Você está na página 1de 15

Unidade: Pensando o Brasil: Formação econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado

Contextualização

Os estudos relativos a esta Unidade da disciplina História do Brasil Império tratam do


tema da formação econômica nacional a partir da perspectiva analítica de Celso Furtado.
Sua obra, Formação econômica do Brasil é referência para esse segmento de estudos sobre
o Brasil.
Neste livro Celso Furtado analisa a montagem do sistema colonial, que foi realizada com
a mão de obra escrava indígena que, posteriormente, quando do crescimento da produção
açucareira, foi substituída pelo trabalho escravo de origem africana.
O autor também discorre sobre a produção mineradora, demonstrando como essa diferencia-
se da produção açucareira e como a mineração concentrou grande quantidade de população
no Sudeste do País.
Por fim, Furtado examina o surgimento da produção cafeeira, a utilização da mão de obra
escrava africana e a substituição dessa pelo trabalhador imigrante europeu.

6
Pensando o Brasil: Formação Econômica do Brasil (1959)

O livro Formação econômica do Brasil (1959), é sem dúvida a principal obra de Celso
Furtado, mas não a única. Ao lado de Desenvolvimento e subdesenvolvimento (1961) e
Teoria e política do desenvolvimento econômico (1967), forma um conjunto analítico sobre
o desenvolvimento e desenvolvimentismo brasileiro e da América Latina.
Celso Furtado nasceu em 1920, na cidade de Pombal, Estado da Paraíba. Formou-se em
Direito pela Universidade do Brasil (Rio de Janeiro) em 1944 e doutorou-se em economia pela
Universidade de Paris em 1948. Em 1949 integrou-se

sob o comando do argentino Raul Prebisch ao corpo de cientistas


sociais da recém-criada Comissão Econômica das Nações Unidas
para a América Latina, organismo que viria a ser, sob a batuta
dos dois, o grande intelectual orgânico – teórico, dirigente
político, realizador de uma reforma intelectual e moral – do
desenvolvimento e do desenvolvimentismo na América Latina
(BRANDÃO, 2002, p. 2).

De volta ao Brasil, durante o governo Vargas, preparou o Esboço de um programa de


desenvolvimento para o Brasil, quando chefiou o grupo Misto entre a Comissão Econômica
para a América Latina e o Caribe e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
(Cepal-Bnde). Foi dirigente da revista Economia Brasileira, reunindo

a primeira geração de economistas de esquerda do país; elaborou


durante o Governo Juscelino Kubistchek o plano de recuperação
e desenvolvimento do Nordeste que iria dar origem à Sudene, do
qual seria superintendente até 1964; foi ministro extraordinário do
Planejamento do Governo João Goulart, para quem preparou o
Plano Trienal, tentativa fracassada de conter a inflação, assegurar
o crescimento e criar condições políticas para a sobrevivência do
regime democrático (BRANDÃO, 2002, p. 2).

Após o golpe militar de 1964, Celso Furtado teve os direitos políticos caçados e exilou-
se, primeiro nos Estados Unidos, lecionando em Yale e depois em Paris, lecionando na
Sorbonne. Com a redemocratização, em 1985 voltou ao Brasil e foi Ministro da Cultura do
governo José Sarney

cargo que era ao mesmo tempo uma reparação de uma injustiça –


o truncamento de sua vocação de homem do Estado –, o
reconhecimento de sua grandeza intelectual e a manifestação de
sua perda de influência no debate e na determinação dos rumos
da economia. Ao longo dos anos 90 Celso Furtado continuaria
produzindo, agora em franca rota de colisão intelectual com a
opção civilizacional e a política econômica hegemônica no país
(BRANDÃO, 2002, p. 2).

7
Unidade: Pensando o Brasil: Formação econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado

Segundo Gildo Marçal Brandão, Formação econômica do Brasil figura ao lado de obras
clássicas como Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre; Raízes do Brasil, de Sérgio
Buarque de Holanda e Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Júnior, seriam
essas obras as que “inventaram” o Brasil.
O livro de Furtado é, de certo modo, fruto das mudanças sociais, econômicas e políticas
advindas da Revolução de 1930. Essa marcou uma nova etapa do desenvolvimento econômico
capitalista no Brasil, que se aprofundou a partir dos anos 1950. Essa nova etapa do capitalismo
introduziu “o Brasil nos modernos padrões de consumo: eletrodomésticos, carros, produtos de
consumo industrializados”. Há também uma mudança nos padrões da administração pública.

O Estado sob o signo do planejamento econômico, passou a


valorizar o saber técnico: a economia, a administração pública e a
engenharia assumiram papel importante na atuação estatal e na
gestão macroeconômica, suplantando o bacharelismo do passado
(SILVA, 2011, p. 444).

Exemplos dessas mudanças foram o plano de metas, estabelecido durante o governo de


Juscelino Kubitschek; o projeto de ocupação do Oeste e do Norte do Brasil, exemplificado
pela construção de Brasília; e a imigração para os centros urbanos.
Também no mundo das ideias o período foi marcado por grandes transformações,
consolidando as Ciências Sociais no ensino acadêmico.

