Você está na página 1de 20

O que é Natureza? O que é Natural?

Shakespeare como Filósofo da História'

Agnes H eller
Tradução de Helvio Gomes Moraes Jr.

1 Este artigo corresponde ao


primeiro capitulo do amplo
Agnes Heller é professora Hannah Arendt de filosofia junto à New estudo de Agnes Heller
sobre a obra shakespeariana,
School for Social Research em Nova York. Foi aluna e amiga de Georg entitulado The Time is Out
Lukács e uma dissidente na Hungria comunista. É autora de mais de vinte of Joint — Shakespeare as
Philosopher of History,
livros, incluindo An ethics ofpersonality (Cambridge e Oxford: Blackwell publicado em 2002 por
Rowman & Littlefield
Pubfishers, 1996), A theory of modernitys(Oxford: Blackwell, 1999), e O Publishers, Inc, Lanham,
homem do Renascimento (Lisboa: Presença, 1982). Maryland.
AGNES HELLER

É impossível não concordar com a observação de E. M. W.


Tillyard, em Political Shakespeare, de que Shakespeare dificilmente
menciona a ordem cósmica. À ordem cósmica foi dada pouca importância.
Shakespeare tampouco criou um espaço ou uma ordem metafísicos. Seu
senso de ordem, particularmente seu senso de ordem espacial, está
mais próximo do Renascimento que do Barroco. Sua visão trágica
não é apocalíptica, mas estritamente histórica. Eventos incomuns e
ameaçadores, catástrofes naturais ou irregularidades, como tempestades
e abortos, são freqüentemente lidos pelas personagens shakespearianas
como sinais de males políticos presentes ou indícios de uma futura
mudança histórica, mas não têm nenhuma implicação cósmica. É certo
que Ulisses (em Tróilo e Créssida 1.3) refere-se à hierarquia cósmica. Mas
o faz apenas para sustentar sua submissão à hierarquia social, à ordem
de subordinação/superordenação que precisa ser obedecida: a tradição é,
aqui, apresentada como natural. Essencialmente os homens supersticiosos,
e nem sequer os muito inteligentes, crêem numa intervenção cósmico-
divina supra-humana, no caso de um inexplicável e extraordinário
acontecimento natural (como Cina em Júlio César). Fantasmas, bruxas,
fadas e elfos intervêm na ação humana; suas intervenções freqüentemente
têm significado politico para os atores e, assim, provocam seqüências de
ações politicas. Isso ocorre em tragédias como Hamlet ou Macbeth, em
comédias como Sonho de uma Noite de Verão, e em romances como A
Tempestade. A floresta encantada de Sonho de uma Noite de Verão parece
maléfica e perniciosa aos amantes; mas está sob o encanto de Puck, o
impostor cósmico, que pode, também, subtrair-lhe a mágica. A narrativa
inclui todas as questões trágicas que só podem ser colocadas em um drama
politico-histórico: um casamento régio, tirania paterna, conflito entre o
rei e a rainha, vingança e extrema humilhação. Concordo com Jan Kott,
quando escreve em Shakespeare, Nosso Contemporâneo, que Sonho de uma
Noite de Verão é uma história de extremo terror. Ainda assim, é envolta
por urna aura de leveza e luminosidade. Pois o sonho ruim é apenas um
sonho e, se se acorda para uma vida de felicidade, o sonho é "so musical
a discord, such sweet a thunder" 2 (Sonho de uma Noite de Verão 4.1.117),
que, da mesma forma, pode permanecer belo em nossa lembrança.
O tempo está fora dos eixos. Trata-se, contudo, somente do tempo
histórico e não do tempo cósmico. Não há nenhuma intervenção cósmica
ou divina no teatro shakespeariano.Talvez isto soe um pouco estranho. As
2 "dissonância tão musical,
trovão mais harmonioso." tragédias de Shakespeare, afinal, estão nos contando histórias de punição.
SHAKESPEARE, Elas nos mostram crimes que são punidos. Retratam pecadores que
Obra Completa. Vol. II. Trad.
F. Carlos de Almeida Cunha terminam suas miseráveis vidas como vítimas de seus próprios pecados.
Medeiros e Oscar Mendes. Permitem-nos ouvir imprecações que caem sobre as cabeças dos culpados.
Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
1995, p. 423. A menos que se Penso, contudo, que os atos realizados pelos heróis de Shakespeare nos
faça menção, as citações de dizem mais sobre as ficções criadas ou cridas pelas próprias personagens
Shakespeare, em português,
serão extraídas desta coleção. do que sobre a particular visão de Shakespeare. E verdade que quase

20
SHAKESPEARE COMO FILÓSOFO DA HISTÓRIA

todos os assassinatos serão vingados direta ou indiretamente, os tiranos


encontrarão uma morte violenta mais cedo ou mais tarde, e as maldições
se efetivarão. Os indivíduos maus enfrentam o merecido castigo; pelo
menos, isto é o que o expectador percebe. Entretanto, muitas maldições,
em Shakespeare, não fazem efeito. Vários vaticínios nunca se realizam; e
embora os assassinos encontrem uma morte violenta, o mesmo acontece a
muitos inocentes, sejam homens, mulheres ou crianças. Goneril e Regana
morrem, mas também Cordélia e os jovens príncipes, que não fizeram
mal algum. Os bons morrem juntamente com os maus. Em um sentido,
os dramas de Shakespeare forçam o espectador atento a voltar-se para o
antigo paradoxo da providência divina, familiar desde o profeta Amós.
Por que Deus consente que o inocente sofra e morra juntamente com o
mau? Shakespeare não faz esta pergunta. Sua história não é providencial.
Em sua história, a contingência governa em meio a regularidades. Em sua
história, não há nada paradoxal no sofrimento do inocente; é o resultado
da maldade humana, da dura sorte, da infeliz coincidência de fatores
heterogêneos. Não há propósito aqui, apenas miséria. Tal é o mundo.
Esta é a história. Tal é o caráter humano.
Vários prognósticos, nas peças de Shakespeare, se realizam — por
exemplo, Henrique VI reconhece no jovem Richmond o futuro redentor
da Inglaterra. Tais prognósticos eram importantes para o público de
Shakespeare, assim como são para nós, se não exatamente pelas mesmas
razões. Adoramos ouvir vaticínios que, sabemos, se realizarão. Adoramos
ouvir imprecações que, sabemos, farão efeito no devido tempo. Adoramos
saber o que o ator espera e deseja; e adoramos nos entregar ao sentimento
de satisfação quando o ator se demora no estado de expectativa. Esta é a
razão de nós, os espectadores, não ouvirmos, ou melhor, não notarmos,
aquelas maldições que nunca farão efeito ou aqueles vaticínios que nunca
se realizarão. Por que Shakespeare nos faz isso, ou, antes, permite que suas
personagens o façam umas às outras? Por que coloca imprecações na boca
de alguém, se sabe, assim como todos os seus contemporâneos, que tais
imprecações serão malogradas? Do mesmo modo, por que permite que
seus heróis predigam ou profetizem eventos que nunca se realizarão?
Tivesse ele posto, nas bocas de seus heróis, apenas profecias que
fossem confirmadas posteriormente, teria argumentado a favor da total
previsibilidade da história. As falsas profecias estão ali por um propósito;
elas testemunham a imprevisibilidade do futuro histórico. Shakespeare
não está inclinado a sacrificar algo que acredita ser verdadeiro sobre a
história por causa do efeito retórico.
Ademais, os vaticínios e as profecias nas peças históricas de
Shakespeare servem a uma finalidade, além da satisfação do desejo dos
espectadores em ver confirmadas as suas expectativas: caracterizam a
interação entre ator e situação. Em desespero e extrema angústia, homens
e mulheres profetizam a queda de seus inimigos e a vitória de sua própria

