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A fase de cumprimento das recomendações no sistema de solução de controvérsias da OMC, por Celso Henrique

Conferência Mundial de Direitos Humanos, Viena (1993): a inter-relação entre democracia, desenvolvimento e
direitos humanos, por Joseildo Lima »

Matriz Americana de Direito Constitucional: caracteres inovadores e


influências, por Dalliana Vilar

Opera-se, hodiernamente, uma explícita anglo-saxonização dos ordenamentos jurídicos de


raízes de Civil Law. Tal fenômeno, por sua vez, é originário de influências do passado que implicaram na
transfronteirização de elementos do direito fundamental de matriz americana, seja a partir das teses federalistas e do
correlato princípio da separação de poderes, seja em face do presidencialismo, os quais fazem-se presentes no
ordenamento jurídico brasileiro, enquanto expressão de um histórico de assimilação da cultura estrangeira, neste
mundo, incluso o direito. Assim é que, à luz do relacionamento entre os respectivos Estados Nacionais, torna-se
patente o presente estudo, arraigado que está ao comportamento desses atores no meio internacional.

1 Introdução

Os regimes políticos contemporâneos podem ser relacionados a sistemas-padrão que lhes originaram e deram, pois,
suas bases. De forma tal a se caracterizarem distintos critérios de classificação, como: o determinado pelo processo
eleitoral, que distingue países de eleições livres, de eleições dirigidas, de eleições plebiscitárias e países sem eleições;
o tradicional, que estabelece os diferentes regimes, a saber: o parlamentar, o presidencial e o de assembléias; o
baseado na estrutura dos partidos políticos, o qual opõe os regimes de partido único aos bipartidários e aos
multipartidários; como também, o fundamentado na extensão ou limitação dos poderes da autoridade pública, que
distingue os regimes liberais, os semi-liberais e os totalitários. Aos quais acrescenta Maurice Duverger, realista e
logicamente, três categorias: o de tipo inglês, o de tipo americano e o de tipo russo (DUVERGER, p. 64/67).

Seguindo o último sistema-padrão, destrinchar-se-á o de tipo americano, cuja importância exprime-se através de sua
experiência, vivenciada não apenas nos Estados Unidos e sim em todo o continente americano e também através de
suas inovações, materializadas na sua Constituição de 1787, a pioneira Carta escrita da História.
Esta, constituída de 26 aditamentos, em que os 10 primeiros representam uma verdadeira declaração de direitos,
aprovada pelo Congresso em 1789 e promulgada pelos Estados em 1791 (MIRANDA, p. 125), põe seus princípios como
dogmas e os têm respeitados por toda a nação americana, seja devido a sua história ou devido a sua longevidade
(DUVERGER, p. 88), determinada, nos dizeres de J. Miranda, pela tradição jurídica anglo-saxônica, por sua elasticidade,
pela ação da jurisprudência e pelas circunstâncias histórico-sociais propícias (MIRANDA, p. 126).

A Constituição americana buscou organizar a Federação nascente a partir de instituições e princípios já estabelecidos
por sua ex-metrópole, quando de sua colonização, baseando-se, assim, no regime ora existente na Inglaterra, que,
ainda não definido completamente, correspondia a uma monarquia limitada pelo Parlamento e com total separação de
poderes. Substituindo os americanos, nesse ínterim, a figura real, baseada na teoria do direito divino, pela pessoa do
presidente, com base nas novas teorias da soberania nacional, e combinando, pois, democracia e poder pessoal
(DUVERGER, p. 87/89).

Nesse sentido, o Direito Constitucional dos Estados Unidos importou caracteres do sistema jurídico inglês, como os
advindos das Constituições impostas pela Coroa às antigas treze colônias, os Princípios Gerais de Direito Público, o
Common Law, além de instituições e tipos de comportamento político. De modo a uni-los ao pensamento político do
século XVIII, dotando sua estruturação do racionalismo descrito nas obras filosóficas, políticas e jurídicas, bem como
fazendo as adaptações necessárias às suas particularidades, a saber: o estabelecimento da forma federativa de governo
– como fruto da extensão territorial e da antecedência histórica – e a forma presidencial, resultada do espírito de
igualdade jurídico-política e da ausência de uma realeza local (MIRANDA, p. 126/127).

