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As Políticas Públicas de Assistência Social e a Atuação Profissional dos(as) Psicólogos(as)

Maria de Fatima Pereira


Alberto Mayara Limeira Freire
Fernanda Moreira Leite
Charlene Nayana Nunes Alves Gouveia

DAS PRIMEIRAS FORMAS DE ESTADO À PROTEÇÃO SOCIAL


O conceito de política é polissêmico e histórico, mas há certo consenso teórico de que o seu
surgimento reside no âmbito das cidades-estado gregas, em vista da ideia de que a liberdade,
para o grego, era a própria razão de viver; define-se, assim, uma forma de atividade ou de
práxis humana. O termo política, na origem, era associado a polis, ou seja, às atividades
humanas desenvolvidas na esfera pública, cidadã e social. Posteriormente, com a obra de
Aristóteles, o termo foi ganhando novos significados e passou também a significar o estudo do
tema ou o saber construído sobre essa esfera da atividade política. Embora a construção do
significado de política ao longo dos anos tenha adquirido novas conotações, manteve-se a
atividade política do Estado
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como centro na elaboração de ações construídas por meio das relações no meio social (Bobbio,
1986).
O Estado, ao longo da história da humanidade, também adquiriu significados diferentes:
Estado Antigo, Estado Grego, Estado Romano, Estado Medieval e Estado Moderno. Nas
antigas civilizações orientais de caráter teocrático, prevalece a diferenciação de castas com
predomínio da sacerdotal. A autoridade tem origem divina e dela emanam o poder dos
governantes e as regras de conduta dos governados, mas sem divisão política, territorial ou de
funções. Na Antiguidade grega, não se pode falar em Estado como unidade única, mas este se
configura sob a forma das cidades: estado, nas quais se fazem presentes a soberania, a
autonomia administrativa e executiva desempenhada por uma elite de cidadãos, aí
compreendidos aqueles que detinham a liberdade e posses. Já o exercício da atividade
econômica era delegado aos escravos, que viviam exclusivamente para a política ou para a
polis (cidade), pois a sua vida se confundia com a do Estado. Quanto ao Estado Romano, este
origina-se do agrupamento de famílias, compostas pelos descendentes dos fundadores, a quem
cabia o privilégio político, administrativo e militar, logo a condição de cidadania. Só
posteriormente, com as demandas por recursos para manter seus domínios e a anexação de
territórios conquistados, parte dos privilégios expandiu-se para outros, para o povo. Portanto, a
base do Estado Romano, que foi política e militar, esteve restrita aos cidadãos.
No medievo, prevalecem a autoridade e domínio universal da Igreja. Apesar de o poder
dividir-se entre Igreja e nobreza, cabia a essa última apenas o controle dos feudos. O longo
período medieval compôs-se por formas diferenciadas de organização política, caracterizado
essencialmente pelo domínio e concentração do poder da Igreja e por intensas lutas territoriais
que culminam com a unificação de territórios, com a soberania do Estado e com a legitimação
do poder por intermédio do Direito. Com a obra de Maquiavel, O Príncipe, inaugura-se o
Estado Moderno, centralizado no soberano, cujos poderes e autoridade têm origem divina
(Bobbio, 1987; Bobbio, Matteucci & Paquino, 2000; Ferreira & Correia, s/d). E a
Institucionalização política do Estado
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"como unidade territorial, separação do público e do privado, divisando o poder político do


poder econômico, atuando cada um em sua esfera própria e, por consequência, também se
separam as funções administrativas, políticas e sociedade civil" (Ferreira & Correia, s/d, p. 18).
Foi com o liberalismo, no entanto, que o Estado se expressou, por meio da promulgação de
constituições e de leis fundamentais que sancionaram a divisão dos poderes, os direitos e
obrigações dos indivíduos e a nova ordem social. No seio dessa nova ordem, intensos
movimentos dos trabalhadores e a reivindicação dos direitos individuais tiveram lugar. O
declínio do liberalismo fez emergir o Estado Social protecionista: passagem do Estado Liberal
ao Estado Social, surgimento do Welfare State.
Dada a complexidade implicada, o termo política pode ser compreendido de duas
formas: a primeira delas refere-se aos temas clássicos, como eleições, votos, partido,
parlamento e governo; a segunda, e mais recente, atribui o termo às ações executadas pelo
Estado com o intuito de atender as demandas e necessidades da sociedade. Essa última
refere-se ao sentido e construção do que se chama política pública1 (Pereira, 2008). Política
pública é a forma como a proteção social de responsabilidade do Estado se caracterizou na
Constituição Brasileira de 1988.
A Carta Magna de 1988, tida como Constituição Cidadã, é concebida em conformidade com
um modelo democrático-social. Esse modelo teórico tenta conciliar dois grandes tipos de
democracia: "a liberal, protegendo as liberdades públicas contra os abusos de poder dos
governantes; e a social, buscando eliminar desigualdades econômicas entre as condições de
vida das pessoas que integram o corpo social da nação" (Bastos, 1999, citado por Ferreira &
Correia, s/d, p. 18). São princípios que se acham escritos no art. 30 da referida
I Há um amplo panorama teórico metodológico acerca das definições de políticas
sociais e políticas públicas. A primeira refere-se à sociedade burguesa em resposta às
questões sociais decorrentes do capitalismo, enquanto a última refere-se às ações de
obrigatoriedade do Estado também no capitalismo. Ambas referem-se às ações de
seguridade e proteção social dos cidadãos. No Brasil, as políticas públicas
configuraram-se na Constituição de 1988, da qual emergem as políticas de assistência
social.
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Constituição, a qual, a um só tempo, estabelece como objetivos da federação, entre outros


aspectos, garantir o desenvolvimento e erradicar a pobreza e as desigualdades sociais.
A dimensão social ganha ainda mais amplitude porque, ao mesmo tempo em que a
Constituição afirma que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza"
(art. 1°), para garantir a igualdade, também concebe as ferramentas para efetivá-las. O que
significa, sob o princípio constitucional, criar mecanismos que eliminem as desigualdades e,
assim, assegurem a igualdade quanto aos direitos sociais.
Os direitos sociais materializam-se por intermédio das políticas de proteção social, que
surgem como meio para responder às dificuldades individuais e como importante ferramenta
de controle e manutenção das classes trabalhadoras e de expansão do capitalismo. Surgem,
também, para assegurar renda mínima e segurança às famílias nas situações de agravamento.
Na Europa, essa conquista social resultou de amplo movimento dos trabalhadores e se confi-
gurou no Estado de Bem-Estar Social ou Welfare State, no início do século XX. Mas, no Brasil,
os direitos sociais chegaram tardiamente e com outras configurações, as quais se fazem
presentes na Constituição Federal de 1988.
Uma das formas que as políticas de proteção social tomaram e que se consolidou por meio
do conceito de políticas públicas, a partir do final da década de 50 do século XX, na Europa, e
da década de 60, nos EUA, para tratar da área de proteção social definida ou concebida como
obrigatoriedade do Estado, foi muitas vezes creditada a ações de governo.
Isso posto, tornam-se complexas as tentativas de se conceituar políticas públicas. Essa
definição passa tanto pelas bases dos estudiosos norte-americanos, que diferenciam politics
(quando se referem à política, no sentido relativo aos fenômenos do poder) e policy (para
referirem-se a adoção de formas de ação, linhas de atuação, solução de problemas). Ou, até
mesmo, há o uso concomitante das duas expressões (public policy), como linha de ação, linha
de conduta, ou, ainda, linha política. Por isso, na concepção de Di Giovanni (2009), os estudos
sobre políticas públicas "deixaram a desejar em seus resultados,
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no sentido de trazer à luz as relações complexas entre as formas de intervenção do Estado e as


complexas relações que envolvem interesses, estruturas políticas, ideologias e natureza do
Estado interventor" (p. 10).
As políticas públicas decorrem de processo histórico no interior do qual se constituiu uma
forma específica de exercício do poder político nas sociedades democráticas contemporâneas,
a saber, a mediação entre as necessidades de valorização e acumulação do capital e as
necessidades de manutenção da força de trabalho disponível. Somem-se a essa dimensão
histórica as influências das declarações dos direitos humanos.
As políticas sociais são configurações de um formato de Estado que contemplou um
modelo e uma forma de existir como mediador político e econômico e assegurador de bens e
zelador do bem-estar social. Modelo que nem sempre vigorou, mas que se viabilizou em um
tempo histórico específico no qual se trava a luta entre capital e trabalho. E os debates entre
liberais e humanistas vão configurar as formas de representação do papel desse Estado no trato
das" desigualdades sociais emergentes dessa luta. Esse tempo histórico é o século XIX, no qual
se criam as primeiras legislações e medidas de proteção social que têm lugar em alguns países
da Europa, mas cuja expansão só ocorre após a Segunda Guerra Mundial (Behring, s/d).
As políticas sociais são ações pertinentes à sociedade burguesa, marcas do capitalismo. As
condições para o nascimento e consolidação das políticas sociais estão datadas histórica e
socialmente, no entanto a pobreza e os que dela padecem recebem o foco de suas ações, tendo o
Estado como a instituição que caberia cuidar delas. Mas, durante longo tempo, o debate
abarcou mais as consequências políticas dos interesses com o liberalismo, de modo que este
passa a ser percebido como uma necessidade irremediável, que alcança, inclusive,
uma perspectiva radicalmente democrática, como em Rousseau - a consolidação
econômica e política do capitalismo nos séculos XVIII e XIX introduziu outro? e
duradouros condimentos nesta calorosa discussão sobre a relação Estado, sociedade
civil e bem-estar. Se, para os pensadores do período de fundação do Estado moderno,
este era o mediador civilizador - ideia resgatada pelas perspectivas keynesianas e
social-democratas que preconizaram, no século XX, um Estado intervencionista para o
pensamento liberal emergente, era um mal necessário (Behring, s/d, p. 4).
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Os germes da proteção social fundam-se no debate liberal do século XIX. De um lado,


