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É POSSÍVEL A ESCRITA DA HISTÓRIA NO TEMPO PRESENTE?

A convergência para esta interrogação parece não estar livre de problematizações


maiores. Todavia, afirmamos: A história só é escrita no presente.

Com este artigo, inauguramos nossa coluna no Jornal Balaiada. O objetivo é publicar
quinzenalmente, textos de cunho teórico e colaborar para entendermos que teoria pode ser
muita coisa. Nossa referência para o conceito de teoria é Karl Marx, onde ela é a expressão
ideal da realidade. Assim, teoria não é uma abstração vazia, ou como podemos escutar, algo
como uma “viagem na batatinha do mundo das ideias”, seria ridículo. Teoria é abordar a
realidade entendendo-a como é, não como desejamos que ela seja. Teoria é falar (investigar)
da realidade mais empírica da vida, de coisas reais, de carne e osso. Qualquer outra definição
está distante dos nossos objetivos aqui nesta coluna. Assim, esperamos que os leitores se
sintam convidados à teoria!

Nosso primeiro artigo, sob o título “É possível a escrita da história no tempo


presente?” é também uma resposta direta ao revisionismo histórico que busca ignorar a
factualidade histórica, propondo supostas novas explicações, calcadas na irracionalidade e
negação da história. Por exemplo, que a terra é plana, ou ainda, que não existe racismo no
Brasil, ou, que não existiu ditadura militar no Brasil. É preciso se posicionar diante de tudo isso.
A teoria na perspectiva marxiana é também uma arma que devemos utilizar sem dó e sem
medo. Estou convencido de que o Balaiada é uma metralhadora, tratemos de utilizá-la!

Como a pergunta não é nova (É possível a escrita da história…) podemos contar com
uma grande bibliografia que nos auxilia diante do tema. Perguntas que não se silenciam com o
processo histórico, que não se obsoletam com o passar do tempo e que se colocam como
importantes por dois motivos centrais: o primeiro é de obviedade, pois ainda não se colocaram
diante de respostas efetivas; o segundo motivo é o fator provocador de inquietude lançado
pela pergunta em sua capacidade de reativar a constante tentativa de respondê-la e não ser
devorado pela esfinge. É verdade que outros motivos poderiam ser elencados, entretanto,
ficamos apenas com estes. Desta forma, propomos a devida atenção ao segundo motivo: os
enigmas da esfinge.

Há muito tempo, Sófocles, por volta de 427 a.C. apresentara esta figura da esfinge
como parte central da história grega que movida pelas problematizações se constituía em
glórias, sobretudo em tragédias ou as duas coisas combinadas. A esfinge de Tebas devorava
aqueles que não fossem capazes de decifrar o seu enigma também atormentando e
apavorando a população desta cidade grega.

Algo semelhante continua a nos estrangular: o tempo presente.

Concordar com a possibilidade de escrever sobre o tempo presente não é equivalente


a afirmar que se consegue entender o tempo escrito. Nem que é apenas o historiador o único
autorizado a realizar a escrita da história (também é verdade que escrever sobre a história não
faz do escritor um historiador).

A escrita da história está repleta de posicionamentos sobre os procedimentos do ofício


do historiador e um deles é que é necessário se distanciar do objeto para poder apreendê-lo
da melhor maneira possível. Longe de qualquer anacronismo este posicionamento parece-nos
ainda o de maior destaque na historiografia.
Muitas vezes sacramentado pelo que se convencionou chamar de escola dos annales
(anais), sobretudo a partir das importantes contribuições de Fernand Braudel, muitos
historiadores buscam na long durée (longa duração) a compreensão dos enigmas da História.
Entretanto, muitos destes alegam que o tempo presente é algo muito perigoso, algo por
demais pantanoso, sendo praticamente inviável se arriscar com pesquisas ligadas ao presente
como história. Seria necessário a maturação do processo histórico para que a sua escrita fosse
algo digno de atenção dos historiadores. Felizmente, nos referimos aqui a apenas parte da
historiografia.

A preocupação em buscar entender as perguntas da história presente, embora


marginalizada por grande parte dos historiadores, também não é nova. Vários pensadores, em
seu tempo presente, encararam a esfinge com suas respostas: Comte, Hegel, Marx (uns foram
devorados, outros não), etc. A busca do entendimento do presente histórico se manifesta de
forma visível de tempos em tempos e a negativa desta possibilidade também se coloca
periodicamente entre os homens.

Marx, muito antes dos historiadores annalistes (analistas) se preocupara com a longa
duração, sobretudo a partir do presente caótico, confuso e alimentado por questionamentos.
O presente histórico em suas convulsões nos coloca realmente uma série de armadilhas e
pântanos, entretanto, é esse mesmo presente que nos coloca as problematizações sobre a
totalidade histórica. É a partir dos fenômenos sociais que partimos em busca de respostas para
o tempo presente e a sua escrita possível.

