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19/05/2017 às 05h00
Cultura & Estilo
A ciência do olhar
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Por Daniela Chiaretti e Robinson Borges | Do Rio
Cantor Kid Vinil morre em São Paulo, aos 62 anos
19/05/2017 às 19h00

No começo era Felicidade. Até o dia em


que João Moreira Salles, lendo "Um Ver todas as notícias

Outro Amor", o segundo volume das


memórias de Karl Ove Knausgård, caiu
no trecho em que um amigo do escritor
norueguês entra em uma floresta na
Noruega e "começa a se plasmar à
própria paisagem", conta o
documentarista, com seu jeito original de falar. O trecho do livro o
impressionou a ponto de alterar o título de seu último filme, mas o crédito
pode não ser de Knausgård. João conta o que leu: "A felicidade de estar
naquele lugar, naquela floresta, naquele momento, deu a ele [o personagem
do livro] a sensação do sublime. Eu não sei como é no norueguês original, no
inglês não é assim, mas na edição brasileira o tradutor usou essa combinação
de palavras: 'Era como se ele estivesse no intenso agora'".

Guilherme da Silva Braga, o tradutor do livro da Companhia das Letras,


produziu sem saber uma epifania no caçula dos quatro irmãos Moreira Salles.
"Opa!, falei. Vou roubar isso", nos diz João, 55 anos, nascido em Washington,
mas naturalizado botafoguense. Foi assim que a felicidade dos estudantes
franceses de Maio de 68 e de uma viajante à China em plena Revolução
Cultural encontrou sua dimensão precisa e tornou­se "No Intenso Agora", o
título enigmático de um filme que recorta episódios marcantes do fim dos
anos 60 em alguns lugares do mundo, e no universo particular de uma das
famílias mais ricas e reservadas do Brasil.

Mas isso tudo só saberemos no fim de quase duas horas de conversa com
João ­ é assim que o chamam ­, no prédio de Ipanema onde ficam a redação
da "piauí", a revista de fôlego que criou em 2006, e a VideoFilmes, a
produtora que fundou há 30 anos com o irmão cineasta, Walter. A
confidência sobre o nome do filme é a última coisa que ele nos conta antes de
concordar, gentil, mas claramente constrangido, com uma breve sessão de
fotos no deque da produtora e sair, apressado, rumo a um almoço no Jardim
Botânico. Não sabíamos com quem e não ousamos perguntar.

Corta!
Videos
Era uma quarta­feira de maio e a entrevista estava marcada para as 10h. O
acertado com a assessora Anna Luiza Muller era que João Moreira Salles
falaria sobre o novo filme, o jornalismo e a "piauí", a nova sede do Instituto
Moreira Salles e o recente Serrapilheira, instituição que fundou em março
com a mulher, a linguista e professora da PUC­RJ Branca Vianna, ao doarem
R$ 350 milhões para formar um instituto de fomento à ciência ­ rara boa
notícia na desgraceira em que está metido o país. Não falaria sobre o Brasil

nem sobre por onde caminha a humanidade. Nada sobre sua vida e a do clã
Moreira Salles. Acabou que João ultrapassou os perímetros combinados e
falou sobre todas essas coisas ­ deixando apenas ele e os Moreira Salles de Inteligência artificial possibilita a interação entre o
fora. Foi assim que, às 10h, batemos no discreto prédio em Ipanema, a público e as obras na Pinacoteca de SP
12/05/2017
sobriedade da fachada de metal aquecida por um bonito portão de madeira.

O porteiro nos atendeu com amabilidade. "Vocês são os jornalistas, não é?    


