Eles nasceram no mesmo dia, uma segunda-feira, 28 de janeiro de 1831, e se
encontram uma única vez, no primeiro domingo de dezembro de 1840, dia 6, quando fizeram a Primeira Comunhão na Matriz de Nosso Senhor dos Passos, na freguesia do mesmo nome. Até então, uma grande distância ― para a época ― os separava: duas léguas — duas horas a cavalo, três de liteira! Ele saiu da fazenda com o escuro, junto com a mãe, dois escravos que conduziam a liteira, e um capataz, armado como de costume. A missa solene começaria às 8 horas, era preciso andar sempre o mais rápido possível, porque o trecho de serra dificultava sobremaneira a viagem. Felizmente, como transcorreram alguns dias sem chuva, o terreno seco ajudou na longa descida até o vale do rio, e alcançaram a vila meia hora antes do início do Santo Ofício. A mãe, como de outras vezes, chegara indisposta, apesar dos cuidados com a alimentação que se impusera durante toda a véspera. O balanço da liteira causava-lhe uma sucessão de náuseas que a muito custo pudera suportar sem interromper a marcha. Doutro modo, teriam sido necessárias várias paradas a fim de que ela se recompusesse, descendo da liteira, andando de um lado para o outro, respirando fundo por alguns minutos. E, mesmo assim, prosseguia a viagem não de todo aliviada do renitente enjoo. O padre os recebeu na sacristia e, sabedor do sacrifício que era, para a mãe, a difícil jornada, veio recebê-los com largo sorriso, abraçando-os, oferecendo a ela uma cadeira de palhinha para que repousasse, enquanto conduzia o menino pela mão ao confessionário. Nos dois últimos meses, ele fora à fazenda toda semana para acompanhar o ensino do catecismo, com que a mãe preparava o filho. E, tão dedicada era ela, o padre surpreendia-se com a formação cristã que um menino de nove anos ia demonstrando. Arguia-lhe sobre a história sagrada, os mandamentos, os dogmas, e o pequeno não titubeava nas respostas, nas quais o vigário reconhecia a devoção materna. Outras famílias vinham chegando, trazendo os filhos, e a sacristia foi sendo tomada por um murmurinho crescente até que o padre, já paramentado, exortasse os adultos a se dirigirem à nave da Matriz e, reunindo as crianças aos pares, menino e menina, deu-lhes as recomendações finais de como se portarem na celebração litúrgica. Assim foi que ele e ela, escolhidos pela mão do acaso para formar um par, deram-se as mãos e trocaram um sorriso, no qual emoções desconhecidas se atropelavam no júbilo do momento. — Você tem mais de dez? — ela lhe perguntou, porque ele era o menino mais alto de todos. — Vou fazer mês que vem. — Mês que vem? Que dia? — ela havia pegado na mão dele, que era levemente cálida. — Vinte e oito. — Vinte e oito? — ela agora lhe dirigia um olhar de espanto e graça, os olhos fixos, negros, cheios de um brilho límpido. Formou-se a procissão de entrada: a cruz à frente, os acólitos empunhando os castiçais dourados com as velas acesas, o sacristão com o turíbulo, as crianças duas a duas, por fim o sacerdote. A menina fixou-se no Cristo vergado sob a cruz, o manto roxo, a coroa de espinhos, manchas de sangue pelo rosto. E a imagem tão sofrida lhe trouxe não o pesar de outras vezes, mas uma felicidade interior como se fosse uma obrigação dela, naquele momento, recompensar as dores do Deus-homem com uma intensa alegria infantil. Era uma cerimônia luminosa, de cânticos e flores, o Cristo presente era outro, refeito do martírio, vivo e feliz — assim, ela sublimava o calvário divino. No momento da eucaristia, quis fechar os olhos, mas não conseguia renunciar à luz dourada que banhava o altar, e não distinguia mais o Crucificado. Em Seu lugar, encontrava o milagre da ressurreição, prêmio divino aos puros de coração, ao qual ela agora se sentia merecedora. O padre havia dito que a hóstia tinha gosto de pão, pois era feita de trigo. Ela, porém, nem de pão sentiu o gosto: algo sem peso ou sabor, nem frio nem quente, apenas branco e puro, fazia com que ela se esquecesse de quem era, onde estava, e poderia, como os anjos, voar se quisesse, bastava um leve impulso dos pés. E durou tanto tempo essa sensação que ela teve medo de se encontrar sozinha, num lugar distante, alto, muito alto, entre as nuvens talvez. Quando voltou a si, olhando ao lado, o menino a observava, um leve sorriso