O tempo presente não só é o ponto de partida como também é o pedestal dos


questionamentos da esfinge. A partir do conhecimento historicamente acumulado é que nos
lançamos aos desafios do presente histórico na busca de entendermos os fenômenos em suas
sínteses de múltiplas determinações no tecido social fenomênico que nos encontramos.

Diante de tanto otimismo sobre a escrita da história no presente imediato é necessária


uma grande dose de honestidade intelectual e afirmarmos que as problematizações da esfinge
no tempo presente não se colocam com trivialidade. O motivo: Édipo já provou ser possível
vencê-la, mesmo que tragicamente, no caso de Sófocles!

A questão que perturba grande parte dos historiadores conservadores e reacionários é


que a própria modernidade burguesa deu vida a outro personagem, desta vez fora da
mitologia, que se colocou diante da esfinge capitalista para encará-la, seu nome: Karl Marx.

A partir das formulações de Marx (não sozinho) diante da Economia Política se


fortalece na História uma antítese da modernidade que até então não se calou diante do
capitalismo, afirmando e reafirmando a resposta diante da esfinge que não se devorara desta
vez (como no caso de Édipo).

A esfinge não surgira do nada. Ela também é fruto da criação social. Ela não brota do
nada. E, diante do desvelamento, seus artífices se recontorcem para poder mantê-la ereta,
mesmo estando com suas estruturas visivelmente abaladas. Tratamos aqui da construção de
ideologias para apresentarem a partir da realidade uma inversão da mesma. Falamos de uma
sociedade de classes avançada em seus antagonismos e da mesma forma avançada nas
manifestações de suas lutas. Não basta decifrar a esfinge, é necessário destruí-la para ter a
certeza do seu fim.

Para evitar a inversão da tragédia é necessário que os defensores da esfinge atuem


para ideologizar os seus remendos, as suas trincas. É necessário possuir historiadores,
assistentes sociais, advogados, médicos, professores, pedagogos institucionalizados e
trabalhando a todo vapor para defenderem o poder da esfinge (é preciso considerar entre
estes trabalhadores os que resistem). É necessário negar a possibilidade de entendimento do
presente histórico para manter-se no domínio, para continuar a distribuir o medo e a
exploração de classe.

Negar a possibilidade de entendimento do presente a partir de uma longa tradição


marxiana é ao mesmo tempo postular a manutenção da classe dominante. É colocar-se ao lado
da esfinge. É vociferar por ela quando sua garganta não funciona mais. É ameaçar com a ilusão
aquilo que não se sustenta mais.

Continuar a responder cara a cara com a esfinge é uma tarefa histórica não apenas de
historiadores, mas de toda a classe trabalhadora que se depara com seus vultos ameaçadores
aqui mesmo: no presente!

A questão central aqui é que quando se postula a espera da maturação do processo


histórico, os historiadores conservadores (sobretudo os reacionários) ignoram que a vida dos
sujeitos históricos (detidamente os trabalhadores) não é compatível com um pé de rabanetes,
uma penca de bananas ou qualquer outra coisa que dependa naturalmente de maturação.

Destruir a esfinge é uma necessidade imperiosa no presente. Não é possível esperar


anos, séculos, uma vez que as contradições desta sociabilidade impossibilitam a maioria da
população mundial de se realizarem, até mesmo minimamente. A vida é uma só e todos os
segundos são valiosos!

A espera da maturação custa vidas (realização social) e é justamente um tipo de espera


que parte da tradição historiográfica não está disposta. Mulheres são mortas todos os dias,
negros e negras também. Estamos falando da maioria da população brasileira. O que devemos
esperar? Que enterremos todos os nossos e nos cubramos de terra ao final? Esperar a história
“envelhecer”, para apenas depois escrever sobre os fatos? Se assim fizermos, quem escreverá
a história? Certamente será escrita, por historiadores ou não.

Os historiadores trotskystas possuem uma dimensão realista das fragilidades da escrita


da história recente, assim como possuem a dimensão da sua necessidade para a revolução
social. Dedicar-se a escrita da história recente, na perspectiva que apresentamos, não é
ocupar-se de diletantismos românticos na preocupação de garantir o registro dos fatos, mas
sim de uma imprescindível tarefa na busca de caracterizar o tempo presente no sentido de
compreendê-lo em seus movimentos diante da totalidade histórica e transforma-lo tomando-o
pela raiz.

No próximo artigo desta coluna, escreveremos sobre o que é teoria para Marx.
Ficamos por aqui, saudando nossos leitores.

Jean Menezes é professor de História e Ciências Sociais.

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