Restando imprescindível destacar que a Constituição americana, rígida – por estabelecer um processo diferenciado
para a elaboração de possíveis alterações – e elástica – por permitir sua adaptação às novas realidades mediante leis,
costumes ou ação jurisprudencial -, estrutura o novo Estado Federado em torno do federalismo, do presidencialismo e
do controle de constitucionalidade (Idem, p. 127), estabelecendo-se essas três inovações como elementos
caracterizadores de um sistema constitucional de matriz americana.

2 O Direito Constitucional dos Estados Unidos da América


Datada de 1787, a Constituição americana continua em vigor, com vinte e seis modificações introduzidas, chamadas
aditamentos, neste longo período de mais de dois séculos. Dentre essas modificações, apenas o aditamento de numero
18 foi revogado. Os dez primeiros aditamentos correspondem a uma declaração de direitos, situando-se entre as
grandes declarações liberais.

Tal Constituição, simultaneamente, revela, conforme citado anteriormente, seu caráter rígido e elástico. Rígido,
porque não pode ser alterada mediante o modelo utilizado pelas leis ordinárias. Elástico, pelo fato de que, a partir de
seu texto primitivo, têm-se gerado possibilidades de desenvolvimento através de leis, costumes e, sobretudo, através
das ações dos tribunais. Indubitavelmente, é a tradição jurídica anglo-saxônica, a elasticidade, o trabalho
jurisprudencial e as circunstancias histórico-sociais favoráveis que explicam e fazem perdurar ao longo de vários anos
a Constituição e a consistência das instituições políticas americanas.

Os Estados Unidos tiveram seu Direito Constitucional originado no sistema jurídico inglês e no pensamento político
do século XVIII. As principais fontes desse legado são as constituições outorgadas pela Coroa às treze colônias, os
princípios de Direito público – como o “no taxation whithout representation” – e, o common Law – que lançou a
percepção do importante papel do juiz. Estabelecendo, o mesmo Direito, instituições e tipos de comportamento
semelhantes aos dos britânicos.

As obras filosóficas, políticas e jurídicas, as quais versavam sobre questões de poder e racionalismo, não foram
esquecidas pelos pais da Constituição. Por isso, a influência do racionalismo que as impregnava foi tão intensa, como
perceptível mediante a adoção de alguns esquemas doutrinais nelas preconizados, dentre os quais destacando-se o da
separação de poderes, segundo Montesquieu, determinador dos ditos “checks and balances” – freios e contrapesos –
na organização dos poderes.

Um papel importante da história, que levou à construção da estrutura federativa, foi a antecedência histórica de
colônias declaradas Estados independentes e a grande extensão territorial, às quais se aditam outras determinantes, a
saber, a ausência de dinastia e o ambiente de igualdade jurídico-política, os quais acabaram por conduzir à
estruturação da Res Publica.

A atitude dos constituintes foi tanto voluntarista, quanto cognoscitiva. O racionalismo, sempre temperado pelo
empirismo, foi, acima de tudo, um caminho para organizar, apoiado pelo Direito Natural, uma união de Estados livres
e democráticos a preservar muito mais do que a construir novamente. Ou seja, o Direito Constitucional norte-
americano não pretendeu, pois, construir obra nova, mas, através de uma percepção analógica, adotar o sistema
inglês, sua pátria-mãe, transpondo-o.
Na época, 1787, o sistema inglês era distinto do atual, que difere bastante do norte-americano. Naquele, o regime
parlamentarista ainda não havia se concretizado e as instituições britânicas assemelhavam-se muito mais a uma
“simples Monarquia limitada pelo Parlamento, com separação total dos poderes” (DUVERGER, p. 89).

Nesse sentido, não tendo um Rei – cujo poder justificava-se pela Teoria do Direito Divino – os americanos, baseados
na estrutura britânica, substituíram tal figura pela do Presidente, representante de um poder singular, cuja existência
justificava-se pelas Teorias da Soberania Popular.

Desse modo, é reafirmado que o estudo do Direito constitucional norte-americano é de assaz importância,
principalmente, como outrora introduzido, devido ao significado da sua experiência, diante da qual foram instituídas
aquisições e novos elementos que dela emergiram.

As principais razões dessa experiência são que os Estados Unidos da América foram o grande Estado de tipo europeu
fora da Europa e foram atores ativos na primeira revolução vitoriosa, instituindo a primeira e mais duradoura
Constituição escrita, a qual teve sua base legal trabalhada, vivificada e desenvolvida pela jurisprudência, pautando-se
pelo Federalismo e pelo Regime Presidencialista.