O livro de Celso Furtado dá testemunho desse entrecruzamento


de tendências e procura compreender o alcance e os limites das
transformações do presente, sob o ponto de vista histórico; mas
de uma história filtrada pela economia, buscando compreender os
dilemas propostos pelos processos sociais e pela reflexão sobre o
desenvolvimento econômico (SILVA, 2011, p. 444).

Formação econômica do Brasil é um livro de economia, mas com base na história. Para
Furtado a análise econômica que não tem base histórica leva a “uma sintaxe desprovida de
significado e de qualquer potencial para uma ação política transformadora”. Para esse pensador
a “análise econômica e enfoque histórico” são fundamentais para demonstrar “que toda a vez
que um economista se depara com um ‘conjunto social complexo’, ele o faz a partir de uma
vista global fornecida pela história” (BARBOSA, 2010, p. 150).
Celso Furtado foi crítico da teoria econômica elaborada nos países desenvolvidos. Como
Raúl Prebisch, chamou a atenção para o falso senso de universalidade dessas teorias.

O progresso técnico não se difundiria de maneira linear no “centro”


e na “periferia” da economia mundial. Ao contrário do que sugeria
a tese ricardiana sobre as “vantagens comparativas” provindas da
divisão internacional do trabalho, haveria uma “deterioração dos
termos de intercâmbio”, entre as matérias-primas, produzidas
na periferia, e as manufaturas, originárias do centro. Ou seja, o
desenvolvimento não seria um processo único e inevitável mas
desigual (e não combinado) (RICUPERO, 2005, p. 372).

8
A contribuição fundamental de Furtado foi demonstrar como historicamente se deram
as relações “entre colônias e metrópoles, países desenvolvidos e subdesenvolvidos, centro e
periferia” (RICUPERO, 2005, p. 372).
Para Bernardo Ricupero, Celso Furtado foi leitor das grandes obras fundacionais do Brasil:
Casa grande & senzala; Raízes do Brasil; Formação do Brasil Contemporâneo; Formação da
literatura brasileira (1959), de Antônio Cândido; e Os donos do poder (1959), de Raymundo
Faoro. Porém, Furtado teve uma relação diferenciada com as referidas obras. Enquanto Casa
grande & senzala e Os donos do poder trazem uma avaliação negativa da história, as obras
de Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Antônio Cândido propõem a formação
definitiva da nação brasileira, que é o que busca Celso Furtado em suas análises, ou seja, a
proposta dos autores é a superação do externo, dado que “querem efetivamente que se crie
no Brasil uma política autônoma, um mercado interno que supere o externo e uma literatura
consolidada” (RICUPERO, 2005, p. 373).
A questão da relação do Brasil com o externo é uma preocupação permanente na
obra de Celso Furtado. Ao contrário de autores que buscavam fatores similares do Brasil
ao feudalismo europeu, “identificados com a historiografia mais tradicional ou com a
interpretação da III Internacional sobre os ‘países colônias, semicoloniais e dependentes’,
assim como historiadores do escravismo colonial e Gilberto Freyre”, que “têm em comum
a postura de privilegiar os fatores internos à colônia”, Celso Furtado chamou a atenção,
principalmente, “para a relação do Brasil (desde o início da sua história) com a economia
mundial” (RICUPERO, 2005, p. 373).
Utilizando-se dos estudos do francês Paul Leroy-Beulieu “sobre a colonização moderna”,
que sugere a possibilidade de diferentes desenvolvimentos históricos, Celso Furtado fez
“uso da comparação entre colônia de povoamento, que prevaleceria na região temperada
do continente americano, e colônias de exploração, dominantes na região tropical”
(RICUPERO, 2005, p. 374). Sua conclusão a esse respeito é de fundamental importância
para a análise das diferenças de desenvolvimento dos Estados Unidos e da América Latina,
do Brasil em particular.
Para Celso Furtado “o desenvolvimento das colônias de povoamento”, se deu “de dentro
para fora, privilegiando o mercado interno (similar, portanto, à Europa)”, o que “possibilitou
o surgimento de uma camada de pequenos proprietários e de grupos dominantes menos
dependentes da metrópole” (RICUPERO, 2005, p. 374), o que explica, em parte, o
desenvolvimento capitalista avançado dos Estados Unidos. Já as colônias de exploração, que
tiveram um êxito inicial, que desde cedo estiveram integradas ao mercado europeu, tiveram
dificuldades para superar a situação colonial, tornando-se, posteriormente, subdesenvolvidas.
Assim como Caio Prado Júnior, Furtado demonstrou como a “economia açucareira do
litoral nordestino – setor de alta produtividade voltado à produção para o mercado externo” –
estava articulada com “a pecuária, realizada no interior, de baixa produtividade e voltada para
o mercado interno”. A economia do litoral produzia “para o mercado externo, utilizando o
trabalho escravo em grandes unidades, enquanto fariam parte do setor inorgânico ‘as atividades
inclassificáveis ou de difícil classificação’ subordinadas, de alguma forma, ao setor orgânico”
(RICUPERO, 2005, p. 374).

