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Revista de Historia, Nº 1
Montevideo, diciembre 2015
(pp. 91-120) ISSN 2393-6584
An d ré a Sle m ian
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), Brasil
Recibido: 20 / 11/ 20 15
Aceptado: 10 / 12/ 20 15
Abs tra ct. The article aim s to analyze the existing conflicts regarding the status of
the Portuguese Em pire territories, with em phasis on m atters relating to South
Am erica, from the late 18 th century until the independence of Brazil. We start from
the idea that the issue is critical to understand the issue of sovereignty, that
presents a tension between a m ore m odern approach and a m ore traditional one
that m ust be taken into account. It is argued that, even with all the confrontations,
since the end of the 170 0s it was possible to project on the various Portuguese
territories a vision of unity provided by the m onarchy – which would at the sam e
tim e, be stressed and recreated in Brazil, especially after the events of 1807-180 8
and the constitutional m om ent in the 1820 s.
Ke yw o rd s : territory – sovereignty - Portuguese Em pire - indepen dence
1 “Mem ória sobre o m elhoram ento dos dom ínios de Sua Majestade na Am érica” (1797 ou 1798), D.
Rodrigo de Souza Coutinho. Textos políticos, econôm icos e financeiros, 1783-1811, Lisboa, Banco de
Portugal, 1993, tom o II, pp. 47-66.
2 Idem , p.48 .
3 Idem , p.49.
4 Neste ponto seguim os em sua análise para o mundo hispano-am ericano a ANNINO, Antonio,
“Soberanías en lucha”, A. ANNINO, Silencios y disputas en la Historia de Hispan oam érica, Bogotá,
Universidad Externado de Colom bia/ Taurus, 20 14, pp. 215-252.
Consejo General del Poder J udicial, 20 0 8, Nº VII, pp. 45-113 e GARRIGA, Carlos e SLEMIAN,
Andréa, “«Em trajes brasileiros»: justiça e constituição n a Am érica ibérica (c. 1750 -1850 )”, Revista
de História, USP, 20 13, Nº 169, pp. 18 1-221.
8 ARAUJ O, Ana Cristina, “O Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, 1815/ 1822”, Revista de
História das Idéias, Universidade de Coim bra, 1992, Nº 14, pp. 233-261; SLEMIAN, Andréa, “A
prim eira das virtudes: justiça e reform ism o ilustrado na Am érica portuguesa face à espanhola”,
Revista Com plutense de Historia da Am érica, 20 14, Vol. 40 , pp. 69-92.
9 HESPANHA, António Manuele XAVIER, Ângela Barreto, “A representação da sociedade e do
Poder”, J osé MATTOSO (dir.), História de Portugal. O Antigo Regim e, Rio de Mouro, Lexi Cultural,
20 0 2, p.145-172; HESPANHA, António Manuel, Panoram a histórico da cultura jurídica europeia,
Mem Martins, Publicações Europa-Am érica, 1998.
10 GARRIGA, Carlos, “Gobierno y justicia...”, ob. cit.; MANNORI, Luca e SORDI, Bernardo, “J usticia
y adm inistración”, Maurizio FIORAVANTI (ed.), El Estado m oderno en Europa, Madrid, Trotta,
20 0 4, pp. 65-10 2.
11 Biblioteca Nacional de Lisboa (BNL), Seção de Reservados, Códice 8527, p. 6.
12 Idem , Direito Público de Portugal, Parte Prim eira, p. 51. Vale dizer que a existência das m esm as
décadas seguintes. Mas críticas a ela seriam feitas, anos depois, por António
Ribeiro dos Santos, um dos m ais im portantes intelectuais e políticos da virada do
século que questionaria, em parte, o próprio paradigm a jurídico tradicional. Sem
pôr em causa a estrutura do regim e absoluto, Ribeiro dos Santos procurava
apresentar um conceito de “Leis Fundam entais” em que a nação, entendida com o
dotada de “vontade” própria, teria tido participação ativa no pacto estabelecido
desde o m om ento das Cortes de Lam ego, e m esm o que o exercício do poder do
m onarca deveria ter alguns freios contra a usurpação de poder (afirm ava ele que
Portugal seria um a m onarquia tem perada). Não há dúvida que sua reflexão
expressava o tom de m udança operado no universo político português de fins do
século XVIII, fortem ente m arcado pelos acontecim entos revolucionários
ocidentais.
