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CONTEÚDO E

METODOLOGIA DO
ENSINO DE
HISTÓRIA

Caroline Silveira Bauer


Cidadania, diversidade
cultural e ensino de história
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Discutir o conceito de Cidadania e o que é ser cidadão no século XXI.


 Reconhecer a concepção de Cidadania como uma conquista histórica
dos povos e sociedades.
 Relacionar a noção de Cidadania com os princípios da diversidade
cultural por meio do ensino de história em sala de aula.

Introdução
Do ponto de vista jurídico, todos são iguais perante a lei, com respeito às
diferenças. Mas será que na prática é isso que acontece? Você já deve ter
falado muitas vezes as palavras "cidadania" e "cidadão", mas você conhece
a história desses conceitos e suas definições contemporâneas? Para além
de conhecê-las, a pergunta mais importante a ser formulada em um país
multicultural e pluriétnico como o Brasil seria: quem é cidadão no Brasil?
Neste capítulo, você vai conhecer algumas definições para o conceito
de cidadania e também vai acompanhar um breve histórico do termo
até o século XXI. Você vai aprender que a cidadania foi uma conquista
de povos e sociedades a partir de muitas lutas contra a desigualdade, a
opressão e as injustiças históricas. Por fim, você vai ver como o ensino
de história pode, por meio de uma série de metodologias, fomentar o
exercício da cidadania aliado aos princípios da diversidade cultural.

O que é cidadania?
Os termos “cidadão” e “cidadania” possuem diferentes sentidos. Tais sentidos
mudam continuamente, sendo concebidos e vivenciados de maneiras distintas
nos diferentes tempos, espaços e culturas. Assim, não se pode pensar o con-
2 Cidadania, diversidade cultural e ensino de história

ceito de cidadania como estanque (PINSKY; PINSKY, 2005), pois ele está em
contínua interação com práticas desenvolvidas em sociedade. Esse conceito
remete à Antiguidade Clássica, período em que a categoria de cidadão era
conferida apenas a alguns sujeitos. Na modernidade e, posteriormente, por meio
da filosofia iluminista, o termo foi incorporado definitivamente à experiência
política (BOTELHO; SCHWARCZ, 2012).
Aqui, você vai ver algumas definições mais gerais, passando pela análise
do sociólogo Carvalho (2016) e, a seguir, pela definição de Botelho e Schwarcz
(2012). Esta última abarca pressupostos culturais e identitários importantes para
você compreender a relação entre cidadania e diversidade cultural. Se você
buscar uma definição do que é cidadania ou do que é ser cidadão, vai encon-
trar referências a um sujeito com direitos dos mais diversos: civis, políticos e
sociais. O cidadão também é encarado como um cumpridor de deveres, pois
faz parte de um todo maior, que geralmente é identificado como uma nação,
um Estado ou outra forma de comunidade política específica.
Essa, no entanto, é uma conceituação insatisfatória, pois nada fala sobre
quem é esse sujeito — ainda que, por pressuposto, todos os cidadãos devessem
ser iguais perante a lei. Além disso, não menciona quais foram os processos
que resultaram na conquista desses direitos, muito menos quais se encontram
assegurados ou ameaçados. Por isso, é inevitável relacionar esses conceitos aos
diferentes momentos históricos. Assim, veja a definição do sociólogo Carvalho
(2016), explicitada em sua obra Cidadania no Brasil: o longo caminho:

[...] a cidadania inclui várias dimensões e [...] algumas podem estar presentes
sem as outras. Uma cidadania plena, que combine liberdade, participação e
igualdade para todos, é um ideal desenvolvido no Ocidente e talvez inatingível.
Mas ele tem servido de parâmetro para o julgamento da qualidade da cida-
dania em cada país e em cada momento histórico. (CARVALHO, 2016, p. 9).