9
Unidade: Pensando o Brasil: Formação econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado

Em sua análise da economia colonial brasileira, Celso Furtado demonstrou que a renda
monetária da produção é revertida “ao empresário açucareiro e deste para os importadores
e financiadores dos bens de capital, revelando a sua natureza meramente contábil”. Assim o
autor explica “porque este crescimento com base no impulso externo não poderia engendrar
um processo de desenvolvimento autopropulsor” (BARBOSA, 2010, p. 152).
Em Formação econômica do Brasil fica demonstrado que a economia colonial não passa
por crises, pelo menos da maneira que essas ocorrem na economia industrial. “Ao arrefecer-se
o impulso externo, a atividade açucareira se mantém em virtude dos altos custos fixos”. A crise
se dá na “economia criatória” (BARBOSA, 2010, p. 152), que com a queda do consumo
“retorna à subsistência”. Para entender esse processo,

é necessário ter em conta que a criação de gado era em grande


medida uma atividade de subsistência, sendo a fonte quase
única de alimentos e de uma matéria-prima (o cou­ ro) que se
utilizava praticamente para tudo. O processo mais amplo ajuda
a descortinar o real, tornando-o palpável, fazendo com que o
olhar do leitor desça para o nível mais básico da vida material
(BARBOSA, 2010, p. 152).

Essas formulações apontam para o que foi demonstrado anteriormente, e que Celso Furtado
se perguntara e “tentara responder ao longo de sua vida intelectual” (BARBOSA, 2010, p.
153), ou seja, a diferença de padrão de desenvolvimento capitalista entre Brasil e Estados
Unidos. Segundo Alexandre de Freitas Barbosa (2010, p. 153):

Vários fatores são arrolados: os distintos tipos de colonização que


pro­duzem padrões peculiares de interação entre produtividade,
concentração de renda e padrão de consumo; os diversos níveis
de dependência com rela­ção à metrópole; as estruturas sociais
inassimiláveis; as formas distintas de atuação do Estado e as
ideologias subjacentes dos homens públicos.

A análise comparativa entre Brasil e Estados Unidos explica porque o Brasil se tornou um
país subdesenvolvido e não uma potência industrial, mas

sem preconceitos ou explicações fáceis. Como se o fio condutor da


história e das instituições de ambos os territórios socioeconômicos
fosse recuperado de modo a iluminar, conforme as palavras de
Francisco de Oliveira em seu livro supra citado, as peculiares
“conexões de sentidos da ação social”, mas sem sugerir que
devêssemos fazer como “eles”. Isto seria impossível no arcabouço
teórico furtadiano (BARBOSA, 2010, p. 153).

10
Retomemos então a análise de Furtado sobre a formação econômica brasileira. Segundo o
autor a economia açucareira foi o centro da exploração colonial portuguesa, que se concentrou
no Nordeste brasileiro. Para esse pensador a mão de obra escrava foi fundamental para o
sucesso da empresa açucareira. A instalação dessa foi realizada com trabalho indígena.

As dificuldades maiores, encontradas na etapa inicial advieram


da escassez de mão-de-obra. O aproveitamento do escravo
indígena, em que aparentemente se baseavam todos os planos
iniciais, resultou inviável na escala requerida pelas empresas
agrícolas de grande envergadura que eram os engenhos de açúcar
(FURTADO, 2000, p. 45).

Os núcleos que não obtiveram êxito na empresa açucareira, como São Vicente, tornaram-
se fornecedores de escravos indígenas, funcionando em torno do mercado açucareiro,
o que significa dizer, que “mesmo aquelas comunidades que aparentemente tiveram um
desenvolvimento autônomo nessa etapa da colonização, deveram sua existência indiretamente
ao êxito da economia açucareira” (FURTADO, 2000, p. 46).
Os escravos africanos foram introduzidos na colônia quando o sistema de produção
já estava montado, chegou “para expansão da empresa”. Foi quando a rentabilidade
do negócio  estava assegurada que entraram em cena, na escala necessária, os escravos
africanos: base de um sistema de produção mais eficiente e mais densamente capitalizado
(FURTADO, 2000, p. 46).
A renda gerada pela produção açucareira era fortemente concentrada nas mãos dos
senhores de engenho e proprietários de canaviais. Aproximadamente 5% de todo o montante
era gasto com serviços e outros 5% com reposição, como por exemplo, de gado. “Tudo indica,
destarte, que pelo menos 90 por cento da renda gerada pela economia açucareira dentro do
país se concentrava nas mãos da classe de proprietários de engenhos e de plantações de cana”
(FURTADO, 2000, p. 48).
Porém, como demonstrado, essa renda não financiou o desenvolvimento econômico da
colônia. Como demonstra Furtado, os capitais gerados na economia açucareira “não eram
utilizados dentro da colônia, onde a atividade não-açucareira absorvia ínfimos capitais”
(FURTADO, 2000, p. 49). Os estudos do autor demonstram que boa parte dos capitais
aplicados pertencia aos comerciantes.

Sendo assim, uma parte da renda, que antes atribuímos à classe de


proprietários e engenhos e de canaviais, seria o que modernamente se
chama renda de não-residentes, e permanecia fora da colônia. Explicar-
se-ia assim, facilmente, a íntima coordenação existente entre as etapas
de produção e comercialização, coordenação essa que preveniu a
tendência natural à superprodução (FURTADO, 2000, p. 49).

