Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Podemos afirmar que ser cidadão significa ter direitos e deveres, ser
súdito e ser soberano. Tal situação está descrita na Carta de Direitos da
Organização das Nações Unidas (ONU), de 1948, que tem suas
primeiras matrizes marcantes nas cartas de Direito dos Estados Unidos
(1776) e da Revolução Francesa (1798). Sua proposta mais funda de
cidadania e a de que todos os homens são iguais ainda que perante a lei,
sem discriminação de raça, credo ou cor. E ainda: a todos cabe o
domínio sobre seu corpo e sua vida, o acesso a um salário condizente
para promover a própria vida, o direito a educação, a saúde, a habitação,
ao lazer. E mais: direito de todos poder expressar-se livremente, militar
em partidos políticos e sindicatos, fomentar movimentos sociais, lutar
por seus valores. Enfim, direito de ter uma vida digna de ser homem
(COVRE, 2002, p.9).
É evidente, diante das conceituações acima, que existe uma correlação entre as
três formas de direitos – civis sociais e políticos – e os deveres, para que se exerça a
denominada cidadania plena. E que mesmo os deveres são fáceis de serem confundidos
com os direitos por estarem extremamente relacionados. Como, por exemplo, o direito a
vincular-se a organizações políticas para reivindicar o atendimento à cidadania e o dever
de reclamar os direitos cidadãos.
Todos esses direitos e a visão atual de cidadania são noções historicamente
construídas da vida humana. Se realizarmos uma incursão histórica será possível
identificar que apenas no início da idade moderna com o surgimento do sistema
capitalista e as novas formas de organização e exercício do poder é que são retomadas
formas mais parecidas com o modelo democrático grego, entretanto, de maneira
repaginada. Foucault, 2008 diz que com a noção de governo democrático com a burguesia
lutando por mais poder político é que se começa a vislumbrar um resgate das ideias
democráticas na Europa.
Isso se dá por volta dos séculos XVI e XVII, culminando nos séculos XVIII - XIX
momento no qual, segundo Foucault, surgem outras formas de organização social, outras
necessidades econômicas, outras interpretações científicas dos seres humanos sobre si
mesmos, gerando um movimento de poder e controle do corpo e da vida, nomeados
biopolítica1, pelo autor.
Tudo girando em torno da transformação das formas de difusão e exercício do
poder pelos e sobre os sujeitos. Se observarmos, diferentemente do poder soberano, ou o
exercido em governos monárquicos, numa democracia existe a possibilidade de
poliarquia.
No ocidente, inicialmente, isso se deu num processo de adequação aos novos
modos de produção que se constituíam no momento: sistema capitalista. Trazendo a
população para as cidades, tornando o processo de governo dos sujeitos um território
muito mais urbano. Criando a necessidade de corpos e mentes produtivos e dóceis e uma
menor interferência da igreja e da nobreza nas decisões do Estado, buscando se organizar
conforme leis, normas, regras que se apoiavam em mais de um polo de poder, incluindo
a classe burguesa.
1
O termo “biopolítica” designa a maneira pela qual o poder se encaminha para a transformação, entre o
fim do século VXIII e início do século XIX, a fim de governar não só os indivíduos por meio de uma série
de procedimentos disciplinares, mas também o conjunto dos seres vivos que compõem a população: a
biopolítica – por meio dos biopoderes locais – se ocupará, portanto, da gestão da saúde, da higiene, da
alimentação, da sexualidade, da natalidade etc., na medida em que tais gestões se tornaram apostas políticas
(REVEL, 2011, p.24).
respeito a tudo que é comum a todos os cidadãos). (COUVRE,
2002, p. 16).
Essa forma de governo que conta com o cuidado de si, publicizando o indivíduo
para si mesmo e para o outro a todo momento, que rege a cidadania, segundo direitos,
deveres e consumo, que segue uma lógica que aparenta quase sempre a superficialidade,
a efemeridade que produz relações de poder nas quais a racionalidade política pode estar
presente, inclusive nas ações menores, pontuais, locais e nas relações pessoais também.
Nesse trabalho isso é tão importante quando notar o assujeitamento das crianças
aos discursos que constituem o currículo escolar e suas formas de ainda, classificar,
rotular, excluir e coagir a cidadania nas crianças (ALVES, 2015). Por isso buscamos em
Foucault uma visão que, ao menos em nossas pesquisas e buscas literárias, encontra-se
explorada com menos intensidade, ao menos no contexto dos escritos sobre infância: as
práticas de liberdade no exercício da cidadania.
Não me refiro à revolução, à transformação total, da catarse social que modifique
todo o contexto radicalmente. Refiro-me aqui às ações locais, pontuais, efetivas que
acorrem e nas quais acredito, para colocar o sujeito diante de si e do outro, atravessando
sua subjetividade, promovendo uma visão mais poética da sociedade, da vida, da
cidadania e da vivência cidadã pelas crianças. Isso poderá evocar sujeitos menos
arraigados aos discursos hegemônicos que regulam, atualmente, de maneira muitas vezes
quadrada e disciplinadora o sistema educacional, transformando-o num espaço repelido
pelas crianças, pelos professores e pela família.
