Você está na página 1de 9

economia & história: especial Celso Furtado 55

eh

Celso Furtado, 100 Anos: Economia Colonial no Brasil nos Séculos


XVI e XVII (1948)
Alexandre Macchione Saes (*)

Defendida em 1948, na Sorbonne, a tese de Doutorado O lustro final da década de 1940 foi uma fase de varia-
de Celso Furtado, L’économie coloniale brésilienne (XVIe das e intensas experiências de vida para Celso Furta-
et XVIIe siècles): élements d’Historie Éco- do. Recém-formado na Faculdade Nacio-
nomique aplique à l’analyse de problemes nal de Direito, no Rio de Janeiro, partiu
économiques et sociaux modernes ganhou com a Força Expedicionária Brasileira
sua publicação somente no ano de 2001. A para servir durante a Segunda Guerra
partir do manuscrito original do trabalho Mundial na Itália; retornou para o Rio de
em português, guardado pelo autor, a tese Janeiro e, trabalhando no DASP, publicou
foi publicada com apoio da Associação alguns artigos na Revista do Serviço Pú-
Brasileira de Pesquisadores em História blico, com reflexões sobre a administra-
1
Econômica, quase cinquenta anos depois ção e a “moderna literatura americana”;
de sua defesa, recebendo o título Econo- realizou o doutorado na Faculdade de
mia colonial no Brasil nos séculos XVI e Direito e Ciências Econômicas da Univer-
XVII. Até então, sua consulta era possível sidade de Paris; e, finalmente, depois de
somente por meio do origi- breve retorno ao Rio de Ja-
Economia colonial no Brasil nos séculos XVI e XVII.
nal depositado na universi- São Paulo: Hucitec/ABPHE, 2001. neiro, arrumou suas malas
dade francesa. para Santiago do Chile, onde

maio de 2020
56 economia & história: especial Celso Furtado

iniciaria suas atividades como eco- História dos fatos econômicos, com econômica para apreender a lógica
nomista da Comissão Econômica o professor Charles Mozaré; e Prin- da realidade social – caso do Brasil
para América Latina (CEPAL). cípios Econômicos e Políticos, com – que se originaram de operações
o professor Jacques Rueff (FURTA- comerciais” (FURTADO, 2001, p. 5).
A vivência na Europa, durante o DO, 2019, p. 89). O doutorado na
período bélico na Itália, tinha sido Sorbonne teria início somente no Em suma, tendo a tese precedido
uma oportunidade para Furtado segundo semestre, sob orientação em quase dez anos a publicação de
ampliar sua visão de mundo. Para do economista Maurice Byé, que se sua obra clássica, Formação eco-
o jovem, no Rio de Janeiro, com “um considerava um discípulo de Fran- nômica do Brasil, são perceptíveis
emprego burocrático e um título de çois Perroux.2 os traços de continuidade de um
bacharel”, mas com “vontade de me trabalho ao outro; como se o livro
dedicar ao estudo de certos assun- A falta de fontes e dados abortou de 1959 tivesse completado crono-
tos – política, administração, ciên- a intenção de Furtado de estudar logicamente a obra de 1948, essa
cias sociais – e sobre eles escrever” os desequilíbrios externos da eco- restrita à colônia. Nas palavras do
(FURTADO, 2019, p. 88), retornar nomia brasileira no pós-guerra. autor: “O estudo da economia colo-
ao velho mundo, no ambiente do Por outro lado, foi na biblioteca nial brasileira veio a ser a primeira
pós-guerra, lhe permitiria viven- brasiliana do Museu do Homem parte da reflexão mais abrangente
ciar a reconstrução europeia como onde acabou encontrando uma que publiquei dez anos depois sob
um “laboratório social” (FURTADO, “belíssima” coleção de livros sobre o título de Formação econômica do
2014, p. 28). Como descreve Furta- o Brasil, fornecendo relevantes Brasil” (FURTADO, 2001, p.6).
do, em suas memórias, fontes e referências para sua pes-
quisa sobre a economia colonial Assim, as duas obras partiam do
Tomara a decisão de voltar à Euro- brasileira no período do açúcar. A mesmo problema do caráter da
pa, fascinado pelo inusitado da cena descoberta das fontes teria sido colonização brasileira; produziam
social e humana que aí se armara, apenas um acaso na trajetória inte- a leitura da formação do Brasil nos
certamente sem precedentes, por lectual de Furtado? Difícil respon- marcos da economia internacional;
sua amplitude e complexidade, na der, mas a escolha do novo tema e, ainda que a tese não avançasse
história dos homens. [...] Enfim, abriu uma porta pela qual Furtado para a análise do Brasil indepen-
o mundo de minha geração seria construiria um significativo edi- dente e republicano, ao apresentar
moldado pelas forças que viessem fício interpretativo: “Minha visão seus comentários sobre os “Ata-
a prevalecer no processo de recons- internacional da formação da eco- vismos coloniais do Brasil atual”,
trução da Europa, em particular nomia brasileira começou com esse a tese se aproxima de Formação
da Europa Ocidental. (FURTADO, exercício” (FURTADO, 2014, p. 37). econômica do Brasil no sentido de
2014, p. 25-26). elaborar diagnósticos para a ação
Na apresentação do livro, cinco (SILVA, 2011, p. 32).
Celso Furtado chegou em Paris décadas depois da defesa, Furtado
no início de 1947. Inicialmente, se reitera a importância da pesqui- Se os traços de continuidade são
matriculou no Instituto de Ciências sa do doutorado para sua leitura visíveis, o exercício de avaliar as
Políticas (Sciences Po) para cursar sobre a formação econômica do alterações teóricas, bibliográfi-
algumas matérias: História do So- país: “Foi a elaboração desta tese cas e interpretativas entre 1948
cialismo, com o historiador comu- de doutorado defendida na Sor- e 1959 pode revelar, por outro
nista Jean Baby; Marxismo, com o bonne em 1948 que me levou a lado, indícios relevantes sobre o
filósofo marxista Auguste Cornu; descobrir a importância da análise aprof undamento e o amadure-