De sorte tal a exercer expressiva influência sobre os regimes jurídico-políticos de outros países, sobretudo, os latino-
americanos, os quais, abarcando, em conjunto, a fiscalização judicial da constitucionalidade, o federalismo e o
presidencialismo, são denominados países de recepção em sistemas de matriz norte-americana.

3 A Constituição americana

Quanto a esta, além das considerações já apresentadas, convém destacar que ela, estruturadora de todo o regime
estadunidense, delegou a este, enquanto traço fundamental, a conjunção da democracia e do poder pessoal, investindo
num único homem o poder de representação popular, desde que livremente eleito pela Nação como um todo,
conforme bem elenca Maurice Duverger (Idem, p. 87).
Com fulcro em tal preceito, as nações americanas não dotam esse homem livremente eleito – o Presidente – de poder
absoluto, visto que, diante deles, a Constituição coloca o Parlamento eleito, partilhando entre eles o poder público. De
forma a estabelecer, portanto, um Executivo monocrático, um sistema de separação integral dos poderes e um regime
democrático e liberal – em que os governantes, eleitos de forma livre, apresentam poder limitado (Ibidem, p. 87/88).

Essa Carta Suprema, que estabelece a absoluta separação de poderes, sem prever, tendo em vista seu caráter
puramente sintético – já que composta por apenas 7 artigos -, meio algum de resolver os conflitos que venham a
surgir entre esses poderes, não acaba por se auto-destruir devido a dados fatores que Maurice Duverger (Ibidem, p.
94/95) oportunamente elenca.

Assim é que o sistema norte-americano apresenta uma feição real, que, na prática, atenua a separação total dos
poderes prevista na Constituição, através da estruturação dos partidos políticos, os quais fundamentam-se em bases
bipartidárias, pelas quais os partidos Republicano, inclinado para um reforço do poder estatal e defensor da não-
intervenção do Estado, e Democrata, hostil à centralização e preconizador do setor social, não possuem muitas
diferenças ideológicas, constituindo, na verdade, “gigantescas máquinas de conquistar o poder”, concebidas, de resto,
sob o ângulo da rentabilidade. De tal modo a abranger, cada partido, internamente, uma esquerda e uma direita. O
que, nas palavras de Max Weber, plenamente aplicáveis à atual realidade, pautando-se por um olhar pessimista sobre
a estrutura partidária americana, atrelando-a ao spoil system, assim se caracteriza:

(…) os partidos desprovidos de base doutrinária, reduzidos a meros instrumentos de disputas de postos, opõem-se uns aos outros e elaboram,
para cada campanha eleitoral, um programa que é função das possibilidades eleitorais. (…) Subordina-se a estrutura dos partidos, total e
exclusivamente, à batalha eleitoral, que é, muito acima de qualquer outra, a mais importante para o domínio dos empregos (…) posto de
presidente da União e de governador dos diversos Estados (WEBER, p. 98)

Assim também é que, nesse sistema, há supressão da aparente separação de poderes da Constituição pelo
bipartidarismo, visto que o partido majoritário no Congresso constitui uma linha estreita entre o Executivo e o
Legislativo, sendo o presidente, em geral, seu chefe. Havendo, no entanto, tendo em conta a diferença entre os
tempos de mandato (Presidente = 4 anos; Representantes = 2 anos; e Senadores = 6 anos), duas diferentes fases de
aplicação da Constituição Americana.
Uma primeira fase de colaboração relativa entre os poderes – “quando a maioria e o presidente são membros do
mesmo partido” (DUVERGER, p. 95) – na qual a colaboração é relativa, pois, tal qual supracitado, os partidos
americanos não são tão disciplinados quanto os britânicos, já que há uma esquerda e uma direita em cada partido e os
partidários possuem grande liberdade de opinião e voto. Além de uma segunda fase de separação absoluta de poderes
– quando a maioria e o presidente não são membros do mesmo partido.

4 A Estrutura do Regime de tipo americano e o presidencialismo

O Presidente, eleito para um mandato de 4 anos, vê-se beneficiário dum poder considerável, acumulando em si as
funções de chefe do Estado e de Presidente do Conselho. Assume as funções de Presidente de Conselho sem, no
entanto, responder por seus atos perante o Congresso ou perante seus ministros, que não podem nem lhe formular
perguntas nem o demitir. De modo a serem estes, ainda, meros auxiliares sem poderes governamentais próprios.

