Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O primeiro fator que dificulta uma definição mais precisa do direito administrativo é a
alteração dinâmica da realidade. Os processos políticos, sociais, econômicos e jurídicos se
desenrolam com enorme rapidez, demandando alterações permanentes e contínuas. Nada é
estável, especialmente no tocante às atividades desempenhadas pelo Estado.
A alteração dinâmica da realidade produz efeitos no tocante à função administrativa, que foi
originalmente concebida em vista de uma realidade muito distinta da atual. A evolução política,
social, econômica e jurídica, ocorrida ao longo dos últimos cinquenta anos, alterou radicalmente a
figura do Estado. Na atualidade, o Estado assumiu muitas funções que eram privadas – ou, mesmo,
desconhecidas – no passado. Outras funções foram transformadas em públicas e novamente
passaram a ser privadas.
O direito, inclusive o direito administrativo, desempenha uma função prática na vida social. É
um instrumento para ordenar os sujeitos, as condutas, os bens e os valores nas diversas esferas da
sociedade. Mais do que isso, o direito é produzido pela vivência concreta de uma sociedade. Não
existe um direito ideal, pronto e acabado. Não há uma ordem jurídica perfeita, destituída de
problemas, imperfeições. O direito é repleto de problemas e dificuldades.
O direito vai sendo produzido, vai se tornando obsoleto, vai adquirindo novas configurações no
mesmo ritmo das vivências sociais, políticas e econômicas. As simplificações e abstrações
apresentam uma dimensão utópica. O grande risco é o estudioso confundir a realidade com a
abstração e supor que o direito vigente é aquele que existe apenas num plano ideal.
A ordem social e política vigente reflete uma concepção democrática do poder. A Constituição
de 1988, considerada como um pacto nacional, consagrou a solução democrática como a única
admissível. O direito administrativo reflete a prevalência de concepções democráticas para o
Estado – que apenas pode ser concebido como um instrumento para a realização dos valores
fundamentais e para o bem comum de todos.
O monopólio da violência pelo Estado é essencial para a realização dos valores coletivos. Trata-
se da única solução admissível. A ausência de absorção da violência pelo Estado equivale à “lei da
selva”, em que o mais forte se impõe sobre o mais fraco. O monopólio da violência pelo Estado
destina-se a assegurar que a força seja utilizada segundo critérios predeterminados, em condições
de igualdade e de equivalência entre os indivíduos.
A detenção do monopólio da violência pelo Estado não significa a legitimação do poder por
meio da violência. Até é possível que algum Estado e alguma ordem jurídica surjam por meio de
atos de violência e força física. Contudo, nenhum Estado se justifica, nem se mantém, por meio
pura e simplesmente da força; nenhuma ordem jurídica se legitima – nem se mantém, insista-se –
através simplesmente da violência.
O Estado existe e o direito obriga, mas não porque sejam instrumentos da força física e
psicológica de opressão dos mais fortes contra os mais fracos. A violência e a força bruta podem
dar sustentação a um regime político e impor a observância de normas jurídicas, todavia, apenas
temporariamente. A médio ou longo prazo, toda organização de poder político e todo direito
somente podem manter-se por outra via, relacionada com sua legitimidade democrática.
O tema foi examinado por Max Weber, que diferenciou três formas de legitimação: a
tradicional (religiosa), a carismática e a racional.3
A legitimação tradicional ou religiosa é aquela que se verifica nos primórdios das organizações
estatais ocidentais, em que a atribuição de poder a determinadas estruturas de governo se funda
em motivos de ordem metafísica. Os poderes políticos e religiosos são concentrados pelos mesmos
sujeitos. O povo reconhece a legitimidade do governante por ser ele um escolhido pela divindade.
A violência e a supressão das diferenças são indispensáveis para a manutenção de Estados cuja
legitimação se funda na religião ou no carisma pessoal de um líder. Diversamente se passa nas
hipóteses de legitimação racional do poder político. Nessas sociedades, quanto maior a
concordância dos governados em relação às leis e às instituições, tanto maior será o poder estatal e
menor será a necessidade da violência para a manutenção da ordem estabelecida.