punham-se aqueles que defendiam um estado mínimo dentro de uma compreensão de que o
bem-estar de cada um leva ao bem-estar de todos. Mas essa perspectiva encontra entre os
próprios liberais outras leituras:
Aqueles que defendem que a inserção social dos indivíduos se define por mecanismos de
seleção natural. Nesse ambiente intelectual e moral, não se devia despender recursos com os
pobres, dependentes, ou "passivos", mas vigiá-los e puni-los (Behring, s/d, p. 6).
O fordismo e o taylorismo deram, como formas de organização do trabalho, os elementos
que possibilitaram a expansão do capitalismo. Com o taylorismo, a produtividade do trabalho
pôde ser aumentada com a decomposição do processo de trabalho e com a organização de
tarefas de trabalho, fragmentadas segundo padrões rigorosos de tempo e estudo do movimento
(Harvey, 2000). O fordismo ofereceu, por sua vez, um sistema seriado e mecanizado de
produção em massa, pela padronização de mercadorias e processos de controle do tempo e
movimentos do trabalho, mediante o cronômetro taylorista e pela fragmentação e
especialização inerentes à rigorosa divisão e simplificação do trabalho (Wood, 1991).
O keynesianismo, associado ao taylorismo/fordismo, propiciou uma aliança entre o capital,
o trabalho e o Estado. Coube a este último, além de controlar ciclos econômicos, criar políticas
públicas para áreas vitais ao crescimento da produção e do consumo de massa, garantir
emprego pleno, complementar o salário social, com gastos de seguridade social (educação,
saúde e habitação). Com o keynesianismo, o mercado é capaz de assegurar uma eficiente
estrutura produtiva, o que implica aplicação pelo Estado de meios infraestruturais para garantir
as demandas dos setores produtivos e o crescimento da produção. Isso garantiu também o
emprego de recursos de trabalho disponíveis e uma política de expansão da despesa pública,
para mediar interesses contrastantes no plano político sindical, tarefas de mediação social do
Estado (Bobbio, 1986).
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Segundo Draibe e Wilnês (1988), teria havido um círculo virtuoso entre a política
econômica keynesiana e o Welfare State: "aquela regula e estimula o crescimento econômico,
esta por sua vez arrefece os conflitos sociais e permite a expansão de políticas de corte social,
que amenizam tensões e potencializam a produção e a demanda efetiva" (p. 54). No início da
década de 1970, o capitalismo vivência complexas transformações com o esgotamento do ciclo
de crescimento econômico ocidental, típico do modelo fordista de acumulação, embasado
numa certa estabilidade nas relações industriais de trabalho. Trata-se da crise Welfare State,
que significou a impossibilidade de se compatibilizar capitalismo e equidade; acumulação e
garantia de direitos políticos e sociais básicos. De caráter econômico (tamanho do Estado),
burocrático (centralização), quebra do pacto político (capital e trabalho), perda da eficácia
distributiva, a crise do Welfare State é, sobretudo, uma crise de caráter financeiro-fiscal: com a
diminuição das receitas públicas, devido à crise econômica, ocorre a diminuição dos
financiamentos para os programas sociais (Draibe & Wilnês, 1988).
Como resposta à crise, inicia-se o processo de reorganização do capital, com o advento do
neoliberalismo privatização do Estado, desregulamentação dos direitos do trabalhador,
reestruturação da produção e do trabalho. Essas mudanças teriam o objetivo de propiciar ao
capital elementos para a expansão e acumulação. A reestruturação do capital surge como uma
resposta à crise, e, com esta, emerge a desregulamentação de mercados, pelo advento de formas
de organização produtiva, como a subcontratação, a terceirização, o pequeno negócio, em um
processo de reestruturação e flexibilização associada a uma sofisticação tecnológica e
organizacional.

BREVE EVOLUÇÃO DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL


Se, por um lado, alguns países da Europa empreenderam uma política de contenção de gastos
de ajustes fiscais, por outro, não conseguiram de todo pôr fim ao Welfare State, pois o
desemprego aumentava e com ele a carência de
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medidas de proteção social. No Brasil, como em toda a América Latina, o neoliberalismo chega
tardiamente e com grandes desafios:
As políticas sociais públicas latino-americanas no século XXI têm duplo desafio: superar
suas heranças do século XX, sob a conjuntura do modelo neoliberal, e confrontar as
desigualdades sociais e econômicas de forma a garantir a universalidade e a equidade de
direitos humanos e sociais, tornando-os alcançáveis para os estratos que permanecem
precarizados em suas condições de vida, trabalho e cidadania (Sposati, 2011, p. 104).
Segundo Carvalho e Yamamoto (2008), enfocar a gestão das políticas públicas no Brasil é
considerar, de forma nuclear, a ideologia neoliberal que, em seu programa, objetiva a
decomposição do atendimento público e estatal no setor da assistência social. Os neoliberais
defendem o individualismo e o encaram como chave para o sucesso da democracia em um
contexto de "Estado mínimo", defendem o automatismo autorregulador do mercado e
compreendem que os indivíduos são motivados por interesses próprios e cooperam involunta-
riamente devido ao mecanismo de regulação do mercado. Nessa concepção, há o "Estado
mínimo" para o trabalho e o "Estado máximo" para o capital.
De acordo com Trevisan e Bellen (2008), a construção histórica das políticas públicas no
Brasil é marcada por três etapas: a primeira, relativa ao modelo de desenvolvimento do Brasil;
a segunda, marcada pelo fim do período de ditadura militar; e a terceira, caracterizada pela
difusão da ideia de reforma do Estado e do aparelho de Estado. Raupp e Milnitsky-Sapiro
(2005) apontam para o fato de que ainda há uma distância entre os projetos e as práticas no
âmbito das políticas públicas, o que mostra a falta de articulação entre os órgãos
governamentais, denuncia a falta de eficiência do setor público, e leva ao questionamento do
papel do Estado na implementação dessas políticas.
De acordo com Cruz e Guareschi (2010), ao se debater sobre a implementação da
assistência social como política pública, faz-se necessário compreender os caminhos anteriores
a essa construção. A trajetória de organização social do Brasil em relação à assistência social
foi marcada pela dependência com o império lusitano à época da colonização do Brasil. Os
índios e os africanos,
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explorados pela sua força de trabalho, eram tidos como selvagens, criando-se, assim, a
necessidade de discipliná-los por meio de evangelização e adequação aos costumes dos
portugueses, realizadas pelos jesuítas. Essa relação de dependência foi primordial para o
exercício do cuidar e da assistência, primeira forma de assistência efetivada pela caridade,
sendo fortalecida e regida pelos princípios da Igreja católica. Dessa forma, a assistência
oferecida à sociedade foi, em princípio, encarada como uma prática de caridade ou filantropia,
pela forte influência do modelo assistencial, que, iniciado na colonização teve continuidade
após a independência do Brasil, com a formulação da primeira Constituição brasileira.
Paia se entender essa prática assistencial, pautada pelas relações de poder, faz-se
importante conhecer o processo de formação dos direitos. A partir do século XVII, os direitos
civis, que consistem na igualdade e liberdade perante a lei, estavam relacionados com os
direitos da ordem burguesa, de ir e vir, para exercer a sua força de trabalho. Posteriormente, no
século XIX, emergiram os direitos políticos, como resposta às dificuldades enfrentadas pelas
classes trabalhadoras, na busca pelos seus direitos de participação na vida política e no
exercício do poder, antes reservada aos proprietários. Os direitos, nos séculos XVIII e XIX,
eram restritos aos proprietários e aos homens livres, enquanto a outra parte da sociedade
(homens não proprietários, escravos, mulheres, índios e crianças) era excluída e estigmatizada.
A partir desse processo de exclusão, a sociedade ganha força para lutar pela conquista dos seus
direitos. Dessa forma, o surgimento dos direitos sociais, no século XX, foi um reflexo dessa
luta, em especial realizada pela classe trabalhadora. Tais direitos refletem a luta pela garantia
dos direitos à saúde, alimentação, habitação, assistência, educação e melhor qualidade de vida
para todos (Cruz & Guareschi, 2010).
A partir das lutas e conquistas dos trabalhadores, no século XX; o Estado ganha nova
configuração em relação à sua implicação na área social e pública. Nessa nova configuração, a
sociedade teve um papel importante em relação a movimentos políticos e sociais em prol de
uma melhor qualidade de
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vida e garantia dos direitos, principalmente no período de 1980 a 1990. Tais movimentos
políticos e sociais incluíram as lutas pela redemocratização do país, os movimentos estudantis
e docentes, o feminismo, as lutas pela anistia, o surgimento da Nova República, a promulgação
da Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente, entre outros marcos,
que foram essenciais para a nova configuração do cenário político, econômico e social
brasileiro, na garantia de direitos aos sujeitos no exercício da democracia e cidadania (Cruz &
Guareschi, 2010; Raichelis, 1998).
A luta pela redemocratização do Estado, na década de 1990, ganha nova visibilidade no
cenário político da época, no que diz respeito à participação da sociedade civil na organização,
decisões e prioridades das políticas públicas. Desse modo, a partir de embates políticos, ocorre
a aprovação da Constituição de 1988, conhecida como a "constituição cidadã". Com ela, a
participação da sociedade na "coisa pública" ganha novas dimensões, modificando-se as for-
mas centralizadas e autoritárias, anteriormente adotadas no cenário político brasileiro, o que
representou grande avanço na democratização do país e na garantia de direitos à população
(Raichelis, 1998). Assim, a elaboração de políticas públicas, no contexto brasileiro
contemporâneo, configurou-se em um espaço de formação de direitos, na luta contra a
desigualdade social (Gonçalves, 2010; Raichelis, 1998).
No fim dos anos 80 do século XX, o Brasil defronta-se com um amplo movimento de
redemocratização, após a saída do regime militar, o que o faz inscrever um projeto de proteção
social na Constituição de 1988. Paradoxalmente, o Brasil começa a sofrer as influências do
neoliberalismo (redução do Estado) e, por outro lado, amplia a proteção social garantida
constitucional- mente como direito social. Assim, ainda nos anos 90 do século XX, surgem
diferentes modelos de bem-estar, na Europa, que vivenciou o assalariamento pleno, nos
serviços sociais universais e garantia de direitos, mudando-se para formas diferenciadas e
conviventes: uma gerida pelo mercado, voltada para trabalhadores empregados; e outra gerida
por instituições privadas, voluntárias, de caráter compensatório, voltada para marginalizados e
excluídos. No
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caso desses últimos, vigoram práticas, benefícios e serviços de caráter assistencialista e de


baixa qualidade, de modo que o Estado continua seu papel histórico de garantir as condições
necessárias e otimizadas para o funcionamento do mercado e, consequentemente, do
capitalismo (Monteiro, Coimbra & Mendonça Filho, 2006).
É a luta por liberdades democráticas, travada por movimentos sociais de resistência que,
dentro de um ajuste de forças, constrói a Constituição Federal. Esse modelo democrático de
direito, apesar do paradoxo, era o que, naquele contexto, tinha possibilidade de enfrentar os
poderes constituídos (Monteiro et al., 2006), representados pelos ajustes neoliberais, capital
internacional, Fundo Monetário Internacional, inflação, e dívida externa (Gomes, 2006).
No Brasil, é nesse contexto do fim de 80 e início de 90 do século XX que se configuram, a
partir da Constituição Federal, as políticas de proteção social como políticas públicas de
responsabilidade do Estado. Por políticas públicas, em 2001, a partir das deliberações do III
Congresso Nacional de Psicologia e do I Seminário Nacional de Psicologia e Políticas
Públicas, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) compreendeu as políticas necessárias e
fundamentais para garantir os direitos assegurados às pessoas e à coletividade - saúde,
educação, segurança, habitação, lazer, assistência social, cultura. Essa concepção emerge das
discussões no referido Seminário, o qual indicou a necessidade de se adquirir maior
competência analítica acerca dos contextos nos quais os psicólogos estão inseridos quando
fazem parte do aparelho do Estado.
De acordo com Viana e Unbehaum (2006), a Constituição Federal proporcionou as bases
para que os direitos constassem nas pautas das políticas públicas. Assim, compreende-se que as
intervenções devem ocorrer com base em ações coletivas. Nesse sentido, a Constituição é a lei
geral que subsidia as ações em âmbito nacional, havendo também as leis complementares, que
ressaltam os aspectos específicos em cada área de política pública (CFP, 2001).
Em seu art. 194, a Constituição Federal dispõe a respeito da seguridade social, definida
como um conjunto de ações por parte tanto do poder público, quanto da sociedade, a fim de
assegurar os direitos à saúde, à previdência e à
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assistência social. Nesse sentido, a Lei Orgânica da Seguridade Social (Lei n. 8.212, de 1991)
dispõe sobre a organização da seguridade social, estabelecendo, entre seus princípios, a
universalidade na cobertura e no atendimento e a democratização e descentralização da
administração, levando em consideração a participação da comunidade (art. 1°).