Visando à limitação dos poderes presidenciais, como dito, a Constituição institui, diante do Presidente, o Congresso,
composto por duas Câmaras, as quais devem agir em consonância no exercício dos poderes legislativo e
orçamentário.

Assim, cunha a Câmara dos Representantes, que “representa a unidade da Federação americana” (Idem, p. 91), para as
quais são eleitos os deputados proporcionalmente à população de cada Estado, e o Senado, que “representa os Estados
da União enquanto comunidades distintas no seio da Federação” (Ibidem, p. 91), sendo eleitos os senadores
igualitariamente, independentemente do quantum populacional de cada Estado. Este órgão, detentor de mais poderes
e muito mais prestígio que aquele, recebeu preponderância, especialmente, em matéria diplomática, com a ratificação
dos tratados, e em matéria administrativa, a partir da nomeação dos ditos altos funcionários.

Entre o Presidente e o Congresso, ao menos em teoria, a separação de poderes é absoluta, não podendo o Congresso
derrubar o primeiro nem o mesmo dissolver o segundo. Dando, entretanto, a Constituição, mais armas ao Presidente
contra o Congresso que o oposto, visto seu excepcional poder de veto.

Paralelamente aos quais, a Constituição americana instituiu também a Corte Suprema, como representante-mor do
Poder Judiciário, a qual, jurisprudencialmente, adquiriu assaz relevância através do controle de constitucionalidade,
originário do leading case “Marbury x Madison”, o qual vem a influenciar o atual controle de interpretação
conforme à Constituição empreendido no sistema jurídico brasileiro, cujo viés concentrado, é empreendido pelo
Supremo Tribunal Federal, a Corte Constitucional dessa Nação.

5 Notas Finais

Advinda de Montesquieu, a partir de uma releitura e aprofundamento das percepções de clássicos outros da política, a
concepção de separação dos poderes levou a Constituição dos EUA a prever 3 poderes, quais sejam, o Executivo, o
Legislativo e o Judiciário, relacionados num sistema em que cada um interfere no outro mediante controle externo,
contribuindo para a produção dos seus efeitos ou impedindo-a. A concretizar-se esse sistema em torno do
Presidencialismo norte-americano – forma de República baseada no princípio da democracia, com separação de
poderes.

Sistema presidencial este que comporta como características a diferenciação entre Presidente – órgão singular com
poder executivo – e Parlamento – Congresso Bicameral norte-americano com poder legislativo –, a colaboração no
exercício de suas funções, a independência mútua dos titulares dos órgãos, ambos eleitos, direta ou indiretamente,
não podendo o Presidente dissolver o Congresso nem este destituí-lo à prima facie, mas respondendo aquele, por
outro lado, politicamente através do impeachment. Assim, dotado o Presidente, na prática, de faculdades de impulsão
ou iniciativa e o Congresso de atividades de fiscalização.

Enquanto fundamento teórico, consoante supramencionado, o pensamento de Montesquieu influenciou enormemente


a adoção do presidencialismo, mas, em termos históricos, a experiência colonial – com governadores nomeados pela
Coroa Britânica e assembléias eletivas -, a tradição monárquica de raiz européia – que foi transposta para a figura do
presidente – e o anseio dos constituintes de evitarem tanto o despotismo de um único homem como os vícios das
assembléias constituintes foram determinantes para que fosse cunhado o sistema jurídico-político norte-americano.

Sistema este que, frise-se, exerceu notória influência sobre o sistema de organização político-jurídico estatal
brasileiro, assim como sobre os adotados por muitos países latino-americanos, sendo, de todo modo, imprescindível o
estudo comparativo do regime de tipo americano, o qual, em toda sua complexidade, envolve não apenas a
constatação objetiva dos caracteres dos diversos sistemas vigentes, mas também a análise das especialidades do
sistema norte-americano e de suas variações consoante as diversas condições regionais, cuja exploração intelectiva
não se pretende, nem se pode, esgotar com as presentes ilações, mas que, a partir destas, já podem ser compreendidas
em suas bases.
6 Referências Bibliográficas

ABRAHAM, Henry J. Freedom and the Courts: Civil rights and liberties in the United States. Nova Iorque: 3ª Ed.,
1997.

DUVERGER, Maurice; SOUZA, Geraldo Gerson de (Trad.). Os regimes políticos. SP: Difusão Européia do livro.

MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Democracia Local e Federalismo. Disponível em:
http://www.cadireito.com.br/artigos/art57.htm. Acesso em 13 fev. 2008.

MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo I. Coimbra: 2ª Ed., Editora Limitada, 1982.

NETO, Antônio Saboia de Melo. Federalismo e direitos sociais. Disponível em:


http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7315. Acesso em 13 fev. 2008.

WEBER, Max. Ciência e Política: Duas Vocações. SP: Martim Claret, 2006.

Revista
Artigo
O constitucionalismo norte-americano e sua contribuição
para a compreensão contemporânea da Constituição
José Luiz Quadros de Magalhães

Elaborado em 07/2004.

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De forma diferente do constitucionalismo inglês, nos Estados Unidos houve um poder constituinte originário que produziu
em 1787 um texto codificado, rígido e sintético com aspecto essencialmente principiológico e inicialmente político,
incorporando a declaração de direitos individuais fundamentais a partir da dez emendas que constituíram o Bill of Rights.

O constitucionalismo estadunidense criou o sistema de governo presidencial, o federalismo, o controle difuso de


constitucionalidade, mecanismo sofisticados de freios e contrapesos e uma Suprema Corte que protege a Constituição,
sendo sua composição uma expressão do sistema controle entre os poderes separados.

Sobre a constituição norte-americana muito tem sido dito, e por isto, muitos são também os equívocos. Primeiro diz-se
que os Estados Unidos tiveram apenas uma Constituição, mas esta não parece ser a compreensão de seus interpretes e
estudiosos. Alguns autores afirmam encontrar-se nos EUA ao menos três constituições, outros falam em sete
constituições diferentes. Isto significa que, embora desde 1787 o texto com sete artigos permaneça em vigor com 27
emendas, ocorreram modificações interpretativas que atribuíram sentidos diversos aos significantes do seu texto, e estas
mudanças de compreensão geraram novos direitos.

Para compreender o que foi dito é importante que lembrar que Constituição não é texto. O texto é um sistema de
significantes aos quais atribuímos significados. Neste sentido toda leitura de um texto, significa atribuição de sentidos e
atribuição de sentidos significa atribuir valores, valores estes que mudam com a mudança da sociedade. A sociedade
muda através das contradições e conflitos internos e externos. Logo, quando muda a sociedade, mudam os valores, logo
mudam os conceitos das palavras (significantes), aos quais portanto passamos atribuir novos significados.

O processo evolutivo da Constituição dos EUA ocorre principalmente através das suas mutações interpretativas,
decorrentes da evolução de valores de uma sociedade em permanente conflito.

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Jorge Miranda (1) afirma que a constituição norte-americana é simultaneamente rígida e elástica. Rígida porque a
alteração formal de seu texto é complexa e diferenciada do processo legislativo de elaboração de uma lei ordinária. Para
alterar o texto ou promover emendar aditivas ou supressivas é necessária a participação dos Estados membros da
federação em um processo lento e complexo. Isto explica em parte o número reduzido de emendas. Entretanto o
principal motivo da existência de poucas mudanças formais do texto, através de emendas, e o fato de que, este texto
sintético e principiológico permite mutações interpretativas, mudança de compreensão de seu sentido e do conceito de
seus princípios, que torna desnecessária o recurso constante a mudança do texto, pois muda-se a Constituição mudando
o seu sentido, a sua compreensão, sem ter que mudar o texto.

Importante ressaltar que a mudança interpretativa tem limites, impostos pelo próprio texto. Logo, um texto sintético, que
contenha mais princípios do que regras (2) permite maiores mudanças interpretativas, do que um texto analítico, com
excesso de regras, que travem a mudanças de compreensão dos princípios. Quanto mais detalhado o texto, quanto mais
regras, quanto maior o detalhamento do texto, que em alguns casos chega a especificar modelos, conceitos e traduzir
valores, menor o espaço para as mudanças interpretativas. Entretanto podemos dizer que mesmo um texto detalhado,
minucioso também muda de sentido, embora o espaço da mudança seja menor. Podemos concluir neste aspecto, que,
ao contrário do que se diz, de que a Constituição dos EUA é uma pequena, o seu texto sintético permite construções
interpretativas muito amplas, fazendo que a constituição dos EUA, juntamente com a Inglesa, seja uma das maiores
Constituições do planeta, pois para compreendê-la é necessário buscar a leitura que os tribunais fazem do seu texto.
Integram a Constituição as decisões judiciais que dão densidade aos seus princípios diante do caso concreto.