Aguardem um momento", e apontou para o fotógrafo, Leo Pinheiro, que já
estava ali e havia acomodado as câmeras na cadeira. Fomos orientados a
apertar o botão do terceiro andar do elevador, o da produtora. João nos
À mesa com o Valor
recebeu com um sorriso e com um "nossa, quanta gente!", que quebrou a
À mesa com o Valor
recebeu com um sorriso e com um "nossa, quanta gente!", que quebrou a
Entrevistas
tensão. Na sala de reuniões estavam o diretor­presidente do Serrapilheira,
Hugo Aguilaniu, seu assessor Rodrigo Fiães e Cristina Caldas, coordenadora JOÃO MOREIRA
de pesquisa científica, discutindo como colocar a nova empreitada de pé. SALLES
Todos pareciam contentes. Não é comum no Brasil ter a chance de desenhar A ciência do

um instituto de pesquisa que possa financiar trabalhos de matemáticos, olhar



químicos e físicos empenhados em nos tornar menos ignorantes. Deve dar 19/05/2017 às 05h00
uma grande sensação de felicidade.
MARTA SUPLICY

João nos conduz pelas escadas ao andar de baixo, onde fica a redação da "Hoje em dia é

"piauí". Vamos à sala de reuniões, envidraçada pelo lado dos jornalistas e de constrangedor

frente para uma cortina natural, de plantas. Além da mesa há um balcão e, ser político"

12/05/2017 às 05h00
ali, uma garrafa térmica com café, água de coco e água mineral. É tudo do
que precisamos. "Dormi pouco. Fui dormir à uma e acordei às três. Estou FERNANDA LIMA
meio confuso, mas vamos lá", ri.
Cabeça aberta

O motivo da insônia foi a derrota do Botafogo por 2 a 0 para o equatoriano para o desejo

05/05/2017 às 05h01
Barcelona de Guayaquil pela Libertadores. O Glorioso, como eles dizem, foi
derrotado em casa, no estádio Nilton Santos, e o sujeito ao lado coloca os
óculos dourados sobre a mesa e diz que foi lá ver tudo ao vivo. É difícil saber CLAUDIA SENDER
onde João Moreira Salles nasceu, se tem filhos, há quantos anos está casado, A executiva na

onde estudou. Mas todo mundo sabe que o homem é botafoguense doente. primeira classe

Em um texto publicado na "piauí" em 2012, ele expõe os motivos de os 


torcedores do Botafogo (ele incluído) serem "pessimistas convictos" e 28/04/2017 às 05h00

descreve a tipologia de suspiros que o time desperta em jogo (é muito


TOM ZÉ
engraçado). Confessa que, nas horas de maior tensão, vira de costas para o
Eterno espírito
campo. O resultado do dia anterior, ui,ui,ui, pode ser um mau presságio para tropicalista
a entrevista. Só que não.
20/04/2017 às 05h02

"Botafogo é pura irracionalidade", diz rindo. E muda de assunto.

Dez anos atrás, ele fez "Santiago", a


história do mordomo culto que serviu a
família por décadas, 20 anos só na Casa Lançamentos
da Gávea ­ lugar que Santiago Badariotti Livros, músicas e séries
Merlo parecia pronunciar com
maiúsculas, tamanha a reverência pela
TV
mansão dos Moreira Salles no Rio. Ali
João passou a infância e a juventude. Na Jude Law faz um

papa sombrio
João Moreira Salles começou a articular o única sequência colorida, retirada de um AAA
filme em 2012, 2013, 2014: "Foi o período vídeo amador, vê­se o pai, o diplomata e
em que a gente experimentou essa banqueiro Walther Moreira Salles na
incapacidade de se relacionar com quem piscina, brincando com o menino Walter. Livros
tem uma opinião diferente da tua"
Elisa Margarida Gonçalves, a mãe de Pamuk renova

Pedro (o copresidente do conselho de administração do Itaú Unibanco), temas vitais

AA+
Walter e João, aparece em maiô duas peças e touca de borracha no cabelo.
"Minha mãe dizia: 'Santiago faz os mais lindos arranjos de flor que conheço'",
ouve­se no documentário de 2006 narrado por Fernando, o mais velho dos Livros
irmãos, filho do embaixador com a primeira mulher, Helène Matarazzo. "Tudo o que Eu

