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POLÍTICA PÚBLICA E A NORMA POLÍTICA

Cristiane Derani*

RESUMO: O artigo inicia com a análise da função política do Estado e suas transformações,
para chegar à ação estatal fundada nas políticas públicas. Destaca na construção de tais
políticas a questão da democracia e aponta a importância da Constituição para a realização
de ações que possam ser adequadas à consecução dos direitos fundamentais.

1 SURGIMENTO quem finca os limites do exercício da liberdade


e os faz respeitar. Com isto esperava-se a paz
A política pública é um fenômeno sociál e o bem-estar dos cidadãos, o que não
oriundo de um determinado estágio de
se concretizou.
desenvolvimento da sociedade. E fruto de
Atuações mais profundas foram
um Estado complexo que passa a exercer
reclamadas desta organização, que passaram
uma interferência direta na construção e
reorientação dos comportamentos sociais. a ocorrer mediante determinações legais.
O Estado passa para além do seu papel de Afinal, a característica fundamental do
polícia e ganha uma dinâmica participativa Estado Moderno é o exercício do poder
na vida social, moldando o próprio quadro pòr previsão legal. A construção da
social por uma participação distinguida pelo legalidade e a centralização da força fazem
poder de impor e pela coerção. parte desta entidade que busca por seus
O Estado moderno surge para dar garantia atos, constantem ente, a legitim idade.
e segurança nas relações burguesas que se A justificativa do mando estatal não se
desenvolviam confrontando-se com a foca na força ou em algum outro tipo
organização feudal. Com a monopolização de discriminação natural ou social. E a
da força e das normas de proceder, é o Estado sociedade, pela participação política, que
define e justifica o mando do Estado.
Assim, conjuntam ente, legitim idade e
* Doutora em D ireito. Professora de D ireito legalidade se constroem e se estabelecem
Ambiental na USP. no espaço público.
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O marco do Estado Modemo é fundamental na composição das forças políticas como
para a compreensão da política pública. nò poder estatal que abre o seu processo
A sociedade outorga um poder de mando de decisão para aqueles que não estão
àquela entidade e procura assegurar que essas institucionalm ente vinculados com as
ações de poder e de mando guardem certa atividades burocráticas. Não obstante, este
previsibilidade no âmbito da representação espaço público continua sendo organizado
política, pela via da legalidade. Tal pressuposto e delimitado pelo Estado no exercício de seu
permanece na ação para a construção de poder normativo.
políticas públicas, que serão políticas que O Estado é ele próprio uma formação
partem da lei, desenvolvem-se pela lei e são social - disto não se pode esquecer. Se ele
exigidas e reguladas com base na lei. concede ou realiza algo em sociedade, na
O Estado Moderno consolida-se por uma verdade ele concretiza em atos um poder que
identidade distinta à da sociedade civil com lhe fora antes outorgado. Quando ele faz é
a qual ele se contrapõe. Com isto, o poder porque ele deve fazer, e este dever se origina
público se diferencia do poder privado. de uma convenção social. O Estado só faz
O poder público tem previsibilidade para porque deve, e ele deve porque há uma norma
o seu exercício. Seu poder é um dever que impõe aquilo que ele deva fazer. Esta
legalmente atribuído. Já o poder privado é norma existe- como resultado de embates
exercido segundo a liberdade de iniciativa sociais que permitiram aquele resultado.
do sujeito que, tão-somente, se submete à Então, em última análise, o Estado faz aquilo
conformação legal do seu livre agir. que a sociedade quer que ele faça.
A política no seu sentido primordial não Conforme se configurarem os resultados
é ação do Estado. E uma ação da comunidade dos embates sociais, teremos uma determinada
(ação da polis). Quando a comunidade se configuração de deveres do Estado. Porque
