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HISTÓRIA E

PATRIMÔNIO
CULTURAL
Arquitetura
como patrimônio
histórico e cultural
Ana Carolina Machado de Souza

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

>> Discutir o conceito de arquitetura e sua constituição como patrimônio his-


tórico.
>> Identificar as relações entre arquitetura, política, memória e patrimônio.
>> Apontar diferentes debates e tendências na historiografia sobre arquitetura
e patrimônio histórico.

Introdução
A palavra arquiteto vem do grego arqui, que significa superioridade, e tector, que
é alguém que constrói (MACIEL, 2007). Essa combinação costuma ser entendida
como “grande carpinteiro”. A arquitetura pode ser vista como patrimônio, do-
cumento, obra de arte e profissão. Como o patrimônio exprime a importância
cultural e histórica de determinado povo, as obras arquitetônicas são as principais
expressões do passado e da cultura. O edifício é uma manifestação artística e,
por isso, tem sua historicidade, que marca os pensamentos e o desenvolvimento
tecnológico daquele período.
No Brasil, os primeiros bens culturais preservados foram arquitetônicos, o
que enfatiza os estudos sobre arquitetura no País. A historiografia, nesse caso,
aborda tanto os diferentes estilos e técnicas construtivas quanto a importância
das edificações para a sociedade, que muda ao longo do tempo.
2 Arquitetura como patrimônio histórico e cultural

Neste capítulo, você vai estudar a relação entre a arquitetura e o patrimônio


histórico a partir de questões decorrentes do processo de inventário, catalogação
e tombamento de bens. Além disso, vai ver as relações políticas e culturais do
patrimônio arquitetônico brasileiro. Por fim, vai conhecer alguns dos principais
nomes da historiografia nacional e internacional.

Arquitetura e patrimônio histórico


A arquitetura é, dentre tantas definições, a materialização de práticas, saberes
e ideias do homem no seu tempo. Com ela, conseguimos analisar a evolução
tecnológica e o ideal de belo, ou seja, o zeitgeist (termo alemão para “o
espírito de uma época”) (LEMOS, 1989). É a partir disso que a preservação
patrimonial se desenvolveu, observando os exemplos sólidos do passado que
são deixados por todas as épocas. Contudo, a escolha de quais construções
tombar ou a classificação de um determinado estilo transformam a situação,
deixando-a mais complexa.
A arquitetura é, portanto, a intervenção direta no espaço, o remodelando
a partir de um ideal estético e/ou funcional. Lemos (1989, p. 41) destrincha
essa ideia com o denominado partido arquitetônico, que são elementos
constitutivos da atividade:

a) A técnica construtiva, segundo os recursos locais, tanto humanos, como materiais,


que inclui aquela intenção plástica, às vezes subordinada aos estilos arquitetônicos.
b) O clima. c) As condições físicas e topográficas do sítio onde se intervém. d) O
programa das necessidades, segundo os usos, costumes populares ou conveni-
ências do empreendedor. e) As condições financeiras do empreendedor dentro do
quadro econômico da sociedade. f) A legislação regulamentadora e/ou as normas
sociais e/ou as regras da funcionalidade.

Esses determinantes são pontos de partida para se entender o projeto


arquitetônico, ou seja, o caminho pelo qual o profissional percorreu desde a
idealização até a construção do edifício. Esse processo é histórico, pois cada
um desses elementos tem historicidade e contexto. Assim, é possível afirmar
que a arquitetura é um documento histórico analisado sob diversos prismas.
Fazio, Moffett e Wodehouse (2011), ao definirem o que é arquitetura, apon-
tam a pluralidade de sentidos e significados, que vão desde a configuração
do espaço para uso humano até sua função estética, promovendo o belo.
Contudo, eles procuram aliar tanto a necessidade, que é o motivo para se
erguer uma edificação, quanto o sentimento por trás disso. Por exemplo,
construções industriais têm função prática e obedecem às necessidades do
Arquitetura como patrimônio histórico e cultural 3

empreendedor, enquanto uma igreja tem significados coletivos e individuais,


pois as paredes e o teto são símbolos de uma crença.
Na Idade Média, quando as mais altas catedrais vistas começaram a ser
planejadas e construídas, tinham a intenção de serem verticais e “alcança-
rem os céus”. As esculturas que adornavam fachadas e interiores eram mais
alongadas e longilíneas se comparadas aos frontões gregos, por exemplo
(FOCILLON, 1980). Isso aponta para uma mudança material, pois o uso do
mármore se tornava inviável, e de engenharia, já que o edifício precisava
sustentar a altura, demonstrando que a intenção e a prática precisam cami-
nhar juntas. Esse ponto de vista se mantém na contemporaneidade, mesmo
em um projeto simples de uma casa. A análise do arquiteto deve começar
pela geografia do local e pelos desejos dos clientes, para encontrar um
denominador comum entre a idealização e a prática. Se a técnica se adapta
às necessidades e às possibilidades do espaço e do tempo, a classificação
dos estilos arquitetônicos está em outro campo.
Segundo Fazio, Moffett e Wodehouse (2011), no século XVIII e XIX as obras
de arquitetura foram analisadas em busca de padrões — estéticos ou cons-
trutivos — para que fossem agrupadas em uma categoria. Esse processo só foi
possível em razão de uma série de incentivos para a pesquisa arquitetônica
com base nos estudos históricos. Os autores ressaltam que termos como
greco-romano, românico, gótico, neoclássico etc. são apenas conveniências
explicativas que, apesar de terem uma base epistemológica comum, são
muito complexos.
Existem manuais gerais, tanto da história da arte quanto da arquitetura,
que estabelecem as características em comum entre os estilos. Porém, a
bibliografia há muito passou a especificar cada país e região para aprofun-
dar o conhecimento. Argan (2003), quando publicou os três volumes sobre a
história da arte italiana, fez um esforço teórico de condensar e, ao mesmo
tempo, exaltar as particularidades das regiões do país, que se tornou nação
somente em 1871. Os góticos veneziano e milanês têm diferenças entre si,
que ficam ainda mais latentes se comparadas ao estilo francês. A Península
Ibérica, por sua vez, tem forte influência mourisca em sua arquitetura, pois
foram dominados pelos muçulmanos até 1492.
Colin (2000) defende o uso da arquitetura como linguagem, a percebendo
para além da materialidade da construção. Os elementos físicos intrínsecos a
ela são instrumentos de comunicação que nos transmitem a ideia de um povo
em um determinado momento. Porém, o que parece ser uma simbiose entre
a forma e a história nem sempre foi assim. Até o século XIX, a interpretação
arquitetônica era dividida entre produção e teorias práticas, que envolviam
4 Arquitetura como patrimônio histórico e cultural