Nunca Contei'

Ao editar "Santiago", o cineasta sentiu falta de imagens da família. Na AA+


ocasião, alguém apareceu com uma caixa com vídeos caseiros. Havia uma
única lata de 16 mm. "Era a lata com as imagens da China. Eu sabia da TV
viagem, mas desconhecia as imagens. Achei interessante, elas ficaram na Redenção de
minha cabeça." uma jovem

perdida

Dois anos depois, leu o relato que a mãe escreveu e que foi publicado nos BBB
EUA e na revista "Cruzeiro". Elisa foi à China com amigos ­ "um grupo de
industriais, banqueiros e gente de sociedade", se escuta no longa. Era TV
outubro de 1966, tinha 37 anos. Não se tem absoluta certeza que foi Elisa "Silicon Valley"

quem tenha filmado, mas supõe­se que sim, porque ela aparece pouco nas (4ª temporada)

cenas. AA+

"A pessoa que talvez tenha feito estas imagens disse assim, nas primeiras
linhas do relato que escreveu: 'Chegamos à noite, para aquela que seria a Legenda AAA Excepcional BBB Acima da média
CCC Baixa qualidade AA+ Alta Qualidade
viagem mais penosa e fascinante de minha vida. À descida do avião, tivemos BB+ Moderado C Alto Risco
o primeiro contato com a Guarda Vermelha, que nos formava uma ala de
honra...", diz João no filme que estreou em Berlim, foi o mais premiado no
francês Cinéma Du Réel, passou por Buenos Aires e Tel­Aviv e foi convidado
a participar em mais de 20 festivais internacionais. No Brasil estreou no É
Tudo Verdade e a previsão é de que entre em exibição em agosto.
"No Intenso Agora" é costurado pela fala de João, uma lente de intimidade ao
que se trata na tela. Os Moreira Salles moravam em Paris desde 1964 e ali
ficaram até 1968. "Voltávamos para o Brasil nas férias. Na minha lembrança,
a França era escura e o Brasil, luminoso. Aqui tinha bichos e sol; lá, as portas
dos edifícios eram pesadas e davam para pátios escuros onde uma concièrge
fumava. Eu era feliz nas férias. Na minha memória, minha mãe era feliz o ano
inteiro."

No documentário, João enxerga a China pelo olhar da mãe, e enxerga a mãe


pelo seu olhar sobre a China. Para ela, por exemplo, a Grande Muralha corre
como um rio. João compara a imagem à do italiano Alberto Moravia, que a
descreve como uma serpente. "Em Moravia existe política, em minha mãe,
não", diz, no filme.

"O relato me deu a sensação de mamãe inteiramente tomada pela alegria de


estar viva, naquele lugar, naquele momento, olhando aquelas coisas. E como
aquelas coisas são o oposto dela, essa capacidade de se encantar pelo
radicalmente diferente me tocou. Minha mãe foi perdendo isso ao longo da
vida, essa alegria. Isso ficou na minha cabeça, porque acho que é uma
questão minha também."

O fotógrafo Leo Pinheiro interrompe os cliques e se serve de café. João toma


o seu com adoçante. Veste camisa azul e calça jeans, se sair na rua "plasma na
paisagem". Os italianos dizem que os verdadeiramente ricos não ostentam,
são "i veri signori". O pai, ex­ministro da Fazenda, maior acionista do
Unibanco (hoje incorporado ao Itaú) e embaixador, e Elisa, tida como
referência de elegância à época, recebiam frequentemente até 60 convidados
para jantar em casa ­ vinham os Rockefeller, Christina Onassis, Juscelino
Kubitschek, aprende­se em "Santiago".