O SISTEMA ÚNICO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL COMO MARCO DO RECONHECIMENTO POR PARTE DO


ESTADO DA SUA RESPONSABILIDADE NO PROVIMENTO DOS MÍNIMOS SOCIAIS

A Legislação: a Começar da Constituição Federal


Os ordenamentos jurídicos reafirmam a forma pela qual os direitos devem ser efetivados, de
maneira universal, a toda a população brasileira, por meio de serviços e de profissionais
especializados nas áreas de saúde, educação e assistência social, como um direito assegurado
por lei e não mais como uma prática de caridade ou benesse anteriormente exercida pelas
instituições filantrópicas (Cruz & Guareschi, 2010). Desse modo, a assistência social
encontra-se, na nova Constituição, incluída na seguridade social, o que representa um ganho
significativo e um avanço, pois a assistência social sempre foi concebida como ação
assistencial de caráter filantrópico, assistencialista ou de favor para carentes, desvalidos ou
pobres. Normalmente, esses indivíduos são concebidos como incapazes, responsabilizados ou
culpabilizados por não conseguirem garantir a satisfação de suas necessidades.
Consequentemente, as ações voltadas para esse segmento da população eram pontuais,
descontinuadas e emergenciais. Com a entrada das políticas de assistência social no âmbito da
seguridade social, desfaz-se o seu caráter assistencialista, clientelista e impõe- -se o caráter de
universalidade, de direito e de obrigatoriedade do Estado.
Quanto à assistência social, o art. 203 da Constituição Federal estabelece que esta deve ser
prestada a todos que necessitem, independentemente de contribuir
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ou não à seguridade social. Nesse caso, foi instituída, no ano de 1993, a Lei Orgânica da
Assistência Social (Lei n. 8.742), que estabelece a assistência social como um direito de todos
e dever do Estado, tendo como objetivos: proteção à família, à maternidade, à infância, à
adolescência e à velhice; amparo às crianças e adolescentes carentes; promoção da integração
ao mercado de trabalhe; assistência às pessoas com deficiência e sua integração à vida co-
munitária; e garantia de um salário mínimo mensal como benefício à pessoa portadora de
deficiência e ao idoso, desde que comprovem não possuir meios de manterem-se ou de serem
providos pela família (art. 20).
O art 2o estabelece ainda que a assistência social deve ser realizada em conjunto com as
políticas setoriais, objetivando o enfrentamento da pobreza, a garantia dos mínimos sociais, o
provimento de condições para atender contingências sociais e a universalização dos direitos
sociais (Lei n. 8.742). Vê-se, assim, a implantação de uma política de assistência social como a
positivação de um direito fundamental:
Inegavelmente, a relação entre direito e dever, que se estabelece a partir do reconhecimento
da assistência como direito positivo, assume significado inteiramente diverso de seu
desenvolvimento como prática de ajuda, ainda que sob responsabilidade estatal Enquanto esta
se guia por princípios humanitários, por sentimentos de dever moral, subjetivos e sujeitos à
vontade e possibilidade de pessoas e políticas, o dever legai de assistência submete-se a alguns
imperativos e particularidades (Centro de Educação a Distância, 2000, p. 106).
A Lei Orgânica de Assistência Social destaca, assim, os critérios universais de
elegibilidade, reiterando-se o papel do Estado como provedor dessa política uma inflexão para
um histórico marcado pela filantropia e discricionariedade. Representa ainda um mecanismo
institucional de coordenação mínima entre entes federados autônomos para o alcance de
objetivos comuns, no caso, a implementação de um novo modelo de política para a assistência
social (Costa et al., 2007). Trata-se de um modelo que se movimenta, pelo menos teoricamente,
da perspectiva do clientelismo e de uma política para pobres e excluídos, para poucos,
concebida por alguns como uma política auxiliar
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mediadora das demais (Sposati, 2011), para uma política fundamentada em direitos, que são
prescritos em conjuntos de leis que se fazem necessárias para regulamentar os direitos.
Dentre o conjunto de leis complementares, há que se destacar neste texto o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, a Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), de
1993, a Política Nacional do Idoso (PNI), de 1994, o Estatuto do Idoso, de 2003, a Política
Nacional de Assistência Social (PNAS), de 2004, e o Sistema Único de Assistência Social
(Suas), de 2005.

O Estatuto da Criança e do Adolescente


A mudança de paradigma com a Constituição Federal de 1988, que garante o direito ao cidadão
e, ao Estado, a obrigatoriedade de efetivá-lo, emerge a partir do contexto político, sublinhado
acima, do movimento de redemocratização na América Latina e dentro de um movimento em
âmbito internacional resultante do ajuste de forças entre o capital e o trabalho, e empoderado
com a Declaração dos Direitos Humanos, de 1948. No caso da criança e do adolescente, do
ponto de vista legal, o Brasil é signatário dos principais documentos pertinentes à defesa dos
direitos de crianças e adolescentes. Destacam-se a Declaração sobre os Direitos da Criança
(1923), a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a Segunda Declaração Universal
dos Direitos da Criança (1959), a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança
(1989), a Declaração de Viena (1993), a Convenção para a Repressão do Tráfico de Mulheres e
Crianças (1921), a Convenção 138 da OIT e a Convenção 182 da OIT. São documentos da
normativa internacional que apresentam sugestões aos países para efetivarem políticas de
direitos humanos, com alguns voltados especificamente para a proteção à infância, à juventude
e à mulher. São também documentos que contribuíram como inspiradores ao Brasil para a
construção de seus instrumentos legais, tendo como base a concepção da teoria da
universalidade dos direitos humanos e da criança como sujeito de direitos, considerada a sua
condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
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O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), criado pela Lei n. 8.069/90, inaugurou um


padrão avançado de política social fundamentada na promoção e garantia de direitos
econômicos e sociais a serem assegurados à família, pela sociedade e pelo Estado. A
Constituição da República, em seu art. 227, determina que
é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem,
com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.
Outro destaque é o art. 40 do ECA, que define os direitos da população infanto-juvenil
brasileira, bem como os responsáveis por garanti-los (Faleiros & Faleiros, 2007). Eis o que
versa o referido artigo:
É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar,
com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referente à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade, à convivência familiar e comunitária (1990).
O Estatuto também define, para um conjunto de entidades, o papel de proteger a criança e o
adolescente, zelar e garantir os direitos, conforme versa o art. 86: "A política de atendimento
dos direitos da criança e do adolescente far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações
governamentais e não governamentais, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos
municípios" (ECA, 1990).
Além dos arts. 40 e 86, o ECA constitui-se de uma série de artigos nos quais são definidas as
ações do Estado em assegurar a proteção social e garantir os direitos de crianças e adolescentes,
entre os quais se destacam: o art. 30 (assegura os direitos fundamentais); o art. 70 (define
direitos fundamentais e assegura a forma de efetivá-los por meio de políticas sociais públicas);
o art. 53 (assegura o direito à Educação); o art. 54 (determina a responsabilidade do Estado em
garantir e efetivar o direito à Educação); os arts. 60 a 69 (proíbem o trabalho
141

infantil e estabelecem as condições para a profissionalização do adolescente). Com destaque


para os capítulos i e a do título i, que tratam das linhas de ação da política de atendimento e das
entidades de atendimento, nas quais se dá a atuação dos profissionais de psicologia.
Para garantir o cumprimento de princípios legalmente assegurados no ECA, o Brasil tem
não somente implantado políticas públicas de enfrentamento da violência sexual contra
crianças e adolescentes e de combate ao trabalho infantil, mas também tem mobilizado as
diferentes áreas do conhecimento, no estabelecimento de parcerias que buscam agilizar
diferentes estratégias de prevenção e intervenção (Costa et al., 2007).
O trabalho integrado entre governo e sociedade é visto como indispensável à efetiva
proteção dos direitos de crianças e adolescentes. As redes de atendimento podem transformar o
conteúdo de denúncias em conteúdos propositivos, capazes de produzir insumos para a
formulação das políticas públicas voltadas para uma política de desenvolvimento de qualidade
de vida, que articule medidas sociais e econômicas (Centro de Referência, Estudos e Ações
sobre Crianças e Adolescentes, 1997).
O ECA contempla, assim, um esquema de cooperação e distribuição de competências entre
União, estados e municípios, estendendo-se a organizações não governamentais e à sociedade
civil organizada. Essa articulação pressupõe, consequentemente, a organização de uma rede de
serviços de responsabilidade compartilhada por todos os entes políticos da federação.
Para efetivar a ideia de que as políticas sociais são imprescindíveis para se assegurar a
proteção integral, a descentralização, a participação da sociedade civil e efetivar a articulação,
a Constituição Federal de 1988 e o ECA criaram um Sistema de Garantias de Direitos que se
apoia em três eixos: promoção de direitos, defesa, e controle social. A promoção visa à
realização do direito. Fazem parte do eixo: setores públicos (gestores da saúde, educação,
assistência social), conselhos de direitos da criança e do adolescente e conselhos setoriais
(assistência social e Educação). A defesa visa à responsabilização no caso de omissão, falta ou
oferta irregular dos direitos por parte da família, do Estado ou
142

da sociedade. Fazem parte do eixo: Ministério Público, Ministério do Trabalho e Emprego,


Conselho Tutelar, Judiciário, Defensoria Pública, Centros de Defesa de Direitos Humanos. O
controle social visa ao acompanhamento e fiscalização do cumprimento dos direitos. Fazem
parte do eixo: entidades da sociedade civil, articuladas ou não (Cabral, 1999).
O ECA foi criado para que houvesse uma regulamentação das conquistas em favor das
crianças e adolescentes; é a lei que concretiza e expressa os novos direitos dessa parcela da
população. Com um caráter inovador que representa a ruptura com as antigas políticas, o
estatuto adota uma doutrina de Proteção Integral, que reconhece a criança e o adolescente como
cidadãos de direito. Além disso, descentraliza a política por meio da criação de conselhos em
níveis estadual e municipal. O ECA é um instrumento que garante à criança e ao adolescente
prioridade no acesso às políticas sociais, ao estabelecer medidas de prevenção, uma política
especial de atendimento e um acesso digno à Justiça, diferenciando-se, assim, das políticas
repressoras e estigmatizantes anteriores, que vinham cercando as crianças e adolescentes das
classes populares.