as técnicas construtivas, a matemática, a física, entre outros, e arte e história,


que estavam no campo das ideias e conceitos.
O século de 1800 é o de modernização acelerada da cultura industrial. O
desenvolvimento de novas tecnologias, como a metalurgia, o aço e os com-
bustíveis fósseis, deram outra escala para a produção arquitetônica. Construir
se tornou mais rápido, e a função do edifício ditava o apreço estético ou não.
É nesse momento também que análise técnica do monumento ganhou força.
As teorias cientificistas objetificaram o conhecimento histórico a ponto de
considerarem o documento como representação fidedigna do passado. Assim,
selecionar características da arquitetura ocidental é um trabalho ingrato, pois
invariavelmente algum erro ou esquecimento vai acontecer.

Características da arquitetura ocidental


A história da arquitetura, segundo Zevi (1996), vai além da análise estética,
pois exige um entendimento do espaço no qual a construção está inserida.
Há um vocabulário tridimensional, no caso da arquitetura, que não pode ser
descartado, pois o homem não só a produz como também a utiliza para o pró-
prio bem. Isto é, enquanto pinturas e esculturas são apreciadas visualmente,
no edifício “[...] o homem penetra e caminha” (ZEVI, 1996, p. 17).
Considerando o papel ativo do homem não só na criação da arquitetura,
mas no seu uso, Ching, Jarzombek e Prakash (2019) discorrem sobre os primei-
ros modelos arquitetônicos, as moradas nômades ainda na Pré-História, que
são sustentadas até hoje por algumas comunidades. Os autores trazem como
exemplo a cabana dos Kung — que serve mais como depósito de alimentos do
que moradia —, grupo que vive no deserto do Kalahari, em Botsuana, e que
ainda constrói acampamentos itinerantes. Suas mudanças constantes não
são apenas pela busca de fontes de água e comida. Elas estão relacionadas
à ação de mineradores e ao avanço predatório em territórios que, para os
Kung, são ancestrais.
Ching, Jarzombek e Prakash (2019) elucidam que as transformações estru-
turais das habitações surgiram por questão de necessidade, seja econômica,
política, social e/ou cultural. Há, nessa equação, o problema da posse e da
propriedade, dois conceitos que mobilizam a organização social até hoje.
O ponto interessante aqui é que, mesmo no nomadismo pré-histórico, as
edificações fazem parte de nossa rotina e do modo de viver. Uma casa, por
exemplo, tem função social, e sua representação na época em que foi criada
tem um conjunto de elementos que partiram de um lugar: o arquiteto. Vem
da imaginação de uma pessoa a idealização de um projeto. É por isso que ele
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reflete o ideal de um momento, já que as construções dependem, sobretudo,


das técnicas empregadas e do desenvolvimento tecnológico. É nesse ponto
que a arquitetura e o patrimônio se conectam, pois, segundo Choay (2014, p.
11), o patrimônio histórico é uma expressão que:

[...] designa um fundo destinado ao usufruto de uma comunidade alargadas a di-


mensões planetárias e constituído pela acumulação contínua de uma diversidade
de objetos que congregam a sua pertença comum ao passado: obras e obras-primas
das belas-artes e das artes aplicadas, trabalhos e produtos de todos os saberes
e conhecimentos humanos.

A arquitetura, em um determinado momento, deixa de ser apenas uma


expressão artística ou uma profissão utilitária para ser analisada como
combinação dessas duas e ampliada, pois representa os modos de fazer e
viver de uma determinada sociedade. Zevi (1996) argumenta que essa ideia
demorou a ser aprofundada em razão da dificuldade do homem em ler e
aprender o próprio espaço que ocupa. Isso se relaciona diretamente aos
estudos patrimoniais mais contemporâneos, que passaram a considerar
novas formas construtivas como expressão social e cultural.
Em relação à arquitetura como ofício, Lemos (1989) define que o sistema
construtivo é o mais importante dentre os elementos do partido arquitetônico,
pois a partir dele pode-se analisar não só a questão cultural, mas também a
prática do arquiteto. Essas questões são antigas, já que desde os primeiros
grandes nomes da Grécia e de Roma tentavam definir e classificar o ofício e
os produtos derivados dele.
O primeiro tratado em arquitetura da sociedade ocidental, por sua vez,
foi o De Architectura, escrito no século I a.C. pelo arquiteto e engenheiro
romano Marcos Vitrúvio Polião (81 a.C.‒15 a.C.), ou apenas Vitrúvio (MACIEL,
2007). A obra foi dedicada ao primeiro imperador romano Otávio Augusto
(63 a.C.‒14) e aborda temas como a educação primordial do arquiteto,
os princípios fundamentais da arte, materiais e técnicas construtivas,
definições de estilos arquitetônicos e a ornamentação das obras. Assim,
ele produziu um estudo teórico com linguagem pragmática e de fácil
compreensão para a época, pelo qual desenvolve os elementos básicos
do ofício e analisa a prática arqueológico-arquitetônica e urbanística, se
tornando um dos mais célebres manuais da história. Ele é composto por
10 livros, sendo sete sobre edificações e três sobre hidráulica, gnomônica
e mecânica. Sua redação ocorreu ao longo de dez anos, entre 35 a.C. e 25
a.C., e tinha a função de informar e pavimentar o caminho para futuros
construtores. Maciel (2007), na edição crítica feita do tratado, diz que a
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obra de Vitrúvio, apesar de não ter sido uma encomenda oficial, dialoga
diretamente com a política urbanística de Augusto, que aplicava, em
todas as regiões conquistadas pelos romanos, o mesmo tipo de traçado
e monumentos, como arcos do triunfo.
A arquitetura civil romana ajudou a evoluir o próprio sentido e alcance do
ofício que, durante o período grego, se relacionava mais estreitamente com
os edifícios sagrados. Para Maciel (2007, p. 35-36):

A obra vitruviana é fundamental na reflexão sobre o urbanismo, a arquitetura e


a decoração dos edifícios da época romana. Não para pressupor que seus módu-
los foram aplicados como regra geral, mas para aprofundar o entendimento da
tecnologia subjacente à arte arquitetural romana. Assim, é possível reconhecer
que suas normas, não sendo necessariamente um tratado instaurador, poderão
ser uma diretriz, um conjunto de conhecimentos que se aliam ao pragmatismo
construtivo romano e que, dando liberdade à realização arquitetônica, acabam
por se revelar presentes na economia, unidade final e funcionalidade conseguida
do trabalho edilício romano [...].