11
Unidade: Pensando o Brasil: Formação econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado

Furtado demonstra que o sistema escravista podia crescer livremente, desde que
os preços internacionais fossem mantidos ou tivessem aumentos. Internamente o
crescimento era possível dada a enorme quantidade de terras disponíveis. O nível de
preços da segunda metade do século XVI e da primeira do século XVII mantiveram uma
rentabilidade elevada, permitindo

que a indústria autofinanciasse uma expansão ainda mais rápida


do que a efetivamente ocorrida. Tudo indica, portanto, que o
aumento da capacidade produtiva foi regulado com vista a evitar
um colapso nos preços, ao mesmo tempo que se realizava um
esforço persistente para tornar o produto conhecido e ampliar a
área de consumo (FURTADO, 2000, p. 54-55).

O crescimento da empresa açucareira foi constante nos séculos XVI e XVII, mas não
acarretou mudanças estruturais no sistema. Esse desenvolvimento proporcionou aumento
populacional, porém, como a renda ficava concentrada nos proprietários de engenhos e
canaviais e nos comerciantes estrangeiros, “não permitia uma articulação direta entre os
sistemas de produção e consumo, [o que] anulava as vantagens desse crescimento demográfico
como elemento dinâmico do desenvolvimento econômico” (FURTADO, 2000, p. 55).
Como ficou demonstrado, a economia açucareira dependia, quase que exclusivamente,
do externo. A diminuição da procura externa dava início à decadência do sistema,
atrofiando o setor monetário. Mas dadas as características do sistema de produção, a
decadência não adquiria características catastróficas das crises econômicas típicas do
sistema capitalista industrial.

A renda monetária da unidade exportadora, praticamente


constituíam os lucros do empresário, sendo sempre vantajoso para
este continuar operando qualquer que fosse a redução ocasional
dos preços. Como o custo estava virtualmente constituído de gastos
fixos, qualquer redução na utilização da capacidade produtiva
redundava em perda para o empresário. Sempre havia vantagem
em utilizar a capacidade plenamente. Contudo, se se reduziam os
preços abaixo de certo nível, o empresário não podia enfrentar os
gastos de reposição de sua força de trabalho e de seu equipamento
importado. Em tal caso, a unidade tendia a perder capacidade. Essa
redução da capacidade teria, entretanto, de ser um processo muito
lento dadas as razões já expostas. A unidade exportadora estava assim
capacitada para preservar a sua estrutura. A economia açucareira
do Nordeste brasileiro, com efeito, resistiu mais de três séculos às
mais prolongadas depressões, logrando recuperar-se sempre que o
permitiam as condições do mercado externo, sem sofrer nenhuma
modificação estrutural significativa (FURTADO, 2000, p. 56).

12
Na segunda metade do século XVII, com a invasão holandesa, houve a desorganização
do mercado açucareiro e iniciou-se a concorrência da produção das Antilhas, de modo que
os preços caíram pela metade. Os proprietários de engenhos e canaviais de tudo fizeram
para manter a produção em nível elevado. A tendência de baixa dos preços continuou e se
acentuou com a exploração das minas, que atraiu “a mão-de-obra especializada” e elevou “os
preços do escravo”, reduzindo

ainda mais a rentabilidade da empresa açucareira. O sistema


entrou, em consequência, numa letargia secular. Sua estrutura
preservou-se, entretanto, intacta. Com efeito, ao surgirem novas
condições favoráveis a começos do século XIX, voltaria a funcionar
com plena vitalidade (FURTADO, 2000, p. 56).

As terras litorâneas eram utilizadas, praticamente em sua totalidade, para a produção


açucareira, com exceção da produção de gêneros alimentícios de primeira necessidade. Essa
concentração das terras para produção açucareira engendrou no sertão nordestino a produção
de gado para suprir de carne e animais de tiro os latifúndios canavieiros. Essa atividade era de
rentabilidade significativamente baixa e a população escassa.
Dada às características dos pastos nordestinos, a criação de gado levou os sertanejos a
ocuparem vastas áreas, cruzando o rio São Francisco, chegando ao Tocantins e alcançando o
Maranhão já no século XVII. Quanto mais se distanciavam do litoral, os custos aumentavam,
pois o gado deveria chegar às áreas de plantação da cana de açúcar, seu destino final.
A expansão da atividade criatória foi beneficiada pelo baixo custo de investimentos e a
abundância de terras. Os colonos que não dispunham de recursos tinham nessa atividade a
possibilidade de começar um negócio. Se não tinham recursos próprios podiam trabalhar
para outros e em alguns anos conseguir algumas cabeças de gado para começar seu próprio
negócio. “Tudo indica que essa atividade era muito atrativa para os colonos sem capital, pois
não somente da região açucareira, mas também da distante colônia de São Vicente, muita
gente emigrou para dedicar-se a ela” (FURTADO, 2000, p. 61).
Da mesma forma que a expansão açucareira no século XVII fez crescer a atividade
criatória no Nordeste, a exploração das minas contribuiu para o crescimento da criação no
Sul da colônia.

Ao contrário do que ocorria com a economia açucareira, a


criatória – não obstante nesta não predominasse o trabalho
escravo – representava um mercado de ínfimas dimensões. A
razão disto está em que a produtividade média da economia
dependente era muitas vezes menor do que a da principal, sendo
muito inferior seu grau de especialização e comercialização
(FURTADO, 2000, p. 62).

