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Carlos Russo Jr. há 3 horas 13 minutos para ler

“A Letra Escarlate” e a alma profunda norte-


americana.

“A Letra Escarlate” pratica uma dissecação da alma americana no seu nascedouro, da águia que no
futuro tornar-se-á o símbolo de um Império. D.H. Lawrence, o autor de “O amante de Lady
Chatterley”, expressa que: “O olhar do leitor precisa ir além da superfície da arte americana para
ver o diabólico interno de seu significado simbólico. Do contrário, tudo não passaria de
infantilidade. A consciência deliberada de americanos tão loiros e de fala tão mansa, e, por
baixo, uma consciência diabólica. Destrua! Destrua! Murmura a consciência profunda. Ame e
produza! Ame e produza! Repete a consiência aparente. E o mundo só ouve esse grasnido.
Recusa-se a ouvir o murmúrio subjacente da destruição. Até o momento em que é obrigado a
ouvir. O americano precisa destruir. É o seu destino.”
O autor de “A Letra Escarlate” é Nathaniel Hawthorne, um escritor naturalista, poético “a la”
Turgueniev. “Nós não podemos evitar nós mesmos”, Hawthorne nos confessa, “pois embora saibamos
o que devemos ser e o que seria muito belo e encantador que o fôssemos, ainda assim, não
conseguimos sê-lo”.
Melville, o épico escritor de “Moby Dick”, dizia a respeito de seu amigo e escritor: “Hawthorne diz
Não! Nem o próprio diabo conseguiria fazê-lo dizer Sim, pois todos os homens que dizem sim
mentem… e todos os que dizem não estão na condição de felizes judiciosos viajantes que percorrem a
Europa sem bagagens: eles cruzam as fronteiras da Eternidade com apenas uma bolsa de viagem- quer
dizer, o próprio Ego.”
“A Letra Escarlate”, escrita em 1850, não é um romance agradável, gracioso. Está mais para uma
espécie de parábula, na qual devemos buscar os sentidos ambíguos de cada episódio, de cada
personna; uma história mundana com um sentido demoníaco, de destruição.
Phelps considerou “A Letra Escarlate” o mais importante livro jamais escrito no Ocidente, mantendo-
o dentre os quinze maiores romance da humanidade! E o mínimo que podemos considerar a respeito
deste, um romance de não mais de duzentas páginas, é que ele é surpreendente, amargo e fabuloso!
Uma história profundamente humana que nos dá o retrato sombrio da comunidade puritana, do
puritanismo calvinista e da hipocrisia nele enrustida, hipocrisia que trazemos, em maior ou menor
dosagem, dentro de nós mesmos. O pecado, a culpa, o ódio, a ausência de amor; a presença da luxúria,
da paixão, do destemor e da covardia, da coragem e do orgulho, da traição e da pusilanimidade; a
automutilação e o sado-masoquismo, todos eles estão presentes e marcados a ferro e fogo nos

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personagens do drama. Esses são os componentes dessa história que ocorre entre imigrantes ingleses
nas terras de Boston, por volta de 1650.
Síntese do romance.
Na introdução, o narrador fala-nos sobre a Alfândega de Salem. Nada mais que um desabafo irônico
sobre o esquenta-banco dos serviços públicos. Serviço esse que ele havia acabado de perder quando se
dedicou a escrever seu maior romance. Ele é o chefe da alfândega; nas horas vagas, encontra no fundo
de um baú que estava por ali há uns duzentos anos, uma estranha letra A, bordada a ouro. Sua
pesquisa lhe diz que tem em mãos o símbolo que os adúlteros deveriam carregar por toda a vida, na
Boston puritana de 1650. No mesmo baú, ele ainda encontra papéis que o conduzirão a um triângulo
amoroso e a uma Pérola, fruto do pecado. O símbolo do adultério, A Letra Escarlate, sobreviveu ao
tempo e ainda subsiste. Subsiste no preconceito, na submissão feminina, e na vontade de submissão de
cada ser humano.
A ação se inicia quando a bela Hester Prynne é exposta, com sua filha de três meses, à execração
pública. Sobre o peito, no lado esquerdo, a Letra A, em cor escarlate. Ela é levada da prisão, lugar de
uma mulher adúltera, para ser exposta no pelourinho na praça do mercado, ao lado da cadeia.