Para o desenvolvimento de sua análise, um percurso da construção da


cidadania no Brasil do período colonial ao término da ditadura civil-militar
brasileira, Carvalho (2016) parte do modelo analítico proposto por Thomas
Marshall — a tríade de direitos civis, políticos e sociais. Marshall pressupõe
uma lógica histórica e sequencial para o desenvolvimento desses direitos
(inicialmente civis, depois políticos e, por fim, sociais). Carvalho (2016), por
sua vez, pondera que a experiência brasileira seguiu outro percurso. Veja como
o autor define cada uma dessas esferas:
Cidadania, diversidade cultural e ensino de história 3

O cidadão pleno seria aquele que fosse titular dos três direitos. Cidadãos
incompletos seriam os que possuíssem apenas alguns dos direitos. Os que
não se beneficiassem de nenhum dos direitos seriam não cidadãos. Esclareço
os conceitos. Direitos civis são os direitos fundamentais à vida, à liberdade,
à propriedade, à igualdade perante a lei. [...] [Direitos políticos] se referem à
participação do cidadão no governo da sociedade. Seu exercício é limitado
a parcela da população e consiste na capacidade de fazer demonstrações
políticas, de organizar partidos, de votar, de ser votado. [...] Se os direitos
civis garantem a vida em sociedade, se os direitos políticos garantem a parti-
cipação no governo da sociedade, os direitos sociais garantem a participação
na riqueza coletiva. Eles incluem o direito à educação, ao trabalho, ao salário
justo, à saúde, à aposentadoria. (CARVALHO, 2016, p. 9-10).

Na conclusão de sua obra, Carvalho (2016) retoma essa definição para


explicar como se deu, no Brasil, a conquista de direitos. Veja:

Aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de su-


pressão dos direitos políticos e redução dos direitos civis por um ditador que
se tornou popular [Getúlio Vargas]. Depois vieram os direitos políticos, de
maneira também bizarra. A maior expansão do direito ao voto deu-se em
outro período ditatorial, em que os órgãos de representação política foram
transformados em peça decorativa do regime. Finalmente, ainda hoje muitos
direitos civis [...] continuam inacessíveis à maioria da população. (CARVA-
LHO, 2016, p. 219-220).

E quais são as consequências dessas conquistas de direitos para a cultura


política brasileira? De acordo com Carvalho (2016), o processo histórico
brasileiro condicionou determinadas compreensões em relação à política e
aos direitos. Tais como (CARVALHO, 2016):

 valorização excessiva do Poder Executivo;


 busca por um messias político, “um salvador da pátria”;
 desvalorização do Legislativo;
 política marcada pelo governismo e uma compreensão de corporativismo
em relação aos interesses coletivos;
 ausência de organizações relativamente autônomas na sociedade.

Sua definição e sua análise são muito importantes, principalmente a aná-


lise histórica que faz das lutas sociais que garantiram por lei direitos civis,
políticos e sociais no País. Porém, a concepção de Carvalho (2016) é muito
4 Cidadania, diversidade cultural e ensino de história

formalista e institucional. Por isso, é necessário ampliar essas considerações


com pautas culturais e identitárias para se estabelecer a relação entre cidadania
e diversidade cultural.
Para isso, a seguir você vai ver as concepções de Botelho e Schwarcz (2012).
Para os autores, a cidadania deve ser compreendida como uma “identidade
social politizada”. Ou seja, a cidadania “[...] envolve modos de identificação
intersubjetiva entre as pessoas e sentimentos de pertencimento criados cole-
tivamente em inúmeras mobilizações, confrontos e negociações cotidianas,
práticas e simbólicas [...]” (BOTELHO; SCHWARCZ, 2012, p. 11). Isso significa
que o entendimento do que é ser cidadão também se relaciona aos valores e
práticas dos direitos e do reconhecimento de direitos — que terminam por
delimitar a cidadania.
Em suas palavras:

Cidadania é noção construída coletivamente e ganha sentido nas experiências


tanto sociais quanto individuais, e por isso é uma identidade social. Claro
que pensamos aqui em identidade como uma construção social relativa,
contrastiva e situacional. Ou seja, ela é uma resposta política a determinadas
demandas e circunstâncias igualmente políticas, e é volátil como são diversas
as situações de conflito ou de agregamento social. Porque é política, também
sua força ou fragilidade depende das inúmeras mobilizações, confrontos e
negociações cotidianas, práticas e simbólicas. Confrontos e negociações
que, por sua vez, variam enormemente à medida que avançam os processos
de construção do Estado-nação, da expansão capitalista, da urbanização e
da coerção — e pensamos aqui especialmente na guerra. “Identidade social
politizada” significa, portanto, que a extensão dos direitos da cidadania demo-
crática deve ser pensada como resultados possíveis das contendas concretas
de grupos sociais, e que essas contendas são, por sua vez, fontes poderosas de
identificação intersubjetiva e reconhecimento entre as pessoas. (BOTELHO;
SCHWARCZ, 2012, p. 12-13).