21
AGNES HELLER

causa, simplesmente para desafogar sua fúria ou indignação, para reforçar


sua resistência, para reunir coragem face à morte. Em situações extremas,
um homem pode se elevar a um nível mais alto de discernimento. O forte
desejo por vingança ou justiça, ou a defesa da honra e nome de alguém, é
traduzido na linguagem da profecia, da imprecação, ou da solene predição.
Homens e mulheres que estejam à beira da morte, que estejam arruinados
ou empobrecidos, ou em máxima miséria, são como mendigos pedindo
esmolas. Rogam ao futuro que os conceda a presciência da vindicação e
do contentamento; rogam ao futuro que lhes conceda não apenas alguma
esmola, mas total compensação.
Também acontece, nas peças históricas de Shakespeare, de um
evento político parecer tão importante para uma personagem, que faz
com que comece a celebrá-lo como um momento histórico decisivo, de
que todos se lembrarão. Alguns destes acontecimentos retoricamente
celebrados, de fato, serão lembrados como momentos históricos decisivos.
Contudo, nem todos são. E deixamos de reagir, nas peças de Shakespeare,
à mesma retórica, se o evento celebrado reduz-se a nada. Isso também
é "humano, demasiadamente humano". Deve-se sempre ter em mente
que, em Shakespeare, a história não é puramente racional. Se todos os
prognósticos devessem se concretizar, ter-se-ia a falsa impressão de que
há regularidade na história, que existem "leis" da história. Shakespeare
não entretém tal ilusão.
Ainda assim, é justo falar de sua visão da história. Embora não
haja nenhuma grande narrativa, Shakespeare faz algo mais, em suas peças
históricas, do que meramente encenar histórias isoladas. Primeiramente,
suas histórias são seqüências que cobrem períodos históricos cruciais,
escolhidos com um propósito histórico-poético. As peças inglesas cobrem
as Guerras das Duas Rosas, do prelúdio ao fim (não até Henrique VIII,
mas até a conclusão de Ricardo III. Rei João não pertence à seqüência).
Dificilmente pode-se falar de uma história linear aqui, pois não há
nenhuma acumulação nem do bem, nem do mal. Nem se pode falar
de uma história cíclica; não há corsi e ricorsi. Ao fim de Ricardo III, não
retornamos ao primeiro ato da história de Ricardo II, onde tudo começou.
Algumas lições podem, contudo, ser extraídas. Não se pode mais conduzir
a política como se as Guerras das Duas Rosas não tivessem acontecido.
Shakespeare não concordaria plenamente com o ditam de Hegel de que
a única coisa que se aprende da história é que nada foi, jamais, aprendido
a partir dela. Embora fosse um cético, Shakespeare acreditava que, ao
apresentar histórias sobre o passado, poderia advertir a rainha, de modo
que ela pudesse evitar repetir os erros de seus predecessores.
Até mesmo as peças romanas formam uma seqüência, embora isso
seja menos óbvio em relação às peças da crônica inglesa. É no Coriolano
que os plebeus aparecem em cena, pela primeira vez, como atores politicos.
Em Júlio César, o motim que levantam guia os acontecimentos à direção

22
SHAKESPEARE COMO FILÓSOFO DA HISTÓRIA

oposta, depois do assassinato de César, e eles perseguem os tiranicidas


fora de Roma. E, finalmente, em Antônio e Cleopatra, torna-se claro que
o hábil e frio agir político de Otávio César encontra a aprovação da já
apaziguada plebe, que está, então, mais interessada em pilhar territórios
estrangeiros do que na liberdade republicana. Esta seqüência também leva
a algum lugar, pois não retornamos ao começo. Mesmo a questionável
liberdade dos plebeus (questionável para Shakespeare, obviamente) é, por
um lado, preservada, mas, por outro, destruída. O mundo dos patrícios está
inteiramente superado e sepulto. As histórias conduzem numa direção,
tanto nas peças inglesas como nas romanas, e algo, no desenlace, é acolhido
por Shakespeare: a paz. Richmond termina a tragédia de Ricardo III com
a declaração de que "a paz vive novamente", e Augusto promete paz com
o fim da guerra civil, o mundo em que Cristo nasceu.
Construir a História nas seqüências de histórias oferece a
Shakespeare a oportunidade de distinguir entre História e política.
Pode-se fracassar politicamente e, contudo, vencer no fim das contas.
Uma derrota pode se tornar uma lição, e uma lição pode converter-se
numa derrota. A política se avalia numa vitória a curto-prazo; a história
é uma vindicação a prazo (mais) longo.
Ao nível da representação da personalidade, Shakespeare apresenta
duas escadas metafóricas: a escada da grandeza e a escada da moralidade.
Pode-se ocupar um lugar elevado numa, e ainda ser posto num nível
inferior em outra. Por exemplo, em Hamlet, Hamlet está no topo da escada
da grandeza, enquanto Horácio está no topo da escada da moralidade.
Em »lio César, César está no topo da escada da grandeza, e Brutus está
no topo da escada da moralidade. Pode-se observar hierarquias similares
em comédias, embora, aqui, as duas escadas metafóricas freqüentemente
se fundem em uma, pois a grandeza é medida por uma escala diferente
nas tragédias e nas peças históricas.
As personagens de Shakespeare também podem ocupar lugares
diferentes em outro par de escadas metafóricas: as da história e da política.
Pode-se ficar no alto da escada da história e, contudo, ocupar um baixo
degrau na escada da política, e vice-versa. Por exemplo, Ricardo II ocupa
um lugar mais alto na escada da história, Bolingbrook, na escada da
política; Coriolano, na escada da história, Menênio, na escada da política.
Aqui, também, as duas escadas metafóricas podem fundir-se, e, em
algumas peças, nenhuma personagem sequer acaba no topo de quaisquer
escadas —"acaba", literalmente. Pois as personagens shakespearianas nunca
são previamente formadas: elas deslizam para baixo ou ascendem; mudam
de atitude; podem estar alienadas de si mesmas. Somente quando está
tudo acabado é que se sabe sobre que degrau dessas escadas se colocam as
personagens shakespearianas. Nem a vindicação histórica, a longo prazo,
de malogros políticos, nem as vitórias políticas a curto prazo, contudo,
são atribuídas à providência ou a qualquer tipo de intervenção divina. A

23
AGNES HELLER

seqüência de acontecimentos, assim como a memória histórica, avalia,


distingue, julga e vindica num sentido não moral. Não há sinais, em
Shakespeare, de um deus absconditus trabalhando atrás dos bastidores.
Enquanto "seculariza" o paradoxo da imperscrutável justiça divina (os
inocentes morrem juntamente com os culpados), Shakespeare escreve
os dramas de uma história quase imprevisível.
Mas se a história é imprevisível, por que comparei Shakespeare
a Maquiavel? Maquiavel estabeleceu, afinal, algumas regularidades na
história política. E se há regularidades na história política, então pode-se
prever certos desenvolvimentos, empregando o esquema da necessidade
condicional ("se este é o caso, então isto, com toda probabilidade, seguir-
se-á"). Certamente, estes tipos de regularidades também podem ser
observados em Shakespeare. Mas Shakespeare está menos interessado
em regularidades que na singularidade de uma ação, no encontro pessoal
(fortuito) e na interação, e no impacto recíproco de personalidades, e,
assim, no desenrolar dos acontecimentos. O uso que Shakespeare faz de
um microscópio e de um telescópio históricos é crucial em sua distinção
entre a história e a política — por exemplo, entre a vindicação, a longo
prazo, de um ato ou idéia e a desastrosa derrota política. A política é
sempre medida pelos resultados de ações, a história, pela sua qualidade.
Mas não há retorno ao início, e não se pode traçar um movimento
unidirecional na seqüência de acontecimentos.
Deixem-me detalhar o que a secularização do paradoxo de justiça
divina e a ausência de até mesmo um deus absconditus significam para a
estrutura dramática das peças históricas de Shakespeare: nada na história
depende da presença ou da ausência divinas. Esta é uma das diferenças
cruciais entre os dramas grego e shakespeariano. É estranho, pois mesmo
muito mais tarde, nas comédias de Molière, como O Avarento e Tartufo,
a Providência, às vezes, aparece como deus ex machina para romper o nó
górdio que nenhuma personagem pode desemaranhar.
Em que pese sua ausência, enquanto ator, na estrutura, ação e
desenvolvimento de um drama shakespeariano, Deus ainda pode exercer
uma forte presença ali. Sua presença se manifesta na e através da fé,
imaginação e moralidade das personagens que nele crêem. Também faz-
se manifesta por meio das vozes de suas consciências, de suas aflições
e arrependimentos. Contudo, há somente um palco terreno: o palco
histórico, político, pessoal. O palco está aqui embaixo, entre nós. O sucesso
ou fracasso de ações é decidido neste palco. No entanto, pode-se atuar
aqui de maneiras muito diferentes, caso se levante a face para cima ou se
lance olhares para baixo, para a terra somente. Em política, Shakespeare
acredita que não se deve levantar o rosto para os céus somente, pois o
palco político está bem cá embaixo, não lá em cima.
Mas é aconselhável alguém levantar o rosto para cima de quando
em vez, para medir sua ação, também, pelas leis do Rei dos Reis, o Juiz.