O mordomo, uma noite, acordou João criança, ao tocar piano no salão. Vestia
fraque. "Por que essa roupa?", espantou­se o menino. "Porque é Beethoven",
respondeu o argentino. João Moreira Salles trai seu passado pelo repertório ­
Walter Salles disse em entrevista que o caçula é o mais intelectual dos
irmãos. Ele não usa clichês e é divertido. Às vezes termina as frases em
carioquês. "Entende?"

"O que me pareceu correto, na relação que tentei fazer é que há, tanto no
relato de minha mãe como no relato dos que viveram 68, essa sensação de
plenitude, do tal do intenso agora, e a dificuldade de enfrentar o
desfazimento disso. Até porque, o que vem depois? O que vem depois é o
centro do filme. Alguns conseguiram dar prosseguimento, encontraram
sentido e razões para continuar. Na militância política, inclusive. Mas outros
tantos não conseguiram se desvencilhar da sensação de que o melhor ficou
para trás. E é compreensível, porque o relato daquelas semanas é realmente
um relato do sublime. A sensação de estar irmanado, nas ruas, fazendo
história."

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Em 1992, a família Moreira Salles reunida em Londres: Pedro e o patriarca
Walther à frente; Walter, João e Fernando na fileira de trás
Créditos: Instituto Moreira Salles

É difícil resumir "No Intenso Agora". O release crava assim: "Trata da


natureza efêmera dos momentos de grande intensidade. Às cenas da China
somam­se imagens dos eventos de 1968, na França, na Tchecoslováquia e,
em menor medida, no Brasil."

Estão todos lá, em imagens de arquivo, os personagens que fizeram história


há 50 anos nas ruas de Paris ­ o desobediente Daniel Cohn­Bendit, os
discursos de De Gaulle, as intervenções de Sartre e a energia maravilhosa de
um montão de jovens anônimos. São na maioria homens, brancos, de cabelos
curtos. Bem diferente do cenário dos EUA à mesma época, com os que
lutavam contra a Guerra do Vietnã, tinham pauta feminista e de direito aos
negros. João não quis abrir esta janela. Reconhece que o movimento nos
EUA era complexo demais e o filme não terminaria nunca.

"Maio de 68 deve ter sido estupendo, maravilhoso. Mas se dispersou, acabou.


E aí vem a ressaca, né?", nos diz.

O fim da felicidade das ruas de Paris vem quando a câmera migra para a
invasão da Thecoslováquia pelas tropas soviéticas, que impediram a
implantação do que Alexander Dubcek chamou de "socialismo humano",
durante a Primavera de Praga. Ali não há revolução com festa. As imagens
são feitas com medo, entre frestas de cortinas. O discurso de Fidel Castro
sobre a invasão destrói qualquer esperança. Jan Palach é o jovem tcheco que
ateia fogo em si mesmo para protestar contra a sociedade que se conforma ­
em seu funeral, as ruas são tomadas por uma multidão silenciosa. No Maio
francês morreram cinco pessoas, duas delas alinhadas a De Gaulle.

"Esses dois são ausências na literatura, no cinema", registra João, contando a


dificuldade em encontrar imagens. "É quase como se os mortos da direita não
existissem porque a história foi escrita de determinada maneira. Essa
questão do uso político dos mártires me interessa. Como algumas imagens
são usadas politicamente era algo de Coutinho também", diz, citando
Eduardo Coutinho, um dos maiores documentaristas brasileiros, morto em
2014. Eram amigos. "O filme é dedicado a ele não só porque me faz uma falta
danada, mas sobretudo porque Coutinho atravessa o filme inteiro."

A reportagem avança sobre a água de coco, João para de gesticular por um


momento. Conta que começou a articular o filme em 2012, 2013 e 2014. "Me
tomou muito tempo. Foi o período em que a gente aqui experimentou essa
incapacidade de se relacionar com quem tem uma opinião diferente da tua. A
sociedade brasileira se cindiu, ficou tudo muito crispado. Você não vê
virtudes no adversário, o adversário não vê você. A tua posição em relação à
Lava­Jato, ao Moro..."

­ O morto do outro lado não importa.

