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PRELIMINARES

1. O fenómeno politico e o Estado

Problemática do poder do Estado

Como qualquer outra manifestação de socialidade humana, o fenómeno político apresenta uma
dupla face: a de facto que acon-

tece na vida das pessoas em relação ou como aspeto desta, e a de realidade impregnada de
valores.

Ο que seja ele exatamente vem a ser, contudo, desde há muito, ponto de discussão em diferentes
disciplinas. Liga-se ao poder, ao

poder político ou, na tradição clássica, à Civitas, à realização do Homem na Cidade e ao bem
comum temporal. Há quem afirme a sua especificidade irredutível e há quem, pelo contrário, o
reconduza

a fenómenos de distinta natureza.

Uns acentuam elementos espirituais, v. g., as condições de legi- timidade dos governantes; outros
concentram-se em elementos mate- riais, v. g., a subordinação dos mais fracos aos mais fortes ou o
domínio exercido por uma classe social e baseado na diferenciação económica. Uns recorrem a
explicações contratualistas, outros a explicações institucionalistas, outros ainda, por exemplo, a
explica- ções funcionalistas.

Até há algumas décadas, este fenómeno referia-se ao Estado, societas perfecta com diferenciação
de governantes e governados (ou ao Estado e a entidades autónomas nele integradas). Hoje, tende
a situar-se também, de diferentes maneiras, frente a diversas instâncias as da comunidade
internacional crescentemente institucionalizada, quer através das Nações Unidas e das
organizações especializadas, quer através de formações de integração, ditas supra ou
transnacionais. No entanto, apesar de se falar, com ou sem razão, em crise do

Estado ainda continua a ser o Estado que se encontra no centro de toda a problemática política,
porque continua a ser a sua autoridade

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conjunto de normas (regras e principios) que recortam o contexto juridico correspondente à


comunidade política como um todo e al situam os individuos e os grupos uns em face dos outros e
perante Estado-poder e que, ao mesmo tempo, definem a titularidade do poder, os modos de
formação e manifestação da vontade politica, os órgãos de que esta carece e os atos em que se
concretiza.

Chama-se também Direito político, por essas serem normas que se reportam direta e imediatamente
ao Estado, que constituemo estatuto juridico do Estado ou do político, que exprimem um parti- cular
enlace da dimensão política e da dimensão juridica das relações entre os homens.

Qualquer Estado, em qualquer época e lugar, postula sempre normas com tal função. O que não
podem deixar de variar são a intensidade, a extensão e o alcance dessas normas e as funções
conexas ou complementares que se lhes prendam. E variam não apenas em virtude das condições
gerais de conservação ou de modi- ficação do ordenamento mas sobretudo em virtude dos fins e
dos modos de exercício do poder e das posições recíprocas de governan- tes e governados (em que
consistem os regimes, as formas de governo, os sistemas políticos).

Il-Falando em Direito constitucional, pensa-se mais na regn- lamentação juridica, no estatuto, na


forma de Direito que é a Cons- tituição. Falando em Direito politico pensa-se mais no objeto da
regulamentação.

Como a Constituição nesta aceção se afigura inerente ao con- ceito ou indissociável da existência
do Estado, dir-se-ia de todo em todo indiferente empregar o primeiro ou o segundo qualificativo. Mas
não é tanto assim, porque cabe proceder a uma delimitação resultante da experiència histórica e
exigida pelas necessidades de estudo.

Na verdade, ninguém ignora o marco representado na história do Estado e do Direito público pelas
revoluções dos séculos XVIII e XIX e suas sequelas, as quais puseram termo ao Estado absoluto e
abriram caminho a um novo modelo ou tipo de organização política, o Estado constitucional,
representativo ou de Direito. E, doravante, do que se trata é, justamente, do Direito constitucional do
Estado

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vida pública, dos quais é depois indissociável. Um conjunto de principis dico-juridicos e filosófico-
politicos (embora de ins

pirações algo diversas) vêm-na justificar e vêm-na criar (1)


Os mais significativos textos desta nova conceção são americanos e franceses- -a Declaração de
Direitos de Virgínia e a Declaração de Inde- pendência dos Estados Unidos, ambas de 1776, e a
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, aquelas mais próximas do pensamento
cristão, esta de um racionalismo laico.