24
SHAKESPEARE COMO FILÓSOFO DA HISTÓRIA

Alfabeto de gestos retóricos. John


Bulwer, Chirologia (1644)

Ib i I).
tfun..,-,, , • titt
,..-luxitit • . ira cgr • Demonstro non -
haherc . ,„,-.1
...-\
.

E 11 .1mreelio .
.
• Pugno . Conj.:do.
,..,

il.
cornructido . L ,,T..,,,,- , ipa- if eada. NI' SOlfir If"' c oi i to
.(iCi0 •ré 611.i.%.*
Oi

-,
.'.'i j,.
, .,.
1
(..;/ . -..
=-.
.. •

.-

A. ilL •••

N. °- r• Q-, •
Pudet . C.-4 CIO Y C •
..- 7: '- - ■ confese' r a rmo Rrnitonna- olivniv.
,. ,
"IN....
- ) ui )

-,
n.11"9-_,e- .0ata f7d4. From o. , .,,
n.dionel ..- cranciico.
i e /4
,...,Iiirionc et odiu:
__.--, noto.
4,..

.ff-

W. . corvationc.filuto. rY•
Honor ,,, '. --- -,.
.
,,,,....1--- raraettatom .
•/3 F. CS CO •

noto.
. _

..
,
, .
'
• '''''`-- Àkl e..

25
AGNES HELLER

Não há nenhum palco transcendente, nenhum teatro divino; contudo,


há uma Medida absoluta e um Juiz justo para além do palco histórico.
É deste modo (e, talvez, por esta razão) que os mais significativos heróis
shakespearianos têm o privilégio de aparecer e de desempenhar seus
papéis em outro teatro, o teatro da existência nua.
Maquiavel constantemente distingue as políticas de um governante
legítimo das de um ilegítimo. O governante legítimo tem um papel mais
suave a desempenhar, porque é sustentado pelo poder e pela inércia da
tradição. Não há uma única peça de Shakespeare em que o governante
legítimo possa, com êxito, contar com a tradição ou com a inércia. Há
um rei legítimo (Ricardo II) que é forçado a renunciar, outro (Rei Lear)
que renuncia, um (Rei João) que é excomungado pelo papa. Há muitos
príncipes legítimos (principalmente em comédias e dramas não trágicos)
que, milagrosamente, escapam da morte, são compelidos ao exilio, e, no final
feliz, retornam ao poder de forma ainda mais miraculosa. O governante
ilegítimo que toma o poder pela força, violência e maus desígnios, é, a
maioria das vezes, o irmão do governante legítimo (Cláudio em Hamlet e
Antônio n'A Tempestade, Frederick em Como Gostais). E pode-se perguntar
por que o fratricídio ou a tentativa de fratricídio (o motivo Caim-Abel)
é tão central na imaginação shakespeariana — muito mais central que o
parricídio. Entre os reis ingleses que governam prosperamente até o fim
de suas vidas, apenas Henrique V pode levantar uma reivindicação à
legitimidade; mas sua reivindicação também é frágil. Seu pai apoderou-
se da coroa da Inglaterra pela força, contra o governante legítimo, e ele
mesmo era considerado um desajustado pelo pai. O tempo está fora dos
eixos. Os usurpadores do trono inglês tomam a coroa por meio do ardil
e da força, e sabem o que estão fazendo; contudo, querem preservar
aparências. Todo usurpador tem sua própria genealogia preparada, sua
própria assim chamada genuína reivindicação ao título real.
Há dois direitos, e esses dois direitos entram em colisão. Nenhum
é admitido como certo por todos os atores. Há o direito, naturalmente
dado, de um homem que é astuto como uma raposa e valente como um
leão (ou assim ele pensa), e mais apropriado para ocupar o trono do que
o rei ungido. E há o direito do rei ungido (mesmo que ele não seja como
uma raposa ou um leão), que herdou a coroa de seu pai e do pai de seu
pai. Os usurpadores levantam uma reivindicação ao trono pelo direito
natural, a lei da natureza, porque o melhor (o mais apropriado) tem o
direito de governar. Todavia, a reivindicação da tradição é poderosa, de
modo que os reisfeitos por si mesmos devem modelar suas ambições para se
ajustarem a tal reivindicação. Eles recorrem a genealogias obscuras, a seus
direitos ancestrais. Shakespeare enfatiza esplendidamente este ponto, por
exemplo, em sua pequena peça satírica inserida na história do rei Henrique
VI, a revolta de Cade. Cade — que na representação de Shakespeare é
somente um bruto estúpido — também levanta reivindicações "legítimas"

26
SHAKESPEARE COMO FILÓSOFO DA HISTÓRIA

ao trono, com base em sua ascendência forjada.


O tempo está fora dos eixos. Contudo, mesmo enquanto ele
assim perdura, reivindicações de legitimidade, elas mesmas baseadas na
genealogia, prevalecem. Dois tipos de direito se confrontam. Pode-se
justificar a ambição de alguém tanto pelo primeiro como pelo segundo,
mas não por ambos. Muitas personagens shakespearianas tentarão, de fato,
servir-se de ambos. A crise de legitimidade é a crise do duplo vínculo.
No fim do ciclo das Guerras das Duas Rosas, o público ouve uma
música completamente diferente. Richmond, Henrique VII, promete
liberdade e justiça, uma vez que convocara os homens às armas contra "the
wretched, bloody, and usurping boar" 3 . E, em seguida, ele acrescenta: "All
for our vantage, Then in God's name march! — true hope is swift and flies
with swallow's wings; — Kings it makes gods, and meaner creatures kings"
(Ricardo III 5.2). Sors bona, nihil aliud! Não há nenhuma reivindicação
de legitimidade para governar, mas uma reivindicação de legitimidade
para destronar o sanguinário tirano: legitimação através da libertação.
É assim que o ciclo do duplo vínculo pode terminar: numa nova arena
onde o problema de o que alguém fará com seu poder terá mais peso que
a questão de como ele o alcançou. Esta é a razão por que Shakespeare não
pôde escrever uma tragédia sobre a história depois de Henrique VIL A
última peça histórica, Henrique VIII, teria a possibilidade de não ser
boa. O duplo vínculo, a tensão insolúvel entre duas reivindicações de
legitimidade, o choque entre os mundos pré-moderno e moderno, é a
situação trágica que Shakespeare percebeu, explorou, poetizou e eternizou.
Nas peças romanas, a questão da legitimidade aparece como o conflito
entre justificativas e direitos. Os direitos, justificativas e instituições
antigos (tradicionais), colidem com os novos em Coriolano e Júlio César,
ao passo que, em Antônio e Cleópatra, Shakespeare acrescenta uma nova
dimensão ao conflito: o choque irreconciliável entre o Leste e o Oeste.
Contudo, em todos esses casos (assim como em tragédias como Hamlet,
Lear e Macbeth), a tragédia desdobra-se em torno do conflito inerente
ao duplo vínculo. É natural ter um filho ilegítimo? É natural tratá-lo
como se fosse legítimo? É natural adotar a legislação draconiana contra
a natureza (como em Medida por Medida)? É natural servir a um senhor
mau ou néscio, ou agir naturalmente significa lealdade a todo custo?
É natural quando uma mulher incita seu marido a matar por amor? É
natural quando uma jovem obedece a seu pai e trai seu amante? Hamlet
3"o miserável sanguinário,
acusa sua mãe — entre outros — de ser desnaturada por preferir um porco o javali usurpador" (Vol. III,
horrendo e indigno a um homem belo e cortês (seu marido). Laertes não p. 647).
sofre sob o duplo vínculo, mas Hamlet, sim. Lear oferece a legitimidade a 4 Tudo está a nosso favor!
"