­ Não importa ­ repete o cineasta deslizando do script da entrevista ­, você é


imediatamente colocado em um lugar, o que é pobre. Não há mais sutileza,
não há mais ambiguidade. Isso, de alguma maneira, talvez tenha me feito
perceber com generosidade a maneira como minha mãe viu aquilo que era
tão oposto ao que ela acreditava. Mamãe era de Minas Gerais profundo.
Família, religião, o panteão dos santos. Tinha tudo para se horrorizar com o
movimento mais radical antiburguês que talvez o século XX tenha
experimentado. No entanto, passa quase um mês inteiramente tomada pela
beleza do que vê, vendo aquilo com o qual discordava, mas sem cegá­la para
o que era comovente e belo.

João avisa que está pensando algo de trás para a frente, e pela primeira vez.
"Talvez aquilo tenha me chamado tanto atenção em função do que eu via no
dia a dia, entre amigos, na família, na redação. As conversas eram pobres,
binárias. Ou se é zero ou se é um."

Alguém entra na redação e dispersa o foco. "Chegou o 'piauí Herald'", ri João,


apontando para o jornalista Eduardo Heck de Sá, editor da página de humor
da revista, que acaba de chegar.

Corta!
Voltamos à curva ascendente. João agora é o jornalista, publisher e dono da
"piauí", revista que criou em 2006, tem 60 mil exemplares e faz um
jornalismo contemporâneo único no país. "Comecei a fazer documentário por
causa do jornalismo. De determinado tipo de jornalismo", especifica, citando
a "New Yorker" e alguns de seus lendários jornalistas, Lillian Ross, o escritor
Joe Mitchell.

"E isso não é retórico, não me sinto um cinéfilo. Cinema nunca foi central na
minha vida, como para o Waltinho. Sou acidental, o que não significa que
seja um diletante. Aprendi a me tornar um profissional desse negócio. Mas o
que me levou a filmar de determinada maneira são coisas que li, muito mais
do que coisas que vi. E o jornalismo americano teve uma influência muito
grande."

A reportagem de João sobre o caseiro


Francenildo, personagem central no
escândalo que derrubou o então ministro
da Fazenda Antonio Palocci, começa
como roteiro de filme. "Francenildo dos
Santos Costa era caseiro, tinha 24 anos,
quatro bermudas, três calças jeans, cinco
camisetas (..) e salário de R$ 370 quando
tudo começou, em março de 2006." A "Tudo o que não quero (...) é fazer alguma
matéria, publicada dois anos depois do coisa que seja amadora, que seja um
fato, fazia uma fotografia de como capricho", diz João
funciona a máquina de Brasília.

"Como é que todas as instâncias se relacionam com todas as outras", conta


João, "o sistema financeiro, o STF, o Congresso, a Polícia Federal, o
Executivo, todos entraram em ação naquele momento para esmagar uma só
pessoa, que era o Francenildo. Isso não dá para fazer no calor da hora."

A enxuta redação da "piauí" torna a competição com os outros, em cima dos


fatos, impossível. "O nosso modus operandi é o seguinte: podemos chegar
antes ou chegar depois. Chegar junto não dá certo, porque a gente perde." E
conclui: "Não temos pressa".

Igualmente meticulosa, a primeira contribuição de JMS (como é conhecido


na redação) à "piauí" foi no número 1, de outubro de 2006. Acompanhou
Roberto Jefferson no dia do segundo turno das eleições que levariam o
presidente Lula de novo ao Planalto. O jeito de se expressar do delator do
mensalão foi minuciosamente retratado. "Seu vocabulário é manuseado com
cuidados de relojoeiro", narra João, dizendo que Jefferson não fala "ondas",
prefere "vagas"; "não diz 'Acho', é 'Creio'", e outros "arabescos do fraseado".
Ele o segue até a visita ao pai, Roberto Francisco, um professor aposentado
de matemática. O texto faz um zoom para o leitor. Roberto Francisco gostava
de Bilac, presidia a União Brasileira de Trovadores e foi o mestre do filho
político. "Aquela maneira operística do Roberto Jefferson falar, ele aprendeu
em casa, com o pai."

