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EDITAL FAPERJ N. E-26/202.

273/2021
PROGRAMA DE APOIO À PESQUISA NO
ESTADO DO RIO DE JANEIRO

A SOBERANIA NACIONAL NA CRISE DO CATIVEIRO NO IMPÈRIO


ESPANHOL, 1868-1870

BOLSISTA: RHUAN VETUANI NOGUEIRA PEREIRA

ORIENTADOR: TÂMIS PEIXOTO PARRON

RIO DE JANEIRO
2022
RESUMO:

Este trabalho integra a pesquisa intitulada Soberania Nacional na Crise da Escravidão


no Império Espanhol (1868-1870), orientada pelo Professor Dr. Tâmis Peixoto Parron, cujo
foco foi o período da Revolução Gloriosa de 1868 até a promulgação da lei de preparação
para a emancipação escrava, ou Lei Moret, em 1870. Com esse recorte cronológico, , as
fontes escolhidas para a pesquisa foram 41 sessões das CCortes constituintes e 10 apêndices,
transcritos por ocasião da elaboração a Constituição imperial espanhola de 1869, bem como
13 sessões e 4 apêndices das Cortes transcritas por ocasião do debate sobre a lei preparatória
de emancipação escrava de 1870. Além da leitura de 20 panfletos em formato digital
(disponibilizados pela hemeroteca digital da Biblioteca Nacional da Espanha) e da consulta a
cerca de 20 periódicos, também digitalizados pela hemeroteca digital da Biblioteca Nacional
Espanhola, que versavam sobre o tema da escravidão ou da disputa pelo modelo de
emancipação escrava no império. Trata-se de um corpus documental superior ao inicialmente
previsto no projeto de pesquisa. A partir dos conceitos políticos fundamentais do liberalismo
(soberania, representação e cidadania) e através da leitura das fontes, buscamos na pesquisa
entender como a crise da escravidão negra afeta esses conceitos e como esses conceitos,
principalmente a soberania, afetam a política da escravidão.

1. Objetivos

A. Objetivo geral:

O objetivo desta pesquisa consiste em identificar, ler e interpretar os discursos


políticos, seja nas Cortes, seja nas publicações em folhetos e jornais, sobre a abolição da
escravidão entre a Revolução Gloriosa de 1868 e a passagem da Lei Moret em 1870, que
libertou o ventre escravo e os sexagenários, com a finalidade de iluminar conceitualmente as
múltiplas relações entre a gestão da soberania espanhola, o projeto de uma nova nação
imperial e o fim da escravidão negra no ultramar, tendo por base as leituras que os agentes
políticos contemporâneos fizeram da relação entre a política da soberania imperial espanhola
e a abolição do cativeiro no quadro de crise global da escravidão negra nas Américas.

B. Objetivos particulares
● Iniciar o aluno bolsista no manejo e no tratamento do repertório documental, com
ênfase na seleção, organização e interpretação de discursos políticos inscritos no
debate público espanhol sobre a escravidão negra colonial

● Permitir que o aluno pesquisador se aproprie da historiografia sobre a crise e o colapso


da escravidão no império espanhol

2. Resultados parciais obtidos:

Antes de apresentar as questões levantadas pela pesquisa, vale o primeiro alerta, de


