Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Cristiane Derani*
RESUMO: O artigo inicia com a análise da função política do Estado e suas transformações,
para chegar à ação estatal fundada nas políticas públicas. Destaca na construção de tais
políticas a questão da democracia e aponta a importância da Constituição para a realização
de ações que possam ser adequadas à consecução dos direitos fundamentais.
22
2. Alteração institucional: no interior D entro dos princípios extraem -se
da adm inistração, m udança estrutural mandamentos. Ao ler que a “ordem econômica
ou organizacional. Como exem plo de [deve estar] fundada na valorização (...) da
modificação estrutural, tem-se a criação das livre iniciativa”, tem-se ao mesmo tempo um
Agências como conseqüência da política de princípio e um comando de ação. O princípio
desestatização do Estado. Porém, a alteração da livre iniciativa se desdobra no preceito
pode ser menos visível e mesmo não implicai* lógico de que aqueles que integram a ordem
mudança da estrutura do Estado, mas traz econômica - os agentes econômicos - devem
novos atores privados pelo processo licitatório, se comportar de tal modo que respeitem a
atribui novas obrigações a servidores liberdade de iniciativa dos demais.
públicos - por exemplo, com a criação de A norma política, inicialmente, deve prever
um novo programa de assistência como o a competência, isto é, quem faz a política,
“leve leite”. Instituição é compreendida quem estaria autorizado. A autorização implica
aqui como um espaço de uma ação;pública um comprometimento. Ou seja, se a norma
ou reconhecida publicamente pelo direito. atribui a esferas políticas ou órgãos
3. Ações públicas propriamente ditas: governamentais o poder para realizar atos e
construção, realização de ações. alcançar objetivos, sua execução pode ser
Os valores norteadores das políticas cobrada por aqueles a quem os benefícios da
públicas são princípios normativos que realização da norma se destinam; aqueles que
dispõem sobre a ética do que deve ser e são sofrem os efeitos da realização ou não da
colocados na Constituição de maneira norma jurídica terão o direito subjetivo de
heterogênea: são finalidades, parâmetros, reclamar a ação dos sujeitos autorizados,
diretrizes, instrumentos, como já afirmado. porque a ação lhes diz respeito.
Os princípios são indispensáveis para Portanto, políticas públicas são
a construção das políticas públicas, seja concretizações específicas de normas
pela indicação dos fins a serem alcançados, políticas, focadas em determinados objetivos
seja pela definição dos parâm etros da concretos. A norma política é o início de uma
atividade política. política porque ela já anunciará o quê, como
Fins a serem obtidos, parâmetros das e para quê fazer. Política pública usa de
ações, programas de ações - indicadores das instrumentos jurídicos para finalidades
políticas, instrumentos e caminhos para a políticas, isto é, toma os preceitos normativos
realização das ações -, tudo isto é normatizado, para a realização de ações voltadas àqueles
inicialmente, pela Constituição. Normas objetivos que se reconhecem como necessários
reguladoras da construção de políticas para a construção do bem-estar.
públicas são normas políticas. A norma A realização de políticas públicas
política é prescrição que traz os elementos pelo Estado, concretizando preceitos
para construção da política pública. Como e constitucionais, perfaz o cumprimento de um
por que meios. Ela traz programas e também dever. Da mesma forma que compete ao
prescreve condutas. Estado a ação normativa especificando as
normas políticas constitucionais, a ele Juízo de legalidade ou constitucionalidade
também se impõe a ação executiva. da política não recai sobre ela como um todo,
Quando o Estado toma os valores e as mas sobre os textos normativos que dela
autorizações previstas na Constituição e na emanam ou sobre as ações que elas inspiram.
lei ordinária e produz normas, ele se vale de A política como um quadro de ações genéricas
seu dever de ação normativa. Contra a ação não consegúe ser questionada porque ela
normativa infiel aos preceitos constitucionais não chega a se impor sobre a realidade.
e legais, há o controle formal dos atos Indispensável para o questionamento da
normativos. Por sua vez, a ação prática deve constitucionalidade do conteúdo da norma
ser examinada e questionada quanto à sua política é a determ inação do ambiente
aceitação em termos dos valores e fins normativo, que é a referência fática verificável
definidos pelo direito. pela leitura do texto normativo.