como se indagasse aonde ela havia ido, tão distraída ficara. — Parecia que voava bem alto, como os pássaros… — ela lhe disse, sussurrando ao ouvido. — Preste atenção à missa! — ele respondeu, com ternura. Ela trazia sobre o véu uma grinalda com algumas flores de laranjeira, que, a custo, a mãe conseguira, já que a florada das laranjeiras havia passado. O menino compreendeu que ela, entre todas as meninas, era a mais bonita, e seu perfume, que ele logo reconheceu, dava-lhe a impressão de nunca ter aspirado o aroma de flores de laranjeira. Era como se fosse a primeira vez, ele não sabia dizer quando, talvez quando era muito pequeno e nem soubesse ainda que ele seria ele, que, um dia, aquele perfume distante cobriria de encantos uma menina tão linda, fazendo com que ele tremesse por dentro ao aspirá-lo. Ite, missa est! E formou-se um tumulto na igreja, os familiares procurando pelos filhos. Ela pegou na mão do menino, foi arrastando-o para a capela do lado direito, onde se abria a porta da saída lateral, que dava para o grande campo gramado do Cruzeiro. Queria mostrar-lhe onde ficava sua casa, ali, do outro lado do campo, queria convidá-lo para ir tomar o café com bolo junto com ela. Ele procurou explicar: haviam trazido um bolo em fatias, só de lembrar dava água na boca, estava morrendo de fome, levantara-se muito cedo, a mãe passava mal na viagem, eles iam comer o bolo na sacristia, o pai não viera, não era religioso, mas era amigo do vigário, que ia sempre à fazenda, passavam a noite caçando. A essa altura, ela se viu cercada pelo pai e a mãe, duas tias, e pôs-se afobadamente a contar à mãe sobre o menino, queria que ele fosse à sua casa para o café, estava em jejum desde a madrugada, já não podia mais com tanta fome. O pai, então, mandou que seguissem para casa: ia procurar a mãe do menino ― eram conhecidos de longa data ―, ele a convenceria a acompanhá-los. E, assim feito, logo estavam todos ao redor da grande mesa, a menina com gracioso vestido branco, o menino de terno também branco, calças curtas, cada um com seu terço e o pequeno missal ao lado sobre a mesa, não queriam se separar deles. Após o café, a mãe do menino, agradecendo a gentileza, começou a se despedir, precisavam retornar logo à fazenda. A menina protestou: mal conhecera seu companheiro de Primeira Comunhão, o vigário dissera que passavam a ser como verdadeiros irmãos, ela queria brincar com ele, pedia que o pai intercedesse, implorava à sua mãe, à mãe do menino, almoçassem juntos, depois seguiriam. O vigário havia combinado de vir almoçar com eles, ficaria feliz de revê-los ainda juntos. O menino também se mostrava contrafeito, pedia também à mãe para ficarem mais um pouco, ainda era muito cedo, ela ia se sentir mal de novo. E travou-se uma discussão entre os adultos, as argumentações e contra- argumentações, mas é sempre o destino que escolhe os caminhos, e eles chegaram a uma solução: a mãe mandou que o capataz voltasse à fazenda, levasse o burro da dianteira da liteira, trocasse por outro que pudesse dar mais conforto na andadura, de passada mais leve, ela instruía. Dissesse ao senhor seu patrão que estavam na casa do comerciante, onde almoçariam, os filhos foram colegas de Primeira Comunhão, queriam ficar um pouco mais juntos. Voltariam ao entardecer, o tempo estava firme, com a fresca da tarde a viagem seria mais amena, que ele compreendesse e não se preocupasse. A menina levou o amigo aos fundos da casa. Ali havia um pátio mourisco, calçado de lajes de pedra, bem-aparelhadas, tendo ao centro um tanque circular, também de pedra. Pela manhã, todos os dias, os escravos esvaziavam o taque, esfregavam bem as paredes e o fundo e o enchiam com água pura de mina, que transportavam em tonéis. Essa era a água de que se fazia uso na casa. Os dois puseram-se a correr em volta do lago, ela cantava uma quadrinha aprendida com a mucama, ele ria do jogo de palavras, no qual o amor se disfarçava num feiticeiro sagaz. O que ela sabia sobre o amor era o que essa cantiga informava: alguém, um forasteiro, que vinha bater à porta do coração, um negro banto, alto e faceiro, de largo sorriso, um negro tropeiro, corria mundo inteiro, ladino e veloz, qualquer isso o espantava, e voltar, não voltava. Ofegantes, sentaram-se na borda do lago, o dia estava