As primeiras ações de toda comunidade puritana que se implantava na Nova Inglaterra, consistiam em
erguer uma cadeia e seu pelourinho da humilhação, castigo, torturas e execução, assim como o
cemitério comunitário e uma pequena igreja. A lei e a religião eram para aquela gente quase a mesma
coisa, “e em cuja mentalidade ambas se fundiam de tal maneira que os mais severos e os mais suaves
atos de disciplina coletiva eram, igualmente, veneráveis e terríveis”.
Na cenário de execração da pecadora, numa plataforma elevada da igreja está representado o poder: o
governador, o mais velho dos sacerdotes de Boston e um jovem pastor, o senhor Dimmesdale,
chegado recentemente da Inglaterra, dono de grande fervor e eloquência religiosa. E, logicamente, a
guarda garantidora do poder, com suas lanças e porretes.
Cabe a Dimmesdale chamar Hester à responsabilidade de delatar o seu amante, o pai da criança
nascida em pecado. Hester se nega, jamais dirá! Prefere carregar só a sua culpa e voltar à prisão com
sua filha, a rebaixar-se perante aquela assembleia rude, invejosa, sequiosa de seu sangue e de seu
romance.
Na primeira linha da multidão,que se comprime para a tudo assistir, está um homem mais velho, testa
inteligente, olhos atentos, recém-chegado à terra. É Roger Chillingworth, o marido de Hester, por
todos desconhecido, que dela está separado há anos. Apresenta-se na cidade como um misto de
médico e de mágico, versado em ervas curadoras.
No dia seguinte ao da execração pública de Hester ele é chamado à cadeia para atender à criança.
Hester lhe diz: “Não te fui fiel”. O marido: “A culpa é tanto tua como minha. Eu sou um intelectual,
velho e tu és uma bela mulher; por que havíamos de nos casar?” Ele compreende a traição, mas não
pode perdoar; quer, sim, saber quem foi o cúmplice no sexo com Hester e puni-lo.
Ele fareja que o pastor Dimmesdale seja o pai da criança, de Pérola. E durante sete anos o
atormentará. Dimmesdale até mesmo “confessará” o seu pecado do púlpito, mas ninguém está
interessado em compreender sua confissão, exceto o seu grande inimigo, que se faz passar por seu
salvador.
Hester, agora em liberdade, vive de suas rendas e agulhas, distante de todos, numa pequena cabana,
absolutamente só com Pérola. Chegamos, então, aos sete anos do nascimento da garota. A história
caminha para seu apogeu e desenlace.
A luz e a sombra alternam-se nos personagens e na natureza. Pérola é mais luz que sombra, enquanto
Hester é penumbra. Ela somente consegue ser luz quando retoma a sua sensualidade, que por tantos
anos retraiu-se e, nesse momento, arranca o seu A da vergonha e tenta convencer o pastor Dimmesdale
a fugirem os três para a Austrália ou para Londres, para a vida.
Já o pastor possui dois momentos de luz; um primeiro quando, após ouvir na floresta a proposta de
Hester, imagina por momentos abandonar a hipocrisia da farsa puritana. Mas a sombra logo o ofusca
novamente. No desfecho da história, um segundo vislumbre de sol o iluminará já no pelourinho,

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novamente. No desfecho da história, um segundo vislumbre de sol o iluminará já no pelourinho,
quando conta a todos a verdadeira paternidade de Pérola. Entretanto, ele jamais deixaria a sua
comunidade.
Melville comenta: “O negrume é como uma nuvem negra que só se torna visível e audível pelos traços
fugazes dos relâmpagos e trovões que o exprimem. As brilhantes cintilações que se dão a ver não são
senão franjas a jogar sobre as bordas de nuvens de tempestade.”
Sobre o pecado.
Alguém acredita que Adão nunca havia transado com a bela Eva, estando os dois juntos e nus naquele
edílico paraíso, onde cada animal tinha seu par? Transado tinham, sim, e muito, como um casal de
animais. Mas a “coisa” somente virou pecado por causa da árvore do conhecimento, da eterna e
inocente maçã que dela frutificou. O sentir, que era só instinto, antecedeu a consciência. Foi quando
Adão olhou para si mesmo, possivelmente em seu reflexo nas águas cristalinas de alguma lagoa e,
depois, para sua fêmea Eva e disse-lhe: “O que está acontecendo entre nós? O que estamos fazendo?