Apesar de ser uma obra do século I a.C., algumas definições de Vitrúvio


(2007, p. 63) acerca do ofício do arquiteto ecoam até hoje, sobretudo em rela-
ção às habilidades necessárias para desenvolver o ofício, como ser versado
em literatura e em desenho e conhecer geometria, matemática, filosofia e
história. A pluralidade da função também se reflete no produto final, por isso
a historicidade de cada construção é fundamental para os estudos arquite-
tônicos e a própria história da arte, que engloba a arquitetura.
Focillon (1980), por sua vez, aborda a arte medieval e enfatiza os ele-
mentos transformadores do período greco-romano que foram sentidos até
no império de Carlos Magno (742‒814), durante o Renascimento Carolíngio.
O autor ainda defende que o homem dessa época é definido socialmente
a partir dos monumentos que estão à sua volta, ou seja, pelo espaço que
ocupa. O arquiteto e o filósofo estão conectados ao que ele diz ser uma
espécie de cidade do espírito. Isso ocorre por causa do desenvolvimento
tecnológico na Idade Média, que permitiu a verticalização dos edifícios,
tornando possível a construção de castelos e catedrais em escala monu-
mental. Contudo, há um silenciamento dos ideais greco-romanos, apesar de
eles não se apagarem, pois o legado permanece. A laicidade vivida durante
a Antiguidade dá espaço para o apogeu da Igreja Católica na Europa Ociden-
tal. Por mais séculos adiante, será ela a grande instituição provedora dos
arquitetos. Para Focillon (1980), a arquitetura é a maior expressão artística
do medievo, e isso rebate muitos argumentos sobre o período, taxado como
Idade das Trevas.
Arquitetura como patrimônio histórico e cultural 7

Arquitetura brasileira e patrimônio


Pinheiro (2006) revela que o ímpeto preservacionista está conectado aos
estudos sobre a arquitetura. Porém, o desconhecimento acerca dos mo-
numentos arquitetônicos do próprio país evidencia o pouco esforço em se
entender questões relativas, sobretudo, à nossa cultura. Para a autora, esse
comportamento tem raiz na colonização, processo de domínio político, social,
econômico e cultural que impedia o desenvolvimento de uma identidade
nacional.
As insurreições separatistas de Minas Gerais e Pernambuco são vistas
como movimentos que buscavam a autonomia política. Isso significa que
apenas no fim do século XVIII a discussão de um Brasil independente ganhou
força. Lembre-se que o traçado urbano das cidades mineiras mudou, e tantas
outras vilas surgiram. O fluxo intenso de ouro modificou a estrutura social
e hierárquica, apesar de manter a profunda desigualdade. Isso reflete nos
edifícios que surgiram ali.
Oliveira (1989) argumenta que a arte e a arquitetura mineira do século
XVIII se difere do que se convencionou chamar de arquitetura colonial, a luso-
-brasileira. Na Europa, o barroco e o rococó perdiam espaço para o neoclássico,
mas a tradição cunhada pelo cardeal Carlos Borromeu (1538‒1584) pautou as
novas construções na região de Ouro Preto. Essa característica, que a des-
tacava de outras arquiteturas brasileiras, só começou a ser reconhecida na
década de 1920, quando os estudos identitários dominaram a intelectualidade.
Na véspera do centenário da Independência, a vanguarda do movimento
modernista justificava a revalorização do barroco mineiro como resgate da
arte genuinamente brasileira. Para Oliveira (1989), os agentes que deter-
minavam a identidade nacional a partir do estilo arquitetônico eram tanto
geográficos quanto histórico-sociais. Eles se relacionavam ao fato de a região
mineira ter sofrido um acelerado processo de urbanização e encabeçado a
contestação separatista contra a autoridade real, cada vez mais intensa.
Assim, a autora corrobora a ideia difundida de que há (OLIVEIRA, 1989, p. 119):

[...] fundamentos de uma “subcultura mineira”, com traços regionais fortemente


acentuados, constituindo a manifestação mais “artisticamente brasileira” da ci-
vilização colonial do século XVIII e tendo como principal produto a arte que se
convencionou chamar genericamente de “Barroco Mineiro”.

A relação entre a categorização do estilo arquitetônico e sua transformação


em patrimônio histórico e cultural se dá no campo político, que mobiliza a
memória e as ações do cotidiano para construir a narrativa oficial.
8 Arquitetura como patrimônio histórico e cultural

Arquitetura, patrimônio e política


Toda prática e existência é política. O processo de patrimonialização da
arquitetura não é diferente. Contudo, analisar as relações entre os diferentes
conceitos de memória, história, patrimônio e arte por meio do espectro político
requer um aprofundamento nas formas de agir e pensar de cada sociedade.
Existem alguns elementos em comum, como o fato de no século XIX os países
europeus se preocuparem em buscar a origem da nação, embarcando em
discussões identitárias que atingiram diretamente as políticas patrimoniais.
A preservação entra na discussão porque é a atividade prática derivada do
debate intelectual sobre a memória e a história oficial de um povo. Apesar
de poder ser feito em escala individual, manter e conservar um patrimônio é
trabalho governamental e público, envolvendo um profundo esforço coletivo,
pois (LEMOS, 1981, p. 29):

[...] preservar não é só guardar uma coisa, um objeto, uma construção, um miolo
histórico de uma grande cidade velha. Preservar também é gravar depoimentos,
sons, músicas populares e eruditas. Preservar é manter vivos, mesmo que alte-
rados, usos e costumes populares. É fazer, também, levantamentos, de qualquer
natureza, de sítios variados, de cidades, de bairros, de quarteirões significativos
dentro do contexto urbano. É fazer levantamentos de construções, especialmente
aquelas sabidamente condenadas ao desaparecimento decorrente da especulação
imobiliária.

