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LUIZ ALMEIDA

Primeira Comunhão

Para:
BRENDAN THOMAS MURPHEY

Eles nasceram no mesmo dia, uma segunda-feira, 28 de janeiro de 1831, e se


encontram uma única vez, no primeiro domingo de dezembro de 1840, dia 6, quando
fizeram a Primeira Comunhão na Matriz de Nosso Senhor dos Passos, na freguesia do
mesmo nome.
Até então, uma grande distância ― para a época ― os separava: duas léguas —
duas horas a cavalo, três de liteira!
Ele saiu da fazenda com o escuro, junto com a mãe, dois escravos que
conduziam a liteira, e um capataz, armado como de costume. A missa solene começaria
às 8 horas, era preciso andar sempre o mais rápido possível, porque o trecho de serra
dificultava sobremaneira a viagem. Felizmente, como transcorreram alguns dias sem
chuva, o terreno seco ajudou na longa descida até o vale do rio, e alcançaram a vila
meia hora antes do início do Santo Ofício.
A mãe, como de outras vezes, chegara indisposta, apesar dos cuidados com a
alimentação que se impusera durante toda a véspera. O balanço da liteira causava-lhe
uma sucessão de náuseas que a muito custo pudera suportar sem interromper a marcha.
Doutro modo, teriam sido necessárias várias paradas a fim de que ela se recompusesse,
descendo da liteira, andando de um lado para o outro, respirando fundo por alguns
minutos. E, mesmo assim, prosseguia a viagem não de todo aliviada do renitente enjoo.
O padre os recebeu na sacristia e, sabedor do sacrifício que era, para a mãe, a
difícil jornada, veio recebê-los com largo sorriso, abraçando-os, oferecendo a ela uma
cadeira de palhinha para que repousasse, enquanto conduzia o menino pela mão ao
confessionário. Nos dois últimos meses, ele fora à fazenda toda semana para
acompanhar o ensino do catecismo, com que a mãe preparava o filho. E, tão dedicada
era ela, o padre surpreendia-se com a formação cristã que um menino de nove anos ia
demonstrando. Arguia-lhe sobre a história sagrada, os mandamentos, os dogmas, e o
pequeno não titubeava nas respostas, nas quais o vigário reconhecia a devoção materna.
Outras famílias vinham chegando, trazendo os filhos, e a sacristia foi sendo
tomada por um murmurinho crescente até que o padre, já paramentado, exortasse os
adultos a se dirigirem à nave da Matriz e, reunindo as crianças aos pares, menino e
menina, deu-lhes as recomendações finais de como se portarem na celebração litúrgica.
Assim foi que ele e ela, escolhidos pela mão do acaso para formar um par,
deram-se as mãos e trocaram um sorriso, no qual emoções desconhecidas se
atropelavam no júbilo do momento.
— Você tem mais de dez? — ela lhe perguntou, porque ele era o menino mais
alto de todos.
— Vou fazer mês que vem.
— Mês que vem? Que dia? — ela havia pegado na mão dele, que era levemente
cálida.
— Vinte e oito.
— Vinte e oito? — ela agora lhe dirigia um olhar de espanto e graça, os olhos
fixos, negros, cheios de um brilho límpido.
Formou-se a procissão de entrada: a cruz à frente, os acólitos empunhando os
castiçais dourados com as velas acesas, o sacristão com o turíbulo, as crianças duas a
duas, por fim o sacerdote.
A menina fixou-se no Cristo vergado sob a cruz, o manto roxo, a coroa de
espinhos, manchas de sangue pelo rosto. E a imagem tão sofrida lhe trouxe não o pesar
de outras vezes, mas uma felicidade interior como se fosse uma obrigação dela, naquele
momento, recompensar as dores do Deus-homem com uma intensa alegria infantil. Era
uma cerimônia luminosa, de cânticos e flores, o Cristo presente era outro, refeito do
martírio, vivo e feliz — assim, ela sublimava o calvário divino. No momento da
eucaristia, quis fechar os olhos, mas não conseguia renunciar à luz dourada que banhava
o altar, e não distinguia mais o Crucificado. Em Seu lugar, encontrava o milagre da
ressurreição, prêmio divino aos puros de coração, ao qual ela agora se sentia
merecedora. O padre havia dito que a hóstia tinha gosto de pão, pois era feita de trigo.
Ela, porém, nem de pão sentiu o gosto: algo sem peso ou sabor, nem frio nem quente,
apenas branco e puro, fazia com que ela se esquecesse de quem era, onde estava, e
poderia, como os anjos, voar se quisesse, bastava um leve impulso dos pés. E durou
tanto tempo essa sensação que ela teve medo de se encontrar sozinha, num lugar
distante, alto, muito alto, entre as nuvens talvez. Quando voltou a si, olhando ao lado, o