Segundo Furtado, quando a economia açucareira entra em decadência, o excedente de


população que vive no litoral migra para o interior, incorporando-se à atividade criatória,
como essa tem por finalidade abastecer os latifúndios produtores de cana de açúcar e nesses
o consumo foi diminuído, parte da população do interior nordestino passa a produzir para a
subsistência, havendo, então, uma regressão econômica.

13
Unidade: Pensando o Brasil: Formação econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado

A dispersão de parte da população, num sistema de pecuária


extensiva, provocou uma involução nas formas de divisão do
trabalho e especialização, acarretando um processo mesmo
nas técnicas artesanais de produção. A formação da população
nordestina e a sua precária economia de subsistência – elemento
básico do problema econômico brasileiro em épocas posteriores –
estão assim ligadas a esse lento processo de decadência da grande
empresa açucareira que possivelmente foi, em sua melhor época,
o negócio colonial-agrícola mais rentável de todos os tempos
(FURTADO, 2000, p. 66).

Dada a decadência da produção açucareira, as dificuldades econômicas contribuíram


à expansão portuguesa, tanto no Norte como no Sul. No Maranhão os portugueses
estabeleceram uma colônia de povoamento, colocando trezentos açorianos na região. Porém,
a desorganização da economia açucareira no final do século XVII e a concorrência antilhana
impediu que a região Norte desenvolvesse a produção de produtos exportáveis. Tentou-se
então a especialização na caça e venda de indígenas para a escravidão, mas tal empreitada
fracassou, também, devido à crise da produção açucareira.
Os jesuítas, primeiro combatendo a escravização dos indígenas e, depois, utilizando-os para
exploração da floresta, acabaram intensificando a ocupação da região Norte da colônia portuguesa.
No Sul, a queda da produção açucareira no Nordeste provocou uma crise, pois reduziu o
mercado de escravos indígenas. Essa queda aumentou a importância da produção de couro da
região Sul, o que levou os governantes portugueses a expandirem a fronteira Sul da colônia.

A penetração dos portugueses em pleno estuário do Prata, onde


em 1680 fundaram a Colônia do Sacramento, constitui assim outro
episódio da expansão territorial do Brasil ligada às vicissitudes da
etapa de decadência da economia açucareira (FURTADO, 2000,
p. 70).

Com a crise da produção açucareira, os portugueses entenderam que a única saída para a
manutenção da colônia seria encontrar metais preciosos. Portugal voltava, assim, ao projeto
original, que tinha como base a exploração desses metais.

Os governantes portugueses cedo se deram conta do enorme capital


que, para a busca de minas, representavam os conhecimentos que
do interior do país tinham os homens do planalto de Piratininga.
Com efeito, se estes já não haviam descoberto o ouro em suas
entradas pelos sertões, era por falta de conhecimentos técnicos.
A ajuda técnica que então receberam da Metrópole foi decisiva
(FURTADO, 2000, p. 77).

A decadência da metrópole e da colônia contribuiu para se formar um movimento a


favor da mineração. Houve migração em massa de Piratininga, do Nordeste vieram os
capitais, principalmente “sob a forma de mão-de-obra escrava, e em Portugal se formou
pela primeira vez uma grande corrente migratória espontânea com destino ao Brasil”
(FURTADO, 2000, p. 77).

14
A forma de exploração do ouro proporcionou a vinda de pessoas sem muitas posses, pois
a exploração do ouro de aluvião, que era encontrado no fundo dos rios, não exigia grandes
investimentos. O governo português teve, inclusive, que tomar medidas contra a imigração,
pois se corria o perigo de “esvaziar” a metrópole.

Com efeito, tudo indica que a população colonial de origem


européia decuplicou no correr do século da mineração. Cabe
admitir, demais, que o financiamento dessa transferência de
população em boa medida foi feito pelos próprios imigrantes, os
quais eram pessoas de pequenas posses que liquidavam seus bens,
na ilusão de alcançar rapidamente uma fortuna no novo eldorado
(FURTADO, 2000, p. 78).

O trabalho na mineração era completamente diferente da produção açucareira. Os escravos


não eram maioria da população e a forma como se organizava o trabalho lhes dava maior
liberdade de circulação e de trabalho, de modo que alguns conseguiam trabalhar por conta
própria, pagando uma quantia fixa aos seus donos, o que algumas vezes lhes permitia comprar
a própria liberdade.
As possibilidades de ascensão social, que não existiam no Nordeste açucareiro, foram
comuns na produção mineira. Assim, por exemplo, mesmo trabalhando por conta própria,
um colono que conseguisse encontrar ouro, podia rapidamente tornar-se empresário.
Como a lucratividade da empresa mineira era significativamente elevada, todos os recursos
disponíveis eram aplicados nessa. Formou-se a partir daí um mercado fornecedor de gado,
que vinha do Sul e do Nordeste, regiões que passaram a florescer com o crescimento da
mineração, assim como um mercado fornecedor de mulas para transporte, já que o ouro
estava encravado no interior, distante de tudo. É importante ressaltar que a região Sul foi
integrada à economia da colônia a partir da mineração.