Política Nacional do Idoso e o Estatuto do Idoso


Visando a proteger os segmentos sociais mais vulneráveis, fruto de organização da sociedade
civil, o Estado brasileiro tem sido obrigado a construir normativas de direito para esses
segmentos. Assim como O ECA, também o Estatuto do Idoso visa a essa finalidade. Atualmente,
a sociedade vem se conscientizando quanto ao papel que a pessoa idosa deve ocupar na
sociedade, principalmente no que diz respeito à valorização, ao compromisso e à sua
participação no processo de distribuição de riquezas, isto é, dos bens e serviços sociais básicos
destinados ao segmento idoso (Pádua & Costa, 2007).
A Constituição Federal de 1988, com suas diretrizes baseadas na garantia de direitos e de
cidadania para todos, em seu capítulo VII, aborda as questões relacionadas à família, à criança,
ao adolescente e ao idoso. Porém, ainda não traz as normas específicas para a proteção da
pessoa idosa. Orientadas pelos
143

princípios da Constituição Federal de 1988 e baseadas nas demandas da sociedade brasileira,


foram construídas e alicerçadas as políticas de proteção à pessoa idosa. Os principais marcos
legais para o reconhecimento da importância desse segmento populacional foram a Política
Nacional do Idoso (PNI), Lei n. 8.842, de 1994, e o Estatuto do idoso, Lei n. 10.741, de 2003.
A PNI prescreve que a família, a sociedade e o Estado têm O dever de assegurar ao idoso
todos os direitos da cidadania, garantindo sua participação na comunidade, defendendo sua
dignidade, bem-estar e o direito à vida. Entende o idoso como ser total, devendo a proteção que
lhe é de direito compreender todas as dimensões do ser humano. Entre outras coisas, indica não
discriminação, de qualquer natureza, ao idoso; readequação da rede da saúde e assistência
social para atendimento integral ao idoso; elaboração de instrumentos que permitam a inserção
do idoso na vida socioeconômica das comunidades; modernização de leis e regulamentos;
desenvolvimento do turismo e lazer; reformulação dos currículos universitários no sentido de
melhorar a performance dos profissionais no trato das questões do idoso; valorização do idoso,
que deve ser o principal agente e destinatário das transformações a serem efetivadas por essa
política; atenção às diferenças econômicas, sociais, regionais e, particularmente, às
contradições entre o meio rural e o urbano do Brasil, que devem ser observadas pelos poderes
públicos e pela sociedade em geral na aplicação dessa lei. O idoso é sujeito único e, portanto, os
programas e serviços devem reconhecer a múltipla dimensão do envelhecimento.
O Estatuo do Idoso prescreve que as medidas de proteção são aplicáveis sempre que os
direitos reconhecidos naquela lei forem ameaçados ou violados por ação ou omissão da
sociedade ou do Estado, por falta, omissão ou abuso da família, do curador ou da entidade de
atendimento, e em razão de sua condição pessoal (Pádua & Costa, 2007).
Com esse Estatuto, há prioridade absoluta às normas de proteção ao idoso, que vão desde a
precedência no atendimento ao permanente aprimoramento de suas condições de vida até a
inviolabilidade física, psíquica e moral. O art. 3o do Estatuto do Idoso, a esse respeito,
determina que
144

é obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar ao idoso,


com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à
cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à
convivência familiar e comunitária (Estatuto do Idoso, 2003).
O art 8o dispõe que "o envelhecimento é um direito personalíssimo e a sua proteção, um
direito social". Por conseguinte, o art. 90 assegura que é obrigação do Estado garantir à pessoa
idosa a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que
permitam um envelhecimento saudável e em condições de dignidade.
O Estatuto configura-se em um importante marco legal para a consciência idosa no país,
não somente por exigir proteção aos seus direitos, mas também por tornar os demais membros
mais sensibilizados para o amparo à pessoa idosa. No que diz respeito ao atendimento ao idoso,
em especial nos serviços da política pública de assistência social, este se desenvolve nos dois
níveis de proteção social: básica e especial (média e alta complexidade). O atendimento é
pautado pelas diretrizes da PNI e pela Política Nacional de Assistência Social (Conselho
Nacional de Assistência Social, 2007; Cruz & Guareschi, 2010; Ministério de
Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2004).

Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), Política Nacional de Assistência Social (PNAS),
Sistema Único de Assistência Social (Suas)

Loas
A assistência social une-se à saúde e previdência social, constituindo-se o tripé da seguridade
social, pautada pelos princípios do Bem-Estar Social. A partir dessa nova concepção, a
assistência se constitui como política pública de proteção social e um direito de todo cidadão a
condições dignas de vida. Essa nova concepção estabelece o passo inicial para a mudança da
associação da assistência como uma prática de caridade e benesse (Cruz & Guareschi, 2010).
A Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), vigente desde 1993, define em seu art. 1° a
assistência social como um direito do cidadão e dever do Estado.
145

Compreende uma "Política de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos
sociais, realizada através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da
sociedade, para garantir o atendimento às necessidades básicas" (Cead, 2000; Lei n.
8.742,1993).
A Loas tem como princípios, entre outros: a supremacia do atendimento às necessidades
sociais; a universalização dos direitos; o respeito à dignidade e à autonomia dos cidadãos; a
igualdade de direitos; a primazia da responsabilidade do Estado; a participação da sociedade
civil organizada; a descentralização político-administrativa (Política Nacional da Assistência
Social, 2004).
Em 2003, realizou-se a IV Conferência Nacional de Assistência Social, cujas deliberações
impulsionaram a efetivação das diretrizes estabelecidas pela Loas, tendo sido aprovadas a
construção e a implementação do Sistema Único de Assistência Social (Suas) para
operacionalizar a Política Nacional de Assistência Social (PNAS). Em 2004, foi aprovada a
PNAS, que trouxe como projeto político a radicalização dos modos de gestão e financiamento da
política de Assistência Social.
E a partir da Loas que a assistência social (como uma política de proteção social)
desenvolve mecanismos contra as diversas formas de exclusão social, na promoção de uma
melhor qualidade de vida para os sujeitos, por meio de oferta de serviços, programas e projetos
especializados (Cruz & Guareschi, 20x0). Nesse caminho, o sistema público de proteção social
ganha novo avanço, com a aprovação da nova PNAS, em 2004, pelo Conselho Nacional de As-
sistência Social (CNAS), a qual vem consolidar princípios, diretrizes, objetivos e ações da
assistência social. Com isso, pode-se prever o ordenamento dessa assistência em rede, de
acordo com os níveis de proteção social e complexidade: básica e especial, de média ou alta
complexidade, e, a partir disso, vem a proposição de construir o Suas (CNAS, 2005; Ministério
do Desenvolvimento Social e Combate à Fome & Instituto de Estudos Especiais da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 2008).
A iniciativa de se construir uma política pública voltada para a assistência social partiu de
um novo modo de olhar a realidade brasileira, focando-se em
146

uma visão social de proteção que perpassa o conhecimento e atendimento aos sujeitos em
situação de risco pessoal e social, conduzindo-os a identificar força e potencialidade na
construção de sua autonomia. A construção da política pública de assistência social, desse
modo, precisa levar em consideração três aspectos da proteção social: as pessoas, o contexto
em que estão inseridas, e o seu núcleo de apoio, a família (Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome, 2004).
A PNAS constitui numa perspectiva socioterritorial, centrada em mais de 5 500 municípios
brasileiros, o que, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS),
possibilitou a análise dinâmica da realidade desses municípios e o atendimento à população em
situação de risco e vulnerabilidade (MDS, 2004). É a partir da PNAS que são construídas, em
2005, as bases para o novo modelo de gestão do Suas e a criação da Norma Operacional Básica
(NOB/Suas). A construção do modelo de gestão e das bases normativas do SUAS possibilitou um
maior detalhamento das particularidades do sistema de atenção hierarquizado, a partir dos
níveis de proteção e complexidade no âmbito da assistência social. Dessa forma, a assistência
prestada aos sujeitos e famílias no Suas é entendida como um direito garantido pela
Constituição (MDS & Instituto de Estudos Especiais da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, 2008).

Suas
Esse novo marco regulatório introduziu significativas alterações, entre elas a exigência de
novos modos de organização, processamento, produção e gestão do trabalho (Raichelis, 2010).
O Suas, à semelhança do sus, é um modelo de gestão cuja configuração é descentralizada e
participativa; regula e organiza em todo o território nacional a rede de serviços
socioassistenciais; divide a gestão cofinanciada entre as três esferas: federal, estadual e
municipal. O Suas materializa, dá forma e concretiza a Loas na operacionalização dos direitos
garantidos na Constituição e assegurados como mecanismos de proteção social.
Esse sistema tem o território como base de organização, definido em função do número de
pessoas que necessitam de assistência e da complexidade
147

das necessidades. Organiza-se e efetiva-se por meio de serviços, programas, projetos e


benefícios cujo foco prioritário é a atenção às famílias, seus membros e indivíduos. Define os
elementos essenciais à execução da política de assistência social (Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2004), tais como a normatização do
funcionamento e nomenclatura dos serviços, os indicadores de avaliação e os eixos
estruturantes: "matricialidade sóciofamiliar; descentralização político-administrativa e
territorialização; novas bases para a relação entre Estado e sociedade civil; financiamento;
controle social; o desafio da participação popular/cidadão usuário; a política de recursos
humanos; a informação, o monitoramento e a avaliação" (Ministério do Desenvolvimento
Social e Combate à Fome, 2004, p. 39).
Os serviços socioassistenciais no Suas são organizados segundo as seguintes referências:
vigilância social, proteção social e defesa social e institucional. Vigilância social: refere-se à
produção, sistematização de informações, indicadores e índices territoriais das situações de
vulnerabilidade e risco pessoal e social que afetam famílias e pessoas considerando-se a
dimensão etária (crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos), situações de vitimizações
por violência, exploração e preconceito (etnia, gênero e opção pessoal), que lhes impossibilite
de exercer sua autonomia e integridade, fragilizando sua existência. Também se configura a
vigilância sobre os padrões de serviços de assistência social, em especial aqueles que operam
na forma de albergues, abrigos, residências, semirresidências, moradias provisórias. Proteção
social: os serviços de proteção básica e especial devem garantir segurança de sobrevivência,
segurança de convívio e segurança de acolhida. Defesa social e institucional: os serviços de
proteção básica e especial devem ser organizados de forma a garantir aos seus usuários o
acesso ao conhecimento dos direitos socioassistenciais e sua defesa. São direitos socioassis-
tenciais a serem assegurados na operação do Suas a seus usuários: direito ao atendimento
digno; direito ao tempo; direito à informação sobre o funcionamento dos serviços; direito ao
protagonismo e manifestação de seus interesses;
148

direito à oferta qualificada de serviço; direito de convivência familiar e comunitária (MDS,


