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A política colonial do Estado Novo nas décadas de 1930-1940 andava longe da teoria de
Gilberto Freyre. Armindo Monteiro, ministro das Colónias entre 1931 e 1935, e
principal ideólogo da «mística imperial», filia-se nas teses do «darwinismo social». Não
concebe um relacionamento harmonioso e fraterno, numa base igualitária, entre brancos
e negros. Atribui a Portugal o “dever histórico” de civilizar as “raças inferiores” que se
encontram sob o seu domínio. Trata-se de proteger os “indígenas”, de os converter ao
cristianismo, de os educar pelo (e para) o trabalho, de os elevar moral, intelectual e
materialmente. A oposição rígida entre “civilizados” e “primitivos” acarreta a negação
dos valores alheios e inviabiliza a perspectiva de reciprocidade cultural. Além disso, o
modelo de desenvolvimento económico das colónias assentava na mera exploração dos
recursos naturais e da mão-de-obra africana, através do trabalho forçado e das culturas
obrigatórias, em benefício dos interesses da metrópole e dos colonos europeus.
O único aspecto do pensamento de Gilberto Freyre que merece o aplauso unânime dos
colonialistas do regime e da Oposição, nos anos 30-40, prende-se com a confirmação da
especial capacidade dos portugueses para a colonização. Pelo menos desde o último
quartel do século XIX, face às pressões e ataques externos, perpassava no discurso
político e ideológico nacional a ideia de uma particular adaptação dos portugueses ao
clima tropical e de uma relação especial com os indígenas colonizados (Alexandre
2000: 393). A história e a antropologia eram convocadas para confirmar a existência
dessas capacidades que distinguiam o comportamento do colono português em terras
africanas do comportamento dos colonos do Norte da Europa.
A lógica da assimilação não foi vertida para a política indígena. O Estatuto dos
Indígenas, revisto em 1954, continuava a negar a cidadania portuguesa à maioria da
população de Angola, Moçambique e Guiné. Os assimilados, isto é, aqueles que
provassem estar integrados na forma de vida e nos valores da civilização europeia, eram
uma ínfima minoria, porque nunca houvera vontade de criar elites no ultramar, através
de uma aposta consequente no alargamento do sistema de ensino aos africanos. As
antigas elites crioulas do século XIX há muito que haviam sido arredadas do sistema
político pelos colonos entretanto chegados e pela própria administração.
Confrontado com o artigo 73.º da Carta da Organização das Nações Unidas, o Governo
de Lisboa nega a existência de «territórios não autónomos» sob jurisdição portuguesa.
Sendo um Estado unitário espalhado por quatro continentes, à luz da Constituição da
República Portuguesa revista em 1951, Portugal não se considera abrangido pelas
obrigações impostas por aquele artigo. Em resposta às acusações que lhe são dirigidas
na ONU, a delegação portuguesa centra a sua argumentação política em três pontos
principais. A separação geográfica entre as províncias metropolitanas e as províncias
ultramarinas é irrelevante, pois a geografia não fornece por si só uma base válida para
definir colónia. Em qualquer parcela do território nacional vigora o princípio da
igualdade de direitos e de oportunidades de todos os habitantes, independentemente da
sua «raça»; a mestiçagem biológica e de culturas é considerada fonte de progresso e de
desenvolvimento. As províncias de além-mar não são exploradas económica e
financeiramente em favor das metropolitanas; aliás, nalguns territórios ultramarinos o
crescimento económico chega a ser superior ao de Portugal continental. Em defesa da
posição portuguesa, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira, não se
coíbe de evocar perante a Quarta Comissão da Assembleia Geral da ONU, na sessão de
8 de Novembro de 1961, cientistas sociais de renome internacional, nomeadamente o
sociólogo Gilberto Freyre (Nogueira 1961: 213).
Com vista a fazer frente ao novo momento internacional, inaugurado com a Conferência
de Bandung, e fortalecer a argumentação portuguesa, na sequência da entrada de
Portugal na ONU, o Estado Novo aposta na vulgarização das ideias de Gilberto Freyre
junto dos países ali representados. Essa tarefa implica o acompanhamento constante do
percurso intelectual de Freyre e traduz-se nomeadamente na colocação de dois dos seus
livros nos «circuitos da diplomacia internacional».