maio de 2020
economia & história: especial Celso Furtado 57

cimento do autor. Vale lembrar apresentação do livro de 2001, que Para as referências secundárias,
que durante a década que separa o estudo sobre a economia colonial Celso Furtado destaca a obra de
a redação das duas obras, Celso cumpria como instrumento para Gilberto Freyre, Casa Grande e Sen-
Furtado tornou-se economista da “conhecer melhor nossa formação, zala, como o mais complexo estudo
CEPAL; aprofundou seu conhe- os ingredientes de nossa cultura”. do patriarcado brasileiro; História
cimento sobre a América Latina; Por meio desta pesquisa de 1948 econômica do Brasil, de Roberto Si-
envolveu-se diretamente no debate reconhecia que a matriz patrimo- monsen, foi referência para apoiar
do desenvolvimento nascente na nial e escravista, base da formação sua tese de inexistência de feuda-
década de 1950; e viveu o ambiente do Brasil, continuava presente lismo no Brasil; Formação do Brasil
de Cambridge e seus debates sobre na configuração da sociedade e contemporâneo, de Caio Prado Jr.,
a macroeconomia keynesiana. Em da complexa realidade brasileira por sua vez, era leitura central para
suma, nessa plêiade de referências, do pós-Segunda Guerra Mundial tratar “a monocultura como funda-
do estimulante ambiente do debate (FURTADO, 2001, p. 6). mento da organização econômica
econômico dos anos 1950, Forma- colonial brasileira”; e, finalmente,
ção econômica do Brasil necessaria- As páginas iniciais do livro são de- entre as referências estrangeiras,
mente absorveu novas ideias. dicadas a uma breve descrição das as obras de Henri Pirenne e Antó-
fontes. Celso Furtado destaca que, nio Sérgio foram suportes para a
Recuperar a tese de doutorado de naquela oportunidade de produção compreensão dos antecedentes da
Celso Furtado, assim, é mais do que da tese, os estudos de história eco- colonização e do pioneirismo por-
apenas uma oportunidade para nômica “não despertavam maiores tuguês na era dos descobrimentos
acompanhar a trajetória intelec- cuidados” no país. Os documentos (FURTADO, 2001, p.14 e 20).
tual do autor; é também encontrar históricos sobre a sociedade colo-
algumas de suas primeiras ilações nial vinham sendo, nas duas déca- Sobre os “Antecedentes portugue-
e matrizes teóricas, algumas aban- das anteriores, trabalhados mais ses da colonização”, Celso Furtado
donadas, outras lapidadas nas dé- efetivamente por antropólogos e discute tanto os fundamentos so-
cadas seguintes. sociólogos (FURTADO, 2001, p.13). ciais da expansão marítima lusi-
Assim, apresenta um arrolamento tana como o processo de expansão
de suas fontes primárias, confir- comercial portuguesa. Expondo
1 Economia Colonial no Brasil e os
3 mando a rica brasiliana existente como se deu a formação do Reino
Diálogos Contemporâneos
no Museu do Homem, com obras de Portugal, sobretudo por meio da
dos séculos XVI e XVII, entre elas interpretação de António Sérgio,
Economia colonial no Brasil nos
o livro de André Thevet, Les sin- Furtado defende que o pioneirismo
séculos XVI e XVII está dividida em
gularitez de la France Antarctique lusitano era decorrente da articu-
três partes: Antecedentes portu-
(1558), a obra anônima Diálogos lação da burguesia mercantil local
gueses da colonização do Brasil;
das grandezas do Brasil (1618) e com as classes aristocráticas. Essa
A formação da colônia; e Atavis-
Cultura e opulência do Brasil de leitura sobre a especificidade de
mos coloniais do Brasil atual. Uma
Antonil (1711). A obra de Antonil, Portugal é mediada pela descrição
análise sobre o passado, mas já
para o autor, era o “mais comple- de Henri Pirenne sobre o feudalis-
indicando a permanente preocupa-
xo trabalho descritivo de fatos da mo europeu, segundo a qual, por
ção do autor, apresentada em suas
vida econômica de todo o período meio da análise comparativa, era
páginas finais, de propor reflexões
colonial”, “insubstituível no estudo possível confirmar a precocidade
sobre as temáticas contemporâ-
da economia do Brasil colonial” da revolução burguesa lusitana,
neas. Celso Furtado justifica, na
(FURTADO, 2001, p.18-19). em pleno século XIII. Assim, Fur-