2004; PNAS, 2004).
A Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de Assistência
Social (NOB-RH/Suas), instituída pela Resolução do CNAS n. 269, de 13 de dezembro de 2006,
pactuada entre gestores da política de assistência social e trabalhadores, define a forma e as
diretrizes da gestão, regula as relações de trabalho, estabelece os padrões éticos, técnicos e de
capacitação das equipes de referência. A NOB-RH/Suas prevê plano de cargos e carreira, política
de qualificação e capacitação permanente e valorização dos trabalhadores regulamentados por
lei. Isso significa garantir concursados, com direitos trabalhistas assegurados e em
conformidade com as necessidades dos serviços, com base nas demandas dos territórios e no
número de pessoas a serem atendidas (Raichelis, 2010).
O Suas estabeleceu dois níveis de atenção distintos para a política de assistência social: a
Proteção Social Básica (baixa complexidade) e a Proteção Social Especial (média e alta
complexidade). Visando dar concretude às ações socioassistenciais, reiterando-se a
centralidade do Estado na prestação da assistência social, o Suas prevê a criação de dois
equipamentos públicos, respectivamente, para a Proteção Básica e Especial: os Centros de
Referência da Assistência Social (Cras) e os Centros de Referência Especial da Assistência
Social (Creas) (Costa & Palotti, 2011).
• Serviço de atendimento básico: Centro de Referência de Assistência Social (Cras)
Os profissionais devem, segundo os parâmetros do CFP, de forma interdisciplinar, provocar
impactos na dimensão da subjetividade dos usuários, tendo como diretriz central, na garantia
dos direitos, a construção do protagonismo e da autonomia, com superação das condições de
vulnerabilidade social e potencialidades de riscos. A prática é de um(a) profissional da área
social que produza suas intervenções em serviços, programas e projetos afiançados na proteção
social básica, garantindo o acesso à proteção básica e garantindo os
149

direitos dos cidadãos (Conselho Federal de Serviço Social & Conselho Federal de Psicologia,
2007).
O Cras é responsável pela oferta de serviços continuados de proteção básica e de
assistência social a famílias, grupos e pessoas em situação de vulnerabilidade social. É
considerado a "porta de entrada" para os serviços da assistência social, mais especificamente
para a rede de proteção social básica do Suas. No Cras, são desempenhadas ações de proteção
social básica realizadas por meio de serviços, programas e projetos, tais como o Programa de
Atenção Integral às Famílias (Paif); ações de convivência para Idosos; serviços para crianças
de zero a seis anos, que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares, ao direito de brincar;
ações de socialização e de sensibilização para a defesa dos direitos das crianças; serviços
socioeducativos para crianças, adolescentes e jovens na faixa etária de seis a 24 anos, visando à
sua proteção, à socialização e ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários; pro-
gramas de incentivo ao protagonismo juvenil e de fortalecimento dos vínculos familiares e
comunitários; centros de informação e de educação para o trabalho, voltados para jovens e
adultos; benefícios eventuais de assistência social - Auxilio-Natalidade e Serviço Funerário
Gratuito (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, 2004).
A equipe de profissionais do Cras é responsável pela implementação do Paif, de serviços e
projetos de proteção básica e pela gestão articulada no território de abrangência, sempre sob
orientação do gestor municipal. Sua composição é regulamentada pela NOB-RH/Suas e depende
do número de famílias referenciadas ao Cras. Em relação ao Paif, esse é um programa que
expressa um conjunto de ações relativas à acolhida, informação, inserção em serviços de
assistência social, promoção de acesso à renda e, especialmente, acompanhamento
sociofamiliar (MDS, 2006).
O trabalho do Cras tem como proposta constituir-se como espaço de referência que
possibilite aos usuários acessarem os serviços da assistência social. Essas atuações ocorrem
dentro da lógica de trabalho em rede, articulado, permanente e não ocasional, no
reconhecimento da realidade local, na sua
150

complexidade, nas suas brechas, nas suas possibilidades de alterar o que está posto (CFSS & CFP,
2007). Um dos grandes desafios referentes ao trabalho no Cras é a articulação com a rede
socioassistencial e intersetorial, além do desenvolvimento de ações de forma integrada e
complementar, que percebam o sujeito e a comunidade de forma integral e não fragmentada.
Esse diálogo permanente fortalece laços e parcerias e potencializa ações de forma continuada.
Desse modo, pensar estratégias que considerem esses aspectos fortalece a atuação dos
psicólogos e aproxima-os da comunidade e de suas demandas (CFSS & CFP, 2007).
As atividades do psicólogo no Cras devem estar voltadas para a atenção e prevenção a
situações de risco, objetivando atuar nas situações de vulnerabilidade por meio do
fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários e por meio do desenvolvimento de
potencialidades e aquisições pessoais e coletivas. Intervir em situações de vulnerabilidades,
dentro da assistência social, implica diretamente promover e favorecer o desenvolvimento da
autonomia dos indivíduos, oportunizando o empoderamento da pessoa, dos grupos e das
comunidades. Esse tipo de atuação requer referenciais teórico-metodológicos, que
fundamentem os programas, projetos, serviços e benefícios, que devem se promover em nova
ótica, garantido a autonomia, o protagonismo e a participação social (CFSS & CFP, 2007).
O psicólogo deve, em suas intervenções, visar ao enfrentamento e superação das
vulnerabilidades, investindo na apropriação, por todos, do lugar de protagonista na conquista e
afirmação de direitos. Nesse sentido, as práticas psicológicas não devem categorizar,
patologizar e objetificar a classe trabalhadora, mas buscar compreender os processos estudando
as particularidades e circunstâncias em que ocorrem, priorizando-se a mediação entre os
aspectos objetivos e subjetivos. Os processos devem ser compreendidos de forma articulada
com os aspectos históricos e culturais da sociedade, produzindo-se a construção de novos
significados ao lugar do sujeito-cidadão autônomo, que deve ter vez e voz no processo de
tomada de decisão e de resolução das dificuldades e problemas vivenciados (CFSS & CFP, 2007).
151
• Serviço de média complexidade: Centro de Referência e Assistência Social Especializada
(Creas)
Os serviços de proteção social especial de média complexidade, de acordo com a PNAS,
desenvolvem maior estruturação técnico-operacional e atenção especializada e
individualizada, e/ou de acompanhamento sistemático e monitorado por uma equipe
especializada. Na proteção social especial de média complexidade, o Creas, como integrante
do Sistema Único de Assistência Social, constitui o polo de referência, coordenador e
articulador, responsável pela oferta de orientação e apoio especializados e continuados de
assistência social a indivíduos e famílias com seus direitos violados, mas sem rompimento de
vínculos (Cruz & Guareschi, 2010; Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome,
s/d).
De acordo com a Resolução n. 109, de 11 de novembro de 2009 (CNAS, 2009), foi
organizada pelo MDS uma nova Tipificação, em relação aos serviços oferecidos pelo Creas.
Atualmente, o Serviço de Enfrentamento à Violência, ao Abuso e à Exploração Sexual contra
Crianças e Adolescentes (iniciado já com o programa Sentinela) e o Serviço de Proteção Social
Especial a Indivíduos e Famílias foram integrados no Serviço de Proteção e Atendimento
Especializado a Famílias e Indivíduos (Paefi). Quanto ao Serviço de Proteção Social aos
Adolescentes em Cumprimento de Medidas Socioeducativas, esse foi transformado em
Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de
Liberdade Assistida e de Prestação de Serviços à Comunidade. Por sua vez, os serviços de
Habilitação e Reabilitação de Pessoas com Deficiência, Atendimento de Reabilitação na
Comunidade, Atendimento Domiciliar a Pessoas Idosas e Pessoas com Deficiência, e o
Atendimento em Centro-Dia, foram integrados no Serviço de Proteção Social Especial para
Pessoas com Deficiência, Idosos e suas Famílias e no Serviço Especializado para Pessoas em
Situação de Rua. No caso do idoso, esse serviço oferece atendimento domiciliar.
No que concerne ao Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e
Indivíduos, salienta-se que esse serviço deve desenvolver um processo
152

de articulação em rede e um conjunto de procedimentos técnicos especializados para


atendimento e proteção imediata às crianças e aos adolescentes abusados ou explorados
sexualmente. Tudo isso para proporcionar-lhes condições para o fortalecimento de sua
autoestima e o restabelecimento de seu direito à convivência familiar e comunitária, pois as
crianças, adolescentes e familiares se encontram em posição de extrema vulnerabilidade e
fragilidade (Couto, 2010; Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, s/d). As
devidas articulações e encaminhamentos aos outros serviços da área devem ser feitos pelos
profissionais que atuam no Creas para que exista uma melhora no serviço em relação aos
atendimentos prestados, conforme as necessidades da demanda (Couto, 2010; Secretaria de
Estado de Desenvolvimento Humano, 2010).
Dentro desse campo, o psicólogo atua de modo interdisciplinar, nos Creas, junto a
indivíduos e famílias, ou de forma individual e/ou em grupo, priorizando o trabalho coletivo;
possibilitando encaminhamentos psicológicos, quando necessário; desenvolvendo visitas
domiciliares com a equipe e métodos e instrumentos para atendimento e pesquisa, com um
olhar para o grupo familiar. As ações devem ser integradas com outros profissionais e com
outros serviços, visando ao trabalho em rede. Dessa forma, a Psicologia pode oferecer
contribuições para a elaboração e execução de políticas públicas de assistência social, por meio
da atuação e escuta sobre a dimensão subjetiva dos indivíduos, o que favorece o
desenvolvimento da autonomia e cidadania. A partir disso, o psicólogo, em seu atendimento,
deve sempre procurar compreender os processos e recursos psicossociais dos indivíduos e
neles intervir, estudando as particularidades e circunstâncias em que ocorrem para não
categorizar, patologizar e objetificar os indivíduos (CFSS & CFP, 2007).