Mesm o assim , a legitim idade da m onarquia portuguesa subjacente a tais
concepções fundava-se na sua m atriz européia, já que a Am érica não teria papel
ativo nessa História. Expressão idêntica, senão ainda m ais contundente, ocorreria
na Espanha, em que o cam po do direito pátrio igualm ente afirm aria o caráter
peninsular da m onarquia, evidenciando os distintos papéis políticos entre am bos
hem isférios, ainda que os discursos políticos – igualm ente pautados pela Ilustração
e suas reform as – enfatizassem um reconhecim ento da igualdade entre
peninsulares e am ericanos. Estudos recentes discutem com o foi possível, na época,
distinguir entre a “nação espanhola” – com o um construto europeu, identificado
com valores cristãos e civilizacionais, e que congregava as várias nacões provinciais
existentes na península- e a “m onarquia” (Coroa), essa sim com um caráter
pluricontinental que englobava seus dom ínios d´ além -m ar 13 . A im plosão dessa
concepção seria especialm ente dram ática a partir da crise de 180 8, quando
intentar-se-ia igualar todos os territórios sob a égide de um a m esm a nação
soberana, ao m esm o tem po em que ganhava força o discurso das autonom ias locais
previstas na concepção tradicional da m onarquia espanhola.
Vê-se que am bigüidades sem elhantes perm eariam os discursos dos
ilustrados no lado português, em que a projeção da unidade tensionava níveis de
distinção entre os territórios da m onarquia, colocando em disputa as concepções de
soberania sobre os m esm os. No entanto, elas puderam ser m elhor am algam adas na
construção da idéia de m onarquia unitária se a com pararm os com as defesas da
autonom ia dos antigos reinos existentes no m undo espanhol e hispano-am ericano.
O que não significa inexistências de fissuras, nem m esm o seu reforço, quando
falam os, em especial, dos dom ínios am ericanos e dos discursos sobre sua
diferenciação em relação ao espaço da m etrópole.
Tais questões aparecem , de form a veem ente, na literatura produzida na
Am érica portuguesa no século XVIII, em especial na sua segunda m etade, quando a
cunhada expressão “viv er em colônias” sintetizava m ultifacetados significados
desse processo. Ou seja, um abalo entre o “ser português”, pertencente ao universo
dos valores m onárquicos e católicos vinculados à dinastia, e igualm ente diferente
dos m etropolitanos pela sua condição, sua especificidade no além -m ar. Alteridade
esta que, com o bem dem onstraram István J ancsó e J oão Paulo Pim enta, conviveu
desde o século XVI com as suas diversas form as de pertencim ento local am ericano
-com o baianos, pernam bucanos, paulistas, etc., e m esm o com “m azom bo”, term o
que, embora m uito m enos utilizado, m ais se aproxim a do criollo hispano-
am ericano-, por vezes de form a nem tão pacífica. 14 A diferença em relação ao
m om ento aqui citado, exatam ente quando o projeto de unidade im perial ilustrado
se colocou em prática, é que, pela prim eira vez, essas m últiplas form as de
identidades locais puderam até ser vistas com o antagônicas em relação ao
português, m esm o sem a construção de um a unidade alternativa a ela. Tem pos
m ovediços do ponto de vista da percepção das novidades políticas e intelectuais.
14J ANCSÓ, István e PIMENTA, J oão Paulo, “Peças de um m osaico (ou apontam entos para o estudo
da em ergência da identidade nacional brasileira)”, Carlos G. MOTA (org.), Viagem in com pleta. A
experiência brasileira 150 0 -20 0 0 , São Paulo, SENAC, 20 0 0 , pp. 127-175; sobre a não ocorrência de
term o sim ilar à criollo na Am érica portuguesa, ver MONTEIRO, Nuno, “A circulação das elites no
im pério dos Bragança (1640 – 180 8): algum as notas”, Tem po, Universidade Federal Flum inense,
20 0 9, Vol. 14, Nº 27, pp. 65-81.