torna Estado e sociedade civil, a política toma este é o Estado legal, Estado Moderno,
outros contornos, definem-se duas partes Estado que tem uma representatividade.
distintas que se relacionam de maneira mais É um Estado que se faz como resultante de
ou menos recíproca, pois não há eqüidade. um processo de legitimação e decisão social
Em princípio, a relação se dá entre um poder não homogênea, mas uma resultante que é
pelo qual se formam leis e se organiza a força indeterminável. As decisões do Estado não
e sujeitos que se submetem à lei e à coerção. são algo pré-dado, mas o resultado de uma
Esta política, todavia, que saiu do âmbito determ inada correlação de forças num
comunitário e ganhou o espaço estatal determinado momento. Isto não significa que
moderno se expande na evolução do Estado impera a lei do mais forte.
Moderno no século XX, para um compartilhar O Estado faz o que deve fazer, e aquilo
de intenções no espaço estatal e daqueles que que deve fazer é resultante de um processo
ocupam o espaço e se chama sociedade civil. social de decisão. Este processo de decisão,
Um novo espaço público se forma. Há, por sua vez, é resultante de um embate de
pois, um movimento histórico de centralização forças. Não se pode afirmar com isto que,
da força política e depois uma abertura, tanto necessariamente, a classe dominante ou
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aquele grupo que detenha um determinado 2 POLÍTICAS PÚBLICAS
tipo de poder espelhara nas ações do Estado
sua vontade. As estruturas democráticas do Enquanto o Estado era simplesmente a
Estado evoluem, a fim de que ele não seja o concentração da violência e do poder sobre
reflexo das forças dominantes na sociedade. os cidadãos, respaldado pela lei, espelhava
Isso ocorreu de fato até o século XIX, em suas decisões os interesses daqueles que
desencadeando um processo revolucionário o integravam, tinha-se um Estado fruto de
em que se contestava o Estado por ser o uma política de representação - ação social
“braço político da-burguesia”. para a construção de uma representação de
No século XX, o Estado se torna político. poder. Agora a atividade estatal estende-se
Ele se abre à participação e assimila os para uma prática identificada com a
embates, constituindo-se por uma composição finalidade social.
de forças. Incorporam-se à sua estrutura as Para isto, há uma modificação da estrutura
preocupações com os desníveis na forma do Estado e das instituições, e a política
de competências específicas para- assistência passa a ser uma política de construção
e programas visando minimizai* as diferenças de novas práticas sociais. E a política do
Estado Propulsivo ou Previdência, enfim
sociais, assim com a sua imagem de
representante da força social dominante. Estado Social, porque não vai apenas
Nesse cenário o Estado desenvolve adequar situações, mas buscará alcançar
atividade política como um processo social finalidades, com planejamento e criatividade.
de decisão, ruindo a divisão estanque entre O planejamento parte da observação e passa
Estado e sociedade civil, passando a ser a pela eleição de prioridades. A sociedade
arena e o partícipe da política forjada em participa do processo decisório, dentro do
contraposições e resistências. Esta nova espaço público organizado pelo Estado.
A política é construída, assim, no ambiente
figura e estes novos deveres de ação do
Estado são construídos inicialmente pela estatal, na medida em que ele seja efetivamente
norma constitucional, que, além dos textos o tomador de decisões. Sua criação se dá a
organizacionais, traz a definição de ações partir do reconhecimento de uma situação
concreta, visando à concreção futura de
efetivas e fins materiais a serem realizados.
Funções e ações são definidas para este valores não existentes. A finalidade é o norte
pelo qual deve se guiar a política. Ela
Estado que tem finalidades sociais a obter
representa um valor, que estará invariavelmente
