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2019 - 07 - 09

Curso de direito administrativo - Ed. 2018


CAPÍTULO 1. DEFINIÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO

Capítulo 1. Definição do Direito Administrativo

1. Definição de direito administrativo

O direito administrativo é o conjunto das normas jurídicas que disciplinam a função


administrativa do Estado e a organização e o funcionamento dos sujeitos e órgãos encarregados de
seu desempenho.

A função administrativa do Estado consiste na manifestação do poder político orientada a


disciplinar a autonomia dos particulares e a promover a satisfação das necessidades coletivas
comuns. A função administrativa se desenvolve mediante a produção de atos jurídicos e por meio
de atividades materiais.

O direito administrativo também disciplina a organização dos meios materiais e de pessoal


necessários ao desempenho da função administrativa. Isso envolve a criação de pessoas jurídicas,
de órgãos estatais e de suas posições jurídicas (cargos públicos, por exemplo).

2. A avaliação crítica da definição adotada

A definição adotada é suficiente para uma aproximação inicial ao direito administrativo.


Propicia critérios razoavelmente satisfatórios para diferenciar o direito administrativo dos demais
ramos do direito e para identificar as normas e atividades ditas administrativas. Mas apresenta
limitações, que refletem dificuldades muito relevantes.

O primeiro fator que dificulta uma definição mais precisa do direito administrativo é a
alteração dinâmica da realidade. Os processos políticos, sociais, econômicos e jurídicos se
desenrolam com enorme rapidez, demandando alterações permanentes e contínuas. Nada é
estável, especialmente no tocante às atividades desempenhadas pelo Estado.

A alteração dinâmica da realidade produz efeitos no tocante à função administrativa, que foi
originalmente concebida em vista de uma realidade muito distinta da atual. A evolução política,
social, econômica e jurídica, ocorrida ao longo dos últimos cinquenta anos, alterou radicalmente a
figura do Estado. Na atualidade, o Estado assumiu muitas funções que eram privadas – ou, mesmo,
desconhecidas – no passado. Outras funções foram transformadas em públicas e novamente
passaram a ser privadas.

Portanto, o âmbito de abrangência das competências estatais no setor administrativo se


modificou. Há processos contínuos de ampliação e de contração das funções do Estado.

Outro aspecto é a modificação do relacionamento entre Estado e Sociedade. Tornou-se


superada a concepção de um Estado orientado à realização do interesse das oligarquias.

Isso se reflete no conceito de função administrativa do Estado, que se submete a uma


concepção democrática. O Estado se tornou um instrumento para promover os interesses
concretos e efetivos da sociedade. Deixou de ser um meio de apropriação do poder político para
realização dos interesses dos governantes ou de classes dominantes.
Uma alteração relevante dos tempos contemporâneos foi a assunção pela sociedade civil de
parcelas significativas de encargos necessários à satisfação dos direitos fundamentais. Tomou-se
consciência de que o Estado não dispõe de condições de satisfazer todas as necessidades de cunho
geral e essencial. A atuação estatal vai sendo subsidiada ou, mesmo, substituída pela atuação de
organizações privadas e por esforços individuais. Esse conjunto de entidades e esforços costuma
ser designado como terceiro setor1, e é composto preponderantemente pelas organizações da
sociedade civil (terminologia da Lei 13.019/2014, com as alterações da Lei 13.204/2015).

3. A tendência ampliativa do direito administrativo

A criação de organizações não estatais orientadas à satisfação de direitos fundamentais produz


a ampliação dos limites do direito administrativo. Assim, por exemplo, o direito administrativo
disciplina o desempenho de atividades de cunho educacional prestadas por entidades privadas.
Nenhum particular pode ser obrigado a aplicar seus esforços e seus bens em atividades de
natureza educativa. Mas, se resolverem a tanto se dedicar, estarão subordinados a uma série de
determinações produzidas pelas instituições de direito administrativo.

