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JOÃO MEDINA

Gilberto
Freyre
contestado:
o lusotropicalismo
criticado nas
colónias
portuguesas como
alibi colonial
JOÃO MEDINA
é professor da Faculdade
de Letras da Universidade
de Lisboa. do salazarismo

48 REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 48-61, março/maio 2000


UM BRASILEIRO EM TERRAS COLONIAIS PORTUGUESAS

D
esde os começos da Ditadura Militar, e logo
depois com o “Estado Novo” salazarista dos
anos 30 – com o Acto Colonial desse ano, pos-
teriormente incluído no texto da Constituição
de 1933 –, que o discurso colonialista portu-
guês se baseava essencialmente na ideia de um
pretenso direito imperial de conquista, exploração,
“ O Messias desiludiu- missionação católica e “civilização” (1). Desta fase inicial,
nos. […] não até finais da década de 40, foi sobretudo Henrique Galvão
devemos tomar como (1895-1970) o grande teorizador da nossa ideologia
traduzindo o Cabo africanista, e da qual foi expoente a Exposição Colonial do
Verde caboverdiano Porto, em 1934, secundada pelo mapa em que se afirmava
certas conclusões a que “Portugal não é um país pequeno”.
que implícita e Em 1947, caído em desgraça o azougado romancista e
explicitamente chegou teorizador colonial, autor do verdadeiro manifesto de
Gilberto Freyre reactivação da missão colonialista portuguesa que fora o
no seu livro Aventura seu livro Velo de Oiro (1a ed., 1931, reed. em em 1933 e
e Rotina” (Baltasar
1936), um outro ciclo do pensamento justificativo do nosso
Lopes, Cabo Verde
colonialismo se seguiria, em larga medida adaptado ao
Visto por Gilberto
novo condicionalismo mundial posterior ao fim da Segun-
Freire, Praia, l 956).
da Guerra. E assim, com o começo da década de 50, na
altura em que os ventos das independências africanas (e
“ Diz-me [Gilberto
asiáticas) começavam a estimular os movimentos de liber-
Freyre] que concorda
tação das colónias europeias em África (e na Ásia), recor-
inteiramente com
reu a Ditadura portuguesa a uma formulação ideológica
a nossa política
mais sofisticada, agora com o tão útil e oportuno suporte
africana” (20-XI-
achado na colaboração prestigiante, activa e politicamen-
l962) (Franco
te assumida por parte do sociólogo Gilberto Freyre (1900-
Nogueira, Um
Político Confessa-se. 87), cuja teorização lusotropicalista se iniciara com as suas

Diário, 1960-68, grandes obras do anos 30, dedicadas a explicar a formação


Lisboa,1986). do Brasil em perspectivas inovadoras, rompendo com os 1 Recordemos alguns textos onde
a ideia estadonovista do “Im-
parâmetros naturalistas ou marxistas, tanto anteriores pério” era explicada : O Pen-
samento do Ministro das
“ […]cette imposture como posteriores – obra de que Casa Grande e Senzala Colónias, Dr. Armindo
Monteiro (Lisboa, Edições
voilée qu’est le luso- (1933) seria a pedra angular. SPN, 1934, 31pp.); João
Ameal, Decálogo do Estado
tropicalismo” (Mário Recorrendo ao grande mestre heterodoxo per- Novo (Lisboa, Edições SPN,
1934, 94 pp; maxime pp. 85-
Pinto de Andrade, nambucano, o “Estado Novo” salazarista socorria-se, 6); O Estado Novo. Princípios
e Realizações (2a ed., Lisboa,
Présence Africaine, dest’arte, de uma ideologia legitimadora do seu colo- SPN, 106 pp.; maxime pp.
67-81); O Império (Lisboa,
o
n 4, outubro/ nialismo, pretensamente imune de qualquer forma de s.d., 1938, 55 pp.); Henrique
Galvão, O Império (Lisboa,
novembro de 1955). racismo, baseado na argumentação oportuna usada pelo SNI, s.d., 31 pp.).

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sociólogo brasileiro para explicar a génese a nossa política africana” (3).
da sociedade do Brasil, e que passaria a ser Foi isto escrito em 20 de novembro de
2 Veja-se o recente estudo de José formulada em termos de alibi para a recusa 1962, com a guerra angolana em pleno de-
Carlos Reis, “Anos 1930: Gil-
berto Freyre. O re-elogio da portuguesa em descolonizar os seus terri- senvolvimento. O presente estudo preten-
Colonização Portuguesa”, in
Pós-História (Revista de pós-gra- tórios coloniais em África (Cabo Verde, de tão só recordar algumas das respostas
duação em História, Assis, vol. São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau, An- que ao pernambucano deram, tanto antes
6, 1998, Univ. Estadual
Paulista, pp. 33-67). Outros gola e Moçambique) e na Ásia (Índia Por- de começarem as guerras nas nossas
exemplos de recente bibliogra-
fia passiva em torno de G.
tuguesa, Timor). Desde então, aproprian- colónias africanas como na altura em que
Freyre: Fernando de Mello do-se tanto do seu nome como da sua obra, elas já aí lavravam alguns dos intelectuais
Freyre, Brasileiridade, Recife,
Massangana, Fundação José o governo de Lisboa explorou a fundo a e dirigentes políticos nacionalistas africa-
Nabuco, 1992, 189 pp.; complacente cumplicidade de Gilberto nos, ora simples críticos das implicações
Manuel Correia de Andrade
(org.), Gilberto Freyre. Pensa- Freyre, sobretudo a partir de 1951-52 – al- lusotropicalistas, ora dirigentes políticos em
mento e Acção , Recife,
Massangana, Fundação J. tura em que o pernambucano aceitou o luta contra o colonialismo português. Ire-
Nabuco, 1995, 165 pp.; convite do ministro das Colónias de Portu- mos resumir o processo, fundamentalmen-
Vamireh Chacon, Gilberto
Freyre. Uma Biografia Intelec- gal, Sarmento Rodrigues (1899-1979), para te, a duas tomadas de posição crítica, a do
tual , Recife/São Paulo,
Massangana/Companhia Edi-
visitar as colónias portuguesas da Guiné, caboverdiano Baltasar Lopes (1907-89), em
tora Nacional, 1993, 312 pp.; Cabo Verde, Angola, Moçambique e Índia 1956, e do angolano Mário Pinto de
Edson Nery da Fonseca (org.),
Sobrados e Mucambos. Enten- (Freyre não visitaria Timor) –, inclusive Andrade (1928-90), em 1955. Referiremos
dimento e Interpretação, Reci- editando em várias línguas os textos escri- ainda a crítica ao lusotropicalismo pelo
fe, Massangana, 1996, 160
pp.; Sebastião Vila Nova, So- tos ad hoc pelo pensador recifense, como dirigente da guerrilha da Guiné-Bissau,
ciologias & Pós-Sociologia em
Gilberto Freyre , Recife, sucedeu com a obra O Luso e o Trópico Amílcar Cabral (1924-73 ), em 1968.
Massangana, 1995, 137 pp.; (Lisboa, 1961) ou Aventura e Rotina (ed.
Revista Ciência e Trópico, vol.
20, no 2, julho-dezembro de no Brasil: 1953; ed. portug.: Lisboa, 1954),
1992; Diogo de Melo
sendo o primeiro estampado já depois de
Meneses, Gilberto Freyre (pref.
de Monteiro Lobato), Rio de começado, em 1961, o ciclo de guerras de O LUSOTROPICALISMO COMO UMA
Janeiro, CEB, 1944, 297 pp.;
libertação das colónias lusas, obras que, cu-
Gilberto Freyre (antologia org.
por Edilberto Coutinho), Rio do riosamente, nem sempre tiveram edição no “IMPOSTURA VELADA”: A CRÍTICA
Janeiro, Agir, 1994, 124 pp.).
Brasil – lembremos ainda outro título edi-
3 Franco Nogueira, Um Político
Confessa-se. Diário: 1960- tado em Portugal: Integração Portuguesa DE MÁRIO PINTO DE ANDRADE
1968, 3a ed., Porto, Civiliza-
ção, 1987, p. 47).
nos Trópicos (Lisboa, 1954) –, sendo por-
tanto, em geral, desconhecidas da biblio- A noção, ou melhor, o mito de que Por-
4 Recordem-se as obras de
Adriano Moreira, Política Ultra- grafia brasileira mais recente em torno do tugal não seria racista nem colonizaria
marina (Lisboa, Ministério do
Ultramar, Junta de Investigações hoje tão relido quanto controverso (e hete- porque era, desde a sua mais íntima nature-
do Ultramar, 1956, 343 pp.) rodoxo) sociólogo-historiador de Santo za, multirracial e pluricontinental, apare-
e Batalha da Esperança (“Polí-
tica de Integração”, pp. 101- António de Apipucos (2). cendo portanto como uma nação africana
19, Lisboa, Edições Panorama,
1962, 221 pp.); Orlando Ri- A utilização político-propagandística do também, estaria presente nos principais dis-
beiro, Aspectos e Problemas da pensamento de Freyre fez-se, sublinhe-se, cursos dos dirigentes da Ditadura salaza-
Expansão Portuguesa (Lisboa,
Fundação da Casa de com total cumplicidade do interessado, cuja rista, tanto nos discursos do próprio Salazar
Bragança, 1955); Almerindo
avidez de homenagens e honrarias oficiais como em Franco Nogueira, sem esquecer
Lessa, Jornal (1947-1957). Um
Médico, o seu Mundo e os seus Franco Nogueira não se esqueceria de académicos ou ideólogos como Adriano
Fantasmas (Lisboa, Editorial
Medicis, 1958, 238 pp.), averbar no seu diário de ministro dos Ne- Moreira, Orlando Ribeiro, Almerindo
Meridianos Brasileiros (Lisboa, gócios Estrangeiros no período mais duro Lessa, J. J. Gonçalves, Jorge Dias, etc. (4)
Junta de Inv. do ultramar, 389
pp.); Laços por Atar (Lisboa, das guerras africanas e da tormenta inter- e no seu complemento marcelista (1968-
1964, separata da revista Se-
mana Médica, de 17-V-1964); nacional contra a nossa política colonial. 74), tendo sido naturalmente repudiada
No Tempo do meu Espaço (Lis- Leiamos o depoimento que nos deixou o pelos líderes e pensadores dos movimen-
boa, Academia Internacional
de Cultura Portuguesa, 1995, supremo responsável pela diplomacia lusa tos de emancipação das colónias lusas, tais
459 pp.); Jorge Borges de
durante a maior parte dos anos de guerras como os escritores e dirigentes políticos
Macedo, “O Luso-Tropicalismo
de Gilberto Freire – Metodolo- coloniais: “Almoço no Ritz em honra de acabados de mencionar. O anti-lusotro-
gia, Prática e Resultados” (re-
vista ICALP, no 15, 1989, pp. Gilberto Freyre. Pareceu ávido de honra- picalismo destes dirigentes dos movimen-
132-56); José Júlio Gonçalves, rias, homenagens, elogios de 5 em 5 minu- tos de libertação africana comprova assim
Gilberto Freyre – O Sociólogo
e Teorizador do Lusotropi- tos. Diz-me que concorda inteiramente com que as ideias pró-ditatoriais e colonialistas