por sua prática.
O Estado se racionaliza porque passa a inscrito no texto constitucional, representando
orientar suas ações para obtenção de o fundamento último da atuação ética do
finalidades sociais de reequilíbrio. Deixa Estado e da sociedade. A ação impositiva e
coordenada para o alcance destes fins ocorre
de refletir para ser aquele que compensará
para preencher um ambiente em que tais
e fornecerá meios para a obtenção de
reequilíbrio social. Ação estatal direcionada valores não são buscados naturalmente.
Enfim, a atividade de imposição de um
à obtenção de fins sociais é ação racional
conjunto de ações para o alcance de
voltada à melhoria do bem-estar.
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determinados valores só existe porque há universalizados. Eles comporão a política e
necessidade de rejeição e afastamento de uma se tornarão impósitivos, por se evidenciarem
ética existente e a construção de outra ética na forma jurídica como princípios normativos.
pautada no valor buscado. Aqui se constrói uma ética social e de ação
De fato, a construção de políticas públicas estatal da qual emanam direitos, deveres e
para a imposição concreta de valores últimos, garantias. A ética social equipara-se a um
instituídos constitucionalmente, vem, em quadro de prescrições normativas. No texto
última análise, afastando a ética liberal de normativo do Estado social a ética explicita-$e
realocação ótima da utilidade eficiente na jurid icam ente como vetor de condutas
busca da maior vantagem individual. O Estado públicas. Está no direito, não obstante seja
do século XX rejeita esta ética e busca construída a partir do reconhecimento dos
outra de valores fundantes da sociedade e elementos do concreto.
justificadores da existência do mando estatal. D efinindo-se, política pública é um
Estes valores estarão no direito, porque é nele conjunto de ações coordenadas pelos entes
que se constrói o Estado e se justificam suas estatais, em grande parte por eles realizadas,
ações. No direito são colocados os valores- destinadas a alterar as relações sociais
finalidade, que justificarão o complexo de existentes. Como prática estatal, surge e se
ações estatais para obtenção de finalidades cristaliza por norma jurídica. A política
transformadoras da sociedade. O direito, pública é com posta de ações estatais e
neste contexto, passa a ser essencialmente decisões administrativas competentes.
modificador para continuar estabilizador das Uma sociedade mais democrática, mais
relações sociais. Os fins sociais a serem consciente, com instrum entos de maior
alcançados estão no direito, assim como participação, é uma sociedade em que a
muitos dos meios para chegar até eles, todos política pública conterá de maneira mais fiel
na forma de norma-princípio. a força decisória da sociedade. Uma sociedade
A ação estatal parte do reconhecimento poderá conter campo e competência para
dos elementos e das relações sociais. Estas realização de políticas públicas, porém isto
se movem em torno de valores e constroem não significa que será uma política pública
uma ética. A definição de uma relação democrática.
social implica a definição concomitante de A política pública surge a partir de uma
determinados valores. Toda relação comporta construção normativa. Assim, estruturalmente
um conjunto de valores. a base da política é o direito.
A ação democrática pressupõe o outro, A construção da política se dá no interior
reconhecer o outro, compreender o outro e do Estado em três momentos:
trabalhar com o outro. Ética de convivência 1. Decisão estatal: feita por agentes
social, reconhecim ento em oposição à públicos competentes no interior do Estado
neutralização, implica a arte da convivência com maior ou menor participação social. Seu
dos confrontos e contraposição. Desta conteúdo e seus agentes estão circunscritos
relação social são colhidos valores que à atribuição constitucional e normativa de
deverão ser publicizados, generalizados, maneira geral.

