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ELEMENTOS DE TEORIA GERAL DO ESTADO – DALMO DE ABREU

DALLARI

O ESTADO CONSTITUCIONAL
O Estado Constitucional, no sentido de um Estado enquadrado num sistema
normativo fundamental (conjunto de princípios e leis primeiras, constitutivas), é uma
criação moderna, tendo surgido paralelamente com o Estado Democrático, inclusive sob
a influência dos mesmos princípios.
O constitucionalismo, assim como a democracia moderna, tem suas raízes no
desmoronamento do sistema político medieval, passando por uma fase de evolução até
culminar no século XIX, quando surgem as Constituições.
O constitucionalismo moderno tem sua origem como expressão formal de
princípios e objetivos políticos na época medieval (nas lutas contra absolutismo), mais
precisamente em1215, quando os barões da Inglaterra obrigaram o rei João Sem Terra a
assinar a Magna Carta, jurando obedecê-la e aceitar a limitação de seus poderes 1.
Depois disso, no século XVII, a Revolução Inglesa consagra a supremacia do
Parlamento como órgão legislativo. Com isto, se chega bem próximo da idéia de que o
Estado deve ter “um governo de leis e não de homens”.
Finalmente no século XVIII, conjugam-se vários fatores que iriam determinar
o aparecimento das Constituições. Sob a influência do jusnaturalismo, afirma-se a
superioridade do indivíduo dotado de direitos naturais inalienáveis e que deveria receber
a proteção do Estado. Em conjunto, desenvolve-se a luta contra o absolutismo,
ganhando força os movimentos que defendiam a limitação dos poderes dos governantes.
Somado a tudo isso, ocorre a considerável influência do Iluminismo que exigia a
racionalização do poder.
Aí estão os três fatores que, juntos, resultariam no constitucionalismo: 1) a
afirmação da supremacia do indivíduo; 2) a necessidade de limitação do poder dos
governantes; 3) a busca da racionalização do poder;
O constitucionalismo teve mais universalidade na França, assim como a idéia
da democracia, se expandindo de lá para outras partes do mundo. A primeira
constituição escrita foi a do Estado de Virgínia de 1776 e a primeira posta em prática foi
a dos Estados Unidos da América de 1787. Entretanto, foi a francesa que obteve maior
repercussão.
1
No processo de constituição das monarquias nacionais europeias, a prerrogativa de centralização do
poder político nas mãos de um único monarca parece ser regra comum a todos os Estados que se
formavam naquela época. Quando nos aportamos para a formação da monarquia britânica, notamos
que a autoridade monárquica enfrentou dificuldades para se estabelecer.
A supremacia real britânica deu seus primeiros sinais de desgaste no reinado de Ricardo Coração de
Leão (1189 - 1199), que foi marcado pelo envolvimento do Estado em diversos conflitos militares contra
a França e participou ativamente na organização da Terceira Cruzada (1189-1192). As longas ausências
da autoridade monárquica e o alto custo gerado nestas guerras acabaram despertando a insatisfação
dos nobres ingleses com relação ao rei.
O abalo na relação entre os nobres e a autoridade real só veio a ganhar força durante o governo de João
Sem-Terra (1199 - 1216). Entre outros motivos, podemos apontar que o rei João acabou politicamente
desgastado por conta do seu envolvimento em novos conflitos militares, a elevação dos impostos
cobrados sob a população e a tentativa de impor a taxação das propriedades eclesiásticas. Dessa forma,
os nobres organizaram um levante que colocaria a autoridade real em risco.
Para que não fosse deposto, o rei João Sem-Terra aceitou acatar as determinações impostas pela Magna
Carta, documento de 1215 que viria a remodelar o papel do rei na Inglaterra. Entre outras disposições, a
nova lei dizia que o rei não poderia mais criar impostos ou alterar as leis sem antes consultar o Grande
Conselho, órgão que seria integrado por representantes do clero e da nobreza. Além disso, nenhum
súdito poderia ser condenado à prisão sem antes passar por um processo judicial.
O período do constitucionalismo foi uma era de racionalismo, na confiança na
habilidade da razão. A nenhum respeito, naquela época, o homem foi mais senhor de
seu destino no tocante às questões políticas.
Pelos próprios objetivos fundamentais é fácil compreendermos que o
constitucionalismo teve quase sempre um caráter revolucionário. Obviamente, a
limitação dos poderes dos monarcas sempre se fazia contra a vontade destes. Se eles
aceitaram as restrições, deveu-se às fortes pressões exercidas pelas novas classes
políticas, sobretudo pela burguesia.
Daí a preferência pelas Constituições escritas, que além de definir melhor as
novas condições políticas, tornavam muito mais difícil qualquer retrocesso.