Por outro lado, os instrumentos de controle e de repressão alcançam essas atividades


administrativas não estatais. Considere-se, por exemplo, a definição de “funcionário público”,
contida no art. 327 do Código Penal, e a aplicação do regime da improbidade administrativa da Lei
8.429/1992 também a sujeitos privados.

Há uma proximidade intensa entre as atividades administrativas estatais e aquelas


desempenhadas pelo terceiro setor. De todo o modo, há um conjunto de normas que disciplinam o
terceiro setor e seu relacionamento com o Estado. Esse regime adotado para o terceiro setor é
muito similar àquele previsto para o desempenho da função administrativa estatal.

4. A rejeição a abstrações desvinculadas da realidade

O direito, inclusive o direito administrativo, desempenha uma função prática na vida social. É
um instrumento para ordenar os sujeitos, as condutas, os bens e os valores nas diversas esferas da
sociedade. Mais do que isso, o direito é produzido pela vivência concreta de uma sociedade. Não
existe um direito ideal, pronto e acabado. Não há uma ordem jurídica perfeita, destituída de
problemas, imperfeições. O direito é repleto de problemas e dificuldades.

O direito vai sendo produzido, vai se tornando obsoleto, vai adquirindo novas configurações no
mesmo ritmo das vivências sociais, políticas e econômicas. As simplificações e abstrações
apresentam uma dimensão utópica. O grande risco é o estudioso confundir a realidade com a
abstração e supor que o direito vigente é aquele que existe apenas num plano ideal.

5. O comprometimento com a experiência democrática

A ordem social e política vigente reflete uma concepção democrática do poder. A Constituição
de 1988, considerada como um pacto nacional, consagrou a solução democrática como a única
admissível. O direito administrativo reflete a prevalência de concepções democráticas para o
Estado – que apenas pode ser concebido como um instrumento para a realização dos valores
fundamentais e para o bem comum de todos.

Nenhuma interpretação jurídica ou solução de aplicação de normas jurídicas é admissível


quando importar a violação a direitos fundamentais ou ao modelo democrático de organização do
poder.

5.1. O monopólio estatal da violência

O monopólio da violência pelo Estado é essencial para a realização dos valores coletivos. Trata-
se da única solução admissível. A ausência de absorção da violência pelo Estado equivale à “lei da
selva”, em que o mais forte se impõe sobre o mais fraco. O monopólio da violência pelo Estado
destina-se a assegurar que a força seja utilizada segundo critérios predeterminados, em condições
de igualdade e de equivalência entre os indivíduos.

5.2. A legitimidade do poder político

A detenção do monopólio da violência pelo Estado não significa a legitimação do poder por
meio da violência. Até é possível que algum Estado e alguma ordem jurídica surjam por meio de
atos de violência e força física. Contudo, nenhum Estado se justifica, nem se mantém, por meio
pura e simplesmente da força; nenhuma ordem jurídica se legitima – nem se mantém, insista-se –
através simplesmente da violência.

O Estado existe e o direito obriga, mas não porque sejam instrumentos da força física e
psicológica de opressão dos mais fortes contra os mais fracos. A violência e a força bruta podem
dar sustentação a um regime político e impor a observância de normas jurídicas, todavia, apenas
temporariamente. A médio ou longo prazo, toda organização de poder político e todo direito
somente podem manter-se por outra via, relacionada com sua legitimidade democrática.

A fonte de legitimidade para o Estado e o exercício do poder político reside na soberania


popular.2 Essa afirmação é importante para afastar a sustentação de um regime pela força ou a
constituição de fontes não racionais de legitimação do poder.

O tema foi examinado por Max Weber, que diferenciou três formas de legitimação: a
tradicional (religiosa), a carismática e a racional.3

A legitimação tradicional ou religiosa é aquela que se verifica nos primórdios das organizações
estatais ocidentais, em que a atribuição de poder a determinadas estruturas de governo se funda
em motivos de ordem metafísica. Os poderes políticos e religiosos são concentrados pelos mesmos
sujeitos. O povo reconhece a legitimidade do governante por ser ele um escolhido pela divindade.