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2. Alteração institucional: no interior D entro dos princípios extraem -se
da adm inistração, m udança estrutural mandamentos. Ao ler que a “ordem econômica
ou organizacional. Como exem plo de [deve estar] fundada na valorização (...) da
modificação estrutural, tem-se a criação das livre iniciativa”, tem-se ao mesmo tempo um
Agências como conseqüência da política de princípio e um comando de ação. O princípio
desestatização do Estado. Porém, a alteração da livre iniciativa se desdobra no preceito
pode ser menos visível e mesmo não implicai* lógico de que aqueles que integram a ordem
mudança da estrutura do Estado, mas traz econômica - os agentes econômicos - devem
novos atores privados pelo processo licitatório, se comportar de tal modo que respeitem a
atribui novas obrigações a servidores liberdade de iniciativa dos demais.
públicos - por exemplo, com a criação de A norma política, inicialmente, deve prever
um novo programa de assistência como o a competência, isto é, quem faz a política,
“leve leite”. Instituição é compreendida quem estaria autorizado. A autorização implica
aqui como um espaço de uma ação;pública um comprometimento. Ou seja, se a norma
ou reconhecida publicamente pelo direito. atribui a esferas políticas ou órgãos
3. Ações públicas propriamente ditas: governamentais o poder para realizar atos e
construção, realização de ações. alcançar objetivos, sua execução pode ser
Os valores norteadores das políticas cobrada por aqueles a quem os benefícios da
públicas são princípios normativos que realização da norma se destinam; aqueles que
dispõem sobre a ética do que deve ser e são sofrem os efeitos da realização ou não da
colocados na Constituição de maneira norma jurídica terão o direito subjetivo de
heterogênea: são finalidades, parâmetros, reclamar a ação dos sujeitos autorizados,
diretrizes, instrumentos, como já afirmado. porque a ação lhes diz respeito.
Os princípios são indispensáveis para Portanto, políticas públicas são
a construção das políticas públicas, seja concretizações específicas de normas
pela indicação dos fins a serem alcançados, políticas, focadas em determinados objetivos
seja pela definição dos parâm etros da concretos. A norma política é o início de uma
atividade política. política porque ela já anunciará o quê, como
Fins a serem obtidos, parâmetros das e para quê fazer. Política pública usa de
ações, programas de ações - indicadores das instrumentos jurídicos para finalidades
políticas, instrumentos e caminhos para a políticas, isto é, toma os preceitos normativos
realização das ações -, tudo isto é normatizado, para a realização de ações voltadas àqueles
inicialmente, pela Constituição. Normas objetivos que se reconhecem como necessários
reguladoras da construção de políticas para a construção do bem-estar.
públicas são normas políticas. A norma A realização de políticas públicas
política é prescrição que traz os elementos pelo Estado, concretizando preceitos
para construção da política pública. Como e constitucionais, perfaz o cumprimento de um
por que meios. Ela traz programas e também dever. Da mesma forma que compete ao
prescreve condutas. Estado a ação normativa especificando as
normas políticas constitucionais, a ele Juízo de legalidade ou constitucionalidade
também se impõe a ação executiva. da política não recai sobre ela como um todo,
Quando o Estado toma os valores e as mas sobre os textos normativos que dela
autorizações previstas na Constituição e na emanam ou sobre as ações que elas inspiram.
lei ordinária e produz normas, ele se vale de A política como um quadro de ações genéricas
seu dever de ação normativa. Contra a ação não consegúe ser questionada porque ela
normativa infiel aos preceitos constitucionais não chega a se impor sobre a realidade.
e legais, há o controle formal dos atos Indispensável para o questionamento da
normativos. Por sua vez, a ação prática deve constitucionalidade do conteúdo da norma
ser examinada e questionada quanto à sua política é a determ inação do ambiente
aceitação em termos dos valores e fins normativo, que é a referência fática verificável
definidos pelo direito. pela leitura do texto normativo.
Na distribuição do poder estatal há o Por exemplo, a disposição que prevê a
momento da elaboração dos mandamentos, progressividade do IPTU em função da
o momento da realização dos preceitos utilização inadequada de imóvel urbano
normativos e aquele de averiguação, se as hão pode ser questionada juridicamente
ações normativas e práticas estão conformes em seu campo fático. Juízo sobre sua