Essa definição se aproxima um pouco mais dos sujeitos históricos e de suas


relações sociais configuradas no século XXI. Mas o que mais caracteriza o
cidadão do século XXI?

Cidadania no século XXI


A noção de cidadania vinculada às mudanças experimentadas no século XXI
deve estar diretamente associada aos debates sobre igualdade, diferença e
reconhecimento do outro. Com afirmam Bertaso e Rocha (2017, p. 202):
Cidadania, diversidade cultural e ensino de história 5

O reconhecimento do “outro” coloca-se como uma das mais importantes ques-


tões do nosso tempo, que inquieta os grupos envolvidos no resgate daqueles
que estão excluídos/esquecidos da nossa sociedade. A ideia da inclusão, da
interação e do reconhecimento sinaliza caminhos a uma vida digna a todo
o ser humano.

Nesse sentido, deixando de lado a noção de que o cidadão é homem, euro-


peu, branco e heterossexual, característica das concepções universalizantes
desde o Iluminismo, a cidadania deve ser compreendida com base em uma
percepção de diversidade e de pluralidade. Assim, é necessário questionar a
formulação dos critérios de diferenciação e exclusão e combatê-los quando
forem assentados em hierarquias ou preconceitos.
Por isso, a diversidade cultural deve ser compreendida para além do res-
peito à diferença, mas como um enfrentamento às estruturas que causam a
diferenciação:

Ressaltamos a necessidade de superar as relações de poder que sustentam a


intolerância e os preconceitos que fizeram as hierarquias sociais justificadoras
da subalternização, assimilação e aculturação das diversas minorias. Inter-
culturalidade consagra o congraçamento e as interações entre a pluralidade
das identidades que compõem a sociedade humana. Nessa direção, pensa-se
em uma proposta em defesa da diversidade de todas as formas de vida exis-
tentes nas sociedades contemporâneas, já que se considera um conjunto de
aspectos fortemente ligados e que marcam tanto a inclusão quanto as exclu-
sões. Implica, assim, compreender e reconhecer a diversidade e pluralidade
étnica e cultural das sociedades atuais; as demandas por inclusão paritária,
considerando a pluralidade de esferas de valor e práticas institucionais em
reparação de exclusões históricas, pelas quais se fizeram hierarquizações em
base das diferenças sexuais, de gênero, classe, idade e étnicas. Incluem-se
as demandas por reorientação das políticas públicas no sentido de assegurar
esferas públicas — espaços de manifestações — plurais e diversificadas,
para que todos os grupos e culturas possam desfrutar, de forma paritária, dos
encaminhamentos de suas demandas políticas, sociais e de subjetividades.
(BERTASO; ROCHA, 2017, p. 204).

O cidadão do século XXI, portanto, é um sujeito que extrapola as defini-


ções focadas no modelo nacional. Ele apresenta à sociedade e às instituições
reivindicações de intervenção e de acesso paritário, em condições de igualdade.
Transcende, também, a noção de que a cidadania é uma concepção atrelada
ao Estado, o qual “protege” os direitos dos cidadãos. Veja:

A ideia de cidadania hoje implica inclusão, interação e reconhecimento, e


sinaliza para uma vida igualmente digna a todo o ser humano. Estamos diante
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de novas demandas políticas, sociais e culturais. Essas demandas afloram/


desvelam exatamente a problemática que a sociedade está trazendo como um
dos tantos aspectos que estão a desafiar nossa sensibilidade enquanto cida-
dãos e cidadãs. Em sociedades multiculturais, como projetada, a cidadania
permanece dotada de uma potência política; neste contexto, compreendida
desde as práticas sociais do cotidiano, reconhecendo o sujeito concreto e sua
capacidade real de intervenção nas relações sociais de poder e força, de poder
decidir sobre o destino de suas vidas. (BERTASO; ROCHA, 2017, p. 203).