maio de 2020
58 economia & história: especial Celso Furtado

tado afirma: “Em Portugal, os dois des econômicas e as características economia de caráter colonial, isto
grupos antagônicos [sociedade da sociedade. A concepção inter- é, a dinâmica que limita as con-
feudal e nova sociedade mercantil] pretativa da dinâmica colonial, por dições de diversificação e disse-
estavam muito mais próximos cul- seu turno, nos remete ao argumen- minação dos ciclos econômicos
turalmente do que na França ou na to de Roberto Simonsen de ciclos para outras atividades, pois esses
Inglaterra” (FURTADO, 2001, p.26). econômicos. História econômica do estavam “a serviço de interesses
Brasil, portanto, oferece mais do que se encontravam fora do país”
A expansão comercial, por sua que alguns dados econômicos para (FURTADO, 2001, p.105). Por isso,
vez, segue, em linhas gerais, a in- apresentar a economia colonial, o balanço sobre o ciclo do açúcar
terpretação presente no sentido mas indica para Furtado um per- na colônia é negativo, pois a rique-
da colonização de Caio Prado Jr. curso para compreender a dinâmi- za gerada pelo comércio açucareiro
Valendo-se de expressões sobre a ca exógena e mercantil do sistema pouco ficava no país, sendo parte
exploração do Brasil como um “em- colonial.5 absorvida pela Coroa portuguesa,
preendimento comercial”, conclui: outra pelos intermediários lusi-
“O sentido de empresa comercial Em suma, a partir do modelo de tanos e pelos poderes públicos, e
dirigida pelo Estado se conser- colonização portuguesa no Brasil e o pouco que ficava nas mãos dos
vará bem marcado. Esse sentido, da dinâmica mercantil definindo os senhores era gasto com produtos
que será o da evolução econômica ciclos econômicos, Furtado indica importados.
da Colônia, presidirá a formação as bases da estrutura econômica
da sociedade brasileira” (FURTA- que será estabelecida no Brasil As páginas finais da parte “A for-
DO, 2001, p.39).4 Assim como Caio colonial: “a grande plantação e a mação da colônia” são dedicadas
Prado Jr., Celso Furtado também monocultura são dois aspectos para a descrição da sociedade colo-
recorre ao economista francês, de uma mesma coisa” (FURTADO, nial. Nesse momento, o diálogo com
Leroy-Beaulieu, e suas categorias 2001, p.118). Discutindo os aspec- Gilberto Freyre é bastante presen-
sobre sistemas de colonização. tos fundadores da economia da te, tanto para a reflexão sobre a
Essas categor ias per mitem ao colônia com Caio Prado Jr., Furta- decisão do uso do trabalho escravo
autor se valer do método compa- do reitera que a colonização nos africano como também da estrutu-
rativo − presente na segunda parte trópicos exigia grandes somas de ra social patriarcal da sociedade.
da tese − para contrapor a coloni- capitais e, consequentemente, de- Mas, como ressalta Roberto Perei-
zação do Brasil com a das Antilhas pendia de empreendimentos com ra da Silva (2011, p. 214-216), ainda
e a dos Estados Unidos. elevado valor comercial. O resulta- que reproduzindo a ideia de uma
do foi a eliminação de “toda e qual- “valorização do mestiço no Brasil”,
A segunda parte do livro, “A forma- quer outra atividade econômica” como Gilberto Freyre, no que diz
ção da colônia”, dedica-se à com- (FURTADO, 2001, p.120). respeito ao caráter da sociedade
preensão de como as formas eco- colonial, as lentes de Celso Furta-
nômicas da colonização no Brasil Essa síntese assinalada acima, de do estariam ainda mais alinhadas
acabaram por definir a formação alguma forma, apresenta os prin- com a visão de Caio Prado Jr.: a
da sociedade colonial. As fontes cipais argumentos retomados por monocultura exportadora é o cen-
primárias arroladas pelo autor, Celso Furtado em Formação eco- tro da explicação para a adoção do
isto é, os relatos de viajantes e nômica do Brasil. Para além da trabalho escravo africano e para a
cronistas do Brasil colonial, são base econômica que constituiu a formação da estrutura patriarcal.
fartamente usadas nessa parte do sociedade brasileira, o autor ainda Para aquela, as causas eram a re-
trabalho para descrever as ativida- apresenta a lógica perversa dessa duzida população portuguesa e a