A base geográfica da economia minera estava situada numa vasta


região que compreendia entre a serra da Mantiqueira, no atual
Estado de Minas, e a região de Cuiabá, no Mato Grosso, passando
por Goiás. Em algumas regiões a curva de produção subiu e baixou
rapidamente provocando grandes fluxos e refluxos de população;
noutras, essa curva foi menos abrupta, tornando-se possível um
desenvolvimento demográfico mais regular e a fixação definitiva
de núcleos importantes de população (FURTADO, 2000, p. 83).

O grande eldorado se deu na primeira metade do século XVIII, “alcançou seu ponto máximo
em torno de 1760, quando atingiu cerca de 2,5 milhões de libras”, exportados. Assim como
o crescimento, a queda da produção foi rápida “e já por volta de 1780, não alcançava meio
milhão de libras” (FURTADO, 2000, p. 83).
Apesar de a renda média na região minerada ser inferior à produção açucareira, era
menos concentrada e a população vivia em núcleos urbanos e semiurbanos. Essas questões,
em conjunto com a distância dos portos, contribuíram para o “desenvolvimento de atividades
ligadas ao mercado interno do que havia sido até então a região açucareira”. Entretanto,
esse desenvolvimento não alcançou grandes proporções, principalmente no que diz respeito
à manufatura. Segundo Furtado (2000, p. 84), a “causa principal possivelmente foi a

15
Unidade: Pensando o Brasil: Formação econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado

própria incapacidade técnica dos imigrantes para iniciar atividades manufatureiras numa
escala ponderável”.
O ouro brasileiro teve um efeito negativo na economia portuguesa, pois retirou Portugal da
crise econômica estabelecida com a queda da produção e comercialização do açúcar brasileiro,
contribuindo para a estagnação econômica lusitana, já que com a abundância de riqueza
trazida pela exploração mineira, Portugal abandonou projetos de industrialização implantados
no período de crise do açúcar. Ocorre que a nação mais beneficiada com a produção mineira
do Brasil foi a Inglaterra.

Numa época dominada pelo mais estrito mercantilismo e em


que era particularmente difícil desenvolver um comércio de
manufaturas, a Inglaterra encontrou na economia luso-brasileira
um mercado em rápida expansão e praticamente unilateral. Suas
exportações eram saldadas em ouro, o que adjudicava à economia
inglesa uma excepcional flexibilidade para operar no mercado
europeu (FURTADO, 2000, p. 87).

Como na região mineira não se efetuou outras formas de atividades econômicas, com
a decadência da produção mineira a região retrocedeu à produção de subsistência. “Essa
população relativamente numerosa encontrará espaço para expandir-se dentro de um regime
de subsistência e virá a constituir um dos principais núcleos demográficos do país” (FURTADO,
2000, p. 90).
Assim, no início do século XIX a decadência da economia colonial era geral. Segundo Furtado,
uma saída possível seria a industrialização, porém faltava ao Brasil um mercado interno, que
impulsionasse esse processo. A indústria têxtil que tinha consumidores e, portanto, poderia
ter se desenvolvido, concorria com a Inglaterra, que havia baixado os preços dos tecidos,
dificultando a produção artesanal existente no Brasil e, mais, a potência inglesa dificultava por
todos os meios a importação de máquinas e equipamentos, com a clara intenção de impedir
o desenvolvimento industrial das ex-colônias europeias.

Mesmo deixando de lado a consideração de que uma política


inteligente de industrialização seria impraticável num país dirigido
por uma classe de grandes senhores agrícolas escravistas, é
necessário reconhecer que a primeira condição para o êxito daquela
política teria sido uma firma e ampla expansão do setor exportador.
A causa principal do grande atraso relativo da economia brasileira
na primeira metade do século XIX foi, portanto, o estancamento
de suas exportações (FURTADO, 2000, p. 112).

A queda dos preços dos produtos exportáveis, mormente do açúcar, acarretou a queda da
renda per capita, provavelmente “a mais baixa do que em qualquer período da colônia, se se
consideram em conjunto as várias regiões do país” (FURTADO, 2000, p. 113).
Para superar a crise que se abateu no Brasil a partir do final do século XVIII era necessário
que o País se reintegrasse no comércio internacional. “Num país se técnica própria e no qual
praticamente não se formavam capitais que pudessem ser desviados para novas atividades, a
única saída que oferecia o século XIX para o desenvolvimento era o comércio internacional”
(FURTADO, 2000, p. 115).

16
O café, que era produzido na colônia desde o século XVIII, no início do século XIX apareceu
como um produto exportável e ganhou maior importância quando se deu a desorganização
da produção no Haiti, que era o grande produtor nesse período. A partir de 1840 o café já
respondia por 40% das exportações brasileiras, tornando-se o principal produto nacional.
As primeiras plantações de café concentraram-se nas regiões próximas da capital, Rio
de Janeiro, aproveitando-se da abundância de mão de obra, dada a decadência da região
mineradora; da proximidade do porto, que facilitava o transporte por mula, animal que também
existia em abundância, pois era utilizado no transporte do ouro retirado das minas.