Preservar é manter a memória social, e a arquitetura foi o primeiro tipo


de arte a ser considerado patrimônio cultural e histórico do Brasil. Isso acon-
teceu por vários motivos, sendo um deles a própria natureza documental do
edifício. Quando os modernistas escolheram o barroco mineiro como exemplo
da identidade colonial brasileira, foi o início de um pensamento próprio
desvinculado das amarras portuguesas, e o mote era político.
Mesmo com o manifesto a favor da originalidade do estilo colonial mineiro,
Oliveira (1989) relata que historiadores estrangeiros que estudaram essa
manifestação arquitetônica brasileiras a inseriram no contexto eurocêntrico,
a despindo de suas características próprias. O que nos interessa aqui é
perceber a produção do discurso identitário e que ele não circula da mesma
maneira em outros contextos.
Um dos autores citados por Oliveira (1989) é o historiador britânico John
Bury (1917), que teve seus estudos compilados em 1991 sob o título Arquite-
tura e arte no Brasil colonial. Ele faz parte, junto ao francês Germain Bazin
(1901‒1990) e ao norte-americano Robert Chester Smith (1912‒1975), da tríade
de brasilianistas que se dedicaram à história da arte brasileira. Oliveira
Arquitetura como patrimônio histórico e cultural 9

(2006) diz que Bury e Bazin apresentam estudos complementares. O fran-


cês estava ligado à diretoria do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (SPHAN), tendo seu trabalho comissionado pelo próprio Rodrigo
Mello Franco de Andrade (1898‒1969), enquanto o inglês era um pesquisador
independente que analisava a arte brasileira pelo prisma internacionalista,
em detrimento da visão nacionalista patrocinada pelos modernistas. Seus
artigos se destacam por entender o barroco mineiro e as obras, sobretudo
de Aleijadinho (1738‒1814), como parte da tradição jesuítica e borromínica.
O próprio Bury (2006) diz que seu interesse em relação à arte e à arquitetura
brasileiras teve início em 1934, após a leitura de uma obra sobre o barroco
espanhol publicada em 1931. As datas coincidem com o período em que a
pesquisa nacional ainda era insipiente.
O movimento surgiu em resposta à tradição academicista, que se esta-
beleceu desde o século XIX, de transformação do tratado urbano e artístico
brasileiro. Se com a chegada da Família Real, em 1808, o Rio de Janeiro foi
reformado para recebê-los, no Segundo Reinado (1840‒1889) há uma clara
transformação incentivada pela injeção de capital por meio dos novos ciclos
econômicos: café, borracha e algodão. A vanguarda europeia, encabeçada
pela École des Beaux-Arts, era a base artística e arquitetônica utilizada como
modelo nas construções e nos costumes. Mesmo com a Proclamação da
República, em 1889, esse espelhamento não acabou (PINHEIRO, 2006).

Entre 1904 e 1906, o prefeito do Rio de Janeiro, Francisco Pereira


Passos (1836‒1913), iniciou uma profunda reforma urbana, que acabou
com o núcleo colonial no centro carioca. Uma das grandes obras foi a reabertura
da avenida Central, conhecida como avenida Rio Branco, e a demolição dos
cortiços, comuns na região. Novos edifícios com o estilo eclético foram erguidos,
como o Teatro Municipal, que começou a ser construído em 1905 e foi inaugurado
em 1909 (AZEVEDO, 2016).

Além do Rio de Janeiro, São Paulo também foi transformada nesse con-
texto de enriquecimento da elite paulista pelo comércio de café. As matrizes
coloniais foram desfeitas em prol da modernização da cidade, que recebeu
edifícios mais altos, praças com paisagismo europeu e até uma nova catedral
a partir de 1913, a da Sé, com estilo neogótico e clara influência francesa, mas
projetada pelo arquiteto Maximilian Emil Hehl (1861‒1916), alemão radicado no
Brasil. Foi apenas na década de 1920, época de crescimento da insatisfação
política e social, que uma nova perspectiva passou a ser contemplada: a
valorização da arquitetura colonial.
10 Arquitetura como patrimônio histórico e cultural

Lucio Costa (1902‒1998) publicou, em 1941, na Revista do serviço do patri-


mônio histórico e artístico nacional, o artigo “A arquitetura dos jesuítas no
Brasil” (COSTA, 2010). Nele, o célebre arquiteto conceitua e define a manifes-
tação artística ligada à Companhia de Jesus em uma tentativa de reavaliar o
passado nacional, que foi, por muito tempo, renegado. Vale ressaltar que a
reação modernista estava direcionada à cultura das Belas Artes, que domi-
navam o País desde o século XIX. Na arquitetura, o ataque era direcionado ao
famigerado estilo eclético, considerado um período colonial. Lucio Costa era
um dos principais articuladores dessa ideia, mas isso não significava que ela
deveria ser emulada. O arquiteto defende que a alcunha “arte jesuítica” não
satisfaz a amplitude conceitual da sua materialidade, pois (COSTA, 2010, p. 129):

Com efeito, enquanto para os europeus, saturados de “renascimento”, o falar-se


em estilo jesuítico traz logo à lembrança, além das formas compassadas iniciais, as
manifestações mais desenvoltas do barroco; enquanto para os hispano-americanos,
onde a ação da Companhia prosseguiu ininterruptamente durante todo o século
XVIII, a ideia da arte jesuítica abrange o ciclo barroco completo; para nós, no
Brasil, onde a atividade dos padres, já atenuada na primeira metade do século,
foi definitivamente interrompida em 1759, as obras dos jesuítas, ou pelo menos
grande parte delas, representam o que temos de mais “antigo”. Consequentemente,
quando se fala aqui em “estilo jesuítico”, o que se quer significar, de preferência,
são as composições mais renascentistas, mais moderadas, regulares e frias, ainda
imbuídas do espírito severo da Contra-Reforma.