Lê-se no art. 1.º da Declaração de Direitos do Estado de Virginia:

«Todos os homens são, por natureza, livres e têm certos direitos inatos, de que, quando entram no
estado de sociedade, não podem, por nenhuma forma, privar ou despojar a sua posteridade,
nomeadamente o direito à vida e à liberdade, tal como os meios de adquirir e possuir a propriedade
e procurar obter a felicidade e a segurança».

Na Declaração de Independência dos Estados Unidos afirma-se: «<Con- sideramos de per si


evidentes as verdades seguintes: todos os homens são criaturas iguais, são dotados pelo seu
Criador de certos direitos inalienáveis e, entre estes, acham-se a vida, a liberdade e a busca de
felicidade; os governos são estabelecidos entre os homens para assegurar estes direitos e os seus
justos poderes derivam do consentimento dos governados; quando a forma de governo se torna
ofensiva destes fins é direito do povo alterá-la, ou aboli-la e instituir novo governo...>>.

Por sua vez, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (votada pela Assembleia Nacional
francesa), proclama-se no art. 1.°: «Os homens nascem e são livres e iguais em direitos, as
instituições políticas só podem fundar-se na utilidade comum». No art. 2.: «O fim de toda a
associação politica é a conservação dos

direitos naturais e imprescritíveis do homem. Estes direitos são a liberdade,

a propriedade, a segurança e a resistência à opressão».

No art. 6.: «A lei é a expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer,
pessoalmente ou através dos seus representantes, para a sua formação...». No art. 16.: «Qualquer
sociedade em que não esteja assegurada a

garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição».

Nosso Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade, Lisboa, 1968,

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pág. 30.
desse Estado e Direito internacional, pertenga de alguém ao p depende das leis da nacionalidade ou
cidadania e envolve determi nado estatuto dentro da ordem juridica estatal, a pertenga de alguma
porção de território ao Estado depende do Direito internacional, e o poder de cada Estado somente
atinge o seu povo e o seu territo e não os de outros Estados, porque povo e territého vem a ver con-
dições de existência (ou limites) do seu ordenamento juridis

E isto que é muito não abarca tudo. Há ainda que observar que,

no desenvolvimento de toda a sua atividade, o Estado e as demais

entidades públicas (regiões autónomas, autarquías locais, institutes

públicos, associações públicas, etc.) tem de se mover segundo regras

jurídicas

sejam quais forem as fontes donde essas regras prove

nham (nomeadamente, de natureza legal ou consuetudinária), o con-

teúdo e o sentido que possuam, as conceções que lhes presidam e os

procedimentos de agir que instituam.

São extremamente variados e tantas vezes antay/micos os regimes, as formas de governo, os


sistemas políticos: a mais elementar compa ração, por exemplo, mostra as diferenças que existem
entre um regime como o norte-americano e um regime como o soviético de 1917 a 1991, entre um
regime como o portugués no domínio da Constituição de 1976 e um regime como o portugués no
domínio da Constituição de 1933. Não obstante, em todos os regimes e sistemas políticos,
passados.ou atuais, encontram-se valores e principios juridicos a defini-los, a leg timá-los (ou a
procurar legitimá-los), a conformá-los, a orientá-los.

A sujeição do Estado ao Direito, inclusive ao seu próprio Direito positivo eis a base do Direito público
e, antes de mais, do Direito constitucional

3. O Direito constitucional

O Direito constitucional é a parcela da ordem juridica que rege o próprio Estado enquanto
comunidade e enquanto poder, É

a que se exerce diretamente sobre as pessoas, assim como é só nele que as pessoas têm
alcançado plenos direitos de participação política; e porque, apesar da dinâmica que têm adquirido
as organizações internacionais e a União Europeia, as grandes decisões assentar, essencialmente,
na conjugação das vontades dos Estados membres

Voltaremos a aludir à problemática assim enunciada mais adiante, mas os lugares próprios para o
seu tratamento serão os tomos II e III (

2. Sujeição do Estado e das demais instituições públicas ao Direito

Não são apenas os indivíduos (ou os particulares) que vivem subordinados a normas jurídicas.
Igualmente o Estado e as demais instituições que exercem autoridade pública devem obediência ao
Direito (incluindo ao Direito que criam).