Esse trabalho se deu – durante a coleta de dados/intervenção – na intenção de fazer
da escola, do currículo, das relações pedagógicas com as crianças um lugar de debate
efetivo da experiência da cidadania pelas crianças, incluindo-as. Debatendo com elas uma
forma de tornar a cidadania uma luta ativa pela garantia, manutenção e ampliação de
direitos civis dentro da escola.
Escola moderna e o governo de si e do outro.
O modelo de escola que nos acompanha desde a modernidade é resultado e campo
de disseminação de uma nova forma de entender e governar as pessoas, os territórios e as
coisas. Modelo de governo que Foucault, em muitas análises sobre a sociedade moderna,
denominou biopolítca.
O que Foucault (2009b) denominou biopolítica é uma forma de regulação social
baseada nesse tripé de ações que são a população como objeto de saber e controle; o
desenvolvimento de uma racionalidade econômica sobre a população, seu território e a
melhor forma de administrá-los; e a criação de mecanismos básicos de regulação da
população como os dispositivos de segurança fundamentados na produção de um saber
sobre a população e na estatística.
Essa é uma forma de administração da população baseada nas formas do poder
pastoral que, no oriente, se desenvolveu segundo as seguintes características:
- É um poder ou tipo de racionalidade religiosa que age muito mais sobre as
pessoas que sobre território ou bens;
- O pastor torna-se responsável por guiar e corrigir a conduta do rebanho que
pastoreia, quando necessário;
- A possibilidade de salvação individual e coletiva dos sujeitos do rebanho
depende da ação do pastor. Ou seja, há no poder pastoral esse desígnio de zelar pelo
coletivo e, dentro dele, pela conduta individual de cada sujeito, agindo sobre ele de
maneira direta.
Dessa forma é possível visualizar a imagem do professor pastor, principalmente
no desenvolvimento das funções das professoras das séries iniciais – educação infantil e
primeiros anos do ensino fundamental – até os dias atuais.
Características como: cuidar da turma de maneira geral, mas não descuidar dos
indivíduos de maneira direta; cuidar de definir claramente o que é “bem” e “mal”, “certo”
e “errado” na conduta dos sujeitos e zelar para que andem pelo bem e correto; responder
pelo que acontece no seu espaço de domínio e ação que é sua sala/turma, administrando
seu território e os sujeitos dentro dele; estabelecer ou adequar os sujeitos numa dinâmica
de submissão ao mestre, seja pelo conhecimento, pela idade, ou pelo posto institucional
que ocupam, as relações de poder se constituem nessa dinâmica de sobreposição do
mestre sobre os estudantes; ter conhecimento da história de vida de seus estudantes,
conhecer muito bem cada um, dentro de suas habilidades e condições intelectuais,
psicológicas, emocionais, físicas através de diagnósticos realizado por todo um aparato
de profissionais cujo trabalho concorrem para isso.
Nas formas atuais de escolas essas regulações sobre os sujeitos ocorrem o tempo
inteiro. E são realizadas com o intuito de construir um saber sobre os sujeitos e estimular
seu desenvolvimento em todas as áreas citadas – intelecto, físico, emocional... – gerando
um crescimento através de técnicas do cuidado de si. Ou seja, é preciso fazer a criança
questionar-se todo momento sobre si mesma para esbarrar na possibilidade de mudança
ou melhora de si. Enfim, é nesse ínterim onde entra a ação do professor/pastor
estimulando no aluno o desenvolvimento de seu potencial de governo de si, sua
autonomia.
Essa forma de governo de si evoca o domínio das paixões, dos privilégios, das
atitudes egoístas, hedonistas, do seguimento das regras submetidas ao bem coletivo.
Busca sempre desenvolver o comportamento que será exemplo a ser seguido pelo
próximo. Aquele comportamento que legitima o sacrifício, a renúncia de si e do mundo
em pró de uma comunidade mais justa e feliz.
Esse comportamento, no entanto, é estimulado em diferentes níveis nos diferentes
sujeitos sociais variando de acordo com as questões culturais, de classe, de gênero, de
posição e poder social. Essa visão de docente e de escola moderna nasceu e sobrevive aos
dias atuais por estarem totalmente formuladas dentro e a partir do discurso nascido junto
com a visão de Estado Moderno e nas suas formas de regulação, administração e educação
das populações.
Varela (1996) organiza suas teorizações a respeito dessas formas de governo
nascentes na idade moderna e de como seus imperativos sobre a educação se deram e se
dão até hoje, denominando em três fases e três principais modos de governo dos sujeitos
através do desenvolvimento de diferentes Pedagogias presentes na escola para a formação
das crianças desde o nascimento da escola moderna: as pedagogias disciplinares, as
corretivas e as psicológicas.