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(portuguesas), ou o seu alibi legitimador, Cremos que a primeira crítica explícita
colhidas em G. Freyre, repugnaram aos e politicamente assumida ao lusotropi-
povos que lutavam por se libertarem do calismo freyriano surgiu nas páginas da
“imperialismo” luso, ainda que este cos- revista parisiense Présence Africaine, em
meticamente se maquilhasse de coloridas 1955, sob o pseudónimo de Buanga Fele:
fantasias extrapoladas das teorias freyrianas intitulava-se “Qu’est-ce que le ‘lusotropi-
acerca da formação do mundo brasileiro, calismo’?” e saiu no no 4 (outubro/novem-
teorias que talvez nem mesmo para expli- bro de 1955) dessa importante revista teó-
car a génese da comunidade miscigenada rica do nacionalismo africano dessa déca-
do Brasil colonial fossem inteiramente acer- da e da seguinte (6). Nascido em 1928 no
tadas, sociedade que o autor de Casa Gran- Galungo Alto (Angola), o seu autor come-
de e Senzala defendia ter sido um harmonio- çara por frequentar o seminário em Luan-
so equilíbrio de antagonismos, produzindo da, mas acabara por escolher os estudos
uma sociedade que foi uma das mais demo- universitários, embarcando para Lisboa, a
cráticas, flexíveis e plásticas, por ter logra- fim de ali tirar o curso de Letras na Facul-
do equilibrar antagonismos dificilmente dade de Letras de Lisboa, ao mesmo tempo
superáveis, tais como os que se polariza- que teria ocasião de conviver, na altura ou
vam entre culturas europeia, africana e in- posteriormente, tanto intelectual como
dígena (as três raças formativas do Brasil: politicamente, com alguns intelectuais e po-
o português, o índio e o negro), economia líticos da africanidade: Agostinho Neto,
agrária e pastoril, entre fazendeiro e jesuí- Eduardo Mondlane, Amílcar Cabral, Fran-
ta, bandeirante e senhor de engenho, sem cisco José Tenreiro, etc. Em 1953 organi-
esquecer o antagonismo maior, entre o se- zava o Caderno de Poesia Negra de Ex-
nhor e o escravo negro; de tudo isto teria pressão Portuguesa. Fundara, dois anos
nascido, escrevera Freyre nas suas grandes antes, o Centro de Estudos Africanos
obras dos anos 30, uma sociedade marcada (1951). Em 1954 partia para Paris e, em
pela tolerância social e religiosa, a demo- 1955, já como redactor da Présence
cracia social brasileira, em que todos os Africaine, seria um dos organizadores do I
antagonismos de base teriam sido finalmen- Congresso dos Escritores e Artistas Negros.
te superados pela mobilidade social verti- Em 1958, juntamente com o poeta Viriato
cal, pela miscigenação social e rácica – da Cruz – que havia de morrer exilado, na
melhor, pela ausência de racismo do portu- China –, representou Angola na I Confe-
guês –, pela geografia sem obstáculos e rência de Escritores Afro-Asiáticos, em
ainda pelo “cristianismo lírico”. Tachkent. Com a criação do MPLA, em
Na base de todo este edifício lusotropical 1960, assumiu a sua presidência, cargo que
estava, portanto, o português colonizador, ocupou até 1962. Em 1971-72, integrou o
avesso ao racismo, eroticamente vocacio- Comité de Coordenação Político-Militar do
nado a ligar-se sem quaisquer preconceitos MPLA na Frente Leste. Em 1974, junta-
racistas com índias e negras, o português mente com o seu irmão Joaquim Pinto de calismo (separata da Acade-
mia Internacional da Cultura
reinol que era já, ele mesmo, produto de Andrade, assumiu-se como um dos diri- Portuguesa, no 3, 1967, pp.
miscigenações de judeus, árabes e cris- gentes de uma corrente de intelectuais na- 49-72); Jorge Dias (1907-
1973), O Carácter Nacional
tãos… Este português, vitoriosamente cionalistas que se opunham, no MPLA, à Português na Presente Conjun-
aclimatado aos trópicos, criara a pujante liderança de Agostinho Neto, tendência tura (Lisboa, separata da Aca-
demia Internacional de Cultu-
cultura e civilização do Brasil, criação para conhecida pela designação de “Revolta ra Portuguesa, 1968).
a qual Freyre vinha há muito pedindo a Activa”. Exilou-se na Guiné-Bissau após a 5 G. Freyre, O Luso e o Trópico,
Lisboa, Comissão Executiva
fundação de uma nova ciência explicativa independência de Angola (1975). Postu- para a Comemoração do V
do fenómeno sem par na história geral das mamente, publicou-se o seu livro Origens Centenário da Morte de Infan-
te Dom Henrique, 1961, p. 51.
civilizações – Toynbee, por exemplo, es- do Nacionalismo Africano (Lisboa, 1977).
6 Buanga Fele (i.e., Mário Pinto
quecera-se de mencionar o nosso grande Faleceu em 1990. Foi portanto este o inte- de Andrade), “Qu’est-ce que le
êxito ecológico-histórico nos trópicos de lectual angolano que, pela primeira vez, ‘lusotropicalismo’?”, Présence
Africaine, Paris, nº 4, outubro/
Vera Cruz –, a luso-tropicologia (sic) (5). tomou a iniciativa de denunciar no novembro de 1955, pp. 24-35.