João Moreira Salles transfere para o jornalismo seu interesse pelas


entrelinhas, pelas conversas que não podem ser antecipadas, pelos
momentos em que, como diz, "nada acontece e tudo se revela". Moldou a
"piauí" com um grupo de jornalistas, como uma revista de textos longos
("Ninguém aqui é limitado por espaços, mas ninguém ganha latifúndios
quando, na verdade, só precisa de uma chácara", esclarece), fruto de
investimento, tempo e reflexão. E a transformou em uma peça de resistência
do que se produz de maneira geral no jornalismo. "Eu queria ler uma revista
assim em língua portuguesa, me sentia um pouco colonizado tendo que ler
em inglês. Porque essa forma foi inventada no mundo anglo­saxão."

Foi assim que, em agosto de 2007, JMS publicou o perfil de Fernando


Henrique Cardoso, depois de acompanhá­lo durante dez dias em 19
compromissos, duas palestras, quatro cidades, sete aeroportos, seis aviões,
dois continentes e 10 mil quilômetros. "Queria ficar com ele nos momentos
de baixa intensidade, quando não está diante dos luminares, mas em fila de
espera, dentro do táxi. E ver o que surge dessas conversas", conta.

A "piauí" vai no caminho oposto do espírito do tempo. "Aquele pessoal ali da


internet luta, desesperadamente, todos os dias, para que ela se torne menos
anacrônica. E eles têm razão nessa luta. Mas batem com um DNA que nasceu
no papel, acreditando que jornalismo custa caro e, portanto, tem que ser
cobrado, entende?" A temperatura da marca vem nos festivais piauí
GloboNews, que acontecem há três anos. É o palco onde se discute como se
faz jornalismo e o que está acontecendo no mundo.

"Ali foi a primeira vez em que ouvi falar de jornalismo de checagem e


jornalismo de contexto", diz JMS, dando os méritos da iniciativa à repórter
Daniela Pinheiro. "Neste ano não há como escapar de como o jornalismo se
relaciona com o poder num mundo em que a informação que vem do poder
deixa de ser confiável. Mentir se tornou política de Estado. Agora não apenas
em países autoritários, que controlam o aparato de informação, mas nos
EUA, por exemplo."

Novo deslize no roteiro original. Hisssss! Retornamos falando do "negócio


jornalismo".

­ E como business...

­ Não é um business ­ rebate o publisher na hora ­, o jornalismo está


deixando de ser business. Está inserido em uma indústria em crise, ela
inteira.

Conta o caso do "The Sun", o escandaloso tabloide de Rupert Murdoch que


foi bem­sucedido em sua campanha pelo Brexit, "não deve ter nada com mais
de três parágrafos, muita imagem, celebridade, mulher nua na segunda
página", mas perdeu 60 milhões de libras em 2016. Na "piauí", as curvas
entre custos e receitas estão em paralelo, a publicação não perde leitor e
assinante, e nem receita publicitária na crise.

"Para ser preciso, perdemos um pouco de publicidade em 2015, mas


aumentamos o número de assinantes. A fidelidade do leitor da 'piauí' é uma
das mais altas do mercado, se não for a mais alta. Acho que esse é um dado
bacana." E completa: "Não quero ser presunçoso, mas como é uma obra
coletiva da qual eu hoje estou mais afastado do que gostaria, posso dizer,
porque o mérito é deles muito mais do que meu: acho que a 'piauí' melhora a
paisagem do jornalismo brasileiro".