Se pode ter-se por exagerada a posição dos autores que assimi- lam o fenómeno estatal ao
fenómeno normativo, pelo menos é claro que o Estado não pode ser compreendido sem Direito -que
trans- forma as pessoas em cidadãos, que estabelece as condições de acesso aos cargos públicos,
que confere segurança às relações entre os cidadãos e entre eles e o poder.

Para lá dos elementos histórico, geográfico, económico, político, moral e afetivo, encontra-se
sempre um elemento juridico traduzido na criação de direitos e deveres, de faculdades e
vinculações. Os governantes têm de ter o direito de mandar e os governados o dever desobedecer.
Não bastam a força ou a conveniência: não há uma ideia de poder sem uma ideia de Direito e a
autoridade dos gover- nantes em concreto tem de ser uma autoridade constituida cons fituida por
um conjunto de normas fundamentais, pela Constituição como quer que esta se apresente.

Do mesmo modo, o povo e o território não são o povo & território do Estado senão em termos de
Direito Direito interno

constitucional, do Direito que aparece ligado a uma Constituição (escrita, salvo na Grã-Bretanha), do
Direito que se encontra numa Constituição com um conteúdo determinado e com uma força jurí-
dica diversa da dos outros corpos de normas do ordenamento.

O Direito constitucional provém do constitucionalismo moderno, e mesmo quando, como sucede em


numerosos países no nosso tempo, se distancia muitíssimo das linhas ideológicas iniciais deste,
está associado a noções de Constituição material, formal e instru- mental antes desconhecidas. É o
Direito constitucional assim bali- zado que se torna, por seu turno, alvo de um tratamento científico e
didático especializado aquele que leva a cabo a ciência do Direito constitucional e a que não pode
comparar-se o rudimentar e vago tratamento do precedente Direito público (1) (2)

Por outro lado, não raro, ao adotar-se a expressão Direito poli- tico segue-se uma visão restritiva do
seu âmbito, circunscrevendo-o à organização e à limitação jurídica do poder político. Ou seja: reduz-
se o Direito político ao Direito do Estado-poder e relega-se para fora ou para diferentes zonas tudo
quanto concerne ao Estado- -comunidade. Porém, esta maneira de entender deve ter-se por
insatisfatória, pois não pode haver estatuto de poder sem estatuto da comunidade política a que se
reporta, nem limitação da autori- dade dos governantes sem consideração da liberdade dos gover-
nados.

A Constituição é tanto Constituição política como Constituição


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social, não se cinge à ordenação da vida estatal (em sentido estrito). Nem sequer o Direito
constitucional do século XIX se confinava aos órgãos e agentes do poder politico; ele era, além
disso (ou atraves disso), um Direito dos cidadãos diante do poder garantir os direitos e liberdades
individuais e ao incluir neles a pro- priedade, intervinha, pelo menos negativamente, na sociedade.
E. como se reconhece à vista desarmada, as Constituições atuais contemplam larguissimos aspetos
e áreas da dinâmica económica. social e cultural em interação com o Estado. <-ao

Por estes motivos, na presente obra preferir-se-á o termo Direito constitucional ao termo Direito
politico (3)

III - O alargamento do fenómeno político para além e para cima do Estado e a sua recorrentemente
citada crise não poem em causa o Direito Constitucional enquanto Direito da Constituição, porque
Constituição é ato fundacional de ordenamento juridico e pressupõe um poder originário, o poder
constituinte.

E, por isso, como se mostrará no desenvolvimento do Manual, que não se afigura correto sustentar
a existência de um Direito

constitucional internacional ou de uma Constituição europeia, mesmo se são evidentes alguns sinais
de aproximação e se fatores de constitucionalidade, de supremacia ou de hierarquia aparecem em
face do jus cogens, de certos artigos da Carta das Nações Uni- das ou da jurisprudência do Tribunal
de Justiça das Comunidades Europeias.