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lusotropicalisnmo freyriano o insustentá- lidade de uma ínfima assimilação. Na
vel alibi do colonialismo luso em África. Guiné-Bissau, por exemplo, os assimila-
Vamos resumir o conteúdo desse artigo dos eram 1.478 em 510.777 habitantes, e
pioneiro estampado sob pseudónimo na em Angola, se a população toral era de
Présence Africaine. A ideia lusotropicalista 4.145.266 habitantes, os negros seriam
partiria do dogma de que os portugueses 4.036.687 e os assimilados apenas 30.089.
brancos se misturariam espontaneamente à As estatísticas oficiais demonstravam, deste
vida tropical e praticariam largamente a modo, a debilidade do fenómeno da
mestiçagem, no que revelariam uma espé- mestiçagem. E se, em Angola, de 1940 a
cie de “generosidade própria da raça e do 1950, a população branca aumentara 79%,
carácter dos portugueses” (7). Por outro a indígena crescera apenas 10% (10).
lado, segundo Marcelo Caetano – teorizador A teoria colonizadora portuguesa do
salazarista oriundo do Integralismo Lusi- “Estado Novo” salazarista basear-se-ia na
tano, pouco sensível ao lusotropicalismo doutrinação de Freyre, bastando alargar
freyriano e, sem dúvida, um dos colo- para a presença lusa em África o que o
nialistas portugueses mais tingidos de ra- pernambucano dissera da colonização lusa
cismo, como se pode constatar no seu estu- no Brasil. A viagem de Freyre pelo império
do Os Nativos na Economia Africana português em África (1951-52) inscreve-
(Coimbra, 1954) –, entre os tópicos funda- ra-se precisamente no quadro dessa “mis-
mentais da administração colonial lusa tificação colonial moderna” (11). Para
achava-se a “assimilação espiritual”, o que Freyre, na Casa Grande e Senzala (1933),
7 M. P. de Andrade, “Qu’est-ce Pinto de Andrade se esforça por negar, uma dois séculos de presença colonizadora lusa
que le ‘lusotropicalismo’?”, op. vez que não descortinava onde estivesse o no Brasil teriam sido um sucesso baseado
cit., p. 25.
alegado respeito pela natureza dos povos na especial aptidão lusa para se adaptar aos
8 Daniel F. Malan (1874-1959),
educado na África do Sul e em colonizados no acto mesmo de lhes comuni- trópicos, alicerçando-se o saber luso na
Utreque, pregador da Igreja
Reformada holandesa, abando-
car a fé cristã, pelo que não se coibe de com- mobilidade, na miscibilidade e na facilida-
nou a carreira eclesiástica e parar esta dita “assimilação espiritual” ao de com que o português se aclimatara ao
enveredou pela vida política em
África, editando um jornal na- apartheid do dr. Malan (8). Para desmentir mundo tropical, de modo que esse proces-
cionalista e entrando, em a pretensa assimilação dos povos autócto- so, no seu conjunto, podia ser descrito como
1918, para o Parlamento sul-
africano, participando num nes das colónias portuguesas, Pinto de um equilíbrio entre antagonismos: antago-
governo Trabalhista/Naciona-
lista em 1924. Foi um dos que Andrade socorre-se do censo populacional nismos de civilização e de economia, entre
favoreceu a adopção do de 1955 em Moçambique, observando que, homem europeu e homem africano, entre o
afrikaans como língua oficial da
África do Sul, liderando a opo- numa população total de 5.732.317 habitan- africano e o indígena, além de tantos outros
sição de 1934 a 1939, tor-
nando-se primeiro ministro e mi-
tes, seriam europeus 18.213 (portugueses: pares antagónicos cujas tensões dialécticas
nistro dos Negócios estrangei- 15.599), chineses 1.613, indianos 12.630, se logrou superar. Mas o antagonismo
ros de 1940 a 1948, coube-
lhe a principal responsabilida- mestiços 12.630 e nativos “não civilizados” dominador de todos os demais era aquele
de pela política que ficaria co- ou “indígenas” 5.640.363, restando ainda que se travara entre o senhor e o escravo.
nhecida como apartheid, favo-
recendo a constituição de zo- os nativos ditos “civilizados” ou “assimila- Este antagonismo, como os demais, teve
nas raciais diferenciadas e cri-
ando uma legislação segrega- dos”: apenas 4.349. também maneiras de ser amortecido, har-
cionista que valeria à África do A crueza destes números oficiais des- monizado através de forças de confraterni-
Sul a hostilidade doméstica e
internacional. Afastou-se em mentia a tão apregoada assimilação ou zação e de mobilidade vertical, próprias do
1954. Duro, austero e
estrudioso, o dr. Malan foi o
mestiçagem, e deles se podia concluir que caso brasileiro, como a miscigenação e a
verdadeiro Moisés dos Boers, a exploração enconómica daquela colónia dispersão das heranças, o acesso dos mes-
friamente convicto da suprema-
cia branca no sul de África e lusa na África oriental repousava essenci- tiços e dos filhos naturais aos altos cargos,
da missão afrikaner em África. almente nos tais 5.640.363 nativos negros o “cristianismo lírico à portuguesa”, a tole-
Sucederam-lhe, em 1958,
Verwoerd, em 1966, Vorster, “paralisados por um estatuto particular” (9). rância moral e a hospitalidade em relação
em 1978, Botha, e, em 1989,
de Klerk, que abandonaria fi- A tão decantada assimilação era, assim, aos estrangeiros. Tudo isto fora dito por
nalmente o apartheid em 1991. praticada a uma escala mínima. Na mesma Freyre, nos começos da década de 30, em
9 M. P. Andrade, ibidem, loc. cit. altura, sublinha Andrade, os dados prol do esforço colonizador luso no trópico
10 Idem, ibidem, pp. 25-6. populacionais das demais colónias portu- brasileiro, pretendendo-se desta maneira
11 Idem, ibidem, p. 26. guesas em África mostravam a mesma rea- valorizar positivamente a atitude do colo-

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no português em terras de Vera Cruz, mos- teria resultado, segundo o pernambucano,
trando a sua cepa humanitária em relação a dos pressupostos próprios da colonização
outros grupos étnicos com os quais estabe- lusa: o povo português seria “o mais cristão
leceu contacto. Daí, também, a criação de dos colonizadores modernos nas suas rela-
uma sociedade colonial mestiça no Brasil ções com as gentes ditas inferiores, o mais
colonial, em larga medida baseada na se- transbordante de simpatia” (14). Pergunta
xualidade, a qual Freyre acentua grande- então Pinto de Andrade por que é que o trá-
mente na sua análise, com algum desdém fico negreiro praticado pelos lusos não en-
pelos dados económicos e políticos da aná- controu qualquer objecção vinda desse mes-
lise histórica. Assim se evitava considerar mo cristianismo que diziam praticar, ou o
o funcionamento do aparelho colonial como trabalho forçado em Angola, Guiné, S.Tomé
sendo, antes de mais, “uma empresa de e Moçambique (15).
exploração económica dirigida por um Crendo na aptidão natural do colono luso
poder político”, enfatiza Andrade (12). para viver nos trópicos e a tomar ali mulher
Compreende-se que o marxismo da análise de cor, Freyre não lograva porém explicar
de Andrade chocasse com as considerações a questão colonial essencial, uma vez que,
transmateriais da focagem sociológica de como insiste Andrade, não houve afinal uma
Freyre, importante problema epistemoló- cultura portuguesa nos trópicos africanos,
gico que agora não vamos considerar. observando-se antes a destruição sistemá-
Na sua réplica a Freyre, Andrade come- tica das culturas indígenas pela dominação
ça por sublinhar que, no Brasil, existiu de colonial portuguesa (16). Como o subli-
facto a mestiçagem apontada, não por cau- nhara também André Julien na sua Histoire
sa de considerações morais ou de uma vi- de l’Afrique (Paris, 1955), citada por
são política mas por uma razão muito sim- Andrade, o que se observara na África por-
ples: o número reduzido de mulheres bran- tuguesa não fora a mestiçagem mas antes o
cas (13). Desde 1940 que, no seu livro O racismo, uma vez que o estatuto do assimi-
Mundo que o Português Criou, Freyre ini- lado exigia que este só podia ser conside-
ciava a sua transposição da explicação ge- rado tal se tivesse frequentado uma escola
nética do Brasil para o caso da África por- secundária ou comercial e falasse corren-
tuguesa, apontando o conjunto de territó- temente o português. Os contratados, por
rios lusófonos de Portugal, Açores, Madei- seu lado, prolongavam ali o velho trabalho
ra, África lusa, Índia portuguesa, Cabo escravo, o que Henrique Galvão – não cita-
12 Idem, ibidem, p. 27.
Verde e Brasil como uma unidade de sen- do aliás por Pinto de Andrade – tivera a
13 Idem, ibidem, p. 28.
timento e de cultura. O leimotiv lusotro- coragem de informar a Assembleia Nacio-
14 Freyre apud Andrade, art. cit.,
picalista estava dado, e a viagem às colónias nal salazarista desde 1947 (17), iniciando p. 28. Mais adiante, Andrade
cita uma passagem do livro Um
lusas a convite do governo de Salazar, em com esse acto destemido a sua própria que- Brasileiro em Terras Portugue-
1951-52, seria a ocasião para rever, da política, aquela que o levaria à prisão, à sas (1952), na qual Freyre ga-
rantia que o português,
actualizar e ampliar a sua nova visão fuga para o estrangeiro, ao exílio no Brasil arabizado na base, teria a
lusotropicalista de um imenso Portugal e aos actos de guerrilha como o assalto e predisposição para as aventu-
ras amorosas sob o signo da
transcontinental e multirracial, o que se captura do paquete Santa Maria, nas “Vénus morena”, sendo por isso
menos imperialmente europeu
exprimira em especial nos livros Um Bra- Caraíbas, em 1961, poucos dias antes da que os outros, “juntando aos
sileiro em Terras Portuguesas e Aventura guerra estalar em Angola… motivos económicos, religiosos
e políticos da expansão esse
e Rotina; outros estudos seriam mais tarde Citando o estudioso francês acima refe- gosto (ausente em outros euro-
peus) de viver, amar e procriar
editados pelo próprio governo luso, home- rido, Andrade lembrava: “Não existe pro- crianças nos trópicos” (apud
nageando assim o papa do lusotropicalismo, blema indígena nas colónias portuguesas M. P. Andrade, op. cit., p. 30).
tornado filosofia oficial do colonialismo na medida em que os negros são mantidos 15 Andrade, op. cit., p. 28.
português. Tudo repousava na suposta exis- num estado próximo da servidão” (18). Se 16 Idem, ibidem, pp. 28-9.
tência, diz o escritor angolano, dessa “uni- a lusotropicalidade não explicava inteira- 17 Cf. H. Galvão, Assalto ao
“Santa Maria”, Lisboa, Edições
dade de sentimento e de cultura” em todos mente a formação e a originalidade do Bra- Delfos, 1974, pp. 87-106.
os países tropicais colonizados pelos por- sil, ela seria ainda mais falsa quando trans-
18 A. Julien apud Andrade, art.
tugueses, sob o seu domínio, unidade que posta para os casos dos países africanos cit., p. 29.