menino a observava, um leve sorriso como se indagasse aonde ela havia ido, tão
distraída ficara.
— Parecia que voava bem alto, como os pássaros… — ela lhe disse, sussurrando
ao ouvido.
— Preste atenção à missa! — ele respondeu, com ternura.
Ela trazia sobre o véu uma grinalda com algumas flores de laranjeira, que, a
custo, a mãe conseguira, já que a florada das laranjeiras havia passado. O menino
compreendeu que ela, entre todas as meninas, era a mais bonita, e seu perfume, que ele
logo reconheceu, dava-lhe a impressão de nunca ter aspirado o aroma de flores de
laranjeira. Era como se fosse a primeira vez, ele não sabia dizer quando, talvez quando
era muito pequeno e nem soubesse ainda que ele seria ele, que, um dia, aquele perfume
distante cobriria de encantos uma menina tão linda, fazendo com que ele tremesse por
dentro ao aspirá-lo.
Ite, missa est! E formou-se um tumulto na igreja, os familiares procurando pelos
filhos. Ela pegou na mão do menino, foi arrastando-o para a capela do lado direito, onde
se abria a porta da saída lateral, que dava para o grande campo gramado do Cruzeiro.
Queria mostrar-lhe onde ficava sua casa, ali, do outro lado do campo, queria convidá-lo
para ir tomar o café com bolo junto com ela.
Ele procurou explicar: haviam trazido um bolo em fatias, só de lembrar dava
água na boca, estava morrendo de fome, levantara-se muito cedo, a mãe passava mal na
viagem, eles iam comer o bolo na sacristia, o pai não viera, não era religioso, mas era
amigo do vigário, que ia sempre à fazenda, passavam a noite caçando.
A essa altura, ela se viu cercada pelo pai e a mãe, duas tias, e pôs-se
afobadamente a contar à mãe sobre o menino, queria que ele fosse à sua casa para o
café, estava em jejum desde a madrugada, já não podia mais com tanta fome.
O pai, então, mandou que seguissem para casa: ia procurar a mãe do menino ―
eram conhecidos de longa data ―, ele a convenceria a acompanhá-los. E, assim feito,
logo estavam todos ao redor da grande mesa, a menina com gracioso vestido branco, o
menino de terno também branco, calças curtas, cada um com seu terço e o pequeno
missal ao lado sobre a mesa, não queriam se separar deles.
Após o café, a mãe do menino, agradecendo a gentileza, começou a se despedir,
precisavam retornar logo à fazenda.
A menina protestou: mal conhecera seu companheiro de Primeira Comunhão, o
vigário dissera que passavam a ser como verdadeiros irmãos, ela queria brincar com ele,
pedia que o pai intercedesse, implorava à sua mãe, à mãe do menino, almoçassem
juntos, depois seguiriam. O vigário havia combinado de vir almoçar com eles, ficaria
feliz de revê-los ainda juntos.
O menino também se mostrava contrafeito, pedia também à mãe para ficarem
mais um pouco, ainda era muito cedo, ela ia se sentir mal de novo.
E travou-se uma discussão entre os adultos, as argumentações e contra-
argumentações, mas é sempre o destino que escolhe os caminhos, e eles chegaram a
uma solução: a mãe mandou que o capataz voltasse à fazenda, levasse o burro da
dianteira da liteira, trocasse por outro que pudesse dar mais conforto na andadura, de
passada mais leve, ela instruía. Dissesse ao senhor seu patrão que estavam na casa do
comerciante, onde almoçariam, os filhos foram colegas de Primeira Comunhão, queriam
ficar um pouco mais juntos. Voltariam ao entardecer, o tempo estava firme, com a
fresca da tarde a viagem seria mais amena, que ele compreendesse e não se preocupasse.
A menina levou o amigo aos fundos da casa. Ali havia um pátio mourisco,
calçado de lajes de pedra, bem-aparelhadas, tendo ao centro um tanque circular, também
de pedra. Pela manhã, todos os dias, os escravos esvaziavam o taque, esfregavam bem
as paredes e o fundo e o enchiam com água pura de mina, que transportavam em tonéis.
Essa era a água de que se fazia uso na casa.
Os dois puseram-se a correr em volta do lago, ela cantava uma quadrinha
aprendida com a mucama, ele ria do jogo de palavras, no qual o amor se disfarçava num
feiticeiro sagaz. O que ela sabia sobre o amor era o que essa cantiga informava: alguém,
um forasteiro, que vinha bater à porta do coração, um negro banto, alto e faceiro, de
largo sorriso, um negro tropeiro, corria mundo inteiro, ladino e veloz, qualquer isso o
espantava, e voltar, não voltava.
Ofegantes, sentaram-se na borda do lago, o dia estava muito quente, a água
