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CONSTITUCIONALISMO TRAJETÓRIA HISTÓRICA E DILEMAS CONTEMPORÂNEOS1
2.1 Introdução
A ideia de Constituição, tal como a conhecemos hoje, é produto da Modernidade, sendo
tributária do Iluminismo e das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII, ocorridas na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França.1 Ela está profundamente associada ao constitucionalismo moderno, que preconiza a limitação jurídica do poder político, em favor dos direitos dos governados. Não obstante, fala-se também em constitucionalismo antigo e em constitucionalismo medieval, para aludir a determinadas concepções sobre o poder político existentes na Antiguidade greco-romana e na Idade Média.2 Evidentemente, o constitucionalismo e as concepções sobre a Constituição que lhe são subjacentes têm variado bastante ao longo do tempo, influenciadas pelas profundas mudanças sociais, políticas e econômicas que vêm ocorrendo no mundo. Por isso, e pela sua importância central nos domínios do Direito, da Política e da Filosofia, a Constituição tem sido objeto privilegiado de estudo no âmbito da História dos Conceitos.3 O presente capítulo dedica-se à análise da trajetória histórica do constitucionalismo. Faremos aqui apenas um breve registro sobre o constitucionalismo antigo e medieval, dirigindo as nossas atenções sobretudo ao fenômeno constitucional na Modernidade. Serão apresentados os três principais modelos de constitucionalismo moderno que foram o inglês, o francês e o norte-americano. E analisaremos, também, dois processos históricos distintos, ambos fundamentais no conhecimento das bases históricas e teóricas da nossa disciplina: a evolução do constitucionalismo liberal em direção ao constitucionalismo social, com a ampliação das tarefas do Estado e das constituições; e a mudança na concepção de Constituição, que, de proclamação política dirigida aos poderes públicos, desprovida de efeitos normativos, foi se tornando autêntica norma jurídica, cujas violações sujeitam-se ao controle judicial. O capítulo se encerra com uma breve discussão sobre a crise contemporânea do constitucionalismo estatal, decorrente da erosão da soberania do Estado, no contexto da globalização, e a possibilidade de construção de constitucionalismos em outras esferas, como a internacional, a regional e a societal. As especificidades da evolução do constitucionalismo no Brasil serão examinadas nos dois capítulos seguintes. 2.2 O constitucionalismo antigo e medieval Na Grécia, entre os séculos VI e IV a.C., floresceram algumas ideias e instituições que podem ser vistas como correspondentes a um modelo antigo de constitucionalismo. Na polis grega vigorou, durante certo período, a democracia direta, por meio da qual os cidadãos, sem intermediários, deliberavam em assembleias (ecclesia) reunidas em praça pública (ágora) sobre os principais assuntos de interesse geral. Esta participação política era restrita aos homens livres, sendo excluídas as mulheres, os escravos, os estrangeiros e seus descendentes (os metecos).4 Havia ainda funções públicas, exercidas por magistrados, muitas vezes escolhidos por sorteio entre os cidadãos, para mandatos curtos, que se subordinavam plenamente às deliberações das assembleias. A organização política da polis era chamada de politeia, expressão que muitos traduzem como Constituição. Tratava-se, todavia, de um conceito ora empírico, que designava a forma de ser da comunidade política,5 ora ideal, que indicava um modelo a ser seguido para a realização do bem comum, mas que não se revestia de um conteúdo propriamente jurídico, que caracteriza a Constituição em sentido moderno, vista como norma de hierarquia superior, reguladora do processo político e das relações entre indivíduos e Estado.6 Havia na Grécia um regime político que se preocupava com a limitação do poder das autoridades e com a contenção do arbítrio.7Contudo, esta limitação visava antes a busca do bem comum do que a garantia de liberdades individuais. A liberdade, no pensamento grego, cingia-se ao direito de tomar parte nas deliberações públicas da cidade- Estado, não envolvendo qualquer pretensão à não interferência estatal na esfera pessoal. Não se cogitava na proteção de direitos individuais contra os governantes, pois se partia da premissa de que as pessoas deveriam servir à comunidade política, não lhe podendo antepor direitos de qualquer natureza.8 Tal concepção se fundava numa visão organicista da comunidade política: o cidadão não era considerado em sua dignidade individual, mas apenas como parte integrante do corpo social.9 O cidadão virtuoso era o que melhor se adequava aos padrões sociais, não o que se distinguia como indivíduo.10 A liberdade individual não era objeto da especial valoração inerente ao constitucionalismo moderno. Em Roma, tampouco se cogitava de constitucionalismo em sentido moderno, como fórmula de limitação do poder político em favor da liberdade dos governados. Sem embargo, algumas instituições do período republicano romano já prenunciavam a concepção moderna de separação dos poderes, notadamente a sua repartição por instituições como o Consulado, o Senado e a Assembleia, representativas de