maio de 2020
economia & história: especial Celso Furtado 59

necessidade de garantir uma pro- pequena minoria no âmbito da vida antecedeu a redação de sua obra-
dução comercialmente lucrativa; privada (FURTADO, 2001, p.143). A -prima. Nesse sentido, Tamás reto-
para essa, o privatismo e a grande monocultura, o atraso técnico e o ma o artigo “Características gerais
propriedade isolada formaram a domínio patriarcal são estruturas da economia brasileira” (1950), o
plantation como a “célula social”, resultantes do sentido de uma eco- livro A economia brasileira (1954) e
conforme a definição Pradiana nomia colonial. o fascículo A economia dependente
de “célula orgânica da sociedade (1956). Porém, tendo como obje-
colonial” (FURTADO, 2001, p. 132- A tese termina apresentando os tivo responder “alguns mistérios”
133).6 diagnósticos dos desafios da so- deixados em Formação econômica
ciedade brasileira do pós-Segunda do Brasil (FEB), a análise do artigo
Por fim, a parte “Atavismos colo- Guerra Mundial. Todavia, as reco- recai especialmente sobre a tese do
niais no Brasil atual”, elenca o que mendações de intervenção ou não autor. Esse exercício era fundamen-
Celso Furtado considera como os estavam claras para o autor, ou não tal para encontrar os autores e tra-
principais elementos presentes no cabiam num trabalho acadêmico balhos que “embora não menciona-
Brasil contemporâneo herdados como esse. De toda forma, seu últi- dos (em FEB), foram consultados,
da colônia. Interessante perceber mo parágrafo encontra o percurso lidos e utilizados em sua elabora-
que, apesar de sua análise sobre a interpretativo, valendo-se das he- ção” (SZMRECSÁNYI, 1999, p. 207).
evolução da economia nacional ter ranças da formação nacional, que Em suma, em sua reflexão sobre os
sido substancialmente redefinida estará presente em seus próximos 40 anos de Formação econômica do
em Formação econômica do Brasil, trabalhos: “E o problema básico Brasil, Tamás acaba por produzir o
conforme o autor nos alerta em sua com que se depara o país (...) não primeiro esforço mais sistemático
apresentação, a tese teria estimu- poderá ser enfrentado sem uma de apreciação do doutorado de
lado que sua intepretação incorpo- perfeita inteligência das condições Celso Furtado.
rasse a dimensão do passado como econômicas e sociais que o cria-
variável para a análise da conjun- Ao cotejar as bibliografias de Eco-
ram” (FURTADO, 2011, p.169).
tura. Na tese, os quatro atavismos nomia colonial no Brasil e de For-
coloniais para o autor eram: o sen- mação econômica do Brasil, Tamás
tido da economia, a persistência da 2 Economia Colonial no Brasil nos sugere ter encontrado significativa
monocultura, o atraso técnico e o Séculos XVI e XVII na Historio- parcela das referências que teriam
domínio patriarcal. grafia subsidiado a análise histórica de
Celso Furtado. Entre as obras de
Novamente, é preciso compreender A iniciativa da publicação do livro autores nacionais “omitidas” por
como o autor organiza e hierarqui- Economia colonial no Brasil coube Furtado em Formação econômica
za seus determinantes, sistemati- a Tamás Szmrecsányi, responsável do Brasil estavam as de Capistra-
zando a estrutura que produz as por sugerir a Celso Furtado a tra- no de Abreu, Capítulos de história
permanências coloniais. Para Celso dução de sua tese. Dois anos antes colonial; de Caio Prado Jr., História
Furtado o sentido colonial, isto é, a da transformação da tese em livro, econômica do Brasil e Formação do
economia brasileira voltada para durante a celebração dos 40 anos Brasil contemporânea; e, de Nelson
o exterior, seja como produção de Formação econômica do Brasil, Werneck Sodré, Formação da so-
açucareira ou cafeeira do século Tamás publicou o artigo “Sobre a ciedade brasileira (SZMRECSÁNYI,
XIX, não produz riqueza para ser Formação econômica do Brasil de 1999, p. 209). História econômica
consumida no país, sendo ela ab- Celso Furtado”, o qual passava em do Brasil, livro de Roberto Simon-
sorvida no exterior ou por uma revista a produção de Furtado que sen, seria, no entanto, uma das