Este é o ponto que nos interessa de perto para a construção da idéia de jurisdição constitucional: o que ocorre nos EUA
ocorre em todo o mundo, com intensidade diferente. A interpretação, a atribuição de sentido ao texto, é fato que sempre
ocorre. O texto pos si só não existe, ele só passa a existir quando alguém lê, e quando isto ocorre, necessariamente
quem lê e atribui sentido, o faz a partir de suas compreensão dos significantes ali apresentados, jogando na
compreensão do texto os valores, as pré compreensões adquiridas do decorrer de sua vida. Podemos afirmar que é
impossível não interpretar.

Pode-se imaginar a partir daí que a relatividade e as variações das compreensões são muito grandes, e isto também é
fato. O que cabe ao jurista buscar, é a segurança jurídica possível diante do universo de compreensão que se abre com
esta descoberta. A segurança que se buscou no legalismo extremado, gerador de injustiças, não é de forma nenhuma a
solução. A inflação normativa, com a criação de regras para tudo é uma ilusão, que não gera segurança mas gera sim
injustiça e imobilismo autoritário.

Vivemos inseridos em sistemas de valores, em universos de compreensão que se inserem uns dentro dos outros.
Quanto maior o espaço de abrangência do sistema de compreensão, menor a sintonia fina existente, menores os
recursos de comunicação. O sistema jurídico constrói um universo de compreensão não uniforme, mas que oferece uma
maior segurança que o compreendermos em sua dimensão histórica e em sua dimensão sistêmica e teleológica. Este
assunto vamos enfrentar mais adiante, e vamos nos valer das reflexões de Ronald Dworkin para fazê-lo.

Votemos pois a história constitucional norte-americana para procurarmos entender a evolução constitucional daquele
país e a importante contribuição de sua prática histórica para as reflexões que envolvem a hermenêutica constitucional
em todo o mundo. (3)

Vamos tomar uma frase (em português) mas originária da declaração de independência dos Estados Unidos:

"TODOS OS HOMENS NASCEM LIVRES E IGUAIS EM DIREITO"


Como o leitor compreende estas palavras hoje, no século XXI (interrogação). Provavelmente da maneira como a grande
maioria da pessoas: todas a pessoas, indistintamente, sem diferenciação em razão de credo religiosos, etnia, cor, sexo,
origem econômica ou nacional nascem livres e iguais em Direito.

Como vemos, a expressão "todos os homens nascem livres e iguais em Direito" conquistou hoje o senso comum de
milhões de pessoas em quase todos os lugares do planeta onde há uma Constituição de um Estado nacional
relativamente democrático, com um significado que se universalizou. Entretanto para lermos e compreendermos esta
frase como a compreendemos hoje foram séculos de história, séculos de conflitos e lenta conquista de direitos. A
atribuição deste sentido aos significantes da frase, embora não seja realidade efetiva em diversas sociedades representa
um busca comum de boa parte da humanidade. A compreensão geral deste principio é hoje bastante generalizada,
embora a compreensão mais profunda da idéia de igualdade não seja tão uniforme, e nem deva ser, dentro de um
universo cultural diversificado, plural e democrático.

Se buscarmos no entanto, a compreensão desta frase no século XVIII, pouco depois da independência dos EUA, vamos
perceber que as palavras ganham um outro sentido, e logo as normas decorrentes deste princípio serão outras. O olhar
de um juiz norte-americano sobre estas palavras, expressando os valores daquela época, vai permitir que ele extraia
desta frase a seguinte compreensão: todos os homens (sexo masculino) brancos e protestantes, nascem livres e iguais
em direito. A mesma frase, com os mesmos significantes ganha sentido completamente diverso, pois o olhar do
interprete é condicionado pelos valores sociais e as pré-compreensões destes valores decorrentes em um determinado
momento da história. As compreensões são historicamente e geograficamente localizadas. Com outro sentido, as
normas decorrentes deste principio estabelecem uma ordem jurídica fundada sobre valores completamente diferentes, e
um sistema normativo também completamente diferente.