refrescava a atmosfera, uma leve viração soprava do pomar, trazendo uma competição
de fragrâncias e o alarido sinfônico dos pássaros. O menino, então, molhou as mãos na
água e acariciou o rosto da pequena branca de neve, recém-despertada para as coisas do
coração. Ela fechou lentamente os olhos, e, quando os abriu, já eram outros, mais
negros, de um brilho fulminante, ele piscou seguidamente, ela perguntou se havia lhe
caído um cisco na vista. Então, ela retribui-lhe o carinho, aproximou-se dele e foi
beijando seu rosto, apenas o leve roçar dos lábios sobre a penugem invisível da pele. De
olhos fechados, ele cavalgava um potro selvagem, disparado pelo vargedo, e, num salto,
cruzava o grande rio, sumindo no mundo das fadas.
Quem tem o seu condão em seis milhões que mais necessita que acenar? ― era
um provérbio que a mãe vivia dizendo sobre ela, não simplesmente uma criança, mas
um tesouro de bem-aventuranças. Lembrando-se desse dito, ela pôs-se a repeti-lo,
bailando e acenando em torno do menino, que também cantarolava como um refrão de
uma quadrinha infantil.
A mesa do almoço tinha mais flores que iguarias. O vozerio dos convidados que
vieram celebrar a efeméride pareceria, a quem se detivesse na frente da casa, um coro
vibrante de uma ópera festiva, os talheres retinindo nos pratos como instrumentos de
confusa orquestra.
Ele e ela comiam em silêncio, nada ouviam, ouvindo doces melodias de sinos ao
longe, que tocam apenas para os corações puros.
A mãe os obrigou a descansar nas redes da varanda, os homens fumavam, as
mulheres teciam suas infindáveis confabulações, o meio-dia vibrava suas luzes de fogo.
Os dois, nas suas redes, teriam uma leve sonolência, tão próprio das crianças, um
devaneio enevoado, duas horas se passaram como se não houvesse relógios. Ela
despertou ansiosa: “Venha, venha! Vamos brincar!”. E, como o sol castigasse o pátio,
foram para o pomar, entre as mangueiras e as laranjeiras-da-terra, que eram também
muito altas e de copa fechada. Num ramo de amoreira, descobriram uma borboleta que
se desprendia lentamente do casulo, desenrolando as asas até formarem duas longas
pétalas amarelas, logo se movendo com elegância, experimentando a possibilidade do
voo, fugindo, a seguir, em zigue-zague pela longa nave sombreada que as árvores
formavam.
Há uma tarde, uma única e distante tarde na infância, em que as horas
condescendem de reter as rédeas do tempo, e o sol se arrasta lentamente, regateando, ao
crepúsculo sempre faminto, sua dourada luz.
Assim, os dois companheiros corriam de um lado para o outro, dois pequenos
flocos de nuvem branca navegando no azul da tarde de domingo.
Quando um pajem veio ao quintal para chamá-los, eles estavam sentados sob um
caramanchão coberto de ramas de jasmim vermelho, que a mãe dizia ser o símbolo da
virgindade, detalhe esse que nada lhes significava naquele momento. Mas a menina
olhou pra cima, porque queria apanhar uma daquelas campânulas perfumadas e dar a
ele. Mas estavam tão altas, que desistiu, sem nada dizer.
Lá dentro, a mãe avisou que deviam se despedir, era hora do menino e sua mãe
partirem. Lavassem as mãos para tomar o chá, porque já estava tarde.
À saída, eles se abraçaram, a menina com os olhos úmidos, mas sem choro no
rosto, prometiam se reencontrar brevemente. Ela acompanhou a comitiva pôr-se em
marcha, a liteira balançando, contornando a praça e perdendo-se na esquina da rua de
cima. Nesse momento, uma dor fina percorreu-lhe o ventre, subindo ao peito, algo que a
apertava por dentro, um vazio, a primeira sensação de perda e saudade.
A mãe, vendo que ela desfalecia, pálida, gritou pelo marido, que trouxesse
correndo o vidrinho de sais para ela cheirar. O pai tomou-a nos braços, todos correram,
afobados. Logo que voltou a si, deram-lhe um cálice de Água Inglesa. Mandou chamar
o médico com urgência, mas quando este chegou, ela já se havia recuperado.
À noite, no quarto, ela ficou observando uma graciosa mariposa rodopiar em
torno da manga de vidro do pequeno lampião. Sentia-se melhor, mas a dor por dentro
ainda lhe dizia da separação do menino. Uma dor de angústia que, agora, descobria e
que sentiria muitas vezes ao longo da longa vida, sabendo que era a forma, ainda que
cruel, de reencontrar o menino que nunca mais encontraria.
***

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