maio de 2020
60 economia & história: especial Celso Furtado

poucas referências nacionais pre- Sérgio e Jaime Cortesão, e apoiada Jr., no qual as coincidências “são
sentes nos dois trabalhos, cujos por trabalhos de autores nacionais particularmente numerosas”. Para
dados foram exaustivamente utili- (SZMRECSÁNYI, 2004, p. 33). Ricupero, a economia, o passado
zados nos capítulos sobre o perío- colonial e o programa político im-
do colonial de Formação econômica Retomando a questão do quanto plícito nas obras são elementos
do Brasil. a tese teria servido de base para que os colocam no mesmo espectro
a redação de Formação econômica interpretativo sobre o sentido da
Tamás reconhece que os temas do Brasil, Tamás considera que, em formação histórica brasileira: “Os
presentes na tese de doutorado parte, o conteúdo estaria resgata- dois são autores que chamam a
“foram mantidos apenas em parte do nas duas primeiras partes do atenção sobretudo para a ligação,
nas obras subsequentes de Celso livro de 1959, mas com importan- desde a colônia, entre a economia
Furtado”, sendo que preocupações tes omissões bibliográficas. Mesmo brasileira e a mundial. Juntos com
mais gerais teriam sido descarta- assim, o autor afirma: Roberto Simonsen, podem ser con-
das. A mudança, conforme o ar- siderados os inauguradores de uma
gumento apresentado no artigo, Por esse motivo, embora seja so- linha de interpretação do Brasil.”
poderia ser compreendida pelo in- mente parcial a superposição exis- (RICUPERO, 2005, p. 373) 9
gresso de Furtado na CEPAL, “uma tente entre o referido trabalho e
segunda pós-graduação”, substi- a tese de 1948, esta tem o dom Apesar de uma cuidadosa media-
tuindo sua visão de mundo por de tornar aquele mais inteligível. ção de Economia colonial no Brasil
uma “essencialmente econômica” É inegável que a obra Formação com o “diálogo implícito de seu
(SZMRECSÁNYI, 1999, p. 210-211). econômica do Brasil constitui um autor com o pensamento social
trabalho mais abrangente e de brasileiro” (RICUPERO, 2005, p.
Anos mais tarde, em texto sobre “o maior maturidade intelectual do 372), ao se preocupar em destacar
início da historiografia econômi- que a Economia colonial no Brasil a relevância de Celso Furtado para
ca no Brasil”, Tamás insere Celso nos séculos XVI e XVII. Mas a sua o debate sobre a industrialização,
Furtado como o último pioneiro da interpretação isolada não é das confrontando sua posição com a de
área, colocando-o ao lado de João mais fáceis, e tem dado origem a Caio Prado Jr., o autor acaba esca-
Lúcio de Azevedo, Roberto Simon- diversos equívocos [...] (SZMREC- pando dos temas da tese de douto-
sen, Caio Prado Jr. e Alice Canabra- SÁNYI, 2004, p. 35). rado, precisando alicerçar suas po-
va.7 No exercício de desbravar as sições em publicações posteriores,
obras formadoras de nossa histo- A abordagem aberta por Tamás surgidas já na década de 1950.
riografia econômica, Tamás retoma Szmrecsányi, de cotejamento das
Economia colonial no Brasil para bibliografias de Economia colonial Foi Roberto Pereira Silva que, com
apresentar a contribuição de Celso no Brasil e Formação econômica o livro O jovem Celso Furtado, cer-
Furtado. Definindo-a como “uma do Brasil, foi retomada em outros tamente deu a maior contribuição
monografia acadêmica baseada em estudos.8 No caso do texto de Ber- para a leitura de Economia colo-
pesquisas diretas, não apenas de nardo Ricupero, originalmente a nial no Brasil. Sua dissertação de
carácter bibliográfico, mas tam- apresentação da edição mexicana mestrado, defendida na Unicamp,
bém voltadas para documentos ori- da tese de Furtado, o autor explo- estudou a produção de Celso Fur-
ginais”, a tese teria sido orientada ra o papel da produção de Celso tado entre 1941 e 1948, realizando
por pressupostos teóricos de reno- Furtado entre os intérpretes do uma aprofundada análise sobre a
mados historiadores, como Henri Brasil. O diálogo é mais intensa- obra. Trata-se de uma cuidadosa
Pirenne, Alfons Dopsch, Antonio mente estabelecido com Caio Prado leitura de cada uma das partes

