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Os Desafios da Cidadania nas Sociedades

Contemporâneas

Emília Cristine Pires

Neste texto, discutiremos o conceito de cidadania, analisando sua


concepção tradicional elaborada por T. H. Marshall, como também seus
desafios na atual conjuntura mundial. Além disso, discutiremos o
desenvolvimento da cidadania na sociedade brasileira, salientando as
diferenças entre o desdobramento do modelo inglês e o brasileiro.

O conceito de cidadania moderna foi elaborado por T. H. Marshall e


apresentado na conferência seminal “Cidadania e Classe Social”, ministrada no
final dos anos 40 com referência à obra do economista Alfred Marshall.

Marshall (1967) define o conceito de cidadania a partir de três elementos:


o direito civil, o político e social . Segundo o autor, o direito civil garantindo a
liberdade individual, o direito político, a participação no exercício do poder e o
direito social garantindo um mínimo de bem-estar aos indivíduos ,
proporcionaram o desenvolvimento da cidadania na sociedade inglesa.

Para Gurza Lavalle (2003), a ênfase exagerada ao elemento dinâmico da


concepção marshalliana, no qual o desenvolvimento da cidadania – “enquanto
status de direitos atribuídos – emerge como desdobramento dos direitos civis
em políticos, e destes em direitos sociais,” (Gurza Lavalle, 2003:77) suprime o
que de mais importante tem no pensamento de Marshall com relação às
características constitutivas da cidadania moderna. Segundo o autor, tais
características podem ser sintetizadas em quatro elementos:

i) universalidade da cidadania: atribuição de um status elaborado em


termos de direitos universais para categorias sociais formalmente
definidas, ao invés, para estamentos ou castas com qualidades
substantivas inerentes;
ii) territorialização da cidadania: territorialidade combinada com o
elemento anterior para delimitar politicamente os alcances da
cidadania, ou seja, assunção do território como critério horizontal a
delimitar a abrangência desse status, em substituição dos princípios
corporativos;

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iii) principio plebiscitário da cidadania ou individualização da
cidadania: generalização dos vínculos diretos entre o individuo e o
Estado como forma legítima de reconhecimento e subordinação
política, suprimindo não apenas o princípio funcional da tutela das
antigas corporações, mas também o chamado governo indireto, quer
dizer, a delegação das funções do Estado às camadas locais de
intermediários entre os poderes centrais e os donos de terras, os
mercenários, o clero, e os diversos tipos de oligarquias;
iv) índole estatal-nacional da cidadania: existência de vínculo
constitutivo entre cidadania e a edificação do Estado-Nação, graças à
construção histórica de coincidência dupla: entre o território e um
poder centralizado único, de um lado, e, do outro, entre a população
constituída como comunidade política e o Estado enquanto
encarnação presuntiva dessa comunidade concebida em termos
culturais ou de identidade nacional. (Gurza Lavalle, 2003:77)

De acordo com o autor, na concepção tradicional da cidadania, ela atua


no plano cognitivo como conceito sintético-descritivo e não como categoria
normativa, ou seja, os quatro elementos que caracterizam a cidadania resultam
numa síntese capaz de descrever historicamente a edificação do status
moderno da cidadania, porém, sem adotar qualquer afirmação sobre a
substância ou dever ser da cidadania.

Segundo o mesmo autor, o uso analítico do termo refere-se de forma


sintética a processos longos e conflituosos na consolidação de direitos civis,
políticos e sociais, e sob os quais resultaram nas sociedades ocidentais os
dilemas de subordinação política e da integração social.

Assim, a expansão do status universal de pertença a uma comunidade


política proporcionou os meios para equacionar nos planos simbólicos e político
institucional as problemáticas da subordinação política e da integração social
ao longo dos processos de expansão da economia de mercado e de
consolidação do Estado Nacional.

Dessa forma, mesmo em sociedades com enormes diferenças


socioeconômicas, desigual efetivação do direito e outras desigualdades como
as presentes na América Latina, a ordenação política e incorporação social
passaram pela edificação da cidadania.

Todavia, segundo Gurza Lavalle, a cidadania moderna definida mediante


o reconhecimento de novos direitos e de novos setores da população,
encontra-se diante de uma encruzilhada de caminhos incertos, pois, as

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condições que lhe deram viabilidade política e plausibilidade simbólica,
enquanto status universal sofreram mudanças profundas, cujas implicações
suscitam controvérsias quanto ao futuro da própria cidadania e dos caminhos
de sua reconstrução para se adequar às exigências dos novos tempos.

Essas transformações referem-se a diversos fatores, entre eles, a


capacidade do Estado para institucionalizar um grande número de conflitos de
interesses populares e para impor as decisões tomadas. Assim, uma
combinação complexa de fatores busca com urgência a ação pública, e ao
mesmo tempo, limitam sua efetividade e seus alcances. Deste modo,

A vulnerabilidade financeira e migratória das fronteiras nacionais, os


processos de integração econômica internacional e a conseqüente
cessão parcial de soberania, o acirramento da desigualdade social
sob formas inéditas – entre elas o alastramento do desemprego
estrutural -, a redefinição do papel do Estado e sua conseqüente
retração no plano da intervenção social adicionada às crescentes
limitações fiscais da ação pública, compõem um panorama crivado de
restrições não apenas para a ampliação da cidadania, senão também
para preservação de sua substância já cristalizada em direitos (Gurza
Lavalle, 2003:80-81).