Na distribuição do poder estatal há o Por exemplo, a disposição que prevê a
momento da elaboração dos mandamentos, progressividade do IPTU em função da
o momento da realização dos preceitos utilização inadequada de imóvel urbano
normativos e aquele de averiguação, se as hão pode ser questionada juridicamente
ações normativas e práticas estão conformes em seu campo fático. Juízo sobre sua
ao direito. O Judiciário será capaz de verificai* constitucionalidade só poderá ser feito no
a conformidade de uma norma quando ela aspecto formal - se a norma do estatuto da
for decorrência de um preceito genérico cidade responde ou não ao previsto no art.
preexistente. Não há juízo de validade da 182, §§ 4.°, II da CF. Esta norma não cria um
norma perante valores universais, mas âmbito normativo. Por sua vez, a lei do
adequação da norma ao contexto do direito município de São Paulo que define os
galpões e armazéns situados no espaço
existente. Em outras palavras, a análise do
urbano do município de São Paulo como
Judiciário sobre a constitucionalidade de
imóveis sujeitos a uma alíquota mais elevada
uma norma que especifica uma norma
de IPTU, discriminando-os por julgar sua
política deve estar fundada na aptidão destinação inadequada ao município, cria um
desta norma em realizar os princípios âmbito normativo. Neste caso, há um espaço
constitucionais que ela invoca. geográfico definido, e um juízo de ocupação
Uma norma política - que dispõe sobre deste espaço se exprime pela norma prescrita,
objetivos, finalidades, instrumentos, valores - optando-se pela rejeição daquela ocupação.
não há como ser questionada materialmente, Um dever ser traz junto consigo um poder
por causa de sua generalidade e abstração. ser, tem uma correlata pretensão de vir a ser.
Porém, desta lei-quadro decorrem ações Norma política é um mandamento e, por isto,
positivas práticas e normativas prescritivas de pode ser cobrada como prescrição de uma
condutas (imposições, permissões, proibições, prestação positiva e pode ser questionada em
autorizações). Neste momento é possível seu conteúdo.
verificar materialmente a realização dõ A norma constitucional que indica uma
dever estatal de realizar políticas. política estatal traz invariavelmente princípios
24
que se desdobram em finalidades, diretrizes chama de eficácia contida refere-se à forma
(caminhos), valores propriamente ditos. Esta de sua aplicação, visto que ele afirma ser
norma tem aplicação imediata e se destina diretamente aplicável tal norma. A atuação
ao Estado assim como aos sujeitos que do legislador teria o “escopo de lhes conferir
praticam os atos relacionados com a política plena eficácia e aplicabilidade concreta
que indica. Diversamente das chamadas positiva”.4 Segundo ainda o autor, estas
normas programáticas, estas normas não se normas são limitadoras do poder público.
destinam apenas ao Estado, mas têm como A atividade do legislador ordinário seria
destinatário os sujeitos sociais, pessoas de restrição:
físicas ou jurídicas que em suas ações Normas de eficácia contida, portanto, são
encontram-se no quadro tratado pela norma aquelas em que o legislador constituinte regulou
constitucional, obrigando-se a construir suficientemente os interesses relativos a
igualmente os seus fins, a partir da adoção determinada matéria, mas deixou margem à
dos valores e meios ali retratados. atuação restritiva por parte da competência
discricionária do Poder Público, nos termos de
Na teoria constitucional brasileira, conceitos gerais nelas enunciados.5
inúmeros constitucionalistas buscaram
diferenciar as normas constitucionais criando Além destas normas, o autor destaca as
classificações.1 Destaco a classificação do normas programáticas. Chama de normas
eminente professor José Affonso da Silva, programáticas aquelas a que o professor Eros
que, quanto à eficácia e aplicabilidade, define Grau denomina normas-objetivo.6 Afirma
três tipos de normas: normas de eficácia plena que são programáticos os direitos sociais,
e aplicabilidade direta, imediata e integral; culturais e econômicos, que necessitam de
normas de eficácia contida e aplicabilidade uma interferência do legislador. Ao contrário
direta e imediata, mas possivelmente não das normas constitucionais que enunciam os
integral; normas de eficácia lim itada: direitos individuais, que são de aplicabilidade
a) declaratórias de princípios institutivos ou imediata e direta.