Segundo os autores, essa nova concepção de cidadania é oriunda das mu-


danças apresentadas pelas pautas identitárias emergentes no final do século
passado e no início do XXI. Nesse contexto, existe um movimento paradoxal
de crise do Estado-nação, mas reforço de alguns nacionalismos. Assim, a noção
de cidadania construída com base em um discurso homogêneo, de integração
entre cidadãos iguais, vai sendo desconstruída. Afinal, essa noção favorece e
justifica possíveis exclusões. Nesse sentido, eram excluídos especialmente os
estrangeiros, que não pertenceriam ao grupo de cidadãos de um país.
Para Bertaso e Rocha (2017), hoje, essa acepção não é mais efetiva. No nível
externo, ela afeta direitos humanos. Já no nível interno, interfere na autonomia
de sujeitos e grupos sociais no campo político, especialmente em relação ao
seu potencial de poder concreto. Você deve considerar que, nas sociedades
multiculturais que caracterizam a contemporaneidade, os direitos políticos
afetam os direitos culturais. Assim, se aqueles forem desconsiderados, será
minimizado o caráter público do reconhecimento de valores e bens de pessoas
e comunidades minoritárias, que possuem suas diferenças e identidades.
Somente a partir da compreensão do Brasil como um país multicultural
e pluriétnico é que se pode pensar em uma efetiva interação entre os grupos
étnico-culturais componentes da sociedade, com reais condições de igualdade
de oportunidades e com respeito recíproco, sustentando a democracia. A
diversidade cultural engloba essas diferenças culturais que existem entre as
pessoas, que perpassam linguagem, vestimentas, danças, heranças físicas e
biológicas, assim como tradições. Além disso, é necessário considerar que as
sociedades organizam-se conforme a sua concepção de moral e de religião.
A forma como interage com o ambiente é a identidade própria de um grupo
humano em um território e em determinado tempo.
Porém, existe outra dimensão do cidadão do século XXI, que é a sua
inserção na cultura digital, o que inclui as formas como utiliza as ferramentas
tecnológicas. Assim, outros desafios são colocados ao exercício da cidadania
e há lutas que precisam ser travadas no novo milênio, como o enfrentamento
às fake news.
Cidadania, diversidade cultural e ensino de história 7

O livro Sobrevivendo nas redes — Guia do Cidadão (SORJ, 2018) traz uma série de con-
selhos sobre uma das mais graves ameaças à cidadania do século XXI: as fake news.
Veja a seguir algumas dicas para se manter imune a elas:
 desconfie das informações que confirmam sua visão de mundo;
 não divulgue uma informação se não tem certeza de que é verdadeira;
 saiba que, se a informação é importante, urgente e fundamentada, em poucos
minutos estará em vários veículos — se isso não ocorrer, desconfie;
 lembre-se de que devem constar na notícia pelo menos a data e o autor, além das
fontes das informações veiculadas;
 conheça o histórico dos veículos;
 verifique o nome dos sites;
 confira as datas;
 leia as seções “Ver histórico” e “Discussão” quando consultar a Wikipedia;
 confira a relação da manchete com o texto das matérias que você lê na internet.

Assim, o cidadão do século XXI é aquele que articula a cidadania enquanto


um princípio de legitimidade política e de luta; a cidadania como construção
identitária (enquanto pertencimento e reconhecimento); e a cidadania enquanto
um conjunto de valores que permite uma atuação democrática, inclusive na
esfera digital.

Cidadania como luta


Diversos autores compreendem que a definição de cidadania pressupõe con-
flito e luta por melhores condições e mais direitos para setores da sociedade
(MAZINI COVRE, 2002). Afinal, a própria garantia de direitos se deu a partir
de episódios históricos de enfrentamento. Veja:

A cidadania instaura-se a partir dos processos de lutas que culminaram na


Independência dos Estados Unidos da América do Norte e na Revolução
Francesa. Esses dois eventos romperam o princípio de legitimidade que vigia
até então, baseado nos deveres dos súditos, e passaram a estruturá-lo a partir
dos direitos do cidadão. Desse momento em diante todos os tipos de luta
foram travados para que se ampliasse o conceito e a prática de cidadania e o
mundo ocidental o estendesse para mulheres, crianças, minorias nacionais,
étnicas, sexuais, etárias. Nesse sentido pode-se afirmar que, na sua acepção
mais ampla, cidadania é a expressão concreta do exercício da democracia.
(PINSKY; PINSKY, 2005, p. 10).
8 Cidadania, diversidade cultural e ensino de história