Isso foi reconhecido em 2014, quando a "piauí" ganhou o Esso na categoria


"melhor contribuição à imprensa", o maior prêmio do jornalismo brasileiro.
O júri considerou o resgate que a revista faz da grande reportagem e seu
aprofundamento em temas atuais. Não foi o único Esso da "piauí". Em 2011,
JMS ganhou o seu, particular, na categoria informação científica, tecnológica
e ecológica. Foi pelo perfil de Artur Avila, um carioca que aos 19 anos era
levado ao Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada, o Impa, pela
mãe e nunca havia comido em um restaurante italiano. Pois bem, o moço era
um gênio da matemática.

JMS contou na "piauí" quem era Avila, à época com 31 anos, o que era o Impa
("sob vários aspectos a melhor instituição de ensino superior do país") e
também como o rapaz resolveu um problemão ao acordar de madrugada, no
seu apartamento do Leblon, e, em vez de virar para o lado, decidiu "pensar
um pouco". Aquele foi um perfil visionário. Em 13 de agosto de 2014 Avila
ganhou a medalha Fields, a maior honra que um matemático pode receber e
"o feito mais importante da história da ciência brasileira". A frase está na
única edição especial da "piauí", dedicada a ele.

Não é de hoje que João Moreira Salles


gosta de matemática, "a única ciência que
lida com aAssine o Valor
verdade", Econômico
escreveu. Ele se
incomoda com o desequilíbrio que existe
entre o glamour das humanas e a pouca
valorização que se dá às exatas no Brasil,
para usar uma simplificação que todos
entendem. Em ensaio publicado na
Sede paulistana do Instituto Moreira Salles, "Folha de S.Paulo" em 2010, derivado de
presidido por João: projeto do escritório uma participação em simpósio da
Andrade Moretin Arquitetos custou cerca de Academia Brasileira de Ciências, João
R$ 80 milhões e será inaugurado em escreveu que em 2008 o país formou
agosto
1.114 físicos, 1.972 matemáticos e 2.066
modistas: "Alimento o pesadelo que, em alguns anos, os aviões não
decolarão, mas nós todos seremos muito elegantes".
Nos últimos três anos, João e Branca se empenharam em um périplo para
abrir, em março, o primeiro instituto brasileiro privado exclusivamente
voltado para o financiamento da pesquisa e da divulgação científica. O
Serrapilheira nasceu a partir da doação do casal de R$ 350 milhões a um
fundo patrimonial. Calcula­se que os rendimentos anuais fiquem entre R$ 15
milhões e R$ 18 milhões, e esse dinheiro vai financiar projetos de física,
química, matemática, geociências, ciências biológicas e médicas. Só não vai
atuar em ciências humanas e artes, áreas já cobertas pelo Instituto Moreira
Salles (IMS). "Tudo o que não quero, tanto no jornalismo como nos
documentários e agora no Serrapilheira, é fazer alguma coisa que seja
amadora, um capricho", diz. "Serrapilheira será uma empreitada de
cientistas, não minha; eu não sou cientista."

João é conhecido por ser perfeccionista. Com a ideia na cabeça, foi conhecer
o terceiro setor, que, como diz, "é muito mais complexo do que o IMS". A
cruzada está descrita em um slideshow divulgado no dia do lançamento do
instituto. Visitou fundações, agências de fomento e organizações sociais de
todas as áreas. Foi às fundações Ford, Avina, Roberto Marinho, Bradesco e
Arapyaú, para citar algumas no Brasil. Visitou a Sloan e a Rockfeller, nos
Estados Unidos; a Organization of Tropical Studies, na Costa Rica; a
Fraunhofer Gessellschaft, na Alemanha. Ouviu com atenção o método de
criação da Fundação Simons, de Jim Simons. Trata­se de um "extraordinário
matemático", conta, que "se tornou muitas vezes bilionário" e tomou a
decisão, com sua mulher, de criar uma fundação para apoiar a ciência básica.
Reuniu em casa 20 cientistas de diferentes campos para perguntar qual área
de estudos não deslancha por falta de dinheiro. "E aí definiu em que iria
investir. Só investem em 'profound questions', questões realmente
fundamentais da ciência."

