida? Em que condições? Todas estas
problematizações devem considerar a história e isso demanda muito estudo. Teoria em
Marx não dá nenhum espaço para interpretações como as vulgares (“Na teoria é tudo
lindo, na prática é diferente”…) que apresentamos no início do artigo. Teoria para
Marx exige uma forma de proceder (muitos chamarão de método) diante da realidade
que jamais vai se auto explicar.
A teoria para Marx, deve, necessariamente, considerar a realidade como ela se
apresenta, e, através de abstrações, procurar entender as categorias que determinada
realidade possui. A teoria caracteriza e analisa o mundo dos seres sociais, no exemplo
dado, a sociedade industrial. Em outro momento escreveremos sobre esse “método” da
abstração, por agora, sejamos o que Marx nos escreve sobre ele:
Porque o corpo desenvolvido é mais fácil de estudar do que a célula
do corpo. Além disso, na análise das formas econômicas não podem
servir nem o microscópio nem reagentes químicos. A faculdade de
abstrair deve substituir ambos. Para a sociedade burguesa, a forma
celular da economia é a forma de mercadoria do produto do trabalho
ou a forma do valor da mercadoria. Para o leigo, a análise parece
perder-se em pedantismo. Trata-se, efetivamente, de pedantismo, mas
daquele de que se ocupa a anatomia microscópica (MARX, 1996, p.
130).
É preciso entender o percurso do objeto que se busca analisar e caracterizar, não
pode haver atalhos para isso. Não vale inventar um proletariado, mas considerar o
trabalhador de carne e osso e a vida como ela é de fato. Não vale romantizar as classes
sociais, mas buscar entender a sociedade e as classes antagônicas que
predominantemente a compõe: proletários e burgueses. Ambas as classes são
compostas por seres vivos, onde uns mais do que os outros se realizam no tipo de vida
existente. Neste sentido, teorizar, teoria, pensamento teórico, se relaciona diretamente
a considerar a centralidade do objeto (jamais ignorando a subjetividade do sujeito), e
isso exige um “método”, não basta achar o que é ou mesmo emitir um opinião sobre a
coisa ou determinado fenômeno (centralidade do sujeito) e pronto. Não, pensar que
teoria é o pensamento dos deuses, ou que teoria é falar de coisas a partir daquilo que o
sujeito acha que é ou valha... não tem nenhuma relação com o conceito de teoria para
Marx. Pelo contrário, teoria é o pensamento de seres humanos vivo e o fazem a partir a
realidade concreta, sensível e não suprassensível.
Na próxima quinzena apresentaremos aos nossos leitores algumas palavras
sobre o “método” de Marx. Até lá, desejo ótimas leituras! Avante.

REFERÊNCIAS:

ENGELS, Friedrich. Introdução à Trabalho Assalariado e Capital. In: MARX,


Karl. Trabalho Assalariado e Capital. Editora Expressão Popular, São Paulo, 2010.
HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. Trad. de Waltensir Dutra. 18.
ed. Zahar Editores: Rio de Janeiro, 1982.
JAPIASSÚ, Hilton.; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de Filosofia. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Trad. de Regis Barbosa e
Flávio Kothe. Editora Nova Cultural Ltda. São Paulo - SP, 1996.

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