ao direito. O Judiciário será capaz de verificai* constitucionalidade só poderá ser feito no
a conformidade de uma norma quando ela aspecto formal - se a norma do estatuto da
for decorrência de um preceito genérico cidade responde ou não ao previsto no art.
preexistente. Não há juízo de validade da 182, §§ 4.°, II da CF. Esta norma não cria um
norma perante valores universais, mas âmbito normativo. Por sua vez, a lei do
adequação da norma ao contexto do direito município de São Paulo que define os
galpões e armazéns situados no espaço
existente. Em outras palavras, a análise do
urbano do município de São Paulo como
Judiciário sobre a constitucionalidade de
imóveis sujeitos a uma alíquota mais elevada
uma norma que especifica uma norma
de IPTU, discriminando-os por julgar sua
política deve estar fundada na aptidão destinação inadequada ao município, cria um
desta norma em realizar os princípios âmbito normativo. Neste caso, há um espaço
constitucionais que ela invoca. geográfico definido, e um juízo de ocupação
Uma norma política - que dispõe sobre deste espaço se exprime pela norma prescrita,
objetivos, finalidades, instrumentos, valores - optando-se pela rejeição daquela ocupação.
não há como ser questionada materialmente, Um dever ser traz junto consigo um poder
por causa de sua generalidade e abstração. ser, tem uma correlata pretensão de vir a ser.
Porém, desta lei-quadro decorrem ações Norma política é um mandamento e, por isto,
positivas práticas e normativas prescritivas de pode ser cobrada como prescrição de uma
condutas (imposições, permissões, proibições, prestação positiva e pode ser questionada em
autorizações). Neste momento é possível seu conteúdo.
verificar materialmente a realização dõ A norma constitucional que indica uma
dever estatal de realizar políticas. política estatal traz invariavelmente princípios
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que se desdobram em finalidades, diretrizes chama de eficácia contida refere-se à forma
(caminhos), valores propriamente ditos. Esta de sua aplicação, visto que ele afirma ser
norma tem aplicação imediata e se destina diretamente aplicável tal norma. A atuação
ao Estado assim como aos sujeitos que do legislador teria o “escopo de lhes conferir
praticam os atos relacionados com a política plena eficácia e aplicabilidade concreta
que indica. Diversamente das chamadas positiva”.4 Segundo ainda o autor, estas
normas programáticas, estas normas não se normas são limitadoras do poder público.
destinam apenas ao Estado, mas têm como A atividade do legislador ordinário seria
destinatário os sujeitos sociais, pessoas de restrição:
físicas ou jurídicas que em suas ações Normas de eficácia contida, portanto, são
encontram-se no quadro tratado pela norma aquelas em que o legislador constituinte regulou
constitucional, obrigando-se a construir suficientemente os interesses relativos a
igualmente os seus fins, a partir da adoção determinada matéria, mas deixou margem à
dos valores e meios ali retratados. atuação restritiva por parte da competência
discricionária do Poder Público, nos termos de
Na teoria constitucional brasileira, conceitos gerais nelas enunciados.5
inúmeros constitucionalistas buscaram
diferenciar as normas constitucionais criando Além destas normas, o autor destaca as
classificações.1 Destaco a classificação do normas programáticas. Chama de normas
eminente professor José Affonso da Silva, programáticas aquelas a que o professor Eros
que, quanto à eficácia e aplicabilidade, define Grau denomina normas-objetivo.6 Afirma
três tipos de normas: normas de eficácia plena que são programáticos os direitos sociais,
e aplicabilidade direta, imediata e integral; culturais e econômicos, que necessitam de
normas de eficácia contida e aplicabilidade uma interferência do legislador. Ao contrário
direta e imediata, mas possivelmente não das normas constitucionais que enunciam os
integral; normas de eficácia lim itada: direitos individuais, que são de aplicabilidade
a) declaratórias de princípios institutivos ou imediata e direta.
organizativos; b) declaratórias de princípio Junta-se à Canotilho na formulação da
pro gramático.2 seguinte questão: “como pode (se é que pode)
Não obstante a classificação, afirma o uma constituição servir de fundamento
autor que “não é fácil determinar um critério normativo para o alargamento das tarefas
para distinguir as normas constitucionais de estaduais e para a incorporação de fins
eficácia plena daquelas de eficácia contida econômico-sociais, positivamente vinculantes
ou limitada”.3Aquilo que o eminente professor das instancias de regulação jurídica?”7