A situação de exclusão, e um desenvolvimento econômico distinto no norte industrializado e progressista e um sul


escravagista e conservador, gerou conflitos que levaram a guerra civil norte-americana. Os conflitos sociais, políticos e
econômicos empurram a sociedade a mudanças comportamentais, novos valores se afirmam e as compreensões do
mundo mudam gradualmente. Novos conceitos se afirmam diante de novas realidades, um novo universo de pré-
compreensões é paulatinamente construído e reconstruído. Novos significados se afirmam para os mesmo símbolos,
para os mesmo significantes, para as mesmas palavras. Um novo mundo se constrói na linguagem que é reconstruída
pela marcha econômica e social do capitalismo do século XIX. Estas mudanças ocorrem nas cabeças das pessoas.
Novas demandas se apresentam perante o Poder Judiciário, e juízes que incorporam estas novas compreensões
constroem soluções, novas normas diante do caso concreto que refletem estes valores. No final do século XIX as
mesmas palavras que traduzem o princípio das igualdade ganham novo significado e normas diferentes são criadas,
regulando as relações sociais, políticas e econômicas de forma diferente.

A frase "todos os homens nascem livres e iguais em direito" passa a ter um novo sentido, podendo ser traduzida da
seguinte forma: todos os homens (sexo masculino), brancos e negros, nascem livres e iguais em direitos, mas devem
viver separados. A existência de escolas só para brancos e só para negros, ônibus ou lugares nos transportes coletivos
só para brancos e só para negros assim como outras separações, são permitidas, desde a qualidade dos serviços sejam
iguais para brancos e negros. (4) Esta criada a doutrina do separados mas iguais. Este processo de mutação
interpretativa é muitas vezes lento, aparecendo pontualmente em algumas decisões judiciais, até se firmar enquanto
paradigma de compreensão durante algum tempo.

A compreensão do separados mas iguais permanece até a década de 1960 nos Estados Unidos. Os conflitos raciais, o
movimento pelos direitos civis na década de 1950 (5) e 60 com a liderança de Malcon X, o pastor Martin Luther King, a
eleição de John Kennedy em 1960 e a ação de Bob Kennedy na repressão aos movimentos racistas violentos da Ku Klux
Klan, empurram a sociedade norte americana para uma nova ruptura, com a construção de uma nova idéia de igualdade.
Lentamente a doutrina do separados mais iguais vai cedendo espaço a uma nova leitura do principio da igualdade
jurídica. A frase "todos os homens nascem livres e iguais em direito" passa a ser compreendida de outra maneira. Agora
podemos dizer que todos os homens, brancos, negros, vermelhos, amarelos, independente de cor, etnia ou qualquer
outra diferenciação, nascem livres e iguais em direitos, e não podem ser obrigados a viver separados em um sistema de
segregação, de qualquer espécie.

A igualdade direitos entre homens e mulheres entretanto ainda vai demorar um pouco mais. Em 1972, nos EUA, foi
proposta a 27 emenda, reconhecendo direitos iguais para homens e mulheres. Na sua proposição reconheceu-se que,
caso a Suprema Corte mudasse a orientação a respeito da igualdade jurídica, não seria necessária a aprovação da
emenda. E emenda não foi aprovada, encontrando forte resistência nos Estados do sul, mais conservadores. Entretanto
a Suprema Corte passa a compreender a igualdade perante a lei de uma nova forma. Podemos dizer que a frase "todos
os homens nascem livres e iguais em direitos" passa a ser compreendida da seguinte forma: todos os homens leia-se
todos os seres humanos, sem nenhuma distinção, nascem livres e iguais em direitos e não podem ser segregados ou
discriminados por nenhum motivo, seja cor, etnia, origem social ou econômica, ou sexo.

A igualdade de direitos entre mulheres e homens no Brasil só foi reconhecida expressamente com a Constituição de
1988, no seu artigo 5 inciso I. Em muitos países, hoje respeitados como modelos de Estado de bem estar democráticos,
os direitos das mulheres foi tardiamente reconhecido. Na Suíça, por exemplo, o voto feminino só foi admitido em nível
federal, a partir de 1972.