17 PIMENTA, J oão Paulo, “Literatura e condição colonial na Am érica portuguesa (século XVIII)”,
J oão FRAGOSO e Maria de Fátim a Silva GOUVÊA (orgs.), História do Brasil Colon ial 1720 -1821,
Rio de J aneiro, Civilização Brasileira, 20 14, pp. 595-634.
18 STUMPF, Roberta G., Filhos das Minas, Am ericanos e Portugueses: iden tidades coletivas na
capitania das Minas Gerais (1763-1792), São Paulo, Hucitec, 20 10 .
19 Prefácio de István J ancsó, KANTORIris, Esquecidos e renascidos. Historiografia acadêm ica luso-
21 Idem , p.95.
22Seguim os aqui J ANCSÓ, István, “A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política no final
do século XVIII”, Fernando NOVAIS, (org.), História da vida privada no Brasil, São Paulo, Cia. das
Letras, 1997, pp. 387-437.
23 Para um a síntese do acontecim ento tendo em vista o processo político geral nos dois hemisférios,
ver SLEMIAN, Andréa e PIMENTA, J oão Paulo, A Corte e o m undo. Um a história do an o em que a
Fam ília Real portuguesa chegou ao Brasil, São Paulo, Alam eda, 20 0 8.
24 PIMENTA, Brasil y las independencias de Hispanoam érica, Castelló de la Plana, Publicacions de
la Universitat J aum e I, 20 0 7.
25 Periódico publicado desde junho de 180 8, em Londres, local onde o seu redator se exilara após ter
desem penhado im portantes funções no governo português em Lisboa, e ter sido perseguido sob a
acusação de m açonaria.
“Um a das causas principais do m au Governo do Brasil era o desleixam ento, quase
irrem ediável, da Corte de Lisboa, a respeito daquela im portante Colônia, o que era
ocasionado pela atenção, que era necessário prestar às relações estrangeiras, com o que
esquecia naturalm ente a adm inistração de um território, que por m ais interessante que
fosse, sem pre se reputava secundário, em conseqüência da m agnitude dos outros
objetos, que concorriam com ele”. 27
de Janeiro (180 8-1824), São Paulo, Hucitec, 20 0 6; LENHARO, Alcir, As tropas da m oderação. O
abastecim ento da Corte na form ação política do Brasil: 180 8-1842, Rio de J aneiro, Secretaria
Municipal de Cultura / Departam ento Geral de Docum entação e Inform ação Cultural, 2ª ed., 1992.
Mas o que tam bém estava no discurso de Hipólito da Costa era uma
diferenciação, de certa form a conflitiva, entre portugueses peninsulares e
am ericanos na m edida em que estes últim os teriam sido tradicionalm ente
desvalorizados n o conjunto do Im pério. O que ganharia contornos ainda m ais
incisivos em Portugal, onde a crítica à política de D. J oão acusava-o de adotar um a
política am ericanista, ou seja, de estar m uito m ais sensível às questões do Novo
continente do que as do Antigo, cerne de legitim idade da m esm a m onarquia
conform e fora concebido n o Direito português. 29 No entanto, se as vantagens com o
traslado da Corte e o reforço dos vínculos m onárquicos eram evidentes em partes
do Brasil, o m esm o não valia para todo o resto. Respostas e posicion am entos
contundentes a essa política tam bém reforçaram que a Am érica portuguesa, o
Brasil era com posto de partes diversas. A m ais radical delas viria, sem dúvida, de
Pernam buco.
Em 1817, a província pernam bucana foi palco de um m ovim ento
revolucionário: a criação de um governo independente em nom e da “soberania da
nação”, cujo projeto previa a im plem entação de um a república na região por m eio
da convocação de um a Assem bléia Constituinte, república esta que m al teve tem po
para se instalar devido à dura repressão e vitória sobre o m ovim ento três meses de
seu início. A negação ao governo joanino instalado no Rio de J aneiro foi violenta.