que o império espanhol do século XIX, período ao qual a pesquisa se insere, não é o mesmo
dos séculos anteriores. A Espanha, que havia sido chamada de ―o império ao qual o sol nunca
dorme‖ e que ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII havia sob seus domínios a maior parte
das Américas e que por um período, durante a União Ibérica (1580-1640), também possuía
importantes postos comerciais na África e na Ásia, essa Espanha não existia mais. O declínio
do império espanhol, segundo a historiografia, já havia começado durante o século XVII com
o findar da Guerra dos Oitenta anos (1568-1648), marcado pela independência dos Países
Baixos. O que se seguiu foi uma alteração nas relações de poder dentro da Europa, com a
ascensão da Inglaterra, posteriormente chamada de Grã-Bretanha, da França e dos próprios
Países Baixos, que tomaram o lugar da Espanha como potência hegemônica nos séculos
seguintes, inclusive tomando diversas possessões coloniais espanholas e redividindo as
Américas.
Durante o século XVIII a decadência espanhola era uma preocupação do império e de
seus agentes políticos, então uma série de reformas foram iniciadas, buscando dinamizar a
economia espanhola e torná-la novamente competitiva. Apesar de esse fenômeno ter sido um
processo, ele se faz mais visível durante o início do século XIX com as Guerras de
independência na América espanhola (1808-1829), que reduziu o império espanhol às
possessões ultramarinas de Porto Rico, Cuba, Fernando Pó e Filipinas, com a exceção de
alguns curtos momentos onde a Espanha buscou reconquistar antigas colônias como Santo
Domingo (1865) e apoiar a coroação de Maximiliano de Habsburgo no trono mexicano (1863-
1867). Além da perda de parte das possessões coloniais, o império espanhol no século XIX é
marcado pela instabilidade política e as disputas pelo trono no interior da própria metrópole.
Num sem fim de conflitos internas, a Espanha se viu dividida durante a invasão napoleônica
(1807-1814), as três guerras carlistas (de 1833 a 1840, de 1846 a 1849 e de 1872 a 1876), a
Revolução Gloriosa (1868), que destitui a rainha Isabel II, além da instauração da Primeira
República (1873-1874) e da restauração monárquica que a seguiu. É nesse contexto mais
geral da política espanhola que a pesquisa se insere, e é nele que tentamos reconstituir a
política da escravidão e a política da emancipação.
Durante o primeiro momento da pesquisa foi necessário entender como foi articulada a
política da escravidão no império espanhol. Sem entendê-la seria impossível pôr em contexto
as disputas políticas que envolviam a crise do cativeiro e muito menos compreender a
importância dos conceitos durante a sua dissolução. Para isso foi necessário um mergulho na
historiografia, já que as fontes escolhidas para a Iniciação Científica não abarcavam o período
de construção da política da escravidão.
O que observamos foi que no quadro político liberal do fim do século XVIII e do
século XIX, a gestão política da escravidão negra e de seu futuro histórico passou por uma
mudança tão significativa quanto a própria estrutura do império espanhol. Com a nova ordem
constitucional, ela esteve associada diretamente aos três conceitos-chave da ordem liberal
burguesa: representação, cidadania e soberania. Essa relação, segundo Parron (2022), é uma
―relação de causalidade circular, na qual os conceitos foram definidos como meios de gestão
do futuro da escravidão e a escravidão como pressuposto histórico dos conceitos.‖ Os
conceitos e a gestão da escravidão são mediados pelos agentes políticos na formação histórica
dos Estados liberais, de forma que em cada um dos Estados escravistas, ao apresentarem
formações sociais e correlação de forças distintas, também apresentam diferentes disputas
pelos conceitos e pelo futuro da escravidão. No caso espanhol, ela foi centrada,
simultaneamente, na defesa da soberania nacional espanhola frente às potências mundiais que
competiam por capital e poder, e de uma soberania descentralizada que permitisse que a
açucarocracia definisse a gestão da escravidão no interior de um império onde a escravidão
negra tinha sido até então marginal.
Com o mergulho na historiografia, observamos que a gestação da política da
escravidão negra no império espanhol na nova ordem mundial liderada pela Grã-Bretanha foi
por vezes ignorada pela historiografia clássica da escravidão espanhola. O historiador
marxista cubano Manuel Moreno Fraginals (1989), em sua obra seminal O Engenho, ao
observar a expansão e manutenção da escravidão negra, trata brilhantemente da instalação de
um complexo industrial açucareiro na então principal colônia espanhola, Cuba, e as
implicações da Economia-Política capitalista na relação entre expansão e declínio da
escravidão negra. Fraginals até dedica algumas páginas para analisar as contradições do bloco
histórico no poder do Império espanhol, que abrigava a açucarocracia ascendente, que
precisava defender a propriedade escrava em uma nova ordem liberal. Contudo, não se atenta
às nuances dos conceitos políticos basilares do liberalismo e sua relação histórica com as
relações sociais de produção, nesse caso as relações escravistas, o que acaba por não
responder como as classes dominantes cubanas conseguiram conservar e até expandir a
escravidão negra, em uma posição política marginal, como a que eles a princípio se
encontravam. Essa análise política do problema acaba eclipsada pela brilhante apresentação
da relação entre capital, terra, escravidão e desenvolvimento das forças produtivas no
contexto do mercado capitalista global que Fraginals se propõe a fazer.1
Sua análise da montagem do complexo industrial açucareiro cubano é baseada no
ensaio de outro historiador marxista cubano, Raúl Cepero Bonilla (1976). Em Açúcar e
Abolição, Bonilla observa a importância da acumulação capitalista, potencializada pela
Revolução Industrial, para a ascensão da principal potência açucareira do século XIX, que
para ele se manteve extraordinariamente produtiva pelo robusto tráfico de negros
escravizados. Apesar de arranhar as disputas políticas no interior das classes dominantes
cubanas, não as observou pela perspectiva da totalidade do império, e nem as suas relações
com os demais impérios concorrentes, o que pode tê-lo impedido de analisar a importância da
soberania nacional para a manutenção do cativeiro no império espanhol.
A historiografia sobre o reformismo ilustrado no império espanhol do século XVIII se
preocupou com o estudo dos alicerces materiais e condições políticas para a implementação
da política da escravidão, mas não abordou nem a sua forma e nem o seu conteúdo. Essa
historiografia estava mais preocupada em entender como, pós-tratado de Paris (1763) e com a
retomada de Havana pela coroa espanhola, Cuba havia se tornado um dos principais
produtores de açúcar no continente durante o século XVIII e o principal no século XIX. Por
isso, seus principais objetos foram as reformas econômicas do século XVIII, que dinamizaram
a economia espanhola e removeram antigas barreiras ao crescimento econômico da ilha, como
a abundância de impostos pagos à coroa pelo transporte e armazenagem dos produtos e o fim
do Real Arsenal, que impossibilitava os colonos de promover desmatamentos de terras no
interior cubano, pois essas terras pertenciam a coroa e sua madeira era utilizada para
construção de navios. Além das reformas, a criação de sociedades aos moldes dos que
existiam na metrópole para debater as questões econômicas e científicas cubanas e a inserção
massivas de negros escravizados a partir dos comerciantes ingleses e estadunidenses foram
também objetos dessa historiografia. Apesar do material vasto para o estudo do surgimento