1 Celso Antonio Bandeira de Melo, Celso Bastos,


4 Idem, p. 104.
Luís Roberto Barroso, Pinto Ferreira, José Affonso
da Silva, para citar alguns nomes. 5 Idem, p. 116.
2 Aplicabilidade das normas constitucionais. 6 Cf. G R A U , E. R. A Ordem Econôm ica na
4.ed. São Paulo: M alheiros, 2000. p.86. Constituição de 1988.
3 Idem, p.91. 1 SILVA, J.A. da. Opus cit. p. 140-141.

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A exposição sucinta desse pensamento nas suas ações individuais adequarem-se
se fez necessária, porque é representativa da aos elementos enunciados da ação.
melhor doutrina do direito constitucional Os sujeitos são indistintamente o Estado
brasileiro. Contudo, sobre ela deve-se iniciar e as pessoas de direito privado, físicas e
um esboço de crítica. Não se trata de opor-se jurídicas, que, porventura, se encontrem
à classificação estabelecida, porque a concretamente no campo de ação tratado
intenção não é substituir um enquadramento pelo ‘dever ser’ constitucional. Daí o sentido
por outro. Trata-se de atualizar a interpretação de ‘política’ - como qualificativo desta
constitucional, adequando-a a uma práxis de espécie de norma constitucional - referir-se
concretização que é operada pelo Estado, nos à ação pública de sujeitos públicos e
seus três níveis de poder, assim como pelos privados, que têm em comum o fato de
sujeitos sociais em sua atividade não estatal. construírem a coexistência na “polis”.
De fato, o temor revelado na questão Norma política é norma de ajustamento
acima deve ser desvelado, e a Constituição de condutas sociais, do ponto de vista macro.
deve ser vista na sua força política. Há Não são normas que se preocupam com a
normas constitucionais - e não são poucas - pacificação de relações individualizadas,
que impõem a construção de políticas. Isto mas guardam o foco no desenvolvimento
não trai a força normativa e as origens do todo.
da Carta Magna. Revela, outrossim, um Essas normas políticas trazem como
desenvolvimento da norma estruturante característica a prescrição de princípios-
do poder político que, além de definir a fins, princípios-diretrizes (meios), princípios-
estrutura, organiza a própria atividade valores (modo), que se destinam imediatamente
indicando objetivos, meios, instrumentos, ao Estado e aos sujeitos privados. Não se trata
diretrizes {policies). São as normas políticas de “simples programas a serem desenvolvidos
propriamente ditas. Adotamos a crítica ulteriormente pela atividade dos legisladores
do professor Eros G rau8 à expressão ordinários”.9
programática, porém, remarcamos que estas A Constituição é um conjunto de normas
normas não dispõem apenas de objetivos do que se servem dos elementos da realidade na
Estado, mas prescrevem outros valores. sua prescrição e se destinam a construir, à
Sobretudo o que se deve acrescentar a sua imagem, esta realidade, pela sua
essas reflexões diz respeito aos sujeitos aplicação. Na prescrição de normas políticas,
destinatários do comando de ação. O comando é identificado um contexto social, por
de ação é complexo. Não há individualização exemplo o conjunto das atividades econômicas
de conduta, mas revela um campo, seus (art. 170), as relações entre os seres humanos
contornos e orientações, cabendo aos sujeitos e o ambiente (art. 225), a ocupação do espaço

8 G R A U , E. R. D ireito, conceitos e norm as 9 SILVA, J. A. da. Curso de Direito Constitucional


jurídicas. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1988. P ositivo. 18.ed. São Paulo: M alheiros Editores,
p. 123-1 53. p .765.

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urbano (art.182) etc. Em seguida, são que produzam ou possam produzir efeitos
atribuídos os princípios fins, diretrizes, distintos dos previstos pela norma política.
valores, visando conform ar o referido Não há tipificação de uma determinada ação,
contexto a um quadro constitucionalmente na forma de “Tatbestand”, na norma política,
construído. O poder e o dever de agir na mas há determinação dos resultados e dos
realização da configuração deste quadro caminhos para estes resultados que devem
estão nas mãos daqueles que diretamente ser respeitados e executados.
agem no referido contexto e no Estado, que A teoria constitucional que traduz este
dentro de sua competência deve agir como movimento de dinâmica realizadora da
poder normativo, executivo, fiscalizador e Constituição pelos sujeitos públicos e
julgador. Assim, o destinatário da norma é privados, numa constante imposição e
identificado formalmente pela atribuição de conformação do agir, é de Gõrg Haverkate.
competência, quando se trata do poder Para ele, a Constituição é uma ordem da
público, e materialmente, pela identificação reciprocidade, isto é, ela define os espaços e
dos sujeitos envolvidos no contexto o conteúdo da ação pública coordenada com
retratado pela Constituição. A Constituição as demandas da atuação privada. Há duas
vincula solidariamente - mas por imposição partes principais na Constituição: regras de
e coerção - os sujeitos, que se tornam atores organização estatal e finalidades do Estado.11
transformadores da sociedade na direção do Com base nesta teoria, é possível pensar
ideal constitucional. as disposições sobre finalidades do Estado
Uma norma política não é uma restrição e das atividades sociais que estão na
imposta pelo Estado, mas sim um complexo Constituição e são a base para a realização
conformativo do quadro social. O Estado dos direitos fundamentais. Esta teoria se opõe
Social fala por seus preceitos constitucionais à teoria formal unilateral, que apenas trata
conformadores da prática social e da ação das disposições literais de mandamentos,
política Estatal. Se a República Federativa é direitos e deveres.
um Estado social democrático de direito, Na teoria da disposição unilateral do direito,
então políticas específicas devem ser expressa-se a consciência da positividade
adotadas. E o mesmo documento que declara do direito de maneira especialmente aguda:
o princípio do Estado social declara um o direito é algo fazível. Uma teoria da
conjunto de políticas. A Constituição não reciprocidade coloca a realização do direito
cala diante da idéia do Estado social.10 Ela a sob suspeita, se mostra como um caminho
desenvolve e expõe seu conteúdo, impondo tortuoso da positividade do direito, na
condutas políticas complexas ao Estado. medida em que busca, de fato, o conteúdo
Configura-se infração à norma política jurídico de proposições, o que independe de
ações que se manifestam sob qualquer forma, elas serem apresentadas diretamente na forma