Pernam buco era então um a das m ais ricas províncias da Am érica, a qual crescera
significativam ente em seu volum e de negócios, sobretudo pelo aum ento na
exportação do algodão desde fins do século anterior, e já dava m ostras de sentir-se
lesada diante do favorecim ento dado político dado ao Centro-Sul a partir de 180 8 .
O m ais significativo é que a radicalidade dos acontecim entos aí vividos contou com
a m obilização de am plos setores sociais. Dessa form a, slogans com o o de “p atriota”
-codinom e que os pernam bucanos adotaram vis-a-vis à experiência revolucionária
francesa de uso do term o em sua conotação política e não associada apenas ao
lugar de nascim ento- e da “perfeita igualdade” entre os hom ens, difundiram -se
com extrem a rapidez. O que talvez explique as próprias am bigüidades vividas
29ARAÚJ O, Ana Cristina, ob. cit.; ALEXANDRE, Valentim , Os sentidos do Im pério – questão
nacional e questão colonial na crise do Antigo Regim e português, Porto, Afrontam ento, 1993.
dentro do m ovim ento, diante do tem or que se rom pesse o status quo da sociedade
que, vale lem brar, era profundam ente hierarquizada e escravista. 30
Dessa form a, tendo em vista os termos que aqui nos interessam , o projeto
pernam bucano reconhecia um a enor m e distinção entre as partes que form avam o
Brasil, ao m esm o tem po em que negava a herança m onárquica na criação de um a
nova ordem . Um a visível proposta de ruptura em relação ao program a que já havia
sido valorizado pelos reform istas, desde o século XVIII, e ressignificado a partir de
18 0 8 com a Corte no Brasil. Não à toa, o term o nação quase não aparece nas
proclam as pernam bucanas de 1817, já que o m esm o era carregado de significado
em relação ao passado (presente) português. Mas a ruptura total com a “nação
portuguesa” se m ostraria, no m ínim o, problem ática por parte dos envolvidos que
tinham bens a perder, pois que a m anutenção dos vínculos que ligavam os
proprietários e com erciantes à ela era, sem dúvida, um a form a de diferenciá-los
dos dem ais.
O descontentam ento com o direcionam ento político em preendido pela Corte
de D. J oão causaria respostas igualmente contundentes em Portugal. Lá, desde o
m esm o ano de 1817, já se projetava um a resposta radical a esse processo; m as foi
apenas em agosto de 1820 , pouco depois do segundo m ovim ento liberal sair
vitorioso na Espanha, que um projeto constitucional tom aria corpo na cidade do
Porto, reunindo vários e distintos grupos sociais. O m ovim ento ali projetado
possuía um caráter distinto do de Pernam buco: fez-se em nom e da “regeneração”
da nação portuguesa m esm o tendo com o base a reconfiguração da m onarquia em
um regim e constitucional, o que poderia trazer, ao m enos poten cialm ente, rupturas
e/ ou posicionam entos m ais radicais. O fato é que ele rapidam ente ganharia
adeptos em todo Portugal, onde seriam convocadas Cortes Gerais para nação com o
objetivo de form ar um novo pacto político ao qual deveria ser subm etido o monarca
que deveria im ediatam ente retornar ao Velho Continente. As m esm as Cortes
contariam com adesões de províncias am ericanas que, logo no início do ano de
18 21, juravam a elas obediência, deslegitim ando a autoridade do governo do Rio de
J aneiro. A prim eira delas foi Belém do Grão-Pará, capital que m ais perdera com a
m udança da Corte e a crise em Portugal desde 180 7, devido ao seu estreito vínculo
com ercial com Lisboa. A ela se seguiu o juram ento produzido em Salvador, na
Bahia, forçando o m onarca, que se encontrava na nova Corte sem expectativa
im ediata de voltar à Europa, a aceitar o m ovim ento constitucional por m eio de um
ato público. Desta feita, era já im possível conte-lo.