Apesar de impulsionado sempre pelos mesmos princípios básicos, o
constitucionalismo teve características diversificadas segundo as circunstâncias de cada
Estado. Em alguns Estados, o constitucionalismo foi instrumento de afirmação política
(os direitos e a liberdade do indivíduo, pois o constitucionalismo surge na época do
liberalismo, configurando o liberalismo político), mas em outros teve um sentido quase
simbólico, gerando as monarquias constitucionais, cujo absolutismo perdeu o caráter
pessoal para adquirir um fundamento legal.
A possibilidade de preservação de sistemas absolutistas, apesar da
Constituição, deveu-se a um desdobramento do próprio conceito de Constituição que
permite distinguir entre um sentido material e um sentido formal.
Karl Loewenstein 2 faz uma enumeração dos requisitos mínimos de uma
Constituição autêntica: 1) a diferenciação das diversas tarefas estatais e sua atribuição a
diferentes órgãos, para evitar a concentração de poder nas mãos de um só indivíduo; 2)
um mecanismo planejado para a cooperação dos diversos detentores do poder; 3) um
mecanismo planejado para evitar bloqueios entre os diferentes detentores do poder, a
fim de evitar que qualquer um deles sobreponha-se aos demais; 4) um mecanismo
previamente planejado de reforma constitucional para se adaptar às mutáveis condições
sociais e políticas, para evitar o recurso à ilegalidade, força ou revolução; 5) além disso
tudo, a Constituição deve reconhecer as esferas de autodeterminação individual, isto é,
dos direitos individuais e das liberdades fundamentais, protegendo-os contra a
interferência de um ou de todos os detentores do poder;
O titular do poder constituinte é sempre o povo. É nele que se encontram os
valores fundamentais que informam os comportamentos sociais. A Constituição
autêntica conjugará sempre os valores individuais e sociais que o próprio povo
selecionou através da experiência. É considerada ilegítima a Constituição que reflete as
aspirações e valores de um povo senão àquele que o texto constitucional se vincula.
Tendo sido a Constituição uma criação do século XVIII, sendo, portanto, a
expressão das aspirações de liberdade e de garantias individuais daquele século, poderá
ser no século XXI o instrumento político-jurídico ideal para a limitação do poder e
garantir os direitos?
Na realidade, desde o século XIX a Constituição é símbolo de afirmação da
liberdade dos povos e indivíduos. Quanto aos direitos individuais ela teve, quase em
todos os Estados constitucionais, o sentido de expressão dos direitos fundamentais,
todavia, com eficácia jurídica limitada, pois carece de força para assegurar na prática a
efetivação dos direitos.
A partir da aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948
pela ONU, teve início uma nova fase na história do constitucionalismo. Um ponto
importantíssimo foi a proclamação dos direitos econômicos, sociais e culturais, com o
2
Karl Loewenstein foi um filósofo e político germânico, sendo uma das personalidades mais
significativas para o Constitucionalismo no século XX.
mesmo valor e eficácia jurídica dos já tradicionais direitos civis e políticos. Uma das
consequências disso foi a ampliação do papel político e social do Estado, que deixou de
ser apenas o protetor da liberdade e dos direitos para assumir ativo na efetivação desses
direitos.
Sendo assim, foram rompidas as barreiras que limitavam as ações do Estado em
nome da proteção dos direitos individuais. Tudo isso gerou um “surto” de novas
Constituições, determinando também certas inovações no papel constitucional do
Estado.
O Executivo sofreu transformações na definição dos instrumentos de atuação e o
Judiciário passou a ser muito mais do que um garantidor de respeito às leis, para tornar-
se, em muitos casos, um complementador das normais constitucionais, visando dar-lhes
efetividade.
Atualmente ocorre o que já chamamos de “neoconstitucionalismo”, com a
afirmação da natureza jurídica dos princípios e normas constitucionais, a abrangência
universal da Constituição quanto a todos os fatos que impliquem sobre os direitos e,
ainda, a sua superioridade no sistema jurídico.
Há uma supremacia da Constituição como padrão jurídico fundamental e que
não pode ser contrariado por qualquer norma do sistema jurídico. As normas
constitucionais são as que têm o máximo de eficácia, não sendo admissível a existência
de normas que com elas concorram em eficácia ou que lhes sejam superiores. As
normas constitucionais condicionam todo o sistema jurídico!
E para a proteção dos valores fundamentais de convivência é indispensável o
Estado Democrático, que impõe a observância dos padrões jurídicos básicos, nascidos
da própria realidade.

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