A legitimação carismática resulta da capacidade de polarização, por um líder, da esperança de


concretização dos projetos comuns do povo. A legitimação carismática ocorre quando um líder
delineia um projeto que é incorporado nas expectativas individuais como essencial à felicidade ou
à realização das vocações do grupo. Usualmente, esse líder se apresenta como o único sujeito
capaz de promover mudanças radicais em uma realidade reputada como insuportável. Em face do
desespero produzido pelo mundo real e das promessas expostas por um líder, o povo aceita a
dominação e adere ao projeto de grandiosas realizações.

A legitimação racional afasta-se da obediência a um deus ou a um líder, para fundar-se em um


conjunto de instituições construídas como resultado dos esforços comuns do povo. Cumprem-se as
determinações de um parlamento, de um governo, não por se reputar que tal é a vontade divina,
nem porque isso é exigido para a salvação nacional, mas porque tais decisões são produzidas
racionalmente e refletem a ordem instituída pelo Direito. Assim, implanta-se um governo cujas
decisões refletem as determinações normativas e não a vontade subjetiva dos indivíduos que
ocupam o poder. E, como a liderança racional independe da identidade dos governantes ou da
crença de fiéis, a divergência entre os sujeitos não é considerada nem um pecado nem uma
traição, mas é parte do processo de formação das decisões coletivas.

A violência e a supressão das diferenças são indispensáveis para a manutenção de Estados cuja
legitimação se funda na religião ou no carisma pessoal de um líder. Diversamente se passa nas
hipóteses de legitimação racional do poder político. Nessas sociedades, quanto maior a
concordância dos governados em relação às leis e às instituições, tanto maior será o poder estatal e
menor será a necessidade da violência para a manutenção da ordem estabelecida.

6. O Estado de Direito

A ideia da legitimação racional se relaciona diretamente à concepção de Estado de Direito. A


existência de um Estado sempre propicia o risco de utilização dos poderes estatais para benefício
das classes dirigentes. Esse exercício arbitrário do poder estatal é incompatível com a democracia.
A reação ao arbítrio, ao longo da história, conduziu à ideia do Estado de Direito, elaborada
pelos pensadores alemães do século XIX. Envolvia a conjugação de três postulados fundamentais, a
saber: a tripartição de poderes, o princípio da legalidade e a universalidade da jurisdição.

A tripartição de poderes consiste na dissociação da organização estatal, de modo a produzir a


diferenciação de competências (funções), que são atribuídas a órgãos diversos. Isso produz a
limitação do poder pelo modo de sua estruturação (o sistema de “freios e contrapesos”), evitando
que um único órgão concentre todos os poderes estatais.

A legalidade significa a submissão dos poderes do Estado ao direito, exigindo autorização


normativa para atuação estatal.

A universalidade da jurisdição assegura o controle de validade dos atos estatais, permitindo a


responsabilização dos sujeitos que atuarem de modo inadequado.

Antes da afirmação do Estado de Direito, a atividade estatal era alheia ao direito. Os atos do
governante não comportavam controle, sob o postulado de que o rei não podia errar ou que o
conteúdo do direito se identificava com a vontade do príncipe.

Num Estado de Direito, prevalecem as normas jurídicas abstratas e gerais, e não a vontade do
governante. Essas normas jurídicas obedecem a um sistema hierárquico em cujo ápice figura a
Constituição. A supremacia da Constituição significa a existência de um conjunto de normas de
hierarquia superior, que prevalecem em face dos demais atos estatais e não estatais.

7. O Estado Democrático de Direito

A violência pode permitir a manutenção do poder político durante algum tempo, mas isso será
sempre temporário. A única alternativa para a existência permanente do Estado é o consenso
entre os cidadãos.