• Serviços de alta complexidade


Os Serviços de Proteção Social Especial (alta complexidade) são oferecidos em Unidades de
Alta Complexidade (UACS). Garantem proteção integral aos cidadãos, individual ou
coletivamente, no caso de famílias que se encontram em situação de abandono ou com seus
vínculos familiares e comunitários rompidos.
153

Devem se caracterizar como ações compensatórias, protetivas e efetivas, considerando-se as


situações de violação de direitos nas quais os indivíduos se encontram. Objetivam oferecer
moradia, alimentação, higienização e trabalho protegido àqueles que necessitem ser retirados
de seu núcleo familiar e/ou comunitário. Consistem em ações e acesso a serviços de
atendimento Integral Institucional: Casa Lar; república; casa de passagem; albergue;
instituições de acolhida; instituições de longa permanência para idosos; atendimento à de-
pendência química em situação de abrigo (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome, 2004).

A INSERÇÃO DO PSICÓLOGO NO CAMPO: PROBLEMAS, DESAFIOS E ANÁLISE ATUAL


Embora a Psicologia já se fizesse presente nas intervenções realizadas pelo Estado, no
atendimento à população na saúde, educação, assistência social, sistema de justiça etc., um
significativo campo de trabalho desse profissional realizava dentro de uma perspectiva de
profissional liberal marcada pelo interesse em servir às elites (Bock, 2003; Yamamoto, 2003).
No espaço de atuação, no âmbito do Estado, emergiram práticas psicológicas destinadas ao
controle dos sujeitos, por meio da disciplina ou valorização de um suposto indivíduo
autônomo, que, por sua vez, remetia a uma ordem natural e à patologização. Citem-se, a título
de exemplo, as instituições de proteção à infância no contexto dos projetos de higienização e
patologização que têm lugar no Brasil desde o início até a metade do século XX (Lobo, 2003;
Ropa & Duarte, 1985). Diante desse cenário, a Psicologia entra nas Políticas Públicas por meio
da nova configuração de proteção social, a partir da Constituição Federal de 1988, em que o
acesso à assistência, saúde, educação, previdência é um direito universal. Dessa forma, o
Estado, sendo obrigado a garantir esse direito, entra na oferta de programas e serviços para que
os direitos sejam efetivados. Mas, se a Psicologia, por um lado, já fazia parte de certa
intervenção do Estado, por outro lado, as ferramentas de que dispunha para tal não serviam
nessa nova configuração do
154

sujeito de direito universal e participativo, assim como não servia a postura desse profissional.
Nesse último caso, o envolvimento da Psicologia e a luta travada pela reforma psiquiátrica
situaram um foco para a profissão no sentido de construção de um sistema universal de
proteção social, no caso o da saúde - Sistema Único de Saúde. E, com isso, a Psicologia ganha
um novo campo de atuação, o qual requer também um novo posicionamento de atuação, que
difere da tradicional prática clínica elitizada, anteriormente exercida pela profissão. Sobre esse
aspecto, Yamamoto (2003) aponta que a Psicologia possui, no Brasil, a tradição do
compromisso com as elites, numa prática de controle, higienização, categorização e
diferenciação de interesses necessários para a manutenção de lucro e reprodução do capital.
Essa prática de compromisso com a elite, segundo o autor, perpassa concepções naturalizadas
construídas historicamente, desde a época do Brasil colônia.
A prática da Psicologia concentrava-se, assim, nas áreas organizacional, educacional e
clínica, sendo esta última a mais focada e reconhecida como uma prática do psicólogo, dirigida
a uma pequena parcela da população: a elite. Desse modo, a inserção do psicólogo em novos
espaços que possibilitem o acesso à população a uma prática comprometida socialmente reflete
um longo caminho em construção, como o campo das políticas públicas (Yamamoto, 2003).
Sob essa ótica, o psicólogo, ao entrar nas políticas públicas, efetiva a luta pela
"deselitização" da profissão, colocando-a ao alcance de toda a população. Esse novo modo de
pensar da Psicologia refere-se a uma prática voltada para a garantia e o restabelecimento de
direitos. Um dos passos iniciais desse processo deu-se a partir dos estudos de Lane (1981), nos
quais se ressalta a importância de uma Psicologia comunitária, ou seja, uma Psicologia
implicada com a "questão social", com a comunidade, e não mais direcionada a uma prática
elitista (Bock, 2003; Lane, 1981), que permita à Psicologia construir referências para atuação
profissional nos espaços de políticas públicas. Entende-se per "questão social" o conjunto dos
problemas políticos, sociais e econômicos expressos por meio da contradição capital-trabalho
das exigências do processo de construção da sociedade capitalista (Yamamoto & Oliveira,
2010; Yamamoto, 2003).
155

No que diz respeito a esse redesenho da profissão, Yamamoto (2003) descreve que esse
movimento foi reflexo de vários contingentes, diante do processo de redemocratização do país,
com o fim do período autocrático-burguês e da crise do período de acumulação capitalista.
Diante disso, ocorre uma mudança no perfil da profissão, devido às consequências da crise
econômica, e pela nova configuração da Constituição de 1988, em relação à garantia dos
direitos. Isso se reflete na falência do modelo de profissional autônomo e na abertura de novos
campos de atuação, a partir da redefinição do setor de bem-estar. Contudo, ainda são
destacadas, nesse período, duas tendências: a primeira delas é a hegemonia da prática clínica; e
a segunda, a atuação do psicólogo no campo social. Outros passos em direção à "deselitização"
da profissão, em ordem sucessiva, foram dados com a participação no processo de
redemocratização do país (Diretas Já, Pró-Constituinte, assinaturas para elaboração do Estatuto
da Criança e do Adolescente), com a reforma psiquiátrica, com a construção do sus e criação do
Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas na busca por refletir e
sistematizar conhecimentos teóricos e práticos.
Desse modo, pensar a atuação do psicólogo nas políticas públicas é também pensar sobre o
papel e o compromisso da profissão no contexto brasileiro, frente aos embates econômicos,
sociais e políticos. Considerando política como conflito, a inserção do psicólogo no campo
social partilha embates, decorrentes particularmente do contexto social e econômico do país,
desde a época da regulamentação da profissão até a inserção do psicólogo no campo do
Bem-Estar Social (Yamamoto, 2003). A trajetória econômica e social do Brasil, no período da
Constituição Federal de 1988, reflete um período de embates, devido à lógica neoliberal que
regia todo o sistema. Acerca do "ajuste neoliberal e desajuste social" no que diz respeito à
década de 1980, devido aos malabarismos do Estado na promoção da proteção social, por meio
dos ideais de Bem-Estar Social, dentro de um contexto de crise econômica, Yamamoto e
Oliveira (2010) assinalam:
Esse contexto de emergência de um padrão de Welfare State, que oscila do padrão
meritocrático ao residual, tornou-se um grande espaço de trabalho para os psicólogos
brasileiros. Resultado não de um direcionamento do instrumental teórico-técnico da profissão,
ou de uma efetivação de propostas para a prática psicológica menos elitista.
156

O campo das políticas sociais foi, e continua sendo, um reflexo do enxugamento do mercado
para o exercício profissional, e uma possibilidade de emprego estável, mesmo às custas das
constantes críticas que recaem sobre a contextualização do trabalho realizado, da
adequabilidade das teorias psicológicas, e, mais ainda, do caráter ideológico que a prática
psicológica vem assumindo nesses espaços (p. 3).
Conforme Yamamoto (2003), para que se discuta a inserção do psicólogo nas políticas
sociais e o seu compromisso social, faz-se importante levar em consideração a questão social
como um elemento de parâmetro e limite, para que o psicólogo exerça sua ação comprometida
socialmente. Desse modo, nos últimos dez anos, a inserção do psicólogo nas políticas públicas
obteve grandes avanços. Após diferentes experiências e discussões dessa categoria, em todo o
país, foram construídas práticas comprometidas com a transformação social, em direção a uma
ética voltada para a emancipação humana, as quais apontaram alternativas para o
fortalecimento de indivíduos e grupos, para o enfrentamento da situação de vulnerabilidade.
Como resultado dessas experiências, houve uma ampliação da concepção social e
governamental acerca das contribuições da Psicologia para as políticas públicas, além da
geração de novas referências para o exercício da profissão de psicólogo no interior da
sociedade.
Em 2007, o Conselho Federal de Serviço Social e o Conselho Federal de Psicologia (2007)
elaboraram os parâmetros para a atuação desses profissionais nas políticas de assistência
social. Segundo tais parâmetros, a atuação dos psicólogos no Suas deve estar fundamentada na
compreensão da dimensão subjetiva dos fenômenos sociais e coletivos, sob diferentes enfoques
teóricos e metodológicos, com o objetivo de problematizar e propor ações no âmbito social.
Ainda em 2007, o Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas do
Conselho Federal de Psicologia publicou as Referências Técnicas para a Atuação do(a)
Psicólogo(a) no Cras/Suas (CFP, 2007), segundo as quais, a Psicologia, nos espaços de políticas
públicas, deve ser exercida com base na perspectiva da apropriação do lugar de protagonista e
do fortalecimento dos usuários como sujeitos de direito, por meio da problematização e da
realização de ações no âmbito social. Isso porque, para romper com os processos de exclusão,
157