Eu tenho algo que você não tem...” Assim começa o conhecimento, a consciência. Eva também se
interrogou, pois os dois queriam saber os porquês de certas coisas, o que, definitivamente, não
acontecia com os seus parceiros animais.
E assim nasceu o pecado, não pela prática, mas pelo conhecimento de sua existência. Eles se
olharam, examinaram, chegaram até a sentir algum constrangimento pela nudez: “Transar é pecado,
disseram um ao outro”, e esconderam-se. E Deus, vendo contrariada a regra inventada e imposta por
ele mesmo, expulsou-os do paraíso. Sendo suas as leis, o que mais ele poderia ter feito? Agora o
pecado estava criado e praticado; hora da maldição! Acionado pelo Empíreo lhes berrou o anjo
pretoriano Miguel: “Fora com os imorais!” De espada flamante em punho expulsou-os!
O pecado é uma coisa esquisita. Ele não é a ruptura de um mandamento divino, e sim, a ruptura de
nossa própria integridade. Por exemplo, o pecado de Hester e Arthur Dimmesdale somente foi pecado
porque os dois fizeram o que acharam que era errado fazer. Se quisessem realmente ser amantes, e se
tivessem tido a coragem sincera de sua própria paixão, não haveria pecado, mesmo que o desejo fosse
apenas passageiro.
Mas foi exatamente o fato de fazerem aquilo que eles próprios achavam errado que criou o principal
encanto do ato! Pois o homem inventa o pecado para poder desfrutar do sentimento da transgressão. E
também para esquivar-se à responsabilidade de suas atitudes. Um Pai Divino lhe diz o que fazer. E o
homem, travesso, não obedece. Depois, trêmulo, o homem ignóbil abaixa as calças para apanhar.
Logo o pecado é sempre a consciência dos próprios atos, a vigilância das atitudes. Já o instinto, por
seu lado, detesta ser conhecido, ele se dá melhor na privacidade. E a consciência espiritual do homem,
de algum modo, detesta a força obscura do instinto, tenta ocultá-lo, mantê-lo numa certa privacidade,
em penumbra.
Na realidade somente existe um castigo real: o da perda da própria integridade. O homem nunca
deveria fazer aquilo que acredita ser errado. Porque, se o fizer, perde sua simplicidade, sua
integridade, sua honra natural. Quando se quer fazer alguma coisa, das duas uma: ou acredita-se
sinceramente que fazê-la é de sua natureza ou, então, tem que esquecê-la. Uma coisa na qual se
acredita de fato não pode estar errada, na pior das hipóteses será a sua mentira.
Ambiguidades do romance.
Temos o pastor Dimmesdale, o puro, possuidor da palavra divina. Aos pés dele a bela Hester, a
puritana. A primeira coisa que ela faz é seduzi-lo. E ele deixou-se seduzir gostosamente. Ah, pecado
suculento, pudera! No cinema quem encarna Hester é Dame Moore! Ele era um rapaz tão puro, aliás,
da pureza de um idiota! A própria psiquê americana! Claro que a melhor parte da brincadeira era
manter uma aparência de pureza. E o maior triunfo da mulher é seduzir um homem, especialmente se
ele for, aparentemente, “puro”, difícil, disputado.
O alfa e o ômega, o princípio e o fim! A é a Letra Escarlate, A de adúltera, A do alfa, que Hester
carregará nas suas roupas. O ômega, o fim, é a letra A escrita a fogo sobre a pele do peito do ministro
de Deus, que ele também carregará, escondida por suas roupas de serviço puritano.

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de Deus, que ele também carregará, escondida por suas roupas de serviço puritano.
Hester e Dimmesdale acreditavam no Pai Divino e pecaram contra Ele jubilosamente. A própria
alegoria do Pecado. Ah, Hester, você precisa ser um demônio; um homem precisa ser puro para você
seduzi-lo e provocar sua perdição. E o mundo estará invejando o seu pecado e castigando-a, pois com
seu pecado você se pôs em vantagem sobre ele.
Quando Hester é exposta à execração pública na praça, o cínico Hawthorne nos diz: “ Se houvesse um
papista naquela multidão de puritanos, ele teria visto naquela bela mulher, tão pitoresca em seus trajes
e em sua pose com uma criança ao colo, uma imagem da Mater Dolorosa”.