estamentos diferentes da sociedade, de forma a propiciar o equilíbrio entre deles.11 Tratava-se da ideia de governo misto, advogada por pensadores como Políbio e Cícero, que também se prestava à finalidade de moderação do poder político.12 Por outro lado, embora não tenha ocorrido na Roma Antiga o desenvolvimento de uma doutrina de direitos individuais similar a que se cristalizou na Modernidade, a concepção então vigente já não demandava, como na Grécia, a absoluta submissão do indivíduo à coletividade. De fato, já despontava ali a valorização da esfera individual e da propriedade, concomitante à sofisticação do Direito Privado romano e ao reconhecimento de direitos civis ao cidadão de Roma, como o direito ao casamento (jus connubium), à celebração de negócios jurídicos (jus commercium), à elaboração de testamento (faccio testamenti) e à postulação em juízo (legis acciones).13 Já a Idade Média, que se inicia com a queda do Império Romano, correspondeu a um período caracterizado pelo amplo pluralismo político. Não havia qualquer instituição que detivesse o monopólio do uso legítimo da força, da produção de normas ou da prestação jurisdicional. O poder político fragmentara-se por múltiplas instituições, como a Igreja, os reis, os senhores feudais, as cidades, as corporações de ofício e o Imperador, sem que houvesse qualquer divisão clara de competências entre elas, nem uma supremacia inconteste de qualquer uma. Não existia nada semelhante ao Estado Moderno, titular de soberania no âmbito do seu território. Naquele quadro, não havia como cogitar-se em Constituição no sentido moderno. Porém, essa própria dispersão do poder, ao limitar cada um dos seus titulares, é tida por autores como Maurizio Fioravanti como um componente do constitucionalismo medieval.14 Por outro lado, é no final da Idade Média que se desenvolve uma ideia que antecipa, em alguns aspectos, o constitucionalimo moderno. Surgiram pactos, celebrados entre reis e certos estamentos sociais superiores, que reconheciam aos integrantes desses estamentos certos direitos e prerrogativas, erigindo limitações jurídicas ao exercício do poder político. Destes pactos estamentais, o mais conhecido é a Magna Carta, firmada em 1215 na Inglaterra pelo Rei João Sem Terra, pelo qual esse se comprometia a respeitar determinados direitos dos nobres ingleses. O Rei se obrigava, por exemplo, a não criar novos tributos sem prévia autorização dos nobres, concedida em assembleia, obtendo, como contrapartida, o reconhecimento do seu poder.15 A esses pactos faltava, contudo, a universalidade que caracteriza as constituições modernas, uma vez que eles não reconheciam direitos extensivos a todos os cidadãos, mas apenas liberdades e franquias que beneficiavam os estamentos privilegiados. 2.3 O constitucionalismo moderno O constitucionalismo moderno sustenta a limitação jurídica do poder do Estado em favor da liberdade individual. Ele surgiu na Modernidade, como forma de superação do Estado Absolutista, em que os monarcas não estavam sujeitos ao Direito16 — eram legibus solutos. Alguns desenvolvimentos históricos foram essenciais para o surgimento do constitucionalismo moderno, como a ascensão da burguesia como classe hegemônica; o fim da unidade religiosa na Europa, com a Reforma Protestante; e a cristalização de concepções de mundo racionalistas e antropocêntricas, legadas pelo Iluminismo. O Absolutismo exerceu um papel fundamental na formação do Estado moderno e no estabelecimento das bases que permitiram o desenvolvimento da economia capitalista. Na Idade Média, havia a convivência de ordenamentos jurídicos particulares, como os das corporações de ofício e dos feudos, com ordenamentos jurídicos com pretensões universalistas: o direito romano e o direito canônico. A fragmentação verificada no período medieval era um obstáculo grave ao desenvolvimento das forças econômicas emergentes. Cada feudo tinha suas próprias regras jurídicas, sua própria moeda, seu próprio sistema de pesos e medidas. O pluralismo impedia a expansão do comércio, reduzindo os limites dos mercados. A partir da organização dos Estados modernos, a pluralidade de fontes de produção normativa cede lugar ao ordenamento jurídico estatal. O Estado moderno se construiu tanto em luta contra as organizações políticas menores, no sentido da unificação do poder, quanto em luta contra a Igreja, com o intuito de obter a secularização do poder político. A anterior situação de pluralismo jurídico é substituída pelo monismo, com a monopolização da produção normativa pelo Estado.17 Não por coincidência um dos principais teóricos do absolutismo, Thomas Hobbes, justifica a centralização do poder por meio de pressupostos modernos e individualistas. Para sair do “Estado de Natureza”, que é por ele considerado como um estado de guerra de todos contra todos, os indivíduos abrem mão de toda a sua liberdade, por meio do contrato social, em favor do Estado. Na obra de Hobbes, o contrato social somente pode consistir numa doação quase total e incondicionada de cada um ao soberano. O direito é produto da autoridade do soberano e não das leis da natureza: autoritas non veritas facit legem. Não importa o conteúdo do ato normativo, deve ele ser considerado