é importante que o sujeito se veja em um lugar de poder, de construtor do seu próprio direito e
da satisfação de suas necessidades.
Segundo esses Parâmetros, o psicólogo, nesse campo, pode desenvolver diferentes
atividades em espaços institucionais e comunitários. Seu trabalho envolve proposições de
políticas e ações relacionadas à comunidade em geral e aos movimentos sociais de grupos
étnico-raciais, religiosos, de gênero, geracionais, de orientação sexual, de classes sociais e de
outros segmentos socioculturais, com vistas à realização de projetos da área social e/ou
definição de políticas públicas. O psicólogo deve realizar estudos, pesquisas e supervisão sobre
temas pertinentes à relação do indivíduo com a sociedade, com o intuito de promover a
problematização e a construção de proposições que qualifiquem o trabalho e a formação no
campo da Psicologia. Por meio de atuação interdisciplinar, como já salientado, o psicólogo
pode atender crianças, adolescentes e adultos, de forma individual e/ou em grupo, priorizando
o trabalho coletivo, possibilitando encaminhamentos psicológicos quando necessário,
desenvolvendo métodos e instrumentais para atendimento e pesquisa com um olhar para o
grupo familiar. As ações devem ser integradas com outros profissionais dentro do serviço, bem
como com outros serviços, visando ao trabalho em rede.
Segundo Zamora (2010), interessar-se pelas políticas públicas e dedicar- -se à sua
transformação é o primeiro passo para potencializar a ação dos psicólogos nesse campo. Por
intermédio das políticas públicas, podem-se encontrar meios de apressar o processo de
rompimento com as injustiças sociais, com a desigualdade. Porém, nem sempre os programas
estatais surgem das demandas ou urgências de camadas da população desassistidas e
necessitadas, em aspectos básicos de sua vida, e também não se destinam, necessariamente, a
atender a essas demandas e necessidades. Ter clareza disso é fundamental para a atuação ética e
comprometida com o social, em qualquer campo profissional, na defesa de valores e postulados
que respeitem os direitos humanos das camadas populacionais que mais os têm desrespeitados.
Nesse campo, o psicólogo entra para mediar o embate entre os interesses, algumas vezes
contraditórios, do Estado e da população. Sua atuação deve
158

então não somente revestir-se do compromisso profissional e social, mas também pautar-se em
uma atuação cidadã. Gonçalves (2010) afirma que é preciso reconhecer e respeitar as demandas
como direitos e defender políticas que os atendam. Partindo dessa atuação pautada pela
garantia de direitos, torna-se possível, muito mais do que garantir a sobrevivência ou assistir os
menos favorecidos, criar o espaço social necessário para o desenvolvimento dos indivíduos
como cidadãos que têm direitos e se sentem no direito de participar e de criar uma sociedade
diferente.
A entrada da Psicologia no âmbito das políticas públicas, representando esse um novo
campo de atuação do psicólogo, dentro de um novo paradigma da proteção social, ainda revela
alguns entraves, como: falta de recursos e de suporte organizacional do serviço, em que se
visualizam dificuldades nas condições de trabalho; falta de equipe consolidada e capacitada;
desarticulação da rede; e conhecimento reduzido dos usuários e funcionários quanto ao Suas
(Ribeiro, 2010). Esse aspecto condiz com resultados da pesquisa realizada pelo CFP (2009), em
âmbito nacional, com psicólogos, por meio do Crepop, pela qual se confirmou a morosidade do
sistema de defesa e de responsabilização (Segurança Pública, Ministério Público e Justiça) na
articulação com os demais serviços e na tramitação dos encaminhamentos dos casos.
Esses entraves na formação do psicólogo refletem uma problemática que perpassa
deficiências na formação superior, como a inexistência de conteúdos (ferramentas
teórico-metodológicas), de disciplinas e estágios sobre políticas públicas e atuação do
psicólogo nesse novo campo da profissão (CFP, 2009). A esse respeito, Yamamoto (2003)
aponta que, na atuação do psicólogo em políticas públicas, deve-se considerar, como ponto
principal, a qualificação da formação dos profissionais de psicologia, voltados à contribuição
da realidade brasileira, baseados no compromisso social, o que difere da exclusividade do
modelo clínico tradicional de atuação ainda propagado nas instituições de ensino superior.
Sobre esse tema, Paiva e Yamamoto (2010) afirmam que a formação universitária, desse modo,
não prepara o psicólogo para amar em políticas públicas, com reflexões para uma atuação
política e ativa na comunidade,
159
bem como para apropriar-se de conhecimento sobre marcos lógicos e legais a respeito de
políticas públicas, como a Constituição e suas leis complementares. Esse aspecto se faz
presente nos espaços de debate e reflexão da categoria profissional, entre os quais se destaca
aqui o v Seminário de Psicologia-e Políticas Públicas, intitulado Subjetividade, Cidadania e
Políticas Públicas, ocorrido em 2011, no qual esta discussão se fez presente:
Trata-se de dialeto, de cacoete paroquial dos psicólogos, tratar a questão da "clínica" como
se ela fosse sinônimo das suas tecnologias psicoterápicas e vice-versa. Isso dificulta muito o
avanço da discussão acerca do lugar da clínica nas abordagens da saúde e o lugar da clínica
como recurso de todos os psicólogos e não apenas dos que são psicoterapeutas ou trabalham
com saúde (Oliveira, 2011, p. 93).

Ainda segundo o referido autor, vários pesquisadores


vêm denunciando o verdadeiro desastre que tem representado a extrapolação do modelo
psicoterapêutico para o interior das diversas práticas institucionais e o despreparo dos
psicólogos para manejar outros referenciais para a sua atuação nesses contextos. Por outro
lado, fica absolutamente evidente que o centramento da formação em um saber de tipo
tecnológico como esse deixa completamente desguarnecido o preparo do psicólogo para uma
atuação como clínico. E quando digo clínico, não estou afunilado em uma concepção que
confunde a clínica com as atuações na área de saúde, ainda que seja evidente que nesse campo
as demandas de atuação clínicas sejam enormes para todos os profissionais da área, inclusive
para os psicólogos. Estou afirmando a necessidade de preparar melhor o psicólogo para o
exercício da ação clínica: ampliar sua capacidade de análise dos contextos; desenvolver sua
capacidade de articulação de variáveis para o exercício de um diagnóstico; treinar as várias
metodologias de diagnóstico - individual, social, institucional, comunitário; aprender a fazer os
registros de seus projetos de intervenção, bem como o manejo de várias tecnologias necessárias
para intervir (Oliveira, 2011, p. 100).
Outro aspecto que evidencia uma dificuldade enfrentada pelos psicólogos concerne à falta
de concursos públicos efetivos para os profissionais na política pública de assistência social
(Ribeiro, 2010). Desse modo, quanto ao vínculo contratual, os psicólogos são contratados
como temporários ou autônomos (CFP, 2010). A impermanência no serviço é ainda um fator
presente no âmbito das políticas públicas de assistência social. Esses aspectos são, no
160
mínimo, paradoxais ao se considerar o que define a NOB-RH/Suas, que determina a valorização
dos profissionais atuantes nas equipes de referência mediante concurso e política de
capacitação permanente. A falta de concurso público prejudica diretamente a atuação e
garantia de direitos, no que concerne tanto aos atendimentos quanto aos encaminhamentos dos
casos à rede de proteção. Essa impermanência prejudica a atuação e gera um sentimento de
insegurança por parte dos profissionais quanto ao seu vínculo contratual (Freire, 2012).
Ao se observar os entraves para a atuação do psicólogo nas políticas públicas, pode-se
refletir, a partir deles, sobre a garantia de direitos dentro da política pública de assistência
social e sobre a interlocução dos atores envolvidos para a sua efetivação, e isso implica a
participação ativa e política da sociedade, dos profissionais envolvidos na proteção social e do
Estado na viabilização dessa política. Ainda estão presentes nas políticas públicas de
assistência social a falta de recursos disponibilizados pelo Estado para infraestrutura e a falta
de material e de capacitação dos profissionais, o que concorre para dificuldades nas condições
de trabalho. Ou seja, visualiza-se tanto o despreparo dos profissionais, no que concerne à
formação para trabalhar com políticas públicas, como também a desarticulação da rede de
proteção e a falta de suporte do Estado para que esse profissional efetive a garantia de direitos
(Freire, 2012; Ribeiro, 2010).
Um aspecto a ser destacado é que, no que tange aos marcos lógicos e legais de referência
para a atuação do psicólogo nas políticas públicas, no âmbito do Cras, pode-se observar que,
apesar de recomendar o afastamento "das abordagens tradicionais funcionalistas e pragmáticas,
que reforçam as práticas conservadoras que tratam as situações sociais como problemas
pessoais que devem ser resolvidos individualmente" (CFSS & CFP, 2007, p. 25), a produção
acadêmica sobre essa atuação tem mostrado a necessidade de intervenções para além da
psicologização e do modelo tradicional clínico do fazer psicológico. Sobre esse aspecto,
Alberto et al. (2008) asseveram que a psicoterapia não pode ser o único modo da atuação do
psicólogo, principalmente no âmbito das políticas públicas, no qual o psicólogo deve ter uma
atuação política, ativa
161
e comprometida com os aspectos sociais e subjetivos construídos e produzidos
sócio-historicamente. Parece ser importante, por conseguinte, uma contínua capacitação para
esses profissionais que trabalham na ponta, na atuação direta, nas ações que visam ao combate
e ao enfrentamento das situações de violação de direitos, principalmente de crianças e
adolescentes, por estarem lidando em sua prática com urna dimensão subjetiva da realidade
delas e de suas famílias.
Para visualizar essa questão, cabe citar o estudo realizado por Andrade e Romagnoli (2010)
acerca das relações subjetivas que emergem entre os psicólogos do Cras de uma cidade do
interior de Minas Gerais e entre os demais profissionais e a comunidade, com o objetivo de
identificar os pontos de represamento e os de invenção produzidos nessas relações. As autoras
observaram que, muitas vezes, o trabalho é inviabilizado pelo enrijecimento da visão de família
nuclear como modelo para as intervenções e também por atravessamentos políticos e
profissionais de outras organizações nas atividades cotidianas do Cras.
Destarte, movimentos em direção à busca de outros modelos de atuação contrários às
práticas hegemônicas também são observados. Como exemplo disso, é possível referir a
experiência de "clínica-ampliada" a partir do atendimento aos usuários de um Cras no
município de Poço de Caldas, no formato de Plantão Psicológico por parte de alunos de um
curso de Psicologia, realizada em estudo de Mota e Goto (2009) com a proposta de articulação
de novas práticas em espaços incomuns, bem como de produção de conhecimento a respeito
dessas práticas.
Na atuação do profissional de Psicologia, sobressai o modelo clínico individual de
atendimento centrado no indivíduo como única ferramenta para intervenção, até mesmo
quando as ações parecem indicar uma atuação dentro da área escolar, das políticas públicas de
assistência social, principalmente no Cras, no Creas e no Programa de Erradicação do Trabalho
Infantil (Peti). Ainda que trabalhem com instituições, grupos e comunidades, predomina esse
modelo. De fato, pode-se perceber que, embora a atuação do profissional de Psicologia nas
instituições participantes não destoe completamente do previsto, pelos documentos que
referendam tal atuação nas políticas públicas de assistência
162