duas de suas filhas e deserda uma. As três filhas são todas não tradicionais: Assim, em nome de Deus,
em marcha! A verdadeira
vivem de acordo com a lei da natureza e, a este respeito, não há diferença esperança é rápida e voa com
entre si. A única diferença é que Cordélia é boa "por natureza", ao passo asas de andorinha. Dos reis,
faz deuses e das modestas
que Goneril e Regana nasceram más. O amor é a lei da natureza, ou, ao criaturas, reis!" (Vol. Dl, 647).

27
AGNES HELLER

contrário, o poder e o sexo? Estas são as questões. As mesmas indagações


serão repetidas muitas vezes depois de Shakespeare — por Rousseau e
Sade, para mencionar somente dois.
O tempo está fora dos eixos. Shakespeare retrata o duplo vínculo e
as tragédias que revolvem em seu redor. O duplo vínculo não é apenas uma
questão pessoal, embora possa dividir uma pessoa ao meio, como faz com
Hamlet. O duplo vínculo é histórico e se torna a subcorrente da politica
em muitas peças shakespearianas (inclusive muitas das comédias).
Nas peças históricas, a questão do que é natural gira, primeiramente,
em torno do conflito entre o direito natural e os direitos herdados; mas
Shakespeare jamais se detém a este nível. Sempre que a questão do direito
natural é levantada, a pergunta "O que é a natureza humana?" também
deve ser levantada. Os fundamentos do outro direito (o que a legitimidade
significa, o que é a tradição) podem ser reconhecidos, ou pelo menos
explorados e decifrados. O mesmo acontece com as formas de viver à
altura das obrigações resultantes de direitos tradicionais. No código moral
de Shakespeare, viver à altura das obrigações que provêm de direitos
tradicionais resume-se à manutenção e defesa da própria honra. Para
um soldado, lutar bem é a obrigação tradicional; se luta corajosamente,
preserva sua honra. Para um republicano (como Brutus), permanecer leal
às virtudes dos cidadãos da velha república, morrendo virtuosamente, é
uma questão de honra. É fácil repetir o velho juízo de Aristóteles: natureza
é o que diferentes pessoas, com diferentes constituições, compartilham.
A vontade de viver conforme a tradição era uma convicção comumente
partilhada no tempo de Shakespeare; mas ele tinha olhos para o incomum.
O incomum era desafiador, novo, interessante, dinâmico. E o incomum
propunha questões irrespondíveis ao poeta. Se se desnudar a tradição, o
que resta? O que há sob as vestes? O que é a natureza humana? O que
é a natureza humana a que se refere de modo tão superficial quando se
fala de "direitos naturais" ou "leis da natureza"? O que são? Por qual
razão se pode tomá-los como se fossem aceitos da mesma forma que as
questões relativas à tradição e à honra? Tanto em suas tragédias como nas
comédias, Shakespeare confronta-se com a essência da natureza humana,
a essência à qual tantas referências são feitas, mas que está, ela mesma,
oculta na escuridão. Shakespeare ilumina alguns pontos nesta escuridão.
Explora os extremos. Sabe que para homens e mulheres tudo é possível,
que todas as "combinações" são opções, que, talvez, não há limites. Ou
há limites? Creio que há e que Shakespeare nos fará retroceder e encarar
esses limites repetidamente. Shakespeare confronta a honestidade com a
honra; a honestidade é uma questão de consciência, de obedecer ao apelo
da consciência. Mas qual é o teor da consciência? O que a consciência
sabe? E como sabe o que sabe?
O duplo vínculo não é avaliado eticamente, nem tampouco é a
subordinação a ambos ou a subordinação a um ou outro dos conceitos

28
SHAKESPEARE COMO FILÓSOFO DA HISTORIA

conflitantes de natureza. Muitos heróis shakespearianos são formidáveis


— entre outras coisas — porque não podem optar entre os dois direitos,
as duas interpretações de "natural", ou porque optam por ambas. Este é
o caso de Hamlet e Lear, da rainha Margaret e, em outro contexto, de
Antônio. Há tantos tipos completamente diferentes de enredo e modos
completamente diferentes de abordá-los quanto há personagens. Outros
heróis e heroínas shakespearianos, entretanto, optam — e, às vezes, optam
de forma absoluta. A opção não é apresentada como uma opção entre
o bem e o mal, mas entre diferentes tipos de bem e mal, diferentes
interpretações de virtudes e vícios, entre evitar ou cair em diferentes
armadilhas.
Homens e mulheres que são inclinados a fazer o mal interpretarão,
tanto os direitos naturais quanto os direitos tradicionais — seja qual for
a escolha —, como permissão ou legitimação para fazer o mal, ao passo
que homens e mulheres inclinados ao decoro ou bondade interpretarão,
seja os direitos naturais, seja os direitos herdados, como permissão
ou legitimação para atos de bondade ou decoro, como um suporte da
honestidade ou da honra. Shakespeare não desenreda a interpretação
ou a auto-interpretação do desejo moral ou imoral. "O que vem antes?"
não é mais que uma pergunta teórica. E nada é fixado como "primeiro";
sempre pode haver surpresas.
Há uma diferença importante, no entanto, entre a escolha de
direitos herdados e o conceito de lei natural. A tradição oferece menos
espaço para que se faça algo novo ou para que se reinvente o próprio
caráter. Um homem puramente tradicional, seja bom ou mau, não ocupará,
portanto, o lugar central nas composições dramáticas de Shakespeare.
Contudo, um homem tradicional precisa de boa sorte moral num mundo
em que o tempo está fora dos eixos, uma vez que o preço pela ingenuidade
pode ser alto. Eis Adão, o criado mais leal de Orlando em Como Gostais.
Orlando diz: "O good old man, how well in thee appears / The constant
service of the antique world, / When service sweat for duty, not for
meed!" 5 (Como Gostais 2.3.57-59). Adão é uma personagem boa e leal.
Mas também tem boa sorte: seu senhor, Orlando, é um homem honesto,
e, conseqüentemente, seu serviço tradicional (antigo) não está fora do
lugar. Vilões também podem ter criados leais. Afinal, Rosencrantz e
Guildenstern serviam a Cláudio, e o faziam tão lealmente quanto Polônio. 5'Oh! Bondoso ancião! Como
O sádico torturador, criado de Cornualha, contudo, se rebela, e rebela-se é visível em ti o fiel servidor
dos tempos antigos, quando
com palavras que reafirmam a tradição: "Hold your hand, my lord. / I os criados derramavam o suor
have served you ever since I was a child, / But better service I never have de suas frontes pelo dever e
não pelo lucro" (Vol. II, p. 519).
done you / Than now to bid you hold" 6 (Rei Lear 3.7.70-72). Por esse
formidável serviço, ele paga com sua vida. 6"Contende vossa mão, meu
senhor: eu vos servi desde
Desejos e paixões intensos motivam, com menos freqüência, crimes minha infância, mas nunca
ou males baseados na (ou resultantes da) percepção tradicional de ser vos prestei melhor serviço do
que agora, ordenando que vos
"natural". Crimes e males que resultam da ausência de reflexão ou da contenhais" (Vol. I, p. 675).