maio de 2020
economia & história: especial Celso Furtado 61

do trabalho produzido na França, reira Silva, o método comparativo, românticas de um expansionismo


analisando as principais referên- incorporado para analisar a for- como produto de necessidades ge-
cias nacionais e internacionais que mação da economia colonial bra- ográficas, e considerando-o como
alicerçaram as interpretações de sileira, abriria caminho para uma obra que resultou da ascensão dos
Celso Furtado sobre os anteceden- relevante abordagem de Furtado: grupos mercantis portugueses.
tes portugueses da colonização do Mas como Roberto pondera: “Em
Brasil, a formação da colônia e da Portanto, a problemática amplia certo sentido, Celso Furtado vai
sociedade colonial, assim como os seu escopo. Trata-se, agora, de além das propostas de Pirenne e
atavismos coloniais no Brasil atual. compreender a expansão europeia António Sérgio, resgatando um
e o surgimento do capitalismo. Mais tópico importante da obra de Gil-
Entre as apreciações bastante ori- ainda, Celso Furtado posiciona a berto Freyre e revalorizando-o em
ginais de O jovem Celso Furtado, colonização das terras do Brasil no sua argumentação” (SILVA, 2011,
Roberto Pereira Silva busca nas debate sobre os tipos de coloniza- p.132).
influências francesas a adoção do ção e, entre estes, nas formas que
método comparativo. Como relata essa colonização assume no povo- Essa é a mesma conclusão que o
o próprio Celso Furtado em suas amento de terras tropicais: explo- autor encontra para a mobilização
memórias: ao concordar com o ração agrícola monocultora, com dos autores nacionais por parte de
tema de pesquisa, Maurice Byé, seu trabalho escravo e voltada para Celso Furtado. Em Economia colo-
orientador, fez a solicitação de que mercados externos. É justamente nial no Brasil, a presença de Gilber-
o estudo sobre o Brasil colonial ti- na amplitude dessas questões que to Freyre, Caio Prado Jr. e Roberto
vesse um “paralelo com a economia o método comparativo adquire sua Simonsen é marcante: de Roberto
açucareira nas Antilhas francesas” plena significação. (SILVA, 2011, Simonsen é visível a assimilação da
(FURTADO, 2014, p. 37). O próprio p.188). dinâmica dos ciclos econômicos; de
orientador tinha trabalho anterior Gilberto Freyre há uma significati-
comparando os portos de Gênova e Ademais, por meio de uma mi- va influência para a caracterização
Marselha, e ainda mais importante, nuciosa exegese, a obra de Silva da sociedade colonial, discutindo
tinha um olhar para a dinâmica contrapõe os argumentos de Celso as razões da adoção da escravidão
econômica em que o nacional e Furtado com aqueles de suas prin- africana, da definição do domí-
internacional se entrelaçavam. O cipais referências, encontrando nio patriarcal, do caráter positivo
método comparativo, entretanto, tanto os alicerces teóricos da tese da mestiçagem na construção da
não seria herdado exclusivamente de doutorado, como também as nacionalidade; e, finalmente, é de
da inf luência de seu orientador. considerações originais do autor. Caio Prado Jr. que a base da tese
Entre os historiadores presentes Entre os autores estrangeiros, Ro- se assenta, por meio da noção do
na tese, a obra de Henri Pirenne, berto ressalta a importância do sentido da colonização e da nar-
sobre o capitalismo europeu, tam- historiador belga, Henri Pirenne, rativa sobre estrutura produtiva
bém permitia que o autor tivesse tanto para a definição de feudalis- colonial fundada na monocultura
uma visão de conjunto “na qual as mo como para o “fundamento so- exportadora.
diferenças entre as nações se dão ciológico” da dinâmica das classes
entre temporalidades distintas de capitalistas (SILVA, 2011, p. 231). Por fim, Roberto Pereira Silva, para
uma mesma origem comum, sem Do historiador português, António além das permanências visíveis
lugar para rivalidades e disputas Sérgio, Furtado herdou a interpre- entre Economia colonial no Brasil
históricas” (SILVA, 2011, p.178). tação do caráter do expansionismo e Formação econômica do Brasil,
Assim, como pontua Roberto Pe- português, abandonando as teses ressalta as divergências entre as