social, ainda sobressai um único formato de atuação clínica. Os aspectos prescritos nos
Parâmetros para Atuação de Assistentes Sociais e Psicólogos(as) na Política de Assistência
Social e na cartilha de Referência Técnica para Atuação do(a) Psicólogo(a) no Cras/Suas, sobre
a necessidade de o profissional de Psicologia considerar a compreensão da dimensão subjetiva
dos fenômenos sociais e coletivos, com o objetivo de problematizar e propor ações no âmbito
social, ainda não aparecem de modo consolidado (Alberto et al., 2008; Alberto, Silva, Gomes,
Araújo & Oliveira, 2009; Amorim & Alberto, 2011; Freire, 2012). Por outro lado, pesquisas
com instituições, especialmente de atendimento a crianças e adolescentes, revelam, ainda, que
elas também concebem ou representam as atividades dos profissionais de Psicologia como
voltadas prioritariamente para os atendimentos de caráter clínico, individual ou grupai (Alberto
et al., 2008; Santos, Brito, Souza, Gadelha & Alberto, 2011).
Segundo Galdini e Berzin (2003), o psicólogo é visto como aquele que cuida de loucos ou
ajuda pessoas com problemas, o que reafirma a visão simplista, ficando à parte a visão
reflexiva e crítica da profissão. Quando as autoras questionam acerca do tipo de psicólogo de
que a sociedade brasileira precisa, a resposta que mais aparece é "um profissional
comprometido com a realidade brasileira, capaz de exercer sua profissão com competência,
crítico e transformador". Isso mostra que é preciso transformar as práticas e conscientizar a
sociedade sobre a importância do papel do psicólogo, retomando a importância de uma prática
que atenda a necessidades sociais (Pessoa & Alberto, 2011).
Compreendendo a Psicologia como produção histórica atravessada por essas políticas,
entende-se então que essa não é uma prática neutra, mas tem implicações com a sociedade,
como afirma Coimbra (2000). Um dos primeiros desafios na atuação do profissional de
Psicologia é superar o paradigma da Psicologia - pautado no modelo indivíduo, clínico, de
desenvolvimento natural - "etnocêntrica, que se pretende universal, missionária e civilizadora,
e que nega qualquer singularidade ou outras formas de atribuir significados, e que vê o sujeito
com uma visão patologizante" (Ropa & Duarte, 1985, p. 201). Todavia, para que essa atuação
ocorra, faz-se necessário haver formação para tal.
163
De fato, a literatura tem mostrado que há falhas na formação do profissional de Psicologia, que
não recebe por parte das universidades e centros de formação subsídios para exercer tal prática,
ficando muitas vezes enrijecidos em visões que não se amoldam à realidade e à necessidade
social. Como afirma Bock (2003), a Psicologia como profissão possui ainda pouco valor e
reconhecimento social; falta-lhe um projeto coletivo que lhe possibilite uma visão crítica.
Uma visão crítica significa aquela que supere a visão hegemônica de homem na Psicologia,
que naturalize o fenômeno psicológico como coisa em si, abstrata e universal, e que resida tão
somente no indivíduo e que, portanto, responsabilize-o ou culpabilize-o. A Psicologia precisa
se implicar, nos moldes da imanência do sujeito de Foucault (2006), das novas formas de
subjetividade: que conceba o homem como ativo, social e histórico, constituído e constituinte,
portanto, das práticas sociais; que seja crítica, isto é, tome a realidade na sua totalidade,
complexidade e, de modo dialético, contemple os movimentos e contradições, "voltado ao
investimento em ações, processos e relações que se contraponham às diferentes formas de
injustiça e desigualdade social e, portanto, às suas causas político-econômicas concretas"
(Delari Júnior, 2004, p. 03); que alie a "consciência crítica e atenção permanente e
comprometida com as urgências e necessidades da população" (Bock, Ferreira, Gonçalves &
Furtado, 2007, p. 47). Se a Psicologia assim não proceder, poderá estar fadada ao exercício da
tutela; nesse caso, no âmbito das políticas públicas de proteção social, mais especificamente, a
serviço do capital.
Vê-se, pelo exposto, que a atuação do psicólogo nas políticas de proteção social, que se
efetivam por meio das políticas públicas de assistência social, ainda que positivadas na
Constituição Federal como direito e como ação participativa do cidadão, ainda favorece
práticas assistencialistas, patologizantes, de tutela e controle social. Esse aspecto pode
conduzir a uma reflexão: será que as políticas públicas no âmbito de uma Constituição social
democrática (Bastos, 1999, citado por Ferreira & Correia, s/d) poderia efetivar-se por outras
vias que não essa a serviço do capital, dos exploradores e das ideologias que daí emergem?
Sem dúvida, essa é uma questão que demandaria outro estudo.
164

A resposta objetiva é não. Mas é possível minimamente sinalizar alguns aspectos: um deles é
pensar a atuação do psicólogo nos espaços de políticas públicas na perspectiva do que tem sido
pensado por outros autores. Salientaria, entre esses trabalhos, o de Scheinvar (2009), que
enfatiza a importância de se forjar outras percepções, produzir e garantir movimentos de
singularização. Ou seja, a autora salienta que determinadas atuações dos profissionais de
Psicologia desconhecem a lógica que alimenta as políticas públicas, as quais, embora se
constituam aparentemente despreparadas, são estratégias de manutenção do poder. O
profissional de Psicologia despreparado para saber disso engendra o que lhe mandam, cumpre
assim o esperado.
Ainda nessa perspectiva do despreparo, salientaria o papel da universidade, dos centros de
formação e dos cursos de Psicologia, que, dentro dessa lógica, não preparam bem os
profissionais, não formam para o conhecimento do que está implícito no âmbito de uma
atuação em políticas públicas - entenda-se a concepção aqui referendada pelo CFP a partir do I
Seminário Nacional de Psicologia e Políticas Públicas (Silva, 2001) -, dos conflitos, dos
interesses a serviço de quem age o Estado. Seguem juntas a Psicologia e as políticas públicas de
assistência social cumprindo um papel eficaz de manutenção do poder instituído.
Para não dizer que não se falou de flores, salientaria alguns pressupostos que têm sido
defendidos pelas autoras Alberto et al., (2008); Alberto, Azevêdo e Santos (2011); Lima e
Alberto (2010): as políticas públicas de assistência social fazem-se necessárias e, nelas, a
atuação dos profissionais de Psicologia, uma vez que não há outras possibilidades, na
contemporaneidade, de se efetivar direitos, principalmente diante das questões sociais que
emergem da relação capital-trabalho. Em sociedades desiguais, as políticas públicas devem
promover transformações sociais que funcionem como promoção de cidadania e provoquem a
participação ativa da sociedade. Todavia, entende-se que o papel do psicólogo nesses espaços
precisa se constituir em uma perspectiva crítica e contra-hegemônica. Perspectiva crítica, nesse
caso, é aquela que carrega consigo o compromisso com a crítica à visão hegemônica de homem

165

naturalização do fenômeno psicológico como coisa em si, abstrata e universal, que reside no
indivíduo de modo a culpabilizá-lo. Portanto, essa perspectiva concebe o homem como ativo,
social e histórico, constituído e constituinte das práticas sociais. É crítica, nos termos já
apontados, e é contra-hegemônica no sentido de se apropriar desses espaços de políticas para
garantir a efetiva participação dos cidadãos, aproveitando as brechas para criar outros
movimentos capazes de garantir a construção de projetos de autonomia e de protagonismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar de parecer paradoxal criticar-se as políticas públicas de assistência social como
necessidades emergentes das contradições que surgem da relação entre capital e trabalho, a
entrada da Psicologia nesse âmbito encerra novas perspectivas, de caráter contra-hegemônico,
dentre as quais salientaria: luta pela "deselitização" da profissão; rompimento com os
processos de exclusão social, com as injustiças sociais e com a desigualdade social, visando a
colocar a Psicologia ao alcance de toda a população; prática voltada para a garantia e o
restabelecimento de direitos. A Psicologia, nos espaços de políticas públicas, deve ser feita
com base na perspectiva da apropriação do lugar de protagonista e do fortalecimento dos
usuários como sujeitos de direito, o que significa reconhecer e respeitar as demandas como
direitos e defender políticas que os atendam. Isto significa uma implicação, do profissional de
Psicologia, com aquele para quem as políticas se voltam. Entretanto, cumpre identificar que
ainda há muito por se trilhar para se efetivar na prática tais aspectos, como a formação no
âmbito da academia e da organização política da categoria.

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INDICAÇÃO DE FILMES
BUNUEL, L. (1950). Los Olvidados (Os Esquecidos). Espanha: Mirada.
Um filme de Luis Bunuel produzido na década de 1950, mas atual ao retratar a perspectiva
social contextualizada nos subúrbios do México, ambiente no qual os personagens, um con-
junto de jovens órfãos, se envolvem com crimes como forma de sobrevivência. Possibilita
discutir os processos de exclusão social gerados a partir e no interior do sistema capitalista.
RAMOS, M. (2006). Vida Maria. Ceará: VIACG/Triofilmes.
Curta-metragem em animação realizado com recursos do edital 3o Prêmio Ceará de Cinema e
Vídeo. Consagrou-se em vários festivais e encerrou o ano de 2007 como o filme mais premiado
do Brasil. Retrata a história de Maria José, uma menina de cinco anos de idade que, dadas as
necessidades da família, precisa largar os estudos para trabalhar. Enquanto trabalha, ela cresce,
casa, tem filhos e envelhece. Revela as implicações psicossociais do trabalho infantil e a
reprodução intergeracional da pobreza. A personagem vivência o trabalho infantil doméstico e
o afastamento da escola, experiência já vivenciada por sua mãe, que irá reproduzir-se sobre
seus filhos, impossibilitando o seu acesso ao capital cultural. O filme possibilita uma reflexão
sobre os direitos de crianças e adolescentes e sobre a responsabilidade do Estado na garantia
desses direitos e na viabilização de políticas públicas para a criança e sua família, como direitos
humanos assegurados na Constituição Federal.

CORTÊZ, C. (2007). Querô. Brasil: Gullane Filmes.


Filme de Carlos Cortêz baseado na obra de Plínio Marcos. Filho de uma prostituta, Querô é um
adolescente pobre e órfão, que vive sozinho na região portuária de Santos. Achando-se dono do
próprio destino, Querô não se dobra à disciplina opressora da Febem, ao jogo fácil do tráfico de
drogas, e muito menos aos policiais corruptos que o perseguem. Paga por isso um preço alto. O
filme possibilita uma reflexão sobre a ação do Estado, das instituições que o compõem, na
efetivação
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de políticas públicas para jovens. Permite pensar que lugar a Psicologia ocupa ou pode ocupar
no processo de autonomização dos cidadãos como protagonistas ou atores sociais.
PROGRAMA DIVERSIDADE. Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. Recuperado em 19
de março de 2014, de http://www. youtube.com/watch ?v=uk-l5VATL3s
O vídeo chama atenção para o lugar que a Psicologia tem ocupado nas políticas de assistência
social, como um novo campo de atuação, além de salientar o diferencial que a Psicologia pode
oferecer nesse campo de atuação ao transformar o cidadão de objeto em sujeito. Marilene
Proença entrevista um assistente social sobre as políticas de assistência social e a inserção da
Psicologia. Há também o depoimento de psicológos que atuam em Centros de Referências da
Assistência Social acerca do trabalho que desenvolvem nesses espaços.
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