De qualquer modo, se, porventura, viesse a emergir uma Cons- tituição da comunidade internacional
verdadeira e própria ou se o tratado constitutivo da União Europeia se viesse a converter outros- sim
em Constituição verdadeira e própria, tal não significaria senão mais, e não menos, Direito
Constitucional. Reduzidas a Constitui- ções de Estados federados, as Constituições dos atuais
Estados soberanos viriam tão só a ter de coexistir, subordinadamente, com as Constituições das
uniões federativas correspondentes. Seria o constitucionalismo global ou de múltiplos níveis
(multilevel consti- tutionalism) acolhido já hoje por alguma doutrina (1)

4. O Direito constitucional e a ordem jurídica do Estado

I-O político é o global, o que respeita a todos, o que abrange, coordena e sintetiza a pluralidade de
grupos, interesses e situações. E terá assim de ser também o Direito constitucional, enquanto se lhe
refere constantemente para o fundamentar, refletir e conter nas suas normas.

Mais do que um ramo a par de outros, o Direito constitucional deve ser apercebido como o tronco da
ordem jurídica estatal (mas só desta), o tronco donde arrancam os ramos da grande árvore que
corresponde a essa ordem jurídica (2). Integrando e organizando a comunidade e o poder, ele
enuncia (na célebre expressão de PELLE- GRINO ROSSI) as têtes de chapitre dos vários ramos do
Direito, os
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princípios fundamentais que os enformam; e enuncia-os, porque tais principios revestem um


significado político, identificam-se com as conceções dominantes acerca da vida coletiva,
consubstanciam uma ideia de Direito.

Ou, doutra perspetiva, na medida em que a Constituição esta- belece pressupostos de criação,
vigência e execução das normas do resto do ordenamento jurídico, determinando amplamente o seu
con- teúdo, converte-se em elemento de unidade do ordenamento jurídico da comunidade no seu
conjunto, no seio do qual impede tanto o isolamento do Direito constitucional como a existência
isolada das demais parcelas de Direito umas em relação às outras (1)

II-A atual Constituição portuguesa, por exemplo, está longe de se esgotar no tratamento dos órgãos
do poder (constante da sua parte III). Ai se divisam, com não menor importância, princípios de
Direito penal (arts. 29.° e 30.0), de Direito processual penal (arts. 28.0 e 32.0), de Direito da família
(art. 36.°), de Direito do trabalho (arts. 53. e segs.), de Direito tributário (arts. 103.° e 104.9), de
Direito financeiro (arts. 105.° e seg.), de Direito judiciário (arts. 202.° e segs.), de Direito
administrativo (arts. 266.° e segs.), etc. ).

E estes princípios não são apenas constitucionais por se inseri- rem na Constituição formal e se
imporem ao legislador ordinário. São, do mesmo passo, princípios constitucionais substantivos ou
materiais, pela sua relevância no plano dos valores da comunidade política que se ancoram na
Constituição; participam de pleno da Constituição material (3)

III — Por via dos princípios (ainda que, por natureza, suscetí- veis de sucessivas refrações e
densificações), a Constituição irradia para todo o ordenamento, e porque novos domínios vão
entrando sob

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a sua alçada, é um impulso de constitucionalização que se verifica tudo arrimado no incremento dos
mecanismos jurisdicionais de fiscalização de constitucionalidade. São correntes hoje estudos de
Direito constitucional penal, de Direito constitucional do trabalho, de Direito constitucional do
ambiente, de Direito constitucional da economia, de Direito constitucional financeiro, etc.

Nem por isso, porém, cada um dos ramos deixa de se desenvol- ver num conglomerado de
preceitos e até de princípios próprios 1 necessariamente, para subsistirem, não discrepantes
daqueles - formulados em atenção à sua problemática particular e às exigências económico-sociais
e científico-culturais a que cabe responder.