João e Branca emularam a estratégia de Simons e promoveram duas reuniões


com pesquisadores de ciências da vida e das exatas. Vieram pessoas de
Munique, Yale, Brown, do Jardim Botânico de Nova York e mais um tanto de
renomados brasileiros. O instituto começou a tomar forma com a criação dos
conselhos científico e de administração, e a escolha dos quadros.

"Vamos apoiar ciência onde ela for de excelência no Brasil,


independentemente de ter ou não qualquer aplicação prática, sem
necessariamente responder à pergunta 'pra que serve?'. É uma expansão do
conhecimento humano. Isso em si já é de uma importância e de uma beleza
muito grandes."

Beleza é o nome do instituto. João ouviu o termo ao caminhar com um


agrônomo e um biólogo há alguns anos, no sul da Bahia. "Serrapilheira é a
camada formada pelo acúmulo de folhas e matéria orgânica que cobre o solo
das florestas. É a principal via de retorno de nutrientes ao solo", diz o
material de divulgação do Serrapilheira. "Quero defender a beleza da
curiosidade humana", diz.

Na área de humanas, João preside o IMS, o centro cultural da família


idealizado pelo patriarca. Tem sede em Poços de Caldas e no Rio, na famosa
Casa da Gávea de Santiago, marco da arquitetura dos anos 50, plantada em
terreno de 11 mil m2 de floresta da Tijuca e cercada pelo paisagismo de Burle
Marx. Em 21 de agosto, a unidade de São Paulo do IMS será inaugurada.
Ficará no número 2.424 da avenida Paulista. A família fez um aporte de R$
80 milhões ao fundo de endowment, que sustenta o instituto, para a
construção.

O prédio de sete pavimentos foi concebido pelo escritório Andrade Moretin.


O projeto criou um vão livre de 17m de altura e acima uma espécie de caixa
de vidro. Ao todo são 1.200 m2, com áreas destinadas a exposições,
cineteatro, biblioteca especializada em fotografia, sala para cursos, uma
unidade da Livraria da Travessa e o café e restaurante Balaio, parceria com
Rodrigo Oliveira, chef do Mocotó, de São Paulo.

Ao término da entrevista, João saiu pela sala e nos mostrou os cartazes do


filme. Um deles, em três tempos, mostra um rapaz lançando uma pedra sobre
a polícia em gesto de atleta olímpico. O outro é da estudante sorridente que,
rodeada de colegas, atende ao telefonema de uma mãe desesperada por
notícias do filho. O rapaz não aparece em casa há uma semana, enquanto o
mundo explode nas ruas. Os outros jovens riem da situação, mas a moça é
generosa e tranquiliza a mãe. Faz tudo com gentileza e alegria. É um
momento encantador, que seduziu o cineasta.
momento encantador, que seduziu o cineasta.
"Para mim essa cena exprime o que há de melhor em maio de 68", diz,
frustrado por não ter conseguido comprar os direitos da imagem. "É um
momento de felicidade, de pura potência. Tudo é possível ali. Aquela menina
pode tudo, está no início da vida, acreditando em alguma coisa. Está fazendo
a revolução."

Corta!

João fez as fotos no deque, despediu­se e sumiu. O fotógrafo guardou o


equipamento e fomos saindo vagarosamente. O cineasta nos surpreendeu na
escada com três "piauís" na mão e sorrindo: "Estão fresquinhas. Acabaram de
chegar!" disse, todo pimpão, entregando a edição 128, de maio, com a
sarcástica capa da artista russa Nadia Khuzina sobre os principais
personagens da República, uma matéria contando o que move os terroristas
franceses, a história da criança que mudou de gênero, a explicação do
derretimento do gelo na Groenlândia. No 'The piauí Herald': "O Magazine
Odebrecht liquida tudo!". E, depois do ponto final de cada artigo,
naturalmente, a estrelinha do Botafogo.

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