organizativos; b) declaratórias de princípio Junta-se à Canotilho na formulação da
pro gramático.2 seguinte questão: “como pode (se é que pode)
Não obstante a classificação, afirma o uma constituição servir de fundamento
autor que “não é fácil determinar um critério normativo para o alargamento das tarefas
para distinguir as normas constitucionais de estaduais e para a incorporação de fins
eficácia plena daquelas de eficácia contida econômico-sociais, positivamente vinculantes
ou limitada”.3Aquilo que o eminente professor das instancias de regulação jurídica?”7
25
A exposição sucinta desse pensamento nas suas ações individuais adequarem-se
se fez necessária, porque é representativa da aos elementos enunciados da ação.
melhor doutrina do direito constitucional Os sujeitos são indistintamente o Estado
brasileiro. Contudo, sobre ela deve-se iniciar e as pessoas de direito privado, físicas e
um esboço de crítica. Não se trata de opor-se jurídicas, que, porventura, se encontrem
à classificação estabelecida, porque a concretamente no campo de ação tratado
intenção não é substituir um enquadramento pelo ‘dever ser’ constitucional. Daí o sentido
por outro. Trata-se de atualizar a interpretação de ‘política’ - como qualificativo desta
constitucional, adequando-a a uma práxis de espécie de norma constitucional - referir-se
concretização que é operada pelo Estado, nos à ação pública de sujeitos públicos e
seus três níveis de poder, assim como pelos privados, que têm em comum o fato de
sujeitos sociais em sua atividade não estatal. construírem a coexistência na “polis”.
De fato, o temor revelado na questão Norma política é norma de ajustamento
acima deve ser desvelado, e a Constituição de condutas sociais, do ponto de vista macro.
deve ser vista na sua força política. Há Não são normas que se preocupam com a
normas constitucionais - e não são poucas - pacificação de relações individualizadas,
que impõem a construção de políticas. Isto mas guardam o foco no desenvolvimento
não trai a força normativa e as origens do todo.
da Carta Magna. Revela, outrossim, um Essas normas políticas trazem como
desenvolvimento da norma estruturante característica a prescrição de princípios-
do poder político que, além de definir a fins, princípios-diretrizes (meios), princípios-
estrutura, organiza a própria atividade valores (modo), que se destinam imediatamente
indicando objetivos, meios, instrumentos, ao Estado e aos sujeitos privados. Não se trata
diretrizes {policies). São as normas políticas de “simples programas a serem desenvolvidos
propriamente ditas. Adotamos a crítica ulteriormente pela atividade dos legisladores
do professor Eros G rau8 à expressão ordinários”.9
programática, porém, remarcamos que estas A Constituição é um conjunto de normas
normas não dispõem apenas de objetivos do que se servem dos elementos da realidade na
Estado, mas prescrevem outros valores. sua prescrição e se destinam a construir, à
Sobretudo o que se deve acrescentar a sua imagem, esta realidade, pela sua
essas reflexões diz respeito aos sujeitos aplicação. Na prescrição de normas políticas,
destinatários do comando de ação. O comando é identificado um contexto social, por
de ação é complexo. Não há individualização exemplo o conjunto das atividades econômicas
de conduta, mas revela um campo, seus (art. 170), as relações entre os seres humanos
contornos e orientações, cabendo aos sujeitos e o ambiente (art. 225), a ocupação do espaço
26
urbano (art.182) etc. Em seguida, são que produzam ou possam produzir efeitos
atribuídos os princípios fins, diretrizes, distintos dos previstos pela norma política.
valores, visando conform ar o referido Não há tipificação de uma determinada ação,
contexto a um quadro constitucionalmente na forma de “Tatbestand”, na norma política,
construído. O poder e o dever de agir na mas há determinação dos resultados e dos
realização da configuração deste quadro caminhos para estes resultados que devem
estão nas mãos daqueles que diretamente ser respeitados e executados.
agem no referido contexto e no Estado, que A teoria constitucional que traduz este
dentro de sua competência deve agir como movimento de dinâmica realizadora da
poder normativo, executivo, fiscalizador e Constituição pelos sujeitos públicos e
julgador. Assim, o destinatário da norma é privados, numa constante imposição e
identificado formalmente pela atribuição de conformação do agir, é de Gõrg Haverkate.