O consenso pressupõe, primeiramente, que todos os indivíduos sejam dotados de idênticos


direitos e garantias, com direito de participação equivalente. Essa participação se faz por meio de
um procedimento democrático.4

O Estado Democrático de Direito estabelece um procedimento democrático, que é uma


construção que estabelece limites ao exercício do poder estatal. O Estado Democrático de Direito
consagra a dignidade da pessoa humana como princípio jurídico e, a partir daí, reconhece às
pessoas direitos fundamentais insuprimíveis e inalienáveis.5

A legitimidade e a validade dos atos estatais não dependem da participação efetiva e real de
cada cidadão, mas da existência de disciplina jurídica que não exclua essa participação.

O cidadão não é um súdito, um inferior, um servo do Estado. Os governantes e os governados


encontram-se em posição de igualdade, todos submetidos ao Direito, ainda que haja competência
dos primeiros de tomarem decisões vinculantes para todos. A competência decisória atribuída aos
agentes estatais não se funda na posição de supremacia ou superioridade deles em face dos
governados, mas na soberania popular.

8. O Estado Democrático e Social de Direito

O amplo reconhecimento de direitos fundamentais às pessoas foi acompanhado de uma


renovação quanto à posição do Estado perante a Sociedade. Ao longo do século XX, tornou-se
evidente que grandes parcelas da população não dispõem de condições para satisfazerem as suas
próprias necessidades essenciais. Fatores sociais, ambientais, econômicos e individuais impedem
que o ser humano se realize como sujeito autônomo e usufrua da própria vida com dignidade. Isso
exige a implantação e o desenvolvimento de serviços públicos pelo Estado.

Por outro lado, as revoluções industriais produziram a concentração do poder econômico e o


surgimento de grandes grupos empresariais. Isso acarreta a necessidade de intervenção
reguladora do Estado, para neutralizar as falhas e insuficiências do mercado privado.

O Estado Democrático e Social de Direito reflete o reconhecimento de que os direitos


fundamentais exigem a intervenção estatal para superar limitações que superam a atuação
individual. Por isso, a ordem jurídica é orientada não apenas a limitar o poder estatal, mas
também a assegurar que o Estado seja um instrumento de promoção do desenvolvimento
econômico e social. Impõe-se a existência de um Estado promotor, cuja atuação seja voltada à
finalidade última de obter a concretização dos direitos fundamentais.

9. O Brasil como uma democracia republicana

Não é incorreto afirmar que o direito administrativo surgiu com a criação do Estado e a
necessidade de disciplina quanto ao seu funcionamento.6 Mas o conceito de direito administrativo,
tal como admitido na atualidade, foi firmado a partir do início do século XX e acompanhou a
evolução das concepções políticas sobre as funções do Estado e a democracia.

O direito administrativo no Brasil é uma manifestação da democracia republicana consagrada


constitucionalmente. A expressão democracia republicana é utilizada para conjugar dois
princípios originariamente distintos.

Na teoria do Estado, democracia e república são conceitos inconfundíveis. A república é um


regime de governo, caracterizado essencialmente pela temporariedade dos mandatos dos
governantes. A democracia é uma forma de governo, caracterizada pelo reconhecimento de que
todo o poder político se vincula à soberania popular. Então, a república significa o exercício
temporário e desinteressado do poder e a democracia, o governo pelo povo.

Mas a evolução civilizatória produziu a amálgama dessas duas concepções, sendo problemático
diferenciá-las. As características da república e da democracia se entranharam, de modo que
aludir a uma importa fazer referência à outra.7

A república significa o governo fundado nas leis e não no interesse do ocupante da função
pública. A democracia impõe a possibilidade de participação de todos os cidadãos, em igualdade
de condições, no governo – seja por meio do voto ou de outros mecanismos de vinculação do
governante à vontade do povo.

A democracia republicana é a concepção de que:

– todo o poder político é de titularidade do povo (que o exercita diretamente ou por meio de
representantes, na fórmula do art. 1.º, parágrafo único, da CF/1988);

– todas as competências estatais são exercidas visando à satisfação dos direitos fundamentais do povo;
e

– a formação e a manifestação de vontade estatal sujeitam-se a procedimentos democráticos.