maio de 2020
62 economia & história: especial Celso Furtado

duas obras. A primeira delas é a tivo a interpretação de Caio Prado partir das transformações do capi-
ampliação da abrangência teórica Jr.” (SILVA, 2011, p. 214). talismo. Isto é, para Celso Furtado,
alcançada por Celso Furtado no sua tese foi a entrada para uma me-
percurso de dez anos, incorporan- Mas a principal mudança que pode todologia de análise da formação
do, por exemplo, “a tradição de his- ser observada entre Economia co- nacional numa perspectiva de um
tória econômica anglófona” (SILVA, lonial no Brasil e Formação econô- sistema econômico internacional.
2011, p.241). No que diz respeito mica do Brasil, que produziria uma
à bibliografia nacional, para Silva perspectiva interpretativa bastan-
Referências
a passagem do doutorado para a te original de Celso Furtado em
1959, estava na lógica da dinâmica D’AGUIAR, Rosa F. (Org.). Anos de for-
obra-prima de Furtado marcou o
mação: 1938-1948. Rio de Janeiro:
distanciamento da influência de econômica do período colonial. Contraponto; Centro Internacional Celso
Caio Prado Jr. e Gilberto Freyre. No A assimilação do debate sobre o Furtado de Políticas para o Desenvolvi-
caso do historiador paulista, se a desenvolvimento econômico dos mento, 2014.
tese estava assentada nas noções anos 1950 acabou exigindo “uma FURTADO, Celso. Economia colonial no
de “sentido da colonização” e “sis- releitura do passado brasileiro”, Brasil nos séculos XVI e XVII. São Paulo:
Editora Hucitec/ABPHE, 2001.
tema de agricultura tropical”, anos produzindo uma reinterpretação
mais tarde, o conceito de economia da história econômica para com- ______. Obra autobiográfica. São Paulo: Cia.
das Letras, 2014.
escravista de agricultura tropical preender o caráter de seu subde-
de Celso Furtado enfatizava, como senvolvimento, valendo-se de cate- ______. Diários intermitentes, 1937-2002.
São Paulo: Cia. das Letras, 2019.
defende Silva, “as possibilidades de gorias como produtividade e fluxo
desenvolvimento econômico en- de renda (SILVA, 2011, p. 244). MANZATTO, Rômulo Felipe. Formação e
revolução em Caio Prado Jr. e Celso Fur-
tendido como absorção de técnicas tado. Dissertação (Mestrado em Ciência
e expansão da renda, permitindo Em suma, se Economia colonial no Política). Faculdade de Filosofia, Letras e
captar a dinâmica econômica dos Brasil pode ser visto como fecha- Ciências Humanas, Universidade de São
fluxos comerciais” (SILVA, 2011, p. mento de uma fase de formação Paulo, 2018.

241-242). do “jovem Furtado”, antes que ele PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil con-
ingressasse na confraria dos eco- temporâneo. São Paulo: Cias das Letras,
2011.
Ainda tratando de Caio Prado Jr. e nomistas da CEPAL, certamente
Gilberto Freyre, Roberto Pereira sua atenta leitura pode nos indicar RICUPERO, Bernardo. Celso Furtado e o
pensamento social brasileiro. Estudos
Silva considera que os autores não algumas de suas matrizes teóricas Avançados, v. 19, n. 53, p.371-377, 2005.
são assimilados por Celso Furtado que permaneceriam em suas obras
SAES, Alexandre. Economia política da
de maneira absoluta, tampouco durante o resto de sua vida. Mais colonização. Estudos de Sociologia.
com a mesma importância para a do que um debate sobre os diálogos Araraquara, UNESP-Fclar, n. 16, p.179-
intepretação da economia colonial. presentes e/ou omitidos entre Eco- 183, 2004.
Para o autor a caracterização da nomia colonial no Brasil e Formação SILVA, Roberto Pereira. O jovem Celso
sociedade colonial, mesmo quando econômica do Brasil, parece-nos Furtado. História, política e economia.
Bauru: Edusc, 2011.
subsidiada pela obra de Gilberto relevante ressaltar que, apesar de
Freyre e por sua análise da gênese projetos políticos distintos, Celso SZMRECSÁNYI, Tamás. Sobre a formação da
Formação Econômica do Brasil de Celso
do patriarcalismo, “é lida e resol- Furtado e Caio Prado Jr. construí-
Furtado. Estudos Avançados, v. 13, n.
vida através da hierarquização ram uma das mais relevantes pers- 37, 1999.
das instâncias de explicação: eco- pectivas sobre a formação da eco-
______. Retomando a questão do início da
nômicas, sociais e culturais (nesta nomia e da sociedade brasileira: historiografia econômica no Brasil. Nova
ordem), ganhando contorno defini- um olhar da economia nacional a Economia, v. 14, n. 1, 1 jun. 2004.