6. O Estado de Direito
Antes da afirmação do Estado de Direito, a atividade estatal era alheia ao direito. Os atos do
governante não comportavam controle, sob o postulado de que o rei não podia errar ou que o
conteúdo do direito se identificava com a vontade do príncipe.
Num Estado de Direito, prevalecem as normas jurídicas abstratas e gerais, e não a vontade do
governante. Essas normas jurídicas obedecem a um sistema hierárquico em cujo ápice figura a
Constituição. A supremacia da Constituição significa a existência de um conjunto de normas de
hierarquia superior, que prevalecem em face dos demais atos estatais e não estatais.
A violência pode permitir a manutenção do poder político durante algum tempo, mas isso será
sempre temporário. A única alternativa para a existência permanente do Estado é o consenso
entre os cidadãos.
A legitimidade e a validade dos atos estatais não dependem da participação efetiva e real de
cada cidadão, mas da existência de disciplina jurídica que não exclua essa participação.
Não é incorreto afirmar que o direito administrativo surgiu com a criação do Estado e a
necessidade de disciplina quanto ao seu funcionamento.6 Mas o conceito de direito administrativo,
tal como admitido na atualidade, foi firmado a partir do início do século XX e acompanhou a
evolução das concepções políticas sobre as funções do Estado e a democracia.
Mas a evolução civilizatória produziu a amálgama dessas duas concepções, sendo problemático
diferenciá-las. As características da república e da democracia se entranharam, de modo que
aludir a uma importa fazer referência à outra.7
A república significa o governo fundado nas leis e não no interesse do ocupante da função
pública. A democracia impõe a possibilidade de participação de todos os cidadãos, em igualdade
de condições, no governo – seja por meio do voto ou de outros mecanismos de vinculação do
governante à vontade do povo.
– todo o poder político é de titularidade do povo (que o exercita diretamente ou por meio de
representantes, na fórmula do art. 1.º, parágrafo único, da CF/1988);
– todas as competências estatais são exercidas visando à satisfação dos direitos fundamentais do povo;
e
O direito administrativo enfrenta uma pluralidade de desafios nos dias atuais, que precisam ser
reconhecidos e superados.
Existe um direito administrativo brasileiro que “vive em outro mundo”9, no qual não há
desvios, em que tudo está bem. Mas a realidade brasileira é muito diferente. É necessário que o
direito administrativo se transforme num instrumento efetivo de realização dos valores de
interesse coletivo. Deve haver um compromisso do direito administrativo com a Nação brasileira,
no sentido de garantir que os poderes estatais sejam efetivamente utilizados para promover o
desenvolvimento econômico e social, combater a miséria, reduzir as desigualdades regionais e
assegurar a existência digna de todos. Esse não é um discurso retórico, porém, se constitui em
dever de todos.
Existem desafios que precisam ser enfrentados no âmbito do direito administrativo, visando
assegurar a prevalência de concepções democráticas no exercício da função administrativa.
O fascismo consagra a intolerância, num sistema em que a maioria prevalece de modo absoluto
e as minorias são perseguidas (se não eliminadas).
Existem propostas fascistas em todos os países, inclusive no Brasil. Por isso, é indispensável
reafirmar que o núcleo da ordem jurídica reside na preservação dos direitos fundamentais,
inclusive das minorias. O direito administrativo é tanto um meio de restringir o exercício do poder
político como um instrumento de promoção dos direitos fundamentais.11
Outro problema fundamental a ser enfrentado pela Nação brasileira é a corrupção. No setor
público, a corrupção consiste no exercício de poderes por um agente estatal visando beneficiar
indevidamente a si mesmo ou a terceiros, com a frustração dos princípios e normas aplicáveis.
A corrupção é praticada em todos os países do mundo, ainda que em muitos deles a sua
incidência seja mínima. Há uma pluralidade de causas para a corrupção. Muitas delas são
extrajurídicas. Mas a corrupção pode ser facilitada pelo modelo jurídico adotado.
No Brasil, os problemas da corrupção são apontados há muitas gerações, sem que o combate a
ela tenha obtido o sucesso necessário. Durante esse longo período, recursos provenientes do erário
têm sido transferidos indevidamente para a titularidade de terceiros, no Brasil e no estrangeiro.