29
AGNES HELLER

aceitação pura e simples de tudo são mais típicos aqui. Pois alguém que
obedece sem pensar, alguém que faz algo porque outros o estão fazendo,
sem pensar se é certo ou errado — para este homem a Dinamarca não é
uma prisão.
Disse, anteriormente, que Shakespeare nunca apresenta a escolha
entre dois conceitos de "natural" como a escolha entre bem e mal. Agora,
eu gostaria de propor a questão "De quem Shakespeare toma partido no
conflito entre os dois conceitos de natural?" Ele toma partido do conceito
de natural tal como aparece nas noções relativas ao direito natural, ou do
conceito de natural que identifica a natureza com a tradição? Creio que
Shakespeare seja, antes de tudo, curioso, que ele queira chegar ao findo
das coisas, nunca apresentando um argumento sem o homem ou a mulher
que o defenda com sua vida. Ainda, o fato de os heróis de suas tragédias
(e da maioria de suas comédias) serem homens e mulheres incapazes de
livrarem-se do duplo vínculo, e que se auto-interpretam e inventam, tanto
com a ajuda da idéia de tradição quanto com a de direito natural, insinua
que Shakespeare julga que personagens sujeitas ao duplo vínculo sejam as
mais interessantes, e seus segredos, mais dignos de investigação.
Permitam-me retornar brevemente aos dois conceitos de natural.
O primeiro conceito identifica a tradição com a natureza. É natural que
filhas obedeçam a seus pais (assim, Ofélia e Miranda comportam-se
"naturalmente", ao passo que Desdêmona, Julieta e Cordélia, não). É
natural que esposas subordinem suas vontades às de seus maridos (assim,
Titânia ofende a tradição quando recusa aceitar as vontades de Oberon).
É natural que irmãos devam amar uns aos outros (o ódio entre os tios de
Henrique VI não é natural) e proteger suas irmãs (Laertes comporta-se
naturalmente, Cláudio, não). É natúral que posses e títulos devam ser
herdados por filhos legítimos, que homens e mulheres devam viver suas
vidas plenamente, que os jovens devam morrer no campo de batalha,
lutando contra o inimigo de sua terra, ou envelhecer e morrer de morte
natural. É natural usar plenamente o poder que se tem, ainda que não seja
natural fazer mau uso dele. Da mesma forma, é natural perdoar. "Natural"
é, assim, idêntico a uma ordem hierárquica em que o rei consagrado
por Deus senta-se em seu inconteste trono; em que todos têm um lugar
designado pelo nascimento. Uma vez nascido numa posição social, faz-se
tudo o que está ao alcance para desempenhar bem o que se deveria, até
a morte. Tudo isso é, também, natural para Shakespeare.
De acordo com o segundo conceito de natural, é natural que cada
um tenha êxito conforme seus talentos e não de acordo com sua posição.
Nosso corpo é, do modo que é, natural, assim como nosso espírito. Da
mesma forma são nossas ambições, e nossa determinação em construir
um lugar para nós mesmos, com a ajuda de nossos talentos naturalmente
dados. É, também, natural seguir nossos desejos, amar alguém a quem
desejamos e que mais prazer nos dá. A liberdade é natural, pois nascemos

30
SHAKESPEARE COMO FILOSOFO DA HISTORIA

livres. "Natural" é a dádiva contingente com que a natureza dota o


indivíduo. Tudo isso é, também, natural para Shakespeare.
A ordem é natural, mas a desordem também pode ser; a tradição
e a lealdade são naturais, mas a busca pela liberdade pessoal e a auto-
realização das melhores capacidades também. Tudo é natural para
Shakespeare — e nada é.
O diálogo entre Perdita e Polixenes em Conto de Inverno formula
as mais profundas convicções de Shakespeare sobre a natureza. Perdita:
"For I have heard it said / There is an art which in their piedness shares
/ With great creating nature:" Políxenes: "Say there be, /Yet nature is 7 "Perdita: "Ouvi dizer que -

existe uma arte que consiste


made better by no mean / But nature makes that mean. So over that art / em fazer flores com uma
Which you say adds to nature is an art / That nature makes.... This is an variedade de cores tão grande
como a própria Natureza
art /Which does mend nature-change it rather; but / Art itself is nature." criadora." Polixenes: "É
Perdita: "So it is." Polixenes: "Then make your garden rich in gillyvors, / possível. Entretanto, não há
meio de emendar a natureza
And do not call them bastards” (Conto de Inverno, 4.3.87-98). que não haja sido gerado
Esta é a filosofia na poesia de Shakespeare: não há natureza humana pela Natureza. Essa arte que,
segundo vós, aperfeiçoa a
sem arte; contudo, a arte é natureza humana, desde que transforme a natureza, é uma arte que foi
natureza por meio da natureza mesma. Há um limite para a arte, e este criada pela Natureza. (...)
A arte que corrige assim a
é a natureza; e há um limite para a natureza, e este é a arte. Cada uma e natureza, ou melhor, que
toda flor é o jardim do mundo, e a história são ambas, natureza e arte. a transforma, é sempre a
Natureza." Perdita: "É isto
Pode haver belos "bastardos" (o conceito de direito natural), assim mesmo." Polixenes: "Por
conseguinte, enriquecei vosso
como também encontramos um régio jardim metafórico desleixado e jardim de goivos e não os
negligenciado por um rei legítimo. Assim aprendemos em Ricardo H: chameis de bastardos." (Vol.
p. 1009).
"[O]ur sea-walled garden, the whole land / Is full of weeds, her fairest
flowers choked up, / Her fruit trees ali unpruned, her hedges ruined, 8 "Nosso jardim murado pelo
mar, toda a terra, está cheia
Her knotes disordered, and her wholesome herbs / Swarming with de ervas más, suas mais
ca terpillars?" 8 (Ricardo II, 3.4.44-47). lindas flores estão sufocadas,
suas árvores frutíferas se
Qualquer que fosse o julgamento pessoal de Shakespeare, seus encontram todas incultas,
heróis e heroínas mais fascinantes são os não tradicionais, sejam bons ou suas aléias arruinadas, seus
canteiros em desordem e
maus, cômicos ou trágicos. Eles questionam, confrontam e ridicularizam todas as suas plantas úteis
pelo menos algo crucial, e, muito freqüentemente, absolutamente tudo que atormeatadas pelas lagaitas?"
(Vol. Ill, 116).
se crê seja natural na ordem tradicional. A seguir, ilustrarei brevemente
a moderna lei natural ou a teoria do direito natural com as palavras de 9 "A honra me. aguilhoa para
a frente. Sim, mas se a honra
três dos seus mais determinados advogados shakespearianos: Falstaff, me levar para o outro mundo,
Julieta e Edmundo. quando for para a frente?
Será que a honra pode repor
Ouçam Falstaff que, estando no campo de batalha, faz alguns uma perna? Não. Ou um
comentários sobre a principal virtude tradicional da ordem feudal. Ele braço? Não. Não tem a honra,
então, nenhuma habilidade
fala sobre morrer por amor à honra: "[H] onor pricks me on.Yea, but em cirurgia? Não. Que é a
how is honor prick me off when I come on? How then? Can honor set honra? Uma palavra. Que
há nesta palavra honra? Ar.
a leg? No. An arm? No. Or take away the grief of a wound? No. Honor Encantadora vantagem! Quem
hath no skill in surgery, then? No. What is honor? A word. What is in a possui? Quem morreu na
quarta-feira. Ele a sente? Não
that word "honor"? What is that "honor"? Air. A trim reckoning. Who (...) A honra é um simples
hath it? He that died oWednesday. Doth he feel it? No.... Honor is mere escudo d'armas e assim
termina meu catecismo" (Vol.
scutcheon. And so ends my catechism" 9 (1 Henrique IV, 5.2). III, 198).