muito quente, a água refrescava a atmosfera, uma leve viração soprava do pomar, trazendo uma competição de fragrâncias e o alarido sinfônico dos pássaros. O menino, então, molhou as mãos na água e acariciou o rosto da pequena branca de neve, recém-despertada para as coisas do coração. Ela fechou lentamente os olhos, e, quando os abriu, já eram outros, mais negros, de um brilho fulminante, ele piscou seguidamente, ela perguntou se havia lhe caído um cisco na vista. Então, ela retribui-lhe o carinho, aproximou-se dele e foi beijando seu rosto, apenas o leve roçar dos lábios sobre a penugem invisível da pele. De olhos fechados, ele cavalgava um potro selvagem, disparado pelo vargedo, e, num salto, cruzava o grande rio, sumindo no mundo das fadas. Quem tem o seu condão em seis milhões que mais necessita que acenar? ― era um provérbio que a mãe vivia dizendo sobre ela, não simplesmente uma criança, mas um tesouro de bem-aventuranças. Lembrando-se desse dito, ela pôs-se a repeti-lo, bailando e acenando em torno do menino, que também cantarolava como um refrão de uma quadrinha infantil. A mesa do almoço tinha mais flores que iguarias. O vozerio dos convidados que vieram celebrar a efeméride pareceria, a quem se detivesse na frente da casa, um coro vibrante de uma ópera festiva, os talheres retinindo nos pratos como instrumentos de confusa orquestra. Ele e ela comiam em silêncio, nada ouviam, ouvindo doces melodias de sinos ao longe, que tocam apenas para os corações puros. A mãe os obrigou a descansar nas redes da varanda, os homens fumavam, as mulheres teciam suas infindáveis confabulações, o meio-dia vibrava suas luzes de fogo. Os dois, nas suas redes, teriam uma leve sonolência, tão próprio das crianças, um devaneio enevoado, duas horas se passaram como se não houvesse relógios. Ela despertou ansiosa: “Venha, venha! Vamos brincar!”. E, como o sol castigasse o pátio, foram para o pomar, entre as mangueiras e as laranjeiras-da-terra, que eram também muito altas e de copa fechada. Num ramo de amoreira, descobriram uma borboleta que se desprendia lentamente do casulo, desenrolando as asas até formarem duas longas pétalas amarelas, logo se movendo com elegância, experimentando a possibilidade do voo, fugindo, a seguir, em zigue-zague pela longa nave sombreada que as árvores formavam. Há uma tarde, uma única e distante tarde na infância, em que as horas condescendem de reter as rédeas do tempo, e o sol se arrasta lentamente, regateando, ao crepúsculo sempre faminto, sua dourada luz. Assim, os dois companheiros corriam de um lado para o outro, dois pequenos flocos de nuvem branca navegando no azul da tarde de domingo. Quando um pajem veio ao quintal para chamá-los, eles estavam sentados sob um caramanchão coberto de ramas de jasmim vermelho, que a mãe dizia ser o símbolo da virgindade, detalhe esse que nada lhes significava naquele momento. Mas a menina olhou pra cima, porque queria apanhar uma daquelas campânulas perfumadas e dar a ele. Mas estavam tão altas, que desistiu, sem nada dizer. Lá dentro, a mãe avisou que deviam se despedir, era hora do menino e sua mãe partirem. Lavassem as mãos para tomar o chá, porque já estava tarde. À saída, eles se abraçaram, a menina com os olhos úmidos, mas sem choro no rosto, prometiam se reencontrar brevemente. Ela acompanhou a comitiva pôr-se em marcha, a liteira balançando, contornando a praça e perdendo-se na esquina da rua de cima. Nesse momento, uma dor fina percorreu-lhe o ventre, subindo ao peito, algo que a apertava por dentro, um vazio, a primeira sensação de perda e saudade. A mãe, vendo que ela desfalecia, pálida, gritou pelo marido, que trouxesse correndo o vidrinho de sais para ela cheirar. O pai tomou-a nos braços, todos correram, afobados. Logo que voltou a si, deram-lhe um cálice de Água Inglesa. Mandou chamar o médico com urgência, mas quando este chegou, ela já se havia recuperado. À noite, no quarto, ela ficou observando uma graciosa mariposa rodopiar em torno da manga de vidro do pequeno lampião. Sentia-se melhor, mas a dor por dentro ainda lhe dizia da separação do menino. Uma dor de angústia que, agora, descobria e que sentiria muitas vezes ao longo da longa vida, sabendo que era a forma, ainda que cruel, de reencontrar o menino que nunca mais encontraria. ***