1
Ao longo de sua obra Fraginals deu mais atenção ao conflito Espanha/Cuba, Cuba/Espanha.
dos hacendados cubanos, da produção em massa de açúcar e da expansão da escravidão negra
rural em Cuba, para além de sua capital, essa historiografia, seja pelo recorte cronológico que
estuda, basicamente entre meados dos séculos XVIII, seja pelos objetos de estudo, não se
aprofundou nos discursos políticos produzidos na ocasião, tampouco estudou a relação
umbilical entre os conceitos fundamentais do liberalismo (cidadania, representação e
soberania) e a expansão da escravidão ao longo do século XIX. Com isso, a partir dela
conseguimos entender como os escravistas se tornaram relevantes ao ponto de ganharem a
disputa interna pelo futuro da escravidão negra em um império onde a escravidão negra rural
ainda não estava bem estabelecida, mas ainda não é suficiente para entender, em sua
integridade, quais são as consequências do estabelecimento da política da escravidão para o
conjunto da política do império espanhol, e nem o papel dos conceitos básicos do liberalismo
nesse estabelecimento. (Lopes, 2017; Schneider, 2011; Thomas, 1985)
Com a reconstrução do contexto e da ascensão das classes escravistas, a partir da
historiografia, foi necessário reconstruir também a montagem da política da escravidão no
império espanhol, e o que a historiografia nos indicou foi que a insignificância da
representação cubana nas Cortes de Cádis (1810-1812) impedia que as particularidades da
ilha escravista tivessem impacto de peso nas pretensões universalistas da Constituição liberal.
O principal representante cubano Andrés de Jáuregui, em suas cartas com seu eleitorado
havanês, expressa o desconforto com a ordem constitucional frente aos interesses escravistas
de Cuba. A disputa pelo conceito de representação e cidadania resultou na exclusão dos
negros como corpos representáveis no parlamento, e, também, os alienou dos direitos
políticos de cidadania do Estado-Nacional espanhol, enfraquecendo a representação das
colônias escravistas, e consequentemente, o poder dos escravistas frente às forças não-
escravistas do império. Isso deslocou a luta dos escravistas cubanos e porto-riquenhos para a
disputa de uma soberania que colocasse sob a influência da açucarocracia, a partir da
autoridade máxima ultramarina, o capitão-general, o controle da gestão histórica da
escravidão. Isso ilustra a importância do conceito de soberania — na forma de gestão local da
escravidão, como se fosse uma soberania descentralizada nesse particular — para o controle
do futuro da escravidão no império espanhol. Pois é a elaboração interna desse conceito que
sustenta e protege politicamente as particularidades escravistas de Cuba e Porto Rico no
interior de um império onde a força de trabalho escravizada negra ainda era marginal. (Parron
2015;2022)
A disputa por essa soberania, digamos ―descentralizada‖, começa nas Cortes de Cádis,
mas não se encerra nela. A luta pela criação de um regime de exceção em Cuba e Porto Rico,
onde o capitão-general se tornava a última palavra sobre o exercício da soberania nas
Antilhas, atravessou as décadas de 1810 e 1820, e é um indício da ligação entre os conceitos,
a ordem liberal e a escravidão. O que a historiografia nos apresenta é que o crescimento da
importância do açúcar e do café das Antilhas nas exportações espanholas durante as décadas
de 1810 e 1820, e o poder de barganha que as classes dominantes cubanas ganharam, no
interior do concerto imperial espanhol, com sua relação comercial e política com os Estados
Unidos da América, permitiram que os escravistas cubanos conquistassem algumas das
reformas que possibilitaram o desenvolvimento da economia açucareira, entre elas a soberania
que precisavam para governar o futuro da escravidão (Fraginals 1989; Parron 2015, 2022). É
esse poder de barganha, e a soberania relativa dentro desse regime de exceção, que serão
fatores relevantes para definir a política da escravidão adotada pelo império espanhol. A
modelagem institucional dessa política da escravidão consistiu na suspensão da ordem
constitucional no ultramar, no estabelecimento de um regime de exceção concentrando
poderes civis e militares na figura do capitão-general e num sistema de consulta aos
escravistas, fossem os comerciantes, fossem os negreiros hispano-cubanos, por encomendas
de pareceres, por parte do governo metropolitano, a órgãos de representação senhorial como
as Juntas de Información, ou as Juntas de Comércio, ou a particulares envolvidos com os
negócios da escravidão.
Assim se estabelece de fato a robusta política da escravidão na ilha: a partir dessa
aparente contradição entre um espaço constitucional e um espaço não constitucional no
império. As classes dominantes conservadoras, amparadas pelo capitão-general, conseguiram
estabelecer um regime militar em Cuba, onde esse regime ―especial‖ foi fundamental para que
a luta de classes na ilha, também chamada por esses agentes históricos de luta entre raças, se
mantivesse favorável para os escravistas. A não implementação da constituição liberal na ilha
e a criação de canais diretos de comunicação com os escravistas, baseada na soberania relativa
de Cuba e Porto Rico, iriam influenciar diretamente tudo que dizia respeito à escravidão nas
ilhas, criando uma zona especial de defesa da escravidão em um mundo onde a escravidão
negra era contestada.
Remontado todo o contexto de gestação da política da escravidão no império espanhol,
foi necessário dar um salto cronológico para os anos 50 e 60 do século XIX para começar a
entender o contexto da crise do cativeiro. Com base na historiografia, observamos que a
política da escravidão no império espanhol gestada nos anos vinte, trinta e quarenta do século
XIX manteve o cativeiro nas colônias de maneira relativamente estável até os anos sessenta,
quando, após a conclusão da Guerra Civil dos Estados Unidos (1861-1865), a escravidão
negra começa a dar sinais de esgotamento da capacidade de submeter essa massa de
trabalhadores escravizados. É nesse contexto de crise da escravidão negra atlântica que ocorre
uma ruptura política no seio das classes dominantes espanholas (Schimidt-Nowara, 1999). Por
isso, a pesquisa tentou observar os conceitos políticos fundamentais como: soberania,
representação e cidadania nesse período.
Durante a leitura dos debates constitucionais observamos que os conceitos políticos
fundamentais do liberalismo são tensionados durante esse período de instabilidade política ao
qual passa o império espanhol, durante a Constituinte de 1869 esse tensionamento ficou
aparente. Contudo, o tensionamento dos conceitos não foi gerado pelos conceitos em si, mas
foram resultados de outros debates como as disputas pela forma de governo: se o Estado
liberal espanhol seria uma república ou uma monarquia; e também como a busca pela
resolução da questão da escravidão negra, objeto de repulsa de parte da sociedade civil
espanhola e dos revolucionários metropolitanos da Revolução Gloriosa de 1868. Isso fez da
Constituição de 1869 a única, daquelas escritas no Atlântico do século XIX, a ser redigida
para, entre outras coisas, dar cabo do cativeiro, enquanto os conceitos basilares do liberalismo
(representação, cidadania e, principalmente, soberania) se tornaram reflexos e,