Nesse trecho, ele complementa a ideia de que a arquitetura passa pelo


processo evolutivo de natureza fisiológica. Isso significa que a arte é cíclica e
se desenvolve a partir da reação. Por exemplo, na Europa, o neoclássico surgiu
em contraposição ao barroco, sendo um estilo mais dramático e adornado,
que retomava a simplicidade e a proporcionalidade do classicismo, estilo que
teve seu apogeu no Renascimento. Ele, por sua vez, era uma reação ao gótico
medieval, utilizando os preceitos da arquitetura greco-romana da Antigui-
dade Clássica. Esse ciclo tese-antítese defendido por Costa (2010) aponta a
existência de um movimento natural da arte, quase que dissociável da ação
individual ou coletiva. Assim, apesar da arte jesuítica não exemplificar todas
as manifestações encontradas, ela designa características em comum que
circulam no espírito do tempo.
No caso brasileiro, eram os retábulos que apresentavam maior adorno e
variedade, enquanto as fachadas eram similares. Baeta (2003) afirma que o
arquiteto se converteu ao modus operandi analítico modernista, que abraçou
o barroco colonial como expressão artística sintética da origem brasileira.
Dentro de seus estudos, porém, há uma condenação ao ornamento, o que
será aplicado na prática em seus projetos modernistas.
Arquitetura como patrimônio histórico e cultural 11

Lucio Costa foi o arquiteto que ganhou o concurso do projeto piloto,


entre 1956 e 1957, para definir o traçado da nova capital federal que
seria construída no coração do Brasil pelo presidente Juscelino Kubitschek
(1902‒1976). Essa ideia surgiu a partir da influência de Le Corbusier (1887‒1965)
de se planejar uma cidade a partir de pontos bem definidos de composição
urbanística. O júri era uma banca de maioria modernista, e todo o processo
foi marcado por polêmicas, com contestações sobre o vencedor e os finalistas
classificados (TAVARES, 2007).

Apesar da evidência dos estudos sobre a arquitetura colonial e do surgi-


mento do neocolonial, o modernismo se apresenta como um estilo vinculado
ao Estado. Segundo Santos (2006, p. 42), essas ideias aliadas à perspectiva
de Lucio Costa sobre os ciclos artísticos influenciaram:

[...] o pensamento de Lucio Costa na sua visão da arquitetura moderna com viés
tradicional. Essas influências estão expressas claramente no texto Documenta-
ção Necessária, de 1938, no qual Lucio cria uma trama evolutiva que interliga a
arquitetura do nosso passado colonial com a arquitetura moderna. [...] Lucio Costa,
como integrante de um projeto de governo, elaborou uma construção ideológica
no sentido de garantir legitimidade e aplicação de algumas políticas dentro das
diretrizes traçadas. A relação entre arquitetura e Estado naquele momento esta-
va vinculada ao desenvolvimento de fatos sociais e políticos da nova ordenação
ideológica, que ocorreu no período entre a República Velha e o Estado Novo. A
partir dos anos 1930, a modernização econômica e a modernização ideológica
tornaram-se parte do projeto de desenvolvimento nacional. Foi nesse contexto que
definiram os princípios da arquitetura moderna, no abrigo do governo getulista.

As mudanças políticas que ocorreram na década de 1930 influenciaram


outros campos de pesquisa, como a historiografia. Aconteceu, além do rompi-
mento institucional com a Revolução de 1930, o surgimento de universidades
e centros investigativos que se debruçaram nos estudos sobre a origem do
Brasil. Em 1933, Gilberto Freyre (1900‒1987) publicou Casa grande e senzala,
no qual analisou o domínio colonial sob o ponto de vista das relações sociais,
quebrando com a tradição promovida até aquele momento dos grandes nomes
da história política (FREYRE, 2003).
Há uma relação entre a sua obra e a própria revitalização da arte co-
lonial, pois ele propõe que a monocultura baseada no sistema escravista
embasou a hierarquização social e, por consequência, a formação da
sociedade brasileira (FREYRE, 2003). Esse diálogo com a intelectualidade
modernista transparece nos princípios preservacionistas adotados com a
criação do SPHAN, em 1937. Contudo, é importante ressaltar que, internacio-
12 Arquitetura como patrimônio histórico e cultural

nalmente, o primeiro documento a condensar elementos conservacionistas


foi a Carta de Atenas, de 1931 (SOCIEDADE DAS NAÇÕES, 1931).
Dentre as ideias veiculadas, a criação de instituições e organizações
qualificadas para salvaguardar monumentos era a mais latente, visando
a proteger e a preservar as obras-primas da humanidade. Le Corbusier
(1887‒1965), Charles-Edouard Jeanneret-Gris, arquiteto e urbanista francês
que influenciou diretamente o movimento modernista brasileiro, publicou,
em 1941, um manifesto urbanístico após o IV Congresso Internacional de
Arquitetura Moderna de 1933, em Atenas. Scherer (1993) contextualiza tanto
a carta quanto a posição do francês ao afirmar que o período entreguerras
(1918‒1939) foi fundamental para a mudança da perspectiva arquitetônica e
urbanística europeia.
Como consequência da destruição causada durante a Primeira Guerra
Mundial (1914‒1918), o Estado passou a subvencionar projetos de proteção e
reconstrução. O traçado de algumas cidades foi modificado, com destaque
aos subúrbios e às periferias dos centros urbanos, que receberam conjuntos
habitacionais a fim de diminuir o fluxo de pessoas nos centros urbanos,
considerados patrimônio histórico.
Scherer (1993) aponta que o academicismo ainda era hegemônico: modernis-
tas tinham a necessidade de convocar congressos e elaborar cartas e manifestos
para serem ouvidos. O exemplo que a autora traz é o do concurso para a seleção
do projeto para o Palácio da Sociedade das Nações, em 1927, que ficaria em
Genebra. A organização surgiu concomitantemente ao Tratado de Versalhes (1919),
no intuito de agrupar os interesses dos países envolvidos para que um novo
conflito de proporções continentais fosse evitado. Foram mais de 177 projetos
inscritos. Alguns tinham cunho moderno, encabeçados por Le Corbusier e Pierre
Jeanneret (1896‒1967) ou pelos suíços Hannes Meyer (1889‒1954) e Hans Witter
(1894‒1952), participantes da Bauhaus, junto ao holandês Hendricus Theodorus
Wijdeveld (1885‒1987). Apesar da banca diversa e internacional, o projeto ven-
cedor era academicista, causando um alvoroço entre o campo arquitetônico e
urbanístico. A construção não saiu do papel, pois a própria Liga das Nações se
desmanchou à medida que o autoritarismo fascista ascendia politicamente.
O movimento moderno europeu ganhava forma, aliando a renovação de
centros antigos ao incentivo da ocupação de cidades ao redor. Nas Américas,
essas perspectivas tiveram ainda mais espaço para serem desenvolvidas em
razão da falta de grandes teorias de preservação ou conservação. O caso
brasileiro é emblemático, pois, ainda que o SPHAN e os modernistas lutassem
pela preservação, não era toda a manifestação artística que deveria entrar
nesse mérito.
Arquitetura como patrimônio histórico e cultural 13

