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JOÃO MEDINA
Gilberto
Freyre
contestado:
o lusotropicalismo
criticado nas
colónias
portuguesas como
alibi colonial
JOÃO MEDINA
é professor da Faculdade
de Letras da Universidade
de Lisboa. do salazarismo
D
esde os começos da Ditadura Militar, e logo
depois com o “Estado Novo” salazarista dos
anos 30 – com o Acto Colonial desse ano, pos-
teriormente incluído no texto da Constituição
de 1933 –, que o discurso colonialista portu-
guês se baseava essencialmente na ideia de um
pretenso direito imperial de conquista, exploração,
“ O Messias desiludiu- missionação católica e “civilização” (1). Desta fase inicial,
nos. […] não até finais da década de 40, foi sobretudo Henrique Galvão
devemos tomar como (1895-1970) o grande teorizador da nossa ideologia
traduzindo o Cabo africanista, e da qual foi expoente a Exposição Colonial do
Verde caboverdiano Porto, em 1934, secundada pelo mapa em que se afirmava
certas conclusões a que “Portugal não é um país pequeno”.
que implícita e Em 1947, caído em desgraça o azougado romancista e
explicitamente chegou teorizador colonial, autor do verdadeiro manifesto de
Gilberto Freyre reactivação da missão colonialista portuguesa que fora o
no seu livro Aventura seu livro Velo de Oiro (1a ed., 1931, reed. em em 1933 e
e Rotina” (Baltasar
1936), um outro ciclo do pensamento justificativo do nosso
Lopes, Cabo Verde
colonialismo se seguiria, em larga medida adaptado ao
Visto por Gilberto
novo condicionalismo mundial posterior ao fim da Segun-
Freire, Praia, l 956).
da Guerra. E assim, com o começo da década de 50, na
altura em que os ventos das independências africanas (e
“ Diz-me [Gilberto
asiáticas) começavam a estimular os movimentos de liber-
Freyre] que concorda
tação das colónias europeias em África (e na Ásia), recor-
inteiramente com
reu a Ditadura portuguesa a uma formulação ideológica
a nossa política
mais sofisticada, agora com o tão útil e oportuno suporte
africana” (20-XI-
achado na colaboração prestigiante, activa e politicamen-
l962) (Franco
te assumida por parte do sociólogo Gilberto Freyre (1900-
Nogueira, Um
Político Confessa-se. 87), cuja teorização lusotropicalista se iniciara com as suas
ou uma Martinica afroportuguesa (29) onde ou dissolver na cultura dos portugueses, 34 Idem, ibidem, p. 248.
os colonizadores ensaiaram as primeiras como aconteceu nas demais colónias que 35 Idem, ibidem, loc.cit.
sua edição, iniciaria nas suas colónias um lho, poderia ele dar das nossas ilhas uma 66 Idem, ibidem, p. 253.
longo, doloroso e criminoso ciclo de guer- interpretação não eivada de pressa 67 Baltasar Lopes da Silva, Cabo
Verde Visto por Gilberto Freyre.
ras que se arrastaria até 1974, engrena- jornalística, no tão pequeno espaço de tem- Apontamentos Lidos aos Micro-
gem de morticínio e sofrimento a que, fones de Rádio Barlavento, Im-
po e na pobreza de contactos com que teve, prensa Nacional, Divisão de
contudo, o arquipélago de Cabo Verde tant bien que mal, de receber um vislumbre Propaganda, 1956, 52 pp.
(separata de Cabo Verde.
escaparia… da nossa vida?” (Cabo Verde Visto por Boletim de Propaganda e In-
O dialecto crioulo, portanto, para Gil- Gilberto Freyre) (68). E logo comenta que formação , Praia, Imprensa
Nacional, nos 84-6, 1 de se-
berto Freyre, contribuiria para a instabili- Freyre apenas “arranhou o litoral” de três tembro a 1 de novembro de
1956). Recordemos que
dade cultural do cabo-verdiano (64). A das ilhas caboverdianas – Santiago, São Baltasar Lopes da Silva (1907-
única excepção a esta lacuna encontrou-a Vicente e Sal (69) – e que, na segunda, se 89), nascido em Vila da Ribei-
ra Brava, se formou em
no Sal, na música: a morna, de cuja seme- ficara pela zona urbana da ilha (70). Viu Filologia Românica na Fac. de
Letras de Lisboa, desempe-
lhança com a música popular brasileira ele “Ulisses (Jorge Karantonis), o Judeu
nhando, em 1956, as funções
se apercebera desde os tempos dos carna- exógeno (o nosso conhecidíssimo e, há tanto de reitor do Liceu Gil Eanes em
S. Vicente. O seu célebre ro-
vais no Recife (65). A única realidade pu- tempo, tropicalíssimo Schonfield), conhe- mance Chiquinho fora publi-
jante estava na literatura lusotropical de ceu o sósia (fisionómico) de Mário Pinto cado em 1947.
Cabo Verde, a mais viva do género depois de Andrade e (cultural) de Pixinguinha”, 68 B. Lopes, op.cit., p.7.
da do Brasil, garante (66). Eis, pois, sucin- tendendo para a generalização simples e os 69 Idem, ibidem, loc.cit.
tamente gizada, a visão que de Cabo Verde pormenores insignificativos (71). Do batu- 70 Idem, ibidem, p. 8.
teve Freyre no início da década de 50. que, por exemplo, viu apenas a “sobrevi- 71 Idem, ibidem, loc.cit.
dade” (105). Esta tónica seria dominante co acolhido com especial carinho pelo go- 100 Colóquios Cabo-Verdianos,
Lisboa, Junta de Investigações
na análise de Mariano quanto ao verno português, nesta viagem paga e am- do Ultramar/Centro de Estudos
“especialíssimo caso caboverdiano” (106), parada pela administração colonial da Di- Políticos e Sociais, 1959, 182
pp., pref. de Jorge Dias.
o que teria permitido que, no arquipélago, tadura lusa, a ponto de nunca se ter lembra-
101 Colóquios…, pp.1-22.
uma forma diferente e própria de do da existência, naquele arquipélago, de
102 Idem, ibidem, p. 20.
lusotropicalismo florescesse: “o processo um atroz campo de concentração para ini-
103 Idem, ibidem, loc.cit.
aculturativo desabrochou no florescimento migos do regime salazarista… Tendo esta-
104 Idem, ibidem, pp. 23-49.
de expressões novas de cultura, mestiças do em 1951 em Cabo Verde, ainda que por
105 Idem, ibidem, p. 30.
[…]”, de modo que no arquipélago pude- poucos dias, o arguto sociólogo recifense
106 Idem, ibidem, p. 32.
ram “o negro e o mulato apropriar-se de não se apercebeu de que tinha diante dos
elementos da civilização europeia e senti- olhos um dos casos mais vívidos e pujantes 107 Idem, ibidem, p. 33.
los como seus próprios, interiorizando-os e daquele lusotropicalismo que ele enaltecera 108 Idem, ibidem, p. 39.
despojando-os das suas particularidades tanto, não só quanto ao Brasil mas ainda – 109 Idem, ibidem, loc. cit.
contingentes ou meramente específicas do e aqui com alguma culpa política – quanto 110 Idem, ibidem, p. 40.
europeu” (107). Estaria Gabriel Mariano a às demais colónias lusas em terras de Áfri- 111 Idem, ibidem, pp. 40-1.
pensar em Freyre e no seu Aventura e Ro- ca, no tal “mundo que o português criou” – 112 Idem, ibidem, p. XII.