competência, quando se trata do poder Para ele, a Constituição é uma ordem da
público, e materialmente, pela identificação reciprocidade, isto é, ela define os espaços e
dos sujeitos envolvidos no contexto o conteúdo da ação pública coordenada com
retratado pela Constituição. A Constituição as demandas da atuação privada. Há duas
vincula solidariamente - mas por imposição partes principais na Constituição: regras de
e coerção - os sujeitos, que se tornam atores organização estatal e finalidades do Estado.11
transformadores da sociedade na direção do Com base nesta teoria, é possível pensar
ideal constitucional. as disposições sobre finalidades do Estado
Uma norma política não é uma restrição e das atividades sociais que estão na
imposta pelo Estado, mas sim um complexo Constituição e são a base para a realização
conformativo do quadro social. O Estado dos direitos fundamentais. Esta teoria se opõe
Social fala por seus preceitos constitucionais à teoria formal unilateral, que apenas trata
conformadores da prática social e da ação das disposições literais de mandamentos,
política Estatal. Se a República Federativa é direitos e deveres.
um Estado social democrático de direito, Na teoria da disposição unilateral do direito,
então políticas específicas devem ser expressa-se a consciência da positividade
adotadas. E o mesmo documento que declara do direito de maneira especialmente aguda:
o princípio do Estado social declara um o direito é algo fazível. Uma teoria da
conjunto de políticas. A Constituição não reciprocidade coloca a realização do direito
cala diante da idéia do Estado social.10 Ela a sob suspeita, se mostra como um caminho
desenvolve e expõe seu conteúdo, impondo tortuoso da positividade do direito, na
condutas políticas complexas ao Estado. medida em que busca, de fato, o conteúdo
Configura-se infração à norma política jurídico de proposições, o que independe de
ações que se manifestam sob qualquer forma, elas serem apresentadas diretamente na forma
10 Cf. MÜLLER, F. Essais zur Theorie von Recht 11 V erfassungslehre - V erfassung ais
und Verfassung. Berlin: Dunker & Huinblot, 1990. G egenseitigkeitsord nu ng. M ünchen, Verlag C.H.
p .178-182. Beck, 1992. p.23.
27
de conduta ou na forma de princípios e riquezas políticas.14 Haverkate é definitivo:
direitos.12 “Numa Constituição, um povo organiza
A teoria da reciprocidade conduz juridicamente seu tratamento com a incerteza
para uma visão realista da formação e coletiva”.15
desenvolvimento da Constituição. A validade A Constituição do Estado constitucional
de uma Constituição não chega a ser é uma ordem da reciprocidade produtiva dos
esclarecida sem se recorrer ao modelo da cidadãos mediada pêlo direito. Formalmente,
reciprocidade, pois é por ela que se percorrem ela se m ostra como uma norma posta
os caminhos da efetivação. A teoria da unilateralm ente (conceito formal de
reciprocidade toma o conhecimento da Constituição). Materialmente, ela deve ser
legalidade do direito positivo existente na compreendida como a promessa recíproca
teoria da unilateralidade e o transforma, dos cidadãos, como sujeitos de direito de se
porque é capaz de captar a contextualização respeitarem e de se darem espaço recíproco
da discussão jurídico-política que envolve a para o desenvolvimento equânime de cada
um (conceito material de Constituição).16
formação e realização do direito.
Em conclusão desta reflexão inicial sobre
Haverkate qualifica de maneira muito
as normas políticas na Constituição, afirmo
inspirada a Constituição como uma “razão a necessidade de assum ir-se a força
provisória”.13 Segundo o autor, a Constituição normativa das normas políticas, essenciais
tem sido assinalada freqüentemente como para a construção dos direitos fundamentais.
uma base consensual. Melhor seria dizer: a Em outras palavras, a efetivaçãp das normas
Constiuição é uma base de dissenso políticas é indispensável para a formação de
consentido. Ela oferece uma regulação de sujeitos autônomos, capazes de visualizar no
como um com o outro podem disputar, seja texto constitucional a efetiva possibilidade
pela apresentação de uma ordem de disputa de seu futuro e não um conjunto afônico de
como ordem processual, seja pela regulação palavras etéreas. A normatividade da norma
daquilo que materialmente pode conter a política aporta segurança no que concerne
disputa. A Constituição é uma ordem mínima às políticas públicas, assim comoji ética e
que possibilita uma disputa civilizada das aos rumos das ações privadas.
14 Idem, p. 143.
12 Cf. HAVERKATE, G. Opus cit, p. 113. 15 Idem, p. 153.
13 Idem, p. 142. 16 Ibidem.
28