Por força da democracia republicana, as decisões estatais devem possibilitar a participação de


todos os possíveis interessados, que são tratados como titulares de direitos equivalentes de
participação na formação da vontade estatal. Devem existir mecanismos pelos quais os
governantes são constrangidos a prestar esclarecimentos e a responder por seus atos.8 Como
decorrência, devem ser respeitados os interesses de todos os grupos sociais (inclusive das
minorias), afastando-se a concepção puramente majoritária para a tomada de decisões. A
democracia republicana traduz o governo fundado nas leis e no reconhecimento de direitos
mínimos a todos os cidadãos, entre os quais o de participar na formação da vontade estatal.

Em suma, a democracia republicana contempla mecanismos de controle do poder dos


governantes, buscando impedir que as competências governamentais sejam utilizadas para
satisfação dos interesses egoísticos do governante ou de parcelas da população.
A observância de procedimentos que assegurem a racionalidade do processo decisório é
indispensável à atividade administrativa numa democracia republicana. Exige-se a justificação
teórica e prática de todas as escolhas, que devem resultar de um processo de comunicação amplo.
As escolhas dos governantes têm de ser justificadas por critérios lógicos e racionais, com a
demonstração de sua aptidão para satisfazer da melhor maneira possível as necessidades
coletivas.

Cada decisão tem de ser produzida de modo democrático. Na democracia republicana, as


decisões administrativas somente se legitimam se presentes dois requisitos. O primeiro é o
conteúdo: a atividade governamental apenas será válida quando voltada a satisfazer, do melhor
modo possível, o problema a ser resolvido. A concepção da democracia republicana impõe ao
governante o dever de adotar as decisões que satisfaçam o máximo possível os interesses coletivos,
com o inafastável respeito aos direitos fundamentais. O segundo é a forma: somente são válidas as
decisões que observarem o devido procedimento administrativo.

É quase impossível delimitar a extensão dos efeitos e as decorrências da democracia


republicana. Inúmeros princípios e regras são dela decorrentes, tal como adiante se apontará.

10. Os desafios enfrentados pelo direito administrativo brasileiro

O direito administrativo enfrenta uma pluralidade de desafios nos dias atuais, que precisam ser
reconhecidos e superados.

10.1. A desvinculação da realidade

Existe um direito administrativo brasileiro que “vive em outro mundo”9, no qual não há
desvios, em que tudo está bem. Mas a realidade brasileira é muito diferente. É necessário que o
direito administrativo se transforme num instrumento efetivo de realização dos valores de
interesse coletivo. Deve haver um compromisso do direito administrativo com a Nação brasileira,
no sentido de garantir que os poderes estatais sejam efetivamente utilizados para promover o
desenvolvimento econômico e social, combater a miséria, reduzir as desigualdades regionais e
assegurar a existência digna de todos. Esse não é um discurso retórico, porém, se constitui em
dever de todos.

A atividade administrativa estatal continua a refletir concepções personalistas de poder, em


que o governante imprime a sua vontade pessoal como critério de validade dos atos
administrativos e invoca projetos individuais como fundamento de legitimação para a dominação
exercida. Isso deriva da ausência de incorporação, no âmbito do direito administrativo, de
concepções constitucionais fundamentais.

Existem desafios que precisam ser enfrentados no âmbito do direito administrativo, visando
assegurar a prevalência de concepções democráticas no exercício da função administrativa.

 10.2. O risco do fascismo

Outro problema relevante é a tentação do fascismo. No fascismo, um grupo político toma o


poder para promover o “bem comum” e combater os “inimigos do povo”.10 São eliminados os
direitos fundamentais, alegando-se uma restrição temporária, destinada a prevalecer apenas
durante o período necessário à implantação da nova ordem. Convoca-se o povo para um grande
esforço nacional, que não admite divergência. Eliminam-se os direitos das minorias e a atuação
estatal passa a ser orientada a eliminar a discordância. Grandes extratos da população dão suporte
aos governantes, renunciando a direitos fundamentais em vista dos benefícios materiais
prometidos.