válido, desde que tenha emanado do soberano.18 Porém, realizada a centralização da produção normativa pelo Estado absolutista, o poder ilimitado dos governantes que o caracterizava passou a significar um entrave para a continuidade do desenvolvimento do capitalismo: a burguesia emergente pretendia proteger a liberdade, a propriedade e os contratos também do eventual arbítrio dos governantes. Emerge a noção de que também os governantes deveriam se submeter a ordenamentos jurídicos providos de estabilidade e racionalidade. Daí a plena convergência entre os interesses da classe econômica ascendente — a burguesia — e o ideário do constitucionalismo, de contenção do poder estatal em favor da liberdade individual. Por outro lado, com o fim da unidade religiosa no continente europeu, extinguira-se a possibilidade de fundamentação do poder político na vontade divina, uma vez que essa justificativa deixara de se alicerçar na crença generalizada dos governados. A reação contra as guerras e perseguições religiosas deflagradas pela Reforma e Contrarreforma nutriram a ideia de que era necessário promover a tolerância e fomentaram o desenvolvimento da concepção segundo a qual deveriam ser reconhecidos determinados direitos invioláveis aos súditos.19Era necessário fornecer uma base racional e secularizada para o poder político, sob pena de se perpetuar o cenário de guerra e instabilidade que vitimava gravemente o continente europeu. Naquele contexto, passou-se a valorizar o indivíduo, concebido como um ser racional, titular de direitos, cuja dignidade independia do lugar que ocupasse no corpo coletivo. Evolui-se para o reconhecimento de direitos universais, pertencentes a todos. A sociedade não mais era concebida como um organismo social, formado por órgãos que exerciam funções determinadas (clero, nobres, vassalos). Ela passa a ser concebida como um conjunto de indivíduos, como uma sociedade “atomizada”, formada por unidades iguais entre si. As atividades sociais (o trabalho, por exemplo) deixam de ser atributos naturais relativos ao lugar ocupado no organismo social, e passam a decorrer da vontade livremente declarada pelos indivíduos. O contrato se torna o instituto por excelência de formalização de vínculos sociais. Em harmonia com essa visão, desenvolveram-se diversas teorias de contrato social, que passaram a justificar a existência do Estado em nome dos interesses dos indivíduos, que sairiam ganhando com a superação do “Estado de Natureza” e a fundação da sociedade civil.20A versão liberal do contratualismo, que teve em John Locke o seu mais importante formulador, sustentava a ideia de que, ao celebrar o contrato social, as pessoas alienam para o Estado apenas uma parcela da liberdade irrestrita de que desfrutavam no Estado da Natureza, retendo, no entanto, determinados direitos naturais, que todos os governantes devem ser obrigados a respeitar.21 Esse jusnaturalismo difere daquele que predominara na Antiguidade e na Idade Média por duas razões fundamentais. Em primeiro lugar, por não se basear na vontade divina, nem em imposições extraídas da Natureza, mas em princípios acessíveis à razão humana. Em segundo lugar, por conferir primazia aos direitos individuais.22 O jusnaturalismo antigo e medieval era objetivista: a lei natural correspondia a uma ordem objetiva, criada por Deus, a qual não poderia deixar de ser observada pelo Estado. O jusnaturalismo moderno, de tipo lockeano, é subjetivista: identifica determinados “direitos naturais”, atribuídos aos indivíduos, que não podem ser violados pelas autoridades públicas, tendo sido ressalvados no pacto social. O constitucionalismo moderno se assenta em três pilares: a contenção do poder dos governantes, por meio da separação de poderes; a garantia de direitos individuais, concebidos como direitos negativos oponíveis ao Estado; e a necessidade de legitimação do governo pelo consentimento dos governados, pela via da democracia representativa. Porém, na prática, o terceiro destes pilares nem sempre foi valorizado como os dois primeiros, pela generalizada adoção do voto censitário e masculino nos Estados constitucionais até meados do século XX, com base na justificativa de que apenas os homens mais instruídos, de melhor condição social, reuniriam as condições que lhes permitiriam expressar, por meio do seu voto, a vontade da Nação.23 O constitucionalismo moderno conheceu três versões mais influentes: a inglesa, a norte-americana e a francesa. Neste item, não serão examinadas as experiências constitucionais destes Estados, mas apenas destacados os lineamentos gerais dos modelos constitucionais a eles associados. Há também, por outro lado, duas fases distintas do constitucionalismo moderno, que correspondem ao Estado Liberal-Burguês e ao Estado Social. E, ainda, é discutível se a crise do Estado Social e da soberania estatal ensejou o surgimento de outro modelo de constitucionalismo, que pode ser rotulado de pós-moderno.
Democracia, Direitos Fundamentais, Paradigmas: Justiça, Segurança e Liberdade : Democracia – história do constitucionalismo e formação do Estado – Estado de Direito Democrático – Estado Social – Direitos Fundamentais
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