10 Cf. MÜLLER, F. Essais zur Theorie von Recht 11 V erfassungslehre - V erfassung ais
und Verfassung. Berlin: Dunker & Huinblot, 1990. G egenseitigkeitsord nu ng. M ünchen, Verlag C.H.
p .178-182. Beck, 1992. p.23.

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de conduta ou na forma de princípios e riquezas políticas.14 Haverkate é definitivo:
direitos.12 “Numa Constituição, um povo organiza
A teoria da reciprocidade conduz juridicamente seu tratamento com a incerteza
para uma visão realista da formação e coletiva”.15
desenvolvimento da Constituição. A validade A Constituição do Estado constitucional
de uma Constituição não chega a ser é uma ordem da reciprocidade produtiva dos
esclarecida sem se recorrer ao modelo da cidadãos mediada pêlo direito. Formalmente,
reciprocidade, pois é por ela que se percorrem ela se m ostra como uma norma posta
os caminhos da efetivação. A teoria da unilateralm ente (conceito formal de
reciprocidade toma o conhecimento da Constituição). Materialmente, ela deve ser
legalidade do direito positivo existente na compreendida como a promessa recíproca
teoria da unilateralidade e o transforma, dos cidadãos, como sujeitos de direito de se
porque é capaz de captar a contextualização respeitarem e de se darem espaço recíproco
da discussão jurídico-política que envolve a para o desenvolvimento equânime de cada
um (conceito material de Constituição).16
formação e realização do direito.
Em conclusão desta reflexão inicial sobre
Haverkate qualifica de maneira muito
as normas políticas na Constituição, afirmo
inspirada a Constituição como uma “razão a necessidade de assum ir-se a força
provisória”.13 Segundo o autor, a Constituição normativa das normas políticas, essenciais
tem sido assinalada freqüentemente como para a construção dos direitos fundamentais.
uma base consensual. Melhor seria dizer: a Em outras palavras, a efetivaçãp das normas
Constiuição é uma base de dissenso políticas é indispensável para a formação de
consentido. Ela oferece uma regulação de sujeitos autônomos, capazes de visualizar no
como um com o outro podem disputar, seja texto constitucional a efetiva possibilidade
pela apresentação de uma ordem de disputa de seu futuro e não um conjunto afônico de
como ordem processual, seja pela regulação palavras etéreas. A normatividade da norma
daquilo que materialmente pode conter a política aporta segurança no que concerne
disputa. A Constituição é uma ordem mínima às políticas públicas, assim comoji ética e
que possibilita uma disputa civilizada das aos rumos das ações privadas.

14 Idem, p. 143.
12 Cf. HAVERKATE, G. Opus cit, p. 113. 15 Idem, p. 153.
13 Idem, p. 142. 16 Ibidem.

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