simultaneamente, influenciavam esses debates, cumprindo um papel de organizadores do
discurso e da prática política. Por isso, a Constituição, e os debates que a geraram, são peças-
chave para entender os rumos da política da escravidão e como ao longo das décadas de 1870
e 1880 ela foi se tornando uma política da ―emancipação gradual e segura‖.
A combinação da leitura da historiografia com a leitura dos debates na Câmara dos
Deputados permitiu identificar dois fatores internos que podem ser citados como
fundamentais para a redefinição do conceito de soberania nacional. O primeiro deles foi a
expansão do debate público que ocorreu durante o governo da União Liberal nos anos 50 e 60
do século XIX. Essa expansão é resultado dos intensos debates sobre a Economia Política do
Império e a percepção de atraso da Espanha em comparação a outros impérios do centro da
economia mundial capitalista. Uma vez aberta a porteira do debate público e expandindo a
participação política de outros agentes, os fundamentos do liberalismo espanhol também
foram debatidos com mais afinco no espaço público. Um segundo processo também é
fundamental para que a soberania nacional entre em disputa, a Revolução Gloriosa de 1868,
resultado de uma profunda crise fiscal econômica e da resposta política dada pelo governo de
Isabel II a essa crise. A Espanha nesse período tinha dívidas significativas com potências
estrangeiras, em parte contraídas para financiar a política imperialista espanhola em Santo
Domingo, e a resposta do governo de Isabel II a essa crise foi a aproximação com sua base
mais conservadora, a Igreja e parte da nobreza, e o fechamento do regime constitucional em
1865. A resistência foi forte inclusive por parte dos camponeses e trabalhadores, mas foi
liderada por figuras militares e da classe média liberal espanhola, que em 18 de setembro de
1868 conseguem enfim depor a rainha com o intuito de restabelecer o regime constitucional e
fazer as reformas necessárias para que a Espanha atravessasse a crise sem perdas maiores,
como as possessões ultramarinas, por exemplo (Schmidt-Nowara, 1999).
Dada essa conjuntura, e se debruçando mais sobre os debates constitucionais,
observamos que o novo regime de soberania transformou o status político e institucional das
Cortes, vistas agora como o local por excelência e exclusivo do exercício da soberania. Nelas
os representantes teriam a função de ―fazerem eleições livres e espontâneas, tanto da forma de
governo, como da pessoa que exerceria o poder‖ (Diario de Sesiones, 7 de abril de 1869, p.
904), dando ao Congresso dos Deputados espanhóis uma prerrogativa sobre a dinâmica
eleitoral até então inédita na Espanha moderna. Parte do debate sobre soberania na
constituinte de 1869 girava em torno da necessidade de a monarquia estar submetida à
soberania nacional, uma vez que ―é aqui a origem de todos os distúrbios da época
constitucional, essa confusão de soberanias, dessa limitação que se tem feito da soberania
popular em benefício da soberania do rei.‖ (Diario de Sesiones, 6 de abril de 1869. 872).
Para sanar as principais contradições do período anterior, o Congresso deveria poder
promover uma maior harmonia entre a soberania popular, expressa nas eleições, e a
capacidade do governo de atender esses interesses, através da câmara imbuída da soberania
nacional. No debate preliminar do projeto de constituição, a relação entre soberania nacional,
soberania real e soberania popular foram os principais pontos de divergência entre a situação
(monarquistas) e a oposição (republicanos). É durante esse debate que a soberania nacional
vai sendo definida, quais seus limites, e quais os agentes responsáveis pelo exercício dela.
Derivado desse debate, os deputados também polemizaram sobre a origem da soberania, se
essa origem estaria no ―estado legal em que se reconhece plenamente a soberania da Nação,
em que se reconhece plenamente a unidade do Estado, o poder original, o poder primário e
único, o Estado.‖ (Diario de Sesiones, 9 de abril de 1869. 959), como reconhece um dos
integrantes da comissão Constitucional, ou ―saída do povo pelo sufrágio universal.‖ Diario
de Sesiones, 6 de abril de 1869. 873). Se a soberania tem origem no Estado ou no povo, os
debates constituintes não são conclusivos, mas mesmo os mais conservadores entre aqueles
que integravam a base de governo legitimam o Estado Liberal espanhol de 1868, e a
Constituição de 1869, a primeira como fruto da soberania popular, a segunda como fruto da
soberania nacional, exercida pelos representantes do povo eleitos pelo sufrágio universal. É o
elemento do sufrágio universal que aproxima a soberania popular da soberania nacional, pois
amplia a participação política dos cidadãos espanhóis a partir do Estado, reduzindo o risco da
destruição não só do trono mas também do próprio Estado liberal, transformando-o em um
agente da transformação social quando necessário. Para aproximar a soberania popular da
soberania nacional, o Congresso deveria ser capaz de se tornar a ferramenta legítima de
exercício da soberania, que outrora esteve mais espalhada pelo tecido social do império
espanhol, como no exemplo do regime de faculdades onímodas, descrita aqui como regime
militar, ao qual tratamos anteriormente. A identificação do regime de soberania nacional
revolucionária com a soberania popular e com a vontade do povo está entranhada no discurso
político de governistas e opositores de esquerda, como quando o deputado governista Gil
Sanz acusa um republicano de ―faltar com a soberania do povo‖ (Diario de Sesiones, 6 de
abril de 1869. 865), ao ameaçar conspirar contra a monarquia caso fosse escolhida como
forma de governo do Estado espanhol.
Quando o deputado Cirilo Alvarez, da União Liberal, esclarece o que se entendia por
soberania nacional: "[a soberania nacional] significa simplesmente, e essa é a base dos tempos
modernos, a viva encarnação dos tempos presentes, significa o direito indiscutível que tem
todo o povo, todo o país, de intervir na suprema direção dos negócios do Estado‖2 ,nos
apresenta a intervenção popular como questão-chave para compreendermos o uso desse
conceito no contexto revolucionário de 1869, pois coloca o povo como parte constituinte do
Estado liberal, dando-o uma ferramenta de intervenção política, o sufrágio universal. Alvarez
representava a posição ―conservadora‖ ou ―centrista‖, a grande vencedora da Constituinte,
representada pela coalizão revolucionária, formada pelos partidos: União Liberal, Partido
Progressista e Partido Democrático, se posicionando entre os republicanos defensores da
soberania popular e os reacionários que eram defensores de um regime de soberania anterior à
revolução. Esses últimos, que já haviam sido derrotados durante o próprio processo
revolucionário, foram os principais opositores da soberania nacional centrada nas Cortes,
porque tinha um ―sentido anti-católico de emancipação completa de Deus‖ (Diario de
Sesiones, 12 de abril de 1869. 981), pois colocaria a Igreja enquanto instituição subalterna ao
Estado e também ao sufrágio universal que era ―um mal absoluto‖ (Diario de Sesiones, 12 de
abril de 1869. 976) que deveria ―se limitar de alguma maneira, em primeiro lugar pela
propriedade ou pela indústria, e quando faltar essas duas, pela inteligência‖ (Diario de