Historiografia e um estudo de caso


A história da arquitetura brasileira começou de fato a partir dos autores mo-
dernistas, e as principais obras partem desse período. Nos anos posteriores,
uma série de trabalhos revisitaram as afirmações produzidas nos anos 1920 e
1930. Portanto, serão apresentados alguns dos principais participantes desse
cenário, seja de forma ativa, seja pelo trabalho de pesquisa.
Costa (2010) endossa a personalidade existente na arquitetura colonial
por derivar da tradição jesuíta que, desde seu nascimento, contestou as
ordens monásticas. A constituição do programa arquitetônico religioso no
Brasil era relativamente simples. Era preciso uma área de louvor, que eram
a igreja e a sacristia, salas de aula, para o trabalho evangelizador, e a resi-
dência. A construção devia ser ampla e abrigar muita gente, por isso havia
a necessidade de ter uma área livre próximo ao edifício. Os rituais católicos
aconteciam tanto dentro de um local fechado quanto do lado de fora, como
procissões e festas. Apesar de diferenças pontuais, os principais colégios e
igrejas jesuítas estavam inseridos no contexto urbano, fazendo com que a
Companhia de Jesus ficasse conectada com a sociedade civil e outras ordens.
Costa (2010) tem seu olhar como arquiteto mais aguçado. Ele estudou a
história da arquitetura considerando os elementos construtivos do partido
arquitetônico. Para ele, para se estudar qualquer tipo de obra:

[...] importa ter primeiro em vista, além das imposições do meio físico e social,
consideradas no seu sentido mais amplo, o “programa”, isto é, quais as finalidades
dela e as necessidades de natureza funcional a satisfazer; em seguida, a “técnica”,
quer dizer, os materiais e o sistema de construção adotados; depois, o “partido”, ou
seja, de que maneira, com a utilização desta técnica, foram traduzidas, em termos
de arquitetura, as determinações daquele programa; finalmente, a “comodulação”
e a “modenatura”, entendendo-se por isto as qualidades plásticas do monumento
(COSTA, 2010, p. 130).

Ele enxerga o meio físico como determinante para todo o processo de


construção, inclusive o estético. As condições materiais, geográficas e hu-
manas determinam o estilo que será adotado, e os retábulos e interiores, em
razão do tipo de material encontrado no Brasil, acabaram mais adornados
que o exterior, por exemplo. Assim, ele divide seu texto em duas partes: na
primeira, analisa os elementos arquitetônicos e constitutivos dos prédios,
como fachadas, plantas e pórticos, e na segunda, discorre sobre o interior,
explorando a arte ali impressa.
Baeta (2003) diz que o artigo de Lucio Costa de 1941 faz parte de uma
nova fase do arquiteto que, até 1934, com a publicação de Razões da nova
14 Arquitetura como patrimônio histórico e cultural

arquitetura, contestava o barroco, especialmente os ornamentos. Ele seguia


uma linha contemporânea de pensamento contrário ao decorativismo arqui-
tetônico protagonizada pelo austríaco Adolf Loos (1870‒1933). Costa (1995, p.
108) inicia o texto com um alerta: “As construções atuais refletem, fielmente,
em sua grande maioria, essa completa falta de rumo, de raízes”. Segundo seu
ponto de vista, eles estavam vivendo um período de transição, ou seja, de
mudança para algo diferente daquilo que era hegemônico na área arquitetô-
nica. Mais adiante, aponta que a relação simbiótica entre pintura, escultura
e arquitetura estava se desintegrando, com as obras de arte voltando ao seu
lugar separado ao edifício.
O desenvolvimento tecnológico que acelerou todas as relações também
afetou o caráter artesanal da arquitetura, que teve de se reorganizar. Por ser
uma arte de sentido coletivo, esse processo de se entender na nova realidade
— a da produção em escala industrial — não pode e nem consegue ser feito
de maneira individual. Assim, quando a arquitetura se restabeleceu, ela foi
o principal nome em seu meio, isto é, o que foi feito até aquele momento
passou a ser compreendido como pertencente a um nível inferior. Apesar de
ele não renegar as técnicas e os estilos do passado, Costa (1995) acredita no
sentido evolucionista da sua arte. O modernismo seria o exemplo máximo.
Na sua argumentação, ele estabelece comparações elogiosas a técnicas
como o pau-a-pique por, na teoria, se assemelhar ao uso do concreto armado,
por exemplo. A arquitetura teve que passar por essas tradições para chegar
a um patamar superior. Costa (1995, p. 113) define que:

A nova técnica, no entendo, conferiu a esse jogo imprevista liberdade, permitindo


à arquitetura uma intensidade de expressão até então ignorada: a linha melódica
das janelas corridas, a cadência uniforme dos pequenos vãos isolados, a densi-
dade dos espaços fechados, a leveza dos passos de vidro, tudo deliberadamente
excluindo qualquer ideia de esforço, que todo se concentra em intervalos iguais,
nos pontos de apoio; solto no espaço o edifício readquiriu graças à nitidez das
suas linhas e à limpidez dos seus volumes de pura geometria, aquela disciplina e
“retenue” próprias da grande arquitetura; conseguindo mesmo um valor plástico
nunca antes alcançado e que o aproxima — apesar do seu ponto de partida rigo-
rosamente utilitário — da arte pura.