Segundo o autor, o outro conjunto de fatores presentes na


desestabilização da cidadania se refere à diferenciação social e a mudanças
socioculturais. Em geral, são fenômenos que exprimem de diferentes formas
as dificuldades de se representar e processar simbolicamente questões, antes
elaboradas na linguagem do universal, como, o descrédito das grandes
ideologias, a desconfiança suscitada pelas categorias totalizadoras, a
emergência e proliferação de identidades restritas, o desencanto da política, a
multiplicação de formas associativas civis a reivindicarem representatividade, a
proliferação da política da diferença, etc.

Assim, a diversificação de temas e interesses impulsionada pela


multiplicação de identidades restringidas evidencia a parcialidade e a
insuficiência da estrutura institucional encarregada da agregação e
representação de interesses, pois é, no interior das instituições da democracia
que ocorrem os processos de definição de prioridades na criação e regulação
de direitos relacionados ao status de cidadão.

Essas identidades são reconhecidas como portadoras de necessidades


específicas e de reivindicações diferenciadas, cuja satisfação não é garantida

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através do status universal caracterizado desde suas origens por pressupostos
normativos que basearam simbolicamente o reconhecimento de direitos iguais
para os membros da comunidade política com perda para o direito à diferença.

Dessa forma, a imparcialidade e a representatividade dos processos


institucionais de produção da cidadania estão em jogo, assim, como a
sensibilidade de tais instituições para contornar os riscos do sinônimo entre
igualdade e homogeneidade.

Com relação ao Brasil, veremos como se deu o desenvolvimento da


cidadania na sociedade brasileira e quais obstáculos a enfrentar.

No texto “Mercado, Estado e Cidadania” Elisa Reis (1998), examina as


relações entre política e desigualdade social no Brasil, considerando as
oportunidades e os limites para o crescimento econômico.

Para a autora, as relações entre crescimento econômico, igualdade


social e tipo de regime não são deterministas e nem apresentam padrão
uniforme. Assim, as condições de mercado, a estrutura social e os sistemas de
autoridade podem interagir de diversas formas.

Contudo, mesmo que não haja um padrão definido, os projetos políticos


e as políticas que os expressam resumem uma concepção específica das
interações entre fatores econômicos, políticos e sociais. Como exemplo, o
regime militar (1964-1985) que adotou um projeto de modernização,
sacrificando a participação política e adiando a redistribuição social em favor do
crescimento rápido.

Já o projeto democratizante dos anos 1980, considerava que a


democracia política poderia criar as condições para que ao mesmo tempo
voltasse o crescimento econômico e se estabelecessem padrões de
distribuição mais igualitários. Dessa forma, na transição da ditadura para a
democracia, o projeto político salientava a ampla produção de bens sociais
pelo governo como meio peculiar de promover a cidadania.

De acordo com a autora, apesar dos graves problemas financeiros o


governo de transição (1985-1989) enfatizou as políticas de bem-estar social.

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Mas, segundo ela, a política de distribuição teve pouco êxito, pois a ausência
de uma estrutura partidária consolidada e de outros canais competitivos
institucionalizados dava ao Estado um grande poder de definir as políticas
sociais e inserir os mecanismos de clientelismo no novo ambiente político.

A intensificação dos problemas nas finanças públicas, o fracasso das


tentativas de expansão das iniciativas de bem-estar social e a reativação da
vida política contribuíram para uma mudança no projeto político.

Assim, a eleição presidencial de 1989 marcou a transformação na


concepção da interação entre economia e política. A política antes adotada
passou a ser vista como obstáculo ao crescimento econômico. A tradicional
preferência pela utilização dos recursos da autoridade foi substituída pelo
mercado e a interferência do Estado julgada como responsável pelo
desempenho econômico insatisfatório.

Desse modo, a necessidade de equilibrar as finanças públicas e a


ameaça da hiperinflação promoveram uma ideologia anti-Estado entre as elites.
Essa ideologia também foi adotada por uma parcela significativa das classes
médias que passou a identificar corrupção política, ineficiência burocrática e
mau desempenho econômico com o predomínio dos recursos de autoridade no
modelo de capitalismo de Estado.

Entre as massas, o projeto político garantiu seu apelo eleitoral utilizando-


se do recurso de identificar os novos detentores do poder como defensores de
uma grande limpeza do Estado. Dessa forma, a autoridade corrigiria suas
distorções para que pudesse desempenhar seu papel de protetor dos pobres.

Segundo ela, mesmo que a pobreza e a desigualdade não representem


necessariamente ameaças à democracia, na situação atual das instituições
democráticas brasileiras, elas só conseguirão estabilidade se for encontrada
uma solução política para os problemas de participação social, pois o fato de
que muitos cidadãos não têm outra opção senão recorrer às redes de
clientelismo para satisfazer as necessidades básicas introduz um grau de
incerteza na política.