No Direito constitucional só entra o que contende com a estru- turação da comunidade e do poder
político (aquilo que é constitutivo ou constitucional do Estado) e possui significado político (ou signi-
ficado político imediato). Não aquilo que toca aos particulares, aos grupos e aos poderes sociais não
políticos enquanto tais. Entra a sociedade «enquanto ser político», não entra a sociedade na
múltipla teia de relações que se desenvolvem à margem da atividade política. Outra coisa
redundaria quer na desvitalização dos vários ramos quer na absorção da sociedade pelo Estado.
V Em recente estudo, Menezes Cordeiro (2) escreve que «o Direito privado particularmente o civil
constitui o grande pano de fundo sobre o qual vêm, depois, aderir as mais diversas especializações.
Todas as relações suscetíveis de se estabelecerem entre os seres humanos, por iniciativa destes,
são objeto do Direito privado. A organização livre da sociedade e os princípios a ela relativos são
privados. O Direito privado vale por si: adere estritamente às pessoas, não carecendo de se justificar
pelos fins que prossiga. Finalmente: o Direito privado advém da História

-designadamente do ius romanum lador. estando menos dependente do legis-

<«<Perante isso, o Direito público ou os Direitos públicos, já que existem ramos distintos, sendo
paradigmático o Direito administrativo surge como um Direito especial: o Direito que regula a
Administração, ou as Finanças Públicas ou quaisquer outros domínios do Estado. Pode falar-se no
Direito dos titulares de poderes de soberania, no Direito dos princípios da livre organização do
Estado ou, simplesmente, no Direito especial do Estado».

Eis uma posição que não podemos, de nenhuma sorte, acompanhar e que nos suscita as seguintes
observações:

1.9) Um quid é o Direito, outro quid a Ciência do Direito. A dicoto- mia Direito público - Direito
privado remonta a Roma. «Publicum jus est quod ad statum rei romanae spectat. Privatum, quod ad
singulorum utili- tatem» (Ulpiano, D, 1,1,1,2) (). Mas, pela natureza dos sistemas políticos que se
sucederam até aos séculos XVIII-XIX, os estudos científicos do Direito público poucas condições
tiveram para crescer e ficaram obnubilados pela Filosofia política, em contraste com a linha contínua
da civilística.

2.) Especialidade implica um grau maior ou menor de variações de soluções no âmbito de um


mesmo principio. Ora, não se vislumbra qual seja a relação de especialidade do Direito
Administrativo au do «Direito dos titulares dos órgãos de soberania» ou do «<Direito dos princípios
da livre organização do Estado» (forma eufemistica de designar o Direito constitu- cional) frente ao
Direito privado. Bem pelo contrário, se o Direito civil é o Direito da sociedade e o Direito público o
Direito do Estado (lato sensu), só poderia conceber-se tal especialidade de Direito público à luz de
um individualismo que, por certo, aquele Autor não perfilha.

3.) Principios comuns, e dos quais deriva a unidade da ordem juri- dica, são os que constam da
Constituição, não os do Código Civil. E tanto é assim que, como a experiência histórica demonstra,
cada Constituição material, cada regime politico e social nela consignado, vai determinar qu
condicionar o Direito civil. Basta pensar no Direito privado islâmico ou no dos regimes de tipo
soviético; ou, entre nós, na reforma do Código Civil, de 1977, na sequência da Constituição de 1976.

4.) Diz-se (a pág. 21 do texto em apreço) que o Direito privado foi-se construindo enformado pelos
parâmetros de igualdade e de liberdade. Porém, antes das Constituições modernas e dos Códigos
Civis, nem todas as pessoas eram iguais e livres. Igualdade e liberdade para os nobres e os
clérigos, não para os plebeus; igualdade e liberdade para os que professas- sem a religião do
Estado, não para os que a não professassem; para os homens, não para as mulheres, etc. Apenas
ao longo dos últimos 200 anos se abriria caminho para a «organização livre da sociedade», da
sociedade como conjunto de todas as pessoas.

5.) Mais: se essa organização livre passa pelos direitos de persona- lidade e pelos outros direitos
presentes na lei civil, passa ainda mais pelos direitos e liberdades fundamentais garantidos pelas
Constituições e que vinculam (não necessariamente em molds idênticos) quer as entidades públicas
quer as privadas. E o Direito constitucional (pelo menos, no Oci- dente) assenta, justamente, nesses
direitos e liberdades.
6.) O que vale para o Direito civil vale, similarmente, para o Direito penal e para o Direito processual
(não considerados, por sinal, no estudo de Menezes Cordeiro). Também a humanização de ambos e
a conquista da igualdade no segundo decorreram das grandes declarações de direitos, do
iluminismo aos nossos dias.