Pinheiro (2006) reconhece que a história da arquitetura brasileira co-


meçou a partir dos anos 1930, mas destaca que estudos sobre o espaço e
a sociedade são muito mais antigos. Jean-Baptiste Debret (1768‒1848), por
exemplo, que veio ao Brasil com a Missão Artística Francesa de 1816, retratou
as características do País e estabeleceu comentários sobre a arquitetura
na sua obra Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, publicada em 1834. Para
Arquitetura como patrimônio histórico e cultural 15

o desenhista, a influência europeia era evidente, mas ele acreditava ser


necessário traçar cronologicamente os estilos que ali estavam impressos e
as regiões de onde vinham.
Um século depois, o engenheiro e arquiteto português Ricardo Severo da
Fonseca e Costa (1869‒1940) fez uma conferência em 1914 que se transformou
no célebre texto A arte tradicional no Brasil (SEVERO, 1916). Nele, o autor abor-
dou a ancestralidade das casas e dos templos brasileiros, sendo os jesuítas
os protagonistas em estabelecer seu estilo próprio aos edifícios não só pelo
Brasil, mas também pelas outras possessões portuguesas. Pinheiro (2006)
aponta que a fala de Ricardo Severo estava relacionada ao seu objetivo de
evidenciar a arquitetura portuguesa. O arquiteto veio exilado ao Brasil após
conspirar contra o sistema monárquico de seu país, se estabelecendo em São
Paulo até a sua morte. Ele descreve a arquitetura religiosa como exagerada-
mente ornamentada de norte a sul (SEVERO, 1916, p. 75‒76):

E veio também a característica da architectura civil e religiosa do século XVIII de


que se encontram no Rio e em algumas cidades do norte bellissimos exemplares,
em que se exaggera a paixão pelas linhas e superficies curvas, particularmente no
ornamento interno dos templos, com applicação excessiva da esculptura e talha
em madeira, geralmente dourada; reproduzem-se profusamente as columnas
salomonicas, enfeitadas de pampanos, fructos e pássaros, uma pomposa deco-
ração com festões, palmas, plumas de avestruz, cherubins, figuras mythologicas
e escudos barôcos; a esta profusão de ornatos, attributos e symbolos se juntam
por vezes, como uma recordação que sobrevive, os lacêtes de corda, as redes, as
conchas o busios, os coraes e plantas marítimas, toda uma opulencia ornamental
que vem do manuelino e dá uma nota dos caracteres nacionaes do renascimento
portuguez desde o século XVI.

Era a forma brasileira de decorar para esconder a simplicidade da


construção. Pinheiro (2006) relata que, para analisar as obras, Ricardo
Severo utilizou um método que despe do edifício os ornamentos, pois
a concepção espacial deveria ser entendida como independente da ma-
nifestação artística. Essa interpretação é proveniente do trabalho do
ilustrador e pintor José Wasth Rodrigues (1891‒1957), a quem o português
encomendou o inventário iconográfico das obras brasileiras. Ele desenhou
isoladamente os elementos construtivos. Isso é interessante, pois Pinheiro
(2006, p. 55) afirma que:

Não é improvável supor que tal abordagem da arquitetura tradicional brasileira


tenha incentivado a retirada de elementos construtivos ou ornamentais de edifí-
cios antigos, contribuindo para sua descaracterização e estimulando o comércio
predatório de antiguidades. Ao menos, é o que se pode depreender dos termos
utilizados pelo deputado José Wanderley de Araújo Pinho em seu projeto de lei
16 Arquitetura como patrimônio histórico e cultural

federal apresentado em 1930 e relativo a “todas as coisas imóveis ou móveis a


que deva estender a sua proteção o estado, em razão de seu valor artístico, de
sua significação histórica ou de sua peculiar e notável beleza”.

Para a autora, a proposta de Araújo Pinho é pioneira no cenário de pre-


servação do patrimônio cultural brasileiro, pois aponta a necessidade de
se entender o edifício ou o bem cultural em seu todo. Essa movimentação
surgiu quando as reformas urbanas se proliferaram nas grandes cidades e
passaram a ser contestadas. Porém, nenhuma atitude mais direta foi tomada
para modificar essa situação. Foi com Mário de Andrade (1893‒1945), com A
arte religiosa no Brasil, de 1920, que os estudos sistemáticos sobre o barroco
e a arquitetura tomaram corpo, ainda que não fosse um cenário investigativo
ideal (AVANCINI, 1994).
Segundo Avancini (1994), a simpatia pelos temas nacionalistas despertou o
olhar para a arquitetura colonial, posição solidificada pelos acontecimentos do
presente. A arte popular, o folclore e a música eram eixos já analisados pelos
intelectuais; faltavam as manifestações arquitetônicas, que se relacionavam
aos costumes e ao modo de vida do brasileiro. Por isso que, em seu texto,
a concepção de arte religiosa é mais abrangente do que a materialidade,
pois aborda as festas, as procissões e os rituais católicos, além da música
e das vestimentas, descrevendo uma conexão entre o erudito e o popular.
Avancini (1994) também aponta que a análise de Mário está galgada na obra
de Ricardo Severo, o que corrobora a impressão de Pinheiro (2006) sobre a
influência do português nas práticas preservacionistas e de restauração
estabelecidas pelo SPHAN.

Estudo de caso: os primeiros restauros do SPHAN


No cenário da arquitetura, o modernismo brasileiro teve um aspecto diver-
gente do encontrado na Europa: era nacionalista por excelência. Ele valorizava
a arquitetura colonial não somente como inspiração, mas também como um
período no qual o Brasil não procurava influências diretas das amostragens
europeias. Rolim (2006) aborda essa questão da memória nacional por meio
da materialidade pela figura de Luis Saia (1911), arquiteto e engenheiro paulista
que trabalhou com as políticas de preservação na fase heroica do SPHAN.
Luis Saia conheceu Mario de Andrade em uma das atividades promovidas
pelo Departamento Municipal de Cultura de São Paulo, em que participou do
curso de Etnografia e Folclore ministrado por Dina Lévi-Strauss. A partir daí,
tornaram-se próximos e passaram a trabalhar no Departamento de Cultura
Arquitetura como patrimônio histórico e cultural 17