O fascismo consagra a intolerância, num sistema em que a maioria prevalece de modo absoluto
e as minorias são perseguidas (se não eliminadas).

Existem propostas fascistas em todos os países, inclusive no Brasil. Por isso, é indispensável
reafirmar que o núcleo da ordem jurídica reside na preservação dos direitos fundamentais,
inclusive das minorias. O direito administrativo é tanto um meio de restringir o exercício do poder
político como um instrumento de promoção dos direitos fundamentais.11

10.3. O risco da corrupção

Outro problema fundamental a ser enfrentado pela Nação brasileira é a corrupção. No setor
público, a corrupção consiste no exercício de poderes por um agente estatal visando beneficiar
indevidamente a si mesmo ou a terceiros, com a frustração dos princípios e normas aplicáveis.

A corrupção envolve usualmente a obtenção de benefícios puramente patrimoniais, mas


também pode manifestar-se de outros modos. Assim, por exemplo, existe corrupção quando um
indivíduo é favorecido com aprovação indevida em concurso público.

A corrupção reduz a disponibilidade dos recursos públicos necessários ao atendimento das


necessidades coletivas. Potencializa a ineficiência na atuação estatal e impede o crescimento
econômico e o desenvolvimento social. Um dos grandes problemas é a associação entre a
corrupção e a ausência de qualidade técnica das decisões adotadas, o que pode conduzir a
resultados muito nocivos à comunidade.

A corrupção é praticada em todos os países do mundo, ainda que em muitos deles a sua
incidência seja mínima. Há uma pluralidade de causas para a corrupção. Muitas delas são
extrajurídicas. Mas a corrupção pode ser facilitada pelo modelo jurídico adotado.

No Brasil, os problemas da corrupção são apontados há muitas gerações, sem que o combate a
ela tenha obtido o sucesso necessário. Durante esse longo período, recursos provenientes do erário
têm sido transferidos indevidamente para a titularidade de terceiros, no Brasil e no estrangeiro.

Um dos pontos mais fundamentais reside em que os mecanismos do Direito Administrativo não
têm sido eficazes para prevenir a corrupção. A multiplicação de controles internos e externos não
produz resultados satisfatórios.

Isso evidencia a necessidade de mudança de mentalidade dos agentes públicos e da população


para que seja possível a reconstrução do direito administrativo, com a eliminação das
oportunidades para a prática da corrupção e a modificação das concepções vigentes. Não é
admissível manter as soluções desenvolvidas no passado, especialmente em sociedades
estrangeiras, ignorando a realidade das circunstâncias da vida real no Brasil.

10.4. O risco da insegurança jurídica

Outra limitação relevante da atividade administrativa estatal relaciona-se com a insegurança


jurídica. A multiplicação de instâncias de controle da atividade administrativa e a ameaça de
punição aos desvios produzem mecanismos de desincentivo à atuação ativa dos agentes públicos.
O resultado prático aproxima-se do pior dos mundos. Por um lado, as providências de combate à
corrupção não atingem os efeitos desejados. Por outro lado, os agentes públicos hesitam em
assumir responsabilidades relevantes.

O reconhecimento da necessidade de providências concretas para superar essa insegurança


conduziu à aprovação da Lei Federal 13.655/2018, que introduziu alterações no Dec.-Lei 4.657/1942
(Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). Os novos dispositivos podem permitir a
convivência entre o combate à corrupção e a ampliação da estabilidade das relações entre
Administração Pública e particulares.

NOTAS DE RODAPÉ
1

O primeiro setor é composto pelos bens públicos e pelas organizações estatais. O segundo setor é
integrado pelos bens privados e pelas empresas particulares que atuam em busca do lucro. O terceiro
setor engloba bens e sujeitos privados que visam à satisfação de necessidades coletivas, sem intuito
lucrativo.