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colonizados pelos lusos, sublinha Andrade escrita seis anos antes de começar a rebe-
(19). Em suma, concluía Andrade, “sob a lião angolana. Já a de Amílcar Cabral viria
pena brilhantemente superficial” do soció- em plena fase da luta de guerrilha contra o
logo brasileiro, podia-se concluir que o colonialismo luso. Prefaciando um livro de
lusotropicalismo seria, ao mesmo tempo, Basil Davidson sobre a guerra de liberta-
um conceito, uma teoria, um sistema e um ção da Guiné-Bissau – Révolution en Afrique.
método de colonização, consistindo na La Libération de la Guinée Portugaise (Pa-
vocação congénita do português para ser ris, 1969) –, Cabral redigia, em outubro de
atraído pela mulher de cor nas suas rela- 1968, um curto texto onde, começando por
ções sexuais; o desinteresse do português deplorar o “muro de silêncio”(24) que os
em relação à exploração económica dos colonialistas lusos tinham conseguido erguer
trópicos; a manutenção de relações sociais em relação aos povos que guerreavam as
com os habitantes dos países tropicais no tropas europeias, lembrava o mito do
sentido da mobilidade vertical na vida so- lusotropicalismo nestes termos:
cial e política, donde o corolário: uma parte
da Ásia, da África e da América dominada “Introduzindo à pressa alterações na Cons-
por um pequeno número de portugueses tituição portuguesa com o fim de escapar à
que trariam no sangue a herança tropical de obrigação das Nações Unidas, o colonia-
cruzamentos com mouros, revelando a lismo fascista de Portugal conseguiu, além
marca de uma unidade de sentimento e de disso, cortar todas as possibilidades de in-
cultura que se chamaria “civilização formação não-oficial acerca das suas ‘pro-
lusotropical” (20). Em 1951, o governo de víncias ultramarinas’. Uma importante
Salazar convidara Freyre a fazer uma visita máquina de propaganda foi posta a funcio-
às colónias portuguesas no mundo, viagem nar com o fim de convencer a opinião inter-
donde resultou o livro Aventura e Rotina nacional de que os nossos povos viviam no
(Rio, 1953). Esta obra viria comprovar ain- melhor dos mundos, que éramos portugue-
da mais a estima que esse império colonial ses felicíssimos e cujo único sofrimento
e a nossa política africana mereciam ao seria a nostalgia da branca mãe-pátria se-
sociólogo pernambucano. A terminar, Pin- parada pela fatalidade geográfica. Todo um
to de Andrade nega que tivesse havido na mito foi construído. E, como em todos os
África colonizada pelos portugueses um mitos, sobretudo quando se referem ao
“complexo cultural” lusotropical, um ca- domínio e exploração dos povos, não fal-
samento de duas culturas, um contacto tam ‘homens de ciência’ entre os quais um
desejável entre duas culturas diferentes – a sociólogo conhecido, para lhe dar uma base
europeia e a africana –, mas apenas uma teórica: o lusotropicalismo. Gilberto Freyre,
19 Andrade, art. cit., p. 30.
relação entre uma cultura dominadora e uma confundindo, talvez involuntariamente,
20 Idem, ibidem.
cultura dominada, donde resultava que o realidades (ou necessidades) biológicas e
21 Idem, ibidem, p. 34.
apregoado lusotropicalismo de Freyre se- realidades socio-económicas (históricas),
22 V. M. Godinho apud Andrade,
art. cit., loc.cit. ria uma “mistificação”, uma teorização fizera de todos nós, povos das colónias-
23 Andrade, ibidem, loc. cit.
viciada na base, uma “falsa interpretação províncias portuguesas, os felizes habitan-
da génese da expansão marítima portugue- tes do paraíso lusotropical” (25).
24 A. Cabral, pref. a B. Davidson,
Révolution en Afrique. La sa” (21). A interpretação de Vitorino Ma-
Libération de la Guinée
Portugaise, Paris, Seuil, 1969, galhães Godinho no seu livro A Expansão
pp.11-6; p.11. A edição ingle- Quatrocentista Portuguesa parece-lhe mais
sa deste livro intitulava-se The
Liberation of Guinea: Aspects of adequada: Portugal teria criado um impé- FREYRE EM CABO VERDE
an African Revolution, Baltimore,
Penguin Books, 1969; veja-se rio comercial cuja alma eram as especiari-
ainda o texto de A. Cabral “A as, o fundamento o saque, os nervos os Freyre parte para as colónias lusas em
Dominação Colonial Portugue-
sa” incluído no seu livro Obras canhões (22). Daí a conlusão final do ango- outubro de 1951, depois de ter estado al-
Escolhidas de A. Cabral (vol. I,
lano: o lusotropicalismo era uma “impos- guns meses em Portugal continental: co-
Lisboa, Edit. Seara Nova,
1976; pp.57-66). tura velada” (23). Lembremos que a crítica meça por visitar a Guiné-Bissau, vai de-
25 A. Cabral, op. cit., loc.cit. de Mário Pinto de Andrade a Freyre fora pois a Cabo Verde (visita as ilhas do Sal,