31
AGNES HELLER

Ouçam Julieta falando no balcão: "Tis but thy name that is my


enemy. /Thou art thyself, though nota Montague. / What's Montague? It
is nor hand, nor foot, / Nor arm, nor face, nor any other part / Belonging
to a man... What's in a name? That which we call a rose / By any other
word would smell as sweet... Romeo, doff thy name, / — and for thy
name which is not part of thee — / Take all myself" 1° (Romeu e Julieta,
2.1.80-91).
Ouçam, finalmente, Edmundo: "Thou, Nature, art my goddess.
To thy law / My services are bound. Wherefore should I / Stand in the
plague ofcustom and permit /The curiosity ofnations to deprive me / For
that I am some twelve or fourteen moonshines / Lag of a brother? Why
`bastard'? Wherefore 'base', / When my dimensions are as well compact,
/ My mind as generous, and my shape as true / As honest madam's issue?
Why brand they us / with 'base', base bastardy... / Legitimate Edgar, I
must have your land" " (Rei Lear 1.2.1-16).
No que diz respeito à análise desta passagem, pode-se desconsiderar
a maldade de Edmundo. Edmundo, tanto quanto Gloucester, usa a teoria
da lei natural para justificar seu mau intento. Não é pelo fato de Edmundo
ter nascido bastardo que ele é mau, assim como não é por causa de
1 ° "Somente teu nome é meu
inimigo. Tu és tu mesmo, sejas seu nascimento legítimo que Edgar é bom. (Por exemplo, na tragédia
ou não um Montecchio. Que é Rei João, o bastardo .é uma personagem leal e atraente, ao passo que as
um Montecchio? Não é mão,
nem pé, nem braço, nem rosto, perversas Goneril e Regana são filhas absolutamente legítimas de Lear.)
nem outra parte qualquer No fundo, Edmundo é motivado pela inveja e pelo ciúme. Ele tem inveja
pertencente a um homem.
(...) Que há em um nome? O de Edgar, não por ser legítimo, mas por ser bom. Edmundo sublima
que chamamos de rosa, com sua inveja e ciúme, suas paixões mais intensas (depois do desejo de ser
outro nome, exalaria o mesmo
perfume tão agradável. (...) amacio,, pela racionalização. Em termos freudianos, Edmundo não tem
Romeu, despoja-te de teu nenhum superego e seu ego é fraco; contudo, é atormentado por desejos
nome e, em troca de teu nome,
e não faz parte de ti, toma- e paixões intensos e auto-destrutivos. Ele é, porém, muito engenhoso e
me toda inteira!" (Vol. I, 307). extraordinariamente inteligente. É hábil em argumentação racional. Usa
11 "Tu, Natureza, és minha sua inteligência para fortalecer seu ego frágil. Consegue fortalecer seu
deusa; meus serviços estão ego com a vigorosa argumentação justificatória acima citada. Defendo
ligados à tua lei. Por que
me submeter ao açoite d O esta interpretação pela razão de Edmundo (ao contrário de Gloucester)
costume e permitir que as não justificar o mal que pratica. Justifica roubar as posses de seu irmão
nações impertinentes me
despojem, com o pretexto e tornar-se o único senhor pela razão de que posse, distinção e poder
de que vim ao mundo umas lhe são devidos (por natureza), e de que roubar seu irmão, por meio da
doze ou quatorze luas depois
de meu irmão? Por que calúnia, é justo. De maneira interessante, Edmundo joga até mesmo o
bastardo? Por que vil, quando amor de seu pai em seu cesto de auto-justificação.
minhas proporções estão
de tal modo conformadas, Todas as três passagens são argumentos que justificam uma ação.
minha alma tão generosa e Ainda assim, não meramente justificam uma ação, mas também uma
meu corpo tão exato quanto
possam ser os descendentes tu geral para com a vida, um modo de vida que desafia a tradiçã o.
atitude
de uma honesta senhora? Por Os argumentos provam que não é racional representar, ou continuar a
que estigmatizar-nos com a
infâmia, com a vileza, com a representar, um papel tradicional. São argumentos nominalistas. Palavras
bastardia? (...) Legitimo Edgar, como "Montéquio", "bastardo" ou "honra" são apenas palavras. Não são a
hei de possuir tuas terras"
(Vol. I, 634). coisa em si. A coisa em si é a natureza que se pode pegar: a pema, o braço.

32
SHAKESPEARE COMO FILÓSOFO DA HISTÓRIA

É a natureza que se pode ver: o corpo; a natureza que se pode expor: o


intelecto; a natureza que se sente: o desejo. O desejo de viver, de amar,
de obter riqueza e poder. O passado, com seus costumes, preferências,
inimizades e amizades, é descartado. Para eles não há passado. Há somente
o futuro, o futuro da vida, do amor e do poder. O ato de hoje é dominado
pelo futuro. Os três argumentos descartam a causa efficiens, como "Eu fui
concebido fora do casamento, eu sou bastardo", ou "eu sou filha de um
Capuletto que odeia os Montéquios", ou "eu sou um cavaleiro obrigado a
viver e morrer honrosamente". Isto não é o que eles são. Eles são apenas
eles mesmos, suas qualidades e potenciais inatos e sua resolução de viver
à altura deles, de tornarem-se o que são. Mas também julgam os outros
de acordo com as presumidas qualidades inatas dos outros. Para Julieta,
Romeu não é mais um Montéquio. Para Falstaff, o Príncipe Hal não é
um príncipe. Para Edmundo, apenas Regana e Goneril existem, e são
— como crê — iguais a ele. Dos três, apenas Falstaff erra o alvo. Julieta e
Edmundo serão confirmados e Falstaff, traído.
Julieta, Edmundo e Falstaff empregam a racionalidade como um
artifício deslegitimador. Pode-se deslegitimar uma coisa somente se se
legitima outra. Todos os três legitimam a natureza, a lei da natureza,
o direito da natureza, conforme seus próprios meios e maneiras. Sua
racionalidade difere-se da do ambiente que os cerca. Mulheres e homens
de tradição deixam-se guiar e enganar por fantasmas, por meros nomes,
como família, honra e lealdade ao senhor.
A justificação argumentativa de ações e decisões (dianoia) é tão
freqüente em Shakespeare como era nas tragédias antigas. Sem dianoia
não pode haver nenhum drama conforme o entendemos. Em Shakespeare,
tais justificativas e racionalizações (sejam dialógicas ou monológicas) estão
de antemão disponíveis. As personagens shakespearianas freqüentemente
usam palavras simbólicas e termos de valor ("meros nomes", na
interpretação nominalista) como dispositivos argumentativos, como
cartas que se pode sempre jogar na esperança de sucesso, como meios
para seu próprio avanço. ( Já fiz menção do caso típico em peças históricas:
forjar a legitimidade movido pela fome de poder). Algumas personagens
shakespearianas argumentam exclusivamente em situações de escolha.
Outras se justificam racionalmente em retrospectiva, em auto-defesa.
Julieta difere-se da maior parte das mulheres apaixonadas shakespearianas.
Ela não emprega meros nomes para se auto-justificar, mas levanta-se
contra eles completamente. Em Tudo está bem quando termina bem, Helena
manipula a tradição e a usa, com o auxilio de sua futura sogra, basicamente
para ganhar o prêmio que busca: o amor de seu amado. Margaret e Suffolk
(mulher e homem feitos por si) mantêm mal as aparências. Sua relação
é por demais transparente, mas prendem-se às aparências tradicionais.
Julieta e Desdêmona, contudo, livram-se de todas as aparências: casam-se
secretamente, sem permissão paterna. Desdêmona justifica seu casamento