(DC) e no SPHAN. O principal trabalho em que participou a pedido de Mario


de Andrade para o DC foi a Missão de Pesquisas Folclóricas, realizada em
1938. Segundo Rolim (2006), ela era uma viagem para o Norte e o Nordeste
para a coleta de material base que serviria para estudos e pesquisas sobre
a identidade nacional.
Após sua temporada no DC de São Paulo, Luis Saia passou a integrar o
SPHAN, onde permaneceu por toda a vida. A arquitetura colonial era con-
siderada uma representação genuína do caráter e do espírito brasileiro.
Portanto, nessas primeiras décadas, sua atenção estava voltada para realizar
inventários, tombamentos e restauros dos bens, selecionados de acordo com
os preceitos regidos na época. O aspecto original a ser revelado por Luis Saia
foi sua participação ativa e a especialização no patrimônio paulista. Por não
ter grandes referências sobre esse tema, sua atuação se deu por meio da ação,
e ele difundiu técnicas de restauro por todo o Brasil (SAIA, 1978).
Esse aspecto é importante, pois as decisões tomadas ali são parte de um
período que renegava o passado intervencionista como parte da construção
da identidade nacional brasileira. A orientação internacional, em relação ao
restauro e à preservação, era de seguir os princípios gerais estabelecidos na
Carta de Atenas de 1931 (SOCIEDADE DAS NAÇÕES, 1931, p. 1), como a parte em
que diz: “Nos casos em que uma restauração pareça indispensável devido a
deterioração ou destruição, a conferência recomenda que se respeite a obra
histórica e artística do passado, sem prejudicar o estilo de nenhuma época”.
No entanto, ao se constatar que diversos monumentos sofreram alguma
intervenção se comparados à sua planta ou desenho original, os técnicos do
SPHAN aprovavam restauros que não obedeciam aos preceitos internacionais
da Carta. Eles modificavam totalmente a fachada das obras tombadas, como
o que ocorreu com a Igreja de Nossa Senhora da Escada, em Guararema (SP),
e em diversos outros exemplos, como a Casa de Câmara e Cadeia de Atibaia
(SP) ou a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Embu (SP) (ANDRADE, 1993).
O intuito apresentado pelos representantes do SPHAN era o de recons-
tituir a feição original do edifício, transfigurada pelas intervenções clan-
destinas. Eles tentavam reviver a integridade dos elementos perdidos por
intervenções que não buscavam o que era propriamente nacional, mas sim
a adaptação das obras brasileiras às tendências internacionais (ANDRADE,
1993). É óbvio que uma vertente desse pensamento modernista dominava
o SPHAN nessa época, e foi o legitimador das intervenções ocorridas nos
edifícios tombados: a ideia de que somente a arquitetura de estilo colonial
era a representante fiel das origens da arquitetura brasileira e, portanto,
da própria identidade.
18 Arquitetura como patrimônio histórico e cultural

A Igreja de Nossa Senhora da Escada foi tombada pelo SPHAN em 25


de janeiro de 1941. Ela tinha uma forma arquitetônica jesuítica, com
a construção estruturada em taipa de pilão e pau-a-pique em estilo barroco,
com revestimento em barro e reboco. Tem uma planta retangular com telhado
dividido em duas águas e o corpo de residência se localiza na parte da lateral
direita, e ambas são abertas para o largo, onde há um cruzeiro. Na parte interna,
tem uma ampla nave, coro em mezanino sobre a entrada principal e poucas
entradas e um austero altar-mor, caracterizado por tábuas rasas e lisas e apenas
pequenos adornos decorativos nas cercaduras dos nichos. Apesar de ser um
bem, teoricamente, resguardado pelas leis preservacionistas, a igreja sofreu
diversos reparos ao longo da história. Até a intervenção do SPHAN em 1945
e em 1947, a igreja estava em péssimo estado de conservação, e uma coluna
ao lado esquerdo da nave não fazia parte do estilo arquitetônico original. Os
técnicos autorizaram a demolição do elemento para “restaurar” o principal
sentido (GONÇALVES, 2007).

A restauração da Igreja de Guararema, e de tantas outras parecidas,


constituiu, basicamente, na demolição das torres, das divisórias consideradas
mais recentes, dos encamisamentos e das colunas da parede, construídos em
tijolo de alvenaria. Esse não era o material original da igreja e, de acordo com
os preceitos que regiam os técnicos do SPHAN daquela época, as reparações
produzidas ao longo da história da igreja descaracterizaram a sua arquitetura
genuína (GONÇALVES, 2007). Ou seja, a aparência assumida pela edificação
era, na realidade, fruto de diversas reformas más planejadas, que retiraram
o cerne original da igreja. De acordo com a linha seguida por Luis Saia e pelo
SPHAN, a igreja era considerada exemplo da arquitetura tradicional (colonial)
jesuítica e, paulista. Portanto, a transfiguração da edificação foi legitimada
com base nessa argumentação. Segundo Gonçalves (2007, p. 145):

[...] ao invés das prospecções arquitetônicas guiarem as formulações de restauro,


Luis Saia, ao contrário, direciona as investigações prospectivas a partir do fio con-
dutor de suas proposições, previamente elaboradas, alterando, assim, a sequência
lógica da metodologia própria ao restauro de edificações.

É possível considerar as aprovações dos restauros como idealizações de


um jovem arquiteto que, logo no começo da carreira, imergiu em águas mo-
dernistas e levou suas considerações até o fim. Havia, sim, muita preocupação
com a preservação do patrimônio cultural brasileiro, em relação a elaborar
uma memória e uma identidade próprias, sem influências estrangeiras. Porém,
no que dizia respeito aos patrimônios materiais, pouco se argumentava sobre
Arquitetura como patrimônio histórico e cultural 19

as restaurações. Assim, o que ocorreu nos primeiros anos do SPHAN foram


intervenções e alterações profundas nas obras consideradas representantes
da arquitetura colonial, cujas consequências para o ambiente patrimonial
brasileiro rendem discussões até hoje.

Referências
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Leitura recomendada
AZEVEDO, A. N. A grande reforma urbana do Rio de Janeiro: Pereira Passos, Rodrigues
Alves e as ideias de civilização e progresso. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2016.

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