Serão duas as espécies de pecado que o autor nos mostrará: a do amor contra as convenções e a das
convenções contra o amor. O autor é um puritano, mas ao mesmo tempo, daqueles pioneiros que
buscam libertar-se das amarras do passado. Hawthorne duvida do velho estilo calvinista de representar
a raça humana como uma chusma de criaturas pecadoras apanhada entre um “Disribuidor de Tarefas
Celestial” e um “Verdugo Infernal”. Suas simpatias não estão com os juízes, mas com a orgulhosa e
destemida Hester Prynne.
Vejamos Hester e Dimmesdale mais de perto. Ela é a grande nêmese, o destino, feito mulher; apenas
capturou o que é seu, o que lhe aprouve. Quem morre é Dimmesdale. Mas o amor espiritual deste era
uma mentira. Enquanto em seus sermões ele bramia uma atitude grandiosa, na intimidade ele
prostituia a mulher, como costumam fazer muitos religiosos tão convictos hoje em dia. Mas, a bem da
verdade, ele havia sido puro... até Hester tocá-lo nos lugares certos e ele sucumbir. Mas manteve as
aparências. Os puros são puros! A culpa é da fêmea devoradora que sabe tocá-lo no seu ponto frágil,
ora essa, afinal, não foi Eva quem ofereceu a maçã?!
Depois do sexo e da humilhação pública da amante, o sr. Dimmesdale desfruta de altas diversões
solitárias, torturando-se, chicoteando-se. A autoflagelação, hoje fora de moda, é no fundo, uma
espécie de masturbação: masturbando-se sublimava a ausência de sua Madalena particular.
Mas com o passar do tempo as pessoas da comunidade se acostumarão com a Mulher Escarlate e ela
irá se transformar numa Irmã de Caridade, em uma santa reconhecida! Uma Madalena!
Passados sete anos, finalmente, irá querer que seu amante fuja com ela para uma nova vida. Mas
como? Dimmesdale já não possuia nenhuma vida mais! E, ademais, ele sabe que de nada adiantaria
mudar de ares, pois seria a mesma coisa em lugares diferentes! Dimmesdale já perdera sua integridade
de Ministro do Evangelho, ao mesmo tempo em que perdera sua força vital. E, finalmente, ele não vê
sentido em abandonar tudo para entregar-se às mãos de uma mulher, aquela que o levou à perdição.
Ele sabe que ela desprezaria a sua fraqueza, como toda mulher despreza o homem que caiu por obra
dela; depreza-o com o mais terno dos desejos.
Creio mesmo que ele a odiava, pois ela o fizera de bobo, ele e toda a sua espiritualidade. Quando
homens como Dimmesdale caem, não mais se levantam, arrastam-se e rastejam, abominando quem
provocou sua queda. Dimmesdale e sua covardia hipócrita se redimirá um pouco, quando ele sobe ao
cadafalso onde Hester e sua filha haviam sido expostas e faz uma confissão pública, antes de entregar-
se à morte, nos braços da “enfermeira”Hester. Pronto, o pastor vingou-se de todos. Ele morre jogando
o “pecado” na cara dela e fugindo na morte: “A lei nós infringimos!” Ah, ele detesta quem o
corrompera perante Deus!
O ser humano tem duas opções: ou bem é fiel à crença que diz professar e obedece às suas leis ou
admite que essa crença é inadequada e se prepara para algo novo. Não ocorrera alteração na crença de
Hester nem na de Dimmesdale, tão pouco na do escritor, Hawthorne. Manteve-se a velha crença
traiçoeira disfarçada no Espírito, na pureza e no amor desinteressado e na consciência pura. Eles
continuariam obedecendo-a só para desfrutarem a sensação de tê-la, mas não fariam outra coisa senão
fraudá-la.
Hester usava a letra ao final de sete anos como um adorno, para que todos a vissem. Ela vivera graças
ao seu orgulho, isolada de uma sociedade hipócrita, mas que orbitava ao redor dela. Hester jamais se
arrependeu do que fez. Aliás, por que se arrependeria? Ela só tinha medo de um dos resultados de seu
pecado: Pérola.

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pecado: Pérola.