Hannah Arendt afirma: “(...) é o suporte do povo que produz o poder das instituições de um país, e esse
suporte é nada além do que a continuação do consentimento que produziu o surgimento das leis. Todas as
instituições políticas são manifestações e materializações de poder; elas se petrificam e entram em
decadência tão logo o poder existente do povo cessar de dar-lhes suporte” (On Violence. p. 41). Lembre-se
de que foi Rousseau quem formulou a tese da soberania popular como fonte de legitimidade do Estado (O
Contrato Social).

Cf. WEBER. Economy and Society: an Outline of Interpretive Sociology, v. 1, p. 215 et seq.

Habermas assinala que, “porque a questão da legitimidade das leis garantidoras da liberdade tem de
encontrar uma resposta dentro do direito positivo, o contrato social não pode impor e fazer valer o
‘princípio do direito’ senão ligando a formação da vontade política do legislador a condições de um
procedimento democrático, sob as quais os resultados produzidos conforme o procedimento expressem
per se a vontade concordante ou o consenso racional de todos os implicados” (HABERMAS. Facticidad y
validez: sobre el derecho y el Estado Democrático de Derecho en términos de teoría del discurso, p. 159,
tradução livre).

Nesse sentido, Habermas afirma que “os direitos humanos e o princípio da soberania popular não são por
casualidade as únicas ideias sob cuja luz cabe justificar o direito moderno. Pois essas são as duas ideias
em que se acabam condensando aqueles conteúdos que, por assim dizer, são os únicos que restam quando
a substância normativa de um ethos ancorado em tradições religiosas e metafísicas é obrigado a passar
pelo filtro das fundamentações pós--tradicionais” (Facticidad y validez: sobre el derecho y el Estado
Democrático de Derecho en términos de teoría del discurso, p. 164, tradução livre).

Não é por outra razão que Weber reconhece que a legitimação racional do Estado está atrelada ao
surgimento de um aparato burocrático. Cf. WEBER. Economy and Society: an Outline of Interpretive
Sociology, v. 1, p. 218-220.

Não seria absurdo afirmar a existência de uma democracia republicana em Estados monárquicos. Esse
parece ser o caso da Grã-Bretanha. O exemplo serve para demonstrar como o conceito de democracia
republicana passou a ter configurações distintas daquelas originais.

Na língua inglesa, há um vocábulo específico para indicar essa característica. Trata-se de accountability,
que não pode ser traduzido simplesmente por responsabilização, ainda que esse seja o conceito mais
próximo, em português.

Utilizei, de modo intencionalmente provocativo, a expressão “Direito Administrativo do Espetáculo” para


designar essas propostas. Confira-se O Direito Administrativo do Espetáculo. In: ARAGÃO, Marques Neto
(Org.). Direito Administrativo e seus novos paradigmas. 2. ed., Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 57-79.

10

Em uma definição expositiva, Robert Owen Paxton afirma que o fascismo consiste numa “forma de
comportamento político marcado por uma preocupação obsessiva com a decadência e a humilhação da
comunidade, vista como vítima, e por cultos compensatórios da unidade, da energia e da pureza, nas
quais um partido de base popular formado por militantes nacionalistas engajados, operando em
cooperação desconfortável, mas eficaz com as elites tradicionais, repudia as liberdades democráticas e
passa a perseguir objetivos de limpeza étnica e expansão externa por meio de uma violência redentora e
sem estar submetido a restrições éticas ou legais de qualquer natureza” (A anatomia do fascismo, p. 358).

11

Sob esse enfoque, Daniel Sarmento assevera que “é legítimo e necessário estabelecer limites para as
maiorias de cada momento, sobretudo ligados à proteção dos direitos fundamentais e das regras ligadas à
preservação do próprio processo democrático, e de que é essencial, por outro lado, atribuir ao Judiciário o
poder de fiscalizar o respeito a estes limites”. SARMENTO. Ubiquidade constitucional. Revista de Direito do
Estado – RDE, n. 2, 83-118, abr./jun. 2006, p. 101.

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