33
AGNES HELLER

depois que o pai não tem mais escolha. E há outros tipos de justificativa.
Muitos nobres que se comportam como covardes no campo de batalha
justificam sua falta de honra com honra. Há vários vilões engenhosos em
Shakespeare, alguns, homens feitos por si, alguns, descendentes de sangue
real, alguns, homens de vis ambições (como lago). As mais complexas
personagens shakespearianas não aceitam completamente o argumento
da lei natural, nem são puramente tradicionalistas. Sofrem e agem sob
o peso do duplo vínculo, talvez por razões morais, talvez por causa de
suas singulares responsabilidades, talvez porque ambos argumentos são
demasiado simples para que os aceitem. No caso de Hamlet, todas as
três "razões" se amalgamam. O herói mais brilhantemente inteligente de
Shakespeare, sem dúvida, não é o mais racional.
O tempo está fora dos eixos. Há sempre razão e desrazão nas
histórias. O tempo está fora dos eixos quando razão e desrazão são
heterogêneas, quando atores não compreendem o que estão fazendo, e
compreendem ainda menos o que outros estão fazendo ou fizeram.
As peças históricas de Shakespeare não são histórias de detetive,
embora haja assassinatos em todo lugar (tanto reais quanto potenciais),
e quase todo mundo é uma vítima real ou potencial. Os motivos
que impelem um homem ou mulher, e não outra pessoa, a se tornar
assassino, nunca são claros, e tampouco são as razões para ser vitimado.
O papel do acidente, do acaso, da contingência dilata. Atos contingentes
freqüentemente dão início a uma corrente de acontecimentos, e, neste
sentido, os acontecimentos não têm causa alguma. Entretanto, o
desdobrar-se da corrente de acontecimentos se acelera próximo ao fim.
A corrente de acontecimentos que desafia o presente e o passado como
se fossem nada, também pode terminar no nada. Ouçam a forma como
Macbeth, após ter mencionado o nome do thane de Cawdor e ter sido
burlado pelas bruxas pagãs, fala consigo mesmo: "My thought, whose
murder yet is but fantastical, Shakes so my single state of man that
function / Is smothered in surmise, and nothing is / But what is not"
12 (Macbeth 1.3.138-41). "Nothing is but what is not" é a afirmação

mais forte possível jamais feita contra o passado no presente, contra a


corrente da determinação, uma afirmação absoluta pela liberdade absoluta
e absoluto niilismo. Mas sabemos que nada resultou em nada, que este
lI
12 “
Meu pensamento, nothing is but what is not" é a absoluta auto-desilusão, a traição absoluta.
cujo assassinato / Inda é (Coriolano também descobrirá esta verdade no ato 5 de Corja/ano.) Nunca
fantástico, tal modo abala /
A minha própria condição um grande herói grego foi traído por Apoio ou Pítias na dimensão em
de homem, / Que a razão se que Macbeth é traído pelas bruxas. Pois promessa alguma de um deus
sufoca em fantasia / E nada
existe, exceto o inexistente" ou deusa gregos jamais excitou a ilusão de liberdade absoluta, de auto-
(SHAKESPEARE, William. criação ex nihilo, pois "nothing is but what is not". No caso do artista,
Macbeth. Trad. Barbara
Heliodora. In: SHAKESPEAFtE, a creatio ex nihilo desconsidera, mas não aniquila. Contudo, creatio ex
Hamlet e Macbeth. nihilo, onde creatio ex nihilo é também aniquilação e auto-aniquilação, é
Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1995, pp. 202-3). absoluta irracionalidade: nem causa efficiens nem causa finalis.Jamais houve

34
SHAKESPEARE COMO FILÓSOFO DA HISTÓRIA

assassinato mais sem sentido que o assassinato de Duncan por Macbeth.


De fato, no início, não era sem sentido para Lady Macbeth. Para ela, o
feito perdeu o sentido, não repentinamente, não no momento de ter sido
cometido, mas com o tempo.
E isto é decisivo. Pois mesmo que não haja um relato completo
do porquê e do "para quê" (porque X se torna assassino e não Y), toda
personagem é marcada pelos seus atos: até onde uma personagem vai, a
que ponto uma personagem se detém (em assassinato, traição, mentira,
manipulação, e assim por diante), tem importância absoluta. Pois há
um ponto do qual é impossível retornar. Uma pessoa pode se inventar
e se reinventar. Seu caráter se desdobra, e ela pode começar novamente.
Contudo, depois de um certo ponto (e há tal ponto em toda tragédia
shakespeariana), a personagem entra em queda livre: a aceleração. Não há
retorno a partir do momento que a queda livre começa. Esta é a razão de
Lukács ter dito no ensaio "A Metafisica da Tragédia" (em seu A Alma e as
Formas) que o herói trágico está morto no momento que surge em cena.
De minha parte, não creio que seja assim. Creio que as personagens de
Shakespeare podem se reinventar até um certo ponto. Onde este ponto
se situa na estrutura do drama é uma outra questão. ( Já está, por exemplo,
em Macbeth e Rei Lear, na primeira cena, mas, em Otelo, está somente
no ato 3.) Contudo, quando há um ponto de onde não se pode retornar,
a queda-livre se inicia. Quando começa a aceleração da queda-livre (e
se começa, pois nem sempre acontece), os heróis trágicos já estão — no
sentido lukácsiano — mortos em licença. São tão bons quanto mortos.
Os dramas históricos e as tragédias de Shakespeare são semelhantes
às histórias de detetives apenas num sentido sutil, da mesma forma que,
alguns séculos depois, as novelas de Dostoiévski serão. Há crimes e
criminosos, há "maldade debaixo do sol", há — para citar Horácio —
,
'unnactural acts" (medidos em ambos os sentidos da palavra "natural"). Há
sangue, crueldade, tortura; há vítimas, tanto culpadas quanto inocentes.
Há também retaliação, vingança, punição, e, às vezes, até mesmo justiça.
Contudo, as tragédias e peças históricas de Shakespeare diferem-se até
mesmo de sutis histórias de detetives, porque, ao contrário de histórias de
detetive, aqui tudo é, ou pelo menos pode ser, contingente; não há lógica
nenhuma. Embora, durante algum tempo, não saibamos, com certeza,
qual dos irmãos Karamazov, no romance de Dostoievski, é o parricida,
compreendemos porque o velho Karamazov foi (ou poderia ser) a vítima
13 "Assim, ouvireis falar
do assassinato. Mas nada há no caráter de Ricardo II e Henrique VI (para de atos incestuosos,
não falar da esposa e filhos de Macduff1) que os torne prováveis alvos sanguinários e monstruosos;
de julgamentos precipitados,
de assassinato violento. Citando Horácio mais uma vez: "So shall you de mortes casuais, de mortes
hear / Of carnal, bloody, and unnatural acts, / Of accidental judgements, causadas pela astúcia ou pela
violência, e, como remate,
casual slaughters, Of deaths put on by cunning and forced cause; / And, de conspirações frustradas,
in this upshot, purposes mistook / Fall'n on th'inventor's heads"" (Hamlet caindo por descuido nas
cabeças dos instigadores"
5.2.334-38). Horácio enfatiza o caráter acidental, casual e desnaturado (Vol. I, 617).

35
AGNES HELLER

da tragédia. Isto não é uma história de detetive; isto é história.