Falemos agora de Pérola, a própria encarnação da letra escarlate. A revolta que havia em Hester
produziu um revoltado ainda mais puro. Hester sempre se perguntara se o nascimento da pobre
criatura seria um bem ou um mal, pois uma parte de Hester odeia a filha, e a outra a tem como o bem
mais precioso. Pérola é a continuidade de sua vingança contra a vida, vingança que atinge até ela
mesma, a mãe.
A roupa de Pérola era um deboche jogado na cara dos puritanos, lembrando-os que também ela era
uma letra escarlate. Enquanto as crianças idiotizadas pelo puritanismo brincavam vestidas de
pequenos adultos em branco e preto, ela era multicolor. Seus brinquedos? A natureza. Seus amigos?
Os animais silvestres. Sua companhia? A própria imagem refletida. Pérola é pagã, uma Diana que se
idolatra.
A menina que sabe ser tão terna amorosa e compreensiva; que, em seguida, depois de ter
compreendido tudo, dá uma “bofetada” na mãe ou no pai e se volta com um sorriso de escárnio.
Pérola é uma criança precoce, contemporânea, uma criança do século XXI!
Ela recusa cabalmente qualquer ideia de um Pai Celestial; Pérola teria que o considerar como uma
fraude, tal qual o era o seu Pai Terrestre. Frita sem dó o piedoso Diemmesdale, e limpa na água
corrente um beijo tardio que este lhe dera aos sete anos. Pobre almazinha valente e atormentada,
sempre pronta para o bote.
E assim, Pérola não tem como pecar contra Deus. O que fará ela, então, sem ter um Deus contra quem
pecar? Ora, evidentemente ficará impedida de pecar. Seguirá o seu próprio caminho alegremente e
fará o melhor que lhe der na telha, para depois dizer, quando a confusão estiver armada: “É verdade,
eu fiz isso. Mas agi na melhor das intenções, por isso não tenho culpa, a culpa é dos outros”.
Quando não se tem um Pai Divino contra quem pecar, e quando não se peca contra o Filho, só resta
pecar contra o Espírito Santo. Agora vem a parte pior: pecar contra o Espírito Santo não é tão fácil
assim, pois “isso não lhe será perdoado”. O Pai perdoa, o Filho perdoa, mas o Espírito Santo não
perdoa, e agora? O Espírito Santo não perdoa porque está dentro de cada um. Ele é seu próprio eu! De
modo que se, por pretensão do ego, abrir-se uma brecha na própria integridade, como poderá alguém
ser perdoado? É mais ou menos como rasgar as próprias entranhas.
A terceira pessoa do triângulo amoroso é Roger Chillingworth. Ele é uma mistura de mágico com
alquimista e médico, um intelectual da velha estirpe, um descendente de outro Roger, o Bacon.
Envelhecido e manco. Não é cristão e não está em busca de nada. Representa a velha autoridade
masculina, mas sem a fé passional. Ah, esses Rogers em toda a vida sentem ódio quando se deparam
com personalidades masculinas, frágeis e hipócritas, como a de Dimmesdale.
Ora, Hester e Roger foram cúmplices na derrubada do Ministro puritano, Dimmesdale. Ela escondeu
do amante a verdadeira identidade do médico. Roger, como médico, lentamente envenenará a alma do
“santo”; mas o corpo ele manterá vivo por mais de sete anos. Ouve o pastor se martirizar atrás da
porta e sorri, preparando-lhe alguma poção que o mantenha vivo, mas no tormento.
No último lance da partida Dimmesdale marca mais um gol; ao invés de fugir com sua amante, ele
acaba com a alegria da festa ao confessar-se publicamente, e, desaparecendo na morte, deixa Roger
duplamente enganado. Uma grande vingança! Roger, perdido o seu “lietmotif” entra em decadência e
morre, como todo pobre demônio abandonado.
Pérola é a única que escapa, conduzida por sua mãe. Casará na Europa com um conde, graças à
fortuna que lhe destina por testamento Roger Chillingworth. Gerará e criará novas Pérolas. Hester
retorna à Boston, à suas origens. Continuará seu destino de Irmã de Caridade e conselheira de moças
que estejam dispostas a se transviar.
Em “A Letra Escarlate” até mesmo o pecado se deteriora, se esvai, transforma-se em letra
morta.

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