2
discurso proferido por d. Cirilo Alvarez nas Cortes constituintes de 1869: Legislatura 1869-1871. 19-
05-1869. Nº 77 (de 2065 a 2102).
Sesiones, 12 de abril de 1869. 974). Portanto, a soberania que sai da Constituição conseguia
garantir a intervenção do povo nas questões do Estado com os demais poderes constituídos
pelas relações sociais de produção, um poder interventor que se materializaria inclusive nas
questões mais importantes para o Estado espanhol naquele momento, como a questão das
colônias e consequentemente do próprio cativeiro, transportando os antigos interesses
escravistas já constituídos para o campo do debate público, garantindo ao povo se não, a
palavra final sobre essas questões sensíveis, pelo menos a participação na negociação e
deliberação dessas questões.
O conceito de soberania, durante os debates constitucionais, esteve vinculado
diretamente ao sufrágio universal enquanto ferramenta política: uma vez expandido o sufrágio
a soberania estaria ainda mais subordinada às Cortes enquanto espaço legítimo de
representação das massas. Apesar de a pesquisa ter o conceito de soberania como objeto,
percebemos com a leitura da Constituinte que o novo regime de soberania nacional
―democrático‖ que relaciona a soberania popular, com a soberania do Estado, também atingiu
diretamente as bases do conceito político de cidadania. Os constituintes ansiavam ampliar a
cidadania espanhola, através da ampliação dos direitos individuais e políticos, e o fizeram sem
modificar o conteúdo daquilo que qualificava um cidadão espanhol. Entre esses direitos
estavam o de liberdade religiosa, o de liberdade de associação, liberdade de expressão, de
imprensa e também o direito de cada cidadão homem acima de 25 anos de exercer o sufrágio,
o que foi chamado de sufrágio universal, direitos esses conquistados durante o processo
revolucionário de 1868. A ampliação da participação popular na política através do voto é o
que caracterizaria esse novo regime de soberania nacional como ―democrático‖, afinal ―o que
estava no poder era a democracia, e sobretudo, sua lei fundamental, o sufrágio universal.‖
(Diario de Sesiones, 13 de abril de 1869. 1010). Dessa forma, a soberania nacional da
Espanha pós-revolucionária estaria intimamente ligada à cidadania ―democrática‖ espanhola,
e ambos os conceitos ligados ao fim da escravidão, pois se a soberania ―descentralizada‖ do
período anterior havia permitido a manutenção da escravidão nas Antilhas espanholas mesmo
quando seus interesses refletiam interesses locais, a nova soberania ―centralizada‖ nas Cortes
tornou os interesses particulares e locais em interesses nacionais. Enquanto anteriormente a
cidadania espanhola dava maiores restrições à vontade popular e uma menor participação das
massas no debate e nos espaços de deliberação da coisa pública, fortalecendo os interesses de
uma minoria muito poderosa, os escravistas, a nova cidadania estava baseada justamente na
intensificação da participação dessas massas na coisa pública, e o que se observa com as
inúmeras petições como a de número 79, onde ―Várias pessoas de ambos os sexos da Vila de
Elda, província de Alicante, pedem a abolição imediata da escravidão em Cuba e Porto Rico‖
(Diario de Sesiones, 8 de maio de 1869, p.1737), é a de que havia um interesse, ainda não se
sabe a dimensão desse interesse, pelo fim da escravidão, que havia sido bandeira da revolução
de 1868 (Schmidt-Nowara, 1999)
Com a soberania nacional centralizada nas Cortes, pela emergência de uma soberania
popular baseada no sufrágio universal, a representação se tornou uma das principais
ferramentas de acesso à soberania e consequentemente a definição do futuro histórico da
escravidão negra nas Antilhas, enquanto a cidadania se tornou um instrumento de acesso à
representação, que fora relativamente expandida com o estabelecimento do sufrágio universal
e apesar de não haver a dissolução completa do antigo sistema de consultas, a soberania
nacional garantia participação popular na negociação pelo fim da escravidão.
A leitura das transcrições dos debates da Constituinte de 1869 e observação das
dinâmicas dos conceitos durante a elaboração da Constituição permitiram uma melhor
compreensão do contexto dentro do qual se moveram os agentes políticos durante o debate da
lei espanhola de preparação da emancipação escrava de 1870. O que foi possível observar era
que durante a Constituinte de 1869 já havia uma ansiedade sobre a definição do futuro do
cativeiro nas Antilhas espanholas, muitos dos deputados eleitos eram ligados às sociedades
abolicionistas formadas durante a expansão da sociedade civil espanhola durante a década de
1850, que questionavam a validade de construir uma Constituição tida por democrática sobre
corpos negros acorrentados à instituição escravista. Afinal de contas, ―como falar de
segurança e de tudo que é próprio da dignidade humana enquanto deixa na Constituição a
escravidão?‖ (Diario de Sesiones, 6 de abril de 1869, p. 856). Contudo, o novo regime de
soberania ―centralizada‖ (nas Cortes) e ―democrática‖ (difusa no corpo social) era um entrave
para discutir assuntos das províncias ultramarinas em um parlamento sem representação
colonial, o que poderia agravar a instabilidade política no império durante a grande guerra
civil em Cuba (1868-1878). Por isso foi incluído na constituição o artigo 108: ―As Cortes
Constituintes reformarão o sistema atual de governo das províncias do Ultramar, quando
tenham tomado assento os representantes de Cuba ou Porto Rico, para fazer extensivos às
mesmas, com as modificações que se creem necessárias, os direitos consignados na
Constituição.‖ 3O artigo considerava os tensionamentos causados pela guerra civil cubana
(1868-1878) para adiar as reformas pedidas pelas classes dominantes das Antilhas espanholas,