Parece vantajosa a utilização do referido estudo e por isso conviria que essa Missão não
deixasse de o remeter às entidades que possam interessar”.4
Alguns anos mais tarde, a tradução francesa da colectânea O luso e o trópico (1961)
também será distribuída pelas missões portuguesas no estrangeiro. Artur Moreira de Sá,
secretário-geral do Congresso Internacional de História dos Descobrimentos, em ofício
enviado ao director-geral dos Negócios Políticos e Consulares do MNE, justifica:
Tudo indica, portanto, que a partir de meados da década de 1950 se verifica um esforço
sistemático por parte do MNE de doutrinação dos diplomatas portugueses no luso-
tropicalismo. O objectivo é muni-los de argumentos (supostamente) científicos,
alicerçados na história, na sociologia e na antropologia, capazes de legitimar a presença
de Portugal em África, na Índia, em Macau e em Timor. Cabe-lhes igualmente a tarefa
de divulgar as ideias do sociólogo brasileiro junto dos delegados dos países com assento
na ONU. A necessidade de difundir e afirmar o luso-tropicalismo nas Nações Unidas
torna-se ainda mais premente depois do início da guerra colonial em Angola e da
ocupação de Goa, Damão e Diu pela União Indiana. Tudo indica que o luso-
tropicalismo foi surtindo efeitos no exterior6, pelo menos até ao início da luta armada
pela independência de Angola. A partir então, tornar-se-ia cada vez mais difícil à
diplomacia portuguesa sustentar a posição anacrónica do Governo de Lisboa.
Nos anos 60, num esforço para reter apoios e cativar a opinião pública internacional,
Salazar concede várias entrevistas à imprensa estrangeira, nas quais utiliza argumentos
inspirados no luso-tropicalismo para justificar a permanência de Portugal em África.
Nas suas declarações acentua invariavelmente o “pendor natural [dos portugueses] para
os contactos com outros povos, contactos de que sempre estiveram ausentes quaisquer
conceitos de superioridade ou discriminação racial”.7 Socorrendo-se das teses de
Freyre, explica que os portugueses não saberiam estar no mundo de outra maneira,
“porque foi num tipo de multirracialidade que, há oito séculos, nos formámos como
nação, no termo de diversas invasões, oriundas do Oriente, do Norte e do Sul, isto é, da
própria África” (Ibidem). Questionado sobre as diferenças entre a política de Portugal
nas suas províncias ultramarinas e a de outras potências, volta a recorrer às máximas
luso-tropicalistas: “diferimos fundamentalmente dos restantes, porque procurámos
sempre unir-nos aos povos com quem entrámos em contacto não apenas por laços
políticos e económicos mas essencialmente por um intercâmbio cultural e humano no
qual lhes demos um pouco da nossa alma e deles absorvemos o que podiam dar-nos”.8
Não sendo um apologista da miscigenação, salienta agora que da fusão do português
com os “povos descobertos” resultaram as sociedades multirraciais brasileira, goesa e
cabo-verdiana e são esses exemplos de capacidade criadora portuguesa que estão prestes
a repetir-se em Angola e Moçambique.9
Tendo em conta a natureza ditatorial do regime, não é de estranhar que o Estado Novo
tenha recorrido ao controlo, censura e manipulação da informação veiculada pelos
órgãos de comunicação, tanto para o exterior como dentro do país. A conquista da
opinião pública era um elemento decisivo na batalha pela sobrevivência da «nação
pluricontinental portuguesa». Foram dadas instruções precisas à imprensa sobre a
abordagem de notícias relativas ao ultramar. Assim, deviam evitar-se expressões que
denotassem separação entre a metrópole e as províncias ultramarinas; Portugal teria que
figurar em qualquer enumeração de nações ou de estados asiáticos ou africanos; não se
podia sequer insinuar qualquer distinção entre raças nem atacar as religiões islâmica,
hindu e budista.10 O Gabinete de Negócios Políticos do Ministério do Ultramar
encarregou-se de elaborar comentários diários, para serem transmitidos para todo o
império pela Emissora Nacional (estação radiofónica do Estado), nos quais se tratavam
temas do interesse nacional (o ataque da União Indiana a Goa, o “terrorismo” em
Angola, o anticolonialismo da ONU, a ‘ameaça’ comunista, o povoamento ultramarino,
o desenvolvimento económico de Angola, etc.) e se apresentava Portugal como nação
etnicamente e culturalmente heterogénea, dispersa geograficamente por vários
continentes. Gilberto Freyre (o autor e/ou o seu pensamento) é muitas vezes evocado
nesses comentários. É o caso do comentário sobre a Comunidade Luso-Brasileira, de
que reproduzimos o seguinte excerto:
“O que define, efectivamente, Portugal, o que nos individualiza entre as demais Nações,
é aquilo que se tem chamado espírito de missão, quer dizer; afã de levar mais além no
espaço o conceito de vida de que se é portador; não o desejo de um Império económico
ou terreno, nem sequer de domínio político – mas a vocação irresistível de transmitir a
outros a Verdade de que se está possuído. […]
[…] Portugal só é inteiro quando é mundial – então, verdadeiramente começa a sua vida
física; Portugal só atingirá a sua autêntica projecção no Mundo quando ultrapassar o
plano nacional – o seu apogeu chegará com a plenitude da Comunidade Luso-Brasileira,
com a maturidade do complexo lusotropical. É para isso que hoje caminhamos, é para
isso que havemos de trabalhar.”11
“[…] é essencial […] sabermos o que significa ser português e como tem de se traduzir
nas realidades político-sociais e no quadro da geografia humana essa condição de
português. Ora – porque a questão não estava realmente em causa e todos os
portugueses, mesmo inconscientemente, sentiam a presença, nas suas almas, dos
elementos que constituem essa fundamentação – não tinha havido até agora,
praticamente, a preocupação de investigar os tais elementos por forma sistemática e de
procurar com eles elaborar a tal fundamentação como corpo estruturado.