Num resumo Acorsi (2010), sintetiza os nomes de estudiosos precursores em cada
um desses modelos pedagógicos que, volto a dizer, podem ser encontrados mesclados,
com maior ou menor intensidade nas práticas discursivas ou não dentro da escola,
atualmente.
(…) as pedagogias disciplinares, cujo cenário foi composto por
humanistas, filósofos, reformadores e moralistas dos séculos XVI e
XVII; as pedagogias corretivas, protagonizadas por Binet, Simon e
pelos representantes do Movimento das Escolas Novas como
Montessori e Decroly; e as pedagogias psicológicas, destacando-se em
especial os nomes de Freud e Piaget (ACORSI, 2010, p.17).
Em seu texto, Varela (1996) trata o tema, iniciando suas análises pelo século XVI,
analisando o nascimento do modelo pedagógico disciplinar. Esse modelo de educação
baseado nessa forma de exercício do poder, o disciplinar, inicia a contemplar uma forma
de o sujeito olhar para si mesmo e disciplinar seu corpo, comportamento e subjetividade.
É um modelo que previne, regula, e busca agir antes mesmo das infrações e erros
ocorrerem, mas que pune e vigia para que haja o alcance da meta de homogeneizar
comportamentos e produzir corpos e mentes dóceis e úteis (ALVES, 2015).
O modelo pedagógico disciplinar criou um parâmetro de normalização dos
sujeitos, e por isso, no início do século XX surgiram com muita força as pedagogias
corretivas, a fim de trabalhar, através do conhecimento de alguns profissionais da saúde,
com as anormalidades criadas pelo sistema pedagógico disciplinar, que pretendia
“limpar” as diferenças de comportamento e produzir uma população que se enquadrasse
cada vez mais num molde de produção e normalidade.
Com isso foi formada uma base para o início de um trabalho com os anormais
com o estabelecimento de um respaldo científico com a psicologia nascente, aderindo à
biogenética e medições mentais.
Nesse campo de estudo dos sujeitos, buscou-se um controle que não fosse tão
coercitivo e opressor. Que não visasse tão diretamente os corpos, mas que viesse do
interior. Essas reformulações se deram, na prática pedagógica, por meio de uma adaptação
dos tempos e espaços escolares às necessidades infantis, organizando diferentes situações
nas quais essas necessidades, não mais o conhecimento docente apenas, fosse o centro do
trabalho pedagógico. Ouvir as crianças sobre o que e como precisam e preferem estudar
para se desenvolver tornou-se regra nesse parâmetro pedagógico. Um modelo mais
democrático de ensino e de governo das crianças na escola começa a se delinear através
dessas premissas de esforçar-se para o entendimento do processo de desenvolvimento do
sujeito.
Grande divulgador e propagador dos estudos com essa visão sobre a infância,
sobre a docência e, sobretudo sobre os métodos de ensino, foi o movimento da Escola
Nova e todos os seus representantes.
Nesse contexto é que surgem, por meio do desdobramento da influência das
pedagogias corretivas, as pedagogias psicológicas/narcisistas. Varela (1996) nos
descreve a respeito observando como olhar para si, governar-se e aos outros se torna uma
tarefa muito importante, mas que se desenrola, agora, tanto na escola, quanto fora dela,
através de aparatos e de análises de experts da psicologia, da educação, da saúde de
maneira geral e da sociologia, dizendo ao indivíduo o que ele é, e no que pode se
transformar. Finalmente, estamos falando de mais uma nova forma de governo que se
apresenta par forjar subjetividades por meio de um alvo que é cada vez menos material
quanto o corpo, alvejando a alma dos sujeitos, cada vez com maior efetividade.
Segundo a autora, dentro das práticas discursivas ou não, as características
atribuídas às pedagogias narcisistas são, principalmente, as que seguem:
Psicanalistas e Piagetianos situam a criança no centro do processo
educativo e atribuem ao mestre a função de ajuda. O ensino, em
consequência, deve adequar-se cada vez mais aos interesses e
necessidade dos alunos, à sua suposta percepção específica do espaço e
do tempo. A adaptação continua sendo o objetivo principal da
educação. Não foi em vão que Piaget fez sua a frase de Binet segundo
a qual “a adaptação é a lei soberana da vida”, e para Freud o processo
de sublimação conduz ao homem civilizado. A atividade segue
ocupando o primeiro lugar nessas teorias da aprendizagem e, no caso
concreto de Piaget, os exercícios sensório-motores não apenas fazem
parte do desenvolvimento da motricidade com jogam um importante
papel no desempenho cognitivo. Nesse sentido situam-se em linha
direta em relação com os promotores das pedagogias corretivas
(VARELA, 1996).