3
Constituição espanhola de 1869, Título X: Das províncias ultramarinas, Artigo 108.
incluindo também a definição do futuro da escravidão: ―já que por essas mesmas
considerações referidas [guerra civil cubana] não tenha se estabelecido na Constituição a
abolição da escravidão‖ (Diario de Sesiones, 8 de abril de 1869, p. 923). Mas, ainda durante
o Congresso constituinte em 1870, é aprovada a Lei Moret, que iniciou um processo gradual
de dissolução da escravidão negra. Isso embora a questão da representação ainda não
estivesse plenamente resolvida, contando apenas com deputados porto-riquenhos e
peninsulares.
As tensões entre representação e escravidão não foram abordadas pela historiografia
que estuda o processo de emancipação escrava nas Antilhas espanholas, que também deu
pouca atenção à Lei Moret como objeto de análise, mesmo sendo essa lei o pontapé inicial
para a transição da mão de obra no império. Dos autores mais relevantes sobre o assunto, a
única a se debruçar mais detidamente sobre a lei foi Rebecca Scott (1987; 1991), que a
caracteriza como uma lei que guardava em si algumas contradições que mantiveram a
escravidão negra a pleno vapor durante o período em que ela deveria estar sendo extinta,
enquanto interferia em um dos alicerces da escravidão, a soberania doméstica do senhor de
escravos, condenando a escravidão a um fim. A autora, apesar de ter um olhar mais detido à
ilha de Cuba, analisa os conflitos políticos que estavam em disputa nas Cortes sobre o projeto
emancipação escrava, mas tem como foco as implicações políticas do projeto de emancipação
gradual na ilha, deixando de lado a análise dos discursos políticos e as ferramentas de defesa
da manutenção ou fim da escravidão. O resultado disso é a falta de análise sobre a
importância da disputa sobre o conceito de soberania nacional na constituinte ou sobre o
conceito de representação.
Schmidt-Nowara (1999) aponta a Lei Moret enquanto uma saída conciliatória entre os
interesses dos senhores de escravo e a necessidade imperiosa que a Espanha tinha de começar
o processo de abolição da escravidão negra em um contexto não só de descrédito da
instituição, mas também das fortes pressões geopolíticas que a Espanha sofria. Quanto aos
historiadores cubanos Bonilla (1976) e Fraginals (1991) nada se discutiu sobre a lei em si, o
primeiro porque não chegou a analisar o período histórico de produção da lei, o segundo
porque em sua magistral análise sobre a economia política cubana deixa de lado o estudo da
Lei e da disputa política nos termos ―institucionais‖ da emancipação escrava, porque para ele
o fim do cativeiro era resultado das contradições inerentes ao modo de produção escravista e
os avanços das forças produtivas que eram fundamentais para a reprodução capitalista.
Após identificada a subexploração da Constituinte de 1869 e da Lei Moret enquanto
fontes ou objetos de análise por parte da historiografia do fim da escravidão no império
espanhol, foi necessário inserir essas fontes no contexto de sua produção para tentar mapear
alguns indícios que nos permitissem entender por que o processo de emancipação escrava se
iniciaria antes mesmo de estarem representados nas Cortes os cubanos, que eram os principais
donos de escravos de todo o império, e um ano após o Estado espanhol estar constituído. Um
dos fatores foi o fim do cativeiro nos Estados Unidos da América, que causou desconfiança na
capacidade política de seguir submetendo corpos negros à escravidão. Segundo Parron (2015),
os Estados Unidos haviam sido um dos principais sustentáculos da escravidão negra na ordem
internacional e em 1865, após o fim da Guerra de Secessão (1861-1865) havia capitulado na
defesa da manutenção do cativeiro e agora passava ao lado de Inglaterra e França como
Estados que faziam pressão para o fim da instituição. Esse descompasso que havia entre a
Espanha e os demais países ―civilizados‖ gerava um desconforto entre os espanhóis que
reclamavam da pressão abolicionista internacional. Um exemplo disso é um trecho do jornal
republicano La igualdad, em um artigo de 2 de abril de 1869. Tratando do fim da escravidão
negra nas Antilhas espanholas, afirma que o fim do cativeiro havia de ser ―justo aos olhos das
nações que sempre qualificaram nossa nação como pecadora pertinaz no crime da
escravidão‖, indicando que havia alguma pressão internacional para o fim da escravidão.
Apesar disso, ainda não se sabia ao certo como e quando a escravidão negra teria seu fim
definitivo, mas o que se percebia era que o cativeiro era politicamente ―indefensável na
segunda metade do século XIX‖ (La igualdad, 8 de junho de 1869, n° 51) e que, portanto,
definharia fosse pela mão do Estado, fosse pela mão de revolucionários. O pós-guerra de
secessão nos Estados Unidos (1861-1865) condenou a escravidão de forma tal que em 1866 o
império espanhol decide de fato acabar com o contrabando de escravizados para a ilha, que já
era ilegal desde a década de 1810, outra evidência desse fim iminente é o parecer da junta de
informação organizada entre a coroa espanhola e as classes dominantes antilhanas nos anos de
1866 e 1867 para fazer estudos e consultas sobre as reformas ultramarinas, entre elas a da
escravidão, e produz relatos de porto-riquenhos e cubanos favoráveis a abolição.
Há uma pressão enorme sobre os constituintes para definir o futuro do cativeiro no
império, seja por parte dos abolicionistas que estavam representados no Congresso, seja pela
sociedade civil que mandou de cada canto do império petições para que a escravidão negra
fosse abolida. Para muitos, a questão da escravidão se imbricava com a da integridade do
império espanhol então ameaçada pela guerra civil em Cuba, pois ―os Estados-Unidos jamais
apoiarão a insurreição em Cuba se nessa Câmara se proclama a abolição da escravidão‖
(Diario de Sesiones, 9 de abril de 1869, p. 951). O medo de Cuba ser anexada aos Estados
Unidos não surge nesse período, no período anterior toda vez que os escravistas espanhóis
viam alguma debilidade do Estado espanhol em manter a escravidão, ―colocavam seus olhos
nos Estados Unidos, que era o único povo da Terra que oferecia estabilidade para a riqueza
que se sustenta com a escravidão‖ (BONILLA, 1976, p.48). A escravidão sempre foi uma
ameaça à integridade nacional espanhola: antes porque, caso não a mantivesse, Cuba se
separaria da Espanha e se integraria aos Estados Unidos; agora, ao contrário, porque a
integridade nacional dependia do fim da escravidão, sob pena de sofrer intervenção dos
Estados Unidos em Cuba. A mudança de posição estadunidense na geopolítica da escravidão
é o fator que explica esses diferentes ―anexionismos‖, com os Estados Unidos passando de
―campeão‖ da escravidão à ―ativista‖ da abolição, não restou aos espanhóis responder essas
possíveis pretensões norte-americanas com um indicativo de que a abolição ocorreria. Apesar
disso, os constituintes decidiram por adiar a definição sobre a escravidão negra sobre o
pretexto da não representação dos espanhóis do Ultramar, apesar da composição majoritária
da câmara, fruto de uma coligação de três partidos, a União Liberal, os Progressistas e os
Democratas ―condenarem o princípio da escravidão‖ (Diario de Sesiones, 8 de abril de 1869,
p. 914).
Mapeada algumas das pressões pela definção do futuro histórico da escravidão durante
o ano de 1870, foi necessário ler os debates da Lei Moret para observar as dinâmicas dos
conceitos. Quando chega o momento de legislar sobre a escravidão negra, no dia 4 de junho
de 1870, o então Ministro do Ultramar, Segismundo Moret, apresenta um projeto de
emancipação escrava semelhante à defendida por uma parcela dos escravistas cubanos, uma
emancipação lenta e gradual com o pagamento de indenizações, mesmo sem a representação
cubana nas Cortes. O projeto preparatório para emancipação escrava estabelecia: a liberdade
do ventre da mulher escravizada desde a data de 18 de setembro de 1868, data da vitória da
revolução gloriosa, a liberdade dos escravizados que tivessem mais de 60 anos, a liberdade
dos escravizados de propriedade do Estado espanhol, o patronato das crianças libertas pelo
ventre livre e a liberdade por excesso de castigo físico, além da promessa de apresentação de
um projeto de emancipação gradual para os escravizados que se mantiveram nessa condição 4.
A opção pela abolição lenta e gradual é justificada pela necessidade de manutenção da
integridade imperial, de atender aos interesses dos escravistas cubanos que já tinham o direito
a possuir homens e mulheres assegurados pela lei e pelo risco aos cofres do império ao
desestabilizar a produção açucareira cubana. O projeto do Ministro do governo tem uma
oposição à esquerda pouco atuante e desacreditada de uma possível conquista de uma