Há inúmeros exemplos que podem ser citados das conquistas no âmbito dos direitos
pelos movimentos sociais. Aqui, você vai aprender mais sobre a participação dos
trabalhadores.
Embora as relações de trabalho no Brasil existam desde o período colonial, por meio
de trabalhadores livres assalariados e indígenas e negros escravizados, foi no final do
século XIX que começaram a se configurar as “modernas” relações de trabalho no Brasil.
Elas possuíam algumas características, como a longa jornada de trabalho, a presença
de crianças nas fábricas e condições insalubres de emprego.
Naquela época, as relações entre os assalariados e os donos dos meios de produção
eram resolvidas no âmbito privado, sem a intermediação ou a regulação do Estado.
Nesse sentido, as agremiações, os clubes e os sindicatos foram importantíssimos para
que os trabalhadores se questionassem sobre sua situação e passassem a reivindicar
direitos para trabalhar com mais dignidade. Em 1943, ocorreu a Consolidação das Leis
do Trabalho (CLT), que garantiu uma forma de regulação das relações trabalhistas pelo
Estado, bem como a proteção dos trabalhadores contra a exploração do mercado.
Durante a ditadura civil-militar, criou-se o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço
(FGTS) em função da perda de estabilidade na iniciativa privada, algo a que os traba-
lhadores tinham direito após um tempo de serviço. Foi nesse período, também, que,
mesmo com a repressão do regime, os trabalhadores realizaram inúmeras greves para
reivindicar melhores salários e melhores condições de trabalho.

Portanto, a própria história da cidadania é uma história das lutas e das


conquistas de processos de construção de Estados, democratização de regimes
políticos e de lutas internas da sociedade civil contra os Estados. Nesse sentido,
o Brasil não é uma exceção.
Os coletivos e movimentos orientados às lutas feministas, étnicas, de
gênero e sexualidade, bem como aos direitos dos deficientes físicos, pautaram
demandas que a suposta universalidade da cidadania não comportava em sua
“igualdade de direitos”, sendo necessário pensar em equidade e respeito às
diferenças. Para compreender melhor o que você viu até aqui, considere o
seguinte:

O percurso da cidadania no Brasil, como não poderia deixar de ser, seguiu os


rumos da história do país. Um país que se tornou independente com a maior
parte da população excluída dos direitos civis e políticos e sequer mobilizada
por um sentido de nacionalidade. Uma monarquia, cercada de repúblicas por
todos os lados, significou um desafio à experiência nacional, no sentido de
reverem-se conceitos como ser “súdito” ou ser “soberano”. Estava (e está) em
questão, pois, o status deste cidadão, e que repassa a própria identidade do
Cidadania, diversidade cultural e ensino de história 9