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Nesse sentido, o fato de o Estado se mostrar incapaz de garantir uma
segurança mínima à população em geral põe em risco o monopólio estatal
sobre a violência, marginalizando ainda mais os que realmente são privados
dos direitos de cidadania.

Assim, para a autora, todas as experiências modernizantes tardias que


ocorreram no Segundo ou no Terceiro Mundo podem ser consideradas até
certo ponto como tentativas planejadas de usar articulações específicas de
mercado, autoridade e solidariedade para atingir o desenvolvimento ou
modernização que o projeto político de uma nação necessita para consolidar-
se.

Segundo a mesma, cada uma dessas estratégias alternativas de


desenvolvimento tardio afirma um modelo específico de cidadania. Esses
diferentes modelos de cidadania implementadas no passado influenciaram os
contextos em que ocorreram tentativas de fortalecer o mercado e afirmar a
democracia política. Para a autora, compreender essas diferenças contextuais
ajuda esclarecer a relação entre mercado e cidadania, neste momento, que os
recursos da autoridade parecem perder espaço como preferência estratégica.

Para ela, no caso específico do Brasil, a predominância do capitalismo


de Estado implicou uma noção de cidadania fortemente vinculada ao Estado.
Termos como “corporativismo estatal”, “modernização de cima para baixo”,
“cidadania regulada” e outros termos assinalam para o fato de que a
desigualdade do mercado e o paternalismo do Estado têm ajudado a forjar
representações sociais de cidadania subordinadas ao Estado.

Para José Murilo de Carvalho (2002), compreender a cidadania no Brasil


requer a reflexão sobre o seu significado, sua evolução histórica e suas
perspectivas ao longo do tempo.

Segundo o autor, o fenômeno da cidadania é complexo e historicamente


definido. No Brasil, a cronologia e a lógica da seqüência descrita por Marshall
foram invertidas. Primeiro vieram os direitos sociais, implantados em um
período de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis.
Posteriormente, a expansão do direito ao voto deu-se em outro período

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ditatorial, em que os órgãos de representação política eram manipulados pelo
regime. E atualmente, muitos dos direitos civis, base da seqüência de Marshall,
continuam inacessíveis a um grande parcela da população.

De acordo com Carvalho, quando os direitos sociais são implantados


em períodos ditatoriais, em que o legislativo está ausente, cria-se a imagem da
centralidade do executivo para a maioria da população. Essa orientação para o
executivo reforça a longa tradição portuguesa, ibérica do patrimonialismo.

Assim, o Estado é visto como um ser supremo, de um lado, como


repressor e cobrador de impostos , de outro, como distribuidor paternalista de
empregos e favores. A ação política dessa visão é orientada especialmente
para a negociação direta com o governo, sem passar pela mediação da
representação. Para o autor, essa cultura orientada mais para o Estado do que
para a representação pode ser chamada de “Estadania”, em contraste com a
cidadania.

Todavia, segundo o autor, além da cultura política estadista, a inversão


dos direitos favoreceu também uma visão corporativista dos interesses
coletivos. E a culpa não foi toda do Estado Novo. A distribuição dos benefícios
sociais por cooptação de categorias de trabalhadores do sindicalismo
corporativo resultou na crença de que os benefícios sociais não eram direitos
de todos, mas conseqüência da negociação de cada categoria com o governo.
Dessa forma, a sociedade começou a se organizar para garantir os direitos e
os privilégios distribuídos pelo Estado.

Assim, com a ausência de uma ampla organização autônoma da


sociedade, os interesses corporativos conseguem prevalecer, e a
representação política fica comprometida, na medida em que o papel dos
legisladores é reduzido para a maioria dos votantes, ao de intermediários de
favores pessoais perante o executivo.

Entretanto, para o autor, o cenário internacional também traz


complicações para a construção da cidadania, já que, países como o Brasil
têm buscado uma noção e uma prática de cidadania geradas no ocidente, e

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conseguindo alguns êxitos, se vêem diante de um cenário internacional que
desafia tal noção e prática.

Para ele, se há algo importante a fazer com relação à consolidação


democrática, é reforçar a organização da sociedade para dar fundamento
social ao político e desta forma, democratizar o poder.

Todavia, como vimos anteriormente com Gurza Lavalle (2003), a


sociedade tem-se diferenciado cada vez mais, surgindo novas identidades com
diferentes reivindicações. Essa situação coloca em xeque a própria noção de
cidadania enquanto status universal e suscita questionamentos a respeito do
seu futuro e dos caminhos para sua reconstrução.

Bibliografia

CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O longo caminho – 2º ed. –


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

GURZA LAVALLE, Adrián. Cidadania, Igualdade e Diferença. Lua Nova: revista


de cultura e política, São Paulo, nº. 59, 2003.

MARSHALL, T. H. Cidadania e Classe Social. In: MARSHALL, T. H. Cidadania


Classe Social e Status. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1967.

REIS, Elisa Pereira. Mercado, Estado e Cidadania: As Estratégias Brasileiras


de desenvolvimento – IN: Processos e Escolhas: estudos de sociologia política
– Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1998.

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