4
Legislatura 1869-1871. Apêndice segundo ao Nº 313. Digitalizado pelo arquivo do Congresso dos
deputados da Espanha
abolição imediata, projeto defendido pela Sociedade Abolicionista Espanhola e parte das
classes dominantes porto-riquenhas, que viam com bons olhos a aceleração da transição da
mão de obra, e uma oposição à direita buscando a todo custo adiar o debate sobre o fim da
escravidão.
O primeiro dos deputados a levantar-se na tribuna no dia 9 de junho de 1870, no
primeiro dia de discussões, foi o notório escravista peninsular Romero Robledo, que
questiona a pertinência de a votação sobre a questão da escravidão ser feita às vésperas da
dissolução das Cortes, mas que principalmente questiona a legitimidade de ―umas Cortes
constituintes que tanto se orgulham de ser produto do sufrágio universal, […] sendo o povo
congregado aqui por meio de seus representantes, […] relegar ao esquecimento uma parte
importante de nosso território ao qual principalmente afeta essa questão‖ (Diario de Sesiones,
9 de junho de 1870, p.8728). Como se vê, Robledo manipula o uso dos conceitos políticos
fundamentais então em transformação. Ele leva às últimas consequências as premissas
democráticas da Constituição para defender a escravidão, e faz parecer antidemocrática a
emancipação sem estarem representados nas Cortes os cubanos eleitos pelo sufrágio dos
mesmos. Em seu discurso, o parlamentar peninsular segue questionando a validade de tratar
de questões referentes a outras províncias espanholas sem que os representantes estejam
presente nas Cortes, reforçando o papel que a representação, legitimada pelo sufrágio
universal, de todo o conjunto dos cidadãos da nação espanhola teria nesse novo regime de
soberania, uma vez que se agora cabia às Cortes definirem o futuro da escravidão, o justo
seria estarem representados os ―campeões‖ da escravidão de Cuba. O mesmo argumento é
repetido à exaustão pelo jornal La Época. Essa estratégia visava, acima de tudo, atrasar a
votação da lei de emancipação até o fim da guerra civil cubana (1868-1878), e revela não
haver uma unidade entre os escravistas como o preâmbulo do projeto de lei dava a entender
ao citar que ―apresentará esse projeto conforme os mesmos proprietários de escravos‖ (Diario
de Sesiones, 28 de maio de 1870, apéndice primero al num. 292 p.1).
Entre os apoiadores do projeto de lei apresentado pelo ministro do ultramar, alguns
argumentos também se repetem, a crítica moral a escravidão é um desses, mas alguns
argumentos têm outra natureza, a de caracterizar a escravidão negra como uma instituição
atrasada, que não condizia com o tempo histórico ao qual viviam. Contudo, os deputados
defensores do projeto de emancipação do governo não puderam contornar o problema da
representação e o então ministro do ultramar dá uma resposta criativa ao problema, e afirma
em uma sessão do Congresso que ―alguns proprietários de escravos, entre os quais os mais
ricos de Cuba, me ofereceram a representação por aquelas ilhas.‖ (Diario de Sesiones, 10 de
junho de 1870, p.8770). Moret transforma a representação dos cidadãos e seus territórios em
representação dos interesses, no caso o interesse dos escravistas, e reedita o antigo sistema de
consultas que era base da política da escravidão no império espanhol, porém com uma
mudança fundamental. Enquanto no período anterior à revolução o representante dos
interesses escravistas na estrutura político-administrativa do império era o capitão-general em
atuação na ilha, agora essa representação é encarnada no ministro do ultramar nas Cortes.
Apesar de a guerra civil cubana (1868-1878) ter sido apresentada como empecilho para
garantir a representação cubana nas Cortes, era incontornável que essa representação estivesse
encarnada de alguma forma nela, que se tornou, por assim dizer, o ―cativeiro‖ da soberania.
Se a revolução havia tornado as antigas possessões em províncias, transformado aqueles
povos dominados em concidadãos, todo império em uma nação espanhola, e se toda soberania
residia na Nação e emanava dela, como está no artigo 32 da Constituição analisada, de alguma
forma Cuba deveria ser representada como uma das partes que integram a Nação, e nesse caso
esteve representado não só pelo Ministro do Ultramar, mas em todos que ali, de uma forma ou
de outra, advogavam em favor dos escravistas.5
Por fim, apesar de a representação ter sido considerado um entrave, o deputado Sorní
sintetiza a dimensão centralizadora que a soberania teria nesse período em que o Estado
liberal espanhol foi ―empurrado‖ pela Revolução Gloriosa (1868) para um regime político
mais democratizante. Ao contestar Robledo, Sorní dispara: ―Não somos todos Deputados da
Nação espanhola? Pois se somos todos Deputados da Nação espanhola, por mais que faltem
os Deputados de uma província determinada, claro é que podemos nos ocupar do que
interessa a Nação espanhola.‖ (Diario de Sesiones, 13 de junho de 1870, p.8770). Afinal de
contas, esse parece ser o grande porquê da disputa pelo conceito de soberania é dar
legitimidade às Cortes de interferirem nos interesse particular, tornando-os de interesse
nacional, ainda que seja explorada pelos escravistas a contradição entre a não representação
de parte do território imperial no espaço legítimo de soberania que aspira representar a
totalidade. O que observamos é que nas Cortes o fundamental não é a representação do
conjunto de territórios que formam o império, mas o conjunto de interesses que formam a
nação, e a escravidão enquanto mais um dos interesses nacionais precisaria negociar sua
existência, ou melhor, negociar o seu fim com uma massa que parecia estar descontente com a
escravidão e que havia conquistado uma ferramenta de intervenção no Estado Liberal com o
sufrágio universal, em um contexto político e geopolítico de fortes pressões abolicionistas.