E foi a agressão contra nós, em Angola, que veio chamar violentamente a atenção dos
portugueses para a necessidade dessa investigação e dessa elaboração, não apenas como
exercício intelectual mas como base prática e consciente de acção. Do bastante que vai
já aparecendo sobre o assunto – e é impossível não destacar os estudos de Gilberto
Freyre e o livro apaixonante de Francisco Cunha Leão sobre «O enigma português» - é
justo chamar a atenção para o colóquio agora organizado em Lisboa por um grupo de
jovens escritores e pensadores sobre o tema geral «O que é o ideal português?»”.12
Aqueles que nos escutam, podem ficar com a certeza de que, entre os Portugueses não
há «brancos» no sentido de etnia diferenciada.”13
O trabalho desenvolvido por Adriano Moreira à frente do CEPS, criado pela Portaria n.º
15737, de 18 de Fevereiro de 1956, denota preocupações nascidas da reflexão sobre o
luso-tropicalismo. O centro tem como fins “coordenar, estimular e promover o estudo
dos fenómenos políticos e sociais verificados em comunidades formadas em territórios
ultramarinos ou relacionados com estas, observando e expondo especialmente os
fundamentos, características e resultados da acção desenvolvida pelos portugueses no
Ultramar” (Moreira 1956). A sua actividade divide-se por três grandes áreas: a edição
(nomeadamente através da colecção «Estudos de Ciências Políticas e Sociais»); a
organização de colóquios; e a coordenação de missões de estudo às províncias
ultramarinas.
Em 1959, Jorge Dias dirige uma nova campanha da Missão de Estudo das Minorias
Étnicas do Ultramar Português. O relatório confidencial, enviado ao presidente do
Conselho, volta a denunciar os casos de segregação racial.17 A comparação entre as
relações raciais no Tanganica e em Moçambique revela que enquanto no primeiro
território os ingleses adoptaram uma política de colaboração com os indígenas, no
segundo, os portugueses tratam mal os africanos, mesmo os assimilados.
Num relatório de Jorge Dias referente à sua participação numa reunião realizada em
Frankfurt sobre “problemas políticos da vida em comum entre pretos e brancos em
África”, o antropólogo confessa que conseguiu que a sua comunicação fosse bem
acolhida pelos outros conferencistas, “porque a posição tradicional portuguesa é
absolutamente defensável, quando posta em termos de evolução histórico-social, como
um aspecto da história da humanidade, anterior à expansão capitalista
europeia”.18 Acentua que esse facto, a estrutura social portuguesa e o carácter nacional
do povo luso deram origem a “um tipo de colonização que como processo é
inteiramente distinto da colonização do século XIX” (Idem). Porém, alerta: “ai de nós se
se descobre que na realidade nos estamos a desviar grosseiramente de uma linha de
conduta tradicional para enveredarmos pela da exploração brutal e impiedosa do
indígena, esquecendo aquele fundo de humanidade cristã que nos caracteriza e que nos
deu fama de excepcionais colonizadores” (Idem). Conclui que no plano político, a
soberania portuguesa sobre os territórios ultramarinos estava dependente da correcção
dos abusos e da orientação do comportamento dos colonos portugueses num sentido
mais humano e cristão.