maio de 2020
economia & história: especial Celso Furtado 63

TENÓRIO, Fernando; WANDERLEY, Sergio. Celso Furtado: um fico da dissertação, a tese de doutorado de Furtado recebeu atenção
economista a serviço da gestão pública (1943-1964). Revista de apenas em algumas poucas passagens. Manzatto destaca os usos de
Administração Pública, v. 52, n. 3, p.507-526, 2018. Leroy-Beaulieu sobre a colonização, em que “A explicação [em FEB]
retoma mais elementos do doutorado de 1948 do que a Economia
brasileira de 1956” (2018, p.118); e sobre o debate da existência de
feudalismo no Brasil, tema presente na tese, mas que “parece não
ter ocupado parte importante do pensamento de Celso Furtado”
(2018, p.126).
9 Noutra passagem, Bernardo Ricupero reitera a proximidade
das análises dos autores: “Também a ideia de Celso Furtado,
segundo a qual, junto à economia açucareira do litoral nor-
destino – setor de alta produtividade voltado à produção para
o mercado externo – articular-se-ia a pecuária, realizada no
interior, de baixa produtividade e voltada para o mercado in-
1 Sobre a trajetória de Celso Furtado como servidor público, conferir terno, não é muito diferente da discussão realizada por Caio
o artigo de Tenório e Wanderley (2018); para a produção de Furtado
Prado Jr. sobre a presença de um setor orgânico e inorgânico
no “período de formação”, conferir as obras de Silva (2011) e D’Aguiar
(2014).
na colônia” (RICUPERO, 2005, p. 374).

2 François Perroux (1903-1987), professor da Universidade de Paris


e fundador do Instituto de Ciências Econômicas Aplicadas (1944),
tornou-se amplamente reconhecido por sua teoria dos polos de
crescimento.
3 Para essa parte revisitamos nossa resenha publicada em 2004, re-
visando, corrigindo e aprofundando seus argumentos (SAES, 2004).
4 Vale dizer que Caio Prado Jr. não está referenciado nesta parte inicial
da tese, mas a presença das ideias da introdução de Formação do
Brasil contemporâneo é inegável: “No seu conjunto, e vista no plano
mundial e internacional, a colonização dos trópicos toma o aspecto
de uma vasta empresa comercial, mais completa que a antiga feitoria,
mas sempre com o mesmo caráter que ela, destinada a explorar os
recursos naturais de um território virgem em proveito do comércio
europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização tropical, de que
o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos funda-
mentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolução
históricas dos trópicos americanos” (PRADO Jr., 2011 [1942], p. 31).
5 Valendo-se dos argumentos de Roberto Simonsen, Celso Furtado
atacará as teses sobre a existência de feudalismo no Brasil, presente
em autores como Capistrano de Abreu e Nestor Duarte (FURTADO,
2001, p.79-86).
6 Na análise sobre os atavismos coloniais, Furtado trabalha com os dois
ramos da agricultura brasileira, isto é, a grande lavoura de exportação
e a pequena agricultura de subsistência, adotando assim, como ele
mesmo admite, a terminologia de Caio Prado Jr. (FURTADO, 2001,
p.158).
7 Para a definição dos chamados pioneiros da historiografia econômica
brasileira, Tamás se vale do texto “Roteiro sucinto do desenvolvimento
da historiografia brasileira”, de Alice Canabrava. Concorda com a
autora em incorporar o historiador português João Lúcio de Azevedo
no rol dos pioneiros brasileiros, e faz questão de inserir a própria
autora, Alice Canabrava, no elenco dos pioneiros (SZMRECSÁNYI,
2004, p.13).
8 A dissertação de mestrado de Rômulo Manzatto aprofundou signifi-
cativamente esses diálogos entre Celso Furtado e Caio Prado Jr. para (*) Professor de História Econômica do Departamento de
o período entre as décadas de 1940 e 1960. Não sendo objeto especí- Economia – FEA/USP. (E-mail: alexandre.saes@usp.br).

maio de 2020

Você também pode gostar