31SILVA, Ana Cristina Nogueira da, “Nação federal ou Nação bi-hem isférica? O Reino Unido de
Portugal, Brasil e Algarves e o ‘m odelo’ colonial português do século XIX”, Alm anack braziliense,
Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, m aio 20 0 9, Nº 0 9, p. 71.
iguais para todos. Tal concepção era predom inante nas Cortes no m om ento em que
os am ericanos com eçaram , paulatinam ente, a tom ar assento, e tinha claram ente o
propósito de evitar que soluções sem elhantes a projetos federais tom assem corpo.
Foi sob essa égide, que as Cortes portuguesas conceberam um projeto para
organização provisória do governo das províncias do ultram ar, o qual foi
estabelecido no decreto das J untas de Governo, aprovado em setem bro de 182132 . A
m edida tinha com o objetivo criar um estatuto constitucional para as antigas
capitanias do Brasil, e, sobretudo, controlar o poder de ação do príncipe D. Pedro
que se encontrava no Rio de J aneiro com o regente de seu pai D.J oão, que fora
obrigado a voltar a Portugal em abril. Além disso, ela deve ser considerada um a
verdadeira ruptura com a prática vigente: em substituição aos governadores ou
capitães generais existentes nas partes do Brasil, escolhidos pela Coroa, criava-se
um governo com posto de cinco ou sete m em bros, todos elegíveis na própria
localidade, sujeito à autoridade central em Portugal.
O decreto das J untas de governo atribuía, no artigo 6º , à com petência local
“toda a autoridade e jurisdição na parte civil, econôm ica, adm inistrativa, e de polícia,
em conform idade das leis existentes, as quais serão religiosam ente observadas, e de
nenhum m odo poderão ser revogadas, alteradas, suspensas, ou dispensadas pelas
J untas de Governo”.
Por m ais que alguns pontos do citado decreto fossem m otivos de tensão – em
especial, o que dizia respeito à instituição dos governadores de arm as que, com o
nova autoridade m ilitar, estariam sujeitos diretam ente ao governo de Lisboa (art.
14 o )– o form ato das J untas provisórias atendia a m uitas das expectativas das
províncias na Am érica n o regim e de seus interesses, sobretudo as do Norte, com a
valorização política de sua auton om ia perante o governo do Rio de J aneiro. Nesse
sentido, os deputados do Brasil que já se encontravam na Casa legislativa lisboeta
tanto não fizeram nenhum a objeção ao decreto, com o igualm ente aprovaram um
outro, no m esm o dia, que exigia agora a volta de D. Pedro à Lisboa. 33
32 Diário das Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa [doravante DCG]. Sessão de 29
de setem bro de 1821. Decreto sobre as J untas Provisórias do Governo.
33 Aqui seguim os BERBEL, Márcia Regina, A n ação com o artefato. Deputados do Brasil n as Cortes
Mas à m edida que m ais deputados ultram arinos chegavam à nova Casa
Legislativa, em função dos processos eleitorais terem sido realizados
separadam ente em cada um a das províncias, várias discussões que envolveram a
Am érica, em especial as com erciais, foram tornando-se especialm ente tensas.
Dessa form a, a defesa da unidade da nação – no sentido revolucionário adquirido
pelo vocábulo para defender um a totalidade abstrata em detrim ento da concepção
corporativa de reinos ou partes– , feita sobretudo pelos portugueses peninsulares, e
que ficaria conhecida com o integracionista, seria alvo de críticas por parte
daqueles que argum entavam / defendiam as especificidades das partes para
resolução de im portantes m edidas. Assim criticava-se igualm ente a aprovação do
decreto de governo para as províncias do Brasil antes m esm o que os deputados de
todas elas, ou de um núm ero expr essivo, estivessem presentes nas Cortes. A
posição justificava-se pela diversidade da Am érica, cujos interesses não poderiam
ser representados sem a presença dos eleitos por cada um a das partes. Dessa
form a, colocava-se em xeque a idéia de um a nação portuguesa unitária, sobretudo
após a chegada e apresentação do projeto que os deputados de São Paulo – um a
província do Centro-Sul do Brasil- apresentariam nas Cortes, em 1822.