A 1 de fevereiro de 1962 é finalmente promulgado o decreto n.º 44171, que torna livre a
entrada e fixação de cidadãos portugueses em qualquer parte do território nacional (em
conjugação com a criação do «Espaço Económico Português»). Até então, os
portugueses que pretendiam migrar para as colónias tinham que dispor de «carta de
chamada», provar que tinham colocação assegurada no destino ou meios de
subsistência. Os entraves do Estado Novo à migração em massa de naturais da
metrópole para o ultramar tinham começado a ser levantados de forma gradual no pós-
Segunda Guerra Mundial. Só nos anos 50 é que o modelo de desenvolvimento
económico e de relações raciais a instaurar nas colónias deixou de assentar numa
concepção meramente utilitária de exploração dos recursos naturais e humanos locais,
passando a contemplar o povoamento intensivo daqueles territórios com europeus e a
melhoria das condições de vida dos africanos.
Não obstante, há vários testemunhos de que esse trabalho de atracção das populações
africanas não era compreendido e reproduzido por outros agentes do poder colonial nem
pela maioria dos colonos (vd. Castelo 2007: 357-362). Em 1972, o despacho do
ministro do Ultramar Silva Cunha, colocado na cópia duma acta do Conselho Provincial
de Acção Psicológica, do Governo-Geral de Moçambique, na qual se denunciavam
irregularidades frequentemente praticadas contra as populações autóctones, mostra quão
longe ainda se estava da convivência igualitária e harmoniosa entre europeus e
africanos:
“Visto com muita preocupação, especialmente por verificar que, apesar das instruções e
recomendações, insistentemente repetidas, continuam a verificar-se violências e
ilegalidades nas relações das autoridades e particulares com as populações nativas em
matéria de trabalho e propriedade. O Governo da Província tem que fazer um esforço
sério para pôr termo a práticas inconvenientes e ilegais que contribuem para facilitar a
acção subversiva.”21
Considerações finais
O Estado Novo, nos anos 30 e 40, ignorou ou rejeitou a tese de Gilberto Freyre, devido
à importância que conferia à mestiçagem, à interpenetração de culturas, à herança árabe
e africana na génese do povo português e das sociedades criadas pela colonização lusa.
As ideias do pensador brasileiro tiveram que esperar pela década de 1950 para conhecer
uma recepção mais favorável no seio do regime salazarista. Nessa altura, o regime
adoptou uma versão simplificada e nacionalista do luso-tropicalismo como discurso
oficial, para ser utilizado na propaganda e na política externa. À mudança de atitude não
foi alheia a conjuntura internacional saída da Segunda Guerra Mundial e a necessidade
de o Governo português afirmar a unidade nacional perante as pressões externas
favoráveis à autodeterminação das colónias. Paralelamente, assistiu-se à penetração do
luso-tropicalismo no meio académico e científico, em particular o ligado à formação dos
quadros da administração ultramarina e à chamada ‘ocupação científica’ das colónias.
Com o início da guerra em Angola, e a chegada de Adriano Moreira ao Ministério do
Ultramar, foi promulgado um pacote de medidas legislativas inspiradas no luso-
tropicalismo. No novo contexto, procurou-se igualmente incutir nos portugueses a ideia
da benignidade da colonização lusa ou, de forma mais eufemística, “do modo português
de estar no mundo”. A propaganda encarregou-se disso, de forma incansável: era
urgente moldar o pensamento para conformar a acção, sobretudo dos colonos e dos
agentes do poder colonial no terreno. Desde então, uma versão simplificada do luso-
tropicalismo foi entrando no imaginário nacional contribuindo para a consolidação da
auto-imagem em que os portugueses melhor se revêem: a de um povo tolerante,
fraterno, plástico e de vocação ecuménica.
–
BIBLIOGRAFIA:
AAVV. 1958. Portugal. Oito séculos de história ao serviço da valorização do homem e
da aproximação dos povos. Lisboa: Comissariado Geral de Portugal para a Exposição
Universal e Internacional de Bruxelas de 1958.
ALMEIDA, Miguel Vale de Almeida. 2000. Um mar cor da terra: “raça”, cultura e
política de identidade. Oeiras: Celta.
FREYRE, Gilberto. 1933. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob
o regimen de economia patriarchal. Rio de Janeiro: Maia & Schmidt.
FREYRE, Gilberto. 1940. O mundo que o português criou. Rio de Janeiro: José
Olympio.