indivíduo moderno, e é por ele reivindicada, uma vez que não se quer mais
ser apenas “súdito”, ou seja, simples sujeito de deveres e destinatário passivo
de comandos. Por outro lado, a longa experiência social da escravidão, que
modelou a sociedade e, na prática, negava os direitos mais básicos de liberdade
e igualdade, e seu legado persistente na sociedade brasileira representam
sem dúvida limites cruciais à cidadania. A sorte dos homens livres pobres,
a maioria da população, também não foi muito diferente a esse respeito:
imersos em estruturas de dominação tradicional, como o mandonismo, o
coronelismo e outros, dependiam das relações de favor com os poderosos para
sobreviverem — e o favor, segundo se sabe, é pessoal, representando por isso
a mais clara negação dos direitos cuja universalização fica comprometida.
[...] Coube à República, proclamada em 1889, dar início ao longo processo
de incutir e cultivar sentimentos de pertencimento e de identidade nacionais
entre os brasileiros, que deixavam de ser súditos do imperador e se tornavam
formalmente cidadãos. Processo marcado por paradoxos fortes, a Primeira
República Brasileira colocou na mesma cena nacionais e imigrantes estran-
geiros; políticas de inclusão social e de exclusão; liberalismo combinado com
racismo científico; campo e cidade; cidadania e barbárie; uma urbanidade
veloz com os distantes sertões, modernidade e atraso. Diferentes lados da
mesma moeda, a Primeira República nada teve de “Velha”, visto que ges-
tou projetos incipientes de cidadania, modelos de institucionalização e uma
agenda carregada de mobilizações sociais de todo tipo. Com o Estado Novo
(1937–45), o Brasil entra na gramática moderna da cidadania, porém de um
modo que também cobraria seu preço. Afinal, se tratava de uma ditadura que
não reconhecia, ou reconhecia limitadamente, direitos civis e políticos. Assim,
o reconhecimento dos direitos sociais por meio da legislação trabalhista então
implantada se dava em detrimento do reconhecimento e exercício de outros
direitos básicos. Os anos de Juscelino Kubitschek, nosso “Presidente Bossa
Nova”, se trouxeram a miríade de uma nova era, da integração sem limites,
também não trataram de alterar os imensos gaps sociais que marcam nosso
processo nacional. Uma nova ditadura, dessa vez militar, instaurada com o
golpe de 1964 fecharia mais uma vez o exercício dos direitos, debilitando
ainda mais a cidadania. Com a transição democrática no final dos anos 1970
é que teria início, enfim, um novo momento da história da cidadania nacional,
com o reconhecimento e o exercício pleno de direitos de todas as ordens,
garantidos pela Constituição de 1988, não por acaso denominada de “cidadã”.
(BOTELHO; SCHWARCZ, 2012, p. 19-21).

Cidadania, diversidade cultural e ensino de


história
As relações estabelecidas entre o ensino de história e a cidadania vêm de
longa data. Elas passaram por transformações decorrentes do entendimento
e da prática do que é ser cidadão e foram influenciadas por necessidades
conjunturais. A concepção da história escolar como espaço para “formação do
10 Cidadania, diversidade cultural e ensino de história

cidadão” (AUDIGER, 2016) está presente desde o início do período republicano


brasileiro e esteve presente em todas as políticas públicas que propuseram
diretrizes ou reformas educacionais.
Não é diferente com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que,
em diversos momentos, cita a cidadania como um componente importante e
transversal ao longo de toda a educação básica. Assim, o significado de educar
para a cidadania no Brasil possui uma variação histórica, explicitando os
anseios de determinados momentos de se formar um cidadão, em uma visão
mais ou menos nacionalista, patriota, cívica e de reconhecimento de direitos.
Para que se possa relacionar ensino de história, cidadania e diversidade
cultural, é necessário partir do pressuposto de que existe um vínculo intrínseco
entre o ensino de história na educação básica e a formação de cidadãos, como
você pode ver na Figura 1. Essa vinculação acontece porque a aprendizagem
histórica possibilita a compreensão das relações que estruturam a sociedade, o
que permite a identificação de problemas e favorece sua transformação. As ações
necessárias para que essas mudanças ocorram — a prática cidadã propriamente
dita — contribuem, assim, para uma prática de respeito à diversidade cultural.

Ensino de história

Permite a identificação
e a compreensão dos
problemas existentes
em uma sociedade

Diversidade cultural
Prática cidadã
Por meio da identificação
dos problemas e do A identificação e a
exercício da cidadania, compreensão dos
garantem-se direitos problemas possibilitam a
que assegurem a orientação de ações
diversidade cultural de exercício da cidadania

Figura 1. Relação entre ensino de história, cidadania e diversidade cultural.


Cidadania, diversidade cultural e ensino de história 11

Para que o ciclo mostrado na Figura 1 se complete, é fundamental que


você, enquanto futuro professor, se interrogue a respeito de como o ensino
de história nas escolas pode contribuir para a educação dos cidadãos em uma
sociedade multicultural e pluriétnica como a brasileira. A história que você
ensinará (incluídos o currículo e as suas práticas pedagógicas) está orientada
para o respeito à diversidade?
O ensino e a aprendizagem de história tornaram-se atividades complexas
e desafiadoras em um mundo em que há uma intensa hibridização das iden-
tidades culturais e sociais. Por isso, é fundamental estabelecer um diálogo
entre a história e os princípios da interculturalidade e do multiculturalismo.
Assim, é possível abarcar a diversidade cultural da sociedade, criando espaços
de inclusão, identidade e reconhecimento para os diferentes grupos culturais
e étnicos a que os alunos pertencem.
Utilizando as competências gerais elencadas pela BNCC, juntamente
a recomendações de agências internacionais como a Unesco, é possível
elencar algumas habilidades a serem desenvolvidas no ensino de história
para a promoção da diversidade cultural por meio do exercício da cidadania.
Veja a seguir.