Antes de tratarm os desse projeto, vale dizer que, do outro lado do Ocean o,
os ânim os com eçariam a se acirrar, sobretudo nas partes do Centro-Sul do Brasil. A
am eaça que as Cortes passaram a representar de perda da hegem onia do Rio de
J aneiro, tanto por m eio da proposta de igualdade entre as províncias como pela
exigência da volta do Príncipe para a Europa, m obilizaria vários setores que se
haviam fortalecido na últim a década para m anutenção de sua posição. Os
representantes paulistas seriam seus principais porta-vozes na Casa legislativa por
m eio da defesa da condição de Reino alcançada pela Am érica desde 1815; o que se
ancorava na perm anência do Príncipe Regente D. Pedro no Brasil e na m anutenção
de um centro de poder executivo no Rio de J aneiro (em desobediência aos decretos
ali aprovados em 1821). Dessa form a, paulistas aqui foram os que defenderam um
projeto cuja abrangência era a do Brasil dentro da unidade portuguesa.
Na discussão do projeto de São Paulo, enquanto parte dos representantes de
Portugal evocava o nom e da nação com o elo entre am bos os hem isférios, os que o
apoiaram defendiam que, após os acontecim entos de 1820 -18 21, a m esma nação
estaria ainda para se form ar já que a anterior identidade portuguesa não gar antiria
os term os do novo pacto entre as partes. Entre eles, o padre Diogo Antônio Feijó,
eleito deputado por São Paulo, seria explícito:
“Nós ainda não som os Deputados da Nação, a qual cessou de existir desde o m om ento
que rom peu o antigo pacto social. Não som os Deputados do Brasil, de quem em outro
tem po fazíam os parte im ediata; porque cada província se governa hoje independente.
Cada um é som ente Deputado da província que o elegeu, e que o enviou”. 34
que defendiam perm anecer unidos a Portugal ou não. Não há com o negar que a
própria presença do príncipe contribuíra para seu sucesso, m im etizando a
possibilidade de form ação de um a unidade soberana. Além do quê, ele agira rápido,
convocando im ediatam ente para o ano a instalação de um a Constituinte que
deveria atender aos anseios e interesses dos até então portugueses do Brasil.
A Assem bléia Legislativa e Constituinte do Im pério do Brasil iniciou seus
trabalhos em 3 de m aio de 1823, em cum prim ento à palavra de D. Pedro de que
m anteria a sua convocação após a Independência. É fato que ela foi aberta com
pouco m ais da m etade do núm ero dos deputados esperados, já que m uitos
representantes chegariam nos m eses seguintes, enquanto alguns nem tiveram
tem po para tom ar parte dela em funções dos conflitos ocorridos em algum as
províncias. Logo no início da abertura dos seus trabalhos, duas questões,
aparentem ente de m era form alidade, m obilizaram os deputados: n a sala legislativa,
a cadeira do presidente dos trabalhos ficaria no m esm o nível que a do Im perador?
E deveria o representante da m onar quia, todas as vezes que lá adentrasse, estar
coberto com a coroa, m anto e cetro im perial? 39 A análise das disputas na resolução
da dessa aparente banalidade, indicam que a elas estava subjacente um a expressa
necessidade da resolução do lugar dos poderes em construção, m onar quia e
Assem bléia, ou, para serm os m ais pr ecisos, executivo e legislativo, na criação de
um governo constitucional. E m esm o um a disputa entre distintas concepções de
soberania para o Im pério do Brasil diante da árdua tarefa de construção de um
novo Estado independente.
Deputados que apoiavam o projeto de Im pério, entre eles o m esm o Antônio
Carlos de Andrada que nas Cortes de Lisboa havia defendido que a nação
portuguesa ainda não se havia constituído constitucionalm ente - argum entariam
que um novo pacto já estava form ado, devido ao fato de D. Pedr o estar
“reconhecido Im perador pela m esm a nação que nos fez deputados; e antes que
fôssem os deputados já estava aclam ado Im perador por esta m esm a nação”. 40
Mereceria assim o Im perador sua distinção n a sala da Assem bléia, bem com o teria
39 Diárioda Assem bleia Geral, Constituinte e Legislativa do Im pério do Brasil- 1823 [DAG] v.1,
sessão de 30 de abril.