O segundo e principalmente o terceiro quartel do século passado


[XIX] são basicamente a fase de gestação da economia cafeeira.
A empresa cafeeira permite a utilização intensiva de mão-de-obra
escrava, e nisto se assemelha à açucareira. Entretanto, apresenta
um grau de capitalização muito mais baixo do que esta última
(FURTADO, 2000, p. 119).

Nessa nova etapa da economia brasileira, formou-se também uma nova classe de
empresários, “que desempenhará papel fundamental no desenvolvimento subsequente do
país” (FURTADO, 2000, p. 119).
Esses empresários locais se formaram a partir da produção de gêneros de subsistência
em Minas Gerais, que eram fornecidos à capital do País, que havia passado por grandes
transformações desde a chegada de D. João VI, em 1808. “Muitos desses homens, que
haviam acumulado alguns capitais no comércio e transporte de gêneros e de café, passaram
a interessar-se pela produção deste, vindo à constituir a vanguarda da expansão cafeeira”
(FURTADO, 2000, p. 119).
A formação das classes dirigentes da economia cafeeira é significativamente diferente de
sua congênere açucareira. Nessas a atividade comercial estava concentrada nas mãos de
portugueses ou holandeses, de modo que a produção estava separada da atividade comercial.
Os homens que dirigiam a produção açucareira não tinham a menor visão do processo
total. “Assim isolados, os homens que dirigiam a produção não puderam desenvolver uma
consciência clara de seus próprios interesses” (FURTADO, 2000, p. 120).
Processo altamente diferente aconteceu na economia cafeeira. Os homens que iniciaram a
produção tinham longa experiência no comércio. “Em toda a etapa da gestação os interesses da
produção e do comércio estiveram entrelaçados” (FURTADO, 2000, p. 120). Sua proximidade
com a capital do Brasil lhes permitiu perceber a necessidade de influenciar os governos para
alcançarem seus objetivos.

Mas não é o fato de que hajam controlado o governo o que


singulariza os homens do café. E sim que hajam utilizado esse
controle para alcançar objetivos perfeitamente definidos de uma
política. É por essa consciência clara de seus próprios interesses
que eles se diferenciam de outros grupos dominantes anteriores ou
contemporâneos (FURTADO, 2000, p. 120-121).

17
Unidade: Pensando o Brasil: Formação econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado

Um dos problemas encontrados à expansão cafeeira foi o da mão de obra. A maioria dos
trabalhadores livres estava ligada à economia de subsistência, de modo que muitos trabalhavam
nas roças, em propriedades de grandes fazendeiros produtores de gado e, se não estavam
ligados diretamente a terra, mantinham laços com esses proprietários, que dificilmente os
liberariam para o trabalho nas lavouras de café. Da parte dos cafeicultores e dos governos
não houve nenhuma tentativa nesse sentido. Outra fonte possível eram os trabalhadores livres
urbanos, mas em geral os cafeicultores e os governantes viam consideráveis dificuldades desses
homens se adaptarem ao trabalho nas grandes lavouras de café.

Em consequência, mesmo na época em que mais incerta parecia a


solução do problema de mão-de-obra, não evoluiu no país a idéia de
um amplo recrutamento interno financiado pelo governo. Pensou-
se em importar mão-de-obra asiática, em regime de semi-servidão,
seguindo exemplo das índias ocidentais inglesas e holandesas. Tão
grave era, com efeito, o problema da oferta da mão-de-obra no
Brasil, no terceiro quartel do século passado, que a um homem de
visão e da experiência de Mauá não ocorria melhor solução que
essa da semi-servidão dos asiáticos (FURTADO, 2000, p. 127).

A solução encontrada para o problema da mão de obra, no princípio, foi a intensificação


do tráfico de escravos africanos. Entretanto, a Inglaterra exigia o fim desse tipo de comércio,
o que levou o governo brasileiro a proibi-lo em 1850. A partir daí outras tentativas foram
aplicadas. A primeira foi a importação de trabalhadores europeus iniciada pelo fazendeiro e
senador, Vergueiro. O método adotado foi o de trazer o imigrante europeu com subsídio do
Estado, em um processo em que só o fazendeiro levava vantagem.
O imigrante chegava à fazenda endividado e assinava um contrato em que se
comprometia a não deixar as plantações até o completo pagamento das dívidas. Essa
forma de contratação levou a maioria dos imigrantes à condição de semiescravidão, o que
logo chamou a atenção das autoridades europeias, que passaram a proibir a vinda de seus
conterrâneos para o Brasil.
Com o crescimento da procura pelo café e o consequente aumento das terras exploradas,
buscou-se alternativas para a vinda dos imigrantes, momento em que foi adotado o regime
de parceria, mas que também era dificultoso para os trabalhadores livres, pois esses se
comprometiam com os riscos da produção, podendo levá-los à completa miséria.

A partir dos anos sessenta introduziu-se um sistema misto pelo


qual o colono tinha garantida parte principal de sua renda. Sua
tarefa básica consistia em cuidar de um certo número de pés de
café, e por essa tarefa recebia um salário monetário anual. Esse
salário era completado por outro variável, pago no momento da
colheita em função do volume desta (FURTADO, 2000, p. 132).