 Estimular os alunos a reconhecerem e construírem suas identidades,


fazendo com que percebam as relações de poder que perpassam a
organização social e impedem efetivas práticas de diversidade cultural,
estimulando a criticidade. Temas para serem trabalhados: direitos hu-
manos, igualdade de gênero, educação para as relações étnico-raciais.
Essa habilidade relaciona-se com as necessidades de transformação da
educação em função da sociedade multicultural e pluriétnica brasileira.
 Incentivar práticas de relacionamento social e intercultural. Temas
para serem trabalhados: interculturalidade, educação ambiental, temas
envolvendo a saúde e o bem-estar emocional, mídias, incluindo a cul-
tura digital. Essa habilidade visa a enfrentar as formas de preconceito,
intolerância e violência que se manifestam dentro e fora dos contextos
escolares.
 Instigar ações autônomas de integração a coletivos e grupos. Temas
para serem trabalhados: instituições e participação democrática, mundo
do trabalho, voluntariado, desenvolvimento sustentável, o papel da
família e da religião na sociabilidade do indivíduo. Essa habilidade,
combinada com as novas tecnologias, permite extrapolar as barreiras
de comunicação e de mobilização.
12 Cidadania, diversidade cultural e ensino de história

Nesse sentido, como afirma Guimarães (2016), o ensino de história deve


reivindicar sua importância formativa nos processos de ensino e aprendizagem
não somente como uma disciplina de “conteúdos”, mas por meio da formação
de valores que sustentam o republicanismo e a democracia: igualdade, soli-
dariedade, liberdade, pluralismo e respeito.

No link a seguir, conheça a Fundação Cultural Palmares, a primeira instituição pública


voltada para a promoção e a preservação da arte e da cultura afro-brasileiras, vinculada
ao Ministério da Cultura.

http://www.palmares.gov.br/

AUDIGER, F. História escolar, formação da cidadania e pesquisas didáticas. In: GUIMA-


RÃES, S. (Org.). Ensino de história e cidadania. Minas Gerais: Papirus, 2016.
BERTASO, J. M.; ROCHA, L. S. Olhar sistêmico sobre cidadania e diversidade cultural.
RDU, Porto Alegre, v. 13, n. 75, p. 202-217, maio/jun. 2017.
BOTELHO, A.; SCHWARCZ, L. M. (Org.). Cidadania, um projeto em construção: minorias,
justiça e direitos. São Paulo: Claro Enigma, 2012.
CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 21. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2016.
GUIMARÃES, S. (Org.). Ensino de história e cidadania. Campinas: Papirus, 2016.
MAZINI COVRE, M. L. O que é cidadania? São Paulo: Brasiliense, 2002.
PINSKY, J.; PINSKY, C. (Org.). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2005.
Cidadania, diversidade cultural e ensino de história 13

Leituras recomendadas
BENEVIDES, M. V. M. Cidadania e democracia. Lua Nova, São Paulo, n. 33, p. 5-16, ago. 1994.
CAMPOS, D. A. O ensino de história e a construção da cidadania. BIBLOS, Rio Grande,
v. 12, p. 83-88, 2000.
CERQUIER-MAZINI, M. L. O que é cidadania? São Paulo: Brasiliense, 2010.
FURMANN, I. Cidadania e educação histórica: perspectivas de alunos e professores do
município de Araucária – PR. 2006. 279 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Curso
de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2006.
GENTILI, P. Qual educação para qual cidadania? Reflexões sobre a formação do sujeito
democrático. In: AZEVEDO, J C. Utopia e democracia na educação cidadã. Porto Alegre:
Editora da Universidade, 2000.
SORJ, B. et. al. Sobrevivendo nas redes: guia do cidadão. São Paulo: Plataforma Demo-
crática, 2018.
Conteúdo:

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