Um dos pontos mais fundamentais reside em que os mecanismos do Direito Administrativo não
têm sido eficazes para prevenir a corrupção. A multiplicação de controles internos e externos não
produz resultados satisfatórios.
NOTAS DE RODAPÉ
1
O primeiro setor é composto pelos bens públicos e pelas organizações estatais. O segundo setor é
integrado pelos bens privados e pelas empresas particulares que atuam em busca do lucro. O terceiro
setor engloba bens e sujeitos privados que visam à satisfação de necessidades coletivas, sem intuito
lucrativo.
Hannah Arendt afirma: “(...) é o suporte do povo que produz o poder das instituições de um país, e esse
suporte é nada além do que a continuação do consentimento que produziu o surgimento das leis. Todas as
instituições políticas são manifestações e materializações de poder; elas se petrificam e entram em
decadência tão logo o poder existente do povo cessar de dar-lhes suporte” (On Violence. p. 41). Lembre-se
de que foi Rousseau quem formulou a tese da soberania popular como fonte de legitimidade do Estado (O
Contrato Social).
Cf. WEBER. Economy and Society: an Outline of Interpretive Sociology, v. 1, p. 215 et seq.
Habermas assinala que, “porque a questão da legitimidade das leis garantidoras da liberdade tem de
encontrar uma resposta dentro do direito positivo, o contrato social não pode impor e fazer valer o
‘princípio do direito’ senão ligando a formação da vontade política do legislador a condições de um
procedimento democrático, sob as quais os resultados produzidos conforme o procedimento expressem
per se a vontade concordante ou o consenso racional de todos os implicados” (HABERMAS. Facticidad y
validez: sobre el derecho y el Estado Democrático de Derecho en términos de teoría del discurso, p. 159,
tradução livre).
Nesse sentido, Habermas afirma que “os direitos humanos e o princípio da soberania popular não são por
casualidade as únicas ideias sob cuja luz cabe justificar o direito moderno. Pois essas são as duas ideias
em que se acabam condensando aqueles conteúdos que, por assim dizer, são os únicos que restam quando
a substância normativa de um ethos ancorado em tradições religiosas e metafísicas é obrigado a passar
pelo filtro das fundamentações pós--tradicionais” (Facticidad y validez: sobre el derecho y el Estado
Democrático de Derecho en términos de teoría del discurso, p. 164, tradução livre).
Não é por outra razão que Weber reconhece que a legitimação racional do Estado está atrelada ao
surgimento de um aparato burocrático. Cf. WEBER. Economy and Society: an Outline of Interpretive
Sociology, v. 1, p. 218-220.
Não seria absurdo afirmar a existência de uma democracia republicana em Estados monárquicos. Esse
parece ser o caso da Grã-Bretanha. O exemplo serve para demonstrar como o conceito de democracia
republicana passou a ter configurações distintas daquelas originais.
Na língua inglesa, há um vocábulo específico para indicar essa característica. Trata-se de accountability,
que não pode ser traduzido simplesmente por responsabilização, ainda que esse seja o conceito mais
próximo, em português.
10
Em uma definição expositiva, Robert Owen Paxton afirma que o fascismo consiste numa “forma de
comportamento político marcado por uma preocupação obsessiva com a decadência e a humilhação da
comunidade, vista como vítima, e por cultos compensatórios da unidade, da energia e da pureza, nas
quais um partido de base popular formado por militantes nacionalistas engajados, operando em
cooperação desconfortável, mas eficaz com as elites tradicionais, repudia as liberdades democráticas e
passa a perseguir objetivos de limpeza étnica e expansão externa por meio de uma violência redentora e
sem estar submetido a restrições éticas ou legais de qualquer natureza” (A anatomia do fascismo, p. 358).
11
Sob esse enfoque, Daniel Sarmento assevera que “é legítimo e necessário estabelecer limites para as
maiorias de cada momento, sobretudo ligados à proteção dos direitos fundamentais e das regras ligadas à
preservação do próprio processo democrático, e de que é essencial, por outro lado, atribuir ao Judiciário o
poder de fiscalizar o respeito a estes limites”. SARMENTO. Ubiquidade constitucional. Revista de Direito do
Estado – RDE, n. 2, 83-118, abr./jun. 2006, p. 101.