Como vimos o princípio da igualdade jurídica percorreu um caminho de mais de duzentos anos de conflitos até que
pudéssemos compreendê-lo com o significado que ele têm hoje. Este foi o percurso de um princípio. Quando falamos em
uma mutação sistêmica da compreensão do texto constitucional, esta representa a mudança de compreensão de toda a
Constituição. É como se adotasse uma nova Constituição. Talvez o exemplo mais claro disto tenha sido a passagem de
uma Constituição liberal para uma Constituição social, sem a alteração do texto, sem um processo formal de reforma e
sem um novo processo constituinte. Houve uma mudança de compreensão do texto no que diz respeito a admissão da
possibilidade de uma forte intervenção do Estado no domínio econômico, o que marca a introdução do Welfare State nos
Estados Unidos a partir do governo Roosevelt na década de 1930 e 1940, adotando um modelo econômico
intervencionista de base teórica keynesiano-fordista. (6)

A história constitucional norte-americana reforça a idéia de uma Constituição dinâmica, viva, que se reconstrói
diariamente diante da complexidade das sociedades contemporâneas. Uma Constituição presente em cada momento da
vida. Uma Constituição que é interpretação e não texto. A experiência norte-americana nos revela uma nova dimensão
da jurisdição constitucional, presente em toda a manifestação do Direito. É tarefa do agente do Direito, nas suas mais
diversas funções, dizer a Constituição no caso concreto e promover leituras constitucionalmente adequadas de todas a
normas e fatos. A vida é interpretação, não há texto que não seja interpretado. A interpretação do mundo, dos fatos, das
normas é inafastável.

Notas

1. MIRANDA, Jorge. Ob.cit.p.84


2. mais adiante vamos tratar da diferença entre princípios e regras

3. Não ignoramos a existência de uma rica hermenêutica no mundo oriental, muito anterior as reflexões ocidentais, mas
para abordamos este tema é necessário maiores estudos. Quando aptos a enfrentar e trazer as contribuições
históricas do oriente para a humanidade vamos fazê-lo. Agora ainda não.

4. A pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, professora Carla Dumont Olliveira observa em
sua pesquisa sobre a reforma da Constituição do EUA que no caso "Plessy v. Fergunson, foi questionada uma lei de
Louisiana de 1890 que exigia acomodações iguais para brancos e negros, porém em partes separadas de um mesmo
trem. A Suprema Corte entendeu que tal exigência era razoável e não feria a décima quarta emenda, pois o que
visava a referida lei era promover o interesse público, a paz pública e a boa ordem e não oprimir uma classe
específica. Consta, ainda, da decisão, cujo relator foi o Juiz Brown, que se as duas raças buscam igualdade social,
isso precisa ser o resultado do consentimento voluntário dos indivíduos, sendo que a legislação é impotente para
erradicar instintos raciais. (grifos nossos) Plessy v. Fergunson iniciou a denominada doutrina dos "separados, mas
iguais". Os precedentes Plessy v. Fergunson e Brown v. Board of Education foram retirados do livro : The American
Constitution. Cases – Comments – Questions P.939-941.

5. Carla Dumont Oliveira observa que "felizmente, em 1954, foi alterada a interpretação da décima quarta emenda com
Brown v. Board of Education, em cujo caso decidiu-se que no campo da educação pública, a doutrina dos "separados,
mas iguais" não tem cabimento. Entre outras coisas, asseverou-se que o senso de inferioridade afeta a motivação da
criança em aprender e que a segregação, de per si, é uma negação da igual proteção das leis. Verifica-se, pois,
alteração da Carta Magna, sem nenhuma alteração na letra da lei, mas significativa alteração no que tange à
concepção do princípio da igualdade."

6. Carla Dumont Oliveira observa que o "ritmo das alterações da Constituição Federal tem variado rapidamente
conforme o período histórico, apontando como fator determinante para isto relativo ativismo do governo federal.
Entende Stephen Griffin que a Suprema Corte não deve servir como principal guardião da mudança constitucional. As
principais mudanças constitucionais ocorridas ao longo do século vinte foram iniciadas e conduzidas pelo Presidente
e pelo Congresso. Importantes modificações ocorreram por outros meios que não emendas ou interpretação judicial.
(mudanças fundamentais como aquelas que se seguiram ao New Deal). Daí Griffin criticar a definição convencional
da Constituição como "conteúdo do documento de 1787, ratificado e validamente emendada, acrescido dos vários
precedentes interpretativos editados pelo judiciário federal" (José Ribas (Org.) Temas de direito constitucional norte-
americano. Rio de Janeiro: Forense, 2002, pág.65), por entender que tal definição não captura a total realidade da
mudança constitucional. Para solucionar este aparente desafio, Griffin propõe entender as revisões sugeridas como
tentativas para se explicar a Constituição, noticiando que normas que não estão no texto são funcionalmente
equivalentes a normas do texto."

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