Ademais, havia ainda o problema do pagamento da viagem, cuja solução veio a partir de
1870, quando foi adotado o sistema em que o governo imperial responsabilizava-se pelo
custeio das despesas de viagem do imigrante da Europa até a fazenda. Ao fazendeiro cabia
a responsabilidade de manter o imigrante durante o primeiro ano de atividade, período de

18
maturação do trabalho. Os proprietários rurais, ainda, deveriam colocar terras à disposição
dos colonos, para que esses produzissem gêneros de primeira necessidade.

Dessa forma o imigrante tinha seus gastos de transporte e


instalação pagos e sabia a que se ater com respeito à sua renda
futura. Esse conjunto de medidas tornou possível promover pela
primeira vez na América uma volumosa corrente imigratória de
origem européia destinada a trabalhar em grandes plantações
agrícolas (FURTADO, 2000, p. 133).

Resolvido o problema da mão de obra, restava ainda a questão da escravidão, ou melhor,


seu fim. Na região açucareira (Nordeste), o fim da escravidão acarretou o aproveitamento
dos ex-escravos nos engenhos de açúcar, dado que nas cidades já havia um excesso
populacional. Da mesma forma, no sertão as terras já eram ocupadas pela produção
de subsistência e, em geral, tratava-se de solo de má qualidade, pois estava localizado
nas regiões semiáridas, enquanto as terras do litoral estavam ocupadas com a produção
açucareira, sem possibilidade para o ex-escravo conseguir espaço para se manter em uma
produção de subsistência.

Não foi difícil em tais condições, atrair e fixar uma parte substancial da
antiga força de trabalho escravo, mediante um salário relativamente
baixo. Se bem não existam estudos específicos sobre a matéria,
seria difícil admitir que as condições materiais de vida dos antigos
escravos se hajam modificado sensivelmente, após a abolição, sendo
pouco provável que esta última haja provocado uma redistribuição
de renda de real significado (FURTADO, 2000, p. 143).

Nas regiões cafeeiras a abolição teve diferentes efeitos. Nas mais antigas e decadentes
em função do crescimento das plantações no interior paulista, como o Vale do Paraíba, os
ex-escravos fixaram-se nas fazendas, recebendo maiores salários, dada a necessidade de os
fazendeiros manterem a produção.

A situação favorável, do ponto de vista das oportunidades de


trabalho, que existia na região cafeeira, valeu aos antigos escravos
liberados salários relativamente elevados. Com efeito, tudo indica
que na região do café a abolição provocou efetivamente uma
redistribuição da renda em favor da mão-de-obra. Sem embargo,
essa melhora na remuneração real do trabalho perece haver ter
tido efeitos negativos que positivos sobre a utilização dos fatores.
Para bem captar esse aspecto da questão é necessário ter em conta
alguns traços mais amplos da escravidão. O homem formado
dentro desse sistema social está totalmente desaparelhado para
responder aos estímulos econômicos. Quase não possuindo hábitos
de vida familiar, a idéia de acumulação de riqueza é praticamente
estranha. Demais, seu rudimentar desenvolvimento mental limita
extremamente suas “necessidades”. Sendo o trabalho para o
escravo uma maldição e o ócio o bem inalcançável, a elevação de
seu salário acima de suas necessidades – que estão definidas pelo
nível de subsistência de um escravo – determina de imediato uma
forte preferência pelo ócio (FURTADO, 2000, p. 144).

19
Unidade: Pensando o Brasil: Formação econômica do Brasil (1959), de Celso Furtado

Segundo Furtado, nas regiões em que para manter o ex-escravo nas fazendas foi necessário
pagar salários elevados, houve um afrouxamento nas normas do trabalho. Nessas condições
o ex-escravo preferia trabalhar apenas dois ou três dias, o que lhe garantia a sobrevivência e
manter-se no ócio nos demais.

Dessa forma, uma das consequências diretas da abolição, nas


regiões em mais rápido desenvolvimento, foi reduzir-se o grau de
utilização da força de trabalho. Esse problema terá repercussões
sociais amplas que não cabe aqui refletir. Cabe tão-somente lembrar
que o reduzido desenvolvimento mental da população submetida à
escravidão provocará a segregação parcial desta após a abolição,
retardando sua assimilação e entorpecendo o desenvolvimento
econômico do país. Por toda a primeira metade do século
XX, a grande massa dos descendentes da antiga população
escrava continuará vivendo dentro de seu limitado sistema de
“necessidades”, cabendo-lhe um papel puramente passivo nas
transformações econômicas do país (FURTADO, 2000, p. 145).

No interior paulista a abolição não manteve os ex-escravos nas plantações, pois essas já
vinham suprindo suas necessidades a partir da imigração europeia.

Observada a abolição de uma perspectiva ampla, comprava-se que


a mesma constituiu uma medida de caráter mais político do que
econômico. A escravidão tinha mais importância como base de
um sistema regional de poder que como forma de organização da
produção. Abolido o trabalho escravo, praticamente em nenhuma
parte houve modificações de real significado na forma de
organização da produção e mesmo na distribuição da renda. Sem
embargo, havia-se eliminado uma das vigas básicas do sistema de
poder formado na época colonial e que, ao perpetuar-se no século
XIX, constituía um fator de entorpecimento do desenvolvimento
econômico do país (FURTADO, 2000, p. 145).

20

Você também pode gostar