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Santiago e São Vicente), São Tomé e Prín- grandes miscigenações entre italianos, ju-
cipe, Angola, Goa (dezembro) e, em mea- deus, portugueses e negros trazidos da
dos de janeiro de 1952, Moçambique. Pas- Guiné, ao mesmo tempo que experimenta-
sa também pela Madeira, tendo ainda o vam um tipo de arquitectura que transplan-
vagar de percorrer todo o Portugal conti- tariam para o Brasil, e praticaram o cultivo
nental de lés a lés, estando com inúmeros da cana-de-açúcar que seria o essencial do
intelectuais portugueses (António Sérgio, mundo lusobrasileiro da casa grande e sen-
Nuno Simões, Manuel Mendes, Aquilino zala, da cultura e da economia do Brasil co-
Ribeiro, Vitorino Nemésio, Manuel Múrias, lonial, assim como esboçaram ali a primeira
etc.), tanto afectos como desafectos à Dita- criação do gado nos trópicos (30).
dura vigente. Desta visita vamos sublinhar Num outro livro, espécie de apostila à
aquela que fez ao arquipélago de Cabo Ver- sua viagem de 1951 pelas colónias portu-
de, na medida em que, como melhor vere- guesas, Freyre incluía duas páginas mais
mos adiante, uma natural disposição sobre Cabo Verde, para repetir que o arqui-
“lusotropicalista” destas ilhas deveria ter pélago lhe lembrava o Ceará, que ali um
entusiasmado o mestre de Santo António de brasileiro se sentia em casa e que aquelas
Apipucos como ilustração das suas teses águas eram “quase as do Nordeste do Bra-
sobre a formação da sociedade mestiça do sil” (31). E sublinhava: “Em Cabo Verde, o
Brasil. A resposta crítica que esta sua visita Portugal e a África encontraram-se em dias
mereceu a um ilhéu, o intelectual remotos, em antecipação do encontro de
caboverdiano Baltasar Lopes, completará o culturas que no Brasil se tornaria a maior
exame deste detalhe crucial da via imperial aventura de miscigenação nos trópicos: a
portuguesa seguida pelo sociólogo recifense. de maior amplitude nas suas consequências
Qual o papel da sociedade mestiça de éticas e nos seus efeitos estéticos” (32). Por
Cabo Verde na formulação freyriana? Ten- outras palavras, seria de esperar que o
do visitado, como convidado oficial do lusotropicalismo, a chave sociológica e
governo português da altura – sendo o al- histórica usada para interpretar a génese do
mirante Manuel Maria Sarmento Rodrigues Brasil, fosse aproveitado por Freyre para
o ministro das Colónias (1950-55) que lhe valorizar o especial microcosmo exemplar
dirigiu o convite para essa viagem deste “arquipélago-escala” (como lhe cha-
oficiosíssima –, o arquipélago caboverdiano mara Jaime Cortesão). Mas não foi isso o
em começos da década de 50 – mais que sucedeu, como melhor veremos em
exactamente em outubro de 1951, aliás seguida. O que mais impressionou o soci-
numa altura em que o campo de concentra- ólogo do Recife é que aqui, nesta terra onde 26 Gilberto Freyre, Aventura e Ro-
ção do Tarrafal, na ilha de Santiago, ainda só seria europeu o que fosse oficial – ou tina. Sugestões de uma Viagem
à Procura das Constantes Por-
funcionava, pois só seria mandado encer- seja, edifícios, ritos administrativos, fala tuguesas de Carácter e Acção,
Lisboa, Livros do Brasil, s.d.,
rar em 1954, para reabrir as portas quando dos burocratas, modos de trajar, etc. (33) – 455 pp. A la ed. desta obra
se iniciassem as guerras coloniais… –, , a população nativa conseguiu produzir um saiu no Brasil, em 1953, edi-
tada por José Olympio, Rio de
Freyre começa por notar, no livro escrito dialecto próprio, que Freyre confessava Janeiro.
em finais de 1952, e publicado no Brasil repugnar-lhe: “Do mesmo modo que me 27 G.Freyre, op. cit., p. 237.
em 1953, e em Portugal numa edição sem repugna o dialecto cabo-verdiano, agrada- 28 Idem, ibidem, pp. 237-8.
data, provavelmente desse mesmo ano ou me ouvir a gente de Cabo Verde falar o 29 Idem, ibidem, p. 240.
do ano seguinte – Aventura e Rotina. Su- português, à sua maneira, que é a maneira 30 Idem, ibidem, p. 239.
gestões de uma Viagem à Procura das tropical, brasileira…” (34) –, o que não su- 31 G. Freyre, Um Brasileiro em Ter-
Constantes Portuguesas de Carácter e cedeu no imenso Brasil (35); o exotismo ras Portuguesas, Lisboa, Livros
do Brasil, s.d, pp. 171 e 170,
Acção (26) –, que Cabo Verde é uma espé- caboverdiano começa, pois, no crioulo. Daí respectivamente.
cie de Ceará africano desgarrado no meio a maior presença da africanidade nestas 32 G.Freyre, op.cit., p. 171.
do Atlântico (27), um país pirande- ilhas do que noutras colónias lusas, já que 33 G. Freyre, Aventura e Rotina,
lianamente à procura de um destino (28), os naturais daqui não se deixaram absorver p. 240.

ou uma Martinica afroportuguesa (29) onde ou dissolver na cultura dos portugueses, 34 Idem, ibidem, p. 248.
os colonizadores ensaiaram as primeiras como aconteceu nas demais colónias que 35 Idem, ibidem, loc.cit.

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os lusos ocuparam. Para Freyre, este tuação anormalíssima na Europa e na
fenómeno ocorria sobretudo da Ilha de América” (48). Mas garante que o policia-
Santiago (36). Adiante veremos como esta mento é mais “feito na aparência que na
interpretação freyriana teve firmes críti- realidade” (49). (Tendo visitado Portugal
cos em autores caboverdianos como em 1923, 1936, 1937, 1948 e 1951, espanta
Baltasar Lopes e outros. uma declaração sua deste teor!). Portugal
Quanto ao lusotropicalismo político de não estaria, pois, em “situação de vergo-
Cabo Verde, este era aquele que Freyre nhosa inferioridade com relação àquelas
acarinhava, uma vez que a autoridade do brilhantes democracias políticas de hoje”
governador seria toda patriarcal e pater- (50). A casa pobre de Salazar em Santa
nal, já que Sua Excelência se misturava Comba lembrava-lhe a de Herculano em
sem problemas com o povo, ia aos seus Vale de Lobos (51). Salazar seria, pois, “um
bailes, sem escolta, numa espantosa “con- grande homem de governo que se delicia
fraternização de governantes brancos com em ser apenas eminência parda ou cinzenta
governados mestiços” (37). Não admira, dos continuadores dos reis” (52). Não dá
aliás, que a figura do ditador português o nas vistas, ao contrário dos Peróns, Hitlers
fascinasse, a ponto de dedicar ao “Grão ou Francos, “quase sem sair de Portu-
36 Idem, ibidem, p. 240. Doutor” Salazar diversas páginas de gal”(53), quase sem ser visto pelos seus
37 Idem, ibidem, pp. 241-3. insofismável apreço (38), do mesmo modo compatriotas (54), sem mulher nem filhos,
38 Sobre Salazar, cf. G. Freyre, que freudianamente se esqueceria de re- sem sair do seu gabinete (55)…
Aventura e Rotina, pp. 21 e
segs., 60 e segs., 165 e 182
parar no campo da morte do Tarrafal, aliás A literatura local interessou Freyre:
e segs. celebrado pelo poeta chileno Neruda (39) cita Jorge Barbosa, Baltasar Lopes – en-
39 Veja-se Pablo Neruda, poema como uma das nódoas mais evidentes da tão a ensinar no Brasil, futuro autor de
“Los Presidios”, in Las Uvas y el
Viento, Barcelona, Seix Barral, nossa ditadura… Detenhamo-nos no re- uma brochura criticando justamente a in-
1976, p. 257. Sobre este cam- trato de Salazar feito pelo seu admirador terpretação freyriana da sua terra natal – e
po de concentração veja-se a
nossa História Contemporânea brasileiro. José Lopes (que era, aliás, vice-consul do
de Portugal, tomo I do “Estado
Novo”, Lisboa, Amigos do Li- Freyre diz ter sido recebido por Salazar Brasil em Cabo Verde) (56). Lembra que
vro, 1986, pp. 220-35. como um profesor recebe um colega. Diz José Lopes colaborara no velho
40 G.Freyre, Aventura…, p. 22. dele: “É o homem mais ágil de olhar, mais Almanaque de Lembranças Luso-Brasi-
41 Idem, ibidem, loc.cit. agudamente vigilante, mais dialecticamente leiro, “almanaque precursor de uma cul-
42 Idem, ibidem, p. 23. atento, ou que ouve, do que tenho conheci- tura luso-tropical” (57), almanaque come-
43 Idem, ibidem, p. 60. do” (40). A sua palavra não teria eloquência, çado nos meados do séc. XIX, e que era
44 Idem, ibidem, pp. 164 e segs. sendo monótona e nítida, fazendo-lhe lem- lido de Goa ao Brasil, passando pelas
45 Idem, ibidem, p. 164. brar um inimigo dele, António Sérgio (41). colónias portuguesas em África. Muitos
46 Idem, ibidem, loc.cit. Seja como for, Salazar seria “um dos maio- destes escritores se sentiam mais próxi-
47 Idem, ibidem.
res portugueses de todos os tempos”. Ha- mos do Brasil do que de Portugal, nota o
via nele uma certa “dignidade episcopal”, pernambucano (58). Até os meninos que
48 Idem, ibidem, p. 165.
com alguma coisa de “semita” (42). A voz se banhavam afoitamente nas águas peri-
49 Idem, ibidem, loc.cit.
era suave. Tinha algo de um défroqué, “psi- gosas das ilhas lhe lembravam os “capi-
50 Idem, ibidem.
cologicamente défroqué” (43), esclarece. tães de areia” de Jorge Amado (59).
51 Idem, ibidem, p. 182.
Se fosse português, Freyre garante que O que mais deplorava Freyre em Cabo
52 Idem, ibidem, p. 183.
apoiaria o regime salazarista (44). Desa- Verde era a ausência de arte popular (60).
53 Idem, ibidem, loc.cit.
gradou-lhe, porém, o excesso de “poli- Nada lhe ficara, no artesanato, das suas
54 Idem, ibidem, p. 182.
cialismo” do regime (45). Mas acha que o raízes africanas, ausência deplorável até
55 Idem, ibidem, p. 183.
nosso ditador defende os portugueses do porque privava os ilhéus de uma fonte de
56 Idem, ibidem, pp. 245-6. “excesso do poder da vulgaridade sobre a receita como a da Madeira ou de São Tomé
57 Idem, ibidem, p. 246. massa eleitoral” e dos excessos do dinheiro e Príncipe (61). Daí que este cantor do
58 Idem, ibidem, loc.cit. (46). Acha porém a censura humilhante, lusotropicalismo sugira que se avigorasse
59 Idem, ibidem, p. 247. talvez mesmo desnecessária (47). O regi- antes em Cabo Verde a cultura europeia,
60 Idem, ibidem, pp. 250-1. me, em suma, parece-lhe “um raro exem- já que a africana lhe parecia incapaz de
61 Idem, ibidem, p. 250. plo de normalidade em contraste com a si- transcender a “instabilidade cultural” pró-