5
Constituição espanhola de 1869, Título II: Dos poderes públicos, artigo 36.
A hipótese inicial de trabalho, de que as polêmicas sobre soberania nacional versariam
sobre os riscos de desintegração territorial ao qual o Estado espanhol ―flertou‖ durante todo o
período de ascensão da escravidão nas Antilhas, foi parcialmente confirmada. Parte dos
debates estiveram mesmo conectados às questões de integridade nacional: os Estados Unidos
da América durante todo o século XIX representaram um risco de tomada das possessões que
sobraram do império espanhol. Também podemos observar que há uma vinculação dos
projetos de emancipação em relação com os projetos políticos dos agentes históricos
espanhóis, estando a radicalidade do projeto de emancipação diretamente ligada à questão da
democracia e da submissão das demais soberanias à soberania popular e nacional. Se de um
lado as discussões sobre soberania nacional trataram muito de possíveis interferências
externas na questão escrava, que feririam a soberania nacional espanhola, por outro lado, o
que as discussões sobre soberania, representação e cidadania também demonstraram foi a
importância da dinâmica de ―centralização‖ e ―descentralização‖ do exercício da soberania e
como esses conceitos estão ligados a questões que versam sobre coisas mais profundas como
forma de governo e democracia.
Sendo assim, como havia sido importante para a elaboração da política da escravidão,
a soberania também esteve no centro da dissolução dela. A soberania ―descentralizada‖ que
havia dado a possibilidade de os escravistas antilhanos garantirem as ferramentas necessárias,
como o regime de faculdade onímodas, para que fosse mantido sob controle as contradições
resultadas da escravidão negra, havia dado lugar a uma soberania ―centralizada‖ que dava ao
povo, representado nas Cortes pelo sufrágio universal, as ferramentas necessárias para
amenizar as contradições da escravidão enquanto da cabo dela.
Essa pesquisa deve ser estendida no nível do mestrado não só alargando a cronologia
analisada até a década de 1880, quando enfim acaba o processo de emancipação escrava em
Cuba, mas também aprofundando o entendimento do contexto político imediatamente anterior
à Revolução de 1868. Também é fundamental avançar sobre os debates nos demais Estados
escravistas para entender melhor como suas experiências influenciam a emancipação na
Espanha. Embora as fontes escolhidas apontem para essas influências, é importante ampliar
os documentos analisados, como cartas pessoais de agentes políticos da escravidão, ou
antiescravistas, e um mergulho nos contextos desses outros Estados.

3. Dificuldades encontradas
Entre as dificuldades encontradas durante a realização da pesquisa, listam-se as
seguintes: dificuldade para encontrar obras que são referências de pesquisa, tendo em vista
que muitos se encontram esgotadas e acabam constando como obras raras, dadas as
dificuldades de encontrá-las e os altos valores que possuem; obras que não se encontram
presentes no mercado nacional, a falta de obras no mercado nacional dificultou a apropriação
do contexto da cronologia ao qual se insere a pesquisa, 1868 até 1870, deixando de fora a
contextualização de quais grupos estavam de fatos envolvidos com a escravidão negra na
Espanha e quais as variadas dimensões da Revolução Gloriosa de 1868

4. Realização do projeto no prazo

Dado o exposto, foi possível avançar na pesquisa e realizar a maioria dos objetivos e
metas estabelecidas no projeto, no prazo de vigência da bolsa de Iniciação Científica.
Todavia, ao examinar a problemática proposta e os resultados da pesquisa apresentada,
constatou-se a necessidade de dar continuidade ao trabalho no nível da pós-graduação, de
modo a alcançar maior profundidade nas reflexões e conclusões.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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