40 DAG, v.1, 11 de junho, p. 20 2.
“Não sou nem serei nunca de parecer que desde já se declarem abolidas as J untas de
Governo: é um a instituição que os Povos esperaram , que receberam com gosto, e que
tanto tem respeitado que ainda quando na desordem têm insurgido contra algum as
J untas, é para as substituírem por outras ainda tem porárias, m as nunca por um só
indivíduo.”41
“O que nos cumpre averiguar é, se, rebus sic stantibus, podem os adm itir na
Constituição do Im pério essa federação? De certo qu e não; porque quando os Povos do
Brasil se deram as m ãos, e proclam aram a sua Independência, foi com a pronunciação
de u m Governo Monárquico, que se estendesse à todas as partes do Im pério.” 42
42 Discurso de Manuel J osé de Sousa França. DAG, v.3, 17 setem bro, p. 35.
43 Respectivam ente, decretos de 12 e 13 de novem bro de 1823.Coleção das Leis do Im pério do Brasil
de 1823, Rio de J aneiro, Im prensa Nacional, 1887.
44 PIMENTA, J oão Paulo e FARAH, Cam illa, “Brasil encuentra a México: un episodio paradigm ático
de las independencias (1821-1822)”, 20 / 10 Mem oria de las Revoluciones en México, México, RGM
Medios, 20 10 , Nº 0 9, pp. 222-237..
nos m oldes ocorridos em 1817, nem m esm o entre as elites. Dessa form a, não se
pode negar o papel da força m ilitar m obilizada pelo Rio de J aneiro para a
pacificação de algum as províncias, desde 1822, com o fator im portante par a que o
ato de D. Pedro pudesse ser referendado, m as crem os que ela não explica todas as
peças em disputa no tabuleiro, um xadrez m ais com plicado. Para tanto, vale m arcar
algum as especificidades no tocante à construção de alternativas constitucionais, e
de o sentido de soberania vinculando unidade política e m onarquia sem aparentes
distinções entre seus territórios, colocava o Im pério do Brasil em um processo
particular em relação aos vizinhos de tradição espanhola desde 180 7.
Isso porque, diferentem ente dos processos ocorridos após o vazio de poder
vivido pelos dom ínios espanh óis na Am érica, em que proposições m uito m ais
radicais e de defesa dos “direitos dos povos” foram m uito com uns na inviabilização
de novos pactos e governos, a Am érica portuguesa viveria um ritm o diverso. 45
Prim eiram ente, pela periodização. O m ovim ento revolucionário no m undo luso
ocorreu ao m enos dez anos depois do espanhol, quando o m undo já vivia um a onda
conservadora que, de algum a form a, “dom esticara” as proposições radicais
francesas que assustaram o m undo em fins do século XVIII. Desta form a, a idéia da
nação soberana adequava-se a um a perspectiva m onárquica constitucional m ais
m oderada. Mais que isso, o Im pério português não vivera a acefalia da legitim idade
dinástica central, pois que a Corte decidira atravessar os m ares em 180 7,
consciente que o contrário poderia implicar a perda do Brasil. Dessa form a, a base
de soberania do m onarca e do Im pério, tal qual form ulada pelos ilustrados
portugueses desde o século XVIII, teria sua longevidade ainda que em um a
roupagem distinta e para form ação de algo n ovo, em 1822, para a Am érica.
Mas daí tam bém vinham os lim ites e fraquezas do regim e, e a unidade do
Brasil seria ainda construída, a duras penas, e com visíveis distinções internas
entre a Corte e as províncias, ao longo do Im pério. Vale m encionar que o novo
Im perador, herdeiro da dinastia portuguesa, seria obrigado a abdicar em 18 31,
quando um a crise evidenciava que as fissuras no arranjo im perial não eram
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ARAUJ O, Ana Cristina, “O Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, 18 15/ 18 22”,
Revista de História das Idéias, Universidade de Coim bra, 1992, Nº 14, pp.
233-261.
BERBEL, Márcia Regina, A nação com o artefato. Deputados do Brasil nas Cortes
portuguesas 18 21-1822, São Paulo, Hucitec/ Fapesp, 1999.
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