56 REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 48-61, março/maio 2000


pria dos nativos do arquipélago: “Para
corrigir-se este estado de instabilidade de
A CRÍTICA DE UM CABOVERDIANO
incaracterização é que me parece neces-
sário um revigoramento da cultura – cul-
A GILBERTO FREYRE: BALTASAR
tura em sentido sociológico – europeia”
(62). Uma evidente incapacidade de se
LOPES
aperceber da identidade caboverdiana –
ou até de a aceitar como possível ou mes- Debrucemo-nos agora sobre a resposta
mo inevitável – ressalta desta passagem que o destacado intelectual e estudioso de
do sociólogo pernambucano, inex - Cabo Verde deu, em 1956, às considera-
plicavelmente míope neste lance. Com- ções feitas sobre o arquipélago por Gilber-
preende-se que os intelectuais cabo- to Freyre. Aos microfones de Rádio Barla-
verdianos, que desde 1936 vinham traçan- vento, de São Vicente, de 12 de maio a 23
do uma via original para a sua peculiari- de junho de 1956, Baltasar Lopes pronun-
dade nativa na revista Claridade (63), não ciou uma série de seis palestras que iria
tivessem apreciado muito esta interpreta- publicar no mensário Cabo Verde (de 1 de
ção do brasileiro. Sublinhe-se, a propósi- setembro a 1 de novembro de 1956) e, por
to, que nesta obra de 1953, além de uma fim, reunir em folheto, nesse mesmo ano,
patente intenção de glorificar o regime e a sob o título de Cabo Verde Visto por Gil-
62 Idem, ibidem, p. 251.
pessoa de Salazar, já acima referida, Gil- berto Freyre (67). Lembrando quanto os
63 Veja-se a edição facsimilada
berto Freyre, em paradoxal contradição caboverdianos estimavam a obra de Freyre desta célebre revista
caboverdiana: Claridade. Re-
com o seu passado de inimigo da ditadura – assim como a do também antropólogo e vista de Arte e Letras, org. por
de Vargas, nunca se mostrou inclinado a folclorista brasileiro Artur Ramos (1903- Manuel Ferreira, pref. de
M.Ferreira, pp. XIXXCVII, 2a
aceitar a hipótese da independência das 49), o autor de obras como O Negro Brasi- ed., Linda-a-Velha, ALAC/Áfri-
colónias portuguesas em África. Neste leiro (1935) e A Aculturação Negra no Bra- ca,1986. Recorde-se que
Baltasar Lopes escreve nesta
aspecto, este volumoso livro de notas de sil (1942) –, Baltasar Lopes recorda deste revista dois artigos que interes-
sam ao tema deste nosso estu-
viagem ao “império” lusitano em África – jeito quanto o entusiasmou a chegada do do: “Uma Experiência Româ-
bem como o seu já referido suplemento, ilustre sociólogo às ilhas: “Enfim, Gilberto nica nos Trópicos”, Claridade,
no 4, janeiro de 1947, pp. 15-
Um Brasileiro em Terras Portuguesas – Freyre veio. Chegou, viu, interpretou. Po- 22, e no 5, setembro de 1947,
pp. 1-10.
não deixa de constituir um deplorável ins- rém, na minha ignorância, mas também na
trumento de propaganda em prol de um 64 G. Freyre, Aventura…, p. 251.
minha suspeita dos métodos da ciência que
regime que, pouco tempo volvido sobre a o mestre brasileiro cultiva com tanto bri- 65 Idem, ibidem, p. 252.

sua edição, iniciaria nas suas colónias um lho, poderia ele dar das nossas ilhas uma 66 Idem, ibidem, p. 253.

longo, doloroso e criminoso ciclo de guer- interpretação não eivada de pressa 67 Baltasar Lopes da Silva, Cabo
Verde Visto por Gilberto Freyre.
ras que se arrastaria até 1974, engrena- jornalística, no tão pequeno espaço de tem- Apontamentos Lidos aos Micro-
gem de morticínio e sofrimento a que, fones de Rádio Barlavento, Im-
po e na pobreza de contactos com que teve, prensa Nacional, Divisão de
contudo, o arquipélago de Cabo Verde tant bien que mal, de receber um vislumbre Propaganda, 1956, 52 pp.
(separata de Cabo Verde.
escaparia… da nossa vida?” (Cabo Verde Visto por Boletim de Propaganda e In-
O dialecto crioulo, portanto, para Gil- Gilberto Freyre) (68). E logo comenta que formação , Praia, Imprensa
Nacional, nos 84-6, 1 de se-
berto Freyre, contribuiria para a instabili- Freyre apenas “arranhou o litoral” de três tembro a 1 de novembro de
1956). Recordemos que
dade cultural do cabo-verdiano (64). A das ilhas caboverdianas – Santiago, São Baltasar Lopes da Silva (1907-
única excepção a esta lacuna encontrou-a Vicente e Sal (69) – e que, na segunda, se 89), nascido em Vila da Ribei-
ra Brava, se formou em
no Sal, na música: a morna, de cuja seme- ficara pela zona urbana da ilha (70). Viu Filologia Românica na Fac. de
Letras de Lisboa, desempe-
lhança com a música popular brasileira ele “Ulisses (Jorge Karantonis), o Judeu
nhando, em 1956, as funções
se apercebera desde os tempos dos carna- exógeno (o nosso conhecidíssimo e, há tanto de reitor do Liceu Gil Eanes em
S. Vicente. O seu célebre ro-
vais no Recife (65). A única realidade pu- tempo, tropicalíssimo Schonfield), conhe- mance Chiquinho fora publi-
jante estava na literatura lusotropical de ceu o sósia (fisionómico) de Mário Pinto cado em 1947.

Cabo Verde, a mais viva do género depois de Andrade e (cultural) de Pixinguinha”, 68 B. Lopes, op.cit., p.7.

da do Brasil, garante (66). Eis, pois, sucin- tendendo para a generalização simples e os 69 Idem, ibidem, loc.cit.

tamente gizada, a visão que de Cabo Verde pormenores insignificativos (71). Do batu- 70 Idem, ibidem, p. 8.
teve Freyre no início da década de 50. que, por exemplo, viu apenas a “sobrevi- 71 Idem, ibidem, loc.cit.