5. Os grandes capítulos do Direito constitucional

I-Na linha do que se dá com a própria distribuição da ordem jurídica e do que ocorre noutros setores
(no Direito civil, no Direito

penal, no Direito administrativo), podem no Direito constitucional ser demarcados capitulos algo
diferentes, tendo em conta as matérias que recobrem.

Alguns destes grandes capítulos vêm desde o início do consti- tucionalismo. Assim, o Direito
parlamentar, conjunto das regras respeitantes à organização, ao funcionamento e ao processo do
Par- lamento; ou o Direito eleitoral, conjunto das normas reguladoras das eleições políticas, desde a
capacidade eleitoral e o recenseamento ao sufrágio, ao apuramento e ao contencioso.

Outros, sobretudo alguns dos que se dirigem predominantemente ao Estado-comunidade, são mais
recentes. Um dos mais importantes é o Direito constitucional da economia ou Constituição
económica, conjunto das normas que definem a organização e o funcionamento da economia como
uma das dimensões da comunidade política. E também se fala em Constituição financeira, em
Constituição social "Patito de uma ou em Constituição cultural (1)

pard a

Outros somente existem em sistemas constitucionais determina- dos, Assim, o Direito processual
constitucional, que não aparece senão onde se dê uma fiscalização jurisdicional ou
jurisdicionalizada da constitucionalidade das leis através de um órgão de competência concentrada
(um tribunal constitucional ou órgão homólogo), com o seu processo próprio sujeito a regras
específicas; ou o Direito regio- nal, isto é, o Direito respeitante às regiões autónomas (nos Estados
que se organizem com regiões autónomas).

E, de certa maneira, poderia contrapor-se um Direito constitu- cional interno ou central (abrangendo
as liberdades fundamentais, a organização do poder político, a garantia e a revisão da Constituição)
a um Direito constitucional externo ou periférico (compreendendo os principios basilares dos
grandes ramos do Direito).

II- Todos estes grandes capítulos, ramos ou partes especiais do Direito constitucional são
preenchidos, primeiro, por normas formalmente tidas por constitucionais e assentes no documento
ou

texto chamado Constituição e, depois, por normas de outras catego- rias que àquelas dão imediato
complemento e delas se tornam indis- sociáveis. O Direito parlamentar português, por exemplo,
abrange as normas contidas na Constituição, várias leis e, obviamente, o regimento da Assembleia
da República e os das Assembleias Legis- lativas Regionais dos Açores e da Madeira.
Se as normas formalmente constitucionais -quer dizer, dotadas de uma forma e de uma força
jurídica específicas - não se despren- dem nunca de uma referência material ou substantiva,
também elas não esgotam as normas materialmente constitucionais quer dizer, as normas que têm
por objeto o estatuto do Estado. Uma Constitui- ção nunca é um Código no mesmo sentido de um
Código Civil.

6. Direito constitucional e Direito administrativo

Nem sempre hoje se consegue traçar com nitidez as fronteiras do Direito constitucional e do Direito
administrativo.

O Direito administrativo não compreende só as normas regula- doras da estrutura e da disciplina


interna da Administração e as da atuação dos elementos desta como sujeitos de direitos no
exercicio dos seus poderes e no cumprimento dos seus deveres legais para com os administrados ";
compreende também as normas de garantia dos direitos e interesses destes. Surgido, tal como o
Direito constitucio- nal, com o constitucionalismo, nele perpassa a tensão entre os pode- res de
decisão e de execução dos órgãos administrativos e a neces- sidade de defesa dos direitos e dos
interesses dos administrades. O princípio da legalidade da administração pressupõe o da constitu-
cionalidade da lei.

Ora, o alargamento da intervenção do poder público na vida económica, social e cultural e as


mutações sofridas pela lei têm levado a alguma indefinição acerca das matérias que devem receber
a qualidade de constitucionais e daqueloutras que devem ter-se por administrativas. Quando o
Estado do século xx ou do século XXI se

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