Se o assassinato é premeditado, o espectador geralmente é
informado sobre o plano bem antes de sua execução. Se o assassinato
não é premeditado, o espectador está na posição de ambos, o assassino e as
vítimas: é iniciado no ato pelos atores. Se o assassinato ocorreu no passado,
o espectador e os atores normalmente estão numa posição semelhante.
Nenhum deles pode saber, com certeza, em alguns casos, se o assassinato
aconteceu, ou, caso isto seja do conhecimento geral, quem foi o assassino.
É quase sempre impossível verificar o fato de assassinatos passados nas
peças de Shakespeare. Mais precisamente, não é importante verificá-los
como fatos. Pode-se mencionar como testemunha, no caso de Shakespeare,
o detetive mestre de Agatha Christie, Poirot: o que importa não são os
fatos, mas as "pequenas células cinzentas". Tolstói não compreendia isto
quando criticou a irracionalidade dos enredos shakespearianos.
Quer seja o espectador iniciado pelo assassino, quer seja uma
testemunha ocular, ou quer seja um detetive tomando parte na revelação
de crimes passados, ele nunca encontrará uma resposta satisfatória para
as simples questões relativas ao porquê de certo homem ou mulher se
tornar um assassino e outro, a vítima. O véu nunca é totalmente levantado.
Todos sabemos que os dramas de Shakespeare são inesgotáveis, pois
nenhuma interpretação é final. O que é, talvez, menos evidente por
si mesmo, é o fato de compartilharmos a sensação de desesperança de
uma interpretação final com as personagens dos dramas shakespearianos.
O atormentado Hamlet reinterpreta os atos de sua mãe pelo menos
três vezes durante seu confronto (e poderia continuar). Mesmo o frio e
constantemente politicking Otávio interpreta e reinterpreta, pelo menos
três vezes, as motivações e as personalidades de Antônio e Cleópatra. E
aqui a peça termina. Mesmo numa única cena, o ato e a palavra de um
herói podem ser interpretados por outro em vários sentidos. Otelo usa os
poucos minutos antes de sua morte para sua auto-intepretação final, que
é final somente porque ele morre. Não sabemos se lago, que, nesta cena,
resolve permanecer em silêncio, aceitou esta auto-interpretação. Nem
sequer sabemos se os venezianos que o cercavam a aceitaram. Nós, que
agora estamos vivos, podemos aceitá-la ou rejeitá-la; podemos continuar
reinterpretando (e reinventando) Otelo. Não precisamos aceitar a auto-
interpretação de uma personagem pelo seu valor de face, mesmo quando
a personagem parece ser tão plenamente racional e aberta quanto Richard
Gloucester em seus monólogos. Homens e mulheres interpretam a si
e a seus atos várias vezes, e sempre de forma diferente. Não há auto-
interpretação final.
Na visão de História de Shakespeare, o importante não são os
fatos, mas as pequenas células cinzentas: o modo de entender, de pensar
ou imaginar os fatos. A pior historiografia seria, para Shakespeare,
acreditar em uma única interpretação de um fato como sendo algo final.

36
SHAKESPEARE COMO FILÓSOFO DA HISTÓRIA

Esta é a lição da história do lenço em Otelo. Se se vê um lenço, vê-se


este lenço. Um lenço é uma coisa, um fato. Está aqui ou ali; está na mão
de uma ou outra pessoa. Perceber o lenço e considerá-lo, ainda não é má
historiografia. É má historiografia atribuir uma única interpretação a um
fato (neste caso, que Desdêmona deu o lenço a seu amante), porque, ao
fazer assim, identifica-se o fato com esta interpretação e com a teoria. E
então, finalmente, com toda a probabilidíde, o fato será mal interpretado.
Compreender como as células cinzentas estavam funcionando na mente
de um lago ou de uma besdêmona, teria sido, para Otelo, um bom
trabalho de detetive. Ao invés disso, ele acreditou na única interpretação
de um fato que veio a ser um não-fato. Isto o tomou um assassino e levou
à sua queda.
Como as coisas "realmente" aconteceram é uma questão relevante
para as personagens de Shakespeare e para o próprio Shakespeare. Mas
"realmente" não é um fato; é um espaço que permite várias interpretações.
Que Richard Gloucester, a se tornar mais tarde Ricardo III, era um
assassino tortuoso, deixa de ser segredo à medida que a peça (A Tragédia
do Rei Ricardo III) começa a se desdobrar. No fim do drama, este fato
torna-se absolutamente claro a todos, antes de tudo, porque Ricardo
(pelo menos no drama de Shakespeare) nem sequer cuida de cobrir os
vestígios de seus feitos criminosos. Shakespeare torna esta circunstância
absolutamente clara porque quer que os espectadores aceitem sua
interpretação que, dessa vez, é muito forte. Shakespeare, no entanto,
limita aqui apenas a interpretabilidade de atos, não de motivações ou
de caráter. No que diz respeito a motivações e caráter, Shakespeare faz
grandes concessões ao livre jogo de nossa imaginação. Mas Ricardo III é
uma exceção entre as peças de Shakespeare. Em quase todas as outras,
muitas coisas permanecem irresolutas, abertas, incertas, inacabadas — não
apenas para os espectadores, mas também para as personagens da peça.
Vamos começar pelo começo. A corrente de eventos que continua
com as Guerras das Duas Rosas é provocada por uma acusação.
Bolingbrook acusa Mortimer do assassinato (ou do massacre) do Duque
de Gloucester, tio do rei. Também anuncia, sem detalhar, que considera o
rei responsável por instigar o torpe ato. Mortimer é acusado de assassinato
na presença do rei. Mortimer se defende e declara sua inocência. A questão
nunca é decidida no drama. Nunca chegaremos a saber a verdade sobre
a morte de Gloucester. Além disso, na primeira cena do ato 4, a cena do
início da peça quase se repete, desta vez ante o rei Henrique IV, e numa
orquestração quase cômica. Aumerle (denunciado por Bagot) é acusado
do mesmo crime. Mortimer está morto, e não há nenhuma testemunha
viva — apenas condes e duques que acreditam (ou querem acreditar) em
alguma versão da história.
Aqui vem a importância das células cinzentas. Shakespeare retrata
homens e mulheres que agem com base em suas crenças e crenças

37
AGNES HELLER

simuladas. Concebem como verdade o que desejam que seja verdadeiro:


esta é a verdade para eles. Se alguém odeia Mortimer, crê que tenha
assassinado Gloucester, e, reciprocamente, se supõe que tenha assassinado
Gloucester, o odeia. A aparência da verdade é a verdade para aqueles que
nesta aparência acreditam. Pouquíssimas coisas podem ser estabelecidas
fora de certa margem de dúvida, e nada pode ser estabelecido sem dúvida.
Hamlet é o único grande personagem shakespeariano que quer possuir
toda a verdade; não tolera a fusão de ficção e fato. É o oposto exato de
Otelo: quer possuir a verdade sem "interpretação"; quer a comprovação
absoluta. Seu absolutismo intelectual é tão absurdo quanto a insensatez
de Otelo. Nós, como espectadores, sabemos muito bem disso. Sem termos
sido recebidos na confidência, juntamente com Harnlet, da mente de
Cláudio (ao testemunhar o rei auto-indulgente em sua prece solitária),
nunca poderíamos saber se fora ele o culpado do assassinato do velho
Hamlet. A verdade do fato depende de uma confissão silenciosa que nem
Hamlet, nem nós, poderíamos possivelmente escutar. Shakespeare apresenta
o passado no presente, e o pensamento na fala. Este torpe rei em torpe
prece é apenas outro fantasma. Mas isso é importante? Cláudio é um
assassino porque se transforma em um. E, porque se torna um assassino,
é e sempre tem sido — um assassino. O te/os da personagem é tudo.

38

Você também pode gostar