REVISTA USP, São Paulo, n.45, p. 48-61, março/maio 2000 57


72 Idem, ibidem, p. 7.
vência da velha África” (72), troçou até do folclore dos provérbios e das adivinhas; a
73 O famoso veleiro Areias – ou
Senhor das Areias (ou ainda
velhíssimo veleiro Areias (73) que o levou música popular e a sua instrumentação; as
Senhora das Areias) – era um até ao Sal (74), o que é um exemplo raro de festas populares […] e, a dominar tudo, o
lugre com motor e vela,
construído em Espanha, em data sociólogo que não valoriza o arcaismo no facto importantíssimo de que o arquipéla-
incerta, e reconstruído em Aveiro seu contexto vital, ecológico (75), inter- go dispõe de um instrumento de comunica-
em 1943; não se sabe quando
chegou a Cabo Verde. Sabe-se pretou o negro caboverdiano à luz do velho ção, o crioulo” (89) – esse mesmo crioulo
que em 1945 se denominava
Senhora das Areias, tendo pas- livro de Archibald Lyall (Black and White que Freyre dizia repugnar-lhe…Perguntava
sado depois a Senhor das A- make Brown, 1938) (76), comparou Baltasar Lopes: “E a um cientista é reco-
reias (cf. Boletim Oficial, no 18,
desse ano). Em dezembro de indevidamente as Antilhas ao arquipélago nhecido o direito de sentir repugnância pela
1968 foi desmantelado. Ou
seja, depois da visita de Freyre,
caboverdiano (77), concluiu que o matéria observada?[…]. Confesso não
ainda o heróico Areias viajou “caboverdiano é mais africano do que por- compreender a alergia de Gilbero Freyre
mais dezassete anos…O Areias
foi objecto de uma emissão de tuguês” (78), viu em excesso a presença ou em relação ao crioulo” (90).
moedas caboverdianas, junta- sobrevivência de África na vida e na psique Assim, o crioulo, como seria de esperar
mente com outros barcos do ar-
quipélago (v.g., Madalan , caboverdiana, como, por exemplo, na reli- por parte do autor de O Dialeto Crioulo de
Belmira, Novas de Alegria, etc.),
no valor de 50 escudos, em liga gião sobrevalorizou a presença dos cultos Cabo Verde (91), desperta a crítica de
de aço niquelado, com peso de africanos quando aquela seria, afinal, in- Baltasar Lopes. Se Freyre elogiava tanto o
7,40 gr e 28 mm de diâmetro,
moeda ainda corrente em Cabo significante (79). tal “mundo que o português criou” – título,
Verde, e editada pelo Banco de
Cabo Verde numa colecção de
E conclui: “ponho as minhas dúvidas aliás, de um livro seu –, como se compre-
moedas, com reproduções e ao africanismo tamboriado por Gilberto ende a sua repugnância por esta forma da
notícias sobre os barcos contem-
plados. Freyre” (80). E espanta-se: “Pela cabeça língua engendrada pelo português nos tró-
74 B. Lopes, op.cit., p. 9. de quem, medianamente informado das coi- picos? Seja como for, o crioulo “é a criação
75 Idem, ibidem, pp. 9-10. sas de Cabo Verde, é que passa que o cabo- mais perene nestas ilhas. Tudo pode desa-
76 Idem, ibidem, p. 16.
verdiano é mais africano do que português?” parecer ou modificar-se no arquipélago:
(81). Nos cultos cristãos, por exemplo, conduta, trajos, mobilidades das classes;
77 Idem, ibidem, p. 14.
Freyre achou africanismo, duvidando se não ocorrer um cataclismo, físico ou
78 Idem, ibidem, loc.cit.
Baltasar Lopes que realmente houvesse social […], podemos ter a certeza de que,
79 Idem, ibidem, p. 18.
neles “africanismo essencial” (82), à ex- para me citar a mim mesmo, o crioulo está
80 Idem, ibidem, p. 15.
cepção das tabancas da ilha de Santiago radicado no solo destas ilhas como o pró-
81 Idem, ibidem, p. 14.
(83). Discorda ainda da apreciação freyriana prio indivíduo” (92). Baltasar Lopes criti-
82 Idem, ibidem, p. 18.
quanto à alegada esterilidade cultural dos ca ainda em Freyre a desvalorização literá-
83 Idem, ibidem, loc.cit.
caboverdianos, atribuindo-a a uma ilusão ria e funcional do crioulo, acusando-o de
84 Idem, ibidem, p. 39.
resultante do “grau avançado, no sentido despiciência e, indirectamente, de
85 Idem, ibidem, p. 21. europeu, a que as ilhas chegaram” (84). simplismo e falta de humildade (93). O
86 Idem, ibidem, p. 22. Discorda de que houvesse entre o portu- crioulo, sendo a “respiração do povo que o
87 Idem, ibidem, loc.cit. guês e o caboverdiano uma disputa entre a criou” (94), está definitivamente integrado
88 Idem, ibidem. entidade social de Cabo Verde e “o todo “no corpo de ideias e de sentimentos que
89 Idem, ibidem, p. 26. português de que fazemos parte”(85). Para formam a nossa personalidade regional”
90 Idem, ibidem, p. 27. Baltasar Lopes – e nisto muito próximo das (95). Coexiste com o português,
91 Baltasar Lopes, O Dialecto Cri- teses oficiais do colonialismo luso em Áfri- nobilitando-se “em contacto com a língua
oulo de Cabo Verde, Lisboa,
Imprensa Nacional/Junta das ca –, “na conduta do caboverdiano não é a mãe, não se dissolve nela; pelo contrário,
Missões Geográficas e de In- África a força dominante” (86). Dizendo- mantém intacta a sua personalidade” (96).
vestigações do Ultramar, Cen-
tro de Estudos Políticos e Soci- se isento de um “ufanismo” caboverdiano E sublinha: “Rigorosamente, somos todos
ais, 1957, 391 pp.; reed. em
facsimile em 1984). (87), Baltasar Lopes garante que não en- bilingues” (97).
92 B.Lopes, Cabo Verde Visto por controu “um caso em que se tenha imposto Também a desvalorização da culinária
G. Freyre, op. cit. como espécime caracterizado da presença insular incomoda Baltasar Lopes, contra-
93 Idem, ibidem, pp. 30-1. dominante de África” (88). Quanto à defi- pondo às considerações depreciativas de
94 Idem, ibidem, p. 30. ciência de Cabo Verde em relação ao arte- Freyre acerca da alimentação e cozinha
95 Idem, ibidem, p. 35. sanato, à arte decorativa popular, reconhe- caboverdianas as qualidades da cachupa,
96 Idem, ibidem, p. 33. ce que estes faziam falta, embora houvesse xerém, cuscus, brinhola, batanca, etc. (98).
97 Idem, ibidem. outras formas de manifestação do génio Eis, em suma, o essencial da resposta de
98 Idem, ibidem, pp. 48-9. popular como “o folclore novelístico; o Baltasar Lopes a Gilberto Freyre, decep-

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ção resumida na frase: “O Messias desilu- tina quando redigiu estas linhas? É possí-
diu-nos” (99). vel. Mais adiante, outra observação deste
Alguns anos depois, num colóquio cu- autor merece ser sublinhada: “Em Cabo
jas comunicações seriam publicadas em Verde […] o mulato adquiriu desde cedo
livro em 1959 (100), alguns reparos se grande liberdade de movimentos e teria sido
ouviriam ainda aos textos de Freyre na sua ele quem realizou em Cabo Verde o papel
Aventura e Rotina. Por exemplo, Manuel que o português reinol desempenhou no
Lopes, no seu ensaio “Reflexões sobre a Brasil. Isto é: ter-se-ia transferido para o
Literatura Caboverdiana ou a Literatura nos mulato a condição de mestre, de líder na
Meios Pequenos” (101), sem se debruçar estruturação da sociedade caboverdiana”
explicitamente sobre o livro do sociólogo (108). Em suma, teria sido o funco – a ha-
brasileiro e a sua viagem de outubro de 1951 bitação primitiva própria de Cabo Verde –
a Cabo Verde, fazia algumas reflexões que e não o sobrado “o laboratório exacto onde
podemos tomar como crítica mais ou menos se produziu a síntese das culturas e a apro-
directa àquelas observações do viajante priação pelo negro e pelo mulato de ele-
brasílico. Louvando a acção da revista Cla- mentos e expressões civilizacionais portu-
ridade – nunca mencionada por Freyre –, gueses” (109).Um desses casos foi, eviden-
diz que esta, secundada pelo boletim Cabo temente, o crioulo (110) como língua ma-
Verde, tinha trazido consigo alguns torrões terna de Cabo Verde. Se, no Brasil, os cri-
de crioulo agarrados à raiz (102), lembran- oulos desapareceram e ficou apenas o falar
do que a própria revista Presença definira o dos portugueses, em Cabo Verde triunfaria
contributo de Claridade em duas palavras: um crioulo persistente, transformado em
regionalismo e universalidade (103). instrumento de comunicação em todo o
Logo adiante, um extenso artigo do arquipélago, revelando-se, depois, veículo
poeta Gabriel Mariano, intitulado “Do de criação literária. Em suma: “Contraria-
Funco ao Sobrado ou o ‘Mundo’ que o o mente ao Brasil, o mulato pôde ser o mestre
Mulato Criou” (104), fazia uma refutação da sua sociedade” (111). Não deixa, por
indirecta de Gilberto Freyre, ainda que não isso, de ser irónico que, ao prefaciar este
o mencionando. Por exemplo, sublinhava conjunto de estudos, o prof. Jorge Dias ti-
algo em que Freyre não reparara (ou não vesse garantido: “O caboverdiano consti-
quisera reparar?): que “em Cabo Verde, tui o caso mais perfeito de cultura luso-
diferentemente do que sucedeu nos outros tropical” (112).
territórios colonizados por portugueses, Não sabemos se alguma vez Gilberto
foram os negros e os mulatos os responsá- Freyre teria meditado nesta sua inexplicá-
veis directos na estruturação da sua socie- vel gaffe de sociólogo e observador políti- 99 Idem, ibidem, p. 11.

dade” (105). Esta tónica seria dominante co acolhido com especial carinho pelo go- 100 Colóquios Cabo-Verdianos,
Lisboa, Junta de Investigações
na análise de Mariano quanto ao verno português, nesta viagem paga e am- do Ultramar/Centro de Estudos
“especialíssimo caso caboverdiano” (106), parada pela administração colonial da Di- Políticos e Sociais, 1959, 182
pp., pref. de Jorge Dias.
o que teria permitido que, no arquipélago, tadura lusa, a ponto de nunca se ter lembra-
101 Colóquios…, pp.1-22.
uma forma diferente e própria de do da existência, naquele arquipélago, de
102 Idem, ibidem, p. 20.
lusotropicalismo florescesse: “o processo um atroz campo de concentração para ini-
103 Idem, ibidem, loc.cit.
aculturativo desabrochou no florescimento migos do regime salazarista… Tendo esta-
104 Idem, ibidem, pp. 23-49.
de expressões novas de cultura, mestiças do em 1951 em Cabo Verde, ainda que por
105 Idem, ibidem, p. 30.
[…]”, de modo que no arquipélago pude- poucos dias, o arguto sociólogo recifense
106 Idem, ibidem, p. 32.
ram “o negro e o mulato apropriar-se de não se apercebeu de que tinha diante dos
elementos da civilização europeia e senti- olhos um dos casos mais vívidos e pujantes 107 Idem, ibidem, p. 33.

los como seus próprios, interiorizando-os e daquele lusotropicalismo que ele enaltecera 108 Idem, ibidem, p. 39.

despojando-os das suas particularidades tanto, não só quanto ao Brasil mas ainda – 109 Idem, ibidem, loc. cit.

contingentes ou meramente específicas do e aqui com alguma culpa política – quanto 110 Idem, ibidem, p. 40.

europeu” (107). Estaria Gabriel Mariano a às demais colónias lusas em terras de Áfri- 111 Idem, ibidem, pp. 40-1.
pensar em Freyre e no seu Aventura e Ro- ca, no tal “mundo que o português criou” – 112 Idem, ibidem, p. XII.

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e que, poucos anos volvidos, forcejaria nial desde o séc. XVI, Freyre não se entu-
dolorosamente por se libertar do domínio siasmou com a especificidade – ou com a
português…Típico lapso resultante de um originalidade – da construção “lusotro-
preconceito ou de um evidente parti-pris pical” ali encontrada. A própria originali-
político? Mero daltonismo de viajante dade ou especificidade identitária do ar-
apressado…? Ainda que sendo brasileiro, quipélago caboverdiano – identidade que
não teria, afinal, Freyre sucumbido a uma transcendia os pressupostos da tal mítica
ilusão muito eurocêntrica – a de supor que civilização pluricontinental e multirracial
só haveria “verdadeiro” lusotropicalismo – desconcertava-o e, de algum modo, desi-
enquanto se mantivesse o domínio dos se- ludia-o, porventura frustrava as suas pre-
nhores brancos sobre negros e mulatos, missas de base. Por isso, em vez de aceitar
mesmo numa sociedade tão intensamente e vitoriar a via caboverdiana dentro do
mestiçada como a de Cabo Verde…? Ou modelo lusotropical, Freyre evita celebrá-
não haveria ainda uma outra mais subtil e la e até fez do crioulo uma das razões da
perversa origem deste seu evidente precon- “instalibilidade cultural” do arquipélago.
ceito de sociólogo: a de partir do princípio As respostas que lhe deram posteriormente
que o arquipélago era demasiado africano alguns intelectuais caboverdianos – de que
para que se pudesse tomar como verdadei- examinámos aqui e agora tão só alguns
ramente “lusotropical”? Para quem quise- exemplos frisantes – mostrariam como es-
ra tão enfaticamente combater e anular uma tava equivocado o sociólogo brasileiro, já
visão eurocêntrica, branca, dos trópicos então ao serviço da propaganda colonialista
pervertidos pela cor e pela raça negra ou da Ditadura portuguesa, a cerca de dez anos
ameríndia – contra o “europeísmo ao mes- de se iniciarem em África as guerras coloni-
mo tempo arrogante e céptico”(Um Brasi- ais que Salazar – e depois Marcelo Caetano
leiro…) (113), em prol das “gentes amare- – haveriam de arrastar durante treze anos
las, pardas, vermelhas, pretas, por meio de (mandando até reabrir em 1961 o campo de
estudos comparados de sociologia das cul- concentração do Tarrafal, encerrado em
turas, portadores de valores superiores e 1954), sem glória nem proveito para nin-
não apenas inferiores aos dos brancos e guém, tanto para colonizadores como para
europeus” (114) –, tal perspectiva era, no colonizados… Guerra africana que – deixe-
mínimo, contraditória ou escandalosa. mos a interrogação em aberto – arrastaria o
O facto, ulteriormente verificado ainda arquipélago para uma deplorável
em vida do próprio recifense, de que os centrifugação histórica e política que o afas-
caboverdianos não conheceriam intra mu- taria de quaisquer outras formas democráti-
ros uma guerra contra Portugal não lhe te- cas e livres de caminho comum futuro para
ria suscitado uma perplexidade geradora os povos caboverdiano e português. Guerra
de interrogações que, mais do que nenhu- durante a qual os seus dirigentes africanos
ma outra, pediam uma indagação de exegeta nunca deixaram de ver em Freyre – como
armado de lentes da sociologia e da Mário Pinto de Andrade o fizera em 1955,
história…? antes mesmo de o conflito começar – um
Em suma, no tocante à visita de 1951 a evidente e consciente aliado da causa
Cabo Verde, Freyre foi posto em contacto colonialista lusa, um teorizador ao serviço
com uma das mais conseguidas experiên- da política portuguesa, cujo alibi foi o
cias de miscigenação física e cultural de lusotropicalismo, política responsável por
todo o mundo colonial português, deparan- uma guerra que seria, dentro do drama da
do-se assim com uma sociedade que logra- Ditadura iniciada em 1926, um dos expoen-
ra até criar o seu dialecto, realidade abso- tes mais altos e mais cruelmente pertinazes
lutamente anómala no resto do mundo que do erro e da persistência nessa escolha erra-
o português criara. Embora encontrando no da – a de negar aos povos de África a inde-
113 G. Freyre, Um Brasileiro…,
p. 135. arquipélago caboverdiano muitas das raízes pendência que estes pediam, a que estes ti-
114 Idem, ibidem, loc.cit. que haveriam de frutificar no Brasil colo- nham afinal pleno direito.

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As críticas às aventuras colonialistas de português não mais deixaria de capitalizar
Freyre não se resumiram aos nomes acima em proveito da sua política colonial as
evocados. Conviria lembrar que, no pró- posições de Freyre. Este passaria, aliás, a
prio Brasil, alguns intelectuais lembraram colaborar quinzenalmente no vespertino
a condição de propagandista do regime lisboeta Diário Popular, então dirigido por
ditatorial luso assumida pelo autor de Casa um salazarista dos quatro costados, antigo
Grande e Senzala: fe-lo, por exemplo, a “camisa azul” das hostes hitlerófilas de
escritora Raquel de Queiroz, num artigo Rolão Preto, Luís Forjaz Trigueiros, um
publicado no Cruzeiro, em abril de 1952, íntimo do mestre de Santo António de
no qual criticava o facto do seu compatrio- Apipucos, e que mais tarde viveria exilado,
ta nordestino ter aceito o convite do gover- depois da revolução democrática portugue-
no de Salazar; respondeu-lhe Freyre ale- sa de 1974, no Brasil (1975-78). Mas todos
gando que estivera, na sua visita, com inte- estes aspectos da polémica em torno das
lectuais conhecidos pela sua hostilidade ao posições pró-colonialistas portuguesas de
ditador luso… (115). Um português então Freyre transcendem já o escopo deste arti-
exilado no Brasil, Tomás Ribeiro Colaço, go, cujo fito essencial foi tão só chamar a
escreveu no Correio da Manhã, do Rio, um atenção para uma faceta menos prestigiante
115 Cf. Raquel de Queiroz, “Por
artigo, intitulado “Carta a Gilberto Freyre”, e menos conhecida – ou freudianamente Terras de Além Mar”, Cru-
deplorando que o nome do prestigiado so- mais activamente esquecida… – do pensa- zeiro, abril de 1952; e G.
Freyre, “Outros Pontos nos ii”,
ciólogo tivesse sido “fraudulentamente mento e da acção profana do sociólogo Cruzeiro, maio de 1952.
usado ao serviço daquele totalitarismo”, o recifense em causa, bem como para algu- 116 T. Ribeiro Colaço, “Carta a
de Salazar (116). A verdade é que, desde mas das réplicas que lhe foram dirigidas Gilberto Freyre”, Correio da
Manhã, Rio de Janeiro, 4-III-
então, a máquina de propaganda do regime por africanos. 1952.

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